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Series & Trilogias Literarias
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PAS-DE-CALAIS, FRANÇA
Três quilômetros eram sete voltas e meia em um circuito oval. Um corredor de alta performance poderia percorrer a distância em menos de oito minutos; um atleta em
forma que corresse regularmente, por volta de doze. Mas, para um homem de meia-idade de calça jeans e tênis que já havia sido baleado no peito duas vezes, quinze
minutos eram um desafio mais do que justo. Isso se a distância fosse mesmo de 3 quilômetros, pensou. Se fosse algumas centenas de metros mais longa, o prazo poderia
estar além de sua capacidade física.
Felizmente, a estrada era plana. Como Gabriel ia em direção ao mar, havia até certos pontos de leve declive, embora o vento soprasse forte e constante contra seu
rosto. Impulsionado pela adrenalina e pela raiva, disparou num ritmo frenético, mas, depois de aproximadamente 100 metros, estabeleceu-se no que presumia ser a velocidade
necessária para percorrer 1,5 quilômetro em sete minutos. Ele agarrava o telefone com a mão direita, enquanto mantinha a esquerda solta e relaxada. A princípio,
sua respiração era ritmada, mas logo se tornou entrecortada e ele passou a sentir um gosto de ferrugem no fundo da garganta. Aquilo era culpa de Shamron, pensou,
ressentido, marchando sobre o asfalto, sob a chuva que lhe pinicava o rosto. Shamron e seus malditos cigarros.
Depois do prédio comercial, não havia absolutamente nada - nem chalés, nem postes, apenas campos negros, cercas vivas e a linha branca tracejada no limite da estrada
que guiava Gabriel no escuro, mantendo seu progresso ritmado e constante. As lacunas tinham o mesmo comprimento que os traços: duas passadas por traço, duas passadas
por lacuna. Quinze minutos para percorrer 3 quilômetros.
“Senão o quê?”
“Você está perdendo tempo.”
Depois de cinco minutos, sentia as panturrilhas duras como granito e suava sob o peso da jaqueta de couro. Tentou despir-se dela enquanto corria, mas não conseguiu,
então parou por tempo suficiente para tirá-la e arremessá-la numa plantação. Ao retomar a corrida, viu uma fraca aura amarela no horizonte. Então, os dois faróis
de um veículo emergiram no topo de uma pequena subida e vieram em sua direção em alta velocidade. Era uma pequena van cinza-claro bem desgastada. Quando passou por
ele num borrão, Gabriel reparou que o motorista e o carona usavam balaclavas. Os coletores vindo retirar o dinheiro. Ele não se deu o trabalho de se virar: estava
ocupado tentando ignorar a queimação nas panturrilhas e as agulhadas da chuva no rosto. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna. Quinze minutos para percorrer
3 quilômetros.
Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade...
Gabriel completou a pequena subida e imediatamente avistou uma corrente de luzes cintilando ao longe. Eram de Audresselles, pensou, a pequena comuna costeira bem
ao sul do farol do Cap Gris Nez. Ele checou o tempo no celular: oito minutos transcorridos, restando sete. Suas passadas começavam a vacilar e a nuca estava dormente.
Lamentou não cuidar melhor do corpo. Seus pensamentos agora se concentravam principalmente em Viena. Em um carro estacionado à beira de uma praça nevada. Em um motor
que não dava a partida por causa de uma bomba drenando energia da bateria.
Ele olhou para o telefone: nove minutos transcorridos, restando seis. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna.
Gabriel levou o celular à boca.
- Vocês pegaram o dinheiro?
A voz respondeu poucos segundos depois:
- Pegamos. Muito obrigado.
Aguda, sem vida, com a entonação errada. Ainda assim, Gabriel jurava ter detectado um tom de alegria.
- Vocês têm que me dar mais tempo! - gritou ele.
- Isso não é possível.
- Eu não vou conseguir.
- Você tem que se esforçar mais.
Voltou a fitar o celular: dez minutos transcorridos, restando cinco.
Três passadas por traço, três passadas por lacuna.
- Estou indo buscá-la, Leah! - berrou para o vento. - Não gire a chave de novo! Não gire a chave!
- Gabriel passou em disparada por uma vasta mansão, nova mas construída de forma a parecer antiga, e sentiu imediatamente a proximidade do mar. A estrada descia
rumo a ele, e seu cheiro trouxe a Gabriel um gosto de peixe e sal. Uma placa materializou-se no escuro, indicando o acesso à praia 200 metros adiante. Então, Gabriel
viu o Citroen, num estacionamento pequeno e arenoso, virado de frente para ele com os faróis acesos, dando a impressão de observá-lo correr como um louco em sua
direção. Gabriel olhou para o relógio: treze minutos transcorridos, restando dois. Conseguiria com folga. Ainda assim, forçou-se a correr até o fim, marchando sobre
o asfalto, agitando os braços, até achar que o coração iria explodir.
Ansiando por oxigênio, seu cérebro começou a lhe pregar peças. Em um momento, via um Citroen estacionado na praia; no próximo, um Mercedes sedã azul-escuro em uma
praça nevada em Viena. Jurou ter ouvido um motor que não queria dar a partida e, mais tarde, lembrou-se de gritar algo incoerente antes de ser cegado pelo clarão
de uma explosão. A onda de impacto o atingiu com a força de um carro veloz e o derrubou no chão.
Ele ficou deitado no asfalto frio por vários minutos, respirando com sofreguidão, perguntando-se se aquilo teria acontecido de verdade ou se era apenas um sonho.
Parte 2
O ESPIÃO
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AUDRESSELLES, PAS-DE-CALAIS
Era cedo e o local era remoto, portanto a repercussão foi lenta. Muito mais tarde, uma comissão de inquérito viria a repreender o chefe da gendarmaria local e emitir
uma série de recomendações pomposas que foram completamente ignoradas, pois, na pequena e pitoresca vila de pescadores de Audresselles, recriminações estavam longe
de figurar entre as preocupações das pessoas. Passados muitos meses, os habitantes chocados da comunidade ainda falavam daquela manhã no mais sombrio dos tons.
Uma octogenária, cuja família havia morado na comuna sob a autoridade de um rei inglês, descrevia o incidente como a pior coisa que ela já tinha visto desde que
os nazistas hastearam uma bandeira com suástica sobre o Hôtel de Ville. Ninguém se opunha à sua afirmação, embora alguns poucos a achassem hiperbólica, afirmando
que a comuna já passara por coisas piores. Mas, quando questionados, ninguém era capaz de dar um exemplo.
Audresselles mede apenas 2 mil acres e o impacto da explosão chacoalhou janelas por toda parte. Muitos habitantes, alarmados, ligaram imediatamente para os gendarmes,
mas passaram-se vinte longos minutos até que a primeira viatura chegasse ao pequeno estacionamento adjacente à praia. Lá, descobriram um Citroen C4 engolfado por
um fogo tão quente que não era possível aproximar-se mais do que 30 metros. Apenas dez minutos depois, chegaram os bombeiros. Quando eles conseguiram apagar as chamas,
o carro havia sido reduzido a pouco mais do que uma carcaça enegrecida.
Por razões que jamais ficaram claras, um dos bombeiros resolveu forçar a abertura do porta-malas. Logo que conseguiu, caiu de joelhos e vomitou. O primeiro gendarme
a olhar o conteúdo não se saiu melhor. Mas o segundo, um veterano com vinte anos de serviço, foi capaz de manter a compostura ao confirmar que aquilo eram os restos
de um ser humano. Então, ele acionou pelo rádio a delegacia da região de Pas-de-Calais e comunicou que a explosão do carro na praia era agora um caso de assassinato
- um tanto quanto grotesco, diga-se de passagem.
Ao amanhecer, mais de dez detetives e profissionais forenses trabalhavam na cena do crime, observados pelo que parecia ser metade da cidade. Apenas um morador de
Audresselles tinha algo de útil a relatar: Léon Banville, dono de uma mansão recentemente construída no limite da cidade. Por acaso, ele estava acordado às 5h09,
quando um homem em roupas comuns passou correndo por sua anela gritando em uma língua desconhecida. A polícia logo realizou uma busca na estrada e encontrou uma
jaqueta de couro que parecia servir a um homem de estatura e porte médios. Nada mais de interesse foi encontrado - nem a chave que o homem atirou no campo de cereal,
nem o Volkswagen que ela acionava. O carro desapareceu sem pistas junto com os 10 milhões de euros escondidos em seu porta-malas.
O calor intenso do fogo danificou significativamente os restos mortais na traseira do Citroen, mas não os destruiu por completo. Dessa forma, investigadores forenses
puderam determinar que a vítima era uma jovem mulher, entre 25 e 35 anos, medindo por volta de 1,70 metro. A descrição batia vagamente com a de Madeline Hart, a
garota inglesa que havia desaparecido na Córsega no fim de agosto.
De forma discreta, a polícia francesa restabeleceu contato com seus companheiros do outro lado do canal da Mancha e, dentro de 48 horas, possuía uma amostra de DNA
retirada do apartamento da Srta. Hart em Londres. Um rápido teste de comparação deu resultado positivo. O ministro do Interior da França logo avisou sua contraparte
britânica, para então levar a público a descoberta em uma coletiva de imprensa em Paris, convocada às pressas. Madeline Hart estava morta. Mas quem a assassinara?
E por quê?
O funeral foi realizado na Igreja de St. Andrew, em Basildon, muito próxima à pequena moradia popular onde ela havia crescido. O primeiro-ministro, Jonathan Lancaster,
não compareceu - segundo o assessor de imprensa, Simon Hewitt, sua agenda não o permitira. Quase todos os integrantes do alto escalão do partido estavam presentes,
bem como Jeremy Fallon, que chorava abertamente à beira da cova, inspirando um repórter a observar que, talvez, o chefe de gabinete tivesse um coração, afinal. Ele
falou bem rápido com a mãe e o irmão de Madeline, que pareciam curiosamente deslocados em meio ao bem-vestido grupo de londrinos.
- Sinto muito - disse ele aos dois. - Sinto muito mesmo.
A equipe política do Partido voltou a notar um aumento no percentual de aprovação de Lancaster, mas dessa vez teve a decência de não evocar o nome de Madeline. Com
a popularidade mais em alta do que nunca, o primeiro-ministro anunciou um programa arrebatador para aumentar a eficiência do governo e partiu em uma visita de grande
visibilidade a Moscou, onde prometeu uma nova era nas relações russo-britânicas, especialmente nas áreas de contraterrorismo, finanças e energia. Um punhado de comentaristas
conservadores fez algumas críticas brandas a Lancaster porque ele não se encontrara com os líderes do movimento pró-democracia da Rússia. Porém, a maior parte da
imprensa inglesa aplaudiu sua reserva, escrevendo que, com a economia doméstica ainda frágil, a última coisa de que a Grã-Bretanha precisava era outra Guerra Fria.
Ao retornar a Londres, Lancaster foi questionado a todo momento acerca de suas intenções de convocar uma eleição. Durante dez dias, ele enrolou a imprensa, enquanto
Simon Hewitt orquestrava vazamentos constantes, que deixavam clara a iminência de um anúncio. Dessa forma, quando o primeiro-ministro enfim levantou-se na Câmara
para declarar sua intenção de concorrer a outro mandato, houve um anticlímax. As notícias mais surpreendentes diziam respeito ao futuro de Jeremy Fallon, que planejava
abandonar o alto posto no escritório de Lancaster para tentar um posto seguro no Parlamento.
Houve muitos boatos - nenhum confirmado - de que Fallon seria apontado como ministro do Tesouro, caso Lancaster ganhasse, mas ele negou categoricamente, chegando
a alegar que não tivera nenhuma discussão significativa acerca de seu futuro. Nenhum membro do corpo de imprensa de Whitehall acreditou.
Em novembro, a campanha começou de fato e Madeline Hart mais uma vez se desvaneceu na consciência popular. Isso provou ser uma bênção para a polícia francesa, pois
lhe permitiu conduzir a investigação sem a imprensa britânica espiando por cima de seus ombros. Um dos desdobramentos mais promissores foi a descoberta de quatro
cadáveres em uma casa de veraneio isolada no Lubéron. Os corpos eram de membros conhecidos de uma violenta gangue de Marselha. Três haviam sido mortos com tiros
aparentemente profissionais na cabeça; a quarta, uma mulher, fora atingida duas vezes na parte de cima do tronco.
O mais importante, no entanto, foi a descoberta de uma cela no andar de baixo da casa. Para a polícia, estava claro que Madeline havia sido mantida ali depois do
sequestro na Córsega, provavelmente por um longo período. Ela até poderia ter sido vítima de escravidão sexual, mas tratava-se de uma hipótese improvável, dada a
estirpe das quatro pessoas que tinham estado na casa com ela: criminosos profissionais interessados apenas em dinheiro. Tudo isso levou a polícia a concluir que
a garota inglesa fora mantida como refém em um esquema de sequestro por recompensa, que por algum motivo não fora comunicado às autoridades em nenhum momento.
Mas por que sequestrar uma jovem de uma família da classe operária, criada em uma moradia popular em Essex? E quem havia assassinado os quatro criminosos de Marselha
na casa de veraneio no Lubéron? Essas eram apenas duas questões que os policiais franceses não conseguiam responder, mesmo um mês após a terrível morte de Madeline
na praia de Audresselles. Eles também não tinham nenhuma pista sobre a identidade do homem que fora visto correndo diante da casa de monsieur Banville de madrugada,
minutos antes da explosão do carro.
No entanto, um detetive veterano que resolvera muitos casos de sequestro tinha uma teoria.
- O pobre-diabo era o pagador - disse a seus colegas, confiante. - Ele cometeu algum erro e a garota morreu por seus pecados.
Mas onde ele se encontrava agora? Presumiram que estivesse se escondendo em algum lugar, lambendo suas feridas e tentando entender o que dera errado. Embora jamais
viesse a saber, a polícia francesa estava totalmente certa.
Mas havia muitas outras coisas a respeito daquele homem que ela nem poderia imaginar, nem em seus sonhos mais loucos. Nunca saberia, por exemplo, que ele era Gabriel
Allon, o lendário espião e assassino israelense que vinha operando impune em solo francês desde os 22 anos. Ou que o homem que o resgatara depois da explosão da
bomba era ninguém menos do que Christopher Keller, sobre quem a polícia escutava rumores havia anos. Ou que os dois, antes arquirrivais, dirigiram-se a uma casa
de veraneio à beira-mar, perto de Cherbourg, onde uma equipe de quatro agentes israelenses esperavam, a postos. Keller ficou apenas poucas horas na casa antes de
retornar à Córsega, mas Chiara permaneceu lá por uma semana, esperando que os pequenos cortes no rosto de Gabriel cicatrizassem. Na manhã do funeral de Madeline
Hart, eles foram de carro até o Aeroporto Charles de Gaulle e embarcaram em um voo da El Al rumo a Tel Aviv. Ao cair da noite, estavam mais uma vez no apartamento
na rua Narkiss.
Durante a ausência de Gabriel, Chiara havia levado o quadro e seus materiais para o quarto que deveria ser seu estúdio. Mas, na manhã seguinte, assim que ela saiu
para trabalhar no museu, ele trouxe tudo de volta para a sala de estar. Gabriel postou-se na frente da tela durante três dias, quase sem descanso, desde o amanhecer
até o fim da tarde, quando Chiara voltava para casa. Tentou evitar as memórias do pesadelo na França, mas o objeto da pintura, uma linda jovem banhando-se num jardim,
não o permitia. Madeline estava sempre em seus pensamentos, especialmente no quarto dia, quando ele começou a trabalhar nos ferimentos nas mãos de Suzana. Ali, via
evidências claras das pinceladas luminosas de Bassano. Gabriel as imitara tão imaculadamente que era quase impossível distinguir o original do restauro. De fato,
em sua humilde opinião, ele tinha até mesmo superado o mestre em alguns pontos. Queria poder ser creditado pela alta qualidade do trabalho, mas não seria justo:
era Madeline quem o inspirava.
Gabriel se forçava a fazer uma pausa para o almoço no começo de cada tarde, mas acabava inevitavelmente comendo na frente do computador, vasculhando a internet em
busca de notícias sobre a investigação da morte de Madeline. Sabia que as matérias estavam longe de serem completas, mas parecia que a polícia não tinha conhecimento
de sua participação no caso. Na imprensa britânica, também não achou nenhum indício de que Lancaster estivesse ligado de qualquer forma ao desaparecimento e à morte
de Madeline. Aparentemente, o primeiro-ministro e Jeremy Fallon haviam conseguido o impossível - e agora, segundo as pesquisas, encaminhavam-se para uma vitória
esmagadora. Claro que nenhum dos dois tentou contatar Gabriel. Até Graham Seymour aguardou três longas semanas antes de ligar. Pelo barulho ao fundo, Gabriel imaginou
que ele estivesse usando um telefone público na estação de Paddington.
- Nosso amigo em comum envia seus cumprimentos - disse Seymour, cauteloso. - Ele gostaria de saber se você precisa de algo.
- De uma jaqueta de couro nova - respondeu Gabriel, fingindo estar de melhor humor.
- De que tamanho?
- Médio, com um compartimento secreto para passaportes falsos e uma arma.
- Você pretende me contar como escapou sem ser preso?
- Algum dia, Graham.
Seymour ficou em silêncio enquanto o alto-falante anunciava um trem para Oxford.
- Ele está grato - comentou, afinal, referindo-se a Lancaster de novo. - Sabe que você fez o que pôde.
- Não foi o bastante para salvá-la.
- Você já considerou a possibilidade de eles nunca terem planejado libertá-la?
- Sim, mas, sinceramente, não consigo entender o porquê.
- Você deseja que eu fale algo mais para ele?
- Você pode lembrá-lo de que os sequestradores têm uma cópia do vídeo em que ela confessa o caso.
- Sem a garota, não há história.
Se a intenção do telefonema de Seymour era animar Gabriel, ele tinha falhado miseravelmente. Inclusive, nos dias seguintes, o humor de Allon foi ficando ainda mais
soturno. Pesadelos perturbavam-lhe o sono. Sonhos em que ele corria em direção a um carro que se afastava a cada passada. Sonhos de sangue e fogo. No seu subconsciente,
Madeline e Leah tornaram-se indistinguíveis: duas mulheres, uma que havia amado e outra que havia jurado proteger, ambas consumidas pelo fogo. Ele estava arrasado
pelo luto. Acima de tudo, no entanto, acometia-lhe um sentimento opressor de fracasso. Prometera a Madeline que iria resgatá-la com vida. E ela tinha sofrido uma
morte terrível, amarrada e amordaçada dentro de um caixão flamejante. Gabriel podia apenas esperar que, na hora, ela estivesse sedada e tivesse sido poupada da dor
e do horror.
Mas por que a haviam assassinado? Será que ele tinha cometido algum erro na extração, que teria custado a vida de Madeline? Ou, desde o princípio, a intenção era
matá-la na frente de Gabriel, para que não tivesse nenhuma escolha senão assisti-la queimar? Essa foi uma questão colocada por Chiara uma noite, quando caminhavam
pela rua Ben Yehuda. Gabriel lhe contou sobre a signadora, que vira um inimigo de longa data ao perscrutar sua poção mágica de azeite e água. Não era um inimigo
de Keller, mas de Gabriel.
- Eu nunca soube que você tinha inimigos no submundo do crime de Marselha.
- Não tenho mesmo. Pelo menos não que eu saiba. Mas talvez eles estivessem agindo a mando de alguém quando sequestraram Madeline.
- E quem é esse alguém?
- Alguém que desejava me punir por algo que fiz no passado. Alguém que queria me humilhar.
- A signadora disse mais alguma coisa?
- “Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.”
Poucos minutos após as nove, voltaram para a rua Narkiss, mas Gabriel resolveu ficar um tempo trabalhando na pintura. Colocou um CD de La Bohème no aparelho manchado
de tinta, baixou o volume até apenas um sussurro e seguiu na restauração com uma clareza de propósitos que não tinha conseguido experimentar desde sua volta a Jerusalém.
Ele não ouviu a ópera acabar nem reparou que o céu começava a clarear atrás de si. Por fim, na alvorada, descansou o pincel e ficou imóvel diante da tela, com a
mão no queixo e a cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- Terminou? - perguntou Chiara, observando-o com atenção.
- Não - respondeu Gabriel, ainda encarando a pintura. - Está apenas começando.
30
TIBERÍADES, ISRAEL
Era noite de sabá. Shamron os convidara para jantar em sua casa em Tiberíades. Na verdade, não era um convite, que poderia ser polidamente recusado, mas uma ordem
gravada em pedra, inviolável. Gabriel passou a manhã tomando as providências para enviar a pintura a Julian Isherwood em Londres. Depois, cruzou Jerusalém para buscar
Chiara no Museu de Israel. Enquanto percorriam em alta velocidade o Bab al-Wad - uma espécie de desfiladeiro escalonado que liga Jerusalém à Planície Costeira -,
militantes palestinos na Faixa de Gaza dispararam uma barragem de foguetes que atingiu Ashdod, no norte. O ataque causou apenas pequenos danos, mas complicou o tráfego
na estreita faixa central do país no momento em que milhares de trabalhadores corriam para casa para celebrar o sabá. Era bom estar em casa de novo, pensou Gabriel,
e aguardou uma hora para que os carros andassem.
Quando enfim alcançaram a Planície Costeira, seguiram ao norte para a Galileia, e depois ao leste por uma fieira de aldeias e vilarejos árabes, até chegar a Tiberíades.
A casa cor de mel de Shamron ficava a alguns quilômetros da cidade, num precipício com vista para o lago. Para alcançá-la, era necessário subir por uma estrada bastante
íngreme. Quando Gabriel e Chiara chegaram, foram recebidos por Gilah. Shamron estava em pé na frente da televisão, ao telefone. Seus óculos feios de metal estavam
apoiados na testa e ele pressionava a ponte do nariz com o polegar e o indicador. Se um dia lhe erigissem uma estátua, pensou Gabriel, ela seria esculpida nessa
pose.
- Com quem ele está falando? - perguntou Gabriel a Gilah.
- Com quem você acha?
- Com o primeiro-ministro?
Gilah assentiu.
- Ari acha que devemos retaliar. O primeiro-ministro não está tão certo disso.
Gabriel entregou uma garrafa de vinho a Gilah, um Bordeaux tinto das colinas da Judeia, e beijou-a na bochecha. Era macia como veludo e tinha aroma de lilases.
- Diga a Ari para sair do telefone, Gabriel. Ele vai escutá-lo.
- Prefiro ser atingido diretamente por um daqueles foguetes palestinos.
Gilah sorriu e os conduziu para a cozinha. Perfiladas no balcão, viam-se travessas com alimentos de aspecto delicioso; ela devia ter ficado o dia todo cozinhando.
Gabriel tentou roubar um pedaço da famosa berinjela marroquina de Gilah, mas ela lhe deu um tapa na mão, de brincadeira.
- Quantas pessoas você planeja alimentar?
- Yonatan e sua família deveriam vir, mas ele não consegue sair por causa do atentado.
Yonatan era o filho mais velho de Shamron. Era general das Forças Armadas de Israel e havia boatos de que estava na disputa para se tornar chefe do Estado-Maior.
- Comeremos dentro de poucos minutos - avisou Gilah. - Vá sentar-se um pouco com Ari. Ele sentiu muito a sua falta enquanto você esteve fora.
- Eu estive fora só por duas semanas, Gilah.
- A esta altura da vida, duas semanas são muito tempo para ele.
Gabriel abriu o vinho, serviu duas taças e levou-a para o outro cômodo.
Shamron já não estava mais falando ao telefone, porém ainda olhava fixamente para a televisão.
- Acabam de lançar outra barragem - informou ele. - Os foguetes devem cair em poucos segundos.
- Haverá resposta?
- Agora, não. Mas, se isso continuar, não teremos outra opção senão agir. A questão é: o que fará o Egito, agora que é governado pela Irmandade Muçulmana? Eles vão
ficar de braços cruzados enquanto atacamos o Hamas, que é, no fim das contas, uma ala da Irmandade? Será que o Acordo de Paz de Camp David vai ser mantido?
- O que Uzi disse?
- Neste momento, o Escritório não pode prever a exata reação do líder egípcio caso invadamos Gaza. É por isso que o primeiro-ministro, pelo menos por ora, não está
disposto a agir enquanto chovem foguetes em cima de seu povo.
Gabriel olhou para a tela; bombas começavam a cair. Ele desligou a televisão e levou Shamron para a varanda. Estava mais quente ali do que em Jerusalém, e um vento
suave soprava das colinas de Golã, formando padrões na superfície prateada do lago. Shamron sentou-se numa das cadeiras de ferro batido ao longo da balaustrada e,
instantaneamente, acendeu um de seus cigarros fedorentos. Gabriel entregou-lhe uma taça de vinho e sentou ao seu lado.
- Ele não faz nada pelo meu coração - disse Shamron após beber um pouco do vinho -, mas passei a apreciá-lo em minha velhice. Imagino que me lembre das coisas para
as quais não tive tempo na juventude: vinho, crianças, férias. - Ele fez uma pausa e acrescentou: - Vida.
- Ainda há tempo, Ari.
- Poupe-me das frivolidades. O tempo agora é meu inimigo, filho.
- Então para que desperdiçar mesmo um minuto se envolvendo com política?
- Existe uma diferença entre segurança e política.
- A segurança é meramente uma extensão da política, Ari.
- E se você estivesse aconselhando o primeiro-ministro quanto ao que fazer com relação aos mísseis?
- É o trabalho de Uzi aconselhá-lo, não o meu.
Shamron resolveu mudar de assunto:
- Estive acompanhando as notícias de Londres com grande interesse. Parece que seu amigo Jonathan Lancaster segue rumo à vitória.
- Ele deve ser o político mais sortudo do planeta.
- Sorte é algo importante na vida. Nunca tive muita. Nem você, diga-se de passagem.
Gabriel não respondeu.
- E desnecessário dizer - prosseguiu Shamron - que esperamos fervorosamente que as tendências eleitorais atuais continuem assim e Lancaster ganhe. Se isso acontecer,
temos certeza de que será o político britânico mais pró-sionista desde Arthur Balfour.
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser. - Shamron olhou para Gabriel com seriedade por um momento. - Me desculpe por um dia tê-lo envolvido neste assunto.
- Você conseguiu exatamente o que queria: Lancaster pode muito bem figurar na folha de pagamento do Escritório. Ele está comprometido. É a pior coisa para um líder.
- Comprometido por suas próprias ações, não pelas nossas.
- É verdade - disse Gabriel. - Mas foi Madeline Hart quem pagou o preço.
- Você deve se esforçar para esquecê-la.
- Receio que eu tenha dito algo para os sequestradores que impossibilita isso.
- Você os ameaçou de morte caso a machucassem?
Gabriel assentiu.
- Ameaças de morte são como juras de amor eterno sussurradas no calor da paixão: facilmente feitas, rapidamente esquecidas.
- Não quando eu as faço.
Shamron apagou o cigarro, pensativo.
- Você me surpreende, filho. Mas não a Uzi. Ele previu que você decidiria ir atrás deles, por isso já arquivou o assunto.
- Então seguirei em frente sem ajuda.
- Isso significa que você ficará lá fora sozinho, sem recursos nem proteção do Escritório.
Gabriel ficou mudo.
- E se eu o proibisse? Você me obedeceria?
- Sim, Abba.
- É mesmo? - perguntou Shamron, surpreso.
Gabriel aquiesceu.
- E se eu permitisse a você encontrar essas pessoas para dar-lhes a justiça que merecem? O que receberia em troca?
- Será que tudo com você tem que ser uma negociação?
- Sim.
- O que você quer?
- Você sabe o que eu quero. - Shamron fez uma pausa. - E o primeiro-ministro também quer.
Ele bebeu um pouco do vinho e acendeu outro cigarro.
- Estamos vivendo em tempos significativos e turbulentos, e os desafios só ficarão mais sérios. As decisões que tomarmos nos próximos meses e anos determinarão o
sucesso ou fracasso da empreitada. Como você pode dispensar a chance de fazer história?
- Eu já fiz história, Ari. Muitas e muitas vezes.
- Então guarde a arma no armário e use o cérebro para derrotar os nossos inimigos. Roube segredos. Recrute espiões e generais como agentes. Confunda-os, frustre-os.
Para enganar, meu filho, farás a guerra.
Gabriel mergulhou no silêncio. Com o cair da noite, o céu acima das colinas estava ficando azul-escuro e já quase não se via o lago. Shamron adorava a vista porque
lhe permitia vigiar inimigos distantes. Gabriel a adorava porque a contemplara ao recitar suas juras matrimoniais para Chiara. Agora, estava prestes a fazer outra
espécie de promessa, que tornaria um velho muito feliz.
- Não tomarei parte de golpes palacianos de nenhum tipo - disse Gabriel, por fim. - Uzi e eu tivemos nossas diferenças, mas nos tornamos amigos.
Shamron sabia que não deveria falar naquele momento. Ele tinha o dom do silêncio, próprio dos interrogadores.
- Se o primeiro-ministro decidir não indicar Uzi para um segundo mandato - prosseguiu Gabriel vou considerar a oferta para me tornar diretor do Escritório.
- Preciso de mais garantias.
- Essas são as únicas que você terá.
- Negociar com sequestradores o deixou afiado.
- De fato.
- Por onde você pretende começar?
- Ainda não decidi.
- Como vai obter dinheiro?
- Achei alguns milhares de euros num barco em Marselha.
- De quem era o barco?
- De um contrabandista chamado Marcel Lacroix.
- Onde ele está agora?
Gabriel respondeu.
- Pobre-diabo.
- Outros o seguirão.
- Apenas tome cuidado para não se juntar a eles. Tenho planos para você.
- Eu disse que iria considerar a proposta, Ari. Ainda não concordei com nada.
- Eu sei. Mas também sei que você jamais me ludibriaria para obter algo que quisesse. Ao contrário de mim, você tem consciência.
- Você também tem, Ari. Por isso não consegue dormir à noite.
- Algo me diz que esta noite eu dormirei bem.
- Não se empolgue - alertou Gabriel. - Ainda tenho que falar com Chiara. Shamron sorriu.
- Qual é a graça?
- De quem você acha que foi a ideia?
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser.
Por onde começar a busca pelos assassinos de Madeline? O lugar mais lógico era procurar entre as organizações criminosas de Marselha. Ele poderia rastrear parceiros
de Marcel Lacroix e René Brossard, observá-los, suborná-los, interrogá-los, machucar alguns deles se necessário, até saber a identidade do homem que chamavam de
Paul. O homem que tinha levado Madeline para almoçar no Les Palmiers no dia em que ela desaparecera. O homem que parecia ter aprendido francês ouvindo CDs de algum
curso de línguas. Mas havia um problema com esse plano. Se Gabriel fosse a Marselha, certamente cruzaria com a polícia francesa. Além disso, àquela altura, o homem
conhecido como Paul já devia
ter desaparecido havia muito tempo. Portanto, decidiu que começaria a busca não pelos agentes do crime, mas pelas duas vítimas. Alguém sabia do caso entre Jonathan
Lancaster e Madeline Hart. E havia passado essa informação para o tal Paul. Achar essa pessoa, calculou, significaria achar Paul.
Mas, antes, Gabriel precisava encontrar outra pessoa. Alguém que seguira a ascensão de Lancaster ao poder. Que conhecia a dinâmica do relacionamento entre Fallon
e o atual primeiro-ministro. Que sabia de todos os podres. Deu com essa pessoa na manhã seguinte, quando lia a cobertura da campanha eleitoral britânica. Seria complicado
e até perigoso. Mas, se conseguisse informações que levassem aos assassinos de Madeline, o risco pessoal valeria muito a pena.
Gabriel passou o resto da manhã preparando um dossiê detalhado. Quando terminou, fez uma pequena mala com duas mudas de roupa e dois conjuntos de identidade. Naquela
noite, voou de Ben Gurion a Paris e, ao meio-dia, estava novamente na Córsega. Ele precisava de mais uma coisa antes de dar início à busca: um cúmplice. Bastante
competente, completamente impiedoso e sem nenhum resquício de consciência. Ele precisava de Christopher Keller.
31
CÓRSEGA
A ilha tinha se transformado desde a última vez que Gabriel a visitara. As praias estavam desertas, havia boas mesas vagas nos melhores restaurantes e as feiras
estavam livres dos europeus seminus do continente que se deslumbravam com as mercadorias, mas raramente abriam suas carteiras. A Córsega voltara a ser dos corsos,
e até o mais melancólico dos moradores agradecia por isso.
Porém, muitas outras coisas continuavam iguais. O mesmo cheiro inebriante da macchia saudou Gabriel à medida que ele se embrenhava na ilha; a mesma senhora lhe apontou
com o indicador e o mindinho enquanto ele atravessava a isolada cidadela montanhesca; os mesmos dois guardas menearam a cabeça ameaçadoramente quando ele adentrou
a propriedade de Don Anton Orsati.
Gabriel seguiu a estrada até ela se tornar de terra batida, então continuou em frente. Ao fazer a curva fechada à esquerda próxima às três oliveiras centenárias,
deparou com o maldito bode de Don Casabianca a bloquear seu caminho.
A expressão do animal se tornou sombria, como se ele lembrasse das circunstâncias do último encontro e agora planejasse dar o troco. Pela janela do carro, Gabriel
pediu com educação para que o bode lhe desse licença. Como a fera empinou o queixo desafiadoramente, ele saiu do automóvel, inclinou-se para a orelha velha e esfarrapada
do bicho e sussurrou uma ameaça muito parecida com a que fizera aos sequestradores de Madeline Hart. Na mesma hora, o bode se virou e bateu em retirada para dentro
dos arbustos da macchia. Ele era um covarde, como a maioria dos tiranos.
Gabriel voltou a entrar no carro e prosseguiu até a casa de Keller. Estacionou na entrada, à sombra de um pinheiro-larício, e bradou uma saudação em direção à varanda,
sem obter resposta. A porta estava destrancada. Gabriel andou de um belo cômodo branco ao outro, mas não encontrou ninguém. Foi até a cozinha e conferiu a geladeira:
nada de leite, carne, ovos; nada perecível. Havia apenas uma cerveja, um pote de mostarda Dijon e uma garrafa de Sancerre de ótima qualidade. Gabriel abriu o vinho
e telefonou para Don Orsati.
Keller tinha viajado a negócios. Europa continental, mas não a França - era o máximo que Anton diria. Se tudo desse certo, Keller estaria de volta à Córsega naquela
mesma noite ou, o mais tardar, na manhã do dia seguinte. O don sugeriu a Gabriel se hospedar na casa de Keller e ficar à vontade, e disse sentir pelo que havia acontecido
“lá no norte”. Keller, obviamente, fizera um relato detalhado.
- E então, o que o traz à Córsega? - perguntou o don.
- Eu paguei uma grande quantia de dinheiro a alguém que não entregou a mercadoria como prometido.
- Uma quantia muito grande.
- O que você faria em meu lugar?
- Para começar, eu jamais teria concordado em ajudar um homem como Jonathan Lancaster.
- Vivemos num mundo complicado, Don Orsati.
- De fato vivemos - disse o don, num tom meio filosófico. - Quanto ao seu problema de negócios, você tem duas opções: pode se esforçar para esquecer o que aconteceu
com a garota inglesa ou punir os responsáveis.
- O que você faria?
- Aqui na Córsega temos um antigo provérbio que diz: um cristão perdoa, um idiota esquece.
- Eu não sou idiota.
- Nem é cristão. Mas não o julgarei por isso.
Orsati pediu a Gabriel que se mantivesse na linha enquanto ele lidava com uma pequena crise. Parecia que um grande carregamento de azeite que ia para um restaurante
em Zurique havia sumido. Gabriel podia ouvir o don gritando com um subalterno em dialeto corso: “Ache o azeite, ou cabeças vão rolar!” Em qualquer outro negócio,
a ameaça poderia ter sido descartada como um mero chilique do supervisor. Mas não na Companhia de Azeite Orsati.
- Onde estávamos? - perguntou o don.
- Você falou algo sobre cristãos e idiotas. E estava prestes a me cobrar um preço alto para pegar Keller emprestado.
- Ele é mesmo o meu empregado mais valioso.
- Por razões óbvias.
Orsati se calou por um momento. Gabriel podia ouvi-lo bebericar algo.
- É importante que isso vá além do sangue - disse o don após um instante. - Você também deve recuperar o dinheiro.
- E se eu conseguir?
- Um pequeno pagamento de tributo ao seu padrinho corso cairia bem.
- Pequeno como?
- Um milhão deve bastar.
- Um milhão é uma quantia bem alta, Don Orsati.
- Eu ia pedir cinco.
Gabriel pensou por um momento e acabou aceitando as condições.
- Mas apenas se eu achar o dinheiro. Do contrário, estou livre para usar Keller a meu bel-prazer, sem custos.
- Fechado. Mas traga-o de volta inteiro. Lembre-se: não dá para ganhar dinheiro cantando.
Gabriel se acomodou na varanda com o Sancerre e o grosso dossiê sobre o funcionamento interno de Downing Street sob o comando de Jonathan Lancaster. Mas, uma hora
depois, já estava ansioso, então ligou para Don Orsati e pediu permissão para caminhar. Ele lhe deu sua bênção e disse a Gabriel onde ele poderia encontrar uma das
armas de Keller. Uma robusta HK 9 mm, guardada na gaveta de uma bela escrivaninha francesa antiga, logo abaixo do Cézanne.
- Mas tenha cuidado - alertou o don. - Christopher ajusta o gatilho para que fique muito leve. Ele tem uma alma sensível.
Gabriel colocou a arma na cintura da calça jeans e partiu pelo caminho estreito, rumo às três oliveiras centenárias. Por sorte, o bode ainda não havia retornado
a seu posto de vigilância, logo Gabriel podia seguir vilarejo adentro sem se aborrecer. Era aquela hora incerta entre o fim da tarde e o começo da noite. As casas
tinham as janelas e portas fechadas e as ruas estavam abandonadas aos gatos e às crianças, que observaram Gabriel com grande interesse. Ele foi até a praça principal,
rodeada por lojas e cafés, que ficava perto de uma igreja. Comprou uma echarpe para Chiara e sentou na cafeteria que parecia menos ameaçadora. Tomou café forte para
amenizar os efeitos do Sancerre e, à medida que o céu escurecia e a brisa esfriava, bebeu vinho tinto corso para amenizar os efeitos do café. As portas da igreja
estavam entreabertas. De dentro, vinha o murmúrio das preces.
Gradualmente, a praça começou a se encher. Rapazes adolescentes estavam montados em ciclomotores na porta da sorveteria; um grupo de homens deu início a uma partida
disputada de boules no centro da esplanada empoeirada. Pouco após as seis, cerca de vinte pessoas, em sua maioria senhoras idosas, desceram as escadas da igreja.
Dentre elas, estava a signadora. Seu olhar recaiu brevemente sobre Gabriel, o descrente; então, ela desapareceu pela porta de sua pequena casa torta. Depois de pouco
tempo, duas mulheres foram chamá-la: uma velha viúva vestida de preto dos pés à cabeça e uma garota de aparência consternada com 20 e poucos anos que, sem dúvida,
estava sofrendo os maléficos efeitos do occhju.
Meia hora mais tarde, as mulheres reapareceram junto a um menino de 10 anos de cabelos encaracolados. Elas se dirigiram à sorveteria, mas a criança se deteve para
observar a partida de boules e foi até Gabriel, segurando um pedaço de papel azul-claro dobrado em quatro. Depositou-o na mesa do café e se afastou às pressas, como
se temesse contrair uma doença. Gabriel desdobrou o papel e, sob a luz evanescente, leu a única linha escrita:
Preciso vê-lo imediatamente.
Gabriel guardou o bilhete no bolso do casaco e continuou sentado por vários minutos ponderando o que fazer. Por fim, deixou algumas moedas sobre a mesa e atravessou
a praça.
Quando bateu à porta, uma voz de taquara rachada o convidou a entrar. Ela estava sentada, sonolenta, numa poltrona desbotada, com a cabeça pendendo para o lado,
como se ainda sofresse da exaustão causada por absorver o mal que contaminara seus últimos visitantes. Apesar dos protestos de Gabriel, insistiu em levantar-se para
cumprimentá-lo. Dessa vez não havia hostilidade em sua expressão, apenas preocupação. A signadora tocou-lhe a face sem dizer nada e olhou nos seus olhos.
- Seus olhos são tão verdes... Você tem os olhos da sua mãe, não é?
- Sim.
- Ela sofreu na guerra, não é mesmo?
- Foi Keller quem disse isso?
- Eu nunca falei com Christopher sobre a sua mãe.
- Sim - disse Gabriel após um momento coisas terríveis aconteceram à minha mãe durante a guerra.
- Na Polônia?
- Sim, na Polônia.
A signadora tomou a mão de Gabriel entre as suas.
- Está quente... Você está com febre?
- Não.
Ela fechou os olhos.
- Sua mãe era pintora como você?
- Sim.
- Ela esteve nos campos? Naquele campo cujo nome veio das árvores?
- Sim, nesse mesmo.
- Eu vejo uma estrada, neve, uma longa fila de mulheres vestidas de cinza, um homem com uma arma.
Gabriel retirou a mão rapidamente. A mulher abriu os olhos com um sobressalto.
- Desculpe-me. Eu não queria perturbá-lo.
- Por que você queria me ver?
- Eu sei por que você voltou.
- E...?
- Quero ajudá-lo.
- Por quê?
- Porque é importante que nada lhe aconteça nos dias que virão. O velho precisa de você. Sua mulher, também.
- Eu não sou casado - mentiu Gabriel.
- O nome dela é Clara, não é?
- Não - respondeu Gabriel, sorrindo. - O nome dela é Chiara.
- Italiana?
- Sim.
- Então a manterei em minhas preces. - Ela indicou a mesa com o azeite e o prato de água ao lado de um par de velas acesas. - Não gostaria de sentar?
- É melhor não.
- Ainda não acredita?
- Eu acredito.
- Por que não se senta, então? Com certeza você não está com medo. Sua mãe deu-lhe o nome de Gabriel por um motivo: você possui a força de Deus.
Gabriel sentiu um peso no coração, como se houvesse uma pedra sobre ele. Queria sair dali naquele mesmo instante, mas a curiosidade o fez ficar. Depois de ajudar
a velha a voltar para sua cadeira, sentou do outro lado da mesa e mergulhou o dedo no óleo. Quando atingiram a superfície da água, as três gotas dividiram-se antes
de desaparecer. A velha assentiu com gravidade, como se seus medos mais obscuros tivessem sido confirmados. Então, pela segunda vez, tomou a mão de Gabriel.
- Você está queimando. Tem certeza de que está se sentindo bem?
- Acabei tomando sol ali no café.
- Na casa de Christopher - disse ela, com ar de sabedoria. - Bebeu de seu vinho. Você traz a arma dele na cintura.
- Continue.
- Você está procurando por um homem, o homem que matou a garota inglesa.
- Você sabe quem é ele?
- Não. Mas sei onde ele está. Escondido ao leste, na cidade dos hereges. Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer - proclamou a signadora com firmeza -, morrerá.
Ela fechou os olhos e, logo depois, começou a chorar suavemente, um sinal de que o mal havia se transportado do corpo de Gabriel para o dela. Em seguida, instruiu
Gabriel a repetir o teste do óleo na água. Dessa vez, o óleo fundiu-se numa só gota. A velha sorriu de um jeito que Gabriel nunca tinha visto.
- O que você vê? - perguntou Gabriel.
- Tem certeza de que quer saber?
- Sim, é claro.
- Vejo uma criança - respondeu ela sem hesitar.
- De quem?
A signadora deu um tapinha na mão de Gabriel.
- Volte para a casa. Seu amigo Christopher voltou para a Córsega.
Quando chegou à casa, Gabriel encontrou Keller parado em frente à geladeira aberta. Ele vestia um terno cinza-escuro, amassado pela viagem, e uma camisa branca desabotoada
na altura do pescoço. Pegou a garrafa de Sancerre pela metade, exibiu-a com uma sacudidela e derramou um bocado numa taça.
- Dia difícil no trabalho, docinho? - perguntou Gabriel. Brutal. - Ele ergueu a garrafa, oferecendo-a. - Servido?
- Já tomei bastante.
- Dá para ver.
- Como foi sua viagem?
- A ida e a volta foram infernais, mas todo o resto correu tranquilamente.
- Quem era ele?
Keller bebeu o vinho sem responder e perguntou a Gabriel por onde ele tinha andado. Quando Gabriel respondeu que fora encontrar a signadora, Keller sorriu.
- Nós ainda vamos transformá-lo em corso.
- Não foi ideia minha - explicou Gabriel.
- O que ela queria lhe dizer?
- Não foi nada. Apenas o abracadabra de costume sobre o vento nos salgueiros.
- Então por que você está tão pálido?
A única resposta de Gabriel foi colocar a arma de Keller cuidadosamente sobre o balcão.
- Pelo que ouvi - disse Keller você vai precisar disso aí.
- O que você ouviu?
- Que você vai partir em uma jornada de caça.
- Você está disposto a me ajudar?
- Francamente - falou Keller, erguendo o copo para a luz -, eu já estava esperando por você há muito tempo.
- Eu tinha que terminar uma pintura.
- De quem?
- Bassano.
- Do estúdio de Bassano, ou de Bassano mesmo?
- Um pouco dos dois.
- Legal.
- Em quanto tempo você estará pronto para partir?
- Tenho que checar minha agenda, mas suspeito que estarei pronto amanhã, logo pela manhã. Mas fique sabendo que Marselha está lotada de policiais no momento. E metade
deles estão procurando por nós.
- É por isso que não chegaremos nem perto de Marselha, pelo menos por ora.
- Então aonde vamos?
Gabriel sorriu.
- Para casa.
32
CÓRSEGA - LONDRES
Eles jantaram no vilarejo, depois Gabriel se acomodou num quarto de hóspedes no andar inferior da casa. As paredes eram brancas, a roupa de cama era branca, a poltrona
e o escabelo eram revestidos de pano de vela. A falta de cor no quarto atrapalhou o seu sono. Naquela noite, Gabriel sonhou que corria por um campo de neve interminável
atrás de Madeline. Quando ela arranhava as costas da mão, o sangue que fluía do machucado era branco.
Pela manhã, tomaram o primeiro voo para Paris e, de lá, voaram para Heathrow. Keller passou pela alfândega com um passaporte francês. Gabriel, que o esperava na
sala de chegadas, achou que aquele era um jeito um tanto quanto ignóbil de um inglês voltar para a sua terra natal. Eles foram para o lado de fora e esperaram vinte
minutos por um táxi, que se arrastou pelo centro londrino, enfrentando tráfego lento e chuva.
- Agora você sabe por que não moro mais aqui - comentou Keller em francês, em voz baixa, enquanto olhava pela janela molhada e via os subúrbios cinzentos de Londres.
- A umidade fará maravilhas por sua pele - respondeu Gabriel na mesma língua. - Você está parecendo um pedaço de couro.
O táxi os deixou no Marble Arch. Gabriel e Keller caminharam uma curta distância pela Bayswater Road em direção a um prédio com vista para o Hyde Park. O apartamento
estava exatamente do jeito que ele o deixara quando partira para a França com o dinheiro do resgate. Até a louça do café da manhã de Chiara ainda estava na pia.
Gabriel largou a mala no quarto principal e pegou uma arma do cofre de chão. Ao olhar para cima, viu Keller parado diante da janela da sala de estar.
- Você consegue ficar sozinho por algumas horas? - perguntou Gabriel.
- Sem problemas.
- Algum plano?
- Acho que vou fazer um passeio de barco pelo Serpentine e dar uma volta por Covent Garden para fazer umas compras.
- Talvez fosse melhor ficar aqui. Não dá para saber quem você pode acabar encontrando.
- Eu sou do Regimento, amorzinho.
Keller não disse mais nada; não era necessário. Por ser um SAS, poderia passar por uma sala cheia de amigos próximos e nenhum deles notaria sua presença.
Gabriel desceu para a rua e fez sinal para um táxi. Vinte minutos depois, passou pelo portão da Downing Street, rumo ao Palácio de Westminster. No seu bolso estava
um único componente do dossiê: um extenso artigo do Daily Telegraph. A manchete dizia
MADELINE HART - AS PERGUNTAS SEM RESPOSTA.
O artigo fora escrito por Samantha Cooke, a principal correspondente do Telegraph que cobria Whitehall e uma das jornalistas mais reverenciadas da Inglaterra. Acompanhava
Jonathan Lancaster desde que ele era um discreto parlamentar de segunda linha e retratou sua escalada numa biografia intitulada O caminho para o poder. Apesar do
título levemente pretensioso, o livro foi bem recebido até pelos concorrentes, que sentiram inveja do adiantamento pago pela editora londrina. Samantha Cooke era
o tipo de repórter que sabia muito mais do que jamais poderia publicar; por isso, Gabriel queria falar com ela o quanto antes.
Ele entrou em contato com a central do Telegraph e pediu que ligassem para seu ramal. A telefonista os conectou sem demora e, após alguns segundos, a jornalista
atendeu. Gabriel suspeitou que ela estivesse ao celular, pois podia ouvir passos e o eco de vozes baixas num lugar com o pé-direito alto - talvez a antessala do
Parlamento, que ficava em frente ao café onde Gabriel estava sentado. Disse a Samantha que precisava de alguns minutos do seu tempo. Prometeu que valeria a pena,
mas não mencionou nomes em momento algum.
- Você sabe quantos telefonemas assim eu recebo diariamente? - questionou ela, com um ar cansado.
- Garanto, Srta. Cooke, que você nunca recebeu uma ligação como esta antes.
Houve silêncio na linha. Ela estava claramente intrigada.
- Do que se trata?
- Prefiro não falar a respeito pelo telefone.
- Ah, é, claro que não.
- Você obviamente está cética.
- Obviamente.
- Seu telefone tem acesso à internet?
- É claro.
- Há alguns anos, um membro muito conhecido da inteligência israelense foi capturado por terroristas islâmicos e interrogado em frente a uma câmera. O vídeo ainda
está circulando pela internet. Assista e me ligue em seguida.
Ele passou um número e desligou. Dois minutos depois, ela telefonou de volta.
- Eu gostaria de encontrá-lo.
- Tenho certeza de que você pode fazer melhor que isso, Srta. Cooke.
- Por favor, Sr. Allon, você poderia me conceder uma audiência?
- Só se você pedir perdão por ter me tratado de forma tão rude agora há pouco.
- Eu ofereço as minhas mais sinceras e humildes desculpas e espero que você possa achar em seu coração uma maneira de me perdoar.
- Está perdoada.
- Onde você está?
- No Café Nero, na Bridge Street.
- Conheço-o bem, infelizmente.
- Em quanto tempo você consegue chegar?
- Dez minutos.
- Não se atrase - disse Gabriel, desligando.
Ela acabou se atrasando, afinal, em seis minutos. Entrou como um furacão com um telefone ao ouvido, o guarda-chuva sacudindo ao vento forte. A maioria dos clientes
no café eram turistas, mas havia três membros juniores do Parlamento sentados ao fundo, bebericando seus lattes. Samantha parou para trocar algumas breves palavras
com eles antes de se encaminhar para a mesa de Gabriel. Tinha cabelos louros na altura do ombro. Por alguns segundos, seus olhos azuis e saltados não se desgrudaram
do rosto do agente.
- Meu Deus - disse ela, por fim. - É você mesmo.
- O que você esperava?
- Chifres, eu acho.
- Pelo menos você é sincera.
- Um dos meus piores defeitos.
- Algum outro?
- Curiosidade.
- Então você veio ao lugar certo. Posso lhe oferecer algo para beber?
- Na verdade - ela olhou em volta -, talvez fosse melhor caminharmos. Gabriel se levantou e vestiu o casaco. Eles caminharam em direção à Tower
Bridge e viraram rapidamente à esquerda no Victoria Embankment. O tráfego da tarde estava lento, mas as multidões que em geral apareciam à margem do rio haviam sido
afastadas pela chuva. Gabriel olhou por cima do ombro para garantir que ninguém os seguira. Voltando-se para a frente, reparou que Samantha o observava como se ele
fosse um espécime em extinção.
- Você está com uma aparência muito melhor do que naquele vídeo - disse ela após um momento.
- Era tudo maquiagem.
Ela riu a contragosto.
- Ajuda?
- Fazer piadas depois de uma coisa daquelas?
Ela assentiu.
- Sim - respondeu Gabriel. - Ajuda.
- Eu a conheci certa vez, sabe?
- Quem?
- Nadia al-Bakari. Quando ela era uma ninguém, uma garotinha saudita que gostava de festas, a filha mimada de Abdul Aziz al-Bakari, o financiador do terrorismo islâmico.
- A repórter encarou Gabriel em busca de alguma reação e pareceu desapontada ao não perceber nenhuma. - É mesmo verdade que foi você quem o matou?
- Zizi al-Bakari morreu devido a uma operação iniciada pelos americanos e seus aliados na guerra global ao terror.
- Mas foi você quem puxou o gatilho, não foi? Você o matou em Cannes, na frente de Nadia, e depois a recrutou para derrubar a rede terrorista de Rashid al-Husseini.
Genial. Genial mesmo.
- Se fosse mesmo genial, Nadia ainda estaria viva.
- Mas a morte dela mudou o mundo. Ajudou a trazer democracia ao mundo árabe.
- E olha só como isso deu certo - comentou Gabriel, soturno.
Eles passaram por debaixo da Hungerford Bridge ao mesmo tempo que um trem chegava ruidosamente em Charing Cross. A chuva ficou mais fraca. Samantha baixou o guarda-chuva
e o guardou na bolsa.
- Estou honrada com seu convite, mas o Oriente Médio não é exatamente a minha praia.
- Não vim falar do Oriente Médio, mas de Jonathan Lancaster.
Ela olhou para cima bruscamente.
- Por que um famoso agente da inteligência israelense viria a uma repórter londrina atrás de informações sobre o primeiro-ministro britânico?
- Deve ser por algum motivo importante - disse Gabriel, evasivo. - Caso contrário, o famoso agente israelense jamais ousaria fazer tal coisa.
- Certamente que não. Mas o famoso agente com certeza tem uma grande quantidade de informações sobre Lancaster ao alcance das mãos. Por que procuraria a ajuda de
uma repórter?
- Ao contrário do que se acredita, não fazemos dossiês pessoais sobre nossos amigos.
- Mentira.
Gabriel hesitou um pouco.
- Este assunto é estritamente profissional, Srta. Cooke. Meu serviço não está envolvido de forma alguma.
- E se eu ajudá-lo?
- Obviamente, eu darei algo em retribuição.
- Uma matéria?
Gabriel assentiu.
- Mas você não pode me dizer qual - deduziu ela.
- Ainda não.
- Seja o que for, é melhor que seja grande.
- Eu sou Gabriel Allon. Só me envolvo com assuntos grandes.
- É verdade.
Samantha parou de andar e olhou para a London Eye, que girava devagar na margem oposta do rio.
- Tudo bem, Sr. Allon, temos um acordo. Talvez você devesse me contar do que se trata.
Gabriel tirou o artigo do Telegraph do bolso e mostrou para ela. Samantha sorriu.
- Por onde quer que eu comece?
Gabriel guardou o papel no casaco. Então, pediu que ela começasse por Jeremy Fallon.
33
LONDRES
Samantha era uma boa repórter, escrevia as matérias colocando seus leitores a par de tudo através da contextualização adequada. Como morara no Reino Unido, Gabriel
já sabia de grande parte do que ouviu. Ele sabia, por exemplo, que Jeremy Fallon havia estudado na University College London e trabalhado como redator publicitário
antes de se juntar à célula política na sede do Partido. Ele descobriu que a organização de campanha era antiquada, dedicada a vender um produto que ninguém, muito
menos o público votante britânico, queria comprar. Sua prioridade inicial foi mudar a forma como o partido fazia suas pesquisas de opinião. Fallon não queria saber
em qual político determinado eleitor votava, mas onde o eleitor fazia compras, a que programas assistia e que sonhos tinha para os filhos. Acima de tudo, queria
saber o que o eleitor esperava do governo.
Silenciosamente, trabalhando longe dos holofotes, Fallon dedicou-se a readaptar as políticas internas do Partido de modo a suprir as necessidades do eleitorado britânico
moderno. Ele partiu em busca do vendedor ideal para levar seu novo produto ao mercado. E o encontrou em Jonathan Lancaster. Com a ajuda de Fallon, Lancaster saiu
vitorioso da disputa pelo posto de líder do Partido. Seis meses depois, os votos carregaram-no para a Downing Street.
- Jeremy teve como recompensa o emprego dos sonhos - disse Samantha. - Jonathan o indicou para o cargo de chefe de gabinete e concedeu-lhe mais poder do que qualquer
outro chefe de gabinete já teve na história da Grã-Bretanha. Jeremy é o guardião da fortaleza de Lancaster, uma espécie de vice-primeiro-ministro. Certa vez, Lancaster
me disse que foi o maior erro que ele cometeu.
- Isso foi dito oficialmente?
- Extraoficialmente - enfatizou ela. - Completamente, totalmente “extra”.
- Se Lancaster sabia que era um erro, por que o cometeu?
- Porque, sem Jeremy, o Partido ainda estaria vagando no deserto político. E Lancaster ainda seria um deputado de oposição secundário e sem importância tentando
fazer seu nome uma vez por semana durante as Perguntas ao Primeiro-Ministro. Além disso, Jeremy é totalmente leal a Lancaster. Tenho plena certeza de que mataria
por ele e se ofereceria para ajudar a limpar o sangue.
Gabriel gostaria de poder dizer que ela estava certa. Em vez disso, apenas continuou caminhando em silêncio e esperou que Samantha retomasse o relato.
- Mas não se tratava só de uma conexão de dívida e lealdade: Lancaster precisava de Jeremy. Realmente acreditava que não poderia governar o país sem ele a seu lado.
- É verdade, então?
- O quê?
- Que Jeremy é o cérebro de Lancaster.
- Na verdade, isso é uma completa besteira. Mas não demorou para que o público passasse a ter essa percepção dos fatos. Até pelas pesquisas do próprio Partido, a
maioria dos britânicos acreditava que era Jeremy quem controlava o governo. - Ela fez uma pausa, pensativa. - Foi por isso que eu fiquei tão surpresa quando vi Jeremy
ao lado de Lancaster no dia em que ele finalmente convocou a eleição.
- Surpresa?
- Pouco tempo antes, um boato sinistro em Whitehall dizia que Lancaster planejava afastar Jeremy da Downing Street.
- Porque ele havia se tornado um risco político?
Samantha assentiu.
- E também porque ele era tão impopular dentro do Partido que ninguém queria trabalhar para ele.
- E por que você não publicou isso?
- Eu não tinha fontes confiáveis o bastante. Alguns de nós temos escrúpulos, sabe?
- Você acha que Jeremy Fallon ouviu esses boatos?
- Não havia como não ouvir.
- Ele e Lancaster discutiram o assunto?
- Eu nunca tive uma confirmação, por isso não escrevi a respeito. Graças a Deus que não o fiz: a esta altura, eu pareceria muito tola.
Eles chegaram à Ponte de Waterloo. Gabriel a segurou pelo cotovelo e a conduziu em direção à passagem do Strand.
- Você o conhece bem? - perguntou ele.
- Jeremy?
Gabriel aquiesceu.
- Não tenho certeza de que alguém o conheça de fato. Eu o conheço profissionalmente, portanto ele me diz coisas que quer que eu escreva no jornal. É um manipulador
filho da mãe, por isso sua atuação no funeral de Madeline Hart foi tão peculiar. Eu jamais imaginaria que Jeremy fosse capaz de derramar uma lágrima sequer. - Ela
fez uma pausa. - Acho que era verdade, afinal.
- O quê?
- Que Jeremy estava apaixonado por ela.
Gabriel deteve-se e se voltou para encarar Samantha.
- Quer dizer que Jeremy Fallon e Madeline Hart tinham um caso?
- Madeline não estava interessada em Jeremy amorosamente - respondeu ela, balançando a cabeça. - Mas isso não a impediu de usá-lo para prosperar na carreira. Ela
escalou os cargos rápido demais, na minha opinião. E eu suspeito que tenha sido tudo obra de Jeremy.
O silêncio caiu sobre eles. Estavam parados na calçada da Galeria Courtauld. Samantha observava o tráfego passar na ponte enquanto Gabriel imaginava por que Fallon
teria apresentado a mulher que amava a Lancaster. Talvez quisesse fazer pressão sobre o homem que estava prestes a arruinar sua carreira política.
- Tem certeza? - perguntou Gabriel.
- De que Jeremy estava apaixonado por Madeline?
Gabriel assentiu.
- Tenho tanta certeza quanto se pode ter sobre algo desse tipo.
- Como assim?
- Eu ouvi isso de diversas fontes em que confio. Jeremy costumava inventar desculpas muito esfarrapadas para contatá-la. Aparentemente, era bem patético.
- E por que você não publicou isso quando ela desapareceu?
- Porque não me pareceu a coisa certa a fazer naquele momento. E agora que ela está morta... - Sua voz se perdeu.
Eles entraram na galeria, compraram duas entradas e subiram até os salões de exposição. Como de costume, não havia quase nenhum visitante. Na Sala 7, pararam em
frente à moldura vazia que rememorava o roubo da obra que era a marca registrada da galeria: o Autorretrato com a orelha cortada, de Vincent Van Gogh.
- Uma pena - lamentou Samantha.
- É - concordou Gabriel. Ele a guiou para o Nevermore, de Gauguin, e perguntou se ela havia se encontrado com Madeline Hart.
- Uma vez - respondeu, apontando para a mulher na tela, como se falasse dela e não de uma mulher morta. - Eu estava trabalhando em uma matéria sobre os esforços
do Partido no sentido de estabelecer uma ligação com os eleitores das minorias. Jeremy me mandou encontrar Madeline. Eu a achei bonita até demais, mas também muito
inteligente. Às vezes parecia me entrevistar, e não o contrário. Parecia que eu estava... - Ela mergulhou no silêncio, como se buscasse a palavra certa. - Parecia
que eu estava sendo recrutada... Para quê, não faço ideia.
Gabriel ouviu passos e, ao virar-se para trás, viu um casal de meia-idade entrar na sala. O homem usava óculos escuros e era calvo, com cabelos apenas nas laterais
da cabeça. A mulher era muitos anos mais nova e segurava um guia do museu aberto na página errada. Eles iam de uma pintura a outra sem dizer nada, parando na frente
de cada tela por apenas alguns segundos antes de se deslocarem mecanicamente para a próxima. Gabriel observou-os entrarem na sala vizinha. Em seguida, desceu com
Samantha para o pátio interno localizado no centro do edifício. Em dias quentes, era um lugar de encontro popular entre os londrinos que trabalhavam nos prédios
de escritórios situados ao longo do Strand. Mas agora, sob a chuva fria, as mesinhas metálicas estavam vazias e a fonte dançante esguichava água com a tristeza de
um brinquedo em uma sala sem crianças.
- Você falou bem de Madeline nas matérias depois de seu desaparecimento comentou Gabriel enquanto eles caminhavam devagar pelo pátio.
- Tudo verdade. Ela era extremamente calma e autoconfiante para alguém com o seu passado. - Samantha franziu a testa, pensativa. - Eu nunca entendi o comportamento
da mãe dela nos dias que se seguiram ao desaparecimento. A maioria dos pais de pessoas desaparecidas fala com a imprensa constantemente. Mas ela, não: fechou o bico
e permaneceu afastada durante todo o processo. O irmão de Madeline, também.
- O que você quer dizer com isso?
- Eu tentei contatar a mãe para escrever a matéria - ela apontou com a cabeça para o pedaço do jornal no bolso de Gabriel -, mas ninguém atendia na casa deles. Em
momento algum. Até que, por fim, fui até a maldita Essex e sentei-me à porta. Um vizinho me disse que eles não eram vistos desde pouco tempo depois do funeral.
Gabriel ficou em silêncio, mas, em sua cabeça, calculava o tempo de viagem entre Londres e Basildon, em Essex, no horário de pico de trânsito noturno.
- Eu falei um bocado - disse Samantha. - Agora é a sua vez. Por que é que o grande Gabriel Allon está interessado numa garota inglesa morta?
- Receio que ainda não possa dizer.
- E vai poder algum dia?
- Depende.
- Sabe - falou ela, provocativa -, só o fato de você estar em Londres fazendo perguntas dá uma bela matéria.
- É verdade. Mas você jamais ousaria publicá-la ou mesmo mencionar a nossa conversa para alguém.
- Por que não?
- Porque isso me impediria de lhe dar uma matéria muito melhor no futuro.
Samantha sorriu e consultou o relógio.
- Eu adoraria passar uma semana falando com você, mas realmente tenho que ir. Amanhã tenho que publicar um artigo.
- Sobre o que você está escrevendo?
- Sobre a Volgatek Óleo e Gás.
- A empresa russa de energia?
- Muito bem, Sr. Allon.
- Eu tento me manter atualizado. Ajuda no meu trabalho.
- Tenho certeza de que sim.
- Qual é a matéria?
- Os ambientalistas e o pessoal do aquecimento global estão aborrecidos com o acordo. Preveem todas as calamidades de costume: colossais derramamentos de óleo, derretimento
das calotas polares, inundação das casas à beira-mar em Chelsea, esse tipo de coisa. Eles não parecem ligar para o fato de que o negócio irá gerar bilhões de dólares
em licenciamentos e trará milhares de empregos essenciais para a Escócia.
- E o seu artigo será imparcial? - perguntou Gabriel.
- Eles sempre são - rebateu ela com um sorriso. - Minhas fontes disseram que o negócio era a menina dos olhos de Jeremy, sua última grande iniciativa antes de deixar
a Downing Street para concorrer ao Parlamento. Tentei falar com ele a respeito, mas Jeremy disse três palavras que eu jamais tinha ouvido saírem de sua boca.
- Quais?
- Nada a declarar.
Ela entregou um cartão de visitas a Gabriel, apertou sua mão e desapareceu pela passagem arqueada que conectava o pátio à ponte. Gabriel esperou cinco minutos antes
de seguir pelo mesmo caminho. Quando ele desembocou na rua, viu o homem e a mulher da galeria tentando chamar um táxi. Passou por eles sem olhar duas vezes e prosseguiu
rumo à Trafalgar Square, onde milhares de manifestantes se dedicavam aos Dois Minutos de Ódio contra o Estado de Israel.
Gabriel se embrenhou na multidão e caminhou lentamente, parando aqui e ali para checar se alguém o seguia. Por fim, uma pancada de chuva divina levou os manifestantes
a correrem atrás de abrigo. Gabriel se juntou a um grupo de artistas e atores pró-Palestina que iam em direção aos bares do Soho, mas, na Charing Cross Road, deixou
o grupo e esgueirou-se para o interior da estação de metrô de Leicester Square. Enquanto descia a escada rolante para o subsolo aquecido, ligou para Keller.
- Precisamos de um carro - disse rapidamente em francês.
- Aonde vamos?
- Basildon.
- Por algum motivo em especial?
- No caminho eu explico.
34
BASILDON, ESSEX
A cidade tinha sido criada após a Segunda Guerra Mundial como parte #*% de um grande plano para reduzir a superpopulação nos assentamentos informais do East End,
em Londres, que haviam sido destruídos por bombas. O resultado foi o que os planejadores urbanos chamaram de Cidade Nova: sem história, sem alma, sem outro propósito
senão abrigar a classe operária. O centro comercial de Basildon era uma obra-prima da arquitetura neossoviética, assim como a moradia popular que se erguia em um
dos lados da cidade, parecendo uma fatia gigante de torrada queimada. A uns 800 metros ao leste estava um grupo de prédios e sobrados dilapidados conhecidos como
Lichfields.
Todas as ruas tinham nomes agradáveis como Avon, Norwich, Southwark, mas o asfalto estava rachado e ervas daninhas tomavam conta das quadras. Algumas poucas casas
tinham jardins gramados, mas, junto à pequenina construção no fim da Blackwater Way, havia apenas uma área de concreto toda quebrada, onde um carro velho costumava
ficar estacionado. O andar de baixo era revestido de chapisco, e o de cima, de tijolo marrom. As três pequenas janelas eram todas acortinadas e estavam às escuras,
e nenhuma luz brilhava sobre a inóspita porta da frente.
- Eles trabalham? - perguntou Keller, enquanto passavam devagar de carro diante da casa pela segunda vez.
- A mãe trabalha algumas horas por semana na farmácia Boots, no centro comercial. O irmão é um bêbado profissional.
- E você tem certeza de que não há ninguém aí dentro?
- Você está vendo algum sinal de presença humana?
- Talvez eles gostem do escuro.
- Ou talvez sejam vampiros.
Gabriel parou numa vaga na rua e desligou o carro. Logo ao lado da janela de Keller, havia um aviso alertando que toda aquela área estava 24 horas por dia sob a
vigilância de um circuito interno de televisão.
- Estou com um mau pressentimento.
- Você acabou de matar um homem por dinheiro.
- Não na frente das câmeras.
Gabriel não disse nada.
- Quanto tempo você pretende ficar lá dentro? - perguntou Keller.
- O quanto for necessário.
- E se a polícia aparecer?
- Seria uma boa ideia você me avisar.
- E se eles me virem aqui?
- Mostre o seu passaporte francês e diga que está perdido.
Gabriel abriu a porta do carro e saiu. Enquanto atravessava a rua, um cachorro começou a latir em algum lugar. Devia ser um muito grande, pois cada som grave e sonoro
ecoava nas fachadas decrépitas dos prédios como tiros de canhão. Por um momento, Gabriel cogitou se deveria voltar. Com certeza essa besta quer a minha garganta,
pensou sombriamente. Ainda assim, atravessou o jardim concretado dos Harts e se postou diante da porta.
Não havia cobertura para se proteger da chuva insistente. Gabriel tentou girar a maçaneta, mas, como previa, a porta estava trancada. Retirou um instrumento fino
de metal do bolso e enfiou-o no trinco. Foram necessários apenas poucos segundos - a bem da verdade, um desconhecido poderia pensar que ele só estava atrapalhado
ao procurar sua chave no escuro. Quando Gabriel tentou de novo, a porta se abriu com suavidade. Pisou no vazio escuro e fechou-a rapidamente. Lá fora, o cão disparava
outra salva de latidos antes de calar-se, por fim. Gabriel colocou a gazua de volta no bolso, pegou uma pequena lanterna e acendeu-a.
Ele se viu parado num hall de entrada apertado. O chão de linóleo estava coberto de correspondência fechada e, à direita, havia vários casacos, impermeáveis ou de
lã barata, pendurados em ganchos. Gabriel revirou os bolsos de cada um - caixas de fósforos, recibos, cartões de visitas - antes de direcionar o feixe de luz para
dentro da sala de estar.
Era um espaço pequeno e claustrofóbico, que não devia ter nem 8 metros quadrados, contendo três poltronas surradas voltadas para uma televisão. No meio da sala,
havia uma mesa baixa com dois cinzeiros quase transbordando de guimbas e, em uma das paredes, estavam penduradas fotografias emolduradas. A menina Madeline correndo
atrás de uma bola num campo ensolarado. Madeline recebendo o diploma da Universidade de Edimburgo. Madeline posando com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster em
Downing Street. Havia também uma foto de toda a família Hart em pé, posando infeliz em frente a uma baía cinzenta. Gabriel ficou olhando para as feições largas e
achatadas dos pais de Madeline e tentou imaginar como eles teriam sido capazes de produzir um rosto tão belo quanto o dela. Madeline era um erro da natureza, pensou.
Era filha de um deus diferente.
Gabriel deixou a sala de estar e, passando por uma pequena sala de jantar, entrou na cozinha. A louça suja se empilhava nas bancadas e havia uma poça de água oleosa
na pia. O ar estava tomado pelo cheiro de podridão. Abriu um dos armários no nível do chão e encontrou uma lixeira abarrotada de comida estragada. Havia mais na
geladeira. Ele imaginou o que poderia tê-los motivado a deixar a casa daquela forma.
Voltou para o hall de entrada e subiu as escadas estreitas que levavam ao segundo andar. Eram três quartos: dois pequenos cômodos do lado esquerdo da casa e um maior
à direita, que pertencia à mãe de Madeline. A cama de casal estava bagunçada e uma corrente de vento frio soprava pela janela aberta que dava vista para o pedaço
de terra revolvida que era o quintal. Gabriel abriu a porta finíssima do armário e iluminou o interior. Havia roupas penduradas em cabides, assim como roupas empilhadas
ordenadamente na prateleira de cima. Examinou a cômoda: todas as gavetas estavam lotadas, exceto a primeira da esquerda - onde uma mulher costuma guardar papéis
pessoais e lembranças. Agachando-se, apontou o feixe de luz para debaixo da cama, mas não viu nada além de poeira. Numa das mesinhas de cabeceira, ao lado de um
copo vazio, viu o telefone. Levou-o ao ouvido, mas não escutou o sinal de linha. Apertou o botão de reprodução na secretária eletrônica. Não havia recados.
Gabriel cruzou o corredor e espiou dentro de um dos quartos menores. Apenas as paredes estavam intactas, revestidas com as imagens de costume - celebridades do futebol,
modelos, carros que a pessoa jamais poderia comprar. No ar, pairava um cheiro masculino desagradável que Gabriel tivera a felicidade de não sentir desde que deixara
o Exército. Vasculhou o quarto rapidamente, mas não descobriu nada fora do comum - nada exceto o fato de que não continha nenhum objeto, sequer um papel, com o nome
da criatura que o habitava.
O último quarto era o de Madeline. Não da amante de Jonathan Lancaster, nem da mulher devastada que Gabriel encontrara na França, mas a Madeline que de alguma forma
sobrevivera a uma infância difícil naquela triste casinha. Parecia a Gabriel que ela passara por tudo da mesma forma que pelo cativeiro: com asseio e ordem. Sua
cama fora feita com esmero; a pequena escrivaninha de garota colegial estava pronta para uma inspeção. Sobre ela, havia uma série de livros clássicos - Dickens,
Austen, Forster, Lawrence. Os volumes pareciam ter sido lidos muitas vezes, pois tinham inúmeras passagens sublinhadas e anotações feitas em uma letra miúda e precisa.
Gabriel estava prestes a deslizar um dos livros, Uma janela para o amor, para dentro do casaco, quando o celular vibrou discretamente. Ele atendeu na mesma hora.
- Temos companhia - avisou Keller.
- Quantos?
- Parece ser uma pessoa só, mas não posso afirmar com certeza.
Gabriel abriu as cortinas diáfanas do quarto de Madeline uma fração de centímetro e viu uma mulher caminhando pela Blackwater Way debaixo de um guarda-chuva. Quando
ela passou pelo facho de luz de um poste, ele vislumbrou seu rosto. Era familiar... Então, no instante em que a mulher dobrou na entrada de concreto, Gabriel lembrou:
ela aparecera duas vezes na igreja nas montanhas do Lubéron fazendo o sinal da cruz como se não tivesse esse costume. Por algum motivo, agora inseria uma chave na
porta da casa de Madeline Hart.
Gabriel desligou o telefone e sacou a arma. Sentiu-se tentado a descer as escadas e confrontar a mulher de imediato, mas decidiu que seria melhor esperar. Em algum
momento, pensou, ela revelaria quem era e por que estava ali, de preferência sem nem perceber que o fizera. Esse era sempre o melhor jeito de obter informações -
sem que o alvo soubesse. Como pregava Shamron, era melhor que um espião coletasse dados como um batedor de carteiras, e não como um assaltante.
Gabriel permaneceu imóvel no quarto de Madeline, com o tambor da arma reconfortantemente pressionado contra a própria face, enquanto a mulher entrava e fechava a
porta. Ela emitiu uma única sílaba, que Gabriel não pôde decifrar. Então, veio uma série de pequenos ruídos, sugerindo que a mulher estava pegando a correspondência
espalhada e colocando-a num saco plástico. Em seguida, ela foi para a sala de estar, onde ficou por aproximadamente dois minutos. Depois, entrou na cozinha e emitiu
a mesma sílaba de antes. Gabriel suspeitava que fosse uma vulgaridade em alguma língua como o hebraico, o francês, o italiano ou o alemão. Imaginava que a mulher
também estivesse vasculhando a casa.
Quando os passos da visitante alcançaram o pé da escada, Gabriel foi tomado pela indecisão. Se estivesse certo sobre as intenções da mulher, ela certamente entraria
no quarto de Madeline. Olhou em volta para ver se havia algum lugar para se esconder, mas nada pareceu adequado. O quarto era pouco maior do que a cela na qual Madeline
ficara presa. Conforme os passos da mulher foram se aproximando, Gabriel decidiu que não tinha outra escolha a não ser sair dali. Mas para onde? O banheiro era logo
do outro lado do corredor. Enquanto entrava nele sem fazer nenhum barulho, imaginou o que Shamron pensaria se visse o futuro diretor da inteligência israelense naquela
situação. Ele aprovaria, pensou Gabriel. Na verdade, tinha certeza de que o grande Ari Shamron já havia se escondido em lugares muito mais degradantes profissionalmente
do que o banheiro de uma moradia popular em Basildon.
Deixou a porta um pouquinho entreaberta - não mais que meio centímetro - e segurou a arma com os braços estendidos enquanto a mulher terminava de subir as escadas.
Ela entrou no quarto maior primeiro e, a julgar pelo barulho de gavetas se abrindo e portas batendo, vasculhou-o de cima a baixo. Cinco minutos depois, reapareceu
e passou pelo banheiro sem se deter, aparentemente sem saber que havia uma arma apontada para sua cabeça. Ela vestia o mesmo casaco impermeável amarronzado que estava
usando na França, mas seu penteado era um pouco diferente. Em sua mão esquerda havia uma sacola da Marks & Spencer. Parecia conter não só a correspondência.
Quando ela entrou no quarto de Madeline, a procura subitamente passou a ser violenta. Era uma busca profissional, pensou Gabriel, ouvindo com atenção. Uma busca
agressiva... Ela arrancou roupas, lençóis, colcha, fronha, esvaziou as gavetas no chão. Por fim, ouviu-se um estalido seco, como de madeira, seguido por um denso
silêncio, que foi quebrado pouco depois pela voz da mulher, baixa e calma, do tipo que se usa para reportar notícias a um superior através de um aparelho que transmite
sinais em ondas. Gabriel não compreendia o que ela estava dizendo - ele não entendia bem línguas eslavas -, mas tinha certeza de uma coisa: a mulher falava em russo.
35
BASILDON, ESSEX
O carro da mulher, um Volvo sedã, encontrava-se estacionado em frente do menor prédio de Lichfields, do outro lado da rua. Ela andou direto até ele, segurando a
sacola da Marks & Spencer na mão esquerda com certa dificuldade; devia estar pesada. A direita empunhava o guarda-chuva, que era um mero acessório, pensou Gabriel,
observando-a da janela de Madeline, pois a chuva havia parado. Depois de abrir a porta do automóvel, jogou a sacola no banco do carona e entrou, deixando o guarda-chuva
aberto até que estivesse segura dentro do carro. O motor hesitou um pouco antes de voltar à vida com uma espécie de tosse. Esperou até chegar aos limites da propriedade
para ligar os faróis. Dirigia rápido, mas com cuidado, como uma profissional.
Gabriel deu mais uma olhada na destruição causada pela mulher no quarto de Madeline e apressou-se escada abaixo. Quando chegou à porta de entrada,
Keller já havia manobrado o carro e o esperava na rua. Gabriel entrou depressa e fez um meneio de cabeça, para que seguissem a mulher.
- Mas tenha cuidado: ela é boa.
- Boa como?
- No nível da Central Moscovita.
- Do que você está falando?
- Eu posso estar errado, mas acredito que aquela mulher seja da KGB.
Tecnicamente, não havia mais KGB, é claro; ela fora dissolvida pouco após o colapso do antigo império soviético. A Federação Russa possuía dois serviços de inteligência:
o FSB e o SVR. O primeiro lidava com assuntos internos: contrainteligência, contraterrorismo, a mafiya e os ativistas pró-democracia corajosos ou estúpidos o suficiente
para desafiar os homens que agora governavam a Rússia de dentro dos muros do Kremlin.
O SVR era o serviço secreto russo no exterior. Ele comandava sua rede internacional de espiões do mesmo quartel-general isolado em Yasenevo que servira de escritório
central do Primeiro Diretório Geral da KGB. Os oficiais do SVR ainda o chamavam de Central Moscovita, e não é de se admirar que até os cidadãos russos ainda se referissem
a ele como KGB. E tinham motivos para isso. O Kremlin podia até ter mudado o nome do serviço, mas sua missão permanecia a mesma: penetrar nos países-membros da OTAN
e enfraquecê-los - os Estados Unidos e a Grã-Bretanha estavam no topo da lista.
Mas por que uma agente do SVR seguira Gabriel e Keller até uma antiga igreja nas montanhas do Lubéron? E por que a mesma agente havia vasculhado a casa da família
de uma garota inglesa morta, que fora amante do primeiro-ministro britânico... Que fora sequestrada enquanto passava férias na Córsega... Que morrera queimada no
porta-malas de um Citroen C4 numa praia em Audresselles?
- Não vamos nos precipitar - alertou Keller.
- Eu ouvi muito bem - retrucou Gabriel.
- Você ouviu uma mulher falando russo.
- Não, eu ouvi uma agente do Centro Moscovita revirando um quarto.
Eles seguiam pela A127, rumo a oeste. Eram quase oito horas. Ainda havia engarrafamento nas pistas que iam para o leste, um resquício do horário de rush londrino,
mas no sentido oeste o tráfego fluía depressa. A mulher estava mais ou menos 200 metros adiante, mas Keller não tinha problemas em acompanhar as características
lanternas traseiras do velho Volvo.
- Digamos que você esteja certo - disse ele, olhando diretamente para a frente. - Digamos que a KGB, ou o SVR, ou como diabos você quiser chamar, esteja ligado ao
sequestro de Madeline Hart.
- A esta altura, eu diria que é um fato indiscutível.
- Está certo. Mas qual é a ligação?
- Ainda estou tentando descobrir. Mas, se eu tivesse que chutar, diria que era uma operação deles desde o princípio.
- Operação? - perguntou Keller, incrédulo. - Você está dizendo que os russos sequestraram a amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel não respondeu; ele mesmo ainda não acreditava nisso completamente.
- Você me permitiria lembrá-lo de alguns fatos de destaque? - perguntou Keller.
- Por favor.
- Marcei Lacroix e René Brossard não eram russos e não trabalhavam para o SVR. Ambos faziam parte do crime organizado francês, com extensas fichas criminais em Marselha
e no sul da França.
- Talvez não soubessem para quem estavam trabalhando.
- E quanto a Paul?
- Não sabemos nada sobre ele, a não ser que fala francês como se tivesse aprendido ouvindo CDs de algum curso de línguas... ou assim afirmou o grande Don Anton Orsati
da Córsega.
- Que a paz esteja com ele.
Gabriel bateu com os nós dos dedos no para-brisa e disse:
- Ela está muito na frente.
- Está tudo sob controle.
- Diminua a distância um pouco.
Keller acelerou por alguns segundos, então voltou ao normal.
- Você acha que Paul é russo?
- Isso explicaria o fato de a polícia francesa não ter conseguido associar um nome ao seu rosto.
- Mas por que ele contrataria criminosos franceses para sequestrar Madeline em vez de fazer o trabalho por conta própria?
- Já ouviu falar de uma operação de bandeira falsa? - perguntou Gabriel. - Serviços de inteligência frequentemente conduzem operações que causariam danos políticos
ou diplomáticos caso seu envolvimento direto viesse a público. Às vezes eles se fazem passar por membros de outras agências. Às vezes se fazem passar por coisas
completamente diferentes.
- Como criminosos franceses?
- Você ficaria surpreso.
- Há apenas um problema com a sua teoria.
- Apenas um?
- O SVR não precisa de dinheiro.
- Duvido muito que isso tudo tivesse relação com dinheiro.
- Você entregou duas maletas com 10 milhões de euros.
- Sim, eu sei.
- Se não tinha relação com dinheiro, por que o pagamento?
- A bandeira falsa foi tremulada até o fim - respondeu Gabriel.
Keller silenciou por um instante. Por fim, perguntou:
- E por que eles mataram Madeline?
- Não sei.
- Onde está a família dela?
- Não sei.
- Como os russos ficaram sabendo de Madeline e Lancaster?
- Também não sei.
- Talvez uma pessoa saiba.
- Quem?
- A mulher dirigindo aquele carro - disse Keller, apontando para as lanternas do Volvo.
- É melhor ser um batedor de carteira do que um assaltante.
- O que isso significa?
- Diminua a distância - ordenou Gabriel, batendo de novo com os nós dos dedos no vidro. - Ela está muito à frente.
A mulher passou por baixo do anel rodoviário M25, acelerou ao longo de uma paisagem de fazendas e campos e, então, entrou nos subúrbios de Londres, que, após trinta
minutos, deram lugar aos bairros do East End e, por fim, aos prédios comerciais do centro financeiro. De lá, passou pelo Soho e por Holborn em direção a Mayfair,
parando no meio-fio de um movimentado trecho da Duke Street, ao sul da Oxford Street.
Depois de ligar o pisca-alerta, a mulher saiu do Volvo e foi até um sedã Mercedes estacionado alguns metros adiante. Quando ela se aproximou do carro, o porta-malas
foi aberto, aparentemente por uma pessoa de dentro, pois Gabriel não viu a mulher sequer encostar nele. Ela colocou ali a sacola da Marks & Spencer, fechou-o com
um baque e voltou para o próprio automóvel. Dez segundos mais tarde, saiu vagarosamente da vaga e foi em direção à Oxford Street.
- O que devo fazer? - perguntou Keller.
- Deixe-a ir.
- Por quê?
- Porque quem abriu o porta-malas daquele Mercedes está observando para ver se alguém vai segui-la.
Keller e Gabriel examinaram a rua. Havia restaurantes dos dois lados, todos atendendo o público turista, e as calçadas estavam lotadas de pedestres. Qualquer um
deles podia estar com a chave do Mercedes.
- E agora? - perguntou Keller.
- Nós esperamos.
- O quê?
- Saberei quando virmos.
- Batedores de carteiras e assaltantes?
- Algo desse tipo.
Keller fitava o Mercedes, mas Gabriel olhava em volta, para o pesadelo gastronômico que era aquela parte da Duke Street: Pizza Hut, Garfunkel's, um lugar chamado
Pure Waffle, o que quer que isso significasse. O requinte da rua era o Bella Italia, franquia de uma rede de restaurantes espalhados pela cidade, e foi sobre ele
que o olhar de Gabriel se fixou.
Um casal de idades muito díspares saíam naquele momento pela porta, supostamente após uma refeição. O homem usava um chapéu à prova d'agua para se proteger da garoa
leve e a mulher olhava para dentro da bolsa como se procurasse alguma coisa. Mais cedo naquele dia, nas salas de exposição da Galeria Courtauld, ela estava segurando
um guia aberto na página errada e ele usava óculos escuros. Agora, não havia óculos de nenhum tipo. Depois de ajudá-la a acomodar-se no banco do carona do Mercedes,
ele contornou o carro e sentou-se ao volante. Quando o motor deu a partida, a rua pareceu tremer. Então, o automóvel disparou com um leve cantar de pneus e cruzou
a Oxford Street no momento em que a luz do semáforo ficou vermelha.
- Boa jogada - disse Keller.
- Concordo.
- Devo tentar segui-lo?
Gabriel balançou a cabeça lentamente. Eles eram bons, pensou. No nível da Central Moscovita.
O Grand Hotel Berkshire não era grandioso nem ficava no charmoso condado de Berkshire, mas no fim de uma fileira de casas eduardianas na West Cromwell Road, entre
uma loja de eletrônicos baratos e um cibercafé suspeito.
Gabriel e Keller chegaram lá à meia-noite. Eles não tinham reserva nem bagagem; estava tudo dentro do flat na Bayswater, que Gabriel presumia que estivesse sob vigilância
dos russos. Pagou em dinheiro por uma estadia de duas noites e disse ao recepcionista noturno que os dois não esperavam visitas e que não queriam interrupções de
nenhuma espécie, nem do serviço de quarto. O funcionário não viu nada de incomum nas instruções de Gabriel. O Grand Hotel Berkshire - ou o GHB, como diziam seus
administradores para abreviar - servia àqueles que tomavam as estradas menos percorridas.
Os aposentos deles eram no quarto e último andar e tinham uma vista da rua própria para um franco-atirador. Gabriel insistiu que Keller dormisse primeiro. Então,
sentou diante da janela com a arma repousada no colo e os pés apoiados no peitoril, enquanto cinco questões se repetiam sem parar na sua cabeça. Por que a inteligência
russa teria sido tão ousada a ponto de sequestrar a amante do primeiro-ministro britânico? Por que o pagamento de resgate, se os russos certamente não estavam atrás
de dinheiro? Por que mataram Madeline? Onde estava sua família? E quanto disso tudo Jonathan Lancaster e Jeremy Fallon sabiam? Respostas satisfatórias fugiam a sua
compreensão. Ele podia elaborar palpites, fazer deduções, mas apenas isso. Precisava bater mais algumas carteiras, pensou - e, se necessário, fazer um ou dois assaltos
também. E depois? Pensou na velha signadora e em suas profecias sobre um antigo inimigo e a cidade dos hereges no leste.
Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer, morrerá...
Bem nesse instante, um caminhão de entrega de jornais parou em frente a uma loja, do outro lado da rua. Gabriel consultou o relógio. Quase quatro da madrugada, hora
de acordar Keller e de ele mesmo dormir um pouco. Em vez disso, pegou o livro de E. M. Forster, do quarto de Madeline, abriu numa página aleatória e começou a ler:
um jogo complicado estava sendo disputado sem parar na encosta da montanha durante toda a tarde. Lucy não conseguia descobrir do que se tratava e como dividiam-se
os jogadores...
Gabriel fechou o livro e observou o caminhão se afastar na rua escura e úmida. Então compreendeu. Mas como provar? Ele precisava de alguém que entendesse do mundo
obscuro da política e dos negócios russos. Alguém que fosse tão implacável quanto os homens do Kremlin.
Precisava de Viktor Orlov.
36
CHELSEA, LONDRES
Viktor Orlov sempre tivera habilidade com números. Nascido em Moscou t. durante os dias mais sombrios da Guerra Fria, estudou no prestigiado Instituto de Mecânica
de Precisão e Óptica de Leningrado e trabalhou como físico no programa de desenvolvimento de armas nucleares da União Soviética. Por sugestão dos superiores, juntou-se
ao Partido Comunista. Mas, anos mais tarde, em uma entrevista dada a um jornal britânico, alegou nunca ter acreditado de fato naquela empreitada. “Filiei-me ao Partido
por ser a única via disponível para subir na carreira”, disse ele sem nenhum traço de arrependimento. “Suponho que pudesse ter-me tornado um dissidente, mas o gulag
nunca me atraiu muito.”
Quando a União Soviética deu o último suspiro, Orlov não derramou nenhuma lágrima. Na realidade, ficou terrivelmente bêbado de vodca soviética barata e correu pelas
ruas de Moscou gritando: “O rei está morto!” Na manhã seguinte, de ressaca, desvinculou-se do Partido, retirou-se do programa de desenvolvimento nuclear soviético
e jurou que ficaria rico. Em poucos anos, obteve uma fortuna considerável importando computadores, aparelhos e outros bens ocidentais para o mercado russo incipiente.
Mais tarde, usou a fortuna para adquirir a maior companhia estatal de aço da Rússia, além da Ruzoil, a gigantesca siberiana de petróleo, a preço de banana. Viktor
Orlov, antes um físico do governo que tivera de dividir um apartamento com duas outras famílias soviéticas, tornou-se um bilionário consagrado e o homem mais rico
da Rússia. Ele foi um dos primeiros oligarcas, um barão gatuno que construiu a fortuna saqueando as joias da coroa do Estado soviético.
Orlov não pedia desculpas por ter se tornado rico dessa forma. “Se eu tivesse nascido inglês, meu dinheiro poderia ter vindo de forma limpa,” disse ele uma vez a
um entrevistador britânico. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.”
Mas, na Rússia pós-soviética, uma terra sem lei e tomada pelo crime e a corrupção, a fortuna fez de Orlov um alvo. Ele havia sobrevivido a três atentados, e os rumores
sugeriam que, em retaliação, ordenara a morte de vários homens. Porém, a maior ameaça viria do homem que assumira a presidência depois de Boris Yeltsin. Ele achava
que Orlov e os outros oligarcas haviam roubado os bens mais valiosos do país e tinha a intenção de tomá-los de volta. Após se estabelecer no Kremlin, o novo presidente
convocou Orlov e exigiu duas coisas: sua companhia de aço e a Ruzoil.
- E não meta o nariz em política - acrescentou, ameaçador. - Caso contrário, faço você sumir.
Orlov concordou em abrir mão dos interesses no aço, mas não da Ruzoil. O presidente não ficou contente. Logo ordenou que os procuradores abrissem um inquérito de
fraude e suborno contra ele e, dentro de uma semana, tinha um mandado de prisão em mãos. Sabiamente, Orlov voou para Londres, onde se tornou um dos críticos mais
abertos e eficientes do presidente russo.
Por muitos anos, a Ruzoil ficou congelada por lei, além do alcance de Orlov e dos novos senhores do Kremlin. Por fim, ele foi persuadido a ceder em nome de um acordo
secreto para libertar quatro reféns de um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Em troca, os britânicos compensaram Orlov tornando-o membro do reino e
concedendo-lhe um breve e muito secreto encontro com Sua Majestade, a Rainha. O Escritório enviou-lhe um bilhete de agradecimento, ditado por Chiara e escrito à
mão por Gabriel. Ari Shamron entregou-o e o queimou assim que Orlov terminou de ler.
- Algum dia eu terei a chance de conhecer esse homem notável pessoalmente?
- Não - respondera Shamron.
Determinado, Orlov entregara seu número mais privado a Shamron, que por sua vez o passara a Gabriel. Ele ligou mais tarde naquela manhã, de um telefone público perto
do Grand Hotel Berkshire, e surpreendeu-se quando o próprio Orlov o atendeu.
- Eu sou uma das pessoas que você salvou ao entregar a Ruzoil - apresentou-se Gabriel, sem mencionar seu nome. - Fui eu que escrevi o bilhete que o velho queimou
quando você terminou de ler.
- Ele é uma das pessoas mais desagradáveis que já conheci.
- Espere até conhecê-lo melhor.
Orlov deu uma risada seca e curta.
- A que devo a honra?
- Preciso de sua ajuda.
- Na última vez que você precisou da minha ajuda, perdi uma companhia de petróleo no valor de pelo menos 16 bilhões de dólares.
- Dessa vez não vai custar nada.
- Estou livre às duas da tarde.
- Onde?
- Número 43 - disse Orlov, e desligou.
O endereço fornecido era da mansão de tijolos vermelhos de Orlov na Cheyne Walk, em Chelsea. Gabriel foi até lá a pé e Keller o acompanhou a uma distância de 100
metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado. A casa alta e estreita era coberta de glicínias. Como a dos vizinhos, era afastada da rua, protegida
por uma cerca de ferro batido. Uma limusine Bentley blindada estava parada do lado de fora, com um chofer ao volante. Logo atrás do carro, havia um Range Rover preto
ocupado por quatro membros da equipe de segurança de Orlov. Todos faziam parte do antigo regimento de Keller: a elite do SAS.
Os guarda-costas observaram Gabriel com óbvia curiosidade enquanto ele seguia pelo caminho no jardim e tocava a campainha. Surgiu uma criada em uniforme engomado
preto e branco. Após averiguar a identidade de Gabriel, conduziu-o por uma escadaria larga e elegante até o escritório de Orlov. A sala era uma réplica exata do
escritório pessoal da rainha no Palácio de Buckingham - exceto por uma TV de plasma gigantesca que exibia notícias e dados do mercado financeiro ao redor do mundo.
Quando Gabriel entrou, Orlov estava parado diante da tela, como que em transe. Como de costume, ele vestia um terno italiano preto e uma gravata de um rosa vivo
com um enorme nó Windsor. Seus cabelos grisalhos, ralos, estavam espetados com gel. Os números se refletiam fracamente em seus óculos da moda e ele não mexia um
músculo, a não ser o do olho esquerdo, que tremia de nervosismo.
- Quanto você ganhou hoje, Viktor?
- Na verdade - disse Orlov, ainda com os olhos fixos na tela -, acho que perdi 10 ou 20 milhões.
- Sinto muito.
- Amanhã é um novo dia.
Orlov virou-se e observou Gabriel por um longo momento antes de estender a mão bem cuidada. Sua pele estava fria e era particularmente macia, como a mão de uma criança.
- Como sou russo, não me choco com facilidade. Mas devo admitir que estou surpreso ao vê-lo aqui no escritório. Achei que nunca iríamos nos conhecer.
- Desculpe-me, Viktor. Eu deveria ter vindo há muito tempo.
- Eu entendo por que não veio. - Orlov sorriu tristemente. - Nós temos algo em comum: fomos alvos do Kremlin. E conseguimos sobreviver.
- Alguns de nós sobreviveram melhor que os outros - disse Gabriel, contemplando a magnífica sala.
- Eu dei sorte. E o governo britânico tem sido bom comigo - enfatizou Orlov por isso não quero fazer nada que aborreça o pessoal de Whitehall.
- Tenho o mesmo interesse.
- Fico feliz por isso. E, então, Sr. Allon, por que não me conta do que se trata sua visita?
- Volgatek Óleo e Gás.
Orlov sorriu.
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
37
CHEYNE WALK, CHELSEA
Viktor Orlov nunca se mostrou relutante em falar sobre dinheiro. Na verdade, raramente falava de qualquer outro assunto. Ele se gabava de pagar 10 mil dólares por
cada um dos ternos e de suas camisas, que eram as melhores do mundo. Dizia que seu relógio de diamantes e ouro estava entre os mais caros já produzidos e, ainda
por cima, possuía o segundo exemplar dele, pois havia destruído o primeiro na Suíça, ao batê-lo contra um pinheiro enquanto esquiava. “Foi burrice minha”, falou
a um tabloide britânico depois da perda multimilionária. “Esqueci de tirar o maldito relógio antes de sair do chalé.”
Seu vinho preferido era o Château Pétrus, o famoso Pomerol que ele bebia como se fosse água. Era um pouco cedo, até para o anfitrião, então tomaram chá. Orlov bebeu
o seu à moda russa, através de um cubo de açúcar preso entre os dentes da frente. Seu braço estava jogado na direção de Gabriel, sobre o encosto de um sofisticado
sofá de brocado, e ele girava os óculos caros pela haste, um gesto que sempre repetia ao falar sobre a Rússia.
Não o país da sua infância ou no qual servira como cientista nuclear, mas o que chegara ao mundo tropeçando, após o colapso da União Soviética. A Rússia sem lei,
bêbada, confusa, perdida. Ao seu povo traumatizado fora prometida uma segurança que iria do berço ao túmulo. Agora, de repente, viam-se obrigados a lutar pela sobrevivência.
Darwinismo social dos mais ferozes. Os fortes transformavam os fracos em presas, os fracos passavam fome e os oligarcas reinavam, soberanos - os novos czares russos,
os novos komissary. Eles marchavam por Moscou em caravanas à prova de balas, cercados por seguranças fortemente armados. À noite, os guarda-costas brigavam uns com
os outros nas ruas.
- Era o Leste Selvagem - disse Orlov, reflexivo. - Era uma loucura.
- Mas você adorava - replicou Gabriel.
- E como não adorar? Nós éramos deuses.
Logo cedo em sua carreira como capitalista, Orlov comandava o império nascente sozinho e com mão de ferro. Mas, depois da aquisição da Ruzoil, percebeu que precisava
de um segundo comandante. O escolhido foi Gennady Lazarev, um brilhante matemático teórico com quem havia trabalhado no programa soviético de armas nucleares. Ele
não sabia nada sobre capitalismo, mas, como Orlov, era bom com números. Lazarev aprendeu sobre os negócios do zero e o ex-oligarca o colocou no comando das operações
cotidianas da Ruzoil. Esse foi, segundo Orlov, o maior erro que ele já cometera em termos empresariais.
- Por quê? - perguntou Gabriel.
- Porque Gennady Lazarev era da KGB. Desde quando trabalhava no programa de armas nucleares.
- Você nunca suspeitou?
Orlov balançou a cabeça.
- Ele era muito bom, e muito leal ao escudo e à lança, que é como os capangas da KGB gostam de definir a si mesmos. Obviamente, Lazarev me traiu, entregando ao Kremlin
pilhas de documentos internos, que os procuradores do Estado mais tarde usaram para montar um caso contra mim. Quando fugi do país, gerenciou a Ruzoil como se fosse
dele.
- Ele o jogou para escanteio?
- Completamente.
- E quando você cedeu a Ruzoil para nos tirar da Rússia?
- Lazarev já estava fora àquela altura, comandando uma nova companhia estatal de petróleo. Aparentemente, o presidente russo escolheu o nome da empresa: Volgatek
Óleo e Gás. Na época, uma piada dizia que o presidente queria chamá-la de “KGB Óleo e Gás”, mas achou que o nome não seria bem aceito no Ocidente.
A Volgatek, continuou Orlov, não deveria atuar na produção doméstica de petróleo, que já se achava estabilizada. Seu único propósito deveria ser expandir a participação
da Rússia na produção internacional, aumentando, assim, o poder e a influência russa na esfera global. Apoiada pelos investimentos do Kremlin, a Volgatek fez compras
pela Europa, adquirindo uma cadeia de refinarias na Polônia, na Lituânia e na Hungria. Então, ignorando objeções dos americanos, assinou um contrato lucrativo de
perfuração com a República Islâmica do Irã, assim como acordos de desenvolvimento com Cuba, Venezuela e Síria.
- Está vendo o padrão? - perguntou Orlov.
- Os acordos são todos em países do antigo império soviético ou em países hostis aos Estados Unidos.
- Correto.
Mas a Volgatek não se contentou com isso, prosseguiu Orlov. A empresa expandiu suas operações para a Europa Ocidental, assinando acordos de refino e distribuição
na Grécia, na Dinamarca e na Holanda. Então, voltou suas atenções para o mar do Norte, onde queria perfurar dois novos campos descobertos nas Ilhas Ocidentais da
Escócia. Os geólogos da Volgatek estimavam que a produção alcançaria cem mil barris por dia, sendo que grande parte dos lucros fluiria diretamente para os cofres
do Kremlin. A companhia recorreu ao Departamento de Energia e Mudanças Climáticas da Grã-Bretanha para obter uma licença. Foi aí que o secretário de Energia pediu
a Viktor que aparecesse em seu escritório para um bate-papo.
- E o que você acha que eu disse?
- Que a Volgatek era um braço do Kremlin, administrada por um ex-membro da KGB.
- E o que você acha que o secretário fez com o pedido da Volgatek para perfurar no mar territorial da Grã-Bretanha?
- Jogou-o dentro do triturador de papel.
- Bem na minha frente - concordou Orlov, sorrindo. - Foi um som muito satisfatório.
- O Kremlin tem conhecimento de que foi você quem sabotou o acordo?
- Não que eu saiba. Mas tenho certeza de que Lazarev e o presidente russo suspeitaram do meu envolvimento. Eles sempre estiveram prontos para acreditar nas piores
coisas em relação a mim.
- E o que aconteceu depois?
- A Volgatek esperou um ano. Então, entraram com um segundo pedido de licença para perfuração. Mas, dessa vez, as coisas eram diferentes. Eles tinham um amigo dentro
de Downing Street, um homem que eles cultivaram durante um ano.
- Quem?
- Prefiro não dizer.
- Está bem, eu digo por você: o homem da Volgatek era Jeremy Fallon, o mais poderoso chefe de gabinete na história da Grã-Bretanha.
Orlov sorriu.
- Talvez devêssemos abrir uma garrafa de Pétrus, afinal.
Eles haviam entrado em águas perigosas. Gabriel sabia, certamente Orlov também, a julgar pelo olho esquerdo contraindo-se em ritmo furioso. Na infância, o tique
o tornara alvo de provocações impiedosas e maus-tratos. Isso o fazia queimar de ódio, e esse ódio o levara ao sucesso. Orlov queria derrotar todo mundo. Tudo por
causa do tique no olho esquerdo.
Agora, o olho estava cravado no cálice de vinho tinto Pomerol. Orlov ainda não tinha bebido. Ele também não havia respondido à pergunta um tanto quanto direta feita
por Gabriel no minuto anterior: “Por que Jeremy Fallon?”
- Por que não ele? - disse o russo, enfim. - Fallon era o cérebro de Lancaster. Lancaster era a marionete de Fallon. Ele puxava a corda e Lancaster acenava. E o
melhor: estava vulnerável a uma aproximação.
- Como assim?
- Ele não tinha onde cair morto. Era mais pobre que rato de igreja.
- Quem o apontou como alvo?
- Disseram-me que a indicação veio da rezidentura do SVR em Londres.
Rezidentura era a palavra usada pelo SVR para descrever suas operações em embaixadas locais. O rezident era o chefe de posto; a rezidentura, o próprio posto. Esse
era um resquício da época da KGB. Assim como a maioria das coisas relacionadas ao SVR.
- Como eles agiram?
- Lazarev e Fallon passaram a se encontrar em todos os lugares errados: festas, restaurantes, conferências, férias. Segundo boatos, Fallon passou um longo fim de
semana na casa de Lazarev em Gstaad e fez um cruzeiro pelas ilhas gregas em seu iate. Eu soube que eles se deram muito bem, mas isso não me surpreende: Gennady consegue
ser um canalha encantador quando quer.
- Mas houve mais do que uma ofensiva charmosa, não é, Viktor?
- Muito mais.
- Quanto?
- Cinco milhões de euros em uma conta bancária anônima na Suíça, cortesia do Kremlin. Tudo limpo. Sem nenhum rastro. O SVR cuidou dos arranjos.
- Quem disse?
- Prefiro não dizer.
- Ora, vamos, Viktor.
- Você claramente tem suas fontes, Sr. Allon, e eu tenho as minhas.
- Pelo menos diga de que lado vêm as suas informações.
- Do Leste - respondeu Orlov, querendo dizer que era de uma de suas muitas fontes em Moscou.
- Prossiga - pediu Gabriel.
Antes, Orlov tomou um pouco de vinho. Então, passou a explicar como a Volgatek havia entrado com um segundo pedido, dessa vez apoiada pelo segundo homem mais poderoso
de Whitehall. Mas o primeiro-ministro ainda estava no mínimo indeciso. O secretário de Energia mantinha-se contrário, mas Fallon o persuadiu a não rejeitar o pedido
de pronto. Isso o manteve tecnicamente vivo, mas por um fio.
- Então - disse Orlov, erguendo o braço em direção ao teto -, o secretário de Estado de repente aprova a licença, Jonathan Lancaster voa a Moscou para brindar com
champanhe no Kremlin e o homem que aceitou 5 milhões de euros está prestes a se tornar o próximo ministro do Tesouro.
- Eu preciso saber da fonte que lhe falou dos 5 milhões.
- Perguntado e respondido - disse o russo secamente.
Gabriel mudou de assunto:
- Qual é o estado atual das relações entre a Volgatek e seus negócios aqui em Londres?
- Como você deve imaginar, estamos em pé de guerra. É bastante parecido com a Guerra Fria: não declarada, mas violenta.
- Como assim?
- Lazarev apresentou ofertas maiores que as minhas em inúmeras aquisições. Para ele é fácil - acrescentou Orlov, ressentido -, pois não está jogando com o próprio
dinheiro. Ele também se diverte muito contratando meus melhores empregados. Joga um bolo de dinheiro... do Kremlin, é claro... e eles vão correndo para os pastos
verdejantes.
- Vocês se falam?
- Não diria que nos falamos. Quando nos encontramos em público, damos um aceno de cabeça polido e trocamos sorrisos rígidos. Nossa guerra se dá nas sombras. Devo
admitir que, ultimamente, Gennady tem me desgastado. E agora ele vai perfurar as águas de um país que passei a amar. Isso me deixa enojado.
- Então talvez você devesse agir.
- Como?
- Ajude-me a acabar com o acordo.
Orlov parou de girar os óculos e encarou Gabriel por um momento.
- Qual é seu interesse no assunto? - perguntou por fim.
- Estritamente pessoal.
- Por que alguém como você ligaria para o acesso de uma companhia de energia russa ao petróleo no mar do Norte?
- É um assunto complicado.
- Não esperaria menos de você.
Gabriel sorriu a contragosto. Então, disse em voz baixa:
- Acredito que o Kremlin tenha chantageado Jonathan Lancaster para obter os direitos de perfuração.
- Como?
Gabriel ficou em silêncio.
- Eu abri mão de uma companhia no valor de 16 bilhões de dólares para tirar você e sua mulher da Rússia - relembrou Orlov. - Acredito que isso me dê direito a uma
resposta. Como o chantagearam?
- Sequestrando a amante de Lancaster, que estava na Córsega.
Orlov nem piscou, então falou:
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
Eles conversaram até depois do anoitecer. No fim, Gabriel estava confiante de que entendera do que se tratava o jogo na encosta da montanha, mas a divisão dos jogadores
permanecia fora de sua compreensão. Tinha certeza de uma coisa, no entanto: era hora de dar uma palavrinha com Graham Seymour. Ligou de um telefone público da Sloane
Square e confessou ter entrado mais uma vez no país sem assinar o livro de hóspedes. Então, requisitou um encontro. Seymour disse uma hora e um lugar e desligou.
Gabriel colocou o telefone de volta no gancho e começou a andar, com Christopher Keller a 100 metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado.
38
HAMPSTEAD HEATH, LONDRES
Eles caminharam para a esquina do Hyde Park, embarcaram em um trem da linha Piccadilly com destino à Leicester Square e, então, fizeram a jornada longa e lenta na
Linha Norte até Hampstead. Keller entrou em um pequeno café na avenida principal e ficou esperando enquanto Gabriel caminhava sozinho pela South End Road. Ele adentrou
a charneca em Pryors Field, margeou os lagos de Hampstead e depois subiu a ladeira suave da Parliament Hill. Ao fundo, sob um véu de nuvens e neblina, brilhavam
as luzes do centro de Londres. Graham Seymour admirava a vista de um banco de madeira. Ele estava sozinho, sem contar os dois seguranças de capas de chuva parados
na trilha às suas costas, estáticos como peças de xadrez. Eles desviaram o olhar quando Gabriel passou sem uma palavra e sentou-se ao lado de Seymour. O homem do
MI5 não deu sinal de ter visto Allon chegar. Mais uma vez, estava fumando.
- Você devia parar com isso - disse Gabriel.
- E você devia ter me avisado que ia entrar no país de novo. Eu teria preparado um comitê de recepção.
- Eu não queria um comitê de recepção, Graham.
- Claro que não.
Seymour continuava a contemplar as luzes do centro londrino.
- Você chegou quando?
- Ontem à tarde.
- Por quê?
- Negócios em aberto.
- Por quê?
- Madeline - explicou Gabriel. - Eu vim por causa de Madeline.
Seymour voltou-se para ele pela primeira vez.
- Madeline está morta - disse ele lentamente.
- Sim, Graham, eu sei. Eu estava lá.
- Sinto muito - lamentou-se Seymour após um instante. - Eu não devia ter...
- Deixe isso para lá, Graham.
Os dois ficaram em silêncio. Estavam desconfortáveis por causa da natureza infeliz daquele caso, pensou Gabriel. Ambos haviam entrado no serviço de inteligência
para proteger o país e os cidadãos, e não políticos.
- Você deve ter descoberto algo importante - continuou Seymour. - Ou não teria me chamado.
- Você sempre foi bom, Graham.
- Não o bastante para impedi-lo de entrar em meu país quando bem entende.
Gabriel ficou calado.
- O que você descobriu?
- Acho que sei quem sequestrou Madeline Hart. Mais do que isso: acredito que saiba o porquê.
- Quem a sequestrou?
- KGB Óleo e Gás - respondeu Gabriel.
Seymour virou a cabeça bruscamente.
- Do que você está falando?
- O acordo da Volgatek, Graham. Madeline foi sequestrada para que os russos pudessem roubar o seu petróleo.
Não há pior sentimento para um espião profissional do que saber por intermédio do agente de outro serviço algo que ele mesmo já deveria saber. Seymour passou por
essa desonra com a maior elegância possível, de queixo empinado e cabeça erguida. Então, depois de calcular as consequências cuidadosamente, pediu uma explicação.
Gabriel começou contando tudo o que descobrira sobre Jeremy Fallon. Que ele havia se apaixonado por Madeline Hart. Que não era mais bem-vindo na Downing Street e
estava prestes a ser chutado de lá antes da eleição seguinte. Que aceitara um pagamento secreto de 5 milhões de euros de um tal Gennady Lazarev e depois usara seu
poder para forçar o acordo, passando por cima das objeções do secretário de Energia. Por fim, Gabriel falou da mulher russa que vira primeiro na igreja antiga do
Lubéron e, depois, em uma moradia popular abandonada em Basildon.
- Quem lhe falou sobre Jeremy Fallon e os 5 milhões? - perguntou Seymour.
- Eu gostaria de manter sigilo, se não se importa.
- É claro que sim... Mas quem é a fonte?
Gabriel respondeu com sinceridade. Seymour balançou a cabeça devagar.
- Viktor Orlov é biologicamente incapaz de dizer a verdade - retrucou. - Está sempre oferecendo supostas informações de inteligência sobre a Rússia ao MI6 e nenhuma
delas jamais se prova verdadeira.
- Se não fosse por Orlov, eu e Chiara não estaríamos vivos.
- Isso não significa que tudo o que ele diga seja verdade.
- Ele sabe mais do que qualquer pessoa no mundo sobre o lado B da indústria petroleira russa.
Seymour não pôde discordar.
- E você tem certeza quanto ao homem e à mulher que partiram no Mercedes? - perguntou ele. - Tem certeza que são os mesmos que o seguiram na galeria?
- Graham... - repreendeu Gabriel, desgastado.
- Todos nós cometemos erros.
- Alguns mais que outros.
Seymour atirou o cigarro para longe com raiva.
- Por que só estou ouvindo isso agora? Por que não me ligou na noite passada, quando os estava vigiando?
- E o que você teria feito? Alertado o chefe da seção de contrainteligência russa? Informado o seu diretor? - Gabriel ficou quieto por um momento. - Se eu o tivesse
procurado na noite passada, daria início a uma série de acontecimentos que levariam à destruição de Jonathan Lancaster e seu governo.
- E por que você me procurou agora?
Gabriel não respondeu. Seymour ia acender outro cigarro, mas se deteve.
- Bastante irônico, não?
- O quê?
- Eu peço para você encontrar Madeline Hart para proteger o primeiro-ministro de um escândalo. E agora você me traz informações que podem destruí-lo.
- Não era a minha intenção.
- Você não pode provar uma vírgula, sabia? Nem uma vírgula.
- Eu sei disso.
Seymour suspirou fundo.
- Eu sou o vice-diretor do Serviço de Segurança de Sua Majestade - disse ele, mais para si do que para Gabriel. - Vice-diretores do MI5 não derrubam governos britânicos.
Eles os protegem de inimigos internos e externos.
- E se o governo for sujo?
- Qual não é? - retrucou Seymour prontamente.
Gabriel não respondeu. Ele não estava no clima para um debate relativista sobre ética na política.
- E se eu o persuadisse a ir embora e esquecer o assunto? - perguntou Seymour. - O que você faria?
- Eu atenderia aos seus desejos e voltaria para Jerusalém.
- E faria o quê?
- Parece que Shamron tem planos para mim.
- Algo que você queira me contar?
- Ainda não.
Seymour claramente ficou intrigado, mas deixou passar o assunto por ora:
- E o que você acharia de mim?
- O que eu acho importa?
- Eu me importo - falou Seymour, sério.
Gabriel extravasou tudo o que estava pensando:
- Acho que você passaria o resto da vida pensando no que o SVR está fazendo com todo o dinheiro extraído do mar do Norte. E você acabaria se sentindo culpado por
não ter feito nada para impedir.
Seymour permaneceu em silêncio.
- Nós temos um ditado em nosso serviço, Graham. Para nós, uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Nós somos britânicos: não temos ditados e não gostamos de escândalos. Na verdade, vivemos com medo até do menor passo em falso.
- Para isso você tem a mim.
Seymour encarou Gabriel com seriedade por um instante.
- O que você está sugerindo exatamente?
- Deixe que eu vá à guerra contra a Volgatek em seu lugar. Eu acharei a prova de que eles roubaram seu petróleo.
- E depois?
- Eu o roubarei de volta.
Gabriel e Seymour passaram a meia hora seguinte considerando com cuidado os detalhes do que talvez fosse o acordo operacional menos ortodoxo já feito por dois serviços
ocasionalmente aliados. Mais tarde, ele ficaria conhecido como o acordo da Parliament Hill. Gabriel teria licença para operar em solo britânico como fosse necessário,
desde que sem violência e sem ameaçar a segurança nacional britânica, e se comprometia a repassar qualquer de inteligência decidiria sozinho como usá-la.
O pacto foi selado com um aperto de mãos e Graham partiu, seguido pelos guarda-costas.
Gabriel permaneceu na charneca por mais dez minutos antes de voltar para a avenida principal de Hampstead e buscar Keller. Juntos, pegaram o metrô para Kensington
e andaram até a embaixada israelense. No posto do Escritório, havia apenas um funcionário de baixo escalão, que se sobressaltou quando a lenda entrou pela porta
sem aviso prévio.
Gabriel deixou Keller na antessala e encaminhou-se para a câmara de comunicações seguras, que os veteranos do Escritório - como ele - chamavam de Santo dos Santos.
O número da casa de Shamron em Tiberíades ainda estava no diretório de contatos de emergência. Ele atendeu após o primeiro toque, como se estivesse esperando ao
lado do telefone. Embora a ligação fosse criptografada, os dois conversaram no conciso patoá do Escritório, uma língua que nenhum tradutor ou supercomputador jamais
poderia decifrar. Gabriel explicou rapidamente o que havia descoberto, o que planejava fazer em seguida e do que precisava para prosseguir. Prover os recursos para
uma operação como aquela não era responsabilidade de Shamron. Ele também não tinha autorização oficial para aprová-la. Apenas Uzi Navot poderia dar inicio a uma
empreitada desse tipo - e só após obter a bênção do próprio primeiro-ministro.
E assim estava sendo preparado o terreno para uma disputa que entraria para os anais como uma das piores já vistas na rica história do Escritório. Começou às 22hl8
no horário de Israel, quando Shamron ligou para a casa de Navot dizendo que Gabriel pretendia guerrear contra a KGB Óleo e Gás e que aprovava a operação. Navot deixou
claro que tal iniciativa não estava prevista. Não para um futuro próximo. Nem para nunca. Shamron desligou sem dizer mais nada e telefonou para o primeiro-ministro
israelense antes que Navot o fizesse.
- Por que entrar em guerra com o presidente russo? - perguntou o primeiro-ministro. - Afinal, é só petróleo.
- Não é só petróleo, pelo menos não para Gabriel. Além disso, você quer ou não quer que ele seja o próximo diretor do Escritório?
- Você sabe que sim, Ari.
- Então deixe-o acertar uma antiga conta com os russos, e você o terá.
- Quem vai falar com Uzi?
- Duvido que ele vá me atender.
E, assim, o primeiro-ministro israelense, agindo sob o comando de Ari Shamron, ligou para o diretor do serviço de inteligência no exterior e ordenou que ele aprovasse
uma operação da qual o subordinado não queria nem ouvir falar. Mais tarde, testemunhas afirmariam que houve bate-boca e, segundo boatos, Navot ameaçou renunciar
ao cargo. Mas eram apenas boatos mesmo, pois Navot amava ser diretor quase tanto quanto Shamron havia amado um dia.
Como prenúncio do que estava por vir, Navot se recusou a ligar para Gabriel a fim de conceder sua bênção, deixando essa tarefa para um modesto oficial administrativo.
Allon recebeu a autorização oficial de operação pouco depois da meia-noite, no horário de Londres, por um telefonema que durou menos de dez segundos. Depois de desligar,
ele saiu da embaixada com Keller e partiu pelas ruas londrinas vazias em direção ao Grand Hotel Berkshire.
- E quanto a mim? - perguntou Keller. - Devo ficar aqui ou embarcar no próximo voo para a Córsega?
- Você decide.
- Acho que vou ficar.
- Não vai se arrepender.
- Eu não falo hebraico.
- Isso é bom.
- Por quê?
- Porque poderemos tirar sarro de você e você jamais saberá.
- Como vocês vão me usar?
- Você fala francês como um nativo, tem diversos passaportes limpos e é muito bom com armas. Tenho certeza de que pensaremos em algo.
- Posso dar um conselho?
- Só um.
- Você vai precisar de um russo.
- Não se preocupe - disse Gabriel. - Eu já tenho um.
39
GRAYSWOOD, SURREY
A irregular casa tudoriana ficava a 1,5 quilômetro da antiga igreja de Grayswood, à beira do bosque de Knobby Copse. Um deque de madeira levava até ela e grossas
cercas vivas a protegiam das vistas. Havia um jardim denso onde se podia refletir profundamente, 8 acres privativos para enfrentar demônios internos, e um lago de
pesca onde não se pescava fazia anos. As percas que nadavam em suas águas escuras agora estavam do tamanho de tubarões. O Departamento de Acomodações - divisão do
Escritório que adquiria e fazia a manutenção de propriedades seguras - referia-se ao local como lago Ness.
Gabriel e Keller chegaram à casa no dia seguinte, pouco depois do meio-dia, num Land Rover 4x4 providenciado pelo Departamento de Transportes. Na parte de trás do
carro, havia duas caixas de aço inoxidável cheias de aparelhos de comunicação criptografada tirados da sala-cofre da embaixada, além de várias sacolas de compras.
Depois de encherem a despensa com os mantimentos, retiraram os panos dos móveis, sopraram as teias de aranhas dos cantos e vasculharam a casa de ponta a ponta em
busca de escutas. Então, foram para o jardim e pararam à beira do lago. Barbatanas sulcavam a superfície negra.
- Não era uma piada - disse Keller.
- Não.
- Do que elas se alimentam?
- Devoraram um dos meus melhores agentes da última vez que estivemos aqui.
- Aqui tem equipamento de pesca?
- No vestíbulo.
Keller entrou na casa e achou um par de varas encostado em um canto, perto de um remo velho e lascado. Enquanto procurava uma isca, ouviu um baque seco, como o de
um galho se quebrando. Ao sair, sentiu o cheiro inconfundível de pólvora no ar. Então, avistou Gabriel subindo o caminho do jardim com a Beretta numa das mãos e
um peixe de 60 centímetros na outra.
- Isso me parece muito pouco esportivo - repreendeu Keller.
- Não tenho tempo para esporte. Preciso descobrir uma forma de infiltrar um agente em uma empresa de petróleo russa. E alimentar muitas bocas.
No fim da tarde, enquanto as cercas vivas se fundiam à escuridão e a temperatura caía para um frio cortante, três carros chegaram à isolada casa tudoriana. Os veículos
eram todos de marcas e modelos diferentes, tão distintos quanto os nove agentes que deles saíram, cansados do longo dia de viagem clandestina. Nos corredores e salas
de reunião do King Saul Boulevard, eles eram conhecidos pelo codinome Barak - “relâmpago” em hebraico devido a sua capacidade de se reunir e atacar rapidamente.
Os americanos, com inveja da inigualável lista de realizações operacionais, chamavam-nos de “a equipe de Deus”.
Chiara entrou na casa primeiro, seguida por duas mulheres. Dina Sarid, pequena e de cabelos escuros, era a maior especialista em terrorismo do Escritório e tinha
uma mente analítica brilhante que a tornava útil em qualquer tipo de operação. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, alta e com cabelos cor de areia, Rimona Stern
havia começado sua carreira na inteligência militar, mas agora fazia parte da unidade do Escritório que cuidava exclusivamente do programa nuclear iraniano. Por
acaso, também era sobrinha de Shamron. Aliás, as memórias mais ternas que Gabriel tinha de Rimona eram de uma criança destemida desembestando em um patinete pela
ladeira íngreme da casa de seu famoso tio em Tiberíades.
Depois delas, veio uma dupla de agentes de campo versáteis chamados Oded e Mordecai, seguidos por Yaakov Rossman, uma figura rígida de cabelos pretos e rosto marcado
por cicatrizes, que havia se especializado em recrutar e manter espiões árabes. Também chegou Yossi Gavish, oficial sênior do Departamento de Pesquisas, a divisão
de análise do Escritório. Nascido em Londres e educado em Oxford, ainda falava hebraico com sotaque britânico.
Do último carro saíram dois homens - um de meia-idade e outro na flor da vida. O mais velho era ninguém menos do que Eli Lavon: o famoso arqueólogo caçador de bens
saqueados no Holocausto e de nazistas criminosos de guerra, além de um verdadeiro artista em termos de vigilância. Como de costume, vestia muitas camadas de roupas
que não combinavam. Tinha cabelos ralos que desafiavam qualquer tipo de penteado e olhos vigilantes como os de um terrier. Seus mocassins de camurça não fizeram
barulho algum quando ele cruzou o hall de entrada e mergulhou no caloroso abraço de Gabriel. Lavon fazia praticamente tudo em silêncio. Certa vez, Shamron dissera
que o lendário espião do Escritório era capaz de desaparecer enquanto dava um aperto de mão.
- Tem certeza de que quer fazer isso? - perguntou Gabriel.
- Eu não ficaria de fora por nada neste mundo. Além do mais, seu protagonista disse que não chegaria nem perto dos russos se eu não estivesse na cobertura.
Gabriel olhou para a figura alta parada logo atrás dos ombros miúdos de Lavon. Seu nome era Mikhail Abramov. Magro, de pele clara, rosto delicado e olhos glaciais,
ele fora da Rússia para Israel na adolescência e se juntara à Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais das Forças Armadas de Israel. Já descrito por Shamron
como um “Gabriel sem consciência”, havia assassinado muitos dos maiores cérebros terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Agora, executava missões similares
em nome do Escritório, embora seus incontáveis talentos não se restringissem a mexer com armas. Trabalhando com uma agente da CIA chamada Sarah Bancroft, Mikhail
se infiltrara no séquito de Ivan Kharkov, iniciando a longa e sangrenta guerra entre o Escritório e o exército privado de Ivan. Se Viktor Orlov não houvesse aberto
mão da Ruzoil para o Kremlin, Mikhail teria morrido na Rússia, ao lado de Gabriel e Chiara. Em sua face de porcelana, havia uma cicatriz profunda causada pelo punho
de marreta de Ivan.
- Você não precisa fazer isso - disse Gabriel, tocando a cicatriz. - Podemos achar outra pessoa.
- Que outra pessoa? - perguntou Mikhail, olhando em volta.
- Yossi, por exemplo.
- Yossi fala quatro línguas, mas não russo. Poderiam falar em cortar a garganta dele e Yossi acharia que estavam pedindo um frango à Kiev.
Os membros da fantástica equipe de Gabriel já haviam se hospedado naquela casa antes, então instalaram-se em seus antigos quartos sem muita discussão enquanto Chiara
ia para a cozinha preparar uma elaborada refeição para o reencontro. O prato principal era a enorme perca, assada em vinho branco e ervas. Gabriel acomodou Keller
à sua direita à mesa de jantar, um sinal deliberado de que, pelo menos por ora, o inglês deveria ser tratado como um membro da família. A princípio, os outros ficaram
desconfortáveis com sua presença, mas gradualmente se abriram. Na maior parte do jantar, falou-se inglês em respeito a ele. Mas, ao discutirem a última operação,
mudaram para o hebraico.
- Do que eles estão falando? - perguntou Keller discretamente a Gabriel.
- Sobre um novo programa de televisão em Israel.
- Você está me dizendo a verdade?
- Não.
O humor deles estava mais sombrio do que de costume, pois o espectro de Ivan Kharkov ainda os assombrava. Ninguém mencionou seu nome durante o jantar. Em vez disso,
referiam-se apenas à matsav, a situação. Yossi, profundamente erudito em estudos clássicos e história, servia de guia. Ele via um mundo girando descontroladamente.
As promessas da grande Primavera Árabe haviam sido expostas como mentiras, dizia ele, e em breve haveria uma escalada do islamismo radical, estendendo-se da África
Subsaariana até a Ásia Central. Os Estados Unidos estavam quebrados, cansados, e não tinham mais condições de liderar nada. Era possível que essa nova desordem mundial
turbulenta produzisse um eixo do século XXI que tivesse à frente China, Irã e, claro, Rússia. Sozinhos, rodeados por um mar de inimigos, estariam Israel e o Escritório.
Ao fim da explicação, todos tiraram os pratos e foram para a sala de estar, onde Gabriel enfim discorreu sobre o motivo para chamá-los à Inglaterra. Eles já sabiam
partes da história. Agora, em pé à frente deles, com a lareira a gás queimando atrás de si, Gabriel terminava de pintar o quadro com agilidade. Relatou tudo o que
havia acontecido, começando pela busca desesperada por Madeline Hart na França e terminando com o acordo na noite anterior em Hampstead Heath. Apenas um aspecto
do caso foi contado fora da ordem cronológica: o breve encontro com Madeline Hart nas horas que precederam sua morte. Ele prometera a Madeline que a traria de volta
para casa em segurança. Após o fracasso, pretendia manter sua palavra desfazendo o que havia sido uma operação russa do início ao fim. Para conseguir tal feito,
precisariam inserir Mikhail na KGB Óleo e Gás. Depois, achariam evidências de que Madeline Hart fora assassinada para que fosse concretizado o roubo do petróleo
do mar do Norte.
- Como? - perguntou Lavon, incrédulo, quando Gabriel terminou de falar. - Por Deus, como vamos colocar Mikhail numa companhia de petróleo pertencente ao Kremlin
e administrada pela inteligência russa?
- Nós daremos um jeito - afirmou Gabriel. - Nós sempre damos.
O trabalho começou de fato na manhã seguinte, quando a equipe de Gabriel passou a se embrenhar na Volgatek. No começo, o grosso do material vinha de fontes públicas,
como jornais de negócios, comunicados de imprensa e artigos acadêmicos escritos por pessoas especializadas na confusa indústria petroleira russa. Para complementar,
Gabriel pediu a ajuda da Unit 1400, a empresa israelense de interceptações eletrônicas. Como esperado, ela descobriu que as redes de computadores e comunicações
da Volgatek, baseadas em Moscou, eram protegidas por firewalls de alta qualidade - os mesmos usados pelo Kremlin, pelo Exército russo e pelo SVR. Mais tarde naquele
dia, no entanto, a Unit conseguiu invadir os computadores de uma sucursal em Gdansk, onde a companhia possuía uma importante refinaria, que produzia grande parte
da gasolina da Polônia. O material foi encaminhado diretamente para a casa segura em Surrey.
Mikhail e Lavon, os únicos membros que falavam russo, cuidaram da tradução. O primeiro descartou a informação como um tiro n'água, mas Lavon foi mais otimista. Ao
derrubar a porta de Gdansk, disse ele, aprenderiam muito sobre o modo como a Volgatek operava além das fronteiras da Mãe Rússia.
Por instinto, abordaram o alvo como se fosse uma organização terrorista. Dina lembrou a eles, desnecessariamente, que a prioridade ao confrontar um novo grupo ou
célula terrorista é identificar sua estrutura e os membros-chave. Era tentador focar nos que estavam no topo da cadeia alimentar, mas os gerentes intermediários,
mensageiros, hospedeiros e motoristas costumavam provar-se muito mais valiosos no fim. Eles eram desvalorizados, esquecidos, negligenciados. Carregavam mágoas, cultivavam
ressentimentos e, muitas vezes, gastavam mais do que recebiam. Dessa forma, era muito mais fácil recrutá-los do que os homens que voavam em jatinhos particulares,
tomavam champanhe aos baldes e tinham um harém de prostitutas russas a seu dispor aonde quer que fossem.
No topo da cadeia de organização estava Gennady Lazarev, o ex-cientista nuclear russo que traíra Viktor Orlov. O vice de confiança de Lazarev era Dmitry Bershov
e seu chefe de operações na Europa era Alexei Voronin. Ambos eram antigos agentes da KGB, embora Voronin fosse de longe o mais apresentável dos dois. Ele falava
várias línguas europeias fluentemente, inclusive o inglês, que havia aprendido quando trabalhava na rezidentura em Londres já no fim da Guerra Fria.
O resto da hierarquia da Volgatek mostrou-se difícil de discernir, com certeza não por acidente. Yaakov comparou o perfil da companhia ao do Escritório. O nome do
diretor era público, mas os nomes de seus principais assistentes e as tarefas que desempenhavam eram mantidos em segredo ou escondidos sob camadas de ilusão e falsas
informações. Felizmente, o tráfego de e-mails da sucursal de Gdansk permitia que se identificassem vários outros protagonistas da empresa, inclusive o chefe de segurança,
Pavel Zhirov. Seu nome não aparecia em nenhum documento da empresa e todas as tentativas de achar uma fotografia sua mostraram-se infrutíferas. Na cadeia de organização
da equipe, Zhirov era um homem sem rosto.
Conforme os dias foram se passando, ficou claro que a Volgatek era mais do que apenas petróleo. A companhia fazia parte de um estratagema maior do Kremlin para transformar
a Rússia em uma superpotência global de energia, uma espécie de Arábia Saudita euro-asiática, e ressuscitar o Império Russo das ruínas da União Soviética. A própria
Europa já dependia demais do gás natural da Rússia. A missão da empresa era estender o domínio russo para o mercado europeu de energia por meio da compra de refinarias
de petróleo. E agora, graças a Jeremy Fallon, tinha um posto no mar do Norte que renderia bilhões em lucros para o Kremlin. Sim, a Volgatek baseava-se na avareza
dos russos. Mas, acima de tudo, no seu revanchismo.
Como plantar um agente em uma organização como essa? Foi Lavon que achou uma solução possível e a explicou para Gabriel enquanto caminhavam pelo jardim. Depois de
adquirir a refinaria em Gdansk, disse ele, a Volgatek havia contratado um polonês para servir de diretor de fachada. Na prática, o polaco nada tinha a ver com o
cotidiano operacional: era meramente um enfeite, um buquê de flores designado para amenizar a mágoa dos poloneses ao verem o urso russo devorar um bem econômico
crucial. Além disso, explicou Lavon, a Polônia não era o único lugar onde a Volgatek havia contratado ajudantes locais. Ela agira assim também na Hungria, na Lituânia
e em Cuba. Nenhum desses gerentes se saiu melhor do que o de Gdansk; foram todos igualmente marginalizados, ignorados e jogados para escanteio.
- São como copinhos de café: usados e descartados - disse Lavon.
- Logo, não têm nenhum acesso ao tipo de informação protegida que estamos procurando.
- É verdade. Mas, se o habitante local contratado por acaso for russo ou de ascendência russa, o comando central da Volgatek talvez o trate com mais carinho, especialmente
se for o mais esperto do grupo. Eles se sentiriam tentados a lhe dar responsabilidades reais. Quem sabe? Poderiam até deixá-lo entrar no templo sagrado em Moscou.
- Genial, Eli.
- Sim, é. Mas há um problema sério.
- Qual?
- Como vamos chamar a atenção da Volgatek para ele?
- É fácil.
- Sério mesmo?
- Sim - disse Gabriel, sorrindo. - Sério mesmo.
Naquela noite, Gabriel não participou do jantar. Ele foi à Cheyne Walk, em Chelsea, onde jantou a sós com Viktor Orlov. Seu novo plano não encontrou resistência
da parte do russo; na verdade, ele até ofereceu várias sugestões importantes que o aprimoraram. Ao final da refeição, Gabriel lhe entregou um documento-padrão, entregue
a todos os indivíduos que não eram do Escritório e participavam de suas operações: impedia Orlov de revelar seu papel no caso e anulava a possibilidade de qualquer
recurso legal no caso de haver danos a ele ou a sua empresa. O russo se recusou a assinar. Gabriel não esperava nada menos do que isso.
Depois de deixar a mansão de Orlov, foi de carro até Hampstead e seguiu a pé para a Parliament Hill. Seymour estava esperando no banco, ladeado pelos dois seguranças,
que logo se afastaram, para não escutar a conversa. Gabriel falou da operação que estava prestes a ser executada e do que precisaria em termos de ajuda não oficial
dos britânicos. Seymour não pôde deixar de sorrir. Tratava-se de algo pouco ortodoxo, mas assim era a maioria das operações do Escritório, principalmente as concebidas
por Gabriel e sua equipe.
- Sabe, pode até ser que funcione - disse o homem do MI5.
- Vai funcionar, Graham. A questão é: você quer que eu vá em frente?
Seymour ficou em silêncio por um instante. Então, se levantou e deu as costas
para as luzes de Londres.
- Traga-me evidências de que os russos estavam por trás do sequestro e do assassinato de Madeline - disse calmamente - e eu me certificarei de que os miseráveis
jamais vejam uma gota do nosso petróleo.
- Deixe-me fazer isso por você, Graham. Para que você não...
- Isso é algo que só eu posso fazer. Além do mais, certa vez um homem muito sábio me disse que uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Digite meu nome no Google e depois diga se você me acha tão sábio assim.
Seymour sorriu.
- Você não está reconsiderando, está?
- De jeito nenhum.
- Bom garoto. Mas tenha uma coisa em mente.
- O quê?
- Pode ser fácil colocar Mikhail dentro da Volgatek, mas tirá-lo de lá... já é outra história.
Seymour voltou para o lado dos seguranças e sumiu na escuridão. Gabriel permaneceu no banco por mais cinco minutos. Em seguida, andou até seu carro e voltou para
a casa à beira do Knobby Copse.
40
GRAYSWOOD, SURREY
O aprendizado de Mikhail Abramov, futuro empregado da Volgatek, começou às nove da manhã do dia seguinte. Seu primeiro tutor foi ninguém menos do que Viktor Orlov.
Apesar das objeções de Gabriel, ele insistira em viajar até Surrey em sua limusine Mercedes Maybach, seguida por um Land Rover repleto de seguranças. O pequeno comboio
causou certa comoção em Grayswood e, por boa parte do dia, circularam boatos pelo vilarejo de que o ocupante do carro era o próprio primeiro-ministro. Mas Jonathan
Lancaster não estava nem perto de Surrey; naquela manhã, ele fazia campanha em Sheffield. As últimas pesquisas lhe davam uma boa dianteira sobre o candidato da oposição.
O analista político mais famoso da Grã-Bretanha agora previa uma vitória esmagadora de proporções históricas.
Orlov voltou à casa segura na manhã seguinte, e ainda na outra. Suas aulas refletiam sua personalidade singular: brilhante, arrogante, cheia de opiniões, condescendente.
Ele falava em inglês com Mikhail na maior parte do tempo, fazendo incursões ocasionais no russo que apenas Eli Lavon podia compreender. Às vezes, também misturava
as duas línguas em um dialeto bizarro que a equipe apelidou de “rusglês”. Incansável e irritante, era impossível não amá-lo. Orlov em ação era uma força a ser respeitada.
Ele começou suas aulas com uma lição de história: a vida sob o comunismo soviético, a queda de um império, a era sem lei dos oligarcas. Para surpresa de todos, Orlov
admitiu que ele e os outros barões ladrões da Rússia haviam semeado a própria destruição ao enriquecerem muito em muito pouco tempo. Dessa forma, eles tinham atraído
as circunstâncias que levaram à volta do autoritarismo. O atual presidente da Rússia era um homem sem ideologia ou crença que não o exercício do poder pelo poder.
- É um fascista em tudo menos no nome - disse Orlov. - E fui eu que o criei.
A etapa seguinte da instrução apressada de Mikhail começou no quarto dia, quando ele cursou o que Lavon descreveu como o programa de MBA mais curto da história.
Seu professor era de Tel Aviv, mas havia frequentado a Escola de Negócios Wharton e trabalhado por pouco tempo na ExxonMobil antes de retornar para Israel. Por sete
longos dias e noites, ensinou a Mikhail o básico de administração de negócios: contabilidade, estatística, marketing, finanças corporativas, gerenciamento de risco.
O russo aprendia rápido - algo nada surpreendente, já que seus pais haviam sido acadêmicos soviéticos proeminentes. Ao final do curso, o professor previu um futuro
brilhante para Mikhail, embora não fizesse ideia do que aquele futuro podia reservar. Ele assinou com prazer o termo de confidencialidade de Gabriel e embarcou em
um voo de volta para Israel.
Enquanto Mikhail debruçava-se sobre os estudos, o resto da equipe trabalhava com diligência na identidade que o disfarçaria em campo. Eles o construíram como um
escritor desenvolve um personagem: ascendência e educação, amores e desamores, triunfos e fracassos. Por muitos dias, não lhes ocorreu um nome, pois deveria caber
a um homem que tivesse um pé no Ocidente e outro firmemente enraizado no Leste da Europa. Foi Gabriel quem enfim escolheu o nome Nicholas Avedon, uma distorção inglesa
de Nicolai Avdonin. Com a bênção de Graham Seymour, forjaram um passaporte britânico bem viajado e escreveram um longo e detalhado currículo que combinasse.
Quando Mikhail concluiu o curso, eles o levaram a um tour pela vida que nunca vivera. Havia a casa em um subúrbio arborizado de Londres, na qual ele nunca pisara,
a faculdade de Oxford onde ele jamais abrira um livro, e os escritórios de uma firma de perfuração em Aberdeen pouco conhecida da qual ele jamais recebera qualquer
pagamento. Até o acompanharam num voo para que Mikhail pudesse se lembrar de como é andar pelas ruas de Cambridge em uma tarde fresca de outono, embora ele nunca
tivesse ido a Cambridge, nem no outono nem em nenhuma outra estação do ano.
Por fim, só faltava resolver a aparência de Mikhail. Ela deveria ser drasticamente alterada; do contrário, os amigos da Volgatek no SVR poderiam reconhecê-lo da
operação passada. Cirurgia plástica não era uma opção; o tempo de cicatrização era muito longo e Mikhail se recusava a deixar qualquer um tocar seu rosto com uma
faca. Foi Chiara que concebeu uma solução e a demonstrou para Gabriel em um dos computadores. Na tela estava a fotografia de Mikhail tirada para o passaporte britânico.
Ela apertou um único botão e a foto reapareceu com apenas uma mudança.
- Eu mesmo mal o reconheço - disse Gabriel.
- Mas será que de aceita fazer isso'?
- Eu deixarei claro que ele não tem escolha.
Naquela noite, na presença de toda a equipe, Mikhail raspou a cabeça. Yaakov, Oded e Mordecai fizeram o mesmo em um ato de solidariedade, mas Gabriel se recusou.
Seu compromisso com a coesão da unidade tinha limite. Na manhã seguinte, as mulheres levaram Mikhail às compras em Londres em uma excursão que deixou o departamento
de contabilidade do King Saul Boulevard de cabelos em pé.
Quando voltaram a Grayswood, encontraram Viktor Orlov, à espera de Mikhail, para fazer uma avaliação final. Ele passou com louvor. Para celebrar, o ex-oligarca abriu
várias garrafas de seu querido Château Pétrus. No momento em que ele erguia a taça em homenagem a seu aluno, ouviu-se o estampido seco de uma Beretta silenciada.
- O que foi isso? - perguntou Orlov.
- Acho que teremos peixe no jantar - disse Mikhail.
- Alguém deveria ter me avisado; eu teria trazido um bom Sancerre.
Pouco tempo depois de ter recebido o passaporte britânico, Orlov comprara as ações majoritárias de um jornal que estava prestes a falir, o venerável Financial Journal,
de Londres, para chamar a atenção do círculo de pessoas importantes da cidade. Alguns funcionários, incluindo a renomada repórter investigativa Zoe Reed, pediram
demissão em protesto, mas a maioria ficou, em parte por não ter aonde ir. Nos termos do acordo de propriedade, Orlov concordara em não ter nenhum tipo de influência
sobre a linha editorial do jornal. Ele conseguiu cumprir sua promessa de alguma forma, mesmo desejando usar o jornal como um cassetete para bater em seus inimigos
do Kremlin.
No entanto, isso não significava que fosse avesso a ligar para os editores e passar dicas de notícias, especialmente se diziam respeito a seu próprio negócio. Assim,
três dias mais tarde, uma pequena nota apareceu num canto de página falando sobre a nova contratação de um funcionário pela Viktor Orlov Investimentos Ltda. Orlov
veio a confirmá-la num comunicado à imprensa mais tarde naquela manhã, dizendo que um executivo de 35 anos chamado Nicholas Avedon estava prestes a assumir o comando
do portfólio de energia da VOI, bem como da mesa de operações de futuros de petróleo. Dentro de minutos, a internet fervilhava com boatos de que Orlov havia escolhido
seu sucessor e preparava-se para um afastamento gradual do cotidiano da empresa. À noite, os rumores eram tão intensos que ele se sentiu compelido a fazer uma rara
aparição na CNBC para negá-los. Sua atuação foi pouco convincente. Um articulista proeminente disse, inclusive, que ele tinha suscitado muito mais questões do que
respondido.
Ninguém nos círculos financeiros de Londres jamais saberia que os boatos da aposentadoria iminente de Orlov haviam sido plantados por uma equipe de homens e mulheres
que operavam de uma casa isolada em Surrey. Eles também nunca tomariam conhecimento de que os mesmos rumores tinham sidos injetados na corrente sanguínea da comunidade
de negócios de Moscou, ou que haviam alcançado o topo da Volgatek.
Gabriel e sua equipe estavam cientes disso, pois tinham lido um e-mail cáustico de Alexei Voronin, enviado para o responsável pela sucursal em Gdansk. Eli Lavon
apresentou a mensagem impressa a Gabriel durante o jantar e traduziu-a, inclusive os trechos que continham linguajar inapropriado. Gabriel reagiu abrindo uma garrafa
de Château Pétrus que sobrara e servindo uma taça para cada um da equipe. De modo geral, era um começo promissor. Mikhail agora figurava como o suposto herdeiro
de Orlov. E a KGB Óleo e Gás estava observando.
41
MAYFAIR, LONDRES
Os escritórios da VOI ocupavam quatro andares de um edifício de escritórios de luxo em Mayfair, não muito longe da embaixada americana. Quando Nicholas Avedon lá
chegou na manhã seguinte, logo cedo, todos os altos funcionários da empresa esperavam na sala de conferências principal para recebê-lo. Orlov fez alguns comentários
breves, seguidos por uma série de apresentações apressadas, todas desnecessárias, já que Mikhail havia memorizado os nomes e rostos de todos durante sua preparação
em Surrey.
Se esperavam que ele fosse entrar aos poucos no trabalho, estavam totalmente enganados. Uma hora após estabelecer-se em seu escritório com vista para a Hanover Square,
começou a revisar de cima a baixo os investimentos lucrativos da VOI na área de energia, muito embora já houvesse feito a mesma análise na casa segura, e suas “descobertas
inspiradas” houvessem sido escritas para ele por Viktor Orlov. O relatório foi um sinal para o resto dos funcionários de que Nicholas Avedon não estava ali para
brincadeiras. Ele havia sido trazido para a VOI com uma finalidade. E pobre do tolo que tentasse cruzar seu caminho.
Seus dias rapidamente entraram em uma rotina rígida. Ele chegava cedo à sua mesa, já tendo lido os jornais financeiros matutinos e checado os mercados asiáticos,
passava uma ou duas horas trabalhando em planilhas e gráficos antes de participar da reunião matinal com o alto escalão, que sempre ocorria no espaçoso escritório
de Orlov. Ele costumava se manter em silêncio em reuniões numerosas, mas quando decidia falar, seus comentários estabeleciam um novo padrão de brevidade. Na maior
parte dos dias, almoçava sozinho. Depois, voltava a trabalhar em sua mesa até as sete ou oito, quando retornava ao amplo apartamento em Maida Vale, alugado para
ele por Gabriel. O Departamento de Acomodações alugara um outro menor no prédio do outro lado da rua. Enquanto Mikhail estava em casa, um membro da equipe o vigiava.
Durante seu expediente, uma câmera de vídeo de alta resolução, de transmissão segura, mantinha-o sob vigilância.
Descobriram que a Volgatek também o observava. Gabriel e a equipe sabiam disso porque a Unit 1400 enfim conseguira penetrar na rede de computadores da empresa russa
e agora liam os e-mails dos altos executivos quase em tempo real. O nome de Nicholas Avedon aparecia com destaque em vários deles - inclusive em um enviado por Gennady
Lazarev a Pavel Zhirov, o chefe de segurança sem rosto da Volgatek, requisitando-lhe que checasse o histórico do novo funcionário da VOI. Avedon era agora uma luz
piscante no radar da petroleira. Era hora, disse Gabriel, de fazê-la piscar um pouco mais forte.
Na manhã seguinte, Nicholas apresentou as descobertas de sua análise a Orlov e toda a equipe da VOI. O ex-oligarca declarou-as brilhantes, o que não era surpresa,
já que ele mesmo as concebera. Nos dias seguintes, Orlov fez uma série de jogadas financeiras ousadas, todas planejadas muito tempo antes, que alteraram radicalmente
a posição da VOI no setor global de energia. Em meio a um turbilhão de entrevistas, usava a expressão “energia para o século XXII e além” e, quando possível, creditava
o arquiteto do plano: Nicholas Avedon.
Os investidores de Londres gostavam do jovem protegido de Orlov. E, ao que parecia, a KGB Óleo e Gás também.
Eles haviam demonstrado a competência de Nicholas Avedon. Agora era o momento de revelar quanto Viktor Orlov se tornara dependente dele. Analistas de investimentos
e gerentes intermediários existiam aos montes, disse Gabriel.
Gennady Lazarev teria uma única razão para ir atrás de Avedon: acabar com seu antigo mentor e sócio.
E assim começou o que a equipe chamava de “As Peripécias de Viktor e Nicholas”.
Pelas duas semanas seguintes, os dois se tornaram inseparáveis. Almoçavam e jantavam juntos, e toda vez que Viktor aparecia publicamente, Nicholas estava ao seu
lado. Ele foi visto diversas vezes saindo da mansão de Orlov na Cheyne Walk tarde da noite e passou um fim de semana descansando na extensa propriedade do patrão
em Berkshire, um privilégio que não era dado a nenhum outro empregado.
À medida que a relação dos dois se estreitava, o clima de tensão começou a crescer nos escritórios da VOI em Mayfair. Os outros chefes de departamento não gostavam
do fato de Avedon estar presente em reuniões que costumavam ser conduzidas a sós com Orlov - nem de ele ser frequentemente visto cochichando conselhos no ouvido
do dono da empresa. Alguns funcionários declararam guerra a ele, mas a maioria entrou no jogo. Avedon era assediado com convites para drinques e jantares depois
do trabalho e recusava todos. Viktor, dizia ele, exigia toda a sua atenção.
Em seguida, os dois estenderam as Peripécias a um tour pelo continente. Houve o fórum de negócios em Paris, onde eles foram encantadores. E a reunião de banqueiros
suíços em Genebra, onde não erraram nem uma vírgula. E a reunião bastante tensa em Madri com o CEO de uma empresa de oleodutos pertencente a Orlov que recebera o
prazo de seis meses para apresentar lucros sob a ameaça de ficar desempregado - assim como o resto da Espanha.
Por fim, foram a Budapeste, a uma reunião de dirigentes políticos e empresariais dos ditos mercados emergentes do Leste Europeu. A gigante russa de gás, Gazprom,
mandou um representante para apaziguar os presentes, assegurando que não havia motivos para se temer uma dependência excessiva da energia russa, pois o Kremlin jamais
sonharia em fechar a torneira para impor sua vontade sobre as terras perdidas do antigo império. Naquela noite, em um coquetel de recepção às margens do Danúbio,
o homem da Gazprom apresentou-se a Nicholas Avedon e se surpreendeu ao descobrir que ele falava russo com fluência. O executivo da Gazprom ficara claramente impressionado
com o que ouvira, pois, poucos minutos depois do encontro, chegou um e-mail à caixa de entrada de Gennady Lazarev. Gabriel e sua equipe leram-no antes mesmo que
o russo pudesse ter a chance de abri-lo. Parecia que Mikhail havia entrado no jogo.
- Contratem Avedon - ordenou o homem da Gazprom. - Se não quiserem, nós o contrataremos.
Mas como aproximar os dois lados o bastante para que a relação fosse consumada? Como não tinha o costume de ficar de braços cruzados, Gabriel queria forçar os acontecimentos
colocando Mikhail e Lazarev em uma situação de proximidade física, em um lugar onde pudessem ter privacidade para conversar. A oportunidade se apresentou quando
a Unit 1400 interceptou um e-mail enviado ao diretor da Volgatek por sua secretária. O assunto era o itinerário de Lazarev por conta do Fórum Mundial de Energia,
a reunião bienal da Associação Internacional dos Produtores de Petróleo e Gás. Ao lê-lo, Gabriel sorriu. As Peripécias chegariam a Copenhague. E o Escritório iria
junto.
42
COPENHAGUE
Cinco dias de ansiedade depois, os senhores do petróleo dos quatro cantos do mundo começaram a chegar a Copenhague: havia árabes sauditas e dos emirados, azerbaidjanos
e cazaques, brasileiros e venezuelanos, americanos e canadenses. Os ativistas contra o aquecimento global estavam previsivelmente chocados com o encontro, e um grupo
alegava, de forma histérica, que o carbono emitido pela própria conferência acabaria submergindo uma aldeia em Bangladesh. Os emissários não pareciam notar. Eles
chegaram a Copenhague a bordo de jatinhos particulares e suas limusines blindadas rugiam pelas ruas pitorescas da cidade. Talvez um dia o petróleo acabasse e o planeta
ficasse quente demais para abrigar vidas humanas. Mas, pelo menos por enquanto, os extratores de combustíveis fósseis ainda reinavam soberanos.
A competição pelos serviços de Copenhague era intensa. Era impossível reservar mesas para jantares e o Hotel d’Angleterre - um prédio branco monumental como um transatlântico
de luxo com vista para a ampla Praça Nova do Rei - estava completamente lotado. Orlov e Mikhail chegaram à sua graciosa entrada em meio a uma forte nevasca e foram
acompanhados por um gerente a duas suítes vizinhas em um dos andares superiores. A de Mikhail continha uma bandeja de guloseimas dinamarquesas e um Dom Pérignon
num balde de gelo. Da última vez que ficara em um hotel a serviço do Escritório, ele havia usado uma garrafa de champanhe para machucar o próprio joelho, em nome
de um disfarce. Já nessa nova operação, certamente seu papel exigia que tomasse uma ou duas taças.
No momento em que estava tirando a rolha, ouviu uma discreta batida à porta - algo curioso, pois Mikhail tinha pendurado o aviso de NÃO PERTURBE antes de dar uma
generosa gorjeta para o carregador. Abriu a porta devagar e, por cima da trava de segurança, viu um homem de porte médio parado no corredor. Ele vestia um casaco
de lã de colarinho alemão, de comprimento mediano, e um chapéu tirolês de feltro. Seu cabelo era grisalho e brilhante, e viam-se olhos castanhos por trás dos óculos.
Com a mão direita, segurava uma valise de couro flexível, arranhado e desgastado.
- Como posso ajudá-lo? - perguntou Mikhail.
- Abrindo a porta - respondeu Gabriel com suavidade.
Mikhail tirou a trava de segurança e deu passagem para Gabriel, fechando a porta imediatamente em seguida. Ao se virar, viu-o andando lentamente pelo quarto com
seu BlackBerry no braço direito esticado.
Depois de um instante, Gabriel meneou a cabeça para indicar que não havia escutas no cômodo. Mikhail foi até o balde de champanhe e se serviu uma taça de Dom Pérignon.
- Quer? - perguntou ele, apontando para Gabriel com a garrafa.
- Não, me dá dor de cabeça.
- Também me dá.
Mikhail sentou no sofá e apoiou os pés sobre a mesinha de centro - um verdadeiro executivo cansado de um longo dia de viagem e reuniões. Gabriel contemplou o quarto
suntuoso e balançou a cabeça.
- Fico feliz que Viktor esteja pagando por este lugar. Uzi já está pegando no meu pé por causa dos gastos.
- Diga a Uzi que eu preciso ser mantido no nível a que fiquei acostumado.
- Bom saber que o sucesso não lhe subiu à cabeça.
Mikhail bebeu um pouco de champanhe, mas não respondeu.
- Você precisa raspar.
- Já raspei hoje de manhã - replicou Mikhail, esfregando o queixo.
- Não aí.
Mikhail passou a mão pela cabeça brilhante.
- Sabe, estou me habituando, pensando em adotar esse estilo quando a operação acabar.
- Você está parecendo um alienígena, Mikhail.
- Melhor um alienígena do que um personagem de A noviça rebelde.
Mikhail pegou um pequeno sanduíche de camarão da bandeja e devorou-o de uma só vez.
- Desde quando você come frutos do mar?
- Desde que me tornei um inglês de ascendência russa que trabalha para uma companhia de investimentos pertencente ao oligarca Viktor Orlov.
- Com um pouco de sorte, é apenas um passo em direção a coisas melhores e maiores.
- Inshallah - disse Mikhail, elevando a taça num brinde jocoso. - Meus futuros empregadores já chegaram?
Gabriel examinou o interior da maleta e retirou uma pasta de papel manilha. Dentro, havia três fotografias impressas coloridas, que ele organizou na mesinha de centro
na ordem em que foram tiradas. Retratavam três homens descendo as escadas de um jatinho particular e entrando em uma limusine. Tinham sido tiradas de uma distância
considerável por uma câmera com lente objetiva. A neve borrava a imagem.
- Quem tirou essas fotos? - perguntou Mikhail.
- Yossi.
- Como ele conseguiu entrar na pista?
- Ele tem uma credencial de imprensa para o fórum - respondeu Gabriel -, assim como Rimona.
- Para quem estão trabalhando?
- Para um jornal industrial chamado Energy Times.
- Não conheço.
- É novo.
Sorrindo, Mikhail pegou a primeira fotografia, que mostrava as três pessoas descendo a escada do avião em fila indiana. À frente, nada parecido com o matemático
livresco que já havia sido, estava Gennady Lazarev. Um passo atrás, vinha Dmitry Bershov, o vice-diretor executivo da Volgatek, e em seguida um homem baixo e atarracado,
com o rosto escondido pela aba de um chapéu fedora.
- Quem é ele? - perguntou Mikhail.
- Ainda não conseguimos descobrir.
Mikhail pegou a segunda fotografia, depois a terceira. Em nenhuma delas podia-se ver o rosto do homem.
- Ele é muito bom, não é?
- Então você também reparou - comentou Gabriel.
- Difícil não reparar. Ele sabia onde estavam as câmeras e fez questão de não ser visualizado em nenhuma imagem. - Mikhail deixou as fotos na mesinha de centro.
- Por que você acha que ele fez isso?
- Pelo mesmo motivo que eu e você o fazemos.
- Ele trabalha para o Escritório?
- Ele é um profissional, Mikhail. De verdade. Talvez seja um agente aposentado do SVR e aja assim por costume. Mas me parece que está em serviço.
- Onde ele está agora?
- No Hotel Imperial, com os outros dois. Gennady está bastante desapontado com suas acomodações.
- Como você sabe?
- Mordecai e Oded visitaram o quarto uma hora antes do avião da Volgatek aterrissar e deixaram um presentinho sob a mesa de cabeceira.
- Como vocês sabiam qual era o quarto de Lazarev?
- A Unit invadiu o sistema de reservas do Imperial.
- E a porta?
- Mordecai tem uma nova chave-cartão mágica. A porta praticamente abriu por conta própria. - Gabriel guardou as fotografias na pasta, que por sua vez foi colocada
dentro da maleta. - Fique sabendo que Gennady tem falado sobre mais coisas além da qualidade do quarto. Ele está claramente ansioso para conhecer você.
- Alguma ideia de quando ele vai agir?
- Não - disse Gabriel, balançando a cabeça. - Mas espere sutileza.
- Eu o deveria conhecer?
- Só de nome, não de rosto.
- E se ele me abordar?
- Eu sempre acho melhor dar uma de difícil.
- E olha só aonde isso o levou.
Mikhail se serviu mais um pouco de champanhe, mas não disse mais nada.
- Tem algo que queira me dizer? - perguntou Gabriel.
- Acho que lhe devo congratulações.
- Pelo quê?
- Ora, vamos, Gabriel. Não me faça dizer em voz alta.
- Dizer o quê?
- As pessoas falam, Gabriel, principalmente espiões. E o que se anda dizendo no King Saul Boulevard é que você será o próximo diretor.
- Eu ainda não aceitei.
- Não é o que ouvi. Disseram que é um acordo selado.
- Não é.
- Como queira, chefe.
Gabriel suspirou fundo.
- Quanto Uzi sabe?
- No momento em que assumiu o cargo, Uzi soube que era a segunda opção de todos.
- Eu não planejei isso.
- Eu sei. E suspeito que Uzi também saiba. Mas isso não vai facilitar as coisas quando o primeiro-ministro disser que ele não terá um segundo mandato.
Mikhail ergueu a taça contra a luz e observou as bolhas do champanhe subirem até a superfície.
- No que você está pensando? - indagou Gabriel.
- Em quando estávamos em Zurique, naquele pequeno café perto da Parade-platz. Nós estávamos tentando tirar Chiara de Ivan. Você se lembra desse lugar? Você se lembra
do que me disse naquela tarde?
- Acredito que eu tenha lhe dito para casar com Sarah Bancroft e deixar o Escritório.
- Você tem uma boa memória.
- Aonde você quer chegar?
- Estava apenas imaginando se você ainda acha que eu deveria deixar o Escritório.
Gabriel hesitou antes de responder:
- Eu não faria isso se fosse você.
- Por que não?
- Porque, se eu me tornar diretor, você tem um futuro brilhante à frente, Mikhail. Muito brilhante.
Mikhail passou a mão pela cabeça.
- Preciso raspar.
- Precisa, mesmo.
- Tem certeza de que não vai beber um pouco de champanhe?
- Me dá dor de cabeça.
- Também me dá - repetiu Mikhail, servindo-se.
Antes de sair da suíte, Gabriel instalou um software do Escritório no celular de Mikhail, que o transformava em um transmissor contínuo e encaminhava todas as chamadas,
e-mails e mensagens em tempo real para os computadores da equipe. Então, desceu para o saguão e ficou alguns minutos buscando rostos familiares na multidão de bem
lubrificados homens do petróleo.
Do lado de fora, a tempestade vespertina havia cessado, mas alguns flocos grandes caíam preguiçosamente sob as luzes dos postes. Gabriel se dirigiu para o oeste
da cidade por uma sinuosa rua de lojas conhecida como Stroget até alcançar a Rádhuspladsen. Os sinos da torre do relógio soavam seis horas. Ele se sentiu tentado
a aparecer no Hotel Imperial, situado a pouca distância da praça, à beira dos Jardins de Tivoli. Em vez disso, caminhou até um prédio residencial despretensioso
situado em uma rua de nome pronunciável apenas pelos dinamarqueses. Quando entrou no pequeno apartamento no segundo andar, encontrou Keller e Lavon debruçados sobre
um notebook. De seus alto-falantes vinha o som de três homens falando baixo em russo.
- Você já descobriu quem é aquele homem? - perguntou Gabriel.
Lavon balançou a cabeça.
- É curioso, mas esses rapazes da Volgatek não são muito de falar nomes.
- Não diga.
Lavon estava prestes a responder, mas se deteve ao som de uma das vozes, um murmúrio baixo, como se a pessoa estivesse parada diante de uma cova.
- Esse é o nosso cara - informou Lavon. - Ele sempre fala assim. Como se presumisse que alguém está ouvindo.
- E alguém está ouvindo.
Lavon sorriu.
- Mandei uma amostra da voz dele para o King Saul Boulevard e lhes pedi que a passassem pelos bancos de dados.
- E...?
- Nenhuma correspondência.
- Mande a amostra para Adrian Carter, em Langley.
- E se Carter pedir uma explicação?
- Minta.
Nesse momento, os três executivos russos do petróleo explodiram em uma ruidosa gargalhada. Enquanto Lavon se inclinava para escutar, Gabriel foi lentamente até a
janela e examinou a rua. Estava vazia, exceto por uma jovem que caminhava pela calçada nevada. Tinha a pele de alabastro de Madeline, as maçãs do rosto de Madeline.
A semelhança era tal que, por um momento, Gabriel sentiu-se compelido a correr até ela. Os russos ainda riam. Certamente, pensou, riam-se dele. Respirou fundo para
acalmar o coração retumbante e observou o espectro de Madeline passar abaixo. Então, a escuridão a reivindicou para si e a mulher sumiu.
43
COPENHAGUE
O fórum se deu no Bella Center, um horrendo centro de convenções de vidro e metal que parecia uma gigantesca estufa vinda do espaço sideral. Um grupo de repórteres
estava parado do lado de fora, tremendo, atrás de uma faixa amarela. A maioria dos executivos que chegava tinha o bom senso de ignorar as provocações gritadas por
eles, mas não Orlov. Ele parou para responder a uma pergunta sobre o repentino aumento no preço do petróleo ao redor do mundo, do qual havia extraído lucros tremendos,
e logo se viu discorrendo sobre assuntos que iam das eleições britânicas até a repressão de movimentos pró-democracia executada pelo Kremlin.
Gabriel e a equipe ouviam cada palavra, pois Mikhail estava parado ao lado de Orlov, à vista das câmeras, segurando o celular. Inclusive, foi Mikhail quem deu um
fim à coletiva de imprensa improvisada, segurando na manga do casaco de Orlov e puxando-o em direção à porta aberta do centro de convenções. Mais tarde, uma repórter
britânica comentaria o fato dizendo que era a primeira vez que ela via qualquer pessoa - “Qualquer pessoa!” - ousar tocar um dedo que fosse em Viktor Orlov.
Uma vez do lado de dentro, o ex-oligarca agiu como um furacão. Ele foi a todos os debates da manhã, visitou todos os estandes no andar de exposições e apertou cada
mão estendida, até de homens que o odiavam.
- Este é Nicholas Avedon - dizia em alto e bom som. - Nicholas é meu braço direito e meu braço esquerdo. É meu norte.
O almoço foi “social” - assim Orlov chamou a refeição sem lugares marcados - e não havia álcool nem carne de porco, em respeito aos muitos delegados muçulmanos.
Orlov e Mikhail passaram pelo bufê sem comer nada e prosseguiram para o primeiro debate da tarde, uma discussão sombria sobre as lições aprendidas com o desastroso
derramamento de óleo no golfo do México. Gennady Lazarev também estava presente, duas fileiras atrás do ombro direito de Orlov.
- Ele está rondando - Orlov murmurou para Mikhail - como um assassino. É só uma questão de tempo até que saque a arma.
O comentário foi perfeitamente audível no pequeno apartamento da rua de nome impronunciável, e o sentimento expresso era compartilhado por Gabriel e o resto da equipe.
Na verdade, graças à câmera pendurada no pescoço de Yossi, eles tinham as fotografias para comprovar. Durante a manhã, Lazarev manteve uma distância segura. Mas
agora, à medida que a tarde avançava, ele se aproximava cada vez mais do alvo.
- É como um jato em circuito de espera - comentou Lavon. - Ele está só esperando a torre dar a autorização para o pouso.
- Não sei se as condições climáticas irão permitir - respondeu Gabriel.
- Quando você acha que vai haver uma brecha?
- Aqui - respondeu Gabriel, apontando para o último item do cronograma do primeiro dia. - É aqui que o pegaremos.
Isso significava que Gabriel e a equipe seriam forçados a aguentar mais duas horas do que Christopher Keller havia descrito como “blá-blá-blá de petróleo”. Houve
um discurso profundamente tedioso de um ministro do governo indiano sobre as necessidades futuras de energia do segundo país mais populoso do mundo. Depois, veio
uma fala repreensiva do novo presidente francês sobre taxação, lucro e responsabilidade social. Por fim, ocorreu um debate extremamente sincero sobre os perigos
ambientais da técnica de extração conhecida como fraturamento hidráulico. Não era de se admirar que Gennady Lazarev não estivesse presente. Via de regra, as companhias
de petróleo russas viam o meio ambiente como algo a ser explorado, não protegido.
Ao término, os delegados enfileiraram-se nas escadas rolantes para a galeria superior do centro, onde haveria um coquetel de recepção. Lazarev tinha chegado cedo
e falava com dois executivos do petróleo iranianos. Orlov e Mikhail pegaram uma taça de champanhe cada e se misturaram a um grupo de brasileiros animados. Orlov
estava de costas para Lazarev, que, no entanto, encontrava-se no campo de visão de Mikhail e o viu se separar dos iranianos e começar a andar lentamente até o outro
lado da sala.
- Agora pode ser uma boa hora para dar uma volta, Viktor.
- Até onde?
- Até a Finlândia.
Orlov, um hábil ator de coquetel, tirou o telefone do bolso do paletó e levou-o ao ouvido. Franziu a testa, como se não estivesse escutando direito, e se afastou
apressado, em busca de um lugar silencioso.
Na ausência de Orlov, Mikhail começou uma séria discussão com um dos brasileiros sobre oportunidades de investimento na América Latina. Mas, dois minutos depois,
percebeu que um homem estava parado às suas costas. Sabia disso porque o cheiro forte da colônia dele havia tomado conta do ambiente. Também sabia porque podia ver
o brasileiro desviando o olhar a todo momento.
Ao se virar, deparou com o rosto que tinha adornado a parede da casa segura em Grayswood. Seu treinamento e sua experiência lhe permitiram reagir com um olhar vazio
e nada mais.
- Perdoe-me pela interrupção - disse o homem em inglês com sotaque russo mas gostaria de me apresentar antes que Viktor volte. Meu nome é Gennady Lazarev. Eu sou
da Volgatek Óleo e Gás.
- Eu sou Nicholas - falou Mikhail, apertando a mão estendida. - Nicholas Avedon.
- Eu sei quem você é - afirmou Lazarev com um sorriso. - Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.
A conversa que se seguiu durou um minuto e 27 segundos. A qualidade da captação de áudio era bastante cristalina, sem levar em conta o rumorejo de fundo do coquetel
e um som de bate-estaca que a equipe mais tarde identificou como o coração de Mikhail. O próprio coração de Gabriel batia em ritmo parecido enquanto ele escutava
a gravação cinco vezes do início ao fim. Agora, ao apertar PLAY para ouvi-la de novo, parecia que sua pulsação havia sumido.
“Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.” “Verdade? Por quê?”
“Porque nós temos observado algumas ações que você vem tomando com o portfólio de Viktor e estamos muito impressionados.”
“Nós, quem?”
“A Volgatek, é claro. De quem eu poderia estar falando?”
“O ambiente de negócios da Rússia é bem diferente do ocidental. Pronomes podem ser enganosos.”
“Você é bastante diplomático.”
“Tenho que ser: trabalho para Viktor Orlov.”
“Às vezes parece que é Viktor quem trabalha para você.”
“As aparências enganam, Sr. Lazarev.”
“Então os rumores não são verdadeiros?”
“Que rumores?”
“De que você tomou conta das operações cotidianas de Viktor? De que Viktor não é mais do que um nome e uma gravata extravagante?”
“Viktor ainda é o mestre estrategista. Eu sou apenas quem aperta os botões e aciona as alavancas.”
“Você é bastante leal, Nicholas.”
“Até o fim.”
"Aprecio isso nas pessoas. Eu sou leal também.”
“Só que não a Viktor.”
“Você e Viktor claramente já falaram sobre mim.”
“Apenas uma vez.”
"Imagino que ele não tivesse nada de bom a dizer a meu respeito.”
“Ele disse que você é muito inteligente.”
“Foi um elogio?”
“Não.”
“Viktor e eu tivemos nossas diferenças, não posso negar. Mas isso é passado. Sempre respeitei a opinião dele, especialmente no que diz respeito a pessoas. Ele sempre
foi um bom caçador de talentos. Foi por isso que eu quis conhecer você. Tenho uma ideia que gostaria de discutir.”
“Eu direi a Viktor que você deseja falar com ele.”
“Não é uma ideia para Viktor Orlov. É uma ideia para Nicholas Avedon.”
“Eu sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, Sr. Lazarev. Quando o dinheiro de Viktor está envolvido, não existe Nicholas Avedon.”
“Isso não tem nada a ver com o dinheiro de Viktor. É sobre o seu futuro. Gostaria de alguns minutos do seu tempo antes que você deixe Copenhague.” “Temo que minha
agenda esteja um pesadelo.”
“Tome meu cartão, Nicholas. Meu celular pessoal está escrito no verso. Prometo que farei seu tempo valer a pena. Não me decepcione. Não gosto de ser desapontado.”
Gabriel apertou o ícone de STOP e olhou para Lavon, que disse:
- Parece que você o pegou.
- Talvez. Ou Gennady é que nos pegou.
- Um encontro não vai doer.
- Pode doer. Na verdade, pode doer bastante.
Gabriel voltou ao início do áudio e apertou PLAY mais uma vez. “Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você”
Ele apertou STOP.
- Figura de linguagem - comentou Lavon. - Nada mais do que isso.
- Você tem certeza disso, Eli? Cem por cento de certeza?
- Tenho certeza de que o sol vai nascer amanhã de manhã e que se porá à noite. E estou razoavelmente confiante de que Mikhail sobreviverá a um drinque com Gennady
Lazarev.
- A menos que Gennady sirva ponche de polônio.
Gabriel segurou o mouse, mas Lavon deteve sua mão.
- Viemos a Copenhague para realizar esse encontro. Chegou a hora.
Gabriel pegou o telefone e discou o número do celular de Mikhail. Ele pôde
ouvir pelos alto-falantes do notebook, assim como o som da voz do russo ao atender.
- Amanhã à noite - avisou Gabriel. - Controle o local o máximo possível. Sem surpresas.
Gabriel desligou e escutou Mikhail telefonar para Lazarev, que atendeu prontamente.
- Fico muito feliz que tenha ligado.
- Como posso ajudá-lo, Sr. Lazarev?
- Jantando comigo amanhã à noite.
- Tenho um compromisso com Viktor.
- Invente uma desculpa.
- Onde?
- Acharei algum lugar fora da rota.
- Não pode ser muito fora da rota, Sr. Lazarev. Não posso ficar longe por mais de uma hora.
- Que tal às sete?
- Sete está bom.
- Mandarei um carro buscá-lo.
- Estou no Hotel d'Angleterre.
- Sim, eu sei - disse Lazarev antes de desligar.
Gabriel mudou a fonte de áudio do celular de Mikhail para o transmissor no quarto de Lazarev, no Imperial.
Os três russos riam descontroladamente. Com certeza, pensou Gabriel, riam dele.
44
COPENHAGUE
O segundo dia do fórum foi uma reprise desgastada do primeiro. Mikhail permaneceu lealmente ao lado de Orlov durante todo o tempo, com o sorriso exagerado de um
homem que está prestes a cometer adultério. No coquetel, mais uma vez agarrou-se à calorosa recepção dos brasileiros. Eles pareceram bem desapontados com sua recusa
para juntar-se a eles e farrear pelas boates mais animadas de Copenhague. Ao se despedir, tirou Viktor das garras do ministro do petróleo cazaque e o conduziu para
a limusine alugada. Esperou até que estivessem a poucos quarteirões do D'Angleterre para dizer que não tinha ânimo para jantar. Falou num tom de voz alto o bastante
para que fosse ouvido por qualquer transmissor dos russos que pudesse estar por perto.
- Qual é o nome dela? - perguntou Orlov, que já sabia dos planos de Mikhail para aquela noite.
- Não é isso, Viktor.
- É o quê, então?
- Estou com uma dor de cabeça avassaladora.
- Espero que não seja nada sério.
- Tenho certeza de que é apenas um tumor cerebral.
Já no quarto, Mikhail fez algumas ligações para Londres, apenas para manter o disfarce e mandou um e-mail malicioso para sua secretária, pretendendo mostrar aos
ciberdetetives do Centro Moscovita que também era humano. Então, tomou banho e escolheu as roupas para a noite, algo que se provou mais desafiador do que imaginava.
Como alguém se veste para trair o falso empregador ao encontrar-se com executivos de uma companhia de petróleo pertencente e gerida pela inteligência russa? Escolheu
um terno simples, cinza soviético, e uma camisa branca com abotoaduras francesas. Dispensou a gravata por medo de parecer demasiado afoito. Além do mais, se a intenção
deles fosse matá-lo, não queria usar uma peça que pudesse se tornar uma arma.
Instruído por Gabriel, deixou todas as luzes do quarto acesas e pendurou o sinal de NÃO PERTURBE na maçaneta antes de ir para o elevador. O saguão era um mar de
delegados. Ao se dirigir à porta, viu Yossi, o repórter recém-contratado pelo inexistente Energy Times, entrevistando um dos executivos iranianos. Do lado de fora,
uma neve granulada caía feito tempestade de areia na Praça Nova do Rei. Um sedã Mercedes Classe E esperava encostado no meio-fio. Ao lado da porta traseira aberta
estava um russo de 2,5 metros que tinha cara de Igor.
- Aonde vamos?- perguntou Mikhail, conforme o carro arrancava em uma guinada.
- Jantar - grunhiu Igor, o motorista.
- Ah - disse Mikhail em voz baixa -, bom saber.
O motorista russo não ouviu o comentário de Mikhail, mas Gabriel, sim. Ele estava ao volante de um sedã Audi, parado em uma rua secundária próxima à entrada do hotel.
Keller se achava ao seu lado, com um tablet apoiado nos joelhos. Na tela havia um mapa de Copenhague, e a posição de Mikhail era representada por uma luz azul piscante,
que, naquele momento, afastava-se rapidamente da Praça Nova do Rei em direção a uma região da cidade pouco conhecida por seus restaurantes. Gabriel deu partida na
ignição sem pressa. Olhou para a luz azul e a seguiu com cautela.
Logo ficou claro que Mikhail e Lazarev não jantariam em Copenhague naquela noite. Isso porque, poucos minutos após deixar o hotel, o grande Mercedes preto se encaminhou
para fora da cidade a uma velocidade que sugeria que Igor estava acostumado a dirigir na neve. Gabriel não precisava acompanhar o ritmo alucinado do carro, pois
a luz azul no tablet de Keller dizia tudo o que ele precisava saber.
Depois de passar por todos os distritos do sul de Copenhague, a luz entrou na via expressa E20 e seguiu para o sul, rumo à região da Dinamarca conhecida como Zelândia.
Quando a rodovia voltou-se para o interior, em direção à antiga cidade mercante de Ringsted, a luz afastou-se dela e foi para a orla marítima. Gabriel e Keller fizeram
o mesmo e se viram em uma pequena estrada de duas pistas, ladeada pelas águas negras da baía de Koge à esquerda e pelos campos nevados à direita. Seguiram na via
por vários quilômetros até depararem com uma série de casinhas de veraneio agrupadas ao longo de uma praia pedregosa assolada pelo vento, onde a luz enfim parou
de se mover.
Gabriel parou no acostamento e aumentou o volume do seu fone. Ouviu a porta do carro se abrindo, passos sobre paralelepípedos cobertos de neve e o ribombar de bate-estaca
do coração nervoso de Mikhail.
O chalé estava entre os melhores do local. Tinha uma entrada de carros em forma de U, uma cobertura de telhas vermelhas para automóveis e um jardim com terraço emoldurado
por sebes podadas e pequenas e robustas muretas de tijolos. Doze degraus levavam a uma varanda com uma balaustrada branca; duas árvores em vasos postavam-se como
sentinelas em cada lado da porta de vidro. Enquanto Mikhail se aproximava, a porta se abriu e Lazarev saiu à varanda para cumprimentá-lo. Vestia um pulôver de gola
alta e um cardigã grosso de estilo nórdico.
- Nicholas! - bradou, como a um parente surdo. - Entre antes que morra de frio. Desculpe-me por arrastá-lo até aqui, mas nunca me senti confortável fazendo negócios
sérios em restaurantes e hotéis.
Ele ofereceu a mão a Mikhail e puxou-o para dentro, como se resgatasse um homem que se afogava. Depois de fechar depressa a porta, pegou o casaco de Mikhail e passou
um momento admirando cuidadosamente o prêmio que havia conquistado. Apesar do poder e da riqueza, Lazarev ainda parecia um cientista do governo. De óculos arredondados
e testa franzida, tinha o ar de um homem que estava eternamente num embate para resolver uma equação.
- Foi difícil escapar de Viktor?
- Nem um pouco - respondeu Mikhail. - Na verdade, acho que ele até ficou feliz de se livrar de mim por algumas horas.
- Vocês parecem se dar muito bem.
- E nós nos damos.
- Mas, ainda assim, você veio - observou Lazarev.
- Senti que devia.
- Por quê?
- Porque, quando um homem como Gennady Lazarev solicita um encontro, é uma boa ideia aceitar.
As palavras de Mikhail obviamente agradavam a Lazarev. Ficou claro que o russo não era imune a bajulação.
- E você não disse a ele aonde ia?
- Claro que não.
- Muito bem. - Lazarev apertou o ombro de Mikhail com a mão delicada. - Venha tomar um drinque. Conhecer o resto do pessoal.
Lazarev acompanhou Mikhail até uma grande sala com janelas para o mar. Dois homens aguardavam em meio ao tipo de silêncio desconfortável que se segue a uma briga.
Um deles servia um drinque no carrinho de bebidas; o outro se aquecia em frente à lareira. O primeiro tinha uma barba espessa por fazer e o cabelo escuro e ralo
penteado bem para trás. Mikhail não pôde ver muito do homem à lareira, pois ele estava virado de costas para a sala.
- Este é Dmitry Bershov - disse Lazarev, apontando para o homem junto ao carrinho. - Tenho certeza de que já ouviu falar dele. Dmitry é meu número dois.
- Sim, é claro - falou Mikhail, apertando a mão do vice. - Prazer em conhecê-lo.
- Igualmente - entoou Bershov.
- E aquele homem ali - continuou Lazarev, indicando a figura à lareira - é Pavel Zhirov. Ele lida com a segurança corporativa e com qualquer outro trabalho sujo
que for necessário. Não é mesmo, Pavel?
O homem se voltou devagar até encarar diretamente Mikhail. Vestia um suéter preto de lã e calças cinza-carvão. Com um cabelo louro grisalho e curto, tinha um rosto
angular dominado por uma boca pequena de aspecto cruel. No mesmo instante, Mikhail percebeu que já tinha visto aquele rosto em uma fotografia de um almoço realizado
na Córsega poucas horas antes do desaparecimento de Madeline. Agora o rosto se aproximava em meio à luz do fogo, esboçando algo parecido com um sorriso.
- Nós nos conhecemos? - perguntou Zhirov, apertando a mão de Mikhail.
- Acredito que não.
- Você me é familiar.
- Ouço isso com frequência.
O sorriso se esvaiu, os olhos se estreitaram.
- Você trouxe um telefone?
- Eu tomo banho com ele.
- Você se importaria em desligá-lo, por favor?
- É mesmo necessário?
- Sim. E tire a bateria também. Todo cuidado é pouco nos dias de hoje.
Trinta segundos depois, a luz azul no tablet havia se apagado. Gabriel removeu o fone de ouvido e franziu a testa.
- O que aconteceu? - perguntou Keller.
- Mikhail foi para o lado escuro da Lua.
- O que isso significa?
Gabriel explicou. Então, tirou o celular do bolso do casaco e ligou para Lavon no apartamento seguro. Eles conversaram por poucos segundos em um hebraico conciso
e operacional.
- O que está acontecendo? - perguntou Keller depois que Gabriel encerrou a ligação.
- Dois capangas do SVR da rezidentura de Copenhague estão vasculhando o quarto de Mikhail no D'Angleterre.
- E isso é bom?
- Isso é muito bom.
- Tem certeza?
- Não.
Gabriel guardou o celular e olhou pela janela, para as ondas impulsionadas pelo vento que banhavam a praia congelada. A espera, pensou. Sempre a espera.
CONTINUA
28
PAS-DE-CALAIS, FRANÇA
Três quilômetros eram sete voltas e meia em um circuito oval. Um corredor de alta performance poderia percorrer a distância em menos de oito minutos; um atleta em
forma que corresse regularmente, por volta de doze. Mas, para um homem de meia-idade de calça jeans e tênis que já havia sido baleado no peito duas vezes, quinze
minutos eram um desafio mais do que justo. Isso se a distância fosse mesmo de 3 quilômetros, pensou. Se fosse algumas centenas de metros mais longa, o prazo poderia
estar além de sua capacidade física.
Felizmente, a estrada era plana. Como Gabriel ia em direção ao mar, havia até certos pontos de leve declive, embora o vento soprasse forte e constante contra seu
rosto. Impulsionado pela adrenalina e pela raiva, disparou num ritmo frenético, mas, depois de aproximadamente 100 metros, estabeleceu-se no que presumia ser a velocidade
necessária para percorrer 1,5 quilômetro em sete minutos. Ele agarrava o telefone com a mão direita, enquanto mantinha a esquerda solta e relaxada. A princípio,
sua respiração era ritmada, mas logo se tornou entrecortada e ele passou a sentir um gosto de ferrugem no fundo da garganta. Aquilo era culpa de Shamron, pensou,
ressentido, marchando sobre o asfalto, sob a chuva que lhe pinicava o rosto. Shamron e seus malditos cigarros.
Depois do prédio comercial, não havia absolutamente nada - nem chalés, nem postes, apenas campos negros, cercas vivas e a linha branca tracejada no limite da estrada
que guiava Gabriel no escuro, mantendo seu progresso ritmado e constante. As lacunas tinham o mesmo comprimento que os traços: duas passadas por traço, duas passadas
por lacuna. Quinze minutos para percorrer 3 quilômetros.
“Senão o quê?”
“Você está perdendo tempo.”
Depois de cinco minutos, sentia as panturrilhas duras como granito e suava sob o peso da jaqueta de couro. Tentou despir-se dela enquanto corria, mas não conseguiu,
então parou por tempo suficiente para tirá-la e arremessá-la numa plantação. Ao retomar a corrida, viu uma fraca aura amarela no horizonte. Então, os dois faróis
de um veículo emergiram no topo de uma pequena subida e vieram em sua direção em alta velocidade. Era uma pequena van cinza-claro bem desgastada. Quando passou por
ele num borrão, Gabriel reparou que o motorista e o carona usavam balaclavas. Os coletores vindo retirar o dinheiro. Ele não se deu o trabalho de se virar: estava
ocupado tentando ignorar a queimação nas panturrilhas e as agulhadas da chuva no rosto. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna. Quinze minutos para percorrer
3 quilômetros.
Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade...
Gabriel completou a pequena subida e imediatamente avistou uma corrente de luzes cintilando ao longe. Eram de Audresselles, pensou, a pequena comuna costeira bem
ao sul do farol do Cap Gris Nez. Ele checou o tempo no celular: oito minutos transcorridos, restando sete. Suas passadas começavam a vacilar e a nuca estava dormente.
Lamentou não cuidar melhor do corpo. Seus pensamentos agora se concentravam principalmente em Viena. Em um carro estacionado à beira de uma praça nevada. Em um motor
que não dava a partida por causa de uma bomba drenando energia da bateria.
Ele olhou para o telefone: nove minutos transcorridos, restando seis. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna.
Gabriel levou o celular à boca.
- Vocês pegaram o dinheiro?
A voz respondeu poucos segundos depois:
- Pegamos. Muito obrigado.
Aguda, sem vida, com a entonação errada. Ainda assim, Gabriel jurava ter detectado um tom de alegria.
- Vocês têm que me dar mais tempo! - gritou ele.
- Isso não é possível.
- Eu não vou conseguir.
- Você tem que se esforçar mais.
Voltou a fitar o celular: dez minutos transcorridos, restando cinco.
Três passadas por traço, três passadas por lacuna.
- Estou indo buscá-la, Leah! - berrou para o vento. - Não gire a chave de novo! Não gire a chave!
- Gabriel passou em disparada por uma vasta mansão, nova mas construída de forma a parecer antiga, e sentiu imediatamente a proximidade do mar. A estrada descia
rumo a ele, e seu cheiro trouxe a Gabriel um gosto de peixe e sal. Uma placa materializou-se no escuro, indicando o acesso à praia 200 metros adiante. Então, Gabriel
viu o Citroen, num estacionamento pequeno e arenoso, virado de frente para ele com os faróis acesos, dando a impressão de observá-lo correr como um louco em sua
direção. Gabriel olhou para o relógio: treze minutos transcorridos, restando dois. Conseguiria com folga. Ainda assim, forçou-se a correr até o fim, marchando sobre
o asfalto, agitando os braços, até achar que o coração iria explodir.
Ansiando por oxigênio, seu cérebro começou a lhe pregar peças. Em um momento, via um Citroen estacionado na praia; no próximo, um Mercedes sedã azul-escuro em uma
praça nevada em Viena. Jurou ter ouvido um motor que não queria dar a partida e, mais tarde, lembrou-se de gritar algo incoerente antes de ser cegado pelo clarão
de uma explosão. A onda de impacto o atingiu com a força de um carro veloz e o derrubou no chão.
Ele ficou deitado no asfalto frio por vários minutos, respirando com sofreguidão, perguntando-se se aquilo teria acontecido de verdade ou se era apenas um sonho.
Parte 2
O ESPIÃO
29
AUDRESSELLES, PAS-DE-CALAIS
Era cedo e o local era remoto, portanto a repercussão foi lenta. Muito mais tarde, uma comissão de inquérito viria a repreender o chefe da gendarmaria local e emitir
uma série de recomendações pomposas que foram completamente ignoradas, pois, na pequena e pitoresca vila de pescadores de Audresselles, recriminações estavam longe
de figurar entre as preocupações das pessoas. Passados muitos meses, os habitantes chocados da comunidade ainda falavam daquela manhã no mais sombrio dos tons.
Uma octogenária, cuja família havia morado na comuna sob a autoridade de um rei inglês, descrevia o incidente como a pior coisa que ela já tinha visto desde que
os nazistas hastearam uma bandeira com suástica sobre o Hôtel de Ville. Ninguém se opunha à sua afirmação, embora alguns poucos a achassem hiperbólica, afirmando
que a comuna já passara por coisas piores. Mas, quando questionados, ninguém era capaz de dar um exemplo.
Audresselles mede apenas 2 mil acres e o impacto da explosão chacoalhou janelas por toda parte. Muitos habitantes, alarmados, ligaram imediatamente para os gendarmes,
mas passaram-se vinte longos minutos até que a primeira viatura chegasse ao pequeno estacionamento adjacente à praia. Lá, descobriram um Citroen C4 engolfado por
um fogo tão quente que não era possível aproximar-se mais do que 30 metros. Apenas dez minutos depois, chegaram os bombeiros. Quando eles conseguiram apagar as chamas,
o carro havia sido reduzido a pouco mais do que uma carcaça enegrecida.
Por razões que jamais ficaram claras, um dos bombeiros resolveu forçar a abertura do porta-malas. Logo que conseguiu, caiu de joelhos e vomitou. O primeiro gendarme
a olhar o conteúdo não se saiu melhor. Mas o segundo, um veterano com vinte anos de serviço, foi capaz de manter a compostura ao confirmar que aquilo eram os restos
de um ser humano. Então, ele acionou pelo rádio a delegacia da região de Pas-de-Calais e comunicou que a explosão do carro na praia era agora um caso de assassinato
- um tanto quanto grotesco, diga-se de passagem.
Ao amanhecer, mais de dez detetives e profissionais forenses trabalhavam na cena do crime, observados pelo que parecia ser metade da cidade. Apenas um morador de
Audresselles tinha algo de útil a relatar: Léon Banville, dono de uma mansão recentemente construída no limite da cidade. Por acaso, ele estava acordado às 5h09,
quando um homem em roupas comuns passou correndo por sua anela gritando em uma língua desconhecida. A polícia logo realizou uma busca na estrada e encontrou uma
jaqueta de couro que parecia servir a um homem de estatura e porte médios. Nada mais de interesse foi encontrado - nem a chave que o homem atirou no campo de cereal,
nem o Volkswagen que ela acionava. O carro desapareceu sem pistas junto com os 10 milhões de euros escondidos em seu porta-malas.
O calor intenso do fogo danificou significativamente os restos mortais na traseira do Citroen, mas não os destruiu por completo. Dessa forma, investigadores forenses
puderam determinar que a vítima era uma jovem mulher, entre 25 e 35 anos, medindo por volta de 1,70 metro. A descrição batia vagamente com a de Madeline Hart, a
garota inglesa que havia desaparecido na Córsega no fim de agosto.
De forma discreta, a polícia francesa restabeleceu contato com seus companheiros do outro lado do canal da Mancha e, dentro de 48 horas, possuía uma amostra de DNA
retirada do apartamento da Srta. Hart em Londres. Um rápido teste de comparação deu resultado positivo. O ministro do Interior da França logo avisou sua contraparte
britânica, para então levar a público a descoberta em uma coletiva de imprensa em Paris, convocada às pressas. Madeline Hart estava morta. Mas quem a assassinara?
E por quê?
O funeral foi realizado na Igreja de St. Andrew, em Basildon, muito próxima à pequena moradia popular onde ela havia crescido. O primeiro-ministro, Jonathan Lancaster,
não compareceu - segundo o assessor de imprensa, Simon Hewitt, sua agenda não o permitira. Quase todos os integrantes do alto escalão do partido estavam presentes,
bem como Jeremy Fallon, que chorava abertamente à beira da cova, inspirando um repórter a observar que, talvez, o chefe de gabinete tivesse um coração, afinal. Ele
falou bem rápido com a mãe e o irmão de Madeline, que pareciam curiosamente deslocados em meio ao bem-vestido grupo de londrinos.
- Sinto muito - disse ele aos dois. - Sinto muito mesmo.
A equipe política do Partido voltou a notar um aumento no percentual de aprovação de Lancaster, mas dessa vez teve a decência de não evocar o nome de Madeline. Com
a popularidade mais em alta do que nunca, o primeiro-ministro anunciou um programa arrebatador para aumentar a eficiência do governo e partiu em uma visita de grande
visibilidade a Moscou, onde prometeu uma nova era nas relações russo-britânicas, especialmente nas áreas de contraterrorismo, finanças e energia. Um punhado de comentaristas
conservadores fez algumas críticas brandas a Lancaster porque ele não se encontrara com os líderes do movimento pró-democracia da Rússia. Porém, a maior parte da
imprensa inglesa aplaudiu sua reserva, escrevendo que, com a economia doméstica ainda frágil, a última coisa de que a Grã-Bretanha precisava era outra Guerra Fria.
Ao retornar a Londres, Lancaster foi questionado a todo momento acerca de suas intenções de convocar uma eleição. Durante dez dias, ele enrolou a imprensa, enquanto
Simon Hewitt orquestrava vazamentos constantes, que deixavam clara a iminência de um anúncio. Dessa forma, quando o primeiro-ministro enfim levantou-se na Câmara
para declarar sua intenção de concorrer a outro mandato, houve um anticlímax. As notícias mais surpreendentes diziam respeito ao futuro de Jeremy Fallon, que planejava
abandonar o alto posto no escritório de Lancaster para tentar um posto seguro no Parlamento.
Houve muitos boatos - nenhum confirmado - de que Fallon seria apontado como ministro do Tesouro, caso Lancaster ganhasse, mas ele negou categoricamente, chegando
a alegar que não tivera nenhuma discussão significativa acerca de seu futuro. Nenhum membro do corpo de imprensa de Whitehall acreditou.
Em novembro, a campanha começou de fato e Madeline Hart mais uma vez se desvaneceu na consciência popular. Isso provou ser uma bênção para a polícia francesa, pois
lhe permitiu conduzir a investigação sem a imprensa britânica espiando por cima de seus ombros. Um dos desdobramentos mais promissores foi a descoberta de quatro
cadáveres em uma casa de veraneio isolada no Lubéron. Os corpos eram de membros conhecidos de uma violenta gangue de Marselha. Três haviam sido mortos com tiros
aparentemente profissionais na cabeça; a quarta, uma mulher, fora atingida duas vezes na parte de cima do tronco.
O mais importante, no entanto, foi a descoberta de uma cela no andar de baixo da casa. Para a polícia, estava claro que Madeline havia sido mantida ali depois do
sequestro na Córsega, provavelmente por um longo período. Ela até poderia ter sido vítima de escravidão sexual, mas tratava-se de uma hipótese improvável, dada a
estirpe das quatro pessoas que tinham estado na casa com ela: criminosos profissionais interessados apenas em dinheiro. Tudo isso levou a polícia a concluir que
a garota inglesa fora mantida como refém em um esquema de sequestro por recompensa, que por algum motivo não fora comunicado às autoridades em nenhum momento.
Mas por que sequestrar uma jovem de uma família da classe operária, criada em uma moradia popular em Essex? E quem havia assassinado os quatro criminosos de Marselha
na casa de veraneio no Lubéron? Essas eram apenas duas questões que os policiais franceses não conseguiam responder, mesmo um mês após a terrível morte de Madeline
na praia de Audresselles. Eles também não tinham nenhuma pista sobre a identidade do homem que fora visto correndo diante da casa de monsieur Banville de madrugada,
minutos antes da explosão do carro.
No entanto, um detetive veterano que resolvera muitos casos de sequestro tinha uma teoria.
- O pobre-diabo era o pagador - disse a seus colegas, confiante. - Ele cometeu algum erro e a garota morreu por seus pecados.
Mas onde ele se encontrava agora? Presumiram que estivesse se escondendo em algum lugar, lambendo suas feridas e tentando entender o que dera errado. Embora jamais
viesse a saber, a polícia francesa estava totalmente certa.
Mas havia muitas outras coisas a respeito daquele homem que ela nem poderia imaginar, nem em seus sonhos mais loucos. Nunca saberia, por exemplo, que ele era Gabriel
Allon, o lendário espião e assassino israelense que vinha operando impune em solo francês desde os 22 anos. Ou que o homem que o resgatara depois da explosão da
bomba era ninguém menos do que Christopher Keller, sobre quem a polícia escutava rumores havia anos. Ou que os dois, antes arquirrivais, dirigiram-se a uma casa
de veraneio à beira-mar, perto de Cherbourg, onde uma equipe de quatro agentes israelenses esperavam, a postos. Keller ficou apenas poucas horas na casa antes de
retornar à Córsega, mas Chiara permaneceu lá por uma semana, esperando que os pequenos cortes no rosto de Gabriel cicatrizassem. Na manhã do funeral de Madeline
Hart, eles foram de carro até o Aeroporto Charles de Gaulle e embarcaram em um voo da El Al rumo a Tel Aviv. Ao cair da noite, estavam mais uma vez no apartamento
na rua Narkiss.
Durante a ausência de Gabriel, Chiara havia levado o quadro e seus materiais para o quarto que deveria ser seu estúdio. Mas, na manhã seguinte, assim que ela saiu
para trabalhar no museu, ele trouxe tudo de volta para a sala de estar. Gabriel postou-se na frente da tela durante três dias, quase sem descanso, desde o amanhecer
até o fim da tarde, quando Chiara voltava para casa. Tentou evitar as memórias do pesadelo na França, mas o objeto da pintura, uma linda jovem banhando-se num jardim,
não o permitia. Madeline estava sempre em seus pensamentos, especialmente no quarto dia, quando ele começou a trabalhar nos ferimentos nas mãos de Suzana. Ali, via
evidências claras das pinceladas luminosas de Bassano. Gabriel as imitara tão imaculadamente que era quase impossível distinguir o original do restauro. De fato,
em sua humilde opinião, ele tinha até mesmo superado o mestre em alguns pontos. Queria poder ser creditado pela alta qualidade do trabalho, mas não seria justo:
era Madeline quem o inspirava.
Gabriel se forçava a fazer uma pausa para o almoço no começo de cada tarde, mas acabava inevitavelmente comendo na frente do computador, vasculhando a internet em
busca de notícias sobre a investigação da morte de Madeline. Sabia que as matérias estavam longe de serem completas, mas parecia que a polícia não tinha conhecimento
de sua participação no caso. Na imprensa britânica, também não achou nenhum indício de que Lancaster estivesse ligado de qualquer forma ao desaparecimento e à morte
de Madeline. Aparentemente, o primeiro-ministro e Jeremy Fallon haviam conseguido o impossível - e agora, segundo as pesquisas, encaminhavam-se para uma vitória
esmagadora. Claro que nenhum dos dois tentou contatar Gabriel. Até Graham Seymour aguardou três longas semanas antes de ligar. Pelo barulho ao fundo, Gabriel imaginou
que ele estivesse usando um telefone público na estação de Paddington.
- Nosso amigo em comum envia seus cumprimentos - disse Seymour, cauteloso. - Ele gostaria de saber se você precisa de algo.
- De uma jaqueta de couro nova - respondeu Gabriel, fingindo estar de melhor humor.
- De que tamanho?
- Médio, com um compartimento secreto para passaportes falsos e uma arma.
- Você pretende me contar como escapou sem ser preso?
- Algum dia, Graham.
Seymour ficou em silêncio enquanto o alto-falante anunciava um trem para Oxford.
- Ele está grato - comentou, afinal, referindo-se a Lancaster de novo. - Sabe que você fez o que pôde.
- Não foi o bastante para salvá-la.
- Você já considerou a possibilidade de eles nunca terem planejado libertá-la?
- Sim, mas, sinceramente, não consigo entender o porquê.
- Você deseja que eu fale algo mais para ele?
- Você pode lembrá-lo de que os sequestradores têm uma cópia do vídeo em que ela confessa o caso.
- Sem a garota, não há história.
Se a intenção do telefonema de Seymour era animar Gabriel, ele tinha falhado miseravelmente. Inclusive, nos dias seguintes, o humor de Allon foi ficando ainda mais
soturno. Pesadelos perturbavam-lhe o sono. Sonhos em que ele corria em direção a um carro que se afastava a cada passada. Sonhos de sangue e fogo. No seu subconsciente,
Madeline e Leah tornaram-se indistinguíveis: duas mulheres, uma que havia amado e outra que havia jurado proteger, ambas consumidas pelo fogo. Ele estava arrasado
pelo luto. Acima de tudo, no entanto, acometia-lhe um sentimento opressor de fracasso. Prometera a Madeline que iria resgatá-la com vida. E ela tinha sofrido uma
morte terrível, amarrada e amordaçada dentro de um caixão flamejante. Gabriel podia apenas esperar que, na hora, ela estivesse sedada e tivesse sido poupada da dor
e do horror.
Mas por que a haviam assassinado? Será que ele tinha cometido algum erro na extração, que teria custado a vida de Madeline? Ou, desde o princípio, a intenção era
matá-la na frente de Gabriel, para que não tivesse nenhuma escolha senão assisti-la queimar? Essa foi uma questão colocada por Chiara uma noite, quando caminhavam
pela rua Ben Yehuda. Gabriel lhe contou sobre a signadora, que vira um inimigo de longa data ao perscrutar sua poção mágica de azeite e água. Não era um inimigo
de Keller, mas de Gabriel.
- Eu nunca soube que você tinha inimigos no submundo do crime de Marselha.
- Não tenho mesmo. Pelo menos não que eu saiba. Mas talvez eles estivessem agindo a mando de alguém quando sequestraram Madeline.
- E quem é esse alguém?
- Alguém que desejava me punir por algo que fiz no passado. Alguém que queria me humilhar.
- A signadora disse mais alguma coisa?
- “Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.”
Poucos minutos após as nove, voltaram para a rua Narkiss, mas Gabriel resolveu ficar um tempo trabalhando na pintura. Colocou um CD de La Bohème no aparelho manchado
de tinta, baixou o volume até apenas um sussurro e seguiu na restauração com uma clareza de propósitos que não tinha conseguido experimentar desde sua volta a Jerusalém.
Ele não ouviu a ópera acabar nem reparou que o céu começava a clarear atrás de si. Por fim, na alvorada, descansou o pincel e ficou imóvel diante da tela, com a
mão no queixo e a cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- Terminou? - perguntou Chiara, observando-o com atenção.
- Não - respondeu Gabriel, ainda encarando a pintura. - Está apenas começando.
30
TIBERÍADES, ISRAEL
Era noite de sabá. Shamron os convidara para jantar em sua casa em Tiberíades. Na verdade, não era um convite, que poderia ser polidamente recusado, mas uma ordem
gravada em pedra, inviolável. Gabriel passou a manhã tomando as providências para enviar a pintura a Julian Isherwood em Londres. Depois, cruzou Jerusalém para buscar
Chiara no Museu de Israel. Enquanto percorriam em alta velocidade o Bab al-Wad - uma espécie de desfiladeiro escalonado que liga Jerusalém à Planície Costeira -,
militantes palestinos na Faixa de Gaza dispararam uma barragem de foguetes que atingiu Ashdod, no norte. O ataque causou apenas pequenos danos, mas complicou o tráfego
na estreita faixa central do país no momento em que milhares de trabalhadores corriam para casa para celebrar o sabá. Era bom estar em casa de novo, pensou Gabriel,
e aguardou uma hora para que os carros andassem.
Quando enfim alcançaram a Planície Costeira, seguiram ao norte para a Galileia, e depois ao leste por uma fieira de aldeias e vilarejos árabes, até chegar a Tiberíades.
A casa cor de mel de Shamron ficava a alguns quilômetros da cidade, num precipício com vista para o lago. Para alcançá-la, era necessário subir por uma estrada bastante
íngreme. Quando Gabriel e Chiara chegaram, foram recebidos por Gilah. Shamron estava em pé na frente da televisão, ao telefone. Seus óculos feios de metal estavam
apoiados na testa e ele pressionava a ponte do nariz com o polegar e o indicador. Se um dia lhe erigissem uma estátua, pensou Gabriel, ela seria esculpida nessa
pose.
- Com quem ele está falando? - perguntou Gabriel a Gilah.
- Com quem você acha?
- Com o primeiro-ministro?
Gilah assentiu.
- Ari acha que devemos retaliar. O primeiro-ministro não está tão certo disso.
Gabriel entregou uma garrafa de vinho a Gilah, um Bordeaux tinto das colinas da Judeia, e beijou-a na bochecha. Era macia como veludo e tinha aroma de lilases.
- Diga a Ari para sair do telefone, Gabriel. Ele vai escutá-lo.
- Prefiro ser atingido diretamente por um daqueles foguetes palestinos.
Gilah sorriu e os conduziu para a cozinha. Perfiladas no balcão, viam-se travessas com alimentos de aspecto delicioso; ela devia ter ficado o dia todo cozinhando.
Gabriel tentou roubar um pedaço da famosa berinjela marroquina de Gilah, mas ela lhe deu um tapa na mão, de brincadeira.
- Quantas pessoas você planeja alimentar?
- Yonatan e sua família deveriam vir, mas ele não consegue sair por causa do atentado.
Yonatan era o filho mais velho de Shamron. Era general das Forças Armadas de Israel e havia boatos de que estava na disputa para se tornar chefe do Estado-Maior.
- Comeremos dentro de poucos minutos - avisou Gilah. - Vá sentar-se um pouco com Ari. Ele sentiu muito a sua falta enquanto você esteve fora.
- Eu estive fora só por duas semanas, Gilah.
- A esta altura da vida, duas semanas são muito tempo para ele.
Gabriel abriu o vinho, serviu duas taças e levou-a para o outro cômodo.
Shamron já não estava mais falando ao telefone, porém ainda olhava fixamente para a televisão.
- Acabam de lançar outra barragem - informou ele. - Os foguetes devem cair em poucos segundos.
- Haverá resposta?
- Agora, não. Mas, se isso continuar, não teremos outra opção senão agir. A questão é: o que fará o Egito, agora que é governado pela Irmandade Muçulmana? Eles vão
ficar de braços cruzados enquanto atacamos o Hamas, que é, no fim das contas, uma ala da Irmandade? Será que o Acordo de Paz de Camp David vai ser mantido?
- O que Uzi disse?
- Neste momento, o Escritório não pode prever a exata reação do líder egípcio caso invadamos Gaza. É por isso que o primeiro-ministro, pelo menos por ora, não está
disposto a agir enquanto chovem foguetes em cima de seu povo.
Gabriel olhou para a tela; bombas começavam a cair. Ele desligou a televisão e levou Shamron para a varanda. Estava mais quente ali do que em Jerusalém, e um vento
suave soprava das colinas de Golã, formando padrões na superfície prateada do lago. Shamron sentou-se numa das cadeiras de ferro batido ao longo da balaustrada e,
instantaneamente, acendeu um de seus cigarros fedorentos. Gabriel entregou-lhe uma taça de vinho e sentou ao seu lado.
- Ele não faz nada pelo meu coração - disse Shamron após beber um pouco do vinho -, mas passei a apreciá-lo em minha velhice. Imagino que me lembre das coisas para
as quais não tive tempo na juventude: vinho, crianças, férias. - Ele fez uma pausa e acrescentou: - Vida.
- Ainda há tempo, Ari.
- Poupe-me das frivolidades. O tempo agora é meu inimigo, filho.
- Então para que desperdiçar mesmo um minuto se envolvendo com política?
- Existe uma diferença entre segurança e política.
- A segurança é meramente uma extensão da política, Ari.
- E se você estivesse aconselhando o primeiro-ministro quanto ao que fazer com relação aos mísseis?
- É o trabalho de Uzi aconselhá-lo, não o meu.
Shamron resolveu mudar de assunto:
- Estive acompanhando as notícias de Londres com grande interesse. Parece que seu amigo Jonathan Lancaster segue rumo à vitória.
- Ele deve ser o político mais sortudo do planeta.
- Sorte é algo importante na vida. Nunca tive muita. Nem você, diga-se de passagem.
Gabriel não respondeu.
- E desnecessário dizer - prosseguiu Shamron - que esperamos fervorosamente que as tendências eleitorais atuais continuem assim e Lancaster ganhe. Se isso acontecer,
temos certeza de que será o político britânico mais pró-sionista desde Arthur Balfour.
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser. - Shamron olhou para Gabriel com seriedade por um momento. - Me desculpe por um dia tê-lo envolvido neste assunto.
- Você conseguiu exatamente o que queria: Lancaster pode muito bem figurar na folha de pagamento do Escritório. Ele está comprometido. É a pior coisa para um líder.
- Comprometido por suas próprias ações, não pelas nossas.
- É verdade - disse Gabriel. - Mas foi Madeline Hart quem pagou o preço.
- Você deve se esforçar para esquecê-la.
- Receio que eu tenha dito algo para os sequestradores que impossibilita isso.
- Você os ameaçou de morte caso a machucassem?
Gabriel assentiu.
- Ameaças de morte são como juras de amor eterno sussurradas no calor da paixão: facilmente feitas, rapidamente esquecidas.
- Não quando eu as faço.
Shamron apagou o cigarro, pensativo.
- Você me surpreende, filho. Mas não a Uzi. Ele previu que você decidiria ir atrás deles, por isso já arquivou o assunto.
- Então seguirei em frente sem ajuda.
- Isso significa que você ficará lá fora sozinho, sem recursos nem proteção do Escritório.
Gabriel ficou mudo.
- E se eu o proibisse? Você me obedeceria?
- Sim, Abba.
- É mesmo? - perguntou Shamron, surpreso.
Gabriel aquiesceu.
- E se eu permitisse a você encontrar essas pessoas para dar-lhes a justiça que merecem? O que receberia em troca?
- Será que tudo com você tem que ser uma negociação?
- Sim.
- O que você quer?
- Você sabe o que eu quero. - Shamron fez uma pausa. - E o primeiro-ministro também quer.
Ele bebeu um pouco do vinho e acendeu outro cigarro.
- Estamos vivendo em tempos significativos e turbulentos, e os desafios só ficarão mais sérios. As decisões que tomarmos nos próximos meses e anos determinarão o
sucesso ou fracasso da empreitada. Como você pode dispensar a chance de fazer história?
- Eu já fiz história, Ari. Muitas e muitas vezes.
- Então guarde a arma no armário e use o cérebro para derrotar os nossos inimigos. Roube segredos. Recrute espiões e generais como agentes. Confunda-os, frustre-os.
Para enganar, meu filho, farás a guerra.
Gabriel mergulhou no silêncio. Com o cair da noite, o céu acima das colinas estava ficando azul-escuro e já quase não se via o lago. Shamron adorava a vista porque
lhe permitia vigiar inimigos distantes. Gabriel a adorava porque a contemplara ao recitar suas juras matrimoniais para Chiara. Agora, estava prestes a fazer outra
espécie de promessa, que tornaria um velho muito feliz.
- Não tomarei parte de golpes palacianos de nenhum tipo - disse Gabriel, por fim. - Uzi e eu tivemos nossas diferenças, mas nos tornamos amigos.
Shamron sabia que não deveria falar naquele momento. Ele tinha o dom do silêncio, próprio dos interrogadores.
- Se o primeiro-ministro decidir não indicar Uzi para um segundo mandato - prosseguiu Gabriel vou considerar a oferta para me tornar diretor do Escritório.
- Preciso de mais garantias.
- Essas são as únicas que você terá.
- Negociar com sequestradores o deixou afiado.
- De fato.
- Por onde você pretende começar?
- Ainda não decidi.
- Como vai obter dinheiro?
- Achei alguns milhares de euros num barco em Marselha.
- De quem era o barco?
- De um contrabandista chamado Marcel Lacroix.
- Onde ele está agora?
Gabriel respondeu.
- Pobre-diabo.
- Outros o seguirão.
- Apenas tome cuidado para não se juntar a eles. Tenho planos para você.
- Eu disse que iria considerar a proposta, Ari. Ainda não concordei com nada.
- Eu sei. Mas também sei que você jamais me ludibriaria para obter algo que quisesse. Ao contrário de mim, você tem consciência.
- Você também tem, Ari. Por isso não consegue dormir à noite.
- Algo me diz que esta noite eu dormirei bem.
- Não se empolgue - alertou Gabriel. - Ainda tenho que falar com Chiara. Shamron sorriu.
- Qual é a graça?
- De quem você acha que foi a ideia?
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser.
Por onde começar a busca pelos assassinos de Madeline? O lugar mais lógico era procurar entre as organizações criminosas de Marselha. Ele poderia rastrear parceiros
de Marcel Lacroix e René Brossard, observá-los, suborná-los, interrogá-los, machucar alguns deles se necessário, até saber a identidade do homem que chamavam de
Paul. O homem que tinha levado Madeline para almoçar no Les Palmiers no dia em que ela desaparecera. O homem que parecia ter aprendido francês ouvindo CDs de algum
curso de línguas. Mas havia um problema com esse plano. Se Gabriel fosse a Marselha, certamente cruzaria com a polícia francesa. Além disso, àquela altura, o homem
conhecido como Paul já devia
ter desaparecido havia muito tempo. Portanto, decidiu que começaria a busca não pelos agentes do crime, mas pelas duas vítimas. Alguém sabia do caso entre Jonathan
Lancaster e Madeline Hart. E havia passado essa informação para o tal Paul. Achar essa pessoa, calculou, significaria achar Paul.
Mas, antes, Gabriel precisava encontrar outra pessoa. Alguém que seguira a ascensão de Lancaster ao poder. Que conhecia a dinâmica do relacionamento entre Fallon
e o atual primeiro-ministro. Que sabia de todos os podres. Deu com essa pessoa na manhã seguinte, quando lia a cobertura da campanha eleitoral britânica. Seria complicado
e até perigoso. Mas, se conseguisse informações que levassem aos assassinos de Madeline, o risco pessoal valeria muito a pena.
Gabriel passou o resto da manhã preparando um dossiê detalhado. Quando terminou, fez uma pequena mala com duas mudas de roupa e dois conjuntos de identidade. Naquela
noite, voou de Ben Gurion a Paris e, ao meio-dia, estava novamente na Córsega. Ele precisava de mais uma coisa antes de dar início à busca: um cúmplice. Bastante
competente, completamente impiedoso e sem nenhum resquício de consciência. Ele precisava de Christopher Keller.
31
CÓRSEGA
A ilha tinha se transformado desde a última vez que Gabriel a visitara. As praias estavam desertas, havia boas mesas vagas nos melhores restaurantes e as feiras
estavam livres dos europeus seminus do continente que se deslumbravam com as mercadorias, mas raramente abriam suas carteiras. A Córsega voltara a ser dos corsos,
e até o mais melancólico dos moradores agradecia por isso.
Porém, muitas outras coisas continuavam iguais. O mesmo cheiro inebriante da macchia saudou Gabriel à medida que ele se embrenhava na ilha; a mesma senhora lhe apontou
com o indicador e o mindinho enquanto ele atravessava a isolada cidadela montanhesca; os mesmos dois guardas menearam a cabeça ameaçadoramente quando ele adentrou
a propriedade de Don Anton Orsati.
Gabriel seguiu a estrada até ela se tornar de terra batida, então continuou em frente. Ao fazer a curva fechada à esquerda próxima às três oliveiras centenárias,
deparou com o maldito bode de Don Casabianca a bloquear seu caminho.
A expressão do animal se tornou sombria, como se ele lembrasse das circunstâncias do último encontro e agora planejasse dar o troco. Pela janela do carro, Gabriel
pediu com educação para que o bode lhe desse licença. Como a fera empinou o queixo desafiadoramente, ele saiu do automóvel, inclinou-se para a orelha velha e esfarrapada
do bicho e sussurrou uma ameaça muito parecida com a que fizera aos sequestradores de Madeline Hart. Na mesma hora, o bode se virou e bateu em retirada para dentro
dos arbustos da macchia. Ele era um covarde, como a maioria dos tiranos.
Gabriel voltou a entrar no carro e prosseguiu até a casa de Keller. Estacionou na entrada, à sombra de um pinheiro-larício, e bradou uma saudação em direção à varanda,
sem obter resposta. A porta estava destrancada. Gabriel andou de um belo cômodo branco ao outro, mas não encontrou ninguém. Foi até a cozinha e conferiu a geladeira:
nada de leite, carne, ovos; nada perecível. Havia apenas uma cerveja, um pote de mostarda Dijon e uma garrafa de Sancerre de ótima qualidade. Gabriel abriu o vinho
e telefonou para Don Orsati.
Keller tinha viajado a negócios. Europa continental, mas não a França - era o máximo que Anton diria. Se tudo desse certo, Keller estaria de volta à Córsega naquela
mesma noite ou, o mais tardar, na manhã do dia seguinte. O don sugeriu a Gabriel se hospedar na casa de Keller e ficar à vontade, e disse sentir pelo que havia acontecido
“lá no norte”. Keller, obviamente, fizera um relato detalhado.
- E então, o que o traz à Córsega? - perguntou o don.
- Eu paguei uma grande quantia de dinheiro a alguém que não entregou a mercadoria como prometido.
- Uma quantia muito grande.
- O que você faria em meu lugar?
- Para começar, eu jamais teria concordado em ajudar um homem como Jonathan Lancaster.
- Vivemos num mundo complicado, Don Orsati.
- De fato vivemos - disse o don, num tom meio filosófico. - Quanto ao seu problema de negócios, você tem duas opções: pode se esforçar para esquecer o que aconteceu
com a garota inglesa ou punir os responsáveis.
- O que você faria?
- Aqui na Córsega temos um antigo provérbio que diz: um cristão perdoa, um idiota esquece.
- Eu não sou idiota.
- Nem é cristão. Mas não o julgarei por isso.
Orsati pediu a Gabriel que se mantivesse na linha enquanto ele lidava com uma pequena crise. Parecia que um grande carregamento de azeite que ia para um restaurante
em Zurique havia sumido. Gabriel podia ouvir o don gritando com um subalterno em dialeto corso: “Ache o azeite, ou cabeças vão rolar!” Em qualquer outro negócio,
a ameaça poderia ter sido descartada como um mero chilique do supervisor. Mas não na Companhia de Azeite Orsati.
- Onde estávamos? - perguntou o don.
- Você falou algo sobre cristãos e idiotas. E estava prestes a me cobrar um preço alto para pegar Keller emprestado.
- Ele é mesmo o meu empregado mais valioso.
- Por razões óbvias.
Orsati se calou por um momento. Gabriel podia ouvi-lo bebericar algo.
- É importante que isso vá além do sangue - disse o don após um instante. - Você também deve recuperar o dinheiro.
- E se eu conseguir?
- Um pequeno pagamento de tributo ao seu padrinho corso cairia bem.
- Pequeno como?
- Um milhão deve bastar.
- Um milhão é uma quantia bem alta, Don Orsati.
- Eu ia pedir cinco.
Gabriel pensou por um momento e acabou aceitando as condições.
- Mas apenas se eu achar o dinheiro. Do contrário, estou livre para usar Keller a meu bel-prazer, sem custos.
- Fechado. Mas traga-o de volta inteiro. Lembre-se: não dá para ganhar dinheiro cantando.
Gabriel se acomodou na varanda com o Sancerre e o grosso dossiê sobre o funcionamento interno de Downing Street sob o comando de Jonathan Lancaster. Mas, uma hora
depois, já estava ansioso, então ligou para Don Orsati e pediu permissão para caminhar. Ele lhe deu sua bênção e disse a Gabriel onde ele poderia encontrar uma das
armas de Keller. Uma robusta HK 9 mm, guardada na gaveta de uma bela escrivaninha francesa antiga, logo abaixo do Cézanne.
- Mas tenha cuidado - alertou o don. - Christopher ajusta o gatilho para que fique muito leve. Ele tem uma alma sensível.
Gabriel colocou a arma na cintura da calça jeans e partiu pelo caminho estreito, rumo às três oliveiras centenárias. Por sorte, o bode ainda não havia retornado
a seu posto de vigilância, logo Gabriel podia seguir vilarejo adentro sem se aborrecer. Era aquela hora incerta entre o fim da tarde e o começo da noite. As casas
tinham as janelas e portas fechadas e as ruas estavam abandonadas aos gatos e às crianças, que observaram Gabriel com grande interesse. Ele foi até a praça principal,
rodeada por lojas e cafés, que ficava perto de uma igreja. Comprou uma echarpe para Chiara e sentou na cafeteria que parecia menos ameaçadora. Tomou café forte para
amenizar os efeitos do Sancerre e, à medida que o céu escurecia e a brisa esfriava, bebeu vinho tinto corso para amenizar os efeitos do café. As portas da igreja
estavam entreabertas. De dentro, vinha o murmúrio das preces.
Gradualmente, a praça começou a se encher. Rapazes adolescentes estavam montados em ciclomotores na porta da sorveteria; um grupo de homens deu início a uma partida
disputada de boules no centro da esplanada empoeirada. Pouco após as seis, cerca de vinte pessoas, em sua maioria senhoras idosas, desceram as escadas da igreja.
Dentre elas, estava a signadora. Seu olhar recaiu brevemente sobre Gabriel, o descrente; então, ela desapareceu pela porta de sua pequena casa torta. Depois de pouco
tempo, duas mulheres foram chamá-la: uma velha viúva vestida de preto dos pés à cabeça e uma garota de aparência consternada com 20 e poucos anos que, sem dúvida,
estava sofrendo os maléficos efeitos do occhju.
Meia hora mais tarde, as mulheres reapareceram junto a um menino de 10 anos de cabelos encaracolados. Elas se dirigiram à sorveteria, mas a criança se deteve para
observar a partida de boules e foi até Gabriel, segurando um pedaço de papel azul-claro dobrado em quatro. Depositou-o na mesa do café e se afastou às pressas, como
se temesse contrair uma doença. Gabriel desdobrou o papel e, sob a luz evanescente, leu a única linha escrita:
Preciso vê-lo imediatamente.
Gabriel guardou o bilhete no bolso do casaco e continuou sentado por vários minutos ponderando o que fazer. Por fim, deixou algumas moedas sobre a mesa e atravessou
a praça.
Quando bateu à porta, uma voz de taquara rachada o convidou a entrar. Ela estava sentada, sonolenta, numa poltrona desbotada, com a cabeça pendendo para o lado,
como se ainda sofresse da exaustão causada por absorver o mal que contaminara seus últimos visitantes. Apesar dos protestos de Gabriel, insistiu em levantar-se para
cumprimentá-lo. Dessa vez não havia hostilidade em sua expressão, apenas preocupação. A signadora tocou-lhe a face sem dizer nada e olhou nos seus olhos.
- Seus olhos são tão verdes... Você tem os olhos da sua mãe, não é?
- Sim.
- Ela sofreu na guerra, não é mesmo?
- Foi Keller quem disse isso?
- Eu nunca falei com Christopher sobre a sua mãe.
- Sim - disse Gabriel após um momento coisas terríveis aconteceram à minha mãe durante a guerra.
- Na Polônia?
- Sim, na Polônia.
A signadora tomou a mão de Gabriel entre as suas.
- Está quente... Você está com febre?
- Não.
Ela fechou os olhos.
- Sua mãe era pintora como você?
- Sim.
- Ela esteve nos campos? Naquele campo cujo nome veio das árvores?
- Sim, nesse mesmo.
- Eu vejo uma estrada, neve, uma longa fila de mulheres vestidas de cinza, um homem com uma arma.
Gabriel retirou a mão rapidamente. A mulher abriu os olhos com um sobressalto.
- Desculpe-me. Eu não queria perturbá-lo.
- Por que você queria me ver?
- Eu sei por que você voltou.
- E...?
- Quero ajudá-lo.
- Por quê?
- Porque é importante que nada lhe aconteça nos dias que virão. O velho precisa de você. Sua mulher, também.
- Eu não sou casado - mentiu Gabriel.
- O nome dela é Clara, não é?
- Não - respondeu Gabriel, sorrindo. - O nome dela é Chiara.
- Italiana?
- Sim.
- Então a manterei em minhas preces. - Ela indicou a mesa com o azeite e o prato de água ao lado de um par de velas acesas. - Não gostaria de sentar?
- É melhor não.
- Ainda não acredita?
- Eu acredito.
- Por que não se senta, então? Com certeza você não está com medo. Sua mãe deu-lhe o nome de Gabriel por um motivo: você possui a força de Deus.
Gabriel sentiu um peso no coração, como se houvesse uma pedra sobre ele. Queria sair dali naquele mesmo instante, mas a curiosidade o fez ficar. Depois de ajudar
a velha a voltar para sua cadeira, sentou do outro lado da mesa e mergulhou o dedo no óleo. Quando atingiram a superfície da água, as três gotas dividiram-se antes
de desaparecer. A velha assentiu com gravidade, como se seus medos mais obscuros tivessem sido confirmados. Então, pela segunda vez, tomou a mão de Gabriel.
- Você está queimando. Tem certeza de que está se sentindo bem?
- Acabei tomando sol ali no café.
- Na casa de Christopher - disse ela, com ar de sabedoria. - Bebeu de seu vinho. Você traz a arma dele na cintura.
- Continue.
- Você está procurando por um homem, o homem que matou a garota inglesa.
- Você sabe quem é ele?
- Não. Mas sei onde ele está. Escondido ao leste, na cidade dos hereges. Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer - proclamou a signadora com firmeza -, morrerá.
Ela fechou os olhos e, logo depois, começou a chorar suavemente, um sinal de que o mal havia se transportado do corpo de Gabriel para o dela. Em seguida, instruiu
Gabriel a repetir o teste do óleo na água. Dessa vez, o óleo fundiu-se numa só gota. A velha sorriu de um jeito que Gabriel nunca tinha visto.
- O que você vê? - perguntou Gabriel.
- Tem certeza de que quer saber?
- Sim, é claro.
- Vejo uma criança - respondeu ela sem hesitar.
- De quem?
A signadora deu um tapinha na mão de Gabriel.
- Volte para a casa. Seu amigo Christopher voltou para a Córsega.
Quando chegou à casa, Gabriel encontrou Keller parado em frente à geladeira aberta. Ele vestia um terno cinza-escuro, amassado pela viagem, e uma camisa branca desabotoada
na altura do pescoço. Pegou a garrafa de Sancerre pela metade, exibiu-a com uma sacudidela e derramou um bocado numa taça.
- Dia difícil no trabalho, docinho? - perguntou Gabriel. Brutal. - Ele ergueu a garrafa, oferecendo-a. - Servido?
- Já tomei bastante.
- Dá para ver.
- Como foi sua viagem?
- A ida e a volta foram infernais, mas todo o resto correu tranquilamente.
- Quem era ele?
Keller bebeu o vinho sem responder e perguntou a Gabriel por onde ele tinha andado. Quando Gabriel respondeu que fora encontrar a signadora, Keller sorriu.
- Nós ainda vamos transformá-lo em corso.
- Não foi ideia minha - explicou Gabriel.
- O que ela queria lhe dizer?
- Não foi nada. Apenas o abracadabra de costume sobre o vento nos salgueiros.
- Então por que você está tão pálido?
A única resposta de Gabriel foi colocar a arma de Keller cuidadosamente sobre o balcão.
- Pelo que ouvi - disse Keller você vai precisar disso aí.
- O que você ouviu?
- Que você vai partir em uma jornada de caça.
- Você está disposto a me ajudar?
- Francamente - falou Keller, erguendo o copo para a luz -, eu já estava esperando por você há muito tempo.
- Eu tinha que terminar uma pintura.
- De quem?
- Bassano.
- Do estúdio de Bassano, ou de Bassano mesmo?
- Um pouco dos dois.
- Legal.
- Em quanto tempo você estará pronto para partir?
- Tenho que checar minha agenda, mas suspeito que estarei pronto amanhã, logo pela manhã. Mas fique sabendo que Marselha está lotada de policiais no momento. E metade
deles estão procurando por nós.
- É por isso que não chegaremos nem perto de Marselha, pelo menos por ora.
- Então aonde vamos?
Gabriel sorriu.
- Para casa.
32
CÓRSEGA - LONDRES
Eles jantaram no vilarejo, depois Gabriel se acomodou num quarto de hóspedes no andar inferior da casa. As paredes eram brancas, a roupa de cama era branca, a poltrona
e o escabelo eram revestidos de pano de vela. A falta de cor no quarto atrapalhou o seu sono. Naquela noite, Gabriel sonhou que corria por um campo de neve interminável
atrás de Madeline. Quando ela arranhava as costas da mão, o sangue que fluía do machucado era branco.
Pela manhã, tomaram o primeiro voo para Paris e, de lá, voaram para Heathrow. Keller passou pela alfândega com um passaporte francês. Gabriel, que o esperava na
sala de chegadas, achou que aquele era um jeito um tanto quanto ignóbil de um inglês voltar para a sua terra natal. Eles foram para o lado de fora e esperaram vinte
minutos por um táxi, que se arrastou pelo centro londrino, enfrentando tráfego lento e chuva.
- Agora você sabe por que não moro mais aqui - comentou Keller em francês, em voz baixa, enquanto olhava pela janela molhada e via os subúrbios cinzentos de Londres.
- A umidade fará maravilhas por sua pele - respondeu Gabriel na mesma língua. - Você está parecendo um pedaço de couro.
O táxi os deixou no Marble Arch. Gabriel e Keller caminharam uma curta distância pela Bayswater Road em direção a um prédio com vista para o Hyde Park. O apartamento
estava exatamente do jeito que ele o deixara quando partira para a França com o dinheiro do resgate. Até a louça do café da manhã de Chiara ainda estava na pia.
Gabriel largou a mala no quarto principal e pegou uma arma do cofre de chão. Ao olhar para cima, viu Keller parado diante da janela da sala de estar.
- Você consegue ficar sozinho por algumas horas? - perguntou Gabriel.
- Sem problemas.
- Algum plano?
- Acho que vou fazer um passeio de barco pelo Serpentine e dar uma volta por Covent Garden para fazer umas compras.
- Talvez fosse melhor ficar aqui. Não dá para saber quem você pode acabar encontrando.
- Eu sou do Regimento, amorzinho.
Keller não disse mais nada; não era necessário. Por ser um SAS, poderia passar por uma sala cheia de amigos próximos e nenhum deles notaria sua presença.
Gabriel desceu para a rua e fez sinal para um táxi. Vinte minutos depois, passou pelo portão da Downing Street, rumo ao Palácio de Westminster. No seu bolso estava
um único componente do dossiê: um extenso artigo do Daily Telegraph. A manchete dizia
MADELINE HART - AS PERGUNTAS SEM RESPOSTA.
O artigo fora escrito por Samantha Cooke, a principal correspondente do Telegraph que cobria Whitehall e uma das jornalistas mais reverenciadas da Inglaterra. Acompanhava
Jonathan Lancaster desde que ele era um discreto parlamentar de segunda linha e retratou sua escalada numa biografia intitulada O caminho para o poder. Apesar do
título levemente pretensioso, o livro foi bem recebido até pelos concorrentes, que sentiram inveja do adiantamento pago pela editora londrina. Samantha Cooke era
o tipo de repórter que sabia muito mais do que jamais poderia publicar; por isso, Gabriel queria falar com ela o quanto antes.
Ele entrou em contato com a central do Telegraph e pediu que ligassem para seu ramal. A telefonista os conectou sem demora e, após alguns segundos, a jornalista
atendeu. Gabriel suspeitou que ela estivesse ao celular, pois podia ouvir passos e o eco de vozes baixas num lugar com o pé-direito alto - talvez a antessala do
Parlamento, que ficava em frente ao café onde Gabriel estava sentado. Disse a Samantha que precisava de alguns minutos do seu tempo. Prometeu que valeria a pena,
mas não mencionou nomes em momento algum.
- Você sabe quantos telefonemas assim eu recebo diariamente? - questionou ela, com um ar cansado.
- Garanto, Srta. Cooke, que você nunca recebeu uma ligação como esta antes.
Houve silêncio na linha. Ela estava claramente intrigada.
- Do que se trata?
- Prefiro não falar a respeito pelo telefone.
- Ah, é, claro que não.
- Você obviamente está cética.
- Obviamente.
- Seu telefone tem acesso à internet?
- É claro.
- Há alguns anos, um membro muito conhecido da inteligência israelense foi capturado por terroristas islâmicos e interrogado em frente a uma câmera. O vídeo ainda
está circulando pela internet. Assista e me ligue em seguida.
Ele passou um número e desligou. Dois minutos depois, ela telefonou de volta.
- Eu gostaria de encontrá-lo.
- Tenho certeza de que você pode fazer melhor que isso, Srta. Cooke.
- Por favor, Sr. Allon, você poderia me conceder uma audiência?
- Só se você pedir perdão por ter me tratado de forma tão rude agora há pouco.
- Eu ofereço as minhas mais sinceras e humildes desculpas e espero que você possa achar em seu coração uma maneira de me perdoar.
- Está perdoada.
- Onde você está?
- No Café Nero, na Bridge Street.
- Conheço-o bem, infelizmente.
- Em quanto tempo você consegue chegar?
- Dez minutos.
- Não se atrase - disse Gabriel, desligando.
Ela acabou se atrasando, afinal, em seis minutos. Entrou como um furacão com um telefone ao ouvido, o guarda-chuva sacudindo ao vento forte. A maioria dos clientes
no café eram turistas, mas havia três membros juniores do Parlamento sentados ao fundo, bebericando seus lattes. Samantha parou para trocar algumas breves palavras
com eles antes de se encaminhar para a mesa de Gabriel. Tinha cabelos louros na altura do ombro. Por alguns segundos, seus olhos azuis e saltados não se desgrudaram
do rosto do agente.
- Meu Deus - disse ela, por fim. - É você mesmo.
- O que você esperava?
- Chifres, eu acho.
- Pelo menos você é sincera.
- Um dos meus piores defeitos.
- Algum outro?
- Curiosidade.
- Então você veio ao lugar certo. Posso lhe oferecer algo para beber?
- Na verdade - ela olhou em volta -, talvez fosse melhor caminharmos. Gabriel se levantou e vestiu o casaco. Eles caminharam em direção à Tower
Bridge e viraram rapidamente à esquerda no Victoria Embankment. O tráfego da tarde estava lento, mas as multidões que em geral apareciam à margem do rio haviam sido
afastadas pela chuva. Gabriel olhou por cima do ombro para garantir que ninguém os seguira. Voltando-se para a frente, reparou que Samantha o observava como se ele
fosse um espécime em extinção.
- Você está com uma aparência muito melhor do que naquele vídeo - disse ela após um momento.
- Era tudo maquiagem.
Ela riu a contragosto.
- Ajuda?
- Fazer piadas depois de uma coisa daquelas?
Ela assentiu.
- Sim - respondeu Gabriel. - Ajuda.
- Eu a conheci certa vez, sabe?
- Quem?
- Nadia al-Bakari. Quando ela era uma ninguém, uma garotinha saudita que gostava de festas, a filha mimada de Abdul Aziz al-Bakari, o financiador do terrorismo islâmico.
- A repórter encarou Gabriel em busca de alguma reação e pareceu desapontada ao não perceber nenhuma. - É mesmo verdade que foi você quem o matou?
- Zizi al-Bakari morreu devido a uma operação iniciada pelos americanos e seus aliados na guerra global ao terror.
- Mas foi você quem puxou o gatilho, não foi? Você o matou em Cannes, na frente de Nadia, e depois a recrutou para derrubar a rede terrorista de Rashid al-Husseini.
Genial. Genial mesmo.
- Se fosse mesmo genial, Nadia ainda estaria viva.
- Mas a morte dela mudou o mundo. Ajudou a trazer democracia ao mundo árabe.
- E olha só como isso deu certo - comentou Gabriel, soturno.
Eles passaram por debaixo da Hungerford Bridge ao mesmo tempo que um trem chegava ruidosamente em Charing Cross. A chuva ficou mais fraca. Samantha baixou o guarda-chuva
e o guardou na bolsa.
- Estou honrada com seu convite, mas o Oriente Médio não é exatamente a minha praia.
- Não vim falar do Oriente Médio, mas de Jonathan Lancaster.
Ela olhou para cima bruscamente.
- Por que um famoso agente da inteligência israelense viria a uma repórter londrina atrás de informações sobre o primeiro-ministro britânico?
- Deve ser por algum motivo importante - disse Gabriel, evasivo. - Caso contrário, o famoso agente israelense jamais ousaria fazer tal coisa.
- Certamente que não. Mas o famoso agente com certeza tem uma grande quantidade de informações sobre Lancaster ao alcance das mãos. Por que procuraria a ajuda de
uma repórter?
- Ao contrário do que se acredita, não fazemos dossiês pessoais sobre nossos amigos.
- Mentira.
Gabriel hesitou um pouco.
- Este assunto é estritamente profissional, Srta. Cooke. Meu serviço não está envolvido de forma alguma.
- E se eu ajudá-lo?
- Obviamente, eu darei algo em retribuição.
- Uma matéria?
Gabriel assentiu.
- Mas você não pode me dizer qual - deduziu ela.
- Ainda não.
- Seja o que for, é melhor que seja grande.
- Eu sou Gabriel Allon. Só me envolvo com assuntos grandes.
- É verdade.
Samantha parou de andar e olhou para a London Eye, que girava devagar na margem oposta do rio.
- Tudo bem, Sr. Allon, temos um acordo. Talvez você devesse me contar do que se trata.
Gabriel tirou o artigo do Telegraph do bolso e mostrou para ela. Samantha sorriu.
- Por onde quer que eu comece?
Gabriel guardou o papel no casaco. Então, pediu que ela começasse por Jeremy Fallon.
33
LONDRES
Samantha era uma boa repórter, escrevia as matérias colocando seus leitores a par de tudo através da contextualização adequada. Como morara no Reino Unido, Gabriel
já sabia de grande parte do que ouviu. Ele sabia, por exemplo, que Jeremy Fallon havia estudado na University College London e trabalhado como redator publicitário
antes de se juntar à célula política na sede do Partido. Ele descobriu que a organização de campanha era antiquada, dedicada a vender um produto que ninguém, muito
menos o público votante britânico, queria comprar. Sua prioridade inicial foi mudar a forma como o partido fazia suas pesquisas de opinião. Fallon não queria saber
em qual político determinado eleitor votava, mas onde o eleitor fazia compras, a que programas assistia e que sonhos tinha para os filhos. Acima de tudo, queria
saber o que o eleitor esperava do governo.
Silenciosamente, trabalhando longe dos holofotes, Fallon dedicou-se a readaptar as políticas internas do Partido de modo a suprir as necessidades do eleitorado britânico
moderno. Ele partiu em busca do vendedor ideal para levar seu novo produto ao mercado. E o encontrou em Jonathan Lancaster. Com a ajuda de Fallon, Lancaster saiu
vitorioso da disputa pelo posto de líder do Partido. Seis meses depois, os votos carregaram-no para a Downing Street.
- Jeremy teve como recompensa o emprego dos sonhos - disse Samantha. - Jonathan o indicou para o cargo de chefe de gabinete e concedeu-lhe mais poder do que qualquer
outro chefe de gabinete já teve na história da Grã-Bretanha. Jeremy é o guardião da fortaleza de Lancaster, uma espécie de vice-primeiro-ministro. Certa vez, Lancaster
me disse que foi o maior erro que ele cometeu.
- Isso foi dito oficialmente?
- Extraoficialmente - enfatizou ela. - Completamente, totalmente “extra”.
- Se Lancaster sabia que era um erro, por que o cometeu?
- Porque, sem Jeremy, o Partido ainda estaria vagando no deserto político. E Lancaster ainda seria um deputado de oposição secundário e sem importância tentando
fazer seu nome uma vez por semana durante as Perguntas ao Primeiro-Ministro. Além disso, Jeremy é totalmente leal a Lancaster. Tenho plena certeza de que mataria
por ele e se ofereceria para ajudar a limpar o sangue.
Gabriel gostaria de poder dizer que ela estava certa. Em vez disso, apenas continuou caminhando em silêncio e esperou que Samantha retomasse o relato.
- Mas não se tratava só de uma conexão de dívida e lealdade: Lancaster precisava de Jeremy. Realmente acreditava que não poderia governar o país sem ele a seu lado.
- É verdade, então?
- O quê?
- Que Jeremy é o cérebro de Lancaster.
- Na verdade, isso é uma completa besteira. Mas não demorou para que o público passasse a ter essa percepção dos fatos. Até pelas pesquisas do próprio Partido, a
maioria dos britânicos acreditava que era Jeremy quem controlava o governo. - Ela fez uma pausa, pensativa. - Foi por isso que eu fiquei tão surpresa quando vi Jeremy
ao lado de Lancaster no dia em que ele finalmente convocou a eleição.
- Surpresa?
- Pouco tempo antes, um boato sinistro em Whitehall dizia que Lancaster planejava afastar Jeremy da Downing Street.
- Porque ele havia se tornado um risco político?
Samantha assentiu.
- E também porque ele era tão impopular dentro do Partido que ninguém queria trabalhar para ele.
- E por que você não publicou isso?
- Eu não tinha fontes confiáveis o bastante. Alguns de nós temos escrúpulos, sabe?
- Você acha que Jeremy Fallon ouviu esses boatos?
- Não havia como não ouvir.
- Ele e Lancaster discutiram o assunto?
- Eu nunca tive uma confirmação, por isso não escrevi a respeito. Graças a Deus que não o fiz: a esta altura, eu pareceria muito tola.
Eles chegaram à Ponte de Waterloo. Gabriel a segurou pelo cotovelo e a conduziu em direção à passagem do Strand.
- Você o conhece bem? - perguntou ele.
- Jeremy?
Gabriel aquiesceu.
- Não tenho certeza de que alguém o conheça de fato. Eu o conheço profissionalmente, portanto ele me diz coisas que quer que eu escreva no jornal. É um manipulador
filho da mãe, por isso sua atuação no funeral de Madeline Hart foi tão peculiar. Eu jamais imaginaria que Jeremy fosse capaz de derramar uma lágrima sequer. - Ela
fez uma pausa. - Acho que era verdade, afinal.
- O quê?
- Que Jeremy estava apaixonado por ela.
Gabriel deteve-se e se voltou para encarar Samantha.
- Quer dizer que Jeremy Fallon e Madeline Hart tinham um caso?
- Madeline não estava interessada em Jeremy amorosamente - respondeu ela, balançando a cabeça. - Mas isso não a impediu de usá-lo para prosperar na carreira. Ela
escalou os cargos rápido demais, na minha opinião. E eu suspeito que tenha sido tudo obra de Jeremy.
O silêncio caiu sobre eles. Estavam parados na calçada da Galeria Courtauld. Samantha observava o tráfego passar na ponte enquanto Gabriel imaginava por que Fallon
teria apresentado a mulher que amava a Lancaster. Talvez quisesse fazer pressão sobre o homem que estava prestes a arruinar sua carreira política.
- Tem certeza? - perguntou Gabriel.
- De que Jeremy estava apaixonado por Madeline?
Gabriel assentiu.
- Tenho tanta certeza quanto se pode ter sobre algo desse tipo.
- Como assim?
- Eu ouvi isso de diversas fontes em que confio. Jeremy costumava inventar desculpas muito esfarrapadas para contatá-la. Aparentemente, era bem patético.
- E por que você não publicou isso quando ela desapareceu?
- Porque não me pareceu a coisa certa a fazer naquele momento. E agora que ela está morta... - Sua voz se perdeu.
Eles entraram na galeria, compraram duas entradas e subiram até os salões de exposição. Como de costume, não havia quase nenhum visitante. Na Sala 7, pararam em
frente à moldura vazia que rememorava o roubo da obra que era a marca registrada da galeria: o Autorretrato com a orelha cortada, de Vincent Van Gogh.
- Uma pena - lamentou Samantha.
- É - concordou Gabriel. Ele a guiou para o Nevermore, de Gauguin, e perguntou se ela havia se encontrado com Madeline Hart.
- Uma vez - respondeu, apontando para a mulher na tela, como se falasse dela e não de uma mulher morta. - Eu estava trabalhando em uma matéria sobre os esforços
do Partido no sentido de estabelecer uma ligação com os eleitores das minorias. Jeremy me mandou encontrar Madeline. Eu a achei bonita até demais, mas também muito
inteligente. Às vezes parecia me entrevistar, e não o contrário. Parecia que eu estava... - Ela mergulhou no silêncio, como se buscasse a palavra certa. - Parecia
que eu estava sendo recrutada... Para quê, não faço ideia.
Gabriel ouviu passos e, ao virar-se para trás, viu um casal de meia-idade entrar na sala. O homem usava óculos escuros e era calvo, com cabelos apenas nas laterais
da cabeça. A mulher era muitos anos mais nova e segurava um guia do museu aberto na página errada. Eles iam de uma pintura a outra sem dizer nada, parando na frente
de cada tela por apenas alguns segundos antes de se deslocarem mecanicamente para a próxima. Gabriel observou-os entrarem na sala vizinha. Em seguida, desceu com
Samantha para o pátio interno localizado no centro do edifício. Em dias quentes, era um lugar de encontro popular entre os londrinos que trabalhavam nos prédios
de escritórios situados ao longo do Strand. Mas agora, sob a chuva fria, as mesinhas metálicas estavam vazias e a fonte dançante esguichava água com a tristeza de
um brinquedo em uma sala sem crianças.
- Você falou bem de Madeline nas matérias depois de seu desaparecimento comentou Gabriel enquanto eles caminhavam devagar pelo pátio.
- Tudo verdade. Ela era extremamente calma e autoconfiante para alguém com o seu passado. - Samantha franziu a testa, pensativa. - Eu nunca entendi o comportamento
da mãe dela nos dias que se seguiram ao desaparecimento. A maioria dos pais de pessoas desaparecidas fala com a imprensa constantemente. Mas ela, não: fechou o bico
e permaneceu afastada durante todo o processo. O irmão de Madeline, também.
- O que você quer dizer com isso?
- Eu tentei contatar a mãe para escrever a matéria - ela apontou com a cabeça para o pedaço do jornal no bolso de Gabriel -, mas ninguém atendia na casa deles. Em
momento algum. Até que, por fim, fui até a maldita Essex e sentei-me à porta. Um vizinho me disse que eles não eram vistos desde pouco tempo depois do funeral.
Gabriel ficou em silêncio, mas, em sua cabeça, calculava o tempo de viagem entre Londres e Basildon, em Essex, no horário de pico de trânsito noturno.
- Eu falei um bocado - disse Samantha. - Agora é a sua vez. Por que é que o grande Gabriel Allon está interessado numa garota inglesa morta?
- Receio que ainda não possa dizer.
- E vai poder algum dia?
- Depende.
- Sabe - falou ela, provocativa -, só o fato de você estar em Londres fazendo perguntas dá uma bela matéria.
- É verdade. Mas você jamais ousaria publicá-la ou mesmo mencionar a nossa conversa para alguém.
- Por que não?
- Porque isso me impediria de lhe dar uma matéria muito melhor no futuro.
Samantha sorriu e consultou o relógio.
- Eu adoraria passar uma semana falando com você, mas realmente tenho que ir. Amanhã tenho que publicar um artigo.
- Sobre o que você está escrevendo?
- Sobre a Volgatek Óleo e Gás.
- A empresa russa de energia?
- Muito bem, Sr. Allon.
- Eu tento me manter atualizado. Ajuda no meu trabalho.
- Tenho certeza de que sim.
- Qual é a matéria?
- Os ambientalistas e o pessoal do aquecimento global estão aborrecidos com o acordo. Preveem todas as calamidades de costume: colossais derramamentos de óleo, derretimento
das calotas polares, inundação das casas à beira-mar em Chelsea, esse tipo de coisa. Eles não parecem ligar para o fato de que o negócio irá gerar bilhões de dólares
em licenciamentos e trará milhares de empregos essenciais para a Escócia.
- E o seu artigo será imparcial? - perguntou Gabriel.
- Eles sempre são - rebateu ela com um sorriso. - Minhas fontes disseram que o negócio era a menina dos olhos de Jeremy, sua última grande iniciativa antes de deixar
a Downing Street para concorrer ao Parlamento. Tentei falar com ele a respeito, mas Jeremy disse três palavras que eu jamais tinha ouvido saírem de sua boca.
- Quais?
- Nada a declarar.
Ela entregou um cartão de visitas a Gabriel, apertou sua mão e desapareceu pela passagem arqueada que conectava o pátio à ponte. Gabriel esperou cinco minutos antes
de seguir pelo mesmo caminho. Quando ele desembocou na rua, viu o homem e a mulher da galeria tentando chamar um táxi. Passou por eles sem olhar duas vezes e prosseguiu
rumo à Trafalgar Square, onde milhares de manifestantes se dedicavam aos Dois Minutos de Ódio contra o Estado de Israel.
Gabriel se embrenhou na multidão e caminhou lentamente, parando aqui e ali para checar se alguém o seguia. Por fim, uma pancada de chuva divina levou os manifestantes
a correrem atrás de abrigo. Gabriel se juntou a um grupo de artistas e atores pró-Palestina que iam em direção aos bares do Soho, mas, na Charing Cross Road, deixou
o grupo e esgueirou-se para o interior da estação de metrô de Leicester Square. Enquanto descia a escada rolante para o subsolo aquecido, ligou para Keller.
- Precisamos de um carro - disse rapidamente em francês.
- Aonde vamos?
- Basildon.
- Por algum motivo em especial?
- No caminho eu explico.
34
BASILDON, ESSEX
A cidade tinha sido criada após a Segunda Guerra Mundial como parte #*% de um grande plano para reduzir a superpopulação nos assentamentos informais do East End,
em Londres, que haviam sido destruídos por bombas. O resultado foi o que os planejadores urbanos chamaram de Cidade Nova: sem história, sem alma, sem outro propósito
senão abrigar a classe operária. O centro comercial de Basildon era uma obra-prima da arquitetura neossoviética, assim como a moradia popular que se erguia em um
dos lados da cidade, parecendo uma fatia gigante de torrada queimada. A uns 800 metros ao leste estava um grupo de prédios e sobrados dilapidados conhecidos como
Lichfields.
Todas as ruas tinham nomes agradáveis como Avon, Norwich, Southwark, mas o asfalto estava rachado e ervas daninhas tomavam conta das quadras. Algumas poucas casas
tinham jardins gramados, mas, junto à pequenina construção no fim da Blackwater Way, havia apenas uma área de concreto toda quebrada, onde um carro velho costumava
ficar estacionado. O andar de baixo era revestido de chapisco, e o de cima, de tijolo marrom. As três pequenas janelas eram todas acortinadas e estavam às escuras,
e nenhuma luz brilhava sobre a inóspita porta da frente.
- Eles trabalham? - perguntou Keller, enquanto passavam devagar de carro diante da casa pela segunda vez.
- A mãe trabalha algumas horas por semana na farmácia Boots, no centro comercial. O irmão é um bêbado profissional.
- E você tem certeza de que não há ninguém aí dentro?
- Você está vendo algum sinal de presença humana?
- Talvez eles gostem do escuro.
- Ou talvez sejam vampiros.
Gabriel parou numa vaga na rua e desligou o carro. Logo ao lado da janela de Keller, havia um aviso alertando que toda aquela área estava 24 horas por dia sob a
vigilância de um circuito interno de televisão.
- Estou com um mau pressentimento.
- Você acabou de matar um homem por dinheiro.
- Não na frente das câmeras.
Gabriel não disse nada.
- Quanto tempo você pretende ficar lá dentro? - perguntou Keller.
- O quanto for necessário.
- E se a polícia aparecer?
- Seria uma boa ideia você me avisar.
- E se eles me virem aqui?
- Mostre o seu passaporte francês e diga que está perdido.
Gabriel abriu a porta do carro e saiu. Enquanto atravessava a rua, um cachorro começou a latir em algum lugar. Devia ser um muito grande, pois cada som grave e sonoro
ecoava nas fachadas decrépitas dos prédios como tiros de canhão. Por um momento, Gabriel cogitou se deveria voltar. Com certeza essa besta quer a minha garganta,
pensou sombriamente. Ainda assim, atravessou o jardim concretado dos Harts e se postou diante da porta.
Não havia cobertura para se proteger da chuva insistente. Gabriel tentou girar a maçaneta, mas, como previa, a porta estava trancada. Retirou um instrumento fino
de metal do bolso e enfiou-o no trinco. Foram necessários apenas poucos segundos - a bem da verdade, um desconhecido poderia pensar que ele só estava atrapalhado
ao procurar sua chave no escuro. Quando Gabriel tentou de novo, a porta se abriu com suavidade. Pisou no vazio escuro e fechou-a rapidamente. Lá fora, o cão disparava
outra salva de latidos antes de calar-se, por fim. Gabriel colocou a gazua de volta no bolso, pegou uma pequena lanterna e acendeu-a.
Ele se viu parado num hall de entrada apertado. O chão de linóleo estava coberto de correspondência fechada e, à direita, havia vários casacos, impermeáveis ou de
lã barata, pendurados em ganchos. Gabriel revirou os bolsos de cada um - caixas de fósforos, recibos, cartões de visitas - antes de direcionar o feixe de luz para
dentro da sala de estar.
Era um espaço pequeno e claustrofóbico, que não devia ter nem 8 metros quadrados, contendo três poltronas surradas voltadas para uma televisão. No meio da sala,
havia uma mesa baixa com dois cinzeiros quase transbordando de guimbas e, em uma das paredes, estavam penduradas fotografias emolduradas. A menina Madeline correndo
atrás de uma bola num campo ensolarado. Madeline recebendo o diploma da Universidade de Edimburgo. Madeline posando com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster em
Downing Street. Havia também uma foto de toda a família Hart em pé, posando infeliz em frente a uma baía cinzenta. Gabriel ficou olhando para as feições largas e
achatadas dos pais de Madeline e tentou imaginar como eles teriam sido capazes de produzir um rosto tão belo quanto o dela. Madeline era um erro da natureza, pensou.
Era filha de um deus diferente.
Gabriel deixou a sala de estar e, passando por uma pequena sala de jantar, entrou na cozinha. A louça suja se empilhava nas bancadas e havia uma poça de água oleosa
na pia. O ar estava tomado pelo cheiro de podridão. Abriu um dos armários no nível do chão e encontrou uma lixeira abarrotada de comida estragada. Havia mais na
geladeira. Ele imaginou o que poderia tê-los motivado a deixar a casa daquela forma.
Voltou para o hall de entrada e subiu as escadas estreitas que levavam ao segundo andar. Eram três quartos: dois pequenos cômodos do lado esquerdo da casa e um maior
à direita, que pertencia à mãe de Madeline. A cama de casal estava bagunçada e uma corrente de vento frio soprava pela janela aberta que dava vista para o pedaço
de terra revolvida que era o quintal. Gabriel abriu a porta finíssima do armário e iluminou o interior. Havia roupas penduradas em cabides, assim como roupas empilhadas
ordenadamente na prateleira de cima. Examinou a cômoda: todas as gavetas estavam lotadas, exceto a primeira da esquerda - onde uma mulher costuma guardar papéis
pessoais e lembranças. Agachando-se, apontou o feixe de luz para debaixo da cama, mas não viu nada além de poeira. Numa das mesinhas de cabeceira, ao lado de um
copo vazio, viu o telefone. Levou-o ao ouvido, mas não escutou o sinal de linha. Apertou o botão de reprodução na secretária eletrônica. Não havia recados.
Gabriel cruzou o corredor e espiou dentro de um dos quartos menores. Apenas as paredes estavam intactas, revestidas com as imagens de costume - celebridades do futebol,
modelos, carros que a pessoa jamais poderia comprar. No ar, pairava um cheiro masculino desagradável que Gabriel tivera a felicidade de não sentir desde que deixara
o Exército. Vasculhou o quarto rapidamente, mas não descobriu nada fora do comum - nada exceto o fato de que não continha nenhum objeto, sequer um papel, com o nome
da criatura que o habitava.
O último quarto era o de Madeline. Não da amante de Jonathan Lancaster, nem da mulher devastada que Gabriel encontrara na França, mas a Madeline que de alguma forma
sobrevivera a uma infância difícil naquela triste casinha. Parecia a Gabriel que ela passara por tudo da mesma forma que pelo cativeiro: com asseio e ordem. Sua
cama fora feita com esmero; a pequena escrivaninha de garota colegial estava pronta para uma inspeção. Sobre ela, havia uma série de livros clássicos - Dickens,
Austen, Forster, Lawrence. Os volumes pareciam ter sido lidos muitas vezes, pois tinham inúmeras passagens sublinhadas e anotações feitas em uma letra miúda e precisa.
Gabriel estava prestes a deslizar um dos livros, Uma janela para o amor, para dentro do casaco, quando o celular vibrou discretamente. Ele atendeu na mesma hora.
- Temos companhia - avisou Keller.
- Quantos?
- Parece ser uma pessoa só, mas não posso afirmar com certeza.
Gabriel abriu as cortinas diáfanas do quarto de Madeline uma fração de centímetro e viu uma mulher caminhando pela Blackwater Way debaixo de um guarda-chuva. Quando
ela passou pelo facho de luz de um poste, ele vislumbrou seu rosto. Era familiar... Então, no instante em que a mulher dobrou na entrada de concreto, Gabriel lembrou:
ela aparecera duas vezes na igreja nas montanhas do Lubéron fazendo o sinal da cruz como se não tivesse esse costume. Por algum motivo, agora inseria uma chave na
porta da casa de Madeline Hart.
Gabriel desligou o telefone e sacou a arma. Sentiu-se tentado a descer as escadas e confrontar a mulher de imediato, mas decidiu que seria melhor esperar. Em algum
momento, pensou, ela revelaria quem era e por que estava ali, de preferência sem nem perceber que o fizera. Esse era sempre o melhor jeito de obter informações -
sem que o alvo soubesse. Como pregava Shamron, era melhor que um espião coletasse dados como um batedor de carteiras, e não como um assaltante.
Gabriel permaneceu imóvel no quarto de Madeline, com o tambor da arma reconfortantemente pressionado contra a própria face, enquanto a mulher entrava e fechava a
porta. Ela emitiu uma única sílaba, que Gabriel não pôde decifrar. Então, veio uma série de pequenos ruídos, sugerindo que a mulher estava pegando a correspondência
espalhada e colocando-a num saco plástico. Em seguida, ela foi para a sala de estar, onde ficou por aproximadamente dois minutos. Depois, entrou na cozinha e emitiu
a mesma sílaba de antes. Gabriel suspeitava que fosse uma vulgaridade em alguma língua como o hebraico, o francês, o italiano ou o alemão. Imaginava que a mulher
também estivesse vasculhando a casa.
Quando os passos da visitante alcançaram o pé da escada, Gabriel foi tomado pela indecisão. Se estivesse certo sobre as intenções da mulher, ela certamente entraria
no quarto de Madeline. Olhou em volta para ver se havia algum lugar para se esconder, mas nada pareceu adequado. O quarto era pouco maior do que a cela na qual Madeline
ficara presa. Conforme os passos da mulher foram se aproximando, Gabriel decidiu que não tinha outra escolha a não ser sair dali. Mas para onde? O banheiro era logo
do outro lado do corredor. Enquanto entrava nele sem fazer nenhum barulho, imaginou o que Shamron pensaria se visse o futuro diretor da inteligência israelense naquela
situação. Ele aprovaria, pensou Gabriel. Na verdade, tinha certeza de que o grande Ari Shamron já havia se escondido em lugares muito mais degradantes profissionalmente
do que o banheiro de uma moradia popular em Basildon.
Deixou a porta um pouquinho entreaberta - não mais que meio centímetro - e segurou a arma com os braços estendidos enquanto a mulher terminava de subir as escadas.
Ela entrou no quarto maior primeiro e, a julgar pelo barulho de gavetas se abrindo e portas batendo, vasculhou-o de cima a baixo. Cinco minutos depois, reapareceu
e passou pelo banheiro sem se deter, aparentemente sem saber que havia uma arma apontada para sua cabeça. Ela vestia o mesmo casaco impermeável amarronzado que estava
usando na França, mas seu penteado era um pouco diferente. Em sua mão esquerda havia uma sacola da Marks & Spencer. Parecia conter não só a correspondência.
Quando ela entrou no quarto de Madeline, a procura subitamente passou a ser violenta. Era uma busca profissional, pensou Gabriel, ouvindo com atenção. Uma busca
agressiva... Ela arrancou roupas, lençóis, colcha, fronha, esvaziou as gavetas no chão. Por fim, ouviu-se um estalido seco, como de madeira, seguido por um denso
silêncio, que foi quebrado pouco depois pela voz da mulher, baixa e calma, do tipo que se usa para reportar notícias a um superior através de um aparelho que transmite
sinais em ondas. Gabriel não compreendia o que ela estava dizendo - ele não entendia bem línguas eslavas -, mas tinha certeza de uma coisa: a mulher falava em russo.
35
BASILDON, ESSEX
O carro da mulher, um Volvo sedã, encontrava-se estacionado em frente do menor prédio de Lichfields, do outro lado da rua. Ela andou direto até ele, segurando a
sacola da Marks & Spencer na mão esquerda com certa dificuldade; devia estar pesada. A direita empunhava o guarda-chuva, que era um mero acessório, pensou Gabriel,
observando-a da janela de Madeline, pois a chuva havia parado. Depois de abrir a porta do automóvel, jogou a sacola no banco do carona e entrou, deixando o guarda-chuva
aberto até que estivesse segura dentro do carro. O motor hesitou um pouco antes de voltar à vida com uma espécie de tosse. Esperou até chegar aos limites da propriedade
para ligar os faróis. Dirigia rápido, mas com cuidado, como uma profissional.
Gabriel deu mais uma olhada na destruição causada pela mulher no quarto de Madeline e apressou-se escada abaixo. Quando chegou à porta de entrada,
Keller já havia manobrado o carro e o esperava na rua. Gabriel entrou depressa e fez um meneio de cabeça, para que seguissem a mulher.
- Mas tenha cuidado: ela é boa.
- Boa como?
- No nível da Central Moscovita.
- Do que você está falando?
- Eu posso estar errado, mas acredito que aquela mulher seja da KGB.
Tecnicamente, não havia mais KGB, é claro; ela fora dissolvida pouco após o colapso do antigo império soviético. A Federação Russa possuía dois serviços de inteligência:
o FSB e o SVR. O primeiro lidava com assuntos internos: contrainteligência, contraterrorismo, a mafiya e os ativistas pró-democracia corajosos ou estúpidos o suficiente
para desafiar os homens que agora governavam a Rússia de dentro dos muros do Kremlin.
O SVR era o serviço secreto russo no exterior. Ele comandava sua rede internacional de espiões do mesmo quartel-general isolado em Yasenevo que servira de escritório
central do Primeiro Diretório Geral da KGB. Os oficiais do SVR ainda o chamavam de Central Moscovita, e não é de se admirar que até os cidadãos russos ainda se referissem
a ele como KGB. E tinham motivos para isso. O Kremlin podia até ter mudado o nome do serviço, mas sua missão permanecia a mesma: penetrar nos países-membros da OTAN
e enfraquecê-los - os Estados Unidos e a Grã-Bretanha estavam no topo da lista.
Mas por que uma agente do SVR seguira Gabriel e Keller até uma antiga igreja nas montanhas do Lubéron? E por que a mesma agente havia vasculhado a casa da família
de uma garota inglesa morta, que fora amante do primeiro-ministro britânico... Que fora sequestrada enquanto passava férias na Córsega... Que morrera queimada no
porta-malas de um Citroen C4 numa praia em Audresselles?
- Não vamos nos precipitar - alertou Keller.
- Eu ouvi muito bem - retrucou Gabriel.
- Você ouviu uma mulher falando russo.
- Não, eu ouvi uma agente do Centro Moscovita revirando um quarto.
Eles seguiam pela A127, rumo a oeste. Eram quase oito horas. Ainda havia engarrafamento nas pistas que iam para o leste, um resquício do horário de rush londrino,
mas no sentido oeste o tráfego fluía depressa. A mulher estava mais ou menos 200 metros adiante, mas Keller não tinha problemas em acompanhar as características
lanternas traseiras do velho Volvo.
- Digamos que você esteja certo - disse ele, olhando diretamente para a frente. - Digamos que a KGB, ou o SVR, ou como diabos você quiser chamar, esteja ligado ao
sequestro de Madeline Hart.
- A esta altura, eu diria que é um fato indiscutível.
- Está certo. Mas qual é a ligação?
- Ainda estou tentando descobrir. Mas, se eu tivesse que chutar, diria que era uma operação deles desde o princípio.
- Operação? - perguntou Keller, incrédulo. - Você está dizendo que os russos sequestraram a amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel não respondeu; ele mesmo ainda não acreditava nisso completamente.
- Você me permitiria lembrá-lo de alguns fatos de destaque? - perguntou Keller.
- Por favor.
- Marcei Lacroix e René Brossard não eram russos e não trabalhavam para o SVR. Ambos faziam parte do crime organizado francês, com extensas fichas criminais em Marselha
e no sul da França.
- Talvez não soubessem para quem estavam trabalhando.
- E quanto a Paul?
- Não sabemos nada sobre ele, a não ser que fala francês como se tivesse aprendido ouvindo CDs de algum curso de línguas... ou assim afirmou o grande Don Anton Orsati
da Córsega.
- Que a paz esteja com ele.
Gabriel bateu com os nós dos dedos no para-brisa e disse:
- Ela está muito na frente.
- Está tudo sob controle.
- Diminua a distância um pouco.
Keller acelerou por alguns segundos, então voltou ao normal.
- Você acha que Paul é russo?
- Isso explicaria o fato de a polícia francesa não ter conseguido associar um nome ao seu rosto.
- Mas por que ele contrataria criminosos franceses para sequestrar Madeline em vez de fazer o trabalho por conta própria?
- Já ouviu falar de uma operação de bandeira falsa? - perguntou Gabriel. - Serviços de inteligência frequentemente conduzem operações que causariam danos políticos
ou diplomáticos caso seu envolvimento direto viesse a público. Às vezes eles se fazem passar por membros de outras agências. Às vezes se fazem passar por coisas
completamente diferentes.
- Como criminosos franceses?
- Você ficaria surpreso.
- Há apenas um problema com a sua teoria.
- Apenas um?
- O SVR não precisa de dinheiro.
- Duvido muito que isso tudo tivesse relação com dinheiro.
- Você entregou duas maletas com 10 milhões de euros.
- Sim, eu sei.
- Se não tinha relação com dinheiro, por que o pagamento?
- A bandeira falsa foi tremulada até o fim - respondeu Gabriel.
Keller silenciou por um instante. Por fim, perguntou:
- E por que eles mataram Madeline?
- Não sei.
- Onde está a família dela?
- Não sei.
- Como os russos ficaram sabendo de Madeline e Lancaster?
- Também não sei.
- Talvez uma pessoa saiba.
- Quem?
- A mulher dirigindo aquele carro - disse Keller, apontando para as lanternas do Volvo.
- É melhor ser um batedor de carteira do que um assaltante.
- O que isso significa?
- Diminua a distância - ordenou Gabriel, batendo de novo com os nós dos dedos no vidro. - Ela está muito à frente.
A mulher passou por baixo do anel rodoviário M25, acelerou ao longo de uma paisagem de fazendas e campos e, então, entrou nos subúrbios de Londres, que, após trinta
minutos, deram lugar aos bairros do East End e, por fim, aos prédios comerciais do centro financeiro. De lá, passou pelo Soho e por Holborn em direção a Mayfair,
parando no meio-fio de um movimentado trecho da Duke Street, ao sul da Oxford Street.
Depois de ligar o pisca-alerta, a mulher saiu do Volvo e foi até um sedã Mercedes estacionado alguns metros adiante. Quando ela se aproximou do carro, o porta-malas
foi aberto, aparentemente por uma pessoa de dentro, pois Gabriel não viu a mulher sequer encostar nele. Ela colocou ali a sacola da Marks & Spencer, fechou-o com
um baque e voltou para o próprio automóvel. Dez segundos mais tarde, saiu vagarosamente da vaga e foi em direção à Oxford Street.
- O que devo fazer? - perguntou Keller.
- Deixe-a ir.
- Por quê?
- Porque quem abriu o porta-malas daquele Mercedes está observando para ver se alguém vai segui-la.
Keller e Gabriel examinaram a rua. Havia restaurantes dos dois lados, todos atendendo o público turista, e as calçadas estavam lotadas de pedestres. Qualquer um
deles podia estar com a chave do Mercedes.
- E agora? - perguntou Keller.
- Nós esperamos.
- O quê?
- Saberei quando virmos.
- Batedores de carteiras e assaltantes?
- Algo desse tipo.
Keller fitava o Mercedes, mas Gabriel olhava em volta, para o pesadelo gastronômico que era aquela parte da Duke Street: Pizza Hut, Garfunkel's, um lugar chamado
Pure Waffle, o que quer que isso significasse. O requinte da rua era o Bella Italia, franquia de uma rede de restaurantes espalhados pela cidade, e foi sobre ele
que o olhar de Gabriel se fixou.
Um casal de idades muito díspares saíam naquele momento pela porta, supostamente após uma refeição. O homem usava um chapéu à prova d'agua para se proteger da garoa
leve e a mulher olhava para dentro da bolsa como se procurasse alguma coisa. Mais cedo naquele dia, nas salas de exposição da Galeria Courtauld, ela estava segurando
um guia aberto na página errada e ele usava óculos escuros. Agora, não havia óculos de nenhum tipo. Depois de ajudá-la a acomodar-se no banco do carona do Mercedes,
ele contornou o carro e sentou-se ao volante. Quando o motor deu a partida, a rua pareceu tremer. Então, o automóvel disparou com um leve cantar de pneus e cruzou
a Oxford Street no momento em que a luz do semáforo ficou vermelha.
- Boa jogada - disse Keller.
- Concordo.
- Devo tentar segui-lo?
Gabriel balançou a cabeça lentamente. Eles eram bons, pensou. No nível da Central Moscovita.
O Grand Hotel Berkshire não era grandioso nem ficava no charmoso condado de Berkshire, mas no fim de uma fileira de casas eduardianas na West Cromwell Road, entre
uma loja de eletrônicos baratos e um cibercafé suspeito.
Gabriel e Keller chegaram lá à meia-noite. Eles não tinham reserva nem bagagem; estava tudo dentro do flat na Bayswater, que Gabriel presumia que estivesse sob vigilância
dos russos. Pagou em dinheiro por uma estadia de duas noites e disse ao recepcionista noturno que os dois não esperavam visitas e que não queriam interrupções de
nenhuma espécie, nem do serviço de quarto. O funcionário não viu nada de incomum nas instruções de Gabriel. O Grand Hotel Berkshire - ou o GHB, como diziam seus
administradores para abreviar - servia àqueles que tomavam as estradas menos percorridas.
Os aposentos deles eram no quarto e último andar e tinham uma vista da rua própria para um franco-atirador. Gabriel insistiu que Keller dormisse primeiro. Então,
sentou diante da janela com a arma repousada no colo e os pés apoiados no peitoril, enquanto cinco questões se repetiam sem parar na sua cabeça. Por que a inteligência
russa teria sido tão ousada a ponto de sequestrar a amante do primeiro-ministro britânico? Por que o pagamento de resgate, se os russos certamente não estavam atrás
de dinheiro? Por que mataram Madeline? Onde estava sua família? E quanto disso tudo Jonathan Lancaster e Jeremy Fallon sabiam? Respostas satisfatórias fugiam a sua
compreensão. Ele podia elaborar palpites, fazer deduções, mas apenas isso. Precisava bater mais algumas carteiras, pensou - e, se necessário, fazer um ou dois assaltos
também. E depois? Pensou na velha signadora e em suas profecias sobre um antigo inimigo e a cidade dos hereges no leste.
Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer, morrerá...
Bem nesse instante, um caminhão de entrega de jornais parou em frente a uma loja, do outro lado da rua. Gabriel consultou o relógio. Quase quatro da madrugada, hora
de acordar Keller e de ele mesmo dormir um pouco. Em vez disso, pegou o livro de E. M. Forster, do quarto de Madeline, abriu numa página aleatória e começou a ler:
um jogo complicado estava sendo disputado sem parar na encosta da montanha durante toda a tarde. Lucy não conseguia descobrir do que se tratava e como dividiam-se
os jogadores...
Gabriel fechou o livro e observou o caminhão se afastar na rua escura e úmida. Então compreendeu. Mas como provar? Ele precisava de alguém que entendesse do mundo
obscuro da política e dos negócios russos. Alguém que fosse tão implacável quanto os homens do Kremlin.
Precisava de Viktor Orlov.
36
CHELSEA, LONDRES
Viktor Orlov sempre tivera habilidade com números. Nascido em Moscou t. durante os dias mais sombrios da Guerra Fria, estudou no prestigiado Instituto de Mecânica
de Precisão e Óptica de Leningrado e trabalhou como físico no programa de desenvolvimento de armas nucleares da União Soviética. Por sugestão dos superiores, juntou-se
ao Partido Comunista. Mas, anos mais tarde, em uma entrevista dada a um jornal britânico, alegou nunca ter acreditado de fato naquela empreitada. “Filiei-me ao Partido
por ser a única via disponível para subir na carreira”, disse ele sem nenhum traço de arrependimento. “Suponho que pudesse ter-me tornado um dissidente, mas o gulag
nunca me atraiu muito.”
Quando a União Soviética deu o último suspiro, Orlov não derramou nenhuma lágrima. Na realidade, ficou terrivelmente bêbado de vodca soviética barata e correu pelas
ruas de Moscou gritando: “O rei está morto!” Na manhã seguinte, de ressaca, desvinculou-se do Partido, retirou-se do programa de desenvolvimento nuclear soviético
e jurou que ficaria rico. Em poucos anos, obteve uma fortuna considerável importando computadores, aparelhos e outros bens ocidentais para o mercado russo incipiente.
Mais tarde, usou a fortuna para adquirir a maior companhia estatal de aço da Rússia, além da Ruzoil, a gigantesca siberiana de petróleo, a preço de banana. Viktor
Orlov, antes um físico do governo que tivera de dividir um apartamento com duas outras famílias soviéticas, tornou-se um bilionário consagrado e o homem mais rico
da Rússia. Ele foi um dos primeiros oligarcas, um barão gatuno que construiu a fortuna saqueando as joias da coroa do Estado soviético.
Orlov não pedia desculpas por ter se tornado rico dessa forma. “Se eu tivesse nascido inglês, meu dinheiro poderia ter vindo de forma limpa,” disse ele uma vez a
um entrevistador britânico. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.”
Mas, na Rússia pós-soviética, uma terra sem lei e tomada pelo crime e a corrupção, a fortuna fez de Orlov um alvo. Ele havia sobrevivido a três atentados, e os rumores
sugeriam que, em retaliação, ordenara a morte de vários homens. Porém, a maior ameaça viria do homem que assumira a presidência depois de Boris Yeltsin. Ele achava
que Orlov e os outros oligarcas haviam roubado os bens mais valiosos do país e tinha a intenção de tomá-los de volta. Após se estabelecer no Kremlin, o novo presidente
convocou Orlov e exigiu duas coisas: sua companhia de aço e a Ruzoil.
- E não meta o nariz em política - acrescentou, ameaçador. - Caso contrário, faço você sumir.
Orlov concordou em abrir mão dos interesses no aço, mas não da Ruzoil. O presidente não ficou contente. Logo ordenou que os procuradores abrissem um inquérito de
fraude e suborno contra ele e, dentro de uma semana, tinha um mandado de prisão em mãos. Sabiamente, Orlov voou para Londres, onde se tornou um dos críticos mais
abertos e eficientes do presidente russo.
Por muitos anos, a Ruzoil ficou congelada por lei, além do alcance de Orlov e dos novos senhores do Kremlin. Por fim, ele foi persuadido a ceder em nome de um acordo
secreto para libertar quatro reféns de um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Em troca, os britânicos compensaram Orlov tornando-o membro do reino e
concedendo-lhe um breve e muito secreto encontro com Sua Majestade, a Rainha. O Escritório enviou-lhe um bilhete de agradecimento, ditado por Chiara e escrito à
mão por Gabriel. Ari Shamron entregou-o e o queimou assim que Orlov terminou de ler.
- Algum dia eu terei a chance de conhecer esse homem notável pessoalmente?
- Não - respondera Shamron.
Determinado, Orlov entregara seu número mais privado a Shamron, que por sua vez o passara a Gabriel. Ele ligou mais tarde naquela manhã, de um telefone público perto
do Grand Hotel Berkshire, e surpreendeu-se quando o próprio Orlov o atendeu.
- Eu sou uma das pessoas que você salvou ao entregar a Ruzoil - apresentou-se Gabriel, sem mencionar seu nome. - Fui eu que escrevi o bilhete que o velho queimou
quando você terminou de ler.
- Ele é uma das pessoas mais desagradáveis que já conheci.
- Espere até conhecê-lo melhor.
Orlov deu uma risada seca e curta.
- A que devo a honra?
- Preciso de sua ajuda.
- Na última vez que você precisou da minha ajuda, perdi uma companhia de petróleo no valor de pelo menos 16 bilhões de dólares.
- Dessa vez não vai custar nada.
- Estou livre às duas da tarde.
- Onde?
- Número 43 - disse Orlov, e desligou.
O endereço fornecido era da mansão de tijolos vermelhos de Orlov na Cheyne Walk, em Chelsea. Gabriel foi até lá a pé e Keller o acompanhou a uma distância de 100
metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado. A casa alta e estreita era coberta de glicínias. Como a dos vizinhos, era afastada da rua, protegida
por uma cerca de ferro batido. Uma limusine Bentley blindada estava parada do lado de fora, com um chofer ao volante. Logo atrás do carro, havia um Range Rover preto
ocupado por quatro membros da equipe de segurança de Orlov. Todos faziam parte do antigo regimento de Keller: a elite do SAS.
Os guarda-costas observaram Gabriel com óbvia curiosidade enquanto ele seguia pelo caminho no jardim e tocava a campainha. Surgiu uma criada em uniforme engomado
preto e branco. Após averiguar a identidade de Gabriel, conduziu-o por uma escadaria larga e elegante até o escritório de Orlov. A sala era uma réplica exata do
escritório pessoal da rainha no Palácio de Buckingham - exceto por uma TV de plasma gigantesca que exibia notícias e dados do mercado financeiro ao redor do mundo.
Quando Gabriel entrou, Orlov estava parado diante da tela, como que em transe. Como de costume, ele vestia um terno italiano preto e uma gravata de um rosa vivo
com um enorme nó Windsor. Seus cabelos grisalhos, ralos, estavam espetados com gel. Os números se refletiam fracamente em seus óculos da moda e ele não mexia um
músculo, a não ser o do olho esquerdo, que tremia de nervosismo.
- Quanto você ganhou hoje, Viktor?
- Na verdade - disse Orlov, ainda com os olhos fixos na tela -, acho que perdi 10 ou 20 milhões.
- Sinto muito.
- Amanhã é um novo dia.
Orlov virou-se e observou Gabriel por um longo momento antes de estender a mão bem cuidada. Sua pele estava fria e era particularmente macia, como a mão de uma criança.
- Como sou russo, não me choco com facilidade. Mas devo admitir que estou surpreso ao vê-lo aqui no escritório. Achei que nunca iríamos nos conhecer.
- Desculpe-me, Viktor. Eu deveria ter vindo há muito tempo.
- Eu entendo por que não veio. - Orlov sorriu tristemente. - Nós temos algo em comum: fomos alvos do Kremlin. E conseguimos sobreviver.
- Alguns de nós sobreviveram melhor que os outros - disse Gabriel, contemplando a magnífica sala.
- Eu dei sorte. E o governo britânico tem sido bom comigo - enfatizou Orlov por isso não quero fazer nada que aborreça o pessoal de Whitehall.
- Tenho o mesmo interesse.
- Fico feliz por isso. E, então, Sr. Allon, por que não me conta do que se trata sua visita?
- Volgatek Óleo e Gás.
Orlov sorriu.
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
37
CHEYNE WALK, CHELSEA
Viktor Orlov nunca se mostrou relutante em falar sobre dinheiro. Na verdade, raramente falava de qualquer outro assunto. Ele se gabava de pagar 10 mil dólares por
cada um dos ternos e de suas camisas, que eram as melhores do mundo. Dizia que seu relógio de diamantes e ouro estava entre os mais caros já produzidos e, ainda
por cima, possuía o segundo exemplar dele, pois havia destruído o primeiro na Suíça, ao batê-lo contra um pinheiro enquanto esquiava. “Foi burrice minha”, falou
a um tabloide britânico depois da perda multimilionária. “Esqueci de tirar o maldito relógio antes de sair do chalé.”
Seu vinho preferido era o Château Pétrus, o famoso Pomerol que ele bebia como se fosse água. Era um pouco cedo, até para o anfitrião, então tomaram chá. Orlov bebeu
o seu à moda russa, através de um cubo de açúcar preso entre os dentes da frente. Seu braço estava jogado na direção de Gabriel, sobre o encosto de um sofisticado
sofá de brocado, e ele girava os óculos caros pela haste, um gesto que sempre repetia ao falar sobre a Rússia.
Não o país da sua infância ou no qual servira como cientista nuclear, mas o que chegara ao mundo tropeçando, após o colapso da União Soviética. A Rússia sem lei,
bêbada, confusa, perdida. Ao seu povo traumatizado fora prometida uma segurança que iria do berço ao túmulo. Agora, de repente, viam-se obrigados a lutar pela sobrevivência.
Darwinismo social dos mais ferozes. Os fortes transformavam os fracos em presas, os fracos passavam fome e os oligarcas reinavam, soberanos - os novos czares russos,
os novos komissary. Eles marchavam por Moscou em caravanas à prova de balas, cercados por seguranças fortemente armados. À noite, os guarda-costas brigavam uns com
os outros nas ruas.
- Era o Leste Selvagem - disse Orlov, reflexivo. - Era uma loucura.
- Mas você adorava - replicou Gabriel.
- E como não adorar? Nós éramos deuses.
Logo cedo em sua carreira como capitalista, Orlov comandava o império nascente sozinho e com mão de ferro. Mas, depois da aquisição da Ruzoil, percebeu que precisava
de um segundo comandante. O escolhido foi Gennady Lazarev, um brilhante matemático teórico com quem havia trabalhado no programa soviético de armas nucleares. Ele
não sabia nada sobre capitalismo, mas, como Orlov, era bom com números. Lazarev aprendeu sobre os negócios do zero e o ex-oligarca o colocou no comando das operações
cotidianas da Ruzoil. Esse foi, segundo Orlov, o maior erro que ele já cometera em termos empresariais.
- Por quê? - perguntou Gabriel.
- Porque Gennady Lazarev era da KGB. Desde quando trabalhava no programa de armas nucleares.
- Você nunca suspeitou?
Orlov balançou a cabeça.
- Ele era muito bom, e muito leal ao escudo e à lança, que é como os capangas da KGB gostam de definir a si mesmos. Obviamente, Lazarev me traiu, entregando ao Kremlin
pilhas de documentos internos, que os procuradores do Estado mais tarde usaram para montar um caso contra mim. Quando fugi do país, gerenciou a Ruzoil como se fosse
dele.
- Ele o jogou para escanteio?
- Completamente.
- E quando você cedeu a Ruzoil para nos tirar da Rússia?
- Lazarev já estava fora àquela altura, comandando uma nova companhia estatal de petróleo. Aparentemente, o presidente russo escolheu o nome da empresa: Volgatek
Óleo e Gás. Na época, uma piada dizia que o presidente queria chamá-la de “KGB Óleo e Gás”, mas achou que o nome não seria bem aceito no Ocidente.
A Volgatek, continuou Orlov, não deveria atuar na produção doméstica de petróleo, que já se achava estabilizada. Seu único propósito deveria ser expandir a participação
da Rússia na produção internacional, aumentando, assim, o poder e a influência russa na esfera global. Apoiada pelos investimentos do Kremlin, a Volgatek fez compras
pela Europa, adquirindo uma cadeia de refinarias na Polônia, na Lituânia e na Hungria. Então, ignorando objeções dos americanos, assinou um contrato lucrativo de
perfuração com a República Islâmica do Irã, assim como acordos de desenvolvimento com Cuba, Venezuela e Síria.
- Está vendo o padrão? - perguntou Orlov.
- Os acordos são todos em países do antigo império soviético ou em países hostis aos Estados Unidos.
- Correto.
Mas a Volgatek não se contentou com isso, prosseguiu Orlov. A empresa expandiu suas operações para a Europa Ocidental, assinando acordos de refino e distribuição
na Grécia, na Dinamarca e na Holanda. Então, voltou suas atenções para o mar do Norte, onde queria perfurar dois novos campos descobertos nas Ilhas Ocidentais da
Escócia. Os geólogos da Volgatek estimavam que a produção alcançaria cem mil barris por dia, sendo que grande parte dos lucros fluiria diretamente para os cofres
do Kremlin. A companhia recorreu ao Departamento de Energia e Mudanças Climáticas da Grã-Bretanha para obter uma licença. Foi aí que o secretário de Energia pediu
a Viktor que aparecesse em seu escritório para um bate-papo.
- E o que você acha que eu disse?
- Que a Volgatek era um braço do Kremlin, administrada por um ex-membro da KGB.
- E o que você acha que o secretário fez com o pedido da Volgatek para perfurar no mar territorial da Grã-Bretanha?
- Jogou-o dentro do triturador de papel.
- Bem na minha frente - concordou Orlov, sorrindo. - Foi um som muito satisfatório.
- O Kremlin tem conhecimento de que foi você quem sabotou o acordo?
- Não que eu saiba. Mas tenho certeza de que Lazarev e o presidente russo suspeitaram do meu envolvimento. Eles sempre estiveram prontos para acreditar nas piores
coisas em relação a mim.
- E o que aconteceu depois?
- A Volgatek esperou um ano. Então, entraram com um segundo pedido de licença para perfuração. Mas, dessa vez, as coisas eram diferentes. Eles tinham um amigo dentro
de Downing Street, um homem que eles cultivaram durante um ano.
- Quem?
- Prefiro não dizer.
- Está bem, eu digo por você: o homem da Volgatek era Jeremy Fallon, o mais poderoso chefe de gabinete na história da Grã-Bretanha.
Orlov sorriu.
- Talvez devêssemos abrir uma garrafa de Pétrus, afinal.
Eles haviam entrado em águas perigosas. Gabriel sabia, certamente Orlov também, a julgar pelo olho esquerdo contraindo-se em ritmo furioso. Na infância, o tique
o tornara alvo de provocações impiedosas e maus-tratos. Isso o fazia queimar de ódio, e esse ódio o levara ao sucesso. Orlov queria derrotar todo mundo. Tudo por
causa do tique no olho esquerdo.
Agora, o olho estava cravado no cálice de vinho tinto Pomerol. Orlov ainda não tinha bebido. Ele também não havia respondido à pergunta um tanto quanto direta feita
por Gabriel no minuto anterior: “Por que Jeremy Fallon?”
- Por que não ele? - disse o russo, enfim. - Fallon era o cérebro de Lancaster. Lancaster era a marionete de Fallon. Ele puxava a corda e Lancaster acenava. E o
melhor: estava vulnerável a uma aproximação.
- Como assim?
- Ele não tinha onde cair morto. Era mais pobre que rato de igreja.
- Quem o apontou como alvo?
- Disseram-me que a indicação veio da rezidentura do SVR em Londres.
Rezidentura era a palavra usada pelo SVR para descrever suas operações em embaixadas locais. O rezident era o chefe de posto; a rezidentura, o próprio posto. Esse
era um resquício da época da KGB. Assim como a maioria das coisas relacionadas ao SVR.
- Como eles agiram?
- Lazarev e Fallon passaram a se encontrar em todos os lugares errados: festas, restaurantes, conferências, férias. Segundo boatos, Fallon passou um longo fim de
semana na casa de Lazarev em Gstaad e fez um cruzeiro pelas ilhas gregas em seu iate. Eu soube que eles se deram muito bem, mas isso não me surpreende: Gennady consegue
ser um canalha encantador quando quer.
- Mas houve mais do que uma ofensiva charmosa, não é, Viktor?
- Muito mais.
- Quanto?
- Cinco milhões de euros em uma conta bancária anônima na Suíça, cortesia do Kremlin. Tudo limpo. Sem nenhum rastro. O SVR cuidou dos arranjos.
- Quem disse?
- Prefiro não dizer.
- Ora, vamos, Viktor.
- Você claramente tem suas fontes, Sr. Allon, e eu tenho as minhas.
- Pelo menos diga de que lado vêm as suas informações.
- Do Leste - respondeu Orlov, querendo dizer que era de uma de suas muitas fontes em Moscou.
- Prossiga - pediu Gabriel.
Antes, Orlov tomou um pouco de vinho. Então, passou a explicar como a Volgatek havia entrado com um segundo pedido, dessa vez apoiada pelo segundo homem mais poderoso
de Whitehall. Mas o primeiro-ministro ainda estava no mínimo indeciso. O secretário de Energia mantinha-se contrário, mas Fallon o persuadiu a não rejeitar o pedido
de pronto. Isso o manteve tecnicamente vivo, mas por um fio.
- Então - disse Orlov, erguendo o braço em direção ao teto -, o secretário de Estado de repente aprova a licença, Jonathan Lancaster voa a Moscou para brindar com
champanhe no Kremlin e o homem que aceitou 5 milhões de euros está prestes a se tornar o próximo ministro do Tesouro.
- Eu preciso saber da fonte que lhe falou dos 5 milhões.
- Perguntado e respondido - disse o russo secamente.
Gabriel mudou de assunto:
- Qual é o estado atual das relações entre a Volgatek e seus negócios aqui em Londres?
- Como você deve imaginar, estamos em pé de guerra. É bastante parecido com a Guerra Fria: não declarada, mas violenta.
- Como assim?
- Lazarev apresentou ofertas maiores que as minhas em inúmeras aquisições. Para ele é fácil - acrescentou Orlov, ressentido -, pois não está jogando com o próprio
dinheiro. Ele também se diverte muito contratando meus melhores empregados. Joga um bolo de dinheiro... do Kremlin, é claro... e eles vão correndo para os pastos
verdejantes.
- Vocês se falam?
- Não diria que nos falamos. Quando nos encontramos em público, damos um aceno de cabeça polido e trocamos sorrisos rígidos. Nossa guerra se dá nas sombras. Devo
admitir que, ultimamente, Gennady tem me desgastado. E agora ele vai perfurar as águas de um país que passei a amar. Isso me deixa enojado.
- Então talvez você devesse agir.
- Como?
- Ajude-me a acabar com o acordo.
Orlov parou de girar os óculos e encarou Gabriel por um momento.
- Qual é seu interesse no assunto? - perguntou por fim.
- Estritamente pessoal.
- Por que alguém como você ligaria para o acesso de uma companhia de energia russa ao petróleo no mar do Norte?
- É um assunto complicado.
- Não esperaria menos de você.
Gabriel sorriu a contragosto. Então, disse em voz baixa:
- Acredito que o Kremlin tenha chantageado Jonathan Lancaster para obter os direitos de perfuração.
- Como?
Gabriel ficou em silêncio.
- Eu abri mão de uma companhia no valor de 16 bilhões de dólares para tirar você e sua mulher da Rússia - relembrou Orlov. - Acredito que isso me dê direito a uma
resposta. Como o chantagearam?
- Sequestrando a amante de Lancaster, que estava na Córsega.
Orlov nem piscou, então falou:
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
Eles conversaram até depois do anoitecer. No fim, Gabriel estava confiante de que entendera do que se tratava o jogo na encosta da montanha, mas a divisão dos jogadores
permanecia fora de sua compreensão. Tinha certeza de uma coisa, no entanto: era hora de dar uma palavrinha com Graham Seymour. Ligou de um telefone público da Sloane
Square e confessou ter entrado mais uma vez no país sem assinar o livro de hóspedes. Então, requisitou um encontro. Seymour disse uma hora e um lugar e desligou.
Gabriel colocou o telefone de volta no gancho e começou a andar, com Christopher Keller a 100 metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado.
38
HAMPSTEAD HEATH, LONDRES
Eles caminharam para a esquina do Hyde Park, embarcaram em um trem da linha Piccadilly com destino à Leicester Square e, então, fizeram a jornada longa e lenta na
Linha Norte até Hampstead. Keller entrou em um pequeno café na avenida principal e ficou esperando enquanto Gabriel caminhava sozinho pela South End Road. Ele adentrou
a charneca em Pryors Field, margeou os lagos de Hampstead e depois subiu a ladeira suave da Parliament Hill. Ao fundo, sob um véu de nuvens e neblina, brilhavam
as luzes do centro de Londres. Graham Seymour admirava a vista de um banco de madeira. Ele estava sozinho, sem contar os dois seguranças de capas de chuva parados
na trilha às suas costas, estáticos como peças de xadrez. Eles desviaram o olhar quando Gabriel passou sem uma palavra e sentou-se ao lado de Seymour. O homem do
MI5 não deu sinal de ter visto Allon chegar. Mais uma vez, estava fumando.
- Você devia parar com isso - disse Gabriel.
- E você devia ter me avisado que ia entrar no país de novo. Eu teria preparado um comitê de recepção.
- Eu não queria um comitê de recepção, Graham.
- Claro que não.
Seymour continuava a contemplar as luzes do centro londrino.
- Você chegou quando?
- Ontem à tarde.
- Por quê?
- Negócios em aberto.
- Por quê?
- Madeline - explicou Gabriel. - Eu vim por causa de Madeline.
Seymour voltou-se para ele pela primeira vez.
- Madeline está morta - disse ele lentamente.
- Sim, Graham, eu sei. Eu estava lá.
- Sinto muito - lamentou-se Seymour após um instante. - Eu não devia ter...
- Deixe isso para lá, Graham.
Os dois ficaram em silêncio. Estavam desconfortáveis por causa da natureza infeliz daquele caso, pensou Gabriel. Ambos haviam entrado no serviço de inteligência
para proteger o país e os cidadãos, e não políticos.
- Você deve ter descoberto algo importante - continuou Seymour. - Ou não teria me chamado.
- Você sempre foi bom, Graham.
- Não o bastante para impedi-lo de entrar em meu país quando bem entende.
Gabriel ficou calado.
- O que você descobriu?
- Acho que sei quem sequestrou Madeline Hart. Mais do que isso: acredito que saiba o porquê.
- Quem a sequestrou?
- KGB Óleo e Gás - respondeu Gabriel.
Seymour virou a cabeça bruscamente.
- Do que você está falando?
- O acordo da Volgatek, Graham. Madeline foi sequestrada para que os russos pudessem roubar o seu petróleo.
Não há pior sentimento para um espião profissional do que saber por intermédio do agente de outro serviço algo que ele mesmo já deveria saber. Seymour passou por
essa desonra com a maior elegância possível, de queixo empinado e cabeça erguida. Então, depois de calcular as consequências cuidadosamente, pediu uma explicação.
Gabriel começou contando tudo o que descobrira sobre Jeremy Fallon. Que ele havia se apaixonado por Madeline Hart. Que não era mais bem-vindo na Downing Street e
estava prestes a ser chutado de lá antes da eleição seguinte. Que aceitara um pagamento secreto de 5 milhões de euros de um tal Gennady Lazarev e depois usara seu
poder para forçar o acordo, passando por cima das objeções do secretário de Energia. Por fim, Gabriel falou da mulher russa que vira primeiro na igreja antiga do
Lubéron e, depois, em uma moradia popular abandonada em Basildon.
- Quem lhe falou sobre Jeremy Fallon e os 5 milhões? - perguntou Seymour.
- Eu gostaria de manter sigilo, se não se importa.
- É claro que sim... Mas quem é a fonte?
Gabriel respondeu com sinceridade. Seymour balançou a cabeça devagar.
- Viktor Orlov é biologicamente incapaz de dizer a verdade - retrucou. - Está sempre oferecendo supostas informações de inteligência sobre a Rússia ao MI6 e nenhuma
delas jamais se prova verdadeira.
- Se não fosse por Orlov, eu e Chiara não estaríamos vivos.
- Isso não significa que tudo o que ele diga seja verdade.
- Ele sabe mais do que qualquer pessoa no mundo sobre o lado B da indústria petroleira russa.
Seymour não pôde discordar.
- E você tem certeza quanto ao homem e à mulher que partiram no Mercedes? - perguntou ele. - Tem certeza que são os mesmos que o seguiram na galeria?
- Graham... - repreendeu Gabriel, desgastado.
- Todos nós cometemos erros.
- Alguns mais que outros.
Seymour atirou o cigarro para longe com raiva.
- Por que só estou ouvindo isso agora? Por que não me ligou na noite passada, quando os estava vigiando?
- E o que você teria feito? Alertado o chefe da seção de contrainteligência russa? Informado o seu diretor? - Gabriel ficou quieto por um momento. - Se eu o tivesse
procurado na noite passada, daria início a uma série de acontecimentos que levariam à destruição de Jonathan Lancaster e seu governo.
- E por que você me procurou agora?
Gabriel não respondeu. Seymour ia acender outro cigarro, mas se deteve.
- Bastante irônico, não?
- O quê?
- Eu peço para você encontrar Madeline Hart para proteger o primeiro-ministro de um escândalo. E agora você me traz informações que podem destruí-lo.
- Não era a minha intenção.
- Você não pode provar uma vírgula, sabia? Nem uma vírgula.
- Eu sei disso.
Seymour suspirou fundo.
- Eu sou o vice-diretor do Serviço de Segurança de Sua Majestade - disse ele, mais para si do que para Gabriel. - Vice-diretores do MI5 não derrubam governos britânicos.
Eles os protegem de inimigos internos e externos.
- E se o governo for sujo?
- Qual não é? - retrucou Seymour prontamente.
Gabriel não respondeu. Ele não estava no clima para um debate relativista sobre ética na política.
- E se eu o persuadisse a ir embora e esquecer o assunto? - perguntou Seymour. - O que você faria?
- Eu atenderia aos seus desejos e voltaria para Jerusalém.
- E faria o quê?
- Parece que Shamron tem planos para mim.
- Algo que você queira me contar?
- Ainda não.
Seymour claramente ficou intrigado, mas deixou passar o assunto por ora:
- E o que você acharia de mim?
- O que eu acho importa?
- Eu me importo - falou Seymour, sério.
Gabriel extravasou tudo o que estava pensando:
- Acho que você passaria o resto da vida pensando no que o SVR está fazendo com todo o dinheiro extraído do mar do Norte. E você acabaria se sentindo culpado por
não ter feito nada para impedir.
Seymour permaneceu em silêncio.
- Nós temos um ditado em nosso serviço, Graham. Para nós, uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Nós somos britânicos: não temos ditados e não gostamos de escândalos. Na verdade, vivemos com medo até do menor passo em falso.
- Para isso você tem a mim.
Seymour encarou Gabriel com seriedade por um instante.
- O que você está sugerindo exatamente?
- Deixe que eu vá à guerra contra a Volgatek em seu lugar. Eu acharei a prova de que eles roubaram seu petróleo.
- E depois?
- Eu o roubarei de volta.
Gabriel e Seymour passaram a meia hora seguinte considerando com cuidado os detalhes do que talvez fosse o acordo operacional menos ortodoxo já feito por dois serviços
ocasionalmente aliados. Mais tarde, ele ficaria conhecido como o acordo da Parliament Hill. Gabriel teria licença para operar em solo britânico como fosse necessário,
desde que sem violência e sem ameaçar a segurança nacional britânica, e se comprometia a repassar qualquer de inteligência decidiria sozinho como usá-la.
O pacto foi selado com um aperto de mãos e Graham partiu, seguido pelos guarda-costas.
Gabriel permaneceu na charneca por mais dez minutos antes de voltar para a avenida principal de Hampstead e buscar Keller. Juntos, pegaram o metrô para Kensington
e andaram até a embaixada israelense. No posto do Escritório, havia apenas um funcionário de baixo escalão, que se sobressaltou quando a lenda entrou pela porta
sem aviso prévio.
Gabriel deixou Keller na antessala e encaminhou-se para a câmara de comunicações seguras, que os veteranos do Escritório - como ele - chamavam de Santo dos Santos.
O número da casa de Shamron em Tiberíades ainda estava no diretório de contatos de emergência. Ele atendeu após o primeiro toque, como se estivesse esperando ao
lado do telefone. Embora a ligação fosse criptografada, os dois conversaram no conciso patoá do Escritório, uma língua que nenhum tradutor ou supercomputador jamais
poderia decifrar. Gabriel explicou rapidamente o que havia descoberto, o que planejava fazer em seguida e do que precisava para prosseguir. Prover os recursos para
uma operação como aquela não era responsabilidade de Shamron. Ele também não tinha autorização oficial para aprová-la. Apenas Uzi Navot poderia dar inicio a uma
empreitada desse tipo - e só após obter a bênção do próprio primeiro-ministro.
E assim estava sendo preparado o terreno para uma disputa que entraria para os anais como uma das piores já vistas na rica história do Escritório. Começou às 22hl8
no horário de Israel, quando Shamron ligou para a casa de Navot dizendo que Gabriel pretendia guerrear contra a KGB Óleo e Gás e que aprovava a operação. Navot deixou
claro que tal iniciativa não estava prevista. Não para um futuro próximo. Nem para nunca. Shamron desligou sem dizer mais nada e telefonou para o primeiro-ministro
israelense antes que Navot o fizesse.
- Por que entrar em guerra com o presidente russo? - perguntou o primeiro-ministro. - Afinal, é só petróleo.
- Não é só petróleo, pelo menos não para Gabriel. Além disso, você quer ou não quer que ele seja o próximo diretor do Escritório?
- Você sabe que sim, Ari.
- Então deixe-o acertar uma antiga conta com os russos, e você o terá.
- Quem vai falar com Uzi?
- Duvido que ele vá me atender.
E, assim, o primeiro-ministro israelense, agindo sob o comando de Ari Shamron, ligou para o diretor do serviço de inteligência no exterior e ordenou que ele aprovasse
uma operação da qual o subordinado não queria nem ouvir falar. Mais tarde, testemunhas afirmariam que houve bate-boca e, segundo boatos, Navot ameaçou renunciar
ao cargo. Mas eram apenas boatos mesmo, pois Navot amava ser diretor quase tanto quanto Shamron havia amado um dia.
Como prenúncio do que estava por vir, Navot se recusou a ligar para Gabriel a fim de conceder sua bênção, deixando essa tarefa para um modesto oficial administrativo.
Allon recebeu a autorização oficial de operação pouco depois da meia-noite, no horário de Londres, por um telefonema que durou menos de dez segundos. Depois de desligar,
ele saiu da embaixada com Keller e partiu pelas ruas londrinas vazias em direção ao Grand Hotel Berkshire.
- E quanto a mim? - perguntou Keller. - Devo ficar aqui ou embarcar no próximo voo para a Córsega?
- Você decide.
- Acho que vou ficar.
- Não vai se arrepender.
- Eu não falo hebraico.
- Isso é bom.
- Por quê?
- Porque poderemos tirar sarro de você e você jamais saberá.
- Como vocês vão me usar?
- Você fala francês como um nativo, tem diversos passaportes limpos e é muito bom com armas. Tenho certeza de que pensaremos em algo.
- Posso dar um conselho?
- Só um.
- Você vai precisar de um russo.
- Não se preocupe - disse Gabriel. - Eu já tenho um.
39
GRAYSWOOD, SURREY
A irregular casa tudoriana ficava a 1,5 quilômetro da antiga igreja de Grayswood, à beira do bosque de Knobby Copse. Um deque de madeira levava até ela e grossas
cercas vivas a protegiam das vistas. Havia um jardim denso onde se podia refletir profundamente, 8 acres privativos para enfrentar demônios internos, e um lago de
pesca onde não se pescava fazia anos. As percas que nadavam em suas águas escuras agora estavam do tamanho de tubarões. O Departamento de Acomodações - divisão do
Escritório que adquiria e fazia a manutenção de propriedades seguras - referia-se ao local como lago Ness.
Gabriel e Keller chegaram à casa no dia seguinte, pouco depois do meio-dia, num Land Rover 4x4 providenciado pelo Departamento de Transportes. Na parte de trás do
carro, havia duas caixas de aço inoxidável cheias de aparelhos de comunicação criptografada tirados da sala-cofre da embaixada, além de várias sacolas de compras.
Depois de encherem a despensa com os mantimentos, retiraram os panos dos móveis, sopraram as teias de aranhas dos cantos e vasculharam a casa de ponta a ponta em
busca de escutas. Então, foram para o jardim e pararam à beira do lago. Barbatanas sulcavam a superfície negra.
- Não era uma piada - disse Keller.
- Não.
- Do que elas se alimentam?
- Devoraram um dos meus melhores agentes da última vez que estivemos aqui.
- Aqui tem equipamento de pesca?
- No vestíbulo.
Keller entrou na casa e achou um par de varas encostado em um canto, perto de um remo velho e lascado. Enquanto procurava uma isca, ouviu um baque seco, como o de
um galho se quebrando. Ao sair, sentiu o cheiro inconfundível de pólvora no ar. Então, avistou Gabriel subindo o caminho do jardim com a Beretta numa das mãos e
um peixe de 60 centímetros na outra.
- Isso me parece muito pouco esportivo - repreendeu Keller.
- Não tenho tempo para esporte. Preciso descobrir uma forma de infiltrar um agente em uma empresa de petróleo russa. E alimentar muitas bocas.
No fim da tarde, enquanto as cercas vivas se fundiam à escuridão e a temperatura caía para um frio cortante, três carros chegaram à isolada casa tudoriana. Os veículos
eram todos de marcas e modelos diferentes, tão distintos quanto os nove agentes que deles saíram, cansados do longo dia de viagem clandestina. Nos corredores e salas
de reunião do King Saul Boulevard, eles eram conhecidos pelo codinome Barak - “relâmpago” em hebraico devido a sua capacidade de se reunir e atacar rapidamente.
Os americanos, com inveja da inigualável lista de realizações operacionais, chamavam-nos de “a equipe de Deus”.
Chiara entrou na casa primeiro, seguida por duas mulheres. Dina Sarid, pequena e de cabelos escuros, era a maior especialista em terrorismo do Escritório e tinha
uma mente analítica brilhante que a tornava útil em qualquer tipo de operação. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, alta e com cabelos cor de areia, Rimona Stern
havia começado sua carreira na inteligência militar, mas agora fazia parte da unidade do Escritório que cuidava exclusivamente do programa nuclear iraniano. Por
acaso, também era sobrinha de Shamron. Aliás, as memórias mais ternas que Gabriel tinha de Rimona eram de uma criança destemida desembestando em um patinete pela
ladeira íngreme da casa de seu famoso tio em Tiberíades.
Depois delas, veio uma dupla de agentes de campo versáteis chamados Oded e Mordecai, seguidos por Yaakov Rossman, uma figura rígida de cabelos pretos e rosto marcado
por cicatrizes, que havia se especializado em recrutar e manter espiões árabes. Também chegou Yossi Gavish, oficial sênior do Departamento de Pesquisas, a divisão
de análise do Escritório. Nascido em Londres e educado em Oxford, ainda falava hebraico com sotaque britânico.
Do último carro saíram dois homens - um de meia-idade e outro na flor da vida. O mais velho era ninguém menos do que Eli Lavon: o famoso arqueólogo caçador de bens
saqueados no Holocausto e de nazistas criminosos de guerra, além de um verdadeiro artista em termos de vigilância. Como de costume, vestia muitas camadas de roupas
que não combinavam. Tinha cabelos ralos que desafiavam qualquer tipo de penteado e olhos vigilantes como os de um terrier. Seus mocassins de camurça não fizeram
barulho algum quando ele cruzou o hall de entrada e mergulhou no caloroso abraço de Gabriel. Lavon fazia praticamente tudo em silêncio. Certa vez, Shamron dissera
que o lendário espião do Escritório era capaz de desaparecer enquanto dava um aperto de mão.
- Tem certeza de que quer fazer isso? - perguntou Gabriel.
- Eu não ficaria de fora por nada neste mundo. Além do mais, seu protagonista disse que não chegaria nem perto dos russos se eu não estivesse na cobertura.
Gabriel olhou para a figura alta parada logo atrás dos ombros miúdos de Lavon. Seu nome era Mikhail Abramov. Magro, de pele clara, rosto delicado e olhos glaciais,
ele fora da Rússia para Israel na adolescência e se juntara à Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais das Forças Armadas de Israel. Já descrito por Shamron
como um “Gabriel sem consciência”, havia assassinado muitos dos maiores cérebros terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Agora, executava missões similares
em nome do Escritório, embora seus incontáveis talentos não se restringissem a mexer com armas. Trabalhando com uma agente da CIA chamada Sarah Bancroft, Mikhail
se infiltrara no séquito de Ivan Kharkov, iniciando a longa e sangrenta guerra entre o Escritório e o exército privado de Ivan. Se Viktor Orlov não houvesse aberto
mão da Ruzoil para o Kremlin, Mikhail teria morrido na Rússia, ao lado de Gabriel e Chiara. Em sua face de porcelana, havia uma cicatriz profunda causada pelo punho
de marreta de Ivan.
- Você não precisa fazer isso - disse Gabriel, tocando a cicatriz. - Podemos achar outra pessoa.
- Que outra pessoa? - perguntou Mikhail, olhando em volta.
- Yossi, por exemplo.
- Yossi fala quatro línguas, mas não russo. Poderiam falar em cortar a garganta dele e Yossi acharia que estavam pedindo um frango à Kiev.
Os membros da fantástica equipe de Gabriel já haviam se hospedado naquela casa antes, então instalaram-se em seus antigos quartos sem muita discussão enquanto Chiara
ia para a cozinha preparar uma elaborada refeição para o reencontro. O prato principal era a enorme perca, assada em vinho branco e ervas. Gabriel acomodou Keller
à sua direita à mesa de jantar, um sinal deliberado de que, pelo menos por ora, o inglês deveria ser tratado como um membro da família. A princípio, os outros ficaram
desconfortáveis com sua presença, mas gradualmente se abriram. Na maior parte do jantar, falou-se inglês em respeito a ele. Mas, ao discutirem a última operação,
mudaram para o hebraico.
- Do que eles estão falando? - perguntou Keller discretamente a Gabriel.
- Sobre um novo programa de televisão em Israel.
- Você está me dizendo a verdade?
- Não.
O humor deles estava mais sombrio do que de costume, pois o espectro de Ivan Kharkov ainda os assombrava. Ninguém mencionou seu nome durante o jantar. Em vez disso,
referiam-se apenas à matsav, a situação. Yossi, profundamente erudito em estudos clássicos e história, servia de guia. Ele via um mundo girando descontroladamente.
As promessas da grande Primavera Árabe haviam sido expostas como mentiras, dizia ele, e em breve haveria uma escalada do islamismo radical, estendendo-se da África
Subsaariana até a Ásia Central. Os Estados Unidos estavam quebrados, cansados, e não tinham mais condições de liderar nada. Era possível que essa nova desordem mundial
turbulenta produzisse um eixo do século XXI que tivesse à frente China, Irã e, claro, Rússia. Sozinhos, rodeados por um mar de inimigos, estariam Israel e o Escritório.
Ao fim da explicação, todos tiraram os pratos e foram para a sala de estar, onde Gabriel enfim discorreu sobre o motivo para chamá-los à Inglaterra. Eles já sabiam
partes da história. Agora, em pé à frente deles, com a lareira a gás queimando atrás de si, Gabriel terminava de pintar o quadro com agilidade. Relatou tudo o que
havia acontecido, começando pela busca desesperada por Madeline Hart na França e terminando com o acordo na noite anterior em Hampstead Heath. Apenas um aspecto
do caso foi contado fora da ordem cronológica: o breve encontro com Madeline Hart nas horas que precederam sua morte. Ele prometera a Madeline que a traria de volta
para casa em segurança. Após o fracasso, pretendia manter sua palavra desfazendo o que havia sido uma operação russa do início ao fim. Para conseguir tal feito,
precisariam inserir Mikhail na KGB Óleo e Gás. Depois, achariam evidências de que Madeline Hart fora assassinada para que fosse concretizado o roubo do petróleo
do mar do Norte.
- Como? - perguntou Lavon, incrédulo, quando Gabriel terminou de falar. - Por Deus, como vamos colocar Mikhail numa companhia de petróleo pertencente ao Kremlin
e administrada pela inteligência russa?
- Nós daremos um jeito - afirmou Gabriel. - Nós sempre damos.
O trabalho começou de fato na manhã seguinte, quando a equipe de Gabriel passou a se embrenhar na Volgatek. No começo, o grosso do material vinha de fontes públicas,
como jornais de negócios, comunicados de imprensa e artigos acadêmicos escritos por pessoas especializadas na confusa indústria petroleira russa. Para complementar,
Gabriel pediu a ajuda da Unit 1400, a empresa israelense de interceptações eletrônicas. Como esperado, ela descobriu que as redes de computadores e comunicações
da Volgatek, baseadas em Moscou, eram protegidas por firewalls de alta qualidade - os mesmos usados pelo Kremlin, pelo Exército russo e pelo SVR. Mais tarde naquele
dia, no entanto, a Unit conseguiu invadir os computadores de uma sucursal em Gdansk, onde a companhia possuía uma importante refinaria, que produzia grande parte
da gasolina da Polônia. O material foi encaminhado diretamente para a casa segura em Surrey.
Mikhail e Lavon, os únicos membros que falavam russo, cuidaram da tradução. O primeiro descartou a informação como um tiro n'água, mas Lavon foi mais otimista. Ao
derrubar a porta de Gdansk, disse ele, aprenderiam muito sobre o modo como a Volgatek operava além das fronteiras da Mãe Rússia.
Por instinto, abordaram o alvo como se fosse uma organização terrorista. Dina lembrou a eles, desnecessariamente, que a prioridade ao confrontar um novo grupo ou
célula terrorista é identificar sua estrutura e os membros-chave. Era tentador focar nos que estavam no topo da cadeia alimentar, mas os gerentes intermediários,
mensageiros, hospedeiros e motoristas costumavam provar-se muito mais valiosos no fim. Eles eram desvalorizados, esquecidos, negligenciados. Carregavam mágoas, cultivavam
ressentimentos e, muitas vezes, gastavam mais do que recebiam. Dessa forma, era muito mais fácil recrutá-los do que os homens que voavam em jatinhos particulares,
tomavam champanhe aos baldes e tinham um harém de prostitutas russas a seu dispor aonde quer que fossem.
No topo da cadeia de organização estava Gennady Lazarev, o ex-cientista nuclear russo que traíra Viktor Orlov. O vice de confiança de Lazarev era Dmitry Bershov
e seu chefe de operações na Europa era Alexei Voronin. Ambos eram antigos agentes da KGB, embora Voronin fosse de longe o mais apresentável dos dois. Ele falava
várias línguas europeias fluentemente, inclusive o inglês, que havia aprendido quando trabalhava na rezidentura em Londres já no fim da Guerra Fria.
O resto da hierarquia da Volgatek mostrou-se difícil de discernir, com certeza não por acidente. Yaakov comparou o perfil da companhia ao do Escritório. O nome do
diretor era público, mas os nomes de seus principais assistentes e as tarefas que desempenhavam eram mantidos em segredo ou escondidos sob camadas de ilusão e falsas
informações. Felizmente, o tráfego de e-mails da sucursal de Gdansk permitia que se identificassem vários outros protagonistas da empresa, inclusive o chefe de segurança,
Pavel Zhirov. Seu nome não aparecia em nenhum documento da empresa e todas as tentativas de achar uma fotografia sua mostraram-se infrutíferas. Na cadeia de organização
da equipe, Zhirov era um homem sem rosto.
Conforme os dias foram se passando, ficou claro que a Volgatek era mais do que apenas petróleo. A companhia fazia parte de um estratagema maior do Kremlin para transformar
a Rússia em uma superpotência global de energia, uma espécie de Arábia Saudita euro-asiática, e ressuscitar o Império Russo das ruínas da União Soviética. A própria
Europa já dependia demais do gás natural da Rússia. A missão da empresa era estender o domínio russo para o mercado europeu de energia por meio da compra de refinarias
de petróleo. E agora, graças a Jeremy Fallon, tinha um posto no mar do Norte que renderia bilhões em lucros para o Kremlin. Sim, a Volgatek baseava-se na avareza
dos russos. Mas, acima de tudo, no seu revanchismo.
Como plantar um agente em uma organização como essa? Foi Lavon que achou uma solução possível e a explicou para Gabriel enquanto caminhavam pelo jardim. Depois de
adquirir a refinaria em Gdansk, disse ele, a Volgatek havia contratado um polonês para servir de diretor de fachada. Na prática, o polaco nada tinha a ver com o
cotidiano operacional: era meramente um enfeite, um buquê de flores designado para amenizar a mágoa dos poloneses ao verem o urso russo devorar um bem econômico
crucial. Além disso, explicou Lavon, a Polônia não era o único lugar onde a Volgatek havia contratado ajudantes locais. Ela agira assim também na Hungria, na Lituânia
e em Cuba. Nenhum desses gerentes se saiu melhor do que o de Gdansk; foram todos igualmente marginalizados, ignorados e jogados para escanteio.
- São como copinhos de café: usados e descartados - disse Lavon.
- Logo, não têm nenhum acesso ao tipo de informação protegida que estamos procurando.
- É verdade. Mas, se o habitante local contratado por acaso for russo ou de ascendência russa, o comando central da Volgatek talvez o trate com mais carinho, especialmente
se for o mais esperto do grupo. Eles se sentiriam tentados a lhe dar responsabilidades reais. Quem sabe? Poderiam até deixá-lo entrar no templo sagrado em Moscou.
- Genial, Eli.
- Sim, é. Mas há um problema sério.
- Qual?
- Como vamos chamar a atenção da Volgatek para ele?
- É fácil.
- Sério mesmo?
- Sim - disse Gabriel, sorrindo. - Sério mesmo.
Naquela noite, Gabriel não participou do jantar. Ele foi à Cheyne Walk, em Chelsea, onde jantou a sós com Viktor Orlov. Seu novo plano não encontrou resistência
da parte do russo; na verdade, ele até ofereceu várias sugestões importantes que o aprimoraram. Ao final da refeição, Gabriel lhe entregou um documento-padrão, entregue
a todos os indivíduos que não eram do Escritório e participavam de suas operações: impedia Orlov de revelar seu papel no caso e anulava a possibilidade de qualquer
recurso legal no caso de haver danos a ele ou a sua empresa. O russo se recusou a assinar. Gabriel não esperava nada menos do que isso.
Depois de deixar a mansão de Orlov, foi de carro até Hampstead e seguiu a pé para a Parliament Hill. Seymour estava esperando no banco, ladeado pelos dois seguranças,
que logo se afastaram, para não escutar a conversa. Gabriel falou da operação que estava prestes a ser executada e do que precisaria em termos de ajuda não oficial
dos britânicos. Seymour não pôde deixar de sorrir. Tratava-se de algo pouco ortodoxo, mas assim era a maioria das operações do Escritório, principalmente as concebidas
por Gabriel e sua equipe.
- Sabe, pode até ser que funcione - disse o homem do MI5.
- Vai funcionar, Graham. A questão é: você quer que eu vá em frente?
Seymour ficou em silêncio por um instante. Então, se levantou e deu as costas
para as luzes de Londres.
- Traga-me evidências de que os russos estavam por trás do sequestro e do assassinato de Madeline - disse calmamente - e eu me certificarei de que os miseráveis
jamais vejam uma gota do nosso petróleo.
- Deixe-me fazer isso por você, Graham. Para que você não...
- Isso é algo que só eu posso fazer. Além do mais, certa vez um homem muito sábio me disse que uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Digite meu nome no Google e depois diga se você me acha tão sábio assim.
Seymour sorriu.
- Você não está reconsiderando, está?
- De jeito nenhum.
- Bom garoto. Mas tenha uma coisa em mente.
- O quê?
- Pode ser fácil colocar Mikhail dentro da Volgatek, mas tirá-lo de lá... já é outra história.
Seymour voltou para o lado dos seguranças e sumiu na escuridão. Gabriel permaneceu no banco por mais cinco minutos. Em seguida, andou até seu carro e voltou para
a casa à beira do Knobby Copse.
40
GRAYSWOOD, SURREY
O aprendizado de Mikhail Abramov, futuro empregado da Volgatek, começou às nove da manhã do dia seguinte. Seu primeiro tutor foi ninguém menos do que Viktor Orlov.
Apesar das objeções de Gabriel, ele insistira em viajar até Surrey em sua limusine Mercedes Maybach, seguida por um Land Rover repleto de seguranças. O pequeno comboio
causou certa comoção em Grayswood e, por boa parte do dia, circularam boatos pelo vilarejo de que o ocupante do carro era o próprio primeiro-ministro. Mas Jonathan
Lancaster não estava nem perto de Surrey; naquela manhã, ele fazia campanha em Sheffield. As últimas pesquisas lhe davam uma boa dianteira sobre o candidato da oposição.
O analista político mais famoso da Grã-Bretanha agora previa uma vitória esmagadora de proporções históricas.
Orlov voltou à casa segura na manhã seguinte, e ainda na outra. Suas aulas refletiam sua personalidade singular: brilhante, arrogante, cheia de opiniões, condescendente.
Ele falava em inglês com Mikhail na maior parte do tempo, fazendo incursões ocasionais no russo que apenas Eli Lavon podia compreender. Às vezes, também misturava
as duas línguas em um dialeto bizarro que a equipe apelidou de “rusglês”. Incansável e irritante, era impossível não amá-lo. Orlov em ação era uma força a ser respeitada.
Ele começou suas aulas com uma lição de história: a vida sob o comunismo soviético, a queda de um império, a era sem lei dos oligarcas. Para surpresa de todos, Orlov
admitiu que ele e os outros barões ladrões da Rússia haviam semeado a própria destruição ao enriquecerem muito em muito pouco tempo. Dessa forma, eles tinham atraído
as circunstâncias que levaram à volta do autoritarismo. O atual presidente da Rússia era um homem sem ideologia ou crença que não o exercício do poder pelo poder.
- É um fascista em tudo menos no nome - disse Orlov. - E fui eu que o criei.
A etapa seguinte da instrução apressada de Mikhail começou no quarto dia, quando ele cursou o que Lavon descreveu como o programa de MBA mais curto da história.
Seu professor era de Tel Aviv, mas havia frequentado a Escola de Negócios Wharton e trabalhado por pouco tempo na ExxonMobil antes de retornar para Israel. Por sete
longos dias e noites, ensinou a Mikhail o básico de administração de negócios: contabilidade, estatística, marketing, finanças corporativas, gerenciamento de risco.
O russo aprendia rápido - algo nada surpreendente, já que seus pais haviam sido acadêmicos soviéticos proeminentes. Ao final do curso, o professor previu um futuro
brilhante para Mikhail, embora não fizesse ideia do que aquele futuro podia reservar. Ele assinou com prazer o termo de confidencialidade de Gabriel e embarcou em
um voo de volta para Israel.
Enquanto Mikhail debruçava-se sobre os estudos, o resto da equipe trabalhava com diligência na identidade que o disfarçaria em campo. Eles o construíram como um
escritor desenvolve um personagem: ascendência e educação, amores e desamores, triunfos e fracassos. Por muitos dias, não lhes ocorreu um nome, pois deveria caber
a um homem que tivesse um pé no Ocidente e outro firmemente enraizado no Leste da Europa. Foi Gabriel quem enfim escolheu o nome Nicholas Avedon, uma distorção inglesa
de Nicolai Avdonin. Com a bênção de Graham Seymour, forjaram um passaporte britânico bem viajado e escreveram um longo e detalhado currículo que combinasse.
Quando Mikhail concluiu o curso, eles o levaram a um tour pela vida que nunca vivera. Havia a casa em um subúrbio arborizado de Londres, na qual ele nunca pisara,
a faculdade de Oxford onde ele jamais abrira um livro, e os escritórios de uma firma de perfuração em Aberdeen pouco conhecida da qual ele jamais recebera qualquer
pagamento. Até o acompanharam num voo para que Mikhail pudesse se lembrar de como é andar pelas ruas de Cambridge em uma tarde fresca de outono, embora ele nunca
tivesse ido a Cambridge, nem no outono nem em nenhuma outra estação do ano.
Por fim, só faltava resolver a aparência de Mikhail. Ela deveria ser drasticamente alterada; do contrário, os amigos da Volgatek no SVR poderiam reconhecê-lo da
operação passada. Cirurgia plástica não era uma opção; o tempo de cicatrização era muito longo e Mikhail se recusava a deixar qualquer um tocar seu rosto com uma
faca. Foi Chiara que concebeu uma solução e a demonstrou para Gabriel em um dos computadores. Na tela estava a fotografia de Mikhail tirada para o passaporte britânico.
Ela apertou um único botão e a foto reapareceu com apenas uma mudança.
- Eu mesmo mal o reconheço - disse Gabriel.
- Mas será que de aceita fazer isso'?
- Eu deixarei claro que ele não tem escolha.
Naquela noite, na presença de toda a equipe, Mikhail raspou a cabeça. Yaakov, Oded e Mordecai fizeram o mesmo em um ato de solidariedade, mas Gabriel se recusou.
Seu compromisso com a coesão da unidade tinha limite. Na manhã seguinte, as mulheres levaram Mikhail às compras em Londres em uma excursão que deixou o departamento
de contabilidade do King Saul Boulevard de cabelos em pé.
Quando voltaram a Grayswood, encontraram Viktor Orlov, à espera de Mikhail, para fazer uma avaliação final. Ele passou com louvor. Para celebrar, o ex-oligarca abriu
várias garrafas de seu querido Château Pétrus. No momento em que ele erguia a taça em homenagem a seu aluno, ouviu-se o estampido seco de uma Beretta silenciada.
- O que foi isso? - perguntou Orlov.
- Acho que teremos peixe no jantar - disse Mikhail.
- Alguém deveria ter me avisado; eu teria trazido um bom Sancerre.
Pouco tempo depois de ter recebido o passaporte britânico, Orlov comprara as ações majoritárias de um jornal que estava prestes a falir, o venerável Financial Journal,
de Londres, para chamar a atenção do círculo de pessoas importantes da cidade. Alguns funcionários, incluindo a renomada repórter investigativa Zoe Reed, pediram
demissão em protesto, mas a maioria ficou, em parte por não ter aonde ir. Nos termos do acordo de propriedade, Orlov concordara em não ter nenhum tipo de influência
sobre a linha editorial do jornal. Ele conseguiu cumprir sua promessa de alguma forma, mesmo desejando usar o jornal como um cassetete para bater em seus inimigos
do Kremlin.
No entanto, isso não significava que fosse avesso a ligar para os editores e passar dicas de notícias, especialmente se diziam respeito a seu próprio negócio. Assim,
três dias mais tarde, uma pequena nota apareceu num canto de página falando sobre a nova contratação de um funcionário pela Viktor Orlov Investimentos Ltda. Orlov
veio a confirmá-la num comunicado à imprensa mais tarde naquela manhã, dizendo que um executivo de 35 anos chamado Nicholas Avedon estava prestes a assumir o comando
do portfólio de energia da VOI, bem como da mesa de operações de futuros de petróleo. Dentro de minutos, a internet fervilhava com boatos de que Orlov havia escolhido
seu sucessor e preparava-se para um afastamento gradual do cotidiano da empresa. À noite, os rumores eram tão intensos que ele se sentiu compelido a fazer uma rara
aparição na CNBC para negá-los. Sua atuação foi pouco convincente. Um articulista proeminente disse, inclusive, que ele tinha suscitado muito mais questões do que
respondido.
Ninguém nos círculos financeiros de Londres jamais saberia que os boatos da aposentadoria iminente de Orlov haviam sido plantados por uma equipe de homens e mulheres
que operavam de uma casa isolada em Surrey. Eles também nunca tomariam conhecimento de que os mesmos rumores tinham sidos injetados na corrente sanguínea da comunidade
de negócios de Moscou, ou que haviam alcançado o topo da Volgatek.
Gabriel e sua equipe estavam cientes disso, pois tinham lido um e-mail cáustico de Alexei Voronin, enviado para o responsável pela sucursal em Gdansk. Eli Lavon
apresentou a mensagem impressa a Gabriel durante o jantar e traduziu-a, inclusive os trechos que continham linguajar inapropriado. Gabriel reagiu abrindo uma garrafa
de Château Pétrus que sobrara e servindo uma taça para cada um da equipe. De modo geral, era um começo promissor. Mikhail agora figurava como o suposto herdeiro
de Orlov. E a KGB Óleo e Gás estava observando.
41
MAYFAIR, LONDRES
Os escritórios da VOI ocupavam quatro andares de um edifício de escritórios de luxo em Mayfair, não muito longe da embaixada americana. Quando Nicholas Avedon lá
chegou na manhã seguinte, logo cedo, todos os altos funcionários da empresa esperavam na sala de conferências principal para recebê-lo. Orlov fez alguns comentários
breves, seguidos por uma série de apresentações apressadas, todas desnecessárias, já que Mikhail havia memorizado os nomes e rostos de todos durante sua preparação
em Surrey.
Se esperavam que ele fosse entrar aos poucos no trabalho, estavam totalmente enganados. Uma hora após estabelecer-se em seu escritório com vista para a Hanover Square,
começou a revisar de cima a baixo os investimentos lucrativos da VOI na área de energia, muito embora já houvesse feito a mesma análise na casa segura, e suas “descobertas
inspiradas” houvessem sido escritas para ele por Viktor Orlov. O relatório foi um sinal para o resto dos funcionários de que Nicholas Avedon não estava ali para
brincadeiras. Ele havia sido trazido para a VOI com uma finalidade. E pobre do tolo que tentasse cruzar seu caminho.
Seus dias rapidamente entraram em uma rotina rígida. Ele chegava cedo à sua mesa, já tendo lido os jornais financeiros matutinos e checado os mercados asiáticos,
passava uma ou duas horas trabalhando em planilhas e gráficos antes de participar da reunião matinal com o alto escalão, que sempre ocorria no espaçoso escritório
de Orlov. Ele costumava se manter em silêncio em reuniões numerosas, mas quando decidia falar, seus comentários estabeleciam um novo padrão de brevidade. Na maior
parte dos dias, almoçava sozinho. Depois, voltava a trabalhar em sua mesa até as sete ou oito, quando retornava ao amplo apartamento em Maida Vale, alugado para
ele por Gabriel. O Departamento de Acomodações alugara um outro menor no prédio do outro lado da rua. Enquanto Mikhail estava em casa, um membro da equipe o vigiava.
Durante seu expediente, uma câmera de vídeo de alta resolução, de transmissão segura, mantinha-o sob vigilância.
Descobriram que a Volgatek também o observava. Gabriel e a equipe sabiam disso porque a Unit 1400 enfim conseguira penetrar na rede de computadores da empresa russa
e agora liam os e-mails dos altos executivos quase em tempo real. O nome de Nicholas Avedon aparecia com destaque em vários deles - inclusive em um enviado por Gennady
Lazarev a Pavel Zhirov, o chefe de segurança sem rosto da Volgatek, requisitando-lhe que checasse o histórico do novo funcionário da VOI. Avedon era agora uma luz
piscante no radar da petroleira. Era hora, disse Gabriel, de fazê-la piscar um pouco mais forte.
Na manhã seguinte, Nicholas apresentou as descobertas de sua análise a Orlov e toda a equipe da VOI. O ex-oligarca declarou-as brilhantes, o que não era surpresa,
já que ele mesmo as concebera. Nos dias seguintes, Orlov fez uma série de jogadas financeiras ousadas, todas planejadas muito tempo antes, que alteraram radicalmente
a posição da VOI no setor global de energia. Em meio a um turbilhão de entrevistas, usava a expressão “energia para o século XXII e além” e, quando possível, creditava
o arquiteto do plano: Nicholas Avedon.
Os investidores de Londres gostavam do jovem protegido de Orlov. E, ao que parecia, a KGB Óleo e Gás também.
Eles haviam demonstrado a competência de Nicholas Avedon. Agora era o momento de revelar quanto Viktor Orlov se tornara dependente dele. Analistas de investimentos
e gerentes intermediários existiam aos montes, disse Gabriel.
Gennady Lazarev teria uma única razão para ir atrás de Avedon: acabar com seu antigo mentor e sócio.
E assim começou o que a equipe chamava de “As Peripécias de Viktor e Nicholas”.
Pelas duas semanas seguintes, os dois se tornaram inseparáveis. Almoçavam e jantavam juntos, e toda vez que Viktor aparecia publicamente, Nicholas estava ao seu
lado. Ele foi visto diversas vezes saindo da mansão de Orlov na Cheyne Walk tarde da noite e passou um fim de semana descansando na extensa propriedade do patrão
em Berkshire, um privilégio que não era dado a nenhum outro empregado.
À medida que a relação dos dois se estreitava, o clima de tensão começou a crescer nos escritórios da VOI em Mayfair. Os outros chefes de departamento não gostavam
do fato de Avedon estar presente em reuniões que costumavam ser conduzidas a sós com Orlov - nem de ele ser frequentemente visto cochichando conselhos no ouvido
do dono da empresa. Alguns funcionários declararam guerra a ele, mas a maioria entrou no jogo. Avedon era assediado com convites para drinques e jantares depois
do trabalho e recusava todos. Viktor, dizia ele, exigia toda a sua atenção.
Em seguida, os dois estenderam as Peripécias a um tour pelo continente. Houve o fórum de negócios em Paris, onde eles foram encantadores. E a reunião de banqueiros
suíços em Genebra, onde não erraram nem uma vírgula. E a reunião bastante tensa em Madri com o CEO de uma empresa de oleodutos pertencente a Orlov que recebera o
prazo de seis meses para apresentar lucros sob a ameaça de ficar desempregado - assim como o resto da Espanha.
Por fim, foram a Budapeste, a uma reunião de dirigentes políticos e empresariais dos ditos mercados emergentes do Leste Europeu. A gigante russa de gás, Gazprom,
mandou um representante para apaziguar os presentes, assegurando que não havia motivos para se temer uma dependência excessiva da energia russa, pois o Kremlin jamais
sonharia em fechar a torneira para impor sua vontade sobre as terras perdidas do antigo império. Naquela noite, em um coquetel de recepção às margens do Danúbio,
o homem da Gazprom apresentou-se a Nicholas Avedon e se surpreendeu ao descobrir que ele falava russo com fluência. O executivo da Gazprom ficara claramente impressionado
com o que ouvira, pois, poucos minutos depois do encontro, chegou um e-mail à caixa de entrada de Gennady Lazarev. Gabriel e sua equipe leram-no antes mesmo que
o russo pudesse ter a chance de abri-lo. Parecia que Mikhail havia entrado no jogo.
- Contratem Avedon - ordenou o homem da Gazprom. - Se não quiserem, nós o contrataremos.
Mas como aproximar os dois lados o bastante para que a relação fosse consumada? Como não tinha o costume de ficar de braços cruzados, Gabriel queria forçar os acontecimentos
colocando Mikhail e Lazarev em uma situação de proximidade física, em um lugar onde pudessem ter privacidade para conversar. A oportunidade se apresentou quando
a Unit 1400 interceptou um e-mail enviado ao diretor da Volgatek por sua secretária. O assunto era o itinerário de Lazarev por conta do Fórum Mundial de Energia,
a reunião bienal da Associação Internacional dos Produtores de Petróleo e Gás. Ao lê-lo, Gabriel sorriu. As Peripécias chegariam a Copenhague. E o Escritório iria
junto.
42
COPENHAGUE
Cinco dias de ansiedade depois, os senhores do petróleo dos quatro cantos do mundo começaram a chegar a Copenhague: havia árabes sauditas e dos emirados, azerbaidjanos
e cazaques, brasileiros e venezuelanos, americanos e canadenses. Os ativistas contra o aquecimento global estavam previsivelmente chocados com o encontro, e um grupo
alegava, de forma histérica, que o carbono emitido pela própria conferência acabaria submergindo uma aldeia em Bangladesh. Os emissários não pareciam notar. Eles
chegaram a Copenhague a bordo de jatinhos particulares e suas limusines blindadas rugiam pelas ruas pitorescas da cidade. Talvez um dia o petróleo acabasse e o planeta
ficasse quente demais para abrigar vidas humanas. Mas, pelo menos por enquanto, os extratores de combustíveis fósseis ainda reinavam soberanos.
A competição pelos serviços de Copenhague era intensa. Era impossível reservar mesas para jantares e o Hotel d’Angleterre - um prédio branco monumental como um transatlântico
de luxo com vista para a ampla Praça Nova do Rei - estava completamente lotado. Orlov e Mikhail chegaram à sua graciosa entrada em meio a uma forte nevasca e foram
acompanhados por um gerente a duas suítes vizinhas em um dos andares superiores. A de Mikhail continha uma bandeja de guloseimas dinamarquesas e um Dom Pérignon
num balde de gelo. Da última vez que ficara em um hotel a serviço do Escritório, ele havia usado uma garrafa de champanhe para machucar o próprio joelho, em nome
de um disfarce. Já nessa nova operação, certamente seu papel exigia que tomasse uma ou duas taças.
No momento em que estava tirando a rolha, ouviu uma discreta batida à porta - algo curioso, pois Mikhail tinha pendurado o aviso de NÃO PERTURBE antes de dar uma
generosa gorjeta para o carregador. Abriu a porta devagar e, por cima da trava de segurança, viu um homem de porte médio parado no corredor. Ele vestia um casaco
de lã de colarinho alemão, de comprimento mediano, e um chapéu tirolês de feltro. Seu cabelo era grisalho e brilhante, e viam-se olhos castanhos por trás dos óculos.
Com a mão direita, segurava uma valise de couro flexível, arranhado e desgastado.
- Como posso ajudá-lo? - perguntou Mikhail.
- Abrindo a porta - respondeu Gabriel com suavidade.
Mikhail tirou a trava de segurança e deu passagem para Gabriel, fechando a porta imediatamente em seguida. Ao se virar, viu-o andando lentamente pelo quarto com
seu BlackBerry no braço direito esticado.
Depois de um instante, Gabriel meneou a cabeça para indicar que não havia escutas no cômodo. Mikhail foi até o balde de champanhe e se serviu uma taça de Dom Pérignon.
- Quer? - perguntou ele, apontando para Gabriel com a garrafa.
- Não, me dá dor de cabeça.
- Também me dá.
Mikhail sentou no sofá e apoiou os pés sobre a mesinha de centro - um verdadeiro executivo cansado de um longo dia de viagem e reuniões. Gabriel contemplou o quarto
suntuoso e balançou a cabeça.
- Fico feliz que Viktor esteja pagando por este lugar. Uzi já está pegando no meu pé por causa dos gastos.
- Diga a Uzi que eu preciso ser mantido no nível a que fiquei acostumado.
- Bom saber que o sucesso não lhe subiu à cabeça.
Mikhail bebeu um pouco de champanhe, mas não respondeu.
- Você precisa raspar.
- Já raspei hoje de manhã - replicou Mikhail, esfregando o queixo.
- Não aí.
Mikhail passou a mão pela cabeça brilhante.
- Sabe, estou me habituando, pensando em adotar esse estilo quando a operação acabar.
- Você está parecendo um alienígena, Mikhail.
- Melhor um alienígena do que um personagem de A noviça rebelde.
Mikhail pegou um pequeno sanduíche de camarão da bandeja e devorou-o de uma só vez.
- Desde quando você come frutos do mar?
- Desde que me tornei um inglês de ascendência russa que trabalha para uma companhia de investimentos pertencente ao oligarca Viktor Orlov.
- Com um pouco de sorte, é apenas um passo em direção a coisas melhores e maiores.
- Inshallah - disse Mikhail, elevando a taça num brinde jocoso. - Meus futuros empregadores já chegaram?
Gabriel examinou o interior da maleta e retirou uma pasta de papel manilha. Dentro, havia três fotografias impressas coloridas, que ele organizou na mesinha de centro
na ordem em que foram tiradas. Retratavam três homens descendo as escadas de um jatinho particular e entrando em uma limusine. Tinham sido tiradas de uma distância
considerável por uma câmera com lente objetiva. A neve borrava a imagem.
- Quem tirou essas fotos? - perguntou Mikhail.
- Yossi.
- Como ele conseguiu entrar na pista?
- Ele tem uma credencial de imprensa para o fórum - respondeu Gabriel -, assim como Rimona.
- Para quem estão trabalhando?
- Para um jornal industrial chamado Energy Times.
- Não conheço.
- É novo.
Sorrindo, Mikhail pegou a primeira fotografia, que mostrava as três pessoas descendo a escada do avião em fila indiana. À frente, nada parecido com o matemático
livresco que já havia sido, estava Gennady Lazarev. Um passo atrás, vinha Dmitry Bershov, o vice-diretor executivo da Volgatek, e em seguida um homem baixo e atarracado,
com o rosto escondido pela aba de um chapéu fedora.
- Quem é ele? - perguntou Mikhail.
- Ainda não conseguimos descobrir.
Mikhail pegou a segunda fotografia, depois a terceira. Em nenhuma delas podia-se ver o rosto do homem.
- Ele é muito bom, não é?
- Então você também reparou - comentou Gabriel.
- Difícil não reparar. Ele sabia onde estavam as câmeras e fez questão de não ser visualizado em nenhuma imagem. - Mikhail deixou as fotos na mesinha de centro.
- Por que você acha que ele fez isso?
- Pelo mesmo motivo que eu e você o fazemos.
- Ele trabalha para o Escritório?
- Ele é um profissional, Mikhail. De verdade. Talvez seja um agente aposentado do SVR e aja assim por costume. Mas me parece que está em serviço.
- Onde ele está agora?
- No Hotel Imperial, com os outros dois. Gennady está bastante desapontado com suas acomodações.
- Como você sabe?
- Mordecai e Oded visitaram o quarto uma hora antes do avião da Volgatek aterrissar e deixaram um presentinho sob a mesa de cabeceira.
- Como vocês sabiam qual era o quarto de Lazarev?
- A Unit invadiu o sistema de reservas do Imperial.
- E a porta?
- Mordecai tem uma nova chave-cartão mágica. A porta praticamente abriu por conta própria. - Gabriel guardou as fotografias na pasta, que por sua vez foi colocada
dentro da maleta. - Fique sabendo que Gennady tem falado sobre mais coisas além da qualidade do quarto. Ele está claramente ansioso para conhecer você.
- Alguma ideia de quando ele vai agir?
- Não - disse Gabriel, balançando a cabeça. - Mas espere sutileza.
- Eu o deveria conhecer?
- Só de nome, não de rosto.
- E se ele me abordar?
- Eu sempre acho melhor dar uma de difícil.
- E olha só aonde isso o levou.
Mikhail se serviu mais um pouco de champanhe, mas não disse mais nada.
- Tem algo que queira me dizer? - perguntou Gabriel.
- Acho que lhe devo congratulações.
- Pelo quê?
- Ora, vamos, Gabriel. Não me faça dizer em voz alta.
- Dizer o quê?
- As pessoas falam, Gabriel, principalmente espiões. E o que se anda dizendo no King Saul Boulevard é que você será o próximo diretor.
- Eu ainda não aceitei.
- Não é o que ouvi. Disseram que é um acordo selado.
- Não é.
- Como queira, chefe.
Gabriel suspirou fundo.
- Quanto Uzi sabe?
- No momento em que assumiu o cargo, Uzi soube que era a segunda opção de todos.
- Eu não planejei isso.
- Eu sei. E suspeito que Uzi também saiba. Mas isso não vai facilitar as coisas quando o primeiro-ministro disser que ele não terá um segundo mandato.
Mikhail ergueu a taça contra a luz e observou as bolhas do champanhe subirem até a superfície.
- No que você está pensando? - indagou Gabriel.
- Em quando estávamos em Zurique, naquele pequeno café perto da Parade-platz. Nós estávamos tentando tirar Chiara de Ivan. Você se lembra desse lugar? Você se lembra
do que me disse naquela tarde?
- Acredito que eu tenha lhe dito para casar com Sarah Bancroft e deixar o Escritório.
- Você tem uma boa memória.
- Aonde você quer chegar?
- Estava apenas imaginando se você ainda acha que eu deveria deixar o Escritório.
Gabriel hesitou antes de responder:
- Eu não faria isso se fosse você.
- Por que não?
- Porque, se eu me tornar diretor, você tem um futuro brilhante à frente, Mikhail. Muito brilhante.
Mikhail passou a mão pela cabeça.
- Preciso raspar.
- Precisa, mesmo.
- Tem certeza de que não vai beber um pouco de champanhe?
- Me dá dor de cabeça.
- Também me dá - repetiu Mikhail, servindo-se.
Antes de sair da suíte, Gabriel instalou um software do Escritório no celular de Mikhail, que o transformava em um transmissor contínuo e encaminhava todas as chamadas,
e-mails e mensagens em tempo real para os computadores da equipe. Então, desceu para o saguão e ficou alguns minutos buscando rostos familiares na multidão de bem
lubrificados homens do petróleo.
Do lado de fora, a tempestade vespertina havia cessado, mas alguns flocos grandes caíam preguiçosamente sob as luzes dos postes. Gabriel se dirigiu para o oeste
da cidade por uma sinuosa rua de lojas conhecida como Stroget até alcançar a Rádhuspladsen. Os sinos da torre do relógio soavam seis horas. Ele se sentiu tentado
a aparecer no Hotel Imperial, situado a pouca distância da praça, à beira dos Jardins de Tivoli. Em vez disso, caminhou até um prédio residencial despretensioso
situado em uma rua de nome pronunciável apenas pelos dinamarqueses. Quando entrou no pequeno apartamento no segundo andar, encontrou Keller e Lavon debruçados sobre
um notebook. De seus alto-falantes vinha o som de três homens falando baixo em russo.
- Você já descobriu quem é aquele homem? - perguntou Gabriel.
Lavon balançou a cabeça.
- É curioso, mas esses rapazes da Volgatek não são muito de falar nomes.
- Não diga.
Lavon estava prestes a responder, mas se deteve ao som de uma das vozes, um murmúrio baixo, como se a pessoa estivesse parada diante de uma cova.
- Esse é o nosso cara - informou Lavon. - Ele sempre fala assim. Como se presumisse que alguém está ouvindo.
- E alguém está ouvindo.
Lavon sorriu.
- Mandei uma amostra da voz dele para o King Saul Boulevard e lhes pedi que a passassem pelos bancos de dados.
- E...?
- Nenhuma correspondência.
- Mande a amostra para Adrian Carter, em Langley.
- E se Carter pedir uma explicação?
- Minta.
Nesse momento, os três executivos russos do petróleo explodiram em uma ruidosa gargalhada. Enquanto Lavon se inclinava para escutar, Gabriel foi lentamente até a
janela e examinou a rua. Estava vazia, exceto por uma jovem que caminhava pela calçada nevada. Tinha a pele de alabastro de Madeline, as maçãs do rosto de Madeline.
A semelhança era tal que, por um momento, Gabriel sentiu-se compelido a correr até ela. Os russos ainda riam. Certamente, pensou, riam-se dele. Respirou fundo para
acalmar o coração retumbante e observou o espectro de Madeline passar abaixo. Então, a escuridão a reivindicou para si e a mulher sumiu.
43
COPENHAGUE
O fórum se deu no Bella Center, um horrendo centro de convenções de vidro e metal que parecia uma gigantesca estufa vinda do espaço sideral. Um grupo de repórteres
estava parado do lado de fora, tremendo, atrás de uma faixa amarela. A maioria dos executivos que chegava tinha o bom senso de ignorar as provocações gritadas por
eles, mas não Orlov. Ele parou para responder a uma pergunta sobre o repentino aumento no preço do petróleo ao redor do mundo, do qual havia extraído lucros tremendos,
e logo se viu discorrendo sobre assuntos que iam das eleições britânicas até a repressão de movimentos pró-democracia executada pelo Kremlin.
Gabriel e a equipe ouviam cada palavra, pois Mikhail estava parado ao lado de Orlov, à vista das câmeras, segurando o celular. Inclusive, foi Mikhail quem deu um
fim à coletiva de imprensa improvisada, segurando na manga do casaco de Orlov e puxando-o em direção à porta aberta do centro de convenções. Mais tarde, uma repórter
britânica comentaria o fato dizendo que era a primeira vez que ela via qualquer pessoa - “Qualquer pessoa!” - ousar tocar um dedo que fosse em Viktor Orlov.
Uma vez do lado de dentro, o ex-oligarca agiu como um furacão. Ele foi a todos os debates da manhã, visitou todos os estandes no andar de exposições e apertou cada
mão estendida, até de homens que o odiavam.
- Este é Nicholas Avedon - dizia em alto e bom som. - Nicholas é meu braço direito e meu braço esquerdo. É meu norte.
O almoço foi “social” - assim Orlov chamou a refeição sem lugares marcados - e não havia álcool nem carne de porco, em respeito aos muitos delegados muçulmanos.
Orlov e Mikhail passaram pelo bufê sem comer nada e prosseguiram para o primeiro debate da tarde, uma discussão sombria sobre as lições aprendidas com o desastroso
derramamento de óleo no golfo do México. Gennady Lazarev também estava presente, duas fileiras atrás do ombro direito de Orlov.
- Ele está rondando - Orlov murmurou para Mikhail - como um assassino. É só uma questão de tempo até que saque a arma.
O comentário foi perfeitamente audível no pequeno apartamento da rua de nome impronunciável, e o sentimento expresso era compartilhado por Gabriel e o resto da equipe.
Na verdade, graças à câmera pendurada no pescoço de Yossi, eles tinham as fotografias para comprovar. Durante a manhã, Lazarev manteve uma distância segura. Mas
agora, à medida que a tarde avançava, ele se aproximava cada vez mais do alvo.
- É como um jato em circuito de espera - comentou Lavon. - Ele está só esperando a torre dar a autorização para o pouso.
- Não sei se as condições climáticas irão permitir - respondeu Gabriel.
- Quando você acha que vai haver uma brecha?
- Aqui - respondeu Gabriel, apontando para o último item do cronograma do primeiro dia. - É aqui que o pegaremos.
Isso significava que Gabriel e a equipe seriam forçados a aguentar mais duas horas do que Christopher Keller havia descrito como “blá-blá-blá de petróleo”. Houve
um discurso profundamente tedioso de um ministro do governo indiano sobre as necessidades futuras de energia do segundo país mais populoso do mundo. Depois, veio
uma fala repreensiva do novo presidente francês sobre taxação, lucro e responsabilidade social. Por fim, ocorreu um debate extremamente sincero sobre os perigos
ambientais da técnica de extração conhecida como fraturamento hidráulico. Não era de se admirar que Gennady Lazarev não estivesse presente. Via de regra, as companhias
de petróleo russas viam o meio ambiente como algo a ser explorado, não protegido.
Ao término, os delegados enfileiraram-se nas escadas rolantes para a galeria superior do centro, onde haveria um coquetel de recepção. Lazarev tinha chegado cedo
e falava com dois executivos do petróleo iranianos. Orlov e Mikhail pegaram uma taça de champanhe cada e se misturaram a um grupo de brasileiros animados. Orlov
estava de costas para Lazarev, que, no entanto, encontrava-se no campo de visão de Mikhail e o viu se separar dos iranianos e começar a andar lentamente até o outro
lado da sala.
- Agora pode ser uma boa hora para dar uma volta, Viktor.
- Até onde?
- Até a Finlândia.
Orlov, um hábil ator de coquetel, tirou o telefone do bolso do paletó e levou-o ao ouvido. Franziu a testa, como se não estivesse escutando direito, e se afastou
apressado, em busca de um lugar silencioso.
Na ausência de Orlov, Mikhail começou uma séria discussão com um dos brasileiros sobre oportunidades de investimento na América Latina. Mas, dois minutos depois,
percebeu que um homem estava parado às suas costas. Sabia disso porque o cheiro forte da colônia dele havia tomado conta do ambiente. Também sabia porque podia ver
o brasileiro desviando o olhar a todo momento.
Ao se virar, deparou com o rosto que tinha adornado a parede da casa segura em Grayswood. Seu treinamento e sua experiência lhe permitiram reagir com um olhar vazio
e nada mais.
- Perdoe-me pela interrupção - disse o homem em inglês com sotaque russo mas gostaria de me apresentar antes que Viktor volte. Meu nome é Gennady Lazarev. Eu sou
da Volgatek Óleo e Gás.
- Eu sou Nicholas - falou Mikhail, apertando a mão estendida. - Nicholas Avedon.
- Eu sei quem você é - afirmou Lazarev com um sorriso. - Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.
A conversa que se seguiu durou um minuto e 27 segundos. A qualidade da captação de áudio era bastante cristalina, sem levar em conta o rumorejo de fundo do coquetel
e um som de bate-estaca que a equipe mais tarde identificou como o coração de Mikhail. O próprio coração de Gabriel batia em ritmo parecido enquanto ele escutava
a gravação cinco vezes do início ao fim. Agora, ao apertar PLAY para ouvi-la de novo, parecia que sua pulsação havia sumido.
“Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.” “Verdade? Por quê?”
“Porque nós temos observado algumas ações que você vem tomando com o portfólio de Viktor e estamos muito impressionados.”
“Nós, quem?”
“A Volgatek, é claro. De quem eu poderia estar falando?”
“O ambiente de negócios da Rússia é bem diferente do ocidental. Pronomes podem ser enganosos.”
“Você é bastante diplomático.”
“Tenho que ser: trabalho para Viktor Orlov.”
“Às vezes parece que é Viktor quem trabalha para você.”
“As aparências enganam, Sr. Lazarev.”
“Então os rumores não são verdadeiros?”
“Que rumores?”
“De que você tomou conta das operações cotidianas de Viktor? De que Viktor não é mais do que um nome e uma gravata extravagante?”
“Viktor ainda é o mestre estrategista. Eu sou apenas quem aperta os botões e aciona as alavancas.”
“Você é bastante leal, Nicholas.”
“Até o fim.”
"Aprecio isso nas pessoas. Eu sou leal também.”
“Só que não a Viktor.”
“Você e Viktor claramente já falaram sobre mim.”
“Apenas uma vez.”
"Imagino que ele não tivesse nada de bom a dizer a meu respeito.”
“Ele disse que você é muito inteligente.”
“Foi um elogio?”
“Não.”
“Viktor e eu tivemos nossas diferenças, não posso negar. Mas isso é passado. Sempre respeitei a opinião dele, especialmente no que diz respeito a pessoas. Ele sempre
foi um bom caçador de talentos. Foi por isso que eu quis conhecer você. Tenho uma ideia que gostaria de discutir.”
“Eu direi a Viktor que você deseja falar com ele.”
“Não é uma ideia para Viktor Orlov. É uma ideia para Nicholas Avedon.”
“Eu sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, Sr. Lazarev. Quando o dinheiro de Viktor está envolvido, não existe Nicholas Avedon.”
“Isso não tem nada a ver com o dinheiro de Viktor. É sobre o seu futuro. Gostaria de alguns minutos do seu tempo antes que você deixe Copenhague.” “Temo que minha
agenda esteja um pesadelo.”
“Tome meu cartão, Nicholas. Meu celular pessoal está escrito no verso. Prometo que farei seu tempo valer a pena. Não me decepcione. Não gosto de ser desapontado.”
Gabriel apertou o ícone de STOP e olhou para Lavon, que disse:
- Parece que você o pegou.
- Talvez. Ou Gennady é que nos pegou.
- Um encontro não vai doer.
- Pode doer. Na verdade, pode doer bastante.
Gabriel voltou ao início do áudio e apertou PLAY mais uma vez. “Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você”
Ele apertou STOP.
- Figura de linguagem - comentou Lavon. - Nada mais do que isso.
- Você tem certeza disso, Eli? Cem por cento de certeza?
- Tenho certeza de que o sol vai nascer amanhã de manhã e que se porá à noite. E estou razoavelmente confiante de que Mikhail sobreviverá a um drinque com Gennady
Lazarev.
- A menos que Gennady sirva ponche de polônio.
Gabriel segurou o mouse, mas Lavon deteve sua mão.
- Viemos a Copenhague para realizar esse encontro. Chegou a hora.
Gabriel pegou o telefone e discou o número do celular de Mikhail. Ele pôde
ouvir pelos alto-falantes do notebook, assim como o som da voz do russo ao atender.
- Amanhã à noite - avisou Gabriel. - Controle o local o máximo possível. Sem surpresas.
Gabriel desligou e escutou Mikhail telefonar para Lazarev, que atendeu prontamente.
- Fico muito feliz que tenha ligado.
- Como posso ajudá-lo, Sr. Lazarev?
- Jantando comigo amanhã à noite.
- Tenho um compromisso com Viktor.
- Invente uma desculpa.
- Onde?
- Acharei algum lugar fora da rota.
- Não pode ser muito fora da rota, Sr. Lazarev. Não posso ficar longe por mais de uma hora.
- Que tal às sete?
- Sete está bom.
- Mandarei um carro buscá-lo.
- Estou no Hotel d'Angleterre.
- Sim, eu sei - disse Lazarev antes de desligar.
Gabriel mudou a fonte de áudio do celular de Mikhail para o transmissor no quarto de Lazarev, no Imperial.
Os três russos riam descontroladamente. Com certeza, pensou Gabriel, riam dele.
44
COPENHAGUE
O segundo dia do fórum foi uma reprise desgastada do primeiro. Mikhail permaneceu lealmente ao lado de Orlov durante todo o tempo, com o sorriso exagerado de um
homem que está prestes a cometer adultério. No coquetel, mais uma vez agarrou-se à calorosa recepção dos brasileiros. Eles pareceram bem desapontados com sua recusa
para juntar-se a eles e farrear pelas boates mais animadas de Copenhague. Ao se despedir, tirou Viktor das garras do ministro do petróleo cazaque e o conduziu para
a limusine alugada. Esperou até que estivessem a poucos quarteirões do D'Angleterre para dizer que não tinha ânimo para jantar. Falou num tom de voz alto o bastante
para que fosse ouvido por qualquer transmissor dos russos que pudesse estar por perto.
- Qual é o nome dela? - perguntou Orlov, que já sabia dos planos de Mikhail para aquela noite.
- Não é isso, Viktor.
- É o quê, então?
- Estou com uma dor de cabeça avassaladora.
- Espero que não seja nada sério.
- Tenho certeza de que é apenas um tumor cerebral.
Já no quarto, Mikhail fez algumas ligações para Londres, apenas para manter o disfarce e mandou um e-mail malicioso para sua secretária, pretendendo mostrar aos
ciberdetetives do Centro Moscovita que também era humano. Então, tomou banho e escolheu as roupas para a noite, algo que se provou mais desafiador do que imaginava.
Como alguém se veste para trair o falso empregador ao encontrar-se com executivos de uma companhia de petróleo pertencente e gerida pela inteligência russa? Escolheu
um terno simples, cinza soviético, e uma camisa branca com abotoaduras francesas. Dispensou a gravata por medo de parecer demasiado afoito. Além do mais, se a intenção
deles fosse matá-lo, não queria usar uma peça que pudesse se tornar uma arma.
Instruído por Gabriel, deixou todas as luzes do quarto acesas e pendurou o sinal de NÃO PERTURBE na maçaneta antes de ir para o elevador. O saguão era um mar de
delegados. Ao se dirigir à porta, viu Yossi, o repórter recém-contratado pelo inexistente Energy Times, entrevistando um dos executivos iranianos. Do lado de fora,
uma neve granulada caía feito tempestade de areia na Praça Nova do Rei. Um sedã Mercedes Classe E esperava encostado no meio-fio. Ao lado da porta traseira aberta
estava um russo de 2,5 metros que tinha cara de Igor.
- Aonde vamos?- perguntou Mikhail, conforme o carro arrancava em uma guinada.
- Jantar - grunhiu Igor, o motorista.
- Ah - disse Mikhail em voz baixa -, bom saber.
O motorista russo não ouviu o comentário de Mikhail, mas Gabriel, sim. Ele estava ao volante de um sedã Audi, parado em uma rua secundária próxima à entrada do hotel.
Keller se achava ao seu lado, com um tablet apoiado nos joelhos. Na tela havia um mapa de Copenhague, e a posição de Mikhail era representada por uma luz azul piscante,
que, naquele momento, afastava-se rapidamente da Praça Nova do Rei em direção a uma região da cidade pouco conhecida por seus restaurantes. Gabriel deu partida na
ignição sem pressa. Olhou para a luz azul e a seguiu com cautela.
Logo ficou claro que Mikhail e Lazarev não jantariam em Copenhague naquela noite. Isso porque, poucos minutos após deixar o hotel, o grande Mercedes preto se encaminhou
para fora da cidade a uma velocidade que sugeria que Igor estava acostumado a dirigir na neve. Gabriel não precisava acompanhar o ritmo alucinado do carro, pois
a luz azul no tablet de Keller dizia tudo o que ele precisava saber.
Depois de passar por todos os distritos do sul de Copenhague, a luz entrou na via expressa E20 e seguiu para o sul, rumo à região da Dinamarca conhecida como Zelândia.
Quando a rodovia voltou-se para o interior, em direção à antiga cidade mercante de Ringsted, a luz afastou-se dela e foi para a orla marítima. Gabriel e Keller fizeram
o mesmo e se viram em uma pequena estrada de duas pistas, ladeada pelas águas negras da baía de Koge à esquerda e pelos campos nevados à direita. Seguiram na via
por vários quilômetros até depararem com uma série de casinhas de veraneio agrupadas ao longo de uma praia pedregosa assolada pelo vento, onde a luz enfim parou
de se mover.
Gabriel parou no acostamento e aumentou o volume do seu fone. Ouviu a porta do carro se abrindo, passos sobre paralelepípedos cobertos de neve e o ribombar de bate-estaca
do coração nervoso de Mikhail.
O chalé estava entre os melhores do local. Tinha uma entrada de carros em forma de U, uma cobertura de telhas vermelhas para automóveis e um jardim com terraço emoldurado
por sebes podadas e pequenas e robustas muretas de tijolos. Doze degraus levavam a uma varanda com uma balaustrada branca; duas árvores em vasos postavam-se como
sentinelas em cada lado da porta de vidro. Enquanto Mikhail se aproximava, a porta se abriu e Lazarev saiu à varanda para cumprimentá-lo. Vestia um pulôver de gola
alta e um cardigã grosso de estilo nórdico.
- Nicholas! - bradou, como a um parente surdo. - Entre antes que morra de frio. Desculpe-me por arrastá-lo até aqui, mas nunca me senti confortável fazendo negócios
sérios em restaurantes e hotéis.
Ele ofereceu a mão a Mikhail e puxou-o para dentro, como se resgatasse um homem que se afogava. Depois de fechar depressa a porta, pegou o casaco de Mikhail e passou
um momento admirando cuidadosamente o prêmio que havia conquistado. Apesar do poder e da riqueza, Lazarev ainda parecia um cientista do governo. De óculos arredondados
e testa franzida, tinha o ar de um homem que estava eternamente num embate para resolver uma equação.
- Foi difícil escapar de Viktor?
- Nem um pouco - respondeu Mikhail. - Na verdade, acho que ele até ficou feliz de se livrar de mim por algumas horas.
- Vocês parecem se dar muito bem.
- E nós nos damos.
- Mas, ainda assim, você veio - observou Lazarev.
- Senti que devia.
- Por quê?
- Porque, quando um homem como Gennady Lazarev solicita um encontro, é uma boa ideia aceitar.
As palavras de Mikhail obviamente agradavam a Lazarev. Ficou claro que o russo não era imune a bajulação.
- E você não disse a ele aonde ia?
- Claro que não.
- Muito bem. - Lazarev apertou o ombro de Mikhail com a mão delicada. - Venha tomar um drinque. Conhecer o resto do pessoal.
Lazarev acompanhou Mikhail até uma grande sala com janelas para o mar. Dois homens aguardavam em meio ao tipo de silêncio desconfortável que se segue a uma briga.
Um deles servia um drinque no carrinho de bebidas; o outro se aquecia em frente à lareira. O primeiro tinha uma barba espessa por fazer e o cabelo escuro e ralo
penteado bem para trás. Mikhail não pôde ver muito do homem à lareira, pois ele estava virado de costas para a sala.
- Este é Dmitry Bershov - disse Lazarev, apontando para o homem junto ao carrinho. - Tenho certeza de que já ouviu falar dele. Dmitry é meu número dois.
- Sim, é claro - falou Mikhail, apertando a mão do vice. - Prazer em conhecê-lo.
- Igualmente - entoou Bershov.
- E aquele homem ali - continuou Lazarev, indicando a figura à lareira - é Pavel Zhirov. Ele lida com a segurança corporativa e com qualquer outro trabalho sujo
que for necessário. Não é mesmo, Pavel?
O homem se voltou devagar até encarar diretamente Mikhail. Vestia um suéter preto de lã e calças cinza-carvão. Com um cabelo louro grisalho e curto, tinha um rosto
angular dominado por uma boca pequena de aspecto cruel. No mesmo instante, Mikhail percebeu que já tinha visto aquele rosto em uma fotografia de um almoço realizado
na Córsega poucas horas antes do desaparecimento de Madeline. Agora o rosto se aproximava em meio à luz do fogo, esboçando algo parecido com um sorriso.
- Nós nos conhecemos? - perguntou Zhirov, apertando a mão de Mikhail.
- Acredito que não.
- Você me é familiar.
- Ouço isso com frequência.
O sorriso se esvaiu, os olhos se estreitaram.
- Você trouxe um telefone?
- Eu tomo banho com ele.
- Você se importaria em desligá-lo, por favor?
- É mesmo necessário?
- Sim. E tire a bateria também. Todo cuidado é pouco nos dias de hoje.
Trinta segundos depois, a luz azul no tablet havia se apagado. Gabriel removeu o fone de ouvido e franziu a testa.
- O que aconteceu? - perguntou Keller.
- Mikhail foi para o lado escuro da Lua.
- O que isso significa?
Gabriel explicou. Então, tirou o celular do bolso do casaco e ligou para Lavon no apartamento seguro. Eles conversaram por poucos segundos em um hebraico conciso
e operacional.
- O que está acontecendo? - perguntou Keller depois que Gabriel encerrou a ligação.
- Dois capangas do SVR da rezidentura de Copenhague estão vasculhando o quarto de Mikhail no D'Angleterre.
- E isso é bom?
- Isso é muito bom.
- Tem certeza?
- Não.
Gabriel guardou o celular e olhou pela janela, para as ondas impulsionadas pelo vento que banhavam a praia congelada. A espera, pensou. Sempre a espera.
CONTINUA
28
PAS-DE-CALAIS, FRANÇA
Três quilômetros eram sete voltas e meia em um circuito oval. Um corredor de alta performance poderia percorrer a distância em menos de oito minutos; um atleta em
forma que corresse regularmente, por volta de doze. Mas, para um homem de meia-idade de calça jeans e tênis que já havia sido baleado no peito duas vezes, quinze
minutos eram um desafio mais do que justo. Isso se a distância fosse mesmo de 3 quilômetros, pensou. Se fosse algumas centenas de metros mais longa, o prazo poderia
estar além de sua capacidade física.
Felizmente, a estrada era plana. Como Gabriel ia em direção ao mar, havia até certos pontos de leve declive, embora o vento soprasse forte e constante contra seu
rosto. Impulsionado pela adrenalina e pela raiva, disparou num ritmo frenético, mas, depois de aproximadamente 100 metros, estabeleceu-se no que presumia ser a velocidade
necessária para percorrer 1,5 quilômetro em sete minutos. Ele agarrava o telefone com a mão direita, enquanto mantinha a esquerda solta e relaxada. A princípio,
sua respiração era ritmada, mas logo se tornou entrecortada e ele passou a sentir um gosto de ferrugem no fundo da garganta. Aquilo era culpa de Shamron, pensou,
ressentido, marchando sobre o asfalto, sob a chuva que lhe pinicava o rosto. Shamron e seus malditos cigarros.
Depois do prédio comercial, não havia absolutamente nada - nem chalés, nem postes, apenas campos negros, cercas vivas e a linha branca tracejada no limite da estrada
que guiava Gabriel no escuro, mantendo seu progresso ritmado e constante. As lacunas tinham o mesmo comprimento que os traços: duas passadas por traço, duas passadas
por lacuna. Quinze minutos para percorrer 3 quilômetros.
“Senão o quê?”
“Você está perdendo tempo.”
Depois de cinco minutos, sentia as panturrilhas duras como granito e suava sob o peso da jaqueta de couro. Tentou despir-se dela enquanto corria, mas não conseguiu,
então parou por tempo suficiente para tirá-la e arremessá-la numa plantação. Ao retomar a corrida, viu uma fraca aura amarela no horizonte. Então, os dois faróis
de um veículo emergiram no topo de uma pequena subida e vieram em sua direção em alta velocidade. Era uma pequena van cinza-claro bem desgastada. Quando passou por
ele num borrão, Gabriel reparou que o motorista e o carona usavam balaclavas. Os coletores vindo retirar o dinheiro. Ele não se deu o trabalho de se virar: estava
ocupado tentando ignorar a queimação nas panturrilhas e as agulhadas da chuva no rosto. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna. Quinze minutos para percorrer
3 quilômetros.
Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade...
Gabriel completou a pequena subida e imediatamente avistou uma corrente de luzes cintilando ao longe. Eram de Audresselles, pensou, a pequena comuna costeira bem
ao sul do farol do Cap Gris Nez. Ele checou o tempo no celular: oito minutos transcorridos, restando sete. Suas passadas começavam a vacilar e a nuca estava dormente.
Lamentou não cuidar melhor do corpo. Seus pensamentos agora se concentravam principalmente em Viena. Em um carro estacionado à beira de uma praça nevada. Em um motor
que não dava a partida por causa de uma bomba drenando energia da bateria.
Ele olhou para o telefone: nove minutos transcorridos, restando seis. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna.
Gabriel levou o celular à boca.
- Vocês pegaram o dinheiro?
A voz respondeu poucos segundos depois:
- Pegamos. Muito obrigado.
Aguda, sem vida, com a entonação errada. Ainda assim, Gabriel jurava ter detectado um tom de alegria.
- Vocês têm que me dar mais tempo! - gritou ele.
- Isso não é possível.
- Eu não vou conseguir.
- Você tem que se esforçar mais.
Voltou a fitar o celular: dez minutos transcorridos, restando cinco.
Três passadas por traço, três passadas por lacuna.
- Estou indo buscá-la, Leah! - berrou para o vento. - Não gire a chave de novo! Não gire a chave!
- Gabriel passou em disparada por uma vasta mansão, nova mas construída de forma a parecer antiga, e sentiu imediatamente a proximidade do mar. A estrada descia
rumo a ele, e seu cheiro trouxe a Gabriel um gosto de peixe e sal. Uma placa materializou-se no escuro, indicando o acesso à praia 200 metros adiante. Então, Gabriel
viu o Citroen, num estacionamento pequeno e arenoso, virado de frente para ele com os faróis acesos, dando a impressão de observá-lo correr como um louco em sua
direção. Gabriel olhou para o relógio: treze minutos transcorridos, restando dois. Conseguiria com folga. Ainda assim, forçou-se a correr até o fim, marchando sobre
o asfalto, agitando os braços, até achar que o coração iria explodir.
Ansiando por oxigênio, seu cérebro começou a lhe pregar peças. Em um momento, via um Citroen estacionado na praia; no próximo, um Mercedes sedã azul-escuro em uma
praça nevada em Viena. Jurou ter ouvido um motor que não queria dar a partida e, mais tarde, lembrou-se de gritar algo incoerente antes de ser cegado pelo clarão
de uma explosão. A onda de impacto o atingiu com a força de um carro veloz e o derrubou no chão.
Ele ficou deitado no asfalto frio por vários minutos, respirando com sofreguidão, perguntando-se se aquilo teria acontecido de verdade ou se era apenas um sonho.
Parte 2
O ESPIÃO
29
AUDRESSELLES, PAS-DE-CALAIS
Era cedo e o local era remoto, portanto a repercussão foi lenta. Muito mais tarde, uma comissão de inquérito viria a repreender o chefe da gendarmaria local e emitir
uma série de recomendações pomposas que foram completamente ignoradas, pois, na pequena e pitoresca vila de pescadores de Audresselles, recriminações estavam longe
de figurar entre as preocupações das pessoas. Passados muitos meses, os habitantes chocados da comunidade ainda falavam daquela manhã no mais sombrio dos tons.
Uma octogenária, cuja família havia morado na comuna sob a autoridade de um rei inglês, descrevia o incidente como a pior coisa que ela já tinha visto desde que
os nazistas hastearam uma bandeira com suástica sobre o Hôtel de Ville. Ninguém se opunha à sua afirmação, embora alguns poucos a achassem hiperbólica, afirmando
que a comuna já passara por coisas piores. Mas, quando questionados, ninguém era capaz de dar um exemplo.
Audresselles mede apenas 2 mil acres e o impacto da explosão chacoalhou janelas por toda parte. Muitos habitantes, alarmados, ligaram imediatamente para os gendarmes,
mas passaram-se vinte longos minutos até que a primeira viatura chegasse ao pequeno estacionamento adjacente à praia. Lá, descobriram um Citroen C4 engolfado por
um fogo tão quente que não era possível aproximar-se mais do que 30 metros. Apenas dez minutos depois, chegaram os bombeiros. Quando eles conseguiram apagar as chamas,
o carro havia sido reduzido a pouco mais do que uma carcaça enegrecida.
Por razões que jamais ficaram claras, um dos bombeiros resolveu forçar a abertura do porta-malas. Logo que conseguiu, caiu de joelhos e vomitou. O primeiro gendarme
a olhar o conteúdo não se saiu melhor. Mas o segundo, um veterano com vinte anos de serviço, foi capaz de manter a compostura ao confirmar que aquilo eram os restos
de um ser humano. Então, ele acionou pelo rádio a delegacia da região de Pas-de-Calais e comunicou que a explosão do carro na praia era agora um caso de assassinato
- um tanto quanto grotesco, diga-se de passagem.
Ao amanhecer, mais de dez detetives e profissionais forenses trabalhavam na cena do crime, observados pelo que parecia ser metade da cidade. Apenas um morador de
Audresselles tinha algo de útil a relatar: Léon Banville, dono de uma mansão recentemente construída no limite da cidade. Por acaso, ele estava acordado às 5h09,
quando um homem em roupas comuns passou correndo por sua anela gritando em uma língua desconhecida. A polícia logo realizou uma busca na estrada e encontrou uma
jaqueta de couro que parecia servir a um homem de estatura e porte médios. Nada mais de interesse foi encontrado - nem a chave que o homem atirou no campo de cereal,
nem o Volkswagen que ela acionava. O carro desapareceu sem pistas junto com os 10 milhões de euros escondidos em seu porta-malas.
O calor intenso do fogo danificou significativamente os restos mortais na traseira do Citroen, mas não os destruiu por completo. Dessa forma, investigadores forenses
puderam determinar que a vítima era uma jovem mulher, entre 25 e 35 anos, medindo por volta de 1,70 metro. A descrição batia vagamente com a de Madeline Hart, a
garota inglesa que havia desaparecido na Córsega no fim de agosto.
De forma discreta, a polícia francesa restabeleceu contato com seus companheiros do outro lado do canal da Mancha e, dentro de 48 horas, possuía uma amostra de DNA
retirada do apartamento da Srta. Hart em Londres. Um rápido teste de comparação deu resultado positivo. O ministro do Interior da França logo avisou sua contraparte
britânica, para então levar a público a descoberta em uma coletiva de imprensa em Paris, convocada às pressas. Madeline Hart estava morta. Mas quem a assassinara?
E por quê?
O funeral foi realizado na Igreja de St. Andrew, em Basildon, muito próxima à pequena moradia popular onde ela havia crescido. O primeiro-ministro, Jonathan Lancaster,
não compareceu - segundo o assessor de imprensa, Simon Hewitt, sua agenda não o permitira. Quase todos os integrantes do alto escalão do partido estavam presentes,
bem como Jeremy Fallon, que chorava abertamente à beira da cova, inspirando um repórter a observar que, talvez, o chefe de gabinete tivesse um coração, afinal. Ele
falou bem rápido com a mãe e o irmão de Madeline, que pareciam curiosamente deslocados em meio ao bem-vestido grupo de londrinos.
- Sinto muito - disse ele aos dois. - Sinto muito mesmo.
A equipe política do Partido voltou a notar um aumento no percentual de aprovação de Lancaster, mas dessa vez teve a decência de não evocar o nome de Madeline. Com
a popularidade mais em alta do que nunca, o primeiro-ministro anunciou um programa arrebatador para aumentar a eficiência do governo e partiu em uma visita de grande
visibilidade a Moscou, onde prometeu uma nova era nas relações russo-britânicas, especialmente nas áreas de contraterrorismo, finanças e energia. Um punhado de comentaristas
conservadores fez algumas críticas brandas a Lancaster porque ele não se encontrara com os líderes do movimento pró-democracia da Rússia. Porém, a maior parte da
imprensa inglesa aplaudiu sua reserva, escrevendo que, com a economia doméstica ainda frágil, a última coisa de que a Grã-Bretanha precisava era outra Guerra Fria.
Ao retornar a Londres, Lancaster foi questionado a todo momento acerca de suas intenções de convocar uma eleição. Durante dez dias, ele enrolou a imprensa, enquanto
Simon Hewitt orquestrava vazamentos constantes, que deixavam clara a iminência de um anúncio. Dessa forma, quando o primeiro-ministro enfim levantou-se na Câmara
para declarar sua intenção de concorrer a outro mandato, houve um anticlímax. As notícias mais surpreendentes diziam respeito ao futuro de Jeremy Fallon, que planejava
abandonar o alto posto no escritório de Lancaster para tentar um posto seguro no Parlamento.
Houve muitos boatos - nenhum confirmado - de que Fallon seria apontado como ministro do Tesouro, caso Lancaster ganhasse, mas ele negou categoricamente, chegando
a alegar que não tivera nenhuma discussão significativa acerca de seu futuro. Nenhum membro do corpo de imprensa de Whitehall acreditou.
Em novembro, a campanha começou de fato e Madeline Hart mais uma vez se desvaneceu na consciência popular. Isso provou ser uma bênção para a polícia francesa, pois
lhe permitiu conduzir a investigação sem a imprensa britânica espiando por cima de seus ombros. Um dos desdobramentos mais promissores foi a descoberta de quatro
cadáveres em uma casa de veraneio isolada no Lubéron. Os corpos eram de membros conhecidos de uma violenta gangue de Marselha. Três haviam sido mortos com tiros
aparentemente profissionais na cabeça; a quarta, uma mulher, fora atingida duas vezes na parte de cima do tronco.
O mais importante, no entanto, foi a descoberta de uma cela no andar de baixo da casa. Para a polícia, estava claro que Madeline havia sido mantida ali depois do
sequestro na Córsega, provavelmente por um longo período. Ela até poderia ter sido vítima de escravidão sexual, mas tratava-se de uma hipótese improvável, dada a
estirpe das quatro pessoas que tinham estado na casa com ela: criminosos profissionais interessados apenas em dinheiro. Tudo isso levou a polícia a concluir que
a garota inglesa fora mantida como refém em um esquema de sequestro por recompensa, que por algum motivo não fora comunicado às autoridades em nenhum momento.
Mas por que sequestrar uma jovem de uma família da classe operária, criada em uma moradia popular em Essex? E quem havia assassinado os quatro criminosos de Marselha
na casa de veraneio no Lubéron? Essas eram apenas duas questões que os policiais franceses não conseguiam responder, mesmo um mês após a terrível morte de Madeline
na praia de Audresselles. Eles também não tinham nenhuma pista sobre a identidade do homem que fora visto correndo diante da casa de monsieur Banville de madrugada,
minutos antes da explosão do carro.
No entanto, um detetive veterano que resolvera muitos casos de sequestro tinha uma teoria.
- O pobre-diabo era o pagador - disse a seus colegas, confiante. - Ele cometeu algum erro e a garota morreu por seus pecados.
Mas onde ele se encontrava agora? Presumiram que estivesse se escondendo em algum lugar, lambendo suas feridas e tentando entender o que dera errado. Embora jamais
viesse a saber, a polícia francesa estava totalmente certa.
Mas havia muitas outras coisas a respeito daquele homem que ela nem poderia imaginar, nem em seus sonhos mais loucos. Nunca saberia, por exemplo, que ele era Gabriel
Allon, o lendário espião e assassino israelense que vinha operando impune em solo francês desde os 22 anos. Ou que o homem que o resgatara depois da explosão da
bomba era ninguém menos do que Christopher Keller, sobre quem a polícia escutava rumores havia anos. Ou que os dois, antes arquirrivais, dirigiram-se a uma casa
de veraneio à beira-mar, perto de Cherbourg, onde uma equipe de quatro agentes israelenses esperavam, a postos. Keller ficou apenas poucas horas na casa antes de
retornar à Córsega, mas Chiara permaneceu lá por uma semana, esperando que os pequenos cortes no rosto de Gabriel cicatrizassem. Na manhã do funeral de Madeline
Hart, eles foram de carro até o Aeroporto Charles de Gaulle e embarcaram em um voo da El Al rumo a Tel Aviv. Ao cair da noite, estavam mais uma vez no apartamento
na rua Narkiss.
Durante a ausência de Gabriel, Chiara havia levado o quadro e seus materiais para o quarto que deveria ser seu estúdio. Mas, na manhã seguinte, assim que ela saiu
para trabalhar no museu, ele trouxe tudo de volta para a sala de estar. Gabriel postou-se na frente da tela durante três dias, quase sem descanso, desde o amanhecer
até o fim da tarde, quando Chiara voltava para casa. Tentou evitar as memórias do pesadelo na França, mas o objeto da pintura, uma linda jovem banhando-se num jardim,
não o permitia. Madeline estava sempre em seus pensamentos, especialmente no quarto dia, quando ele começou a trabalhar nos ferimentos nas mãos de Suzana. Ali, via
evidências claras das pinceladas luminosas de Bassano. Gabriel as imitara tão imaculadamente que era quase impossível distinguir o original do restauro. De fato,
em sua humilde opinião, ele tinha até mesmo superado o mestre em alguns pontos. Queria poder ser creditado pela alta qualidade do trabalho, mas não seria justo:
era Madeline quem o inspirava.
Gabriel se forçava a fazer uma pausa para o almoço no começo de cada tarde, mas acabava inevitavelmente comendo na frente do computador, vasculhando a internet em
busca de notícias sobre a investigação da morte de Madeline. Sabia que as matérias estavam longe de serem completas, mas parecia que a polícia não tinha conhecimento
de sua participação no caso. Na imprensa britânica, também não achou nenhum indício de que Lancaster estivesse ligado de qualquer forma ao desaparecimento e à morte
de Madeline. Aparentemente, o primeiro-ministro e Jeremy Fallon haviam conseguido o impossível - e agora, segundo as pesquisas, encaminhavam-se para uma vitória
esmagadora. Claro que nenhum dos dois tentou contatar Gabriel. Até Graham Seymour aguardou três longas semanas antes de ligar. Pelo barulho ao fundo, Gabriel imaginou
que ele estivesse usando um telefone público na estação de Paddington.
- Nosso amigo em comum envia seus cumprimentos - disse Seymour, cauteloso. - Ele gostaria de saber se você precisa de algo.
- De uma jaqueta de couro nova - respondeu Gabriel, fingindo estar de melhor humor.
- De que tamanho?
- Médio, com um compartimento secreto para passaportes falsos e uma arma.
- Você pretende me contar como escapou sem ser preso?
- Algum dia, Graham.
Seymour ficou em silêncio enquanto o alto-falante anunciava um trem para Oxford.
- Ele está grato - comentou, afinal, referindo-se a Lancaster de novo. - Sabe que você fez o que pôde.
- Não foi o bastante para salvá-la.
- Você já considerou a possibilidade de eles nunca terem planejado libertá-la?
- Sim, mas, sinceramente, não consigo entender o porquê.
- Você deseja que eu fale algo mais para ele?
- Você pode lembrá-lo de que os sequestradores têm uma cópia do vídeo em que ela confessa o caso.
- Sem a garota, não há história.
Se a intenção do telefonema de Seymour era animar Gabriel, ele tinha falhado miseravelmente. Inclusive, nos dias seguintes, o humor de Allon foi ficando ainda mais
soturno. Pesadelos perturbavam-lhe o sono. Sonhos em que ele corria em direção a um carro que se afastava a cada passada. Sonhos de sangue e fogo. No seu subconsciente,
Madeline e Leah tornaram-se indistinguíveis: duas mulheres, uma que havia amado e outra que havia jurado proteger, ambas consumidas pelo fogo. Ele estava arrasado
pelo luto. Acima de tudo, no entanto, acometia-lhe um sentimento opressor de fracasso. Prometera a Madeline que iria resgatá-la com vida. E ela tinha sofrido uma
morte terrível, amarrada e amordaçada dentro de um caixão flamejante. Gabriel podia apenas esperar que, na hora, ela estivesse sedada e tivesse sido poupada da dor
e do horror.
Mas por que a haviam assassinado? Será que ele tinha cometido algum erro na extração, que teria custado a vida de Madeline? Ou, desde o princípio, a intenção era
matá-la na frente de Gabriel, para que não tivesse nenhuma escolha senão assisti-la queimar? Essa foi uma questão colocada por Chiara uma noite, quando caminhavam
pela rua Ben Yehuda. Gabriel lhe contou sobre a signadora, que vira um inimigo de longa data ao perscrutar sua poção mágica de azeite e água. Não era um inimigo
de Keller, mas de Gabriel.
- Eu nunca soube que você tinha inimigos no submundo do crime de Marselha.
- Não tenho mesmo. Pelo menos não que eu saiba. Mas talvez eles estivessem agindo a mando de alguém quando sequestraram Madeline.
- E quem é esse alguém?
- Alguém que desejava me punir por algo que fiz no passado. Alguém que queria me humilhar.
- A signadora disse mais alguma coisa?
- “Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.”
Poucos minutos após as nove, voltaram para a rua Narkiss, mas Gabriel resolveu ficar um tempo trabalhando na pintura. Colocou um CD de La Bohème no aparelho manchado
de tinta, baixou o volume até apenas um sussurro e seguiu na restauração com uma clareza de propósitos que não tinha conseguido experimentar desde sua volta a Jerusalém.
Ele não ouviu a ópera acabar nem reparou que o céu começava a clarear atrás de si. Por fim, na alvorada, descansou o pincel e ficou imóvel diante da tela, com a
mão no queixo e a cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- Terminou? - perguntou Chiara, observando-o com atenção.
- Não - respondeu Gabriel, ainda encarando a pintura. - Está apenas começando.
30
TIBERÍADES, ISRAEL
Era noite de sabá. Shamron os convidara para jantar em sua casa em Tiberíades. Na verdade, não era um convite, que poderia ser polidamente recusado, mas uma ordem
gravada em pedra, inviolável. Gabriel passou a manhã tomando as providências para enviar a pintura a Julian Isherwood em Londres. Depois, cruzou Jerusalém para buscar
Chiara no Museu de Israel. Enquanto percorriam em alta velocidade o Bab al-Wad - uma espécie de desfiladeiro escalonado que liga Jerusalém à Planície Costeira -,
militantes palestinos na Faixa de Gaza dispararam uma barragem de foguetes que atingiu Ashdod, no norte. O ataque causou apenas pequenos danos, mas complicou o tráfego
na estreita faixa central do país no momento em que milhares de trabalhadores corriam para casa para celebrar o sabá. Era bom estar em casa de novo, pensou Gabriel,
e aguardou uma hora para que os carros andassem.
Quando enfim alcançaram a Planície Costeira, seguiram ao norte para a Galileia, e depois ao leste por uma fieira de aldeias e vilarejos árabes, até chegar a Tiberíades.
A casa cor de mel de Shamron ficava a alguns quilômetros da cidade, num precipício com vista para o lago. Para alcançá-la, era necessário subir por uma estrada bastante
íngreme. Quando Gabriel e Chiara chegaram, foram recebidos por Gilah. Shamron estava em pé na frente da televisão, ao telefone. Seus óculos feios de metal estavam
apoiados na testa e ele pressionava a ponte do nariz com o polegar e o indicador. Se um dia lhe erigissem uma estátua, pensou Gabriel, ela seria esculpida nessa
pose.
- Com quem ele está falando? - perguntou Gabriel a Gilah.
- Com quem você acha?
- Com o primeiro-ministro?
Gilah assentiu.
- Ari acha que devemos retaliar. O primeiro-ministro não está tão certo disso.
Gabriel entregou uma garrafa de vinho a Gilah, um Bordeaux tinto das colinas da Judeia, e beijou-a na bochecha. Era macia como veludo e tinha aroma de lilases.
- Diga a Ari para sair do telefone, Gabriel. Ele vai escutá-lo.
- Prefiro ser atingido diretamente por um daqueles foguetes palestinos.
Gilah sorriu e os conduziu para a cozinha. Perfiladas no balcão, viam-se travessas com alimentos de aspecto delicioso; ela devia ter ficado o dia todo cozinhando.
Gabriel tentou roubar um pedaço da famosa berinjela marroquina de Gilah, mas ela lhe deu um tapa na mão, de brincadeira.
- Quantas pessoas você planeja alimentar?
- Yonatan e sua família deveriam vir, mas ele não consegue sair por causa do atentado.
Yonatan era o filho mais velho de Shamron. Era general das Forças Armadas de Israel e havia boatos de que estava na disputa para se tornar chefe do Estado-Maior.
- Comeremos dentro de poucos minutos - avisou Gilah. - Vá sentar-se um pouco com Ari. Ele sentiu muito a sua falta enquanto você esteve fora.
- Eu estive fora só por duas semanas, Gilah.
- A esta altura da vida, duas semanas são muito tempo para ele.
Gabriel abriu o vinho, serviu duas taças e levou-a para o outro cômodo.
Shamron já não estava mais falando ao telefone, porém ainda olhava fixamente para a televisão.
- Acabam de lançar outra barragem - informou ele. - Os foguetes devem cair em poucos segundos.
- Haverá resposta?
- Agora, não. Mas, se isso continuar, não teremos outra opção senão agir. A questão é: o que fará o Egito, agora que é governado pela Irmandade Muçulmana? Eles vão
ficar de braços cruzados enquanto atacamos o Hamas, que é, no fim das contas, uma ala da Irmandade? Será que o Acordo de Paz de Camp David vai ser mantido?
- O que Uzi disse?
- Neste momento, o Escritório não pode prever a exata reação do líder egípcio caso invadamos Gaza. É por isso que o primeiro-ministro, pelo menos por ora, não está
disposto a agir enquanto chovem foguetes em cima de seu povo.
Gabriel olhou para a tela; bombas começavam a cair. Ele desligou a televisão e levou Shamron para a varanda. Estava mais quente ali do que em Jerusalém, e um vento
suave soprava das colinas de Golã, formando padrões na superfície prateada do lago. Shamron sentou-se numa das cadeiras de ferro batido ao longo da balaustrada e,
instantaneamente, acendeu um de seus cigarros fedorentos. Gabriel entregou-lhe uma taça de vinho e sentou ao seu lado.
- Ele não faz nada pelo meu coração - disse Shamron após beber um pouco do vinho -, mas passei a apreciá-lo em minha velhice. Imagino que me lembre das coisas para
as quais não tive tempo na juventude: vinho, crianças, férias. - Ele fez uma pausa e acrescentou: - Vida.
- Ainda há tempo, Ari.
- Poupe-me das frivolidades. O tempo agora é meu inimigo, filho.
- Então para que desperdiçar mesmo um minuto se envolvendo com política?
- Existe uma diferença entre segurança e política.
- A segurança é meramente uma extensão da política, Ari.
- E se você estivesse aconselhando o primeiro-ministro quanto ao que fazer com relação aos mísseis?
- É o trabalho de Uzi aconselhá-lo, não o meu.
Shamron resolveu mudar de assunto:
- Estive acompanhando as notícias de Londres com grande interesse. Parece que seu amigo Jonathan Lancaster segue rumo à vitória.
- Ele deve ser o político mais sortudo do planeta.
- Sorte é algo importante na vida. Nunca tive muita. Nem você, diga-se de passagem.
Gabriel não respondeu.
- E desnecessário dizer - prosseguiu Shamron - que esperamos fervorosamente que as tendências eleitorais atuais continuem assim e Lancaster ganhe. Se isso acontecer,
temos certeza de que será o político britânico mais pró-sionista desde Arthur Balfour.
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser. - Shamron olhou para Gabriel com seriedade por um momento. - Me desculpe por um dia tê-lo envolvido neste assunto.
- Você conseguiu exatamente o que queria: Lancaster pode muito bem figurar na folha de pagamento do Escritório. Ele está comprometido. É a pior coisa para um líder.
- Comprometido por suas próprias ações, não pelas nossas.
- É verdade - disse Gabriel. - Mas foi Madeline Hart quem pagou o preço.
- Você deve se esforçar para esquecê-la.
- Receio que eu tenha dito algo para os sequestradores que impossibilita isso.
- Você os ameaçou de morte caso a machucassem?
Gabriel assentiu.
- Ameaças de morte são como juras de amor eterno sussurradas no calor da paixão: facilmente feitas, rapidamente esquecidas.
- Não quando eu as faço.
Shamron apagou o cigarro, pensativo.
- Você me surpreende, filho. Mas não a Uzi. Ele previu que você decidiria ir atrás deles, por isso já arquivou o assunto.
- Então seguirei em frente sem ajuda.
- Isso significa que você ficará lá fora sozinho, sem recursos nem proteção do Escritório.
Gabriel ficou mudo.
- E se eu o proibisse? Você me obedeceria?
- Sim, Abba.
- É mesmo? - perguntou Shamron, surpreso.
Gabriel aquiesceu.
- E se eu permitisse a você encontrar essas pessoas para dar-lhes a justiça que merecem? O que receberia em troca?
- Será que tudo com você tem que ser uma negociação?
- Sim.
- O que você quer?
- Você sabe o que eu quero. - Shamron fez uma pausa. - E o primeiro-ministro também quer.
Ele bebeu um pouco do vinho e acendeu outro cigarro.
- Estamos vivendo em tempos significativos e turbulentos, e os desafios só ficarão mais sérios. As decisões que tomarmos nos próximos meses e anos determinarão o
sucesso ou fracasso da empreitada. Como você pode dispensar a chance de fazer história?
- Eu já fiz história, Ari. Muitas e muitas vezes.
- Então guarde a arma no armário e use o cérebro para derrotar os nossos inimigos. Roube segredos. Recrute espiões e generais como agentes. Confunda-os, frustre-os.
Para enganar, meu filho, farás a guerra.
Gabriel mergulhou no silêncio. Com o cair da noite, o céu acima das colinas estava ficando azul-escuro e já quase não se via o lago. Shamron adorava a vista porque
lhe permitia vigiar inimigos distantes. Gabriel a adorava porque a contemplara ao recitar suas juras matrimoniais para Chiara. Agora, estava prestes a fazer outra
espécie de promessa, que tornaria um velho muito feliz.
- Não tomarei parte de golpes palacianos de nenhum tipo - disse Gabriel, por fim. - Uzi e eu tivemos nossas diferenças, mas nos tornamos amigos.
Shamron sabia que não deveria falar naquele momento. Ele tinha o dom do silêncio, próprio dos interrogadores.
- Se o primeiro-ministro decidir não indicar Uzi para um segundo mandato - prosseguiu Gabriel vou considerar a oferta para me tornar diretor do Escritório.
- Preciso de mais garantias.
- Essas são as únicas que você terá.
- Negociar com sequestradores o deixou afiado.
- De fato.
- Por onde você pretende começar?
- Ainda não decidi.
- Como vai obter dinheiro?
- Achei alguns milhares de euros num barco em Marselha.
- De quem era o barco?
- De um contrabandista chamado Marcel Lacroix.
- Onde ele está agora?
Gabriel respondeu.
- Pobre-diabo.
- Outros o seguirão.
- Apenas tome cuidado para não se juntar a eles. Tenho planos para você.
- Eu disse que iria considerar a proposta, Ari. Ainda não concordei com nada.
- Eu sei. Mas também sei que você jamais me ludibriaria para obter algo que quisesse. Ao contrário de mim, você tem consciência.
- Você também tem, Ari. Por isso não consegue dormir à noite.
- Algo me diz que esta noite eu dormirei bem.
- Não se empolgue - alertou Gabriel. - Ainda tenho que falar com Chiara. Shamron sorriu.
- Qual é a graça?
- De quem você acha que foi a ideia?
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser.
Por onde começar a busca pelos assassinos de Madeline? O lugar mais lógico era procurar entre as organizações criminosas de Marselha. Ele poderia rastrear parceiros
de Marcel Lacroix e René Brossard, observá-los, suborná-los, interrogá-los, machucar alguns deles se necessário, até saber a identidade do homem que chamavam de
Paul. O homem que tinha levado Madeline para almoçar no Les Palmiers no dia em que ela desaparecera. O homem que parecia ter aprendido francês ouvindo CDs de algum
curso de línguas. Mas havia um problema com esse plano. Se Gabriel fosse a Marselha, certamente cruzaria com a polícia francesa. Além disso, àquela altura, o homem
conhecido como Paul já devia
ter desaparecido havia muito tempo. Portanto, decidiu que começaria a busca não pelos agentes do crime, mas pelas duas vítimas. Alguém sabia do caso entre Jonathan
Lancaster e Madeline Hart. E havia passado essa informação para o tal Paul. Achar essa pessoa, calculou, significaria achar Paul.
Mas, antes, Gabriel precisava encontrar outra pessoa. Alguém que seguira a ascensão de Lancaster ao poder. Que conhecia a dinâmica do relacionamento entre Fallon
e o atual primeiro-ministro. Que sabia de todos os podres. Deu com essa pessoa na manhã seguinte, quando lia a cobertura da campanha eleitoral britânica. Seria complicado
e até perigoso. Mas, se conseguisse informações que levassem aos assassinos de Madeline, o risco pessoal valeria muito a pena.
Gabriel passou o resto da manhã preparando um dossiê detalhado. Quando terminou, fez uma pequena mala com duas mudas de roupa e dois conjuntos de identidade. Naquela
noite, voou de Ben Gurion a Paris e, ao meio-dia, estava novamente na Córsega. Ele precisava de mais uma coisa antes de dar início à busca: um cúmplice. Bastante
competente, completamente impiedoso e sem nenhum resquício de consciência. Ele precisava de Christopher Keller.
31
CÓRSEGA
A ilha tinha se transformado desde a última vez que Gabriel a visitara. As praias estavam desertas, havia boas mesas vagas nos melhores restaurantes e as feiras
estavam livres dos europeus seminus do continente que se deslumbravam com as mercadorias, mas raramente abriam suas carteiras. A Córsega voltara a ser dos corsos,
e até o mais melancólico dos moradores agradecia por isso.
Porém, muitas outras coisas continuavam iguais. O mesmo cheiro inebriante da macchia saudou Gabriel à medida que ele se embrenhava na ilha; a mesma senhora lhe apontou
com o indicador e o mindinho enquanto ele atravessava a isolada cidadela montanhesca; os mesmos dois guardas menearam a cabeça ameaçadoramente quando ele adentrou
a propriedade de Don Anton Orsati.
Gabriel seguiu a estrada até ela se tornar de terra batida, então continuou em frente. Ao fazer a curva fechada à esquerda próxima às três oliveiras centenárias,
deparou com o maldito bode de Don Casabianca a bloquear seu caminho.
A expressão do animal se tornou sombria, como se ele lembrasse das circunstâncias do último encontro e agora planejasse dar o troco. Pela janela do carro, Gabriel
pediu com educação para que o bode lhe desse licença. Como a fera empinou o queixo desafiadoramente, ele saiu do automóvel, inclinou-se para a orelha velha e esfarrapada
do bicho e sussurrou uma ameaça muito parecida com a que fizera aos sequestradores de Madeline Hart. Na mesma hora, o bode se virou e bateu em retirada para dentro
dos arbustos da macchia. Ele era um covarde, como a maioria dos tiranos.
Gabriel voltou a entrar no carro e prosseguiu até a casa de Keller. Estacionou na entrada, à sombra de um pinheiro-larício, e bradou uma saudação em direção à varanda,
sem obter resposta. A porta estava destrancada. Gabriel andou de um belo cômodo branco ao outro, mas não encontrou ninguém. Foi até a cozinha e conferiu a geladeira:
nada de leite, carne, ovos; nada perecível. Havia apenas uma cerveja, um pote de mostarda Dijon e uma garrafa de Sancerre de ótima qualidade. Gabriel abriu o vinho
e telefonou para Don Orsati.
Keller tinha viajado a negócios. Europa continental, mas não a França - era o máximo que Anton diria. Se tudo desse certo, Keller estaria de volta à Córsega naquela
mesma noite ou, o mais tardar, na manhã do dia seguinte. O don sugeriu a Gabriel se hospedar na casa de Keller e ficar à vontade, e disse sentir pelo que havia acontecido
“lá no norte”. Keller, obviamente, fizera um relato detalhado.
- E então, o que o traz à Córsega? - perguntou o don.
- Eu paguei uma grande quantia de dinheiro a alguém que não entregou a mercadoria como prometido.
- Uma quantia muito grande.
- O que você faria em meu lugar?
- Para começar, eu jamais teria concordado em ajudar um homem como Jonathan Lancaster.
- Vivemos num mundo complicado, Don Orsati.
- De fato vivemos - disse o don, num tom meio filosófico. - Quanto ao seu problema de negócios, você tem duas opções: pode se esforçar para esquecer o que aconteceu
com a garota inglesa ou punir os responsáveis.
- O que você faria?
- Aqui na Córsega temos um antigo provérbio que diz: um cristão perdoa, um idiota esquece.
- Eu não sou idiota.
- Nem é cristão. Mas não o julgarei por isso.
Orsati pediu a Gabriel que se mantivesse na linha enquanto ele lidava com uma pequena crise. Parecia que um grande carregamento de azeite que ia para um restaurante
em Zurique havia sumido. Gabriel podia ouvir o don gritando com um subalterno em dialeto corso: “Ache o azeite, ou cabeças vão rolar!” Em qualquer outro negócio,
a ameaça poderia ter sido descartada como um mero chilique do supervisor. Mas não na Companhia de Azeite Orsati.
- Onde estávamos? - perguntou o don.
- Você falou algo sobre cristãos e idiotas. E estava prestes a me cobrar um preço alto para pegar Keller emprestado.
- Ele é mesmo o meu empregado mais valioso.
- Por razões óbvias.
Orsati se calou por um momento. Gabriel podia ouvi-lo bebericar algo.
- É importante que isso vá além do sangue - disse o don após um instante. - Você também deve recuperar o dinheiro.
- E se eu conseguir?
- Um pequeno pagamento de tributo ao seu padrinho corso cairia bem.
- Pequeno como?
- Um milhão deve bastar.
- Um milhão é uma quantia bem alta, Don Orsati.
- Eu ia pedir cinco.
Gabriel pensou por um momento e acabou aceitando as condições.
- Mas apenas se eu achar o dinheiro. Do contrário, estou livre para usar Keller a meu bel-prazer, sem custos.
- Fechado. Mas traga-o de volta inteiro. Lembre-se: não dá para ganhar dinheiro cantando.
Gabriel se acomodou na varanda com o Sancerre e o grosso dossiê sobre o funcionamento interno de Downing Street sob o comando de Jonathan Lancaster. Mas, uma hora
depois, já estava ansioso, então ligou para Don Orsati e pediu permissão para caminhar. Ele lhe deu sua bênção e disse a Gabriel onde ele poderia encontrar uma das
armas de Keller. Uma robusta HK 9 mm, guardada na gaveta de uma bela escrivaninha francesa antiga, logo abaixo do Cézanne.
- Mas tenha cuidado - alertou o don. - Christopher ajusta o gatilho para que fique muito leve. Ele tem uma alma sensível.
Gabriel colocou a arma na cintura da calça jeans e partiu pelo caminho estreito, rumo às três oliveiras centenárias. Por sorte, o bode ainda não havia retornado
a seu posto de vigilância, logo Gabriel podia seguir vilarejo adentro sem se aborrecer. Era aquela hora incerta entre o fim da tarde e o começo da noite. As casas
tinham as janelas e portas fechadas e as ruas estavam abandonadas aos gatos e às crianças, que observaram Gabriel com grande interesse. Ele foi até a praça principal,
rodeada por lojas e cafés, que ficava perto de uma igreja. Comprou uma echarpe para Chiara e sentou na cafeteria que parecia menos ameaçadora. Tomou café forte para
amenizar os efeitos do Sancerre e, à medida que o céu escurecia e a brisa esfriava, bebeu vinho tinto corso para amenizar os efeitos do café. As portas da igreja
estavam entreabertas. De dentro, vinha o murmúrio das preces.
Gradualmente, a praça começou a se encher. Rapazes adolescentes estavam montados em ciclomotores na porta da sorveteria; um grupo de homens deu início a uma partida
disputada de boules no centro da esplanada empoeirada. Pouco após as seis, cerca de vinte pessoas, em sua maioria senhoras idosas, desceram as escadas da igreja.
Dentre elas, estava a signadora. Seu olhar recaiu brevemente sobre Gabriel, o descrente; então, ela desapareceu pela porta de sua pequena casa torta. Depois de pouco
tempo, duas mulheres foram chamá-la: uma velha viúva vestida de preto dos pés à cabeça e uma garota de aparência consternada com 20 e poucos anos que, sem dúvida,
estava sofrendo os maléficos efeitos do occhju.
Meia hora mais tarde, as mulheres reapareceram junto a um menino de 10 anos de cabelos encaracolados. Elas se dirigiram à sorveteria, mas a criança se deteve para
observar a partida de boules e foi até Gabriel, segurando um pedaço de papel azul-claro dobrado em quatro. Depositou-o na mesa do café e se afastou às pressas, como
se temesse contrair uma doença. Gabriel desdobrou o papel e, sob a luz evanescente, leu a única linha escrita:
Preciso vê-lo imediatamente.
Gabriel guardou o bilhete no bolso do casaco e continuou sentado por vários minutos ponderando o que fazer. Por fim, deixou algumas moedas sobre a mesa e atravessou
a praça.
Quando bateu à porta, uma voz de taquara rachada o convidou a entrar. Ela estava sentada, sonolenta, numa poltrona desbotada, com a cabeça pendendo para o lado,
como se ainda sofresse da exaustão causada por absorver o mal que contaminara seus últimos visitantes. Apesar dos protestos de Gabriel, insistiu em levantar-se para
cumprimentá-lo. Dessa vez não havia hostilidade em sua expressão, apenas preocupação. A signadora tocou-lhe a face sem dizer nada e olhou nos seus olhos.
- Seus olhos são tão verdes... Você tem os olhos da sua mãe, não é?
- Sim.
- Ela sofreu na guerra, não é mesmo?
- Foi Keller quem disse isso?
- Eu nunca falei com Christopher sobre a sua mãe.
- Sim - disse Gabriel após um momento coisas terríveis aconteceram à minha mãe durante a guerra.
- Na Polônia?
- Sim, na Polônia.
A signadora tomou a mão de Gabriel entre as suas.
- Está quente... Você está com febre?
- Não.
Ela fechou os olhos.
- Sua mãe era pintora como você?
- Sim.
- Ela esteve nos campos? Naquele campo cujo nome veio das árvores?
- Sim, nesse mesmo.
- Eu vejo uma estrada, neve, uma longa fila de mulheres vestidas de cinza, um homem com uma arma.
Gabriel retirou a mão rapidamente. A mulher abriu os olhos com um sobressalto.
- Desculpe-me. Eu não queria perturbá-lo.
- Por que você queria me ver?
- Eu sei por que você voltou.
- E...?
- Quero ajudá-lo.
- Por quê?
- Porque é importante que nada lhe aconteça nos dias que virão. O velho precisa de você. Sua mulher, também.
- Eu não sou casado - mentiu Gabriel.
- O nome dela é Clara, não é?
- Não - respondeu Gabriel, sorrindo. - O nome dela é Chiara.
- Italiana?
- Sim.
- Então a manterei em minhas preces. - Ela indicou a mesa com o azeite e o prato de água ao lado de um par de velas acesas. - Não gostaria de sentar?
- É melhor não.
- Ainda não acredita?
- Eu acredito.
- Por que não se senta, então? Com certeza você não está com medo. Sua mãe deu-lhe o nome de Gabriel por um motivo: você possui a força de Deus.
Gabriel sentiu um peso no coração, como se houvesse uma pedra sobre ele. Queria sair dali naquele mesmo instante, mas a curiosidade o fez ficar. Depois de ajudar
a velha a voltar para sua cadeira, sentou do outro lado da mesa e mergulhou o dedo no óleo. Quando atingiram a superfície da água, as três gotas dividiram-se antes
de desaparecer. A velha assentiu com gravidade, como se seus medos mais obscuros tivessem sido confirmados. Então, pela segunda vez, tomou a mão de Gabriel.
- Você está queimando. Tem certeza de que está se sentindo bem?
- Acabei tomando sol ali no café.
- Na casa de Christopher - disse ela, com ar de sabedoria. - Bebeu de seu vinho. Você traz a arma dele na cintura.
- Continue.
- Você está procurando por um homem, o homem que matou a garota inglesa.
- Você sabe quem é ele?
- Não. Mas sei onde ele está. Escondido ao leste, na cidade dos hereges. Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer - proclamou a signadora com firmeza -, morrerá.
Ela fechou os olhos e, logo depois, começou a chorar suavemente, um sinal de que o mal havia se transportado do corpo de Gabriel para o dela. Em seguida, instruiu
Gabriel a repetir o teste do óleo na água. Dessa vez, o óleo fundiu-se numa só gota. A velha sorriu de um jeito que Gabriel nunca tinha visto.
- O que você vê? - perguntou Gabriel.
- Tem certeza de que quer saber?
- Sim, é claro.
- Vejo uma criança - respondeu ela sem hesitar.
- De quem?
A signadora deu um tapinha na mão de Gabriel.
- Volte para a casa. Seu amigo Christopher voltou para a Córsega.
Quando chegou à casa, Gabriel encontrou Keller parado em frente à geladeira aberta. Ele vestia um terno cinza-escuro, amassado pela viagem, e uma camisa branca desabotoada
na altura do pescoço. Pegou a garrafa de Sancerre pela metade, exibiu-a com uma sacudidela e derramou um bocado numa taça.
- Dia difícil no trabalho, docinho? - perguntou Gabriel. Brutal. - Ele ergueu a garrafa, oferecendo-a. - Servido?
- Já tomei bastante.
- Dá para ver.
- Como foi sua viagem?
- A ida e a volta foram infernais, mas todo o resto correu tranquilamente.
- Quem era ele?
Keller bebeu o vinho sem responder e perguntou a Gabriel por onde ele tinha andado. Quando Gabriel respondeu que fora encontrar a signadora, Keller sorriu.
- Nós ainda vamos transformá-lo em corso.
- Não foi ideia minha - explicou Gabriel.
- O que ela queria lhe dizer?
- Não foi nada. Apenas o abracadabra de costume sobre o vento nos salgueiros.
- Então por que você está tão pálido?
A única resposta de Gabriel foi colocar a arma de Keller cuidadosamente sobre o balcão.
- Pelo que ouvi - disse Keller você vai precisar disso aí.
- O que você ouviu?
- Que você vai partir em uma jornada de caça.
- Você está disposto a me ajudar?
- Francamente - falou Keller, erguendo o copo para a luz -, eu já estava esperando por você há muito tempo.
- Eu tinha que terminar uma pintura.
- De quem?
- Bassano.
- Do estúdio de Bassano, ou de Bassano mesmo?
- Um pouco dos dois.
- Legal.
- Em quanto tempo você estará pronto para partir?
- Tenho que checar minha agenda, mas suspeito que estarei pronto amanhã, logo pela manhã. Mas fique sabendo que Marselha está lotada de policiais no momento. E metade
deles estão procurando por nós.
- É por isso que não chegaremos nem perto de Marselha, pelo menos por ora.
- Então aonde vamos?
Gabriel sorriu.
- Para casa.
32
CÓRSEGA - LONDRES
Eles jantaram no vilarejo, depois Gabriel se acomodou num quarto de hóspedes no andar inferior da casa. As paredes eram brancas, a roupa de cama era branca, a poltrona
e o escabelo eram revestidos de pano de vela. A falta de cor no quarto atrapalhou o seu sono. Naquela noite, Gabriel sonhou que corria por um campo de neve interminável
atrás de Madeline. Quando ela arranhava as costas da mão, o sangue que fluía do machucado era branco.
Pela manhã, tomaram o primeiro voo para Paris e, de lá, voaram para Heathrow. Keller passou pela alfândega com um passaporte francês. Gabriel, que o esperava na
sala de chegadas, achou que aquele era um jeito um tanto quanto ignóbil de um inglês voltar para a sua terra natal. Eles foram para o lado de fora e esperaram vinte
minutos por um táxi, que se arrastou pelo centro londrino, enfrentando tráfego lento e chuva.
- Agora você sabe por que não moro mais aqui - comentou Keller em francês, em voz baixa, enquanto olhava pela janela molhada e via os subúrbios cinzentos de Londres.
- A umidade fará maravilhas por sua pele - respondeu Gabriel na mesma língua. - Você está parecendo um pedaço de couro.
O táxi os deixou no Marble Arch. Gabriel e Keller caminharam uma curta distância pela Bayswater Road em direção a um prédio com vista para o Hyde Park. O apartamento
estava exatamente do jeito que ele o deixara quando partira para a França com o dinheiro do resgate. Até a louça do café da manhã de Chiara ainda estava na pia.
Gabriel largou a mala no quarto principal e pegou uma arma do cofre de chão. Ao olhar para cima, viu Keller parado diante da janela da sala de estar.
- Você consegue ficar sozinho por algumas horas? - perguntou Gabriel.
- Sem problemas.
- Algum plano?
- Acho que vou fazer um passeio de barco pelo Serpentine e dar uma volta por Covent Garden para fazer umas compras.
- Talvez fosse melhor ficar aqui. Não dá para saber quem você pode acabar encontrando.
- Eu sou do Regimento, amorzinho.
Keller não disse mais nada; não era necessário. Por ser um SAS, poderia passar por uma sala cheia de amigos próximos e nenhum deles notaria sua presença.
Gabriel desceu para a rua e fez sinal para um táxi. Vinte minutos depois, passou pelo portão da Downing Street, rumo ao Palácio de Westminster. No seu bolso estava
um único componente do dossiê: um extenso artigo do Daily Telegraph. A manchete dizia
MADELINE HART - AS PERGUNTAS SEM RESPOSTA.
O artigo fora escrito por Samantha Cooke, a principal correspondente do Telegraph que cobria Whitehall e uma das jornalistas mais reverenciadas da Inglaterra. Acompanhava
Jonathan Lancaster desde que ele era um discreto parlamentar de segunda linha e retratou sua escalada numa biografia intitulada O caminho para o poder. Apesar do
título levemente pretensioso, o livro foi bem recebido até pelos concorrentes, que sentiram inveja do adiantamento pago pela editora londrina. Samantha Cooke era
o tipo de repórter que sabia muito mais do que jamais poderia publicar; por isso, Gabriel queria falar com ela o quanto antes.
Ele entrou em contato com a central do Telegraph e pediu que ligassem para seu ramal. A telefonista os conectou sem demora e, após alguns segundos, a jornalista
atendeu. Gabriel suspeitou que ela estivesse ao celular, pois podia ouvir passos e o eco de vozes baixas num lugar com o pé-direito alto - talvez a antessala do
Parlamento, que ficava em frente ao café onde Gabriel estava sentado. Disse a Samantha que precisava de alguns minutos do seu tempo. Prometeu que valeria a pena,
mas não mencionou nomes em momento algum.
- Você sabe quantos telefonemas assim eu recebo diariamente? - questionou ela, com um ar cansado.
- Garanto, Srta. Cooke, que você nunca recebeu uma ligação como esta antes.
Houve silêncio na linha. Ela estava claramente intrigada.
- Do que se trata?
- Prefiro não falar a respeito pelo telefone.
- Ah, é, claro que não.
- Você obviamente está cética.
- Obviamente.
- Seu telefone tem acesso à internet?
- É claro.
- Há alguns anos, um membro muito conhecido da inteligência israelense foi capturado por terroristas islâmicos e interrogado em frente a uma câmera. O vídeo ainda
está circulando pela internet. Assista e me ligue em seguida.
Ele passou um número e desligou. Dois minutos depois, ela telefonou de volta.
- Eu gostaria de encontrá-lo.
- Tenho certeza de que você pode fazer melhor que isso, Srta. Cooke.
- Por favor, Sr. Allon, você poderia me conceder uma audiência?
- Só se você pedir perdão por ter me tratado de forma tão rude agora há pouco.
- Eu ofereço as minhas mais sinceras e humildes desculpas e espero que você possa achar em seu coração uma maneira de me perdoar.
- Está perdoada.
- Onde você está?
- No Café Nero, na Bridge Street.
- Conheço-o bem, infelizmente.
- Em quanto tempo você consegue chegar?
- Dez minutos.
- Não se atrase - disse Gabriel, desligando.
Ela acabou se atrasando, afinal, em seis minutos. Entrou como um furacão com um telefone ao ouvido, o guarda-chuva sacudindo ao vento forte. A maioria dos clientes
no café eram turistas, mas havia três membros juniores do Parlamento sentados ao fundo, bebericando seus lattes. Samantha parou para trocar algumas breves palavras
com eles antes de se encaminhar para a mesa de Gabriel. Tinha cabelos louros na altura do ombro. Por alguns segundos, seus olhos azuis e saltados não se desgrudaram
do rosto do agente.
- Meu Deus - disse ela, por fim. - É você mesmo.
- O que você esperava?
- Chifres, eu acho.
- Pelo menos você é sincera.
- Um dos meus piores defeitos.
- Algum outro?
- Curiosidade.
- Então você veio ao lugar certo. Posso lhe oferecer algo para beber?
- Na verdade - ela olhou em volta -, talvez fosse melhor caminharmos. Gabriel se levantou e vestiu o casaco. Eles caminharam em direção à Tower
Bridge e viraram rapidamente à esquerda no Victoria Embankment. O tráfego da tarde estava lento, mas as multidões que em geral apareciam à margem do rio haviam sido
afastadas pela chuva. Gabriel olhou por cima do ombro para garantir que ninguém os seguira. Voltando-se para a frente, reparou que Samantha o observava como se ele
fosse um espécime em extinção.
- Você está com uma aparência muito melhor do que naquele vídeo - disse ela após um momento.
- Era tudo maquiagem.
Ela riu a contragosto.
- Ajuda?
- Fazer piadas depois de uma coisa daquelas?
Ela assentiu.
- Sim - respondeu Gabriel. - Ajuda.
- Eu a conheci certa vez, sabe?
- Quem?
- Nadia al-Bakari. Quando ela era uma ninguém, uma garotinha saudita que gostava de festas, a filha mimada de Abdul Aziz al-Bakari, o financiador do terrorismo islâmico.
- A repórter encarou Gabriel em busca de alguma reação e pareceu desapontada ao não perceber nenhuma. - É mesmo verdade que foi você quem o matou?
- Zizi al-Bakari morreu devido a uma operação iniciada pelos americanos e seus aliados na guerra global ao terror.
- Mas foi você quem puxou o gatilho, não foi? Você o matou em Cannes, na frente de Nadia, e depois a recrutou para derrubar a rede terrorista de Rashid al-Husseini.
Genial. Genial mesmo.
- Se fosse mesmo genial, Nadia ainda estaria viva.
- Mas a morte dela mudou o mundo. Ajudou a trazer democracia ao mundo árabe.
- E olha só como isso deu certo - comentou Gabriel, soturno.
Eles passaram por debaixo da Hungerford Bridge ao mesmo tempo que um trem chegava ruidosamente em Charing Cross. A chuva ficou mais fraca. Samantha baixou o guarda-chuva
e o guardou na bolsa.
- Estou honrada com seu convite, mas o Oriente Médio não é exatamente a minha praia.
- Não vim falar do Oriente Médio, mas de Jonathan Lancaster.
Ela olhou para cima bruscamente.
- Por que um famoso agente da inteligência israelense viria a uma repórter londrina atrás de informações sobre o primeiro-ministro britânico?
- Deve ser por algum motivo importante - disse Gabriel, evasivo. - Caso contrário, o famoso agente israelense jamais ousaria fazer tal coisa.
- Certamente que não. Mas o famoso agente com certeza tem uma grande quantidade de informações sobre Lancaster ao alcance das mãos. Por que procuraria a ajuda de
uma repórter?
- Ao contrário do que se acredita, não fazemos dossiês pessoais sobre nossos amigos.
- Mentira.
Gabriel hesitou um pouco.
- Este assunto é estritamente profissional, Srta. Cooke. Meu serviço não está envolvido de forma alguma.
- E se eu ajudá-lo?
- Obviamente, eu darei algo em retribuição.
- Uma matéria?
Gabriel assentiu.
- Mas você não pode me dizer qual - deduziu ela.
- Ainda não.
- Seja o que for, é melhor que seja grande.
- Eu sou Gabriel Allon. Só me envolvo com assuntos grandes.
- É verdade.
Samantha parou de andar e olhou para a London Eye, que girava devagar na margem oposta do rio.
- Tudo bem, Sr. Allon, temos um acordo. Talvez você devesse me contar do que se trata.
Gabriel tirou o artigo do Telegraph do bolso e mostrou para ela. Samantha sorriu.
- Por onde quer que eu comece?
Gabriel guardou o papel no casaco. Então, pediu que ela começasse por Jeremy Fallon.
33
LONDRES
Samantha era uma boa repórter, escrevia as matérias colocando seus leitores a par de tudo através da contextualização adequada. Como morara no Reino Unido, Gabriel
já sabia de grande parte do que ouviu. Ele sabia, por exemplo, que Jeremy Fallon havia estudado na University College London e trabalhado como redator publicitário
antes de se juntar à célula política na sede do Partido. Ele descobriu que a organização de campanha era antiquada, dedicada a vender um produto que ninguém, muito
menos o público votante britânico, queria comprar. Sua prioridade inicial foi mudar a forma como o partido fazia suas pesquisas de opinião. Fallon não queria saber
em qual político determinado eleitor votava, mas onde o eleitor fazia compras, a que programas assistia e que sonhos tinha para os filhos. Acima de tudo, queria
saber o que o eleitor esperava do governo.
Silenciosamente, trabalhando longe dos holofotes, Fallon dedicou-se a readaptar as políticas internas do Partido de modo a suprir as necessidades do eleitorado britânico
moderno. Ele partiu em busca do vendedor ideal para levar seu novo produto ao mercado. E o encontrou em Jonathan Lancaster. Com a ajuda de Fallon, Lancaster saiu
vitorioso da disputa pelo posto de líder do Partido. Seis meses depois, os votos carregaram-no para a Downing Street.
- Jeremy teve como recompensa o emprego dos sonhos - disse Samantha. - Jonathan o indicou para o cargo de chefe de gabinete e concedeu-lhe mais poder do que qualquer
outro chefe de gabinete já teve na história da Grã-Bretanha. Jeremy é o guardião da fortaleza de Lancaster, uma espécie de vice-primeiro-ministro. Certa vez, Lancaster
me disse que foi o maior erro que ele cometeu.
- Isso foi dito oficialmente?
- Extraoficialmente - enfatizou ela. - Completamente, totalmente “extra”.
- Se Lancaster sabia que era um erro, por que o cometeu?
- Porque, sem Jeremy, o Partido ainda estaria vagando no deserto político. E Lancaster ainda seria um deputado de oposição secundário e sem importância tentando
fazer seu nome uma vez por semana durante as Perguntas ao Primeiro-Ministro. Além disso, Jeremy é totalmente leal a Lancaster. Tenho plena certeza de que mataria
por ele e se ofereceria para ajudar a limpar o sangue.
Gabriel gostaria de poder dizer que ela estava certa. Em vez disso, apenas continuou caminhando em silêncio e esperou que Samantha retomasse o relato.
- Mas não se tratava só de uma conexão de dívida e lealdade: Lancaster precisava de Jeremy. Realmente acreditava que não poderia governar o país sem ele a seu lado.
- É verdade, então?
- O quê?
- Que Jeremy é o cérebro de Lancaster.
- Na verdade, isso é uma completa besteira. Mas não demorou para que o público passasse a ter essa percepção dos fatos. Até pelas pesquisas do próprio Partido, a
maioria dos britânicos acreditava que era Jeremy quem controlava o governo. - Ela fez uma pausa, pensativa. - Foi por isso que eu fiquei tão surpresa quando vi Jeremy
ao lado de Lancaster no dia em que ele finalmente convocou a eleição.
- Surpresa?
- Pouco tempo antes, um boato sinistro em Whitehall dizia que Lancaster planejava afastar Jeremy da Downing Street.
- Porque ele havia se tornado um risco político?
Samantha assentiu.
- E também porque ele era tão impopular dentro do Partido que ninguém queria trabalhar para ele.
- E por que você não publicou isso?
- Eu não tinha fontes confiáveis o bastante. Alguns de nós temos escrúpulos, sabe?
- Você acha que Jeremy Fallon ouviu esses boatos?
- Não havia como não ouvir.
- Ele e Lancaster discutiram o assunto?
- Eu nunca tive uma confirmação, por isso não escrevi a respeito. Graças a Deus que não o fiz: a esta altura, eu pareceria muito tola.
Eles chegaram à Ponte de Waterloo. Gabriel a segurou pelo cotovelo e a conduziu em direção à passagem do Strand.
- Você o conhece bem? - perguntou ele.
- Jeremy?
Gabriel aquiesceu.
- Não tenho certeza de que alguém o conheça de fato. Eu o conheço profissionalmente, portanto ele me diz coisas que quer que eu escreva no jornal. É um manipulador
filho da mãe, por isso sua atuação no funeral de Madeline Hart foi tão peculiar. Eu jamais imaginaria que Jeremy fosse capaz de derramar uma lágrima sequer. - Ela
fez uma pausa. - Acho que era verdade, afinal.
- O quê?
- Que Jeremy estava apaixonado por ela.
Gabriel deteve-se e se voltou para encarar Samantha.
- Quer dizer que Jeremy Fallon e Madeline Hart tinham um caso?
- Madeline não estava interessada em Jeremy amorosamente - respondeu ela, balançando a cabeça. - Mas isso não a impediu de usá-lo para prosperar na carreira. Ela
escalou os cargos rápido demais, na minha opinião. E eu suspeito que tenha sido tudo obra de Jeremy.
O silêncio caiu sobre eles. Estavam parados na calçada da Galeria Courtauld. Samantha observava o tráfego passar na ponte enquanto Gabriel imaginava por que Fallon
teria apresentado a mulher que amava a Lancaster. Talvez quisesse fazer pressão sobre o homem que estava prestes a arruinar sua carreira política.
- Tem certeza? - perguntou Gabriel.
- De que Jeremy estava apaixonado por Madeline?
Gabriel assentiu.
- Tenho tanta certeza quanto se pode ter sobre algo desse tipo.
- Como assim?
- Eu ouvi isso de diversas fontes em que confio. Jeremy costumava inventar desculpas muito esfarrapadas para contatá-la. Aparentemente, era bem patético.
- E por que você não publicou isso quando ela desapareceu?
- Porque não me pareceu a coisa certa a fazer naquele momento. E agora que ela está morta... - Sua voz se perdeu.
Eles entraram na galeria, compraram duas entradas e subiram até os salões de exposição. Como de costume, não havia quase nenhum visitante. Na Sala 7, pararam em
frente à moldura vazia que rememorava o roubo da obra que era a marca registrada da galeria: o Autorretrato com a orelha cortada, de Vincent Van Gogh.
- Uma pena - lamentou Samantha.
- É - concordou Gabriel. Ele a guiou para o Nevermore, de Gauguin, e perguntou se ela havia se encontrado com Madeline Hart.
- Uma vez - respondeu, apontando para a mulher na tela, como se falasse dela e não de uma mulher morta. - Eu estava trabalhando em uma matéria sobre os esforços
do Partido no sentido de estabelecer uma ligação com os eleitores das minorias. Jeremy me mandou encontrar Madeline. Eu a achei bonita até demais, mas também muito
inteligente. Às vezes parecia me entrevistar, e não o contrário. Parecia que eu estava... - Ela mergulhou no silêncio, como se buscasse a palavra certa. - Parecia
que eu estava sendo recrutada... Para quê, não faço ideia.
Gabriel ouviu passos e, ao virar-se para trás, viu um casal de meia-idade entrar na sala. O homem usava óculos escuros e era calvo, com cabelos apenas nas laterais
da cabeça. A mulher era muitos anos mais nova e segurava um guia do museu aberto na página errada. Eles iam de uma pintura a outra sem dizer nada, parando na frente
de cada tela por apenas alguns segundos antes de se deslocarem mecanicamente para a próxima. Gabriel observou-os entrarem na sala vizinha. Em seguida, desceu com
Samantha para o pátio interno localizado no centro do edifício. Em dias quentes, era um lugar de encontro popular entre os londrinos que trabalhavam nos prédios
de escritórios situados ao longo do Strand. Mas agora, sob a chuva fria, as mesinhas metálicas estavam vazias e a fonte dançante esguichava água com a tristeza de
um brinquedo em uma sala sem crianças.
- Você falou bem de Madeline nas matérias depois de seu desaparecimento comentou Gabriel enquanto eles caminhavam devagar pelo pátio.
- Tudo verdade. Ela era extremamente calma e autoconfiante para alguém com o seu passado. - Samantha franziu a testa, pensativa. - Eu nunca entendi o comportamento
da mãe dela nos dias que se seguiram ao desaparecimento. A maioria dos pais de pessoas desaparecidas fala com a imprensa constantemente. Mas ela, não: fechou o bico
e permaneceu afastada durante todo o processo. O irmão de Madeline, também.
- O que você quer dizer com isso?
- Eu tentei contatar a mãe para escrever a matéria - ela apontou com a cabeça para o pedaço do jornal no bolso de Gabriel -, mas ninguém atendia na casa deles. Em
momento algum. Até que, por fim, fui até a maldita Essex e sentei-me à porta. Um vizinho me disse que eles não eram vistos desde pouco tempo depois do funeral.
Gabriel ficou em silêncio, mas, em sua cabeça, calculava o tempo de viagem entre Londres e Basildon, em Essex, no horário de pico de trânsito noturno.
- Eu falei um bocado - disse Samantha. - Agora é a sua vez. Por que é que o grande Gabriel Allon está interessado numa garota inglesa morta?
- Receio que ainda não possa dizer.
- E vai poder algum dia?
- Depende.
- Sabe - falou ela, provocativa -, só o fato de você estar em Londres fazendo perguntas dá uma bela matéria.
- É verdade. Mas você jamais ousaria publicá-la ou mesmo mencionar a nossa conversa para alguém.
- Por que não?
- Porque isso me impediria de lhe dar uma matéria muito melhor no futuro.
Samantha sorriu e consultou o relógio.
- Eu adoraria passar uma semana falando com você, mas realmente tenho que ir. Amanhã tenho que publicar um artigo.
- Sobre o que você está escrevendo?
- Sobre a Volgatek Óleo e Gás.
- A empresa russa de energia?
- Muito bem, Sr. Allon.
- Eu tento me manter atualizado. Ajuda no meu trabalho.
- Tenho certeza de que sim.
- Qual é a matéria?
- Os ambientalistas e o pessoal do aquecimento global estão aborrecidos com o acordo. Preveem todas as calamidades de costume: colossais derramamentos de óleo, derretimento
das calotas polares, inundação das casas à beira-mar em Chelsea, esse tipo de coisa. Eles não parecem ligar para o fato de que o negócio irá gerar bilhões de dólares
em licenciamentos e trará milhares de empregos essenciais para a Escócia.
- E o seu artigo será imparcial? - perguntou Gabriel.
- Eles sempre são - rebateu ela com um sorriso. - Minhas fontes disseram que o negócio era a menina dos olhos de Jeremy, sua última grande iniciativa antes de deixar
a Downing Street para concorrer ao Parlamento. Tentei falar com ele a respeito, mas Jeremy disse três palavras que eu jamais tinha ouvido saírem de sua boca.
- Quais?
- Nada a declarar.
Ela entregou um cartão de visitas a Gabriel, apertou sua mão e desapareceu pela passagem arqueada que conectava o pátio à ponte. Gabriel esperou cinco minutos antes
de seguir pelo mesmo caminho. Quando ele desembocou na rua, viu o homem e a mulher da galeria tentando chamar um táxi. Passou por eles sem olhar duas vezes e prosseguiu
rumo à Trafalgar Square, onde milhares de manifestantes se dedicavam aos Dois Minutos de Ódio contra o Estado de Israel.
Gabriel se embrenhou na multidão e caminhou lentamente, parando aqui e ali para checar se alguém o seguia. Por fim, uma pancada de chuva divina levou os manifestantes
a correrem atrás de abrigo. Gabriel se juntou a um grupo de artistas e atores pró-Palestina que iam em direção aos bares do Soho, mas, na Charing Cross Road, deixou
o grupo e esgueirou-se para o interior da estação de metrô de Leicester Square. Enquanto descia a escada rolante para o subsolo aquecido, ligou para Keller.
- Precisamos de um carro - disse rapidamente em francês.
- Aonde vamos?
- Basildon.
- Por algum motivo em especial?
- No caminho eu explico.
34
BASILDON, ESSEX
A cidade tinha sido criada após a Segunda Guerra Mundial como parte #*% de um grande plano para reduzir a superpopulação nos assentamentos informais do East End,
em Londres, que haviam sido destruídos por bombas. O resultado foi o que os planejadores urbanos chamaram de Cidade Nova: sem história, sem alma, sem outro propósito
senão abrigar a classe operária. O centro comercial de Basildon era uma obra-prima da arquitetura neossoviética, assim como a moradia popular que se erguia em um
dos lados da cidade, parecendo uma fatia gigante de torrada queimada. A uns 800 metros ao leste estava um grupo de prédios e sobrados dilapidados conhecidos como
Lichfields.
Todas as ruas tinham nomes agradáveis como Avon, Norwich, Southwark, mas o asfalto estava rachado e ervas daninhas tomavam conta das quadras. Algumas poucas casas
tinham jardins gramados, mas, junto à pequenina construção no fim da Blackwater Way, havia apenas uma área de concreto toda quebrada, onde um carro velho costumava
ficar estacionado. O andar de baixo era revestido de chapisco, e o de cima, de tijolo marrom. As três pequenas janelas eram todas acortinadas e estavam às escuras,
e nenhuma luz brilhava sobre a inóspita porta da frente.
- Eles trabalham? - perguntou Keller, enquanto passavam devagar de carro diante da casa pela segunda vez.
- A mãe trabalha algumas horas por semana na farmácia Boots, no centro comercial. O irmão é um bêbado profissional.
- E você tem certeza de que não há ninguém aí dentro?
- Você está vendo algum sinal de presença humana?
- Talvez eles gostem do escuro.
- Ou talvez sejam vampiros.
Gabriel parou numa vaga na rua e desligou o carro. Logo ao lado da janela de Keller, havia um aviso alertando que toda aquela área estava 24 horas por dia sob a
vigilância de um circuito interno de televisão.
- Estou com um mau pressentimento.
- Você acabou de matar um homem por dinheiro.
- Não na frente das câmeras.
Gabriel não disse nada.
- Quanto tempo você pretende ficar lá dentro? - perguntou Keller.
- O quanto for necessário.
- E se a polícia aparecer?
- Seria uma boa ideia você me avisar.
- E se eles me virem aqui?
- Mostre o seu passaporte francês e diga que está perdido.
Gabriel abriu a porta do carro e saiu. Enquanto atravessava a rua, um cachorro começou a latir em algum lugar. Devia ser um muito grande, pois cada som grave e sonoro
ecoava nas fachadas decrépitas dos prédios como tiros de canhão. Por um momento, Gabriel cogitou se deveria voltar. Com certeza essa besta quer a minha garganta,
pensou sombriamente. Ainda assim, atravessou o jardim concretado dos Harts e se postou diante da porta.
Não havia cobertura para se proteger da chuva insistente. Gabriel tentou girar a maçaneta, mas, como previa, a porta estava trancada. Retirou um instrumento fino
de metal do bolso e enfiou-o no trinco. Foram necessários apenas poucos segundos - a bem da verdade, um desconhecido poderia pensar que ele só estava atrapalhado
ao procurar sua chave no escuro. Quando Gabriel tentou de novo, a porta se abriu com suavidade. Pisou no vazio escuro e fechou-a rapidamente. Lá fora, o cão disparava
outra salva de latidos antes de calar-se, por fim. Gabriel colocou a gazua de volta no bolso, pegou uma pequena lanterna e acendeu-a.
Ele se viu parado num hall de entrada apertado. O chão de linóleo estava coberto de correspondência fechada e, à direita, havia vários casacos, impermeáveis ou de
lã barata, pendurados em ganchos. Gabriel revirou os bolsos de cada um - caixas de fósforos, recibos, cartões de visitas - antes de direcionar o feixe de luz para
dentro da sala de estar.
Era um espaço pequeno e claustrofóbico, que não devia ter nem 8 metros quadrados, contendo três poltronas surradas voltadas para uma televisão. No meio da sala,
havia uma mesa baixa com dois cinzeiros quase transbordando de guimbas e, em uma das paredes, estavam penduradas fotografias emolduradas. A menina Madeline correndo
atrás de uma bola num campo ensolarado. Madeline recebendo o diploma da Universidade de Edimburgo. Madeline posando com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster em
Downing Street. Havia também uma foto de toda a família Hart em pé, posando infeliz em frente a uma baía cinzenta. Gabriel ficou olhando para as feições largas e
achatadas dos pais de Madeline e tentou imaginar como eles teriam sido capazes de produzir um rosto tão belo quanto o dela. Madeline era um erro da natureza, pensou.
Era filha de um deus diferente.
Gabriel deixou a sala de estar e, passando por uma pequena sala de jantar, entrou na cozinha. A louça suja se empilhava nas bancadas e havia uma poça de água oleosa
na pia. O ar estava tomado pelo cheiro de podridão. Abriu um dos armários no nível do chão e encontrou uma lixeira abarrotada de comida estragada. Havia mais na
geladeira. Ele imaginou o que poderia tê-los motivado a deixar a casa daquela forma.
Voltou para o hall de entrada e subiu as escadas estreitas que levavam ao segundo andar. Eram três quartos: dois pequenos cômodos do lado esquerdo da casa e um maior
à direita, que pertencia à mãe de Madeline. A cama de casal estava bagunçada e uma corrente de vento frio soprava pela janela aberta que dava vista para o pedaço
de terra revolvida que era o quintal. Gabriel abriu a porta finíssima do armário e iluminou o interior. Havia roupas penduradas em cabides, assim como roupas empilhadas
ordenadamente na prateleira de cima. Examinou a cômoda: todas as gavetas estavam lotadas, exceto a primeira da esquerda - onde uma mulher costuma guardar papéis
pessoais e lembranças. Agachando-se, apontou o feixe de luz para debaixo da cama, mas não viu nada além de poeira. Numa das mesinhas de cabeceira, ao lado de um
copo vazio, viu o telefone. Levou-o ao ouvido, mas não escutou o sinal de linha. Apertou o botão de reprodução na secretária eletrônica. Não havia recados.
Gabriel cruzou o corredor e espiou dentro de um dos quartos menores. Apenas as paredes estavam intactas, revestidas com as imagens de costume - celebridades do futebol,
modelos, carros que a pessoa jamais poderia comprar. No ar, pairava um cheiro masculino desagradável que Gabriel tivera a felicidade de não sentir desde que deixara
o Exército. Vasculhou o quarto rapidamente, mas não descobriu nada fora do comum - nada exceto o fato de que não continha nenhum objeto, sequer um papel, com o nome
da criatura que o habitava.
O último quarto era o de Madeline. Não da amante de Jonathan Lancaster, nem da mulher devastada que Gabriel encontrara na França, mas a Madeline que de alguma forma
sobrevivera a uma infância difícil naquela triste casinha. Parecia a Gabriel que ela passara por tudo da mesma forma que pelo cativeiro: com asseio e ordem. Sua
cama fora feita com esmero; a pequena escrivaninha de garota colegial estava pronta para uma inspeção. Sobre ela, havia uma série de livros clássicos - Dickens,
Austen, Forster, Lawrence. Os volumes pareciam ter sido lidos muitas vezes, pois tinham inúmeras passagens sublinhadas e anotações feitas em uma letra miúda e precisa.
Gabriel estava prestes a deslizar um dos livros, Uma janela para o amor, para dentro do casaco, quando o celular vibrou discretamente. Ele atendeu na mesma hora.
- Temos companhia - avisou Keller.
- Quantos?
- Parece ser uma pessoa só, mas não posso afirmar com certeza.
Gabriel abriu as cortinas diáfanas do quarto de Madeline uma fração de centímetro e viu uma mulher caminhando pela Blackwater Way debaixo de um guarda-chuva. Quando
ela passou pelo facho de luz de um poste, ele vislumbrou seu rosto. Era familiar... Então, no instante em que a mulher dobrou na entrada de concreto, Gabriel lembrou:
ela aparecera duas vezes na igreja nas montanhas do Lubéron fazendo o sinal da cruz como se não tivesse esse costume. Por algum motivo, agora inseria uma chave na
porta da casa de Madeline Hart.
Gabriel desligou o telefone e sacou a arma. Sentiu-se tentado a descer as escadas e confrontar a mulher de imediato, mas decidiu que seria melhor esperar. Em algum
momento, pensou, ela revelaria quem era e por que estava ali, de preferência sem nem perceber que o fizera. Esse era sempre o melhor jeito de obter informações -
sem que o alvo soubesse. Como pregava Shamron, era melhor que um espião coletasse dados como um batedor de carteiras, e não como um assaltante.
Gabriel permaneceu imóvel no quarto de Madeline, com o tambor da arma reconfortantemente pressionado contra a própria face, enquanto a mulher entrava e fechava a
porta. Ela emitiu uma única sílaba, que Gabriel não pôde decifrar. Então, veio uma série de pequenos ruídos, sugerindo que a mulher estava pegando a correspondência
espalhada e colocando-a num saco plástico. Em seguida, ela foi para a sala de estar, onde ficou por aproximadamente dois minutos. Depois, entrou na cozinha e emitiu
a mesma sílaba de antes. Gabriel suspeitava que fosse uma vulgaridade em alguma língua como o hebraico, o francês, o italiano ou o alemão. Imaginava que a mulher
também estivesse vasculhando a casa.
Quando os passos da visitante alcançaram o pé da escada, Gabriel foi tomado pela indecisão. Se estivesse certo sobre as intenções da mulher, ela certamente entraria
no quarto de Madeline. Olhou em volta para ver se havia algum lugar para se esconder, mas nada pareceu adequado. O quarto era pouco maior do que a cela na qual Madeline
ficara presa. Conforme os passos da mulher foram se aproximando, Gabriel decidiu que não tinha outra escolha a não ser sair dali. Mas para onde? O banheiro era logo
do outro lado do corredor. Enquanto entrava nele sem fazer nenhum barulho, imaginou o que Shamron pensaria se visse o futuro diretor da inteligência israelense naquela
situação. Ele aprovaria, pensou Gabriel. Na verdade, tinha certeza de que o grande Ari Shamron já havia se escondido em lugares muito mais degradantes profissionalmente
do que o banheiro de uma moradia popular em Basildon.
Deixou a porta um pouquinho entreaberta - não mais que meio centímetro - e segurou a arma com os braços estendidos enquanto a mulher terminava de subir as escadas.
Ela entrou no quarto maior primeiro e, a julgar pelo barulho de gavetas se abrindo e portas batendo, vasculhou-o de cima a baixo. Cinco minutos depois, reapareceu
e passou pelo banheiro sem se deter, aparentemente sem saber que havia uma arma apontada para sua cabeça. Ela vestia o mesmo casaco impermeável amarronzado que estava
usando na França, mas seu penteado era um pouco diferente. Em sua mão esquerda havia uma sacola da Marks & Spencer. Parecia conter não só a correspondência.
Quando ela entrou no quarto de Madeline, a procura subitamente passou a ser violenta. Era uma busca profissional, pensou Gabriel, ouvindo com atenção. Uma busca
agressiva... Ela arrancou roupas, lençóis, colcha, fronha, esvaziou as gavetas no chão. Por fim, ouviu-se um estalido seco, como de madeira, seguido por um denso
silêncio, que foi quebrado pouco depois pela voz da mulher, baixa e calma, do tipo que se usa para reportar notícias a um superior através de um aparelho que transmite
sinais em ondas. Gabriel não compreendia o que ela estava dizendo - ele não entendia bem línguas eslavas -, mas tinha certeza de uma coisa: a mulher falava em russo.
35
BASILDON, ESSEX
O carro da mulher, um Volvo sedã, encontrava-se estacionado em frente do menor prédio de Lichfields, do outro lado da rua. Ela andou direto até ele, segurando a
sacola da Marks & Spencer na mão esquerda com certa dificuldade; devia estar pesada. A direita empunhava o guarda-chuva, que era um mero acessório, pensou Gabriel,
observando-a da janela de Madeline, pois a chuva havia parado. Depois de abrir a porta do automóvel, jogou a sacola no banco do carona e entrou, deixando o guarda-chuva
aberto até que estivesse segura dentro do carro. O motor hesitou um pouco antes de voltar à vida com uma espécie de tosse. Esperou até chegar aos limites da propriedade
para ligar os faróis. Dirigia rápido, mas com cuidado, como uma profissional.
Gabriel deu mais uma olhada na destruição causada pela mulher no quarto de Madeline e apressou-se escada abaixo. Quando chegou à porta de entrada,
Keller já havia manobrado o carro e o esperava na rua. Gabriel entrou depressa e fez um meneio de cabeça, para que seguissem a mulher.
- Mas tenha cuidado: ela é boa.
- Boa como?
- No nível da Central Moscovita.
- Do que você está falando?
- Eu posso estar errado, mas acredito que aquela mulher seja da KGB.
Tecnicamente, não havia mais KGB, é claro; ela fora dissolvida pouco após o colapso do antigo império soviético. A Federação Russa possuía dois serviços de inteligência:
o FSB e o SVR. O primeiro lidava com assuntos internos: contrainteligência, contraterrorismo, a mafiya e os ativistas pró-democracia corajosos ou estúpidos o suficiente
para desafiar os homens que agora governavam a Rússia de dentro dos muros do Kremlin.
O SVR era o serviço secreto russo no exterior. Ele comandava sua rede internacional de espiões do mesmo quartel-general isolado em Yasenevo que servira de escritório
central do Primeiro Diretório Geral da KGB. Os oficiais do SVR ainda o chamavam de Central Moscovita, e não é de se admirar que até os cidadãos russos ainda se referissem
a ele como KGB. E tinham motivos para isso. O Kremlin podia até ter mudado o nome do serviço, mas sua missão permanecia a mesma: penetrar nos países-membros da OTAN
e enfraquecê-los - os Estados Unidos e a Grã-Bretanha estavam no topo da lista.
Mas por que uma agente do SVR seguira Gabriel e Keller até uma antiga igreja nas montanhas do Lubéron? E por que a mesma agente havia vasculhado a casa da família
de uma garota inglesa morta, que fora amante do primeiro-ministro britânico... Que fora sequestrada enquanto passava férias na Córsega... Que morrera queimada no
porta-malas de um Citroen C4 numa praia em Audresselles?
- Não vamos nos precipitar - alertou Keller.
- Eu ouvi muito bem - retrucou Gabriel.
- Você ouviu uma mulher falando russo.
- Não, eu ouvi uma agente do Centro Moscovita revirando um quarto.
Eles seguiam pela A127, rumo a oeste. Eram quase oito horas. Ainda havia engarrafamento nas pistas que iam para o leste, um resquício do horário de rush londrino,
mas no sentido oeste o tráfego fluía depressa. A mulher estava mais ou menos 200 metros adiante, mas Keller não tinha problemas em acompanhar as características
lanternas traseiras do velho Volvo.
- Digamos que você esteja certo - disse ele, olhando diretamente para a frente. - Digamos que a KGB, ou o SVR, ou como diabos você quiser chamar, esteja ligado ao
sequestro de Madeline Hart.
- A esta altura, eu diria que é um fato indiscutível.
- Está certo. Mas qual é a ligação?
- Ainda estou tentando descobrir. Mas, se eu tivesse que chutar, diria que era uma operação deles desde o princípio.
- Operação? - perguntou Keller, incrédulo. - Você está dizendo que os russos sequestraram a amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel não respondeu; ele mesmo ainda não acreditava nisso completamente.
- Você me permitiria lembrá-lo de alguns fatos de destaque? - perguntou Keller.
- Por favor.
- Marcei Lacroix e René Brossard não eram russos e não trabalhavam para o SVR. Ambos faziam parte do crime organizado francês, com extensas fichas criminais em Marselha
e no sul da França.
- Talvez não soubessem para quem estavam trabalhando.
- E quanto a Paul?
- Não sabemos nada sobre ele, a não ser que fala francês como se tivesse aprendido ouvindo CDs de algum curso de línguas... ou assim afirmou o grande Don Anton Orsati
da Córsega.
- Que a paz esteja com ele.
Gabriel bateu com os nós dos dedos no para-brisa e disse:
- Ela está muito na frente.
- Está tudo sob controle.
- Diminua a distância um pouco.
Keller acelerou por alguns segundos, então voltou ao normal.
- Você acha que Paul é russo?
- Isso explicaria o fato de a polícia francesa não ter conseguido associar um nome ao seu rosto.
- Mas por que ele contrataria criminosos franceses para sequestrar Madeline em vez de fazer o trabalho por conta própria?
- Já ouviu falar de uma operação de bandeira falsa? - perguntou Gabriel. - Serviços de inteligência frequentemente conduzem operações que causariam danos políticos
ou diplomáticos caso seu envolvimento direto viesse a público. Às vezes eles se fazem passar por membros de outras agências. Às vezes se fazem passar por coisas
completamente diferentes.
- Como criminosos franceses?
- Você ficaria surpreso.
- Há apenas um problema com a sua teoria.
- Apenas um?
- O SVR não precisa de dinheiro.
- Duvido muito que isso tudo tivesse relação com dinheiro.
- Você entregou duas maletas com 10 milhões de euros.
- Sim, eu sei.
- Se não tinha relação com dinheiro, por que o pagamento?
- A bandeira falsa foi tremulada até o fim - respondeu Gabriel.
Keller silenciou por um instante. Por fim, perguntou:
- E por que eles mataram Madeline?
- Não sei.
- Onde está a família dela?
- Não sei.
- Como os russos ficaram sabendo de Madeline e Lancaster?
- Também não sei.
- Talvez uma pessoa saiba.
- Quem?
- A mulher dirigindo aquele carro - disse Keller, apontando para as lanternas do Volvo.
- É melhor ser um batedor de carteira do que um assaltante.
- O que isso significa?
- Diminua a distância - ordenou Gabriel, batendo de novo com os nós dos dedos no vidro. - Ela está muito à frente.
A mulher passou por baixo do anel rodoviário M25, acelerou ao longo de uma paisagem de fazendas e campos e, então, entrou nos subúrbios de Londres, que, após trinta
minutos, deram lugar aos bairros do East End e, por fim, aos prédios comerciais do centro financeiro. De lá, passou pelo Soho e por Holborn em direção a Mayfair,
parando no meio-fio de um movimentado trecho da Duke Street, ao sul da Oxford Street.
Depois de ligar o pisca-alerta, a mulher saiu do Volvo e foi até um sedã Mercedes estacionado alguns metros adiante. Quando ela se aproximou do carro, o porta-malas
foi aberto, aparentemente por uma pessoa de dentro, pois Gabriel não viu a mulher sequer encostar nele. Ela colocou ali a sacola da Marks & Spencer, fechou-o com
um baque e voltou para o próprio automóvel. Dez segundos mais tarde, saiu vagarosamente da vaga e foi em direção à Oxford Street.
- O que devo fazer? - perguntou Keller.
- Deixe-a ir.
- Por quê?
- Porque quem abriu o porta-malas daquele Mercedes está observando para ver se alguém vai segui-la.
Keller e Gabriel examinaram a rua. Havia restaurantes dos dois lados, todos atendendo o público turista, e as calçadas estavam lotadas de pedestres. Qualquer um
deles podia estar com a chave do Mercedes.
- E agora? - perguntou Keller.
- Nós esperamos.
- O quê?
- Saberei quando virmos.
- Batedores de carteiras e assaltantes?
- Algo desse tipo.
Keller fitava o Mercedes, mas Gabriel olhava em volta, para o pesadelo gastronômico que era aquela parte da Duke Street: Pizza Hut, Garfunkel's, um lugar chamado
Pure Waffle, o que quer que isso significasse. O requinte da rua era o Bella Italia, franquia de uma rede de restaurantes espalhados pela cidade, e foi sobre ele
que o olhar de Gabriel se fixou.
Um casal de idades muito díspares saíam naquele momento pela porta, supostamente após uma refeição. O homem usava um chapéu à prova d'agua para se proteger da garoa
leve e a mulher olhava para dentro da bolsa como se procurasse alguma coisa. Mais cedo naquele dia, nas salas de exposição da Galeria Courtauld, ela estava segurando
um guia aberto na página errada e ele usava óculos escuros. Agora, não havia óculos de nenhum tipo. Depois de ajudá-la a acomodar-se no banco do carona do Mercedes,
ele contornou o carro e sentou-se ao volante. Quando o motor deu a partida, a rua pareceu tremer. Então, o automóvel disparou com um leve cantar de pneus e cruzou
a Oxford Street no momento em que a luz do semáforo ficou vermelha.
- Boa jogada - disse Keller.
- Concordo.
- Devo tentar segui-lo?
Gabriel balançou a cabeça lentamente. Eles eram bons, pensou. No nível da Central Moscovita.
O Grand Hotel Berkshire não era grandioso nem ficava no charmoso condado de Berkshire, mas no fim de uma fileira de casas eduardianas na West Cromwell Road, entre
uma loja de eletrônicos baratos e um cibercafé suspeito.
Gabriel e Keller chegaram lá à meia-noite. Eles não tinham reserva nem bagagem; estava tudo dentro do flat na Bayswater, que Gabriel presumia que estivesse sob vigilância
dos russos. Pagou em dinheiro por uma estadia de duas noites e disse ao recepcionista noturno que os dois não esperavam visitas e que não queriam interrupções de
nenhuma espécie, nem do serviço de quarto. O funcionário não viu nada de incomum nas instruções de Gabriel. O Grand Hotel Berkshire - ou o GHB, como diziam seus
administradores para abreviar - servia àqueles que tomavam as estradas menos percorridas.
Os aposentos deles eram no quarto e último andar e tinham uma vista da rua própria para um franco-atirador. Gabriel insistiu que Keller dormisse primeiro. Então,
sentou diante da janela com a arma repousada no colo e os pés apoiados no peitoril, enquanto cinco questões se repetiam sem parar na sua cabeça. Por que a inteligência
russa teria sido tão ousada a ponto de sequestrar a amante do primeiro-ministro britânico? Por que o pagamento de resgate, se os russos certamente não estavam atrás
de dinheiro? Por que mataram Madeline? Onde estava sua família? E quanto disso tudo Jonathan Lancaster e Jeremy Fallon sabiam? Respostas satisfatórias fugiam a sua
compreensão. Ele podia elaborar palpites, fazer deduções, mas apenas isso. Precisava bater mais algumas carteiras, pensou - e, se necessário, fazer um ou dois assaltos
também. E depois? Pensou na velha signadora e em suas profecias sobre um antigo inimigo e a cidade dos hereges no leste.
Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer, morrerá...
Bem nesse instante, um caminhão de entrega de jornais parou em frente a uma loja, do outro lado da rua. Gabriel consultou o relógio. Quase quatro da madrugada, hora
de acordar Keller e de ele mesmo dormir um pouco. Em vez disso, pegou o livro de E. M. Forster, do quarto de Madeline, abriu numa página aleatória e começou a ler:
um jogo complicado estava sendo disputado sem parar na encosta da montanha durante toda a tarde. Lucy não conseguia descobrir do que se tratava e como dividiam-se
os jogadores...
Gabriel fechou o livro e observou o caminhão se afastar na rua escura e úmida. Então compreendeu. Mas como provar? Ele precisava de alguém que entendesse do mundo
obscuro da política e dos negócios russos. Alguém que fosse tão implacável quanto os homens do Kremlin.
Precisava de Viktor Orlov.
36
CHELSEA, LONDRES
Viktor Orlov sempre tivera habilidade com números. Nascido em Moscou t. durante os dias mais sombrios da Guerra Fria, estudou no prestigiado Instituto de Mecânica
de Precisão e Óptica de Leningrado e trabalhou como físico no programa de desenvolvimento de armas nucleares da União Soviética. Por sugestão dos superiores, juntou-se
ao Partido Comunista. Mas, anos mais tarde, em uma entrevista dada a um jornal britânico, alegou nunca ter acreditado de fato naquela empreitada. “Filiei-me ao Partido
por ser a única via disponível para subir na carreira”, disse ele sem nenhum traço de arrependimento. “Suponho que pudesse ter-me tornado um dissidente, mas o gulag
nunca me atraiu muito.”
Quando a União Soviética deu o último suspiro, Orlov não derramou nenhuma lágrima. Na realidade, ficou terrivelmente bêbado de vodca soviética barata e correu pelas
ruas de Moscou gritando: “O rei está morto!” Na manhã seguinte, de ressaca, desvinculou-se do Partido, retirou-se do programa de desenvolvimento nuclear soviético
e jurou que ficaria rico. Em poucos anos, obteve uma fortuna considerável importando computadores, aparelhos e outros bens ocidentais para o mercado russo incipiente.
Mais tarde, usou a fortuna para adquirir a maior companhia estatal de aço da Rússia, além da Ruzoil, a gigantesca siberiana de petróleo, a preço de banana. Viktor
Orlov, antes um físico do governo que tivera de dividir um apartamento com duas outras famílias soviéticas, tornou-se um bilionário consagrado e o homem mais rico
da Rússia. Ele foi um dos primeiros oligarcas, um barão gatuno que construiu a fortuna saqueando as joias da coroa do Estado soviético.
Orlov não pedia desculpas por ter se tornado rico dessa forma. “Se eu tivesse nascido inglês, meu dinheiro poderia ter vindo de forma limpa,” disse ele uma vez a
um entrevistador britânico. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.”
Mas, na Rússia pós-soviética, uma terra sem lei e tomada pelo crime e a corrupção, a fortuna fez de Orlov um alvo. Ele havia sobrevivido a três atentados, e os rumores
sugeriam que, em retaliação, ordenara a morte de vários homens. Porém, a maior ameaça viria do homem que assumira a presidência depois de Boris Yeltsin. Ele achava
que Orlov e os outros oligarcas haviam roubado os bens mais valiosos do país e tinha a intenção de tomá-los de volta. Após se estabelecer no Kremlin, o novo presidente
convocou Orlov e exigiu duas coisas: sua companhia de aço e a Ruzoil.
- E não meta o nariz em política - acrescentou, ameaçador. - Caso contrário, faço você sumir.
Orlov concordou em abrir mão dos interesses no aço, mas não da Ruzoil. O presidente não ficou contente. Logo ordenou que os procuradores abrissem um inquérito de
fraude e suborno contra ele e, dentro de uma semana, tinha um mandado de prisão em mãos. Sabiamente, Orlov voou para Londres, onde se tornou um dos críticos mais
abertos e eficientes do presidente russo.
Por muitos anos, a Ruzoil ficou congelada por lei, além do alcance de Orlov e dos novos senhores do Kremlin. Por fim, ele foi persuadido a ceder em nome de um acordo
secreto para libertar quatro reféns de um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Em troca, os britânicos compensaram Orlov tornando-o membro do reino e
concedendo-lhe um breve e muito secreto encontro com Sua Majestade, a Rainha. O Escritório enviou-lhe um bilhete de agradecimento, ditado por Chiara e escrito à
mão por Gabriel. Ari Shamron entregou-o e o queimou assim que Orlov terminou de ler.
- Algum dia eu terei a chance de conhecer esse homem notável pessoalmente?
- Não - respondera Shamron.
Determinado, Orlov entregara seu número mais privado a Shamron, que por sua vez o passara a Gabriel. Ele ligou mais tarde naquela manhã, de um telefone público perto
do Grand Hotel Berkshire, e surpreendeu-se quando o próprio Orlov o atendeu.
- Eu sou uma das pessoas que você salvou ao entregar a Ruzoil - apresentou-se Gabriel, sem mencionar seu nome. - Fui eu que escrevi o bilhete que o velho queimou
quando você terminou de ler.
- Ele é uma das pessoas mais desagradáveis que já conheci.
- Espere até conhecê-lo melhor.
Orlov deu uma risada seca e curta.
- A que devo a honra?
- Preciso de sua ajuda.
- Na última vez que você precisou da minha ajuda, perdi uma companhia de petróleo no valor de pelo menos 16 bilhões de dólares.
- Dessa vez não vai custar nada.
- Estou livre às duas da tarde.
- Onde?
- Número 43 - disse Orlov, e desligou.
O endereço fornecido era da mansão de tijolos vermelhos de Orlov na Cheyne Walk, em Chelsea. Gabriel foi até lá a pé e Keller o acompanhou a uma distância de 100
metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado. A casa alta e estreita era coberta de glicínias. Como a dos vizinhos, era afastada da rua, protegida
por uma cerca de ferro batido. Uma limusine Bentley blindada estava parada do lado de fora, com um chofer ao volante. Logo atrás do carro, havia um Range Rover preto
ocupado por quatro membros da equipe de segurança de Orlov. Todos faziam parte do antigo regimento de Keller: a elite do SAS.
Os guarda-costas observaram Gabriel com óbvia curiosidade enquanto ele seguia pelo caminho no jardim e tocava a campainha. Surgiu uma criada em uniforme engomado
preto e branco. Após averiguar a identidade de Gabriel, conduziu-o por uma escadaria larga e elegante até o escritório de Orlov. A sala era uma réplica exata do
escritório pessoal da rainha no Palácio de Buckingham - exceto por uma TV de plasma gigantesca que exibia notícias e dados do mercado financeiro ao redor do mundo.
Quando Gabriel entrou, Orlov estava parado diante da tela, como que em transe. Como de costume, ele vestia um terno italiano preto e uma gravata de um rosa vivo
com um enorme nó Windsor. Seus cabelos grisalhos, ralos, estavam espetados com gel. Os números se refletiam fracamente em seus óculos da moda e ele não mexia um
músculo, a não ser o do olho esquerdo, que tremia de nervosismo.
- Quanto você ganhou hoje, Viktor?
- Na verdade - disse Orlov, ainda com os olhos fixos na tela -, acho que perdi 10 ou 20 milhões.
- Sinto muito.
- Amanhã é um novo dia.
Orlov virou-se e observou Gabriel por um longo momento antes de estender a mão bem cuidada. Sua pele estava fria e era particularmente macia, como a mão de uma criança.
- Como sou russo, não me choco com facilidade. Mas devo admitir que estou surpreso ao vê-lo aqui no escritório. Achei que nunca iríamos nos conhecer.
- Desculpe-me, Viktor. Eu deveria ter vindo há muito tempo.
- Eu entendo por que não veio. - Orlov sorriu tristemente. - Nós temos algo em comum: fomos alvos do Kremlin. E conseguimos sobreviver.
- Alguns de nós sobreviveram melhor que os outros - disse Gabriel, contemplando a magnífica sala.
- Eu dei sorte. E o governo britânico tem sido bom comigo - enfatizou Orlov por isso não quero fazer nada que aborreça o pessoal de Whitehall.
- Tenho o mesmo interesse.
- Fico feliz por isso. E, então, Sr. Allon, por que não me conta do que se trata sua visita?
- Volgatek Óleo e Gás.
Orlov sorriu.
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
37
CHEYNE WALK, CHELSEA
Viktor Orlov nunca se mostrou relutante em falar sobre dinheiro. Na verdade, raramente falava de qualquer outro assunto. Ele se gabava de pagar 10 mil dólares por
cada um dos ternos e de suas camisas, que eram as melhores do mundo. Dizia que seu relógio de diamantes e ouro estava entre os mais caros já produzidos e, ainda
por cima, possuía o segundo exemplar dele, pois havia destruído o primeiro na Suíça, ao batê-lo contra um pinheiro enquanto esquiava. “Foi burrice minha”, falou
a um tabloide britânico depois da perda multimilionária. “Esqueci de tirar o maldito relógio antes de sair do chalé.”
Seu vinho preferido era o Château Pétrus, o famoso Pomerol que ele bebia como se fosse água. Era um pouco cedo, até para o anfitrião, então tomaram chá. Orlov bebeu
o seu à moda russa, através de um cubo de açúcar preso entre os dentes da frente. Seu braço estava jogado na direção de Gabriel, sobre o encosto de um sofisticado
sofá de brocado, e ele girava os óculos caros pela haste, um gesto que sempre repetia ao falar sobre a Rússia.
Não o país da sua infância ou no qual servira como cientista nuclear, mas o que chegara ao mundo tropeçando, após o colapso da União Soviética. A Rússia sem lei,
bêbada, confusa, perdida. Ao seu povo traumatizado fora prometida uma segurança que iria do berço ao túmulo. Agora, de repente, viam-se obrigados a lutar pela sobrevivência.
Darwinismo social dos mais ferozes. Os fortes transformavam os fracos em presas, os fracos passavam fome e os oligarcas reinavam, soberanos - os novos czares russos,
os novos komissary. Eles marchavam por Moscou em caravanas à prova de balas, cercados por seguranças fortemente armados. À noite, os guarda-costas brigavam uns com
os outros nas ruas.
- Era o Leste Selvagem - disse Orlov, reflexivo. - Era uma loucura.
- Mas você adorava - replicou Gabriel.
- E como não adorar? Nós éramos deuses.
Logo cedo em sua carreira como capitalista, Orlov comandava o império nascente sozinho e com mão de ferro. Mas, depois da aquisição da Ruzoil, percebeu que precisava
de um segundo comandante. O escolhido foi Gennady Lazarev, um brilhante matemático teórico com quem havia trabalhado no programa soviético de armas nucleares. Ele
não sabia nada sobre capitalismo, mas, como Orlov, era bom com números. Lazarev aprendeu sobre os negócios do zero e o ex-oligarca o colocou no comando das operações
cotidianas da Ruzoil. Esse foi, segundo Orlov, o maior erro que ele já cometera em termos empresariais.
- Por quê? - perguntou Gabriel.
- Porque Gennady Lazarev era da KGB. Desde quando trabalhava no programa de armas nucleares.
- Você nunca suspeitou?
Orlov balançou a cabeça.
- Ele era muito bom, e muito leal ao escudo e à lança, que é como os capangas da KGB gostam de definir a si mesmos. Obviamente, Lazarev me traiu, entregando ao Kremlin
pilhas de documentos internos, que os procuradores do Estado mais tarde usaram para montar um caso contra mim. Quando fugi do país, gerenciou a Ruzoil como se fosse
dele.
- Ele o jogou para escanteio?
- Completamente.
- E quando você cedeu a Ruzoil para nos tirar da Rússia?
- Lazarev já estava fora àquela altura, comandando uma nova companhia estatal de petróleo. Aparentemente, o presidente russo escolheu o nome da empresa: Volgatek
Óleo e Gás. Na época, uma piada dizia que o presidente queria chamá-la de “KGB Óleo e Gás”, mas achou que o nome não seria bem aceito no Ocidente.
A Volgatek, continuou Orlov, não deveria atuar na produção doméstica de petróleo, que já se achava estabilizada. Seu único propósito deveria ser expandir a participação
da Rússia na produção internacional, aumentando, assim, o poder e a influência russa na esfera global. Apoiada pelos investimentos do Kremlin, a Volgatek fez compras
pela Europa, adquirindo uma cadeia de refinarias na Polônia, na Lituânia e na Hungria. Então, ignorando objeções dos americanos, assinou um contrato lucrativo de
perfuração com a República Islâmica do Irã, assim como acordos de desenvolvimento com Cuba, Venezuela e Síria.
- Está vendo o padrão? - perguntou Orlov.
- Os acordos são todos em países do antigo império soviético ou em países hostis aos Estados Unidos.
- Correto.
Mas a Volgatek não se contentou com isso, prosseguiu Orlov. A empresa expandiu suas operações para a Europa Ocidental, assinando acordos de refino e distribuição
na Grécia, na Dinamarca e na Holanda. Então, voltou suas atenções para o mar do Norte, onde queria perfurar dois novos campos descobertos nas Ilhas Ocidentais da
Escócia. Os geólogos da Volgatek estimavam que a produção alcançaria cem mil barris por dia, sendo que grande parte dos lucros fluiria diretamente para os cofres
do Kremlin. A companhia recorreu ao Departamento de Energia e Mudanças Climáticas da Grã-Bretanha para obter uma licença. Foi aí que o secretário de Energia pediu
a Viktor que aparecesse em seu escritório para um bate-papo.
- E o que você acha que eu disse?
- Que a Volgatek era um braço do Kremlin, administrada por um ex-membro da KGB.
- E o que você acha que o secretário fez com o pedido da Volgatek para perfurar no mar territorial da Grã-Bretanha?
- Jogou-o dentro do triturador de papel.
- Bem na minha frente - concordou Orlov, sorrindo. - Foi um som muito satisfatório.
- O Kremlin tem conhecimento de que foi você quem sabotou o acordo?
- Não que eu saiba. Mas tenho certeza de que Lazarev e o presidente russo suspeitaram do meu envolvimento. Eles sempre estiveram prontos para acreditar nas piores
coisas em relação a mim.
- E o que aconteceu depois?
- A Volgatek esperou um ano. Então, entraram com um segundo pedido de licença para perfuração. Mas, dessa vez, as coisas eram diferentes. Eles tinham um amigo dentro
de Downing Street, um homem que eles cultivaram durante um ano.
- Quem?
- Prefiro não dizer.
- Está bem, eu digo por você: o homem da Volgatek era Jeremy Fallon, o mais poderoso chefe de gabinete na história da Grã-Bretanha.
Orlov sorriu.
- Talvez devêssemos abrir uma garrafa de Pétrus, afinal.
Eles haviam entrado em águas perigosas. Gabriel sabia, certamente Orlov também, a julgar pelo olho esquerdo contraindo-se em ritmo furioso. Na infância, o tique
o tornara alvo de provocações impiedosas e maus-tratos. Isso o fazia queimar de ódio, e esse ódio o levara ao sucesso. Orlov queria derrotar todo mundo. Tudo por
causa do tique no olho esquerdo.
Agora, o olho estava cravado no cálice de vinho tinto Pomerol. Orlov ainda não tinha bebido. Ele também não havia respondido à pergunta um tanto quanto direta feita
por Gabriel no minuto anterior: “Por que Jeremy Fallon?”
- Por que não ele? - disse o russo, enfim. - Fallon era o cérebro de Lancaster. Lancaster era a marionete de Fallon. Ele puxava a corda e Lancaster acenava. E o
melhor: estava vulnerável a uma aproximação.
- Como assim?
- Ele não tinha onde cair morto. Era mais pobre que rato de igreja.
- Quem o apontou como alvo?
- Disseram-me que a indicação veio da rezidentura do SVR em Londres.
Rezidentura era a palavra usada pelo SVR para descrever suas operações em embaixadas locais. O rezident era o chefe de posto; a rezidentura, o próprio posto. Esse
era um resquício da época da KGB. Assim como a maioria das coisas relacionadas ao SVR.
- Como eles agiram?
- Lazarev e Fallon passaram a se encontrar em todos os lugares errados: festas, restaurantes, conferências, férias. Segundo boatos, Fallon passou um longo fim de
semana na casa de Lazarev em Gstaad e fez um cruzeiro pelas ilhas gregas em seu iate. Eu soube que eles se deram muito bem, mas isso não me surpreende: Gennady consegue
ser um canalha encantador quando quer.
- Mas houve mais do que uma ofensiva charmosa, não é, Viktor?
- Muito mais.
- Quanto?
- Cinco milhões de euros em uma conta bancária anônima na Suíça, cortesia do Kremlin. Tudo limpo. Sem nenhum rastro. O SVR cuidou dos arranjos.
- Quem disse?
- Prefiro não dizer.
- Ora, vamos, Viktor.
- Você claramente tem suas fontes, Sr. Allon, e eu tenho as minhas.
- Pelo menos diga de que lado vêm as suas informações.
- Do Leste - respondeu Orlov, querendo dizer que era de uma de suas muitas fontes em Moscou.
- Prossiga - pediu Gabriel.
Antes, Orlov tomou um pouco de vinho. Então, passou a explicar como a Volgatek havia entrado com um segundo pedido, dessa vez apoiada pelo segundo homem mais poderoso
de Whitehall. Mas o primeiro-ministro ainda estava no mínimo indeciso. O secretário de Energia mantinha-se contrário, mas Fallon o persuadiu a não rejeitar o pedido
de pronto. Isso o manteve tecnicamente vivo, mas por um fio.
- Então - disse Orlov, erguendo o braço em direção ao teto -, o secretário de Estado de repente aprova a licença, Jonathan Lancaster voa a Moscou para brindar com
champanhe no Kremlin e o homem que aceitou 5 milhões de euros está prestes a se tornar o próximo ministro do Tesouro.
- Eu preciso saber da fonte que lhe falou dos 5 milhões.
- Perguntado e respondido - disse o russo secamente.
Gabriel mudou de assunto:
- Qual é o estado atual das relações entre a Volgatek e seus negócios aqui em Londres?
- Como você deve imaginar, estamos em pé de guerra. É bastante parecido com a Guerra Fria: não declarada, mas violenta.
- Como assim?
- Lazarev apresentou ofertas maiores que as minhas em inúmeras aquisições. Para ele é fácil - acrescentou Orlov, ressentido -, pois não está jogando com o próprio
dinheiro. Ele também se diverte muito contratando meus melhores empregados. Joga um bolo de dinheiro... do Kremlin, é claro... e eles vão correndo para os pastos
verdejantes.
- Vocês se falam?
- Não diria que nos falamos. Quando nos encontramos em público, damos um aceno de cabeça polido e trocamos sorrisos rígidos. Nossa guerra se dá nas sombras. Devo
admitir que, ultimamente, Gennady tem me desgastado. E agora ele vai perfurar as águas de um país que passei a amar. Isso me deixa enojado.
- Então talvez você devesse agir.
- Como?
- Ajude-me a acabar com o acordo.
Orlov parou de girar os óculos e encarou Gabriel por um momento.
- Qual é seu interesse no assunto? - perguntou por fim.
- Estritamente pessoal.
- Por que alguém como você ligaria para o acesso de uma companhia de energia russa ao petróleo no mar do Norte?
- É um assunto complicado.
- Não esperaria menos de você.
Gabriel sorriu a contragosto. Então, disse em voz baixa:
- Acredito que o Kremlin tenha chantageado Jonathan Lancaster para obter os direitos de perfuração.
- Como?
Gabriel ficou em silêncio.
- Eu abri mão de uma companhia no valor de 16 bilhões de dólares para tirar você e sua mulher da Rússia - relembrou Orlov. - Acredito que isso me dê direito a uma
resposta. Como o chantagearam?
- Sequestrando a amante de Lancaster, que estava na Córsega.
Orlov nem piscou, então falou:
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
Eles conversaram até depois do anoitecer. No fim, Gabriel estava confiante de que entendera do que se tratava o jogo na encosta da montanha, mas a divisão dos jogadores
permanecia fora de sua compreensão. Tinha certeza de uma coisa, no entanto: era hora de dar uma palavrinha com Graham Seymour. Ligou de um telefone público da Sloane
Square e confessou ter entrado mais uma vez no país sem assinar o livro de hóspedes. Então, requisitou um encontro. Seymour disse uma hora e um lugar e desligou.
Gabriel colocou o telefone de volta no gancho e começou a andar, com Christopher Keller a 100 metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado.
38
HAMPSTEAD HEATH, LONDRES
Eles caminharam para a esquina do Hyde Park, embarcaram em um trem da linha Piccadilly com destino à Leicester Square e, então, fizeram a jornada longa e lenta na
Linha Norte até Hampstead. Keller entrou em um pequeno café na avenida principal e ficou esperando enquanto Gabriel caminhava sozinho pela South End Road. Ele adentrou
a charneca em Pryors Field, margeou os lagos de Hampstead e depois subiu a ladeira suave da Parliament Hill. Ao fundo, sob um véu de nuvens e neblina, brilhavam
as luzes do centro de Londres. Graham Seymour admirava a vista de um banco de madeira. Ele estava sozinho, sem contar os dois seguranças de capas de chuva parados
na trilha às suas costas, estáticos como peças de xadrez. Eles desviaram o olhar quando Gabriel passou sem uma palavra e sentou-se ao lado de Seymour. O homem do
MI5 não deu sinal de ter visto Allon chegar. Mais uma vez, estava fumando.
- Você devia parar com isso - disse Gabriel.
- E você devia ter me avisado que ia entrar no país de novo. Eu teria preparado um comitê de recepção.
- Eu não queria um comitê de recepção, Graham.
- Claro que não.
Seymour continuava a contemplar as luzes do centro londrino.
- Você chegou quando?
- Ontem à tarde.
- Por quê?
- Negócios em aberto.
- Por quê?
- Madeline - explicou Gabriel. - Eu vim por causa de Madeline.
Seymour voltou-se para ele pela primeira vez.
- Madeline está morta - disse ele lentamente.
- Sim, Graham, eu sei. Eu estava lá.
- Sinto muito - lamentou-se Seymour após um instante. - Eu não devia ter...
- Deixe isso para lá, Graham.
Os dois ficaram em silêncio. Estavam desconfortáveis por causa da natureza infeliz daquele caso, pensou Gabriel. Ambos haviam entrado no serviço de inteligência
para proteger o país e os cidadãos, e não políticos.
- Você deve ter descoberto algo importante - continuou Seymour. - Ou não teria me chamado.
- Você sempre foi bom, Graham.
- Não o bastante para impedi-lo de entrar em meu país quando bem entende.
Gabriel ficou calado.
- O que você descobriu?
- Acho que sei quem sequestrou Madeline Hart. Mais do que isso: acredito que saiba o porquê.
- Quem a sequestrou?
- KGB Óleo e Gás - respondeu Gabriel.
Seymour virou a cabeça bruscamente.
- Do que você está falando?
- O acordo da Volgatek, Graham. Madeline foi sequestrada para que os russos pudessem roubar o seu petróleo.
Não há pior sentimento para um espião profissional do que saber por intermédio do agente de outro serviço algo que ele mesmo já deveria saber. Seymour passou por
essa desonra com a maior elegância possível, de queixo empinado e cabeça erguida. Então, depois de calcular as consequências cuidadosamente, pediu uma explicação.
Gabriel começou contando tudo o que descobrira sobre Jeremy Fallon. Que ele havia se apaixonado por Madeline Hart. Que não era mais bem-vindo na Downing Street e
estava prestes a ser chutado de lá antes da eleição seguinte. Que aceitara um pagamento secreto de 5 milhões de euros de um tal Gennady Lazarev e depois usara seu
poder para forçar o acordo, passando por cima das objeções do secretário de Energia. Por fim, Gabriel falou da mulher russa que vira primeiro na igreja antiga do
Lubéron e, depois, em uma moradia popular abandonada em Basildon.
- Quem lhe falou sobre Jeremy Fallon e os 5 milhões? - perguntou Seymour.
- Eu gostaria de manter sigilo, se não se importa.
- É claro que sim... Mas quem é a fonte?
Gabriel respondeu com sinceridade. Seymour balançou a cabeça devagar.
- Viktor Orlov é biologicamente incapaz de dizer a verdade - retrucou. - Está sempre oferecendo supostas informações de inteligência sobre a Rússia ao MI6 e nenhuma
delas jamais se prova verdadeira.
- Se não fosse por Orlov, eu e Chiara não estaríamos vivos.
- Isso não significa que tudo o que ele diga seja verdade.
- Ele sabe mais do que qualquer pessoa no mundo sobre o lado B da indústria petroleira russa.
Seymour não pôde discordar.
- E você tem certeza quanto ao homem e à mulher que partiram no Mercedes? - perguntou ele. - Tem certeza que são os mesmos que o seguiram na galeria?
- Graham... - repreendeu Gabriel, desgastado.
- Todos nós cometemos erros.
- Alguns mais que outros.
Seymour atirou o cigarro para longe com raiva.
- Por que só estou ouvindo isso agora? Por que não me ligou na noite passada, quando os estava vigiando?
- E o que você teria feito? Alertado o chefe da seção de contrainteligência russa? Informado o seu diretor? - Gabriel ficou quieto por um momento. - Se eu o tivesse
procurado na noite passada, daria início a uma série de acontecimentos que levariam à destruição de Jonathan Lancaster e seu governo.
- E por que você me procurou agora?
Gabriel não respondeu. Seymour ia acender outro cigarro, mas se deteve.
- Bastante irônico, não?
- O quê?
- Eu peço para você encontrar Madeline Hart para proteger o primeiro-ministro de um escândalo. E agora você me traz informações que podem destruí-lo.
- Não era a minha intenção.
- Você não pode provar uma vírgula, sabia? Nem uma vírgula.
- Eu sei disso.
Seymour suspirou fundo.
- Eu sou o vice-diretor do Serviço de Segurança de Sua Majestade - disse ele, mais para si do que para Gabriel. - Vice-diretores do MI5 não derrubam governos britânicos.
Eles os protegem de inimigos internos e externos.
- E se o governo for sujo?
- Qual não é? - retrucou Seymour prontamente.
Gabriel não respondeu. Ele não estava no clima para um debate relativista sobre ética na política.
- E se eu o persuadisse a ir embora e esquecer o assunto? - perguntou Seymour. - O que você faria?
- Eu atenderia aos seus desejos e voltaria para Jerusalém.
- E faria o quê?
- Parece que Shamron tem planos para mim.
- Algo que você queira me contar?
- Ainda não.
Seymour claramente ficou intrigado, mas deixou passar o assunto por ora:
- E o que você acharia de mim?
- O que eu acho importa?
- Eu me importo - falou Seymour, sério.
Gabriel extravasou tudo o que estava pensando:
- Acho que você passaria o resto da vida pensando no que o SVR está fazendo com todo o dinheiro extraído do mar do Norte. E você acabaria se sentindo culpado por
não ter feito nada para impedir.
Seymour permaneceu em silêncio.
- Nós temos um ditado em nosso serviço, Graham. Para nós, uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Nós somos britânicos: não temos ditados e não gostamos de escândalos. Na verdade, vivemos com medo até do menor passo em falso.
- Para isso você tem a mim.
Seymour encarou Gabriel com seriedade por um instante.
- O que você está sugerindo exatamente?
- Deixe que eu vá à guerra contra a Volgatek em seu lugar. Eu acharei a prova de que eles roubaram seu petróleo.
- E depois?
- Eu o roubarei de volta.
Gabriel e Seymour passaram a meia hora seguinte considerando com cuidado os detalhes do que talvez fosse o acordo operacional menos ortodoxo já feito por dois serviços
ocasionalmente aliados. Mais tarde, ele ficaria conhecido como o acordo da Parliament Hill. Gabriel teria licença para operar em solo britânico como fosse necessário,
desde que sem violência e sem ameaçar a segurança nacional britânica, e se comprometia a repassar qualquer de inteligência decidiria sozinho como usá-la.
O pacto foi selado com um aperto de mãos e Graham partiu, seguido pelos guarda-costas.
Gabriel permaneceu na charneca por mais dez minutos antes de voltar para a avenida principal de Hampstead e buscar Keller. Juntos, pegaram o metrô para Kensington
e andaram até a embaixada israelense. No posto do Escritório, havia apenas um funcionário de baixo escalão, que se sobressaltou quando a lenda entrou pela porta
sem aviso prévio.
Gabriel deixou Keller na antessala e encaminhou-se para a câmara de comunicações seguras, que os veteranos do Escritório - como ele - chamavam de Santo dos Santos.
O número da casa de Shamron em Tiberíades ainda estava no diretório de contatos de emergência. Ele atendeu após o primeiro toque, como se estivesse esperando ao
lado do telefone. Embora a ligação fosse criptografada, os dois conversaram no conciso patoá do Escritório, uma língua que nenhum tradutor ou supercomputador jamais
poderia decifrar. Gabriel explicou rapidamente o que havia descoberto, o que planejava fazer em seguida e do que precisava para prosseguir. Prover os recursos para
uma operação como aquela não era responsabilidade de Shamron. Ele também não tinha autorização oficial para aprová-la. Apenas Uzi Navot poderia dar inicio a uma
empreitada desse tipo - e só após obter a bênção do próprio primeiro-ministro.
E assim estava sendo preparado o terreno para uma disputa que entraria para os anais como uma das piores já vistas na rica história do Escritório. Começou às 22hl8
no horário de Israel, quando Shamron ligou para a casa de Navot dizendo que Gabriel pretendia guerrear contra a KGB Óleo e Gás e que aprovava a operação. Navot deixou
claro que tal iniciativa não estava prevista. Não para um futuro próximo. Nem para nunca. Shamron desligou sem dizer mais nada e telefonou para o primeiro-ministro
israelense antes que Navot o fizesse.
- Por que entrar em guerra com o presidente russo? - perguntou o primeiro-ministro. - Afinal, é só petróleo.
- Não é só petróleo, pelo menos não para Gabriel. Além disso, você quer ou não quer que ele seja o próximo diretor do Escritório?
- Você sabe que sim, Ari.
- Então deixe-o acertar uma antiga conta com os russos, e você o terá.
- Quem vai falar com Uzi?
- Duvido que ele vá me atender.
E, assim, o primeiro-ministro israelense, agindo sob o comando de Ari Shamron, ligou para o diretor do serviço de inteligência no exterior e ordenou que ele aprovasse
uma operação da qual o subordinado não queria nem ouvir falar. Mais tarde, testemunhas afirmariam que houve bate-boca e, segundo boatos, Navot ameaçou renunciar
ao cargo. Mas eram apenas boatos mesmo, pois Navot amava ser diretor quase tanto quanto Shamron havia amado um dia.
Como prenúncio do que estava por vir, Navot se recusou a ligar para Gabriel a fim de conceder sua bênção, deixando essa tarefa para um modesto oficial administrativo.
Allon recebeu a autorização oficial de operação pouco depois da meia-noite, no horário de Londres, por um telefonema que durou menos de dez segundos. Depois de desligar,
ele saiu da embaixada com Keller e partiu pelas ruas londrinas vazias em direção ao Grand Hotel Berkshire.
- E quanto a mim? - perguntou Keller. - Devo ficar aqui ou embarcar no próximo voo para a Córsega?
- Você decide.
- Acho que vou ficar.
- Não vai se arrepender.
- Eu não falo hebraico.
- Isso é bom.
- Por quê?
- Porque poderemos tirar sarro de você e você jamais saberá.
- Como vocês vão me usar?
- Você fala francês como um nativo, tem diversos passaportes limpos e é muito bom com armas. Tenho certeza de que pensaremos em algo.
- Posso dar um conselho?
- Só um.
- Você vai precisar de um russo.
- Não se preocupe - disse Gabriel. - Eu já tenho um.
39
GRAYSWOOD, SURREY
A irregular casa tudoriana ficava a 1,5 quilômetro da antiga igreja de Grayswood, à beira do bosque de Knobby Copse. Um deque de madeira levava até ela e grossas
cercas vivas a protegiam das vistas. Havia um jardim denso onde se podia refletir profundamente, 8 acres privativos para enfrentar demônios internos, e um lago de
pesca onde não se pescava fazia anos. As percas que nadavam em suas águas escuras agora estavam do tamanho de tubarões. O Departamento de Acomodações - divisão do
Escritório que adquiria e fazia a manutenção de propriedades seguras - referia-se ao local como lago Ness.
Gabriel e Keller chegaram à casa no dia seguinte, pouco depois do meio-dia, num Land Rover 4x4 providenciado pelo Departamento de Transportes. Na parte de trás do
carro, havia duas caixas de aço inoxidável cheias de aparelhos de comunicação criptografada tirados da sala-cofre da embaixada, além de várias sacolas de compras.
Depois de encherem a despensa com os mantimentos, retiraram os panos dos móveis, sopraram as teias de aranhas dos cantos e vasculharam a casa de ponta a ponta em
busca de escutas. Então, foram para o jardim e pararam à beira do lago. Barbatanas sulcavam a superfície negra.
- Não era uma piada - disse Keller.
- Não.
- Do que elas se alimentam?
- Devoraram um dos meus melhores agentes da última vez que estivemos aqui.
- Aqui tem equipamento de pesca?
- No vestíbulo.
Keller entrou na casa e achou um par de varas encostado em um canto, perto de um remo velho e lascado. Enquanto procurava uma isca, ouviu um baque seco, como o de
um galho se quebrando. Ao sair, sentiu o cheiro inconfundível de pólvora no ar. Então, avistou Gabriel subindo o caminho do jardim com a Beretta numa das mãos e
um peixe de 60 centímetros na outra.
- Isso me parece muito pouco esportivo - repreendeu Keller.
- Não tenho tempo para esporte. Preciso descobrir uma forma de infiltrar um agente em uma empresa de petróleo russa. E alimentar muitas bocas.
No fim da tarde, enquanto as cercas vivas se fundiam à escuridão e a temperatura caía para um frio cortante, três carros chegaram à isolada casa tudoriana. Os veículos
eram todos de marcas e modelos diferentes, tão distintos quanto os nove agentes que deles saíram, cansados do longo dia de viagem clandestina. Nos corredores e salas
de reunião do King Saul Boulevard, eles eram conhecidos pelo codinome Barak - “relâmpago” em hebraico devido a sua capacidade de se reunir e atacar rapidamente.
Os americanos, com inveja da inigualável lista de realizações operacionais, chamavam-nos de “a equipe de Deus”.
Chiara entrou na casa primeiro, seguida por duas mulheres. Dina Sarid, pequena e de cabelos escuros, era a maior especialista em terrorismo do Escritório e tinha
uma mente analítica brilhante que a tornava útil em qualquer tipo de operação. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, alta e com cabelos cor de areia, Rimona Stern
havia começado sua carreira na inteligência militar, mas agora fazia parte da unidade do Escritório que cuidava exclusivamente do programa nuclear iraniano. Por
acaso, também era sobrinha de Shamron. Aliás, as memórias mais ternas que Gabriel tinha de Rimona eram de uma criança destemida desembestando em um patinete pela
ladeira íngreme da casa de seu famoso tio em Tiberíades.
Depois delas, veio uma dupla de agentes de campo versáteis chamados Oded e Mordecai, seguidos por Yaakov Rossman, uma figura rígida de cabelos pretos e rosto marcado
por cicatrizes, que havia se especializado em recrutar e manter espiões árabes. Também chegou Yossi Gavish, oficial sênior do Departamento de Pesquisas, a divisão
de análise do Escritório. Nascido em Londres e educado em Oxford, ainda falava hebraico com sotaque britânico.
Do último carro saíram dois homens - um de meia-idade e outro na flor da vida. O mais velho era ninguém menos do que Eli Lavon: o famoso arqueólogo caçador de bens
saqueados no Holocausto e de nazistas criminosos de guerra, além de um verdadeiro artista em termos de vigilância. Como de costume, vestia muitas camadas de roupas
que não combinavam. Tinha cabelos ralos que desafiavam qualquer tipo de penteado e olhos vigilantes como os de um terrier. Seus mocassins de camurça não fizeram
barulho algum quando ele cruzou o hall de entrada e mergulhou no caloroso abraço de Gabriel. Lavon fazia praticamente tudo em silêncio. Certa vez, Shamron dissera
que o lendário espião do Escritório era capaz de desaparecer enquanto dava um aperto de mão.
- Tem certeza de que quer fazer isso? - perguntou Gabriel.
- Eu não ficaria de fora por nada neste mundo. Além do mais, seu protagonista disse que não chegaria nem perto dos russos se eu não estivesse na cobertura.
Gabriel olhou para a figura alta parada logo atrás dos ombros miúdos de Lavon. Seu nome era Mikhail Abramov. Magro, de pele clara, rosto delicado e olhos glaciais,
ele fora da Rússia para Israel na adolescência e se juntara à Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais das Forças Armadas de Israel. Já descrito por Shamron
como um “Gabriel sem consciência”, havia assassinado muitos dos maiores cérebros terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Agora, executava missões similares
em nome do Escritório, embora seus incontáveis talentos não se restringissem a mexer com armas. Trabalhando com uma agente da CIA chamada Sarah Bancroft, Mikhail
se infiltrara no séquito de Ivan Kharkov, iniciando a longa e sangrenta guerra entre o Escritório e o exército privado de Ivan. Se Viktor Orlov não houvesse aberto
mão da Ruzoil para o Kremlin, Mikhail teria morrido na Rússia, ao lado de Gabriel e Chiara. Em sua face de porcelana, havia uma cicatriz profunda causada pelo punho
de marreta de Ivan.
- Você não precisa fazer isso - disse Gabriel, tocando a cicatriz. - Podemos achar outra pessoa.
- Que outra pessoa? - perguntou Mikhail, olhando em volta.
- Yossi, por exemplo.
- Yossi fala quatro línguas, mas não russo. Poderiam falar em cortar a garganta dele e Yossi acharia que estavam pedindo um frango à Kiev.
Os membros da fantástica equipe de Gabriel já haviam se hospedado naquela casa antes, então instalaram-se em seus antigos quartos sem muita discussão enquanto Chiara
ia para a cozinha preparar uma elaborada refeição para o reencontro. O prato principal era a enorme perca, assada em vinho branco e ervas. Gabriel acomodou Keller
à sua direita à mesa de jantar, um sinal deliberado de que, pelo menos por ora, o inglês deveria ser tratado como um membro da família. A princípio, os outros ficaram
desconfortáveis com sua presença, mas gradualmente se abriram. Na maior parte do jantar, falou-se inglês em respeito a ele. Mas, ao discutirem a última operação,
mudaram para o hebraico.
- Do que eles estão falando? - perguntou Keller discretamente a Gabriel.
- Sobre um novo programa de televisão em Israel.
- Você está me dizendo a verdade?
- Não.
O humor deles estava mais sombrio do que de costume, pois o espectro de Ivan Kharkov ainda os assombrava. Ninguém mencionou seu nome durante o jantar. Em vez disso,
referiam-se apenas à matsav, a situação. Yossi, profundamente erudito em estudos clássicos e história, servia de guia. Ele via um mundo girando descontroladamente.
As promessas da grande Primavera Árabe haviam sido expostas como mentiras, dizia ele, e em breve haveria uma escalada do islamismo radical, estendendo-se da África
Subsaariana até a Ásia Central. Os Estados Unidos estavam quebrados, cansados, e não tinham mais condições de liderar nada. Era possível que essa nova desordem mundial
turbulenta produzisse um eixo do século XXI que tivesse à frente China, Irã e, claro, Rússia. Sozinhos, rodeados por um mar de inimigos, estariam Israel e o Escritório.
Ao fim da explicação, todos tiraram os pratos e foram para a sala de estar, onde Gabriel enfim discorreu sobre o motivo para chamá-los à Inglaterra. Eles já sabiam
partes da história. Agora, em pé à frente deles, com a lareira a gás queimando atrás de si, Gabriel terminava de pintar o quadro com agilidade. Relatou tudo o que
havia acontecido, começando pela busca desesperada por Madeline Hart na França e terminando com o acordo na noite anterior em Hampstead Heath. Apenas um aspecto
do caso foi contado fora da ordem cronológica: o breve encontro com Madeline Hart nas horas que precederam sua morte. Ele prometera a Madeline que a traria de volta
para casa em segurança. Após o fracasso, pretendia manter sua palavra desfazendo o que havia sido uma operação russa do início ao fim. Para conseguir tal feito,
precisariam inserir Mikhail na KGB Óleo e Gás. Depois, achariam evidências de que Madeline Hart fora assassinada para que fosse concretizado o roubo do petróleo
do mar do Norte.
- Como? - perguntou Lavon, incrédulo, quando Gabriel terminou de falar. - Por Deus, como vamos colocar Mikhail numa companhia de petróleo pertencente ao Kremlin
e administrada pela inteligência russa?
- Nós daremos um jeito - afirmou Gabriel. - Nós sempre damos.
O trabalho começou de fato na manhã seguinte, quando a equipe de Gabriel passou a se embrenhar na Volgatek. No começo, o grosso do material vinha de fontes públicas,
como jornais de negócios, comunicados de imprensa e artigos acadêmicos escritos por pessoas especializadas na confusa indústria petroleira russa. Para complementar,
Gabriel pediu a ajuda da Unit 1400, a empresa israelense de interceptações eletrônicas. Como esperado, ela descobriu que as redes de computadores e comunicações
da Volgatek, baseadas em Moscou, eram protegidas por firewalls de alta qualidade - os mesmos usados pelo Kremlin, pelo Exército russo e pelo SVR. Mais tarde naquele
dia, no entanto, a Unit conseguiu invadir os computadores de uma sucursal em Gdansk, onde a companhia possuía uma importante refinaria, que produzia grande parte
da gasolina da Polônia. O material foi encaminhado diretamente para a casa segura em Surrey.
Mikhail e Lavon, os únicos membros que falavam russo, cuidaram da tradução. O primeiro descartou a informação como um tiro n'água, mas Lavon foi mais otimista. Ao
derrubar a porta de Gdansk, disse ele, aprenderiam muito sobre o modo como a Volgatek operava além das fronteiras da Mãe Rússia.
Por instinto, abordaram o alvo como se fosse uma organização terrorista. Dina lembrou a eles, desnecessariamente, que a prioridade ao confrontar um novo grupo ou
célula terrorista é identificar sua estrutura e os membros-chave. Era tentador focar nos que estavam no topo da cadeia alimentar, mas os gerentes intermediários,
mensageiros, hospedeiros e motoristas costumavam provar-se muito mais valiosos no fim. Eles eram desvalorizados, esquecidos, negligenciados. Carregavam mágoas, cultivavam
ressentimentos e, muitas vezes, gastavam mais do que recebiam. Dessa forma, era muito mais fácil recrutá-los do que os homens que voavam em jatinhos particulares,
tomavam champanhe aos baldes e tinham um harém de prostitutas russas a seu dispor aonde quer que fossem.
No topo da cadeia de organização estava Gennady Lazarev, o ex-cientista nuclear russo que traíra Viktor Orlov. O vice de confiança de Lazarev era Dmitry Bershov
e seu chefe de operações na Europa era Alexei Voronin. Ambos eram antigos agentes da KGB, embora Voronin fosse de longe o mais apresentável dos dois. Ele falava
várias línguas europeias fluentemente, inclusive o inglês, que havia aprendido quando trabalhava na rezidentura em Londres já no fim da Guerra Fria.
O resto da hierarquia da Volgatek mostrou-se difícil de discernir, com certeza não por acidente. Yaakov comparou o perfil da companhia ao do Escritório. O nome do
diretor era público, mas os nomes de seus principais assistentes e as tarefas que desempenhavam eram mantidos em segredo ou escondidos sob camadas de ilusão e falsas
informações. Felizmente, o tráfego de e-mails da sucursal de Gdansk permitia que se identificassem vários outros protagonistas da empresa, inclusive o chefe de segurança,
Pavel Zhirov. Seu nome não aparecia em nenhum documento da empresa e todas as tentativas de achar uma fotografia sua mostraram-se infrutíferas. Na cadeia de organização
da equipe, Zhirov era um homem sem rosto.
Conforme os dias foram se passando, ficou claro que a Volgatek era mais do que apenas petróleo. A companhia fazia parte de um estratagema maior do Kremlin para transformar
a Rússia em uma superpotência global de energia, uma espécie de Arábia Saudita euro-asiática, e ressuscitar o Império Russo das ruínas da União Soviética. A própria
Europa já dependia demais do gás natural da Rússia. A missão da empresa era estender o domínio russo para o mercado europeu de energia por meio da compra de refinarias
de petróleo. E agora, graças a Jeremy Fallon, tinha um posto no mar do Norte que renderia bilhões em lucros para o Kremlin. Sim, a Volgatek baseava-se na avareza
dos russos. Mas, acima de tudo, no seu revanchismo.
Como plantar um agente em uma organização como essa? Foi Lavon que achou uma solução possível e a explicou para Gabriel enquanto caminhavam pelo jardim. Depois de
adquirir a refinaria em Gdansk, disse ele, a Volgatek havia contratado um polonês para servir de diretor de fachada. Na prática, o polaco nada tinha a ver com o
cotidiano operacional: era meramente um enfeite, um buquê de flores designado para amenizar a mágoa dos poloneses ao verem o urso russo devorar um bem econômico
crucial. Além disso, explicou Lavon, a Polônia não era o único lugar onde a Volgatek havia contratado ajudantes locais. Ela agira assim também na Hungria, na Lituânia
e em Cuba. Nenhum desses gerentes se saiu melhor do que o de Gdansk; foram todos igualmente marginalizados, ignorados e jogados para escanteio.
- São como copinhos de café: usados e descartados - disse Lavon.
- Logo, não têm nenhum acesso ao tipo de informação protegida que estamos procurando.
- É verdade. Mas, se o habitante local contratado por acaso for russo ou de ascendência russa, o comando central da Volgatek talvez o trate com mais carinho, especialmente
se for o mais esperto do grupo. Eles se sentiriam tentados a lhe dar responsabilidades reais. Quem sabe? Poderiam até deixá-lo entrar no templo sagrado em Moscou.
- Genial, Eli.
- Sim, é. Mas há um problema sério.
- Qual?
- Como vamos chamar a atenção da Volgatek para ele?
- É fácil.
- Sério mesmo?
- Sim - disse Gabriel, sorrindo. - Sério mesmo.
Naquela noite, Gabriel não participou do jantar. Ele foi à Cheyne Walk, em Chelsea, onde jantou a sós com Viktor Orlov. Seu novo plano não encontrou resistência
da parte do russo; na verdade, ele até ofereceu várias sugestões importantes que o aprimoraram. Ao final da refeição, Gabriel lhe entregou um documento-padrão, entregue
a todos os indivíduos que não eram do Escritório e participavam de suas operações: impedia Orlov de revelar seu papel no caso e anulava a possibilidade de qualquer
recurso legal no caso de haver danos a ele ou a sua empresa. O russo se recusou a assinar. Gabriel não esperava nada menos do que isso.
Depois de deixar a mansão de Orlov, foi de carro até Hampstead e seguiu a pé para a Parliament Hill. Seymour estava esperando no banco, ladeado pelos dois seguranças,
que logo se afastaram, para não escutar a conversa. Gabriel falou da operação que estava prestes a ser executada e do que precisaria em termos de ajuda não oficial
dos britânicos. Seymour não pôde deixar de sorrir. Tratava-se de algo pouco ortodoxo, mas assim era a maioria das operações do Escritório, principalmente as concebidas
por Gabriel e sua equipe.
- Sabe, pode até ser que funcione - disse o homem do MI5.
- Vai funcionar, Graham. A questão é: você quer que eu vá em frente?
Seymour ficou em silêncio por um instante. Então, se levantou e deu as costas
para as luzes de Londres.
- Traga-me evidências de que os russos estavam por trás do sequestro e do assassinato de Madeline - disse calmamente - e eu me certificarei de que os miseráveis
jamais vejam uma gota do nosso petróleo.
- Deixe-me fazer isso por você, Graham. Para que você não...
- Isso é algo que só eu posso fazer. Além do mais, certa vez um homem muito sábio me disse que uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Digite meu nome no Google e depois diga se você me acha tão sábio assim.
Seymour sorriu.
- Você não está reconsiderando, está?
- De jeito nenhum.
- Bom garoto. Mas tenha uma coisa em mente.
- O quê?
- Pode ser fácil colocar Mikhail dentro da Volgatek, mas tirá-lo de lá... já é outra história.
Seymour voltou para o lado dos seguranças e sumiu na escuridão. Gabriel permaneceu no banco por mais cinco minutos. Em seguida, andou até seu carro e voltou para
a casa à beira do Knobby Copse.
40
GRAYSWOOD, SURREY
O aprendizado de Mikhail Abramov, futuro empregado da Volgatek, começou às nove da manhã do dia seguinte. Seu primeiro tutor foi ninguém menos do que Viktor Orlov.
Apesar das objeções de Gabriel, ele insistira em viajar até Surrey em sua limusine Mercedes Maybach, seguida por um Land Rover repleto de seguranças. O pequeno comboio
causou certa comoção em Grayswood e, por boa parte do dia, circularam boatos pelo vilarejo de que o ocupante do carro era o próprio primeiro-ministro. Mas Jonathan
Lancaster não estava nem perto de Surrey; naquela manhã, ele fazia campanha em Sheffield. As últimas pesquisas lhe davam uma boa dianteira sobre o candidato da oposição.
O analista político mais famoso da Grã-Bretanha agora previa uma vitória esmagadora de proporções históricas.
Orlov voltou à casa segura na manhã seguinte, e ainda na outra. Suas aulas refletiam sua personalidade singular: brilhante, arrogante, cheia de opiniões, condescendente.
Ele falava em inglês com Mikhail na maior parte do tempo, fazendo incursões ocasionais no russo que apenas Eli Lavon podia compreender. Às vezes, também misturava
as duas línguas em um dialeto bizarro que a equipe apelidou de “rusglês”. Incansável e irritante, era impossível não amá-lo. Orlov em ação era uma força a ser respeitada.
Ele começou suas aulas com uma lição de história: a vida sob o comunismo soviético, a queda de um império, a era sem lei dos oligarcas. Para surpresa de todos, Orlov
admitiu que ele e os outros barões ladrões da Rússia haviam semeado a própria destruição ao enriquecerem muito em muito pouco tempo. Dessa forma, eles tinham atraído
as circunstâncias que levaram à volta do autoritarismo. O atual presidente da Rússia era um homem sem ideologia ou crença que não o exercício do poder pelo poder.
- É um fascista em tudo menos no nome - disse Orlov. - E fui eu que o criei.
A etapa seguinte da instrução apressada de Mikhail começou no quarto dia, quando ele cursou o que Lavon descreveu como o programa de MBA mais curto da história.
Seu professor era de Tel Aviv, mas havia frequentado a Escola de Negócios Wharton e trabalhado por pouco tempo na ExxonMobil antes de retornar para Israel. Por sete
longos dias e noites, ensinou a Mikhail o básico de administração de negócios: contabilidade, estatística, marketing, finanças corporativas, gerenciamento de risco.
O russo aprendia rápido - algo nada surpreendente, já que seus pais haviam sido acadêmicos soviéticos proeminentes. Ao final do curso, o professor previu um futuro
brilhante para Mikhail, embora não fizesse ideia do que aquele futuro podia reservar. Ele assinou com prazer o termo de confidencialidade de Gabriel e embarcou em
um voo de volta para Israel.
Enquanto Mikhail debruçava-se sobre os estudos, o resto da equipe trabalhava com diligência na identidade que o disfarçaria em campo. Eles o construíram como um
escritor desenvolve um personagem: ascendência e educação, amores e desamores, triunfos e fracassos. Por muitos dias, não lhes ocorreu um nome, pois deveria caber
a um homem que tivesse um pé no Ocidente e outro firmemente enraizado no Leste da Europa. Foi Gabriel quem enfim escolheu o nome Nicholas Avedon, uma distorção inglesa
de Nicolai Avdonin. Com a bênção de Graham Seymour, forjaram um passaporte britânico bem viajado e escreveram um longo e detalhado currículo que combinasse.
Quando Mikhail concluiu o curso, eles o levaram a um tour pela vida que nunca vivera. Havia a casa em um subúrbio arborizado de Londres, na qual ele nunca pisara,
a faculdade de Oxford onde ele jamais abrira um livro, e os escritórios de uma firma de perfuração em Aberdeen pouco conhecida da qual ele jamais recebera qualquer
pagamento. Até o acompanharam num voo para que Mikhail pudesse se lembrar de como é andar pelas ruas de Cambridge em uma tarde fresca de outono, embora ele nunca
tivesse ido a Cambridge, nem no outono nem em nenhuma outra estação do ano.
Por fim, só faltava resolver a aparência de Mikhail. Ela deveria ser drasticamente alterada; do contrário, os amigos da Volgatek no SVR poderiam reconhecê-lo da
operação passada. Cirurgia plástica não era uma opção; o tempo de cicatrização era muito longo e Mikhail se recusava a deixar qualquer um tocar seu rosto com uma
faca. Foi Chiara que concebeu uma solução e a demonstrou para Gabriel em um dos computadores. Na tela estava a fotografia de Mikhail tirada para o passaporte britânico.
Ela apertou um único botão e a foto reapareceu com apenas uma mudança.
- Eu mesmo mal o reconheço - disse Gabriel.
- Mas será que de aceita fazer isso'?
- Eu deixarei claro que ele não tem escolha.
Naquela noite, na presença de toda a equipe, Mikhail raspou a cabeça. Yaakov, Oded e Mordecai fizeram o mesmo em um ato de solidariedade, mas Gabriel se recusou.
Seu compromisso com a coesão da unidade tinha limite. Na manhã seguinte, as mulheres levaram Mikhail às compras em Londres em uma excursão que deixou o departamento
de contabilidade do King Saul Boulevard de cabelos em pé.
Quando voltaram a Grayswood, encontraram Viktor Orlov, à espera de Mikhail, para fazer uma avaliação final. Ele passou com louvor. Para celebrar, o ex-oligarca abriu
várias garrafas de seu querido Château Pétrus. No momento em que ele erguia a taça em homenagem a seu aluno, ouviu-se o estampido seco de uma Beretta silenciada.
- O que foi isso? - perguntou Orlov.
- Acho que teremos peixe no jantar - disse Mikhail.
- Alguém deveria ter me avisado; eu teria trazido um bom Sancerre.
Pouco tempo depois de ter recebido o passaporte britânico, Orlov comprara as ações majoritárias de um jornal que estava prestes a falir, o venerável Financial Journal,
de Londres, para chamar a atenção do círculo de pessoas importantes da cidade. Alguns funcionários, incluindo a renomada repórter investigativa Zoe Reed, pediram
demissão em protesto, mas a maioria ficou, em parte por não ter aonde ir. Nos termos do acordo de propriedade, Orlov concordara em não ter nenhum tipo de influência
sobre a linha editorial do jornal. Ele conseguiu cumprir sua promessa de alguma forma, mesmo desejando usar o jornal como um cassetete para bater em seus inimigos
do Kremlin.
No entanto, isso não significava que fosse avesso a ligar para os editores e passar dicas de notícias, especialmente se diziam respeito a seu próprio negócio. Assim,
três dias mais tarde, uma pequena nota apareceu num canto de página falando sobre a nova contratação de um funcionário pela Viktor Orlov Investimentos Ltda. Orlov
veio a confirmá-la num comunicado à imprensa mais tarde naquela manhã, dizendo que um executivo de 35 anos chamado Nicholas Avedon estava prestes a assumir o comando
do portfólio de energia da VOI, bem como da mesa de operações de futuros de petróleo. Dentro de minutos, a internet fervilhava com boatos de que Orlov havia escolhido
seu sucessor e preparava-se para um afastamento gradual do cotidiano da empresa. À noite, os rumores eram tão intensos que ele se sentiu compelido a fazer uma rara
aparição na CNBC para negá-los. Sua atuação foi pouco convincente. Um articulista proeminente disse, inclusive, que ele tinha suscitado muito mais questões do que
respondido.
Ninguém nos círculos financeiros de Londres jamais saberia que os boatos da aposentadoria iminente de Orlov haviam sido plantados por uma equipe de homens e mulheres
que operavam de uma casa isolada em Surrey. Eles também nunca tomariam conhecimento de que os mesmos rumores tinham sidos injetados na corrente sanguínea da comunidade
de negócios de Moscou, ou que haviam alcançado o topo da Volgatek.
Gabriel e sua equipe estavam cientes disso, pois tinham lido um e-mail cáustico de Alexei Voronin, enviado para o responsável pela sucursal em Gdansk. Eli Lavon
apresentou a mensagem impressa a Gabriel durante o jantar e traduziu-a, inclusive os trechos que continham linguajar inapropriado. Gabriel reagiu abrindo uma garrafa
de Château Pétrus que sobrara e servindo uma taça para cada um da equipe. De modo geral, era um começo promissor. Mikhail agora figurava como o suposto herdeiro
de Orlov. E a KGB Óleo e Gás estava observando.
41
MAYFAIR, LONDRES
Os escritórios da VOI ocupavam quatro andares de um edifício de escritórios de luxo em Mayfair, não muito longe da embaixada americana. Quando Nicholas Avedon lá
chegou na manhã seguinte, logo cedo, todos os altos funcionários da empresa esperavam na sala de conferências principal para recebê-lo. Orlov fez alguns comentários
breves, seguidos por uma série de apresentações apressadas, todas desnecessárias, já que Mikhail havia memorizado os nomes e rostos de todos durante sua preparação
em Surrey.
Se esperavam que ele fosse entrar aos poucos no trabalho, estavam totalmente enganados. Uma hora após estabelecer-se em seu escritório com vista para a Hanover Square,
começou a revisar de cima a baixo os investimentos lucrativos da VOI na área de energia, muito embora já houvesse feito a mesma análise na casa segura, e suas “descobertas
inspiradas” houvessem sido escritas para ele por Viktor Orlov. O relatório foi um sinal para o resto dos funcionários de que Nicholas Avedon não estava ali para
brincadeiras. Ele havia sido trazido para a VOI com uma finalidade. E pobre do tolo que tentasse cruzar seu caminho.
Seus dias rapidamente entraram em uma rotina rígida. Ele chegava cedo à sua mesa, já tendo lido os jornais financeiros matutinos e checado os mercados asiáticos,
passava uma ou duas horas trabalhando em planilhas e gráficos antes de participar da reunião matinal com o alto escalão, que sempre ocorria no espaçoso escritório
de Orlov. Ele costumava se manter em silêncio em reuniões numerosas, mas quando decidia falar, seus comentários estabeleciam um novo padrão de brevidade. Na maior
parte dos dias, almoçava sozinho. Depois, voltava a trabalhar em sua mesa até as sete ou oito, quando retornava ao amplo apartamento em Maida Vale, alugado para
ele por Gabriel. O Departamento de Acomodações alugara um outro menor no prédio do outro lado da rua. Enquanto Mikhail estava em casa, um membro da equipe o vigiava.
Durante seu expediente, uma câmera de vídeo de alta resolução, de transmissão segura, mantinha-o sob vigilância.
Descobriram que a Volgatek também o observava. Gabriel e a equipe sabiam disso porque a Unit 1400 enfim conseguira penetrar na rede de computadores da empresa russa
e agora liam os e-mails dos altos executivos quase em tempo real. O nome de Nicholas Avedon aparecia com destaque em vários deles - inclusive em um enviado por Gennady
Lazarev a Pavel Zhirov, o chefe de segurança sem rosto da Volgatek, requisitando-lhe que checasse o histórico do novo funcionário da VOI. Avedon era agora uma luz
piscante no radar da petroleira. Era hora, disse Gabriel, de fazê-la piscar um pouco mais forte.
Na manhã seguinte, Nicholas apresentou as descobertas de sua análise a Orlov e toda a equipe da VOI. O ex-oligarca declarou-as brilhantes, o que não era surpresa,
já que ele mesmo as concebera. Nos dias seguintes, Orlov fez uma série de jogadas financeiras ousadas, todas planejadas muito tempo antes, que alteraram radicalmente
a posição da VOI no setor global de energia. Em meio a um turbilhão de entrevistas, usava a expressão “energia para o século XXII e além” e, quando possível, creditava
o arquiteto do plano: Nicholas Avedon.
Os investidores de Londres gostavam do jovem protegido de Orlov. E, ao que parecia, a KGB Óleo e Gás também.
Eles haviam demonstrado a competência de Nicholas Avedon. Agora era o momento de revelar quanto Viktor Orlov se tornara dependente dele. Analistas de investimentos
e gerentes intermediários existiam aos montes, disse Gabriel.
Gennady Lazarev teria uma única razão para ir atrás de Avedon: acabar com seu antigo mentor e sócio.
E assim começou o que a equipe chamava de “As Peripécias de Viktor e Nicholas”.
Pelas duas semanas seguintes, os dois se tornaram inseparáveis. Almoçavam e jantavam juntos, e toda vez que Viktor aparecia publicamente, Nicholas estava ao seu
lado. Ele foi visto diversas vezes saindo da mansão de Orlov na Cheyne Walk tarde da noite e passou um fim de semana descansando na extensa propriedade do patrão
em Berkshire, um privilégio que não era dado a nenhum outro empregado.
À medida que a relação dos dois se estreitava, o clima de tensão começou a crescer nos escritórios da VOI em Mayfair. Os outros chefes de departamento não gostavam
do fato de Avedon estar presente em reuniões que costumavam ser conduzidas a sós com Orlov - nem de ele ser frequentemente visto cochichando conselhos no ouvido
do dono da empresa. Alguns funcionários declararam guerra a ele, mas a maioria entrou no jogo. Avedon era assediado com convites para drinques e jantares depois
do trabalho e recusava todos. Viktor, dizia ele, exigia toda a sua atenção.
Em seguida, os dois estenderam as Peripécias a um tour pelo continente. Houve o fórum de negócios em Paris, onde eles foram encantadores. E a reunião de banqueiros
suíços em Genebra, onde não erraram nem uma vírgula. E a reunião bastante tensa em Madri com o CEO de uma empresa de oleodutos pertencente a Orlov que recebera o
prazo de seis meses para apresentar lucros sob a ameaça de ficar desempregado - assim como o resto da Espanha.
Por fim, foram a Budapeste, a uma reunião de dirigentes políticos e empresariais dos ditos mercados emergentes do Leste Europeu. A gigante russa de gás, Gazprom,
mandou um representante para apaziguar os presentes, assegurando que não havia motivos para se temer uma dependência excessiva da energia russa, pois o Kremlin jamais
sonharia em fechar a torneira para impor sua vontade sobre as terras perdidas do antigo império. Naquela noite, em um coquetel de recepção às margens do Danúbio,
o homem da Gazprom apresentou-se a Nicholas Avedon e se surpreendeu ao descobrir que ele falava russo com fluência. O executivo da Gazprom ficara claramente impressionado
com o que ouvira, pois, poucos minutos depois do encontro, chegou um e-mail à caixa de entrada de Gennady Lazarev. Gabriel e sua equipe leram-no antes mesmo que
o russo pudesse ter a chance de abri-lo. Parecia que Mikhail havia entrado no jogo.
- Contratem Avedon - ordenou o homem da Gazprom. - Se não quiserem, nós o contrataremos.
Mas como aproximar os dois lados o bastante para que a relação fosse consumada? Como não tinha o costume de ficar de braços cruzados, Gabriel queria forçar os acontecimentos
colocando Mikhail e Lazarev em uma situação de proximidade física, em um lugar onde pudessem ter privacidade para conversar. A oportunidade se apresentou quando
a Unit 1400 interceptou um e-mail enviado ao diretor da Volgatek por sua secretária. O assunto era o itinerário de Lazarev por conta do Fórum Mundial de Energia,
a reunião bienal da Associação Internacional dos Produtores de Petróleo e Gás. Ao lê-lo, Gabriel sorriu. As Peripécias chegariam a Copenhague. E o Escritório iria
junto.
42
COPENHAGUE
Cinco dias de ansiedade depois, os senhores do petróleo dos quatro cantos do mundo começaram a chegar a Copenhague: havia árabes sauditas e dos emirados, azerbaidjanos
e cazaques, brasileiros e venezuelanos, americanos e canadenses. Os ativistas contra o aquecimento global estavam previsivelmente chocados com o encontro, e um grupo
alegava, de forma histérica, que o carbono emitido pela própria conferência acabaria submergindo uma aldeia em Bangladesh. Os emissários não pareciam notar. Eles
chegaram a Copenhague a bordo de jatinhos particulares e suas limusines blindadas rugiam pelas ruas pitorescas da cidade. Talvez um dia o petróleo acabasse e o planeta
ficasse quente demais para abrigar vidas humanas. Mas, pelo menos por enquanto, os extratores de combustíveis fósseis ainda reinavam soberanos.
A competição pelos serviços de Copenhague era intensa. Era impossível reservar mesas para jantares e o Hotel d’Angleterre - um prédio branco monumental como um transatlântico
de luxo com vista para a ampla Praça Nova do Rei - estava completamente lotado. Orlov e Mikhail chegaram à sua graciosa entrada em meio a uma forte nevasca e foram
acompanhados por um gerente a duas suítes vizinhas em um dos andares superiores. A de Mikhail continha uma bandeja de guloseimas dinamarquesas e um Dom Pérignon
num balde de gelo. Da última vez que ficara em um hotel a serviço do Escritório, ele havia usado uma garrafa de champanhe para machucar o próprio joelho, em nome
de um disfarce. Já nessa nova operação, certamente seu papel exigia que tomasse uma ou duas taças.
No momento em que estava tirando a rolha, ouviu uma discreta batida à porta - algo curioso, pois Mikhail tinha pendurado o aviso de NÃO PERTURBE antes de dar uma
generosa gorjeta para o carregador. Abriu a porta devagar e, por cima da trava de segurança, viu um homem de porte médio parado no corredor. Ele vestia um casaco
de lã de colarinho alemão, de comprimento mediano, e um chapéu tirolês de feltro. Seu cabelo era grisalho e brilhante, e viam-se olhos castanhos por trás dos óculos.
Com a mão direita, segurava uma valise de couro flexível, arranhado e desgastado.
- Como posso ajudá-lo? - perguntou Mikhail.
- Abrindo a porta - respondeu Gabriel com suavidade.
Mikhail tirou a trava de segurança e deu passagem para Gabriel, fechando a porta imediatamente em seguida. Ao se virar, viu-o andando lentamente pelo quarto com
seu BlackBerry no braço direito esticado.
Depois de um instante, Gabriel meneou a cabeça para indicar que não havia escutas no cômodo. Mikhail foi até o balde de champanhe e se serviu uma taça de Dom Pérignon.
- Quer? - perguntou ele, apontando para Gabriel com a garrafa.
- Não, me dá dor de cabeça.
- Também me dá.
Mikhail sentou no sofá e apoiou os pés sobre a mesinha de centro - um verdadeiro executivo cansado de um longo dia de viagem e reuniões. Gabriel contemplou o quarto
suntuoso e balançou a cabeça.
- Fico feliz que Viktor esteja pagando por este lugar. Uzi já está pegando no meu pé por causa dos gastos.
- Diga a Uzi que eu preciso ser mantido no nível a que fiquei acostumado.
- Bom saber que o sucesso não lhe subiu à cabeça.
Mikhail bebeu um pouco de champanhe, mas não respondeu.
- Você precisa raspar.
- Já raspei hoje de manhã - replicou Mikhail, esfregando o queixo.
- Não aí.
Mikhail passou a mão pela cabeça brilhante.
- Sabe, estou me habituando, pensando em adotar esse estilo quando a operação acabar.
- Você está parecendo um alienígena, Mikhail.
- Melhor um alienígena do que um personagem de A noviça rebelde.
Mikhail pegou um pequeno sanduíche de camarão da bandeja e devorou-o de uma só vez.
- Desde quando você come frutos do mar?
- Desde que me tornei um inglês de ascendência russa que trabalha para uma companhia de investimentos pertencente ao oligarca Viktor Orlov.
- Com um pouco de sorte, é apenas um passo em direção a coisas melhores e maiores.
- Inshallah - disse Mikhail, elevando a taça num brinde jocoso. - Meus futuros empregadores já chegaram?
Gabriel examinou o interior da maleta e retirou uma pasta de papel manilha. Dentro, havia três fotografias impressas coloridas, que ele organizou na mesinha de centro
na ordem em que foram tiradas. Retratavam três homens descendo as escadas de um jatinho particular e entrando em uma limusine. Tinham sido tiradas de uma distância
considerável por uma câmera com lente objetiva. A neve borrava a imagem.
- Quem tirou essas fotos? - perguntou Mikhail.
- Yossi.
- Como ele conseguiu entrar na pista?
- Ele tem uma credencial de imprensa para o fórum - respondeu Gabriel -, assim como Rimona.
- Para quem estão trabalhando?
- Para um jornal industrial chamado Energy Times.
- Não conheço.
- É novo.
Sorrindo, Mikhail pegou a primeira fotografia, que mostrava as três pessoas descendo a escada do avião em fila indiana. À frente, nada parecido com o matemático
livresco que já havia sido, estava Gennady Lazarev. Um passo atrás, vinha Dmitry Bershov, o vice-diretor executivo da Volgatek, e em seguida um homem baixo e atarracado,
com o rosto escondido pela aba de um chapéu fedora.
- Quem é ele? - perguntou Mikhail.
- Ainda não conseguimos descobrir.
Mikhail pegou a segunda fotografia, depois a terceira. Em nenhuma delas podia-se ver o rosto do homem.
- Ele é muito bom, não é?
- Então você também reparou - comentou Gabriel.
- Difícil não reparar. Ele sabia onde estavam as câmeras e fez questão de não ser visualizado em nenhuma imagem. - Mikhail deixou as fotos na mesinha de centro.
- Por que você acha que ele fez isso?
- Pelo mesmo motivo que eu e você o fazemos.
- Ele trabalha para o Escritório?
- Ele é um profissional, Mikhail. De verdade. Talvez seja um agente aposentado do SVR e aja assim por costume. Mas me parece que está em serviço.
- Onde ele está agora?
- No Hotel Imperial, com os outros dois. Gennady está bastante desapontado com suas acomodações.
- Como você sabe?
- Mordecai e Oded visitaram o quarto uma hora antes do avião da Volgatek aterrissar e deixaram um presentinho sob a mesa de cabeceira.
- Como vocês sabiam qual era o quarto de Lazarev?
- A Unit invadiu o sistema de reservas do Imperial.
- E a porta?
- Mordecai tem uma nova chave-cartão mágica. A porta praticamente abriu por conta própria. - Gabriel guardou as fotografias na pasta, que por sua vez foi colocada
dentro da maleta. - Fique sabendo que Gennady tem falado sobre mais coisas além da qualidade do quarto. Ele está claramente ansioso para conhecer você.
- Alguma ideia de quando ele vai agir?
- Não - disse Gabriel, balançando a cabeça. - Mas espere sutileza.
- Eu o deveria conhecer?
- Só de nome, não de rosto.
- E se ele me abordar?
- Eu sempre acho melhor dar uma de difícil.
- E olha só aonde isso o levou.
Mikhail se serviu mais um pouco de champanhe, mas não disse mais nada.
- Tem algo que queira me dizer? - perguntou Gabriel.
- Acho que lhe devo congratulações.
- Pelo quê?
- Ora, vamos, Gabriel. Não me faça dizer em voz alta.
- Dizer o quê?
- As pessoas falam, Gabriel, principalmente espiões. E o que se anda dizendo no King Saul Boulevard é que você será o próximo diretor.
- Eu ainda não aceitei.
- Não é o que ouvi. Disseram que é um acordo selado.
- Não é.
- Como queira, chefe.
Gabriel suspirou fundo.
- Quanto Uzi sabe?
- No momento em que assumiu o cargo, Uzi soube que era a segunda opção de todos.
- Eu não planejei isso.
- Eu sei. E suspeito que Uzi também saiba. Mas isso não vai facilitar as coisas quando o primeiro-ministro disser que ele não terá um segundo mandato.
Mikhail ergueu a taça contra a luz e observou as bolhas do champanhe subirem até a superfície.
- No que você está pensando? - indagou Gabriel.
- Em quando estávamos em Zurique, naquele pequeno café perto da Parade-platz. Nós estávamos tentando tirar Chiara de Ivan. Você se lembra desse lugar? Você se lembra
do que me disse naquela tarde?
- Acredito que eu tenha lhe dito para casar com Sarah Bancroft e deixar o Escritório.
- Você tem uma boa memória.
- Aonde você quer chegar?
- Estava apenas imaginando se você ainda acha que eu deveria deixar o Escritório.
Gabriel hesitou antes de responder:
- Eu não faria isso se fosse você.
- Por que não?
- Porque, se eu me tornar diretor, você tem um futuro brilhante à frente, Mikhail. Muito brilhante.
Mikhail passou a mão pela cabeça.
- Preciso raspar.
- Precisa, mesmo.
- Tem certeza de que não vai beber um pouco de champanhe?
- Me dá dor de cabeça.
- Também me dá - repetiu Mikhail, servindo-se.
Antes de sair da suíte, Gabriel instalou um software do Escritório no celular de Mikhail, que o transformava em um transmissor contínuo e encaminhava todas as chamadas,
e-mails e mensagens em tempo real para os computadores da equipe. Então, desceu para o saguão e ficou alguns minutos buscando rostos familiares na multidão de bem
lubrificados homens do petróleo.
Do lado de fora, a tempestade vespertina havia cessado, mas alguns flocos grandes caíam preguiçosamente sob as luzes dos postes. Gabriel se dirigiu para o oeste
da cidade por uma sinuosa rua de lojas conhecida como Stroget até alcançar a Rádhuspladsen. Os sinos da torre do relógio soavam seis horas. Ele se sentiu tentado
a aparecer no Hotel Imperial, situado a pouca distância da praça, à beira dos Jardins de Tivoli. Em vez disso, caminhou até um prédio residencial despretensioso
situado em uma rua de nome pronunciável apenas pelos dinamarqueses. Quando entrou no pequeno apartamento no segundo andar, encontrou Keller e Lavon debruçados sobre
um notebook. De seus alto-falantes vinha o som de três homens falando baixo em russo.
- Você já descobriu quem é aquele homem? - perguntou Gabriel.
Lavon balançou a cabeça.
- É curioso, mas esses rapazes da Volgatek não são muito de falar nomes.
- Não diga.
Lavon estava prestes a responder, mas se deteve ao som de uma das vozes, um murmúrio baixo, como se a pessoa estivesse parada diante de uma cova.
- Esse é o nosso cara - informou Lavon. - Ele sempre fala assim. Como se presumisse que alguém está ouvindo.
- E alguém está ouvindo.
Lavon sorriu.
- Mandei uma amostra da voz dele para o King Saul Boulevard e lhes pedi que a passassem pelos bancos de dados.
- E...?
- Nenhuma correspondência.
- Mande a amostra para Adrian Carter, em Langley.
- E se Carter pedir uma explicação?
- Minta.
Nesse momento, os três executivos russos do petróleo explodiram em uma ruidosa gargalhada. Enquanto Lavon se inclinava para escutar, Gabriel foi lentamente até a
janela e examinou a rua. Estava vazia, exceto por uma jovem que caminhava pela calçada nevada. Tinha a pele de alabastro de Madeline, as maçãs do rosto de Madeline.
A semelhança era tal que, por um momento, Gabriel sentiu-se compelido a correr até ela. Os russos ainda riam. Certamente, pensou, riam-se dele. Respirou fundo para
acalmar o coração retumbante e observou o espectro de Madeline passar abaixo. Então, a escuridão a reivindicou para si e a mulher sumiu.
43
COPENHAGUE
O fórum se deu no Bella Center, um horrendo centro de convenções de vidro e metal que parecia uma gigantesca estufa vinda do espaço sideral. Um grupo de repórteres
estava parado do lado de fora, tremendo, atrás de uma faixa amarela. A maioria dos executivos que chegava tinha o bom senso de ignorar as provocações gritadas por
eles, mas não Orlov. Ele parou para responder a uma pergunta sobre o repentino aumento no preço do petróleo ao redor do mundo, do qual havia extraído lucros tremendos,
e logo se viu discorrendo sobre assuntos que iam das eleições britânicas até a repressão de movimentos pró-democracia executada pelo Kremlin.
Gabriel e a equipe ouviam cada palavra, pois Mikhail estava parado ao lado de Orlov, à vista das câmeras, segurando o celular. Inclusive, foi Mikhail quem deu um
fim à coletiva de imprensa improvisada, segurando na manga do casaco de Orlov e puxando-o em direção à porta aberta do centro de convenções. Mais tarde, uma repórter
britânica comentaria o fato dizendo que era a primeira vez que ela via qualquer pessoa - “Qualquer pessoa!” - ousar tocar um dedo que fosse em Viktor Orlov.
Uma vez do lado de dentro, o ex-oligarca agiu como um furacão. Ele foi a todos os debates da manhã, visitou todos os estandes no andar de exposições e apertou cada
mão estendida, até de homens que o odiavam.
- Este é Nicholas Avedon - dizia em alto e bom som. - Nicholas é meu braço direito e meu braço esquerdo. É meu norte.
O almoço foi “social” - assim Orlov chamou a refeição sem lugares marcados - e não havia álcool nem carne de porco, em respeito aos muitos delegados muçulmanos.
Orlov e Mikhail passaram pelo bufê sem comer nada e prosseguiram para o primeiro debate da tarde, uma discussão sombria sobre as lições aprendidas com o desastroso
derramamento de óleo no golfo do México. Gennady Lazarev também estava presente, duas fileiras atrás do ombro direito de Orlov.
- Ele está rondando - Orlov murmurou para Mikhail - como um assassino. É só uma questão de tempo até que saque a arma.
O comentário foi perfeitamente audível no pequeno apartamento da rua de nome impronunciável, e o sentimento expresso era compartilhado por Gabriel e o resto da equipe.
Na verdade, graças à câmera pendurada no pescoço de Yossi, eles tinham as fotografias para comprovar. Durante a manhã, Lazarev manteve uma distância segura. Mas
agora, à medida que a tarde avançava, ele se aproximava cada vez mais do alvo.
- É como um jato em circuito de espera - comentou Lavon. - Ele está só esperando a torre dar a autorização para o pouso.
- Não sei se as condições climáticas irão permitir - respondeu Gabriel.
- Quando você acha que vai haver uma brecha?
- Aqui - respondeu Gabriel, apontando para o último item do cronograma do primeiro dia. - É aqui que o pegaremos.
Isso significava que Gabriel e a equipe seriam forçados a aguentar mais duas horas do que Christopher Keller havia descrito como “blá-blá-blá de petróleo”. Houve
um discurso profundamente tedioso de um ministro do governo indiano sobre as necessidades futuras de energia do segundo país mais populoso do mundo. Depois, veio
uma fala repreensiva do novo presidente francês sobre taxação, lucro e responsabilidade social. Por fim, ocorreu um debate extremamente sincero sobre os perigos
ambientais da técnica de extração conhecida como fraturamento hidráulico. Não era de se admirar que Gennady Lazarev não estivesse presente. Via de regra, as companhias
de petróleo russas viam o meio ambiente como algo a ser explorado, não protegido.
Ao término, os delegados enfileiraram-se nas escadas rolantes para a galeria superior do centro, onde haveria um coquetel de recepção. Lazarev tinha chegado cedo
e falava com dois executivos do petróleo iranianos. Orlov e Mikhail pegaram uma taça de champanhe cada e se misturaram a um grupo de brasileiros animados. Orlov
estava de costas para Lazarev, que, no entanto, encontrava-se no campo de visão de Mikhail e o viu se separar dos iranianos e começar a andar lentamente até o outro
lado da sala.
- Agora pode ser uma boa hora para dar uma volta, Viktor.
- Até onde?
- Até a Finlândia.
Orlov, um hábil ator de coquetel, tirou o telefone do bolso do paletó e levou-o ao ouvido. Franziu a testa, como se não estivesse escutando direito, e se afastou
apressado, em busca de um lugar silencioso.
Na ausência de Orlov, Mikhail começou uma séria discussão com um dos brasileiros sobre oportunidades de investimento na América Latina. Mas, dois minutos depois,
percebeu que um homem estava parado às suas costas. Sabia disso porque o cheiro forte da colônia dele havia tomado conta do ambiente. Também sabia porque podia ver
o brasileiro desviando o olhar a todo momento.
Ao se virar, deparou com o rosto que tinha adornado a parede da casa segura em Grayswood. Seu treinamento e sua experiência lhe permitiram reagir com um olhar vazio
e nada mais.
- Perdoe-me pela interrupção - disse o homem em inglês com sotaque russo mas gostaria de me apresentar antes que Viktor volte. Meu nome é Gennady Lazarev. Eu sou
da Volgatek Óleo e Gás.
- Eu sou Nicholas - falou Mikhail, apertando a mão estendida. - Nicholas Avedon.
- Eu sei quem você é - afirmou Lazarev com um sorriso. - Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.
A conversa que se seguiu durou um minuto e 27 segundos. A qualidade da captação de áudio era bastante cristalina, sem levar em conta o rumorejo de fundo do coquetel
e um som de bate-estaca que a equipe mais tarde identificou como o coração de Mikhail. O próprio coração de Gabriel batia em ritmo parecido enquanto ele escutava
a gravação cinco vezes do início ao fim. Agora, ao apertar PLAY para ouvi-la de novo, parecia que sua pulsação havia sumido.
“Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.” “Verdade? Por quê?”
“Porque nós temos observado algumas ações que você vem tomando com o portfólio de Viktor e estamos muito impressionados.”
“Nós, quem?”
“A Volgatek, é claro. De quem eu poderia estar falando?”
“O ambiente de negócios da Rússia é bem diferente do ocidental. Pronomes podem ser enganosos.”
“Você é bastante diplomático.”
“Tenho que ser: trabalho para Viktor Orlov.”
“Às vezes parece que é Viktor quem trabalha para você.”
“As aparências enganam, Sr. Lazarev.”
“Então os rumores não são verdadeiros?”
“Que rumores?”
“De que você tomou conta das operações cotidianas de Viktor? De que Viktor não é mais do que um nome e uma gravata extravagante?”
“Viktor ainda é o mestre estrategista. Eu sou apenas quem aperta os botões e aciona as alavancas.”
“Você é bastante leal, Nicholas.”
“Até o fim.”
"Aprecio isso nas pessoas. Eu sou leal também.”
“Só que não a Viktor.”
“Você e Viktor claramente já falaram sobre mim.”
“Apenas uma vez.”
"Imagino que ele não tivesse nada de bom a dizer a meu respeito.”
“Ele disse que você é muito inteligente.”
“Foi um elogio?”
“Não.”
“Viktor e eu tivemos nossas diferenças, não posso negar. Mas isso é passado. Sempre respeitei a opinião dele, especialmente no que diz respeito a pessoas. Ele sempre
foi um bom caçador de talentos. Foi por isso que eu quis conhecer você. Tenho uma ideia que gostaria de discutir.”
“Eu direi a Viktor que você deseja falar com ele.”
“Não é uma ideia para Viktor Orlov. É uma ideia para Nicholas Avedon.”
“Eu sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, Sr. Lazarev. Quando o dinheiro de Viktor está envolvido, não existe Nicholas Avedon.”
“Isso não tem nada a ver com o dinheiro de Viktor. É sobre o seu futuro. Gostaria de alguns minutos do seu tempo antes que você deixe Copenhague.” “Temo que minha
agenda esteja um pesadelo.”
“Tome meu cartão, Nicholas. Meu celular pessoal está escrito no verso. Prometo que farei seu tempo valer a pena. Não me decepcione. Não gosto de ser desapontado.”
Gabriel apertou o ícone de STOP e olhou para Lavon, que disse:
- Parece que você o pegou.
- Talvez. Ou Gennady é que nos pegou.
- Um encontro não vai doer.
- Pode doer. Na verdade, pode doer bastante.
Gabriel voltou ao início do áudio e apertou PLAY mais uma vez. “Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você”
Ele apertou STOP.
- Figura de linguagem - comentou Lavon. - Nada mais do que isso.
- Você tem certeza disso, Eli? Cem por cento de certeza?
- Tenho certeza de que o sol vai nascer amanhã de manhã e que se porá à noite. E estou razoavelmente confiante de que Mikhail sobreviverá a um drinque com Gennady
Lazarev.
- A menos que Gennady sirva ponche de polônio.
Gabriel segurou o mouse, mas Lavon deteve sua mão.
- Viemos a Copenhague para realizar esse encontro. Chegou a hora.
Gabriel pegou o telefone e discou o número do celular de Mikhail. Ele pôde
ouvir pelos alto-falantes do notebook, assim como o som da voz do russo ao atender.
- Amanhã à noite - avisou Gabriel. - Controle o local o máximo possível. Sem surpresas.
Gabriel desligou e escutou Mikhail telefonar para Lazarev, que atendeu prontamente.
- Fico muito feliz que tenha ligado.
- Como posso ajudá-lo, Sr. Lazarev?
- Jantando comigo amanhã à noite.
- Tenho um compromisso com Viktor.
- Invente uma desculpa.
- Onde?
- Acharei algum lugar fora da rota.
- Não pode ser muito fora da rota, Sr. Lazarev. Não posso ficar longe por mais de uma hora.
- Que tal às sete?
- Sete está bom.
- Mandarei um carro buscá-lo.
- Estou no Hotel d'Angleterre.
- Sim, eu sei - disse Lazarev antes de desligar.
Gabriel mudou a fonte de áudio do celular de Mikhail para o transmissor no quarto de Lazarev, no Imperial.
Os três russos riam descontroladamente. Com certeza, pensou Gabriel, riam dele.
44
COPENHAGUE
O segundo dia do fórum foi uma reprise desgastada do primeiro. Mikhail permaneceu lealmente ao lado de Orlov durante todo o tempo, com o sorriso exagerado de um
homem que está prestes a cometer adultério. No coquetel, mais uma vez agarrou-se à calorosa recepção dos brasileiros. Eles pareceram bem desapontados com sua recusa
para juntar-se a eles e farrear pelas boates mais animadas de Copenhague. Ao se despedir, tirou Viktor das garras do ministro do petróleo cazaque e o conduziu para
a limusine alugada. Esperou até que estivessem a poucos quarteirões do D'Angleterre para dizer que não tinha ânimo para jantar. Falou num tom de voz alto o bastante
para que fosse ouvido por qualquer transmissor dos russos que pudesse estar por perto.
- Qual é o nome dela? - perguntou Orlov, que já sabia dos planos de Mikhail para aquela noite.
- Não é isso, Viktor.
- É o quê, então?
- Estou com uma dor de cabeça avassaladora.
- Espero que não seja nada sério.
- Tenho certeza de que é apenas um tumor cerebral.
Já no quarto, Mikhail fez algumas ligações para Londres, apenas para manter o disfarce e mandou um e-mail malicioso para sua secretária, pretendendo mostrar aos
ciberdetetives do Centro Moscovita que também era humano. Então, tomou banho e escolheu as roupas para a noite, algo que se provou mais desafiador do que imaginava.
Como alguém se veste para trair o falso empregador ao encontrar-se com executivos de uma companhia de petróleo pertencente e gerida pela inteligência russa? Escolheu
um terno simples, cinza soviético, e uma camisa branca com abotoaduras francesas. Dispensou a gravata por medo de parecer demasiado afoito. Além do mais, se a intenção
deles fosse matá-lo, não queria usar uma peça que pudesse se tornar uma arma.
Instruído por Gabriel, deixou todas as luzes do quarto acesas e pendurou o sinal de NÃO PERTURBE na maçaneta antes de ir para o elevador. O saguão era um mar de
delegados. Ao se dirigir à porta, viu Yossi, o repórter recém-contratado pelo inexistente Energy Times, entrevistando um dos executivos iranianos. Do lado de fora,
uma neve granulada caía feito tempestade de areia na Praça Nova do Rei. Um sedã Mercedes Classe E esperava encostado no meio-fio. Ao lado da porta traseira aberta
estava um russo de 2,5 metros que tinha cara de Igor.
- Aonde vamos?- perguntou Mikhail, conforme o carro arrancava em uma guinada.
- Jantar - grunhiu Igor, o motorista.
- Ah - disse Mikhail em voz baixa -, bom saber.
O motorista russo não ouviu o comentário de Mikhail, mas Gabriel, sim. Ele estava ao volante de um sedã Audi, parado em uma rua secundária próxima à entrada do hotel.
Keller se achava ao seu lado, com um tablet apoiado nos joelhos. Na tela havia um mapa de Copenhague, e a posição de Mikhail era representada por uma luz azul piscante,
que, naquele momento, afastava-se rapidamente da Praça Nova do Rei em direção a uma região da cidade pouco conhecida por seus restaurantes. Gabriel deu partida na
ignição sem pressa. Olhou para a luz azul e a seguiu com cautela.
Logo ficou claro que Mikhail e Lazarev não jantariam em Copenhague naquela noite. Isso porque, poucos minutos após deixar o hotel, o grande Mercedes preto se encaminhou
para fora da cidade a uma velocidade que sugeria que Igor estava acostumado a dirigir na neve. Gabriel não precisava acompanhar o ritmo alucinado do carro, pois
a luz azul no tablet de Keller dizia tudo o que ele precisava saber.
Depois de passar por todos os distritos do sul de Copenhague, a luz entrou na via expressa E20 e seguiu para o sul, rumo à região da Dinamarca conhecida como Zelândia.
Quando a rodovia voltou-se para o interior, em direção à antiga cidade mercante de Ringsted, a luz afastou-se dela e foi para a orla marítima. Gabriel e Keller fizeram
o mesmo e se viram em uma pequena estrada de duas pistas, ladeada pelas águas negras da baía de Koge à esquerda e pelos campos nevados à direita. Seguiram na via
por vários quilômetros até depararem com uma série de casinhas de veraneio agrupadas ao longo de uma praia pedregosa assolada pelo vento, onde a luz enfim parou
de se mover.
Gabriel parou no acostamento e aumentou o volume do seu fone. Ouviu a porta do carro se abrindo, passos sobre paralelepípedos cobertos de neve e o ribombar de bate-estaca
do coração nervoso de Mikhail.
O chalé estava entre os melhores do local. Tinha uma entrada de carros em forma de U, uma cobertura de telhas vermelhas para automóveis e um jardim com terraço emoldurado
por sebes podadas e pequenas e robustas muretas de tijolos. Doze degraus levavam a uma varanda com uma balaustrada branca; duas árvores em vasos postavam-se como
sentinelas em cada lado da porta de vidro. Enquanto Mikhail se aproximava, a porta se abriu e Lazarev saiu à varanda para cumprimentá-lo. Vestia um pulôver de gola
alta e um cardigã grosso de estilo nórdico.
- Nicholas! - bradou, como a um parente surdo. - Entre antes que morra de frio. Desculpe-me por arrastá-lo até aqui, mas nunca me senti confortável fazendo negócios
sérios em restaurantes e hotéis.
Ele ofereceu a mão a Mikhail e puxou-o para dentro, como se resgatasse um homem que se afogava. Depois de fechar depressa a porta, pegou o casaco de Mikhail e passou
um momento admirando cuidadosamente o prêmio que havia conquistado. Apesar do poder e da riqueza, Lazarev ainda parecia um cientista do governo. De óculos arredondados
e testa franzida, tinha o ar de um homem que estava eternamente num embate para resolver uma equação.
- Foi difícil escapar de Viktor?
- Nem um pouco - respondeu Mikhail. - Na verdade, acho que ele até ficou feliz de se livrar de mim por algumas horas.
- Vocês parecem se dar muito bem.
- E nós nos damos.
- Mas, ainda assim, você veio - observou Lazarev.
- Senti que devia.
- Por quê?
- Porque, quando um homem como Gennady Lazarev solicita um encontro, é uma boa ideia aceitar.
As palavras de Mikhail obviamente agradavam a Lazarev. Ficou claro que o russo não era imune a bajulação.
- E você não disse a ele aonde ia?
- Claro que não.
- Muito bem. - Lazarev apertou o ombro de Mikhail com a mão delicada. - Venha tomar um drinque. Conhecer o resto do pessoal.
Lazarev acompanhou Mikhail até uma grande sala com janelas para o mar. Dois homens aguardavam em meio ao tipo de silêncio desconfortável que se segue a uma briga.
Um deles servia um drinque no carrinho de bebidas; o outro se aquecia em frente à lareira. O primeiro tinha uma barba espessa por fazer e o cabelo escuro e ralo
penteado bem para trás. Mikhail não pôde ver muito do homem à lareira, pois ele estava virado de costas para a sala.
- Este é Dmitry Bershov - disse Lazarev, apontando para o homem junto ao carrinho. - Tenho certeza de que já ouviu falar dele. Dmitry é meu número dois.
- Sim, é claro - falou Mikhail, apertando a mão do vice. - Prazer em conhecê-lo.
- Igualmente - entoou Bershov.
- E aquele homem ali - continuou Lazarev, indicando a figura à lareira - é Pavel Zhirov. Ele lida com a segurança corporativa e com qualquer outro trabalho sujo
que for necessário. Não é mesmo, Pavel?
O homem se voltou devagar até encarar diretamente Mikhail. Vestia um suéter preto de lã e calças cinza-carvão. Com um cabelo louro grisalho e curto, tinha um rosto
angular dominado por uma boca pequena de aspecto cruel. No mesmo instante, Mikhail percebeu que já tinha visto aquele rosto em uma fotografia de um almoço realizado
na Córsega poucas horas antes do desaparecimento de Madeline. Agora o rosto se aproximava em meio à luz do fogo, esboçando algo parecido com um sorriso.
- Nós nos conhecemos? - perguntou Zhirov, apertando a mão de Mikhail.
- Acredito que não.
- Você me é familiar.
- Ouço isso com frequência.
O sorriso se esvaiu, os olhos se estreitaram.
- Você trouxe um telefone?
- Eu tomo banho com ele.
- Você se importaria em desligá-lo, por favor?
- É mesmo necessário?
- Sim. E tire a bateria também. Todo cuidado é pouco nos dias de hoje.
Trinta segundos depois, a luz azul no tablet havia se apagado. Gabriel removeu o fone de ouvido e franziu a testa.
- O que aconteceu? - perguntou Keller.
- Mikhail foi para o lado escuro da Lua.
- O que isso significa?
Gabriel explicou. Então, tirou o celular do bolso do casaco e ligou para Lavon no apartamento seguro. Eles conversaram por poucos segundos em um hebraico conciso
e operacional.
- O que está acontecendo? - perguntou Keller depois que Gabriel encerrou a ligação.
- Dois capangas do SVR da rezidentura de Copenhague estão vasculhando o quarto de Mikhail no D'Angleterre.
- E isso é bom?
- Isso é muito bom.
- Tem certeza?
- Não.
Gabriel guardou o celular e olhou pela janela, para as ondas impulsionadas pelo vento que banhavam a praia congelada. A espera, pensou. Sempre a espera.
CONTINUA
28
PAS-DE-CALAIS, FRANÇA
Três quilômetros eram sete voltas e meia em um circuito oval. Um corredor de alta performance poderia percorrer a distância em menos de oito minutos; um atleta em
forma que corresse regularmente, por volta de doze. Mas, para um homem de meia-idade de calça jeans e tênis que já havia sido baleado no peito duas vezes, quinze
minutos eram um desafio mais do que justo. Isso se a distância fosse mesmo de 3 quilômetros, pensou. Se fosse algumas centenas de metros mais longa, o prazo poderia
estar além de sua capacidade física.
Felizmente, a estrada era plana. Como Gabriel ia em direção ao mar, havia até certos pontos de leve declive, embora o vento soprasse forte e constante contra seu
rosto. Impulsionado pela adrenalina e pela raiva, disparou num ritmo frenético, mas, depois de aproximadamente 100 metros, estabeleceu-se no que presumia ser a velocidade
necessária para percorrer 1,5 quilômetro em sete minutos. Ele agarrava o telefone com a mão direita, enquanto mantinha a esquerda solta e relaxada. A princípio,
sua respiração era ritmada, mas logo se tornou entrecortada e ele passou a sentir um gosto de ferrugem no fundo da garganta. Aquilo era culpa de Shamron, pensou,
ressentido, marchando sobre o asfalto, sob a chuva que lhe pinicava o rosto. Shamron e seus malditos cigarros.
Depois do prédio comercial, não havia absolutamente nada - nem chalés, nem postes, apenas campos negros, cercas vivas e a linha branca tracejada no limite da estrada
que guiava Gabriel no escuro, mantendo seu progresso ritmado e constante. As lacunas tinham o mesmo comprimento que os traços: duas passadas por traço, duas passadas
por lacuna. Quinze minutos para percorrer 3 quilômetros.
“Senão o quê?”
“Você está perdendo tempo.”
Depois de cinco minutos, sentia as panturrilhas duras como granito e suava sob o peso da jaqueta de couro. Tentou despir-se dela enquanto corria, mas não conseguiu,
então parou por tempo suficiente para tirá-la e arremessá-la numa plantação. Ao retomar a corrida, viu uma fraca aura amarela no horizonte. Então, os dois faróis
de um veículo emergiram no topo de uma pequena subida e vieram em sua direção em alta velocidade. Era uma pequena van cinza-claro bem desgastada. Quando passou por
ele num borrão, Gabriel reparou que o motorista e o carona usavam balaclavas. Os coletores vindo retirar o dinheiro. Ele não se deu o trabalho de se virar: estava
ocupado tentando ignorar a queimação nas panturrilhas e as agulhadas da chuva no rosto. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna. Quinze minutos para percorrer
3 quilômetros.
Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade...
Gabriel completou a pequena subida e imediatamente avistou uma corrente de luzes cintilando ao longe. Eram de Audresselles, pensou, a pequena comuna costeira bem
ao sul do farol do Cap Gris Nez. Ele checou o tempo no celular: oito minutos transcorridos, restando sete. Suas passadas começavam a vacilar e a nuca estava dormente.
Lamentou não cuidar melhor do corpo. Seus pensamentos agora se concentravam principalmente em Viena. Em um carro estacionado à beira de uma praça nevada. Em um motor
que não dava a partida por causa de uma bomba drenando energia da bateria.
Ele olhou para o telefone: nove minutos transcorridos, restando seis. Duas passadas por traço, duas passadas por lacuna.
Gabriel levou o celular à boca.
- Vocês pegaram o dinheiro?
A voz respondeu poucos segundos depois:
- Pegamos. Muito obrigado.
Aguda, sem vida, com a entonação errada. Ainda assim, Gabriel jurava ter detectado um tom de alegria.
- Vocês têm que me dar mais tempo! - gritou ele.
- Isso não é possível.
- Eu não vou conseguir.
- Você tem que se esforçar mais.
Voltou a fitar o celular: dez minutos transcorridos, restando cinco.
Três passadas por traço, três passadas por lacuna.
- Estou indo buscá-la, Leah! - berrou para o vento. - Não gire a chave de novo! Não gire a chave!
- Gabriel passou em disparada por uma vasta mansão, nova mas construída de forma a parecer antiga, e sentiu imediatamente a proximidade do mar. A estrada descia
rumo a ele, e seu cheiro trouxe a Gabriel um gosto de peixe e sal. Uma placa materializou-se no escuro, indicando o acesso à praia 200 metros adiante. Então, Gabriel
viu o Citroen, num estacionamento pequeno e arenoso, virado de frente para ele com os faróis acesos, dando a impressão de observá-lo correr como um louco em sua
direção. Gabriel olhou para o relógio: treze minutos transcorridos, restando dois. Conseguiria com folga. Ainda assim, forçou-se a correr até o fim, marchando sobre
o asfalto, agitando os braços, até achar que o coração iria explodir.
Ansiando por oxigênio, seu cérebro começou a lhe pregar peças. Em um momento, via um Citroen estacionado na praia; no próximo, um Mercedes sedã azul-escuro em uma
praça nevada em Viena. Jurou ter ouvido um motor que não queria dar a partida e, mais tarde, lembrou-se de gritar algo incoerente antes de ser cegado pelo clarão
de uma explosão. A onda de impacto o atingiu com a força de um carro veloz e o derrubou no chão.
Ele ficou deitado no asfalto frio por vários minutos, respirando com sofreguidão, perguntando-se se aquilo teria acontecido de verdade ou se era apenas um sonho.
Parte 2
O ESPIÃO
29
AUDRESSELLES, PAS-DE-CALAIS
Era cedo e o local era remoto, portanto a repercussão foi lenta. Muito mais tarde, uma comissão de inquérito viria a repreender o chefe da gendarmaria local e emitir
uma série de recomendações pomposas que foram completamente ignoradas, pois, na pequena e pitoresca vila de pescadores de Audresselles, recriminações estavam longe
de figurar entre as preocupações das pessoas. Passados muitos meses, os habitantes chocados da comunidade ainda falavam daquela manhã no mais sombrio dos tons.
Uma octogenária, cuja família havia morado na comuna sob a autoridade de um rei inglês, descrevia o incidente como a pior coisa que ela já tinha visto desde que
os nazistas hastearam uma bandeira com suástica sobre o Hôtel de Ville. Ninguém se opunha à sua afirmação, embora alguns poucos a achassem hiperbólica, afirmando
que a comuna já passara por coisas piores. Mas, quando questionados, ninguém era capaz de dar um exemplo.
Audresselles mede apenas 2 mil acres e o impacto da explosão chacoalhou janelas por toda parte. Muitos habitantes, alarmados, ligaram imediatamente para os gendarmes,
mas passaram-se vinte longos minutos até que a primeira viatura chegasse ao pequeno estacionamento adjacente à praia. Lá, descobriram um Citroen C4 engolfado por
um fogo tão quente que não era possível aproximar-se mais do que 30 metros. Apenas dez minutos depois, chegaram os bombeiros. Quando eles conseguiram apagar as chamas,
o carro havia sido reduzido a pouco mais do que uma carcaça enegrecida.
Por razões que jamais ficaram claras, um dos bombeiros resolveu forçar a abertura do porta-malas. Logo que conseguiu, caiu de joelhos e vomitou. O primeiro gendarme
a olhar o conteúdo não se saiu melhor. Mas o segundo, um veterano com vinte anos de serviço, foi capaz de manter a compostura ao confirmar que aquilo eram os restos
de um ser humano. Então, ele acionou pelo rádio a delegacia da região de Pas-de-Calais e comunicou que a explosão do carro na praia era agora um caso de assassinato
- um tanto quanto grotesco, diga-se de passagem.
Ao amanhecer, mais de dez detetives e profissionais forenses trabalhavam na cena do crime, observados pelo que parecia ser metade da cidade. Apenas um morador de
Audresselles tinha algo de útil a relatar: Léon Banville, dono de uma mansão recentemente construída no limite da cidade. Por acaso, ele estava acordado às 5h09,
quando um homem em roupas comuns passou correndo por sua anela gritando em uma língua desconhecida. A polícia logo realizou uma busca na estrada e encontrou uma
jaqueta de couro que parecia servir a um homem de estatura e porte médios. Nada mais de interesse foi encontrado - nem a chave que o homem atirou no campo de cereal,
nem o Volkswagen que ela acionava. O carro desapareceu sem pistas junto com os 10 milhões de euros escondidos em seu porta-malas.
O calor intenso do fogo danificou significativamente os restos mortais na traseira do Citroen, mas não os destruiu por completo. Dessa forma, investigadores forenses
puderam determinar que a vítima era uma jovem mulher, entre 25 e 35 anos, medindo por volta de 1,70 metro. A descrição batia vagamente com a de Madeline Hart, a
garota inglesa que havia desaparecido na Córsega no fim de agosto.
De forma discreta, a polícia francesa restabeleceu contato com seus companheiros do outro lado do canal da Mancha e, dentro de 48 horas, possuía uma amostra de DNA
retirada do apartamento da Srta. Hart em Londres. Um rápido teste de comparação deu resultado positivo. O ministro do Interior da França logo avisou sua contraparte
britânica, para então levar a público a descoberta em uma coletiva de imprensa em Paris, convocada às pressas. Madeline Hart estava morta. Mas quem a assassinara?
E por quê?
O funeral foi realizado na Igreja de St. Andrew, em Basildon, muito próxima à pequena moradia popular onde ela havia crescido. O primeiro-ministro, Jonathan Lancaster,
não compareceu - segundo o assessor de imprensa, Simon Hewitt, sua agenda não o permitira. Quase todos os integrantes do alto escalão do partido estavam presentes,
bem como Jeremy Fallon, que chorava abertamente à beira da cova, inspirando um repórter a observar que, talvez, o chefe de gabinete tivesse um coração, afinal. Ele
falou bem rápido com a mãe e o irmão de Madeline, que pareciam curiosamente deslocados em meio ao bem-vestido grupo de londrinos.
- Sinto muito - disse ele aos dois. - Sinto muito mesmo.
A equipe política do Partido voltou a notar um aumento no percentual de aprovação de Lancaster, mas dessa vez teve a decência de não evocar o nome de Madeline. Com
a popularidade mais em alta do que nunca, o primeiro-ministro anunciou um programa arrebatador para aumentar a eficiência do governo e partiu em uma visita de grande
visibilidade a Moscou, onde prometeu uma nova era nas relações russo-britânicas, especialmente nas áreas de contraterrorismo, finanças e energia. Um punhado de comentaristas
conservadores fez algumas críticas brandas a Lancaster porque ele não se encontrara com os líderes do movimento pró-democracia da Rússia. Porém, a maior parte da
imprensa inglesa aplaudiu sua reserva, escrevendo que, com a economia doméstica ainda frágil, a última coisa de que a Grã-Bretanha precisava era outra Guerra Fria.
Ao retornar a Londres, Lancaster foi questionado a todo momento acerca de suas intenções de convocar uma eleição. Durante dez dias, ele enrolou a imprensa, enquanto
Simon Hewitt orquestrava vazamentos constantes, que deixavam clara a iminência de um anúncio. Dessa forma, quando o primeiro-ministro enfim levantou-se na Câmara
para declarar sua intenção de concorrer a outro mandato, houve um anticlímax. As notícias mais surpreendentes diziam respeito ao futuro de Jeremy Fallon, que planejava
abandonar o alto posto no escritório de Lancaster para tentar um posto seguro no Parlamento.
Houve muitos boatos - nenhum confirmado - de que Fallon seria apontado como ministro do Tesouro, caso Lancaster ganhasse, mas ele negou categoricamente, chegando
a alegar que não tivera nenhuma discussão significativa acerca de seu futuro. Nenhum membro do corpo de imprensa de Whitehall acreditou.
Em novembro, a campanha começou de fato e Madeline Hart mais uma vez se desvaneceu na consciência popular. Isso provou ser uma bênção para a polícia francesa, pois
lhe permitiu conduzir a investigação sem a imprensa britânica espiando por cima de seus ombros. Um dos desdobramentos mais promissores foi a descoberta de quatro
cadáveres em uma casa de veraneio isolada no Lubéron. Os corpos eram de membros conhecidos de uma violenta gangue de Marselha. Três haviam sido mortos com tiros
aparentemente profissionais na cabeça; a quarta, uma mulher, fora atingida duas vezes na parte de cima do tronco.
O mais importante, no entanto, foi a descoberta de uma cela no andar de baixo da casa. Para a polícia, estava claro que Madeline havia sido mantida ali depois do
sequestro na Córsega, provavelmente por um longo período. Ela até poderia ter sido vítima de escravidão sexual, mas tratava-se de uma hipótese improvável, dada a
estirpe das quatro pessoas que tinham estado na casa com ela: criminosos profissionais interessados apenas em dinheiro. Tudo isso levou a polícia a concluir que
a garota inglesa fora mantida como refém em um esquema de sequestro por recompensa, que por algum motivo não fora comunicado às autoridades em nenhum momento.
Mas por que sequestrar uma jovem de uma família da classe operária, criada em uma moradia popular em Essex? E quem havia assassinado os quatro criminosos de Marselha
na casa de veraneio no Lubéron? Essas eram apenas duas questões que os policiais franceses não conseguiam responder, mesmo um mês após a terrível morte de Madeline
na praia de Audresselles. Eles também não tinham nenhuma pista sobre a identidade do homem que fora visto correndo diante da casa de monsieur Banville de madrugada,
minutos antes da explosão do carro.
No entanto, um detetive veterano que resolvera muitos casos de sequestro tinha uma teoria.
- O pobre-diabo era o pagador - disse a seus colegas, confiante. - Ele cometeu algum erro e a garota morreu por seus pecados.
Mas onde ele se encontrava agora? Presumiram que estivesse se escondendo em algum lugar, lambendo suas feridas e tentando entender o que dera errado. Embora jamais
viesse a saber, a polícia francesa estava totalmente certa.
Mas havia muitas outras coisas a respeito daquele homem que ela nem poderia imaginar, nem em seus sonhos mais loucos. Nunca saberia, por exemplo, que ele era Gabriel
Allon, o lendário espião e assassino israelense que vinha operando impune em solo francês desde os 22 anos. Ou que o homem que o resgatara depois da explosão da
bomba era ninguém menos do que Christopher Keller, sobre quem a polícia escutava rumores havia anos. Ou que os dois, antes arquirrivais, dirigiram-se a uma casa
de veraneio à beira-mar, perto de Cherbourg, onde uma equipe de quatro agentes israelenses esperavam, a postos. Keller ficou apenas poucas horas na casa antes de
retornar à Córsega, mas Chiara permaneceu lá por uma semana, esperando que os pequenos cortes no rosto de Gabriel cicatrizassem. Na manhã do funeral de Madeline
Hart, eles foram de carro até o Aeroporto Charles de Gaulle e embarcaram em um voo da El Al rumo a Tel Aviv. Ao cair da noite, estavam mais uma vez no apartamento
na rua Narkiss.
Durante a ausência de Gabriel, Chiara havia levado o quadro e seus materiais para o quarto que deveria ser seu estúdio. Mas, na manhã seguinte, assim que ela saiu
para trabalhar no museu, ele trouxe tudo de volta para a sala de estar. Gabriel postou-se na frente da tela durante três dias, quase sem descanso, desde o amanhecer
até o fim da tarde, quando Chiara voltava para casa. Tentou evitar as memórias do pesadelo na França, mas o objeto da pintura, uma linda jovem banhando-se num jardim,
não o permitia. Madeline estava sempre em seus pensamentos, especialmente no quarto dia, quando ele começou a trabalhar nos ferimentos nas mãos de Suzana. Ali, via
evidências claras das pinceladas luminosas de Bassano. Gabriel as imitara tão imaculadamente que era quase impossível distinguir o original do restauro. De fato,
em sua humilde opinião, ele tinha até mesmo superado o mestre em alguns pontos. Queria poder ser creditado pela alta qualidade do trabalho, mas não seria justo:
era Madeline quem o inspirava.
Gabriel se forçava a fazer uma pausa para o almoço no começo de cada tarde, mas acabava inevitavelmente comendo na frente do computador, vasculhando a internet em
busca de notícias sobre a investigação da morte de Madeline. Sabia que as matérias estavam longe de serem completas, mas parecia que a polícia não tinha conhecimento
de sua participação no caso. Na imprensa britânica, também não achou nenhum indício de que Lancaster estivesse ligado de qualquer forma ao desaparecimento e à morte
de Madeline. Aparentemente, o primeiro-ministro e Jeremy Fallon haviam conseguido o impossível - e agora, segundo as pesquisas, encaminhavam-se para uma vitória
esmagadora. Claro que nenhum dos dois tentou contatar Gabriel. Até Graham Seymour aguardou três longas semanas antes de ligar. Pelo barulho ao fundo, Gabriel imaginou
que ele estivesse usando um telefone público na estação de Paddington.
- Nosso amigo em comum envia seus cumprimentos - disse Seymour, cauteloso. - Ele gostaria de saber se você precisa de algo.
- De uma jaqueta de couro nova - respondeu Gabriel, fingindo estar de melhor humor.
- De que tamanho?
- Médio, com um compartimento secreto para passaportes falsos e uma arma.
- Você pretende me contar como escapou sem ser preso?
- Algum dia, Graham.
Seymour ficou em silêncio enquanto o alto-falante anunciava um trem para Oxford.
- Ele está grato - comentou, afinal, referindo-se a Lancaster de novo. - Sabe que você fez o que pôde.
- Não foi o bastante para salvá-la.
- Você já considerou a possibilidade de eles nunca terem planejado libertá-la?
- Sim, mas, sinceramente, não consigo entender o porquê.
- Você deseja que eu fale algo mais para ele?
- Você pode lembrá-lo de que os sequestradores têm uma cópia do vídeo em que ela confessa o caso.
- Sem a garota, não há história.
Se a intenção do telefonema de Seymour era animar Gabriel, ele tinha falhado miseravelmente. Inclusive, nos dias seguintes, o humor de Allon foi ficando ainda mais
soturno. Pesadelos perturbavam-lhe o sono. Sonhos em que ele corria em direção a um carro que se afastava a cada passada. Sonhos de sangue e fogo. No seu subconsciente,
Madeline e Leah tornaram-se indistinguíveis: duas mulheres, uma que havia amado e outra que havia jurado proteger, ambas consumidas pelo fogo. Ele estava arrasado
pelo luto. Acima de tudo, no entanto, acometia-lhe um sentimento opressor de fracasso. Prometera a Madeline que iria resgatá-la com vida. E ela tinha sofrido uma
morte terrível, amarrada e amordaçada dentro de um caixão flamejante. Gabriel podia apenas esperar que, na hora, ela estivesse sedada e tivesse sido poupada da dor
e do horror.
Mas por que a haviam assassinado? Será que ele tinha cometido algum erro na extração, que teria custado a vida de Madeline? Ou, desde o princípio, a intenção era
matá-la na frente de Gabriel, para que não tivesse nenhuma escolha senão assisti-la queimar? Essa foi uma questão colocada por Chiara uma noite, quando caminhavam
pela rua Ben Yehuda. Gabriel lhe contou sobre a signadora, que vira um inimigo de longa data ao perscrutar sua poção mágica de azeite e água. Não era um inimigo
de Keller, mas de Gabriel.
- Eu nunca soube que você tinha inimigos no submundo do crime de Marselha.
- Não tenho mesmo. Pelo menos não que eu saiba. Mas talvez eles estivessem agindo a mando de alguém quando sequestraram Madeline.
- E quem é esse alguém?
- Alguém que desejava me punir por algo que fiz no passado. Alguém que queria me humilhar.
- A signadora disse mais alguma coisa?
- “Quando ela estiver morta. Então vocês saberão a verdade.”
Poucos minutos após as nove, voltaram para a rua Narkiss, mas Gabriel resolveu ficar um tempo trabalhando na pintura. Colocou um CD de La Bohème no aparelho manchado
de tinta, baixou o volume até apenas um sussurro e seguiu na restauração com uma clareza de propósitos que não tinha conseguido experimentar desde sua volta a Jerusalém.
Ele não ouviu a ópera acabar nem reparou que o céu começava a clarear atrás de si. Por fim, na alvorada, descansou o pincel e ficou imóvel diante da tela, com a
mão no queixo e a cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- Terminou? - perguntou Chiara, observando-o com atenção.
- Não - respondeu Gabriel, ainda encarando a pintura. - Está apenas começando.
30
TIBERÍADES, ISRAEL
Era noite de sabá. Shamron os convidara para jantar em sua casa em Tiberíades. Na verdade, não era um convite, que poderia ser polidamente recusado, mas uma ordem
gravada em pedra, inviolável. Gabriel passou a manhã tomando as providências para enviar a pintura a Julian Isherwood em Londres. Depois, cruzou Jerusalém para buscar
Chiara no Museu de Israel. Enquanto percorriam em alta velocidade o Bab al-Wad - uma espécie de desfiladeiro escalonado que liga Jerusalém à Planície Costeira -,
militantes palestinos na Faixa de Gaza dispararam uma barragem de foguetes que atingiu Ashdod, no norte. O ataque causou apenas pequenos danos, mas complicou o tráfego
na estreita faixa central do país no momento em que milhares de trabalhadores corriam para casa para celebrar o sabá. Era bom estar em casa de novo, pensou Gabriel,
e aguardou uma hora para que os carros andassem.
Quando enfim alcançaram a Planície Costeira, seguiram ao norte para a Galileia, e depois ao leste por uma fieira de aldeias e vilarejos árabes, até chegar a Tiberíades.
A casa cor de mel de Shamron ficava a alguns quilômetros da cidade, num precipício com vista para o lago. Para alcançá-la, era necessário subir por uma estrada bastante
íngreme. Quando Gabriel e Chiara chegaram, foram recebidos por Gilah. Shamron estava em pé na frente da televisão, ao telefone. Seus óculos feios de metal estavam
apoiados na testa e ele pressionava a ponte do nariz com o polegar e o indicador. Se um dia lhe erigissem uma estátua, pensou Gabriel, ela seria esculpida nessa
pose.
- Com quem ele está falando? - perguntou Gabriel a Gilah.
- Com quem você acha?
- Com o primeiro-ministro?
Gilah assentiu.
- Ari acha que devemos retaliar. O primeiro-ministro não está tão certo disso.
Gabriel entregou uma garrafa de vinho a Gilah, um Bordeaux tinto das colinas da Judeia, e beijou-a na bochecha. Era macia como veludo e tinha aroma de lilases.
- Diga a Ari para sair do telefone, Gabriel. Ele vai escutá-lo.
- Prefiro ser atingido diretamente por um daqueles foguetes palestinos.
Gilah sorriu e os conduziu para a cozinha. Perfiladas no balcão, viam-se travessas com alimentos de aspecto delicioso; ela devia ter ficado o dia todo cozinhando.
Gabriel tentou roubar um pedaço da famosa berinjela marroquina de Gilah, mas ela lhe deu um tapa na mão, de brincadeira.
- Quantas pessoas você planeja alimentar?
- Yonatan e sua família deveriam vir, mas ele não consegue sair por causa do atentado.
Yonatan era o filho mais velho de Shamron. Era general das Forças Armadas de Israel e havia boatos de que estava na disputa para se tornar chefe do Estado-Maior.
- Comeremos dentro de poucos minutos - avisou Gilah. - Vá sentar-se um pouco com Ari. Ele sentiu muito a sua falta enquanto você esteve fora.
- Eu estive fora só por duas semanas, Gilah.
- A esta altura da vida, duas semanas são muito tempo para ele.
Gabriel abriu o vinho, serviu duas taças e levou-a para o outro cômodo.
Shamron já não estava mais falando ao telefone, porém ainda olhava fixamente para a televisão.
- Acabam de lançar outra barragem - informou ele. - Os foguetes devem cair em poucos segundos.
- Haverá resposta?
- Agora, não. Mas, se isso continuar, não teremos outra opção senão agir. A questão é: o que fará o Egito, agora que é governado pela Irmandade Muçulmana? Eles vão
ficar de braços cruzados enquanto atacamos o Hamas, que é, no fim das contas, uma ala da Irmandade? Será que o Acordo de Paz de Camp David vai ser mantido?
- O que Uzi disse?
- Neste momento, o Escritório não pode prever a exata reação do líder egípcio caso invadamos Gaza. É por isso que o primeiro-ministro, pelo menos por ora, não está
disposto a agir enquanto chovem foguetes em cima de seu povo.
Gabriel olhou para a tela; bombas começavam a cair. Ele desligou a televisão e levou Shamron para a varanda. Estava mais quente ali do que em Jerusalém, e um vento
suave soprava das colinas de Golã, formando padrões na superfície prateada do lago. Shamron sentou-se numa das cadeiras de ferro batido ao longo da balaustrada e,
instantaneamente, acendeu um de seus cigarros fedorentos. Gabriel entregou-lhe uma taça de vinho e sentou ao seu lado.
- Ele não faz nada pelo meu coração - disse Shamron após beber um pouco do vinho -, mas passei a apreciá-lo em minha velhice. Imagino que me lembre das coisas para
as quais não tive tempo na juventude: vinho, crianças, férias. - Ele fez uma pausa e acrescentou: - Vida.
- Ainda há tempo, Ari.
- Poupe-me das frivolidades. O tempo agora é meu inimigo, filho.
- Então para que desperdiçar mesmo um minuto se envolvendo com política?
- Existe uma diferença entre segurança e política.
- A segurança é meramente uma extensão da política, Ari.
- E se você estivesse aconselhando o primeiro-ministro quanto ao que fazer com relação aos mísseis?
- É o trabalho de Uzi aconselhá-lo, não o meu.
Shamron resolveu mudar de assunto:
- Estive acompanhando as notícias de Londres com grande interesse. Parece que seu amigo Jonathan Lancaster segue rumo à vitória.
- Ele deve ser o político mais sortudo do planeta.
- Sorte é algo importante na vida. Nunca tive muita. Nem você, diga-se de passagem.
Gabriel não respondeu.
- E desnecessário dizer - prosseguiu Shamron - que esperamos fervorosamente que as tendências eleitorais atuais continuem assim e Lancaster ganhe. Se isso acontecer,
temos certeza de que será o político britânico mais pró-sionista desde Arthur Balfour.
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser. - Shamron olhou para Gabriel com seriedade por um momento. - Me desculpe por um dia tê-lo envolvido neste assunto.
- Você conseguiu exatamente o que queria: Lancaster pode muito bem figurar na folha de pagamento do Escritório. Ele está comprometido. É a pior coisa para um líder.
- Comprometido por suas próprias ações, não pelas nossas.
- É verdade - disse Gabriel. - Mas foi Madeline Hart quem pagou o preço.
- Você deve se esforçar para esquecê-la.
- Receio que eu tenha dito algo para os sequestradores que impossibilita isso.
- Você os ameaçou de morte caso a machucassem?
Gabriel assentiu.
- Ameaças de morte são como juras de amor eterno sussurradas no calor da paixão: facilmente feitas, rapidamente esquecidas.
- Não quando eu as faço.
Shamron apagou o cigarro, pensativo.
- Você me surpreende, filho. Mas não a Uzi. Ele previu que você decidiria ir atrás deles, por isso já arquivou o assunto.
- Então seguirei em frente sem ajuda.
- Isso significa que você ficará lá fora sozinho, sem recursos nem proteção do Escritório.
Gabriel ficou mudo.
- E se eu o proibisse? Você me obedeceria?
- Sim, Abba.
- É mesmo? - perguntou Shamron, surpreso.
Gabriel aquiesceu.
- E se eu permitisse a você encontrar essas pessoas para dar-lhes a justiça que merecem? O que receberia em troca?
- Será que tudo com você tem que ser uma negociação?
- Sim.
- O que você quer?
- Você sabe o que eu quero. - Shamron fez uma pausa. - E o primeiro-ministro também quer.
Ele bebeu um pouco do vinho e acendeu outro cigarro.
- Estamos vivendo em tempos significativos e turbulentos, e os desafios só ficarão mais sérios. As decisões que tomarmos nos próximos meses e anos determinarão o
sucesso ou fracasso da empreitada. Como você pode dispensar a chance de fazer história?
- Eu já fiz história, Ari. Muitas e muitas vezes.
- Então guarde a arma no armário e use o cérebro para derrotar os nossos inimigos. Roube segredos. Recrute espiões e generais como agentes. Confunda-os, frustre-os.
Para enganar, meu filho, farás a guerra.
Gabriel mergulhou no silêncio. Com o cair da noite, o céu acima das colinas estava ficando azul-escuro e já quase não se via o lago. Shamron adorava a vista porque
lhe permitia vigiar inimigos distantes. Gabriel a adorava porque a contemplara ao recitar suas juras matrimoniais para Chiara. Agora, estava prestes a fazer outra
espécie de promessa, que tornaria um velho muito feliz.
- Não tomarei parte de golpes palacianos de nenhum tipo - disse Gabriel, por fim. - Uzi e eu tivemos nossas diferenças, mas nos tornamos amigos.
Shamron sabia que não deveria falar naquele momento. Ele tinha o dom do silêncio, próprio dos interrogadores.
- Se o primeiro-ministro decidir não indicar Uzi para um segundo mandato - prosseguiu Gabriel vou considerar a oferta para me tornar diretor do Escritório.
- Preciso de mais garantias.
- Essas são as únicas que você terá.
- Negociar com sequestradores o deixou afiado.
- De fato.
- Por onde você pretende começar?
- Ainda não decidi.
- Como vai obter dinheiro?
- Achei alguns milhares de euros num barco em Marselha.
- De quem era o barco?
- De um contrabandista chamado Marcel Lacroix.
- Onde ele está agora?
Gabriel respondeu.
- Pobre-diabo.
- Outros o seguirão.
- Apenas tome cuidado para não se juntar a eles. Tenho planos para você.
- Eu disse que iria considerar a proposta, Ari. Ainda não concordei com nada.
- Eu sei. Mas também sei que você jamais me ludibriaria para obter algo que quisesse. Ao contrário de mim, você tem consciência.
- Você também tem, Ari. Por isso não consegue dormir à noite.
- Algo me diz que esta noite eu dormirei bem.
- Não se empolgue - alertou Gabriel. - Ainda tenho que falar com Chiara. Shamron sorriu.
- Qual é a graça?
- De quem você acha que foi a ideia?
- Você é mesmo um filho da mãe sem escrúpulos.
- Alguém tem que ser.
Por onde começar a busca pelos assassinos de Madeline? O lugar mais lógico era procurar entre as organizações criminosas de Marselha. Ele poderia rastrear parceiros
de Marcel Lacroix e René Brossard, observá-los, suborná-los, interrogá-los, machucar alguns deles se necessário, até saber a identidade do homem que chamavam de
Paul. O homem que tinha levado Madeline para almoçar no Les Palmiers no dia em que ela desaparecera. O homem que parecia ter aprendido francês ouvindo CDs de algum
curso de línguas. Mas havia um problema com esse plano. Se Gabriel fosse a Marselha, certamente cruzaria com a polícia francesa. Além disso, àquela altura, o homem
conhecido como Paul já devia
ter desaparecido havia muito tempo. Portanto, decidiu que começaria a busca não pelos agentes do crime, mas pelas duas vítimas. Alguém sabia do caso entre Jonathan
Lancaster e Madeline Hart. E havia passado essa informação para o tal Paul. Achar essa pessoa, calculou, significaria achar Paul.
Mas, antes, Gabriel precisava encontrar outra pessoa. Alguém que seguira a ascensão de Lancaster ao poder. Que conhecia a dinâmica do relacionamento entre Fallon
e o atual primeiro-ministro. Que sabia de todos os podres. Deu com essa pessoa na manhã seguinte, quando lia a cobertura da campanha eleitoral britânica. Seria complicado
e até perigoso. Mas, se conseguisse informações que levassem aos assassinos de Madeline, o risco pessoal valeria muito a pena.
Gabriel passou o resto da manhã preparando um dossiê detalhado. Quando terminou, fez uma pequena mala com duas mudas de roupa e dois conjuntos de identidade. Naquela
noite, voou de Ben Gurion a Paris e, ao meio-dia, estava novamente na Córsega. Ele precisava de mais uma coisa antes de dar início à busca: um cúmplice. Bastante
competente, completamente impiedoso e sem nenhum resquício de consciência. Ele precisava de Christopher Keller.
31
CÓRSEGA
A ilha tinha se transformado desde a última vez que Gabriel a visitara. As praias estavam desertas, havia boas mesas vagas nos melhores restaurantes e as feiras
estavam livres dos europeus seminus do continente que se deslumbravam com as mercadorias, mas raramente abriam suas carteiras. A Córsega voltara a ser dos corsos,
e até o mais melancólico dos moradores agradecia por isso.
Porém, muitas outras coisas continuavam iguais. O mesmo cheiro inebriante da macchia saudou Gabriel à medida que ele se embrenhava na ilha; a mesma senhora lhe apontou
com o indicador e o mindinho enquanto ele atravessava a isolada cidadela montanhesca; os mesmos dois guardas menearam a cabeça ameaçadoramente quando ele adentrou
a propriedade de Don Anton Orsati.
Gabriel seguiu a estrada até ela se tornar de terra batida, então continuou em frente. Ao fazer a curva fechada à esquerda próxima às três oliveiras centenárias,
deparou com o maldito bode de Don Casabianca a bloquear seu caminho.
A expressão do animal se tornou sombria, como se ele lembrasse das circunstâncias do último encontro e agora planejasse dar o troco. Pela janela do carro, Gabriel
pediu com educação para que o bode lhe desse licença. Como a fera empinou o queixo desafiadoramente, ele saiu do automóvel, inclinou-se para a orelha velha e esfarrapada
do bicho e sussurrou uma ameaça muito parecida com a que fizera aos sequestradores de Madeline Hart. Na mesma hora, o bode se virou e bateu em retirada para dentro
dos arbustos da macchia. Ele era um covarde, como a maioria dos tiranos.
Gabriel voltou a entrar no carro e prosseguiu até a casa de Keller. Estacionou na entrada, à sombra de um pinheiro-larício, e bradou uma saudação em direção à varanda,
sem obter resposta. A porta estava destrancada. Gabriel andou de um belo cômodo branco ao outro, mas não encontrou ninguém. Foi até a cozinha e conferiu a geladeira:
nada de leite, carne, ovos; nada perecível. Havia apenas uma cerveja, um pote de mostarda Dijon e uma garrafa de Sancerre de ótima qualidade. Gabriel abriu o vinho
e telefonou para Don Orsati.
Keller tinha viajado a negócios. Europa continental, mas não a França - era o máximo que Anton diria. Se tudo desse certo, Keller estaria de volta à Córsega naquela
mesma noite ou, o mais tardar, na manhã do dia seguinte. O don sugeriu a Gabriel se hospedar na casa de Keller e ficar à vontade, e disse sentir pelo que havia acontecido
“lá no norte”. Keller, obviamente, fizera um relato detalhado.
- E então, o que o traz à Córsega? - perguntou o don.
- Eu paguei uma grande quantia de dinheiro a alguém que não entregou a mercadoria como prometido.
- Uma quantia muito grande.
- O que você faria em meu lugar?
- Para começar, eu jamais teria concordado em ajudar um homem como Jonathan Lancaster.
- Vivemos num mundo complicado, Don Orsati.
- De fato vivemos - disse o don, num tom meio filosófico. - Quanto ao seu problema de negócios, você tem duas opções: pode se esforçar para esquecer o que aconteceu
com a garota inglesa ou punir os responsáveis.
- O que você faria?
- Aqui na Córsega temos um antigo provérbio que diz: um cristão perdoa, um idiota esquece.
- Eu não sou idiota.
- Nem é cristão. Mas não o julgarei por isso.
Orsati pediu a Gabriel que se mantivesse na linha enquanto ele lidava com uma pequena crise. Parecia que um grande carregamento de azeite que ia para um restaurante
em Zurique havia sumido. Gabriel podia ouvir o don gritando com um subalterno em dialeto corso: “Ache o azeite, ou cabeças vão rolar!” Em qualquer outro negócio,
a ameaça poderia ter sido descartada como um mero chilique do supervisor. Mas não na Companhia de Azeite Orsati.
- Onde estávamos? - perguntou o don.
- Você falou algo sobre cristãos e idiotas. E estava prestes a me cobrar um preço alto para pegar Keller emprestado.
- Ele é mesmo o meu empregado mais valioso.
- Por razões óbvias.
Orsati se calou por um momento. Gabriel podia ouvi-lo bebericar algo.
- É importante que isso vá além do sangue - disse o don após um instante. - Você também deve recuperar o dinheiro.
- E se eu conseguir?
- Um pequeno pagamento de tributo ao seu padrinho corso cairia bem.
- Pequeno como?
- Um milhão deve bastar.
- Um milhão é uma quantia bem alta, Don Orsati.
- Eu ia pedir cinco.
Gabriel pensou por um momento e acabou aceitando as condições.
- Mas apenas se eu achar o dinheiro. Do contrário, estou livre para usar Keller a meu bel-prazer, sem custos.
- Fechado. Mas traga-o de volta inteiro. Lembre-se: não dá para ganhar dinheiro cantando.
Gabriel se acomodou na varanda com o Sancerre e o grosso dossiê sobre o funcionamento interno de Downing Street sob o comando de Jonathan Lancaster. Mas, uma hora
depois, já estava ansioso, então ligou para Don Orsati e pediu permissão para caminhar. Ele lhe deu sua bênção e disse a Gabriel onde ele poderia encontrar uma das
armas de Keller. Uma robusta HK 9 mm, guardada na gaveta de uma bela escrivaninha francesa antiga, logo abaixo do Cézanne.
- Mas tenha cuidado - alertou o don. - Christopher ajusta o gatilho para que fique muito leve. Ele tem uma alma sensível.
Gabriel colocou a arma na cintura da calça jeans e partiu pelo caminho estreito, rumo às três oliveiras centenárias. Por sorte, o bode ainda não havia retornado
a seu posto de vigilância, logo Gabriel podia seguir vilarejo adentro sem se aborrecer. Era aquela hora incerta entre o fim da tarde e o começo da noite. As casas
tinham as janelas e portas fechadas e as ruas estavam abandonadas aos gatos e às crianças, que observaram Gabriel com grande interesse. Ele foi até a praça principal,
rodeada por lojas e cafés, que ficava perto de uma igreja. Comprou uma echarpe para Chiara e sentou na cafeteria que parecia menos ameaçadora. Tomou café forte para
amenizar os efeitos do Sancerre e, à medida que o céu escurecia e a brisa esfriava, bebeu vinho tinto corso para amenizar os efeitos do café. As portas da igreja
estavam entreabertas. De dentro, vinha o murmúrio das preces.
Gradualmente, a praça começou a se encher. Rapazes adolescentes estavam montados em ciclomotores na porta da sorveteria; um grupo de homens deu início a uma partida
disputada de boules no centro da esplanada empoeirada. Pouco após as seis, cerca de vinte pessoas, em sua maioria senhoras idosas, desceram as escadas da igreja.
Dentre elas, estava a signadora. Seu olhar recaiu brevemente sobre Gabriel, o descrente; então, ela desapareceu pela porta de sua pequena casa torta. Depois de pouco
tempo, duas mulheres foram chamá-la: uma velha viúva vestida de preto dos pés à cabeça e uma garota de aparência consternada com 20 e poucos anos que, sem dúvida,
estava sofrendo os maléficos efeitos do occhju.
Meia hora mais tarde, as mulheres reapareceram junto a um menino de 10 anos de cabelos encaracolados. Elas se dirigiram à sorveteria, mas a criança se deteve para
observar a partida de boules e foi até Gabriel, segurando um pedaço de papel azul-claro dobrado em quatro. Depositou-o na mesa do café e se afastou às pressas, como
se temesse contrair uma doença. Gabriel desdobrou o papel e, sob a luz evanescente, leu a única linha escrita:
Preciso vê-lo imediatamente.
Gabriel guardou o bilhete no bolso do casaco e continuou sentado por vários minutos ponderando o que fazer. Por fim, deixou algumas moedas sobre a mesa e atravessou
a praça.
Quando bateu à porta, uma voz de taquara rachada o convidou a entrar. Ela estava sentada, sonolenta, numa poltrona desbotada, com a cabeça pendendo para o lado,
como se ainda sofresse da exaustão causada por absorver o mal que contaminara seus últimos visitantes. Apesar dos protestos de Gabriel, insistiu em levantar-se para
cumprimentá-lo. Dessa vez não havia hostilidade em sua expressão, apenas preocupação. A signadora tocou-lhe a face sem dizer nada e olhou nos seus olhos.
- Seus olhos são tão verdes... Você tem os olhos da sua mãe, não é?
- Sim.
- Ela sofreu na guerra, não é mesmo?
- Foi Keller quem disse isso?
- Eu nunca falei com Christopher sobre a sua mãe.
- Sim - disse Gabriel após um momento coisas terríveis aconteceram à minha mãe durante a guerra.
- Na Polônia?
- Sim, na Polônia.
A signadora tomou a mão de Gabriel entre as suas.
- Está quente... Você está com febre?
- Não.
Ela fechou os olhos.
- Sua mãe era pintora como você?
- Sim.
- Ela esteve nos campos? Naquele campo cujo nome veio das árvores?
- Sim, nesse mesmo.
- Eu vejo uma estrada, neve, uma longa fila de mulheres vestidas de cinza, um homem com uma arma.
Gabriel retirou a mão rapidamente. A mulher abriu os olhos com um sobressalto.
- Desculpe-me. Eu não queria perturbá-lo.
- Por que você queria me ver?
- Eu sei por que você voltou.
- E...?
- Quero ajudá-lo.
- Por quê?
- Porque é importante que nada lhe aconteça nos dias que virão. O velho precisa de você. Sua mulher, também.
- Eu não sou casado - mentiu Gabriel.
- O nome dela é Clara, não é?
- Não - respondeu Gabriel, sorrindo. - O nome dela é Chiara.
- Italiana?
- Sim.
- Então a manterei em minhas preces. - Ela indicou a mesa com o azeite e o prato de água ao lado de um par de velas acesas. - Não gostaria de sentar?
- É melhor não.
- Ainda não acredita?
- Eu acredito.
- Por que não se senta, então? Com certeza você não está com medo. Sua mãe deu-lhe o nome de Gabriel por um motivo: você possui a força de Deus.
Gabriel sentiu um peso no coração, como se houvesse uma pedra sobre ele. Queria sair dali naquele mesmo instante, mas a curiosidade o fez ficar. Depois de ajudar
a velha a voltar para sua cadeira, sentou do outro lado da mesa e mergulhou o dedo no óleo. Quando atingiram a superfície da água, as três gotas dividiram-se antes
de desaparecer. A velha assentiu com gravidade, como se seus medos mais obscuros tivessem sido confirmados. Então, pela segunda vez, tomou a mão de Gabriel.
- Você está queimando. Tem certeza de que está se sentindo bem?
- Acabei tomando sol ali no café.
- Na casa de Christopher - disse ela, com ar de sabedoria. - Bebeu de seu vinho. Você traz a arma dele na cintura.
- Continue.
- Você está procurando por um homem, o homem que matou a garota inglesa.
- Você sabe quem é ele?
- Não. Mas sei onde ele está. Escondido ao leste, na cidade dos hereges. Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer - proclamou a signadora com firmeza -, morrerá.
Ela fechou os olhos e, logo depois, começou a chorar suavemente, um sinal de que o mal havia se transportado do corpo de Gabriel para o dela. Em seguida, instruiu
Gabriel a repetir o teste do óleo na água. Dessa vez, o óleo fundiu-se numa só gota. A velha sorriu de um jeito que Gabriel nunca tinha visto.
- O que você vê? - perguntou Gabriel.
- Tem certeza de que quer saber?
- Sim, é claro.
- Vejo uma criança - respondeu ela sem hesitar.
- De quem?
A signadora deu um tapinha na mão de Gabriel.
- Volte para a casa. Seu amigo Christopher voltou para a Córsega.
Quando chegou à casa, Gabriel encontrou Keller parado em frente à geladeira aberta. Ele vestia um terno cinza-escuro, amassado pela viagem, e uma camisa branca desabotoada
na altura do pescoço. Pegou a garrafa de Sancerre pela metade, exibiu-a com uma sacudidela e derramou um bocado numa taça.
- Dia difícil no trabalho, docinho? - perguntou Gabriel. Brutal. - Ele ergueu a garrafa, oferecendo-a. - Servido?
- Já tomei bastante.
- Dá para ver.
- Como foi sua viagem?
- A ida e a volta foram infernais, mas todo o resto correu tranquilamente.
- Quem era ele?
Keller bebeu o vinho sem responder e perguntou a Gabriel por onde ele tinha andado. Quando Gabriel respondeu que fora encontrar a signadora, Keller sorriu.
- Nós ainda vamos transformá-lo em corso.
- Não foi ideia minha - explicou Gabriel.
- O que ela queria lhe dizer?
- Não foi nada. Apenas o abracadabra de costume sobre o vento nos salgueiros.
- Então por que você está tão pálido?
A única resposta de Gabriel foi colocar a arma de Keller cuidadosamente sobre o balcão.
- Pelo que ouvi - disse Keller você vai precisar disso aí.
- O que você ouviu?
- Que você vai partir em uma jornada de caça.
- Você está disposto a me ajudar?
- Francamente - falou Keller, erguendo o copo para a luz -, eu já estava esperando por você há muito tempo.
- Eu tinha que terminar uma pintura.
- De quem?
- Bassano.
- Do estúdio de Bassano, ou de Bassano mesmo?
- Um pouco dos dois.
- Legal.
- Em quanto tempo você estará pronto para partir?
- Tenho que checar minha agenda, mas suspeito que estarei pronto amanhã, logo pela manhã. Mas fique sabendo que Marselha está lotada de policiais no momento. E metade
deles estão procurando por nós.
- É por isso que não chegaremos nem perto de Marselha, pelo menos por ora.
- Então aonde vamos?
Gabriel sorriu.
- Para casa.
32
CÓRSEGA - LONDRES
Eles jantaram no vilarejo, depois Gabriel se acomodou num quarto de hóspedes no andar inferior da casa. As paredes eram brancas, a roupa de cama era branca, a poltrona
e o escabelo eram revestidos de pano de vela. A falta de cor no quarto atrapalhou o seu sono. Naquela noite, Gabriel sonhou que corria por um campo de neve interminável
atrás de Madeline. Quando ela arranhava as costas da mão, o sangue que fluía do machucado era branco.
Pela manhã, tomaram o primeiro voo para Paris e, de lá, voaram para Heathrow. Keller passou pela alfândega com um passaporte francês. Gabriel, que o esperava na
sala de chegadas, achou que aquele era um jeito um tanto quanto ignóbil de um inglês voltar para a sua terra natal. Eles foram para o lado de fora e esperaram vinte
minutos por um táxi, que se arrastou pelo centro londrino, enfrentando tráfego lento e chuva.
- Agora você sabe por que não moro mais aqui - comentou Keller em francês, em voz baixa, enquanto olhava pela janela molhada e via os subúrbios cinzentos de Londres.
- A umidade fará maravilhas por sua pele - respondeu Gabriel na mesma língua. - Você está parecendo um pedaço de couro.
O táxi os deixou no Marble Arch. Gabriel e Keller caminharam uma curta distância pela Bayswater Road em direção a um prédio com vista para o Hyde Park. O apartamento
estava exatamente do jeito que ele o deixara quando partira para a França com o dinheiro do resgate. Até a louça do café da manhã de Chiara ainda estava na pia.
Gabriel largou a mala no quarto principal e pegou uma arma do cofre de chão. Ao olhar para cima, viu Keller parado diante da janela da sala de estar.
- Você consegue ficar sozinho por algumas horas? - perguntou Gabriel.
- Sem problemas.
- Algum plano?
- Acho que vou fazer um passeio de barco pelo Serpentine e dar uma volta por Covent Garden para fazer umas compras.
- Talvez fosse melhor ficar aqui. Não dá para saber quem você pode acabar encontrando.
- Eu sou do Regimento, amorzinho.
Keller não disse mais nada; não era necessário. Por ser um SAS, poderia passar por uma sala cheia de amigos próximos e nenhum deles notaria sua presença.
Gabriel desceu para a rua e fez sinal para um táxi. Vinte minutos depois, passou pelo portão da Downing Street, rumo ao Palácio de Westminster. No seu bolso estava
um único componente do dossiê: um extenso artigo do Daily Telegraph. A manchete dizia
MADELINE HART - AS PERGUNTAS SEM RESPOSTA.
O artigo fora escrito por Samantha Cooke, a principal correspondente do Telegraph que cobria Whitehall e uma das jornalistas mais reverenciadas da Inglaterra. Acompanhava
Jonathan Lancaster desde que ele era um discreto parlamentar de segunda linha e retratou sua escalada numa biografia intitulada O caminho para o poder. Apesar do
título levemente pretensioso, o livro foi bem recebido até pelos concorrentes, que sentiram inveja do adiantamento pago pela editora londrina. Samantha Cooke era
o tipo de repórter que sabia muito mais do que jamais poderia publicar; por isso, Gabriel queria falar com ela o quanto antes.
Ele entrou em contato com a central do Telegraph e pediu que ligassem para seu ramal. A telefonista os conectou sem demora e, após alguns segundos, a jornalista
atendeu. Gabriel suspeitou que ela estivesse ao celular, pois podia ouvir passos e o eco de vozes baixas num lugar com o pé-direito alto - talvez a antessala do
Parlamento, que ficava em frente ao café onde Gabriel estava sentado. Disse a Samantha que precisava de alguns minutos do seu tempo. Prometeu que valeria a pena,
mas não mencionou nomes em momento algum.
- Você sabe quantos telefonemas assim eu recebo diariamente? - questionou ela, com um ar cansado.
- Garanto, Srta. Cooke, que você nunca recebeu uma ligação como esta antes.
Houve silêncio na linha. Ela estava claramente intrigada.
- Do que se trata?
- Prefiro não falar a respeito pelo telefone.
- Ah, é, claro que não.
- Você obviamente está cética.
- Obviamente.
- Seu telefone tem acesso à internet?
- É claro.
- Há alguns anos, um membro muito conhecido da inteligência israelense foi capturado por terroristas islâmicos e interrogado em frente a uma câmera. O vídeo ainda
está circulando pela internet. Assista e me ligue em seguida.
Ele passou um número e desligou. Dois minutos depois, ela telefonou de volta.
- Eu gostaria de encontrá-lo.
- Tenho certeza de que você pode fazer melhor que isso, Srta. Cooke.
- Por favor, Sr. Allon, você poderia me conceder uma audiência?
- Só se você pedir perdão por ter me tratado de forma tão rude agora há pouco.
- Eu ofereço as minhas mais sinceras e humildes desculpas e espero que você possa achar em seu coração uma maneira de me perdoar.
- Está perdoada.
- Onde você está?
- No Café Nero, na Bridge Street.
- Conheço-o bem, infelizmente.
- Em quanto tempo você consegue chegar?
- Dez minutos.
- Não se atrase - disse Gabriel, desligando.
Ela acabou se atrasando, afinal, em seis minutos. Entrou como um furacão com um telefone ao ouvido, o guarda-chuva sacudindo ao vento forte. A maioria dos clientes
no café eram turistas, mas havia três membros juniores do Parlamento sentados ao fundo, bebericando seus lattes. Samantha parou para trocar algumas breves palavras
com eles antes de se encaminhar para a mesa de Gabriel. Tinha cabelos louros na altura do ombro. Por alguns segundos, seus olhos azuis e saltados não se desgrudaram
do rosto do agente.
- Meu Deus - disse ela, por fim. - É você mesmo.
- O que você esperava?
- Chifres, eu acho.
- Pelo menos você é sincera.
- Um dos meus piores defeitos.
- Algum outro?
- Curiosidade.
- Então você veio ao lugar certo. Posso lhe oferecer algo para beber?
- Na verdade - ela olhou em volta -, talvez fosse melhor caminharmos. Gabriel se levantou e vestiu o casaco. Eles caminharam em direção à Tower
Bridge e viraram rapidamente à esquerda no Victoria Embankment. O tráfego da tarde estava lento, mas as multidões que em geral apareciam à margem do rio haviam sido
afastadas pela chuva. Gabriel olhou por cima do ombro para garantir que ninguém os seguira. Voltando-se para a frente, reparou que Samantha o observava como se ele
fosse um espécime em extinção.
- Você está com uma aparência muito melhor do que naquele vídeo - disse ela após um momento.
- Era tudo maquiagem.
Ela riu a contragosto.
- Ajuda?
- Fazer piadas depois de uma coisa daquelas?
Ela assentiu.
- Sim - respondeu Gabriel. - Ajuda.
- Eu a conheci certa vez, sabe?
- Quem?
- Nadia al-Bakari. Quando ela era uma ninguém, uma garotinha saudita que gostava de festas, a filha mimada de Abdul Aziz al-Bakari, o financiador do terrorismo islâmico.
- A repórter encarou Gabriel em busca de alguma reação e pareceu desapontada ao não perceber nenhuma. - É mesmo verdade que foi você quem o matou?
- Zizi al-Bakari morreu devido a uma operação iniciada pelos americanos e seus aliados na guerra global ao terror.
- Mas foi você quem puxou o gatilho, não foi? Você o matou em Cannes, na frente de Nadia, e depois a recrutou para derrubar a rede terrorista de Rashid al-Husseini.
Genial. Genial mesmo.
- Se fosse mesmo genial, Nadia ainda estaria viva.
- Mas a morte dela mudou o mundo. Ajudou a trazer democracia ao mundo árabe.
- E olha só como isso deu certo - comentou Gabriel, soturno.
Eles passaram por debaixo da Hungerford Bridge ao mesmo tempo que um trem chegava ruidosamente em Charing Cross. A chuva ficou mais fraca. Samantha baixou o guarda-chuva
e o guardou na bolsa.
- Estou honrada com seu convite, mas o Oriente Médio não é exatamente a minha praia.
- Não vim falar do Oriente Médio, mas de Jonathan Lancaster.
Ela olhou para cima bruscamente.
- Por que um famoso agente da inteligência israelense viria a uma repórter londrina atrás de informações sobre o primeiro-ministro britânico?
- Deve ser por algum motivo importante - disse Gabriel, evasivo. - Caso contrário, o famoso agente israelense jamais ousaria fazer tal coisa.
- Certamente que não. Mas o famoso agente com certeza tem uma grande quantidade de informações sobre Lancaster ao alcance das mãos. Por que procuraria a ajuda de
uma repórter?
- Ao contrário do que se acredita, não fazemos dossiês pessoais sobre nossos amigos.
- Mentira.
Gabriel hesitou um pouco.
- Este assunto é estritamente profissional, Srta. Cooke. Meu serviço não está envolvido de forma alguma.
- E se eu ajudá-lo?
- Obviamente, eu darei algo em retribuição.
- Uma matéria?
Gabriel assentiu.
- Mas você não pode me dizer qual - deduziu ela.
- Ainda não.
- Seja o que for, é melhor que seja grande.
- Eu sou Gabriel Allon. Só me envolvo com assuntos grandes.
- É verdade.
Samantha parou de andar e olhou para a London Eye, que girava devagar na margem oposta do rio.
- Tudo bem, Sr. Allon, temos um acordo. Talvez você devesse me contar do que se trata.
Gabriel tirou o artigo do Telegraph do bolso e mostrou para ela. Samantha sorriu.
- Por onde quer que eu comece?
Gabriel guardou o papel no casaco. Então, pediu que ela começasse por Jeremy Fallon.
33
LONDRES
Samantha era uma boa repórter, escrevia as matérias colocando seus leitores a par de tudo através da contextualização adequada. Como morara no Reino Unido, Gabriel
já sabia de grande parte do que ouviu. Ele sabia, por exemplo, que Jeremy Fallon havia estudado na University College London e trabalhado como redator publicitário
antes de se juntar à célula política na sede do Partido. Ele descobriu que a organização de campanha era antiquada, dedicada a vender um produto que ninguém, muito
menos o público votante britânico, queria comprar. Sua prioridade inicial foi mudar a forma como o partido fazia suas pesquisas de opinião. Fallon não queria saber
em qual político determinado eleitor votava, mas onde o eleitor fazia compras, a que programas assistia e que sonhos tinha para os filhos. Acima de tudo, queria
saber o que o eleitor esperava do governo.
Silenciosamente, trabalhando longe dos holofotes, Fallon dedicou-se a readaptar as políticas internas do Partido de modo a suprir as necessidades do eleitorado britânico
moderno. Ele partiu em busca do vendedor ideal para levar seu novo produto ao mercado. E o encontrou em Jonathan Lancaster. Com a ajuda de Fallon, Lancaster saiu
vitorioso da disputa pelo posto de líder do Partido. Seis meses depois, os votos carregaram-no para a Downing Street.
- Jeremy teve como recompensa o emprego dos sonhos - disse Samantha. - Jonathan o indicou para o cargo de chefe de gabinete e concedeu-lhe mais poder do que qualquer
outro chefe de gabinete já teve na história da Grã-Bretanha. Jeremy é o guardião da fortaleza de Lancaster, uma espécie de vice-primeiro-ministro. Certa vez, Lancaster
me disse que foi o maior erro que ele cometeu.
- Isso foi dito oficialmente?
- Extraoficialmente - enfatizou ela. - Completamente, totalmente “extra”.
- Se Lancaster sabia que era um erro, por que o cometeu?
- Porque, sem Jeremy, o Partido ainda estaria vagando no deserto político. E Lancaster ainda seria um deputado de oposição secundário e sem importância tentando
fazer seu nome uma vez por semana durante as Perguntas ao Primeiro-Ministro. Além disso, Jeremy é totalmente leal a Lancaster. Tenho plena certeza de que mataria
por ele e se ofereceria para ajudar a limpar o sangue.
Gabriel gostaria de poder dizer que ela estava certa. Em vez disso, apenas continuou caminhando em silêncio e esperou que Samantha retomasse o relato.
- Mas não se tratava só de uma conexão de dívida e lealdade: Lancaster precisava de Jeremy. Realmente acreditava que não poderia governar o país sem ele a seu lado.
- É verdade, então?
- O quê?
- Que Jeremy é o cérebro de Lancaster.
- Na verdade, isso é uma completa besteira. Mas não demorou para que o público passasse a ter essa percepção dos fatos. Até pelas pesquisas do próprio Partido, a
maioria dos britânicos acreditava que era Jeremy quem controlava o governo. - Ela fez uma pausa, pensativa. - Foi por isso que eu fiquei tão surpresa quando vi Jeremy
ao lado de Lancaster no dia em que ele finalmente convocou a eleição.
- Surpresa?
- Pouco tempo antes, um boato sinistro em Whitehall dizia que Lancaster planejava afastar Jeremy da Downing Street.
- Porque ele havia se tornado um risco político?
Samantha assentiu.
- E também porque ele era tão impopular dentro do Partido que ninguém queria trabalhar para ele.
- E por que você não publicou isso?
- Eu não tinha fontes confiáveis o bastante. Alguns de nós temos escrúpulos, sabe?
- Você acha que Jeremy Fallon ouviu esses boatos?
- Não havia como não ouvir.
- Ele e Lancaster discutiram o assunto?
- Eu nunca tive uma confirmação, por isso não escrevi a respeito. Graças a Deus que não o fiz: a esta altura, eu pareceria muito tola.
Eles chegaram à Ponte de Waterloo. Gabriel a segurou pelo cotovelo e a conduziu em direção à passagem do Strand.
- Você o conhece bem? - perguntou ele.
- Jeremy?
Gabriel aquiesceu.
- Não tenho certeza de que alguém o conheça de fato. Eu o conheço profissionalmente, portanto ele me diz coisas que quer que eu escreva no jornal. É um manipulador
filho da mãe, por isso sua atuação no funeral de Madeline Hart foi tão peculiar. Eu jamais imaginaria que Jeremy fosse capaz de derramar uma lágrima sequer. - Ela
fez uma pausa. - Acho que era verdade, afinal.
- O quê?
- Que Jeremy estava apaixonado por ela.
Gabriel deteve-se e se voltou para encarar Samantha.
- Quer dizer que Jeremy Fallon e Madeline Hart tinham um caso?
- Madeline não estava interessada em Jeremy amorosamente - respondeu ela, balançando a cabeça. - Mas isso não a impediu de usá-lo para prosperar na carreira. Ela
escalou os cargos rápido demais, na minha opinião. E eu suspeito que tenha sido tudo obra de Jeremy.
O silêncio caiu sobre eles. Estavam parados na calçada da Galeria Courtauld. Samantha observava o tráfego passar na ponte enquanto Gabriel imaginava por que Fallon
teria apresentado a mulher que amava a Lancaster. Talvez quisesse fazer pressão sobre o homem que estava prestes a arruinar sua carreira política.
- Tem certeza? - perguntou Gabriel.
- De que Jeremy estava apaixonado por Madeline?
Gabriel assentiu.
- Tenho tanta certeza quanto se pode ter sobre algo desse tipo.
- Como assim?
- Eu ouvi isso de diversas fontes em que confio. Jeremy costumava inventar desculpas muito esfarrapadas para contatá-la. Aparentemente, era bem patético.
- E por que você não publicou isso quando ela desapareceu?
- Porque não me pareceu a coisa certa a fazer naquele momento. E agora que ela está morta... - Sua voz se perdeu.
Eles entraram na galeria, compraram duas entradas e subiram até os salões de exposição. Como de costume, não havia quase nenhum visitante. Na Sala 7, pararam em
frente à moldura vazia que rememorava o roubo da obra que era a marca registrada da galeria: o Autorretrato com a orelha cortada, de Vincent Van Gogh.
- Uma pena - lamentou Samantha.
- É - concordou Gabriel. Ele a guiou para o Nevermore, de Gauguin, e perguntou se ela havia se encontrado com Madeline Hart.
- Uma vez - respondeu, apontando para a mulher na tela, como se falasse dela e não de uma mulher morta. - Eu estava trabalhando em uma matéria sobre os esforços
do Partido no sentido de estabelecer uma ligação com os eleitores das minorias. Jeremy me mandou encontrar Madeline. Eu a achei bonita até demais, mas também muito
inteligente. Às vezes parecia me entrevistar, e não o contrário. Parecia que eu estava... - Ela mergulhou no silêncio, como se buscasse a palavra certa. - Parecia
que eu estava sendo recrutada... Para quê, não faço ideia.
Gabriel ouviu passos e, ao virar-se para trás, viu um casal de meia-idade entrar na sala. O homem usava óculos escuros e era calvo, com cabelos apenas nas laterais
da cabeça. A mulher era muitos anos mais nova e segurava um guia do museu aberto na página errada. Eles iam de uma pintura a outra sem dizer nada, parando na frente
de cada tela por apenas alguns segundos antes de se deslocarem mecanicamente para a próxima. Gabriel observou-os entrarem na sala vizinha. Em seguida, desceu com
Samantha para o pátio interno localizado no centro do edifício. Em dias quentes, era um lugar de encontro popular entre os londrinos que trabalhavam nos prédios
de escritórios situados ao longo do Strand. Mas agora, sob a chuva fria, as mesinhas metálicas estavam vazias e a fonte dançante esguichava água com a tristeza de
um brinquedo em uma sala sem crianças.
- Você falou bem de Madeline nas matérias depois de seu desaparecimento comentou Gabriel enquanto eles caminhavam devagar pelo pátio.
- Tudo verdade. Ela era extremamente calma e autoconfiante para alguém com o seu passado. - Samantha franziu a testa, pensativa. - Eu nunca entendi o comportamento
da mãe dela nos dias que se seguiram ao desaparecimento. A maioria dos pais de pessoas desaparecidas fala com a imprensa constantemente. Mas ela, não: fechou o bico
e permaneceu afastada durante todo o processo. O irmão de Madeline, também.
- O que você quer dizer com isso?
- Eu tentei contatar a mãe para escrever a matéria - ela apontou com a cabeça para o pedaço do jornal no bolso de Gabriel -, mas ninguém atendia na casa deles. Em
momento algum. Até que, por fim, fui até a maldita Essex e sentei-me à porta. Um vizinho me disse que eles não eram vistos desde pouco tempo depois do funeral.
Gabriel ficou em silêncio, mas, em sua cabeça, calculava o tempo de viagem entre Londres e Basildon, em Essex, no horário de pico de trânsito noturno.
- Eu falei um bocado - disse Samantha. - Agora é a sua vez. Por que é que o grande Gabriel Allon está interessado numa garota inglesa morta?
- Receio que ainda não possa dizer.
- E vai poder algum dia?
- Depende.
- Sabe - falou ela, provocativa -, só o fato de você estar em Londres fazendo perguntas dá uma bela matéria.
- É verdade. Mas você jamais ousaria publicá-la ou mesmo mencionar a nossa conversa para alguém.
- Por que não?
- Porque isso me impediria de lhe dar uma matéria muito melhor no futuro.
Samantha sorriu e consultou o relógio.
- Eu adoraria passar uma semana falando com você, mas realmente tenho que ir. Amanhã tenho que publicar um artigo.
- Sobre o que você está escrevendo?
- Sobre a Volgatek Óleo e Gás.
- A empresa russa de energia?
- Muito bem, Sr. Allon.
- Eu tento me manter atualizado. Ajuda no meu trabalho.
- Tenho certeza de que sim.
- Qual é a matéria?
- Os ambientalistas e o pessoal do aquecimento global estão aborrecidos com o acordo. Preveem todas as calamidades de costume: colossais derramamentos de óleo, derretimento
das calotas polares, inundação das casas à beira-mar em Chelsea, esse tipo de coisa. Eles não parecem ligar para o fato de que o negócio irá gerar bilhões de dólares
em licenciamentos e trará milhares de empregos essenciais para a Escócia.
- E o seu artigo será imparcial? - perguntou Gabriel.
- Eles sempre são - rebateu ela com um sorriso. - Minhas fontes disseram que o negócio era a menina dos olhos de Jeremy, sua última grande iniciativa antes de deixar
a Downing Street para concorrer ao Parlamento. Tentei falar com ele a respeito, mas Jeremy disse três palavras que eu jamais tinha ouvido saírem de sua boca.
- Quais?
- Nada a declarar.
Ela entregou um cartão de visitas a Gabriel, apertou sua mão e desapareceu pela passagem arqueada que conectava o pátio à ponte. Gabriel esperou cinco minutos antes
de seguir pelo mesmo caminho. Quando ele desembocou na rua, viu o homem e a mulher da galeria tentando chamar um táxi. Passou por eles sem olhar duas vezes e prosseguiu
rumo à Trafalgar Square, onde milhares de manifestantes se dedicavam aos Dois Minutos de Ódio contra o Estado de Israel.
Gabriel se embrenhou na multidão e caminhou lentamente, parando aqui e ali para checar se alguém o seguia. Por fim, uma pancada de chuva divina levou os manifestantes
a correrem atrás de abrigo. Gabriel se juntou a um grupo de artistas e atores pró-Palestina que iam em direção aos bares do Soho, mas, na Charing Cross Road, deixou
o grupo e esgueirou-se para o interior da estação de metrô de Leicester Square. Enquanto descia a escada rolante para o subsolo aquecido, ligou para Keller.
- Precisamos de um carro - disse rapidamente em francês.
- Aonde vamos?
- Basildon.
- Por algum motivo em especial?
- No caminho eu explico.
34
BASILDON, ESSEX
A cidade tinha sido criada após a Segunda Guerra Mundial como parte #*% de um grande plano para reduzir a superpopulação nos assentamentos informais do East End,
em Londres, que haviam sido destruídos por bombas. O resultado foi o que os planejadores urbanos chamaram de Cidade Nova: sem história, sem alma, sem outro propósito
senão abrigar a classe operária. O centro comercial de Basildon era uma obra-prima da arquitetura neossoviética, assim como a moradia popular que se erguia em um
dos lados da cidade, parecendo uma fatia gigante de torrada queimada. A uns 800 metros ao leste estava um grupo de prédios e sobrados dilapidados conhecidos como
Lichfields.
Todas as ruas tinham nomes agradáveis como Avon, Norwich, Southwark, mas o asfalto estava rachado e ervas daninhas tomavam conta das quadras. Algumas poucas casas
tinham jardins gramados, mas, junto à pequenina construção no fim da Blackwater Way, havia apenas uma área de concreto toda quebrada, onde um carro velho costumava
ficar estacionado. O andar de baixo era revestido de chapisco, e o de cima, de tijolo marrom. As três pequenas janelas eram todas acortinadas e estavam às escuras,
e nenhuma luz brilhava sobre a inóspita porta da frente.
- Eles trabalham? - perguntou Keller, enquanto passavam devagar de carro diante da casa pela segunda vez.
- A mãe trabalha algumas horas por semana na farmácia Boots, no centro comercial. O irmão é um bêbado profissional.
- E você tem certeza de que não há ninguém aí dentro?
- Você está vendo algum sinal de presença humana?
- Talvez eles gostem do escuro.
- Ou talvez sejam vampiros.
Gabriel parou numa vaga na rua e desligou o carro. Logo ao lado da janela de Keller, havia um aviso alertando que toda aquela área estava 24 horas por dia sob a
vigilância de um circuito interno de televisão.
- Estou com um mau pressentimento.
- Você acabou de matar um homem por dinheiro.
- Não na frente das câmeras.
Gabriel não disse nada.
- Quanto tempo você pretende ficar lá dentro? - perguntou Keller.
- O quanto for necessário.
- E se a polícia aparecer?
- Seria uma boa ideia você me avisar.
- E se eles me virem aqui?
- Mostre o seu passaporte francês e diga que está perdido.
Gabriel abriu a porta do carro e saiu. Enquanto atravessava a rua, um cachorro começou a latir em algum lugar. Devia ser um muito grande, pois cada som grave e sonoro
ecoava nas fachadas decrépitas dos prédios como tiros de canhão. Por um momento, Gabriel cogitou se deveria voltar. Com certeza essa besta quer a minha garganta,
pensou sombriamente. Ainda assim, atravessou o jardim concretado dos Harts e se postou diante da porta.
Não havia cobertura para se proteger da chuva insistente. Gabriel tentou girar a maçaneta, mas, como previa, a porta estava trancada. Retirou um instrumento fino
de metal do bolso e enfiou-o no trinco. Foram necessários apenas poucos segundos - a bem da verdade, um desconhecido poderia pensar que ele só estava atrapalhado
ao procurar sua chave no escuro. Quando Gabriel tentou de novo, a porta se abriu com suavidade. Pisou no vazio escuro e fechou-a rapidamente. Lá fora, o cão disparava
outra salva de latidos antes de calar-se, por fim. Gabriel colocou a gazua de volta no bolso, pegou uma pequena lanterna e acendeu-a.
Ele se viu parado num hall de entrada apertado. O chão de linóleo estava coberto de correspondência fechada e, à direita, havia vários casacos, impermeáveis ou de
lã barata, pendurados em ganchos. Gabriel revirou os bolsos de cada um - caixas de fósforos, recibos, cartões de visitas - antes de direcionar o feixe de luz para
dentro da sala de estar.
Era um espaço pequeno e claustrofóbico, que não devia ter nem 8 metros quadrados, contendo três poltronas surradas voltadas para uma televisão. No meio da sala,
havia uma mesa baixa com dois cinzeiros quase transbordando de guimbas e, em uma das paredes, estavam penduradas fotografias emolduradas. A menina Madeline correndo
atrás de uma bola num campo ensolarado. Madeline recebendo o diploma da Universidade de Edimburgo. Madeline posando com o primeiro-ministro Jonathan Lancaster em
Downing Street. Havia também uma foto de toda a família Hart em pé, posando infeliz em frente a uma baía cinzenta. Gabriel ficou olhando para as feições largas e
achatadas dos pais de Madeline e tentou imaginar como eles teriam sido capazes de produzir um rosto tão belo quanto o dela. Madeline era um erro da natureza, pensou.
Era filha de um deus diferente.
Gabriel deixou a sala de estar e, passando por uma pequena sala de jantar, entrou na cozinha. A louça suja se empilhava nas bancadas e havia uma poça de água oleosa
na pia. O ar estava tomado pelo cheiro de podridão. Abriu um dos armários no nível do chão e encontrou uma lixeira abarrotada de comida estragada. Havia mais na
geladeira. Ele imaginou o que poderia tê-los motivado a deixar a casa daquela forma.
Voltou para o hall de entrada e subiu as escadas estreitas que levavam ao segundo andar. Eram três quartos: dois pequenos cômodos do lado esquerdo da casa e um maior
à direita, que pertencia à mãe de Madeline. A cama de casal estava bagunçada e uma corrente de vento frio soprava pela janela aberta que dava vista para o pedaço
de terra revolvida que era o quintal. Gabriel abriu a porta finíssima do armário e iluminou o interior. Havia roupas penduradas em cabides, assim como roupas empilhadas
ordenadamente na prateleira de cima. Examinou a cômoda: todas as gavetas estavam lotadas, exceto a primeira da esquerda - onde uma mulher costuma guardar papéis
pessoais e lembranças. Agachando-se, apontou o feixe de luz para debaixo da cama, mas não viu nada além de poeira. Numa das mesinhas de cabeceira, ao lado de um
copo vazio, viu o telefone. Levou-o ao ouvido, mas não escutou o sinal de linha. Apertou o botão de reprodução na secretária eletrônica. Não havia recados.
Gabriel cruzou o corredor e espiou dentro de um dos quartos menores. Apenas as paredes estavam intactas, revestidas com as imagens de costume - celebridades do futebol,
modelos, carros que a pessoa jamais poderia comprar. No ar, pairava um cheiro masculino desagradável que Gabriel tivera a felicidade de não sentir desde que deixara
o Exército. Vasculhou o quarto rapidamente, mas não descobriu nada fora do comum - nada exceto o fato de que não continha nenhum objeto, sequer um papel, com o nome
da criatura que o habitava.
O último quarto era o de Madeline. Não da amante de Jonathan Lancaster, nem da mulher devastada que Gabriel encontrara na França, mas a Madeline que de alguma forma
sobrevivera a uma infância difícil naquela triste casinha. Parecia a Gabriel que ela passara por tudo da mesma forma que pelo cativeiro: com asseio e ordem. Sua
cama fora feita com esmero; a pequena escrivaninha de garota colegial estava pronta para uma inspeção. Sobre ela, havia uma série de livros clássicos - Dickens,
Austen, Forster, Lawrence. Os volumes pareciam ter sido lidos muitas vezes, pois tinham inúmeras passagens sublinhadas e anotações feitas em uma letra miúda e precisa.
Gabriel estava prestes a deslizar um dos livros, Uma janela para o amor, para dentro do casaco, quando o celular vibrou discretamente. Ele atendeu na mesma hora.
- Temos companhia - avisou Keller.
- Quantos?
- Parece ser uma pessoa só, mas não posso afirmar com certeza.
Gabriel abriu as cortinas diáfanas do quarto de Madeline uma fração de centímetro e viu uma mulher caminhando pela Blackwater Way debaixo de um guarda-chuva. Quando
ela passou pelo facho de luz de um poste, ele vislumbrou seu rosto. Era familiar... Então, no instante em que a mulher dobrou na entrada de concreto, Gabriel lembrou:
ela aparecera duas vezes na igreja nas montanhas do Lubéron fazendo o sinal da cruz como se não tivesse esse costume. Por algum motivo, agora inseria uma chave na
porta da casa de Madeline Hart.
Gabriel desligou o telefone e sacou a arma. Sentiu-se tentado a descer as escadas e confrontar a mulher de imediato, mas decidiu que seria melhor esperar. Em algum
momento, pensou, ela revelaria quem era e por que estava ali, de preferência sem nem perceber que o fizera. Esse era sempre o melhor jeito de obter informações -
sem que o alvo soubesse. Como pregava Shamron, era melhor que um espião coletasse dados como um batedor de carteiras, e não como um assaltante.
Gabriel permaneceu imóvel no quarto de Madeline, com o tambor da arma reconfortantemente pressionado contra a própria face, enquanto a mulher entrava e fechava a
porta. Ela emitiu uma única sílaba, que Gabriel não pôde decifrar. Então, veio uma série de pequenos ruídos, sugerindo que a mulher estava pegando a correspondência
espalhada e colocando-a num saco plástico. Em seguida, ela foi para a sala de estar, onde ficou por aproximadamente dois minutos. Depois, entrou na cozinha e emitiu
a mesma sílaba de antes. Gabriel suspeitava que fosse uma vulgaridade em alguma língua como o hebraico, o francês, o italiano ou o alemão. Imaginava que a mulher
também estivesse vasculhando a casa.
Quando os passos da visitante alcançaram o pé da escada, Gabriel foi tomado pela indecisão. Se estivesse certo sobre as intenções da mulher, ela certamente entraria
no quarto de Madeline. Olhou em volta para ver se havia algum lugar para se esconder, mas nada pareceu adequado. O quarto era pouco maior do que a cela na qual Madeline
ficara presa. Conforme os passos da mulher foram se aproximando, Gabriel decidiu que não tinha outra escolha a não ser sair dali. Mas para onde? O banheiro era logo
do outro lado do corredor. Enquanto entrava nele sem fazer nenhum barulho, imaginou o que Shamron pensaria se visse o futuro diretor da inteligência israelense naquela
situação. Ele aprovaria, pensou Gabriel. Na verdade, tinha certeza de que o grande Ari Shamron já havia se escondido em lugares muito mais degradantes profissionalmente
do que o banheiro de uma moradia popular em Basildon.
Deixou a porta um pouquinho entreaberta - não mais que meio centímetro - e segurou a arma com os braços estendidos enquanto a mulher terminava de subir as escadas.
Ela entrou no quarto maior primeiro e, a julgar pelo barulho de gavetas se abrindo e portas batendo, vasculhou-o de cima a baixo. Cinco minutos depois, reapareceu
e passou pelo banheiro sem se deter, aparentemente sem saber que havia uma arma apontada para sua cabeça. Ela vestia o mesmo casaco impermeável amarronzado que estava
usando na França, mas seu penteado era um pouco diferente. Em sua mão esquerda havia uma sacola da Marks & Spencer. Parecia conter não só a correspondência.
Quando ela entrou no quarto de Madeline, a procura subitamente passou a ser violenta. Era uma busca profissional, pensou Gabriel, ouvindo com atenção. Uma busca
agressiva... Ela arrancou roupas, lençóis, colcha, fronha, esvaziou as gavetas no chão. Por fim, ouviu-se um estalido seco, como de madeira, seguido por um denso
silêncio, que foi quebrado pouco depois pela voz da mulher, baixa e calma, do tipo que se usa para reportar notícias a um superior através de um aparelho que transmite
sinais em ondas. Gabriel não compreendia o que ela estava dizendo - ele não entendia bem línguas eslavas -, mas tinha certeza de uma coisa: a mulher falava em russo.
35
BASILDON, ESSEX
O carro da mulher, um Volvo sedã, encontrava-se estacionado em frente do menor prédio de Lichfields, do outro lado da rua. Ela andou direto até ele, segurando a
sacola da Marks & Spencer na mão esquerda com certa dificuldade; devia estar pesada. A direita empunhava o guarda-chuva, que era um mero acessório, pensou Gabriel,
observando-a da janela de Madeline, pois a chuva havia parado. Depois de abrir a porta do automóvel, jogou a sacola no banco do carona e entrou, deixando o guarda-chuva
aberto até que estivesse segura dentro do carro. O motor hesitou um pouco antes de voltar à vida com uma espécie de tosse. Esperou até chegar aos limites da propriedade
para ligar os faróis. Dirigia rápido, mas com cuidado, como uma profissional.
Gabriel deu mais uma olhada na destruição causada pela mulher no quarto de Madeline e apressou-se escada abaixo. Quando chegou à porta de entrada,
Keller já havia manobrado o carro e o esperava na rua. Gabriel entrou depressa e fez um meneio de cabeça, para que seguissem a mulher.
- Mas tenha cuidado: ela é boa.
- Boa como?
- No nível da Central Moscovita.
- Do que você está falando?
- Eu posso estar errado, mas acredito que aquela mulher seja da KGB.
Tecnicamente, não havia mais KGB, é claro; ela fora dissolvida pouco após o colapso do antigo império soviético. A Federação Russa possuía dois serviços de inteligência:
o FSB e o SVR. O primeiro lidava com assuntos internos: contrainteligência, contraterrorismo, a mafiya e os ativistas pró-democracia corajosos ou estúpidos o suficiente
para desafiar os homens que agora governavam a Rússia de dentro dos muros do Kremlin.
O SVR era o serviço secreto russo no exterior. Ele comandava sua rede internacional de espiões do mesmo quartel-general isolado em Yasenevo que servira de escritório
central do Primeiro Diretório Geral da KGB. Os oficiais do SVR ainda o chamavam de Central Moscovita, e não é de se admirar que até os cidadãos russos ainda se referissem
a ele como KGB. E tinham motivos para isso. O Kremlin podia até ter mudado o nome do serviço, mas sua missão permanecia a mesma: penetrar nos países-membros da OTAN
e enfraquecê-los - os Estados Unidos e a Grã-Bretanha estavam no topo da lista.
Mas por que uma agente do SVR seguira Gabriel e Keller até uma antiga igreja nas montanhas do Lubéron? E por que a mesma agente havia vasculhado a casa da família
de uma garota inglesa morta, que fora amante do primeiro-ministro britânico... Que fora sequestrada enquanto passava férias na Córsega... Que morrera queimada no
porta-malas de um Citroen C4 numa praia em Audresselles?
- Não vamos nos precipitar - alertou Keller.
- Eu ouvi muito bem - retrucou Gabriel.
- Você ouviu uma mulher falando russo.
- Não, eu ouvi uma agente do Centro Moscovita revirando um quarto.
Eles seguiam pela A127, rumo a oeste. Eram quase oito horas. Ainda havia engarrafamento nas pistas que iam para o leste, um resquício do horário de rush londrino,
mas no sentido oeste o tráfego fluía depressa. A mulher estava mais ou menos 200 metros adiante, mas Keller não tinha problemas em acompanhar as características
lanternas traseiras do velho Volvo.
- Digamos que você esteja certo - disse ele, olhando diretamente para a frente. - Digamos que a KGB, ou o SVR, ou como diabos você quiser chamar, esteja ligado ao
sequestro de Madeline Hart.
- A esta altura, eu diria que é um fato indiscutível.
- Está certo. Mas qual é a ligação?
- Ainda estou tentando descobrir. Mas, se eu tivesse que chutar, diria que era uma operação deles desde o princípio.
- Operação? - perguntou Keller, incrédulo. - Você está dizendo que os russos sequestraram a amante do primeiro-ministro britânico?
Gabriel não respondeu; ele mesmo ainda não acreditava nisso completamente.
- Você me permitiria lembrá-lo de alguns fatos de destaque? - perguntou Keller.
- Por favor.
- Marcei Lacroix e René Brossard não eram russos e não trabalhavam para o SVR. Ambos faziam parte do crime organizado francês, com extensas fichas criminais em Marselha
e no sul da França.
- Talvez não soubessem para quem estavam trabalhando.
- E quanto a Paul?
- Não sabemos nada sobre ele, a não ser que fala francês como se tivesse aprendido ouvindo CDs de algum curso de línguas... ou assim afirmou o grande Don Anton Orsati
da Córsega.
- Que a paz esteja com ele.
Gabriel bateu com os nós dos dedos no para-brisa e disse:
- Ela está muito na frente.
- Está tudo sob controle.
- Diminua a distância um pouco.
Keller acelerou por alguns segundos, então voltou ao normal.
- Você acha que Paul é russo?
- Isso explicaria o fato de a polícia francesa não ter conseguido associar um nome ao seu rosto.
- Mas por que ele contrataria criminosos franceses para sequestrar Madeline em vez de fazer o trabalho por conta própria?
- Já ouviu falar de uma operação de bandeira falsa? - perguntou Gabriel. - Serviços de inteligência frequentemente conduzem operações que causariam danos políticos
ou diplomáticos caso seu envolvimento direto viesse a público. Às vezes eles se fazem passar por membros de outras agências. Às vezes se fazem passar por coisas
completamente diferentes.
- Como criminosos franceses?
- Você ficaria surpreso.
- Há apenas um problema com a sua teoria.
- Apenas um?
- O SVR não precisa de dinheiro.
- Duvido muito que isso tudo tivesse relação com dinheiro.
- Você entregou duas maletas com 10 milhões de euros.
- Sim, eu sei.
- Se não tinha relação com dinheiro, por que o pagamento?
- A bandeira falsa foi tremulada até o fim - respondeu Gabriel.
Keller silenciou por um instante. Por fim, perguntou:
- E por que eles mataram Madeline?
- Não sei.
- Onde está a família dela?
- Não sei.
- Como os russos ficaram sabendo de Madeline e Lancaster?
- Também não sei.
- Talvez uma pessoa saiba.
- Quem?
- A mulher dirigindo aquele carro - disse Keller, apontando para as lanternas do Volvo.
- É melhor ser um batedor de carteira do que um assaltante.
- O que isso significa?
- Diminua a distância - ordenou Gabriel, batendo de novo com os nós dos dedos no vidro. - Ela está muito à frente.
A mulher passou por baixo do anel rodoviário M25, acelerou ao longo de uma paisagem de fazendas e campos e, então, entrou nos subúrbios de Londres, que, após trinta
minutos, deram lugar aos bairros do East End e, por fim, aos prédios comerciais do centro financeiro. De lá, passou pelo Soho e por Holborn em direção a Mayfair,
parando no meio-fio de um movimentado trecho da Duke Street, ao sul da Oxford Street.
Depois de ligar o pisca-alerta, a mulher saiu do Volvo e foi até um sedã Mercedes estacionado alguns metros adiante. Quando ela se aproximou do carro, o porta-malas
foi aberto, aparentemente por uma pessoa de dentro, pois Gabriel não viu a mulher sequer encostar nele. Ela colocou ali a sacola da Marks & Spencer, fechou-o com
um baque e voltou para o próprio automóvel. Dez segundos mais tarde, saiu vagarosamente da vaga e foi em direção à Oxford Street.
- O que devo fazer? - perguntou Keller.
- Deixe-a ir.
- Por quê?
- Porque quem abriu o porta-malas daquele Mercedes está observando para ver se alguém vai segui-la.
Keller e Gabriel examinaram a rua. Havia restaurantes dos dois lados, todos atendendo o público turista, e as calçadas estavam lotadas de pedestres. Qualquer um
deles podia estar com a chave do Mercedes.
- E agora? - perguntou Keller.
- Nós esperamos.
- O quê?
- Saberei quando virmos.
- Batedores de carteiras e assaltantes?
- Algo desse tipo.
Keller fitava o Mercedes, mas Gabriel olhava em volta, para o pesadelo gastronômico que era aquela parte da Duke Street: Pizza Hut, Garfunkel's, um lugar chamado
Pure Waffle, o que quer que isso significasse. O requinte da rua era o Bella Italia, franquia de uma rede de restaurantes espalhados pela cidade, e foi sobre ele
que o olhar de Gabriel se fixou.
Um casal de idades muito díspares saíam naquele momento pela porta, supostamente após uma refeição. O homem usava um chapéu à prova d'agua para se proteger da garoa
leve e a mulher olhava para dentro da bolsa como se procurasse alguma coisa. Mais cedo naquele dia, nas salas de exposição da Galeria Courtauld, ela estava segurando
um guia aberto na página errada e ele usava óculos escuros. Agora, não havia óculos de nenhum tipo. Depois de ajudá-la a acomodar-se no banco do carona do Mercedes,
ele contornou o carro e sentou-se ao volante. Quando o motor deu a partida, a rua pareceu tremer. Então, o automóvel disparou com um leve cantar de pneus e cruzou
a Oxford Street no momento em que a luz do semáforo ficou vermelha.
- Boa jogada - disse Keller.
- Concordo.
- Devo tentar segui-lo?
Gabriel balançou a cabeça lentamente. Eles eram bons, pensou. No nível da Central Moscovita.
O Grand Hotel Berkshire não era grandioso nem ficava no charmoso condado de Berkshire, mas no fim de uma fileira de casas eduardianas na West Cromwell Road, entre
uma loja de eletrônicos baratos e um cibercafé suspeito.
Gabriel e Keller chegaram lá à meia-noite. Eles não tinham reserva nem bagagem; estava tudo dentro do flat na Bayswater, que Gabriel presumia que estivesse sob vigilância
dos russos. Pagou em dinheiro por uma estadia de duas noites e disse ao recepcionista noturno que os dois não esperavam visitas e que não queriam interrupções de
nenhuma espécie, nem do serviço de quarto. O funcionário não viu nada de incomum nas instruções de Gabriel. O Grand Hotel Berkshire - ou o GHB, como diziam seus
administradores para abreviar - servia àqueles que tomavam as estradas menos percorridas.
Os aposentos deles eram no quarto e último andar e tinham uma vista da rua própria para um franco-atirador. Gabriel insistiu que Keller dormisse primeiro. Então,
sentou diante da janela com a arma repousada no colo e os pés apoiados no peitoril, enquanto cinco questões se repetiam sem parar na sua cabeça. Por que a inteligência
russa teria sido tão ousada a ponto de sequestrar a amante do primeiro-ministro britânico? Por que o pagamento de resgate, se os russos certamente não estavam atrás
de dinheiro? Por que mataram Madeline? Onde estava sua família? E quanto disso tudo Jonathan Lancaster e Jeremy Fallon sabiam? Respostas satisfatórias fugiam a sua
compreensão. Ele podia elaborar palpites, fazer deduções, mas apenas isso. Precisava bater mais algumas carteiras, pensou - e, se necessário, fazer um ou dois assaltos
também. E depois? Pensou na velha signadora e em suas profecias sobre um antigo inimigo e a cidade dos hereges no leste.
Você não deve pisar lá. Jamais. Se o fizer, morrerá...
Bem nesse instante, um caminhão de entrega de jornais parou em frente a uma loja, do outro lado da rua. Gabriel consultou o relógio. Quase quatro da madrugada, hora
de acordar Keller e de ele mesmo dormir um pouco. Em vez disso, pegou o livro de E. M. Forster, do quarto de Madeline, abriu numa página aleatória e começou a ler:
um jogo complicado estava sendo disputado sem parar na encosta da montanha durante toda a tarde. Lucy não conseguia descobrir do que se tratava e como dividiam-se
os jogadores...
Gabriel fechou o livro e observou o caminhão se afastar na rua escura e úmida. Então compreendeu. Mas como provar? Ele precisava de alguém que entendesse do mundo
obscuro da política e dos negócios russos. Alguém que fosse tão implacável quanto os homens do Kremlin.
Precisava de Viktor Orlov.
36
CHELSEA, LONDRES
Viktor Orlov sempre tivera habilidade com números. Nascido em Moscou t. durante os dias mais sombrios da Guerra Fria, estudou no prestigiado Instituto de Mecânica
de Precisão e Óptica de Leningrado e trabalhou como físico no programa de desenvolvimento de armas nucleares da União Soviética. Por sugestão dos superiores, juntou-se
ao Partido Comunista. Mas, anos mais tarde, em uma entrevista dada a um jornal britânico, alegou nunca ter acreditado de fato naquela empreitada. “Filiei-me ao Partido
por ser a única via disponível para subir na carreira”, disse ele sem nenhum traço de arrependimento. “Suponho que pudesse ter-me tornado um dissidente, mas o gulag
nunca me atraiu muito.”
Quando a União Soviética deu o último suspiro, Orlov não derramou nenhuma lágrima. Na realidade, ficou terrivelmente bêbado de vodca soviética barata e correu pelas
ruas de Moscou gritando: “O rei está morto!” Na manhã seguinte, de ressaca, desvinculou-se do Partido, retirou-se do programa de desenvolvimento nuclear soviético
e jurou que ficaria rico. Em poucos anos, obteve uma fortuna considerável importando computadores, aparelhos e outros bens ocidentais para o mercado russo incipiente.
Mais tarde, usou a fortuna para adquirir a maior companhia estatal de aço da Rússia, além da Ruzoil, a gigantesca siberiana de petróleo, a preço de banana. Viktor
Orlov, antes um físico do governo que tivera de dividir um apartamento com duas outras famílias soviéticas, tornou-se um bilionário consagrado e o homem mais rico
da Rússia. Ele foi um dos primeiros oligarcas, um barão gatuno que construiu a fortuna saqueando as joias da coroa do Estado soviético.
Orlov não pedia desculpas por ter se tornado rico dessa forma. “Se eu tivesse nascido inglês, meu dinheiro poderia ter vindo de forma limpa,” disse ele uma vez a
um entrevistador britânico. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.”
Mas, na Rússia pós-soviética, uma terra sem lei e tomada pelo crime e a corrupção, a fortuna fez de Orlov um alvo. Ele havia sobrevivido a três atentados, e os rumores
sugeriam que, em retaliação, ordenara a morte de vários homens. Porém, a maior ameaça viria do homem que assumira a presidência depois de Boris Yeltsin. Ele achava
que Orlov e os outros oligarcas haviam roubado os bens mais valiosos do país e tinha a intenção de tomá-los de volta. Após se estabelecer no Kremlin, o novo presidente
convocou Orlov e exigiu duas coisas: sua companhia de aço e a Ruzoil.
- E não meta o nariz em política - acrescentou, ameaçador. - Caso contrário, faço você sumir.
Orlov concordou em abrir mão dos interesses no aço, mas não da Ruzoil. O presidente não ficou contente. Logo ordenou que os procuradores abrissem um inquérito de
fraude e suborno contra ele e, dentro de uma semana, tinha um mandado de prisão em mãos. Sabiamente, Orlov voou para Londres, onde se tornou um dos críticos mais
abertos e eficientes do presidente russo.
Por muitos anos, a Ruzoil ficou congelada por lei, além do alcance de Orlov e dos novos senhores do Kremlin. Por fim, ele foi persuadido a ceder em nome de um acordo
secreto para libertar quatro reféns de um negociante de armas russo chamado Ivan Kharkov. Em troca, os britânicos compensaram Orlov tornando-o membro do reino e
concedendo-lhe um breve e muito secreto encontro com Sua Majestade, a Rainha. O Escritório enviou-lhe um bilhete de agradecimento, ditado por Chiara e escrito à
mão por Gabriel. Ari Shamron entregou-o e o queimou assim que Orlov terminou de ler.
- Algum dia eu terei a chance de conhecer esse homem notável pessoalmente?
- Não - respondera Shamron.
Determinado, Orlov entregara seu número mais privado a Shamron, que por sua vez o passara a Gabriel. Ele ligou mais tarde naquela manhã, de um telefone público perto
do Grand Hotel Berkshire, e surpreendeu-se quando o próprio Orlov o atendeu.
- Eu sou uma das pessoas que você salvou ao entregar a Ruzoil - apresentou-se Gabriel, sem mencionar seu nome. - Fui eu que escrevi o bilhete que o velho queimou
quando você terminou de ler.
- Ele é uma das pessoas mais desagradáveis que já conheci.
- Espere até conhecê-lo melhor.
Orlov deu uma risada seca e curta.
- A que devo a honra?
- Preciso de sua ajuda.
- Na última vez que você precisou da minha ajuda, perdi uma companhia de petróleo no valor de pelo menos 16 bilhões de dólares.
- Dessa vez não vai custar nada.
- Estou livre às duas da tarde.
- Onde?
- Número 43 - disse Orlov, e desligou.
O endereço fornecido era da mansão de tijolos vermelhos de Orlov na Cheyne Walk, em Chelsea. Gabriel foi até lá a pé e Keller o acompanhou a uma distância de 100
metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado. A casa alta e estreita era coberta de glicínias. Como a dos vizinhos, era afastada da rua, protegida
por uma cerca de ferro batido. Uma limusine Bentley blindada estava parada do lado de fora, com um chofer ao volante. Logo atrás do carro, havia um Range Rover preto
ocupado por quatro membros da equipe de segurança de Orlov. Todos faziam parte do antigo regimento de Keller: a elite do SAS.
Os guarda-costas observaram Gabriel com óbvia curiosidade enquanto ele seguia pelo caminho no jardim e tocava a campainha. Surgiu uma criada em uniforme engomado
preto e branco. Após averiguar a identidade de Gabriel, conduziu-o por uma escadaria larga e elegante até o escritório de Orlov. A sala era uma réplica exata do
escritório pessoal da rainha no Palácio de Buckingham - exceto por uma TV de plasma gigantesca que exibia notícias e dados do mercado financeiro ao redor do mundo.
Quando Gabriel entrou, Orlov estava parado diante da tela, como que em transe. Como de costume, ele vestia um terno italiano preto e uma gravata de um rosa vivo
com um enorme nó Windsor. Seus cabelos grisalhos, ralos, estavam espetados com gel. Os números se refletiam fracamente em seus óculos da moda e ele não mexia um
músculo, a não ser o do olho esquerdo, que tremia de nervosismo.
- Quanto você ganhou hoje, Viktor?
- Na verdade - disse Orlov, ainda com os olhos fixos na tela -, acho que perdi 10 ou 20 milhões.
- Sinto muito.
- Amanhã é um novo dia.
Orlov virou-se e observou Gabriel por um longo momento antes de estender a mão bem cuidada. Sua pele estava fria e era particularmente macia, como a mão de uma criança.
- Como sou russo, não me choco com facilidade. Mas devo admitir que estou surpreso ao vê-lo aqui no escritório. Achei que nunca iríamos nos conhecer.
- Desculpe-me, Viktor. Eu deveria ter vindo há muito tempo.
- Eu entendo por que não veio. - Orlov sorriu tristemente. - Nós temos algo em comum: fomos alvos do Kremlin. E conseguimos sobreviver.
- Alguns de nós sobreviveram melhor que os outros - disse Gabriel, contemplando a magnífica sala.
- Eu dei sorte. E o governo britânico tem sido bom comigo - enfatizou Orlov por isso não quero fazer nada que aborreça o pessoal de Whitehall.
- Tenho o mesmo interesse.
- Fico feliz por isso. E, então, Sr. Allon, por que não me conta do que se trata sua visita?
- Volgatek Óleo e Gás.
Orlov sorriu.
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
37
CHEYNE WALK, CHELSEA
Viktor Orlov nunca se mostrou relutante em falar sobre dinheiro. Na verdade, raramente falava de qualquer outro assunto. Ele se gabava de pagar 10 mil dólares por
cada um dos ternos e de suas camisas, que eram as melhores do mundo. Dizia que seu relógio de diamantes e ouro estava entre os mais caros já produzidos e, ainda
por cima, possuía o segundo exemplar dele, pois havia destruído o primeiro na Suíça, ao batê-lo contra um pinheiro enquanto esquiava. “Foi burrice minha”, falou
a um tabloide britânico depois da perda multimilionária. “Esqueci de tirar o maldito relógio antes de sair do chalé.”
Seu vinho preferido era o Château Pétrus, o famoso Pomerol que ele bebia como se fosse água. Era um pouco cedo, até para o anfitrião, então tomaram chá. Orlov bebeu
o seu à moda russa, através de um cubo de açúcar preso entre os dentes da frente. Seu braço estava jogado na direção de Gabriel, sobre o encosto de um sofisticado
sofá de brocado, e ele girava os óculos caros pela haste, um gesto que sempre repetia ao falar sobre a Rússia.
Não o país da sua infância ou no qual servira como cientista nuclear, mas o que chegara ao mundo tropeçando, após o colapso da União Soviética. A Rússia sem lei,
bêbada, confusa, perdida. Ao seu povo traumatizado fora prometida uma segurança que iria do berço ao túmulo. Agora, de repente, viam-se obrigados a lutar pela sobrevivência.
Darwinismo social dos mais ferozes. Os fortes transformavam os fracos em presas, os fracos passavam fome e os oligarcas reinavam, soberanos - os novos czares russos,
os novos komissary. Eles marchavam por Moscou em caravanas à prova de balas, cercados por seguranças fortemente armados. À noite, os guarda-costas brigavam uns com
os outros nas ruas.
- Era o Leste Selvagem - disse Orlov, reflexivo. - Era uma loucura.
- Mas você adorava - replicou Gabriel.
- E como não adorar? Nós éramos deuses.
Logo cedo em sua carreira como capitalista, Orlov comandava o império nascente sozinho e com mão de ferro. Mas, depois da aquisição da Ruzoil, percebeu que precisava
de um segundo comandante. O escolhido foi Gennady Lazarev, um brilhante matemático teórico com quem havia trabalhado no programa soviético de armas nucleares. Ele
não sabia nada sobre capitalismo, mas, como Orlov, era bom com números. Lazarev aprendeu sobre os negócios do zero e o ex-oligarca o colocou no comando das operações
cotidianas da Ruzoil. Esse foi, segundo Orlov, o maior erro que ele já cometera em termos empresariais.
- Por quê? - perguntou Gabriel.
- Porque Gennady Lazarev era da KGB. Desde quando trabalhava no programa de armas nucleares.
- Você nunca suspeitou?
Orlov balançou a cabeça.
- Ele era muito bom, e muito leal ao escudo e à lança, que é como os capangas da KGB gostam de definir a si mesmos. Obviamente, Lazarev me traiu, entregando ao Kremlin
pilhas de documentos internos, que os procuradores do Estado mais tarde usaram para montar um caso contra mim. Quando fugi do país, gerenciou a Ruzoil como se fosse
dele.
- Ele o jogou para escanteio?
- Completamente.
- E quando você cedeu a Ruzoil para nos tirar da Rússia?
- Lazarev já estava fora àquela altura, comandando uma nova companhia estatal de petróleo. Aparentemente, o presidente russo escolheu o nome da empresa: Volgatek
Óleo e Gás. Na época, uma piada dizia que o presidente queria chamá-la de “KGB Óleo e Gás”, mas achou que o nome não seria bem aceito no Ocidente.
A Volgatek, continuou Orlov, não deveria atuar na produção doméstica de petróleo, que já se achava estabilizada. Seu único propósito deveria ser expandir a participação
da Rússia na produção internacional, aumentando, assim, o poder e a influência russa na esfera global. Apoiada pelos investimentos do Kremlin, a Volgatek fez compras
pela Europa, adquirindo uma cadeia de refinarias na Polônia, na Lituânia e na Hungria. Então, ignorando objeções dos americanos, assinou um contrato lucrativo de
perfuração com a República Islâmica do Irã, assim como acordos de desenvolvimento com Cuba, Venezuela e Síria.
- Está vendo o padrão? - perguntou Orlov.
- Os acordos são todos em países do antigo império soviético ou em países hostis aos Estados Unidos.
- Correto.
Mas a Volgatek não se contentou com isso, prosseguiu Orlov. A empresa expandiu suas operações para a Europa Ocidental, assinando acordos de refino e distribuição
na Grécia, na Dinamarca e na Holanda. Então, voltou suas atenções para o mar do Norte, onde queria perfurar dois novos campos descobertos nas Ilhas Ocidentais da
Escócia. Os geólogos da Volgatek estimavam que a produção alcançaria cem mil barris por dia, sendo que grande parte dos lucros fluiria diretamente para os cofres
do Kremlin. A companhia recorreu ao Departamento de Energia e Mudanças Climáticas da Grã-Bretanha para obter uma licença. Foi aí que o secretário de Energia pediu
a Viktor que aparecesse em seu escritório para um bate-papo.
- E o que você acha que eu disse?
- Que a Volgatek era um braço do Kremlin, administrada por um ex-membro da KGB.
- E o que você acha que o secretário fez com o pedido da Volgatek para perfurar no mar territorial da Grã-Bretanha?
- Jogou-o dentro do triturador de papel.
- Bem na minha frente - concordou Orlov, sorrindo. - Foi um som muito satisfatório.
- O Kremlin tem conhecimento de que foi você quem sabotou o acordo?
- Não que eu saiba. Mas tenho certeza de que Lazarev e o presidente russo suspeitaram do meu envolvimento. Eles sempre estiveram prontos para acreditar nas piores
coisas em relação a mim.
- E o que aconteceu depois?
- A Volgatek esperou um ano. Então, entraram com um segundo pedido de licença para perfuração. Mas, dessa vez, as coisas eram diferentes. Eles tinham um amigo dentro
de Downing Street, um homem que eles cultivaram durante um ano.
- Quem?
- Prefiro não dizer.
- Está bem, eu digo por você: o homem da Volgatek era Jeremy Fallon, o mais poderoso chefe de gabinete na história da Grã-Bretanha.
Orlov sorriu.
- Talvez devêssemos abrir uma garrafa de Pétrus, afinal.
Eles haviam entrado em águas perigosas. Gabriel sabia, certamente Orlov também, a julgar pelo olho esquerdo contraindo-se em ritmo furioso. Na infância, o tique
o tornara alvo de provocações impiedosas e maus-tratos. Isso o fazia queimar de ódio, e esse ódio o levara ao sucesso. Orlov queria derrotar todo mundo. Tudo por
causa do tique no olho esquerdo.
Agora, o olho estava cravado no cálice de vinho tinto Pomerol. Orlov ainda não tinha bebido. Ele também não havia respondido à pergunta um tanto quanto direta feita
por Gabriel no minuto anterior: “Por que Jeremy Fallon?”
- Por que não ele? - disse o russo, enfim. - Fallon era o cérebro de Lancaster. Lancaster era a marionete de Fallon. Ele puxava a corda e Lancaster acenava. E o
melhor: estava vulnerável a uma aproximação.
- Como assim?
- Ele não tinha onde cair morto. Era mais pobre que rato de igreja.
- Quem o apontou como alvo?
- Disseram-me que a indicação veio da rezidentura do SVR em Londres.
Rezidentura era a palavra usada pelo SVR para descrever suas operações em embaixadas locais. O rezident era o chefe de posto; a rezidentura, o próprio posto. Esse
era um resquício da época da KGB. Assim como a maioria das coisas relacionadas ao SVR.
- Como eles agiram?
- Lazarev e Fallon passaram a se encontrar em todos os lugares errados: festas, restaurantes, conferências, férias. Segundo boatos, Fallon passou um longo fim de
semana na casa de Lazarev em Gstaad e fez um cruzeiro pelas ilhas gregas em seu iate. Eu soube que eles se deram muito bem, mas isso não me surpreende: Gennady consegue
ser um canalha encantador quando quer.
- Mas houve mais do que uma ofensiva charmosa, não é, Viktor?
- Muito mais.
- Quanto?
- Cinco milhões de euros em uma conta bancária anônima na Suíça, cortesia do Kremlin. Tudo limpo. Sem nenhum rastro. O SVR cuidou dos arranjos.
- Quem disse?
- Prefiro não dizer.
- Ora, vamos, Viktor.
- Você claramente tem suas fontes, Sr. Allon, e eu tenho as minhas.
- Pelo menos diga de que lado vêm as suas informações.
- Do Leste - respondeu Orlov, querendo dizer que era de uma de suas muitas fontes em Moscou.
- Prossiga - pediu Gabriel.
Antes, Orlov tomou um pouco de vinho. Então, passou a explicar como a Volgatek havia entrado com um segundo pedido, dessa vez apoiada pelo segundo homem mais poderoso
de Whitehall. Mas o primeiro-ministro ainda estava no mínimo indeciso. O secretário de Energia mantinha-se contrário, mas Fallon o persuadiu a não rejeitar o pedido
de pronto. Isso o manteve tecnicamente vivo, mas por um fio.
- Então - disse Orlov, erguendo o braço em direção ao teto -, o secretário de Estado de repente aprova a licença, Jonathan Lancaster voa a Moscou para brindar com
champanhe no Kremlin e o homem que aceitou 5 milhões de euros está prestes a se tornar o próximo ministro do Tesouro.
- Eu preciso saber da fonte que lhe falou dos 5 milhões.
- Perguntado e respondido - disse o russo secamente.
Gabriel mudou de assunto:
- Qual é o estado atual das relações entre a Volgatek e seus negócios aqui em Londres?
- Como você deve imaginar, estamos em pé de guerra. É bastante parecido com a Guerra Fria: não declarada, mas violenta.
- Como assim?
- Lazarev apresentou ofertas maiores que as minhas em inúmeras aquisições. Para ele é fácil - acrescentou Orlov, ressentido -, pois não está jogando com o próprio
dinheiro. Ele também se diverte muito contratando meus melhores empregados. Joga um bolo de dinheiro... do Kremlin, é claro... e eles vão correndo para os pastos
verdejantes.
- Vocês se falam?
- Não diria que nos falamos. Quando nos encontramos em público, damos um aceno de cabeça polido e trocamos sorrisos rígidos. Nossa guerra se dá nas sombras. Devo
admitir que, ultimamente, Gennady tem me desgastado. E agora ele vai perfurar as águas de um país que passei a amar. Isso me deixa enojado.
- Então talvez você devesse agir.
- Como?
- Ajude-me a acabar com o acordo.
Orlov parou de girar os óculos e encarou Gabriel por um momento.
- Qual é seu interesse no assunto? - perguntou por fim.
- Estritamente pessoal.
- Por que alguém como você ligaria para o acesso de uma companhia de energia russa ao petróleo no mar do Norte?
- É um assunto complicado.
- Não esperaria menos de você.
Gabriel sorriu a contragosto. Então, disse em voz baixa:
- Acredito que o Kremlin tenha chantageado Jonathan Lancaster para obter os direitos de perfuração.
- Como?
Gabriel ficou em silêncio.
- Eu abri mão de uma companhia no valor de 16 bilhões de dólares para tirar você e sua mulher da Rússia - relembrou Orlov. - Acredito que isso me dê direito a uma
resposta. Como o chantagearam?
- Sequestrando a amante de Lancaster, que estava na Córsega.
Orlov nem piscou, então falou:
- Ora, ora, até que enfim alguém reparou.
Eles conversaram até depois do anoitecer. No fim, Gabriel estava confiante de que entendera do que se tratava o jogo na encosta da montanha, mas a divisão dos jogadores
permanecia fora de sua compreensão. Tinha certeza de uma coisa, no entanto: era hora de dar uma palavrinha com Graham Seymour. Ligou de um telefone público da Sloane
Square e confessou ter entrado mais uma vez no país sem assinar o livro de hóspedes. Então, requisitou um encontro. Seymour disse uma hora e um lugar e desligou.
Gabriel colocou o telefone de volta no gancho e começou a andar, com Christopher Keller a 100 metros, certificando-se de que ele não estava sendo vigiado.
38
HAMPSTEAD HEATH, LONDRES
Eles caminharam para a esquina do Hyde Park, embarcaram em um trem da linha Piccadilly com destino à Leicester Square e, então, fizeram a jornada longa e lenta na
Linha Norte até Hampstead. Keller entrou em um pequeno café na avenida principal e ficou esperando enquanto Gabriel caminhava sozinho pela South End Road. Ele adentrou
a charneca em Pryors Field, margeou os lagos de Hampstead e depois subiu a ladeira suave da Parliament Hill. Ao fundo, sob um véu de nuvens e neblina, brilhavam
as luzes do centro de Londres. Graham Seymour admirava a vista de um banco de madeira. Ele estava sozinho, sem contar os dois seguranças de capas de chuva parados
na trilha às suas costas, estáticos como peças de xadrez. Eles desviaram o olhar quando Gabriel passou sem uma palavra e sentou-se ao lado de Seymour. O homem do
MI5 não deu sinal de ter visto Allon chegar. Mais uma vez, estava fumando.
- Você devia parar com isso - disse Gabriel.
- E você devia ter me avisado que ia entrar no país de novo. Eu teria preparado um comitê de recepção.
- Eu não queria um comitê de recepção, Graham.
- Claro que não.
Seymour continuava a contemplar as luzes do centro londrino.
- Você chegou quando?
- Ontem à tarde.
- Por quê?
- Negócios em aberto.
- Por quê?
- Madeline - explicou Gabriel. - Eu vim por causa de Madeline.
Seymour voltou-se para ele pela primeira vez.
- Madeline está morta - disse ele lentamente.
- Sim, Graham, eu sei. Eu estava lá.
- Sinto muito - lamentou-se Seymour após um instante. - Eu não devia ter...
- Deixe isso para lá, Graham.
Os dois ficaram em silêncio. Estavam desconfortáveis por causa da natureza infeliz daquele caso, pensou Gabriel. Ambos haviam entrado no serviço de inteligência
para proteger o país e os cidadãos, e não políticos.
- Você deve ter descoberto algo importante - continuou Seymour. - Ou não teria me chamado.
- Você sempre foi bom, Graham.
- Não o bastante para impedi-lo de entrar em meu país quando bem entende.
Gabriel ficou calado.
- O que você descobriu?
- Acho que sei quem sequestrou Madeline Hart. Mais do que isso: acredito que saiba o porquê.
- Quem a sequestrou?
- KGB Óleo e Gás - respondeu Gabriel.
Seymour virou a cabeça bruscamente.
- Do que você está falando?
- O acordo da Volgatek, Graham. Madeline foi sequestrada para que os russos pudessem roubar o seu petróleo.
Não há pior sentimento para um espião profissional do que saber por intermédio do agente de outro serviço algo que ele mesmo já deveria saber. Seymour passou por
essa desonra com a maior elegância possível, de queixo empinado e cabeça erguida. Então, depois de calcular as consequências cuidadosamente, pediu uma explicação.
Gabriel começou contando tudo o que descobrira sobre Jeremy Fallon. Que ele havia se apaixonado por Madeline Hart. Que não era mais bem-vindo na Downing Street e
estava prestes a ser chutado de lá antes da eleição seguinte. Que aceitara um pagamento secreto de 5 milhões de euros de um tal Gennady Lazarev e depois usara seu
poder para forçar o acordo, passando por cima das objeções do secretário de Energia. Por fim, Gabriel falou da mulher russa que vira primeiro na igreja antiga do
Lubéron e, depois, em uma moradia popular abandonada em Basildon.
- Quem lhe falou sobre Jeremy Fallon e os 5 milhões? - perguntou Seymour.
- Eu gostaria de manter sigilo, se não se importa.
- É claro que sim... Mas quem é a fonte?
Gabriel respondeu com sinceridade. Seymour balançou a cabeça devagar.
- Viktor Orlov é biologicamente incapaz de dizer a verdade - retrucou. - Está sempre oferecendo supostas informações de inteligência sobre a Rússia ao MI6 e nenhuma
delas jamais se prova verdadeira.
- Se não fosse por Orlov, eu e Chiara não estaríamos vivos.
- Isso não significa que tudo o que ele diga seja verdade.
- Ele sabe mais do que qualquer pessoa no mundo sobre o lado B da indústria petroleira russa.
Seymour não pôde discordar.
- E você tem certeza quanto ao homem e à mulher que partiram no Mercedes? - perguntou ele. - Tem certeza que são os mesmos que o seguiram na galeria?
- Graham... - repreendeu Gabriel, desgastado.
- Todos nós cometemos erros.
- Alguns mais que outros.
Seymour atirou o cigarro para longe com raiva.
- Por que só estou ouvindo isso agora? Por que não me ligou na noite passada, quando os estava vigiando?
- E o que você teria feito? Alertado o chefe da seção de contrainteligência russa? Informado o seu diretor? - Gabriel ficou quieto por um momento. - Se eu o tivesse
procurado na noite passada, daria início a uma série de acontecimentos que levariam à destruição de Jonathan Lancaster e seu governo.
- E por que você me procurou agora?
Gabriel não respondeu. Seymour ia acender outro cigarro, mas se deteve.
- Bastante irônico, não?
- O quê?
- Eu peço para você encontrar Madeline Hart para proteger o primeiro-ministro de um escândalo. E agora você me traz informações que podem destruí-lo.
- Não era a minha intenção.
- Você não pode provar uma vírgula, sabia? Nem uma vírgula.
- Eu sei disso.
Seymour suspirou fundo.
- Eu sou o vice-diretor do Serviço de Segurança de Sua Majestade - disse ele, mais para si do que para Gabriel. - Vice-diretores do MI5 não derrubam governos britânicos.
Eles os protegem de inimigos internos e externos.
- E se o governo for sujo?
- Qual não é? - retrucou Seymour prontamente.
Gabriel não respondeu. Ele não estava no clima para um debate relativista sobre ética na política.
- E se eu o persuadisse a ir embora e esquecer o assunto? - perguntou Seymour. - O que você faria?
- Eu atenderia aos seus desejos e voltaria para Jerusalém.
- E faria o quê?
- Parece que Shamron tem planos para mim.
- Algo que você queira me contar?
- Ainda não.
Seymour claramente ficou intrigado, mas deixou passar o assunto por ora:
- E o que você acharia de mim?
- O que eu acho importa?
- Eu me importo - falou Seymour, sério.
Gabriel extravasou tudo o que estava pensando:
- Acho que você passaria o resto da vida pensando no que o SVR está fazendo com todo o dinheiro extraído do mar do Norte. E você acabaria se sentindo culpado por
não ter feito nada para impedir.
Seymour permaneceu em silêncio.
- Nós temos um ditado em nosso serviço, Graham. Para nós, uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Nós somos britânicos: não temos ditados e não gostamos de escândalos. Na verdade, vivemos com medo até do menor passo em falso.
- Para isso você tem a mim.
Seymour encarou Gabriel com seriedade por um instante.
- O que você está sugerindo exatamente?
- Deixe que eu vá à guerra contra a Volgatek em seu lugar. Eu acharei a prova de que eles roubaram seu petróleo.
- E depois?
- Eu o roubarei de volta.
Gabriel e Seymour passaram a meia hora seguinte considerando com cuidado os detalhes do que talvez fosse o acordo operacional menos ortodoxo já feito por dois serviços
ocasionalmente aliados. Mais tarde, ele ficaria conhecido como o acordo da Parliament Hill. Gabriel teria licença para operar em solo britânico como fosse necessário,
desde que sem violência e sem ameaçar a segurança nacional britânica, e se comprometia a repassar qualquer de inteligência decidiria sozinho como usá-la.
O pacto foi selado com um aperto de mãos e Graham partiu, seguido pelos guarda-costas.
Gabriel permaneceu na charneca por mais dez minutos antes de voltar para a avenida principal de Hampstead e buscar Keller. Juntos, pegaram o metrô para Kensington
e andaram até a embaixada israelense. No posto do Escritório, havia apenas um funcionário de baixo escalão, que se sobressaltou quando a lenda entrou pela porta
sem aviso prévio.
Gabriel deixou Keller na antessala e encaminhou-se para a câmara de comunicações seguras, que os veteranos do Escritório - como ele - chamavam de Santo dos Santos.
O número da casa de Shamron em Tiberíades ainda estava no diretório de contatos de emergência. Ele atendeu após o primeiro toque, como se estivesse esperando ao
lado do telefone. Embora a ligação fosse criptografada, os dois conversaram no conciso patoá do Escritório, uma língua que nenhum tradutor ou supercomputador jamais
poderia decifrar. Gabriel explicou rapidamente o que havia descoberto, o que planejava fazer em seguida e do que precisava para prosseguir. Prover os recursos para
uma operação como aquela não era responsabilidade de Shamron. Ele também não tinha autorização oficial para aprová-la. Apenas Uzi Navot poderia dar inicio a uma
empreitada desse tipo - e só após obter a bênção do próprio primeiro-ministro.
E assim estava sendo preparado o terreno para uma disputa que entraria para os anais como uma das piores já vistas na rica história do Escritório. Começou às 22hl8
no horário de Israel, quando Shamron ligou para a casa de Navot dizendo que Gabriel pretendia guerrear contra a KGB Óleo e Gás e que aprovava a operação. Navot deixou
claro que tal iniciativa não estava prevista. Não para um futuro próximo. Nem para nunca. Shamron desligou sem dizer mais nada e telefonou para o primeiro-ministro
israelense antes que Navot o fizesse.
- Por que entrar em guerra com o presidente russo? - perguntou o primeiro-ministro. - Afinal, é só petróleo.
- Não é só petróleo, pelo menos não para Gabriel. Além disso, você quer ou não quer que ele seja o próximo diretor do Escritório?
- Você sabe que sim, Ari.
- Então deixe-o acertar uma antiga conta com os russos, e você o terá.
- Quem vai falar com Uzi?
- Duvido que ele vá me atender.
E, assim, o primeiro-ministro israelense, agindo sob o comando de Ari Shamron, ligou para o diretor do serviço de inteligência no exterior e ordenou que ele aprovasse
uma operação da qual o subordinado não queria nem ouvir falar. Mais tarde, testemunhas afirmariam que houve bate-boca e, segundo boatos, Navot ameaçou renunciar
ao cargo. Mas eram apenas boatos mesmo, pois Navot amava ser diretor quase tanto quanto Shamron havia amado um dia.
Como prenúncio do que estava por vir, Navot se recusou a ligar para Gabriel a fim de conceder sua bênção, deixando essa tarefa para um modesto oficial administrativo.
Allon recebeu a autorização oficial de operação pouco depois da meia-noite, no horário de Londres, por um telefonema que durou menos de dez segundos. Depois de desligar,
ele saiu da embaixada com Keller e partiu pelas ruas londrinas vazias em direção ao Grand Hotel Berkshire.
- E quanto a mim? - perguntou Keller. - Devo ficar aqui ou embarcar no próximo voo para a Córsega?
- Você decide.
- Acho que vou ficar.
- Não vai se arrepender.
- Eu não falo hebraico.
- Isso é bom.
- Por quê?
- Porque poderemos tirar sarro de você e você jamais saberá.
- Como vocês vão me usar?
- Você fala francês como um nativo, tem diversos passaportes limpos e é muito bom com armas. Tenho certeza de que pensaremos em algo.
- Posso dar um conselho?
- Só um.
- Você vai precisar de um russo.
- Não se preocupe - disse Gabriel. - Eu já tenho um.
39
GRAYSWOOD, SURREY
A irregular casa tudoriana ficava a 1,5 quilômetro da antiga igreja de Grayswood, à beira do bosque de Knobby Copse. Um deque de madeira levava até ela e grossas
cercas vivas a protegiam das vistas. Havia um jardim denso onde se podia refletir profundamente, 8 acres privativos para enfrentar demônios internos, e um lago de
pesca onde não se pescava fazia anos. As percas que nadavam em suas águas escuras agora estavam do tamanho de tubarões. O Departamento de Acomodações - divisão do
Escritório que adquiria e fazia a manutenção de propriedades seguras - referia-se ao local como lago Ness.
Gabriel e Keller chegaram à casa no dia seguinte, pouco depois do meio-dia, num Land Rover 4x4 providenciado pelo Departamento de Transportes. Na parte de trás do
carro, havia duas caixas de aço inoxidável cheias de aparelhos de comunicação criptografada tirados da sala-cofre da embaixada, além de várias sacolas de compras.
Depois de encherem a despensa com os mantimentos, retiraram os panos dos móveis, sopraram as teias de aranhas dos cantos e vasculharam a casa de ponta a ponta em
busca de escutas. Então, foram para o jardim e pararam à beira do lago. Barbatanas sulcavam a superfície negra.
- Não era uma piada - disse Keller.
- Não.
- Do que elas se alimentam?
- Devoraram um dos meus melhores agentes da última vez que estivemos aqui.
- Aqui tem equipamento de pesca?
- No vestíbulo.
Keller entrou na casa e achou um par de varas encostado em um canto, perto de um remo velho e lascado. Enquanto procurava uma isca, ouviu um baque seco, como o de
um galho se quebrando. Ao sair, sentiu o cheiro inconfundível de pólvora no ar. Então, avistou Gabriel subindo o caminho do jardim com a Beretta numa das mãos e
um peixe de 60 centímetros na outra.
- Isso me parece muito pouco esportivo - repreendeu Keller.
- Não tenho tempo para esporte. Preciso descobrir uma forma de infiltrar um agente em uma empresa de petróleo russa. E alimentar muitas bocas.
No fim da tarde, enquanto as cercas vivas se fundiam à escuridão e a temperatura caía para um frio cortante, três carros chegaram à isolada casa tudoriana. Os veículos
eram todos de marcas e modelos diferentes, tão distintos quanto os nove agentes que deles saíram, cansados do longo dia de viagem clandestina. Nos corredores e salas
de reunião do King Saul Boulevard, eles eram conhecidos pelo codinome Barak - “relâmpago” em hebraico devido a sua capacidade de se reunir e atacar rapidamente.
Os americanos, com inveja da inigualável lista de realizações operacionais, chamavam-nos de “a equipe de Deus”.
Chiara entrou na casa primeiro, seguida por duas mulheres. Dina Sarid, pequena e de cabelos escuros, era a maior especialista em terrorismo do Escritório e tinha
uma mente analítica brilhante que a tornava útil em qualquer tipo de operação. Lembrando uma modelo do pintor Rubens, alta e com cabelos cor de areia, Rimona Stern
havia começado sua carreira na inteligência militar, mas agora fazia parte da unidade do Escritório que cuidava exclusivamente do programa nuclear iraniano. Por
acaso, também era sobrinha de Shamron. Aliás, as memórias mais ternas que Gabriel tinha de Rimona eram de uma criança destemida desembestando em um patinete pela
ladeira íngreme da casa de seu famoso tio em Tiberíades.
Depois delas, veio uma dupla de agentes de campo versáteis chamados Oded e Mordecai, seguidos por Yaakov Rossman, uma figura rígida de cabelos pretos e rosto marcado
por cicatrizes, que havia se especializado em recrutar e manter espiões árabes. Também chegou Yossi Gavish, oficial sênior do Departamento de Pesquisas, a divisão
de análise do Escritório. Nascido em Londres e educado em Oxford, ainda falava hebraico com sotaque britânico.
Do último carro saíram dois homens - um de meia-idade e outro na flor da vida. O mais velho era ninguém menos do que Eli Lavon: o famoso arqueólogo caçador de bens
saqueados no Holocausto e de nazistas criminosos de guerra, além de um verdadeiro artista em termos de vigilância. Como de costume, vestia muitas camadas de roupas
que não combinavam. Tinha cabelos ralos que desafiavam qualquer tipo de penteado e olhos vigilantes como os de um terrier. Seus mocassins de camurça não fizeram
barulho algum quando ele cruzou o hall de entrada e mergulhou no caloroso abraço de Gabriel. Lavon fazia praticamente tudo em silêncio. Certa vez, Shamron dissera
que o lendário espião do Escritório era capaz de desaparecer enquanto dava um aperto de mão.
- Tem certeza de que quer fazer isso? - perguntou Gabriel.
- Eu não ficaria de fora por nada neste mundo. Além do mais, seu protagonista disse que não chegaria nem perto dos russos se eu não estivesse na cobertura.
Gabriel olhou para a figura alta parada logo atrás dos ombros miúdos de Lavon. Seu nome era Mikhail Abramov. Magro, de pele clara, rosto delicado e olhos glaciais,
ele fora da Rússia para Israel na adolescência e se juntara à Sayeret Matkal, a unidade de operações especiais das Forças Armadas de Israel. Já descrito por Shamron
como um “Gabriel sem consciência”, havia assassinado muitos dos maiores cérebros terroristas do Hamas e do Jihad Islâmico Palestino. Agora, executava missões similares
em nome do Escritório, embora seus incontáveis talentos não se restringissem a mexer com armas. Trabalhando com uma agente da CIA chamada Sarah Bancroft, Mikhail
se infiltrara no séquito de Ivan Kharkov, iniciando a longa e sangrenta guerra entre o Escritório e o exército privado de Ivan. Se Viktor Orlov não houvesse aberto
mão da Ruzoil para o Kremlin, Mikhail teria morrido na Rússia, ao lado de Gabriel e Chiara. Em sua face de porcelana, havia uma cicatriz profunda causada pelo punho
de marreta de Ivan.
- Você não precisa fazer isso - disse Gabriel, tocando a cicatriz. - Podemos achar outra pessoa.
- Que outra pessoa? - perguntou Mikhail, olhando em volta.
- Yossi, por exemplo.
- Yossi fala quatro línguas, mas não russo. Poderiam falar em cortar a garganta dele e Yossi acharia que estavam pedindo um frango à Kiev.
Os membros da fantástica equipe de Gabriel já haviam se hospedado naquela casa antes, então instalaram-se em seus antigos quartos sem muita discussão enquanto Chiara
ia para a cozinha preparar uma elaborada refeição para o reencontro. O prato principal era a enorme perca, assada em vinho branco e ervas. Gabriel acomodou Keller
à sua direita à mesa de jantar, um sinal deliberado de que, pelo menos por ora, o inglês deveria ser tratado como um membro da família. A princípio, os outros ficaram
desconfortáveis com sua presença, mas gradualmente se abriram. Na maior parte do jantar, falou-se inglês em respeito a ele. Mas, ao discutirem a última operação,
mudaram para o hebraico.
- Do que eles estão falando? - perguntou Keller discretamente a Gabriel.
- Sobre um novo programa de televisão em Israel.
- Você está me dizendo a verdade?
- Não.
O humor deles estava mais sombrio do que de costume, pois o espectro de Ivan Kharkov ainda os assombrava. Ninguém mencionou seu nome durante o jantar. Em vez disso,
referiam-se apenas à matsav, a situação. Yossi, profundamente erudito em estudos clássicos e história, servia de guia. Ele via um mundo girando descontroladamente.
As promessas da grande Primavera Árabe haviam sido expostas como mentiras, dizia ele, e em breve haveria uma escalada do islamismo radical, estendendo-se da África
Subsaariana até a Ásia Central. Os Estados Unidos estavam quebrados, cansados, e não tinham mais condições de liderar nada. Era possível que essa nova desordem mundial
turbulenta produzisse um eixo do século XXI que tivesse à frente China, Irã e, claro, Rússia. Sozinhos, rodeados por um mar de inimigos, estariam Israel e o Escritório.
Ao fim da explicação, todos tiraram os pratos e foram para a sala de estar, onde Gabriel enfim discorreu sobre o motivo para chamá-los à Inglaterra. Eles já sabiam
partes da história. Agora, em pé à frente deles, com a lareira a gás queimando atrás de si, Gabriel terminava de pintar o quadro com agilidade. Relatou tudo o que
havia acontecido, começando pela busca desesperada por Madeline Hart na França e terminando com o acordo na noite anterior em Hampstead Heath. Apenas um aspecto
do caso foi contado fora da ordem cronológica: o breve encontro com Madeline Hart nas horas que precederam sua morte. Ele prometera a Madeline que a traria de volta
para casa em segurança. Após o fracasso, pretendia manter sua palavra desfazendo o que havia sido uma operação russa do início ao fim. Para conseguir tal feito,
precisariam inserir Mikhail na KGB Óleo e Gás. Depois, achariam evidências de que Madeline Hart fora assassinada para que fosse concretizado o roubo do petróleo
do mar do Norte.
- Como? - perguntou Lavon, incrédulo, quando Gabriel terminou de falar. - Por Deus, como vamos colocar Mikhail numa companhia de petróleo pertencente ao Kremlin
e administrada pela inteligência russa?
- Nós daremos um jeito - afirmou Gabriel. - Nós sempre damos.
O trabalho começou de fato na manhã seguinte, quando a equipe de Gabriel passou a se embrenhar na Volgatek. No começo, o grosso do material vinha de fontes públicas,
como jornais de negócios, comunicados de imprensa e artigos acadêmicos escritos por pessoas especializadas na confusa indústria petroleira russa. Para complementar,
Gabriel pediu a ajuda da Unit 1400, a empresa israelense de interceptações eletrônicas. Como esperado, ela descobriu que as redes de computadores e comunicações
da Volgatek, baseadas em Moscou, eram protegidas por firewalls de alta qualidade - os mesmos usados pelo Kremlin, pelo Exército russo e pelo SVR. Mais tarde naquele
dia, no entanto, a Unit conseguiu invadir os computadores de uma sucursal em Gdansk, onde a companhia possuía uma importante refinaria, que produzia grande parte
da gasolina da Polônia. O material foi encaminhado diretamente para a casa segura em Surrey.
Mikhail e Lavon, os únicos membros que falavam russo, cuidaram da tradução. O primeiro descartou a informação como um tiro n'água, mas Lavon foi mais otimista. Ao
derrubar a porta de Gdansk, disse ele, aprenderiam muito sobre o modo como a Volgatek operava além das fronteiras da Mãe Rússia.
Por instinto, abordaram o alvo como se fosse uma organização terrorista. Dina lembrou a eles, desnecessariamente, que a prioridade ao confrontar um novo grupo ou
célula terrorista é identificar sua estrutura e os membros-chave. Era tentador focar nos que estavam no topo da cadeia alimentar, mas os gerentes intermediários,
mensageiros, hospedeiros e motoristas costumavam provar-se muito mais valiosos no fim. Eles eram desvalorizados, esquecidos, negligenciados. Carregavam mágoas, cultivavam
ressentimentos e, muitas vezes, gastavam mais do que recebiam. Dessa forma, era muito mais fácil recrutá-los do que os homens que voavam em jatinhos particulares,
tomavam champanhe aos baldes e tinham um harém de prostitutas russas a seu dispor aonde quer que fossem.
No topo da cadeia de organização estava Gennady Lazarev, o ex-cientista nuclear russo que traíra Viktor Orlov. O vice de confiança de Lazarev era Dmitry Bershov
e seu chefe de operações na Europa era Alexei Voronin. Ambos eram antigos agentes da KGB, embora Voronin fosse de longe o mais apresentável dos dois. Ele falava
várias línguas europeias fluentemente, inclusive o inglês, que havia aprendido quando trabalhava na rezidentura em Londres já no fim da Guerra Fria.
O resto da hierarquia da Volgatek mostrou-se difícil de discernir, com certeza não por acidente. Yaakov comparou o perfil da companhia ao do Escritório. O nome do
diretor era público, mas os nomes de seus principais assistentes e as tarefas que desempenhavam eram mantidos em segredo ou escondidos sob camadas de ilusão e falsas
informações. Felizmente, o tráfego de e-mails da sucursal de Gdansk permitia que se identificassem vários outros protagonistas da empresa, inclusive o chefe de segurança,
Pavel Zhirov. Seu nome não aparecia em nenhum documento da empresa e todas as tentativas de achar uma fotografia sua mostraram-se infrutíferas. Na cadeia de organização
da equipe, Zhirov era um homem sem rosto.
Conforme os dias foram se passando, ficou claro que a Volgatek era mais do que apenas petróleo. A companhia fazia parte de um estratagema maior do Kremlin para transformar
a Rússia em uma superpotência global de energia, uma espécie de Arábia Saudita euro-asiática, e ressuscitar o Império Russo das ruínas da União Soviética. A própria
Europa já dependia demais do gás natural da Rússia. A missão da empresa era estender o domínio russo para o mercado europeu de energia por meio da compra de refinarias
de petróleo. E agora, graças a Jeremy Fallon, tinha um posto no mar do Norte que renderia bilhões em lucros para o Kremlin. Sim, a Volgatek baseava-se na avareza
dos russos. Mas, acima de tudo, no seu revanchismo.
Como plantar um agente em uma organização como essa? Foi Lavon que achou uma solução possível e a explicou para Gabriel enquanto caminhavam pelo jardim. Depois de
adquirir a refinaria em Gdansk, disse ele, a Volgatek havia contratado um polonês para servir de diretor de fachada. Na prática, o polaco nada tinha a ver com o
cotidiano operacional: era meramente um enfeite, um buquê de flores designado para amenizar a mágoa dos poloneses ao verem o urso russo devorar um bem econômico
crucial. Além disso, explicou Lavon, a Polônia não era o único lugar onde a Volgatek havia contratado ajudantes locais. Ela agira assim também na Hungria, na Lituânia
e em Cuba. Nenhum desses gerentes se saiu melhor do que o de Gdansk; foram todos igualmente marginalizados, ignorados e jogados para escanteio.
- São como copinhos de café: usados e descartados - disse Lavon.
- Logo, não têm nenhum acesso ao tipo de informação protegida que estamos procurando.
- É verdade. Mas, se o habitante local contratado por acaso for russo ou de ascendência russa, o comando central da Volgatek talvez o trate com mais carinho, especialmente
se for o mais esperto do grupo. Eles se sentiriam tentados a lhe dar responsabilidades reais. Quem sabe? Poderiam até deixá-lo entrar no templo sagrado em Moscou.
- Genial, Eli.
- Sim, é. Mas há um problema sério.
- Qual?
- Como vamos chamar a atenção da Volgatek para ele?
- É fácil.
- Sério mesmo?
- Sim - disse Gabriel, sorrindo. - Sério mesmo.
Naquela noite, Gabriel não participou do jantar. Ele foi à Cheyne Walk, em Chelsea, onde jantou a sós com Viktor Orlov. Seu novo plano não encontrou resistência
da parte do russo; na verdade, ele até ofereceu várias sugestões importantes que o aprimoraram. Ao final da refeição, Gabriel lhe entregou um documento-padrão, entregue
a todos os indivíduos que não eram do Escritório e participavam de suas operações: impedia Orlov de revelar seu papel no caso e anulava a possibilidade de qualquer
recurso legal no caso de haver danos a ele ou a sua empresa. O russo se recusou a assinar. Gabriel não esperava nada menos do que isso.
Depois de deixar a mansão de Orlov, foi de carro até Hampstead e seguiu a pé para a Parliament Hill. Seymour estava esperando no banco, ladeado pelos dois seguranças,
que logo se afastaram, para não escutar a conversa. Gabriel falou da operação que estava prestes a ser executada e do que precisaria em termos de ajuda não oficial
dos britânicos. Seymour não pôde deixar de sorrir. Tratava-se de algo pouco ortodoxo, mas assim era a maioria das operações do Escritório, principalmente as concebidas
por Gabriel e sua equipe.
- Sabe, pode até ser que funcione - disse o homem do MI5.
- Vai funcionar, Graham. A questão é: você quer que eu vá em frente?
Seymour ficou em silêncio por um instante. Então, se levantou e deu as costas
para as luzes de Londres.
- Traga-me evidências de que os russos estavam por trás do sequestro e do assassinato de Madeline - disse calmamente - e eu me certificarei de que os miseráveis
jamais vejam uma gota do nosso petróleo.
- Deixe-me fazer isso por você, Graham. Para que você não...
- Isso é algo que só eu posso fazer. Além do mais, certa vez um homem muito sábio me disse que uma carreira sem escândalos não é uma carreira de verdade.
- Digite meu nome no Google e depois diga se você me acha tão sábio assim.
Seymour sorriu.
- Você não está reconsiderando, está?
- De jeito nenhum.
- Bom garoto. Mas tenha uma coisa em mente.
- O quê?
- Pode ser fácil colocar Mikhail dentro da Volgatek, mas tirá-lo de lá... já é outra história.
Seymour voltou para o lado dos seguranças e sumiu na escuridão. Gabriel permaneceu no banco por mais cinco minutos. Em seguida, andou até seu carro e voltou para
a casa à beira do Knobby Copse.
40
GRAYSWOOD, SURREY
O aprendizado de Mikhail Abramov, futuro empregado da Volgatek, começou às nove da manhã do dia seguinte. Seu primeiro tutor foi ninguém menos do que Viktor Orlov.
Apesar das objeções de Gabriel, ele insistira em viajar até Surrey em sua limusine Mercedes Maybach, seguida por um Land Rover repleto de seguranças. O pequeno comboio
causou certa comoção em Grayswood e, por boa parte do dia, circularam boatos pelo vilarejo de que o ocupante do carro era o próprio primeiro-ministro. Mas Jonathan
Lancaster não estava nem perto de Surrey; naquela manhã, ele fazia campanha em Sheffield. As últimas pesquisas lhe davam uma boa dianteira sobre o candidato da oposição.
O analista político mais famoso da Grã-Bretanha agora previa uma vitória esmagadora de proporções históricas.
Orlov voltou à casa segura na manhã seguinte, e ainda na outra. Suas aulas refletiam sua personalidade singular: brilhante, arrogante, cheia de opiniões, condescendente.
Ele falava em inglês com Mikhail na maior parte do tempo, fazendo incursões ocasionais no russo que apenas Eli Lavon podia compreender. Às vezes, também misturava
as duas línguas em um dialeto bizarro que a equipe apelidou de “rusglês”. Incansável e irritante, era impossível não amá-lo. Orlov em ação era uma força a ser respeitada.
Ele começou suas aulas com uma lição de história: a vida sob o comunismo soviético, a queda de um império, a era sem lei dos oligarcas. Para surpresa de todos, Orlov
admitiu que ele e os outros barões ladrões da Rússia haviam semeado a própria destruição ao enriquecerem muito em muito pouco tempo. Dessa forma, eles tinham atraído
as circunstâncias que levaram à volta do autoritarismo. O atual presidente da Rússia era um homem sem ideologia ou crença que não o exercício do poder pelo poder.
- É um fascista em tudo menos no nome - disse Orlov. - E fui eu que o criei.
A etapa seguinte da instrução apressada de Mikhail começou no quarto dia, quando ele cursou o que Lavon descreveu como o programa de MBA mais curto da história.
Seu professor era de Tel Aviv, mas havia frequentado a Escola de Negócios Wharton e trabalhado por pouco tempo na ExxonMobil antes de retornar para Israel. Por sete
longos dias e noites, ensinou a Mikhail o básico de administração de negócios: contabilidade, estatística, marketing, finanças corporativas, gerenciamento de risco.
O russo aprendia rápido - algo nada surpreendente, já que seus pais haviam sido acadêmicos soviéticos proeminentes. Ao final do curso, o professor previu um futuro
brilhante para Mikhail, embora não fizesse ideia do que aquele futuro podia reservar. Ele assinou com prazer o termo de confidencialidade de Gabriel e embarcou em
um voo de volta para Israel.
Enquanto Mikhail debruçava-se sobre os estudos, o resto da equipe trabalhava com diligência na identidade que o disfarçaria em campo. Eles o construíram como um
escritor desenvolve um personagem: ascendência e educação, amores e desamores, triunfos e fracassos. Por muitos dias, não lhes ocorreu um nome, pois deveria caber
a um homem que tivesse um pé no Ocidente e outro firmemente enraizado no Leste da Europa. Foi Gabriel quem enfim escolheu o nome Nicholas Avedon, uma distorção inglesa
de Nicolai Avdonin. Com a bênção de Graham Seymour, forjaram um passaporte britânico bem viajado e escreveram um longo e detalhado currículo que combinasse.
Quando Mikhail concluiu o curso, eles o levaram a um tour pela vida que nunca vivera. Havia a casa em um subúrbio arborizado de Londres, na qual ele nunca pisara,
a faculdade de Oxford onde ele jamais abrira um livro, e os escritórios de uma firma de perfuração em Aberdeen pouco conhecida da qual ele jamais recebera qualquer
pagamento. Até o acompanharam num voo para que Mikhail pudesse se lembrar de como é andar pelas ruas de Cambridge em uma tarde fresca de outono, embora ele nunca
tivesse ido a Cambridge, nem no outono nem em nenhuma outra estação do ano.
Por fim, só faltava resolver a aparência de Mikhail. Ela deveria ser drasticamente alterada; do contrário, os amigos da Volgatek no SVR poderiam reconhecê-lo da
operação passada. Cirurgia plástica não era uma opção; o tempo de cicatrização era muito longo e Mikhail se recusava a deixar qualquer um tocar seu rosto com uma
faca. Foi Chiara que concebeu uma solução e a demonstrou para Gabriel em um dos computadores. Na tela estava a fotografia de Mikhail tirada para o passaporte britânico.
Ela apertou um único botão e a foto reapareceu com apenas uma mudança.
- Eu mesmo mal o reconheço - disse Gabriel.
- Mas será que de aceita fazer isso'?
- Eu deixarei claro que ele não tem escolha.
Naquela noite, na presença de toda a equipe, Mikhail raspou a cabeça. Yaakov, Oded e Mordecai fizeram o mesmo em um ato de solidariedade, mas Gabriel se recusou.
Seu compromisso com a coesão da unidade tinha limite. Na manhã seguinte, as mulheres levaram Mikhail às compras em Londres em uma excursão que deixou o departamento
de contabilidade do King Saul Boulevard de cabelos em pé.
Quando voltaram a Grayswood, encontraram Viktor Orlov, à espera de Mikhail, para fazer uma avaliação final. Ele passou com louvor. Para celebrar, o ex-oligarca abriu
várias garrafas de seu querido Château Pétrus. No momento em que ele erguia a taça em homenagem a seu aluno, ouviu-se o estampido seco de uma Beretta silenciada.
- O que foi isso? - perguntou Orlov.
- Acho que teremos peixe no jantar - disse Mikhail.
- Alguém deveria ter me avisado; eu teria trazido um bom Sancerre.
Pouco tempo depois de ter recebido o passaporte britânico, Orlov comprara as ações majoritárias de um jornal que estava prestes a falir, o venerável Financial Journal,
de Londres, para chamar a atenção do círculo de pessoas importantes da cidade. Alguns funcionários, incluindo a renomada repórter investigativa Zoe Reed, pediram
demissão em protesto, mas a maioria ficou, em parte por não ter aonde ir. Nos termos do acordo de propriedade, Orlov concordara em não ter nenhum tipo de influência
sobre a linha editorial do jornal. Ele conseguiu cumprir sua promessa de alguma forma, mesmo desejando usar o jornal como um cassetete para bater em seus inimigos
do Kremlin.
No entanto, isso não significava que fosse avesso a ligar para os editores e passar dicas de notícias, especialmente se diziam respeito a seu próprio negócio. Assim,
três dias mais tarde, uma pequena nota apareceu num canto de página falando sobre a nova contratação de um funcionário pela Viktor Orlov Investimentos Ltda. Orlov
veio a confirmá-la num comunicado à imprensa mais tarde naquela manhã, dizendo que um executivo de 35 anos chamado Nicholas Avedon estava prestes a assumir o comando
do portfólio de energia da VOI, bem como da mesa de operações de futuros de petróleo. Dentro de minutos, a internet fervilhava com boatos de que Orlov havia escolhido
seu sucessor e preparava-se para um afastamento gradual do cotidiano da empresa. À noite, os rumores eram tão intensos que ele se sentiu compelido a fazer uma rara
aparição na CNBC para negá-los. Sua atuação foi pouco convincente. Um articulista proeminente disse, inclusive, que ele tinha suscitado muito mais questões do que
respondido.
Ninguém nos círculos financeiros de Londres jamais saberia que os boatos da aposentadoria iminente de Orlov haviam sido plantados por uma equipe de homens e mulheres
que operavam de uma casa isolada em Surrey. Eles também nunca tomariam conhecimento de que os mesmos rumores tinham sidos injetados na corrente sanguínea da comunidade
de negócios de Moscou, ou que haviam alcançado o topo da Volgatek.
Gabriel e sua equipe estavam cientes disso, pois tinham lido um e-mail cáustico de Alexei Voronin, enviado para o responsável pela sucursal em Gdansk. Eli Lavon
apresentou a mensagem impressa a Gabriel durante o jantar e traduziu-a, inclusive os trechos que continham linguajar inapropriado. Gabriel reagiu abrindo uma garrafa
de Château Pétrus que sobrara e servindo uma taça para cada um da equipe. De modo geral, era um começo promissor. Mikhail agora figurava como o suposto herdeiro
de Orlov. E a KGB Óleo e Gás estava observando.
41
MAYFAIR, LONDRES
Os escritórios da VOI ocupavam quatro andares de um edifício de escritórios de luxo em Mayfair, não muito longe da embaixada americana. Quando Nicholas Avedon lá
chegou na manhã seguinte, logo cedo, todos os altos funcionários da empresa esperavam na sala de conferências principal para recebê-lo. Orlov fez alguns comentários
breves, seguidos por uma série de apresentações apressadas, todas desnecessárias, já que Mikhail havia memorizado os nomes e rostos de todos durante sua preparação
em Surrey.
Se esperavam que ele fosse entrar aos poucos no trabalho, estavam totalmente enganados. Uma hora após estabelecer-se em seu escritório com vista para a Hanover Square,
começou a revisar de cima a baixo os investimentos lucrativos da VOI na área de energia, muito embora já houvesse feito a mesma análise na casa segura, e suas “descobertas
inspiradas” houvessem sido escritas para ele por Viktor Orlov. O relatório foi um sinal para o resto dos funcionários de que Nicholas Avedon não estava ali para
brincadeiras. Ele havia sido trazido para a VOI com uma finalidade. E pobre do tolo que tentasse cruzar seu caminho.
Seus dias rapidamente entraram em uma rotina rígida. Ele chegava cedo à sua mesa, já tendo lido os jornais financeiros matutinos e checado os mercados asiáticos,
passava uma ou duas horas trabalhando em planilhas e gráficos antes de participar da reunião matinal com o alto escalão, que sempre ocorria no espaçoso escritório
de Orlov. Ele costumava se manter em silêncio em reuniões numerosas, mas quando decidia falar, seus comentários estabeleciam um novo padrão de brevidade. Na maior
parte dos dias, almoçava sozinho. Depois, voltava a trabalhar em sua mesa até as sete ou oito, quando retornava ao amplo apartamento em Maida Vale, alugado para
ele por Gabriel. O Departamento de Acomodações alugara um outro menor no prédio do outro lado da rua. Enquanto Mikhail estava em casa, um membro da equipe o vigiava.
Durante seu expediente, uma câmera de vídeo de alta resolução, de transmissão segura, mantinha-o sob vigilância.
Descobriram que a Volgatek também o observava. Gabriel e a equipe sabiam disso porque a Unit 1400 enfim conseguira penetrar na rede de computadores da empresa russa
e agora liam os e-mails dos altos executivos quase em tempo real. O nome de Nicholas Avedon aparecia com destaque em vários deles - inclusive em um enviado por Gennady
Lazarev a Pavel Zhirov, o chefe de segurança sem rosto da Volgatek, requisitando-lhe que checasse o histórico do novo funcionário da VOI. Avedon era agora uma luz
piscante no radar da petroleira. Era hora, disse Gabriel, de fazê-la piscar um pouco mais forte.
Na manhã seguinte, Nicholas apresentou as descobertas de sua análise a Orlov e toda a equipe da VOI. O ex-oligarca declarou-as brilhantes, o que não era surpresa,
já que ele mesmo as concebera. Nos dias seguintes, Orlov fez uma série de jogadas financeiras ousadas, todas planejadas muito tempo antes, que alteraram radicalmente
a posição da VOI no setor global de energia. Em meio a um turbilhão de entrevistas, usava a expressão “energia para o século XXII e além” e, quando possível, creditava
o arquiteto do plano: Nicholas Avedon.
Os investidores de Londres gostavam do jovem protegido de Orlov. E, ao que parecia, a KGB Óleo e Gás também.
Eles haviam demonstrado a competência de Nicholas Avedon. Agora era o momento de revelar quanto Viktor Orlov se tornara dependente dele. Analistas de investimentos
e gerentes intermediários existiam aos montes, disse Gabriel.
Gennady Lazarev teria uma única razão para ir atrás de Avedon: acabar com seu antigo mentor e sócio.
E assim começou o que a equipe chamava de “As Peripécias de Viktor e Nicholas”.
Pelas duas semanas seguintes, os dois se tornaram inseparáveis. Almoçavam e jantavam juntos, e toda vez que Viktor aparecia publicamente, Nicholas estava ao seu
lado. Ele foi visto diversas vezes saindo da mansão de Orlov na Cheyne Walk tarde da noite e passou um fim de semana descansando na extensa propriedade do patrão
em Berkshire, um privilégio que não era dado a nenhum outro empregado.
À medida que a relação dos dois se estreitava, o clima de tensão começou a crescer nos escritórios da VOI em Mayfair. Os outros chefes de departamento não gostavam
do fato de Avedon estar presente em reuniões que costumavam ser conduzidas a sós com Orlov - nem de ele ser frequentemente visto cochichando conselhos no ouvido
do dono da empresa. Alguns funcionários declararam guerra a ele, mas a maioria entrou no jogo. Avedon era assediado com convites para drinques e jantares depois
do trabalho e recusava todos. Viktor, dizia ele, exigia toda a sua atenção.
Em seguida, os dois estenderam as Peripécias a um tour pelo continente. Houve o fórum de negócios em Paris, onde eles foram encantadores. E a reunião de banqueiros
suíços em Genebra, onde não erraram nem uma vírgula. E a reunião bastante tensa em Madri com o CEO de uma empresa de oleodutos pertencente a Orlov que recebera o
prazo de seis meses para apresentar lucros sob a ameaça de ficar desempregado - assim como o resto da Espanha.
Por fim, foram a Budapeste, a uma reunião de dirigentes políticos e empresariais dos ditos mercados emergentes do Leste Europeu. A gigante russa de gás, Gazprom,
mandou um representante para apaziguar os presentes, assegurando que não havia motivos para se temer uma dependência excessiva da energia russa, pois o Kremlin jamais
sonharia em fechar a torneira para impor sua vontade sobre as terras perdidas do antigo império. Naquela noite, em um coquetel de recepção às margens do Danúbio,
o homem da Gazprom apresentou-se a Nicholas Avedon e se surpreendeu ao descobrir que ele falava russo com fluência. O executivo da Gazprom ficara claramente impressionado
com o que ouvira, pois, poucos minutos depois do encontro, chegou um e-mail à caixa de entrada de Gennady Lazarev. Gabriel e sua equipe leram-no antes mesmo que
o russo pudesse ter a chance de abri-lo. Parecia que Mikhail havia entrado no jogo.
- Contratem Avedon - ordenou o homem da Gazprom. - Se não quiserem, nós o contrataremos.
Mas como aproximar os dois lados o bastante para que a relação fosse consumada? Como não tinha o costume de ficar de braços cruzados, Gabriel queria forçar os acontecimentos
colocando Mikhail e Lazarev em uma situação de proximidade física, em um lugar onde pudessem ter privacidade para conversar. A oportunidade se apresentou quando
a Unit 1400 interceptou um e-mail enviado ao diretor da Volgatek por sua secretária. O assunto era o itinerário de Lazarev por conta do Fórum Mundial de Energia,
a reunião bienal da Associação Internacional dos Produtores de Petróleo e Gás. Ao lê-lo, Gabriel sorriu. As Peripécias chegariam a Copenhague. E o Escritório iria
junto.
42
COPENHAGUE
Cinco dias de ansiedade depois, os senhores do petróleo dos quatro cantos do mundo começaram a chegar a Copenhague: havia árabes sauditas e dos emirados, azerbaidjanos
e cazaques, brasileiros e venezuelanos, americanos e canadenses. Os ativistas contra o aquecimento global estavam previsivelmente chocados com o encontro, e um grupo
alegava, de forma histérica, que o carbono emitido pela própria conferência acabaria submergindo uma aldeia em Bangladesh. Os emissários não pareciam notar. Eles
chegaram a Copenhague a bordo de jatinhos particulares e suas limusines blindadas rugiam pelas ruas pitorescas da cidade. Talvez um dia o petróleo acabasse e o planeta
ficasse quente demais para abrigar vidas humanas. Mas, pelo menos por enquanto, os extratores de combustíveis fósseis ainda reinavam soberanos.
A competição pelos serviços de Copenhague era intensa. Era impossível reservar mesas para jantares e o Hotel d’Angleterre - um prédio branco monumental como um transatlântico
de luxo com vista para a ampla Praça Nova do Rei - estava completamente lotado. Orlov e Mikhail chegaram à sua graciosa entrada em meio a uma forte nevasca e foram
acompanhados por um gerente a duas suítes vizinhas em um dos andares superiores. A de Mikhail continha uma bandeja de guloseimas dinamarquesas e um Dom Pérignon
num balde de gelo. Da última vez que ficara em um hotel a serviço do Escritório, ele havia usado uma garrafa de champanhe para machucar o próprio joelho, em nome
de um disfarce. Já nessa nova operação, certamente seu papel exigia que tomasse uma ou duas taças.
No momento em que estava tirando a rolha, ouviu uma discreta batida à porta - algo curioso, pois Mikhail tinha pendurado o aviso de NÃO PERTURBE antes de dar uma
generosa gorjeta para o carregador. Abriu a porta devagar e, por cima da trava de segurança, viu um homem de porte médio parado no corredor. Ele vestia um casaco
de lã de colarinho alemão, de comprimento mediano, e um chapéu tirolês de feltro. Seu cabelo era grisalho e brilhante, e viam-se olhos castanhos por trás dos óculos.
Com a mão direita, segurava uma valise de couro flexível, arranhado e desgastado.
- Como posso ajudá-lo? - perguntou Mikhail.
- Abrindo a porta - respondeu Gabriel com suavidade.
Mikhail tirou a trava de segurança e deu passagem para Gabriel, fechando a porta imediatamente em seguida. Ao se virar, viu-o andando lentamente pelo quarto com
seu BlackBerry no braço direito esticado.
Depois de um instante, Gabriel meneou a cabeça para indicar que não havia escutas no cômodo. Mikhail foi até o balde de champanhe e se serviu uma taça de Dom Pérignon.
- Quer? - perguntou ele, apontando para Gabriel com a garrafa.
- Não, me dá dor de cabeça.
- Também me dá.
Mikhail sentou no sofá e apoiou os pés sobre a mesinha de centro - um verdadeiro executivo cansado de um longo dia de viagem e reuniões. Gabriel contemplou o quarto
suntuoso e balançou a cabeça.
- Fico feliz que Viktor esteja pagando por este lugar. Uzi já está pegando no meu pé por causa dos gastos.
- Diga a Uzi que eu preciso ser mantido no nível a que fiquei acostumado.
- Bom saber que o sucesso não lhe subiu à cabeça.
Mikhail bebeu um pouco de champanhe, mas não respondeu.
- Você precisa raspar.
- Já raspei hoje de manhã - replicou Mikhail, esfregando o queixo.
- Não aí.
Mikhail passou a mão pela cabeça brilhante.
- Sabe, estou me habituando, pensando em adotar esse estilo quando a operação acabar.
- Você está parecendo um alienígena, Mikhail.
- Melhor um alienígena do que um personagem de A noviça rebelde.
Mikhail pegou um pequeno sanduíche de camarão da bandeja e devorou-o de uma só vez.
- Desde quando você come frutos do mar?
- Desde que me tornei um inglês de ascendência russa que trabalha para uma companhia de investimentos pertencente ao oligarca Viktor Orlov.
- Com um pouco de sorte, é apenas um passo em direção a coisas melhores e maiores.
- Inshallah - disse Mikhail, elevando a taça num brinde jocoso. - Meus futuros empregadores já chegaram?
Gabriel examinou o interior da maleta e retirou uma pasta de papel manilha. Dentro, havia três fotografias impressas coloridas, que ele organizou na mesinha de centro
na ordem em que foram tiradas. Retratavam três homens descendo as escadas de um jatinho particular e entrando em uma limusine. Tinham sido tiradas de uma distância
considerável por uma câmera com lente objetiva. A neve borrava a imagem.
- Quem tirou essas fotos? - perguntou Mikhail.
- Yossi.
- Como ele conseguiu entrar na pista?
- Ele tem uma credencial de imprensa para o fórum - respondeu Gabriel -, assim como Rimona.
- Para quem estão trabalhando?
- Para um jornal industrial chamado Energy Times.
- Não conheço.
- É novo.
Sorrindo, Mikhail pegou a primeira fotografia, que mostrava as três pessoas descendo a escada do avião em fila indiana. À frente, nada parecido com o matemático
livresco que já havia sido, estava Gennady Lazarev. Um passo atrás, vinha Dmitry Bershov, o vice-diretor executivo da Volgatek, e em seguida um homem baixo e atarracado,
com o rosto escondido pela aba de um chapéu fedora.
- Quem é ele? - perguntou Mikhail.
- Ainda não conseguimos descobrir.
Mikhail pegou a segunda fotografia, depois a terceira. Em nenhuma delas podia-se ver o rosto do homem.
- Ele é muito bom, não é?
- Então você também reparou - comentou Gabriel.
- Difícil não reparar. Ele sabia onde estavam as câmeras e fez questão de não ser visualizado em nenhuma imagem. - Mikhail deixou as fotos na mesinha de centro.
- Por que você acha que ele fez isso?
- Pelo mesmo motivo que eu e você o fazemos.
- Ele trabalha para o Escritório?
- Ele é um profissional, Mikhail. De verdade. Talvez seja um agente aposentado do SVR e aja assim por costume. Mas me parece que está em serviço.
- Onde ele está agora?
- No Hotel Imperial, com os outros dois. Gennady está bastante desapontado com suas acomodações.
- Como você sabe?
- Mordecai e Oded visitaram o quarto uma hora antes do avião da Volgatek aterrissar e deixaram um presentinho sob a mesa de cabeceira.
- Como vocês sabiam qual era o quarto de Lazarev?
- A Unit invadiu o sistema de reservas do Imperial.
- E a porta?
- Mordecai tem uma nova chave-cartão mágica. A porta praticamente abriu por conta própria. - Gabriel guardou as fotografias na pasta, que por sua vez foi colocada
dentro da maleta. - Fique sabendo que Gennady tem falado sobre mais coisas além da qualidade do quarto. Ele está claramente ansioso para conhecer você.
- Alguma ideia de quando ele vai agir?
- Não - disse Gabriel, balançando a cabeça. - Mas espere sutileza.
- Eu o deveria conhecer?
- Só de nome, não de rosto.
- E se ele me abordar?
- Eu sempre acho melhor dar uma de difícil.
- E olha só aonde isso o levou.
Mikhail se serviu mais um pouco de champanhe, mas não disse mais nada.
- Tem algo que queira me dizer? - perguntou Gabriel.
- Acho que lhe devo congratulações.
- Pelo quê?
- Ora, vamos, Gabriel. Não me faça dizer em voz alta.
- Dizer o quê?
- As pessoas falam, Gabriel, principalmente espiões. E o que se anda dizendo no King Saul Boulevard é que você será o próximo diretor.
- Eu ainda não aceitei.
- Não é o que ouvi. Disseram que é um acordo selado.
- Não é.
- Como queira, chefe.
Gabriel suspirou fundo.
- Quanto Uzi sabe?
- No momento em que assumiu o cargo, Uzi soube que era a segunda opção de todos.
- Eu não planejei isso.
- Eu sei. E suspeito que Uzi também saiba. Mas isso não vai facilitar as coisas quando o primeiro-ministro disser que ele não terá um segundo mandato.
Mikhail ergueu a taça contra a luz e observou as bolhas do champanhe subirem até a superfície.
- No que você está pensando? - indagou Gabriel.
- Em quando estávamos em Zurique, naquele pequeno café perto da Parade-platz. Nós estávamos tentando tirar Chiara de Ivan. Você se lembra desse lugar? Você se lembra
do que me disse naquela tarde?
- Acredito que eu tenha lhe dito para casar com Sarah Bancroft e deixar o Escritório.
- Você tem uma boa memória.
- Aonde você quer chegar?
- Estava apenas imaginando se você ainda acha que eu deveria deixar o Escritório.
Gabriel hesitou antes de responder:
- Eu não faria isso se fosse você.
- Por que não?
- Porque, se eu me tornar diretor, você tem um futuro brilhante à frente, Mikhail. Muito brilhante.
Mikhail passou a mão pela cabeça.
- Preciso raspar.
- Precisa, mesmo.
- Tem certeza de que não vai beber um pouco de champanhe?
- Me dá dor de cabeça.
- Também me dá - repetiu Mikhail, servindo-se.
Antes de sair da suíte, Gabriel instalou um software do Escritório no celular de Mikhail, que o transformava em um transmissor contínuo e encaminhava todas as chamadas,
e-mails e mensagens em tempo real para os computadores da equipe. Então, desceu para o saguão e ficou alguns minutos buscando rostos familiares na multidão de bem
lubrificados homens do petróleo.
Do lado de fora, a tempestade vespertina havia cessado, mas alguns flocos grandes caíam preguiçosamente sob as luzes dos postes. Gabriel se dirigiu para o oeste
da cidade por uma sinuosa rua de lojas conhecida como Stroget até alcançar a Rádhuspladsen. Os sinos da torre do relógio soavam seis horas. Ele se sentiu tentado
a aparecer no Hotel Imperial, situado a pouca distância da praça, à beira dos Jardins de Tivoli. Em vez disso, caminhou até um prédio residencial despretensioso
situado em uma rua de nome pronunciável apenas pelos dinamarqueses. Quando entrou no pequeno apartamento no segundo andar, encontrou Keller e Lavon debruçados sobre
um notebook. De seus alto-falantes vinha o som de três homens falando baixo em russo.
- Você já descobriu quem é aquele homem? - perguntou Gabriel.
Lavon balançou a cabeça.
- É curioso, mas esses rapazes da Volgatek não são muito de falar nomes.
- Não diga.
Lavon estava prestes a responder, mas se deteve ao som de uma das vozes, um murmúrio baixo, como se a pessoa estivesse parada diante de uma cova.
- Esse é o nosso cara - informou Lavon. - Ele sempre fala assim. Como se presumisse que alguém está ouvindo.
- E alguém está ouvindo.
Lavon sorriu.
- Mandei uma amostra da voz dele para o King Saul Boulevard e lhes pedi que a passassem pelos bancos de dados.
- E...?
- Nenhuma correspondência.
- Mande a amostra para Adrian Carter, em Langley.
- E se Carter pedir uma explicação?
- Minta.
Nesse momento, os três executivos russos do petróleo explodiram em uma ruidosa gargalhada. Enquanto Lavon se inclinava para escutar, Gabriel foi lentamente até a
janela e examinou a rua. Estava vazia, exceto por uma jovem que caminhava pela calçada nevada. Tinha a pele de alabastro de Madeline, as maçãs do rosto de Madeline.
A semelhança era tal que, por um momento, Gabriel sentiu-se compelido a correr até ela. Os russos ainda riam. Certamente, pensou, riam-se dele. Respirou fundo para
acalmar o coração retumbante e observou o espectro de Madeline passar abaixo. Então, a escuridão a reivindicou para si e a mulher sumiu.
43
COPENHAGUE
O fórum se deu no Bella Center, um horrendo centro de convenções de vidro e metal que parecia uma gigantesca estufa vinda do espaço sideral. Um grupo de repórteres
estava parado do lado de fora, tremendo, atrás de uma faixa amarela. A maioria dos executivos que chegava tinha o bom senso de ignorar as provocações gritadas por
eles, mas não Orlov. Ele parou para responder a uma pergunta sobre o repentino aumento no preço do petróleo ao redor do mundo, do qual havia extraído lucros tremendos,
e logo se viu discorrendo sobre assuntos que iam das eleições britânicas até a repressão de movimentos pró-democracia executada pelo Kremlin.
Gabriel e a equipe ouviam cada palavra, pois Mikhail estava parado ao lado de Orlov, à vista das câmeras, segurando o celular. Inclusive, foi Mikhail quem deu um
fim à coletiva de imprensa improvisada, segurando na manga do casaco de Orlov e puxando-o em direção à porta aberta do centro de convenções. Mais tarde, uma repórter
britânica comentaria o fato dizendo que era a primeira vez que ela via qualquer pessoa - “Qualquer pessoa!” - ousar tocar um dedo que fosse em Viktor Orlov.
Uma vez do lado de dentro, o ex-oligarca agiu como um furacão. Ele foi a todos os debates da manhã, visitou todos os estandes no andar de exposições e apertou cada
mão estendida, até de homens que o odiavam.
- Este é Nicholas Avedon - dizia em alto e bom som. - Nicholas é meu braço direito e meu braço esquerdo. É meu norte.
O almoço foi “social” - assim Orlov chamou a refeição sem lugares marcados - e não havia álcool nem carne de porco, em respeito aos muitos delegados muçulmanos.
Orlov e Mikhail passaram pelo bufê sem comer nada e prosseguiram para o primeiro debate da tarde, uma discussão sombria sobre as lições aprendidas com o desastroso
derramamento de óleo no golfo do México. Gennady Lazarev também estava presente, duas fileiras atrás do ombro direito de Orlov.
- Ele está rondando - Orlov murmurou para Mikhail - como um assassino. É só uma questão de tempo até que saque a arma.
O comentário foi perfeitamente audível no pequeno apartamento da rua de nome impronunciável, e o sentimento expresso era compartilhado por Gabriel e o resto da equipe.
Na verdade, graças à câmera pendurada no pescoço de Yossi, eles tinham as fotografias para comprovar. Durante a manhã, Lazarev manteve uma distância segura. Mas
agora, à medida que a tarde avançava, ele se aproximava cada vez mais do alvo.
- É como um jato em circuito de espera - comentou Lavon. - Ele está só esperando a torre dar a autorização para o pouso.
- Não sei se as condições climáticas irão permitir - respondeu Gabriel.
- Quando você acha que vai haver uma brecha?
- Aqui - respondeu Gabriel, apontando para o último item do cronograma do primeiro dia. - É aqui que o pegaremos.
Isso significava que Gabriel e a equipe seriam forçados a aguentar mais duas horas do que Christopher Keller havia descrito como “blá-blá-blá de petróleo”. Houve
um discurso profundamente tedioso de um ministro do governo indiano sobre as necessidades futuras de energia do segundo país mais populoso do mundo. Depois, veio
uma fala repreensiva do novo presidente francês sobre taxação, lucro e responsabilidade social. Por fim, ocorreu um debate extremamente sincero sobre os perigos
ambientais da técnica de extração conhecida como fraturamento hidráulico. Não era de se admirar que Gennady Lazarev não estivesse presente. Via de regra, as companhias
de petróleo russas viam o meio ambiente como algo a ser explorado, não protegido.
Ao término, os delegados enfileiraram-se nas escadas rolantes para a galeria superior do centro, onde haveria um coquetel de recepção. Lazarev tinha chegado cedo
e falava com dois executivos do petróleo iranianos. Orlov e Mikhail pegaram uma taça de champanhe cada e se misturaram a um grupo de brasileiros animados. Orlov
estava de costas para Lazarev, que, no entanto, encontrava-se no campo de visão de Mikhail e o viu se separar dos iranianos e começar a andar lentamente até o outro
lado da sala.
- Agora pode ser uma boa hora para dar uma volta, Viktor.
- Até onde?
- Até a Finlândia.
Orlov, um hábil ator de coquetel, tirou o telefone do bolso do paletó e levou-o ao ouvido. Franziu a testa, como se não estivesse escutando direito, e se afastou
apressado, em busca de um lugar silencioso.
Na ausência de Orlov, Mikhail começou uma séria discussão com um dos brasileiros sobre oportunidades de investimento na América Latina. Mas, dois minutos depois,
percebeu que um homem estava parado às suas costas. Sabia disso porque o cheiro forte da colônia dele havia tomado conta do ambiente. Também sabia porque podia ver
o brasileiro desviando o olhar a todo momento.
Ao se virar, deparou com o rosto que tinha adornado a parede da casa segura em Grayswood. Seu treinamento e sua experiência lhe permitiram reagir com um olhar vazio
e nada mais.
- Perdoe-me pela interrupção - disse o homem em inglês com sotaque russo mas gostaria de me apresentar antes que Viktor volte. Meu nome é Gennady Lazarev. Eu sou
da Volgatek Óleo e Gás.
- Eu sou Nicholas - falou Mikhail, apertando a mão estendida. - Nicholas Avedon.
- Eu sei quem você é - afirmou Lazarev com um sorriso. - Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.
A conversa que se seguiu durou um minuto e 27 segundos. A qualidade da captação de áudio era bastante cristalina, sem levar em conta o rumorejo de fundo do coquetel
e um som de bate-estaca que a equipe mais tarde identificou como o coração de Mikhail. O próprio coração de Gabriel batia em ritmo parecido enquanto ele escutava
a gravação cinco vezes do início ao fim. Agora, ao apertar PLAY para ouvi-la de novo, parecia que sua pulsação havia sumido.
“Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você.” “Verdade? Por quê?”
“Porque nós temos observado algumas ações que você vem tomando com o portfólio de Viktor e estamos muito impressionados.”
“Nós, quem?”
“A Volgatek, é claro. De quem eu poderia estar falando?”
“O ambiente de negócios da Rússia é bem diferente do ocidental. Pronomes podem ser enganosos.”
“Você é bastante diplomático.”
“Tenho que ser: trabalho para Viktor Orlov.”
“Às vezes parece que é Viktor quem trabalha para você.”
“As aparências enganam, Sr. Lazarev.”
“Então os rumores não são verdadeiros?”
“Que rumores?”
“De que você tomou conta das operações cotidianas de Viktor? De que Viktor não é mais do que um nome e uma gravata extravagante?”
“Viktor ainda é o mestre estrategista. Eu sou apenas quem aperta os botões e aciona as alavancas.”
“Você é bastante leal, Nicholas.”
“Até o fim.”
"Aprecio isso nas pessoas. Eu sou leal também.”
“Só que não a Viktor.”
“Você e Viktor claramente já falaram sobre mim.”
“Apenas uma vez.”
"Imagino que ele não tivesse nada de bom a dizer a meu respeito.”
“Ele disse que você é muito inteligente.”
“Foi um elogio?”
“Não.”
“Viktor e eu tivemos nossas diferenças, não posso negar. Mas isso é passado. Sempre respeitei a opinião dele, especialmente no que diz respeito a pessoas. Ele sempre
foi um bom caçador de talentos. Foi por isso que eu quis conhecer você. Tenho uma ideia que gostaria de discutir.”
“Eu direi a Viktor que você deseja falar com ele.”
“Não é uma ideia para Viktor Orlov. É uma ideia para Nicholas Avedon.”
“Eu sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, Sr. Lazarev. Quando o dinheiro de Viktor está envolvido, não existe Nicholas Avedon.”
“Isso não tem nada a ver com o dinheiro de Viktor. É sobre o seu futuro. Gostaria de alguns minutos do seu tempo antes que você deixe Copenhague.” “Temo que minha
agenda esteja um pesadelo.”
“Tome meu cartão, Nicholas. Meu celular pessoal está escrito no verso. Prometo que farei seu tempo valer a pena. Não me decepcione. Não gosto de ser desapontado.”
Gabriel apertou o ícone de STOP e olhou para Lavon, que disse:
- Parece que você o pegou.
- Talvez. Ou Gennady é que nos pegou.
- Um encontro não vai doer.
- Pode doer. Na verdade, pode doer bastante.
Gabriel voltou ao início do áudio e apertou PLAY mais uma vez. “Eu sei quem você é. Na verdade, eu sei tudo o que há para saber sobre você”
Ele apertou STOP.
- Figura de linguagem - comentou Lavon. - Nada mais do que isso.
- Você tem certeza disso, Eli? Cem por cento de certeza?
- Tenho certeza de que o sol vai nascer amanhã de manhã e que se porá à noite. E estou razoavelmente confiante de que Mikhail sobreviverá a um drinque com Gennady
Lazarev.
- A menos que Gennady sirva ponche de polônio.
Gabriel segurou o mouse, mas Lavon deteve sua mão.
- Viemos a Copenhague para realizar esse encontro. Chegou a hora.
Gabriel pegou o telefone e discou o número do celular de Mikhail. Ele pôde
ouvir pelos alto-falantes do notebook, assim como o som da voz do russo ao atender.
- Amanhã à noite - avisou Gabriel. - Controle o local o máximo possível. Sem surpresas.
Gabriel desligou e escutou Mikhail telefonar para Lazarev, que atendeu prontamente.
- Fico muito feliz que tenha ligado.
- Como posso ajudá-lo, Sr. Lazarev?
- Jantando comigo amanhã à noite.
- Tenho um compromisso com Viktor.
- Invente uma desculpa.
- Onde?
- Acharei algum lugar fora da rota.
- Não pode ser muito fora da rota, Sr. Lazarev. Não posso ficar longe por mais de uma hora.
- Que tal às sete?
- Sete está bom.
- Mandarei um carro buscá-lo.
- Estou no Hotel d'Angleterre.
- Sim, eu sei - disse Lazarev antes de desligar.
Gabriel mudou a fonte de áudio do celular de Mikhail para o transmissor no quarto de Lazarev, no Imperial.
Os três russos riam descontroladamente. Com certeza, pensou Gabriel, riam dele.
44
COPENHAGUE
O segundo dia do fórum foi uma reprise desgastada do primeiro. Mikhail permaneceu lealmente ao lado de Orlov durante todo o tempo, com o sorriso exagerado de um
homem que está prestes a cometer adultério. No coquetel, mais uma vez agarrou-se à calorosa recepção dos brasileiros. Eles pareceram bem desapontados com sua recusa
para juntar-se a eles e farrear pelas boates mais animadas de Copenhague. Ao se despedir, tirou Viktor das garras do ministro do petróleo cazaque e o conduziu para
a limusine alugada. Esperou até que estivessem a poucos quarteirões do D'Angleterre para dizer que não tinha ânimo para jantar. Falou num tom de voz alto o bastante
para que fosse ouvido por qualquer transmissor dos russos que pudesse estar por perto.
- Qual é o nome dela? - perguntou Orlov, que já sabia dos planos de Mikhail para aquela noite.
- Não é isso, Viktor.
- É o quê, então?
- Estou com uma dor de cabeça avassaladora.
- Espero que não seja nada sério.
- Tenho certeza de que é apenas um tumor cerebral.
Já no quarto, Mikhail fez algumas ligações para Londres, apenas para manter o disfarce e mandou um e-mail malicioso para sua secretária, pretendendo mostrar aos
ciberdetetives do Centro Moscovita que também era humano. Então, tomou banho e escolheu as roupas para a noite, algo que se provou mais desafiador do que imaginava.
Como alguém se veste para trair o falso empregador ao encontrar-se com executivos de uma companhia de petróleo pertencente e gerida pela inteligência russa? Escolheu
um terno simples, cinza soviético, e uma camisa branca com abotoaduras francesas. Dispensou a gravata por medo de parecer demasiado afoito. Além do mais, se a intenção
deles fosse matá-lo, não queria usar uma peça que pudesse se tornar uma arma.
Instruído por Gabriel, deixou todas as luzes do quarto acesas e pendurou o sinal de NÃO PERTURBE na maçaneta antes de ir para o elevador. O saguão era um mar de
delegados. Ao se dirigir à porta, viu Yossi, o repórter recém-contratado pelo inexistente Energy Times, entrevistando um dos executivos iranianos. Do lado de fora,
uma neve granulada caía feito tempestade de areia na Praça Nova do Rei. Um sedã Mercedes Classe E esperava encostado no meio-fio. Ao lado da porta traseira aberta
estava um russo de 2,5 metros que tinha cara de Igor.
- Aonde vamos?- perguntou Mikhail, conforme o carro arrancava em uma guinada.
- Jantar - grunhiu Igor, o motorista.
- Ah - disse Mikhail em voz baixa -, bom saber.
O motorista russo não ouviu o comentário de Mikhail, mas Gabriel, sim. Ele estava ao volante de um sedã Audi, parado em uma rua secundária próxima à entrada do hotel.
Keller se achava ao seu lado, com um tablet apoiado nos joelhos. Na tela havia um mapa de Copenhague, e a posição de Mikhail era representada por uma luz azul piscante,
que, naquele momento, afastava-se rapidamente da Praça Nova do Rei em direção a uma região da cidade pouco conhecida por seus restaurantes. Gabriel deu partida na
ignição sem pressa. Olhou para a luz azul e a seguiu com cautela.
Logo ficou claro que Mikhail e Lazarev não jantariam em Copenhague naquela noite. Isso porque, poucos minutos após deixar o hotel, o grande Mercedes preto se encaminhou
para fora da cidade a uma velocidade que sugeria que Igor estava acostumado a dirigir na neve. Gabriel não precisava acompanhar o ritmo alucinado do carro, pois
a luz azul no tablet de Keller dizia tudo o que ele precisava saber.
Depois de passar por todos os distritos do sul de Copenhague, a luz entrou na via expressa E20 e seguiu para o sul, rumo à região da Dinamarca conhecida como Zelândia.
Quando a rodovia voltou-se para o interior, em direção à antiga cidade mercante de Ringsted, a luz afastou-se dela e foi para a orla marítima. Gabriel e Keller fizeram
o mesmo e se viram em uma pequena estrada de duas pistas, ladeada pelas águas negras da baía de Koge à esquerda e pelos campos nevados à direita. Seguiram na via
por vários quilômetros até depararem com uma série de casinhas de veraneio agrupadas ao longo de uma praia pedregosa assolada pelo vento, onde a luz enfim parou
de se mover.
Gabriel parou no acostamento e aumentou o volume do seu fone. Ouviu a porta do carro se abrindo, passos sobre paralelepípedos cobertos de neve e o ribombar de bate-estaca
do coração nervoso de Mikhail.
O chalé estava entre os melhores do local. Tinha uma entrada de carros em forma de U, uma cobertura de telhas vermelhas para automóveis e um jardim com terraço emoldurado
por sebes podadas e pequenas e robustas muretas de tijolos. Doze degraus levavam a uma varanda com uma balaustrada branca; duas árvores em vasos postavam-se como
sentinelas em cada lado da porta de vidro. Enquanto Mikhail se aproximava, a porta se abriu e Lazarev saiu à varanda para cumprimentá-lo. Vestia um pulôver de gola
alta e um cardigã grosso de estilo nórdico.
- Nicholas! - bradou, como a um parente surdo. - Entre antes que morra de frio. Desculpe-me por arrastá-lo até aqui, mas nunca me senti confortável fazendo negócios
sérios em restaurantes e hotéis.
Ele ofereceu a mão a Mikhail e puxou-o para dentro, como se resgatasse um homem que se afogava. Depois de fechar depressa a porta, pegou o casaco de Mikhail e passou
um momento admirando cuidadosamente o prêmio que havia conquistado. Apesar do poder e da riqueza, Lazarev ainda parecia um cientista do governo. De óculos arredondados
e testa franzida, tinha o ar de um homem que estava eternamente num embate para resolver uma equação.
- Foi difícil escapar de Viktor?
- Nem um pouco - respondeu Mikhail. - Na verdade, acho que ele até ficou feliz de se livrar de mim por algumas horas.
- Vocês parecem se dar muito bem.
- E nós nos damos.
- Mas, ainda assim, você veio - observou Lazarev.
- Senti que devia.
- Por quê?
- Porque, quando um homem como Gennady Lazarev solicita um encontro, é uma boa ideia aceitar.
As palavras de Mikhail obviamente agradavam a Lazarev. Ficou claro que o russo não era imune a bajulação.
- E você não disse a ele aonde ia?
- Claro que não.
- Muito bem. - Lazarev apertou o ombro de Mikhail com a mão delicada. - Venha tomar um drinque. Conhecer o resto do pessoal.
Lazarev acompanhou Mikhail até uma grande sala com janelas para o mar. Dois homens aguardavam em meio ao tipo de silêncio desconfortável que se segue a uma briga.
Um deles servia um drinque no carrinho de bebidas; o outro se aquecia em frente à lareira. O primeiro tinha uma barba espessa por fazer e o cabelo escuro e ralo
penteado bem para trás. Mikhail não pôde ver muito do homem à lareira, pois ele estava virado de costas para a sala.
- Este é Dmitry Bershov - disse Lazarev, apontando para o homem junto ao carrinho. - Tenho certeza de que já ouviu falar dele. Dmitry é meu número dois.
- Sim, é claro - falou Mikhail, apertando a mão do vice. - Prazer em conhecê-lo.
- Igualmente - entoou Bershov.
- E aquele homem ali - continuou Lazarev, indicando a figura à lareira - é Pavel Zhirov. Ele lida com a segurança corporativa e com qualquer outro trabalho sujo
que for necessário. Não é mesmo, Pavel?
O homem se voltou devagar até encarar diretamente Mikhail. Vestia um suéter preto de lã e calças cinza-carvão. Com um cabelo louro grisalho e curto, tinha um rosto
angular dominado por uma boca pequena de aspecto cruel. No mesmo instante, Mikhail percebeu que já tinha visto aquele rosto em uma fotografia de um almoço realizado
na Córsega poucas horas antes do desaparecimento de Madeline. Agora o rosto se aproximava em meio à luz do fogo, esboçando algo parecido com um sorriso.
- Nós nos conhecemos? - perguntou Zhirov, apertando a mão de Mikhail.
- Acredito que não.
- Você me é familiar.
- Ouço isso com frequência.
O sorriso se esvaiu, os olhos se estreitaram.
- Você trouxe um telefone?
- Eu tomo banho com ele.
- Você se importaria em desligá-lo, por favor?
- É mesmo necessário?
- Sim. E tire a bateria também. Todo cuidado é pouco nos dias de hoje.
Trinta segundos depois, a luz azul no tablet havia se apagado. Gabriel removeu o fone de ouvido e franziu a testa.
- O que aconteceu? - perguntou Keller.
- Mikhail foi para o lado escuro da Lua.
- O que isso significa?
Gabriel explicou. Então, tirou o celular do bolso do casaco e ligou para Lavon no apartamento seguro. Eles conversaram por poucos segundos em um hebraico conciso
e operacional.
- O que está acontecendo? - perguntou Keller depois que Gabriel encerrou a ligação.
- Dois capangas do SVR da rezidentura de Copenhague estão vasculhando o quarto de Mikhail no D'Angleterre.
- E isso é bom?
- Isso é muito bom.
- Tem certeza?
- Não.
Gabriel guardou o celular e olhou pela janela, para as ondas impulsionadas pelo vento que banhavam a praia congelada. A espera, pensou. Sempre a espera.