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A GAROTA INGLESA
A GAROTA INGLESA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
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AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.


CONTINUA

14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
15
AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.


CONTINUA

14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
15
AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.


CONTINUA

14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
15
AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.


CONTINUA

14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
15
AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.


CONTINUA

14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
15
AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.


CONTINUA

14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
15
AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.


CONTINUA

14
AIX-EN-PROVENCE, FANÇA
A cidade antiga de Aix-en-Provence - fundada pelos romanos, conquistada pelos visigodos e embelezada por reis - pouco se parecia com Marselha, sua vizinha ao sul,
que tinha drogas, crimes e um bairro árabe onde mal se falava francês. Aix tinha museus, shoppings e uma das melhores universidades do país, e seus residentes tendiam
a olhar de nariz empinado para os moradores de Marselha. Eles raramente visitavam a outra cidade, em geral só para usar o aeroporto, e saíam o mais depressa possível,
torcendo para conseguirem manter todas as suas valiosas posses.
A principal via pública de Aix era a Cours Mirabeau, uma avenida longa e larga repleta de cafés e sombreada por duas fileiras paralelas de plátanos frondosos. Ao
norte, havia um emaranhado de ruas estreitas e pequenas praças conhecido como o Quartier Ancien. Era uma área voltada principalmente para pedestres, e só as ruas
largas ficavam abertas ao trânsito de veículos motorizados. Gabriel fez uma série de manobras aprendidas no Escritório para verificar se estava sendo seguido. Depois
de se certificar de que estava sozinho, dirigiu-se para uma pequena praça movimentada. No centro, ficava uma coluna antiga encimada por um capitel romano e, no canto
sudeste, parcialmente obscurecido por uma frondosa árvore, o Le Provence. Havia algumas mesas na praça e outras ao longo da Rue Espariat, onde dois velhos estavam
sentados com o olhar perdido e uma garrafa de pastis entre eles. Era um lugar frequentado mais por moradores do que turistas, pensou Gabriel. Um lugar onde um homem
como René Brossard se sentiria à vontade.
Já no café, Gabriel foi até a seção de tabacaria e pediu um maço de Gauloises e um exemplar do Nice-Matin. Enquanto esperava o troco, analisou o interior para se
certificar de que havia apenas uma entrada. Depois, saiu para escolher um posto fixo de observação que lhe possibilitasse ver as mesas de ambos os lados do exterior
do restaurante. No momento em que avaliava suas opções, dois adolescentes japoneses se aproximaram e perguntaram, num francês terrível, se Gabriel poderia tirar
uma foto deles. Gabriel fingiu não compreender. Ele se virou e percorreu a Rue Espariat, passando pelos dois homens da Provence e caminhando em direção à praça Charles
de Gaulle.
O barulho dos carros passando pela rotatória movimentada era irritante depois da quietude do Quartier Ancien. Brossard poderia deixar Aix por outra rota, mas Gabriel
duvidava. A praça Charles de Gaulle era o mais próximo que um carro podia chegar do Le Provence. Tudo aconteceria rapidamente, pensou Gabriel, e se eles não estivessem
preparados, iriam perdê-lo. Olhou para a Cours Mirabeau e para as folhas dos plátanos tremulando à brisa tênue, e calculou o número de agentes e veículos que seria
necessário para fazer o trabalho da forma correta. No mínimo doze, com quatro veículos, para evitar serem detectados durante a perseguição até a propriedade isolada
onde a garota era mantida presa. Balançando a cabeça devagar, andou até uma cafeteria nos limites da rotatória onde Keller estava sentado, tomando café sozinho.
- E aí? - perguntou o Inglês.
- Vamos precisar de uma moto.
- Onde está o dinheiro que você pegou de Lacroix antes de eu matá-lo? Franzindo a testa, Gabriel bateu de leve na cintura. Keller deixou alguns euros na mesa e se
levantou.
Havia uma concessionária ali perto, na Boulevard de la République. Depois de passar alguns minutos examinando uma lista, Gabriel escolheu uma scooter Peugeot Satelis
500; Keller pagou com dinheiro vivo e registrou-a no nome de uma de suas identidades falsas em território corso. Enquanto o vendedor providenciava a papelada, Gabriel
atravessou a rua e entrou numa loja de roupas masculinas, onde comprou uma jaqueta de couro, uma calça jeans preta e botas de couro. Ele se trocou num dos vestiários
e colocou as roupas antigas no compartimento de armazenamento da scooter. Em seguida, depois de colocar um capacete preto, montou nela e seguiu Keller pela avenida
até a praça Charles de Gaulle.
Já eram quase cinco horas da tarde. Gabriel deixou a scooter no começo da Rue Espariat e, com o capacete debaixo do braço, subiu a rua estreita até a pequena praça
da coluna romana. Os dois velhos ainda não tinham saído da mesa no Le Provence. Gabriel entrou no pub irlandês do outro lado da rua e pediu uma lager para a garçonete,
perguntando-se por um instante por que alguém frequentaria um local como aquele no sul da França. Seu raciocínio foi interrompido pela visão de um homem muito musculoso
descendo a rua nas sombras, com uma maleta de metal na mão direita. O estranho entrou no Le Provence e saiu um momento depois com um café creme e uma dose de algo
mais forte. Enquanto se sentava numa mesa vazia, passou o olhar pela praça lentamente, detendo-se um instante em Gabriel antes de prosseguir. Allon consultou o relógio:
17hl0 em ponto. Tirou o celular do casaco e ligou para Keller.
- Eu disse que ele viria - falou o Inglês.
- Como ele chegou?
- Mercedes preto.
- Que tipo?
- Classe E.
- Placa?
- Adivinhe.
- O mesmo carro que estava esperando na marina?
- Vamos saber em breve.
- Quem estava dirigindo?
- Uma mulher, 20 e tantos anos, talvez 30 e poucos.
- Francesa?
- Talvez. Se quiser, eu pergunto para ela.
- Onde ela está agora?
- Dando voltas pela rotatória.
- Onde você está?
- Dois carros atrás dela.
Gabriel desligou e guardou o celular no casaco. De outro bolso, tirou um dos telefones que tinha pegado no barco de Marcel Lacroix. Tudo aconteceria rápido, pensou
de novo, e se eles não estivessem preparados iriam perdê-lo. Doze agentes, quatro veículos - era disso que ele precisava para fazer o trabalho direito. Mas Gabriel
tinha só dois veículos e o único outro membro da equipe era um assassino profissional que certa vez tentara matá-lo. Tomou um gole da cerveja, mesmo que apenas para
manter o disfarce. Em seguida, fitou o celular do homem morto e viu os minutos passarem devagar.
15
AIX-EN-PROVENCE, FRANÇA
Às 17hl8, o tempo pareceu parar. O ruído distante do trânsito diminuiu, as pessoas na pequena praça congelaram, como se fossem uma pintura a óleo feita por Renoir.
Gabriel, o restaurador, foi capaz de examinar a cena com todo o tempo do mundo. Um quarteto de alemães bem-vestidos examinava o cardápio num restaurante espanhol.
Duas garotas escandinavas de sandálias analisavam, confusas, o último mapa de papel do mundo inteiro. Uma mulher atraente sentada na base da coluna romana com um
garoto de uns 3 anos nos joelhos. E um homem no Le Provence sem nenhuma companhia além da maleta com 100 mil euros. Um dinheiro que fora fornecido por um homem sem
país, chamado apenas de Paul. Gabriel olhou para a mulher e a criança e, em sua mente, viu um clarão de fogo e sangue. Em seguida, observou de novo o homem sozinho
no café. Já eram 17h20. No instante em que o relógio de Gabriel mostrou 17h21, o homem se levantou, pegou a maleta e partiu.
“Há um plano B, caso um de vocês não consiga aparecer?”
“Le Cézanne, subindo um pouco a rua!’
“Quanto tempo ele vai esperar lá?”
“Dez minutos.”
“E se você não der as caras?”
“O acordo é cancelado.”
Mas por que um criminoso profissional deixaria de aparecer para um pagamento de 100 mil euros? Porque o criminoso estava, naquele instante, no fundo do Mediterrâneo,
a quase 13 quilômetros a su-sueste de Marselha, com uma bala no cérebro. René Brossard não poderia saber disso, claro, e essa era a razão pela qual Gabriel estava
com o telefone do homem morto à mão. Observou Brossard se mover rapidamente pela rua sombreada, com a maleta na mão. Então, olhou para os alemães e as escandinavas,
para a mãe e o filho que, num dos recônditos mais escuros de sua memória, ainda estavam queimando. Eram 17h22. Em oito minutos a perseguição teria início. Bastava
um erro. Um erro, e Madeline Hart morreria. Tomou mais um gole da cerveja, porém sentia agora um gosto horrível. Fitou a mulher e o garoto e observou, impotente,
enquanto as chamas consumiam a carne deles.
Às 17h25, ligou de novo para Keller.
- Onde ela está?
- Continua dirigindo em círculos.
- Talvez esteja só deixando você ocupado. Talvez haja um segundo carro.
- Você é sempre tão pessimista?
- Só quando a vida de uma jovem está em jogo.
Keller não disse nada.
- Onde ela está agora?
- Se eu tivesse que adivinhar, diria que está indo na sua direção.
Gabriel desligou e pegou o outro celular. Discou o número de Brossard, pressionou bem o polegar sobre o microfone e encostou o aparelho no ouvido. Dois toques, seguidos
pela voz de Brossard:
- Cadê você, porra?
Gabriel apertou o dedão com mais força contra o microfone e ficou em silêncio.
- Marcel? É você? Onde você está?
Gabriel tirou o celular do ouvido e desligou. Trinta segundos depois, discou de novo. Novamente, Gabriel cobriu o microfone com o dedão. Brossard atendeu no primeiro
toque.
- Marcel? Marcel? Achei que tivesse dito para você não usar mais telefones. Você tem três minutos. Aí eu vou embora.
Dessa vez foi Brossard que desligou. Gabriel guardou o celular no bolso e telefonou para Keller mais uma vez.
- Como foi? - perguntou o Inglês.
- Ele acha que Lacroix está são e salvo em algum lugar com sinal fraco de celular.
- Muito fraco.
- Onde ela está agora?
- Chegando perto da praça Charles de Gaulle.
Gabriel desligou e verificou o horário. Em três minutos Brossard iria embora. Ele estaria agitado, cauteloso. Poderia reparar num homem perseguindo-o a pé, especialmente
se o tivesse visto tomando lager no pub irlandês quando estava no Le Provence. Mas, se Brossard apenas passasse pelo homem a caminho do carro, talvez estivesse menos
inclinado a considerá-lo suspeito. Era uma das regras de ouro da vigilância criadas por Shamron. Às vezes, pregava ele, era melhor seguir um homem pela frente do
que de trás.
Gabriel consultou o relógio. Às 17h28, ele saiu da mesa no pub e desceu a Rue Espariat com o capacete debaixo do braço. Le Cézanne era o último estabelecimento comercial
à direita, no ponto em que a rua dava na praça Charles de Gaulle. Brossard estava numa mesa no lado de fora. Quando Gabriel passou, sentiu os olhos do francês perfurando
suas costas, mas se forçou a não se virar. A scooter estava onde ele a deixara, estacionada ao lado de várias outras motos, embaixo de um plátano que começava a
perder suas folhas. Três delas tinham caído no selim da scooter. Gabriel tirou-as, montou e colocou o capacete.
Pelo retrovisor, viu Brossard se levantando da mesa e entrando na rua estreita. Alguns segundos depois, o francês passou a alguns centímetros do ombro direito de
Gabriel. Tão perto que sentiu o cheiro de seu perfume. Tão perto que, se quisesse, poderia ter arrancado a maleta de sua mão esquerda. Antes, Brossard a carregara
com a outra mão, porém isso não era mais possível, pois estava segurando um celular, pressionado com força contra o ouvido.
Gabriel deu partida na scooter quando Brossard adentrou a esplanada junto à praça, olhando de um lado para outro, como a torre de um tanque buscando um alvo para
destruir. Como era fim de tarde, o aglomerado de pessoas já aumentara e Gabriel só não o perdeu de vista porque o metal da maleta reluzia ao entardecer como uma
moeda recém-cunhada. Quando Brossard alcançou a rotatória, seu celular já estava de volta no bolso e ele estendeu a mão para abrir a porta do carona de um Mercedes
preto Classe E que parou junto ao meio-fio.
Entrou no carro no momento em que um Renault passou ao seu lado e entrou no Boulevard de La République. Dez segundos depois, o Mercedes fez o mesmo. Observando o
golpe de sorte, Gabriel não pôde deixar de sorrir. Às vezes, pensou, era melhor seguir um homem pela frente do que de trás. Acelerou a scooter e entrou no trânsito,
os olhos fixos nas luzes traseiras do Mercedes. Um erro, ele estava pensando. Um erro, e a garota morreria.
Eles pegaram o Boulevard de La République até a Route d’Avignon e, então, seguiram para o norte. Por cerca de um quilômetro, só viram lojas e semáforos, mas aos
poucos surgiram prédios e casas, e logo eles percorriam rapidamente uma via com quatro faixas. Depois de mais um quilômetro, um posto de gasolina apareceu à direita.
Keller reduziu a velocidade e ligou a seta, e o Mercedes o ultrapassou na mesma hora. Em seguida, de repente, a via voltou a ter apenas duas faixas. Gabriel se manteve
a uns 50 metros atrás do Mercedes, tendo Keller logo atrás.
Àquela altura, o sol já tinha se posto e a noite outonal caía com a rapidez de uma cortina descendo no palco. Os ciprestes que ladeavam a rua foram do verde-escuro
ao preto antes de serem consumidos pela escuridão. Conforme a região foi envolvida pelas sombras, o mundo de Gabriel diminuiu: faróis brancos, luzes de lanterna
vermelhas, o rugido do motor da scooter, o zumbido do Renault de Keller a alguns metros de distância. Seus olhos estavam focados na traseira do Mercedes, mas em
sua mente Gabriel examinava um mapa da França. Naquela parte da província, havia vários vilarejos e cidades, muito grudados uns nos outros, como pérolas num colar.
Mas, se continuassem seguindo naquela direção, entrariam em Vaucluse. Lá, no Lubéron, os vilarejos ficariam mais esparsos e o terreno seria mais acidentado - o tipo
de lugar onde manteriam a garota. Algum lugar isolado, algum lugar com uma única rua para entrar e para sair. Dessa forma, saberiam se estavam sendo observados.
Ou seguidos.
Eles passaram nos limites de uma cidade de pouca importância chamada Lignane. Logo em seguida, o Mercedes entrou no estacionamento deserto de uma loja que vendia
objetos de cerâmica para jardim, e Gabriel e Keller não tiveram escolha além de seguir adiante. Uns 200 metros adiante, havia uma rotatória. Uma entrada dava em
Saint-Cannat e a outra, que passava por uma via menor, dava em Rognes. Gabriel gesticulou para que Keller fosse na direção da primeira comuna. Depois de desligar
o farol, inclinou a scooter na direção da outra e rapidamente buscou abrigo à sombra de uma parede de concreto. Após um instante, o Mercedes passou com o motor ronronando,
mas agora Brossard estava ao volante, e a mulher, que Gabriel pôde ver claramente pela primeira vez, encarava o retrovisor com atenção. Ele ligou para Keller e contou
as notícias.
No caminho para Rognes, Gabriel pareceu voltar no tempo. Havia menos pavimentação, a noite ficou mais escura e o ar esfriava à medida que eles subiam em direção
à base dos Alpes. Uma lua crescente aparecia e desaparecia por trás das nuvens, ora iluminando, ora toldando a paisagem. Dos dois lados da via, vinhedos acompanhavam
as colinas como soldados indo para a guerra, mas, fora isso, a terra parecia desprovida de habitação humana. Mal havia iluminação elétrica e só se via o Mercedes
na pista. Gabriel estava a alguma distância do veículo e Keller seguia bem atrás para não ser visto por Brossard. Sempre que possível, Allon dirigia sem o farol.
Castigado pelo vento frio e sem visibilidade total, ele teve a sensação de viajar à velocidade do som.
Conforme eles se aproximavam de Rognes, alguns carros e caminhões enfim apareciam. No centro da cidade, o Mercedes parou pela segunda vez, em frente a uma charcutaria
grudada numa boulangerie. Novamente Keller seguiu em frente, mas Gabriel deu um jeito de se esconder atrás de uma igreja antiga. De lá, observou a mulher sair do
carro e entrar sozinha nas lojas, saindo alguns minutos depois com várias sacolas plásticas repletas de comida. Era o suficiente para alimentar uma casa cheia de
pessoas, pensou Gabriel, deixando alguns restos para um refém. O fato de que eles tinham parado para comprar suprimentos sugeria que Brossard não suspeitava estar
sendo seguido. Também indicava que já se aproximavam de seu destino.
A mulher colocou as compras no porta-malas, deu uma olhada na rua vazia e se acomodou no banco do carona. Brossard começou a andar antes de ela fechar a porta. Percorreram
depressa as ruas do centre-ville e entraram na D543, uma estrada com duas pistas que liga Rognes a Saint-Christophe. Depois do reservatório da comuna, Brossard atravessou
o rio Durance, às seis e meia, e entrou em Vaucluse.
Eles continuaram seguindo para o norte, passando pelos vilarejos pitorescos de Cadenet e Lourmarin antes de subirem a encosta sul do Lubéron. Nas planícies do vale
do rio, Gabriel permaneceu um quilômetro ou mais atrás de Brossard, mas nas ruas sinuosas das montanhas, ele foi obrigado a reduzir a distância e manter Brossard
sempre à vista. Passando por Bunoux, sentiu uma pontada de medo, achando que fora notado. Mas, como o Mercedes continuou em ritmo acelerado por outros 10 quilômetros
sem tomar nenhuma ação evasiva, seus temores diminuíram. Gabriel seguiu dirigindo pela noite, ladeado por paredes de rocha e afloramentos graníticos que resplandeciam
sob o luar num branco luminoso, com os olhos fixos nas lanternas traseiras do Mercedes e os pensamentos voltados para uma mulher que ele não conhecia.
Por fim, Brossard entrou numa fresta entre as árvores junto à estrada e desapareceu. Gabriel não se atreveu a segui-lo logo de cara, então continuou em frente por
mais um quilômetro antes de dar meia-volta. O caminho que Brossard tomara estava apenas parcialmente pavimentado e mal tinha espaço para dois veículos lado a lado.
Gabriel chegou a um pequeno vale com diversos campos de cultivo separados por sebes e árvores. Havia três casas, duas na ponta oeste e uma solitária, a leste, atrás
de uma barreira de ciprestes. O Mercedes não estava visível, então provavelmente Brossard tinha desligado o faróis por precaução. Gabriel pensou no tempo que levara
para dar meia-volta e quanto tempo Brossard demoraria para chegar a cada uma das casas. Desmontou da scooter e correu os olhos pelo vale; Brossard precisaria parar
o carro em algum momento. E quando isso acontecesse, as luzes de freio entregariam sua posição. Depois de dez segundos, Gabriel parou de olhar para as casas a oeste,
mais próximas, e se focou na mais distante a leste. Então, viu a luz vermelha, como um fósforo sendo aceso. Por um instante, ela pareceu flutuar sobre um dos ciprestes,
como um sinal de alerta no topo de uma torre. Em seguida, apagou-se, e o vale voltou a ser tomado pela escuridão.
16
LUBÉRON, FRANÇA
O vilarejo mais próximo tinha apenas uma terrível acomodação para pernoites, então eles dirigiram até Apt e fizeram check-in num pequeno hotel dentro do perímetro
do centro antigo. O salão de refeições estava vazio e | havia apenas um garçom idoso servindo. Eles comeram em mesas separadas * e andaram pelas ruas silenciosas
e escuras até a velha Basílica de Santa Ana. A construção em forma de domo cheirava a fumaça de velas e incenso, com um toque de mofo. Gabriel analisou o retábulo
com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, em seguida se sentou ao lado de Keller em frente a uma série de velas votivas com chamas suaves. O Inglês estava
curvado e pressionava a ponte do nariz com o dedão e o indicador.
- Ela estava certa mesmo... - disse ele num sussurro penitente.
- Quem?
- A signadora.
- Talvez eu esteja enganado - falou Gabriel, erguendo os olhos para a cúpula mas não me lembro de a signadora mencionar qualquer coisa sobre uma casa num vale agrícola
no Lubéron.
- Mas ela mencionou o mar e as montanhas.
- E...?
- Eles a trouxeram pelo mar e a estão escondendo nas montanhas.
- Ou talvez já a tenham levado para outro lugar. Talvez ela já esteja morta.
- Meu Deus - sussurrou Keller. - Por que você é sempre tão pessimista, porra?
- Lembre-se onde você está, Christopher.
Keller se levantou, andou até as velas votivas e acendeu uma. Ele já ia voltar para o banco, quando viu Gabriel encarando a urna de doações. Então, tirou algumas
moedas do bolso e depositou-as uma a uma na fresta. O som pareceu ecoar pelo domo ainda muito depois de Keller voltar a sentar.
- Você passa muito tempo em igrejas católicas? - perguntou ele.
- Mais do que você imagina.
Keller retomou sua posição de reflexão penitente. O vidro vermelho das velas votivas projetou uma luz rósea sobre seu rosto.
- Digamos que a garota está em outro lugar... - disse ele após um momento. - Mas todas as evidências apontam o contrário, senão Brossard não estaria aqui. Ele teria
voltado para a Marselha e já estaria trabalhando no próximo golpe.
- No momento, provavelmente está tentando descobrir por que Marcel Lacroix não foi a Aix coletar o dinheiro. Quando ele contar o que aconteceu, Paul vai ficar nervoso.
- Você não passa muito tempo com criminosos, passa?
- Mais do que você imagina - repetiu Gabriel.
- Brossard não vai dizer nada a Paul sobre o que aconteceu hoje em Aix. Ele vai falar que tudo correu de acordo com o combinado. E vai manter o dinheiro para si.
Bom, não todo o dinheiro: imagino que precise dar uma parte para a mulher.
Gabriel assentiu lentamente, como se Keller tivesse lhe dado uma grande lição espiritual. Virou a cabeça um pouco para observar uma mulher que caminhava até o centro
da basílica, de testa grande e cabelos escuros penteados para trás. Vestia um casaco impermeável de material sintético. Seus passos, assim como as moedas de Keller,
ecoaram na quietude da igreja ampla. Parando diante do altar principal, fez uma genuflexão e um lento sinal da cruz, da testa até o peito, do ombro esquerdo para
o direito. Depois, sentou no lado oposto da igreja e manteve o olhar fixo à frente.
- O único jeito de determinarmos se ela está lá - falou Gabriel depois de um instante - é observando a casa por um longo período. E não há como fazer isso sem um
posto fixo de observação adequado.
Keller franziu a testa em desaprovação.
- Você falou como um verdadeiro espião caseiro.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que você e sua laia não conseguem funcionar no campo sem flats secretos e hotéis de cinco estrelas.
- Judeus não acampam, Keller. Na última vez que judeus resolveram acampar, passaram quarenta anos perdidos no deserto.
- Moisés teria encontrado a Terra Prometida muito mais depressa se tivesse uns dois rapazes do Regimento para orientá-lo.
Gabriel olhou para a mulher de casaco. Ela continuava com o rosto virado para a frente, inexpressiva. Em seguida, ele encarou Keller e perguntou:
- Como vamos fazer, então?
- Nós, não. Eu vou fazer sozinho, do jeito que eu fazia na Irlanda do Norte. Um homem escondido com um binóculo e uma sacola para os dejetos. Do jeito tradicional.
- E se você for visto por um fazendeiro trabalhando em um daqueles campos?
- Um fazendeiro poderia passar andando por cima de um homem do SAS escondido e não o veria. - Keller fitou as velas por um tempo. - Uma vez eu passei duas semanas
num sótão em Londonderry vigiando um homem suspeito de ser terrorista do IRA, que vivia do outro lado da rua. A família católica que morava embaixo nunca soube que
eu estava na casa. E, quando chegou a hora de eu partir, eles não me ouviram indo embora.
- O que aconteceu com o terrorista?
- Ele teve um acidente. Foi uma pena. Era um alicerce da comunidade.
Gabriel escutou passos e, ao se voltar, viu a mulher saindo da igreja.
- Quanto tempo você consegue ficar naquele vale?
- Com comida e água o bastante, posso passar um mês. Mas 48 horas devem ser mais do que o suficiente para eu saber se ela está lá ou não.
- São 48 horas que nunca vamos ter de volta.
- Mas serão bem gastas.
- O que posso fazer?
- Me dar uma carona. Mas, quando eu estiver em posição, pode me esquecer.
- Então você não se incomoda se eu for a Paris e me afastar por algumas horas?
- Por que é que você tem que ir a Paris?
- Já está na hora de eu dar uma palavrinha com Graham Seymour.
Keller ficou em silêncio.
- Tem algo incomodando você, Christopher?
- Estou só me perguntando por que eu tenho que ficar sentado na lama por dois dias e você vai a Paris.
- Prefere que eu fique sentado na lama enquanto você vai ver Graham?
- Não - respondeu Keller, dando um tapinha no ombro de Gabriel. - Vá para Paris. É um bom lugar para um espião caseiro.
Eles já não dormiam havia muito tempo, então voltaram para o hotel com dez minutos de intervalo entre si e se retiraram para os seus quartos. Gabriel adormeceu em
poucos minutos e, ao acordar, se viu num quarto flamejante, iluminado pela agressiva aurora provençal. Quando chegou ao salão de refeições, Keller já estava lá,
recém-barbeado e com cara de ter dormido bem. Eles se cumprimentaram com um meneio de cabeça, como se fossem desconhecidos, e tomaram o café da manhã em silêncio,
separados por duas mesas. Depois, os dois voltaram para o centro antigo da cidade, dessa vez para fazer compras rápidas. Keller comprou um casaco pesado, um suéter
escuro de lã, uma mochila e duas lonas impermeáveis, além de água, alimentos processados e saquinhos com fecho - o suficiente para 48 horas. Em seguida, saborearam
juntos um almoço generoso e Keller optou por não tomar vinho. Ele vestiu as roupas novas enquanto Gabriel dirigia pelas montanhas até os limites do pequeno vale
com as três casas. Depois, desapareceu num matagal, tão ágil quando um veado alerta fugindo aos passos de um caçador. Àquela altura, o sol já estava se pondo. Gabriel
ligou para Graham Seymour em Londres mencionou um ponto de referência em Paris e desligou. Naquela noite, Deus, em sua infinita sabedoria, achou por bem enviar uma
tempestade outonal ao Lubéron. Gabriel ficou acordado em seu quarto de hotel, escutando a chuva bater na janela e pensando em Keller sozinho na lama. Na manhã seguinte,
tomou o café da manhã do hotel tendo por companhia apenas os jornais e o garçom de cabelos brancos. Então, dirigiu até Avignon e embarcou num TGV para Paris.
17
PARIS
- Estava começando a achar que nunca mais teria notícias.
Gabriel franziu a testa.
- Foram só cinco dias, Graham.
- Cinco dias podem parecer uma eternidade quando o primeiro-ministro está fungando no seu cangote.
Eles estavam caminhando ao longo do cais de Montebello, passando pelos bouquinistes. Gabriel vestia jeans e couro, já Seymour usava um casaco Chesterfield e sapatos
feitos à mão que pareciam nunca ter tocado qualquer superfície além do carpete que ia do seu escritório ao do diretor-geral. Apesar das circunstâncias, ele parecia
estar se divertindo. Já fazia muito tempo que não caminhava por uma rua sem guarda-costas, em Paris ou qualquer outro lugar.
- Você está em comunicação direta com ele? - perguntou Gabriel.
- Lancaster?
Gabriel assentiu.
- Não mais. Ele pediu para Jeremy Fallon servir de intermediário.
- Como você se comunica com ele?
- Pessoalmente e com muito cuidado.
- Mais alguém sabe do seu envolvimento?
- Eu faço tudo no meu tempo livre - disse Seymour, cansado -, quando não estou tentando ficar de olho nos vinte mil jihadistas que chamam nossa ilha abençoada de
lar.
- Como você está se virando?
- O diretor-geral suspeita que eu esteja vendendo segredos para os nossos inimigos, e minha esposa está convencida de que tenho um caso. Fora isso, estou me virando
bastante bem.
Seymour parou num dos cavaletes dos bouquinistes e examinou os livros com certo exagero. Parado atrás dele, Gabriel vasculhou a rua em busca de evidências de vigilância
- uma pose que parecesse muito artificial, um rosto que ele já tivesse visto muitas vezes. O vento provocava pequenas ondulações com espuma na superfície do rio.
Ao se virar, Gabriel viu Seymour segurando um exemplar desbotado de O Conde de Monte Cristo.
- O que acha? - perguntou Seymour.
- É um romance clássico de amor, ilusão e traição.
- Quero saber se estamos sendo observados.
- Parece que nós dois conseguimos entrar em Paris sem atrair a atenção dos nossos amigos em comum nos serviços de segurança franceses.
Seymour colocou o livro de volta no cavalete e voltou a andar com Gabriel. Então, enfiou a mão no bolso interno do casaco e retirou um envelope.
- Deixaram isto colado com fita adesiva ontem à noite na parte de baixo de um banco em Hampstead Heath. - Ele passou o envelope para Gabriel. - Em dois dias a garota
morre.
- Ainda não fizeram nenhuma exigência?
- Não, mas entregaram outra fotografia provando que ela está viva.
- Como informaram a localização do material?
- Fizeram uma ligação para o celular de Simon Hewitt usando um modulador de voz. Hewitt pegou o envelope durante sua corrida matinal, a primeira e única corrida
matinal que ele já fez. Obviamente, a tensão na Downing Street está um tanto alta no momento.
- Está prestes a piorar.
- Nenhum progresso?
- Na verdade - falou Gabriel -, acho que a encontrei. A questão é o que faremos a seguir.
Eles atravessaram a Petit Pont e caminharam pela esplanada em frente à Notre-Dame enquanto Gabriel contava em voz baixa o que tinha descoberto até aquele momento.
Que o homem com quem Madeline Hart havia almoçado na tarde de seu desaparecimento se apresentava como Paul. Que Paul tinha contratado um contrabandista sediado em
Marselha chamado Marcel Lacroix para levar Madeline da Córsega até o continente. Que Lacroix negociara um pagamento adicional de 100 mil euros, que seria entregue
por um tal de René Brossard, na cidade francesa de Aix. E que Brossard, após a tentativa fracassada de transferir o dinheiro, havia imediatamente dirigido até as
montanhas de Lubéron, até um vale agrícola com três casas.
- Você acha que Madeline está numa das casas?
- René Brossard é um criminoso bem conhecido em Marselha. Só há uma razão para ele estar lá. A menos que tenha começado a fabricar vinhos.
Seymour balançou a cabeça.
- A polícia francesa está procurando por ela há mais de um mês e você consegue encontrá-la em cinco dias.
- Eu sou melhor do que a polícia francesa.
- Foi por isso que o procurei.
Perto deles, vários jovens da Europa Oriental posavam para uma foto na frente da catedral. Gabriel imaginou que fossem croatas ou eslovacos, mas não dava para ter
certeza: seu ouvido não era muito bom com os idiomas eslavos. Conduziu Seymour para a esquerda e os dois passaram pelos cafés para turistas ao longo da Rue d’Arcole.
- Você se importa se eu fizer algumas perguntas? - indagou Seymour.
- Quanto menos você souber melhor, Graham.
- Me faça um agrado.
- Se você insiste...
- Como você descobriu sobre Paul?
- Não posso contar.
- Onde está Marcel Lacroix?
- Não pergunte.
- Quem está observando a casa?
- Um parceiro.
- Do Escritório?
- Não exatamente.
- Bem - falou Seymour -, isso deixa tudo muito claro.
Gabriel não disse nada.
- O que você sabe sobre Paul?
- Ele fala francês fluente com sotaque, muda de aparência de acordo com as circunstâncias e, pelo visto, gosta de cinema.
- Como assim?
Gabriel explicou que Marcel Lacroix tinha visto Paul no Festival de Cannes, embora tenha deixado de fora a parte sobre a fita adesiva, a simulação de afogamento
e a bala que Christopher Keller, um renegado do SAS, havia metido na cabeça de Lacroix.
- Paul parece ser profissional.
- É, sim - confirmou Gabriel.
- Ele ficou amigo de Madeline antes de sequestrá-la? É essa a sua teoria?
- Obviamente eles se conheceram antes de ela desaparecer. Se eram amigos, amantes ou outra coisa... só vamos saber se perguntarmos a Madeline.
- Há quanto tempo a casa está sendo vigiada?
- Menos de 24 horas.
- Quanto tempo vai levar para determinar se ela está lá ou não?
- Pode ser que a gente nunca tenha certeza, Graham.
- Quanto tempo? - insistiu Seymour.
- Mais 24 horas.
- Isso nos deixaria com somente mais um dia.
- Por isso, sua única opção é passar a minha informação para os franceses.
Eles dobraram uma esquina e entraram numa rua tranquila.
- E o que eu devo dizer aos franceses quando eles perguntarem como eu consegui essa informação? - perguntou Seymour.
- Diga que um passarinho verde contou. Invente uma história convincente sobre uma fonte ou uma comunicação interceptada. Confie em mim, Graham, eles não vão pressioná-lo.
- E se eles conseguirem resgatá-la? O que fazer? - Então, Seymour respondeu à própria pergunta: - Sem dúvida vão descobrir que ela estava tendo um caso com o primeiro-ministro.
E, como são franceses, vão esfregar isso na cara de Lancaster da forma mais pública possível.
- Talvez não.
- Lancaster nunca correria esse risco.
- Você me pediu para encontrá-la. E eu acho que a encontrei.
- E agora eu estou pedindo para você resgatá-la.
- Se eu entrar lá, haverá mortes.
- Os franceses vão pensar que foi uma gangue de criminosos de Marselha matando membros de outra gangue. Isso acontece o tempo todo por lá. - Seymour fez uma pausa,
então acrescentou: - Especialmente quando você está na cidade.
Gabriel ignorou o comentário.
- E se eu conseguir resgatá-la? O que faço com ela?
- Traga-a de volta para a Inglaterra e deixe que nós cuidamos do resto.
- Você vai ter que inventar uma história.
- As pessoas desaparecem e reaparecem o tempo todo.
- E se o vídeo for a público?
- Se não há garota desaparecida, não há escândalo.
- Ela vai precisar de um passaporte.
- Receio que não possa ajudar.
- Por que não?
- Porque não posso gerar um passaporte falso com a imagem dela sem disparar alarmes. Além disso, você e o seu serviço são muito bons nesse tipo de trabalho.
- Temos que ser.
Caminharam em silêncio pela rua tranquila. Gabriel tinha esgotado suas
objeções e perguntas. Ele podia apenas dizer não, algo que não estava preparado para fazer.
- Ela, pode não estar em condições de viajar - falou, por fim. - Na verdade, talvez leve um tempo até poder fazer qualquer coisa.
- O que você quer dizer com isso?
- Se ela estiver mesmo naquela casa e se conseguirmos resgatá-la, vamos ter que levá-la para uma de nossas propriedades seguras na França para cuidar dela. Vou trazer
uma equipe, um médico, algumas garotas simpáticas para ajudá-la a se sentir mais à vontade.
- E quando ela estiver pronta para ser transportada?
- Mudamos a sua aparência, tiramos uma foto e a colocamos num passaporte israelense. Então, nós a trazemos pelo canal da Mancha e ela vira problema seu.
Eles chegaram ao fim da rua, e novamente a uma lateral da Notre-Dame, Seymour ajustou o cachecol e fingiu admirar os pilares suspensos.
- Você ainda não me disse onde a casa fica - comentou ele, indiferente.
- Você vai saber em breve.
- E Marcel Lacroix?
- Está morto.
Seymour se virou e estendeu a mão.
- Alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Ande até a Gare du Nord e pegue o próximo trem para Londres.
- É mais de um quilômetro.
- O exercício vai fazer bem a você. Não me entenda mal, Graham, mas você está com uma aparência horrível.
Seymour não conseguiu se lembrar do caminho até a Gare du Nord. Ele era um homem do MI5, logo só ia a Paris para conferências, férias ou quando tentava encontrar
a amante sequestrada do primeiro-ministro. Gabriel sussurrou o caminho no ouvido de Seymour e o seguiu até a entrada da estação, onde ele desapareceu em meio a um
mar de mendigos, traficantes e motoristas de táxi africanos.
Sozinho novamente, Gabriel pegou o metrô até a Place de la Concorde e, de lá, andou até a embaixada israelense na Rue Rabelais, número 3. Depois de fazer uma visita
de cortesia ao chefe do posto, contatou a Mesa de Operações do King Saul Boulevard para requisitar uma casa segura na França e um comitê de recepção para a refém.
Cinco minutos depois, ligaram de volta para dizer que um trio chegaria nas 24 horas seguintes.
- E quanto à casa?
- Nós temos uma propriedade nova na Normandia, perto do terminal de balsas de Cherbourg.
- Como é o lugar?
- Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições, vista adorável do Canal, serviço opcional de camareira.
Gabriel desligou e pegou as chaves da casa no cofre do chefe do posto. Já eram quase quatro e meia; precisava se apressar para pegar o trem das cinco horas de volta
para Avignon. Ele chegou lá quando já tinha escurecido e voltou para seu hotel em Apt. Aquela noite não teve chuva, só um vento terrível que varreu as ruas estreitas
do centro antigo da cidade. Gabriel passou a noite acordado na cama, em solidariedade a Keller. Na manhã seguinte, tomou mais café do que o habitual.
- Não dormiu bem, monsieur? - perguntou o velho garçom.
- O mistral - explicou Gabriel.
- Terrível.
A placa na fachada da loja dizia L’IMMOBILIÈRE DU LUBÉRON. Adotando a postura cética de Herr Johannes Klemp, Gabriel passou um tempo analisando as fotografias de
propriedades penduradas na janela antes de entrar. Foi recebido por uma mulher que devia ter 35 anos. Ela vestia uma saia bege e uma blusa branca grudadas no corpo,
dando uma ilusão de umidade. Não pareceu interessada quando Herr Klemp tentou puxar assunto. Poucas mulheres se interessavam.
Ele disse à moça que estava encantado pelo Lubéron e que pretendia voltar para uma estadia mais longa. Um hotel não serviria, falou. Para vivenciar o verdadeiro
Lubéron, queria alugar uma casa. E não qualquer casa. Tinha que ser algo substancial, numa área pouco frequentada por turistas. Herr Klemp não era um turista, mas
um viajante.
- Há uma diferença importante - insistiu ele.
Se de fato havia, a mulher não deu sinal de ter reconhecido. Mas algo na postura de Herr Klemp a fez supor que não valeria a pena dizer isso; acabaria sendo um longo
calvário. Infelizmente, ela já tinha visto muitos homens parecidos. Herr Klemp iria querer ver todas as propriedades e, no final, não acharia nenhuma satisfatória.
Porém, esse foi o único emprego que ela conseguira encontrar no lugar que tanto enfeitiçava tipos como Herr Klemp. Então, lhe ofereceu um café creme da máquina automática
e abriu os folhetos com todo o entusiasmo que conseguiu reunir.
Havia uma casa adorável ao norte de Apt, mas ele achou a propriedade muito prosaica. Também existia uma recém-remodelada em Ménerbes, mas o jardim era pequeno demais
e a mobília, demasiado moderna. E mais a grande propriedade perto de Lacoste, que contava com uma quadra de tênis de saibro e uma piscina interna, mas isso ofendeu
o senso democrático de justiça social de Herr Klemp. E assim foi, casa por casa, cidade por cidade, ambiente por ambiente, até que sobrou apenas uma propriedade
ao sul de Apt, num pequeno vale agrícola com vinhedos e plantações de lavanda.
- Parece perfeito - disse Herr Klemp, esperançoso.
- É um pouco isolado.
- Para mim, isolado é bom.
Àquela altura, a mulher concordou plenamente. De fato, se pudesse, trancaria Herr Klemp na propriedade mais isolada da França e jogaria fora a chave. Abriu o folder
e falou de cada cômodo na casa. Por alguma razão, ele pareceu particularmente interessado no hall de entrada. Não havia nada de incomum no espaço. Uma porta pesada
de madeira com dobradiças de ferro. Uma pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária. Um lance levava ao segundo andar da casa, e o outro descia
até o porão.
- Existe outra forma de descer além da escada?
- Não.
- E nenhuma entrada externa para o porão?
- Não. Se as visitas usarem o dormitório no andar de baixo, vão ter que subir pelas escadas.
- A senhorita tem fotos do andar de baixo?
- Receio que não haja muito para ver. Apenas um quarto e uma lavanderia.
- Isso é tudo?
- Também há um depósito, mas fica indisponível para locatários. O proprietário mantém o espaço fechado com um cadeado.
- A propriedade tem algum anexo?
- Tinha, muito tempo atrás, mas foram todos removidos na última renovação.
Ele sorriu, fechou o folder e o empurrou pela mesa na direção da mulher.
- Acho que finalmente encontramos o lugar.
- Quando o senhor está interessado em alugar?
- Na próxima primavera. Mas, se for possível, adoraria dar uma olhada agora.
- Receio que esteja ocupado.
- É mesmo? Até quando?
- Os locatários vão sair em três dias.
- Em três dias já vou ter saído da Provence.
- Que pena - disse a mulher.
Gabriel passou o resto da tarde fingindo passear pelo interior do Lubéron de scooter e, ao pôr do sol, tinha estacionado num ponto isolado ao longo da beira do vale
das três casas. Keller ficara de aparecer às seis horas em ponto, mas, dez minutos depois do horário combinado, ainda não havia sinal dele. Então, Gabriel sentiu
uma presença atrás de si. Virando-se abruptamente, viu o Inglês parado na escuridão, imóvel como uma estátua.
- Há quanto tempo você está aí? - perguntou Gabriel.
- Dez minutos.
Gabriel deu partida na moto e os dois foram embora.
18
APT, FRANÇA
Keller disse ao concierge que estava passeando pelas montanhas, por isso as manchas de sujeira nas bochechas, a mochila imunda e o cheiro de mato que emanava de
suas roupas. Subindo para o quarto, barbeou-se com muito cuidado, mergulhou o corpo cansado numa banheira de água fervente e fumou o primeiro cigarro em dois dias.
Em seguida, foi para o salão de refeições, onde consumiu um jantar extraordinariamente farto regado pelo bordeaux mais caro disponível, cortesia de Marcel Lacroix.
Saciado, caminhou pelas ruas vazias da cidade antiga até a basílica. O interior da igreja estava escuro e deserto, exceto por Gabriel, sentado diante das velas votivas.
- Mas você tem certeza? - perguntou, quando Keller se juntou a ele.
- Sim - respondeu Keller, assentindo devagar. Ele tinha certeza.
- Você chegou a vê-la?
- Não.
- Então como sabe que ela está lá?
- Porque sei identificar uma operação criminosa - respondeu Keller, confiante. - Ou eles estão operando um laboratório de metanfetamina, ou montando uma bomba suja,
ou vigiando uma garota inglesa sequestrada. Estou apostando na garota.
- Quantas pessoas na casa?
- Brossard, a mulher e mais dois garotos da Marselha, que ficam na casa durante o dia, mas à noite saem para fumar um cigarro e tomar um pouco de ar fresco.
- Algum visitante?
Keller balançou a cabeça.
- A mulher sai da casa uma vez por dia para fazer compras e cumprimentar os vizinhos, mas não percebi mais nenhuma atividade.
- Quanto tempo ela ficou fora?
- Uma hora e vinte e oito minutos no primeiro dia; duas horas e doze minutos no segundo.
- Eu admiro a sua precisão.
- Não tinha muito com que me ocupar.
Gabriel perguntou como Brossard passava os dias.
- Ele finge que está de férias - respondeu Keller. - Mas também caminha ao redor da propriedade para dar uma olhada nas coisas. Quase pisou em mim algumas vezes.
- Como é a rotina noturna?
- Alguém sempre fica acordado. Eles veem televisão na sala de estar ou ficam no jardim.
- Como você sabe que eles veem televisão?
- Dá para ver a luz dela através das persianas. A propósito, as persianas nunca são abertas. Nunca.
- Alguma outra luz fica acesa durante a noite?
- Não dentro da casa. Mas a parte externa fica mais iluminada que uma árvore de Natal.
Gabriel franziu a testa. Keller conteve um bocejo e perguntou sobre Paris.
- Fria.
- A cidade ou a reunião?
- Ambas. Especialmente quando eu sugeri deixar os franceses cuidarem do resgate.
- Por que é que faríamos isso?
- Graham teve a mesma reação.
- Que surpresa.
- Você parece conhecer a Downing Street como a palma da sua mão.
Keller ignorou o comentário. Gabriel contemplou as chamas tremeluzentes das velas votivas por um instante antes de falar do resto da reunião com Graham Seymour:
a casa do Escritório em Cherbourg, o comitê de recepção, o retorno discreto à Inglaterra com um passaporte forjado. Mas tudo dependia de uma coisa: conseguir tirar
Madeline da casa depressa e em silêncio. Se não há tiroteio, não há perseguição de carros.
- Tiroteios são para caubóis - retrucou Keller - e perseguições de carro só acontecem nos filmes.
- Como nós passamos pelas luzes sem sermos vistos pelos guardas?
- Não passamos.
- Explique.
Keller obedeceu.
- E se Brossard ou um dos outros aparecer no andar de baixo?
- É possível que eles se machuquem.
- Permanentemente - completou Gabriel. Ele encarou Keller por algum tempo, sério. - Você sabe o que vai acontecer quando a polícia encontrar os cadáveres? Vão começar
a fazer perguntas pela cidade. E, em pouco tempo, vão ter o retrato falado de um ex-soldado do SAS que deveria ter morrido no Iraque. Além das imagens das câmeras
do hotel.
- É para isso que serve a macchia.
- Como assim?
- Vou para a Córsega e espero as coisas sossegarem.
- Talvez você só possa voltar aos negócios daqui a um bom tempo. Muito tempo.
- É um sacrifício que estou disposto a fazer.
- Pela rainha e pelo país?
- Pela garota.
Por um momento, Gabriel observou Keller em silêncio.
- Imagino que você não goste de homens que machucam mulheres inocentes.
Keller assentiu lentamente.
- Algo que queira me dizer?
- Por incrível que pareça, não estou a fim de ter um papo nostálgico com você - ironizou Keller.
Gabriel sorriu.
- Ainda há esperança para você.
- Um pouco - respondeu o Inglês.
Gabriel ouviu o som de passos na igreja e, ao se voltar, viu a mesma mulher de antes, com um casaco impermeável, caminhando lentamente pelo corredor central. Mais
uma vez ela parou em frente ao altar principal e fez o sinal da cruz com muito cuidado, da testa para o peito, do ombro esquerdo para o direito.
- O prazo é amanhã - lembrou Gabriel. - Logo, vamos ter que entrar hoje.
- Quanto antes melhor.
- Precisamos de mais pessoas para fazer isso direito - comentou Gabriel, soturno.
- Sim, eu sei.
- Uma centena de coisas poderia dar errado.
- Sim, eu sei.
- Talvez ela não esteja em condições de andar.
- Então a carregaremos - disse Keller. - Não seria a primeira vez que eu carregaria alguém para fora do campo de batalha.
Gabriel observou a mulher de casaco bege com o olhar perdido, depois voltou a atenção para a luz oscilante das velas.
- Quem você acha que ele é? - perguntou após um tempo.
- Quem?
- Paul.
- Não sei - respondeu Keller, levantando-se. - Mas, se aparecer na minha frente, vai morrer.
Depois de sair da igreja, Gabriel voltou para o hotel e informou ao gerente que estava de partida. Não era nada sério, afirmou, apenas uma pequena crise doméstica
que só ele, o inigualável Herr Johannes Klemp, seria capaz de resolver. O gerente sorriu com pesar, mas no íntimo estava feliz em vê-lo ir-se embora. As camareiras
o elegeram unanimemente o hóspede mais irritante da temporada, e Mafuz, o carregador-chefe, secretamente desejava que ele morresse.
Mafuz, parado como um pilar em seu posto na porta da frente, levou-o para fora com bastante prazer. Gabriel andou de scooter pelas ruas da cidade por um bom tempo,
para se certificar de que não estava sendo seguido. Então, com o farol encharcado, seguiu a trilha de lama e cascalho que bordejava o pequeno vale. Uma das casas,
a que ficava ao leste, estava iluminada como se fosse uma ocasião especial. Gabriel encontrou Keller parado no meio de um bosque de pinheiros examinando a propriedade
com atenção e se juntou a ele na observação. Em poucos minutos, uma pessoa apareceu no jardim, protegida pelas sombras, e um isqueiro foi aceso. Keller estendeu
a mão e sussurrou:
- Bang, bang, você está morto.
Eles permaneceram em meio às árvores até o homem entrar na casa. Em seguida, sentaram no Renault de Keller, que estava escondido, e discutiram os detalhes finais
do plano de ataque: suas posições, a visibilidade que cada um teria, as linhas de tiro e o procedimento dentro da casa. Após vinte minutos, faltava apenas decidir
quem atiraria primeiro. Gabriel insistiu para que fosse ele, mas Keller ressaltou que tinha obtido a maior pontuação da história no matadouro em Hereford.
- Foi apenas um exercício - disse Gabriel com desdém.
- Um exercício com munição real.
- Ainda assim, um exercício.
- O que você quer dizer com isso?
- Uma vez eu atirei na testa de um terrorista palestino da traseira de uma moto em movimento.
- E daí?
- O terrorista estava sentado no meio de uma cafeteria lotada no Boulevard Saint-Germain, em Paris.
- É, acho que li algo sobre isso num dos meus livros de história - falou Keller, fingindo tédio.
Por fim, resolveram a questão jogando cara ou coroa.
- Não erre - disse Gabriel, guardando a moeda no bolso.
- Eu nunca erro.
Ainda nem eram dez horas, cedo demais para eles agirem. Keller dormiu enquanto Gabriel ficou sentado observando as luzes da casa a leste. Ele imaginou um quarto
pequeno no andar de baixo: catre, algemas, capuz, balde para as necessidades fisiológicas, isolamento acústico para abafar os gritos, uma mulher fora de si. Por
um instante, Gabriel se viu caminhando pela neve russa na direção de uma dacha à beira de uma floresta de bétulas. Ele piscou os olhos até a imagem desaparecer e,
inconscientemente, tocou o talismã pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, pensou. Então vocês saberão a verdade.
Quatro horas depois, Gabriel apertou o ombro de Keller, que acordou no mesmo instante, saiu do carro e tirou a mochila do porta-malas. Dentro, havia dois rolos de
fita adesiva, um alicate pesado de 61 centímetros e dois silenciadores - um para a Beretta de Gabriel, outro para a HK45 compacta de Keller. Gabriel atarraxou o
silenciador no cano de sua pistola e pendurou a mochila no ombro. Seguiu Keller pelos pinheiros, contornando o vale. Não havia lua nem estrelas, e o ar estava parado.
Keller se moveu pelos arbustos e formações rochosas em completo silêncio, lentamente, como se estivesse debaixo d'água. Cada vez que avançava um pouco, erguia a
mão direita sinalizando para Gabriel ficar imóvel, e assim seguiram sem outra comunicação. Não era necessário: tudo tinha sido planejado de antemão.
Na base da colina, os dois se separaram. Keller foi para o lado sul da casa e se acomodou num fosso de drenagem, enquanto Gabriel seguiu para o lado leste e se escondeu
atrás de uma moita de urzes. Sua posição era 15 metros além do alcance das luzes externas, onde a escuridão dominava. À sua frente, havia uma fileira de portas francesas
que levavam do jardim à sala de estar. Pelas persianas, Gabriel pôde ver a luz da televisão e algo que supôs ser a tênue silhueta de um homem.
Consultou o relógio: eram 2h37 da manhã. Pela frente, três horas de escuridão. Depois, não haveria mais passeios até o jardim para o homem dentro da casa. Ele certamente
sairia atrás de um último sopro de ar fresco e mais uma olhada no céu, mesmo não havendo lua nem estrelas, apesar de o ar estar parado. Então, do fosso de drenagem
no lado sul, viria um único tiro. E tudo teria início: catre, algemas, capuz, balde, mulher fora de si.
Ele olhou de novo para o relógio: apenas dois minutos tinham se passado. Estremeceu em meio ao frio. Talvez Keller tivesse razão, talvez ele fosse um espião caseiro,
afinal. Para ajudar a passar o tempo, visualizou a si mesmo na frente de uma tela. Era a pintura que tinha deixado para trás em Jerusalém - Suzana se banhando no
jardim, observada pelos anciãos da aldeia. Novamente substituiu-a por Madeline, embora dessa vez tratasse de feridas causadas pelo cativeiro, e não pelo tempo.
Gabriel trabalhou devagar mas com firmeza, consertando as feridas em seus pulsos, adicionando carne aos ombros atrofiados, e cor às faces encovadas. Ao mesmo tempo,
ficou de olho na passagem dos minutos e na casa, que aparecia para ele como o plano de fundo da pintura. Por duas horas não ouviu qualquer movimento. Então, quando
a primeira luz surgiu no céu, uma das portas francesas se abriu devagar e um homem entrou no jardim de Madeline. Alongou os braços, olhou para a esquerda, para a
direita, e para a esquerda de novo. A pedido de Madeline, Gabriel completou rapidamente a restauração. Ao ver o lampejo ao sul, levantou-se com a arma na mão e começou
a correr.
19
LUBÉRON, FRANÇA
Quando Gabriel alcançou a região iluminada, viu Keller atravessando o jardim a toda. O Inglês chegou primeiro à porta francesa aberta e assumiu a posição do lado
esquerdo. Gabriel foi para o lado direito e deu uma olhada rápida no homem que, alguns segundos atrás, tinha surgido para pegar um pouco de ar fresco. Não havia
necessidade de verificar seus batimentos: a bala calibre 45 atingira o crânio e saíra deixando um rastro de destruição. O homem nunca soube o que aconteceu, e provavelmente
morrera antes de cair no chão. Era um jeito decente de partir deste mundo, pensou Gabriel. Para um criminoso. Para um soldado. Para qualquer um.
Gabriel olhou para Keller. Suas poses eram idênticas: um ombro apoiado na parede da casa, as duas mãos segurando a arma e o cano apontado para o chão. Após alguns
segundos, Keller fez um aceno curto de cabeça. Erguendo a HK ao nível dos olhos, entrou em silêncio. Gabriel o seguiu e cobriu o lado direito da sala enquanto Keller
vigiava a esquerda. Não havia nenhum movimento ou som além da televisão, que mostrava Jimmy Stewart tirando Kim Novak das águas da baía de São Francisco. O cômodo
cheirava a comida estragada, tabaco bolorento e vinho derramado. Todas as superfícies estavam cobertas por caixas de papelão vazias. Um mês na Provence, pensou Gabriel,
no estilo do submundo de Marselha.
Keller avançou lentamente através da luz projetada da TV, com os braços estendidos, fazendo um arco de 90 graus com a HK. Gabriel seguia meio passo atrás, a arma
apontada para a direção oposta, efetuando o mesmo movimento de varredura. Chegaram a uma arcada que dava na sala de jantar. Gabriel se lançou para dentro, apontando
a arma para todas as direções, em seguida voltou para o lado de Keller. À entrada da cozinha, repetiu o procedimento. Os dois cômodos não tinham ninguém, apenas
pilhas altas de pratos e talheres. A imundície do lugar fez Gabriel ferver de raiva: em geral, sequestradores que viviam como porcos não tratavam bem os seus reféns.
Por fim, alcançaram o hall de entrada. Era o único lugar da casa que ainda tinha alguma semelhança com as fotos que Gabriel vira no escritório da L'Immobilière du
Lubéron. A porta de madeira resistente com dobradiças de ferro. A pequena mesa decorativa. Dois lances de degraus de pedra calcária: um que levava ao segundo andar
da casa, outro que descia para o porão. Ambos mergulhados na escuridão.
Keller assumiu uma posição entre as duas escadas e Gabriel tirou uma lanterna do bolso, mas não a acendeu. Desceu às cegas, devagar, um degrau, dois, três, quatro.
Na metade do caminho, escutou um barulho na parte de cima, passos abafados e rápidos. Em seguida, dois disparos seguidos, vindos da HK45 com silenciador.
Alguém caiu pela escada.
Alguém que tinha deparado com o homem que batera o recorde no matadouro de Hereford.
Alguém havia morrido.
Gabriel ligou a lanterna e desceu correndo de dois em dois degraus.
No final da escadaria, havia um espaço com piso de ladrilho e três portas, uma em cada parede. O depósito particular do proprietário ficava à esquerda. Iluminado
pelo feixe da lanterna, o cadeado tornou-se cintilante - um sinal de que não estava lá havia muito tempo. Gabriel tirou a mochila dos ombros, pegou o alicate e partiu
o cadeado, que caiu com estrépito no chão. Foi para o lado da porta e a abriu com um empurrão. O fedor o atingiu no mesmo instante. Pesado e nauseantemente doce.
O cheiro de um ser humano em cativeiro. Passou o facho de luz pelo espaço. Catre. Algemas. Capuz. Balde. Isolamento acústico.
Mas Madeline não estava lá.
De cima, vieram dois disparos da HK de Keller.
E mais dois.
O primeiro cadáver estava no hall de entrada, na base da escadaria que levava ao segundo andar. Era um dos guardas que não tinha sido visto fora da casa. Agora,
graças a duas balas, ele não era mais reconhecível. O mesmo valia para René Brossard, estatelado no chão a seu lado, ainda com uma arma na mão inerte. A mulher estava
no patamar do segundo andar. Keller não queria atirar nela, mas não tivera escolha: ela lhe apontara uma arma e deixara claro que pretendia disparar. Mas seu rosto
fora poupado; Keller a acertara duas vezes na região do peitoral. Portanto, ela era a única que ainda estava viva. Gabriel se ajoelhou ao lado da mulher e segurou-lhe
a mão. Já estava fria.
- Eu vou morrer? - perguntou ela.
- Não - respondeu ele, apertando sua mão com delicadeza. - Você não vai morrer.
- Me ajude. Por favor, me ajude.
- Eu vou ajudar, mas você também precisa me ajudar. Você tem que me dizer onde posso encontrar a garota.
- Ela não está aqui.
- Onde ela está?
A mulher tentou emitir um som, mas não conseguiu.
- Onde ela está? - repetiu Gabriel.
- Eu juro que não sei. - A mulher estremeceu. Seus olhos estavam se desfocando. - Por favor - sussurrou -, você tem que me ajudar.
- Quando ela saiu daqui?
- Dois dias atrás. Não, três.
- Dois ou três?
- Eu não me lembro. Por favor, por favor, você tem que...
- Foi antes ou depois de você e Brossard irem para Aix?
- Como você sabe que nós fomos para Aix?
- Responda - disse Gabriel, apertando sua mão novamente. - Foi antes ou depois?
- Foi naquela noite.
- Quem a levou?
- Paul.
- Só Paul?
- Sim.
- Para onde ele a levou?
- Para o outro esconderijo.
- Foi isso que ele disse? Um esconderijo?
- Sim.
- Onde é?
- Não sei.
- Me diga - insistiu Gabriel.
- Paul nunca disse onde era. Ele a chamava de segurança operacional.
- Essas foram as palavras exatas, “segurança operacional”?
Ela assentiu.
- Quantos esconderijos vocês têm?
- Não sei.
- Dois? Três?
- Paul nunca disse.
- Quanto tempo ela ficou aqui?
- Desde o começo - respondeu a mulher. E, então, ela morreu.
Eles deitaram os quatro corpos no chão do depósito e os cobriram com um lençol branco. Não havia nada a ser feito quanto ao sangue dentro da casa, mas, no lado de
fora, Gabriel usou uma mangueira para lavar o jardim, apagando um pouco as evidências do que tinha acontecido. Calculou que tivessem pelo menos 48 horas até a mulher
da L’Immobilière aparecer para recolher as chaves dos arrendatários e supervisionar a limpeza. Ao ver o sangue, ela ligaria imediatamente para os gendarmes, que,
por sua vez, descobririam os cadáveres no depósito particular do proprietário, que fora esvaziado e convertido numa cela para uma vítima de sequestro. Quarenta e
oito horas, pensou Gabriel. Talvez um pouco mais, não muito.
O dia estava começando a raiar quando saíram do vale e voltaram para o ponto onde tinham guardado a moto e o velho Renault de Keller. Gabriel parou para dar uma
última olhada: uma figura solitária, um trabalhador, passava pelos vinhedos, mas não havia mais nenhuma atividade na região. Eles guardaram as mochilas no porta-malas
do carro de Keller e foram separados para Buoux, onde comeram brioches e tomaram café com leite numa cafeteria cheia de fregueses de rosto avermelhado. O cheiro
de pães recém-assados fez Gabriel se sentir ligeiramente enjoado. Ele ligou para Graham Seymour em Londres e, em linguagem cifrada, relatou que a missão tinha falhado,
que Madeline estivera na casa, mas fora removida havia cerca de 72 horas. A pista dera num beco sem saída, disse antes de desligar. Tudo o que podiam fazer agora
era esperar pelas exigências de Paul.
- E se ele decidir que é arriscado demais fazer exigências? - indagou Keller. - E se ele resolver matá-la?
- Por que você é sempre tão pessimista?
- Acho que você está começando a me influenciar.
Eles saíram do Lubéron pela mesma rota que tinham usado na noite anterior ao seguir René Brossard e a mulher de Aix: descendo as colinas do maciço, atravessando
o rio Durance, passando pelo reservatório de Saint-Christophe e, por fim, entrando em Marselha. Uma balsa partia para a Córsega ao meio-dia. Compraram uma passagem
e sentaram lado a lado em mesas separadas numa cafeteria adjacente ao terminal. Gabriel tomou chá e Keller bebeu cerveja, com um humor perceptivelmente sombrio.
Ele não estava acostumado a voltar à Córsega depois de fracassar numa missão.
- Não foi culpa sua - disse Gabriel.
- Eu falei que ela estava lá. Ela não estava.
- Mas parecia que estava.
- Por que havia guardas fazendo turnos à noite se Madeline já tinha ido embora?
Naquele instante, o celular de Gabriel vibrou. Ele atendeu, escutou em silêncio e, em seguida, colocou-o em cima da mesa.
- Graham? - quis saber Keller.
Gabriel assentiu.
- Alguém deixou um telefone grudado na parte de baixo de um banco no Hyde Park ontem à noite.
- Onde o telefone está agora?
- Downing Street.
- E quando ele ficou de ligar?
- Em cinco minutos.
Keller terminou a cerveja e logo pediu outra. Mais cinco minutos se passaram, e mais cinco. Do lado de fora, veio um anúncio avisando que já se podia embarcar na
balsa para a Córsega. Por causa do aviso nos alto-falantes, Gabriel quase não ouviu o celular. Ele o atendeu e novamente escutou em silêncio.
- E então? - perguntou Keller enquanto Gabriel guardava o celular no bolso.
- Paul fez a exigência.
- Quanto ele quer?
- Dez milhões de euros.
- Só isso?
- Não: o primeiro-ministro quer dar uma palavrinha comigo.
Lá fora, havia uma fila de carros entrando na balsa. Keller se levantou. Gabriel o observou partir.
20
MARSELHA - LONDRES
O voo seguinte para Heathrow era às cinco horas da tarde. Gabriel comprou roupas novas numa loja de departamentos perto do Velho Porto e deu entrada num hotel deprimente
para viajantes, adjacente à estação de trem, para tomar banho e se vestir. Jogou as roupas antigas numa lixeira cheia atrás de um restaurante, deixou a moto num
lugar onde, sem dúvida, seria roubada ao cair da noite e pegou um táxi para o aeroporto. O terminal principal parecia ter sido abandonado para um exército invasor.
Gabriel verificou os sites franceses de notícias para verificar se a polícia já tinha encontrado os quatro cadáveres e comprou uma passagem de primeira classe para
Londres usando o nome Johannes Klemp. Durante o voo, recusou todas as ofertas das aeromoças, bem como as tentativas de seu colega de assento, um banqueiro suíço
careca, de entabular conversa. Preferiu ficar olhando com melancolia pela janela. Não havia muito para ver naquela noite, pois uma camada densa de nuvens cobria
todo o norte da Europa. Só quando o avião chegou a alguns milhares de pés do chão é que as lâmpadas amarelas de vapor de sódio conseguiram atravessar a escuridão.
Para Gabriel, a iluminação do oeste londrino pareceu um mar de velas votivas. Fechou os olhos e visualizou a mulher com uma capa impermeável em frente ao altar de
uma igreja escura e antiga, fazendo o sinal da cruz como se não estivesse habituada com o gesto.
Ao sair do avião, Gabriel entrou numa fila de passageiros que seguiam para o controle de passaportes. O agente de alfândega, um sique barbudo com um turbante azul
escuro, examinou seu passaporte com o ceticismo que o documento merecia e, depois de carimbá-lo com violência, lhe deu boas-vindas à Grã-Bretanha. Gabriel guardou
o passaporte no bolso do casaco e andou até o saguão de desembarque, onde Nigel Whitcombe, um agente do MI5, estava em meio à multidão, segurando um pedaço de papel
onde se lia Sr Baker. Ele era um assistente de Graham Seymour que costumava auxiliá-lo em tarefas sigilosas. Tinha cerca de 35 anos, mas parecia um adolescente espichado.
Suas bochechas eram rosadas, sem pelos, e o sorriso inseguro que mostrou ao apertar a mão de Gabriel era tão inocente quanto o de um sacerdote. A aparência benevolente
se revelara um recurso útil para o MI5. Ela ocultava uma mente tão astuta e tortuosa quanto a de qualquer terrorista ou criminoso profissional.
Devido à natureza secreta da visita de Gabriel, Whitcombe tivera que ir a Heathrow em seu carro particular, um Vauxhall Astra. Ele o dirigiu com a velocidade e a
facilidade de alguém que passa os fins de semana competindo em ralis. De fato, somente quando eles chegaram à West Cromwell Road é que o velocímetro ficou abaixo
dos 120.
- Que bom que estamos perto de um hospital - comentou Gabriel.
- Por quê?
- Porque, se você não desacelerar, vamos precisar ir para um.
Whitcombe diminuiu a velocidade, mas só um pouco.
- Alguma chance de pararmos na Harrods para tomar um chá?
- Eu fui instruído a levá-lo direto.
- Estava brincando, Nigel.
- Sim, eu sei.
- Você sabe por que estou aqui?
- Não, mas deve ser algo urgente. Eu não vejo Graham assim desde... - Sua voz se perdeu.
- Desde quando? - perguntou Gabriel.
- Desde o dia em que o homem-bomba da Al-Qaeda se explodiu em Covent Garden.
- Bons tempos - disse Gabriel, sombrio.
- Aquela foi uma de nossas melhores operações, você não acha?
- Com exceção do final.
- Vamos torcer para que esta não acabe do mesmo jeito, seja lá do que se trate.
- Vamos torcer.
Depois de lidar com o turbilhão de trânsito na Hyde Park Corner, Whitcombe passou pelo Palácio de Buckingham, rumando para a Birdcage Walk. Quando o quartel do Wellington
Barracks ficou para trás, ele apertou um botão no celular, murmurou algo a respeito de entregar um pacote e desligou de repente. Dois minutos depois, na Old Queen
Street, estacionou atrás de uma limusine Jaguar. Sentado no banco traseiro, com a aparência de alguém que tinha comido algo estragado, estava Graham Seymour.
- Suponho que você não tenha qualquer vestuário remotamente formal - arriscou ele enquanto Gabriel sentava a seu lado.
- Eu tinha, mas a British Airways perdeu a minha bagagem.
Seymour franziu a testa. Em seguida, olhou para o motorista e disse:
- Número 10.
Downing Street, n2 10, possivelmente o endereço mais famoso do mundo, costumava ser protegido por dois policiais londrinos comuns, um de vigia na parte de fora,
junto à insípida porta preta, e outro sentado no hall numa cadeira confortável de couro. Isso mudara em fevereiro de 1991, quando o IRA atacara a Downing Street
com morteiros. Barreiras de segurança foram erguidas na entrada de Whitehall que dava para a rua, e membros fortemente armados do Grupo de Proteção Diplomática da
Scotland Yard assumiram o posto dos policiais. A Downing Street, assim como a Casa Branca, agora era uma fortificação, visível apenas entre as barras de uma cerca.
Originalmente, o número 10 daquela rua não era composto apenas por um edifício, mas por três: uma casa urbana, um chalé e uma grande mansão do século XVI chamada
“a Casa dos Fundos”, que era residência dos membros da família real. Em 1732, o rei George II ofereceu a propriedade a Sir Robert Walpole, que atuou como primeiro-ministro
da Inglaterra - só não tinha o título oficial. Ele decidiu unificar os três prédios, e o resultado foi descrito pelo estadista William Pitt como uma “casa ampla
e esquisita”, com tendência a afundar no solo e formar rachaduras, onde poucos primeiros-ministros britânicos escolhiam viver. Ao fim do século XVIII, a construção
tinha ficado em tal estado de ruína que o Tesouro recomendou derrubá-la. Após a Segunda Guerra Mundial, a estrutura se tornou tão instável que foi estabelecida uma
quantidade máxima de pessoas que poderiam permanecer nos andares superiores ao mesmo tempo, por medo de que tudo viesse a desabar. Enfim, na segunda metade da década
de 1950, o governo empreendeu uma reconstrução meticulosamente exata. Atrasado por greves trabalhistas e pela descoberta de artefatos medievais embaixo da fundação,
o projeto levou três anos para ser concluído e custou três vezes mais do que previa o orçamento inicial. Harold Macmillan, o primeiro-ministro daquela época, residiu
na Admiralty House durante a obra.
A maior parte dos visitantes da Downing Street passa pelo portão de segurança em Whitehall e entra no número 10 pela icônica porta preta. Mas, naquela noite, Graham
e Gabriel atravessaram o portão da Horse Guards Road, ganhando acesso à residência por meio de uma porta francesa com vista para o jardim particular. Esperando no
saguão, estava uma secretária do escritório privado de Lancaster, uma mulher empertigada com pose de bibliotecária que segurava uma pasta de couro como se fosse
um escudo. Ela cumprimentou Seymour com um meneio de cabeça, mas evitou fazer contato visual com Gabriel. Girando nos calcanhares, levou os dois por um corredor
largo e elegante até uma porta fechada, à qual bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Entre - disse a segunda voz mais famosa da Grã-Bretanha, e a mulher os conduziu para dentro.
21
DOWNING STREET
Depois de uma vida inteira servindo no mundo secreto, Gabriel tinha perdido a conta do número de vezes que entrara numa sala no meio de uma crise. A categoria e
o contexto não importavam: era sempre a mesma coisa. Um homem andando sem parar pelo tapete, outro diante de uma janela com uma expressão entorpecida, e alguém tentando
desesperadamente parecer calmo e estar sob controle, mesmo quando não havia controle possível. Naquele caso, o cômodo era a Sala de Estar Branca do número 10 da
Downing Street. O homem inquieto era Simon Hewitt; Jeremy Fallon olhava pela janela; Jonathan Lancaster procurava aparentar calma. Ele estava sentado num dos dois
sofás opostos em frente à lareira. Na mesa baixa e retangular à sua frente, havia o celular que tinha sido deixado no Hyde Park na manhã anterior. Lancaster o fitava
como se o aparelho, e não Madeline Hart, fosse a fonte de seus problemas.
Ele se levantou e se aproximou de Gabriel e Seymour com a cautela de um homem que atravessasse o convés de um veleiro num mar turbulento. As câmeras de televisão
cometiam uma injustiça com Lancaster: ele era mais alto do que Gabriel tinha imaginado e, apesar da tensão do momento, mais bem-apessoado.
- Eu sou Jonathan Lancaster - apresentou-se, um tanto absurdamente, enquanto apertava a mão de Gabriel. - Já era hora de nos conhecermos. Só queria que as circunstâncias
fossem diferentes.
- Eu também, primeiro-ministro.
A intenção de Gabriel foi dar um tom empático ao comentário, mas Lancaster estreitou os olhos, achando que o agente estava condenando sua conduta. Ele soltou a mão
de Gabriel rapidamente e gesticulou para as outras duas pessoas na sala.
- Suponho que você saiba quem são esses cavalheiros - continuou, depois de se recompor. - O que está abrindo um buraco no meu carpete é Simon Hewitt, meu porta-voz.
E aquele ali é Jeremy Fallon. Segundo os jornais, é o meu cérebro.
Hewitt parou de andar por tempo suficiente para menear a cabeça vagamente na direção de Gabriel. Sem paletó, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e a gravata
afrouxada, parecia um repórter no deadline que não tinha conseguido sequer concatenar dois fatos. Fallon, ainda em seu posto na janela, mantinha o traje abotoado
e a gravata bem ajustada. As más línguas diziam que ele se via como o primeiro-ministro até o instante em que via o próprio reflexo. Com o queixo recuado, cabelo
escorrido e pele amarelada, encaixava-se mais no submundo da política.
Então, restava apenas o celular. Sem uma palavra, Gabriel o pegou da mesinha de centro e verificou o registro de chamadas: havia uma única ligação, recebida enquanto
Gabriel e Keller estavam no terminal de balsas em Marselha.
- Quem falou com ele?
- Eu - respondeu Fallon.
- Como era a voz?
- Não era real.
- Gerada por computador?
Fallon assentiu.
- A que horas ele ficou de retornar?
- À meia-noite.
Gabriel desligou o celular, tirou a bateria e o chip e os colocou na mesa.
- E o que iria acontecer à meia-noite?
- Ele quer uma resposta: sim ou não - explicou Lancaster. - “Sim” significa que eu concordo em pagar 10 milhões de euros em dinheiro vivo em troca de Madeline e
de uma promessa de que o vídeo nunca será divulgado. Se eu disser “não”, Madeline morre e tudo vem à tona. Obviamente - acrescentou ele, suspirando fundo -, eu não
tenho escolha além de aceitar as exigências.
- Esse seria o maior erro da sua vida, primeiro-ministro.
- O segundo maior.
Lancaster desabou no sofá e cobriu o rosto com as mãos. Gabriel pensou nas pessoas que tinha visto nas ruas de Londres naquela tarde, cuidando dos próprios assuntos,
alheias ao fato de que o primeiro-ministro estava paralisado por um escândalo.
- Que escolha eu tenho? - perguntou Lancaster depois de um tempo.
- Você ainda pode recorrer à polícia.
- Já é tarde demais.
- Então você precisa negociar.
- Ele disse que não negociaria e que a mataria se eu não concordasse em pagar os 10 milhões.
- Eles sempre dizem isso. Mas confie em mim, primeiro-ministro: se você concordar, ele vai ficar nervoso.
- Comigo?
- Com ele mesmo. O sequestrador acha que vai estragar tudo pedindo só
10 milhões, e vai voltar atrás de mais. E, se você aceitar esse novo valor, ele vai retornar e tirar tudo o que você tem, milhão por milhão, até não sobrar nada.
- Então o que você sugere?
- Nós esperamos o telefone tocar. Dizemos que vamos pagar um milhão... é pegar ou largar. Depois, desligamos e aguardamos ele ligar de volta.
- E se isso não acontecer? E se ele matá-la?
- Ele não vai matá-la.
- Como você pode ter tanta certeza?
- Porque ele investiu muito tempo, esforço e dinheiro. Para ele, são negócios, nada mais. Você tem que agir da mesma forma. Precisa lidar com isso do mesmo modo
que lidaria com qualquer outra negociação dura. Não existem atalhos. Você vai fazer com que ele se canse. Precisa ser paciente. É o único jeito de conseguirmos a
garota de volta.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Fallon finalmente se movera e estava contemplando uma pintura, uma paisagem urbana de Londres feita por Turner, como se tivesse
notado a obra pela primeira vez. Seymour demonstrava interesse intenso pelo carpete.
- Eu agradeço pelo conselho - disse Lancaster após um momento -, mas nós... - Ele se deteve, então se corrigiu: - Eu decidi entregar o que eles quiserem. Madeline
foi sequestrada por causa do meu comportamento negligente. E eu tenho a obrigação de fazer o que for necessário para trazê-la de volta para casa com segurança. É
a atitude mais digna a se tomar, pelo bem dela e pelo bem desta administração.
O discurso soou como algo escrito por Fallon - e a expressão presunçosa no rosto do chefe de gabinete corroborava essa hipótese.
- Digna, talvez - replicou Gabriel -, mas não sábia.
- Discordo - insistiu Lancaster -, e Jeremy também.
- Com todo o devido respeito - disse Gabriel, voltando-se para Fallon qual foi a última vez em que você negociou o resgate de um refém com sucesso?
- Acho que você vai concordar que esse não é um caso comum de sequestro. O alvo dos chantagistas é o primeiro-ministro do Reino Unido. E, sob nenhuma circunstância,
posso permitir que ele seja incapacitado por uma negociação longa e esgotante.
Fallon fez esse discurso em voz baixa e com a suprema confiança de alguém que está habituado a sussurrar instruções nos ouvidos dos homens mais poderosos do mundo.
Era uma cena que tinha sido capturada muitas vezes pela mídia britânica. Não à toa, com frequência cartunistas retratavam Fallon como um titereiro e Lancaster como
a marionete.
- Como você pretende obter o dinheiro? - perguntou Gabriel.
- Amigos do primeiro-ministro concordaram em emprestar o valor até que ele esteja em condições de reembolsá-los.
- Deve ser bom ter amigos assim. - Gabriel se levantou. - Parece que vocês têm tudo sob controle. Tudo o que precisam agora é de alguém para entregar o dinheiro.
Mas garantam que seja alguém bom. Caso contrário, vão voltar a esta sala em alguns dias para esperar o telefone tocar.
- Você tem algum candidato? - indagou Lancaster.
- Só um, mas receio que ele esteja indisponível.
- Por quê?
- Porque ele tem um voo para pegar.
- Quando é o próximo voo para Ben Gurion?
- Oito da manhã.
- Então imagino que não haja mal nenhum em ficar mais um tempo, certo?
Gabriel hesitou.
- Não, primeiro-ministro. Imagino que não.
Havia acabado de dar dez da noite. Gabriel não tinha a menor vontade de passar as duas horas seguintes preso com um político cuja carreira estava prestes a explodir
como uma supernova, portanto desceu até a cozinha para assaltar a geladeira do primeiro-ministro. A chef noturna, uma mulher roliça de 50 anos com o rosto de um
querubim, fez um prato de sanduíches e uma xícara de chá. Enquanto Gabriel comia, ela o avaliou com atenção, como se temesse que ele estivesse subnutrido. Mas era
sábia o suficiente para não perguntar sobre o propósito de sua visita. Poucas pessoas iam ao número 10 da Downing Street tarde da noite vestidas com o tipo de roupa
que pode ser comprada numa loja de departamentos barata em Marselha.
Às onze horas, Seymour desceu, pálido, com uma aparência muito cansada. Recusou a oferta de comida da chef, mas devorou os restos do sanduíche de ovo com endro de
Gabriel. Por fim, os dois saíram para caminhar pelo jardim murado. Os arredores da propriedade estavam silenciosos, sem contar as crepitações ocasionais de rádios
da polícia e o barulho de trânsito da Horse Guards Road. Seymour tirou um maço do bolso do casaco e acendeu um cigarro, melancólico.
- Eu não sabia - comentou Gabriel.
- Helen me fez parar anos atrás. Eu tentei fazê-la parar de cozinhar, mas ela se recusou.
- Ela parece uma boa negociante. Talvez devêssemos deixá-la lidar com Paul.
- Ele não teria chance. - Seymour soprou a fumaça na direção do céu sem nuvens e a observou flutuar para além dos muros. - É possível que você esteja errado, sabe?
Talvez tudo ocorra tranquilamente e Madeline esteja em casa amanhã à noite.
- Também é possível que um dia a Inglaterra recupere o controle das colônias americanas. Possível, mas improvável.
- Dez milhões de euros é muito dinheiro.
- Pagar o resgate é a parte fácil; trazer de volta o refém vivo é outra história.
A pessoa que vai entregar o dinheiro deve ser um profissional experiente. E precisa estar preparada para se afastar caso note que os sequestradores querem enganá-la.
- Gabriel fez uma pausa. - Não é um trabalho para fracos.
- Existe alguma chance de você considerar fazê-lo?
- Nestas circunstâncias, absolutamente nenhuma.
- Eu tinha que perguntar.
- Quem lhe pediu?
- O que você acha?
- Lancaster?
- Na verdade, Jeremy Fallon. Você o deixou bastante impressionado.
- Não o suficiente para ele me dar ouvidos.
- Ele está desesperado.
- E é exatamente por isso que ele não deveria se aproximar daquele telefone. Seymour deixou o cigarro cair na grama molhada e o esmagou com o sapato antes de voltar
para dentro com Gabriel, reconduzindo-o à sala de reunião. Nada tinha mudado: um homem andando pelo tapete, outro diante da janela, entorpecido, e um terceiro tentando
desesperadamente parecer calmo. O telefone ainda estava desmontado na mesinha de centro. Gabriel inseriu a bateria e o chip e ligou o aparelho, então sentou no sofá
em frente a Lancaster e esperou pela ligação.
A chamada veio precisamente à meia-noite. Fallon colocara o volume no máximo e ativara a função de vibrar, logo o telefone trepidou pela mesa como se estivesse passando
por um pequeno terremoto particular. Ele estendeu a mão para o celular no mesmo instante, mas Gabriel segurou seu braço por agonizantes dez segundos antes de enfim
soltá-lo. Fallon atendeu e, com os olhos fixos em Lancaster, disse: “Eu concordo com os seus termos.” Gabriel admirou a escolha de palavras. A chamada certamente
estaria sendo gravada pelo Quartel-General
de Comunicações do Governo, o serviço de espionagem eletrônica da Inglaterra, e ficaria armazenada em seus bancos de dados até o fim dos tempos.
Fallon não disse nada durante os 45 segundos seguintes. Com o olhar ainda focado no primeiro-ministro, tirou uma caneta-tinteiro do bolso do paletó e rabiscou algumas
linhas ilegíveis num bloquinho de notas. Gabriel pôde escutar o som da voz de máquina, fina e sem vida, com a entonação toda errada, vazando pelo receptor.
- Não - disse Fallon finalmente, adotando o mesmo padrão -, isso não será necessário. - Após uma pergunta, respondeu: - Sim, é claro, você tem a nossa palavra. -
Depois disso, houve outro silêncio durante o qual seus olhos se moveram de Lancaster para Gabriel e de volta para o primeiro-ministro. - Talvez isso não seja possível
- disse, cuidadoso. - Preciso perguntar.
A ligação caiu. Fallon desligou o telefone.
- E então? - perguntou Lancaster.
- Ele quer que o dinheiro seja posto em duas malas pretas de rodinhas. Nenhum dispositivo de rastreamento, nenhuma bomba de tinta, nada de polícia. Ele vai ligar
de novo amanhã ao meio-dia para nos dizer o que fazer em seguida.
- Você não solicitou provas de que ela está viva - observou Gabriel.
- Ele não me deu oportunidade.
- Houve alguma demanda adicional?
- Só uma: ele quer que você entregue o dinheiro. Se não for você, a garota não será liberada.
22
LONDRES
Pouco depois da uma hora da manhã, Gabriel finalmente saiu da Downing Street. Seymour lhe ofereceu uma carona, mas ele queria andar. Havia meses Gabriel não ia a
Londres, e achou que o ar úmido da noite lhe faria bem. Saiu pelo portão de segurança dos fundos da Horse Guards e seguiu para oeste pelos parques vazios, chegando
à Knightsbridge. Depois, percorreu a Brompton Road até South Kensington. O local para o qual se encaminhava estava guardado nas gavetas de sua extraordinária memória:
Victoria Road, 59, a última residência conhecida de Christopher Keller na Inglaterra.
Era uma pequena casa sólida com um portão de ferro batido e um pequeno lance de escadas que levava à porta branca da frente. Havia flores bem cuidadas no vestíbulo
e, na janela da sala de estar, brilhava uma única luz. A cortina estava aberta alguns centímetros; pelo vão, Gabriel viu um homem, o Dr. Robert Keller, sentado ereto
numa poltrona - não dava para saber se lendo ou cochilando. Ele era um pouco mais jovem do que Shamron, mas ainda assim não tinha muito tempo de vida pela frente.
Havia 25 anos, sofria com a crença de que o filho estava morto, uma dor que o agente israelense conhecia bem demais. A atitude de Keller era insensível, mas não
cabia a Gabriel interferir. Por isso, ele ficou parado na rua vazia, torcendo para que o idoso pudesse de alguma forma sentir sua presença. Mentalmente, dizia-lhe
que seu filho era um homem imperfeito que fizera crueldades por dinheiro, mas também decente, honrado, corajoso e bastante vivo.
Depois de um instante, a luz se apagou e o pai de Keller sumiu de vista. Gabriel se virou e foi para a Kensington Road. Quando estava se aproximando da Queens Gate,
uma moto passou à sua direita. Ele a vira alguns minutos antes, ao atravessar a Sloane Street, e um pouco antes disso, no momento em que saía da Downing Street.
Imaginou que o motociclista fosse um observador do MI5. Mas agora, ao avaliar-lhe a forma das costas e a curva generosa dos quadris, repensou sua hipótese.
Gabriel seguiu para o leste, ao longo do Hyde Park, vendo a luz traseira da moto diminuir cada vez mais, confiante de que a avistaria de novo em breve. Ele não precisou
esperar muito - dois minutos, talvez menos. Foi então que vislumbrou a moto vindo rapidamente em sua direção. Dessa vez, em vez de passar ao seu lado, ela contornou
um cone e parou. Gabriel passou a perna por cima do assento e envolveu a cintura estreita com os braços. Quando a moto partiu, ele inalou o cheiro familiar de baunilha
e acariciou suavemente a parte de baixo de um seio quente e redondo. Fechou os olhos, em paz pela primeira vez em sete dias.
O flat ficava num prédio feio do pós-guerra na Bayswater Road. Já tinha servido de esconderijo para o Escritório, mas em King Saul Boulevard - e no MI5 também, aliás
-, o endereço era conhecido como o pied-à-terre de Gabriel Allon. Ao entrar, ele pendurou a chave no pequeno gancho na porta da cozinha e abriu a geladeira. Dentro,
havia uma caixa de leite fresco, uma caixa de ovos, um pedaço de queijo parmesão, cogumelos, ervas e uma garrafa do pinot grigio predileto de Gabriel.
- Quando eu cheguei, a despensa estava vazia - informou Chiara então comprei algumas coisas naquele mercado da esquina. Estava torcendo para poder jantar com você.
- Quando você chegou?
- Uma hora depois de você, mais ou menos.
- Como?
- Eu estava na vizinhança.
Gabriel a encarou, sério.
- Que vizinhança?
- Na França - respondeu ela, sem hesitar. - Uma fazenda nos arredores de Cherbourg, para ser precisa. Quatro quartos, uma cozinha com espaço para refeições e uma
ótima vista para o Canal.
- Você pediu para entrar na equipe de recepção?
- Não foi bem assim.
- Como foi, exatamente?
- Ari pediu.
- E de quem foi a ideia?
- Dele.
- Ah, é mesmo?
- Ele achou que eu era perfeita para o trabalho, e eu não pude discutir. Afinal, eu meio que faço ideia de como é ser sequestrada e mantida em cativeiro.
- E é por isso que eu não teria deixado você chegar perto dela.
- Isso foi há muito tempo, querido.
- Nem tanto.
- Parece que foi em outra vida. Na verdade, às vezes parece que nunca aconteceu.
Ela fechou a porta da geladeira e deu um beijo suave em Gabriel. Sua jaqueta de couro ainda estava fria por causa da viagem pela noite londrina, mas os lábios estavam
quentes.
- Nós ficamos o dia inteiro esperando você chegar - disse ela, beijando-o de novo. - A Mesa de Operações finalmente mandou uma mensagem dizendo que você tinha embarcado
num voo da British Airways de Marselha para Londres.
- Engraçado, eu não me lembro de ter mencionado meus planos de viagem à Mesa de Operações.
- Eles ficam de olho nos seus cartões de crédito, querido... você sabe disso. Eles tinham uma equipe da base londrina esperando em Heathrow. Disseram que você saiu
junto com Nigel Whitcombe. E depois viram você entrando na Downing Street pelos fundos.
- Eu fiquei meio desapontado de não ter entrado pela porta da frente, mas, dadas as circunstâncias, deve ter sido melhor.
- O que aconteceu na França?
- As coisas não saíram de acordo com os planos.
- E agora?
- O primeiro-ministro britânico está prestes a tornar alguém muito rico.
- Quanto?
- Dez milhões de euros.
- Então o crime compensa, afinal.
- Costuma compensar. É por isso que existem tantos criminosos.
Chiara se afastou de Gabriel e despiu o casaco. Ela estava vestindo um suéter preto justo com gola alta. Tinha prendido o cabelo para usar o capacete. Agora, com
um olhar cauteloso fixo em Gabriel, tirou vários grampos e alfinetes, deixando as mechas caírem sobre os ombros quadrados numa nuvem castanho- -avermelhada.
- Então acabou? - perguntou ela. - Podemos ir para casa agora?
- Não exatamente.
- Como assim?
- Alguém precisa entregar o dinheiro do resgate. - Ele fez uma pausa. - E depois trazê-la de volta.
Chiara estreitou os olhos, que pareceram escurecer um pouco. Aquilo nunca era um bom sinal.
- Tenho certeza de que o primeiro-ministro consegue achar outra pessoa.
- Eu também. Mas receio que ele não tenha muita escolha.
- Por quê?
- Porque os sequestradores fizeram uma ultima exigência hoje.
- Você?
Ele assentiu.
- Se não há Gabriel, não há garota.
Apesar de já estar tarde, Chiara queria cozinhar. Gabriel sentou à pequena mesa da cozinha, com uma taça de vinho ao lado do cotovelo, e recontou sua jornada após
deixá-la em Jerusalém. Em qualquer outro casamento, a esposa certamente teria reagido com incredulidade e assombro a uma história daquelas, mas Chiara parecia ocupada
com a preparação dos legumes e das ervas. Ela só ergueu os olhos da pia uma vez - quando Gabriel falou da cela vazia na casa no Lubéron e da mulher que tinha morrido
em seus braços. Ao término, Chiara encheu a palma da mão com sal, despejou um pouco na pia e jogou o que sobrou numa panela de água fervente.
- E, depois de tudo isso, você decidiu fazer um passeio à meia-noite por South Kensington - disse ela.
- Eu pensei em fazer uma coisa muito tola.
- Mais tola do que concordar com uma entrega de 10 milhões de euros de resgate para os sequestradores da amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel ficou em silêncio.
- Quem mora na Victoria Road, 59?
- Os pais de Keller.
Chiara estava prestes a perguntar para Gabriel por que ele tinha ido até lá, mas então entendeu.
- O que diabos você teria dito para eles?
- Esse é o problema, não é?
Chiara pôs vários cogumelos no centro da tábua de corte e começou a fatiá-los com precisão.
- Talvez seja melhor eles acharem que Keller está morto - comentou ela, pensativa.
- E se fosse o seu filho? Você não gostaria de saber a verdade?
- Se você está me perguntando se eu gostaria de saber que o meu filho mata pessoas para ganhar a vida, a resposta é “não”.
O silêncio tomou a cozinha.
- Desculpe - lamentou-se Chiara depois de um tempo. - Eu não quis que soasse mal.
- Eu sei.
Chiara colocou os cogumelos fatiados numa panela sauté e os temperou com sal e pimenta.
- Ela chegou a ficar sabendo?
- Minha mãe?
Chiara assentiu.
- Não - falou Gabriel -, ela nunca soube.
- Mas ela deve ter suspeitado de algo. Você ficou longe por três anos.
- Ela sabia que eu estava envolvido em um trabalho secreto e que tinha algo a ver com Munique. Mas nunca soube que eu cometi os assassinatos.
- Ela deve ter ficado curiosa.
- Não ficou.
- Por que não?
- O massacre de Munique foi um trauma para o país inteiro - explicou Gabriel mas foi especialmente duro para pessoas como a minha mãe. Uma judia alemã que sobreviveu
aos campos. Ela mal conseguia ler os jornais ou ver os funerais pela televisão: trancava-se no estúdio e pintava.
- E quando você voltou para casa, depois da Ira de Deus?
- Ela viu a morte nos meus olhos. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - Ela reconheceu o que estava vendo.
- Mas vocês nunca conversaram sobre aquilo?
- Nunca - respondeu Gabriel, balançando a cabeça devagar. - Minha mãe nunca me disse o que aconteceu com ela durante o Holocausto, e eu nunca falei o que fiz durante
os três anos na Europa.
- Você acha que ela teria aprovado?
- O que ela teria pensado não era importante para mim.
- É claro que era, Gabriel. Você não é tão fatalista assim. Se fosse, não teria ido para a antiga casa de Keller no meio da noite para olhar o pai dele pela janela.
Gabriel não disse nada. Chiara colocou uma porção de fettuccine na água fervente e mexeu uma vez com uma colher de madeira.
- Como ele é?
- Keller?
Chiara assentiu.
- Bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Parece a pessoa ideal para entregar 10 milhões de euros aos sequestradores de Madeline Hart.
- O governo de Sua Majestade acha que ele está morto. Além do mais, os sequestradores pediram que eu entregasse o dinheiro.
- Justamente por isso você não deveria fazer isso.
Gabriel não respondeu.
- Como eles sabiam que você estava envolvido?
- Devem ter me visto em Marselha ou em Aix.
- Por que eles querem que um profissional como você entregue o dinheiro? Por que não um lacaio da Downing Street que eles possam manipular?
- Suponho que estejam pensando em me matar. Mas isso vai ser difícil.
- Por quê?
- Porque eu vou estar com 10 milhões de euros que eles querem muito, logo nós ditamos o rumo.
- Nós?
- Você não acha que eu vou fazer isso sozinho, acha? Alguém estará na retaguarda.
- Quem?
- Alguém bastante competente, completamente impiedoso, sem nenhum resquício de consciência.
- Achei que ele tivesse voltado para a Córsega.
- Ele voltou - disse Gabriel -, mas está prestes a receber um telefonema.
- E eu?
- Volte para a casa em Cherbourg. Vou levar Madeline para lá depois de pagar o resgate. Quando ela estiver pronta para ser transportada, podemos levá-la de volta
para a Inglaterra. E aí vamos para casa.
Chiara ficou em silêncio por um tempo.
- Você faz parecer tão simples... - falou ela, por fim.
- Se eles jogarem pelas minhas regras, vai ser.
Chiara colocou uma tigela de fettuccine com cogumelos no centro da mesa e sentou na frente de Gabriel.
- Mais nenhuma pergunta?
- Só uma: o que a idosa na Córsega viu quando você pingou o azeite na água?
Quando eles terminaram de lavar a louça, já eram quase quatro da madrugada, portanto na Córsega iria dar cinco horas. Mesmo assim, Keller parecia desperto e alerta
ao atender. Usando um linguajar bem codificado, Gabriel explicou o que tinha se passado na Downing Street e o que aconteceria mais tarde naquele dia.
- Você consegue pegar o primeiro voo para Orly?
- Sem problema.
- Pegue um carro no aeroporto e vá para o litoral. Eu ligo quando souber de algo.
- Sem problema.
Depois de desligar, Gabriel se alongou na cama ao lado de Chiara e tentou dormir, mas em vão: cada vez que fechava os olhos, via o rosto da mulher que tinha morrido
em seus braços no Lubéron, no vale com as três casas. Então, ficou deitado, imóvel, escutando a respiração de Chiara e o chiado do trânsito na Bayswater Road à medida
que a luz cinzenta do amanhecer londrino invadia o quarto aos poucos.
Acordou Chiara com um café fresco às nove horas e tomou uma ducha. Quando saiu do banheiro, Jonathan Lancaster estava na TV apresentando sua nova iniciativa dispendiosa
para ajudar as famílias carentes da Inglaterra. Gabriel não pôde deixar de admirar a performance do primeiro-ministro.
Naquele momento, sua carreira estava por um fio, e ainda assim ele parecia tão assertivo e imperturbável como sempre. Inclusive, ao término do discurso, até Gabriel
se convencera de que gastar mais alguns milhões de libras dos contribuintes resolveria os problemas da classe eternamente desprivilegiada de Londres.
A matéria seguinte se relacionava com uma empresa russa de energia que obtivera permissão para perfurar as águas territoriais britânicas do mar do Norte em busca
de petróleo. Gabriel desligou a televisão, vestiu-se e pegou uma Beretta 9 mm no cofre escondido debaixo do assoalho do closet. Depois de beijar Chiara, desceu as
escadas até a rua. Esperando no meio-fio ao volante do Vauxhall Astra estava Nigel Whitcombe. Ele dirigiu até a Downing Street em tempo recorde e deixou Gabriel
na entrada dos fundos da Horse Guards.
- Vamos torcer para que essa não termine como a última - comentou ele, com um falso otimismo.
- Vamos - concordou Gabriel, e entrou.
23
DOWNING STREET
|Jeremy Fallon estava esperando no vestíbulo do número 10 e cumprimentou-o com sua mão quente e úmida, conduzindo-o para a Sala de Estar Branca. Dessa vez, o cômodo
estava vazio e Gabriel sentou sem esperar por um convite. Ainda de pé, o chefe de gabinete colocou a mão no bolso e pegou as chaves de um carro alugado.
- É um Passat sedã, como você pediu. Se puder devolvê-lo inteiro, eu serei eternamente grato. Não tenho um padrão de rida tão bom quanto o do primeiro-ministro.
Fallon abriu um leve sorriso, achando-se muito engraçado. Ficou claro porque não sorria com mais frequência: tinha os dentes de uma braçuda. Ele deu as chaves para
Gabriel, assim como um tíquete de estacionamento.
- É o estacionamento na Victoria Cátion. A entrada fica...
- Na Eccleston Street.
- Desculpe - disse Fallon, um tanto desconcertado. - Às vezes me esqueço com quem estou lidando.
- Eu, não.
Fallon ficou quieto.
- Qual é a cor do carro?
- Island Gray.
- “Cinza Ilha”?! Que droga é essa?
- A ilha não deve ser muito bonita, porque o carro é bem escuro.
- E o dinheiro?
- Está na traseira, duas malas, como foi pedido.
- Está lá há quanto tempo?
- Desde hoje cedo. Eu mesmo coloquei.
- Vamos torcer para que ainda esteja no mesmo lugar.
- O dinheiro ou o carro?
- Os dois.
- Era para ser uma piada?
- Não - respondeu Gabriel.
Franzindo a testa, Fallon sentou diante de Gabriel e passou a contemplar as própria unhas, que estavam roídas quase até o sabugo.
- Eu lhe devo desculpas por meu comportamento de ontem à noite - disse ele após um momento. - Só estava agindo de acordo com o que pensava ser o melhor para o primeiro-ministro.
- Eu também.
Fallon pareceu surpreso. Como boa parte dos homens poderosos, não estava mais acostumado a ter conversas honestas,
- Graham Seymour me avisou que às vezes você é bem franco.
- Só quando há vidas em jogo - respondeu Gabriel. - No instante em que eu entrar naquele carro, minha vida vai estar em risco. Portanto, a partir deste momento,
eu tomo todas as decisões.
- Não preciso lembrá-lo de que essa questão deve ser resolvida da forma mais discreta possível.
- Não, não precisa. Porque, se não for, o primeiro-ministro não é a única pessoa que vai pagar o preço.
Fallon apenas olhou para o próprio relógio. Eram 11h40: faltavam só vinte minutos para o telefonema agendado. Ele se levantou com o aspecto de um homem que não dormia
bem havia vários dias.
- O primeiro-ministro está na Sala do Gabinete, em uma reunião com o secretário de Relações Exteriores. Vou participar dela por alguns minutos. Em seguida, vou trazê-lo
aqui para a ligação.
- Qual é o assunto da reunião?
- A política britânica referente ao conflito entre israelenses e palestinos.
- Não esqueça quem vai entregar o dinheiro.
Fallon deu outro sorriso sombrio e seguiu abatido para a porta.
- Você sabia? - perguntou Gabriel.
O homem se virou lentamente.
- Sabia do quê?
- Que Lancaster e Madeline estavam tendo um caso.
Fallon hesitou antes de responder:
- Não, eu não sabia. Na verdade, nunca imaginei que ele faria algo que arriscasse tudo pelo que trabalhamos. Ironicamente, eu fui o idiota que apresentou os dois.
- Por que você fez isso?
- Porque Madeline integrava a nossa operação política. E porque era uma mulher extremamente esperta e competente com um futuro ilimitado.
Gabriel ficou abalado ao notar que Fallon se referira à colega desaparecida já conjugando os verbos no passado. O chefe de gabinete percebeu isso.
- Não foi isso que eu quis dizer - apressou-se a falar.
- Então o que você quis dizer?
- Não tenho certeza. - Eram três palavras que não costumava enunciar. - Mas não é muito provável que ela volte a ser a mesma pessoa depois de algo assim, certo?
- As pessoas são mais resilientes do que você imagina, especialmente mulheres. Com a ajuda adequada, ela poderá retomar sua vida normal. Mas você tem razão numa
coisa: ela nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fallon abriu a porta.
- Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou por cima do ombro.
- Algumas horas de sono seriam bem-vindas.
- Como você toma o café?
- Com leite, sem açúcar.
Fallon saiu, fechando a porta com suavidade. Gabriel se levantou, caminhou até a pintura urbana de Turner e se postou diante da obra com uma das mãos apoiada no
queixo e a cabeça inclinada levemente para o lado. Eram 11h43 e faltavam dezessete minutos para a ligação.
Fallon voltou um pouco antes do meio-dia, acompanhado por Jonathan Lancaster. A mudança na aparência do primeiro-ministro era notável. O Lancaster que Gabriel tinha
visto pela televisão naquela manhã - um político confiante
prometendo restaurar a estrutura da sociedade - desaparecera. Em seu lugar havia um homem cuja vida e carreira estavam prestes a se tornar o escândalo político mais
espetacular na história da Inglaterra. Era óbvio que Lancaster não conseguiria suportar muito mais a pressão.
- Você tem certeza de que quer ficar aqui? - perguntou Gabriel, apertando a mão do primeiro-ministro.
- Por que eu não ficaria?
- Porque talvez você não goste do que vai ouvir.
Lancaster sentou, deixando claro que não tinha qualquer intenção de ir embora. Fallon tirou o celular do bolso do paletó e o colocou na mesinha de centro. Gabriel
logo removeu a bateria, expondo o número de série no interior do dispositivo, e usou o BlackBerry pessoal para tirar uma foto do código.
- O que você está fazendo? - perguntou Lancaster.
- É muito provável que os sequestradores me digam para deixar este celular num lugar onde não será encontrado novamente.
- Então por que tirar uma foto?
- Precaução.
Ele colocou o BlackBerry de volta no bolso e ligou o celular dos sequestradores. Eram 11h57. Não havia mais nada a fazer além de esperar. Gabriel era excelente nesse
quesito: pelas próprias contas, tinha passado mais de metade da vida esperando. Esperando por um trem ou avião. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer do
sol depois de uma noite de matança. Esperando os médicos dizerem se a esposa morreria ou viveria. Torcia para que sua conduta serena acalmasse Lancaster, mas pareceu
surtir o efeito oposto. O primeiro-ministro estava encarando o visor do telefone sem piscar. Às 12h03, ele ainda não havia tocado.
- Que diabos está acontecendo? - perguntou Lancaster, frustrado.
- Estão tentando nos deixar ansiosos.
- Um belo trabalho.
- Por isso eu é que vou falar.
Outro minuto se passou sem contato. Então, às 12h05, o telefone tocou e começou a dançar sobre a mesa. Gabriel o pegou e olhou para o identificador de chamadas enquanto
o aparelho vibrava em sua mão. Como esperado, estavam usando um número diferente. Gabriel atendeu e perguntou com muita calma:
- Como posso ajudar?
Houve uma pausa, durante a qual Gabriel escutou o barulho de um teclado de computador. Em seguida, veio a voz robótica:
- Quem está falando?
- Você sabe quem é - respondeu Gabriel. - Vamos em frente. Minha garota está esperando há muito tempo por este dia. Quero resolver isso o mais rápido possível.
Houve outra pausa, seguida por mais sons de teclado. Então, a voz indagou:
- Você está com o dinheiro?
- Estou olhando para ele agora. Dez milhões de euros, não marcados, não sequenciais, sem rastreadores ou bombas de tinta, de acordo com todas as exigências. Espero
que você tenha um belo banco sujo à disposição, pois vai precisar de um.
Ele deu uma olhada de relance para Lancaster, que mastigava a bochecha. Fallon parecia ter entrado em parada respiratória.
- Você está pronto para as instruções? - perguntou a voz de máquina.
- Já estou pronto há alguns minutos.
- Você tem papel e caneta?
- Diga as instruções - falou Gabriel, impaciente.
- Você está em Londres?
- Sim.
- Tem um carro?
- Sim, claro.
- Embarque na balsa das 16h40 de Dover para Calais. Quarenta minutos após a partida, solte este telefone no canal da Mancha. Quando chegar a Calais, vá para o parque
na Rue Richelieu. Conhece o lugar?
- Sim, conheço.
- Há uma lixeira no canto nordeste. O novo celular estará preso na parte de baixo. Depois de pegá-lo, volte para o carro. Nós ligaremos e diremos aonde ir em seguida.
- Mais alguma coisa?
- Venha sozinho, sem reforços, sem a polícia. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre.
- Terminou?
A linha ficou em silêncio: nenhuma voz, ninguém digitando.
- Vou tomar isso como um sim - continuou Gabriel. - Agora me escute com cuidado, porque só vou dizer isto uma vez. Este é o seu grande dia. Você trabalhou muito
duro e o final já está quase à vista. Mas não estrague tudo fazendo algo estúpido. Eu só estou interessado em levar a garota para casa com segurança. São negócios,
nada mais. Vamos fazer isso como cavalheiros.
- Nada de polícia - insistiu a voz após alguns segundos.
- Nada de polícia - repetiu Gabriel.- Mas deixe-me dizer mais uma coisa: se você tentar ferir Madeline ou me ferir, minha agência vai descobrir quem você é. Eles
vão encontrá-lo e matá-lo. Isso está claro?
Dessa vez não houve resposta.
- E mais uma coisa: nunca mais me faça esperar cinco minutos por uma ligação. Se fizer isso, o acordo será desfeito.
Gabriel desligou o telefone e olhou para Lancaster.
- Acho que correu tudo bem. Você não acha, primeiro-ministro?
É raro ver um homem saindo pela porta da frente do número 10 da Downing Street vestindo calça jeans e jaqueta de couro, mas foi exatamente isso que aconteceu às
12hl7 num dia chuvoso no começo de outubro. Já haviam se passado cinco semanas desde que Madeline Hart desaparecera na Córsega; oito dias desde que a fotografia
e a gravação foram deixadas na casa de Simon Hewitt; doze horas desde que o primeiro-ministro do Reino Unido concordara em pagar 10 milhões de euros para garantir
seu retorno seguro. Obviamente, o policial que vigiava o hall de entrada não sabia de nada disso. Ele também não reparou que o homem vestido de maneira incomum era
o espião israelense Gabriel Allon, nem que havia uma Beretta semiautomática carregada embaixo de sua jaqueta. Por isso, ele lhe desejou um bom dia e observou Gabriel
andar até o portão de segurança, onde uma câmera tirou sua foto. Eram 12hl9.
Fallon tinha deixado o Passat na parte descoberta do estacionamento da Victoria Station. Gabriel se aproximou do veículo como sempre se aproximava de carros que
não eram seus: devagar, receoso. Rodeou o automóvel, como se inspecionasse a lataria em busca de arranhões, e em seguida derrubou de propósito as chaves no chão
de tijolos vermelhos. Ao se agachar, rapidamente analisou o chassi. Como não percebeu nada fora do comum, levantou-se e abriu o porta-malas. A tampa se ergueu devagar,
revelando duas maletas de náilon de marcas baratas. Abriu o zíper de uma e viu inúmeros maços de notas bem amarrados.
Pelos padrões londrinos, o trânsito àquela hora estava só moderadamente catastrófico. Gabriel atravessou a Chelsea Bridge à uma da tarde. Meia hora depois, já tinha
deixado os subúrbios de Londres para trás e corria pela via expressa M25. Às duas da tarde, sintonizou a Radio Four para ouvir o noticiário. Pouca coisa havia mudado
desde aquela manhã: Lancaster ainda falava de curar os males dos pobres da Inglaterra e uma empresa petrolífera russa ainda pretendia perfurar o mar do Norte em
busca de petróleo. Não houve nenhuma menção a Madeline Hart, nem a um homem vestindo jeans e jaqueta prestes a pagar 10 milhões de euros a sequestradores. Gabriel
escutou a previsão do tempo mais recente e descobriu que, no decorrer da tarde, esperava-se uma rápida piora das condições climáticas, com chuvas intensas e ventos
fortes ao longo da costa do canal da Mancha. Desligou o rádio e, num gesto inconsciente, tocou o talismã corso pendurado no pescoço. Quando ela estiver morta, ouviu
a senhora dizer. Então vocês saberão a verdade.
24
DOVER, INGLATERRA
Quando Gabriel entrou na M20, já estava chovendo forte. Ele passou em alta velocidade por Maidstone, Lenham Heath e Ashford, chegando ao porto de Folkestone às três
e meia. Lá, entrou na A20 e continuou rumo ao leste, passando por uma planície aparentemente interminável com a grama mais verde que ele já tinha visto. Por fim,
subiu uma colina baixa e o mar apareceu, escuro e revolto. A travessia prometia ser desagradável.
Quando a estrada se aproximou do mar, Gabriel teve um vislumbre das falésias pela primeira vez, erguendo-se brancas como giz contra as nuvens cinza-escuro. O caminho
para o terminal de balsas era bem demarcado. Gabriel foi até a bilheteria e confirmou a passagem que havia agendado, o tempo todo de olho no Passat. Em seguida,
com o bilhete na mão, sentou-se ao volante e se juntou à fila de carros que esperavam na linha de embarque. E não perca a balsa das 16h40. Se perder, a garota morre...
Só podia haver uma razão para uma exigência daquelas, pensou Gabriel: os sequestradores já o estavam observando.
De acordo com as normas, os passageiros eram proibidos de permanecer dentro dos veículos durante a travessia. Gabriel considerou brevemente a possibilidade de levar
as maletas com ele, mas decidiu que carregá-las de um lado para outro o deixaria vulnerável demais. Então, trancou bem o Passat, verificando o porta-malas e cada
uma das quatro portas duas vezes, para garantir que estivessem bem fechados, e seguiu para o lounge dos passageiros. Quando a balsa saiu do terminal, foi até a lanchonete
e pediu chá com scone. Lá fora, o céu estava cada vez mais escuro e, às 17hl5, o mar já não era mais visível. Gabriel ficou sentado por mais cinco minutos. Em seguida,
levantou-se e andou até um canto isolado do deque de observação tomado pelo vento. Nenhum dos passageiros o seguiu, portanto ninguém o viu derrubar um celular sobre
o corrimão.
Gabriel não viu nem escutou o aparelho atingir a superfície do mar. Permaneceu junto à grade por mais dois minutos antes de voltar para seu assento no lounge. E
lá ficou, memorizando cada um dos rostos ao redor, até ouvir o anúncio dos alto-falantes, primeiro em inglês, depois em francês, de que já era hora de os passageiros
voltarem para os carros. Gabriel garantiu que fosse o primeiro a chegar ao estacionamento. Ao abrir o porta-malas do Passat, viu que as malas estavam no lugar, ainda
cheias de dinheiro. Sentou ao volante e observou os outros passageiros indo para seus carros. Na fileira ao lado, uma mulher estava destrancando a porta de um pequeno
Peugeot. Ela tinha cabelos louros curtos, quase masculinos, e um rosto em forma de coração. Mas Gabriel reparou em mais uma coisa: ela era a única passageira da
balsa que usava luvas.
Fixou o olhar à frente, com as duas mãos no volante.
Era ela. Gabriel tinha certeza.
Calais era uma feia cidade litorânea, meio inglesa, meio alemã, mas muito pouco francesa. A Rue Richelieu ficava a 1,5 quilômetro do terminal de balsas no quartier
conhecido como Calais-Nord, uma ilha artificial octogonal cercada por canais e portos. Gabriel estacionou na frente de uma série de casas de estuque e seguiu para
o parque, observado por um trio de homens afegãos com casacos largos e chapéus pakol tradicionais. Eles deviam ser migrantes econômicos atrás de uma carona ilegal
até a Inglaterra. Antigamente, existia um grande acampamento nas dunas de areia ao longo da praia, de onde era possível ver, num dia claro, as falésias brancas de
Dover reluzindo do outro lado do Canal. Os bons cidadãos de Calais, um baluarte do Partido Socialista, referiam-se ao acampamento como “a floresta” e aplaudiram
a polícia francesa quando ele finalmente foi fechado.
A lixeira estava no lado direito de uma trilha que levava para dentro do parque. Tinha pouco mais de um metro de altura e era verde-floresta. Ao seu lado, havia
uma placa pedindo para que os visitantes não estragassem a grama e as flores. Não falava nada sobre procurar um celular escondido embaixo da lixeira - o que Gabriel
fez depois de jogar fora a passagem de balsa. Ele o encontrou num instante, preso com fita adesiva. Gabriel o retirou dali e colocou-o no bolso do casaco antes de
se endireitar e voltar para o Passat. Quando ele deu a partida, o telefone já estava tocando.
- Muito bem - disse a voz gerada por computador. - Agora ouça com atenção.
A voz mandou Gabriel seguir direto para o Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe. Uma reserva tinha sido feita no nome de Annette Ricard. Ele deveria dar entrada
no quarto usando o próprio cartão de crédito e explicar que mademoiselle Ricard iria se encontrar com ele mais tarde, naquela noite. Buscou a rota até a cidade pelo
celular pessoal. Grand-Fort-Philippe ficava bem a oeste de Dunkirk, cenário de uma das maiores humilhações militares na história da Inglaterra. Na primavera de 1940,
mais de trezentos mil membros da Força Expedicionária Britânica foram evacuados das praias de lá enquanto a França era derrubada pela Alemanha nazista. Na pressa
para partir, os ingleses tiveram que abandonar material suficiente para equipar dez divisões militares. Os sequestradores poderiam ter escolhido o hotel sem saber
disso, mas Gabriel duvidava.
O Hotel de la Mer não ficava de fato perto do mar. Compacto, limpo e coberto por uma camada fresca de tinta branca, dava vista para o estuário que separava a cidade
em duas. Gabriel passou pela entrada três vezes antes de parar numa vaga oblíqua ao longo do cais. Nenhum funcionário do hotel foi ajudá-lo - não era esse tipo de
lugar. Esperou um carro passar antes de desligar o motor. Depois de enterrar a chave bem fundo no bolso da frente da calça, saiu depressa do Passat. As duas malas
estavam surpreendentemente pesadas. Se Gabriel já não soubesse qual era o conteúdo, acharia que Fallon as enchera com pesos de chumbo. Gaivotas voavam lentamente
em círculos, como se torcessem para que o fardo o fizesse desabar.
O hotel não tinha um saguão propriamente dito, apenas um átrio apertado com um recepcionista careca, magro e meio sonâmbulo sentado atrás de um balcão. Apesar de
haver apenas oito quartos, ele levou um tempinho para encontrar a reserva. Gabriel pagou em dinheiro, violando a exigência dos sequestradores, e deixou um depósito
generoso para eventualidades.
- Há uma segunda chave para o quarto? - perguntou ele.
- É claro.
- Posso ficar com ela, por gentileza?
- E quanto a mademoiselle Ricard?
- Vou deixá-la entrar.
O recepcionista franziu a testa em desaprovação enquanto passava a chave extra por cima do balcão.
- Não existem outras? Só essa?
- A camareira tem uma chave mestra, claro, e eu também.
- E você tem certeza de que não há ninguém no quarto?
- Positivo - respondeu o recepcionista. - Eu mesmo acabei de arrumá-lo.
Por conta da gentileza, Gabriel depositou uma nota de 10 euros no balcão, que foi tomada por uma mão encardida e desapareceu no bolso de um paletó mal-ajambrado.
- Você precisa de ajuda com as malas? - perguntou. Seu tom de voz sugeria que ajudar Gabriel era a última coisa em sua mente.
- Não, obrigado - respondeu Gabriel com entusiasmo. - Acho que consigo dar conta.
Ele empurrou as malas de rodinhas pelo chão de linóleo. Ergueu-as do chão e começou a subir a escadaria estreita, esforçando-se para passar a impressão de que eram
leves. Enfiou a chave na fechadura com o cuidado de um médico manejando uma sonda. Ao entrar, encontrou o quarto vazio e uma única lâmpada fraca acesa na mesinha
de cabeceira. Empurrou as malas para dentro, fechou a porta e sacou a Beretta, fazendo uma busca rápida pelo closet e pelo banheiro. Por fim, certo de que estava
sozinho, passou a corrente na porta, bloqueou-a com todos os móveis do quarto e colocou as malas debaixo da cama. Quando ele se levantou, o celular que pegara em
Calais tocou pela segunda vez.
- Muito bem - disse a mesma voz. - Agora escute com atenção.
Dessa vez, Gabriel fez várias exigências. A mulher deveria ir sozinha, sem reforços e desarmada. Ele exigiu o direito de revistá-la - com minúcia e intimamente,
acrescentou, para garantir que não houvesse mal-entendidos. Depois disso, ela poderia levar o tempo que quisesse para verificar se as notas eram genuínas e se chegavam
ao montante de 10 milhões de euros. Ela podia contar o dinheiro, cheirá-lo, sentir seu gosto ou transar com ele - Gabriel não se importava, desde que não houvesse
nenhuma tentativa de roubo. Caso a mulher fizesse isso, disse Gabriel, ela seria machucada gravemente e o acordo, cancelado.
- E não faça ameaças estúpidas sobre matar Madeline; ameaças insultam a minha inteligência.
- Uma hora - respondeu a voz, e a ligação caiu.
Gabriel retirou uma cadeira de espaldar reto da barricada e a colocou ao lado da janela minúscula do quarto. Ele ficou sentado pelos 67 minutos seguintes, observando
a rua abaixo. Quarenta minutos após começar sua vigilância, um homem passou às pressas pelo hotel com um guarda-chuva aberto, parando apenas por tempo suficiente
para tentar abrir a porta do carona do Passat. Depois disso, não houve mais carros nem pedestres, apenas as gaivotas circulando no alto e um bando de gatos de rua
se banqueteando no lixo do restaurante de frutos do mar vizinho ao hotel. A espera, ele pensou. Sempre a espera.
Sessenta minutos se passaram sem sinal da sequestradora e Gabriel sentiu uma pontada de pânico, que piorou com o tempo. Então, por fim, uma perua BMW embicou na
vaga vazia ao lado do Passat. A porta foi aberta e uma bota de grife emergiu, seguida por uma perna comprida coberta por uma calça jeans azul. Era uma mulher com
cabelos pretos que iam até a altura dos ombros e ocultavam o seu rosto de Gabriel. Ele a observou atravessar a rua debaixo da chuva, analisando o ritmo de suas passadas,
a curvatura dos joelhos. O andar é algo curioso: é como a impressão digital ou a retina. Um rosto pode ser alterado com facilidade, mas até mesmo agentes secretos
experientes têm dificuldades para mudar o jeito de andar. Gabriel se deu conta que já vira aquele andar antes. Ela era a mulher da balsa.
Ele tinha certeza disso.
25
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Ela levou menos de um minuto para chegar ao terceiro andar do hotel.
Nesse intervalo, Gabriel removeu a barricada de móveis, encostou o ouvido na porta e escutou a batida dos saltos ao longo do corredor sem carpete. Era uma porta
boa, grossa, sólida, o suficiente para amortecer uma bala, mas não pará-la. A mulher bateu com delicadeza, como se achasse que havia crianças dormindo ali.
- Você está sozinha? - perguntou Gabriel, falando em francês.
- Sim.
- Está armada?
- Não.
- Você sabe o que vai acontecer se eu encontrar uma arma com você?
- O acordo será desfeito.
Gabriel abriu a porta alguns centímetros, sem tirar a corrente.
- Passe a mão pelo vão.
A mulher hesitou por um instante, então obedeceu, estendendo a mão comprida e pálida. Usava um único anel, um círculo de prata com relevo entrelaçado, e tinha uma
pequena tatuagem de sol na pele entre o polegar e o indicador. Gabriel agarrou o pulso dela e o torceu dolorosamente. Na parte de baixo, havia cicatrizes antigas
de tentativas juvenis de suicídio.
- Se você quiser usar essa mão de novo, vai fazer exatamente o que eu disser. Entendeu?
- Entendi - respondeu a mulher, arquejando.
- Largue a bolsa no chão e a empurre para cá com o pé.
A mulher seguiu as instruções. Ainda segurando o pulso dela com a mão esquerda, Gabriel se abaixou e esvaziou a bolsa no chão. O conteúdo era mais ou menos o que
se esperava que uma francesa carregasse, com duas exceções notáveis: uma lupa de joalheiro e uma lâmpada infravermelha portátil. Gabriel tirou a corrente da porta
e, torcendo o punho da mulher quase ao ponto de quebrá-lo, puxou-a para dentro. Fechou a porta com o pé e a empurrou contra a parede. Em seguida, como prometido,
revistou-a minuciosamente, confiante de que estava explorando o que muitos homens já tinham explorado antes.
- Está se divertindo? - perguntou ela.
- Sim - respondeu Gabriel com uma voz monótona. - Na verdade, não me divirto tanto assim desde a última vez que removeram uma bala do meu corpo.
- Espero que tenha doído.
Ele tirou a peruca escura da mulher e passou a mão por seus cabelos louros curtos.
- Terminou? - ela quis saber.
- Vire-se.
Ela obedeceu, ficando de frente para ele pela primeira vez. Era alta e magra, com os membros compridos e os seios pequenos de uma bailarina de Degas. Seu rosto em
forma de coração era infantil e inocente, mas os lábios tinham o levíssimo esboço de um sorriso irônico. O Escritório adorava rostos como o dela. Gabriel se perguntou
quantas fortunas já teriam sido perdidas devido àquela beleza.
- Como vai ser, então? - indagou ela.
- Do jeito costumeiro. Você vai examinar o dinheiro e eu vou apontar uma arma para a sua cabeça. Se você fizer qualquer coisa que me deixe ansioso, vou estourar
os seus miolos.
- Você é sempre tão charmoso?
- Só com as garotas de quem realmente gosto.
- Onde está o dinheiro?
- Embaixo da cama.
- Você vai pegá-lo para mim?
- Sem chance.
A mulher bufou, ajoelhou-se ao pé da cama e puxou a primeira mala. Abriu-a e contou o número de maços, primeiro na vertical, depois na horizontal. Em seguida, puxou
um do centro, como um climatologista perfurando um bloco de gelo, e contou as notas.
- Terminou? - perguntou Gabriel, zombando dela.
- Estamos só começando.
Ela escolheu seis maços de seis partes diferentes da mala em seis profundidades diferentes e contou rapidamente as cédulas, como se já tivesse trabalhado num banco
ou cassino. Ou talvez, pensou Gabriel, ela apenas passasse muito tempo verificando dinheiro roubado. A cada maço, ela retirava uma nota.
- Preciso das minhas coisas - comentou a mulher.
- Você acha mesmo que eu vou dar as costas para você?
Ela deixou as seis cédulas de 100 euros na cama e foi até o hall de entrada para pegar seus objetos de trabalho. Ao voltar, sentou na beirada da cama e usou a lupa
para examinar cada nota por mais de um minuto, buscando qualquer indício de falsificação: uma imagem mal impressa, um número ou caractere faltando, um holograma
ou marca-d'água que não parecesse genuíno. Ao terminar, baixou a lupa e pegou a lâmpada infravermelha.
- Preciso desligar as luzes do quarto.
- Ligue isso aí antes - ordenou Gabriel.
A mulher obedeceu. Ele atravessou o quarto, apagando as luzes, até que restasse apenas o brilho do infravermelho, usado para verificar as seis notas. As tiras de
segurança reluziram com um tom verde-limão, provando que as notas eram genuínas.
- Muito bem - comentou ela.
- Não tenho palavras para descrever minha felicidade por vê-la satisfeita. - Gabriel acendeu as luzes do quarto. - Agora tenho uma exigência: peça a Paul para me
ligar dentro de uma hora ou cancelarei o acordo.
- Ele não vai gostar disso.
- Fale do dinheiro. Ele vai conseguir superar.
A mulher recolocou a peruca, juntou suas coisas e saiu em silêncio. Postado junto à janela, Gabriel a observou partir. Em seguida, continuou lá, contemplando a rua
molhada, e esperou o telefone tocar. A chamada veio às 21hl5, exatamente após uma hora. Depois de tolerar um discurso gerado por computador, Gabriel fez a exigência
com calma. Houve silêncio, uma série de teclas foram pressionadas e, então, veio a voz fina, sem vida, com a entonação toda errada.
- Eu estou no comando, não você - disse a máquina.
- Entendo - respondeu Gabriel, ainda mais calmo. - Mas essa é uma transação de negócios, nada mais. Dinheiro em troca de mercadoria. E seria um descuido de minha
parte se eu não a conduzisse da devida maneira.
Outra pausa, mais teclas sendo batidas, e então a voz:
- Essa ligação durou tempo demais. Desligue e aguarde nossa próxima chamada.
Gabriel obedeceu. Um minuto depois, recebeu um telefonema de outro número. A voz emitiu uma série de instruções, que Gabriel copiou num papel timbrado do Hotel de
la Mer.
- Quando?
- Em uma hora - falou a voz.
E foi só. Gabriel desligou o telefone e releu as instruções para se certificar de que as escrevera corretamente. Só havia um problema.
O dinheiro.
Gabriel fez três ligações sucessivas em cinco minutos. As primeiras duas foram feitas do telefone do quarto - uma para o quarto ao lado, que não foi atendida, e
a segunda para o recepcionista sonolento no térreo, que confirmou que o quarto estava desocupado. Gabriel o reservou para o resto da noite, prometendo pagar o valor
completo na hora seguinte. Em seguida, ligou para Keller com o próprio celular.
- Onde você está?
- Boulogne - respondeu Keller.
- Preciso que você entre no Hotel de la Mer, em Grand-Fort-Philippe, em 45 minutos.
- Por que eu faria isso?
- Porque tenho um serviço e preciso garantir que ninguém roube a minha bagagem enquanto eu estiver fora.
- Onde está a bagagem?
- Embaixo da cama no quarto ao lado.
- Para onde você vai?
- Não faço ideia.
Mais uma hora, mais uma espera. Gabriel aproveitou para arrumar o quarto e preparar o que pode ter sido a xícara mais forte de Nescafé já feita. Já estava chegando
à terceira noite sem dormir - o Lubéron, a Downing Street e agora aquilo. Ele estava perto, conseguia sentir. Só mais algumas horas, pensou, tomando o líquido amargo,
e poderia dormir por um mês.
Às 22hl0, desceu para o saguão e disse ao recepcionista noturno que um tal de monsieur Duval chegaria em breve. Pagou antecipadamente as taxas de estadia e deixou
para trás um envelope que deveria ser entregue ao visitante misterioso na sua chegada. Então, saiu do hotel e entrou no Passat. Enquanto se distanciava, olhou pelo
retrovisor e viu Keller entrando no hotel, no horário exato.
Dessa vez, não lhe forneceram apenas um destino, mas também uma rota específica. Gabriel atravessou campos de moinhos de vento, usinas de gás, refinarias e depósitos
ferroviários na parte oeste de Dunkirk. À sua frente, erguia-se uma cadeia de montanhas de cascalho, como uma versão em miniatura dos Alpes. Ele atravessou a área
rapidamente em meio a uma nuvem de poeira e entrou num caminho estreito que passava sobre uma queda-d'água alta. À sua direita estavam os guindastes de carga do
porto de Dunkirk; à esquerda, o mar. Marcou o ponto de partida da rua com a função trip do odômetro. Exatamente 1,5 quilômetro adiante, estacionou e desligou o motor.
O vento forte e úmido fez o carro estremecer. Gabriel saiu, ergueu o colarinho e seguiu para a praia. A maré estava baixa, a areia tão dura e plana quanto um chão
de concreto. Ele parou à beira da água e jogou sua Beretta no mar. Era um belo lugar para a arma de um soldado ser descartada, pensou enquanto retornava ao carro:
no fundo do mar, ao largo das praias de Dunkirk.
Quando retornou à rua, olhou para os dois lados, leste, oeste e então leste novamente. Não havia ninguém por perto, nenhum farol se aproximando, mas apenas as luzes
dos guindastes e o brilho distante do gás queimando sobre as refinarias. Gabriel abriu o porta-malas e colocou a chave dentro da roda traseira esquerda. Em seguida,
entrou nele, deitou em uma espécie de posição fetal e fechou a tampa com um puxão. Alguns segundos depois, o telefone tocou.
- Você está dentro? - perguntou a voz.
- Estou.
- Cinco minutos.
Acabaram se passando quase dez minutos até Gabriel ouvir um carro estacionando atrás do Passat. Escutou uma porta se abrir e se fechar, depois botas pisando no asfalto.
Era a mulher, pensou, quando o carro partiu com um solavanco. Ele tinha certeza disso.
Depois de deixar Dunkirk para trás, ela dirigiu em alta velocidade por mais de uma hora, parando apenas duas vezes. Em seguida, entrou numa estrada de terra e continuou
dirigindo depressa, como se punisse Gabriel pela impertinência de pedir uma evidência de que Madeline estava viva antes de entregar os 10 milhões de euros. Num determinado
momento, o piso do Passat atingiu o chão com um baque pesado e Gabriel teve a sensação de que eles tinham batido num iceberg.
Pouco tempo depois, saíram da estrada de terra e tomaram uma trilha suave de cascalho, que terminou num piso de concreto. Gabriel sabia que estavam numa garagem
porque, quando o carro parou, a vibração do motor ressoava pelas paredes. Após um instante, o automóvel foi desligado e a mulher saiu, seus saltos ecoando no chão.
O porta-malas foi aberto alguns centímetros e a mão comprida e pálida surgiu com um capuz de pano, que Gabriel usou para cobrir a cabeça.
- Você está pronto? - perguntou ela.
- Estou.
- Você sabe o que acontece se ficar sem o capuz?
- A garota morre.
Gabriel ouviu a tampa do porta-malas ser aberta. Ele foi agarrado por dois pares de mãos, obviamente masculinas. Um dos homens o segurou pelos ombros, o outro pelas
pernas, e ambos o levantaram. Colocaram-no de pé com uma gentileza surpreendente e esperaram que ele recuperasse o equilíbrio antes de amarrarem as suas mãos atrás
das costas com algemas plásticas. Em seguida, tomaram-no pelos cotovelos e o conduziram pelo cascalho, diminuindo um pouco a velocidade para ajudá-lo a subir dois
degraus de tijolos e passar pela porta.
O interior tinha um piso desigual de madeira, como o soalho de uma casa de campo antiga. Enquanto era obrigado a fazer várias curvas bruscas, Gabriel teve a sensação
de estar sendo levado por uma figura de autoridade. O grupo desceu um lance de escadas íngreme e adentrou um porão frio que cheirava a pedra calcária e umidade.
As mãos o empurraram para a frente por vários metros, fizeram-no parar e o ajudaram a sentar na beirada de uma cama. Gabriel escutou os passos dos captores com atenção
enquanto eles se afastavam, tentando determinar o número de pessoas. Então, uma porta pesada se fechou com um baque digno de um caixão sendo lacrado. Não houve mais
nenhum som.
Apenas o cheiro. Pesado e nauseantemente doce. O cheiro de um ser humano
em cativeiro.
Gabriel ficou sentado sem se mexer, em silêncio, convencido de que tinha sido deixado no quarto a sós. Mas, alguns segundos depois, seu capuz foi removido. À sua
frente estava uma jovem, magra e branca como porcelana, mas ainda assim extremamente bonita.
- Eu sou Madeline Hart. Quem é você?
26
NORTE DA FRANÇA
Gabriel tinha passado nove dias se esforçando para pintar o rosto de Madeline em sua mente. Ela era um desenho a carvão, um nome num arquivo impressionante, um favor
para um velho amigo. E agora, enfim, sentada à sua frente, achava-se a prisioneira por quem ele tinha torturado e matado, posada como que para um retrato. Vestida
com roupas esportivas azul-escuras e sapatos de lona sem cadarços, estava mais magra do que na gravação - até mesmo do que na última fotografia enviada pelos sequestradores
- e seus cabelos tinham crescido pelo menos 2 centímetros desde o desaparecimento, penteados para trás e pendendo no centro de suas costas. Com ossos malares proeminentes,
tinha manchas escuras semelhantes a hematomas debaixo dos olhos azul-acinzentados. Madeline estava com as mãos cruzadas sobre o colo; seus pulsos eram puro osso
e tendão, e as unhas tinham sido roídas até o fim. Mesmo assim, conseguiu transmitir dignidade e autoridade. Ele agora entendia por que Jeremy Fallon tinha declarado
que o destino lhe reservava um lugar no Parlamento - e por que Jonathan Lancaster arriscara tudo por ela. De repente, Gabriel se deu conta de que havia feito o mesmo.
- Estou aqui para resgatá-la, Madeline - respondeu ele por fim. - Estamos no fim do jogo.
- Você queria ver se eu ainda estava viva?
Ele hesitou por um instante, então assentiu.
- Bem, eu estou viva. Pelo menos acho que estou. Às vezes não tenho tanta certeza. Não sei as horas, que dia da semana é, nem o mês. Nem sei onde estou.
- Eu acho que você está na França, em algum lugar ao norte.
- Você acha?
- Eu fui trazido para cá no porta-malas de um carro.
- Eu passei muito tempo num lugar desses - disse ela, empática. - E acho que fiz uma viagem de barco de algumas horas após o meu sequestro, mas não tenho certeza.
Eles me deram uma dose de alguma coisa. Depois disso, tudo virou um borrão.
Gabriel imaginou que a conversa estivesse sendo monitorada. Portanto, não disse a Madeline que ela fora trazida da Córsega para o continente a bordo de um iate pilotado
por um contrabandista e acompanhada pelo homem com quem almoçara no Les Palmiers. Gabriel tinha muitas perguntas a fazer sobre o homem que conhecia apenas como Paul:
Quando ela o conhecera? Qual era a natureza do relacionamento deles? Em vez disso, indagou se Madeline conseguia se lembrar das circunstâncias do sequestro.
- Foi no caminho entre Piana e Calvi. - Ela fez uma pausa. - Você já esteve lá?
- Na Córsega?
- Sim.
- Nunca pisei naquele lugar.
- É muito encantador, de verdade - falou ela, soando muito britânica. - Em todo caso, estava dirigindo um pouco mais rápido do que deveria, como sempre. Um carro
parou na minha frente depois de uma curva fechada. Eu consegui frear, mas ainda bati na lateral do automóvel com muita força. Os hematomas e arranhões levaram um
século para sarar. - Ela massageou o dorso da mão. - Isso foi há quanto tempo? Há quanto tempo eles estão comigo?
- Cinco semanas.
- Só isso? Parece mais.
- Eles trataram você bem?
- Parece que eu fui bem tratada?
Ele não respondeu.
- Não tenho comido nada além de pão com queijo e legumes enlatados. Uma vez me deram restos de frango, mas eu passei mal, então nunca mais fizeram isso. Eu pedi
um rádio, mas eles recusaram. Pedi um livro, também um jornal para me manter informada sobre o que está acontecendo no mundo, mas em vão.
- Eles não queriam que você lesse sobre si mesma.
- O que o mundo sabe de mim?
- Que você está desaparecida. Só isso.
- E quanto àquele vídeo horrível que me forçaram a fazer?
- Ninguém o viu - respondeu Gabriel. - Ninguém além do primeiro-ministro e o pessoal mais próximo.
- Jeremy?
- Sim.
- Simon?
Gabriel assentiu.
- E você? Você também viu, imagino.
Gabriel não disse nada. Madeline massageava o dorso da mão, que agora estava quase em carne viva, como se tentasse se punir. Gabriel queria fazê-la parar, mas não
conseguia - não com as mãos atadas atrás das costas.
- Não tive escolha. Fui obrigada a fazer aquele vídeo - alegou ela, por fim.
- Eu sei.
- Eles disseram que me matariam.
- Eu sei.
- Tentei mentir. Você precisa acreditar em mim. Tentei dizer que não havia nada entre mim e Jonathan, mas eles sabiam de tudo. Datas, horas, lugares... Tudo!
Ela o encarou, intrigada.
- Você não é inglês.
- Desculpe - disse Gabriel.
- Você é policial?
- Sou um amigo do primeiro-ministro.
- Então você é um espião.
- Algo do gênero.
Madeline sorriu brevemente. Seu sorriso já fora belo, mas agora havia algo de louco. Ela ficaria bem de novo, pensou Gabriel, mas demoraria um tempo.
- Por favor, pare, Madeline.
- Parar com quê?
- Suas mãos.
Ela baixou os olhos para fitá-las: estavam sangrando.
- Desculpe. - Sua voz trazia um tom submisso. Ela cerrou os punhos com força, até que os nós dos dedos ficassem brancos. - Por que fizeram isso comigo?
- Dinheiro.
- Estão chantageando Jonathan?
Ele aquiesceu.
- Quanto?
- Isso não importa.
- Quanto?
- Dez milhões.
- Meu Deus - murmurou ela. - E ele concordou em pagar?
- Sem pestanejar.
- O que vai acontecer agora?
- Nós descobriremos uma maneira de fazer uma troca que satisfaça às necessidades das duas partes.
- Falta muito?
- Estamos perto.
- Quanto? - pressionou ela.
- Farei o que for preciso para tirá-la daqui até o amanhecer.
- Receio não saber o que isso significa.
- Algumas horas.
- E depois?
- Nós a levaremos a um lugar seguro, para que possa se recompor e descansar. Depois, você voltará para casa.
- Para quê? - questionou ela. - Minha vida estará arruinada, tudo por causa de um erro tolo.
- Ninguém jamais saberá do resgate nem do seu caso com Jonathan. Como se nada nunca tivesse acontecido.
- Até que a imprensa descubra. Então, eles tirarão pedaço por pedaço de mim. É o que eles sempre fazem. É tudo que eles fazem.
No instante em que Gabriel ia responder, soaram duas batidas fortes na porta. O estômago de Gabriel se contraiu quando Madeline rapidamente cobriu a cabeça dele
com o capuz negro. Imaginou que, a seguir, ela tivesse coberto a própria cabeça, mas não dava para saber, pois o capuz era totalmente opaco.
- Você não me disse o seu nome - disse ela.
- Isso não importa.
- Eu o amei, sabe? Eu o amei muito.
- Eu sei.
- Não consigo aguentar muito mais.
- Eu sei.
- Você tem que me tirar daqui.
- Eu vou tirar.
- Quando?
- Em breve.
Eles removeram as algemas de plástico antes de colocá-lo no porta-malas e levá-lo pela estrada de terra batida. O carro trombou com a mesma valeta de antes e, depois
disso, correu tranquilamente por vias pavimentadas. Devia estar chovendo forte, pois Gabriel ouvia água sendo espirrada pelas rodas. O som o conduziu a um sono curto.
Sonhou que Madeline havia arranhado o dorso de sua mão até o osso.
“Não consigo aguentar muito mais"
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.’’
“Eu vou tirar!’
Dez minutos depois de Gabriel acordar, o carro enfim parou. O motor foi desligado, uma porta se abriu, botas bateram sobre o asfalto e se afastaram. Restou apenas
o barulho da chuva. Por um momento, Gabriel temeu que tivessem lhe reservado uma morte que muito se assemelhava a ser enterrado vivo. Então, o telefone no bolso
de seu paletó tocou.
- Nós avisamos para não trazer reforços - disse a voz.
- Você achou mesmo que eu ia largar 10 milhões de euros num quarto de hotel?
- De agora em diante, faça exatamente o que dissermos ou a garota morre.
- Você tem a minha palavra.
Fez-se silêncio, seguido pelo som de alguém datilografando.
- A chave extra está grudada por uma fita diretamente acima da sua cabeça. Volte para o seu quarto e espere a nossa ligação.
- Quanto tempo?
A ligação caiu. Gabriel ergueu o braço e pegou a chave. Pressionou a maçaneta do porta-malas e a chuva caiu benevolentemente em seu rosto.
27
GRAND-FORT-PHILIPPE, FRANÇA
Sentado na cama, com um cigarro queimando entre os dedos. Estava vendo, sem som, o replay de um jogo da Liga Inglesa: Fulham x Arsenal.
- Confortável? - perguntou Gabriel.
- Eu vi você chegar de carro. - Keller desligou a televisão com o controle remoto. - E então?
- Ela está viva.
- Está muito mal?
- Mal.
- O que fazemos agora?
- Esperamos o telefone tocar.
Keller voltou a ligar a TV e acendeu outro cigarro.
Dessa vez, Gabriel estava sem paciência. Ele tentou se distrair com o jogo de futebol, mas a visão de homens feios de calção correndo atrás de uma bola lhe era ofensiva.
Encheu mais uma xícara de café extraforte e tomou-o à janela. A corrente do estuário havia mudado de sentido e agora estava fluindo para dentro, não para fora. Consultou
o relógio. A hora não tinha mudado desde a última vez que olhara: 3h22. Era uma comprovação de que nada de bom acontecia naquele horário da madrugada.
- Eles não vão ligar - disse, mais para si mesmo do que para Keller.
- É claro que vão.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque eles foram longe demais. E tenha mais uma coisa em mente: a esta altura, querem se livrar de Madeline tanto quanto você quer trazê-la de volta.
- É disto que eu tenho medo.
Keller o encarou, sério.
- Quando foi a última vez que você dormiu?
- Em setembro.
- Existe alguma chance de você permitir que eu entregue o dinheiro?
- Em hipótese alguma.
- Eu precisava perguntar.
- Agradeço a gentileza.
Keller olhou para a televisão de cara feia. Evidentemente, um dos times fizera gol, pois os homens de calção estavam pulando como crianças num play-ground. Mas não
Gabriel: ele fitava as águas do estuário, com a imagem de Madeline arrancando a pele do dorso da mão. Quando o telefone enfim tocou às 3h48, o barulho o assustou
como o grito de uma mulher aterrorizada. A mesma voz de sempre falou com ele. Após alguns segundos, ele olhou para Keller e assentiu.
Era a hora.
O recepcionista da noite não estava em lugar nenhum. Gabriel depositou as chaves do quarto no escaninho atrás do balcão e levou as duas malas até a rua molhada.
O motor do Passat ainda estalava da viagem anterior. Ele guardou a bagagem no porta-malas e sentou-se no banco do motorista. O telefone começou a tocar enquanto
Gabriel fechava a porta. Ele atendeu e o colocou no viva-voz.
- Vá para a A16, na direção de Calais - instruiu o sequestrador. - E, em hipótese alguma, desligue o telefone. Se a ligação cair, a garota vai morrer.
- E se eu ficar sem sinal?
- É melhor que não fique.
Era uma estrada de quatro faixas com torres de luz no centro e fazendas em ambos os lados. Gabriel se manteve no limite de velocidade, 90 quilômetros por hora, apesar
de a estrada estar quase vazia. Dirigiu com apenas uma das mãos, segurando o telefone com a outra, verificando cuidadosamente o sinal. Na maior parte do tempo, o
aparelho manteve cinco tracinhos, mas, por alguns ansiosos segundos, diminuiu para apenas três.
- Onde você está? - perguntou a voz a certa altura.
- Chegando à saída para a D219.
- Continue.
Mais do mesmo: plantações e luzes, um pouco de lentidão no trânsito, um cabo de energia que prejudicava o sinal de celular.
Quando ressurgiu, a voz se fazia ouvir em meio a uma tempestade de estática.
- Onde você está?
- Seguindo a D940.
- Prossiga.
Os cabos de energia ficaram para trás, o sinal melhorou.
- Onde você está?
- Aproximando-me do trevo da A216.
- Prossiga.
Quando apareceram as luzes de Calais, Gabriel resolveu não esperar mais pelas indagações: passou a fazer um comentário contínuo sobre seu paradeiro, apenas para
quebrar o monótono ritmo de perguntas e respostas das instruções.
Houve silêncio do outro lado da linha, até que Gabriel anunciou estar se aproximando do desvio para a D243.
- Pegue a saída - ordenou a voz, embora a entonação tenha saído mais como uma pergunta do que uma ordem.
- Para que lado?
A resposta veio alguns segundos depois: ele deveria seguir para o norte, rumo ao mar.
A cidade seguinte era Sangatte, um amontoado de casebres de pedra varridos pelo vento que pareciam ter sido arrancados do interior britânico e jogados na França.
Dali, a voz mandou-o seguir mais para oeste, ao longo do canal da Mancha, passando pelas comunas de Escalles, Wissant e Tardinghen. Houve intervalos de vários minutos
sem instruções. Gabriel não podia ouvir nada do outro lado da linha, mas sentia estar se aproximando do fim. Decidiu que era hora de forçar a barra:
- Quanto falta?
- Você está chegando.
- Onde ela está?
- Em segurança.
- Já passou tempo demais - disse Gabriel, ríspido. - Você viu o dinheiro, você sabe que não estou sendo seguido. Vamos acabar logo com isso, para que ela possa ir
para casa.
Fez-se silêncio na linha. Então, a voz perguntou:
- Onde você está?
- Passando por Audinghen.
- Você já consegue ver a rotatória?
- Espere - disse Gabriel, fazendo uma curva na estrada. - Sim, agora posso vê-la.
- Contorne a rotatória, pegue a segunda saída e siga 50 metros.
- E depois?
- Pare.
- É lá que ela está?
- Apenas siga as instruções.
Gabriel obedeceu. Não havia acostamento na estrada, logo ele foi obrigado a passar por cima de um meio-fio baixo e estacionar no caminho asfaltado para pedestres.
Bem à sua frente, havia uma espécie de prédio comercial, comprido e baixo, com chaminés em cada ponta do teto de telhas vermelhas. À sua direita, uma plantação de
grãos se agitava sob o vento e a chuva. Para além do campo, estava o mar.
- Onde você está? - perguntou a voz.
- Cinquenta metros depois da rotatória.
- Muito bem. Agora desligue o motor e ouça com atenção.
Era óbvio que aquelas instruções haviam sido previamente programadas no computador, pois eram cuspidas de maneira desconjuntada, mas constante. Gabriel deveria abrir
o porta-malas e jogar a chave no campo à sua direita. Madeline estava a aproximadamente 3 quilômetros adiante na estrada, no compartimento traseiro de um Citroen
C4 azul-escuro. A chave do outro carro estava escondida na roda dianteira esquerda. Gabriel deveria segurar o telefone até alcançar o Citroen e a chamada deveria
ficar ativa para que pudessem escutá-lo. Sem polícia, sem reforço, sem armadilhas.
- Não é bom o bastante - disse ele.
- Você tem quinze minutos.
- Senão o quê?
- Você está perdendo tempo.
Uma imagem lampejou na mente de Gabriel: Madeline na cela, arranhando a própria pele até sangrar.
“Não consigo aguentar muito mais!’
“Eu sei.”
“Você tem que me tirar daqui.”
“Eu vou tirar.”
Gabriel saiu do carro e arremessou a chave com tanta força que ela bem poderia ter ido parar no Canal. Então, memorizou a hora que o celular marcava e começou a
correr.
- Estamos em ação? - perguntou a voz.
- Estamos.
- Depressa. Em quinze minutos a garota morre.

 

 

 


CONTINUA