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A GÊNESIS / Laura Gallego García
A GÊNESIS / Laura Gallego García

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Memórias de Idhún

Volume VI / Primeira Parte

A GÊNESIS

 

                 DISPUTAS E DECISÕES

O Oráculo de Gantadd tinha ficado inabitável após ter sido arrasado pelo mar. Poderiam reconstruí-lo com um pouco de tempo e esforço, mas, enquanto isso, as sacerdotisas precisavam de outro lugar onde se alojar, e as povoações próximas também tinham sofrido as consequências da passagem de Neliam.

De modo que partiram para o bosque de Awa, para se juntarem a Ha-Din no novo Oráculo que tinha sido construído no coração da floresta. Encontraram Alexander e as noviças terra adentro. Estavam todos a salvo, embora Ankira, a ouvinte limyati, tivesse tido um ataque de pânico quando a onda se abatera sobre o continente; desmaiara e, ao voltar a si, fechara-se num mutismo absorto.

Igara, a mensageira do Oráculo, não regressara. Pelo que sabiam, tinha chegado a alertar várias comunidades ganti, mas outras foram completamente devastadas pelo maremoto. Tempos depois confirmaram que, efectivamente, tinha sido surpreendida pelo mar durante o cumprimento da sua missão.

A passagem da deusa Neliam pelos seus domínios, os oceanos do Este, provocara muitas perdas. Centenas de pessoas tinham ficado sem casa e agora vagueavam pelos bosques de Derbhad, receosas ainda de regressar às suas casas inundadas. Os feéricos não sabiam o que fazer com eles. Em alguns casos, tinham-nos acolhido; mas em Trask-Ban, por exemplo, os refugiados não tinham sido bem recebidos.

Poucos eram os que viajavam até ao bosque de Awa, que ficava demasiado longe de Gantadd para ser uma opção conveniente para os desalojados; mas os habitantes do Oráculo tinham-no feito. Uma vez mais, a irmã Karale ficara para trás a fim de tentar recuperar o edifício. As sacerdotisas mais voluntariosas decidiram ficar também e, das regiões do interior não atingidas pela onda, todos os dias chegava gente para ajudar na reconstrução.

Alexander tê-los-ia acompanhado de boa vontade. Não sentia o menor desejo de regressar ao bosque de Awa, que lhe trazia tão más recordações. Contudo, ao ver os membros da comitiva, mudou de opinião.

À frente do grupo estava Jack, e ao seu lado caminhava Victoria. Há muito tempo que Alexander não a via, e no início olhou para ela com receio. Lembrava-se bem do estado em que ela chegara a Nurgon após a suposta morte de Jack, e aquela era a última imagem que guardava dela. Obviamente, Jack e Shail tinham-no posto ao corrente do que acontecera durante a sua ausência, e Alexander comovera-se ao saber que Victoria se tinha sacrificado a Ashran para salvar o dragão. Porém, também tinha dado a sua vida pelo shek e, depois de recuperar da sua doença, tinha fugido para a Terra com ele. Por muito que tentasse, Alexander não conseguia entender nem aprovar aquela atitude. Mas agora Victoria estava ali, com Jack, e uma confortável sensação de prazer inundou o seu coração ao contemplar o jovem casal, ao ver como tinham crescido e amadurecido e que continuavam juntos apesar de tudo. Shail também se encontrava ali: levavam-no no dorso de um paske. Estava muito fraco e tinha perdido a sua perna artificial, mas continuava vivo.

Aquilo era a Resistência. Os seus amigos. Todos juntos outra vez.

E o melhor de tudo era que não havia nem rasto do shek. Talvez Victoria tivesse finalmente recuperado o juízo, e tudo pudesse voltar a ser como antes... mas Alexander não conseguia evitar perguntar-se o que teria estado ela a fazer durante aquele tempo todo a sós com Kirtash e por que razão regressara sem ele.

Ainda assim, ao ver Jack e Victoria guiando o grupo, consolando as sacerdotisas mais afectadas, ajudando Zaisei a cuidar de Shail, comportando-se como os heróis que deviam ser, Alexander não teve coragem para lhes virar as costas e afastar-se deles.

Gaedalu também os acompanhava. Hesitara entre ficar no Oráculo ou ir para o bosque de Awa, mas Jack convencera-a a ir com eles. Havia muito para falar, e era necessário que tanto ela como Ha-Din estivessem presentes.

As dríades, guardiãs de Awa, deixaram-nos passar. A comitiva demorara vários dias a atravessar Derbhad; muitos feéricos tinham-nos visto, e as notícias circulavam depressa.

Agora, guiados pelas dríades, avançavam pelos caminhos estreitos do bosque, caminhos que só as fadas eram capazes de encontrar. No primeiro dia encontraram o bosque tão brilhante e exuberante como sempre; mas, a partir da segunda jornada, depois de atravessarem o rio, começaram a ver os estragos causados pelos sheks na última batalha. Nalgumas zonas do bosque ainda estava frio, e as árvores tinham morrido debaixo de uma camada de geada. Victoria reparou que as dríades faziam o possível por evitar aqueles lugares, no entanto, por vezes não tinham outra hipótese senão atravessá-los. Isto queria dizer que o bosque fora mais afectado do que elas queriam dar a entender.

Era já de noite quando alcançaram o novo Oráculo. A comitiva deteve-se, impressionada.

Não se parecia com os outros Oráculos erigidos em Idhún antes da chegada dos sheks. Noutras circunstâncias, ninguém se teria lembrado de construir um Oráculo no meio do bosque; mas, durante o império de Ashran, Awa parecia o único lugar seguro, a única opção possível.

Como seria de esperar, os feéricos tinham imposto condições: todas as salas do novo Oráculo eram árvores vivas, cujos troncos, ramos e raízes se entrelaçavam para formar paredes e telhados vegetais. Na realidade, a arquitectura feérica nunca tinha enfrentado um desafio semelhante: as árvores-casa das fadas costumavam ser individuais, enquanto que o Oráculo teria de albergar muita gente e necessitaria de diferentes tipos de dependências. "Compreende-se que tenham demorado anos a construí-lo", pensou Jack. Por muito depressa que se desenvolvessem as árvores em Awa, até os feéricos deviam ter precisado de bastante tempo para as fazer crescer de maneira a formarem aquele edifício.

A única concessão das fadas à arquitectura humana, ou, melhor dizendo, celeste, era o corpo central do edifício, coberto por uma grande cúpula. Aquela cúpula era absolutamente necessária para o Oráculo, pois era através dela que se captavam as vozes dos deuses.

"De certeza que agora prefeririam não a ter construído", pensou Jack, com um estremecimento.

Relatara a Victoria tudo o que tinha ouvido na Sala dos Ouvintes. Por alguma razão, não havia partilhado aquela experiência com Shail nem com Alexander. O feiticeiro talvez estivesse disposto a ouvi-lo, mas ainda se sentia fraco e Jack não queria incomodá-lo. Quanto a Alexander... bem, Jack já sabia qual era a sua opinião acerca da guerra entre dragões e serpentes aladas. Não fazia sentido tentar convencê-lo a mudar de opinião.

Victoria, por sua vez, falara-lhe de Shizuko e dos sheks que se tinham refugiado no Japão, da janela interdimensional aberta por Gerde e do que tinham descoberto na biblioteca de Limbhad, graças ao livro dos unicórnios. Coincidia com o que Domivat referira ao próprio Jack.

Este também lhe contara tudo o que acontecera em Idhún durante a sua ausência. Victoria escutou, impressionada, o relato da chegada dos deuses Karevan e Neliam, da sua experiência em Nanhai, em Porto Esmeralda e na ilha de Gaeru, e sobre o que Jack tinha descoberto nas ruínas do Grande Oráculo.

- Agora que já sabes - disse -, podes dizer ao shek que é quase certo que a sua mãe se chamava Manua e era ouvinte no Grande Oráculo, onde conheceu Ashran quando este lá esteve à procura de informação sobre o sétimo deus. Sendo assim, Christian nasceu ali, nos confins de Nanhai. A sua mãe deve tê-lo levado do Oráculo depois de escutar a profecia, a que falava do regresso dos sheks pelas mãos de Ashran. Presumo que foi a única a compreender realmente as implicações dessa profecia. Tinha visto Ashran morrer e ressuscitar dando corpo ao sétimo deus, mas é bem provável que ninguém tenha acreditado nela na altura, de modo que a sua única possibilidade foi fugir para longe com o seu bebé.

- E o que foi feito dela?

- Ashran encontrou-a na sua cabana de Alis Lithban, no dia da conjunção astral, e arrancou-lhe o filho. Possivelmente matou-a na altura, ou talvez ela tenha procurado refúgio noutro lugar. Não sei. Tentei questionar Gaedalu sobre isso, mas reagiu de forma estranha, quase com fúria. É óbvio que conheceu Manua, e parece que a odeia. Não sei se por ser a mãe de Christian, se por ter tido uma relação com Ashran ou por algum motivo pessoal. Deu-me a entender que está morta, mas não sei se acredito nela. Posso tentar saber mais coisas. Se continuar a interrogá-la, acabará por me contar tudo o que sabe.

Victoria abanou a cabeça.

- Não é preciso - disse -, não forces as coisas. Direi a Christian quem foi a sua mãe e deixarei nas suas mãos a opção de a procurar, se ele quiser. Creio que é algo que deve ser ele a decidir.

Jack olhou-a de relance.

- Vais contar-lhe? Foi para junto de Gerde. Como sabes que voltarás a vê-lo?

- Sei que vai voltar. Ainda uso o seu anel.

Jack meneou a cabeça, preocupado. Não encaixara bem a notícia de que Christian se tinha unido a Gerde. Nem mesmo Victoria era capaz de encontrar razões que justificassem aquela conduta.

- Foi depois de termos visto através da Alma a matança levada a cabo pelos szish - recordou. - Ele afirmou: "Os szish não são assim." Depois decidiu que devia regressar para junto de Gerde. Creio que entendeu algo que nós não conseguimos compreender.

- E não foi capaz de o partilhar contigo? - perguntou Jack, exasperado. - Volta a mudar de lado, assim, sem nenhuma explicação?

Victoria ergueu a cabeça.

- Eu confio nele, Jack - limitou-se a dizer.

- Sim, claro - retorquiu ele. - Eu sei que consegues aceitar calmamente que ajude os sheks a conquistar a Terra, ou que vá ter com uma fada que, além de ser a sétima deusa, sempre quis seduzi-lo, continuando a confiar nele. Mas não sei se isso me basta a mim. Porque é que não é capaz de se comprometer com um lado de uma vez por todas?

Victoria fitava-o, muito séria.

- Jack, depois de tudo o que aprendemos... achas realmente que faz sentido continuar a falar de lados?

Jack não soube o que responder.

É que, em parte, Victoria tinha razão. Durante a viagem a Awa, Jack ouvira Alexander falar da Resistência, da luta contra os sheks e do Sétimo, e, embora tudo aquilo lhe fosse bastante familiar, ao mesmo tempo soava-lhe como uma canção muito distante, palavras que já não tinham nenhum significado para ele.

Só esperava que a reunião com Ha-Din lhe aclarasse um pouco as ideias. O Pai era uma pessoa aberta e conciliadora, muito mais do que Gaedalu, que, além disso, lhe parecia cada vez mais misteriosa e sinistra.

Quando viu aparecer o celeste, que saía do Oráculo para os receber com um sorriso rasgado, sentiu-se aliviado. As sacerdotisas fizeram-lhe uma breve reverência. Alexander baixou a cabeça em sinal de respeito, e Jack e Victoria imitaram-no.

- Bem-vindos, visitantes - saudou Ha-Din, ainda a sorrir. - Já passou bastante tempo desde a última vez que recebi alguns de vós aqui em Awa, e as coisas mudaram muito desde então. Fico contente por vos ver a todos de novo. Entrem; arranjaremos alojamento para todos.

Foi-lhes-oferecida uma ceia leve e informal, durante a qual falaram de coisas banais. Os recém-chegados estavam cansados e desejavam ir dormir o quanto antes. Ha-Din propôs que se reunissem no dia seguinte, com a cabeça mais fresca, e todos concordaram.

No início, as sacerdotisas mostraram-se inquietas com a ideia de dormir numa sala formada por árvores vivas, mas depressa verificaram que por dentro o Oráculo apresentava tantas comodidades quanto uma casa de pedra. As camas eram fungos enormes que cresciam no próprio chão, suaves e fofos, e os lençóis que as cobriam eram feitos de largas folhas aveludadas, quentes e confortáveis. Não havia portas, mas as espessas cortinas de ramos e lianas que fechavam os acessos aos cómodos garantiam a privacidade.

O jovem noviço celeste que os guiou até aos seus aposentos acomodou Jack e Victoria no mesmo quarto, e ninguém levantou qualquer objecção.

Não voltaram a falar de Christian. Jack sentira muitas saudades de Victoria e não estava disposto a estragar aquela noite lembrando-se do shek. Quase não tinham tido intimidade nos dias anteriores e, agora que estavam por fim a sós, não pensava desperdiçar a oportunidade.

Victoria, em contrapartida, tinha dado graças por aquela falta de intimidade. Também sentira saudades de Jack, mas, depois de ter passado tanto tempo com Christian em Limbhad, era estranho voltar a caminhar debaixo dos três sóis de Idhún, junto de Jack. Felizmente, não teve de lho dizer pois, quando puderam desfrutar de uma noite a sós, no Oráculo, Victoria já se tinha acostumado de novo à presença do dragão.

Porém, mais tarde, quando ele já dormia profundamente ao seu lado, Victoria continuava acordada, nos braços quentes de Jack, sentindo falta da suave frieza de Christian. Não pôde evitar perguntar-se se estaria bem. Levou aos lábios a pedra de Shiskatchegg e viu como esta se iluminava suavemente, indicando que Christian restaurara o vínculo que havia entre os dois e que costumava cortar às vezes, para que ela tivesse privacidade quando se encontrava a sós com Jack.

Victoria sorriu na penumbra. "Tem cuidado", disse-lhe em silêncio. "Não faças disparates."

Longe, no outro extremo do continente, noutro grande bosque, Christian detectou a sua presença do outro lado da sua percepção e sorriu por sua vez.

Estava na árvore de Gerde, contemplando com interesse a bebé que ela sustinha nos seus braços.

- Saissh - disse, pronunciando o nome que a fada lhe tinha dado.

- Muito apropriado, não é? - sorriu ela. - Queres pegar nela? Antes que Christian conseguisse responder, Gerde entregou-lhe a menina. O shek pegou nela com cuidado, mas Saissh acordou imediatamente e desatou a chorar.

- Não te preocupes, chora muito - disse Gerde, voltando a pegar nela; embalou-a nos seus braços, cantarolando-lhe docemente, até que a menina se calou novamente. - Os bebés são bem mais sensíveis do que os adultos. Qualquer humano se sentiria intimidado na tua presença, mas procuraria aparentar que estava tudo bem. Um bebé não tem porquê dissimular. O seu instinto diz-lhe que não és totalmente humano; como não gosta de ti nem quer estar contigo, encarrega-se de que toda a gente o saiba para que te afastem dele. Criaturas simples e sinceras, os bebés.

Voltou a deitá-la no bercinho de folhas que tinha preparado para ela. Christian fitou-a em silêncio e perguntou:

- E por acaso não nota que tu também não és totalmente fada?

- Sim, nota - sorriu Gerde. - Mas vai-se acostumando a isso. Não penses que a minha essência está assim tão afastada do que há no fundo do coração humano, Kirtash. É mais fácil ela acostumar-se a mim do que chegar a gostar de ti.

- E é preferível que ela se acostume a ti, não é? Gerde sorriu.

- Sim - ronronou. - É preferível.

- Vai demorar muito até ela atingir a idade adequada. E não temos tanto tempo, Gerde. Achas mesmo que vale a pena criá-la?

- "Tanto tempo" não significa para ti o mesmo que para mim - recordou-lhe a fada. - Este mundo será destruído em breve e ainda serão precisos muitos anos para que possamos começar a conquistar o outro. Nessa altura, a minha Saissh já estará preparada. Será ela a dirigir a conquista.

- É um plano lento, complexo e trabalhoso.

- Por acaso tens outro melhor? - perguntou Gerde, olhando-o com interesse.

- Um plano bastante ambicioso, minha senhora - sorriu Christian. E muito mais audaz. É arriscado, mas, se correr bem, em pouco tempo deixarás de ter de te preocupar com os sangues-quentes ou com os seus deuses... para sempre.

O rosto de Gerde iluminou-se gradualmente com um sorriso rasgado. Acariciou suavemente a face de Saissh, e a menina balbuciou, agitando as mãozinhas no ar.

- Sabia que fazia bem mantendo-te ao meu lado, Kirtash - disse. Conta-me, em que consiste o teu plano?

Christian retribuiu o sorriso, mas não chegou a dizer nada, porque naquele momento entrou alguém na árvore que ficou a olhar para eles.

- Bem - pronunciou, com um arquejo rouco. - Até parece uma família. Que ternura.

Christian ergueu a cabeça.

- O que é que ele está a fazer aqui? - perguntou a Gerde, com perigosa suavidade.

Ela encolheu os ombros.

- O mesmo que tu: a aborrecer-me com uma desnecessária ostentação de orgulho masculino. Até podes ter ideias brilhantes ocasionalmente, Kirtash, mas isso não te dá o direito de questionar as minhas decisões. Ele está aqui porque eu quero que esteja, e isso deve bastar-te. Quanto a ti - acrescentou, dirigindo-se a Yaren -, da próxima vez que não te dirigires a mim com o devido respeito, mato-te.

Yaren ficou a olhar para ela com um brilho de desafio a assomar nos seus olhos, mas acabou por assentir e baixar a cabeça humildemente.

- Porque é que ainda não o mataste? - perguntou-lhe Christian, com curiosidade.

- As vezes é-me útil - respondeu Gerde. - Tal como tu. Christian não comentou.

- Fora daqui os dois - ordenou a fada. - Conseguiram deixar-me com dores de cabeça.

Quando Christian e Yaren abandonaram a árvore, Gerde tomou a bebé nos braços e sentou-se num canto, meditabunda.

- O que achas? - perguntou à menina. - Deveria matá-los aos dois?

Saissh olhou para ela com os seus enormes olhos azuis. Gerde tocou-Ihe no nariz com a ponta do dedo, e a bebé riu-se.

- Ris-te por tão pouco - comentou Gerde, com inveja, erguendo-a para olhar para ela. - Sim, vais ser bonita quando cresceres. Tão bonita quanto uma humana pode ser, obviamente - assinalou. - Ainda bem que Yaren te resgatou das tendas dos bárbaros. Terias acabado por te tornar numa bruta, como todos eles.

Saissh pareceu concordar, porque emitiu um ruidinho parecido com um riso. Gerde sorriu.

- Mas isso não basta, pois não? - disse.

Ergueu a mão; na sua palma materializou-se um objecto longo e afiado, branco e puro como um raio de luar. O bebé observou-o com interesse, espantado.

- Olha para isto - disse Gerde. - O símbolo da magia, do poder que os deuses tiveram de deixar nas mãos de criaturas pequenas e frágeis como os unicórnios, porque eles próprios eram demasiado grandiosos para o conceder aos mortais sem os esmagar. O poder criador dos deuses... que sempre me esteve vedado... até agora.

A menina ergueu as mãos para o corno de unicórnio, procurando agarrá-lo. Gerde sorriu novamente.

- Gostas, não é? Pega nele.

Pô-lo ao seu alcance. As mãozinhas da bebé fecharam-se em volta do corno; Gerde sentiu como a energia do ambiente passava por ela e se canalizava através do corno, para se derramar sobre a pequena Saissh, que lançou uma exclamação de júbilo, enquanto os seus olhos se enchiam de luz por um instante e a sua boca se curvava num sorriso extasiado. Gerde afastou o corno dela, com suavidade, e Saissh agitou as mãozinhas no ar, procurando agarrá-lo outra vez.

- Não, não, já tiveste o suficiente, pequena - ralhou Gerde. - Suficiente para te iniciar no caminho da magia.

Saissh gemeu por um momento e depois desatou a chorar. Gerde fez desaparecer o corno.

- Oh, cala-te - protestou, tomando-a nos braços para a embalar.

Lá fora, Christian ergueu o olhar para contemplar o manto de estrelas que envolvia as três luas. Tinha sentido saudades do céu idhunita. Captou uma presença junto a si.

- O que queres? - murmurou.

- Porque é que voltaste? - ciciou Yaren. - Julgava que estavas a cuidar de Lunnaris.

Christian voltou-se e cravou nele um olhar gélido.

- Não voltes a mencionar o seu nome - advertiu-o. - Não com esse tom.

Ele respondeu com um risinho apagado.

- Achas que fingir que não existe me fará odiá-la menos?

- Não. Mas evitará que me lembres que pretendo matar-te.

Yaren recuou um passo. Porém, a sua voz soou trocista quando disse:

- Atrever-te-ias a matar-me sabendo que estou sob a protecção de Gerde?

- Em breve cansar-se-á de ti - sorriu Christian. - Assim que deixares de lhe ser útil... se é que alguma vez o foste.

Não disse mais nada e também não ergueu a voz, nem foi necessário: um violento arrepio percorreu as costas de Yaren, que semicerrou os olhos, inclinou a cabeça e se afastou na escuridão.

Christian viu-o ir-se embora. Perguntou-se porque é que o tinha ameaçado. Normalmente não se dava ao trabalho de advertir alguém de que ia matá-lo. Fazia-o, e ponto final.

"Mas agora não posso fazê-lo", compreendeu. O feiticeiro tinha razão. Por enquanto, estava sob a protecção de Gerde, e não era boa ideia contrariá-la.

Também Victoria, recordou de repente, lhe tinha pedido que respeitasse a vida de Yaren. Mas Christian pensava matá-lo de qualquer forma. Porque é que obedecia aos desejos de Gerde e não aos de Victoria?

Não quis parar para pensar nessa questão. Silencioso como uma sombra, regressou à sua tenda para esperar a chegada da manhã.

Shail acordou bruscamente a altas horas da madrugada. Tinha a sensação de que havia uma luz muito brilhante no quarto. Pestanejou, surpreendido, e compreendeu que não tinha sido um sonho. Havia uma forma branca junto à sua cama, algo tão luminoso que lhe feria os olhos. Virou-se para Zaisei, que se encontrava junto dele. A jovem continuava a dormir profundamente, e Shail hesitou entre acordá-la ou não.

- Não faças isso - sussurrou uma voz; era-lhe familiar, mas, ao mesmo tempo, tinha um tom novo, diferente. - Deixa-a dormir.

Shail atreveu-se a olhar de novo para a figura que se erguia ao seu lado. Pouco a pouco, os seus olhos foram-se acostumando à luz. Reconheceu aquele perfil.

Era um unicórnio.

- Lunnaris... Vic? - murmurou, um pouco aturdido.

Ela inclinou ligeiramente a cabeça. O seu corno não era tão comprido como dantes.

- Não conseguia dormir - disse -, por isso decidi vir ver-te. Já pretendia fazê-lo, mas amanhã haverá demasiada gente e... bom, não gosto que me vejam assim - concluiu, com alguma timidez.

Shail, maravilhado, levantou a mão para lhe tocar, mas ela retrocedeu um pouco. O feiticeiro deixou cair a mão.

- E porque... porque é que vieste com esse aspecto?

- Porque queria que me visses. Não tinhas tornado a ver Lunnaris desde a conjunção astral, pois não?

- Não - admitiu Shail, um tanto emocionado. - Cresceste muito e... enfim, estás muito bonita.

O unicórnio desviou o olhar.

- Obrigada - disse -, embora saiba bem que o meu corno ainda tem um aspecto ridículo. - Sorriu. - Mas já funciona e esse é um dos motivos que me trouxeram aqui esta noite.

Shail olhou para ela sem perceber. Victoria baixou a cabeça para um objecto que repousava sobre a bolsa do feiticeiro, que fora atirada para um canto junto à cama.

- Ah, isso - entendeu ele. - Não sei, achas que é boa ideia?

Como resposta, Victoria colocou a ponta do seu corno sobre a superfície polida da perna artificial e fechou os olhos.

A magia fluiu através dela, percorrendo as suas veias e canalizando-se através do corno. Victoria notou que a perna de metal absorvia aquela magia, sedenta de vida. Sufocou uma exclamação quando o artefacto começou a sugar cada vez mais e sentiu um arrepio: aquela sensação tinha-lhe recordado, por um momento, a horrível experiência da Torre de Drackwen, quando Ashran lhe arrancara a magia à força. Inspirou fundo e esforçou-se por se recompor.

Continuou a transferir magia para a perna artificial, até que sentiu que esta estava já repleta e não precisava de mais. Então afastou-se e deixou cair a cabeça, extenuada.

- Já está - disse. - Experimenta pô-la.

Shail hesitou por instantes; mas viu-a tão cansada que não teve coragem de lhe dizer que não. com cuidado, para não acordar Zaisei, soergueu-se um pouco e esticou-se para pegar no membro de metal. Um formigueiro delicioso percorreu os seus dedos quando a tomou entre as mãos. Olhou de perto para ela. Parecia maravilhosamente viva e palpitante.

No entanto, estava ainda muito recente na sua memória a dor que tinha sofrido quando Ylar lha arrancara. A ferida mal havia cicatrizado e a ideia de voltar a encaixar a perna nela fê-lo estremecer.

Apesar disso, atreveu-se a aproximá-la um pouco do seu coto... só para verificar se encaixava.

E antes que pudesse reagir, o artefacto escapou-se-lhe das mãos e ajustou-se à sua carne, lançando de novo os seus tentáculos de metal, ávidos de vida verdadeira. Shail deixou escapar um grito; contudo, a perna artificial encaixou no sítio na perfeição, fundindo-se com a sua carne como se fossem ambos feitos do mesmo.

- Shail, o que se passa? - murmurou então Zaisei, semiadormecida. Shail! - exclamou, acordando completamente ao ver o que estava a acontecer. - Tira isso, vai-te...!

- Calma - tranquilizou-a ele, embora ainda estivesse a tremer. - Não te preocupes. Voltou a funcionar e acho que desta vez está tudo bem... Olha, o medalhão de pedra minca nem sequer se activou... isso quer dizer que já não precisa da minha magia para se acoplar ao meu corpo.

Zaisei olhou para a perna, entre maravilhada e desconfiada.

- Mas como... como fizeste isso?

- Foi Victoria... Lunnaris... a sua magia fez este milagre. Pestanejou para conter as lágrimas e voltou-se para o unicórnio. Mas já não havia mais ninguém no quarto. Victoria tinha desaparecido.

No dia seguinte, Shail entrou na sala de reuniões caminhando sobre as duas pernas. Parecia pálido e cansado, e Zaisei não se afastava dele, preocupada. Porém, os passos do feiticeiro eram firmes e seguros. Ao vê-lo, todos deixaram escapar um murmúrio de surpresa. Jack olhou para Victoria, mas ela não fez nenhum comentário.

Foi a única boa notícia do dia. Apesar de os sacerdotes os terem deixado descansar até tarde, quase ninguém tinha dormido bem e todos estavam nervosos e cansados. Era inevitável que acabassem a discutir.

Contudo, o encontro começou bem. Encontravam-se presentes Ha-Din e Gaedalu, juntamente com vários sacerdotes e sacerdotisas, entre as quais Zaisei; a Resistência em pleno, reunida de novo pela primeira vez desde a sua chegada a Idhún (ninguém pareceu sentir a falta de Christian); e, por último, duas fadas e um silfo, representando o povo feérico.

Jack lamentou a ausência de Qaydar. Nem sempre se tinha dado bem com o Arquifeiticeiro, mas passara muito tempo na Torre de Kazlunn, tinha-se familiarizado com os feiticeiros que lá viviam e sentia que faziam falta, numa reunião daquela importância, mais representantes da Ordem Mágica, para além de Shail.

De qualquer forma, desta vez não iriam falar de feiticeiros poderosos, de conjuros complicados nem da agonia da magia. Pelo menos uma vez, o divino ganharia importância sobre o mágico.

Jack foi o primeiro a tomar a palavra. Falou-lhes do que tinham vivido na Torre de Kazlunn, do furacão devastador que por pouco tinha acabado com o último bastião da Ordem Mágica.

- A Mãe Venerável e as suas sacerdotisas sabem do que estou a falar disse com gravidade. - Por pouco alcançava-as em Celestia.

Zaisei empalideceu ao lembrar-se. Gaedalu baixou a cabeça, sem dizer nada.

Jack falou então dos estragos que Karevan estava a causar no Norte e do terrível maremoto que arrasara toda a costa este de Idhún. Desta vez não guardou para si o que sabia e atribuiu-o à chegada ao mundo da deusa Neliam. Apercebeu-se de que, à medida que ia falando, os sacerdotes ficavam cada vez mais nervosos, mas não se calou.

- Os Oráculos andavam há tempos a avisar que isto ia acontecer concluiu o jovem. - O estado em que os ouvintes se encontram é prova disso. Os Seis regressaram a Idhún porque o Sétimo está entre nós, e eles vão enfrentá-lo.

- E como podes estar tão certo de tudo isso? - inquiriu um sacerdote silfo, movendo a cabeça em sinal de desaprovação. - Dizes que o Sétimo está entre nós. Então, por que razão não podemos acreditar que todos estes fenómenos estão a ser causados por ele mesmo?

Jack ficou por um momento calado para organizar as ideias. O certo era que só soubera do poder destrutivo dos deuses através de Sheziss, uma shek, e que fora Christian, outro shek, quem lhe dissera que o Sétimo reencarnara em Gerde. A intuição dizia-lhe que devia acreditar neles, mas os sacerdotes dos Seis não teriam a mesma opinião.

- Nós enfrentámos Ashran - disse. - Descobrimos então que era a encarnação do sétimo deus, algo que devíamos ter deduzido muito antes, porque nem sequer Qaydar,

o feiticeiro vivo mais poderoso, teria sido capaz de mover os astros do modo como ele o fez.

Uma vez morto Ashran, o Sétimo ficou livre. Contudo, até há pouco tempo, esses... fenómenos destruidores não se tinham manifestado. Durante todos estes meses,

após a queda de Ashran, gozámos de uma relativa calma... a calma que precede a tempestade.

Mas o Sétimo continuava livre, e um deus não pode ser derrotado pelos mortais, nem sequer pelos dragões; de modo que os Seis decidiram vir eles mesmos lutar contra

ele.

O problema é que são seres grandiosos e formidáveis, e nós não somos mais do que pequenos insectos comparados com eles. Esmagar-nos-ão quase sem darem por isso.

De facto, já estão a fazê-lo. Enquanto não encontrarem o Sétimo, continuarão a dar voltas por Idhún, e o mais certo é que não dêem com ele, pois voltou a esconder-se sob um disfarce mortal. Agora assumiu a identidade da feérica Gerde, uma feiticeira renegada.

Houve murmúrios em torno da mesa. Jack notou o olhar alarmado que Victoria lhe dirigiu. Sabia que ela teria preferido que não denunciasse Gerde, por enquanto... pelo menos até que soubessem o que Christian tinha em mãos. Só que Jack, embora tivesse decidido não mencionar o shek enquanto pudesse, não pensava encobrir Gerde.

- Os sheks sabem o que está a acontecer. Sabem que os Seis vieram à procura da sua deusa, e mais: não acreditam que vão conseguir vencer esta batalha. Por isso estão a tentar fugir. Mas querem fugir para um mundo que é para mim tão importante como este. Refiro-me à Terra, o mundo onde eu e Victoria nascemos e crescemos. Não tenho a menor intenção de deixar que isso aconteça, mas também não quero que os deuses esmaguem Idhún no decorrer da sua disputa. Alguma sugestão?

Reinou um silêncio de pedra. Estavam todos a tentar assimilar o que Jack lhes tinha contado, e, de facto, alguns olhavam para ele circunspectos, como que a perguntar-se se estava louco ou se se tratava de uma brincadeira de mau gosto.

- Se tudo isto for verdade - disse então Alexander, calmamente -, talvez a melhor solução seja procurar dizer aos deuses onde está Gerde. Para que acabem com ela, e com o Sétimo, de uma vez por todas.

Jack assentiu.

- É uma opção - disse -, mas não sabemos de que maneira podemos comunicar-nos com eles. A Sala dos Ouvintes só serve para escutar os deuses, não para falar com eles. No entanto, no passado, Ashran, o Necromanfô, conseguiu comunicar-se com o sétimo deus através da Sala dos Ouvintes do Grande Oráculo.

Ouviram-se exclamações escandalizadas. Ha-Din ergueu a mão.

- Julgo que é verdade - disse. - Já sabia há uns tempos que Ashran tinha passado uma temporada no Grande Oráculo... antes de se tornar na poderosa criatura que subjugou o nosso mundo depois da conjunção astral. Na altura, que os Seis me perdoem, não fui capaz de entender a grande relevância desta informação. Nunca me ocorreu pensar... nem a mim nem a ninguém... que o próprio Ashran fosse o sétimo deus. Pela forma como mo descreveram... pareceu-me muito humano, na realidade.

- Foi humano antes disso - murmurou Jack. - Depois... já não sei em que é que se transformou exactamente.

Fez-se um novo silêncio. Ninguém se atrevia a falar agora, embora Jack lesse a dúvida nos rostos de muitos dos presentes.

- Por enquanto - tomou a palavra Shail -, acreditamos terem chegado a Idhún os deuses Karevan, Yohavir e Neliam. Karevan mantém-se nas montanhas exteriores de Nanhai e move-se tão lentamente que os gigantes, advertidos da sua presença, se limitam a afastar-se do seu caminho. Quanto a Neliam, depois de provocar a onda que arrasou as costas de Nanetten, Derbhad e Gantadd, e as cidades do Reino Oceânico, seguiu para sul e afastou-se do continente. Não sabemos onde está. Em relação a Yohavir... bem, parece que, depois de arrasar Kazlunn e Celestia, parou... no céu, entre Rhyrr e Haai-Sil. Está lá há vários dias; os celestes informaram-nos que ainda se vê uma estranha espiral de nuvens por cima das suas terras, algo que mal deixa passar a luz dos sóis, mas que não deita chuva. Parece que lhes provoca medo e inquietação, mas por enquanto não se mexe dali.

Talvez estejam à espera de que venham os outros deuses, ou tenham chegado à conclusão de que não captam a essência do Sétimo em Idhún e se encontrem a aguardar

que se manifeste. Não sei. Mas não creio que esta situação se mantenha estável durante muito tempo. Há-de vir o momento em que seguirão novamente a sua rota, e nessa

altura...

Não disse mais nada. Ha-Din demorou um pouco a tomar a palavra.

- Não vou entrar no debate acerca da natureza dos males que estão a assolar Idhún. Acho que alguns de nós não estão preparados para aceitar a explicação de Yandrak, que contradiz muitas das nossas crenças. No entanto, parece-me necessário falarmos acerca de como podemos evitar isto. Várias povoações foram destruídas e o mais provável é que muitas mais o sejam nos próximos tempos. O que podemos fazer a esse respeito?

Jack meneou a cabeça.

- A única coisa que me ocorre é vigiarmos os seus movimentos, estarmos atentos e sabermos reagir de imediato para evacuar as zonas por onde vão passar. É o que temos estado a fazer até agora, e sei que não é um grande consolo, porque não conseguimos salvar toda a gente, mas... que outra coisa podemos fazer?

- Talvez fosse mais fácil descobrir onde está Gerde, capturá-la e entregá-la aos deuses - sugeriu Alexander.

- Capturar Gerde? - repetiu Jack. - Gerde, que tem agora o poder de uma deusa? Demorámos anos a chegar a Ashran; não creio que com Gerde fosse muito mais simples.

Calou-se, recordando de repente que Christian estava com ela. Seria aquele o plano secreto do shek?

- E porque não tentamos? - insistiu Alexander. - Só temos de descobrir onde se esconde...

- Essa não é a questão - cortou Jack. - Sabemos onde se esconde. Está em Alis Lithban.

- Jack! - protestou Victoria.

- O que é? - defendeu-se ele. - É verdade. bom, sei que Alis Lithban é muito grande, mas temos razões para pensar que se oculta na zona sul do bosque, perto de Raden.

Alexander assentiu.

- Podemos tentar capturá-la, sim. E entregá-la aos deuses...

- Mas isso não evitará que lutem e destruam o mundo - fez notar Victoria.

- Não sabemos. Estamos a falar dos Seis e, se Gerde é realmente o Sétimo, não pode ser rival para eles. Que tipo de deus se oculta num corpo mortal? Está a esconder-se porque sabe que os outros deuses o irão destruir, porque têm poder para o fazer. Talvez o melhor seja possibilitar que tudo termine de uma vez por todas. Não creio que seja pior do que ter os deuses a destruir o mundo à sua passagem enquanto a procuram.

- Há outra saída - disse Jack. - Existe um mundo... chama-se Umadhun e é o lugar onde os sheks habitaram até à chegada de Ashran. É um mundo morto. Se conseguíssemos que os deuses solucionassem lá as suas disputas, Idhún estaria a salvo. Eu sei onde fica Umadhun e como chegar até lá.

- A sério? - perguntou então Gaedalu, pronunciando-se pela primeira vez. - Como é possível que o saibas?

Jack susteve o seu olhar sem pestanejar.

- Porque foi a minha raça que desterrou os sheks, Mãe Venerável disse calmamente.

Havia mais razões, e Gaedalu pressentia-o. Mas a expressão serena e decidida de Jack mostrava que não ia dar explicações. Gaedalu semicerrou os olhos.

- Não nos estás a contar tudo o que sabes, YanaValc - acusou.

- Talvez se deva ao facto de não considerar necessário dar mais pormenores - replicou ele, imperturbável.

- Não? Pois eu acho que sim. Há muitas coisas no teu comportamento e no de Lunnaris que não ficaram claras. Onde está Kirtash, o shek que defendiam com tanta convicção?

- Isso não tem importância - respondeu Jack. - Ajudou-nos durante um período, lutou ao nosso lado contra Ashran e agora voltou para junto dos seus, que julgarão os seus actos conforme acharem conveniente.

- Não tem importância? - repetiu Gaedalu. - O filho de Ashran continua vivo e a colaborar com o inimigo, e isso não tem importância!

- Temos pela frente vários deuses e o que resta da raça shek, que não é pouco. Além disso, sabemos que Gerde tem o poder de consagrar feiticeiros, tal como Lunnaris. Considerando tudo isto, creio que Kirtash é o menos importante dos nossos problemas - replicou Jack com frieza.

- Eu estou de acordo com a Mãe Venerável, Jack - interveio então Alexander, muito sério. - Há muitas coisas que não nos contaste e, depois de tudo o que vivi, em Idhún e na Terra, nunca me passaria pela cabeça pensar que o que Kirtash faz "não tem importância". Permitiste-lhe que levasse Victoria consigo. Estiveram juntos até há poucos dias, não estiveram?

Ouviram-se novamente murmúrios escandalizados. Victoria levantou-se e pediu silêncio para falar.

- Não tem sentido continuarmos a falar de Kirtash - disse. - Faça o que fizer e diga o que disser, vais continuar a considerá-lo um inimigo, de modo que aceitem simplesmente que está com os seus, onde todos vocês acham que deveria estar. Qual é o problema?

- O "problema" é que os seus são o inimigo, Victoria! - exclamou Alexander, e os seus olhos faiscaram brevemente com um brilho selvagem, embora só Jack o tenha detectado. - Consenti-te muitas coisas, mas creio que, no que diz respeito a Kirtash, foste demasiado longe a defende -lo, quando é óbvio que não o merece.

- Kirtash lutou ao nosso lado na Torre de Drackwen - interveio Jack, elevando a voz. - Não sabes do que estás a falar porque não estavas lá. Se não tivesse sido por ele, nós os dois estaríamos mortos agora e Ashran continuaria a governar Idhún.

Por aquela altura, já todos tinham começado a discutir. Os celestes permaneceram em silêncio, com os olhos baixos, até que se sentiram incapazes de suportar tanta tensão e, um a um, saíram da sala. A última foi Zaisei.

Contudo, o Pai Venerável permaneceu ali, com o rosto oculto entre as mãos, aguardando em silêncio que os outros baixassem o tom. Quando se tornou evidente que ninguém ia dar o braço a torcer, Ha-Din levantou-se, com uma visível expressão de sofrimento no rosto, e pediu a palavra.

Por fim, todos se foram sentando, mal-humorados. Fez-se um silêncio tenso e desconfortável.

- Estamos muito alterados hoje - disse Ha-Din, calmamente. - Não me parece que se resolva nada a discutir. Mãe Venerável, o teu ódio manifesto por Kirtash é uma questão pessoal que, embora compreensível e respeitável, não deveria interferir no teu juízo sobre o que estamos a debater hoje - censurou-a com suavidade.

- Nesse caso, a atracção louca que Lunnaris sente por aquele shek também não deveria nublar o seu critério - contra-atacou Gaedalu.

- Não fui eu quem mencionou Kirtash, Mãe Venerável - replicou Victoria, com uma cortesia gelada.

- Basta, por favor - interveio Ha-Din. - Assim não vamos chegar a lado nenhum. Temos de continuar a investigar o que está a acontecer no nosso mundo e encontrar uma maneira de o impedir. Não faz sentido que continuemos a acusar-nos uns aos outros.

Ninguém replicou. Alguns baixaram a cabeça, ligeiramente envergonhados.

- Os sóis estão já muito altos - concluiu o Pai, com um breve sorriso. Proponho irmos comer alguma coisa. Continuaremos à tarde. Enquanto isso, espero que reflictamos bastante sobre o que Yandrak nos contou.

Todos pareceram aliviados. Saíram da sala e, um a um, desceram pela escadinha formada pelas raízes da grande árvore, para chegar ao pátio.

Havia um pequeno grupo de feéricos ali à espera. Quando viram Victoria, os seus rostos iluminaram-se com um grande sorriso de alívio.

Jack deu-lhe uma suave cotovelada.

- Acho que alguém vai suplicar-te que lhe concedas a magia - sussurrou-lhe ao ouvido, sorrindo.

Victoria sorriu também, mas não disse palavra.

Porém, Jack estava enganado. O porta-voz dos feéricos, um silfo cujo rosto parecia talhado em madeira e cujos cabelos, semelhantes a longos ramos de sabugueiro, lhe caíam pelas costas até à cintura, inclinou-se brevemente diante dela.

- Dama Lunnaris... sabemos que estás ocupada, mas atrevemo-nos a incomodar-te porque queríamos consultar-te acerca de uma questão que para nós é de vital importância.

- De que se trata? - perguntou ela, intrigada.

Os feéricos olharam uns para os outros. Por fim, o silfo perguntou:

- É verdade que és o último unicórnio?

Victoria ficou petrificada. Há muito que ninguém lho perguntava de forma tão directa.

- Sim, é verdade. Pensava que toda a gente sabia.

- Sabemos que esse aspecto humano não é mais do que um invólucro para a tua verdadeira essência. Sabemos que és um unicórnio. Mas... és, realmente, o último? Não existe a possibilidade de haver mais algum?

Jack julgou compreender o sentido último da pergunta.

- Existe outra pessoa capaz de consagrar feiticeiros - disse -, mas não é um unicórnio. Victoria... Lunnaris é a última.

Os feéricos entreolharam-se novamente. Jack leu a decepção e a desorientação estampadas nos seus rostos de um suave verde-claro. Não pareciam ter ficado impressionados com a notícia de que alguém mais podia outorgar a magia.

- Porque é que perguntam? - indagou.

- Os nossos irmãos de Alis Lithban afirmam que o bosque está a renovar-se de uma forma espectacular - disse uma fada. - E nós pensámos... quisemos acreditar... que talvez os unicórnios tivessem regressado. Desculpa a nossa ignorância, dama Lunnaris... meu senhor Yandrak - acrescentou, com uma profunda vénia.

Nem Jack nem Victoria conseguiram dizer nada durante um momento. Quando os feéricos se afastaram, o jovem olhou para a sua companheira, que tinha ficado muito séria.

- A que achas que se deve? - perguntou com suavidade.

- O bosque reavivou-se em parte graças à magia que Ashran me extraiu na Torre de Drackwen - disse Victoria. - Além disso, os sheks estavam a colaborar com alguns feéricos para lhe devolver o esplendor de dias passados. E provável que Gerde esteja por detrás de tudo isto; talvez tenha encontrado maneira de fazer reverdejar o bosque com o meu corno ou com o seu novo poder de deusa.

- Ou talvez se trate de outra coisa - disse Jack.

- Sim - assentiu Victoria.

Ficaram por um momento em silêncio.

- Não é possível que os unicórnios tenham regressado, pois não? perguntou então Victoria.

Jack olhou para ela.

- Estás a pensar em ir investigar?

- Eu... não sei. Gostaria de ver o que se passa. Alis Lithban é para mim o que Awinor foi para ti, lembras-te? Se soubesses que a terra dos dragões estava a recuperar o seu antigo esplendor, não quererias ir vê-la?

Jack reflectiu.

- Sim - admitiu. - Mas tens de pensar que o mais provável é que tenha chegado outra deusa a Idhún. E já sabes como a proximidade dos deuses te afecta. Quando Yohavir se aproximou da Torre de Kazlunn, estavas prestes a rebentar, e ainda nem tinhas recuperado o teu poder.

Victoria não disse nada.

- Tens mesmo de ir, não é? - perguntou Jack.

- Christian está lá - limitou-se ela a responder.

- Oh! Claro. Tinha-me esquecido.

Na reunião da tarde, Jack informou Ha-Din e os outros das novidades dos feéricos. Todos concordaram que a súbita ressurreição de Alis Lithban era um fenómeno que merecia ser investigado.

- Muito bem - assentiu Alexander. - Então vou convosco.

- Não me parece boa ideia - disse Jack, com suavidade.

- Porquê? Segundo as tuas informações, Gerde, a sétima deusa, está lá. Ela pode ter alguma coisa a ver com isso. Não é o que pensas?

Na realidade, não. Desconfiamos que a deusa Wina chegou finalmente a Idhún.

- Melhor ainda: é a nossa oportunidade de as colocar frente a frente.

Se tudo o que dizes for verdade, Wina vai adorar que lhe sirvamos a Sétima de bandeja, não achas?

-É provável. Mas, precisamente por isso, se as duas deusas se encontrarem, não deveria haver ninguém por perto. Podes sair prejudicado, Alexander.

- Nesse caso, também não deverias ir.

- Eu sou um dragão. E Victoria é um unicórnio.

Alexander fitou Jack. O jovem percebeu a fúria do amigo e, embora lhe doesse afastá-lo daquela maneira e soubesse que acabariam por discutir, também sabia que não tinha outra escolha.

Ninguém mais falava. Todos percebiam a tensão existente entre Jack e Alexander, entre o dragão e aquele que tinha sido seu mestre, um príncipe sem reino, um guerreiro que procurava desesperadamente recuperar o seu lugar num mundo que agora parecia ser governado pelo seu discípulo.

E Jack também percebia tudo isto, mas não sabia como o resolver.

Alexander estava demasiado agarrado às suas ideias e convicções para compreender tudo o que estava a acontecer e aceitar que o seu mundo se tinha virado do avesso.

Reparou que Alexander inclinava a cabeça e franzia o sobrolho, como se estivesse a ouvir alguma coisa. E Gaedalu olhava fixamente para ele.

- Irei convosco, Jack - disse por fim. - E não há mais nada para falar.

Jack meneou a cabeça, preocupado. Podia adivinhar o que Gaedalu lhe tinha dito. De certeza que tinha a ver com Christian.

- Não, Alexander, não insistas.

- Insisto. Ou será que se vão juntar a alguém cuja companhia não consideramos recomendável?

-É melhor não insistires - disse Jack, lentamente. - Sabes bem que esta noite Érea está cheia. Creio que se há alguma companhia não recomendável, pelo menos quando os sóis se puserem, essa companhia é a tua.

Alexander empalideceu e disparou-lhe um olhar magoado; Jack preferia não se ter visto obrigado a dizer aquilo, mas não lamentou tê-lo dito.

- Nós partiremos assim que o Pai Venerável der por concluída esta reunião - prosseguiu Jack. - O príncipe Alsan não está em condições de nos acompanhar hoje; muitos de vocês sabem que ele padece de um mal terrível, mal que o torna violento nas noites de lua cheia.

Alexander deixou-se cair sobre o seu banco e limitou-se a ouvir o que Jack dizia, com o olhar perdido.

- Cuidaremos dele - assentiu Ha-Din. - Os feéricos não deixarão que faça mal a ninguém. Sabemos a dor que tudo isto provoca em Alsan, de modo que proponho que não falemos mais do assunto.

Seguiram as indicações do celeste e não se voltou a falar daquilo; mas também não se tocou noutros temas. Ninguém tinha vontade de continuar ali depois do que acontecera ao longo do dia.

Ao sair, Alexander alcançou Jack e segurou-o pelo braço.

- Como pudeste fazer-me isto? - ciciou.

- Não gostei, acredita em mim - replicou Jack, muito sério. - Mas está na hora de abrires os olhos. Isto não é a Terra, não lutamos contra Ashran e a Resistência já não existe. Enfrentamos algo muito mais sério, muito mais importante do que um assassino meio-shek. As coisas mudaram. E fico triste por, enquanto nós estamos a lutar para salvar o mundo... uma vez mais, tu não seres capaz de ver para além de Kirtash... como de costume. Por favor... acorda. Preciso de ti ao meu lado, mas estás empenhado em lutar numa guerra que já não tem razão de ser. Tenho de prosseguir caminho e combater noutras guerras. Vais acompanhar-me... ou preferes continuar de pé num campo de batalha onde já nada se mexe?

Alexander não respondeu. Jack deu-lhe uma palmada no braço, amistosamente.

- Vamos embora - disse -, mas voltaremos depressa. Tem cuidado. Falaremos com mais calma no meu regresso, está bem?

Alexander olhou para ele, mas continuou sem dizer nada. Preocupado, Jack despediu-se e juntou-se a Victoria, que o esperava um pouco mais adiante. Juntos, de mãos dadas, subiram ao quarto para prepararem as suas coisas.

Alexander viu-os ir.

- Custa a aceitar que te deixem quando estás a sofrer - sussurrou uma voz na sua mente. -

É triste que não dêem importância a algo que mudou a tua vida.

- São muito jovens - disse Alexander a meia-voz. - Julgam que sabem tudo.

- Sim - assentiu Gaedalu, colocando-se junto dele. - Mas estão enganados.

Alexander não respondeu. A varu olhou para ele de soslaio.

- Esse mal da lua cheia de que Yandrak falava - disse com suavidade - é por causa de Kirtash?

Ele semicerrou os olhos. À sua mente vieram imagens de um tempo passado, mas que parecia tão real como se tivesses acontecido no dia anterior. Kirtash a desarmá-lo,

deixando-o inconsciente, capturando-o... para o entregar a Elrion, o imitador de necromante que o tinha transformado no que era. "Faz o que quiseres com ele", tinha dito o grande filho-da-mãe. E depois tinha olhado para ele com aquela sua fria indiferença, e limitara-se a comentar: "Não gostaria de estar na tua pele."

Depois, a agonia.

Alexander tinha desejado morrer muitas vezes depois daquilo. E tudo se devia a ele, a Kirtash. Pelo bem da Resistência, tinha-o aceitado tempos depois como aliado, mas já não podia suportar mais. Não podia suportar que Jack confiasse em Kirtash mais do que nele, não podia suportar imaginar Victoria, a quem tinha visto crescer, nos braços daquela serpente impiedosa. Tinha a sensação de que todos o traíam e troçavam dele, da sua dor.

- Sim - respondeu. - Deve-se a ele. É tudo culpa dele. Gaedalu assentiu em silêncio. Depois, perguntou:

- Gostarias de acabar com ele?

Alexander imaginou-se a enterrar Sumlaris no peito do shek. Sorriu.

- Porque não? Mas é um inimigo poderoso, Mãe Venerável. Gaedalu dirigiu-lhe um grande sorriso.

- Em breve, já não o será. Em breve, príncipe Aísan, poderemos castigar aquela serpente por todos os seus crimes. E ninguém, nem mesmo Lunnaris, será capaz de o salvar.

Alexander fitou-a e assentiu.

- Fala, Mãe Venerável. Interessa-me o que tens para me dizer.

Também na árvore de Gerde se tinha efectuado uma importante reunião naquela tarde. Christian tinha muito para lhe contar, e a fada ouviu-o com atenção, sem o interromper, O shek falou-lhe de coisas que já sabia e de coisas que não sabia; e expôs-lhe pormenorizadamente o plano que traçara. Quando, por fim, Christian parou de falar, Gerde ficou por um momento em silêncio, a reflectir.

- É arriscado - comentou por fim, sacudindo a cabeça. - E não gosto de arriscar tudo numa só jogada. São demasiadas as coisas que podem correr mal.

- Não tens de decidir agora. Posso continuar a investigar por minha conta, enquanto tu continuas com o teu plano. É bom saber que, quando chegar o momento, terás duas opções. Foi assim que funcionámos sempre, não foi?

- Sim - disse Gerde, com um sorriso sinuoso. - Funcionámos sempre assim. Seguindo um plano mas com outro de reserva... por via das dúvidas.

Porém, voltou a cabeça com alguma brusquidão. Não era um gesto próprio dela, e Christian pôde ver que os seus olhos negros brilhavam mais do que o habitual.

- Não suspeitavas mesmo? - perguntou-lhe, com suavidade.

- Não - disse ela. - De facto, é uma revelação tão surpreendente que não estranharia que me estivesses a enganar - acrescentou, erguendo a cabeça para o olhar com alguma ferocidade.

Christian devolveu-lhe o sorriso.

- Porque quereria enganar-te?

Gerde riu-se, com um riso doce e melodioso.

- Ah, minha tortuosa serpente, tens muitos motivos para quereres enganar-me. Quase tantos como eu para te querer matar. Mas porque é que continuas vivo? Por acaso sabes?

- Pela mesma razão que te estou a dizer a verdade - respondeu Christian, calmamente. - Porque nos convém a ambos. Porque, se queremos sobreviver, temos de formar uma aliança.

O sorriso de Gerde rasgou-se. Inclinou-se para a frente, fixando nele os seus olhos negros, cheios de promessas. De súbito, ficou imóvel, e o seu rosto congelou-se num estranho esgar de medo. Levantou-se de rompante, leve como um junco.

- Kirtash! Sentiste isto? Christian ergueu-se, alerta.

- O quê?

Gerde lançou a cabeça para trás. O seu longo cabelo caiu pelas costas.

- Está tão perto! - sussurrou. - Não sentes? Não sentes? - repetiu, em voz mais alta.

Christian ia responder, mas alguém entrou precipitadamente na árvore.

- Minha senhora... - arquejou Yaren, com esforço. - A patrulha voltou. Dizem que há algo estranho no bosque. Algo que está a vir para cá.

-É ela- disse a fada. - Oh, tenho de ir vê-la...

O shek segurou-a pelos pulsos quando já se ia embora.

- Vai matar-te, Gerde.

- Mas tenho de ir! Só... só... não me vou aproximar demasiado... Parecia uma criança a suplicar por um brinquedo novo. Christian olhou para ela, procurando sondar o fundo da sua alma, perguntando-se se Gerde se comportava daquele modo porque era a sétima deusa ou, simplesmente, porque era Gerde.

- vou contigo - decidiu. - Para me assegurar de que não te faz mal. Gerde sorriu-lhe.

- És encantador quando queres fazer de cavaleiro protector, sabias? Christian não respondeu. Voltou-se para Yaren.

- Fala com Isskez e Kessesh e diz-lhes que o acampamento está em perigo. Vamos ver o que se está a passar. Se virem que está a acontecer algo estranho... não esperem por nós. Evacuem todos.

- Quem és tu para...? - começou Yaren, mas Christian interrompeu-o.

- Podes obedecer ou não. Mas, se depois morrerem todos, a responsabilidade será tua.

- Mas...

- Limita-te a transmitir esta informação aos chefes szish. Ao contrário dos humanos, os szish são suficientemente espertos para não questionar uma ordem sensata.

Yaren não respondeu. Inclinou-se ligeiramente diante deles, ainda a tremer de raiva.

Momentos depois, Christian e Gerde embrenhavam-se no bosque, em silêncio.

- Não podemos esperar mais - disse o shek. - Temos de ir.

- Ainda é cedo - respondeu Eissesh. - Ainda não estamos prontos para partir.

- Mas já hão há nenhum lugar onde possamos refugiar-nos. Eissesh não respondeu desta vez.

O êxodo dos sheks começara antes do previsto. Tempos antes, pouco depois da visita de Gerde, tinham tido de abandonar o seu refúgio nas cavernas, porque uma força misteriosa sacudia a base das montanhas e provocava violentos desmoronamentos. Assim, as serpentes não tiveram outro remédio senão deslocar-se para oeste, procurando novos esconderijos no coração da cordilheira. Mas aquele fenómeno acabava sempre por alcançá-los.

- É como se nos perseguisse - opinou outro shek.

- Isso não é possível - respondeu o primeiro. - Os terramotos não têm vontade própria.

- Este, sim - replicou Eissesh. - E é uma vontade que não gosta dos sheks.

Reinou um silêncio de desorientação na assembleia, enquanto as serpentes aladas assimilavam a informação implícita que Eissesh partilhava com elas através da rede telepática.

- Não é demasiado descabido? - perguntou então um deles. - Pode ser obra dos feiticeiros sangues-quentes.

Já sabemos do que são capazes.

Os sheks ciciaram, mostrando a sua irritação. Eissesh ergueu a cabeça e abriu um pouco as asas.

- Até podia ser, mas é pouco provável. Nos últimos tempos estão a acontecer coisas estranhas em Idhún, coisas que escapam ao nosso controlo e ao nosso entendimento. Não sejamos tão néscios quanto os sangues-quentes, que contemplam os seus próprios deuses e não os reconhecem. Aceitemos a possibilidade de os Seis estarem realmente aqui e um deles querer destruir-nos.

Os sheks calaram-se novamente.

- Está bem - concordou aquele que tinha falado primeiro. - Nesse caso, se é verdade que um deus nos persegue, essa é outra razão para irmos embora daqui.

- Temos de resistir um pouco mais - disse Eissesh.

- Quanto mais? Os desmoronamentos já acabaram com a vida de quatro sheks e onze szish. É cada vez mais difícil encontrar refúgios seguros. Vai chegar uma altura em que não teremos tempo de escapar.

- Há outro lugar para nós - explicou Eissesh. - Um lugar melhor. Os herdeiros de Ashran estão a trabalhar nisso, algures em Drackwen. Quando tudo estiver pronto, poderemos emigrar com eles e com as serpentes de Kash-lar. Mas nada deve interferir no seu trabalho. Não podemos atrair a atenção dos sangues-quentes sobre eles, senão procurarão evitar que esses planos se concretizem.

- Os herdeiros de Ashran - repetiu outro dos sheks. - Por acaso são a feiticeira feérica e o híbrido renegado? Porque havemos de confiar neles!

- Porque querem escapar dos Seis, tal como nós. Porque perdemos uma batalha e ainda não estamos preparados para enfrentar outra. Porque não temos outra opção. E por outros motivos que não me é permitido revelar.

- Não te é permitido? Por acaso existe alguém acima de ti?

- Sim - respondeu Eissesh. - Ziessel está viva, e ainda é a nossa soberana. Gerde contactou com ela. Espera-nos nesse outro mundo para onde vamos emigrar, para onde os deuses dos sangues-quentes não poderão seguir-nos.

Os sheks reflectiram.

- De acordo - assentiu um deles. - Mas não podemos esperar indefinidamente. Este lugar deixou de ser seguro para nós.

- Estaremos preparados para assomar à superfície se não tivermos outra opção - tranquilizou-os Eissesh. - Mas ainda podemos aguentar um pouco mais e temos de o fazer. O nosso futuro está em jogo.

Os sheks assentiram, sombrios.

 

           A FORÇA DA VIDA

Os feéricos trabalharam depressa. Escolheram um sector do bosque que estava povoado por árvores de troncos grossos e ramos compridos, e estimularam o crescimento de alguns deles, entretecendo depois a sua folhagem nodosa para formar sólidas paredes vegetais. Plantaram fortes trepadeiras nos lugares precisos e também as fizeram crescer, formando uma rede cerrada em volta dos troncos, que segurou os ramos e tapou os escassos espaços livres deixados pelas árvores. Quando as fadas terminaram o seu trabalho, tinham criado uma prisão vegetal que conteria a criatura na qual: Alexander ia transformar-se naquela noite.

O jovem contemplou a construção arbórea com ar sombrio.

- Não sei se será suficiente - opinou, e a sua voz soou como um grunhido.

As fadas sorriram.

- Ainda não viste tudo, príncipe Alsan - disse uma delas. - Olha lá para dentro.

Alexander espreitou pelo único buraco que tinham deixado aberto entre os troncos, suficientemente grande para que uma pessoa conseguisse entrar. A sala não era muito grande, mas as paredes arbóreas pareciam sólidas. Chamou-lhe a atenção um pequeno fungo rosáceo que crescia no chão, mesmo no centro do recinto. Conhecendo os feéricos, deduziu que não o tinham deixado crescer ali por acaso.

- É isto que tinha de ver? - perguntou, com curiosidade.

- Está prestes a libertar os seus esporos - respondeu a fada. - Assim que as luas aparecerem, todo o chão estará coberto de pequenos cogumelos soníferos. Quanto mais esperneares, mais fungos pisarás e maior será o teu atordoamento. Se é verdade que és tão forte como dizes sob o teu outro aspecto, não creio que chegues a adormecer completamente; mas também não estarás suficientemente acordado para deitar a árvore abaixo.

Alexander rezou para que ela tivesse razão.

Introduziu-se na sua prisão vegetal pouco antes de o último dos três sóis se pôr. Tal como os feéricos tinham previsto, o chão já estava atapetado de pequenos cogumelos rosados. Entrou com cuidado para não pisar nenhum. Fariam falta mais tarde.

Acocorou-se num canto a observar como as fadas faziam crescer de novo as plantas para o encerrar completamente. Dois dos troncos moveram-se lentamente e selaram a entrada. Alexander teve um pequeno acesso de pânico quando os ramos cobriram por completo o orifício, mergulhando-o numa escuridão apenas rompida pela suave luminescência fantasmagórica que emanava dos fungos. Dominou-se e fechou os olhos, aguardando o aparecimento das luas.

Poderiam ter prosseguido a viagem de noite, dado que havia muita claridade, mas Jack preferiu descansar ao abrigo das montanhas de Celestia. Acendeu uma fogueira, e juntos tentaram tornar o seu acampamento improvisado mais ou menos habitável. Quando se aconchegaram junto ao fogo, nenhum dos dois falou durante um bom bocado. Jack contemplava as luas, pensativo.

- Estás preocupado com Alexander? - perguntou Victoria, adivinhando-lhe os pensamentos.

- Um pouco - admitiu ele. - Gostaria de ter ficado com ele esta noite... para lhe dar apoio. Mas se tivéssemos esperado até de manhã, já não teria conseguido impedi-lo de nos acompanhar. E não entende que não deve vir connosco. Por pouco não conseguia salvá-lo de Karevan e de Neliam. Não vou levá-lo ao encontro de Wina, porque é provável que não tenha tanta sorte da próxima vez.

- Talvez devesses ter-lhe explicado.

- Tentei, mas viste como ficou na reunião. Não tive outro remédio senão pô-lo no seu lugar. Além disso, confesso que não gostei de ver como Gaedalu lhe indicava o que tinha de dizer. Não consigo evitar: simpatizo cada vez menos com essa mulher.

Victoria franziu o sobrolho, pensativa.

- Tu não notaste nada de estranho nela? - perguntou.

- Tirando o facto de estar a tornar-se cada vez mais irritante e desagradável?

Ela abanou a cabeça.

- Há alguma coisa esquisita, alguma coisa diferente na sua forma de actuar. Ou nela mesma. Não saberia dizer-te de que se trata. Acho que vou falar com Zaisei sobre isso: talvez ela saiba alguma coisa.

Jack assentiu, sem dizer nada.

Longe dali, no interior da prisão de árvores, o animal em que Alexander transformara uivava e arranhava as paredes com fúria. Odiava sentirpreso, odiava aquele brilho espectral que provinha do chão e tinha procurado apagá-lo espezinhando os cogumelos. Mas isso tinha sido pior: um cheiro penetrante e adocicado tinha inundado a sua pequena cela vegetal, atordoando-o e provocando-lhe uma dor de cabeça surda. De modo que agora lançava-se uma vez e outra, raivoso, contra os troncos que formavam as paredes, procurando deitá-los abaixo. As árvores tremiam com cada sacudidela, mas permaneciam no seu sítio, impávidas perante os uivos da criatura.

Lá fora, Shail observava tudo com preocupação. Tinha dito a Zaisei que esperasse por ele no Oráculo: suspeitava que a raiva que emanava de Alexander a perturbaria, de modo que tinha decidido que era melhor enfrentar aquilo sozinho.

Os feéricos que o acompanhavam também se tinham voluntariado para vigiar o animal enclausurado. Tinha corrido o boato do que acontecera naquele mesmo bosque, meses atrás, na noite do Triplo Plenilúnio, e não tinharrT a menor intenção de voltar a deixar aquela criatura à solta por Awa.

Não esperavam mais ninguém e por isso surpreenderam-se ao ver chegar a Venerável Gaedalu, precisamente quando Alexander investia novamente contra as paredes da sua prisão, cego de fúria assassina. Os feéricos estavam tensos, vigiando a estabilidade das árvores, mas Shail apercebeu-se da sua presença.

- Mãe Venerável, o que estás a fazer aqui?

O animal rugiu de novo, mas Gaedalu não se alterou.

- Vim ajudar o príncipe Alsan, feiticeiro - respondeu.

- Ah... agradeço-te em seu nome, mas é perigoso estar aqui. As tuas rezas irão servir-lhe igualmente se as fizeres num lugar mais seguro.

Gaedalu respondeu com um breve riso gutural.

- As minhas rezas não lhe servirão de nada, nem aqui, nem em lado nenhum... estou enganada?

Shail não soube o que dizer.

- Sei como controlar o animal que se instalou no seu nobre coração, feiticeiro. Mas vou necessitar da tua ajuda para chegar até ele.

Shail ficou sem fala durante um instante.

- Queres entrar ali dentro... com ele? Não posso permiti-lo, Mãe Venerável. Está fora de controlo.

- Vais permitir-me, porque eu peço-te - disse ela, com alguma severidade.

- Digo-o para o teu bem. Vai fazer-te em pedaços se ousares aproximar-te.

- Por isso preciso da tua ajuda. Achas que poderias imobilizá-lo? Será apenas um momento. Depois, já não será necessário.

- Não podemos abrir a prisão, Mãe Venerável - interveio um silfo. Se escapar...

- Não escapará - interrompeu ela; voltou-se de novo para Shail. - Não ouves como sofre? Não queres pôr fim à sua agonia? Ou será que vais deixar que continue assim até ao primeiro amanhecer, tendo nas tuas mãos a possibilidade de o devolver à sua verdadeira forma?

- Devolvê-lo à sua verdadeira forma? - repetiu Shail. - Nem a magia mais poderosa foi capaz...

- A magia não tem nada a ver com isto - cortou Gaedalu, bruscamente. Já sabemos que a magia é inútil quando se trata de resolver problemas realmente importantes. Por isso deixa-me agir, feiticeiro; chegou a hora de o teu amigo se proteger no infinito poder dos deuses. Vais negar-lhe essa possibilidade?

Shail não respondeu. Ambos, humano e varu, trocaram um longo, longo olhar. Finalmente, o jovem rendeu-se.

- Muito bem - disse -, vamos abrir a cela. A minha magia poderá retê-lo apenas durante uns instantes. Depois, não posso responsabilizar-me pelo que acontecer.

- Será suficiente.

- Espero que saibas realmente o que estás a fazer, Mãe - murmurou Shail.

Os feéricos torceram o nariz, mas não disseram nada. Shail colocou-se diante da cela arbórea, fechou os olhos, respirou fundo e finalmente disse:

- Estou pronto.

Os feéricos colocaram as mãos sobre os troncos das árvores e entoaram um suave cântico, que foi abafado pelos grunhidos do animal. Lentamente, dois dos troncos foram-se separando.

Alexander lançou-se contra a abertura com uma fúria selvagem. Conseguiu meter nela uma das patas, uma pata que tinha apenas três dedos, e gesticulou com violência, procurando alcançar um dos feéricos.

- Esperem - disse Gaedalu. - Isso chega. Imobiliza-o, feiticeiro.

Shail, aliviado, lançou o feitiço. Os grunhidos cessaram durante um instante e a pata ficou pendurada, inerte. Gaedalu aproximou-se, sem medo, e tomou-a nas suas mãos.

- Cuidado, Mãe Venerável - avisou uma das fadas.

Ela não ouviu. Tirou algo do seu saquinho e pô-lo em volta do pulso de Alexander. Custou-lhe a fechá-lo, porque era demasiado grosso, mas finalmente conseguiu.

De onde estava, Shail não conseguia ver o que ela fazia, e também não podia prestar muita atenção, dado que tinha de manter o feitiço activo.

Mas os feéricos irromperam em exclamações cheias de assombro e alegria, e o feiticeiro olhou para eles, interrogativo.

-Já podes soltá-lo - disse Gaedalu, com calma.

Shail notou que já nada oferecia resistência à força do seu feitiço. Perguntou-se se Alexander teria adormecido finalmente sob os efeitos dos fungos. Cautelosamente, desfez o conjuro. Não aconteceu nada.

Aproximou-se da cela, intrigado. Quando, à luz das luas, viu o que estava a acontecer, a surpresa impediu-o de falar.

A pata que assomava pela abertura já não era uma pata: era uma mão humana.

Em volta do seu pulso, Gaedalu tinha colocado uma pulseira. Era um adorno feminino, provavelmente seu, e não parecia ter nada de especial, salvo a pedra engastada nela. Não encaixava completamente naquela jóia; à primeira vista, parecia que Gaedalu tinha arrancado a gema original para incrustar aquela pedra no seu lugar.

E era uma pedra de um estranho negro metalizado: uma pedra que parecia emanar escuridão, ou talvez absorvê-la. Shail soube que era uma gema poderosa, mas também teve a intuição de que nenhuma magia poderia ter criado algo assim. Um estremecimento percorreu a sua espinha, e olhou para Gaedalu, aturdido.

A Mãe apercebeu-se daquele olhar e sorriu.

- Vês, feiticeiro? O que é a magia comparada com o poder dos deuses?

Tiraram um Alexander completamente humano da sua prisão de árvores. Estava inconsciente.

- Temos de o afastar dos fungos - disseram os feéricos. - Senão, não acorda.

Deitaram-no um pouco mais afastado, no chão, e deixaram-no respirar. Pouco depois, o jovem abriu os olhos, ainda algo aturdido.

- O que...? - começou, mas não foi capaz de formular a pergunta. Dói-me... a cabeça - foi tudo o que conseguiu dizer.

- Afastem-se, dêem-lhe espaço - ordenou Shail.

Alexander demorou um pouco a aperceber-se da situação. Quando por fim ergueu a cabeça para o céu e viu Érea magnificamente cheia, olhou para as mãos, surpreendido.

- Sou... o que me aconteceu?

Gaedalu deve ter-lhe dito alguma coisa, só a ele, porque se voltou bruscamente para ela. A varu assentiu com gravidade. Alexander olhou para o bracelete, maravilhado.

- É verdade - murmurou. - Funciona.

Shail olhava para ambos, incomodado, consciente de que os dois sabiam alguma coisa que não lhe tinham contado.

- Deixem-me a sós com ele - ordenou a Mãe.

- Mas... - começou Shail, porém Alexander interrompeu-o.

- Por favor, Shail. Quero falar com ela.

O feiticeiro rendeu-se. Ele e os feéricos afastaram-se um pouco, inquietos, sem se atreverem ainda a perdê-lo de vista.

- Não posso acreditar - sussurrou Alexander; os seus ombros tremeram num soluço reprimido. - Não posso acreditar.

- Acredita, príncipe - disse Gaedalu. - Os deuses operaram o milagre. Ofereço-te essa pulseira, é tua; usa-a até encontrares algo mais apropriado para engastar a gema.

Ele ergueu a cabeça para olhar para a varu.

- Como posso agradecer-te? Gaedalu sorriu.

- Tu sabes. Sabes que o meu plano é viável. Vais ajudar-me a levá-lo a cabo?

Alexander sorriu. Dobrou um joelho diante dela e inclinou a cabeça em sinal de lealdade.

- Podes contar comigo, Mãe Venerável. Sou o teu mais devoto servidor.

Shail observou tudo isto no outro extremo da clareira; e, embora não chegasse a ouvir o que diziam, o seu coração encheu-se de inquietação.

Jack e Victoria alcançaram os limites de Alis Lithban quando o primeiro dos sóis já começava a pôr-se. O dragão sobrevoou demoradamente a zona antes de se decidir a pousar, para ter uma ideia do que se passava naquelas paragens. Em cima do seu dorso, Victoria contemplava a paisagem em silêncio.

A enorme extensão de Alis Lithban continuava a ser na sua maior parte um bosque murcho. Ao longe via-se uma tímida mancha verde, no lugar onde tinha estado situada a Torre de Drackwen. Mas, um pouco mais a sul, o coração do bosque tinha-se inflamado numa explosão de cor. Ali, as árvores não só pareciam mais altas e verdes, como também mostravam uma vitalidade que nem sequer tinham exibido quando os unicórnios povoavam aquela terra. E, embora nem Jack nem Victoria soubessem deste pormenor, aquela explosão de vida não provocou neles o alívio e a alegria que tinham esperado sentir; pelo contrário: sentiram medo.

Jack desceu a uma distância prudente, perto das ruínas da Torre de Drackwen. Nenhum dos dois recordava aquele lugar com carinho, mas foi o único terreno mais ou menos livre que o dragão encontrou para pousar.

Não fizeram nenhum comentário a esse respeito. Sentaram-se por um momento a descansar, debaixo dos restos da grande torre; Victoria tirou da bolsa que levava alguma comida, e os dois saborearam-na em silêncio, mergulhados em pensamentos profundos.

- Devíamos seguir viagem antes de anoitecer - disse então Victoria.

- Não seria melhor esperar pela manhã?

- Não quero passar a noite aqui. - Ergueu a cabeça para olhar para ele e perguntou-lhe: - Queres?

- A verdade é que não - reconheceu Jack com um estremecimento. Então vamos. Logo encontraremos outro refúgio pelo caminho.

Pôs-se de pé, resoluto, e começou a andar. Victoria recolheu a sua bolsa e seguiu-o, apressando o passo para o acompanhar.

Embrenharam-se no bosque sob as luzes do primeiro crepúsculo. Não tardaram a abandonar a zona verde que a Torre de Drackwen tinha gerado em tempos passados. Quando alcançaram o Alis Lithban ressequido e murcho, Victoria apertou a mão de Jack com força, mas não disse nada. Nenhum dos dois tinha vontade de falar.

Depois do segundo entardecer, quando já só o último dos sóis iluminava o bosque, começaram a encontrar sinais da súbita revitalização de Alis Lithban.

No início, o reverdejar era suave e subtil. Novos rebentos cresciam nas árvores, erva jovem voltava a cobrir o chão... Mas a força da natureza era cada vez mais vigorosa: conforme iam avançando, o mato era mais verde e as árvores novas mais altas; maciços inteiros de flores atapetavam os cantos e as aves piavam com mais força.

- Olha para isto, Victoria - disse Jack, atemorizado, indicando uma pequena árvore.

Agacharam-se junto dela e observaram-na com atenção. Podiam vê-la crescer. Lentamente, os ramos iam-se destacando, o tronco tornava-se mais largo e mais alto, e pequenos rebentos verdes começavam a cobrir os seus ramos.

Olharam um para o outro, mas não disseram nada.

A medida que avançavam, aquilo foi mais evidente. O bosque crescia à sua volta, regenerava-se, e, se as árvores eram maiores, não se devia a estarem ali há muito mais tempo, mas sim a desenvolverem-se cada vez mais depressa, conforme se aproximavam do coração da perturbação.

- Se continuar assim, não tardará a repovoar o bosque inteiro - murmurou Jack, admirado. - Se isto é provocado pela deusa Wina, desde hoje tem já o meu mais profundo reconhecimento; já era hora de algum dos Seis mostrar que pode fazer algo mais do que destruir.

- Não sei, Jack - disse Victoria. - Ela não está aqui realmente. Ainda continua longe, no entanto, vê o que provoca, mesmo à distância. O que seria capaz de fazer se estivesse mais perto?

Depressa encontraram a resposta para aquela pergunta. Alcançaram uma zona do bosque onde as árvores eram já autênticos gigantes vegetais e continuavam a crescer, gerando, ao mesmo tempo, novos frutos que caíam no chão para germinar de forma instantânea e tornar-se, por sua vez, em jovens árvores em questão de minutos. Chegou um momento em que o mato não lhes permitiu avançar. Jack esteve tentado a tirar Domivat e abrir caminho com ela, mas não o fez, porque temia que o fogo pegasse e provocasse um incêndio no bosque.

- Talvez devêssemos parar aqui - opinou.

Victoria não o ouvia. Tinha parado junto a uma das árvores, um enorme exemplar de ramos baixos e espinhosos, e olhava para alguma coisa que se tinha cravado num deles. Jack olhou com curiosidade e retrocedeu dois passos, horrorizado.

Era uma fada. O ramo atravessava-lhe o peito de um lado ao outro e a morte tinha congelado o seu rosto para sempre numa expressão de surpresa, dor e terror.

A árvore tinha crescido tão depressa que não tinha tido tempo de se afastar.

- Vamos embora daqui - murmurou Jack, com um arrepio.

Pegou em Victoria pela mão, mas teve de a soltar, porque brotou uma violenta faísca do contacto. Fitaram-se.

- Vamos - repetiu Jack. - Estás a começar a carregar-te de energia. Deram meia-volta e começaram a correr, afastando-se do coração do bosque. Quando anoiteceu completamente, aperceberam-se de que teriam de parar. As luas deviam estar a brilhar por cima deles, mas eram incapazes de as ver: os ramos das árvores tapavam tudo, mergulhando-os numa escuridão profunda e inquietante.

Jack desembainhou Domivat e a sua chama iluminou tudo à sua volta. Estavam presos. As plantas tinham continuado a crescer atrás deles, lentamente, mas suficientemente depressa para fechar o caminho que tinham tomado. O jovem cerrou os dentes. De repente, o som do bosque a crescer à sua volta já não lhe pareceu tranquilizador.

- vou cortar essas árvores - anunciou.

- Não acho que seja boa ideia.

- Mas é a única opção. Temos de nos afastar daqui o quanto antes. Jack ergueu a espada de fogo e começou a abrir caminho no mato. As chamas incendiavam os arbustos e árvores mais jovens, mas, felizmente, o fogo não se propagava. A força vivificadora que estava a regenerar todo o bosque envolvia-o num refrescante manto húmido: os ramos eram demasiado tenros, estavam demasiado verdes para arder com facilidade; o musgo tinha crescido em cima dos troncos, como se estivessem ali há séculos; cada folha estava coberta de pérolas de orvalho e bebia delas avidamente. O fogo de Domivat conseguia queimar alguns arbustos e abrir um caminho estreito para Jack e Victoria, mas o próprio bosque estrangulava-o.

Por fim, Jack deteve-se, sem fôlego, num espaço que lhe pareceu um pouco mais amplo.

- Temos de defender esta clareira, Victoria - disse.

Limpou o mato golpeando-o, enquanto Victoria cavava com as mãos no chão húmido, em busca de rochas mais ou menos grandes. Acenderam uma fogueira no meio da clareira e rodearam-na com pedras. Jack cravou Domivat mesmo no centro do fogo e alimentou-o com folhas e arbustos.

- Não se vai apagar - assegurou.

Acocoraram-se perto do fogo, inquietos. À sua volta, Alis Lithban continuava a crescer, lenta mas inexoravelmente.

- Wina -está a avançar para sul - disse Victoria. - A fada que vimos antes morreu porque a árvore cresceu demasiado depressa. Ainda não vi as plantas a crescerem a semelhante velocidade, de modo que julgo que isso aconteceu há um ou dois dias. E se as árvores já não crescem tão depressa por aqui, é porque ela está a afastar-se.

- Oxalá tenhas razão - murmurou Jack. - Se isso for verdade, amanhã estará tudo muito mais calmo. com a luz do dia, vou poder limpar isto melhor... o bastante para poder transformar-me em dragão e sair a voar daqui. Mas temos de aguentar até lá.

Victoria assentiu em silêncio. Ambos escutaram o crepitar do fogo, um som que lhes parecia quente e tranquilizador no meio daquele bosque inquietantemente vivo. Tiveram a sensação de que os ramos, movidos pela brisa, sussurravam palavras de ódio àquelas insignificantes criaturas que se atreviam a acender uma fogueira no bosque.

- Lembras-te do que disse antes? - perguntou então Jack. - Algo acerca de mostrar a Wina o meu mais sincero reconhecimento. Bem... pois retiro-o.

- Não devias aproximar-te mais - disse Christian. - Se reparar em ti, vai reconhecer-te.

Gerde não o ouviu.

Tinham subido ao ramo de uma árvore; era um ramo baixo quando tinham trepado por ela, mas a árvore tinha continuado a crescer e a gerar mais folhagem, e agora contemplavam o frenético ressurgimento de Alis Lithban a uma altura considerável, de uma posição privilegiada.

O que Jack e Victoria tinham visto era apenas o que restava do efeito que Wina tinha produzido ao passar por ali dois dias antes. Mas Christian e Gerde tinham chegado suficientemente perto para contemplar a deusa em acção.

Um pouco mais adiante, ao longe, as árvores cresciam a uma velocidade vertiginosa, desenvolviam ramos, folhas e flores que se entrelaçavam uns nos outros, tecendo redes arbóreas em vários níveis. O mato continuava a aumentar, como a espuma do mar, e as flores eram cada vez maiores, de uma beleza mais misteriosa e selvagem.

Para não falar dos animais. As criaturas que povoavam Alis Lithban aves, mamíferos, pequenos répteis, insectos... até mesmo os peixes dos ribeiros - tinham sido atingidas em cheio pela energia vivificadora de Wina. Muitos animais tinham-se visto esmagados pela maré vegetal que crescia desesperadamente. Sufocados pelo mato, empalados por ramos que se desenvolviam quase instantaneamente, presos num labirinto de raízes, tinham morrido antes de serem capazes de fugir.

E os que podiam escapar, não o faziam. Também o reino animal acusava a presença de Wina, à sua maneira. Contagiados pela sua fúria criadora, procuravam-se uns aos outros por todos os cantos que ainda não tinham sido invadidos pelo mundo vegetal.

Estavam a reproduzir-se; com impaciência, da mesma forma que as árvores cresciam e se reproduziam. As fêmeas que conseguiram sobreviver ao violento ressurgimento das plantas repovoariam o bosque com as suas crias.

Gerde observava tudo isto com uma estranha expressão estampada no rosto. Por um lado, a força vivificadora de Wina maravilhava-a; por outro, havia algo grandioso e terrível em tudo aquilo, algo até mesmo mais assustador do que a magia mais destrutiva.

Por fim, a fada suspirou, com pesar.

- Alis Lithban não é assim. Quando os unicórnios viviam aqui tinha um aspecto muito diferente; e agora ela está a estragar tudo, não achas?

- O certo é que não me lembro de como era Alis Lithban antes da extinção dos unicórnios - disse Christian. - Eu era muito pequeno na altura.

- Era diferente - respondeu Gerde, encolhendo de ombros. - Delicado como o cristal. Cada árvore parecia em si uma pequena obra de arte, cada flor era única na sua beleza. Dizia-se deste lugar que até o mais pequeno tufo de erva parecia ter sido esculpido por um artista de gosto requintado. Suponho que este bosque foi criado nos tempos em que os deuses tinham tempo e disposição para fazer coisas delicadas – acrescentou com um suspiro. - E agora olha para Wina, tão descontrolada, tão... solta. Vai tornar Alis Lithban num reflexo do bosque de Awa.

- Já viste bastante, Gerde - disse o shek, com firmeza. - Temos de ir embora daqui.

Ela dirigiu-lhe um sorriso trocista.

- Oh, sentes-te incomodado? A proximidade de Wina altera os teus sentidos? Por acaso também tu precisas de uma fêmea?

O semblante de Christian endureceu.

- Lamentavelmente, não tenho por perto nenhuma fêmea do meu agrado - respondeu-lhe. - Além disso, prefiro decidir por mim mesmo quando e porque é que necessito de uma fêmea e escolhê-la livremente; não gosto de ceder aos caprichos de uma deusa louca. Mas agradeço o teu interesse - concluiu, com algum sarcasmo.

Gerde riu com gosto.

- Oh, sei o muito que te incomoda saber que a tua vontade depende dos caprichos de uma deusa louca - sorriu. - E gosto muito de te fazer sabê-lo.

Christian voltou-se bruscamente, lutando contra o impulso que o impelia a abraçar Gerde.

- Não é divertido? - sussurrou ela no seu ouvido. - Posso fazer com que me desejes até enlouqueceres; e, acredita em mim, vou continuar a exercer esse poder, mas não permitirei que me toques outra vez. Nunca mais, Kirtash. Não o mereces.

Christian respirou fundo, cerrou os dentes e enterrou as unhas com força no tronco da árvore. Magoou-se; a dor pareceu devolver-lhe, pouco a pouco, a sensatez. Notou então que Gerde já não lhe prestava atenção. Parecia mais interessada no rápido crescimento do bosque, um pouco mais adiante.

- Afinal, talvez tenhas por perto uma fêmea que te interesse - comentou. - Reparaste? Wina move-se de novo... para norte.

- Para norte? - repetiu Christian, procurando concentrar-se. - Por que razão volta para trás?

- As árvores dizem que uns humanos atearam fogo ao bosque. Conheces alguém suficientemente estúpido para abrir caminho por Alis Lithban com uma espada de fogo, a dois passos da deusa Wina?

Christian praguejou baixinho.

Victoria acordou bruscamente e olhou em volta. A fogueira tinha-se apagado e só a luz de Domivat, cuja chama ardia timidamente, iluminava o rosto de Jack, que se tinha posto de pé.

- O que está a acontecer? - murmurou ela, inquieta.

Jack abanou a cabeça. Victoria viu o medo estampado no seu rosto. Tirou o báculo da bolsa e ergueu-o ao alto, e a sua luz inundou a clareira. Os dois ficaram mudos de horror.

- Temos de sair daqui - disse Jack.

As plantas tinham crescido espectacularmente durante a noite. Os troncos das árvores tinham-se fechado em volta deles e os ramos e os arbustos tinham invadido o seu espaço. Parecia, porém, que a presença da chama de Domivat impedira que as plantas se aproximassem mais. Contudo, Victoria teve a sensação, totalmente irracional, de que a vegetação de Alis Lithban estava a aguardar que a chama se extinguisse para os sufocar debaixo do seu manto verde.

- vou transformar-me, Victoria - avisou Jack, tenso.

- Aqui não tens espaço...

- Não quero saber. Afasta-se tanto quanto puderes.

Victoria colou-se ao tronco da árvore mais afastada. Quase pôde sentir o musgo a crescer sob as suas costas. Contemplou, inquieta, como Jack se metamorfoseava em dragão, destruindo os troncos mais frágeis com o seu corpo. com um rugido de fúria, abanou as asas para romper a rede de ramos e lianas que os cobria. Procurou mexer-se, mas mal tinha espaço.

- Sobe, Victoria - indicou-lhe, com um grunhido surdo.

Victoria pôs a bolsa ao ombro e trepou pela sua garra até se acomodar sobre o seu dorso. Jack percebeu que o seu contacto lhe produzia um ligeiro choque, mas não disse nada. Podia suportá-lo e, embora soubesse que as escamas o protegiam e que a descarga teria sido ainda mais forte se a tivesse tocado como humano, não quis preocupar Victoria. Porque aquilo só podia significar que a deusa Wina, em vez de se afastar deles, se estava a aproximar.

Açoitou com a cauda os arbustos mais próximos. Rugiu, esperneou à sua volta, procurando abrir espaço. Ergueu a cabeça.

- Segura-te e cola-te bem a mim. vou usar a minha chama.

Victoria obedeceu. Jack inspirou fundo e lançou uma poderosa labareda contra o emaranhado vegetal que cobria as suas cabeças. Mais duas baforadas e libertou espaço suficiente para abrir as asas completamente.

- Preparada?

Antes que Victoria conseguisse responder, Jack bateu as asas e, com um forte impulso, elevou-se no ar.

A descolagem foi difícil e acidentada. O fogo de Jack e a magia do báculo de Victoria, mais poderosa do que nunca, abriam brechas entre a folhagem e permitiam ao dragão avançar muito a custo. Mas os ramos mais altos tinham tecido uma espessa rede arbórea sobre eles, e não conseguiam atravessá-la. Continuavam presos debaixo daquela cúpula vegetal. Quando, por fim, uma das asas de Jack se enredou numa liana, o dragão perdeu o equilíbrio e caiu ruidosamente no chão. Tinham conseguido afastar-se um pouco, mas não o suficiente.

- Estás bem, Victoria? - conseguiu ele dizer.

- Sim - respondeu ela, ainda em cima do seu dorso. - E tu?

- Vais ter de descer. Continuaremos a pé. Se conseguirmos alcançar as ruínas da Torre de Drackwen, estaremos relativamente a salvo.

Victoria deslizou pelo flanco do dragão e correu a examinar a sua asa. Parecia deslocada.

- Não vais poder voar assim, Jack.

O dragão bufou suavemente e voltou a transformar-se em humano. Ergueu-se com dificuldade. Victoria susteve-o para o ajudar, mas Jack retrocedeu, sacudido por um novo choque.

- Estás a absorver energia - murmurou ele. - Isso quer dizer que Wina move-se na nossa direcção mais depressa do que pensava.

Victoria mordeu o lábio, preocupada.

- Acho que nos detectou - disse -, e acho, também, que não achou graça a teres queimado o seu bosque.

Jack respirou fundo.

- Não faz sentido procurarmos escapar - disse. - Vamos procurar refugio nas ruínas da torre e esperaremos que passe, simplesmente. com um pouco de sorte, não nos irá detectar se não usarmos as nossas armas e continuarmos nos nossos corpos humanos.

Victoria assentiu. Não era um grande plano, mas não tinham outro melhor.

Quando, um pouco mais tarde, alcançaram os restos da Torre de Drackwen e procuraram abrigo entre os grandes blocos de pedra, estavam exaustos, sujos e cheios de arranhões. Tinham tropeçado inúmeras vezes em ramos e raízes, e caído no mato eriçado de arbustos com espinhos. As plantas cresciam ali vagarosamente, sem forças para os prender ou esmagar, contudo, parecia que os seus ramos se estendiam até eles, tentando alcançá-los.

A vegetação também tinha coberto as ruínas da torre. Só tinha caído há uns meses, mas parecia terem passado séculos. As pedras estavam já cobertas de musgo e enormes trepadeiras estendiam os seus tentáculos sobre os restos do que havia sido a morada de Ashran, o Necromante.

Contudo, as fundações da torre continuavam a ser um lugar seguro, porque a pedra tinha travado o imparável avanço do reino de Wina.

Jack e Victoria aninharam-se um junto do outro, a tremer. Jack reparou que a pele dela começava a lançar faíscas.

- Tenho de te tirar deste lugar - murmurou. - Talvez daqui consiga levantar voo...

- Tens uma asa deslocada - recordou-lhe Victoria. - Primeiro teria de te curar. Queres tentar?

- com toda a energia que estás a canalizar agora mesmo? - Jack negou com a cabeça. - Não sei o que poderia acontecer. Se tivéssemos...

Não chegou a terminar a frase. Ouviu-se um forte golpe no exterior, algo que tinha caído no chão muito perto deles e que tinha feito retumbar as pedras. Todos os alarmes do instinto de Jack dispararam ao mesmo tempo.

- É um shek! - disse, desembainhando Domivat.

Tínha-se erguido de rompante e já corria para o exterior quando se obrigou a parar, a respirar fundo e a procurar controlar o seu ódio. Tinha de actuar com prudência. Embainhou de novo a espada e trepou para espreitar por cima do muro semiderrubado que lhes servia de protecção. Espreitou um pouco mais além, com precaução.

À luz do luar viu a figura do shek; o seu longo corpo prateado, fluido como um ribeiro, jazia numa contorção estranha, enquanto a criatura procurava arrancar à dentada algumas trepadeiras que apertavam a sua asa direita.

O shek pareceu detectar a presença do dragão, porque os seus olhos faiscaram ligeiramente e ergueu a cabeça, alerta.

- Christian - sussurrou a voz de Victoria ao seu lado.

Antes que pudesse detê-la, a jovem tinha saído do refúgio, saltando de pedra em pedra, e corria ao encontro da serpente. A criatura baixou a cabeça, até quase tocar no cabelo da rapariga. Jack sorriu, pesaroso. Era uma cena estranha, mas não deixava de haver uma certa ternura nela.

Assim que se juntou a eles, Christian já tinha recuperado o seu aspecto humano e tencionava beijá-la. Victoria deu um passo atrás e ergueu as mãos. Os seus dedos estavam envoltos em faíscas.

- Não te aproximes - advertiu-o. - É melhor que ninguém me toque por enquanto.

Christian meneou a cabeça, com preocupação.

- Não deviam estar aqui. De que é que estão à espera para ir embora?

- Tenho uma asa ferida - disse Jack. Christian fez uma careta.

- Então terei de carregar contigo. Mas Victoria não pode ficar aqui. Olha como está - acrescentou, indicando-a com um gesto.

A jovem tinha caído de joelhos, enquanto a estrela da sua testa emitia um brilho ofuscante. Todo o seu corpo estava envolto num manto de violentas faíscas que estalavam à sua volta.

- Demasiado tarde - sussurrou Victoria com esforço. - Ela já está aqui Christian ajoelhou-se junto da rapariga.

- Victoria! - chamou-a. - Tens de tirar toda essa energia que tens dentro de ti, tens de a tirar cá para fora, da mesma forma que a estás a absorver. Entendes-me?

Ela assentiu.

- Mas não pode entregar a magia a ninguém neste momento! - exclamou Jack. - Fá-lo-ia rebentar!

- Há outra maneira - disse o shek.

A terra estremeceu de repente e começou a fervilhar aos seus pés, como se milhões de insectos se agitassem debaixo do chão.

- Temos de sair daqui! - gritou Christian. - Vamos, para a torre! Nenhum dos dois se atreveu a tocar em Victoria, mas esperaram-na enquanto ela, com um tremendo esforço, se levantava e se juntava a eles. Aos seus pés começaram a brotar plantas, que se retorciam pelo chão como vermes, procurando elevar-se em direcção ao céu nocturno. Assim que alcançaram as ruínas, apenas uns segundos depois, já lhes chegavam pelos joelhos. Os três treparam pelas pedras e procuraram refúgio do outro lado do muro. Victoria aninhou-se contra a parede, enquanto as centelhas de energia que a envolviam se tornavam cada vez mais intensas.

- Temos de a tirar daqui - disse Jack, mas Christian negou com a cabeça.

- Já é demasiado tarde. Não lhe toques, ou a descarga de energia mata-te.

- Tens uma ideia melhor? Christian assentiu.

- O báculo - disse somente. Jack entendeu.

Victoria também. Ergueu a cabeça com dificuldade, e os rapazes tiveram de afastar o olhar, porque a luz dos seus olhos e da marca que assinalava o corno em cima da sua testa era tão intensa que os magoava. A jovem tirou o báculo da sua bolsa e, imediatamente, a sua ponta inflamou-se com a violência de uma super-nova. Ela respirou, mas o cristal do báculo começou a palpitar com intensidade, como se estivesse quase a explodir.

- Afastem-se! - disse Victoria.

Christian puxou Jack até o proteger atrás de um grande bloco de pedra. Victoria deu meia-volta e assomou ao exterior. Inspirou fundo e, com um grito, soltou repentinamente toda a energia através do báculo.

Um raio de luz de grande potência emergiu da sua ponta, iluminando por um momento a clareira como se fosse dia. A energia percorreu o corpo de Victoria, convulsionando-o e fazendo-a gritar outra vez, enquanto saía dela, canalizada pelo báculo, e ia explodir contra a barreira de árvores que cresciam mais além, fazendo-as irromper em chamas.

A descarga de energia durou uns segundos, que para Jack se tornaram eternos. Depois, por fim, Victoria deixou-se cair de joelhos sobre o chão, extenuada, e o báculo escorregou das suas mãos, ainda a deitar fumo. Houve um momento de calma e silêncio, um momento em que o mundo inteiro pareceu parar.

Então, de repente, todo o bosque se abateu sobre eles. O som do crescimento das árvores transformou-se num barulho atroador, e as plantas começaram a invadir o seu refúgio, alargando gretas e lançando o seu letal abraço em volta das pedras soltas.

- Escondam-se! - gritou Christian, precipitando-se para Victoria. Pegou nela pela cintura e os dois rolaram pelo chão até um canto onde o chão ainda era completamente de pedra, onde as paredes pareciam mais altas e o tecto não se tinha desmoronado completamente. Jack juntou-se a eles; os três aninharam-se uns contra os outros, procurando fazer-se mais pequenos, passar despercebidos.

E a deusa Wina chegou às ruínas da Torre de Drackwen.

Não a viram, porque não tinha um corpo material que pudessem ver. Mas sentiram-na nas plantas que envolveram o seu refúgio, nos caules que se transformaram em grossos troncos de árvores em questão de minutos, nas folhas e flores que brotavam por todo o lado. E, sobretudo, sentiram-na em cada fibra do seu ser.

- Não chamem a sua atenção... - sussurrou Christian. - Não chamem a sua atenção... imaginem que são simplesmente humanos, ocultem-se sob a vossa identidade humana... nessa altura serão demasiado insignificantes.

Jack entendeu que, apesar de ele ter ousado acender fogo no bosque, apesar de a energia de Victoria também ter causado estragos, era o próprio Christian quem estava em perigo mais imediato. Talvez Wina os deixasse ir, porque eles eram o dragão e o unicórnio, os que tinham feito cumprir a profecia dos Oráculos. Mas, para os Seis, um shek seria sempre um shek, um filho do Sétimo... embora esse shek fosse Christian e estivesse disposto a dar a sua vida por Victoria.

- Talvez devesse chamar a sua atenção - disse Jack em voz baixa. E afastá-la daqui...

- Muito próprio de ti - comentou Christian desdenhosamente. - Não tenho dúvida de que te sacrificarias pelos outros, mas ela iria esmagar-te antes de perceber quem és. E como não podes voar, também não conseguirias afastar-se suficientemente depressa para que não nos esmagasse a nós também. Por isso, reprime os teus nobres instintos e pensa com a cabeça por uma vez.

- Pensar com a cabeça? - repetiu Jack, com voz rouca. - Achas mesmo que se pode usar a cabeça... nestas circunstâncias?

Christian engoliu em seco. Jack respirou fundo. As árvores continuavam a crescer à volta deles, mas a pedra ainda os protegia, por enquanto, enquanto Wina continuava a tecer a sua rede vegetal em redor do seu refúgio. No entanto, eram outras as coisas que os preocupavam.

- Sou o único que se sente prestes a rebentar? - sussurrou Jack.

Victoria não disse nada. Tinha-se encolhido sobre si mesma, aninhada entre os dois, e escondido a cabeça entre os braços. Procurava inspirar lenta e calmamente, mas o seu coração batia com força.

- Usa a cabeça - repetiu Christian, com firmeza. - Tens um cérebro, de modo que podes tomar as tuas próprias decisões. Não tens porque permitir que os deuses te manejem a seu bel-prazer.

- Por acaso não é o que sempre fizeram? - replicou Jack, lugubremente.

- Podemos falar de outra coisa? - interveio Victoria, com voz sufocada.

- Está demasiado calor aqui - disse então Christian.

Estendeu o braço para cobrir Jack e Victoria. Os dois sentiram o frio que emanava dele e agradeceram-lho. Temperou um pouco os seus corações e permitiu-lhes respirar com mais tranquilidade.

Ninguém disse nada durante um bom bocado. Ficaram imóveis, à espera.

Aqueles minutos pareceram-lhes os mais longos das suas vidas. Tentaram acalmar-se, inspirando fundo, pensando em qualquer outra coisa, enquanto a avassaladora energia de Wina, a força da vida, passava por cima deles. Procuraram esquecer que o apertado emaranhado vegetal que os rodeava se fechava cada vez mais em volta deles, tornando o seu refúgio mais pequeno.

Por fim, a voz telepática de Christian chegou até às suas mentes:

- Acho que já está a ir embora.

Aguardaram durante um instante. Depois, o shek retirou o braço.

- Parece que sim... as plantas já não crescem tão depressa, não notam?

- perguntou Victoria.

Jack afastou-se um pouco dela, respirando profundamente.

- Sim... está a ir-se.

Christian soergueu-se e afastou ramos, caules e trepadeiras. Jack e Victoria ajudaram-no a limpar o lugar. O shek conseguiu pôr-se de pé e retirou os ramos até chegar a um tão grosso como um tronco; conseguiu içar-se até ele, com um pequeno esforço, e, uma vez ali, trepou um pouco mais alto.

- Pode sair-se por aqui - informou. - Há um espaço vazio entre os troncos.

Desceu novamente até eles. Surpreendeu-os a olharem um para o outro significativamente.

- Disse que há uma saída - repetiu. Jack voltou à realidade.

- Sim, eh... bem - hesitou. - Talvez fosse melhor esperar mais um pouco, até termos a certeza de que se foi embora.

Christian olhou para ele, mas Jack não susteve o seu olhar. Victoria também parecia incomodada. As suas faces tinham-se tingido de cor. Christian voltou-se para ela; a jovem ergueu a cabeça e os seus olhos encontraram-se, e os dois sentiram-se sacudidos por uma necessidade intensa, urgente. O shek reprimiu o impulso de correr para ela. E não tinha nada a ver com o facto de Jack também ter cravado o olhar em Victoria e os seus olhos arderem com mais intensidade do que o habitual. Os três respiravam com dificuldade, procurando ignorar os batimentos desenfreados dos seus corações.

Christian compreendeu que não seriam capazes de manter o controlo por muito mais tempo. E, após um silêncio tenso, carregado de expectativa, disse, procurando que a sua voz soasse neutra:

- Como queiram. Eu vou lá para fora para tomar ar.

Deu a volta para trepar de novo até ao ramo, mas já tinha visto como os braços de Jack procuravam Victoria, com certa precipitação.

O shek saiu por fim para o exterior e encontrou-se no alto de uma parede semiderrubada, comida pela vegetação. Junto a ela crescia o tronco de uma árvore nodosa. Christian trepou aos ramos mais baixos e continuou a trepar. Quando chegou a uma altura considerável, acomodou-se em cima de uma enorme folha em forma de leque, que susteve o seu peso quase sem um estalido, e concentrou-se um momento no vínculo mental que mantinha com Victoria. Cortou-o quase de forma automática. Depois, fechou os olhos e inspirou fundo várias vezes, até que, pouco a pouco, recuperou o domínio sobre si mesmo. Quando se acalmou, recostou-se no tronco e contemplou o horizonte.

As árvores estendiam-se cada vez mais longe e eram cada vez mais altas. Christian perguntou-se se Wina tencionava movimentar-se pelo resto do continente. O seu poder era a força da vida, da criação, e era ainda mais destrutivo, à sua maneira, do que o de qualquer outro deus. Porque uma cidade poderia recuperar-se da passagem de Yohavir, ou até mesmo de Neliam, mas não voltaria a ressurgir de entre as raízes de uma selva tão agressiva e descomunal como aquela. Se as árvores continuassem a crescer àquela velocidade, até mesmo os feéricos teriam problemas para habitar naquele lugar.

Contemplou com interesse um rebento que acabava de surgir do ramo. Viu-o crescer com afinco, para tomar a mesma forma de leque que tinha a folha onde ele estava sentado. Crescia depressa, mas não tão vertiginosamente como as árvores que tinham envolvido o seu refúgio de pedra com os seus ramos. Para já, estavam a salvo... desde que não voltassem a chamar a atenção da deusa.

Como se dirigia para norte, o acampamento dos szish estava a salvo. Contudo, não pareceu a Christian má ideia que se tivessem deslocado. Por aquela altura, Yaren, Isskez e os outros já estariam nos confins de Raden. Provavelmente, Gerde ter-se-ia já juntado a eles. Sorriu ao imaginar o seu desagrado se tivesse de se instalar no pântano. Até mesmo ela teria problemas para fazer crescer ali uma árvore razoavelmente confortável, e por isso Raden era agora tão seguro. Era mais provável que Wina se afastasse para norte.

No fundo, Christian não lamentava que Jack e Victoria estivessem ali. Tinham sobrevivido a Wina, e o dragão chamara a sua atenção o bastante para a desviar da sua rota. Não tinha descoberto Gerde.

O shek continuava a perguntar-se porque é que a fada tinha corrido tantos riscos, aproximando-se tanto de Wina. Não era para menos, ela era uma feérica, e Wina era a sua deusa, ou, pelo menos, a deusa da nova identidade que o sétimo deus usurpava. Mas, precisamente pelo facto de ser o Sétimo, ou a Sétima, devia odiar e temer os outros Seis... e não ir alegremente ao seu encontro. Quanto de Gerde havia na criatura a quem servia agora?

"Continuo a ser Gerde", dissera ela. E provavelmente tinha razão. Caso contrário, não sentiria tanto prazer em humilhá-lo daquela maneira. Fazia-o por vingança, por rancor e por ciúmes, e aquilo eram sentimentos próprios de uma mortal e não de uma deusa. No entanto...

"No entanto, fá-lo com uma frieza e uma premeditação que não são próprias da Gerde que conheci", reflectiu Christian. "Não lhe importa realmente; é como se continuasse a sentir as mesmas coisas, mas não com a mesma intensidade; como um pálido reflexo do que um dia foi o seu coração, ou como se visse tudo de um ponto de vista mais vasto, mais distante. Continua tudo aí... mas já não tem a mesma importância para ela."

Perguntou-se se isso devia incomodá-lo. Noutra altura, Gerde não tinha significado nada para ele. Mal lhe prestara atenção e matara-a quando se tornara num verdadeiro

incómodo. Mas, agora, ela tinha regressado e estava acima dele. Não era uma situação confortável para o shek, no entanto, não podia ser de outra maneira.

Ficou durante mais algum tempo na árvore, mergulhado em profundas reflexões. Depois, lentamente, desceu de novo até ao refúgio e voltou a deslizar pela falha que havia entre os ramos. Abriu-a um pouco mais para que entrasse mais algum ar e luz.

Encontrou Jack e Victoria abraçados num canto. Victoria tinha adormecido, mas Jack voltou a cabeça para ele.

- E então? - perguntou-lhe em voz baixa.

Christian sentou-se na outra ponta e apoiou as costas na parede, com calma.

- Parece que se foi embora - respondeu no mesmo tom. - Apesar de tudo continuar a crescer anormalmente depressa, não é assim tão alarmante. Os efeitos de Wina vão-se dissipando - acrescentou.

Jack desviou o olhar, incomodado. Cobriu Victoria um pouco mais, embora se tivesse apercebido imediatamente de que aquele gesto era algo absurdo, naquela altura.

- Obrigada por nos deixares sozinhos - disse a meia-voz. Christian encolheu os ombros.

- Não o fiz por ti, por isso não precisas de me agradecer.

- Eu sei, fizeste-o por ela. Mesmo assim...

- Também não - cortou o shek. - Fi-lo por mim mesmo. Detesto essa sensação de perder o controlo. Quando faço alguma coisa, gosto de a fazer porque quero, porque eu decidi; não por causa de uma influência externa.

Jack sorriu. Tinha detectado um matiz de raiva na voz de Christian.

- Sabia que tinhas um ponto fraco - sorriu -, e não são os teus sentimentos nem a tua parte humana. É o teu pânico de perder o domínio de ti mesmo.

Christian encerrou-se num silêncio zangado.

- Odeias a ideia de não saber o que está a acontecer, de não poder fazer nada para o evitar, de não seres tu. Tens medo de não teres as rédeas, de que outro te domine a ti. Estás demasiado acostumado a seres tu a saber e controlar tudo. Mas, às vezes, sabes... - acrescentou Jack com um sorriso, dirigindo um olhar terno a Victoria - não é assim tão mau deixar-se levar.

- Deixar-se levar? - repetiu o shek. - Por acaso irias lançar-te no meio de um mar turbulento em plena tempestade? Esquece; é mais prudente superar as ondas.

- Talvez. Mas assim só vives a vida pela metade, não desfrutas das emoções do momento. Nem tudo pode ser explicado, medido ou racionalizado. Nem tudo tem um sentido, portanto, porquê perder tempo a procurá-lo?

- Tudo tem um sentido - replicou Christian. - Só que às vezes não encontramos as respostas que procuramos, ou não formulamos as perguntas adequadas. Mas isso não significa que essas perguntas e respostas não existam.

- Não acho. Olha para Wina, por exemplo. Olha para os deuses. Não narecem a essência do caos? Porquê procurar uma ordem em tudo o que fazem?

- Porque há uma ordem e um sentido, a uma escala muito maior. Do nosso ponto de vista talvez não haja. Mas de outra perspectiva, sim.

- Então elucida-me e ajuda-me a entender as coisas de outra perspectiva. Porque é que actuas às vezes de modo tão incompreensível? Pode saber-se que diabos fazes com Gerde, por exemplo?

Christian dirigiu-lhe um olhar breve.

- Achava que era evidente.

- Pois é evidente que não é - grunhiu Jack. - Mas vou tentar adivinhar. Sabes como derrotá-la e estás à espera do momento de pôr em prática o teu plano para acabar com ela. Ou pode ser que tenham feito um pacto... não sei, para proteger Victoria, talvez. Gerde esquece-se dela e em contrapartida tem a tua lealdade... estou enganado?

- Estás enganado. Isto não tem nada a ver com Victoria e também não tenho a intenção de matar Gerde outra vez.

- Então, estás com ela porque te obriga? Porque é a tua deusa?

- Também não. Estou com ela porque quero protegê-la. É tão simples quanto isso.

Jack abanou a cabeça, perplexo.

- Protegê-la? A Gerde? Estamos a falar da mesma Gerde?

- Não conheço nenhuma outra - respondeu Christian, com calma.

- Mas é a sétima deusa! Estavas connosco quando acabámos com a sua anterior encarnação. Tu ajudaste-nos a matar Ashran!

- Certo. E não me arrependo disso.

- Então, o que é que mudou? Christian sorriu.

- O que é que te parece que mudou? Mudou tudo, Jack. Tudo. As normas que valiam antes já não servem. Tudo o que tinha como certo estava errado. Agora sei o que tenho de fazer, mas é algo que só me diz respeito a mim, por enquanto, de modo que não tenho porque te dar mais explicações. Este é o caminho que devo seguir. Tu seguirás o teu, como deve ser.

- E em relação a Victoria? Não lhe deves explicações?

- Ela sabe que a amo. Os meus sentimentos por ela não mudaram.

- E isso basta-lhe? Dizes que a amas enquanto corres para proteger Gerde? Porque é que não és capaz de permanecer ao seu lado, em vez de saltares de um lado para o outro de cada vez que muda o vento?

Christian fulminou-o com o olhar.

- Julgava que tínhamos chegado à conclusão de que faço as coisas porque quero, e nunca me deixo arrastar - recordou-lhe. - Só sigo o vento quando este sopra na direcção que me interessa. E os ventos mudam, porque o mundo muda. E, se o mundo muda, ou se muda a nossa percepção do mundo, não podes ficar agarrado a um plano que já não se adapta a ele. Há que mudar de planos, mudar de ideias.

- Por outras palavras, és um oportunista - resumiu Jack, exasperado.

- Não és leal a nada?

- Sou leal a mim mesmo - replicou o shek, imperturbável. - A que é que tu és leal? À Resistência?

Jack calou-se, porque Christian tinha posto o dedo na ferida. Ainda tinha muito fresca na memória a sua discussão com Alexander.

- A Victoria, por exemplo - respondeu então. Christian esboçou um breve sorriso.

- Também eu, à minha maneira - respondeu -, embora não lhe faça companhia nem acorde ao seu lado todos os dias. Para isso já existes tu.

Jack ficou sem fala.

- Para isso existo eu? - conseguiu repetir, por fim. - É isso que sou? O shek encolheu os ombros.

- Se não te agrada, podes ir embora. Embora provavelmente não exercesse o lugar de companheiro com a mesma eficácia que tu, não teria nenhum problema em ocupar o teu lugar. É isso que queres?

Jack não respondeu.

- Poderias deixar de te queixar, para variar - prosseguiu Christian. Ninguém te obriga a estar com Victoria. Se quisesses abandoná-la, não duvido que lhe doeria, mas iria deixar-te partir; ela aceitaria a tua decisão, e sabes disso. Talvez o problema não seja dela, nem meu, mas sim teu. Não sabes o que queres, Jack. Queixas-te se Victoria está comigo, ficas zangado por não estar com ela. Decide-te. Ficas com a melhor parte desta relação, por isso não estás em situação de protestar. Se o que te incomoda é estares com ela durante a maior parte do tempo, talvez o problema seja não quereres estar com ela.

- Não é isso - protestou Jack. - Não distorças as minhas palavras. O que me aborrece é que dei a cara por ti, aceitei-te como aliado depois de tudo o que se passou, até aceitei que vais estar com Victoria tal como eu... e não sei nem para que é que me dei ao trabalho de confiar em ti, quando nos viras as costas à primeira... para proteger Gerde? Desculpa se te pareço egoísta, mas eu vejo as coisas de uma perspectiva muito diferente. Traíste-nos a todos; a Victoria, e a mim, e àqueles que puseram de lado os seus preconceitos para confiar num shek.

Tinha levantado a voz, e Victoria acordou bruscamente. Os dois rapazes calaram-se, mas ela captou imediatamente a tensão no ambiente.

- Estiveram a discutir outra vez? - murmurou.

Christian não disse nada. Saiu do refúgio, em silêncio, e perdeu-se na escuridão da noite.

- Diz que está com Gerde porque quer protegê-la - acusou Jack por Victoria inclinou a cabeça.

- Lá terá as suas razões. Jack ficou petrificado.

- Tu também? Sou o único a quem isso não parece normal? Victoria soergueu-se um pouco, procurando acordar.

- Jack, reconhece que não sabemos como enfrentar esta situação. Derrotámos Ashran, como nos foi dito que fizéssemos, e isso gerou mais problemas do que aqueles que solucionou. Se essa não era a opção correcta, porque voltar a actuar da mesma forma?

- Consigo entender isso - assentiu Jack. - Entendo que queiram desinteressar-se de tudo isto, porque o certo é que demos o couro para salvar este mundo e não serviu para nada. Mas não acho que Gerde mereça tanta consideração por parte de Christian. Não achas?

- Jack, Christian não simpatiza com Gerde. E muito menos desde que sabe que ela tem tanto poder sobre ele. Por isso, se está com ela, deve ter os seus motivos... Motivos poderosos, percebes?

- Como salvar a pele, por exemplo?

- Salvar a pele? com seis deuses à procura de Gerde para acabar com ela, achas que Christian está mais seguro a tentar protegê-la?

Jack abanou a cabeça.

- Não entendo nada.

- Se te serve de consolo, eu também não. Não sei o que está a tramar nem quais são as suas verdadeiras intenções, mas voltou a arriscar-se por nós, uma vez mais, esta noite. Veio até aqui de propósito para nos ajudar, e não tinha porque fazê-lo.

É este tipo de coisas que me fazem confiar nele. Compreendes?

- Suponho que sim - suspirou Jack, algo abatido. Victoria olhou para ele e sorriu-lhe com doçura.

- Foi muito bonito - disse-lhe em voz baixa, ruborizando-se um pouco. Jack demorou dois segundos a entender a que se referia.

- Sim... - murmurou, sorrindo por sua vez. - Estou de acordo. Sabes...? Pode ser que acabe por simpatizar com Wina, afinal de contas.

Beijaram-se demoradamente. Depois, com um suspiro, Victoria levantou-se.

- vou despedir-me de Christian - disse.

- Vai-se embora?

Victoria assentiu, sem uma palavra. Jack viu-a sair e, após um momento de dúvida, levantou-se também e seguiu-a.

Ficou junto aos restos do muro, que tinha desaparecido sob um manto de vegetação, e dali viu que Victoria ia ao encontro de Christian, que a esperava um pouco afastado.

Mas o shek detectou a sua presença e olhou-o fixamente.

- Anda - disse-lhe. - Antes de me ir embora, há uma coisa que te quero mostrar.

Jack olhoUO desconfiado, mas dirigiu-se a ele. Christian depositou um suave beijo na mão de Victoria e afastou-se dela para se juntar ao dragão. A jovem viu-os partirem juntos, um pouco inquieta, mas não os seguiu.

Abriram caminho muito a custo por entre o mato, trepando por cima de enormes raízes retorcidas e subindo a ramos baixos para conseguir ultrapassar algum obstáculo.

- Onde me levas? - perguntou Jack, desconfiado.

- Devias saber - foi a resposta -, porque eras tu quem tinha interesse em vir aqui.

Jack olhou para ele sem compreender. Mas de súbito fez-se luz na sua mente, e o seu coração começou a bater um pouco mais depressa.

- Os meus pais - adivinhou.

Christian assentiu, mas não acrescentou mais nada. Detiveram-se apenas uns momentos mais tarde, numa parte do bosque que parecia igual ao resto.

- O que se passa? - arquejou Jack. - Já não se pode continuar?

- Chegámos - respondeu o shek.

Jack olhou à sua volta, surpreendido. Os grossos troncos das árvores quase não deixavam espaço para estar de pé. O chão estava coberto por mato espesso.

- Na altura não tinha este aspecto, claro - acrescentou o shek. - Era o cemitério da Torre de Drackwen.

- Não sabia que a torre tinha um cemitério - murmurou Jack.

- Teve, em tempos remotos. Quando era uma torre de feitiçaria activa, muitos feiticeiros expressavam o seu desejo de serem enterrados aqui depois de mortos. Debaixo do chão de Alis Lithban, o bosque dos unicórnios, o berço da magia. E sepultavam aqui os seus corpos, sem lápides nem sinal algum que indicasse o seu nome e condição. Era a sua maneira de esquecerem que tinham sido indivíduos e de passarem a ser unos com a terra que os unicórnios pisavam.

Este costume entrou em desuso quando a torre foi abandonada. Mas Ashran lembrava-se dele e, por alguma razão que desconheço, ordenava aos szish que enterrassem

aqui os corpos dos feiticeiros idhunitas que eu lhe enviava.

- Mas os meus pais não eram feiticeiros, nem sequer eram idhunitas.

- Os szish não sabiam disso. Limitaram-se a fazer com os seus corpos o mesmo que faziam com os outros.

Não creio que seja possível indicar-te o lugar exacto, Jack, não só porque não tinham por hábito assinalar as sepulturas, mas também porque tudo o que podia crescer e florescer no chão de Alis Lithban fê-lo à passagem da deusa Wina.

- De qualquer forma, obrigado - murmurou Jack.

Sentou-se em cima de uma enorme raiz e enterrou o rosto entre as mãos. Durante uns momentos não se mexeu, nem disse nada, pelo que Christian decidiu deixá-lo sozinho, regressando em silêncio às ruínas da torre.

Jack ficou ali durante mais algum tempo, a pensar.

Há muito que não parava para se lembrar dos seus pais. Depois de tudo o que tinha acontecido, a sua vida na Terra parecia-lhe distante, irreal. Era estranho pensar que tinha tido uma família.

Durante algum tempo, a sua família tinha sido a Resistência; Shail e Alexander foram para ele os irmãos que nunca tivera, e Victoria... Victoria tinha representado o futuro.

Mas até isso estava a perder. A Resistência tinha-se desagregado, já não se sentia parte dela. E Victoria era o presente.

Procurou lembrar-se dos seus pais. Fechou os olhos e sondou nas profundezas da sua consciência, em busca de lembranças esquecidas. Encontrou-os ali e, por um momento, falou com os fantasmas daquelas lembranças, esforçando-se por definir as suas feições.

No fundo do seu coração, encontrou também a criança que tinha sido e que agora lhe parecia um perfeito estranho. Apesar disso, chorou por ele, pela vida que deixara para trás. Chorou pelos seus pais, por não ter tido tempo de lhes dizer tudo o que gostaria de lhes ter dito, por terem sido vítimas de uma guerra que não era a deles, de um erro absurdo, por terem recebido a morte que estava destinada a ele.

Quando, por fim, se levantou, disposto a regressar para junto de Christian e Victoria, ainda havia lágrimas nas suas faces, mas o seu coração estava sereno. Também aquilo representava o passado... um passado que não voltaria.

Despediu-se dos seus pais, cujos restos mortais jaziam algures, debaixo das raízes daquelas enormes árvores, talvez formando já parte delas, e embrenhou-se novamente no bosque.

Quando chegou às ruínas da torre, Christian ainda lá estava, mas parecia pronto para partir. Jack não se aproximou mais; esperou que se despedisse de Victoria, que se encontrava junto a ele. A jovem tinha a cabeça baixa; Christian fê-la erguer o queixo para a olhar nos olhos e beijou-a com suavidade. Ela abraçou-o fortemente e disse-lhe algo ao ouvido. Jack deduziu que fosse "tem cuidado", ou algo parecido. Christian acariciou a sua face com uma certa ternura.

Depois, transformou-se de novo em shek. Victoria deu um último abraço à grande serpente, parecendo não se importar que tivesse mudado de forma, e esta baixou a cabeça para lhe tocar no cabelo com suavidade, numa última carícia.

Victoria retrocedeu para lhe dar espaço. Christian levanto voo, ondulou o seu longo corpo de serpente para passar entre a folhagem e, finalmente, alcançou o céu aberto e bateu as asas com força, afastando-se deles, Jack juntou-se a Victoria. Ela dirigiu-lhe um olhar inquisitivo.

- Como estás? - perguntou-lhe com suavidade.

- Bem - respondeu Jack, com calma. - E tu? Não sentes saudades dele de cada vez que se vai embora?

- Sim - suspirou ela. - Mas o que posso fazer? Jack rodeou os seus ombros com o braço.

- Talvez um dia se vá embora para sempre.

- Eu sei. Mas não sou ninguém para procurar impedi-lo, não achas?

- Não és ninguém? Supostamente és a mulher que ele ama, não?

- Sim. E precisamente por isso sei que, quando volta para junto de mim, fá-lo porque quer, livremente. No dia em que regressar porque se sente obrigado, tê-lo-ei perdido para sempre. Por isso sei que devo deixá-lo ir.

Jack olhou para ela.

- E a mim, deixavas-me ir?

Victoria devolveu-lhe um sorriso cansado.

- Tu não queres que te deixe ir - disse-lhe. - Esforças-te muito por te prenderes a mim, por isso tiveste ciúmes de Christian desde o início. Talvez um dia descubras que não queres sentir-te atado. Nesse dia irás embora e eu irei deixar-te ir, se quiseres. Mas estarei aqui para ti, tal como estou para Christian, sempre que voltares por o desejares de verdade.

- Nunca me tinhas dito isto - murmurou Jack.

- Nunca me tinhas perguntado. Jack não soube o que dizer.

- Estás comigo porque queres - disse Victoria - e eu estou contente por estares comigo. Mas no dia em que já não quiseres estar ao meu lado, não poderei fazer nada quanto a isso. Parto do pressuposto de que estamos juntos porque queremos os dois estar juntos. Estou enganada?

Jack sorriu e estreitou-a contra o peito.

- É assim - assegurou-lhe.

Regressaram ao refúgio. Esperariam pelo primeiro amanhecer e, com as luzes do dia, Victoria curaria a asa de Jack para que pudessem regressar a Awa. Já tinham feito tudo o que tinham a fazer ali. Já tinham confirmado as suas piores suspeitas acerca da chegada a Idhún de uma nova deusa.

Em breve, os Seis iriam reunir-se. Em breve, tomariam uma decisão a respeito da Sétima, se é que havia alguma decisão a tomar. E, se descobrissem onde encontrá-la, nem sequer Christian poderia salvar Gerde.

Jack não pôde evitar perguntar-se, uma vez mais, quais seriam verdadeiras razões do shek. Christian não era amigo de lutar por causas perdidas. Não fazia nenhum sentido que apoiasse Gerde, salvo se a sua verdadeira natureza de shek lhe exigisse que prestasse obediência à sua deusa. E isso, apesar das palavras de Victoria, Jack não considerava que fosse algo de bom.

 

             O REI DE VANISSAR

Quando Jack e Victoria chegaram ao Oráculo de Awa, dois dias mais tarde, estavam cansados e preocupados. Sabiam que teriam de falar a todos acerca da chegada de Wina a Alis Lithban, dizer que traziam mais más notícias e nenhuma solução. Provavelmente enfrentariam vários dias de reuniões e de discussões, enquanto decidiam entre todos o que fazer. Sabiam de antemão que não chegariam a nenhuma conclusão, e aquela sensação de impotência, de absoluta vulnerabilidade, era o pior de tudo. Em tempos passados, perante a ameaça de Ashran, os idhunitas tinham tido uma profecia que lhes indicava o que deviam fazer e a certeza de que os seus deuses os protegeriam, à sua maneira. Era uma esperança fraca; no entanto, era uma esperança. Mas agora, que lhes restava?

Jack sabia que ele e Victoria poderiam ir embora para a Terra, onde estariam mais seguros do que em Idhún, apesar da presença de Ziessel e da sua gente. Mas odiava a ideia de partir e deixar Idhún abandonado à sua sorte. E o único plano que tinha, a esperança que estava a tentar semear nos corações dos seus amigos, estava ameaçado por causa daquele maldito shek. Isso punha-o de mau humor.

Não tinha falado sobre isso com Victoria, porque ainda tinha muito recentes as lembranças dos momentos que tinham passado juntos, quando se tinham visto afectados pela presença da deusa Wina. Jack não se lembrava de alguma vez se ter abandonado daquela maneira, e tinha sido uma experiência muito intensa para ambos, um momento maravilhoso que os unira ainda mais. Não queria estragá-lo tão depressa.

Mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, teriam de falar da estratégia a seguir. Jack continuava convencido de que a sua única saída consistia em derrotar Gerde, em entregá-la aos deuses, para que eles solucionassem o assunto que tinham pendente com o esquivo sétimo deus. E, se Christian insistia em proteger a feérica, fossem quais fossem as suas razões, ver-se-ia obrigado a enfrentá-lo... outra vez. Será que Victoria iria lutar ao seu lado contra Christian e Gerde? Jack não lhe queria perguntar, porque temia a resposta àquela pergunta.

Por sorte ou por azar, outros assuntos distraíram a sua atenção à chegada ao Oráculo.

Entre as pessoas que vieram recebê-los, não se encontrava Alexander, mas Jack não deu importância a isso. Saudou Ha-Din e Shail e contoulhes resumidamente o que tinham visto em Alis Lithban. Não mencionou Christian.

- Não são boas notícias - disse Shail, preocupado.

- São piores do que parece - assinalou Ha-Din. - Jack, regressaste de Alis Lithban com o coração cheio de dúvidas. Antes estavas mais seguro de ti mesmo, enfrentavas tudo isto com uma atitude resoluta. Agora, o teu ânimo vacila. O que aconteceu?

- Acontece que cada vez vejo menos sentido em tudo isto, Pai Venerável - respondeu Jack, sem mentir.

Ha-Din dirigiu-lhe um olhar pensativo, mas não disse palavra.

Depois de cear, Jack foi à procura de Shail. Ficou aliviado por o encontrar sozinho, sentado no pátio, a ler um livro. O que tinha para lhe dizer não devia ser escutado por ouvidos indiscretos.

- Tenho de falar contigo - disse-lhe em voz baixa. Shail fechou o livro.

- Também eu tenho algo para te dizer. Aconteceu uma coisa enquanto estavas fora... mas fala tu primeiro. Pela tua cara, parece importante.

Jack sentou-se ao seu lado.

- Shail, não sei se vamos sair desta - disse-lhe sem rodeios.

O feiticeiro não disse nada. Limitou-se a aguardar que Jack continuasse a falar.

- Já vimos o que os deuses podem fazer - prosseguiu Jack - e não sei como detê-los. São capazes de em muito pouco tempo acabar com todo este mundo, voluntária ou involuntariamente. E parece cobarde e egoísta, mas não sei se quero estar aqui para ver isso.

Shail ficou em silêncio durante um instante, a reflectir. Depois disse:

- Referes-te a regressar à Terra, não é? É isso que queres fazer?

- Christian previu isto - assentiu Jack. - Antes mesmo de Yohavir quase ter arrasado a Torre de Kazlunn, disse que o mais prudente era escapar daqui. E, de facto, foi o que fez, levando Victoria com ele para a proteger. Mas eu não quis render-me tão depressa. Fiquei a lutar... e, pelos vistos, eles cansaram-se de esperar por mim. Victoria regressou para me vir buscar.

Agora pergunto-me se não devia ter ido com eles na altura. Sou teimoso e sei que ficarei aqui até ao último momento, mas acabarei por me ir embora. Compreendes

o que quero dizer?

- Queres saber se estamos dispostos a regressar a Limbhad - entendeu Shail. - Se Alexander e eu vos acompanharíamos.

- É exactamente isso que quero saber.

Shail inclinou a cabeça.

- Eu não iria sem Zaisei - disse -, e não sei que tipo de vida esperaria uma celeste na Terra.

- Será melhor do que estar morta - replicou Jack.

- Suponho que sim. E imagino que também gostarias de dar essa possibilidade a outras pessoas próximas de ti; como Kimara, por exemplo. Mas não podes levar todos os idhunitas para a Terra através da Porta. E como vais decidir quem vai e quem fica?

- Já te disse que era uma opção cobarde e egoísta. Mas estou cansado de ser um herói, Shail.

Shail olhou para ele, pensativo.

- E aquilo que propuseste no outro dia? Lutar contra Gerde, capturá-la e entregá-la aos deuses?

- É uma empresa quase impossível de realizar, Shail.

- Também o era fazer cumprir a profecia que anunciava a derrota de Ashran.

- Mas havia uma profecia. Tínhamos os deuses do nosso lado. Agora são eles que vão enfrentar o Sétimo, pelo que já não nos prestam atenção. Agora estamos sozinhos contra Gerde.

- Há quatro dias estavas disposto a tentar. O que é que mudou? Jack demorou um pouco a responder.

- Encontrámo-nos com Christian em Alis Lithban - explicou. - Ajudou-nos a proteger-nos de Wina, mas também deixou muito claro que agora é leal a Gerde. Não está com ela por obrigação nem por tencionar traí-la no futuro. Quer realmente lutar por ela, ou, pelo menos, foi o que me disse. E acho que estava a ser sincero.

- Mas... e Victoria?

- Pelos vistos, continua a sentir a mesma coisa por ela. A relação entre eles continua intacta, que eu saiba.

- Não entendo nada - murmurou Shail, perplexo.

- Eu também não.

O feiticeiro abanou a cabeça.

- Tive ocasião de lidar com Kirtash em Nanhai. Continuo sem saber se posso confiar nele ou não, mas o que ficou claro é que, a partir do momento em que traiu Ashran, já não voltou a pertencer a nenhuma facção, nem sequer à Resistência. Surpreende-me saber que voltou a escolher um lado, embora no fundo suspeite que está com eles da mesma forma que esteve antes com a Resistência: porque convinha aos seus próprios planos. Na altura, aqueles planos consistiam em proteger Victoria.

- Foi ele próprio que me disse que isto nada tinha a ver com Victoria.

- Mas também não faria nada que pudesse prejudicá-la. Estou enganado?

- Julgo que não. Ou é o que ele pensa. Como devemos reagir? O nosso único plano passava por derrotar Gerde. Se ele se empenhar em protegêla acabaremos por nos enfrentar outra vez. E Victoria continua a manter uma relação com ele e comigo. Entendes o que quero dizer?

Shail franziu o sobrolho.

- Agora sim. As únicas opções que te restam são enfrentar Gerde, e portanto Kirtash, ou fugir para a Terra. E se enfrentarmos Kirtash... o que é que Victoria irá fazer?

- Não sei. Ainda não lhe perguntei, mas duvido muito que queira lutar contra ele. Não parece recriminá-lo por ter voltado a mudar de lado, e isso desconcerta-me.

- Notei-a distante - assentiu Shail -, como se já não se sentisse parte de tudo isto, da Resistência. Achas que ela também poderia chegar a mudar de lado?

Jack sorriu.

- Victoria estava com a Resistência porque a profecia obrigava explicitamente os unicórnios a lutar contra Ashran - disse -, mas, apesar de tudo, ela apaixonou-se por esse shek... e julgo que isso se deve ao facto de nunca ter realmente acreditado que os sheks fossem os monstros perversos que todos diziam. Agora que essa profecia já não tem validade, Victoria poderia ajudar a nós ou a Christian, é-lhe indiferente. Lutará pelos seus entes queridos, numa e noutra facção, mas não creio que chegue a unir-se a Gerde, simplesmente porque não gosta dela. Agora, bom... se lhe pedirmos que se envolva numa guerra contra ela, se isso implicar enfrentar Christian... irá recusar-se.

- É o que eu pensava - assentiu Shail. - E tu queres evitar esse confronto.

- Não só por Victoria, mas também por mim. Não quero lutar contra ele. Dá-me cabo dos nervos, é verdade, e acho que o mundo seria um lugar melhor se ele não existisse,

mas não posso negar que nos ajudou e nos salvou a vida várias vezes.

Por isso só me resta renunciar a lutar e ir-me embora daqui, com Victoria e com todos os que quiserem seguir-me. E digo-to a ti, porque sei que tens alguém a quem

queres proteger e irás pelo menos considerar a possibilidade. Mas não quero nem imaginar o que dirá Alexander quando lho propuser - acrescentou, pesaroso.

Shail ergueu-se.

- Queria falar-te disso. Há duas noites, Érea esteve cheia.

- Eu sei - respondeu Jack. - Mencionei-o na reunião, diante de Ha-Din e de outras pessoas importantes. Imagino que Alexander ainda não me tenha perdoado.

- Não se trata disso, Jack. - Shail cravou o olhar nele, muito sério. Nessa noite... aconteceu uma coisa muito estranha.

Começou a relatar-lhe o que tinha acontecido entre Alexander e Gaedalu e como esta tinha conseguido reverter a sua transformação.

- Devia alegrar-me - concluiu -, mas não consigo. Pareceu-me tudo muito esquisito, e aquela pedra... não me deu a sensação de que fosse de todo benéfica. Além disso, Zaisei contou-me que a Mãe Venerável foi a Dagledu buscar fragmentos de uma rocha que causa um efeito estranho nas pessoas. Pela descrição, asseguraria que a pedra do bracelete que deu a Alexander era um desses fragmentos.

- A sério? E que tipo de rocha é essa?

- Chamam-lhe a Rocha Maldita, embora, pelos vistos, o seu verdadeiro nome seja Pedra de Érea. Diz-se que caiu do céu há muitos milénios.

Jack apoiou as costas contra a parede, surpreendido.

- Victoria falou-me de um meteorito que caiu no mar, há muito tempo - murmurou. - Encontrou informação sobre isso em Limbhad. Ela irá dar-te mais pormenores, mas não me deu a impressão de que fosse algo de bom. Estava relacionado com a chegada das serpentes a Idhún. - Ergueu a cabeça, decidido. - Temos de falar com Alexander para que não volte a usar essa coisa. Imagino que não vai querer ouvir-nos, mas...

- Alexander não está aqui - cortou Shail. - Partiu ontem com Gaedalu em direcção a Vanissar - suspirou, preocupado. - Disse que ia recuperar o que é seu.

- Como se atreveu a regressar aqui? - murmurou Covan, irritado.

- Não está sozinho, senhor - informou o soldado. - A Venerável Gaedalu acompanha-o.

- Gaedalu! - repetiu Covan, estupefacto.

Havia uma terceira pessoa na sala, além deles: alguém que se tinha retirado para um discreto segundo plano e que assistia à conversa num canto mergulhado na sombra. O soldado não se apercebeu da sua presença até que esta se moveu, inquieta perante a menção da Mãe Venerável. Mas não teve tempo de reparar nela, porque Covan reclamou de novo a sua atenção.

- Vem mais alguém com eles?

- Não, senhor. Ninguém os acompanha.

- A Venerável Gaedalu sem cortejo - disse então a mulher do canto, com voz suave e modulada. - Isso é muito esquisito.

Covan abanou a cabeça.

- Maldição, não posso deixá-los à porta nem ordenar que prendam Alsan. Se Gaedalu está com ele...

- Sem dúvida a Mãe Venerável não sabe o que nós sabemos acerca do príncipe Alsan, mestre Covan - interveio a mulher. - O nosso dever é informá-la do perigo que corre acompanhando-o.

- Sem dúvida - concordou Covan, após um instante de reflexão. Fá-los entrar - ordenou ao soldado.

O jovem inclinou a cabeça e retirou-se, deixando-os a sós.

Pouco depois, Alexander e Gaedalu entravam na sala. Covan observou-os com cautela enquanto se aproximavam. Não pôde deixar de reparar que Alexander caminhava sereno e seguro de si, com o orgulho estampado no olhar. Parecia-se tanto com o rapaz que tinha treinado em Nurgon que o mestre-de-armas sentiu uma pontada de dor. Porém, não podia deixar de recordar a criatura em que se tinha metamorfoseado na noite do Triplo Plenilúnio.

- Mãe Venerável - saudou, com uma profunda vénia. - Príncipe Alsan - acrescentou, e desta vez não se inclinou. - A que devemos a honra da vossa visita?

Alexander arqueou uma sobrancelha.

- Por acaso um príncipe precisa de motivos para visitar o seu reino?

- Normalmente, não - grunhiu Covan -, mas as coisas mudam se esse príncipe, transformado num animal sanguinário, assassina o seu irmão a sangue-frio e depois desaparece durante meses.

- Não parece que tenham sentido a minha falta - observou Alexander com frieza. - Ouvi dizer que já preparas a cerimónia da tua coroação.

O rosto de Covan ensombrou-se.

- Não creio que seja necessário tudo isto - interveio Gaedalu. - Estamos aqui para esclarecer as coisas, para nos unirmos todos contra o inimigo comum. Não faz sentido enfrentarmo-nos uns aos outros...

- Peço-te perdão, Mãe Venerável - murmurou Covan, afastando o olhar do de Alexander. - É certo, há muitas coisas a esclarecer e, com todo o meu respeito, não creio que tenhas consciência do perigo que corres na companhia de Alsan. Mas haverá tempo para falar disso, suponho. Dou-te as boas-vindas a Vanissar. É uma honra receber-te entre nós.

- Pelo que vejo, não somos os únicos visitantes ilustres - observou Gaedalu. -Não é... Envel

A mulher que continuava oculta entre as sombras deu dois passos à frente, com um sorriso sereno.

- Mãe Venerável - saudou, com uma elegante inclinação. - Desculpa os meus maus modos. A troca de opiniões entre o príncipe Alsan e o mestre Covan pareceu-me um assunto privado e não achei oportuno intervir. Príncipe Alsan - acrescentou, voltando-se para ele -, bem-vindo ao teu reino.

Alexander sorriu por sua vez, um pouco incomodado. Conhecia a rainha Erive de Raheld, mas ele era apenas um rapaz quando ela já governava os destinos do seu reino com mão firme. Tinha passado muito tempo desde então. Erive era agora uma mulher madura, mas ainda conservava a sua elegância régia e olhar sagaz. Raheld saíra-se bem da invasão shek. Para salvaguardar o seu reino, Erive tinha-se rendido imediatamente às serpentes e, como consequência, Raheld permanecera intacto. Mas, após a derrota de Ashran, Erive tinha tomado partido do lado contrário. Os que ainda lutavam contra os sheks sabiam que não podiam dar-se ao luxo de lhe censurar a sua antiga aliança: depois da batalha de Awa, o número de Novos Dragões tinha diminuído muito e estes só tinham conseguido levantar a cabeça graças à generosidade de Erive. A rainha de Raheld não só lhes tinha proporcionado uma nova base, como além disso os apoiava economicamente e tinha posto os seus melhores engenheiros e artesãos ao serviço de Denyal e Tanawe. Até lhes tinha enviado o feiticeiro Vankian, que estava ao serviço da rainha em Thalis. Sem Erive, os Novos Dragões não eram nada.

Contudo, Alexander não sabia como encarar a sua presença em Vanissar.

- Obrigado, senhora - respondeu com gravidade. - No entanto, não deixa de ser estranho que sejas tu a dar-me as boas-vindas ao meu próprio reino.

Erive riu suavemente.

- É certo, mas vivemos tempos estranhos. Para não irmos mais longe, a tua chegada foi uma completa surpresa para toda a gente. Dávamos-te como morto. Fico contente por ver que não é assim.

- Não é a primeira vez que sou dado como morto - observou Alexander, com um sorriso cansado. - E não é a primeira vez que regresso ao meu reino e vejo que outro trata de usurpar o meu lugar.

O rosto de Covan corou.

- Eu lutei por ti, e sabes disso. Defendi o teu direito ao trono perante o teu irmão, mas isso não justifica o que fizeste... a ele e a Denyal.

- O meu irmão lutava numa guerra e lutava no lado inimigo - fez notar Alexander com frieza. - Enfrentámo-nos, e ele perdeu.

- Desfizeste-o com garras e presas, Alsan! - quase gritou Covan.

- Tê-lo-ia atravessado com a minha espada noutras circunstâncias. O que importa a forma como morreu? Era um traidor, aliou-se aos sheks.

- Muitos de nós aliámo-nos aos sheks porque não tivemos outra escolha, príncipe Alsan - observou a rainha Erive, sem levantar a voz. - Passaste muito tempo longe de casa e não podes saber o que sofremos aqui... as terríveis decisões que tivemos de tomar pelo bem do nosso povo. Tambem eu me rendi aos sheks para salvar a minha gente, tal como Amrin. Mereço a mesma sorte que ele?

- Se eu não o tivesse matado, ele teria acabado comigo. Lutávamos numa batalha, minha senhora. Éramos inimigos. Pretendes fazer-me crer que, se tivesses lutado nessa batalha, terias simulado os teus golpes ou que me terias perdoado a vida, porque estavas do lado dos sheks por obrigação?

Erive não respondeu.

- E em relação a Denyal? - perguntou Covan. - Arrancaste-lhe um braço.

- Esse não era eu. Passei algum tempo... possuído por uma força alheia a mim, um animal que se apoderava da minha vontade nas noites de lua cheia. Mas, graças à intervenção da Venerável Gaedalu, isso não voltará a acontecer. O pesadelo ficou para trás. Volto a ser eu mesmo e posso assumir a liderança do meu povo.

Covan deu um passo atrás e olhou para ele com desconfiança.

- E achas que isso é suficiente? Achas que é assim tão fácil esquecer?

- A rainha Erive foi aliada dos sheks e foi perdoada - observou Alexander. - Porque, segundo ela, agia assim porque não tinha outro remédio. Bem, na altura eu também não era senhor dos meus actos. Estava submetido a uma força muito mais poderosa do que a ameaça shek; e sei do que estou a falar, dado que durante os últimos anos enfrentei os sheks e não sucumbi a eles. Mas, em contrapartida, o animal venceu-me.

Isso acabou. Agora, a criatura que habitava em mim foi derrotada e não voltará a aparecer.

- E como podemos ter a certeza disso? Como podemos confiar na tua palavra?

Alexander meneou a cabeça,

- Houve um tempo, mestre Covan, em que a minha palavra te teria bastado. Porque estudei na academia, porque os cavaleiros de Nurgon não mentem. Mas, já que insistes em duvidar da minha palavra, espero que ao menos escutes a da Mãe Venerável.

Gaedalu inclinou a cabeça.

- O que o príncipe Akan diz é. verdade - afirmou Gaedalu. - Eu fui testemunha da sua transformação há várias noites, durante o último plenilúnio de Érea. E proporcionei-lhe os meios para reverter a maldição. Alsan caminhou de novo como homem sob a luz da lua cheia.

Fez-se um longo e pesado silêncio.

- Dentro de cinco dias, Ilea estará cheia - disse Alexander. - Tu viste -me sob a sua influência, sabes que a lua verde pode alterar as minhas feições. Vais ver que desta vez continuarei a ser eu mesmo.

Alexander e Covan fitaram-se. Finalmente, o mestre-de-armas suspirou.

- Alsan, tu sabes que o meu sonho sempre foi ver-te como rei de Vanissar. Mas não é assim tão fácil. Se, como disseste, a força que enfrentas é ainda mais poderosa do que a dos sheks, então não devias mostrar-te tão confiante. Sim, vou pedir-te uma prova, e não porque duvide da tua palavra, nem da Mãe Venerável, mas porque ainda não podes saber se dominaste o animal por completo.

Fez uma pausa. Alexander ia dizer algo, mas pensou melhor e permaneceu calado.

- vou consultar os outros cavaleiros e marcaremos um dia para a tua coroação como rei de Vanissar - prosseguiu Covan. - vou propor que seja o dia de Ano Novo.

Alexander franziu o sobrolho.

- Na véspera da tua coroação, quando as três luas brilharem cheias, permanecerás acorrentado, debaixo de vigilância apertada. Se na aurora não te tiveres transformado, eu serei o primeiro a dobrar o joelho diante de ti e a jurar-te fidelidade. Caso contrário... pelo bem de Vanissar, terás de ser executado.

- Isso não será necessário - interveio Gaedalu. - O príncipe Alsan não se transformará. Os deuses protegem-no.

- Aceito as tuas condições, Covan - disse Alexander com voz firme. Tenho fé nos Seis e nas palavras da Mãe Venerável.

Os dois homens trocaram um novo olhar, sereno, mas desafiador. A rainha Erive quebrou o silêncio:

- Devem estar cansados depois de uma viagem tão longa - disse. A Venerável Gaedalu sem dúvida desejará que lhe preparem um banho...

- Agradecia, sim - concordou Gaedalu. - Mas também vou necessitar de outra coisa.

- De que se trata? - inquiriu Erive.

Alexander e Gaedalu olharam um para o outro e sorriram.

- Um ourives - disse ela. - O melhor ourives de Vanissar.

Gan-Dorak era um dos maiores oásis de Kash-Tar. Estava a meio caminho entre Lumbak e Kosh e, por esse motivo, era paragem obrigatória na maior parte das rotas das caravanas.

Os sheks sabiam que quem controlasse Gan-Dorak controlaria também grande parte de Kash-Tar e, por essa razão, há muito tempo tinham fortificado o oásis e instalado várias guarnições de szish. Cerca de meia dúzia de sheks costumavam patrulhar os céus de Gan-Dorak todos os dias.

Era, em suma, um objectivo difícil de conquistar, no entanto, os rebeldes sabiam que, enquanto o oásis não caísse, não teriam a menor oportunidade de chegar à base que Sussh tinha em Kosh.

Noutras circunstâncias, talvez tivessem atacado com algo remotamente narecido com um plano. Mas a destruição de Nin era demasiado recente, a ira e a dor inundavam os seus corações. Por outro lado, a sombra das asas dos dragões fazia-os sentirem-se protegidos e, o que era mais importante... invencíveis.

O oásis de Gan-Dorak foi atacado poucos dias depois da queda de Nin, ao primeiro amanhecer. Os nove dragões artificiais, capitaneados por Ayakestra e Ogadrak, caíram sobre as serpentes com fúria selvagem. Os yan rebeldes, seguindo na esteira dos dois mortíferos machados de Goser, atacaram a porta principal com tudo o que tinham.

Ninguém pareceu estranhar que naquele dia o oásis parecesse um pouco mais vazio do que o habitual e que só dois sheks guardassem as suas muralhas.

Kimara lançou-se contra o primeiro deles com uma violência quase suicida. A serpente demorou apenas uns segundos a reagir, mas, quando o fez, atacou Ayakestra com toda a força do seu ódio ancestral.

Kimara não teve outro remédio senão fazer retroceder a fêmea de dragão. A fúria ia-se apagando rapidamente para dar lugar à sensatez, quando se esquivou de uma nova acometida do shek e fugiu da sua cauda mortífera. Mas então, através da janelinha, viu o olho redondo da criatura, o brilho gelado da sua pupila irisada, e lembrou-se de Kirtash, o shek a quem tinha jurado matar. Sorriu de forma sinistra. Bem, pensou, se tinha intenção de o derrotar num futuro, não lhe faria mal praticar.

Imaginou que aquela serpente era o frio e irritante assassino a quem ela odiava e, com um novo grito, puxou as alavancas adequadas para vomitar uma labareda sobre o shek.

Contudo, algo deteve o seu fogo; uma espécie de ecrã invisível que protegeu a serpente da chama do dragão artificial. Kimara, furiosa, fez Ayakestra virar-se e lançou as suas garras contra o shek. O sinuoso corpo da criatura deslizou por entre as unhas do dragão, e, de repente, Kimara sentiu que algo a atingia por baixo. Desconcertada, retrocedeu e afastou-se do shek para dar duas voltas por cima do oásis.

Viu então, pelo canto do olho, uma espécie de cintilar que se elevava do chão e que atingia a asa de um dos dragões. Procedia de algum ponto oculto debaixo das grandes folhas das árvores, junto à lagoa.

"Não pode ser", pensou. "Têm um feiticeiro?"

Descobriu que Rando também o tinha visto. Fazia Ogadrak descer em círculos cada vez mais apertados, até que chegou suficientemente perto para roçar as copas das árvores. Kimara decidiu deixar com ele o assunto do feiticeiro e voltou a centrar a sua atenção no shek.

Um dos dragões veio em sua ajuda. Outros três tinham cercado o segundo shek e o resto atacava os lanceiros szish das muralhas para deixar livre o caminho para os yan.

Pouco depois, a porta caía estrepitosamente, e um imparável Goser precipitava-se para o interior do oásis, lançando um poderoso grito de guerra. Os seus dois machados dançaram novamente, enterrando-se com raiva na carne fria dos homens-serpentes, abrindo entre as suas fileiras um rasto de sangue. A sua gente seguia-o, como um rio de fogo alimentado pelo ódio.

Como de costume, Goser avançou como uma flecha sem se preocupar com o que deixava para trás. Quando rompeu a última fileira de szish, deteve-se por um momento e os seus olhos esquadrinharam o horizonte. Apercebeu-se de que o dragão de Rando ignorava os sheks e sobrevoava uma determinada zona, um pouco mais longe, como se procurasse alguma coisa entre a vegetação. Viu-o evitar por muito pouco um raio verde que alguém lançou contra ele.

Um feiticeiro.

Goser semicerrou os olhos e fez soar um novo grito de guerra. Só três dos seus guerreiros deixaram o que estavam a fazer para acudir à sua chamada, mas o líder yan não precisava de mais nada. Os quatro rebeldes atravessaram o oásis como raios, em busca do feiticeiro.

De cima, Rando viu um vulto que se movia por entre as árvores. Também descobriu o grupo de Goser que ia ao seu encontro, provavelmente à procura do mesmo que ele.

Fez Ogadrak bater as asas e elevou-se um pouco mais no ar para ter alguma perspectiva.

Precisamente nessa altura, um dos sheks caiu a pique na lagoa, com um guincho que lhe gelou o sangue. O outro debatia-se entre o fogo e as garras de quatro dragões artificiais, pelo que não duraria muito mais. Parecia que tinham vencido.

Lá em baixo, o feiticeiro também pareceu entender assim, porque Rando viu-o fugir de Goser e dos seus, montado num torka, em direcção ao outro extremo da muralha.

O semibárbaro esteve prestes a dar meia-volta para se ocupar de outros assuntos, pois Goser e os seus não tardariam a encurralar o feiticeiro contra a muralha; aquilo estava acabado. Porém, a curiosidade venceu-o e continuou a observar.

Viu então como o feiticeiro lançava o seu torka contra a muralha... e desaparecia.

Rando pestanejou, desconcertado. Mas uns segundos depois detectou

o torka do feiticeiro do outro lado da muralha, correndo desesperadamente em direcção ao coração do deserto.

O piloto deixou escapar uma sonora imprecação e moveu as alavancas de Ogadrak, com impaciência. Sobrevoou os guerreiros de Goser, estupefactos diante da muralha,

e fez uma breve pirueta sobre eles, para lhes dar a entender que trataria de caçar o feiticeiro. Viu que Goser erguia um dos seus machados, em sinal de assentimento.

Em breve, o torka do feiticeiro e o dragão do semibárbaro perderam-se no horizonte.

Kimara viu como o segundo shek caía por cima das árvores, morto, e sentiu uma súbita explosão de júbilo selvagem no peito. Deu duas voltas por cima do oásis, fustigou com o seu fogo os últimos soldados szish, que acabaram por encontrar a morte às mãos dos rebeldes yan, e pousou por fim junto à lagoa.

Ao descer de Ayakestra, a primeira coisa que fez foi correr ao encontro de Goser.

- Gan-Dorakénosso! - gritou, e os rebeldes fizeram coro das suas palavras.

Goser tomou-a pela cintura e levantou-a no ar, com um uivo de vitória. Quando a pousou no chão, sorridente, Kimara sentiu-se por um momento aturdida com o odor a sangue e suor que emanava dele e com o intenso calor que o seu corpo libertava. Abanou a cabeça e afastou-se do yan, entre satisfeita e confusa.

Mas não teve tempo de pensar nisso, porque uma sombra cobriu as cabeças de todos.

Kimara ergueu a vista e viu que se tratava de um dos seus dragões. Voava em círculos rápidos e, quando os rebeldes o ouviram soltar um grunhido de advertência, souberam que tinham problemas.

- Aos dragões, rápido! - ordenou Kimara.

Passado um instante, estava outra vez no ar e contemplava, aturdida, o que se aproximava no horizonte.

Cerca de vinte sheks chegavam vindos de sul e voavam direitos a eles.

"De onde vêm?", perguntou-se, horrorizada. "Como chegaram tão depressa?"

No chão, Goser e os seus tinham saído pela porta principal e contemplavam também o horizonte, com ar grave.

"Não vamos conseguir vencer", compreendeu Kimara.

Tinham de escapar dali antes que fosse demasiado tarde, antes que os sheks os alcançassem... embora isso implicasse abandonar o recém-conquistado Gan-Dorak.

Elevouse um pouco mais no ar e virou para norte, volteando duas vezes sobre o oásis para dar tempo aos outros dragões de se aperceberem da sua manobra. Mas, quando já estavam prestes a ir embora, Kimara reparou que Goser empunhava ao alto os seus dois machados de guerra e lançava um incendiário grito de ataque.

Kimara suspirou, exasperada, e fez Ayakestra deixar escapar um poderoso rugido. Os yan compreenderam então que os dragões se iam embora e olharam para o seu líder, confusos. Goser semicerrou os olhos e olhou alternadamente para os dragões que se afastavam e para os sheks que iam ao seu encontro. Depois, olhou para trás, para o oásis que acabavam de conquistar com tanta facilidade.

E entendeu o que tinha acontecido.

- Retirada!Retirada! - gritou. - Háquevoltaràbaseoquantoantes!

Pouco depois, os rebeldes abandonavam o oásis apressadamente, evitando os sheks, sem se lembrarem de que tinham deixado um dragão para trás.

Rando perseguiu o feiticeiro durante mais algum tempo. Vomitou fogo sobre ele, mas o feiticeiro parecia ter-se coberto também com uma protecção mágica, porque as chamas ricocheteavam antes de o alcançar. Contudo, Rando não estava preocupado. Estava em Kash-Tar há tempo suficiente para saber o que acontecia quando alguém fazia correr um torka daquela maneira.

De facto, não tardou muito a que o animal se deixasse cair sobre a areia, subitamente, e se negasse a continuar a avançar, perante o desespero do seu cavaleiro.

Rando lançou um selvagem grito de triunfo e desceu a pique sobre o feiticeiro.

Compreendeu, no último momento, que se tinha precipitado. Assim que estava suficientemente perto para ver que o feiticeiro era, como presumira, um szish, também pôde ver claramente que as suas mãos estavam carregadas de energia.

O golpe abanou Ogadrak desde os cornos até à ponta da cauda e fez Rando perder o controlo dos comandos. Procurou recuperá-lo, mas estava demasiado perto do chão.

O soberbo dragão artificial despenhou-se contra a areia, ruidosamente, e Rando, que não costumava colocar as correias de segurança, saiu projectado para a frente.

Bateu com a cabeça contra o painel de comandos e perdeu os sentidos.

Christian não encontrou a sua gente em Raden, como supusera, mas sim em Nangal, no sopé dos Picos de Fogo. Os szish explicaram-lhe que os pântanos não lhes pareciam seguros. As névoas de Nangal, em contrapartida, ocultá-los-iam do olhar dos humanos e, por outro lado, a área tinha sido assolada recentemente por uma espécie de tomado e os seus habitantes tinham-se refugiado nas montanhas.

Mas havia outra razão, entendeu Christian: as plantas não criam raízes na rocha. Embora os szish não falassem disso, porque o súbito crescimento de Alis Lithban lhes causava demasiada inquietação, o shek sabia que se sentiriam mais seguros se pudessem correr para se refugiarem nas cavernas e nos desfiladeiros da cordilheira em caso de necessidade. Para eles, era melhor afastarem-se do caminho de Wina do que correrem à frente dela. Tor muito poderosa que fosse a sua força criadora, não ultrapassaria o limite natural das montanhas.

Quando foi ter com Gerde, viu que ela já tinha feito crescer uma enorme árvore, muito semelhante à árvore-casa que tinha ocupado no acampamento anterior. No entanto, antes de entrar, surpreendeu um jovem szish oculto entre as raízes.

- Quem és? - perguntou-lhe na língua dos homens-serpentes. - O que estás a fazer aqui?

- Eu... não sei... - hesitou o rapaz.

Christian olhou para ele com mais atenção. Reconheceu-o. Tinha visto Gerde a entregar-lhe a magia em Alis Lithban, depois de Yaren ter atacado Victoria.

- Chamas-te Assher, não é?

- Sim... mas, por favor, não digas a Gerde que estava aqui. Eu só...

- Querias vê-la?

Assher engoliu em seco e hesitou por um instante. Christian leu na sua mente, como num livro aberto, todos os seus temores e dúvidas: aquele jovem estava louco por Gerde e ela mimara-o durante algum tempo... mas agora tinha-se cansado dele, porque só prestava atenção ao bebé... e ao filho de Ashran.

- Não - mentiu finalmente Assher, desviando o olhar. - Não sei porque vim. Agora tenho de ir... o mestre Isskez está à minha espera.

Christian soltou-o e viu-o partir, pensativo. Podia imaginar para que tinha Gerde querido aquele rapaz e porque é que agora prestava mais atenção a um bebé humano, mas não valia a pena dizer-lho. Além disso, se o seu plano corresse como esperava, talvez Gerde voltasse a necessitar de Assher... antes do que pensava.

Entrou na árvore. Encontrou Gerde sentada no centro de um hexágono que tinha desenhado no chão. Parecia estar em transe; os seus olhos negros estavam agora completamente brancos.

O shek não a incomodou. Sentou-se num canto e aguardou que ela regressasse.

Quando o fez, fechou os olhos por um momento, com um breve estremecimento, e respirou profundamente. Depois, abriu-os de novo. Já era outra vez ela.

- Voltaste - comentou, ao vê-lo ali. Christian assentiu.

- Disse-te que voltaria.

- O que encontraste em Alis Lithban?

- Encontrei um dragão, um unicórnio e uma deusa louca - respondeu Christian, encolhendo os ombros. - Não foi uma boa combinação, mas ninguém saiu demasiado prejudicado. Agora, cada qual seguiu o seu caminho. Como deve ser.

- Como deve ser - murmurou Gerde, sorrindo.

- E tu? O que foi que encontraste?

- Nada demais - reconheceu ela. - Não me atrevo a afastar-me muito, por receio de que me detectem.

É demasiado cedo; ainda não posso enfrentá-los.

- Nem deves fazê-lo. Conseguiste abrir a Porta?

- Estou só a sondar. O tecido interdimensional é difícil de romper, mesmo para alguém como eu. E, de qualquer forma, antes de o fazer quero assegurar-me de que sei para onde vou.

Christian sorriu.

- Tenho a certeza de que acabarás por encontrar o que procuras.

- E eu também. Mas preciso de tempo, e o tempo esgota-se... Gerde suspirou e esfregou a fonte, exausta.

- Não me agrada viver num corpo mortal - confessou-lhe. - Sofro muito mais as suas limitações quando regresso a ele depois de ter vagueado por outro plano. Além disso... - interrompeu-se de repente e ergueu a cabeça.

Christian seguiu a direcção do seu olhar e viu um szish à entrada.

- Desculpa, senhora... tens visitas - disse. - Um grupo de sangues-quentes; dizem querer ver-te.

- Bárbaros shur-ikaili - adivinhou ela. - Porque é que ainda não os mataram?

- A mulher diz que te conhece, senhora. Assegurou-nos que tens interesse em falar com ela. Seja como for, temo-los cercados. Se o que diz não for verdade, matá-los-emos imediatamente.

- Uk-Rhiz! - exclamou Gerde, encantada. - Tem razão; tenho interesse em falar com ela. Ou melhor, em matá-la pessoalmente - acrescentou com um sorriso sedutor.

Eram apenas cinco. Christian semicerrou os olhos ao vê-los. No acampamento dos szish, havia no mínimo duzentos homens-serpentes. Se Gerde decidisse matá-los, os bárbaros não sairiam com vida, porém, erguiam-se perante eles com orgulho e serenidade, como se fossem eles que tivessem os szish cercados.

Shur-ikaili. Mais altivos do que os próprios cavaleiros de Nurgon. Mais intrépidos... ou mais loucos.

Gerde adiantou-se uns passos e olhou-os com um sorriso. Uk-Rhiz deu um passo atrás, instintivamente, mas logo rectificou a sua atitude: fincou os pés no chão, com firmeza, cruzou os braços à frente do peito e lançou a Gerde um olhar de desafio.

- Saudações, Uk-Rhiz - sorriu a fada. - Há quanto tempo que não nos víamos.

- Desde que fugiste do nosso acampamento depois de teres sido derrotada pela feiticeira Aile, se bem me lembro - respondeu a mulher bárbara, maliciosamente.

O sorriso desapareceu do rosto de Gerde. A sua expressão tornou-se subitamente séria, indiferente... quase desumana.

- O tempo se encarregou de pôr cada uma de nós no lugar que merecia, Uk-Rhiz - disse, com suavidade.

- Aile teve uma morte nobre e destemida. Tu continuas com uma vida cheia de mentiras, intrigas e traições.

Esperava aborrecê-la com estas palavras, mas Gerde limitou-se a sorrir.

- É uma vida - disse somente. - É melhor do que não ter nenhuma, não achas?

- Não tenho assim tanta certeza - replicou Rhiz, franzindo o sobrolho. - Mas o que tu fazes importa-me muito pouco. Só viemos para recuperar Uk-Sun, para a devolver ao seu lar para que deixe de estar sob a tua influência.

- Uk-Sun? - repetiu Gerde com perigosa suavidade. - Acho que estás enganada. Agora chama-se Saissh e não vai regressar convosco de maneira nenhuma.

Uk-Rhiz desembainhou a espada num movimento brusco.

- Então atreve-te a lutar por ela. Desafio-te, Gerde. A fada desatou a rir.

- Essa menina é assim tão importante? Tanto para morrer por ela?

- Pertence ao meu clã - replicou Uk-Rhiz. Gerde sorriu, divertida.

- Aceito o desafio - disse. - Para trás - ordenou. Christian, Yaren e os szish retrocederam uns passos. Os bárbaros fizeram o mesmo.

com um feroz grito de guerra, Uk-Rhiz abateu-se sobre Gerde, brandindo a sua espada com ambas as mãos. A fada ficou onde estava. No último momento, afastou-se para o lado, com um movimento ágil e subtil, e estendeu a mão para a mulher bárbara. Tocou-lhe nas costas com a ponta dos dedos.

Uk-Rhiz deteve-se, como que ferida por um raio, e abriu muito os olhos numa expressão indefinível de horror e agonia. A espada escorregou por entre os seus dedos e caiu por terra. Logo em seguida, os joelhos da shur-ikaili dobraram-se, e ela tombou no chão. Estava morta.

Houve murmúrios e cicios entre os szish, e gritos de consternação entre os bárbaros. Dois deles adiantaram-se e correram para junto da senhora do clã de Uk.

- Mais alguém quer desafiar-me? - perguntou Gerde com voz gélida. Os bárbaros desviaram o olhar, mas Christian detectou que tremiam de raiva. Gerde olhava para eles fixamente. Não precisava de usar o seu poder de sedução para os dominar: aqueles homens estavam mortos de medo, e poucas coisas eram capazes de intimidar um shur-ikaili.

De repente, um dos bárbaros que se tinha ajoelhado junto a Uk-Rhiz ergueu a cabeça:

- Sim, eu - disse.

Gerde arqueou uma sobrancelha.

- Estás disposto a morrer? Porquê?

O bárbaro levantou-se. Era imponente: alto e musculoso, de cabelo castanho comprido e barba entrançada. Os seus olhos azuis olharam para Gerde com seriedade, enquanto cruzava os braços à frente do peito.

- Porque Uk-Sun é minha filha e quero recuperá-la. Gerde observou o bárbaro de cima a baixo, com interesse.

- Tua filha... - repetiu. - Estou a ver. Herdou os teus olhos. E a sua mãe, é bonita?

- bonita, forte e corajosa, como todas as shur-ikaili - declarou o bárbaro com orgulho.

- Muito bem - aprovou a fada, com um sorriso. - Mas não é mais bela do que eu, pois não?

O bárbaro pestanejou subitamente e cravou o seu olhar nela; e, lentamente, a sua expressão deixou de ser desafiadora para mostrar um claro fascínio.

- Mais bela... - repetiu; a voz tremia-lhe, e Christian percebeu que procurava lutar contra o feitiço de sedução de Gerde. - Não - disse finalmente, e a sua voz denotava uma profunda adoração. - Não é mais bela do que tu, minha senhora.

Caiu de joelhos diante dela. Os outros bárbaros rugiram, indignados.

Subitamente, Gerde pareceu mudar de ideias.

- Muito bem - repetiu -, mas não me interessas.

O bárbaro pestanejou de novo e deixou descair os ombros, confuso.

- Dizias que querias lançar um desafio, não é? Atreves-te a desafiar-me?

O bárbaro tremia violentamente, mas conseguiu recuperar a compostura e ergueu a cabeça parada olhar nos olhos.

- Não, Gerde - disse. - És a líder do teu clã de serpentes e derrotaste Uk-Rhiz, a chefe do clã de Uk, a quem nem sequer eu consegui vencer em tempos. Mas eu, Uk-Bar, sou o melhor guerreiro do meu clã depois dela. Por isso desafiarei em combate o teu melhor guerreiro. Se vencer, levo a minha filha...

- Não - -cortou Gerde. - Já lutei pela menina e ganhei, de forma que me pertence. Se venceres, deixo-vos ir embora com vida. Se perderes... morrerão todos. Estas são as minhas condições. E também é o meu desejo que seja um combate até à morte.

A expressão dos bárbaros não se alterou nem um pouco. Uk-Bar ergueu-se e assentiu com firmeza.

- Que assim seja. Escolhe o teu guerreiro e lutemos.

Gerde passeou o olhar pelos que ali estavam. Os seus olhos detiveram-se por um instante num dos capitães da guarda szish, provavelmente o guerreiro mais feroz que tinha, mas não o escolheu. com um sorriso sinuoso, cravou o seu olhar em Christian.

- Não - protestou ele.

- Kirtash é o meu melhor guerreiro - disse Gerde, ainda sorrindo. É um meio-shek traidor, que além disso costuma fazer o que lhe dá na gana, mas não deixa de ser

o meu melhor guerreiro quando quer - acrescentou, com alguma ironia. - Ele lutará contra ti.

- Porquê tudo isto, Gerde? - perguntou-lhe Christian telepaticamente.

- Se os vais matar, mata-os já; e se os vais deixar partir, não faz sentido que os obrigues a lutar.

- Limita-te a lutar contra o bárbaro, Kirtash - replicou ela. Christian semicerrou os olhos, mas não disse mais nada. Adiantou-se

e desembainhou Haiass.

Ouviu-se um murmúrio quando o cintilar suave e gélido da espada iluminou as feições do shek. Os bárbaros tinham ouvido falar de Kirtash e sabiam que, apesar da sua figura delgada, tão diferente do aspecto hercúleo da maioria dos shur-ikaili, era um inimigo formidável. Todavia, Uk-Bar não fez nenhum comentário. Limitou-se a desembainhar a sua enorme espada de guerra.

- Eu, Uk-Bar, desafio-te, Kirtash, para um combate até à morte - proclamou o bárbaro com voz potente.

Christian não disse nada. Ergueu Haiass e pôs um pé atrás, adoptando uma posição de combate. Os bárbaros retiraram o corpo de Uk-Rhiz para lhes dar espaço. Também os szish retrocederam.

com um grito de fúria, Uk-Bar arrojou-se sobre Christian e desferiu um poderoso golpe. O shek deu um passo para o lado, evitando-o, e interpôs Haiass entre ambos. As duas espadas chocaram. A do bárbaro vibrou perigosamente perante o poder de Haiass, mas não chegou a partir-se. Contudo, o impulso de Uk-Bar era tão forte que empurrou Christian para trás.

Os olhos do shek cintilaram por um momento enquanto recuperava a sua posição. Rápido como o pensamento, adiantou-se novamente, encadeando dois golpes seguidos. O primeiro foi travado pela espada do bárbaro, e o choque foi brutal. Mas Christian retirou Haiass quase de imediato, e voltou a golpear. Desta vez, atingiu a pele nua do shur-ikaili.

O fio de Haiass golpeou o braço de Uk-Bar, embora só de raspão. Contudo, fez uma ferida profunda na sua pele listada, uma ferida que estendeu rapidamente uma camada de gelo desde o ombro do bárbaro até ao cotovelo. Uk-Bar deixou escapar um rugido de dor e girou o corpo para atacar Christian de novo. O shek evitou-o e procurou deter o golpe com Haiass, mas a espada do bárbaro voltou a lançá-lo para trás.

Christian retrocedeu dois passos e parou para considerar as suas opções. Aquele bárbaro era o homem mais forte e resistente contra quem tinha tido ocasião de lutar. Mas não era o mais rápido nem o mais inteligente.

Uk-Bar corria outra vez para ele, com um novo grito de guerra. Christian cravou no shur-ikaili os seus olhos de gelo e esperou-o, frio e calculista. Aguardou o tempo exacto e deu apenas dois passos na direcção adequada. Desferiu um só golpe, preciso e letal, no flanco desprotegido.

E enterrou Haiass sem problemas no coração do bárbaro, que se deteve de súbito e olhou para ele, com os olhos abertos numa expressão aturdida.

A expressão de Christian continuava impenetrável quando Uk-Bar caiu de joelhos diante dele. Retirou Haiass do peito do bárbaro, com um movimento enérgico, e contemplou como tombava aos seus pés, morto.

- Kirtash venceu - limitou-se a dizer Gerde, voltando-se para os szish.

- Matem-nos - ordenou.

Os homens-serpentes precipitaram-se sobre os três bárbaros que resvam. Christian não se juntou a eles. Limitou-se a observar calmamente, sem intervir.

Apesar de terem aceitado as condições de Gerde, os shur-ikaili defenderam-se com ferocidade. O primeiro deles matou três homens-serpentes antes de ser abatido. O segundo cortou um par de membros antes de ser atingido pelas costas, sem possibilidade de reagir. E o terceiro acabou com um dos seus opositores e combatia com ferocidade quando Gerde disse:

- Alto. Deixem esse com vida.

Os szish retiraram-se com prontidão. O bárbaro, a arquejar e ainda agarrado à sua espada, olhou em volta com desconfiança. Mas os homens-serpentes não moveram um músculo.

Gerde avançou até ao último dos shur-ikaili. A expressão de desafio do bárbaro mudou para uma expressão de absoluto terror quando ela cravou o seu olhar nele.

- vou perdoar-te a vida - disse a fada com suavidade -, porque quero que regresses a Shur-Ikail e que contes tudo o que viste aqui. Quero que fales aos teus-acerca do desafio de Uk-Rhiz e Uk-Bar. Quero que todos saibam que lutámos por essa menina e que vencemos. Que desta vez resolvemos as coisas à maneira dos shur-ikaili, mas que da próxima não serei tão clemente. Não quero voltar a ver um só bárbaro por aqui. Entendeste-me?

O homem assentiu a tremer de medo.

- Vai-te embora - disse Gerde.

O bárbaro deu meia-volta e desatou a correr.

Os szish não o vaiaram, nem fizeram troça dele. Aquilo não era próprio do carácter dos homens-serpentes. Limitaram-se a segui-lo com o olhar até que o perderam de vista.

- Foi por isso que aceitaste o desafio de Uc-Rhi?- perguntou Christian.

- Para que não viessem mais?

- Se os tivesse matado a todos, dentro de dois ou três dias teríamos aqui outro clã. E há nove, Kirtash. Estou cansada do cheiro a bárbaro. Não me apetece voltar a vê-los e também não tenho tempo para discutir com eles. São obtusos e teimosos. Enquanto não são vencidos num desafio, não dão ouvidos à razão.

- Kessesh - chamou então em voz alta; um dos capitães szish apresentou-se diante dela. - Recolhe os corpos dos bárbaros, reúne uma patrulha e devolve-os aos seus.

Caso contrário, não tardaremos a ter de novo mais desses bárbaros aqui, desafiando-nos para um combate corpo a corpo para recuperar os restos de Rhiz e dos outros.

O homem-serpente inclinou a cabeça e retirou-se, para fazer cumprir as suas ordens.

- Poderias ter-lhes devolvido a menina - disse Christian, quando todos os outros voltaram às suas respectivas tarefas. - Já não precisas dela.

- Não preciso dela? Se o teu plano correr mal, Kirtash, irei precisar. E ainda não me demonstraste que tem possibilidades de êxito. Não, Saissh ficará connosco e, agora que vi o seu pai, com maior motivo. Vai crescer forte e saudável, porque tem essas características no sangue. É mesmo aquilo de que preciso.

Christian não disse mais nada.

Regressaram juntos ao acampamento. Passaram por Assher quase sem lhe prestar atenção.

Mas o jovem szish tinha sido testemunha do desafio dos bárbaros, do início ao fim. Tinha visto que Gerde ordenara a Kirtash que combatesse até à morte por aquele bebé, que ela mesma se tinha rebaixado a lutar contra uma mulher bárbara, apenas para ficar com Saissh. E, enquanto contemplava, pensativo, o corpo sem vida de Uk-Bar, que os szish levantavam para o levar dali, tomou uma decisão.

Uma breve sacudidela acordou Rando do seu estado de inconsciência.

Abriu os olhos, pestanejando, e reprimiu um gemido. Doía-lhe horrivelmente a cabeça e tinha na boca um desagradável sabor metálico. Engoliu em seco duas vezes e procurou soerguer-se, mas uma nova sacudidela impediu-o. Ao tentar mexer-se outra vez, notou uma dor intensa no ombro esquerdo e viu que tinha o braço torcido numa posição estranha. Praguejou. Tinha deslocado o ombro.

Conseguiu levantar-se e, sobrepondo-se à dor, olhar em volta. Parecia que o dragão não tinha sofrido danos sérios, mas não podia ter a certeza se não o visse por fora.

O chão mexeu-se outra vez, fazendo-o perder o equilíbrio e lançando-o contra a parede. Apoiou-se no ombro lesionado sem querer e não conseguiu evitar: lançou um grito de dor.

As convulsões cessaram então de repente. A Rando pareceu-lhe que o silêncio que se seguiu era um silêncio cauteloso, cheio de inquietação.

Havia alguém lá fora.

Só com uma mão, ajustou ao cinto a bainha com a espada, que ainda conservava da sua época de soldado, e abriu a escotilha superior.

O fogo dos três sóis atingiu-o em pleno rosto; o semibárbaro pestanejou, ofuscado, e olhou em volta. Pelo canto do olho, conseguiu ver uma sombra que se remexia debaixo da barriga do dragão.

Desembainhou a espada com a mão direita, desejando que o descohecido não se apercebesse de que era canhoto, e desceu para a areia de salto. Depois trepou pela duna até chegar ao outro flanco do dragão.

Descobriu sem problemas a silhueta que se acocorava à sombra de Ogadrak.

- £h! - exclamou o piloto. - Quem és?

Obteve apenas um cicio por resposta, mas foi suficiente.

- Sai daí, szish! - ordenou. - Se não ofereceres resistência, terás uma morte rápida.

O outro respondeu-lhe com palavras que seriam familiares a Rando... se não estivessem pejadas de tantos "ss".

- O que é que disseste, serpente?

- Que é imposssível sssair daqui, sssangue-quente - replicou o szish. A sua voz era baixa e sibilante, mas tinha uma curiosa inflexão aguda.

- Humm! - exclamou Rando. - Estás preso?

Aproximou-se para ver, mas manteve as distâncias e a espada desembainhada.

O homem-serpente parecia extenuado. O enorme dragão tinha caído em cima da sua perna direita e impedia-o de se mover. Ao contorná-lo para estudar a situação de todos os ângulos, Rando viu a cabeça de um torka a aparecer sob a barriga do dragão.

- Por todos os deuses! - disse. - Tu és o feiticeiro que eu andava a perseguir!

- Feiticeira, ssse não te importasss - disse o szish.

Rando ficou boquiaberto. Agora que o olhava com atenção, era certo que debaixo das suas roupagens folgadas adivinhavam-se formas femininas. Quanto ao seu rosto... bom, era um rosto de ofídio, mas talvez para alguém mais acostumado à fisionomia dos szish fosse simples reconhecer nele traços de fêmea. Talvez as feições fossem um pouco mais suaves, os olhos um pouco maiores...

- Para onde essstásss a olhar? - protestou a feiticeira. - Mata-me de uma vez ou tira-me daqui!

- Nunca tinha visto uma fêmea da tua raça - comentou Rando.

- Poisss eu já vi bassstantesss machosss da tua, e todosss sssão igualmente repulsssivosss - disse ela.

Rando ignorou o comentário.

- E se és feiticeira, porque é que não te libertaste sozinha?

- É o que essstava a tentar fazer, humano essstúpido.

Para o demonstrar, ergueu as mãos e lançou uma pequena bola de energia contra o flanco do dragão, que tremeu, mas não saiu de cima dele. A szish deixou-se cair sobre a areia, exausta.

- Estou a ver - disse Rando. - Precisas de recuperar forças.

Olhou para ela, pensativo. Tinha-a perseguido para a matar, obviamente, embora não tivesse planeado lançar-lhe o dragão para cima. De qualquer forma, talvez o facto de ainda estar viva fosse uma vantagem e não um inconveniente. Ignorando a dor surda do seu ombro, inclinou-se junto à mulher-serpente.

- Vamos fazer um trato - disse. - Eu tiro-te daí e tu ajudas-me com a tua magia, de acordo?

Ela olhou para ele com desconfiança.

- Ajudar-te? Ah, o teu braço - compreendeu.

- Não é só isso. Preciso do meu dragão para regressar, e o meu dragão precisa de magia. Percebeste?

- Nem sssonhesss.

- Bem; então vamos ficar aqui os dois até que alguém venha resgatar-nos ou até morrermos de sede.

- Não me façasss rir. Matavasss-me asssim que te dessse o que me pedesss. Ou deixavasss-me para trásss.

Rando levou a mão ao peito, ofendido.

- Reconheço que sou um canalha e um miserável, mas nunca abandonaria uma dama em pleno deserto.

- Oh, sssim, abandonariasss. Para ti não sssou uma dama, sssou o inimigo. É bom que te lembresss dissso - acrescentou mal-humorada.

Rando coçou a cabeça.

- Acho que não começámos bem. Chamo-me Rando, natural de Dingra, em Nandelt.

A szish não respondeu.

- Bem - disse Rando -, terei de chamar-te de alguma maneira. Talvez Língua Bífida ou Cara de Serpente estaria bem. Ou Pele Escamosa. Ou quem sabe...

- Ersssha - disse ela de repente. - Chamo-me Ersssha.

- Ersha - repetiu Rando, olhando para ela com curiosidade. - És uma feiticeira de verdade, não? Isso quer dizer que... viste o unicórnio?

Ersha deixou escapar um sorriso desdenhoso.

- Nósss, os szish, não precisamosss dosss unicórniosss para obter a magia.

- Bem, que espertos que vocês são. Suponho que também não precisas da ajuda de um humano alto e forte para sair de debaixo da barriga de um dragão de madeira...

Ersha voltou-se para lhe responder, mas Rando já não olhava para ela. Tinha cravado os seus olhos bicolores no horizonte e o seu rosto transformara-se numa máscara de estupefacção.

- Que me pendurem pelos polegares se não estou a sonhar - murmurou.

Ersha soergueu-se um pouco, como pôde, para se virar na direcção rã onde o semibárbaro olhava, ficou muda de terror.

Havia quatro sóis no horizonte. Debaixo de Kalinor, Evanor e Imenor, ase a tocar na linha do horizonte, havia uma quarta bola de fogo de um vermelho intenso.

- É uma miragem - conseguiu dizer a szish.

Rando franziu o sobrolho e ergueu-se com brusquidão.

- É provável - disse -, mas eu quero vê-lo de perto. Acompanhas-me? E, antes que Ersha pudesse responder, empurrou o dragão com um só braço, e levantou-o o suficiente para que a szish pudesse tirar o pé. Depois, deixou-o cair de novo.

Ersha retrocedeu, arrastando-se sobre a areia, mas não conseguiu chegar muito longe. Rando reteve-a pela túnica.

- Espera - disse, com sorriso rasgado -, não vás tão depressa. Creio que me deves um favor.

Ainda precisaram de várias horas para estarem prontos. Foi preciso colocar o ombro de Rando no sítio, e Ersha demorou um pouco a regenerar a sua magia o suficiente para poder curar ambos.

E, enquanto isso, o quarto sol continuava a brilhar no horizonte. Chegou o primeiro crepúsculo, e depois o segundo, e finalmente o terceiro. Surgiram as luas e as estrelas, e aquela bola de fogo continuava ali, como uma enorme fogueira iluminando o deserto.

- Mais alguém deve ter visto isto - murmurou Rando, interrompendo por um momento as reparações de Ogadrak para contemplar o horizonte.

A feiticeira szish não disse nada. Tinha-se sentado em cima do dorso do dragão de madeira e observava aquela estranha bola de fogo, pensativa. As luas já estavam altas quando Rando anunciou que tinha terminado.

- Não conheço a fórmula que os feiticeiros usam para renovar a magia dos dragões - confessou. - Mas não deve ser difícil...

- Nósss não usssamosss a linguagem dos feiticeirosss sssangues-quentes - interrompeu ela. - Deixa-me ver.

Desceu do dragão de um salto e os seus pés enterraram-se na areia. Rando sentou-se sobre uma duna a contemplar o que ela fazia, com curiosidade.

Ersha percorreu a superfície de madeira com as mãos, assentindo para si própria de vez em quando, mas não explicou ao humano do que estava à procura. Ao fim de algum tempo, deteve-se num determinado ponto, à altura do peito do dragão, e examinou-o atentamente. Depois colocou as palmas das mãos sobre a madeira e deixou escapar um sonoro cicio. Os seus dedos iluminaram-se brevemente. Ogadrak estremeceu, mas nada mais aconteceu.

A szish voltou a tentar, duas vezes, até que, por fim, o dragão ergueu a cabeça com um poderoso rugido.

Ersha retrocedeu apressadamente, tropeçou e caiu de costas sobre a areia. Contemplou aterrorizada o enorme dragão que se erguia sobre ela. Parecia tão real que quase podia ver como o seu peito se movia quando respirava.

Rando pôs-se de pé com um grito de júbilo. Correu até ao dragão e deu-lhe uma palmada no flanco, orgulhoso.

- Obrigado, Ersha - disse à feiticeira.

Ela procurou recuperar a compostura. Pôs-se de pé e sacudiu a areia da túnica; ainda dirigiu ao dragão um olhar furtivo de desconfiança.

- Foi fácil - disse.

Rando trepou pelo flanco do dragão e abriu a coberta superior.

- Vens? - perguntou-lhe antes de entrar.

A szish inspirou fundo para dominar o seu medo.

- Ainda queresss aproximar-te para ver o que é essse quarto sssol? perguntou.

O piloto mostrou-se desorientado.

- Claro. Tu não?

- Vaisss-te queimar...

- Não tenho intenção de me aproximar tanto. bom, vens ou ficas aqui?

Após um breve instante de hesitação, Ersha subiu atrás dele. Mal tinha descido pela escadinha quando Rando lhe atirou um pacote que teve de apanhar no ar.

- Toma, ganhaste-o.

Ersha deu-lhe uma olhadela, não sem receio. Ficou surpreendida ao ver que eram provisões e um odre com água.

- Vaisss dar de comer ao teu inimigo?

Rando já se tinha sentado à frente dos comandos e manejava as alavancas com mão experiente. Encolheu os ombros.

- Tudo tem o seu momento - disse. - E agora interessa-me mais sobreviver do que combater. Preciso de ti para que renoves a magia do meu dragão até que possa regressar para junto dos meus. No dia em que voltarmos a encontrar-nos no campo de batalha, teremos tempo de lutar.

Ersha ia responder, mas não teve ocasião. com uma breve sacudidela, Ogadrak bateu as asas e elevou-se no ar.

A szish sentiu um vazio no estômago e deixou-se cair no chão. Depois gatinhou até um canto e aninhou-se lá.

- Não queres sentar-te ao meu lado? - convidou-a Rando, de bom humor; voar deixava-o sempre de bom humor. - Daí não vais ver nada.

Ersha negou veementemente com a cabeça e disse que tinha uma boa erspectiva a partir dali, o que era verdade: a cabina de um dragão artificial não era muito grande e a szish não se encontrava assim tão longe da escotilha dianteira para não ver através dela a paisagem do deserto.

Voaram em silêncio durante mais algum tempo, enquanto o estranho sol nocturno se tornava cada vez maior. Ersha foi a primeira a reparar que a temperatura tinha aumentado muito. O semibárbaro cerrou os dentes e fez com que Ogadrak voasse um pouco mais depressa.

Quando Rando começou a suar copiosamente e a szish já respirava com dificuldade, tornou-se óbvio que não deviam aproximar-se mais. Ogadrak realizou uma nova pirueta no ar e bateu as asas, disposto a pousar.

Pouco depois, o dragão repousava de novo sobre a areia, e Rando e Ersha contemplavam o horizonte, assombrados.

O quarto sol não era exactamente um sol, mas parecia-se muito com um: uma grande bola de fogo que rodava sobre si, flutuando a vários metros acima do chão. Um coração ígneo do qual brotavam línguas de chamas que lambiam o ar, tornando-o asfixiante e irrespirável. Não se movia. Não aumentava de tamanho nem diminuía. Simplesmente estava ali, à espera...

Rando abanou a cabeça e procurou tirar aquela ideia da mente. Uma bola de fogo não podia ter consciência racional. As bolas de fogo não tinham cérebro, não podiam estar à espera de nada.

Então, por que razão tinha tanto medo?

Olhou de soslaio para Ersha, cujo rosto de serpente, iluminado pela luz avermelhada da bola de fogo, mostrava uma expressão de absoluto terror. Mas aquela coisa atraía a sua atenção de um modo irresistível, e voltou a contemplá-la até que os olhos começaram a chorar.

- Que tamanho tem? - murmurou, assombrado.

Sabia que ainda estavam muito longe. E isso significava que nada poderia aproximar-se demasiado daquele coração de chamas sem arder até aos ossos.

Então, subitamente, Ersha retrocedeu e afastou o olhar do horizonte para olhar com ódio para Rando.

- Foi asssim que vocêsss fizeram - ciciou, furiosa. - Foi desssta forma que dessstruíram Nin... malditosss sssangues-quentes.

Antes que o humano pudesse reagir, a szish lançou-se sobre ele, com um grito, e fê-lo perder o equilíbrio. Ambos rolaram pela areia, enquanto as mãos da feiticeira procuravam o pescoço de Rando. Uma vez recomposto da surpresa, o semibárbaro tirou-a de cima de si sem muito esforço.

- Espera! De que é estás a falar? Nós não atacámos Nin. Eles eram nossos aliados!

- Havia trêsss guarniçõesss de ssszisssh na cidade! - replicou ela, ainda colérica. - Morreram todosss!

- E também todos os habitantes da cidade! - replicou Rando. - Pensámos que tinha sido obra das serpentes!

Os dois fitaram-se por um momento, aturdidos.

- Mas se não foi obra vossa - disse Rando -, quem...? Ersha abanou a cabeça e apontou para a bola de fogo.

- Uma ssserpente não faria isssto. É magia dosss sssangues-quentes.

- É demasiado grandioso para ser obra de um dos nossos feiticeiros...

- Osss sssangues-quentes incendiaram o céu durante uma batalha! Achasss que não sssei?

- Se conseguíssemos fazer algo assim, iríamos utilizá-lo como arma contra Sussh e não para queimar a nossa própria gente - raciocinou Rando.

Houve um breve silêncio. Finalmente, Ersha semicerrou os olhos e disse:

- Então, temosss um inimigo comum.

Rando voltou-se de novo para contemplar a enorme massa de fogo que levitava sobre as dunas.

- Mas o que é suposto ser? E porque é que nos ataca? Ersha abanou a cabeça.

- Osss sssheksss devem sssaber - disse. - Elesss sssabem sssempre tudo. Rando dirigiu-lhe um olhar breve.

- Talvez - disse -, mas ninguém vai acreditar em ti quando lhes contares.

- Em ti também não, sssangue-quente - replicou ela, aborrecida. Em ti também não.

Os dragões foram os primeiros a chegar à base nas montanhas.

Kimara já se apercebera de que tinham deixado Rando e Ogadrak para trás; mas também entendera, tal como Coser, que aquele grupo de sheks, que devia estar no oásis e não estava, regressava de uma missão que podia ter sido fatal para os rebeldes.

A intuição do líder yan tinha acabado por estar correcta.

Quando os dragões alcançaram o seu esconderijo, descobriram que este tinha sido completamente destruído.

Tudo, as tendas, os carros, as torres de vigilância... estava tudo feito em fanicos e coberto por uma camada de geada. E todos os que tinham ficado para trás estavam mortos agora: homens, mulheres, idosos, até mesmo as crianças... Os sheks também tinham matado todos os animais.

Ali já não lhes restava nada.

Kirnara ainda estava a chorar de raiva e frustração, apoiada no dorso de Ayakestra, quando Goser e os outros rebeldes yan chegaram.

- Malditos - sussurrava. - Malditos... oh, como os odeio a todos...

Goser não disse nada. Correu para o centro do acampamento e olhou em redor, a tremer de raiva. Então tirou um dos seus machados e, com um terrível grito de cólera, desferiu-o sobre o chão, rachando o gelo.

Kimara fechou os olhos. Por um momento desejou ter estado ali para defender a base. Embora provavelmente os sheks os tivessem matado a todos, pelo menos teriam podido lutar.

Aproximou-se de Goser, que se tinha acocorado no chão e ainda bufava, furioso, apoiado no cabo do seu machado.

- Tornaram-semuitomaisousados - disse em voz baixa. - Jánãoreceiamaproximar- sede Awinor.

Goser ergueu para ela os seus olhos de fogo.

- Entãonóstambémseremosousados - disse. - EnãoteremosmedodenosaproximarmosdeKosh.

Kimara semicerrou os olhos e assentiu com uma expressão de fúria.

Quando Shail, Jack e Victoria chegaram a Vanis, a capital do reino, encontraram Alexander muito ocupado. Parecia que, por enquanto, Covan tinha aceitado a sua palavra e a de Gaedalu em como não faria mal a mais ninguém. Juntos estavam a esforçar-se muito por pacificar o reino. Tinham proclamado o regresso do príncipe Alsan e anunciado que a sua coroação como rei de Vanissar teria lugar três meses depois, no dia de Ano Novo.

Havia muito que fazer até lá. Os confrontos entre os partidários do mestre Covan e os do príncipe Alsan tinham sido muito sérios nos últimos tempos. Toda a gente foi apanhada de surpresa pelo reaparecimento deste último e mais ainda pela sua aliança com Covan. Julgavam que era óbvio que ambos lutariam pela coroa.

Contudo, alguns dos seguidores de Covan não se sentiram satisfeitos com esta solução e continuaram a defender o seu candidato através das armas. Tornaram-se rebeldes e proscritos, e o próprio Covan dirigia a sua busca e captura.

Sim, havia muito que fazer em Vanissar. Jack quis atribuir a este facto a forma como Alexander os recebeu. Mas, no fundo, sabia que não se tratava disso.

O príncipe de Vanissar acolheu Shail com hospitalidade e alegria, mas tratava Jack com fria cortesia e ignorava Victoria por completo, respondendo com réplicas cortantes a qualquer tentativa de iniciar uma conversa por parte dela. Jack procurou encontrar-se a sós com ele para falar do assunto, mas Alexander arranjava maneira de não encontrar tempo para ele.

- Não te preocupes - dizia-lhe Shail. - É por causa dessa pedra que usa. Fá-lo comportar-se de forma estranha.

Alexander já não usava o bracelete de Gaedalu. Um ourives tinha forjado para ele um bracelete mais apropriado e engastara nela a sinistra pedra negra, que um entalhador polira até a deixar redonda e perfeitamente lisa. Agora, Alexander nunca tirava aquele bracelete, que se tornara o seu talismã. Nem sequer tinha permitido a Jack examiná-la de perto.

- Mas Zaisei disse que a Rocha Maldita fazia com que as pessoas tivessem um comportamento violento, porque estava impregnada de ódio objectou Victoria. - Como é possível que reprima o animal que Alexander tem dentro dele? Não deveria ser o contrário?

- Há alguma coisa que nos está a escapar - disse Jack, pensativo. Duvido muito que Gaedalu se desse a tanto trabalho apenas para ajudar Alexander.

- Conseguiu um aliado valioso - fez notar Victoria. Shail tinha baixado a cabeça, e ambos repararam.

- O que é? - urgiu Jack.

- Gaedalu acha que a Rocha Maldita fez os sheks fugirem quando procuraram conquistar Dagledu - disse. - Parece-me que está a procurar fabricar uma arma contra eles.

- E o que é que isso tem a ver com o problema de Alexander? Também é eficaz contra os lobos?

- Não sei; mas isso não é tudo. Zaisei acha que Gaedalu está a fazer tudo isto por motivos pessoais. A Mãe disse-lhe que a sua filha tinha morrido. - Levantou a cabeça para olhar para Victoria. - A sua filha exilou-se na Terra depois da conjunção astral, pelo que teve de ser Kirtash a matá-la.

Victoria inclinou a cabeça, sem dizer nada.

- Mas, se a sua filha se exilou - disse Jack -, como pode ela ter a certeza de que está morta? Talvez porque não voltou?

- Talvez - disse Shail -, mas, pelo que disse a Zaisei, parecia estar convencida de que tinha morrido. Lembro-me de que me perguntou por ela quando regressámos da Terra. Na altura não soube dar-lhe notícias. Nós não sabíamos nada dela, de modo que a única coisa que me ocorre é que o próprio Kirtash lho disse.

Jack negou com a cabeça.

- Não é próprio dele falar do que faz ou deixa de fazer. Não o imagino dizer a Gaedalu que matou a sua filha. Para quê? Para a mortificar?

- Se Gaedalu lhe fez perguntas a esse respeito - interveio Victoria a meia-voz -, Christian disse-lhe a verdade.

- A verdade... fria, nua e brutal - murmurou Jack. - Sim, isso sim é próprio dele. bom, não é nenhuma novidade que haja quem queira matá-lo.

Ganhou muitos inimigos... e ganhou-os a pulso.

- O que Shail quer dizer é que é possível que Gaedalu tenha encontrado o modo de o magoar - disse Victoria.

- Sim, entendi. Mas isso é assunto seu, Victoria. Se realmente matou a filha de Gaedalu, terá de enfrentar as consequências. Não achas?

Victoria não respondeu.

- O que não entendo - prosseguiu Jack - é o que tem tudo isto a ver com Alexander e porque é que algo que pode fazer mal a um shek é capaz de reprimir o animal que há nele. Sobretudo... interessa-me saber o que é esse algo e por que razão parece ter tanto poder.

- Vamos sabê-lo esta noite - disse Shail. - Ilea estará cheia. Isso costuma alterar a fisionomia de Alexander. Não chega a transformar-se completamente, mas muda um pouco de aspecto. Veremos se essa gema continua a ser tão eficaz como quando Gaedalu lha entregou.

Reuniram-se nas ameias do castelo ao terceiro entardecer. Estavam Shail, Alexander, Jack e Victoria; mas também Covan, Gaedalu e três cavaleiros de Nurgon.

Porém, não era a presença destes últimos que fazia Jack sentir, apesar de todos os membros da Resistência estarem reunidos naquele lugar, que a própria Resistência já não existia. Tinham acontecido demasiadas coisas, tudo tinha mudado. Jack e Victoria tinham agido por sua conta durante demasiado tempo e, no fundo, Alexander nunca o perdoaria. E Shail tinha encontrado outra pessoa a quem desejava proteger ainda mais do que a Victoria e aprendera demasiado para continuar a acreditar nos mesmos ideais de outrora.

Jack contemplou Alexander com seriedade enquanto o último dos sóis se punha no horizonte e um manto de estrelas os cobria. Na realidade, todos estavam a olhar para Alexander, atentos a qualquer alteração que as luas pudessem provocar nele. Mas Jack procurava outra coisa no seu rosto: procurava respostas.

O jovem príncipe ignorava deliberadamente o olhar de todos. Tinha a vista cravada no horizonte e aguardava, sério e sereno. Quando a lua verde brilhou cheia sobre ele, Alexander continuava a parecer completamente humano. Alguém deixou escapar um ligeiro suspiro de alívio.

Mas foi o próprio Alexander que se voltou para os seus companheiros e lhes disse com calma:

- Isto é um bom sinal, mas não chega. Há que aguardar o Triplo Plenilúnio. Então veremos se sou digno de usar a coroa de Vanissar.

Ainda permaneceram nas ameias mais um pouco, mas, um a um, foram-se retirando. Jack, Shail e Victoria ficaram até ao fim. Quando só eles e Alexander estavam lá, Shaíl tomou a palavra.

- Fico muito contente por ti - disse. - Cheguei a pensar que não havia nada que pudéssemos fazer, mas o poder dessa gema...

- O poder desta gema não tem nada a ver com a magia - cortou Alexander com alguma secura. - A rocha à qual pertencia caiu directamente de Érea.

É o poder dos deuses.

- Tem de ser - respondeu Shail, conciliador -, dado que a magia não conseguiu fazer nada por ti. No entanto, gostaria de investigar...

- Não há nada para investigar - interrompeu Alexander.

- Mas não sabemos nada dessa rocha! - exclamou Jack. - Pode prejudicar-te!

Alexander cravou nele um olhar severo.

- Procede dos deuses - replicou. - Não preciso de saber mais nada. E, mesmo que quisesse descobrir mais coisas sobre este amuleto, podes estar certo de que não as iria partilhar contigo. Pelo menos, não enquanto continuares a proteger alguém que mantém uma relação íntima com um shek.

E, ao dizer isto, fulminou Victoria com o olhar. Foi um olhar acusador, cheio de censura e de rancor. Ela limitou-se a sustentar aquele olhar.

Sem mais uma palavra, Alexander deu meia-volta e afastou-se deles.

Jack reagiu. Desatou a correr atrás dele e alcançou-o quando já descia pelas escadas.

- Espera! Acho que deves uma desculpa a Victoria.

- Desculpa? Jack, acolhi-a na Resistência quando era apenas uma criança. Protegi-a de Kirtash durante anos... e ela traiu-nos na primeira oportunidade. Tolerei-lhe muitas coisas, mas cansei-me de suportar que tenha ligações tão estreitas com o inimigo.

- O inimigo! - repetiu Jack. - Kirtash lutou ao nosso lado! Enterrou a sua espada nas costas de Ashran, eu estava lá! Além disso - acrescentou -, nem todos os sheks são "o inimigo". Uma vez, uma shek salvou-me a vida. Ela...

- Não continues a falar - cortou Alexander, tenso. - São essas serpentes que envenenaram o coração de Victoria e estão a envenenar também o teu. Não te reconheço, Jack. Os sheks tiraram-te tudo o que tinhas, acabaram com toda a tua raça, com a tua família... Ensinei-te a combater para que pudesses lutar contra eles, não para que os defendesses. Esse não é o objectivo da Resistência.

- Tu mesmo aceitaste Kirtash na Resistência. - Sim - reconheceu ele -, mas na altura não era bem eu. Cometi um erro e asseguro-te de que vou corrigi-lo.

- Mas, Alexander...

- E, de agora em diante, não voltes a chamar-me Alexander - cortou ele. - Sou Alsan, príncipe de Vanissar.

A sua consciência vagueava pelas dobras existentes entre o espaço e o tempo, livre dos limites materiais, flutuando pelas múltiplas dimensões que se abriam no Universo.

Tinha acedido a outro plano, um plano onde se sentia maravilhosamente viva, embora não tivesse um corpo com um coração a bater. Era um plano de cores pulsantes e formas difusas, um plano etéreo, uma encruzilhada entre dezenas de planos. Dali, podia chegar a quase qualquer parte.

Captou um ligeiro movimento perto dela, no plano material, mas mal lhe prestou atenção, porque estava concentrada numa busca vital, que transcendia qualquer coisa que pudesse acontecer no mundo. Além disso, embora naquele plano se sentisse muito melhor, sabia que era perigoso. Sabia que havia entes poderosos que andavam à procura dela e que não descansariam até a encontrar. E naquele plano não podia esconder-se em lado nenhum. Por isso, tinha de estar alerta.

De modo que a sua consciência deslizava de um lado para o outro, furtiva, como uma sombra, procurando chegar mais longe, cada vez mais longe... Por várias vezes acreditara ter encontrado o que procurava, mas tinha sido um falso alarme.

Uma parte da sua percepção insistia em que devia regressar ao plano material, porque tinha acontecido algo importante. Lentamente, foi recolhendo todos os fios do seu ser e devolvendo-os àquele pequeno e incómodo corpo mortal.

No interior da árvore-casa, Gerde abriu os olhos. Demorou uns minutos a acostumar-se a estar de novo no mundo, mas, quando o fez, pôs-se imediatamente de pé e olhou à sua volta, ainda algo desorientada. Os seus olhos detiveram-se no berço de Saissh.

Estava vazio.

O grito de fúria de Gerde ressoou por todo o acampamento.

Não muito longe dali, Assher corria a toda a pressa por entre a neblina. Levava um fardo preso às costas, um fardo que, felizmente, tinha decidido dormir profundamente e não desatara a chorar em nenhum momento.

O jovem szish sabia que não tinha muito tempo. Ainda lhe restavam vários dias de caminho até chegar ao seu destino, mas procuraria encurtá-los tanto quanto possível. Tinha de encontrar os bárbaros, antes que Gerde o encontrasse a ele.

 

               O EXÍLIO DE EISSESH

Algo acordou Eissesh de um sono inquieto e leve. Bastou-lhe ligar-se por um breve instante à rede dos sheks para entender o que estava a acontecer. Deslizou para fora da sua caverna e saiu para a galeria principal. A sua mera presença bastou para que os szish se detivessem de imediato. Um deles adiantou-se e inclinou-se diante dele. Quando Eissesh cravou o seu único olho nele, o homem-serpente disse:

- Houve mais desmoronamentos, senhor. Os túneis estão a começar a cair. Vamos ficar presos se não sairmos daqui. Estamos a levar toda a gente para os túneis superficiais, de acordo com o plano que tínhamos traçado para este tipo de situações.

Falou com rapidez e precisão, mas com calma. Eissesh assentiu e, com uma breve ordem telepática, mandou-o continuar com a sua tarefa.

Não demorou a localizar todos os sheks do seu grupo num mapa mental. Eram trinta e sete ao todo e a maioria dirigia-se já às galerias superiores, juntamente com os szish. Outros tinham ficado para trás, a cobrir a retirada dos mais atrasados. Eissesh rastejou por um túnel descendente, em direcção aos sectores mais profundos. Era ali onde havia maior perigo, mas descobrira que um jovem shek ainda permanecia na zona de risco.

Enquanto deslizava pelos túneis em direcção ao coração da cordilheira, a rocha retumbou à sua volta e alguns fragmentos desprenderam-se do tecto. Eissesh contactou com aquele shek. Conhecia-o; tratava-se do mesmo que enviara a Alis Lithban para falar com Gerde. Aquele que não voltara a apresentar-se diante dele.

- O que se passa? O que estás aí a fazer? - perguntou-lhe.

- Estou a tentar compreender... - foi a sua estranha resposta. Não acrescentou mais nada, mas Eissesh entendeu.

- Não é necessário procurares uma explicação. Vi Gerde. Falei com ela. O jovem shek não respondeu.

- Mais tarde falaremos acerca disso - prosseguiu Eissesh. - Mas agora tens de sair daí. Os túneis estão a desmoronar-se. Ou por acaso não podes mexer-te?

- Temia apresentar-me diante de ti sem conseguir descrever claramente o que vi e senti - replicou o shek. - Tive medo de uma feérica, Eissesh. Não sei o que me aconteceu, nem porquê, e...

- Terás muito mais medo se o sismo te apanhar - respondeu Eissesh. Precisas que te vá buscar?

- Não. Consigo sair sozinho.

- Está bem. Espero por ti aqui.

Enviou-lhe informação sobre a sua situação exacta e aguardou.

O túnel tremeu novamente. Eissesh retrocedeu um pouco mais, até uma zona mais segura, e continuou à espera.

Então, quando parecia que as duas serpentes estavam prestes a encontrar-se, houve um terramoto ainda mais violento e parte da caverna caiu em cima delas. Eissesh retrocedeu com um cicio, evitou uma estalactite que caía e colou-se à parede de rocha para evitar um novo desprendimento. Quando tudo se acalmou e pôde voltar a mover-se, sacudindo os pequenos fragmentos de rocha das suas escamas, percebeu, num canto da sua mente, que a consciência do outro shek se tinha apagado. Fez uma nova tentativa de contacto com ele, embora soubesse que era inútil. Semicerrou as pálpebras com pesar; deu meia-volta e afastou-se dali.

O coração da montanha tremeu mais duas vezes antes de Eissesh alcançar a saída. Entreviu a sua gente na entrada do túnel, num lugar onde a caverna se alargava. Estavam à espera dele. Também eles tinham captado o desaparecimento do outro shek e sabiam que Eissesh se dirigia para lá. Perguntou-se por um momento porque é que ainda não tinham saído dos túneis. Compreendeu de imediato que tinham medo. Os fantasmas da batalha de Awa ainda não se tinham desvanecido completamente. Temiam a luz dos três sóis, temiam os sangues-quentes e os seus dragões artificiais que lançavam fogo, o mesmo fogo que fizera arder o céu e que por pouco tinha acabado com todos eles.

- É hora de partirmos - disse a todos, sheks e szish, procurando infundir-lhes confiança e segurança com as suas palavras.

Mal tinha acabado de falar, quando tudo retumbou outra vez e a caverna se desmoronou sobre eles.

Não houve tempo para gritos nem espalhafato. Todos correram ou rastejaram para a saída, evitando as enormes agulhas de pedra que caíam do tecto.

Alguns não conseguiram e foram esmagados pela montanha. Outros alcançaram a boca do túnel e precipitaram-se para o exterior.

Eissesh foi um dos últimos a sair. Mas, antes de o conseguir, sentiu atrás dele uma força poderosa, algo que antes tinha apenas pressentido, uma presença formidável, perante a qual se sentia pequeno e insignificante. Algo tão grandioso e atroz que o fez tremer de puro terror.

E aquilo estava à procura deles. Sabia que estavam ali, tinha encontrado os sheks e tencionava esmagá-los, porque eram o inimigo.

Eissesh escapou. Fugiu dali tão depressa quanto pôde, enquanto o seu oração se enchia do medo mais intenso que alguma vez experimentara, um horror que nem sequer o letal feitiço da feiticeira Aile, o feitiço que tinha acabado com mais de quatrocentos sheks, tinha conseguido inspirar nele.

Chamavam-lhes os Rastreadores. Eram um grupo de seis dragões artificiais, cuja missão era passar a pente-fino a vertente sul do Anel de Gelo em busca dos sheks que tinham sobrevivido à batalha de Awa.

Porque não eram simplesmente os sheks. Acreditava-se que Eissesh também teria escapado e que era o líder daqueles sobreviventes. Eissesh, que tinha sido governador de Vanissar, controlando a vontade do rei Amrin e regendo os destinos dos seus súbditos.

Muita gente tinha vivido razoavelmente bem sob o império dos sheks, mas os rebeldes tinham sido perseguidos e castigados com grande zelo e odiavam profundamente Eissesh e tudo o que ele representava. E, embora depois da queda de Ashran se tivessem juntado muitos jovens aos Novos Dragões, os membros da patrulha de Rastreadores eram todos do antigo grupo. Todos eles tinham lutado contra Eissesh e os seus nos tempos do domínio shek.

Denyal, o líder dos Novos Dragões, era um deles.

Tinha perdido o braço esquerdo na batalha de Awa e não podia pilotar dragões; mas costumava acompanhá-los a bordo de Uska, uma fêmea de dragão artificial cor de areia, pilotada por Kaer, um shiano feroz e vingativo, o primeiro, de facto, a juntar-se à patrulha de Rastreadores. Uska era uma fêmea de dragão suficientemente grande para permitir levar duas pessoas no seu interior, e Kaer não se importava de levar Denyal como passageiro.

Aquele dia era igual a muitos outros. Estavam a voar desde o primeiro amanhecer, sem novidades. Na realidade, em todos aqueles meses não tinham obtido resultados e os pilotos começavam a cansar-se e a ficar impacientes. Além disso, metade da frota estava em Kash-Tar, onde seguramente tinham alguma acção e a oportunidade de lutar contra sheks de verdade. E, embora tivessem chegado a Nandelt notícias da catástrofe de Celestia, onde uma dúzia de dragões artificiais tinham caído por causa de um furacão, muitos achavam que valia a pena correr o risco.

Naquele momento sobrevoavam Vanissar. Denyal tinha ouvido as notícias acerca do regresso do príncipe Alsan e, embora, aparentemente, Covan tivesse aceitado as suas explicações e desculpas, o líder dos Novos Dragões não podia perdoar-lhe o sucedido no bosque de Awa. Levou a mão ao coto do braço, de maneira inconsciente. Apercebeu-se então de que Kaer olhava para ele à espera de uma resposta.

- Desculpa, estava distraído - disse, sacudindo a cabeça. - O que foi que disseste?

- Disse que em breve alcançaremos a cidade de Vanis - respondeu Kaer. - Seria conveniente descer para renovar a magia dos dragões.

- Não tenho a certeza. Talvez devêssemos seguir um pouco mais... até às fontes do Adir, talvez.

- Não há sheks tão a oeste - objectou o shiano. - A base de Eissesh não pode estar assim tão longe do bosque de Awa.

Tinha razão e Denyal sabia-o. Porém, não se sentia com vontade de visitar Covan e Alsan.

- Houve terramotos e avalanchas ultimamente - comentou. - O certo é que, se os sheks se esconderam nas montanhas orientais, as rochas já os devem ter esmagado.

- São sheks - raciocinou Kaer. - Se fosse assim tão simples acabar com eles, não nos teriam escravizado durante anos.

Denyal não respondeu.

- Bem, que fazemos? - insistiu o piloto.

- Devíamos dar meia-volta - disse Denyal.

Kaer surpreendeu-se.

- Meia-volta? Mas se ainda não terminámos a ronda!

- Eu sei; mas começo a pensar que tudo isto não tem sentido. Talvez os sheks não tenham conseguido escapar depois de tudo o que aconteceu. Pode ser que estejamos a perder tempo à procura deles. Obrigamos Tanawe a renovar a magia dos dragões dia após dia e é um desperdício, porque não fazemos outra coisa a não ser dar voltas sobre as montanhas. Talvez tenha chegado a hora de dar por concluída esta busca e começarmos a dedicar-nos a outras tarefas mais produtivas.

Kaer ia responder, mas não teve tempo. O dragão que ia à frente acabava de lançar um rugido de advertência, um sinal de que se aproximava um perigo. Denyal ergueu-se no seu assento para espreitar através da escotilha dianteira.

- Mais depressa! - ordenou a Kaer.

Continuava com os olhos cravados num ponto das montanhas, onde tinha detectado algo estranho.

Era óbvio que a cordilheira estava a ser sacudida por um violento movimento sísmico. As avalanchas sucediam-se pelas ladeiras dos cumes mais altos e grandes rochas caíam pelos precipícios e desfiladeiros. Mas o mais interessante era a actividade no sopé de uma das montanhas. Pequenas figuras espalhavam-se pela ladeira, fugindo de um perseguidor invisível, e algo voava por cima delas, como uma nuvem de enormes insectos.

- São sheks - disse Denyal, tenso.

- Sheks? Quantos são?

- Estão demasiado longe para poder contá-los. Mas parecem mais de vinte.

Kaer rangeu os dentes. - De onde saíram?

- Parece que o terramoto os tirou da sua toca - respondeu Denyal, com um sorriso sinistro.

- Aproximamo-nos?

- São demasiados, Kaer.

- E que vamos fazer? Fugir? Andamos há meses à procura deles, Denyal. Os dois homens fitaram-se. Depois, lentamente, sorriram.

Apenas uns momentos mais tarde, os seis Rastreadores precipitaram-se sobre as serpentes aladas.

Eissesh pressentiu-os muito antes de entrarem no seu campo de visão, porque os alarmes do seu instinto advertiram-no da sua chegada. Ergueu a cabeça e procurou-os com o seu único olho.

- Dragões - avisou outro dos sheks, que também os tinha detectado. Eissesh ciciou baixinho. Acabavam de escapar de uma morte certa e, mal tinham assomado à superfície, os dragões atacavam-nos.

- Soo seis - informou o shek, com desagrado. Os sheks não eram supersticiosos, mas não gostavam do número seis.

- Soo só seis - corrigiu Eissesh. Tinham perdido cinco sheks nos túneis, mas ainda contavam com trinta indivíduos.

Eissesh designou três serpentes para guiarem os szish até um lugar seguro e ordenou ao resto que o seguisse contra os dragões artificiais. Os sheks que escaparam com os szish fizeram-no a contragosto: o instinto exigia-lhes que fossem lutar. Felizmente, os dragões ainda estavam suficientemente longe para que a lógica se impusesse sobre a irracionalidade.

- Vamos acabar com eles de uma vez - disse Eissesh.

Os sheks voaram direitos aos seis dragões artificiais, em perfeita formação. Estavam cansados e o medo ainda se albergava nos seus corações, mas a luta fá-los-ia sentirem-se melhor.

Os pilotos dos dragões viram as serpentes a voar na direcção deles.

- Vinte e nove - contou Denyal.

- bom! Quatro para cada um.

- E os cinco que restam? - sorriu Denyal. O shiano sorriu por sua vez.

- Esses, também são para mim.

Contudo, Denyal não estava tranquilo. Era certo que todos desejavam um pouco de acção, mas os sheks superavam-nos em número.

- Não te preocupes - disse Kaer ao notar a sua expressão. - Poderemos com eles.

As duas esquadras chocaram no ar com violência. Os sheks precipitaram-se contra os seus inimigos com ferocidade e uma certa alegria. Sabiam que não eram mais do que máquinas, mas cheiravam a dragão e algo no seu íntimo estremecia de prazer ao destruir uma daquelas coisas entre os seus anéis. Os pilotos, por sua vez, puseram em prática todos os movimentos e manobras que tinham a treinado durante meses. Os seus dragões expulsaram fogo, morderam, rasgaram e lutaram com ferocidade.

Mas as serpentes eram demasiadas. No início, o impulso do momento jogou a favor dos dragões, que apanharam os sheks um pouco desprevenidos; pois estes, mais acostumados a observar, tomar nota e agir em conformidade, necessitavam de algum tempo para terem uma ideia da situação e elaborar uma estratégia.

Os dragões atacaram sem estratégia. Limitavam-se a precipitar-se contra o shek mais próximo, a vomitar fogo contra ele e a atacar as suas asas com as garras. Tinham aprendido que era a melhor forma de os fazer cair e, além disso, as enormes asas membranosas dos sheks eram uma presa mais fácil do que os seus corpos escorregadios.

Talvez isto lhes tivesse valido, se lutassem contra menos de uma dúzia de sheks. Mas em breve, a superioridade numérica das serpentes tornou-se evidente. Uma vez avaliados os seus inimigos, Eissesh recolheu toda a informação que os seus companheiros lhe enviavam e transmitiu um plano de acção. Imediatamente, os sheks dividiram-se e atacaram cada um dos dragões por grupos.

- Olha, o meu desejo realizou-se! - exclamou Kaer, quando cinco serpentes rodearam Uska. - Todas para mim!

- Sai daí, sai daí! - gritou Denyal. - Não podes contra todas elas...! Interrompeu-se ao ver a cabeça de um shek a passar à frente da escotilha lateral. Quando o shek se voltou, viu que só tinha um olho.

Denyal nunca tinha sido capaz de distinguir os sheks, mas no passado aprendera a reconhecer Eissesh. E, embora estivesse convencido de que tinha esquecido do que é que o diferenciava dos outros e também não ubesse que tinha perdido um olho, teve a intuição de que se tratava.

Afastou a cara da janela, com brusquidão. Sabia que não devia olhar um shek nos olhos. Nunca.

Subitamente, Uska balançou com violência. Um dos sheks tinha envolvido o corpo da máquina entre os seus anéis e apertava-a.

- Temos de sair daqui! - gritou Denyal de novo.

Kaer semicerrou os olhos e manobrou as alavancas. A fêmea de dragão voltou a cabeça e vomitou uma labareda contra o shek mais próximo. Ouviram um guincho e a serpente soltou-os.

- Temos de fugir - disse Denyal. - Caso contrário...

- Não fugimos - cortou Kaer. - Os Novos Dragões nunca fogem. Vamos apenas pedir reforços.

Puxou bruscamente a alavanca, fazendo Uska dobrar as asas e descer a pique, deixando os sheks para trás. Depois levantou voo e deu meia-volta, com um poderoso rugido.

Era o sinal. Os outros dragões iniciaram por sua vez a manobra de retirada. No entanto, houve dois que não conseguiram e ficaram para trás, à mercê dos sheks, batendo as asas para se libertarem do abraço letal dos seus anéis. Denyal reprimiu o impulso de voltar por eles. Sabia que, se o fizesse, morreriam todos.

Os Rastreadores fugiram dali, seguindo a linha das montanhas. Os sheks perseguiram-nos durante algum tempo, mas, finalmente, Eissesh ordenou que dessem meia-volta e, todos ao mesmo tempo, esforçaram-se por reprimir o seu instinto e seguir o seu líder.

Os dragões respiraram aliviados.

Era já noite cerrada quando avistaram ao longe os telhados da cidade de Vanis.

Jack acordou estremunhado. Tinha tido um mau sonho e, quando teve consciência de que fora apenas um sonho e de que continuava no seu quarto, no castelo real de Vanissar,

sentiu-se muito melhor.

No entanto, apercebeu-se de imediato de que alguma coisa não estava bem e ergueu-se, preocupado. Não demorou a compreender o que se passava.

Victoria não estava.

Jack apalpou a cama ao seu lado; os lençóis estavam frios. Já devia ter ido há bastante tempo.

Inquieto, o jovem levantou-se, vestiu-se e saiu à sua procura.

Percorreu os corredores do castelo, tão silenciosamente quando pôde. Toda a gente dormia e não queria acordar ninguém.

Contudo, ao passar em frente da sala do trono, reparou que estava iluminada. Do seu interior saíam vozes sussurradas. Espreitou com precaução.

Mas Victoria também não estava lá. Jack viu Covan e Alsan; estavam a falar com um terceiro homem. Dali não podia ter a certeza, mas parecia que lhe faltava um braço. Ia retirar-se, discretamente, mas ouviu uma palavra que o deixou pregado no sítio e que o obrigou a prestar atenção.

- Sheks - dizia o homem de um só braço. - Cerca de trinta, não muito longe daqui. Perdemos dois dragões, mas devemos voltar para os atacar e destruir, antes que se escapem outra vez.

- Tens todo o meu apoio - respondeu Alsan. - No entanto, pouco há que te possa ser útil em Vanissar. O nosso exército não está preparado para lutar contra os sheks, porque o meu irmão foi seu aliado, não seu inimigo.

- Nós podemos ajudar - interveio Covan. - Temos os nossos próprios métodos para caçar sheks, sabes disso.

Jack sabia a que se referiam. Durante muitos anos, Covan e o que restava dos cavaleiros de Nurgon tinham combatido contra os sheks partindo dos limites do bosque de Awa. Tinham desenvolvido técnicas próprias, arpões, redes, qualquer coisa que os fizesse cair. E às vezes eram eficazes... mas nunca tanto como os dragões artificiais.

- Um dos nossos dragões voa agora para Thalis - disse o recém-chegado -, para pedir reforços à minha irmã. Não sei se serão suficientes; temos metade da nossa gente em Kash-Tar e, embora já os tenhamos mandado regressar, imagino que demorarão algum tempo.

Jack franziu o sobrolho, reconhecendo-o de repente. Tinha de ser Denyal, o líder dos Novos Dragões. Jack não o conhecia em pessoa, mas tinha tido ocasião de lidar com a sua irmã, a feiticeira Tanawe. Shail contara-lhe, há algum tempo, que Alsan arrancara um braço a Denyal na noite do Triplo Plenilúnio. Observou-o com atenção. Mostrava-se tenso e não olhava para Alsan com simpatia. Jack supôs que era inevitável que lhe guardasse rancor.

- Disseste que também havia szish - disse então Alsan. - Posso guiar um pequeno exército; iremos enfrentá-los, mas não podemos prestar-vos reforços aéreos... excepto um.

- Um? - repetiu Denyal, franzindo o sobrolho.

- Sim - sorriu Alsan. - Nós também temos um dragão.

Jack deixou escapar uma exclamação consternada. Os três aperceberam-se então da sua presença.

- Jack - cumprimentou Alsan. - Estávamos precisamente a falar de ti. O rapaz não teve outro remédio senão juntar-se a eles. Apresentaram-Ihe Denyal, que o olhou com atenção e um maravilhado respeito, embora não fosse capaz de sustentar o seu olhar durante muito tempo. Jack umprimentou-o com uma cortesia cautelosa. Tempos antes, tinha recuado juntar-se aos Novos Dragões

porque não queria voltar a sucumbir à spiral de ódio, porque não queria ver-se envolvido novamente na guerra contra os sheks, e ninguém o tinha entendido. Alguns

tinham-no desculpado dizendo que tinha de cuidar de Victoria. Mas, agora, esse pretexto já não servia.

- Encontraram finalmente o esconderijo de Eissesh nas montanhas informou Alsan. - Estamos a preparar um contingente para os atacar. Vais juntar-te a nós, não vais?

Jack não soube o que dizer. Por um lado, fervia-lhe o sangue só de pensar em voltar a lutar contra um shek... lutar de verdade até à morte. Nada dos duelos mais ou menos amistosos que mantivera com Christian nos últimos tempos. Por outro lado, continuava a ter a impressão de que a luta contra os sheks era algo inútil e sem sentido.

Ergueu a cabeça e encontrou o olhar de Alsan pregado nele. Não lhe estava a pedir, compreendeu. Aquilo era uma ordem. Uma parte de si rebelou-se contra a ideia de receber ordens dele. Mas então pensou que, se queria reparar a amizade que os tinha unido, não podia negar-lhe aquilo.

"Além disso, vou deixá-lo mal perante Denyal, com quem já está em dívida pelo que se passou na noite do Triplo Plenilúnio. E, que diabos? Trata-se de Eissesh, não de Christian ou de Sheziss. Nada me impede de lutar contra ele", pensou.

Assentiu, com aprumo.

- Muito bem; irei convosco.

Passaram mais algum tempo a ultimar pormenores, e depois, Jack disse que tinha de se ir embora.

- Andava à procura de Victoria - disse-lhes. - Viram-na?

Covan negou com a cabeça. Alsan fez de conta que não ouviu a pergunta.

- vou ver se voltou para o quarto - disse Jack, um pouco preocupado.

- Se não estiver, peço a Shail que me ajude a procurá-la.

- Não vás muito longe - recomendou Alsan. - Partiremos de manhã, com o terceiro amanhecer.

Jack assentiu. Regressou ao quarto e respirou, aliviado, ao ver à luz do luar que Victoria tinha voltado. Estava profundamente adormecida. Jack deitou-se ao seu lado, mas a rapariga não reagiu. Ninguém teria dito que momentos antes não se encontrava ali.

"Onde terá ido?", perguntou-se Jack, entre inquieto e intrigado.

Aconchegou-se junto dela, cobriu-se com o lençol e procurou dormir. Ainda faltava algum tempo até ao primeiro amanhecer e tinha de o aproveitar. Esperava-o um longo dia.

Acordou Victoria ao nascer do primeiro sol. A jovem demorou um pouco a abrir os olhos. Quando o fez, olhou para ele um pouco perdida.

- bom dia - disse Jack. - Lamento acordar-te tão cedo, mas tenho de falar contigo.

Victoria respirou fundo e esforçou-se por acordar. Bocejou, espreguiçou-se e soergueu-se um pouco.

- O que se passa?

- Não é nada importante - disse Jack -, mas tinha de te avisar que me vou embora.

- Vais? Para onde?

- Encontraram a base de Eissesh. vou com os Novos Dragões lutar contra os sheks.

Victoria ergueu-se completamente, preocupada.

- Porquê? Atacaram alguém?

- Não, que eu saiba.

Victoria olhou para ele sem entender.

- Então...?

Jack não soube o que responder.

- É Eissesh, Victoria - disse por fim. - O shek que governava Vanissar antes da derrota de Ashran. Não gosta dos sangues-quentes, não sabias?

Victoria abanou a cabeça, com um suspiro.

- É assim que se perpetuam as guerras - murmurou.

- Então, não vens connosco?

- Não, Jack. Não tenho motivos para lutar contra esses sheks. E tu? acrescentou, olhando-o fixamente.

A pergunta apanhou-o de surpresa. Por um momento, pareceu-lhe que estava a falar com Sheziss, procurando encontrar uma resposta para aquelas questões que ela lhe colocava e que o faziam sentir-se tão incomodado.

- Os de sempre, suponho. E Alsan pediu-me. Victoria inclinou a cabeça.

- Compreendo - disse. - bom... tem muito cuidado, já sabes. Jack assentiu. Despediu-se dela com um beijo e saiu do quarto.

No pátio encontrou Denyal e o dragão no qual chegara a Vanis. Era outra fêmea. Jack aproximou-se, incomodado.

104

Surpreendeu-o ver que, junto a Denyal e ao piloto, estava Shail. Pare. muito concentrado no que o líder dos Novos Dragões lhes estava a

explicar.

Cumprimentou-os aos três e perguntou por Alsan.

- Covan e ele estão a reunir os homens de armas - disse Denyal. Partiremos assim que estiverem prontos e quando chegarem de Thalis os outros e Tanawe.

Jack assentiu. Compreendeu então que Shail estava a tentar renovar a magia da fêmea de dragão.

- Vens connosco? - perguntou, surpreendido.

Shail inclinou a cabeça.

- Tanawe trará consigo mais dez dragões - disse. - E só está ela para os manter, de forma que necessitará de outro feiticeiro que renove a magia da frota. O resto dos feiticeiros dos Novos Dragões estão em Kash-Tar.

Jack lembrou-se de que Kimara era uma dessas feiticeiras. Perguntou-se como iria na sua terra e se estaria bem.

- Soubeste alguma coisa deles? - indagou.

- Pediram reforços para lutar contra os sheks de Sussh - respondeu Denyal -, mas, tal como as coisas estão, infelizmente não lhos podemos enviar. Disse-lhes para regressarem de imediato.

Jack não fez comentários. Voltou a dar uma olhadela a Shail e ao dragão artificial.

- Consegues ensinar Shail a renovar a magia dessa coisa? - perguntou a Denyal, um pouco perplexo; sabia que ele não era feiticeiro.

- Conheço a fórmula. Sei que não devia, pois os feiticeiros guardam bem os seus segredos, mas a minha irmã confiou-ma um dia, quando começámos a fabricar dragões.

- Não é muito complicado - sorriu Shail. - Qualquer feiticeiro poderia aprendê-la logo.

Jack dirigiu-lhe um olhar de advertência. "Se te descuidares, arranjarão maneira de ficares com eles", quis dizer-lhe. Os Novos Dragões tinham falta de feiticeiros e não deixariam escapar Shail com facilidade.

- Fico contente por vos ter a ambos entre os Rastreadores - disse então Denyal.

Jack voltou-se para ele com brusquidão.

- O que disseste?

- Chamamos assim à patrulha que inspecciona as montanhas - explicou Denyal, sem entender a zanga de Jack.

O rapaz virou-lhe as costas, perturbado.

"Rastreadores...", recordou, e a voz de Sheziss voltou a emergir das profundezas da sua consciência.

"É assim que chamamos aos dragões assassinos. Aqueles que são incapazes de dominar o seu instinto. Precisavam de matar sheks e precisavam disso desesperadamente. De forma que, de vez em quando, alguns deles embrenhavam-se pelos túneis de Umadhun... para nos caçar. Por alguma razão que não entendo, alguns sentiam prazer a destruir ninhos. Por isso, as crias de shek tinham tanto medo dos rastreadores que estes povoavam os seus piores pesadelos."

- Passa-se alguma coisa, Jack? - perguntou Shail, preocupado.

- Não é um bom nome - respondeu ele. - Posso lutar agora junto dos Novos Dragões, mas não sou um Rastreador e nunca o serei. Está claro?

Cravou em Denyal um olhar severo; este susteve-o por um momento, mas acabou por baixar a cabeça, intimidado.

- Como queiras - respondeu com voz tensa.

Ia acrescentar mais alguma coisa, mas, naquele momento, enormes sombras cobriram o céu. Os quatro levantaram os olhos.

Uma dúzia de dragões atravessava os céus de Idhún. Moviam-se em perfeita formação, com elegância, deslizando pelo ar. Jack sentiu que o peito lhe rebentava de júbilo e saudade. Dragões...

- Tanawe já chegou - anunciou Denyal.

Pouco depois, quando o terceiro dos sóis já se tinha erguido completamente do horizonte, os Novos Dragões levantaram voo e sulcaram os céus de Vanissar. À frente de todos eles ia Uska, com Kaer e Denyal lá dentro, e Jack seguia-a de muito perto. Tinham discutido sobre se Shail devia viajar no dorso de Jack ou no interior de um dos dragões artificiais, e esta última solução tinha-lhes parecido mais segura.

Por terra seguia-os um contingente de soldados, a pé e a cavalo, liderados por Alsan, Covan e o que restava dos cavaleiros de Nurgon. Constituíam um exército pequeno, mas temível, que avançava sob a divisa de Vanissar, com o orgulho e a segurança que lhes proporcionava serem novamente um povo livre, que seguia o seu legítimo rei à sombra das asas dos dragões. Como sempre fora.

Jack sentia-se estranho. Nunca tinha estado rodeado de tantos dragões. Sabia que não eram reais, contudo, o seu cheiro enganava o seu instinto e fazia-o sonhar com tempos passados, tempos que não conhecera, mas dos quais sentia saudades.

Dragões a sobrevoar Idhún. E Yandrak, o dragão dourado, voava com eles.

Durante os primeiros dias depois da batalha de Gan-Dorak, Kimara costumava levantar muitas vezes os olhos para o céu à procura de Ogadrak, o elegante dragão negro de Rando. Mas era inútil, porque Rando não regressara.

Noutras circunstâncias, teriam enviado outro dragão para o procurar; mas os dias seguintes à destruição da base rebelde foram caóticos e complicados.

Goser não se tinha rendido, nem pensava fazê-lo. Levou a sua gente um pouco mais para longe a fim de procurar outro refúgio entre as montanhas e recomeçarem do zero. Desta vez foi mais simples do que da primeira vez.

Correra o boato da destruição de Nin e da base dos rebeldes, e em breve houve sublevações noutros pontos de Kash-Tar. Falava-se, além disso, de uma tribo nómada que tinha sido completamente aniquilada e de outras duas de que se tinha perdido a pista.

Pela primeira vez desde a conjunção astral, os yan tinham medo. E esse medo levava-os a rebelar-se por fim contra as serpentes e a abandonar os seus lares para se aventurarem pelas montanhas à procura de Goser e dos seus.

A cada dia que passava chegava gente nova para se juntar aos rebeldes. Contavam que as serpentes se estavam a tornar cada vez mais rigorosas, que os szish estavam a inspeccionar cada casa e a prender gente sem qualquer motivo. Muitos nunca voltavam.

Enquanto os rebeldes acolhiam todos os que chegavam e os instruíam no manejo básico de armas, Kimara enviou um dos seus dragões com uma mensagem para Denyal. Dias depois, o mensageiro regressou, dizendo que Denyal não lhe podia fornecer os reforços que tinha pedido, porque os Novos Dragões estavam a preparar-se para outra batalha, noutro lugar. De facto, ordenava-lhes que regressassem a Thalis para se juntarem a eles.

Kimara falou sobre isso com os restantes pilotos. Sabia que Goser não o via com bons olhos e também não lhe parecia bem abandonar os yan à sua sorte, mas tinha de contar com toda a gente. As opiniões foram díspares. Havia quem desejasse regressar a Nandelt, enquanto outros preferiam continuar a lutar em Kash-Tar. Por outro lado, todos concordaram que não podiam partir sem saber o que era feito de Rando.

De modo que ficaram ali mais uns dias. Kimara já tinha deixado de olhar o horizonte em busca de Ogadrak, quando, uma tarde, os vigias anunciaram que tinham visto um dragão negro a sobrevoar as montanhas.

O coração de Kimara deu um salto. Correu a receber o dragão quando este pousou nos arredores do acampamento.

- Olá a todos! - cumprimentou o semibárbaro em tom festivo, espreitando pela escotilha superior. - Deu-me uma trabalheira encontrar-vos!

Saltou para o chão, aparentemente são e salvo, e Kimara reprimiu o impulso de o abraçar.

- Onde te meteste? - ralhou-lhe. - Chegámos a pensar que não voltaríamos a ver-te. Estou farta de ter de verificar constantemente se nos segues ou não.

Rando dirigiu-lhe um sorriso tão caloroso que a desarmou por completo.

- Estava a investigar - disse. - E não vais acreditar no que vi - acrescentou, subitamente sério.

Quando todos estavam reunidos em volta dele, incluindo Coser, Rando começou a relatar o que descobrira no deserto, depois de se despenhar com Ogadrak. Contou também como, depois de ter contemplado a esfera de fogo, se dedicara a percorrer Kash-Tar em busca de mais informação.

- Há mais pessoas que viram o sol - disse. - Nómadas e exploradores afirmam ter visto um quarto sol que brilha até mesmo de noite. Embora os outros acreditem que foi uma alucinação, estas pessoas juram que era real...

- Ondeestáafeiticeiraszish? - cortou repentinamente Goser. Rando olhou para ele, franzindo o sobrolho.

- Perguntou-te pela feiticeira que, segundo dizes, ia contigo - traduziu Kimara.

- Ah! Voltou para junto dos seus. Houve murmúrios entre os rebeldes.

- Deixaste-a escapar? - perguntou Kimara, sem acreditar no que ouvia.

- Colaborámos para sair do deserto. Pareceu-me que...

- Uma feiticeira szish, Rando! - explodiu Kimara. - Era uma prisioneira valiosíssima!

Os yan começaram a falar todos ao mesmo tempo. Rando ergueu as mãos e pediu calma e, como não lhe prestaram atenção, gritou:

- Mas vocês ouviram o que acabo de dizer? O que destruiu Nin continua aí fora e é imparável! Não tem sentido continuarmos a lutar contra as serpentes enquanto essa coisa permanecer à solta por aí!

Contudo, os rebeldes de Kash-Tar tinham chegado a um ponto em que a ideia de não lutar contra as serpentes era para eles inconcebível. Houve então uma violenta discussão. Alguns diziam que Rando tinha mudado de lado e que os sheks o enviavam como espião; outros, que o tinham hipnotizado para o fazer acreditar em todos aqueles disparates; e os mais clementes afirmavam que o calor do deserto lhe tinha toldado o juízo.

Finalmente, Goser exigiu silêncio. E, quando os ânimos se acalmaram um pouco, cravou em Rando os seus olhos de fogo e disse:

- presumoquetensprovasdoquedizes,

O semibárbaro demorou um pouco a processar as rapidíssimas palavras do yan.

- Claro - disse -, posso mostrar-vos quando quiserem, onde esta a bola de fogo. Venham vê-la comigo e comprovar que o que vos contei é verdade.

Os sheks tinham já alcançado os confins de Shur-Ikail quando deram pela presença dos dragões.

Se houvesse apenas sheks no grupo, àquela altura já teriam atravessado a Cordilheira de Nandelt e estariam a embrenhar-se em Nangal. Mas levavam os szish consigo, e os szish tinham pernas e não podiam avançar tão depressa como os seus senhores.

E havia que proteger os szish. Era uma raça que não se reproduzia com tanta facilidade como as raças sangues-quentes e tinha ficado muito diminuída após a guerra. Se existia uma possibilidade de saírem dali vivos, de iniciarem uma nova era noutro lugar, havia que salvar também um número significativo de homens-serpentes.

Mas era inevitável que os szish os atrasassem e complicassem a sua fuga.

Por aquela altura, Eissesh já sabia que Gerde e os outros estavam em Nangal. Não lhe parecia um lugar adequado para se esconderem, pelo que tinha decidido que, quando chegassem, regressariam a Umadhun. Lá estariam a salvo.

Eissesh sabia que a perspectiva de voltar a Umadhun não agradava a ninguém. Mas lá os sangues-quentes não os perseguiriam. Além disso, não seria para sempre. Não tinha a menor intenção de que fosse para sempre.

Agora, os sheks detiveram-se no ar e voltaram os olhos para este, de onde se aproximava um grupo de pequenos pontos escuros.

- Dragões - pensaram todos ao mesmo tempo.

Eissesh levantou voo e subiu muito mais alto para perscrutar o horizonte. Quando desceu, não trazia boas notícias.

- Desta vez são muitos mais - disse. - Ainda não nos igualam em número, mas estão perto. E trazem tropas de terra.

- Fugimos? Lutamos?

- Temos de lutar - disse Eissesh; e, quando pronunciou estas palavras, não pôde evitar perguntar-se se fora a razão a falar através delas ou o instinto.

Transmitiu as novidades às mentes de todos os szish e observou, com aprovação, como os homens-serpentes se apressavam a organizar-se, com precisão e serenidade. Eissesh não duvidava de que estavam assustados e nervosos; no entanto, ao contrário dos sangues-quentes, os szish eram capazes de enfrentar as situações de tensão e perigo sem deixar que as suas emoções influenciassem os seus actos.

Os sheks eram como eles nesse sentido. A única emoção que não conseguiam controlar era o ódio pelos dragões.

Felizmente, os dragões tinham arranjado maneira para que lutar contra eles fosse algo totalmente lógico e justificado.

Como naquele preciso momento.

Eissesh dirigiu um novo olhar para os dragões que se aproximavam no horizonte. Estavam muito mais perto, mas as serpentes já estavam preparadas para lutar.

Contudo, detectou algo diferente na formação que ia ao seu encontro. Consultou os outros sheks; não tinha comentado com ninguém, mas o facto de ter perdido um olho fazia-o sentir-se algo inseguro a respeito da agudeza da sua visão.

- É um dragão dourado - confirmaram-lhe.

Eissesh semicerrou as pálpebras. Lembrava-se de que os sangues-quentes tinham fabricado um dragão dourado para que lutasse com eles na batalha de Awa. Também se lembrava de que tinha caído. Tê-lo-iam talvez reconstruído?

Porém, existia outra possibilidade. E Eissesh sabia que todos os sheks a tinham em mente também.

Aguardaram, expectantes, enquanto os sangues-quentes iam ao seu encontro. Foi um dos sheks mais velhos, que tinha lutado contra dragões rastreadores em Umadhun, quem disse:

- É um dragão de verdade.

Os sheks ciciaram, procurando controlar o nervosismo e a excitação que se apoderavam deles. Um dragão de verdade. Há quase vinte anos que nenhum dragão de verdade sulcava os céus de Idhún. E, antes da conjunção astral, poucos sheks tinham tido ocasião de enfrentar aquelas criaturas durante o seu longo exílio em Umadhun.

- Yandrak, o último dragão - disse Eissesh brevemente. Os cicios dos sheks encheram-se de ódio e de fúria.

- Calma - recomendou-lhes Eissesh. - Há mais dragões além desse. E, embora não sejam de verdade, são igualmente perigosos.

Os sheks assentiram.

E, por uma vez, o facto de Tanawe cobrir as suas máquinas com um unguento de escamas de dragão favoreceu os sheks, que, caso contrário, ter-se-iam precipitado todos

sobre Jack, ignorando o resto dos dragões. Assim, não lhes custou seguir o plano estabelecido e atacar os seus inimigos de forma ordenada e metódica.

Momentos mais tarde, as duas facções enfrentavam-se nos céus de Handelt.

Jack sentiu-se confuso no início. Era a primeira vez que se via numa situação semelhante. Tinha lutado contra sheks no passado, sim, mas quase sempre tinham sido

combates individuais. A única vez que tinha enfrentado algo parecido com um exército tinha sido na sua chegada a Idhún, quando os sheks tinham atacado junto à Torre de Kazlunn. E na altura tivera de lutar como humano.

Agora era diferente. Cada escama do seu corpo de dragão vibrava de emoção perante a iminente batalha, e as forças estavam quase igualadas. E à sua volta voavam outros dragões; dragões que iam lutar ao seu lado contra as serpentes.

Por uma vez, não estava sozinho.

com um rugido de selvagem alegria, Jack precipitou-se contra o shek mais adiantado. A criatura aceitou o desafio e os seus olhos brilharam por um instante, reflectindo a ânsia de sangue de dragão que se albergava no seu coração. O corpo ondulante do shek fluiu em torno de Jack, rodeando-o. O jovem dragão tinha já experiência suficiente para saber o que viria depois. Bateu as asas com força e elevou-se um pouco mais, para evitar ser aprisionado pelos anéis da serpente. Depois, abateu-se sobre ela, com as garras projectadas para a frente. Sabia que devia reservar a sua chama para quando tivesse a certeza de acertar no alvo, e, com os esquivos sheks, era difícil calcular o momento adequado. A criatura ciciou e conseguiu evitar no último momento as garras do dragão.

Nos instantes seguintes, serpente e dragão executaram no ar uma dança de guerra, estudando-se mutuamente, girando em torno um do outro, procurando vulnerabilidades, iniciando investidas e evitando-as, sustidos pelas suas enormes asas. Uma dança acompanhada por uma sinfonia de rugidos e cicios ameaçadores.

Sempre tinha sido assim. Durante séculos, aquelas poderosas criaturas tinham repetido aqueles movimentos uma vez e outra. Nenhum dragão ensinara Jack a lutar contra os sheks e aquela serpente nunca tivera a oportunidade de lutar contra um dragão de verdade, mas isso não importava. Sem o saber, por instinto, atacavam-se mutuamente, porque estava no seu sangue, porque muitas gerações de sheks e de dragões tinham feito o mesmo antes deles.

E, como sempre acontecera, foi o dragão o primeiro a abandonar toda a precaução e a lançar-se sobre o seu adversário. E, como sempre, o shek evitou-o e procurou imobilizá-lo, mas deparou-se com as garras do dragão, uma arma mortífera que as serpentes não tinham.

O longo corpo do shek evitou as garras, mas Jack conseguiu agarrar uma das suas asas e rasgou-a com fúria. O shek deixou escapar um guincho de dor. Jack inspirou

fundo para lançar uma labareda sobre ele, mas a cauda da serpente enrolou-se em volta de uma das suas patas e puxou-o para baixo com tanta força que o deixou sem respiração. Quando deu por isso, os seus olhos estavam à altura dos olhos hipnóticos da serpente.

"Nunca olhes um shek nos olhos", recordou Jack.

Mas era demasiado tarde. A consciência do shek tinha-se introduzido na sua mente, paralisando-o; Jack não pôde fazer outra coisa senão ficar imóvel...

Algo sulcou o ar de repente, muito perto deles, desequilibrando o shek e fazendo com que perdessem o contacto visual. Jack abanou a cabeça e procurou mover as asas, mas a serpente tinha enrolado o seu corpo em volta do dele, imobilizando-o. Quando Jack olhou outra vez, o shek tinha aberto a boca e dispunha-se a cravar-lhe uma feroz dentada. Jack evitou as presas mortíferas e exalou o seu fogo.

A serpente guinchou outra vez e libertou-o para se afastar dele. Jack perseguiu-a sem piedade, fustigando-a, até que conseguiu agarrar uma das suas asas com as garras. O shek agitou-as, furioso. Jack esticou o pescoço e tentou morder, uma, duas vezes... À quarta conseguiu. Ainda sentindo o corpo do shek a retorcer-se contra ele, Jack mordeu com força, até sentir que algo se partia... e a serpente deixou de se mover e tombou, inerte.

Jack deixou-a cair. Reprimiu o impulso de voar atrás dela para acabar de a desfazer. Não lhe foi difícil, porque muitos outros sheks voavam à sua volta.

A batalha estava mais renhida. Ambas as facções lutavam encarniçadamente, sem que parecesse haver um claro vencedor. Até mesmo os sheks, habitualmente tão frios, pareciam deixar-se levar pela cólera quando arremetiam contra um dragão... apesar de saberem muito bem que aqueles dragões não eram verdadeiros.

Fogo, veneno, garras e presas... Jack sentiu-se aturdido e, por um momento, esqueceu que todos os dragões tinham morrido. Por um momento esqueceu que era também humano, em parte, e que havia outras ameaças mais graves a pesar sobre o futuro de Idhún. Esqueceu tudo aquilo e pareceu-lhe encontrar-se num mundo passado, um mundo onde duas raças lutavam sem tréguas, numa guerra interminável. Jack... Yandrak deixou escapar um rugido de triunfo e mergulhou no coração da batalha, junto dos seus irmãos, os dragões, os Senhores de Awinor, contra aquele inimigo de coração frio e mente tortuosa, sabendo que podia morrer naquela hora mas que morreria a matar... matar sheks.

Naquele mundo sonhado, os dragões ainda existiam. Naquele mundo passado, os dragões continuariam a lutar contra os sheks por toda a eternidade.

E embora uma parte de si estremecesse de horror, no fundo do seu coração tinha saudades daqueles tempos que não voltariam.

Em terra, Alsan e os seus não estavam a encontrar grandes dificuldades em fazer retroceder os szish. Embora os homens-serpentes fossem hábeis guerreiros, aqueles em concreto não pareciam estar no seu melhor momento. Sem dúvida, a longa estadia nas cavernas da cordilheira começava a ter as suas consequências. No início combateram como de costume, com eficácia e precisão, mas depressa começaram a cometer falhas e a deixar-se levar pelo nervosismo. As hostes de Vanissar aproveitaram-se disso. E, quando os szish começaram a recuar, os humanos perseguiram-nos.

- Estão a retirar! - exclamou Denyal do seu posto no interior de Uska.

- Já vi, malditas serpentes cobardes - grunhiu Kaer.

- Não é próprio deles - asseverou o líder dos Novos Dragões.

- Talvez porque até agora nunca tinham estado a perder.

Denyal mordeu o lábio inferior, reflectindo sobre as suas palavras.

Através da escotilha da fêmea de dragão, podia ver que, efectivamente, as serpentes estavam a retirar. Pareciam dar por concluída a luta e procuravam tirar os seus oponentes de cima de si para empreenderem uma fuga para sul.

A batalha não parecia decidida a favor de nenhum dos dois lados, mas Denyal não sabia como iam as coisas em terra e, além disso, os sheks pareciam ir perdendo energias à medida que o tempo passava. Talvez aquilo fosse um sinal de que realmente não podiam mais e por isso optavam por uma retirada estratégica. Porém, parecia que o faziam contra vontade.

- Seguimo-los? - perguntou Kaer.

- Claro que sim - grunhiu Denyal. - Há que lhes dar caça antes de voltarem a esconder-se.

Durante um bom bocado, as serpentes voaram em direcção a sul e os dragões perseguiram-nas. Por terra, também os szish optaram por evitar uma batalha que não podiam ganhar. A luta entre sheks e dragões, em contrapartida, não parecia tão clara. Tinham caído várias serpentes, mas também tinham sido derrubados outros tantos dragões.

Denyal passara muitos anos a lutar contra as serpentes em Vaníssar. Sabia que faziam sempre as coisas por uma boa razão. E que, muitas vezes, aquela razão escapava ao entendimento humano. Porque não costumava ser a razão mais óbvia, mas sim a mais importante.

- Dirigem-se para sul - disse Kaer, com satisfação. - Vão guiar-nos até à base de Drackwen. Por fim, saberemos onde se escondem as outras serpentes.

Denyal franziu o sobrolho.

- Não são assim tão tolos. Não nos mostrariam voluntariamente algo tão importante. Tem de haver mais alguma coisa.

- Não há mais. Estão cansados, têm medo de ser derrotados e fogem. Quando os alcançarmos...

- Se é que os alcançamos - compreendeu Denyal de repente. - Os sheks não estão cansados, estão só a fingir. Somos nós que estamos cansados ou estaremos muito em breve.

Olharam um para o outro.

- Não poderemos chegar a Drackwen hoje - entendeu Kaer. - Ao anoitecer, teremos de parar para renovar a magia dos dragões e, nessa altura...

- Nessa altura darão meia-volta e atacar-nos-ão, e não poderemos defender-nos. Isto é um erro, Kaer. Temos de voltar para trás.

O piloto deixou escapar uma sonora maldição e bateu no painel de comandos, com fúria. Porém, deteve a fêmea de dragão, que agitou as asas, suspensa no ar, bufando de desagrado.

Foram necessárias mais duas manobras para que os dragões travassem o seu avanço. Passado pouco tempo, estavam todos reunidos em torno de Uska e viam os sheks ir embora, com resignação.

Todos, menos um.

Demoraram um pouco a aperceber-se de que Yandrak continuava a perseguir os sheks. Talvez não tivesse entendido que os dragões artificiais não aguentariam aquele ritmo ou talvez não se importasse. O caso é que, quando quiseram chamá-lo, estava já muito longe.

O plano funcionava.

Os szish não estavam preparados para aquela batalha. Tinham lutado com esforço, mas os cavaleiros superavam-nos em número e estavam em plena forma. Os sheks tinham compreendido que os szish perderiam a luta e parecera-lhes muito sensata a decisão que tinham tomado: retirar-se.

Os sheks cobririam a sua fuga, mas Eissesh não estava seguro de que fosse boa ideia separarem-se. De modo que lhe ocorrera que talvez fosse melhor que retirassem também.

Tinha lutado contra os Novos Dragões durante os seus dias como governador de Vanissar. Sabia como funcionavam aqueles artefactos e que teriam de parar em algum momento.

Se os humanos fossem assim tão estúpidos para segui-los, ficariam sem magia, e nessa altura seria o momento de dar meia-volta e atacar. Se fossem espertos, deixá-los-iam partir.

E, naquele momento, fugir era o mais importante. Se tudo corresse bem, as serpentes abandonariam Idhún em breve. Já não valia a pena lutar por aquele mundo.

Foi difícil para os sheks controlar o ódio e dar meia-volta. Eissesh teve de repetir várias vezes o seu raciocínio para que, pouco a pouco, a lógica se sobrepusesse ao instinto. O cansaço que os sheks mostravam não era totalmente fingido: o seu corpo exigia-lhes que ficassem para lutar, enquanto a sua mente tentava convencê-los do contrário.

Quando o primeiro shek conseguiu dar meia-volta e fugir, para os outros foi um pouco mais fácil escapar das garras do instinto.

- Não são dragões de verdade - recordou-lhes Eissesh. - Não valem a pena.

Como era de esperar, os humanos demoraram bastante a perceber o que aconteceria se continuassem a persegui-los. Mas afinal entenderam, porque os seus dragões pararam e deixaram-nos ir, o que, no fundo, era uma pena: todos os sheks estavam desejosos de ter uma oportunidade para os desfazer.

Também as tropas de terra dos sangues-quentes deixaram de perseguir os szish, e Eissesh riu entre dentes. Nem sequer os cavaleiros de Nurgon eram assim tão intrépidos sem a sombra dos dragões a cobrir-lhes as costas.

- Ainda nos seguem - disse alguém então.

Eissesh voltou a cabeça e viu um ponto dourado atrás deles.

- Os dragões de verdade são ainda mais estúpidos do que os falsos dragões

- comentou, irritado.

Era certo que aquele dragão não necessitava de magia para voar. Mas não era possível que não se tivesse apercebido de que tinha ficado sozinho.

- Sigam em frente - disse. - Eu ocupo-me dele.

Mas escolheu mais três serpentes para enfrentar o dragão.

Os sheks não eram especialmente cobardes, mas também não confundiam valentia com loucura. Sabiam que Yandrak era um inimigo perigoso e, simplesmente, não queriam correr riscos. Quatro sheks teriam mais possibilidades de o vencer do que um, mesmo que esse um fosse Eissesh.

Jack parou de repente, desconcertado. Onde estavam os outros dragões? Levado pelas suas fantasias e por aquela visão que tivera de tempos passados, em que os seus dominavam o mundo, mal se apercebera de que os dragões artificiais se retiravam. Quando deu por isso, estava sozinho e quatro sheks cercavam-no. Um deles observava-o com um único olho a brilhar no seu rosto de ofídio.

"O que está a acontecer?", perguntou-se Jack, confuso. O instinto disparou, e virou-se, com um rugido ameaçador, procurando decidir que serpente atacaria primeiro.

Optou pela mais próxima. Lançou-se sobre ela e apanhou-a de surpresa. O shek afastou-se dele com um cicio alarmado, mas Jack chegou a atingi-lo com a cabeça e a rasgar uma das suas asas com os cornos. O shek guinchou de dor.

Imediatamente, Jack sentiu que algo o fustigava em pleno peito, com tanta força que o deixou sem respiração. Voltou-se, de forma instintiva, para a serpente que o tinha açoitado com a sua longa cauda.

Uma vez mais, o shek com um só olho.

Jack quis afastar a cabeça, mas o olhar daquela serpente já se tinha cravado nele. Ficou imóvel por um momento, talvez tendo perdido a consciência... e, naquele instante em branco, perdeu o controlo e começou a cair.

Voltou a si com um rugido de alarme e bateu as asas, mas era demasiado tarde. Caía e caía sobre as montanhas, e quatro sheks perseguiam-no para o matar.

Esforçou-se por se lembrar de Sheziss, de tudo o que ela lhe ensinara; de Victoria, que o aguardava em Vanis; até mesmo de Christian. Lutou para dominar o instinto e, em vez de dar meia-volta e combater até morrer, fugiu para salvar a vida.

Planou por entre os picos das montanhas e procurou um lugar onde pousar.

Do resto, não se lembraria com clareza. Tombou no chão, destruindo algumas árvores, e, embora as asas travassem a queda, esta foi mesmo assim dolorosa. Transformou-se imediatamente em humano e procurou um refúgio entre a mata, com o coração a bater com força. Naquele momento sentiu falta das capas de banalidade que Allegra lhes oferecera, a ela e a Victoria, no começo da sua aventura idhunita.

Mas, felizmente, os sheks não o encontraram. Planaram duas vezes sobre o lugar onde se escondera e depois levantaram voo e seguiram o seu caminho.

Jack sorriu, extenuado, mas não se atreveu a sair do seu esconderijo.

Aninhou-se entre as raízes de uma árvore, fechou os olhos por um instante... e adormeceu.

- Ainda não voltou? - perguntou Alsan em voz alta. Shail negou com a cabeça.

- Nem rasto dele - disse. - Devíamos ir procurá-lo. Talvez os sheks o tenham abatido, e nesse caso...

- Nesse caso, não poderíamos fazer nada por ele - interveio Tanawe. Tinham montado o acampamento no Norte de Shur-Ikail, junto ao rio Adir. Há algum tempo que Shail e Tanawe tinham acabado de renovar a magia dos dragões, mas continuavam ali... à espera de Jack.

- Os rapazes estão a começar a ficar nervosos - prosseguiu a feiticeira.

- Devíamos regressar.

- E deixar Jack para trás?

- Se os sheks se juntaram às serpentes de Drackwen, são nesta altura uma força que não podemos vencer - explicou Tanawe com uma certa impaciência. - Já os expulsámos de Nandelt; agora devemos regressar à base e reforçar-nos, pedir ajuda aos reinos vizinhos... formar um exército forte para atacar Drackwen. Mas, se perdermos mais tempo, estaremos a dar-lhes vantagem.

- E deixar Jack para trás? - repetiu Shail em voz mais alta.

- É um dragão - replicou Tanawe. - Os dragões não precisam da ajuda dos humanos para resolver os seus problemas.

- Nisso tens razão - assentiu Alsan, com um grunhido. - Jack demonstrou repetidas vezes que prefere actuar por sua conta. De nada serve irmos atrás dele.

- Mas... - começou Shail.

- Vamos regressar a Vanissar - cortou Alsan. - Procurem Denyal e Covan e digam-lhes que levantamos o acampamento.

Shail não disse nada, mas dirigiu a Alsan um longo olhar pensativo.

Quando Jack acordou, horas mais tarde, já era noite e as três luas brilhavam suavemente sobre ele. Demorou um pouco a recordar tudo o que tinha acontecido. O voo com os Novos Dragões, a batalha, a perseguição... tudo se misturava na sua mente de forma confusa e desordenada, como se fosse parte de um estranho sonho.

"Onde estou?", perguntou-se.

Pouco a pouco, a mente foi-se aclarando. Fizera-lhe bem dormir, embora aquele não fosse o lugar mais adequado, e por isso agora tinha o corpo dorido. Pôs-se de pé e espreguiçou-se.

Estava num pequeno bosque, no sopé das montanhas. Pelo tempo que tinha voado atrás dos sheks, Jack calculou que devia estar no Sul de Shur-Ikail, junto à Cordilheira de Nandelt. Ergueu os olhos para o céu, com precaução, mas não viu nenhuma serpente. Tinham ido embora.

Aquilo era um alívio, mas, por outro lado, o dragão que havia nele sentiu-se decepcionado. Jack ralhou consigo próprio por desejar, ainda que por um instante, lutar sozinho contra duas dúzias de sheks. Era absurdo, era uma loucura, e sabia-o. "Se não tiver cuidado, o instinto fará com que me matem um dia", disse a si próprio, desanimado. Pensou então em Alsan e nos outros. Perguntou-se onde estariam, se andariam à sua procura ou se teriam regressado a Vanissar. Desejou que estivessem à espera dele algures em Shur-Ikail. Depois de ter experimentado a sensação de voar com um grupo de dragões, mesmo não sendo eles verdadeiros, não lhe apetecia empreender sozinho o trajecto de regresso.

Transformou-se em dragão. Verificou que, apesar de não ter nenhuma ferida séria, a luta contra os sheks tinha-o deixado bastante moído. com um suspiro de resignação, abriu as asas e levantou voo.

Contudo, pouco depois algo lhe despertou a atenção.

Sobrevoava já os limites das pradarias e os seus olhos perscrutavam a paisagem, em busca de algo parecido com um acampamento. Por isso avistou a débil chama que ardia um pouco mais abaixo, não longe do rio.

Intrigado, Jack voou em círculos por cima da luz. Como suspeitava, era uma fogueira. Perguntou-se se se tratava de Alsan, que tinha ido à sua procura. Por precaução, distanciou-se e pousou num lugar um pouco mais afastado. Ali, recuperou a sua forma humana. Se não fosse Alsan, não convinha assustá-lo.

Ao aproximar-se um pouco mais, foi recebido por um delicioso aroma de carne assada. Ficou com água na boca e recordou-se de que não tinha comido nada desde manhã.

A pessoa que estava sentada junto ao fogo era grande e forte, mas não era Alsan. Jack parou a uma distância prudente. Era demasiado pequeno para ser um gigante e demasiado imponente para se tratar de um humano normal- Porém, os seus ombros estavam descaídos, como se suportasse uma pesada carga.

Jack avançou uns passos, mas o homem ouviu-o e voltou-se com rapidez revelando, à luz da fogueira, um rosto feroz semioculto por uma barba encrespada. Tinha o torso nu, coberto de pinturas de guerra, mas a sua pele ostentava também riscas pardas, o traço característico da sua raça.

Um bárbaro. Era lógico, dado que se encontravam no território dos shur-ikaili. Mas não era habitual ver um bárbaro sozinho, longe do seu clã.

Jack ergueu as mãos em sinal de paz.

- Não venho lutar - disse. - Estou só de passagem. O bárbaro relaxou um pouco.

- Quem és? És um homem de Nandelt?

- Venho de um lugar mais distante - respondeu Jack, aproximando-se. - Mas agora o meu destino é Vanissar.

- Para quem vem de longe, levas pouca bagagem.

- Vinha com mais gente, guerreiros de Vanissar e Raheld, mas perdi-Ihes a pista. Enfrentámos as serpentes e, na confusão da batalha, separei-me do resto do grupo.

Suponho que devem ter montado acampamento mais a norte. Viste-os?

O bárbaro deixou cair novamente os ombros.

- Não - grunhiu -, venho do Sul. Mas há uns momentos pareceu-me ver um dragão a voar por cima da minha cabeça, de modo que é provável que não andem muito longe.

O seu rosto ensombrara-se ao ouvir mencionar as serpentes. Jack sentou-se ao seu lado, junto ao fogo. O shur-ikaili não se moveu.

- Deram-lhe o que mereciam? - perguntou, após um momento de silêncio.

- Não tenho a certeza. A meio da batalha, deram meia-volta e fugiram para sul. Não sei porque é que o fizeram. Estávamos em clara vantagem.

O bárbaro não respondeu de imediato. Ofereceu a Jack um odre com água e um pedaço de carne acabada de assar na fogueira, e o jovem aceitou ambas as coisas, agradecido.

- As serpentes são cobardes e traiçoeiras - opinou o bárbaro ao fim de algum tempo. - Os shur-ikaili nunca... - Interrompeu-se e desviou o olhar com brusquidão.

- Nunca fogem? - completou Jack, com suavidade.

O bárbaro não respondeu. A sua expressão denunciava claramente o que estava a pensar, e Jack acrescentou:

- Às vezes, é mais prudente dar meia-volta e fugir.

- Não quando o inimigo matou todos os teus e só restas tu para o contar - murmurou o bárbaro. - Não quando viste os guerreiros do teu clã lutar até à morte.

Jack olhou-o longamente.

- Devia ser um exército temível, se conseguiu derrotar-vos.

- Serpentes - cuspiu o shur-ikaili. - Não são mais fortes do que nós. Num combate corpo a corpo, tê-los-íamos vencido. No entanto... - Começou a tremer subitamente,

como uma criança. Jack perguntou-se o que podia ter assustado àquele ponto um homem como ele.

- Havia sheks com eles?

- Havia um, se é verdade o que dizem dele.

- Kirtash - adivinhou Jack. O bárbaro ergueu a cabeça.

- Conhece-lo?

- Enfrentei-o uma vez ou outra - respondeu Jack, sem mentir.

- E continuas vivo - observou o bárbaro, olhando-o desconfiado. Kirtash matou em combate o segundo melhor guerreiro do nosso clã. Tu não pareces mais forte.

- Kirtash também não parece forte, no entanto, venceu - observou Jack.

- Não lutava à maneira dos shur-ikaili. Não investe de frente e move-se como uma sombra, evitando os golpes em vez de os enfrentar.

- É outra maneira de lutar.

- É cobarde.

- Talvez seja, mas é eficaz, não é?

- com certeza utiliza magia, tal como essa bruxa feérica a quem serve - resmungou o bárbaro.

- Gerde?

- Ela matou a melhor guerreira do nosso clã com um só dedo - sussurrou o bárbaro, com a voz impregnada de terror. - Há tempos, essa bruxa esteve nos clãs... com Hor-Dulkar. Outra feiticeira feérica veio desafiá-la na altura e a luta esteve muito igual. Mas agora... agora, essa bruxa tem algo diferente. Pode matar uma pessoa só com um toque. E nem sequer os guerreiros mais poderosos ousam olhá-la nos olhos.

Jack ouvia atentamente. O bárbaro relatou-lhe o seu encontro com Gerde, com todos os pormenores. Parecia aliviado por poder contá-lo a alguém e, embora devesse regressar para junto dos seus para os informar de tudo o que tinha acontecido, por alguma razão era mais simples para ele confiá-lo a um desconhecido. A perspectiva de confessar perante os outros bárbaros que sentia medo de alguém como Gerde, que saíra vivo só porque ela assim o quisera, que não tinha tido coragem para continuar a lutar até ao fim, como os seus companheiros, devia ser certamente difícil.

- Não te atormentes - disse-lhe Jack. - Gerde não é a mesma que conheceste. O sétimo deus está com ela e possui um poder novo e obscuo ao qual ninguém é capaz de se opor. Nem sequer os sheks. O bárbaro olhou para ele, incrédulo.

- Caso contrário - acrescentou o jovem -, Kirtash não estaria às suas ordens. Não te parece?

O outro encolheu os ombros.

- Essa bruxa consegue enfeitiçar os homens, eu vi.

- Mas não teria conseguido enfeitiçar um shek. Se agora consegue fazê-lo...

Não concluiu a frase, mas não foi necessário.

- Compreendo - assentiu o bárbaro. Pôs-se de pé.

- Tenho de seguir o meu caminho, estrangeiro - disse. - Ainda me resta um longo caminho até aos domínios do meu clã. Podemos seguir juntos um bocado.

Mas Jack negou com a cabeça.

- Mudei de ideias - disse. - Acho que vou voltar para trás. Quero verificar uma coisa.

O bárbaro olhou para ele, franzindo o sobrolho.

Pouco depois, como testemunho daquele encontro, só restavam as cinzas da fogueira. O shur-ikaili continuou a sua viagem de regresso ao seu clã e Jack rumou, de novo, para as montanhas.

Nangal ficava muito perto. Demasiado perto para não tentar descobrir o que estava a acontecer.

Em primeiro lugar, para que queria Gerde um bebé shur-ikaili? E até que ponto Christian sabia dos seus planos? Até que ponto obedecia às suas ordens?

 

             A SOMBRA SEM NOME

No regresso ao palácio real de Vanis, Shail perguntou por Jack, mas ninguém sabia nada dele. As suas esperanças de que tivesse voltado à cidade por sua conta desvaneceram-se.

A sua preocupação aumentou quando lhe disseram que Victoria também não aparecia em lado nenhum.

- Talvez tenha ido com Jack - murmurou pensativo. Gaedalu negou com a cabeça.

- Desapareceu ontem de manhã, depois do pequeno-almoço - disse. - Não voltámos a vê-la. Se tivesse ido convosco, tê-la-iam visto.

Alsan franziu o sobrolho.

- Se a rapariga está ao vosso cargo - acrescentou Gaedalu, adivinhando-lhe os pensamentos -, não deveriam deixá-la tão à solta. Sabe-se lá se não foi encontrar-se em segredo com o seu amante shek.

Aquele comentário fez com que Alsan ficasse lívido de raiva. Shail tentou acalmar os ânimos.

- O sentimento que há entre os dois é sincero, Mãe Venerável.

- Falas como os celestes - resmungou ela. - Que importa um sentimento quando o futuro de Idhún está em jogo?

- Dá-se o caso de esse sentimento já ter salvado Idhún mais do que uma vez. Seja como for, ela não abandonaria Jack. Se ele está em perigo...

- Jack está em perigo? - perguntou uma voz nas suas costas. Victoria acabava de entrar e observava-os, aparentemente calma, mas com a preocupação estampada nos seus olhos escuros.

- Onde estavas? - exigiu saber Alsan. Victoria dirigiu-lhe um olhar sereno.

- Não acho que seja assunto teu - respondeu, com suavidade; voltouSe de novo para Shail. - O que se passa com Jack? Porque é que não voltou convosco?

- Se tivesses vindo connosco, saberias - replicou Alsan, cortante. A não ser, claro, que o que Jack faz tenha deixado de ser... assunto teu.

- Alsan, já tenho idade para tomar as minhas próprias decisões - replicou ela - e não tenho de te prestar contas. Já dei explicações quando as quis dar. Se a esta altura ainda não confias em mim, então não temos mais nada que falar. Alsan semicerrou os olhos.

- Não - disse, com frieza. - Não temos mais nada que falar. Fez-se um longo e pesado silêncio.

- Lutámos contra os sheks nos confins de Shur-Ikail - informou então Alsan, num tom de voz impessoal. - Eles retiraram-se ao fim de algum tempo e nós fomos atrás deles. Depois, os dragões optaram por parar antes de ficarem sem magia, mas Jack continuou a perseguir os sheks. Perdemo-lo de vista e esperámos por ele até a noite ir bem adiantada, mas não voltou.

- E deixaram-no para trás? - perguntou Victoria. A sua voz continuava a ser calma, mas vibrava nela um tom de fúria contida.

- Eu também não tenho porque prestar-te contas, Victoria - limitou-se ele a responder.

Ela olhou-o brevemente e depois deu meia-volta para se ir embora.

- Vic! - chamou-a Shail. - Onde vais?

- Procurar Jack - replicou ela sem se voltar.

Shail foi atrás dela, mas deparou-se com Covan à porta. Parecia agitado.

- Temos problemas, Alsan - disse, e Shail parou e olhou para ele, preocupado.

- De que se trata? - perguntou Alsan. - Mais sheks?

- Não, isto é algo mais... insólito e imprevisível. Que eu saiba, nunca tinha acontecido antes. Enfrentamos uma invasão e não precisamente de serpentes. Os gigantes abandonam Nanhai e penetram no nosso território.

Reinou um silêncio de estupefacção.

- Não pode ser - murmurou então Alsan. - As nossas relações com Nanhai são boas. Por que razão iam invadir-nos?

- Não me parece que venham simplesmente para nos cumprimentar, Alsan. Deslocam-se em grupos numerosos, e os gigantes são seres solitários. Para que é que iam reunir-se tantos, se não para formar um exército?

- Não nos estão a invadir - disse então Shail, subitamente. - Fogem da sua terra. Os terramotos devem tê-la tornado inabitável.

Alsan olhou-o fixamente.

- Tens a certeza do que estás a dizer?

- Não completa, mas quase. Estive em Nanhai há dois meses. Já na altura havia gigantes que estavam a ter problemas por causa dos movimentos sísmicos, e a coisa estava a agravar-se quando me vim embora. A mesma força que fez Eissesh sair do seu esconderijo está a empurrar os gigantes para o exílio.

Alsan inclinou a cabeça, pensativo.

- Irei ao seu encontro - ofereceu-se o feiticeiro. - Falarei com eles e logo verei se tenho razão. Além disso, durante a minha estadia lá, fiz algumas amizades... Sei como lidar com eles.

Alsan olhou-o durante um momento, duvidoso. Depois, lentamente, assentiu.

Jack optara por atravessar as montanhas pelo ar. Tinha-se desviado um pouco para oeste, a fim de evitar os picos mais altos, e agora penetrava em Drackwen pelo vale que se abria entre o monte Lunn e a cordilheira. No entanto, tinha pensado recuperar a sua forma humana quando entrasse em Nangal. Não queria chamar a atenção dos sheks.

Contudo, a paisagem que se abria diante dos seus olhos fê-lo duvidar de que fosse boa ideia.

O bosque de Alis Lithban, visto do ar, era imponente e ao mesmo tempo inquietante. Tinha-se transformado numa enorme e variada selva que parecia cobrir todo o horizonte. Estendera os seus limites em todas as direcções e a sua orla chegava quase até ao próprio sopé do monte Lunn. Felizmente, parecia que não continuara a expandir-se para norte. Se a deusa continuava ali, talvez tivesse decidido deslocar-se para sul, em direcção aos pântanos de Raden. Para este acabaria por se deparar com as montanhas, e para oeste havia o mar.

Jack, inquieto, sobrevoou aquela enorme massa vegetal, e ainda lhe pareceu sentir o formigueiro do poder de Wina nas profundezas do seu ser. Bateu as asas para ganhar um pouco mais de altura e continuou a sua rota.

Depressa descobriu que parte de Nangal tinha desaparecido debaixo da vegetação, mas que a zona mais próxima das montanhas permanecia intacta. Desceu por ali, a uma distância prudente do limite do bosque, e transformou-se em humano.

Prosseguiu a sua viagem a pé, em busca do esconderijo das serpentes. Sabia que o instinto o guiaria até elas.

Mas, quanto mais avançava para este, seguindo a linha das montanhas, mais inquieto se sentia. Naquela direcção ficavam os Picos de Fogo, o que lhe trazia más recordações. Por pouco não morrera às mãos de Christian naquele lugar. Ali encontrava-se o Abismo, que era na realidade uma Porta interdimensional que conduzia a Umadhun, o reino das serpentes aladas.

E se Gerde e os seus tivessem regressado a Umadhun? Descartou aquela possibilidade. Sabia o muito que os sheks detestavam aquele mundo e que só voltariam se não lhes restasse outra opção. E, por outro lado, os bárbaros não teriam podido segui-los até ali.

Contudo, não era bom sinal que a base de Gerde estivesse perto de Umadhun. Ainda havia lá serpentes; serpentes que podiam acudir em auxílio de Gerde e dos seus se fosse necessário.

A noite surpreendeu-o ainda longe do seu destino, mas não se preocupou. Procurou um lugar para dormir, ao abrigo de umas grandes rochas, e montou ali um acampamento improvisado. Ao terceiro entardecer, saiu em busca de algo para comer. A caça correu bem: encontrou uma colónia de washdans a trepar por uma parede rochosa e só teve de se transformar em dragão para voar até eles e capturar um exemplar.

Não foi o que se possa chamar um grande jantar, mas saciou a sua fome.

Quando as luas estavam já altas no céu, Jack deixou que a fogueira se apagasse, aninhou-se no seu refúgio e fechou os olhos.

Foi acordado, de madrugada, por um barulho estranho, algo parecido com um gemido prolongado. Soergueu-se, alerta, e prestou atenção. Se não fosse por .parecer impossível, teria jurado que se tratava do choro de um bebé.

Pôs-se de pé, tenso. Estava há já bastante tempo em Idhún, mas não o suficiente para conhecer todas as suas criaturas. Talvez existisse algum animal que emitisse um barulho semelhante.

Ou talvez fosse realmente um bebé. Em qualquer dos casos, tinha de averiguar.

Deslizou como um fantasma por entre os penhascos, à luz das três luas, guiando-se por aquele barulho que parecia um choro.

Por fim, alcançou o seu objectivo: uma fenda na base da montanha, que outra pessoa estivera a utilizar como refúgio. Escondeu-se entre as sombras e observou a cena com atenção.

Era um bebé que chorava, agora já tinha a certeza. Havia alguém com ele, uma sombra que o embalava e procurava consolá-lo, quase com desespero. No entanto, não dava a impressão de estar muito preocupado com o estado do bebé. Queria antes que se calasse para que não denunciasse a sua presença.

"Demasiado tarde", pensou Jack, franzindo o sobrolho. O desconhecido falava com o bebé numa língua pejada de cicios e assobios: a língua dos szish.

Jack perguntou-se o que faria um szish tão longe dos outros e porque tinha um bebé. Pensou também, por um momento, que, embora o seu idioma fosse incompreensível, dado que os szish falavam uma língua própria que não era nenhuma variante do idhunaico, os seus bebés choravam da mesma maneira que os bebés humanos.

Subitamente, o szish voltou a cabeça para ele. Os seus olhos cintilaram por um instante na penumbra, e Jack soube que o tinha detectado. Como continuava bem escondido, e não tinha feito barulho nenhum, supôs que o calor que o seu corpo emanava o tivesse denunciado.

O homem-serpente deixou o bebé no chão, em cima de uma manta, e dirigiu-se para ele, extraindo uma espada curta do cinto.

Jack saiu do seu esconderijo e tirou Domivat da bainha. O seu fogo iluminou a cena e o jovem aproveitou para dar uma olhadela ao bebé, que continuava a chorar. Agitava

no ar duas mãozinhas rosadas... sem escamas.

"É humano", disse para consigo.

O szish tinha ficado paralisado de medo ao ver o fogo da espada. Mas, fazendo um tremendo esforço, precipitou-se para ele com um grito agudo. Jack interpôs Domivat entre ambos e desarmou-o sem muitos problemas. Finalmente, fê-lo cair aos seus pés, como um fardo.

- Quem és? - exigiu saber. - O que pretendes fazer com esse bebé? O szish respondeu-lhe algo na sua própria língua. Jack presumiu que

provavelmente não entendia o idhunaico. Porém, era evidente que estava aterrorizado. Nenhum szish se teria lançado de forma tão imprudente contra um adversário com uma espada de fogo. Intrigado, Jack aproximou o fio de Domivat do rosto do szish, que gritou de medo. Não sabia grande coisa acerca dos homens-serpentes, mas aquele pareceu-lhe muito jovem.

- Mas és apenas um miúdo! - exclamou, surpreendido, e soltou-o. O szish retrocedeu um pouco, arrastando-se, e resmungou algo. Jack aguçou o ouvido.

- O que disseste?

- Não... miúdo - disse ele, mostrando evidentes dificuldades para pronunciar cada palavra. - Catorze anosss.

- Tens catorze anos? Pois então és uma criança.

Depois lembrou-se de que ele era ainda mais jovem quando se juntara à Resistência, e abanou a cabeça, perplexo. O tempo passava muito depressa e, ao mesmo tempo, tinha a impressão de que tinham decorrido séculos desde então.

- Como te chamas? O que estavas a fazer com esse bebé?

O szish negou com a cabeça, confuso. Jack embainhou a espada e apontou para ele com um dedo.

- O teu nome - repetiu lentamente. - Como... te... chamas?

O outro dirigiu-lhe um cicio ameaçador. Porém, Jack viu o medo no seu olhar, um medo muito mais profundo do que uma espada de fogo, ou até mesmo um dragão, poderia provocar-lhe. Continuou a olhá-lo fixamente, até que o szish cedeu e deixou cair os ombros.

Asssher - disse.

- Assher? Chamas-te assim?

O szish apontou para si mesmo.

- Nome. Asssher - ciciou.

O bebé continuava a chorar desconsoladamente, e Jack não suportou mais. Deixou de prestar atenção ao szish e aproximou-se dele.

Assher fez menção de o impedir, mas acabou por não se mexer. Viu, impotente, como Jack tomava o bebé nos braços e o observava com preocupação.

- O que lhe fizeste? Porque está a chorar?

Assher olhou para ele sem entender. Jack apontou para a criança.

- Bebé. Criança pequena. Miúdo - disse. - O que se passa com ele?

- Miúdo chora - disse Assher. - Não sssei.

- Não sabes porquê?

- Fome... acho.

Jack esquadrinhou a carinha do bebé, à procura de alguma pista. Descobriu então as listas pardas que marcavam a sua pele.

- Um bebé bárbaro - murmurou, surpreendido. - É esta a menina shur-ikaili que Gerde sequestrou?

Voltou-se para Assher com os olhos a relampejar.

- O que é que fizeram com ela? - exigiu saber. - Para que é que Gerde a queria? Responde!

- Gerde! - repetiu Assher, e na sua voz havia um tom de profunda adoração, mas também um medo terrível. - Gerde quer Saisssh - disse, e apontou para a menina.

- Saissh? É assim que se chama? E para onde a levavas, Assher? O que querias fazer com ela?

- Bárbarosss vêm - sussurrou Assher. - Querem Saisssh. Eu levo Saisssh a elesss.

Jack deixou de embalar a menina e olhou para ele, incrédulo.

- Queres devolvê-la aos bárbaros? Por que razão? Gerde sabe?

- Gerde não sssabe - murmurou Assher.

- Compreendo. És um traidor.

- Não traidor! - exclamou o szish, zangado.

Jack olhou para ele, desconcertado. Assher não dominava o idhunaico e era óbvio que não encontraria palavras para explicar os seus motivos, que, de momento, eram

bastante incompreensíveis. Mas ele devia saber porque é que Gerde queria aquele bebé. Convinha mante-lo vivo e retê-lo por perto.

- Mas queres devolver a menina a Shur-Ikail - disse, com suavidade.

- Eu acompanho-te até lá. Irei contigo - acrescentou, para se assegurar de que o tinha entendido.

Assher olhou para ele com uma desconfiança cheia de antipatia.

- Leva Saisssh - disse. - Tu sssozinho. Eu volto. Jack abanou a cabeça.

- Nem pensar. Tu vens comigo. És meu prisioneiro.

Assher devia conhecer a palavra "prisioneiro", porque dirigiu-lhe um breve olhar, pôs-se de pé à velocidade de um raio e desatou a correr.

Praguejando baixinho, Jack deixou de novo o bebé em cima das mantas e saiu à sua procura.

Alcançou-o um pouco mais longe, quando estava quase a embrenhar-se na mata. Lançou-se sobre ele e ambos rolaram pelo chão.

- Ah, não, não vais embora - disse-lhe, quando conseguiu dominá-lo.

- Vais explicar-me quem é Saissh e para que é que Gerde a quer.

- Não sssei nada - ladrou o szish, zangado. - Essstúpido sssangue-quente.

Jack conteve-se para não lhe bater. Agarrou-o pela roupa e levantou-o com alguma brusquidão.

- É um bebé, serpente. Uma menina pequena, indefesa. Se Gerde lhe fez algum mal...

- Gerde cuida Saisssh - replicou ele. - Gerde gosta Saisssh.

- Tem carinho por ela, queres dizer? - soltou-o, perplexo. - Essa mulher não tem sentimentos. Como vai gostar de um bebé? Vais dizer-me que de repente lhe despertou o instinto maternal?

Assher não entendeu as suas palavras, de modo que se limitou a dirigir-lhe um olhar mal-humorado.

- Não quero saber - grunhiu Jack. - Não sei para que me dou ao trabalho, se...

Interrompeu-se, porque o szish tinha-se erguido, tenso como uma mola, e ouvia com atenção e os olhos muito abertos.

- O que...?

- Saisssh não chora - ciciou ele.

Entreolharam-se... e os dois, ao mesmo tempo, levantaram-se e desataram a correr, de volta ao refúgio de Assher.

Quando chegaram, detiveram-se surpreendidos.

Havia alguém mais ali, alguém que tinha tomado o bebé nos braços e o embalava com suavidade. Assher quase se precipitou sobre eles, mas Jack reteve-o ao seu lado, com firmeza.

Quando a jovem levantou a cabeça, sentiu que o seu coração se derretia, como de cada vez que ela lhe sorria daquela maneira. Não podia ser uma miragem.

- Victoria, o que estás a fazer aqui? - perguntou-lhe, com voz rouca.

- Vim buscar-te - respondeu a rapariga. - Alsan e Shail regressaram sem ti... e estava preocupada.

- E como chegaste aqui tão depressa?

Victoria desviou o olhar para um penhasco próximo. No alto, enroscado, descansava um pássaro haai.

Refeito já da surpresa, Jack aproximou-se dela e abraçou-a e beijou-a com ternura.

- É uma menina shur-ikaili - explicou. - Gerde sequestrou-a e lutou por ela quando os bárbaros quiseram recuperá-la.

Não mencionou que Christian também tinha estado envolvido em tudo aquilo. Victoria assentiu, sem afastar os olhos do rosto do bebé. Havia uma expressão estranha no seu rosto, doce e ávida ao mesmo tempo... e algo semelhante a uma sombra de inquietação.

- Tiraste-a a Gerde? - perguntou ela.

- Não, foi ele quem, pelos vistos, a tirou dela - explicou Jack, apontando para Assher, que continuava a olhá-los com desconfiança, um pouco afastado. - Diz que quer devolvê-la aos bárbaros, mas não quis, ou não soube, explicar-me porquê, nem quais eram os planos de Gerde para a menina.

Tomou então consciência de que o szish continuava ali. Poderia ter escapado, aproveitando a confusão do momento, mas continuava ali.

- E tenho a impressão de que agora não pode voltar para juntos dos seus - acrescentou. - Parece que este bebé era muito importante para Gerde. Suponho que deve ter ficado furiosa quando desapareceu e que esteja à procura de ambos.

Victoria assentiu de novo.

- Não parava de chorar - disse então Jack.

- É normal. Tem fome, pobrezinha, e não sei o que lhe dar de comer. Usei o meu poder para a acalmar, mas julgo que isso não vai preencher o vazio do seu estômago.

- O teu poder? Quanto poder, exactamente? Victoria sorriu.

- O mesmo que para um curativo ligeiro. Não lhe concedi a magia, se é isso que queres dizer. Não é necessário, porque esta pequenina já é uma feiticeira. E o rapaz também - acrescentou, olhando para Assher.

Jack olhou para ambos, surpreendido.

- Como sabes?

- Gerde usou o meu corno para isso - respondeu Victoria simplesmente. - Há algo da minha essência em ambos, embora seja apenas um pouco.

Jack meneou a cabeça, um tanto ou quanto preocupado.

- Não há dúvida de que Gerde está a tirar partido do teu corno, Victoria. Entendo que queira ter alguns feiticeiros szish entre as suas fileiras, mas porque foi roubar uma criança bárbara e conceder-lhe a magia?

Victoria não respondeu. Jack ficou durante um momento a olhar para ela, pensativo. Havia alguma tristeza nos seus olhos.

- Estás a pensar em Christian? - perguntoulhe com suavidade. - Achas que ele sabe o que Gerde está a tramar?

- É possível - assentiu Victoria; ergueu então a cabeça, decidida. - Se vamos devolver esta criança, temos de o fazer o quanto antes. Gerde não tardará a encontrar-nos.

- Agora já não tenho a certeza se é boa ideia. Se a levarmos para juntos dos seus, Gerde irá encontrá-la de qualquer forma. Talvez o melhor seja levá-la connosco, pelo menos até descobrirmos o que se está a passar.

- Mas não posso alimentá-la, Jack. E Gerde podia. Bem, a bebé está saudável, olha para ela. Foi o szish que não lhe deu de comer, certamente porque não sabia como cuidar dela, mas Gerde tratava-a bem.

- Em Vanissar há mulheres que cuidarão dela, Victoria. E agora que eu sei que Gerde se dá a tanto trabalho por ela, não me atrevo a devolve -la. Shur-Ikail será o primeiro sítio onde irá procurá-la. Quando a encontrar, os bárbaros lutarão para a conservarem, e Gerde irá matá-los a todos. Mas ela não sabe que nós a encontrámos, de modo que podemos escondê-la.

Victoria olhou para ele durante um momento, duvidosa. Depois, assentiu.

- Muito bem, então vamos levá-la para Vanissar. Empreenderam a viagem de regresso quase de imediato. Jack não se atreveu a transformar-se em dragão, não fosse Gerde ou os sheks detectarem-no, e também não podiam montar todos no pássaro haai, que só suportaria duas pessoas sobre o seu dorso. Jack sugeriu deixar Assher para trás, mas Victoria opôs-se.

- Se o encontram, matam-no, Jack. De modo que avançaram a pé.

A jornada seguinte foi longa e difícil. Avançaram junto das montanhas, protegidos pela sombra dos grandes picos de pedra. Era um trajecto duro e complicado, ainda mais levando um bebé, mas pareceu-lhes mais seguro.

Saissh continuava faminta, e Jack e Victoria não tinham a menor ideia de como resolver o assunto. Não tinham leite para lhe dar, nem nada apropriado para a sua boquinha sem dentes, embora lhe tivessem dado água para beber, o que pareceu aliviá-la, em parte.

Quando o terceiro dos sóis se pôs no horizonte, estavam cansados e desanimados, e parecia-lhes que não tinham avançado muito.

- Quando atravessarmos as montanhas e entrarmos em Nandelt, vou transformar-me e regressaremos a voar - prometeu Jack, Victoria não disse nada. Deixou cair a cabeça no seu ombro, exausta, enquanto Saissh puxava um dos seus caracóis, talvez para chamar a sua atenção, talvez porque estava aborrecida.

Tinham-se agachado em volta de uma fogueira acesa à entrada de uma pequena caverna. A uma distância prudente, estava Assher, que os olhava com desconfiança. Não tinha falado durante todo o dia, embora Jack suspeitasse que os escutava com atenção e procurava entender o que diziam.

Estavam já meio a dormir quando Saissh desatou outra vez a chorar.

Victoria acordou estremunhada e embalou-a nos seus braços, procurando acalmá-la. E conseguiu, em parte. A menina deixou de chorar, mas parecia nervosa, apesar do cansaço.

- Não vai adormecer - murmurou Victoria. - Tem demasiada fome.

- Deixa-me pegar-lhe.

Jack tomou-a nos braços e fez-lhe caretas até que conseguiu que sorrisse.

- Talvez devesses cantar-lhe uma canção de embalar - sugeriu Victoria.

- Eu? Que ideia, canto muito mal.

- Isso não é verdade.

- Sim, é, e por isso nunca canto em público, a não ser que alguém me ouça às escondidas - acrescentou, lançando-lhe um olhar de reprovação; Victoria sorriu. - Contava-lhe um conto, mas agora não me lembro de nenhum. E tu?

Ela encolheu os ombros. Reparou então em Assher, que os observava com atenção.

- Conheces algum conto para crianças, Assher? - perguntou-lhe.

- Victoria, se mal conhece o nosso idioma... O szish olhava para eles, desconfiado.

- Conto para Saisssh - disse, surpreendendo-os a ambos. - Mãesss ssszish sssabem contosss para criançasss. Eu sssei.

- Vês? - disse Victoria a Jack.

Ainda receoso, Assher aproximou-se e sentou-se junto deles. Estendeu um dedo para acariciar o queixo do bebé, pensativo. Provavelmente estava a tentar organizar as suas ideias e encontrar palavras suficientes para relatar a história que tinha em mente.

- Conto para criançasss - disse. - Conto da Sssombra Sssem Nome.

- Que título estranho para um conto infantil - comentou Jack, mas Victoria fê-lo calar-se.

Assher fez várias tentativas para começar a relatar a sua história, mas acabou por sacudir a cabeça, derrotado. Seguindo um impulso, Jack tirou o seu amuleto de comunicação e entregou-lho.

- Toma - disse-lhe -, põe-no. com isto, falarás o nosso idioma.

Assher olhou para ele, desconfiado, mas o sorriso de Victoria pareceu sossegá-lo um pouco. Ainda hesitante, colocou o pendente.

- Que tal agora? - perguntou Jack. Assher olhou-o, um pouco surpreendido, e voltou a contemplar o amuleto com um certo respeito.

- Consssigo falar como osss sssanguesss-quentesss - disse com alguma cautela.

- com um sotaque horroroso, mas sim - assentiu Jack. - Não sei porque é que não me tinha lembrado disto antes.

Assher dirigiu-lhe um olhar cheio de antipatia. Mas naquele momento o bebé começou a fazer beicinho outra vez e Jack voltou a embalá-lo.

- Não choresss - disse o szish. - O conto é bonito. Era o meu favorito quando era criança.

Nem Jack nem Victoria disseram uma palavra. Pensativo, Assher começou a falar.

- Houve uma vez uma Sssombra Sssem Nome. Vagueava pelo mundo, sssozinha e confusssa. Não sssabia de onde vinha, nem quem era, nem ssse havia outrasss sssombrasss como ela. Tinha-ssse perdido.

" Tinha tentado falar com asss sssombrasss que osss objectosss projectavam, mas eram sssombrasss mortasss que não ressspondiam àsss sssuasss perguntasss. "Não haverá no mundo ninguém como eu?", perguntava-ssse a sssombra.

" Por um tempo, desssejou ssser como aquelasss sssombrasss mudasss. Qualquer coisssa, se asssim essscapassse da sssolidão. Por issso perguntou a uma rocha ssse podia ssser a sssua sssombra. "Eu já tenho asss minhasss trêsss sssombrasss", disse a rocha. "Não precissso de maisss nenhuma." A Sssombra Sssem Nome perguntou: "E porquê?" "Porque há trêsss sssóisss", disse a rocha. "Por issso todasss asss rochasss têm de ter trêsss sssombras." A Sssombra Sssem Nome disse que talvez houvessse outra rocha sssó com duasss sssombras, ou até messsmo uma, e que precisssassse de uma terceira sssombra. A rocha recomendou-lhe que perguntassse ao Senhor da Montanha, que conhecia todas asss rochasss do mundo.

" A Sssombra Sssem Nome procurou o Sssenhor da Montanha; mas, quando por fim o encontrou, essste não foi nada amável com ela. "O que essstásss a fazer aqui?", perguntou-lhe, com uma voz terrível que sssoava como centenasss de pedrasss a rolar por uma ladeira. "Esss apenasss uma sssombra, não podesss deixar-te ver debaixo dosss sssóisss. O teu lugar é a essscuridão de onde procedesss."

" O Sssenhor da Montanha asssussstou tanto a Sssombra Sssem Nome que esssta fugiu e não voltou a aproximar-ssse dasss rochasss. Ela continuou então o ssseu caminho. E um dia atreveu-ssse a aproximar-ssse de uma árvore e a perguntar-lhe ssse podia ssser a sssua sssombra. "Não sssei", disse a árvore. "Eu já tenho asss minhasss trêsss sssombrasss e não sssei ssse o Sssenhor do Bosssque me permitiria ter uma quarta sssombra." A Sssombra Sssem Nome foi ver o Sssenhor do Bosssque, mas essste gritou ao vê-la. "Vai-te embora! Vai-te embora! Sssai daqui! Não deviasss exissstir!" O Sssenhor do Bosssque era terrível e poderossso e a Sssombra Sssem Nome fugiu dali e não voltou a aproximar-ssse das árvoresss.

" Mas o tempo passsava e a Sssombra Sssem Nome essstava cada vez maisss confusssa e perdida. Como tinha medo dasss rochasss e dasss árvoresss, quisss esssconder-ssse nasss profundezasss do mar e perguntou a um peixe ssse podia ssser a sssua sssombra. "Não há muitosss peixesss que tenham sssombra", disse o peixe. "Sssó aquelesss que nadam em águasss pouco profundasss, onde a luz dosss ssóisss pode chegar. Mas elesss já têm todasss as ssuasss sssombrasss." A Sssombra Sssem Nome foi ver o Sssenhor do Mar. E o Sssenhor do Mar sssurpreendeu-ssse muito quando a viu. "Ah, com que então essstásss aqui!", dissse, e quisss encerrar a Sssombra numa prisssão húmida e essscura. A Sssombra Sssem Nome, assussstada, fugiu dali e não voltou a aproximar-ssse do mar.

" Pensssou então que podia ssser a sssombra de uma ave. Asss sssombrasss dasss avesss ssão fugazesss e esssquivasss, pareciam ter uma persssonalidade própria, como ela. Então perguntou a um pásssaro ssse podia ssser a sssua sssombra. O pássaro não sssabia. Nem sssequer tinha reparado que tinha trêsss sssombrasss. Osss pássarosss não reparam muito nessasss coissasss. De modo que a Sssombra foi ver o Sssenhor do Vento. Tinha medo, mas tinham-lhe dito que o Sssenhor do Vento era sssimpático. Quando a viu, o Sssenhor do Vento fez troça dela. "Ésss tão insssignifkante!", disse-lhe. "Ésss sssó uma sssombra, não ésss nada, nada importante! E atrevessste-te a apresssentar-te diante de mim! Ah, sssim, ésss muito engraçada...." O Sssenhor do Vento ainda estava a rir-ssse dela quando a Sssombra ssse foi embora dali. Também não voltou a falar com osss pássarosss.

" Dissse para sssi que osss sssóisss eram os ressponssáveisss por tudo aquilo. Elesss criavam asss sssombrasss dasss coisssasss e tinham decidido que eram sssó trêsss. Talvez elesss pudesssem dar-lhe nome ou dizer-lhe de que maneira poderia ssser como asss outrasss sssombrasss.

" Mas osss sssóisss dissseram-lhe que devia falar com o Sssenhor dos Sssóisss, o maiss poderossso e temível de todosss. E a Sssombra Sssem Nome apresssentou-ssse diante dele.

" Mal a viu, o Sssenhor dos Sssóis ficou furiossso. "Lixo, lixo, o que essstásss aqui a fazer?" Procurou esssmagar a Sssombra com o ssseu fogo abrassador, mas a Sssombra esscapou. E desssde aquele dia, deixou de sssair à luz doss sssóisss.

" Uma noite falou com asss luasss. Asss luasss também produziam sssombrasss, não tão nícidasss como ass sssombrasss diurnasss, masss maisss bonitasss. Asss luasss

dissseram-lhe que falasse com o Sssenhor dasss Esstrelasss. A Sssombra Sssem Nome estava canssada, mas não ssabia que outra coissa podia fazer.

" O Sssenhor dasss Esstrelasss não lhe gritou nem a insssultou. Limitou-ssse a olhá-la e a ouvi-la. "Eu não quero ssser uma Sssombra Sssem Nome", disse ela. "Ssse sssou a sssombra de alguma coissa, quero sssaber de onde procedo e porque é que não essstou unida a esssa coisa, como todasss asss outrasss ssombrasss."

"Ah", disse o Sssenhor dasss Esstrelasss. "Não entendesss? Ésss a Sssombra do Sssenhor da Montanha, do Sssenhor do Bosssque, do Sssenhor do Mar; ésss a Sssombra

do Sssenhor do Vento, do Sssenhor dosss Sssóisss e do Sssenhor dasss Essstrelasss. Mas nósss, osss Sssenhoresss, não devemosss ter ssombrasss, por issso, tu não devesss exissstir."

" E o Sssenhor dasss Essstrelasss brilhou com tanta força que a sssua luz quase desssfez a Sssombra Sssem Nome. Mas ela resssissstiu e fugiu dali... e foi esconder-se nas profundezasss do mundo, longe da sssuperfície, num lugar onde ninguém pudessse encontrá-la.

" Ali ficou durante algum tempo, mergulhada na essscuridão. Até que um dia ssse deparou com uma criatura num dosss túneisss. Era uma ssserpente.

" A Sssombra Ssem Nome nunca tinha falado com asss ssserpentesss. Rassstejavam demasssiado perto do chão para ter uma sssombra grande, uma sssombra na qual valessse a pena reparar. Mas aquela ssserpente nem sssequer sssabia o que era uma sssombra, poisss vivia na essscuridão, como ela, e nunca tinha visssto a luz dosss sssóisss. Asssim, a ssserpente e a Sssombra Sssem Nome tornaram-ssse amigasss. E um dia a Sssombra perguntou à ssserpente ssse podia ssser a sssua sssombra. "Claro que sssim", ressspondeu ela. "Dado que nunca tive uma sssombra."

" A partir desse momento, a Sssombra Sssem Nome deixou de ssser a Sssombra Sssem Nome, para ssse tornar a Sssombra da Ssserpente. E diz a hissstória que, quando a ssserpente morreu, a sssombra tinha-ssse tornado tão forte ao ssseu lado que continuou a exissstir e desssde então posssui a forma de uma ssserpente, não importa quantosss sssóisss a iluminem, nem os corposss e objectosss de que ssse aproxime.

Assher calou-se. Há algum tempo que Saissh tinha adormecido, embalada pela sussurrante voz do szish. Jack e Victoria, em contrapartida, tinham dado as mãos e tinham o rosto pálido e o olhar perdido.

- Dizes que é um conto para crianças? - murmurou então Jack, quebrando o silêncio. - Enganas-te, Assher. É a vossa génesis. A origem da vossa espécie... e do vosso deus.

O szish olhou-o de relance, sem compreender.

- A Sombra Sem Nome é o Sétimo, o deus sem nome - explicou Jack.

- E os Senhores são os outros seis deuses. Sabíamos que sempre estiveram em confronto, que o Sétimo andava à procura do seu lugar no mundo e que tem uma curiosa afinidade com as serpentes, mas o que não imaginava... era que o Sétimo tivesse nascido dos outros Seis. A Sombra dos Seis. Algo do qual os deuses quiseram libertar-se e que ganhou vida de alguma maneira.

Assher dirigiu-lhe um olhar cheio de ódio.

- Essstúpido ssangue-quente - cuspiu. - Tão arrogante como todosss os teusss. O nossso deusss não é uma ssimples sssombra, é tão poderossso como todosss os vosssoss deusssesss presssunçosssoss juntosss.

- Obviamente que é - assentiu Jack -, porque procede de todos eles. Não de um, nem de dois, mas sim dos Seis.

- É para isssto que me pedesss que conte um conto? - replicou Assher.

- Para insssultar o meu deusss e as nossasss crençass? Não quero continuar a falar contigo.

Arrancou o pendente com uma certa violência e atirou-o aos seus pés. Depois, voltou ao seu lugar, longe deles, enroscou-se lá e fingiu que dormia. Jack contemplou-o por um momento, pensativo. Entregou a menina a Victoria, que a recebeu com cuidado para não a acordar, pegou no amuleto de comunicação e voltou a pendurá-lo ao pescoço.

- Acreditas mesmo que esse conto infantil é uma espécie de metáfora da origem do Sétimo ou disseste isso só para o chatear? - perguntou Victoria.

- Acredito realmente. Tu não viste nada de familiar nessa história? Victoria inclinou a cabeça.

- A referência à serpente que vivia nas cavernas fez-me lembrar Shaksiss, a serpente lendária que os sheks veneram - disse, acariciando, quase sem dar por isso, a pedra de Shiskatchegg. - Mas poderia ser uma coincidência; não é assim tão estranho que Shaksiss apareça nos mitos dos szish. Por outro lado, que esses Senhores malvados sejam precisamente seis também não tem nada de especial. Para as serpentes, o seis é um número de mau agoiro.

Jack rodeou os joelhos com os braços e apoiou a cabeça neles, pensativo.

- É possível - admitiu -, mas explicaria muitas coisas. Lembras-te do que te contei, do que Domivat me disse acerca da origem dos Seis? Bem, num mundo onde só há um deus, este não encontra concorrência. Mas onde há vários, tem forçosamente de encontrar limites e restrições. Olha para Wina: está a expandir o bosque de Alis Lithban, mas chegará um momento em que se vai deparar com o mar ou com a montanha. Os deuses contêm-se uns aos outros, cada um marca os limites dos demais. Por isso Um e Ema quiseram destruir-se mutuamente; por isso os Seis destruíram Umadhun com as suas disputas.

" Depois criaram Idhún e, para evitar que acontecesse o mesmo, afastaram-se dele... mas deixaram os unicórnios no seu lugar para que continuassem a movimentar essa energia que mantinha o mundo vivo. No entanto...

- No entanto, isso não evitou que continuassem a lutar, pois não?

- Não. Mas imagina que tinham a possibilidade de extrair de si mesmos essa parte destrutiva.

- Pode-se fazer isso?

- Desde que compreendi a natureza do meu ódio pelas serpentes, não houve um só dia em que não tenha desejado arrancá-lo do meu coração replicou Jack, com um sorriso cansado, - Mas, claro, eu sou apenas um dragão e esse tipo de coisas estão fora do meu alcance. Contudo... se fosse um deus... se pudesse fazê-lo... fazia-o.

- "Os Senhores não devem ter sombras" - recordou Victoria com um estremecimento. - Quiseram ser apenas deuses criadores e "libertaram-se" da sua parte destrutiva, do ódio, da escuridão e de tudo isso?

- Ou pelo menos tentaram. Talvez achassem que tinham acabado com isso, mas o certo é que, de alguma maneira, deram vida a um novo deus. Um deus que concentrava todo o mal que havia neles. E desde então, pelos vistos, não voltaram a lutar entre eles, por isso imagino que de certo modo tiveram sucesso. Mas agora têm de acabar com essa "parte má" que se rebelou contra eles. Por isso criaram os dragões e o Sétimo respondeu criando os sheks, ou talvez fosse ao contrário.

Victoria meneou a cabeça, não muito convencida.

- Achas que não foi assim? - perguntou Jack.

- Não sei. O certo é que eu tinha a minha própria teoria, sabes? Acerca do meteorito que caiu em Idhún em tempos remotos. Pensava que tinha trazido o Sétimo consigo, que era um deus... "extra-idhunita", por assim dizer. Por isso não pertencia a este lugar. Mas a tua versão torna-o tão idhunita quanto os outros Seis.

" Por outro lado, a mim os Seis continuam a parecer um tanto destruidores. O Sétimo também é um deus criador, à sua maneira. Não criou os sheks e os szish, depois de tudo? Além disso, eu continuo a achar que as serpentes não são completamente malvadas. As coisas não são assim tão simples.

- Os unicórnios disseram que as serpentes eram a encarnação de todo o mal - recordou Jack.

- Isso foi há muito tempo - protestou Victoria - e, além disso, talvez os dragões tenham interpretado mal as suas palavras. Achas mesmo que são assim tão maus? Que me dizes de Christian, ou de Sheziss, por exemplo? Até mesmo Assher... olha para ele - acrescentou, apontando para o lugar onde o szish dormia, ou fingia dormir. - É assim tão diferente de qualquer rapaz humano? Se fores capaz de olhar para lá do seu aspecto de serpente, o que vês nele?

Jack olhou longamente para ela.

- Não, não acho que eles sejam assim tão maus - disse com suavidade -, mas também não são tão bons como pareces julgar. Não será que no fundo tentas justificar o comportamento de Christian, desculpá-lo por nos ter virado as costas para regressar para junto das serpentes?

- Não, não é isso - aborreceu-se Victoria. - E não mudes de assunto. Jack ergueu-se de rompante, sobressaltando-a.

- O que...? - começou ela, mas calou-se de imediato.

Havia algo no ambiente, uma presença tão poderosa que a fazia estremecer. Ao mesmo tempo captou outra coisa através do anel. "Christian", pensou, inquieta, e ergueu-se também, estreitando Saissh nos braços.

Jack tinha desembainhado Domivat e esquadrinhava a penumbra. Assher, por sua vez, tinha acordado e retrocedia, alerta.

De entre as sombras emergiram duas figuras. A primeira delas era esbelta e diáfana como um raio de lua. Seguia-a a inconfundível silhueta de Christian.

Os músculos de Jack ficaram tensos ao máximo, mas, por uma vez, tal não se devia à presença do shek. Era Gerde quem lhe transmitia uma inebriante sensação de perigo.

- Vejo que encontraram os meus dois fugitivos - comentou ela com um sorriso.

Assher deu dois passos atrás, mas o olhar de Gerde tinha capturado o seu como um íman. O szish tremia violentamente quando começou a avançar para ela, atraído por aquele olhar. Por fim caiu de joelhos diante da fada e disse-lhe algo no idioma dos homens-serpentes. Gerde respondeu-lhe na mesma língua. Hesitando, Assher ergueu a cabeça e olhou para ela, como se não conseguisse acreditar no que lhe tinha dito. Gerde estendeu-lhe a mão e, lentamente, Assher levantou-se e foi para junto dela, ainda a tremer. A fada acariciou-lhe o rosto com um sorriso.

- Já recuperei um - disse. - Imagino que não irão ter a amabilidade de me devolver a menina e que terei de perder tempo para a recuperar à força.

Jack não respondeu. Tinha-se colocado diante de Victoria e Saissh, interpondo Domivat entre eles e os recém-chegados. Victoria, por sua vez, trocou um longo olhar com Christian. Mas não iniciaram nenhum contacto telepático.

- Victoria - disse Gerde. - Devolve-me a minha Saissh.

- O que vais fazer com ela? - exigiu saber Jack.

Gerde olhou para ele como se não acreditasse no que estava a ouvir.

- Achas mesmo que é assunto teu? - atirou-lhe.

- Não é tua - replicou ele - e, além disso, é apenas um bebé. Se pretendes que faça parte de um dos teu planos malignos...

Não acabou a frase, porque, subitamente, alguma coisa o puxou, uma sensação que subiu desde o seu estômago à sua garganta e que o obrigou a dar vários passos para a frente, com uma sacudidela. Lutou para resistir, mas foi completamente inútil. A força que o puxava era tão poderosa que era como procurar opor-se a um rio transbordante.

- Jack! - chamou-o Victoria, quando ele se afastou do seu lado. Mas não teve tempo de o reter.

Quando deu por isso, Jack tinha embainhado a espada e estava à frente de Gerde, contemplando-a absolutamente encantado, convencido de que nunca tinha visto uma criatura tão bela. A fada sorriu lentamente e dirigiu-lhe um olhar avaliador.

- Um dragão - disse. - Que interessante. Sabes, desde que voltei à vida não encontrei ninguém que estivesse à minha altura. Achas que serias capaz de me satisfazer?

Como resposta, Jack precipitou-se sobre ela, desejando estreitá-la nos braços. Gerde deteve-o com um só dedo.

- Calma - ralhou-lhe. - Há que fazer as coisas com um pouco mais de elegância, não achas?

Enquanto Jack tremia como uma criança à frente dela, Gerde deslizou a ponta do dedo pelo seu rosto, percorrendo cada um dos seus traços. Depois, baixou o dedo pelo seu pescoço, até ao peito. E, pouco a pouco, aproximou-se dele e beijou-o.

Jack perdeu o controlo e correspondeu ao beijo, apaixonadamente. Não era capaz de pensar noutra coisa que não fosse Gerde. Tinha-se esquecido por completo de tudo o resto.

Victoria contemplou-os por um momento e depois desviou o olhar para Christian. O rosto dele continuava impenetrável. Observava o casal com certa curiosidade, mas nada mais.

Assher, em contrapartida, olhava para outro lado qualquer. Não conseguia suportar ver Gerde nos braços do dragão.

- Não foi mau - comentou Gerde, separando Jack de si. - Beijar-me -ias outra vez? - perguntou-lhe, sedutora.

- Obviamente - respondeu Jack com voz rouca, sofrendo em cada fibra do seu ser a agonia de já não estar em contacto com a pele de Gerde.

- Cada vez que me pedires.

- Porque és meu, não é?

- Completamente - respondeu ele, muito convencido; continuava a olhar para ela fascinado, como se não existisse mais nada no mundo.

- Demonstra-mo, dragão. Beija os meus pés e jura que és meu.

Jack lançou-se de bruços à frente dela. A simples ideia de a contrariar parecia-lhe inconcebível. Gerde adiantou um dos seus pequenos pés descalços e Jack tomou-o entre as suas mãos, como se fosse um tesouro, e beijou-o com devoção.

- Sou teu - sussurrou. - Juro.

- Que encantador - sorriu a fada; olhou para Victoria. - Importas-te que fique com ele?

Ela dirigiu-lhe um olhar cheio de desprezo frio.

- Não tenho o direito de decidir por ele - disse. - Nem eu nem ninguém. E muito menos tu. Jack não é um objecto, por isso não voltes a tratá-lo como tal. Atreve-te a retirar o feitiço e a perguntar-lhe a ele mesmo se quer ir contigo de livre vontade. A ver o que te diz.

Gerde arqueou uma sobrancelha.

- Comoqueiras.

Jack sentiu, subitamente, como se pudesse respirar depois de estar muito tempo debaixo de água. Abanou a cabeça, aturdido e desorientado. Viu-se ajoelhado diante de Gerde e levantou-se de rompante. Retrocedeu, com a mão no punho da espada.

- O que... que me fizeste, monstro? - gritou, com uma nota de pânico

na sua voz.

- Vês? - disse a fada. - Quer matar-me. Desta maneira, só conseguirá que eu o mate a ele, ao passo que, se o tiver enfeitiçado, pelo menos irei mante-lo vivo enquanto for interessante.

Jack retrocedeu um pouco mais. A cada palavra de Gerde, recordava com mais clareza o que tinha acontecido apenas uns minutos antes. A vergonha cobriu o seu rosto de rubor, mas, ao mesmo tempo, a raiva por ter sido utilizado sufocava-o por dentro. Gerde tinha-o vencido sem lutar, manejara-o como a um boneco sem vontade, humilhara-o. Sem olhar para Victoria, desembainhou a espada e resmungou:

- Sim, quero matar-te, e irei fazê-lo, mesmo que tenha de morrer na tentativa.

Descarregou Domivat sobre ela, com toda a sua raiva, mas algo se interpôs. Um fio liso e frio como o gelo.

- Que diabo estás a fazer? - quase gritou Jack.

- Não lhe toques, Jack - advertiu Christian, com calma. - Para o teu próprio bem.

Os dois olharam-se durante mais alguns segundos. Ainda a tremer de raiva, Jack retirou a espada, com esforço. Christian baixou a sua.

- Que interessante - disse Gerde. - O dragão luta pela sua dama, a serpente protege a sua. Que dizes, Victoria? Deixamos que lutem até que morra um dos dois?

Victoria voltou a olhar para Christian, mas os olhos dele estavam fixos em Gerde e a sua expressão era indecifrável.

- Não - disse. - Seria uma luta cruel e sem sentido. E não vou permitir isso.

- E como pensas evitá-lo? - sorriu Gerde. Vê bem... tal como eu vejo, o dragão tem duas opções: ou me é útil e vive, ou não me serve para nada e morre. Se o mantiver enfeitiçado, talvez...

- Nem pensar! - gritou Jack, procurando dissimular sob uma fachada de fúria o pânico que sentia. - Não te atrevas... não te atrevas a voltar a fazer nada parecido, estás a ouvir?

- Então podes entreter-me lutando contra Kirtash. As lutas entre sheks e dragões são um dos espectáculos mais soberbos de Idhún. Lutarias contra ele? Estás desejoso de o fazer.

- Para te entreter? Nem sonhes.

- Bem, então não és útil. Que pena - suspirou Gerde.

- Não! - gritou Victoria, mas a fada já tinha estendido a mão para ele e uma força invisível fê-lo cair aos seus pés, com um grito de agonia. Não! - gritou Victoria outra vez.

Procurou correr para junto de Jack, mas um muro invisível imobilizou-a, impedindo-a de avançar.

- O que se passa? - perguntou Gerde com frieza. - Não querias que lhe perguntasse a ele? Pois, então, não interfiras. - Voltou-se para Jack, que se contorcia de dor aos seus pés, como se mil chicotes o estivessem a torturar ao mesmo tempo. - O que me dizes? Serás útil?

- N... não - arquejou Jack.

Gerde sorriu. Apenas com um gesto, a dor intensificou-se e o jovem deixou escapar um grito. Contudo, o que mais o torturava não era tanto a dor que ela lhe infligia, mas sim a certeza de que podia matá-lo a qualquer momento com um só dedo.

- Deixa-o em paz! - gritou Victoria. - Tenho a menina! Se acontecer alguma coisa a Jack...!

- O quê? Mata-la? Não tens coragem, Victoria. Matarias um bebé para salvar a vida do teu amado?

Victoria olhou para ela com repugnância.

- Pensava entregar-ta - replicou. - Mas, se fizeres mal a Jack, levo-a para longe e não voltarás a vê-la. - A estrela da sua testa começou a brilhar com intensidade. - Não sei o que queres da bebé, mas estavas a cuidar dela, não estavas? Porque é importante para ti.

- Talvez. Estás a propor-me uma troca?

- Se te devolver a bebé... deixas Jack ir? E como sei que posso confiar

em ti?

Jack fechou os olhos durante uns segundos, extenuado. A dor tinha cessado, mas não tinha forças para se levantar. Quando os abriu de novo, dirigiu um olhar a Christian,

mas ele continuava impassível. "Traidor...!", pensou Jack, furioso. O shek dirigiu-lhe um breve olhar, mas não estabeleceu contacto telepático com ele.

Apesar disso, Jack continuou a centrar os seus pensamentos em Christian, insultando-o mentalmente, apesar de ser Gerde quem o mantinha preso ao seu poder, aparentemente

sem o menor esforço. Jack tinha consciência disso e talvez por esse motivo lhe fosse mais simples concentrar-se na raiva que sentia pelo shek; não se atrevia a olhar

para Gerde, porque a simples lembrança do seu nome fazia com que tremesse de terror dos pés à cabeça.

- Não vou matar o dragão - sorriu Gerde. - Não precisas de saber porquê. No entanto, se não queres que continue a torturá-lo...

- Não quero - replicou Victoria. - Sabes disso perfeitamente.

De repente, foi capaz de se mover. Respirou fundo e avançou até ficar diante dela, com Saissh nos braços.

- A menina pelo dragão - disse Gerde. - Parece-te um trato justo?

- O quê? - replicou Victoria, contendo a raiva. - Queres acrescentar ao lote outro corno de unicórnio?

- É tentador, mas... tenho outros planos para ti - sorriu.

Ergueu a mão e acariciou a face de Victoria. A jovem susteve o seu olhar sem pestanejar, embora por dentro estremecesse de um terror tão intenso quanto irracional.

- Não te preocupes - ronronou Gerde. - Conheço o teu pequeno segredo, mas está a salvo comigo. Interessa-me conhecer o final desta história. Tenho... um interesse

pessoal - acrescentou, com um sorriso sedutor. - Tu entendes-me.

Victoria recuou, pálida.

- Não - advertiu-a.

Sentiu de repente os braços estranhamente leves e apercebeu-se então de que Saissh tinha desaparecido. Escapou-se-lhe uma exclamação de angústia, mas de imediato viu-a nos braços de Gerde.

- Obrigada - disse a fada, trocista. - E diz ao teu dragão que não é prudente contrariar os desejos de alguém como eu. Kirtash já o aprendeu há tempos, não foi assim? - acrescentou, dirigindo um olhar a Christian.

- Voltaremos a ver-nos, Victoria.

A jovem não disse nada. Tinha-se ajoelhado junto de Jack e estreitava-o nos braços. Gerde virou-lhes as costas e perdeu-se entre as sombras, levando Saissh consigo. Assher seguiu-a.

Christian, pelo contrário, aguardou um momento. Os três entreolharam-se, Jack e Victoria no chão, ele, exausto, nos braços dela, e o shek contemplando-os de pé, muito sério.

- És... um maldito traidor - arquejou Jack.

Christian deu meia-volta e afastou-se, atrás de Gerde, mas ainda ouviram a sua voz telepática em cada canto da sua mente:

- Mantenham-se à margem ou da próxima vez não terão tanta sorte. Jack cerrou os punhos, furioso.

Quando ficaram sozinhos e o silêncio os envolveu, Victoria abraçou-o com todas as suas forças e cobriu-o de beijos e de carícias, sem conseguir acreditar que ainda estava vivo. Jack correspondeu ao seu abraço, mas ainda estava dorido, pelo que ela, acariciando-lhe o cabelo, deixou que a sua energia curativa fluísse para ele. Jack fechou os olhos e deixou-se levar.

- Odeio essa mulher - grunhiu. - Odeio-a com todas as minhas forças. E, por muito que tente, não consigo simpatizar com a Sombra Sem Nome. Pelo que vi, começo a lamentar que o Senhor dos Sóis não a tenha triturado com o seu fogo abrasador...

Calou-se ao notar que Victoria estava a chorar. Ergueu-se um pouco, como pôde, e estreitou-a nos braços.

- Calma - murmurou. - Quero que saibas... que o que viste... com Gerde...

- Eu sei o que vi, Jack - soluçou ela. - Não é por isso, não remoas mais neste assunto.

Jack respirou fundo.

- Mas eu não queria tocar-lhe - continuou a procurar justificar. Nem sequer me agrada. Ela...

- Sei o que Gerde é capaz de fazer - cortou Victoria. - Uma vez vi-a a exercer esse poder sobre Christian... e não foi agradável.

- Não sabia - murmurou Jack; mas, por alguma razão, sentiu-se um pouco melhor.

- Na altura o que realmente me magoou foi a ideia de que ele nos tivesse traído a todos - prosseguiu ela. - Foi pouco depois de me... de me torturarem na Torre de Drackwen - admitiu com esforço. - Ao ver Christian com Gerde, tive medo de que tivesse mudado de lado outra vez, e isso magoou-me tanto... não imaginas quanto. Não me dói que vocês se sintam atraídos por Gerde em determinados momentos, Jack. Mas odeio que vos utilize e que anule a vossa vontade. E, no caso de Christian, apavora-me a ideia de que possam manipulá-lo de novo para que se volte contra mim... como nessa altura.

Fechou os olhos ao relembrar a dor que sentira quando o shek a sequestrara para a entregar a Ashran.

- É por isso que desculpas Christian? - perguntou Jack. - Achas que Gerde pode estar a exercer esse controlo sobre ele?

- Não... Não creio.

- E tens medo de que ele te tenha realmente traído - adivinhou Jack. Não porque esteja com outra mulher, mas sim porque essa mulher é tua inimiga, alguém que te fez muito mal... e que poderia voltar a fazer-te.

Victoria estremeceu ao recordar como Gerde a tinha torturado na Torre de Drackwen e por pouco tinha acabado com a sua vida.

- Sei que não me traiu - disse, contudo. - Sei que está com ela por vontade própria, mas ainda assim continuou a proteger-nos... a proteger-te. Se ele não tivesse travado a tua espada, Gerde ter-te-ia matado. E por isso continuo a confiar nele. Odeia que o controlem e o manipulem, e unindo-se a Gerde arrisca-se a cair completamente sob o seu domínio. Além disso, matou-a para que não fosse um perigo para mim, percebeste? Se agora luta por ela, apesar de tudo, deve ter um bom motivo. Um motivo de muito peso.

- É uma forma de ver as coisas - grunhiu Jack. - Mas para mim não chega. Se Christian quer que confie nele, terá de me explicar quais são esses motivos de peso. Não posso confiar nele se ele não confia em mim, e o que é ainda mais importante: não posso confiar nele se ele não confia em ti.

Victoria não disse nada. Jack detectou uma tamanha expressão de desconsolo no seu rosto que a abraçou para a acalmar.

- Não chores, por favor - pediu-lhe. - Sinto muito.

- Não é por ti, Jack, já te disse - sussurrou ela. - E também não é por Christian. Desta vez trata-se de mim.

Jack calou-se, procurando encontrar um sentido para as suas palavras. No final, achou que entendia:

- Eu também tive muito medo - disse-lhe em voz baixa. - E é verdade, não serve de nada descarregar a minha raiva em cima de Christian, ou tentar armar-me em forte. Tive muito medo.

Victoria enterrou o rosto no seu ombro, mas não acrescentou mais nada.

Quando chegaram a Vanissar, dois dias depois, estavam exaustos e sem vontade de falar com ninguém. Alsan veio recebê-los, entre inquieto e zangado.

- Onde é que se meteram?

- Tivemos um encontro com Gerde - murmurou Jack, com um suspiro de cansaço. - É melhor não perguntares.

- Claro que vou perguntar - protestou Alsan. - Achas que podes abandonar o grupo e desaparecer durante dias...?

- Alsan, por favor - cortou Jack. - Dói-me a cabeça, estou exausto e ao mesmo tempo tenho os nervos à flor da pele. Preferiria que falássemos amanhã, importas-te? Eu vou dormir.

Alsan dirigiu um olhar breve a Victoria, que estava de pé, junto a Jack, e que mal tinha falado.

- Antes disso, há algo que quero discutir contigo - disse. - É importante... e é privado - acrescentou, voltando elucidativamente o olhar para Victoria.

- Estarei no quarto - disse ela.

Apertou a mão de Jack com suavidade antes de ir embora. Alsan esperou até que ela desaparecesse pela escadaria acima e então conduziu Jack até uma pequena varanda, para falar com mais privacidade.

- O que tinhas para me dizer? - perguntou o jovem, de uma forma um pouco mais brusca do que a necessária. Ainda não se tinha recomposto do seu encontro com Gerde e continuava de mau humor. - Encontraram mais serpentes noutro sítio?

- Talvez mais perto do que pensávamos - replicou Alsan, cortante. Se não sabes do que estou a falar, talvez Victoria possa dar-te mais pormenores.

- Outra vez Kirtash? - Jack começava a ficar impaciente.

- Jack, estou a falar a sério - cortou Alsan, com severidade. - Victoria está a agir de forma muito estranha ultimamente. Fechou-se em si mesma e esconde-nos coisas. Onde foi na outra noite?

- Na outra noite? - repetiu Jack; recordou então que, antes de ir para a batalha contra Eissesh, tinha acordado de madrugada e ela não estava.

- Desapareceu sem dar nenhuma explicação e fez o mesmo no dia seguinte, enquanto estávamos fora. Ninguém foi capaz de descobrir onde foi. Tu sabes, por acaso?

Jack negou com a cabeça, um pouco confuso.

- Pensava que vocês os dois não tinham segredos - disse Alsan, com ironia. - Talvez tu não lhe dês importância, mas o facto de se encontrar às escondidas com Kirtash parece-me tudo menos inocente. Victoria passou muito tempo com essa serpente e pode ter-nos traído. Tens consciência disso?

- Victoria não nos trairia - protestou Jack. - A sua relação com Kirtash...

- A sua relação com Kirtash é só por si uma traição! - gritou Alsan.

- Desde quando? - replicou o jovem no mesmo tom. - Estamos a falar do mesmo Kirtash que lutou junto da Resistência, que enfrentou Ashran ao nosso lado!

- Foi tudo uma manobra para nos arrebatar Victoria. Ainda não tinhas pensado nisso? Na altura eu estava confuso e fui facilmente manipulado; aceitei-o entre os nossos, mas isso não voltará a acontecer. Jack, não percebes? Kirtash traiu-nos e fê-lo agora porque sabe que a vontade de Victoria lhe pertence. Era esse o seu plano desde o início.

Jack abanou a cabeça, estupefacto.

- Isso é absurdo.

- É? Diz-me, onde está Kirtash agora? O que é que Victoria te esconde?

Jack retrocedeu, confuso. Não pôde evitar recordar que Gerde tinha brincado com ele e que Christian não tinha movido um só dedo para o evitar. Que o shek demonstrara já em várias ocasiões que estava do lado de Gerde... em cujo interior habitava o Sétimo, aquela Sombra Sem Nome que nascera de todo o mal que havia no mundo.

E que Victoria aprovava a sua atitude ou, pelo menos, desculpava-a.

- Estiveram juntos na Terra, sozinhos - recordou Alsan. - Porque é que Kirtash não regressou com ela... connosco?

- Olha, eu confio em Victoria - concluiu Jack, carrancudo. - vou falar com ela se isso fizer com que te sintas mais tranquilo, mas não acho que nos esteja a esconder nada. Se mal te dirige a palavra é porque tu fizeste por isso: vi como a tens tratado desde que voltou da Terra. De certeza que, se fosses mais amável com ela...

- Amável? Jack, o nosso mundo está à beira do colapso e tenho responsabilidades para com o meu reino; não posso dar-me ao luxo de ser simpático.

O semblante de Jack endureceu.

- Pois talvez devesses tentar - replicou, secamente. - Boa noite. Abandonou a varanda e Alsan não o reteve. Mergulhado em pensamentos terríveis, Jack regressou ao seu quarto.

Viu que Victoria estava a dormir profundamente. Certamente tencionara esperar por ele, porque não tinha mudado de roupa. Pelos vistos, devia ter-se deitado na cama, só para descansar um pouco, e o sono tinha-a vencido de surpresa.

Jack não quis acordá-la. Cobriu-a com uma manta, despiu-se e deitou-se ao seu lado, com um suspiro de cansaço.

As palavras de Alsan continuavam a martelar na sua cabeça, mas procurou não lhes prestar atenção.

Acordou horas mais tarde, sacudido por um pesadelo. Nos últimos tempos, tinha-os muito frequentemente. O daquela noite tinha a ver com Gerde.

Inquietou-o verificar que Victoria se tinha ido embora outra vez. Recostou-se na cama e perguntou-se onde teria ido e se costumava fazer aquilo muitas vezes. Ela nunca tinha mencionado aquelas escapadelas nocturnas, pelo que parecia evidente que não considerava necessário comentar isso com ele... talvez porque se tratava de um assunto privado? Jack deu meia-volta sobre a cama, procurando uma posição mais confortável. A sua relação com Christian era um assunto privado, mas, de certo modo, Alsan tinha razão. Se o shek os tinha traído, se lutava realmente contra eles, a relação de Victoria com ele tinha deixado de ser um assunto privado. Para Victoria, isso podia fazer a diferença entre ser uma aliada e ser uma inimiga. E, por muito que os unicórnios fossem neutrais, o simples facto de manter a relação com um e com outro já a fazia implicar-se, para bem ou para mal.

Jack demorou muito a voltar a adormecer, mas, quando o fez, Victoria ainda não tinha regressado. E, quando acordou na manhã seguinte, já se tinha levantado.

Soube-o porque tinha arranjado o seu lado da cama, colocando a manta correctamente. Jack levantou-se, vestiu-se e foi à procura dela.

Encontrou Covan na sala onde costumavam tomar o pequeno-almoço e, para não lhe transmitir a sua preocupação, perguntou-lhe por toda a gente, em geral. Covan contou-lhe que Alsan estava numa reunião com uns embaixadores de Nanetten; que Shail tinha partido dois dias antes para norte, para ir ao encontro dos gigantes que tinham invadido Vanissar; que Gaedalu tinha ido ao templo da cidade, visitar os sacerdotes que o mantinham, e que os Novos Dragões tinham regressado a Thalis no dia anterior. E em relação a Victoria...

- Estava a acabar de tomar o pequeno-almoço quando eu cheguei disse-lhe. - Parecia que não se encontrava bem, como se estivesse doente ou tivesse dormido pouco. Também a achei triste e preocupada. O que encontraram na vossa viagem, rapaz?

Jack inclinou a cabeça com um suspiro.

- Prefiro não falar disso.

- Como queiras - disse Covan, e tratou de continuar a comer o seu pequeno-almoço.

- Alsan julga que Victoria é uma traidora - disse então Jack, sem conseguir conter-se.

Covan olhou para ele.

- A sério? Bem, é dever de Alsan velar pelos interesses da sua gente. É normal que desconfie de alguém que actua de forma estranha ou lhe esconde coisas. Qual é a tua opinião?

- Eu acho que Victoria não está de acordo com Alsan em muitos aspectos - respondeu Jack -, mas duvido que fizesse alguma coisa que pudesse prejudicar-nos. Pelo menos voluntariamente.

Covan sorriu.

- Estou de acordo contigo, rapaz. Não conheço muito bem essa rapariga, mas sei que no outro dia, quando Alsan disse que te tinham deixado para trás, não hesitou por um momento em ir à tua procura. Alsan actuou como um bom líder, preocupou-se com a sua gente e levou-a de volta a casa. Sei que Victoria compreendia a sua atitude, no fundo. Mas isso não impediu que te fosse procurar. Percebeste?

- Acho que sim - assentiu Jack. - vou à procura dela - acrescentou, levantando-se.

Despediu-se de Covan, saiu da sala e continuou à procura de Victoria.

Encontrou-a nas ameias, contemplando a paisagem, pensativa. Tinha coberto os ombros com uma espécie de xaile e estava branca e com olheiras, como se não tivesse dormido. Detectou a presença de Jack e sorriu-lhe.

- bom dia - disse; a sua voz soava tranquila, mas cansada.

- Olá, Victoria - respondeu Jack, pondo-se ao seu lado.

Não a beijou nem a abraçou, e manteve as distâncias. Victoria reparou, mas não fez nenhum comentário.

- Pareces cansada - disse então Jack.

- Um pouco.

- Isso acontece-te por não dormires o suficiente - disse Jack. Victoria voltou-se para olhar para ele, com um brilho de advertência a latejar nos seus olhos escuros. Mas ele continuou a falar:

- Saíste ontem à noite, não foi? - perguntou de forma casual. - Onde foste?

Victoria desviou o olhar.

- Dar um passeio.

- A sério? Encontraste-te com alguém?

- Não tinha nenhum encontro com ninguém, se é isso que estás a perguntar.

A voz dela tinha soado um tanto seca e Jack notou-o. Compreendeu que não tinha começado com o pé direito.

- Victoria, há quem diga que és uma traidora - disse, sem rodeios. - Se continuares a agir com tanto mistério, vais meter-te em sarilhos, sabias?

- Alsan não me assusta, Jack. Farei o que tiver de fazer, com a sua aprovação ou sem ela.

Fez-se um longo silêncio. Por fim, Jack perguntou, um tanto magoado:

- Custa-te assim tanto confiar em mim? O que me estás a esconder? Victoria voltou-se para ele, com os olhos muito abertos.

- Jack! Não acreditas realmente que vos estou a trair, pois não? Ele abanou a cabeça.

- Não, mas... é verdade que tens um segredo. É assim tão pessoal que não podes contar-mo? Até mesmo Gerde sabia! Disse-te que conhecia o teu segredo! Porque é que ela pode sabê-lo e eu não?

Victoria dirigiu-lhe um longo olhar, e Jack percebeu que estava assustada.

- Não... não queria gritar-te. Desculpa. Ela negou com a cabeça.

- Não é por isso. É que... não o contei a ninguém, Jack. A ninguém. Gerde não deveria sabê-lo, e é isso o que me faz medo. Quando me disse aquilo... - Afastou a cabeça bruscamente, mas Jack viu as lágrimas a brilhar nos seus olhos. - O que vou fazer agora?

- Contar comigo, talvez? - sorriu Jack, atraindo-a até si para a abraçar.

- Sim... parece-me justo, porque também diz respeito a ti... embora não saiba até que ponto.

Jack afastou-se por um momento dela e olhou-a nos olhos.

- O que se passa contigo, Victoria?

Ela secou as lágrimas e sorriu. Quando o olhou outra vez havia um novo brilho no seu olhar, uma centelha de alegria contida. E o seu sorriso era caloroso e sereno.

- Estou grávida, Jack. vou ter um bebé.

Aquelas palavras soaram na mente de Jack como marteladas em cima de uma bigorna. Ficou imóvel, sem ser capaz de reagir, e por um momento julgou que até o seu coração tinha deixado de bater. Mas de seguida uma torrente de sentimentos confusos inundou o seu peito.

- Mas como... tens a certeza, Victoria? Ela assentiu, sem uma palavra.

- Mas... não somos muito novos? - conseguiu dizer Jack.

- Devíamos ter pensado nisso antes - replicou ela com um sorriso brincalhão.

- Isto... isto é... - balbuciou Jack, ainda aturdido. - Vais ser mãe? O sorriso dela rasgou-se.

- Se tudo correr bem, sim.

- Caramba... - sorriu Jack, procurando assimilar a notícia. - Não é de estranhar que estivesses assustada. Eu estou... não sei como estou - confessou.

- Não é isso que me assusta - disse Victoria. - Há tempos que sabia que isto podia acontecer e estou preocupada, claro que sim, mas ao mesmo tempo estou contente. Quero ter este bebé. Quero que cresça dentro de mim, quero dá-lo à luz e cuidar dele. Sei que sou jovem, mas também era jovem para lutar numa guerra, no entanto, fi-lo. Agora tenho a oportunidade de trazer vida ao mundo, em vez de morte.

Jack abraçou-a e beijou-a, impulsivamente.

- vou demorar um pouco a habituar-me à ideia - disse -, mas quero que saibas que não vais estar sozinha.

Prometo-te.

Victoria afastou-se um pouco dele, com um suspiro.

- Há outra coisa que deves saber. Algo que não muda as coisas para mim, mas que talvez altere... o teu ponto de vista sobre todo este assunto.

Jack fitou-a por um momento... e compreendeu. Foi como se uma garra gélida lhe apertasse as entranhas, e procurou libertar-se daquela sensação.

- Queres dizer... que o teu bebé não é meu filho?

- Não sei, Jack. Talvez seja teu ou talvez não. Mas, se tu não és o pai, só há outra possibilidade.

- Christian - murmurou Jack. Victoria assentiu.

- Já te disse que para mim não muda nada. Em qualquer caso, será o filho de alguém a quem amo loucamente e vou receber este bebé com a mesma ilusão e o mesmo carinho.

Mas... bom, se Christian for o pai... não terias porque encarregar-te dele. E não to vou pedir.

Jack contemplou-a em silêncio, procurando ordenar as ideias.

- Ele sabe?

Victoria negou com a cabeça.

- Ainda não lhe disse, mas, agora que te contei, vou falar com ele assim que tiver oportunidade.

- E como vais saber...? - Jack não conseguiu terminar a pergunta, mas Victoria entendeu.

- Acho que vou saber quando o bebé nascer e o olhar nos olhos. Saberei reconhecer nele um dos dois.

- Como podes ter tanta certeza?

- É apenas uma intuição, mas acho que é correcta.

Jack não disse nada. Continuou a pensar, assimilando tudo aquilo.

- Disse-te antes que para mim não muda nada - acrescentou Victoria e é verdade. Mas o que aconteceu no outro dia talvez mude alguma coisa.

- O facto de Christian te ter abandonado por Gerde? - disse Jack, com ironia.

- Não - negou Victoria -, mas Gerde saber disso. E deixou-me ir justamente por isso. Disse que tinha um interesse pessoal, e sei a que se refere. Não posso saber que tipo de ser nascerá de mim, mas se herdar os meus poderes... e também for filho de Christian, e possuir parte da alma de um shek...

- Pertence à sétima deusa, em parte - entendeu Jack. - De modo que vai esperar que dês à luz e, se for meio-shek ou só uma parte shek e se, ainda por cima, possuir algum poder do unicórnio...

- Tentará tirar-mo.

- É uma boa forma de saber quem é o pai - comentou Jack. - Se Gerde não o levar, então é porque... desculpa - interrompeu-se, ao ver que ela tinha ficado triste outra vez. - Sou um bruto. Não devia ter dito isto. É só que... bom, tudo isto é novo para mim e, além disso...

- Sabia que não encaixarias bem a possibilidade de ir dar à luz um filho de Christian - disse Victoria. - E entendo-o perfeitamente... é normal.

Jack abanou a cabeça.

- bom, mas no meu caso não deveria sê-lo. Aceitei que o amas tal como a mim, de modo que devia estar preparado para enfrentar todas as consequências. É só que...

Não foi capaz de continuar. Victoria dirigiu-lhe um sorriso cansado.

- Nem todos somos capazes de pôr a racionalidade à frente das emoções, Jack - disse-lhe com suavidade. - Nem todos somos sheks.

Jack suspirou.

- Preciso de um pouco mais de tempo.

Victoria assentiu. Jack apertou-lhe o braço, com carinho, e voltou a entrar no edifício. Ela tapou-se um pouco mais e deixou deslizar o seu olhar pelos telhados da cidade que se estendia aos seus pés.

- Imagino que a esta altura já deves saber que foi uma estupidez suspirou Gerde.

Assher não disse nada. Não foi capaz. Tinha-se inclinado diante dela, a tremer de medo, e não ousava olhá-la nos olhos.

- O que pretendias fazer com a menina, Assher Porque é que a entregaste ao dragão e ao unicórnio?

- Não sabia quem eram - jurou Assher. - Queria devolvê-la aos bárbaros. Queria devolvê-la porque...

Não conseguiu continuar. Gerde suspirou de novo e inclinou-se junto dele. Pousou uma mão em cima do ombro do rapaz e acariciou-lhe suavemente a face com os dedos.

- Por acaso estavas com ciúmes? Achavas que tinhas deixado de ser o meu escolhido?

- Eu... fui estúpido, minha senhora... - começou Assher. Gerde interrompeu-o:

- Mas tinhas razão. Os planos que tinha para ti deixaram de fazer sentido há tempos, por isso descurei a tua educação. No entanto... Kirtash fez-me ver que talvez ainda tenha de recorrer a esses planos. Por isso dá graças: ainda podes ser o meu escolhido. Mas isso não depende de ti, nem de Saissh, mas sim de o nosso grande projecto chegar a bom termo... ou

não.

Assher engoliu em seco. Não entendia o que Gerde lhe estava dizer, pelo que não se atreveu a fazer nenhum comentário.

- Escolhi-te porque és jovem e dedicado, porque tens talento como feiticeiro - prosseguiu Gerde, com uma suavidade que deixava entrever uma ligeira ameaça. - Podias chegar a ser o feiticeiro mais grandioso que os szish viram, e isso interessa-me. Mas lembra-te de que ainda és apenas uma criança. Posso continuar a fazer testes e encontrar outro szish promissor. Posso entregar-lhe a magia e posso educá-lo e treiná-lo para que seja o meu escolhido. Ainda não és imprescindível, por isso, se estivesse no teu lugar, tentaria não me decepcionar.

Assher tremia. Tinha a boca seca e disse, com esforço:

- Não... voltarei a decepcionar-te, minha senhora. Gerde riu-se para dentro.

- Claro que não - sorriu.

Num gesto rápido e enérgico, abriu a camisa de Assher, descobrindo o seu peito. O szish fez tenção de retroceder, por instinto, mas dominou-se e permaneceu onde estava. Ainda sorrindo, Gerde estendeu um dedo e tocou com a ponta na pele escamosa do jovem.

Uma dor insuportável percorreu Assher de cima a baixo, como se uma violenta corrente eléctrica o sacudisse. Sufocou um grito, mas não pôde reprimir o espasmo que convulsionou o seu corpo.

- Não gostas? - sorriu Gerde. - Mas se mal começámos.

Deslizou o dedo pelo peito nu de Assher. O seu simples contacto fundiu as escamas da pele do szish e chegou até à carne.

Assher procurou retroceder, cobrir o peito com os braços, deixar-se cair e rolar pelo chão... mas não foi possível. Estava quase completamente paralisado. A única coisa que podia fazer era gritar... e foi o que fez.

Gritou com toda a força dos seus pulmões, enquanto Gerde traçava um símbolo indelével sobre a sua pele, infligindo-lhe uma dor insuportável.

A tortura não durou muito, mas para Assher tornou-se eterna. Quando, por fim, voltou a ser senhor do seu corpo, não teve forças para se manter de pé e caiu de joelhos aos pés de Gerde.

- Vês? - disse ela, dirigindo-lhe um sorriso encantador. - Agora nunca mais te esquecerás de que és meu.

A tremer, Assher baixou a cabeça e viu o que a fada tinha feito.

O nome de Gerde, gravado em caracteres da língua dos szish, aparecia claramente sobre o seu peito; tinha-se esmerado em cada traço e não havia dúvida de que era uma autêntica filigrana... mas não deixava de se tratar, também, de uma horrível cicatriz que o marcaria para toda a vida.

Assher cerrou os dentes, procurando conjurar assim o intenso ardor que a ferida lhe provocava. Gerde inclinou-se junto dele e sussurrou-lhe ao ouvido:

- És meu... o meu eleito. Não era isso que desejavas?

Assher desejou gritar, fugir... uma parte dele quis mesmo bater-lhe. Mas engoliu em seco, fechou os olhos e inspirou profundamente. A dor foi retrocedendo pouco a pouco.

O nome de Gerde gravado sobre a sua pele... O jovem szish sorriu. Foi apenas uma careta, mas Gerde gostou, porque lhe retribuiu o sorriso.

- Sim, minha senhora - disse Assher com autêntica devoção. - Muito obrigado. Não sou digno de...

- Não, não és digno - cortou ela -, mas vais ser. Porque da próxima vez, rapaz, não serei tão compreensiva. Ficou claro?

Assher assentiu, ainda a tremer. Gerde sorriu... mas, subitamente, deixou de lhe prestar atenção e ergueu a cabeça. À entrada da sua árvore -casa estava Christian.

- Podemos falar? - perguntou o shek, com suavidade.

- Claro que sim - sorriu Gerde. - Vai ter com o mestre Isskez - ordenou a Assher, que tinha voltado a cobrir o peito e olhava para Christian com uma certa antipatia. - Mas volta ao pôr do primeiro dos sóis. vou ver o que aprendeste.

Assher assentiu. Custou-lhe um pouco pôr-se de pé; quando o fez, saiu da árvore esforçando-se por não cambalear.

Quando ficaram sozinhos, Gerde voltou-se para Christian.

- De que querias falar? Christian inclinou a cabeça.

- Os observadores dizem que Wina se desviou para este. E parece que se voltou a detectar a presença de Yohavir sobre os céus de Celestia. Por enquanto continua estável; limita-se a... girar e girar como um enorme torvelinho, demasiado alto para causar estragos, mas demasiado perto de nós para que não me sinta inquieto.

- O que queres dizer com isso? Que devíamos apressar-nos? - Gerde suspirou. - Eu sei, Kirtash... mas ainda não estamos preparados. Falei com Ziessel; procurou um lugar na Terra para nós, mas ainda precisa de um pouco mais de tempo...

- Não me refiro a isso, e tu sabe-lo.

Ambos trocaram um longo olhar. Finalmente, foi Christian quem teve de baixar os olhos.

- Acontece que o teu plano magnífico tem uma falha, Kirtash - disse ela. - Cada vez que abandono o meu corpo... cada vez que utilizo o plano astral... estou a descoberto. Assim não consigo ir muito longe. Se os Seis me descobrem antes de ter obtido resultados, estaremos perdidos.

- Eu sei. Mas há que correr riscos se queremos obter resultados. Gerde fitou-o.

- Talvez o tente - disse por fim. - Talvez... quando tiver posto alguma ordem aqui. Eissesh e os seus chegaram aos Picos de Fogo quando eu estava fora, à procura de Saissh... Começam todos a ficar nervosos e não posso permitir-me mais ausências. Embora esta tenha valido a pena - riu. - Quem diria... a pequena Victoria, como estava tão caladinha,

não é?

Christian franziu o sobrolho.

- Não sabes? - sorriu Gerde. - Então é provável que não estejas tão envolvido como eu julgava. Que pena; terei de os matar aos três, depois de tudo.

Christian não perguntou o que havia a saber. Inclinou brevemente a cabeça perante Gerde e saiu da árvore-casa, silenciosamente como um fantasma.

Alguma coisa estava a abrasar o deserto.

Até mesmo os mais cépticos tiveram de reconhecer que essa coisa existia, porque poucas coisas podiam queimar algo que não podia arder e era óbvio que a própria areia derretia à passagem daquela estranha ameaça.

Tinham procurado o lugar onde Rando se tinha despenhado com Ogadrak e dali tinham procurado o rasto da bola de fogo. Já não estava no mesmo lugar, mas não demoraram a encontrar marcas da sua presença. A areia do chão estava completamente queimada e tinha cristalizado, formando uma estranha camada vítrea que desconcertava os yan, acostumados a caminhar descalços sobre as ondulantes dunas.

Não formavam um grupo muito numeroso. Liderava-os Goser, que, como de costume, não perdia uma única expedição, e apenas dois dragões os vigiavam do ar. Um era o de Rando... e o outro não era o de Kimara.

A semi-yan tinha optado por ir com eles, mas não pelo ar. Tinha preferido deixar Ayakestra na base para seguir, junto a Goser, o rasto da esfera de fogo ao nível do chão.

Do ar via-se claramente que se tinha deslocado. Havia apenas que seguir o vasto caminho de areia cristalizada que deixara à sua passagem.

Mas aquele não era o único sinal da sua presença. À medida que avançavam, atemorizados, os rebeldes viram os cadáveres carbonizados das criaturas que tinham tido a infelicidade de se atravessar no caminho daquela coisa. O que mais os impressionou foi ver o corpo sem vida de um swanit, literalmente calcinado sob as placas da sua dura carapaça, que se tinham fundido com o calor como se fossem de manteiga. Perto da criatura encontraram o cadáver de um explorador yan que tinha cometido a imprudência de se aproximar demasiado, talvez levado pela curiosidade que o quarto sol lhe provocava, talvez tentado pela possibilidade de obter facilmente uma carapaça de swanit.

Quando os sóis já começavam a pôr-se, os rebeldes depararam-se com outra cena que os chocou ainda mais.

Uma das tribos nómadas perdidas também se tinha aproximado demasiado daquele misterioso sol.

O espectáculo era dantesco. Os yan tinham ardido como tochas, junto com as suas tendas, pertences e animais. Os corpos estavam irreconhecíveis. Dava a impressão de que tinham procurado escapar daquele calor infernal, mas não tinham sido suficientemente rápidos. Talvez os tivesse surpreendido enquanto dormiam, ou talvez tivessem esperado até ao último momento, com o objectivo de ver o que era exactamente aquele coração de fogo que se aproximava.

Rando não sabia. Só sabia que o que provocava aquilo, fosse o que fosse, era terrível e imparável.

Ele e o outro piloto tinham pousado perto da tribo massacrada e tinham-se juntado ali aos outros rebeldes. Rando chegou a ver Kimara a soluçar nos braços de Goser e dois ferozes guerreiros yan sentados sobre a areia cristalizada, com o rosto oculto entre as mãos, talvez para esconder as suas lágrimas, talvez nauseados pelos fedor a morte.

- Que forma tão horrível de morrer - murmurou o outro piloto, impressionado.

Rando aproximou-se de Goser e de Kimara e disse, com suavidade:

- Não faz sentido continuarmos aqui.

O yan e a mestiça fitaram-se. Os habitantes do deserto tinham como costume incinerar os seus mortos, mas duvidavam que alguém tivesse coragem para voltar a pegar

fogo àqueles cadáveres.

- Aareiavaienterrarosseusrestos - disse Goser, e Kimara assentiu, aliviada. - Asserpentesvãopagarporisto.

Rando suspirou, exasperado.

- Olha à tua volta - atirou-lhe. - Achas mesmo que os sheks conseguiam fazer isto?

- Eles atacam com gelo - murmurou Kimara, pensativa. - Como quando destruíram a nossa base.

-Poracasoconhecesalgumaoutracoisanestemundocapazdefazeralgoassim? - inquiriu Goser, e os seus olhos de fogo brilharam com mais intensidade.

Vais acabar por chegar lá - disse Rando, sombrio. Prosseguiram o seu caminho, com o coração apertado, mas ao mesmo tempo aliviados por deixar para trás aquela cena macabra.

 

             UMA PAUSA PARA RESPIRAR

Avançavam lenta e pesadamente, quase sem parar. Escolhiam caminhos largos e desimpedidos, porque eram mais cómodos para eles, pelo que muita gente os viu. Embora quase todos tivessem fugido ao vê-los, o certo era que não havia nada a temer. Tinham um aspecto imponente, isso era verdade, e poucos habitantes de Nandelt alguma vez tinham visto um de perto. Por isso, uma comitiva de centenas de indivíduos não podia deixar de chamar à atenção. Apesar disso, os corajosos que ficaram a observá-los tiveram uma decepção. A não ser que se atrevessem a atravessar-se no seu caminho, os recém-chegados não prestavam atenção aos humanos. Limitavam-se a seguir viagem; atravessavam as aldeias sem cumprimentar ninguém, o que também não era assim tão estranho, dado que a maioria se escondia ao vê-los.

Os poucos que ousaram dirigir-se a algum deles obtiveram, para sua surpresa, uma resposta simpática. Estavam de passagem, diziam. Não, não tinham intenção de ferir ninguém, respondiam, surpreendidos, por que razão fariam isso? Quando se lhes indicava que tinham destruído algumas colheitas debaixo dos seus enormes pés, eles mostravam-se confusos. Para alguns humanos, isso era sinal de que mentiam.

Mas para os que, como Shail, conheciam os costumes dos gigantes, aquela atitude não tinha nada de contraditória.

Não havia campos de cultivo em Nanhai. Poucos gigantes tinham atravessado alguma vez o Anel de Gelo e, portanto, não sabiam até que ponto podia ser devastador o facto de eles "estarem de passagem".

O feiticeiro não teve problemas em localizar a comitiva de gigantes. Obviamente, chamavam muito a atenção.

Iam pelo caminho que conduzia directamente a Lês. No seu trajecto, atravessariam ainda várias aldeias, mas a notícia tinha corrido depressa e, quando os gigantes chegavam a qualquer lugar habitado, não havia ninguém para os receber. À espera de notícias do rei em funções, os cidadãos de Lês estavam a reforçar as defesas da cidade... por via das dúvidas.

Quando Shail finalmente os alcançou, compreendeu como se sentiram os camponeses com que se tinham cruzado. Obviamente, o feiticeiro tinha lidado com gigantes; tinha mesmo desenvolvido uma certa amizade com Yber, o feiticeiro, e com Ymur, o sacerdote do Grande Oráculo. Para não falar de Ydeon, o forjador de espadas. Os três eram impressionantes; até mesmo Yber, que era um pouco mais baixo do que um gigante comum.

Mas ver tantos gigantes ao mesmo tempo...

Shail sentiu-se de súbito muito pequeno. Assustado, sentou-se junto ao caminho, para os ver passar.

Não demorou a compreender que, embora fossem todos na mesma direcção, não formavam realmente um grupo. Tinham decidido que tinham de ir para outro lado e iam, mas cada um por sua conta. Se seguiam todos pelo mesmo caminho, tal devia-se ao facto de esse ser o mais directo.

A maioria não se apercebia da sua presença. Alguns viravam a cabeça e olhavam para ele com alguma curiosidade e, quando Shail os saudava, levantavam a mão para corresponder à saudação, mas pouco mais.

Aproveitou dois dos gigantes terem parado perto dele. Um deles era um menino... um menino mais alto e robusto do que Shail, mas um menino, afinal de contas. Parecia que tinha perdido alguma coisa, porque rebuscava a sua bolsa, sem muito êxito. A mãe esperava ao seu lado, pacientemente.

Nenhum dos dois prestou atenção a Shail até que este os saudou em voz alta. Então levantaram a cabeça e cravaram nele os seus olhos avermelhados.

- Boa tarde, humano - disse a mãe, com uma certa amabilidade. O que trazes?

- Fui enviado para vos dar as boas-vindas ao reino de Vanissar - respondeu Shail. - A todos vocês.

A giganta mostrou-se desconcertada.

- Vanissar? O que é isso? Achava que estávamos em Nandelt.

- Isto é Nandelt - riu Shail. - Mas Nandelt é uma terra tão grande que nós, os humanos, dividimo-la em reinos mais pequenos, e cada um deles tem um nome. Agora encontrarão-nos em Vanissar.

- Entendo - assentiu a mãe. - E dão-nos as boas-vindas, dizes? Que simpáticos. O certo é que não vimos muita gente durante a nossa viagem.

- Têm medo de vocês, sem dúvida, mas não liguem a isso. Não estão acostumados a ver gigantes por aqui.

- Eu também nunca tinha visto um humano - disse o menino gigante, olhando para ele com curiosidade. - E há muitos mais como tu, não há? Virão todos dar-nos as boas-vindas?

- Acho que não. Na realidade, eu venho em nome do rei de Vanissar, que vos saúda em representação de toda a gente do seu reino. Envia-me também para vos perguntar para onde se dirigem e qual é o destino da vossa viagem.

Ela mostrou-se surpreendida.

- Porque quer saber? Não o conhecemos de lado nenhum.

- bom, é normal que uma comitiva de gigantes desperte o interesse de qualquer humano, e mais ainda o de um rei, se essa comitiva atravessa o seu reino.

- Ah - entendeu a giganta. - Quando te referes à "nossa viagem", estavas a falar de todos os gigantes, não é? Não apenas de nós os dois.

- Sim - assentiu Shail, recordando que os gigantes não estavam acostumados a pensar neles como uma colectividade.

O menino puxava a roupa da mãe.

- Mamã, o que é um rei?

- É assim que os humanos chamam àquele que manda em todos os outros, filho.

O menino pareceu achar a ideia muito extravagante, porque sorriu francamente, pensando que a mãe estava a gozar com ele.

- Que manda em todos os outros? Para quê? E como consegue que todos lhe liguem?

- Ia demorar muito a explicar - respondeu Shail -, mas fiquemos só no facto de que o rei de Vanissar representa todo o povo de Vanissar. E envia-me a mim para o representar a ele. Devia falar com o gigante que vos representa, mas suspeito que não o tenham.

- bom - disse a giganta, um pouco perplexa. - Se o que queres saber é para onde vamos nós os dois, dir-te-ei que nos dirigimos para sul, para a chamada Cordilheira de Nandelt.

Contou-lhe o que Shail já suspeitava: que os movimentos sísmicos, as avalanchas e os deslizamentos de terras estavam a tornar Nanhai inabitável e que os gigantes emigravam para lugares mais seguros.

- A nossa caverna ficou soterrada - murmurou a giganta. - Podíamos tê-la desimpedido ou ter procurado outra, mas não me pareceu seguro...

- E optaste por abandonar Nanhai... como muitos outros.

- Suponho que os outros se vão embora pelo mesmo motivo. Não sei, pergunta-lhes tu.

- Um a um? - quase riu Shail.

- Pelo menos, até que tenhamos alguém que nos represente - sorriu a giganta. - Mas não acredito que haja muitos gigantes dispostos a dedicar tanto tempo a conhecer todos os outros, as suas vidas, as suas famílias, as suas situações, as suas opiniões... para poder falar por eles. Isso daria muito trabalho, não daria?

Rindo entre dentes, a giganta prosseguiu o seu caminho, seguida do filho. Shail ficou ali quieto, perguntando-se se realmente ela não tinha entendido o conceito de "rei" ou se simplesmente estava a gozar com ele.

Caminhou durante todo o dia junto dos gigantes, falando com uns e com outros, e obteve histórias semelhantes. Iam para a Cordilheira de Nandelt porque Nanhai não lhes parecia seguro... embora alguns deles tivessem a intenção de se instalar um pouco mais a sul, perto dos Picos de Fogo. Houve um gigante jovem e aventureiro que lhe confiou o seu desejo de conhecer a Cordilheira Móvel. Histórias semelhantes, mas não iguais. Contudo, de momento, os seus passos levavam-nos pelo mesmo caminho.

Excepto a um deles.

Ao cair a tarde, quando subiam uma colina, Shail viu que um dos gigantes se separava dos outros e tomava um caminho que ia para oeste. Desceu a correr pela ladeira e seguiu-o.

Demorou bastante a alcançá-lo. Quando o gigante se voltou, lentamente, cravou os seus olhos cansados no feiticeiro, que estava sem fôlego depois da corrida.

- Estavas a seguir-me, feiticeiro? - perguntou ele.

Shail ergueu a cabeça. Gostaria de dizer que o reconhecera pelo seu rosto, pelo seu aspecto, mas o certo é que foi a túnica que vestia que lhe deu a pista.

- Ymur! - exclamou, gratamente surpreendido.

Era já noite cerrada quando Victoria saiu do quarto. Tinha coberto os ombros com uma capa, embora na realidade não estivesse frio. Atrás deixava Jack profundamente adormecido. Como todas as noites, tinha-se despedido dele com um beijo e uma carícia.

Ainda não lhe tinha dito onde ia quando se escapulia entre as sombras, como uma ladra. Sem dúvida, se ele lhe perguntasse com suficiente insistência, acabaria por lhe contar, embora preferisse guardá-lo para si, pelo menos por enquanto. De qualquer forma, os últimos acontecimentos tinham feito com que Jack se esquecesse quase por completo daquele pormenor.

Enquanto percorria em silêncio os corredores do palácio real de Vanissar, Victoria reflectiu sobre as últimas conversas que tinham tido.

Ambos estavam de acordo em que, para já, era melhor não comentar com ninguém que Victoria estava grávida. Acabariam por se aperceber, sem dúvida, mas ainda faltava bastante para isso e, como estavam as coisas, nem sequer podiam ter a certeza de que Idhún continuaria no seu lugar nessa altura.

Porém, quando falavam disso, faziam planos para o futuro. O mais seguro para Victoria era regressar à Terra, tinha dito Jack, e Christian estaria de acordo assim que lhe contassem aquele segredo que, de momento, só Victoria e ele conheciam... e Gerde.

A jovem tinha replicado que não tencionava ir-se embora sem eles. Não ia deixar para trás nenhum dos dois, outra vez não; ou, pelo menos, não enquanto Idhún não fosse um lugar seguro. Jack protestara, mas, no fundo, compreendia-a. Qualquer um dos dois podia ser o pai do bebé de Victoria. Se não tinha sido capaz de decidir entre um deles, quando aquela escolha dependia só dela, como ia virar as costas a qualquer um dos dois, ou a ambos, agora, naquela situação?

Contudo, se não fossem os três embora, teriam de escolher entre derrotar Gerde, ou permitir que ela se apoderasse da Terra e deixasse Idhún em paz, o que parecia corresponder aos planos de Christian. Nenhuma das duas possibilidades era tranquilizadora.

Acabaram então por falar sobre se seria menino ou menina e que nome lhe poriam...

Porém, a conversa morrera quando ainda só tinham sugerido um par de nomes.

- Não é que não me lembre de mais - dissera Jack. - É que não sei se caberá a mim escolher o nome.

A sua voz tinha soado um pouco mais dura do que pretendia, Victoria demorara a responder.

- Queres dizer que vais esperar nove meses para decidir se o queres ou não? - perguntara então, com suavidade. - E o que vais fazer entretanto? Roer as unhas? Pensar no que vais fazer se tiver os olhos azuis?

Jack desviara o olhar, confuso.

- E se tiver? - replicara. - É melhor iludir-me para depois...?

- Para depois o quê? Jack, queres realmente desinteressar-te até que nasça a criança? Se não for teu filho não tens porque responsabilizar-te por ele, mas... irias odiá-lo, desprezá-lo, ignorá-lo?

- Não sei - reconhecera Jack. - A pobre criatura não teria culpa de ter sangue de shek; isso já é suficientemente mau... - acrescentara, brincalhão. - Por isso acho que poderia ser para ela... "o tio Jack", ou algo parecido. Isso dá-me direito a pôr-lhe o nome?

- Dá-te o direito de comentar as tuas preferências, que serão tidas muito em conta - respondera Victoria. - Não só porque vêm do tio Jack, mas porque poderiam ser as preferências do "papá".

Jack rira-se.

- Tudo isto é bastante confuso - dissera. - Se queres que te diga a verdade, ainda não sei se quero ser papá ou se prefiro ficar-me por tio.

- Então não protestes - rematara Victoria, com um sorriso.

Mas sabia que, embora Jack estivesse a encarar aquele assunto de bom humor, no fundo tinha medo e dúvidas... tal como ela.

A jovem abanou a cabeça e continuou a percorrer o palácio em direcção à escadaria que conduzia à entrada principal. Haveria gente a vigiar, mas não reparariam nela. Se desejasse, ninguém daria por ela.

Porém, deteve-se a meio do corredor, porque ouviu uma voz.

Não costumava prestar atenção às conversas, murmúrios às vezes, que podiam ouvir-se atrás das portas do castelo. Mas desta vez fê-lo, porque a voz era a de Alsan, porque falava bastante alto, como se estivesse alterado... e porque tinha pronunciado a palavra "Kirtash".

Aproximou-se, silenciosa, e prestou atenção.

- Não conseguiremos nada se continuar a esconder-se, isso é evidente. Ainda não consegui que Jack me dissesse se o viu em Drackwen ou não. É demasiado escorregadio... - Fez uma pausa e continuou. - Usá-la como isca? Isso é muito sujo. Não é assim que quero comportar-me agora que tenho a possibilidade de recuperar a confiança da minha gente. - De novo uma pausa. - Talvez, mas não posso arriscar-me.

Parecia estar a falar sozinho e Victoria ainda imaginou que ele tivesse perdido o juízo. Ocorreu-lhe então que o seu interlocutor podia não ter voz. Não era muito provável que Alsan escondesse um shek no seu quarto, de modo que devia tratar-se de um varu. "Gaedalu", pensou Victoria, e continuou a ouvir. Suspeitava que não falavam apenas de Christian... mas também dela própria.

- Essa é outra possibilidade - admitiu Alsan -, mas implicaria mentir, e é algo com que também não estou de acordo. Além disso, teria dificuldades em fingir. Teria de dar explicações a demasiadas pessoas. - Breve silêncio. - Não penso pô-la realmente em perigo! - replicou, levantando um pouco mais a voz; baixou-a de novo para acrescentar: - Se for uma traidora, tomarei medidas para que seja castigada, mas não dessa maneira. Não, Mãe Venerável; tem de haver outra maneira de atrair Kirtash. Um modo mais seguro, quero dizer. É um inimigo perigoso. Se lhe prepararmos uma armadilha, suspeitará imediatamente. Seria muito melhor se conseguíssemos capturá-lo em combate, ou quando estiver desprevenido. Mesmo que tenhamos de esperar...

Alsan calou-se repentinamente, como se lhe tivessem recordado que outras pessoas podiam estar a ouvir. Victoria não ouviu mais nada. Se a conversa continuava, era a nível mental, numa ligação telepática para a qual ela não estava convidada. Afastou-se da porta, em silêncio, e retomou o caminho para o seu quarto.

Esquecera-se por completo de que tinha pensado sair. A conversa que tinha ouvido deixara-a profundamente preocupada.

Sabia que Gaedalu odiava Christian e que Alsan não simpatizava com ele. Mas pareciam muito decididos a unir as suas forças para fazer algo quanto a isso, a ponto de considerarem a possibilidade de a usar a ela, Victoria, como isco para o atrair a uma armadilha. Sim, ele viria certamente em sua ajuda se detectasse que estava em perigo. Mas o que aconteceria depois?

Reflectiu. Alsan era um estratega inteligente, não provocaria um confronto contra alguém como Christian sem um plano prévio. Podiam surpreender o shek, mas não fazer-lhe mal ou capturá-lo, a não ser que contassem com Jack... ou com uma frota de dragões artificiais. Mas Victoria suspeitava que não era isso o que tinham em mente...

com uma sincronicidade arrepiante, Shiskatchegg começou então a emitir uma suave luz palpitante, que sobressaltou Victoria quando já passava no corredor onde era o seu quarto.

Christian estava lá.

Tinha de ser uma coincidência, disse Victoria para consigo. No entanto, não deixava de ser sinistra. Bem, Alsan e Gaedalu estavam ainda a tomar as últimas decisões importantes do seu plano, por isso não estariam preparados para o enfrentar se o descobrissem.

Victoria deu meia-volta e correu ao encontro de Christian, deixando -se guiar pelo sinal do anel.

Encontrou-o nas ameias. Tinha-se sentado entre duas delas e aguardava-a, aparentemente calmo. Victoria sorriu no seu íntimo, recordando aqueles encontros na casa da sua avó. Juntou-se a ele.

- Não devias ter vindo - foi a primeira coisa que lhe disse, porém. Estás em perigo.

Christian inclinou a cabeça.

- Que curioso; eu achava que eras tu quem tinha problemas. Victoria recordou-se da conversa que acabava de ouvir e estremeceu.

- Estou a falar a sério, Christian. Tens inimigos aqui, sabes disso. E acho que podem fazer-te mal.

- Correrei o risco, pelo menos esta noite. Tinha de te ver. Victoria derreteu-se com o olhar intenso do shek, com a sinceridade que impregnava as suas palavras. Suspirou e aproximou-se um pouco mais dele. Era a primeira vez que estavam a sós desde que tinham regressado da Terra.

Procurou recompor-se.

- bom, então já me viste, estou bem. E agora vai-te embora. Christian sorriu.

- Não tão depressa. Percorri um longo caminho, sabias? Vim para te ver, mas também porque tenho de falar contigo... acerca do que houve na outra noite.

Victoria suspirou.

- Jack não te vai perdoar por ficares a assistir enquanto Gerde o manipulava e o torturava - disse, e algo no tom da sua voz alertou Christian para o facto de que também ela o recriminava. - Suponho que havia uma razão. Uma dessas razões que só tu conheces e que não revelas a ninguém.

- Queria que Jack experimentasse o que implica enfrentar Gerde. Não o esquecerá facilmente, de modo que se manterá afastado durante algum tempo.

- Só por isso? E se... e se o tivesse matado?

- Sei que não o teria feito, por muitos motivos. Um deles tem a ver contigo e comigo.

Victoria olhou para ele, interrogativa.

- Jack já não é rival para Gerde. Os Seis não formularam uma nova profecia e isso significa que deixaram de vos prestar atenção, que já não contam com o seu apoio. Se enfrentarem Gerde, não vão conseguir vencer.

Gerde sabe disso. Sem dúvida gostaria de vos matar aos dois, mas sabe que, se te fizer mal, irá perder-me, e ainda precisa de mim. Em relação a Jack... se ele

morresse, eu iria ter contigo e isso obrigar-me-ia a abandonar Gerde, coisa que não lhe interessa para já. Por outro lado, ela considera que Jack é a única coisa que se interpõe entre tu e eu, de modo que não o eliminará, só para me aborrecer. Gosta de me fazer sofrer acrescentou, irónico.

- Guarda-te rancor? Não é uma deusa?

- Desde que não altere significativamente os seus planos, permite-se a si própria esses pequenos caprichos. Além disso - acrescentou -, acho que Jack lhe agradou. Suponho que da próxima vez que a enfrentar, não retirará o feitiço simplesmente por tu lho pedires.

Victoria meneou a cabeça.

- Às vezes custa-me aceitar que sejas tão frio... que racionalizes dessa forma o medo e o sofrimento... que tudo tenha um sentido para a tua mente, até mesmo coisas que nenhum coração assimilaria com facilidade.

- A forma mais simples de explicar é dizer que sou um traidor, não é?

- sorriu ele. - Deve ser um alívio poder dividir o mundo em conceitos simples: traidor ou não traidor... Há uma série de requisitos; se os cumpres, estás num lado, se não, no outro... Mas e se houvesse mais variáveis, um comportamento que não encaixa em nenhum desses dois conceitos opostos?

- Sem dúvida todos te compreenderíamos melhor se nos explicasses que variáveis são essas.

- Não posso fazê-lo, Victoria. Devem ficar com os vossos, com a Resistência, com os sangues-quentes. Não há alternativa para vocês. Por isso não faz sentido que vos conte tudo o que sei.

Victoria desviou o olhar.

- Talvez já seja tarde - murmurou. - Alsan está convencido de que eu sou uma traidora.

Christian esboçou um sorriso sarcástico.

- Ouvi dizer que vão coroá-lo rei - comentou, mordaz. Ela dirigiu-lhe um olhar de censura.

- Foi para isso que vieste? Para mais uma vez me dizeres que me mantenha à margem?

- Não. - Christian ficou repentinamente sério. - Vim porque Gerde sabe algo acerca de ti, algo importante que não me contaste. E quero saber o que é.

Victoria recuou, perturbada.

- Se é um segredo, não tens porque confiar-mo - prosseguiu Christian -, mas, a partir do momento em que Gerde o soube, deixou de ser um segredo. Basta-me prender o teu olhar durante alguns minutos para o saber, mas prefiro que mo contes tu.

Victoria inspirou fundo e ergueu a cabeça.

- Ia mesmo contar-te - disse. - E não por Gerde o saber, mas porque julgo que deves sabê-lo. Estou grávida, Christian.

Ele não disse nada. Olhou-a fixamente, sério e sereno, e os seus olhos azuis pareceram atravessá-la como um punhal de gelo.

- Não sei como Gerde soube - prosseguiu Victoria, incomodada. Quando nos vimos, ainda não tinha contado a Jack, de modo que ninguém sabia além de mim.

- Entendo - disse Christian. - Imagino que Gerde seguirá a tua gravidez com muito interesse, e isso significa que te deixará em paz, pelo menos nos próximos meses. Depois, teremos de vos pôr a salvo, a ti e ao bebé.

- Jack tinha sugerido que fôssemos embora para a Terra.

- Pode ser uma opção, mas agora não é viável.

- Por causa de Shizuko?

- Não, porque Gerde planeia exilar-se lá com todos os sheks e acabaria por te encontrar.

Victoria não disse nada. Sentia-se cansada e ao mesmo tempo aliviada, como se se tivesse libertado de uma pesada carga... embora soubesse que os problemas acabavam de começar.

Christian olhou-a nos olhos e atraiu-a a si para a abraçar.

- Não tenhas medo - disse-lhe. - Juro-te que farei o possível para vos proteger, a ti e ao teu bebé. Mas agora tenho de voltar para junto de Gerde. Por enquanto

teremos de estar separados, mas virei ver-te...

- Não - cortou ela, quase à beira das lágrimas. - Não venhas. Estarás em perigo se o fizeres e eu safo-me bem, a sério.

Christian hesitou, mas acabou por assentir.

- Então deixo-te nas mãos de Jack. Mas promete-me que não vão voltar a aproximar-se de Gerde. Às vezes é um pouco imprevisível. E eu não sou rival para ela. Se mudar de ideia e decidir matar-vos, não haverá nada que eu possa fazer. Por isso não voltem a atravessar-se no seu caminho.

Pôs-se de pé para se despedir dela. Trocaram um longo olhar que culminou num beijo. Victoria abraçou-o com todas as suas forças.

- Tem cuidado - pediu-lhe. Christian assentiu.

Quando estava quase a ir embora, Victoria chamou-o de novo.

- Não me perguntaste quem é o pai do meu bebé - disse-lhe em voz baixa.

Ele olhou para ela, um tanto surpreendido.

- Não me pareceu um dado relevante - comentou. Victoria sorriu.

No dia seguinte, Alsan recebeu notícias de Shail. Através de um mensageiro, fazia-lhe saber que o êxodo dos gigantes era totalmente pacífico e que estavam simplesmente de passagem, atravessando Nandelt a caminho das montanhas do Sul. Também lhe contava que se tinha encontrado com Ymur e que este se dirigia para a Torre de Kazlunn.

- Pelos vistos, tenciona falar com Qaydar - explicou Alsan a Jack e a Victoria. - A situação em Nanhai tornou-se insustentável. Ymur está a começar a levar a sério a teoria de que Ashran se transformou no sétimo deus, ali, no Grande Oráculo, e quer investigar um pouco mais acerca do seu passado. Está convencido de que Qaydar tem de saber alguma coisa dele.

Shail acompanhou-o, porque também tem curiosidade. Por outro lado, há muito que não temos notícias dos feiticeiros de Kazlunn, e o certo é que também eu quero

saber o que andam a fazer, se têm algum plano para reverter a situação ou se simplesmente preferem actuar como se não se passasse nada. O silêncio de Qaydar intriga-me e ao mesmo tempo preocupa-me.

Victoria sorriu ligeiramente. Alsan notou-o e franziu o sobrolho, mas não disse nada.

- Entretanto, os gigantes continuam a avançar e as pessoas estão assustadas; em algumas aldeias, até se prepararam para se defender do que julgam ser uma invasão. Já falei com Covan: vamos dedicar os próximos dias a assegurar-nos de que não há incidentes. Tanawe enviará também dois dragões, e era bom que tu os acompanhasses, Jack. A tua presença tranquilizará os habitantes de Lês quando os gigantes chegarem às portas da cidade.

- Claro, contem comigo - assentiu Jack. - Isso quer dizer, então, que os preparativos para o ataque a Drackwen estão atrasados?

Alsan fê-lo calar-se com um olhar feroz.

- Agradecia-te que não divulgasses os nossos planos, Jack - repreendeu-o, com secura.

O jovem mostrou-se desconcertado.

- Mas se não... - começou. - Mas se não contei a ninguém, excepto a... ah! - Entendeu e olhou de relance para Victoria. - Não vi nenhuma razão para lhe esconder - acrescentou, com mais firmeza. - Ela sabe que há muito que andamos à procura de uma maneira de enfrentar Gerde.

- Nenhuma razão? O facto de Kirtash estar no lado inimigo não te parece uma boa razão?

Victoria levantou-se com ar cansado.

- Não é preciso discutirem por minha causa - disse. - Não é minha intenção intrometer-me nos vossos planos de batalha, como devem saber.

Alsan dirigiu-lhe um longo olhar.

- Se conhecesses os pormenores - disse-lhe -, se soubesses quando vai ser o ataque, com que forças contamos e qual é a nossa estratégia... não contarias a Kirtash?

- Faria o possível para ele não sair prejudicado - replicou ela -, mas não tenho a menor intenção de defender Gerde. E, se não me engano, vocês lutam contra ela.

- E contra os seus aliados - sublinhou Alsan.

- Talvez para ti seja a mesma coisa, mas para mim não é. Eu lutarei contra Gerde se for preciso. E contra os seus aliados. Mas não contra Christian.

Alsan susteve o seu olhar.

- Não há muito tempo pediste-me ajuda para matar Kirtash - recordou-lhe. - Pensei que tinhas finalmente recuperado a sensatez, mas vejo que me enganei.

- Não foi assim - respondeu Victoria com suavidade. - Na altura não tinha recuperado a sensatez, tinha-a perdido. E tu sabias disso e por essa razão não quiseste acompanhar-me.

Alsan não soube o que dizer. com um suspiro, Victoria abandonou a sala, e os dois ficaram a sós.

- Pode-se saber o que se passa contigo? - explodiu Jack. - Não paras de te meter com ela!

- Já descobriste o que te escondia, Jack? - contra-atacou Alsan, implacável.

- Sim - replicou o jovem, com serenidade. - E não tem nada a ver com o que tu suspeitas. De qualquer forma, o que ela me confiou é um assunto pessoal, por isso não posso contar-te. Sei que não confias em Victoria, mas... confias em mim?

Alsan dirigiu-lhe um longo olhar.

- Sim - capitulou, com um suspiro. - Confio em ti, Jack. Espero que saibas o que estás a fazer.

"Eu também", disse o dragão para consigo.

Ali... um pouco mais longe...

Parecia sempre estar um pouco mais longe. Demasiado longe para procurar chegar rapidamente e em silêncio. Gerde contemplou aquelas luzes que brilhavam à distância e desejou vê-las de mais perto. Suspeitava que ali podia estar o objecto que procurava. Se pelo menos...

Estava prestes a dar um passo em frente quando percebeu que havia alguém perto do seu corpo físico. Regressou imediatamente. Tinha motivos para prestar atenção ao que acontecia no plano material, mas desta vez fê-lo mais com alívio do que alarme ou aborrecimento. Embora tivesse deixado claro que não queria que a interrompessem, naquele momento agradeceu a interrupção.

"Mas vou voltar", pensou. "Tenho de ver se o que procuro se encontra mais além."

Pouco a pouco, a sua essência regressou ao seu corpo.

Christian tinha ficado a contemplá-la, sentada no meio daquele hexágono, completamente imóvel, com os olhos em branco. Tinha cravado os olhos no seu esbelto pescoço, desejando fechar as mãos em volta dele e estrangulá-la... voltar a matá-la outra vez e para sempre.

Não havia dia em que não o desejasse. Mas, ao mesmo tempo, o poder que Gerde exercia sobre ele impedia-o de se aproximar mais... a menos que fosse para a beijar.

O jovem tinha conseguido manter as distâncias. Sabia que, quanto mais resistisse a Gerde, mais gozo lhe daria. Poderia ter feito com que caísse rendido aos seus pés com apenas um gesto, como tinha feito com Jack uns dias atrás. Mas então a brincadeira teria terminado.

Christian sabia que Gerde se deleitava a ver como lutava pela sua liberdade, dia após dia. O shek sofria com a ideia de estar à sua mercê; no momento em que isso deixasse de lhe importar, deixaria de sofrer... e Gerde queria que sofresse, que soubesse o que era sentir-se inferior, sentir-se sob o domínio de alguém.

Não era este o único motivo por que não tentaria matá-la. Havia um que para ele era mais poderoso, mais importante do que o desejo.

Os olhos de Gerde recuperaram a sua cor normal. Christian esperou enquanto ela, lentamente, voltava a si.

- Kirtash - murmurou a fada, ainda um pouco aturdida. - O que estás aqui a fazer? Porque é que me interrompeste? Oh - disse de repente, ao entender; o seu rosto iluminou-se com um sorriso. - Já falaste com ela. E então? Disse-te quem é o responsável?

Christian olhou-a fixamente.

- Soubeste que estava grávida só de olhar para ela - disse. - Porque é que precisas que eu te diga quem é o pai do seu filho?

Gerde franziu ligeiramente o sobrolho.

- Não é assim tão difícil detectar uma vida a crescer no interior de uma mulher, Kirtash. Mas é demasiado cedo para poder dar uma olhadela à sua alma. A essência daquele ser é em grande parte humana e está envolvida pela essência da mãe. Enquanto não crescer e se desenvolver mais, não será possível detectar nela vestígios de uma essência de dragão... ou de shek. Presumo que compreenderás a importância que esse dado pode ter para o futuro da criatura...

Os olhos de Christian semicerraram-se até se tornarem em duas finas linhas azuis.

- Não te atrevas a tocar nessa criança - ciciou. Gerde fitou-o, divertida.

- Então afinal é teu? Porque não julgo que sejas assim tão estúpido para me desafiares pelo filho de um dragão.

- É-me indiferente. É o filho de Victoria e isso basta-me.

Gerde levantou-se com um movimento ágil. Sacudiu a cabeleira e olhou-o por cima do ombro.

- Não devia ser-te indiferente. Se for teu filho, também me pertence. Parte da sua alma irá render-me culto sempre, e sabes disso.

- Como podes ter tanta certeza? É o filho de um unicórnio. Os sangues-quentes vão reclamá-lo...

Gerde desatou a rir.

- Kirtash, Kirtash, como podes ser tão ingénuo? Os sangues-quentes não o vão reclamar. Vão rejeitá-lo, procurarão matá-lo se souberem que é em parte shek. Eles são assim - sorriu. - Senão, porque é que estás aqui? Aceitar-te-iam entre eles, apesar de teres uma alma humana? Não, Kirtash. Ninguém esquecerá, nem por um instante, que és um shek. Mas aqui, como podes ver... apesar de seres em parte humano, acolhemos-te entre nós. O que te faz pensar que seria diferente com os teus filhos?

Christian deu um passo atrás.

- Para mim não muda nada. Não quero que tenhas nada a ver com essa criança, nem que lhe faças mal, nem que a manipules...

- Como faço contigo? E como julgas que vais impedir que isso aconteça?

Christian ergueu a cabeça e olhou para ela, desafiador.

- Não te pertence - disse, com serenidade. - Se for em parte dragão, não tens nada a ver com ele. E se tiver o meu sangue... tomarei medidas para que não tenhas poder sobre ele... tal como não tens sobre mim.

- Que descarado! - exclamou ela, lançando-lhe um olhar incendiário.

- Como te atreves a dizer que não tenho poder sobre ti? Queres que te demonstre?

- Podes fazer todas as demonstrações que quiseres. Podes humilhar-me, podes anular a minha vontade... mas há uma parte de mim que nunca será tua, e sabes disso.

Gerde não disse nada, mas o seu rosto tinha-se imobilizado num esgar de raiva.

- Um dia arrancarei esse anel do seu dedo, Kirtash - sibilou. - E nessa altura já não te restará nada. Sim... vou levar essa criança que cresce no seu ventre e irei arrebatar-lhe o teu anel... e depois matá-la. Ela morrerá, mas tu ficarás vivo para poderes sentir saudades dela. E serás meu escravo, de corpo e alma, mas manterei as suas lembranças na tua mente... para que saibas... para que sofras... sempre. Isso será para ti um castigo pior do que a morte, não achas?

Christian não disse nada. Deu meia-volta e saiu da árvore, furioso. Nas suas costas, Gerde ria.

No entanto, alguém tinha escutado toda a conversa escondido nas sombras. Noutras circunstâncias, talvez o tivessem descoberto; mas Gerde costumava estar um tanto desorientada depois das suas viagens pelo plano imaterial e o shek estava demasiado alterado para se preocupar com mais alguma coisa.

"E era para estar", disse Yaren para consigo.

A pequena Victoria ia ser mamã. Que grande notícia.

Gerde tinha interesse nessa criança, de modo que aguardaria que nascesse e manteria Victoria a salvo até lá. Depois, provavelmente, iria matá-la. De forma certeira e eficaz. Não a deixaria viva para que sofresse, porque isso alimentaria as esperanças de Kirtash. Não; iria eliminá-la...

Gerde queria que Kirtash sofresse, e Yaren queria que Victoria sofresse. Que sofresse muito, tal como ele estava a sofrer.

Abanou a cabeça e afastou-se da árvore em silêncio. Noutros tempos, a ideia de abandonar Gerde ter-lhe-ia parecido monstruosa, mas naquele momento não lhe pareceu tão grave. Sabia porquê: a fada já não tinha interesse nele e, portanto, tinha afrouxado o feitiço que o mantinha preso à sua vontade.

A Yaren não lhe parecia assim tão horrível viver debaixo do encantamento de Gerde. Mesmo agora, quando a sua vontade voltava a pertencer-lhe, não entendia porque é que Kirtash a valorizava tanto. O tempo que tinha passado com Gerde não tinha apagado a marca de dor e angústia que aquela magia corrupta tinha deixado na sua alma, mas aliviara-o, em certo sentido.

Lamentou que tivesse acabado. Mas, por outro lado, agora era livre para enfrentar Victoria.

Deslizou pelo acampamento dos szish. Cada passo que dava provocava-lhe dor, como se mil agulhas espetassem cada um dos seus músculos. A magia era como o seu sangue, percorria todo o corpo, e chegava até ao cérebro, enchendo-o de pensamentos lúgubres e nefastos.

"Saberás o que é a dor, Victoria", jurou a si mesmo, esquecendo, como por vezes fazia, que o unicórnio tinha experimentado essa mesma dor, tempos atrás, e que fora o sofrimento do seu próprio coração que ela lhe havia transmitido. "Em breve, saberás."

Não notaram a sua ausência até à manhã seguinte.

Foi a própria Gerde quem perguntou por ele. Procuraram-no por todo o acampamento, mas o feiticeiro tinha desaparecido. A fada não lhe deu grande importância, mas Christian, preocupado, saiu à sua procura. Sabia o quão Yaren odiava Victoria e temia o que pudesse fazer se a encontrasse.

Por isso voou em direcção a Nandelt, mas não encontrou nem rasto do feiticeiro. Não chegou a entrar em Vanissar: era impossível que Yaren tivesse chegado antes dele.

Ia a sobrevoar de novo as montanhas, quando algo despertou a sua atenção: um enorme torvelinho, uma espiral de nuvens que rodavam sobre os Picos de Fogo e avançavam, lenta mas inexoravelmente, em direcção a Drackwen.

Deu meia-volta e regressou ao acampamento.

- Não encontrei Yaren - disse, quando se apresentou de novo diante de Gerde. - Mas...

- Mas viste algo ainda mais preocupante - adivinhou Gerde. - Yohavir vem para cá.

- Parece que sim. E Wina continua a rondar por Alis Lithban, de modo que estamos numa situação muito delicada.

- São os sheks - disse Gerde. - Eissesh e os outros. Estão a entrar e a sair de Umadhun constantemente. Era uma questão de tempo até que um dos Seis os detectasse.

- Então, que fazemos?

Gerde franziu o sobrolho, pensativa.

- Podemos fugir para Raden - disse -, mas é um sítio demasiado aberto para o meu gosto e acabariam por encontrar-nos... Vai-te embora daqui - ordenou-lhe de repente. - Preciso de pensar.

Naquela noite, quando Victoria ia a sair do quarto, a voz de Jack sobressaltou-a.

- Não devias andar por aí de noite, Victoria. Sabes que podes meter-te em problemas.

A jovem voltou-se para ele, um pouco preocupada.

- Não tinha intenção de te acordar - disse em voz baixa. - Lamento. Jack soergueu-se sobre a cama, com um suspiro.

- Não acordaste; é que eu não conseguia dormir.

- Devias descansar. Amanhã vamos sair muito cedo.

- Vamos? - repetiu Jack. - Tu também vais a Lês?

- Se Alsan não se opuser, sim. Jack fitou-a.

- Vem, senta-te ao meu lado - pediu-lhe. - Temos de falar. Victoria assim fez.

- Sei que viste Christian na outra noite - disse Jack sem rodeios. Notei a sua presença no castelo.

Victoria inclinou a cabeça.

- Sim, é verdade. Não te disse porque não queria comprometer-te com Alsan. Já é bastante mau que desconfie de mim.

- Não é que me chateie, mas, se te encontras com ele às escondidas, porque mo escondes a mim também?

Ela riu suavemente.

- Mas não o faço, Jack. Não tinha nenhum encontro com ele, apareceu de repente. Veio porque Gerde lhe insinuou algo acerca de mim e estava preocupado. Mas foi a única vez que estivemos sozinhos desde que regressámos da Terra. Não considero que tenha de te mentir a respeito da minha relação com Christian, sabes disso.

- Falaste-lhe de... do que se passa contigo? - perguntou-lhe Jack em voz baixa.

- Sim, disse-lhe.

- E mesmo assim... foi-se embora? Voltou para junto de Gerde?

- Eu pedi-lhe que fosse. Aqui corre perigo, de modo que...

- Mas... como é que o encarou?

- com bastante tranquilidade. Já o conheces. A única coisa que disse é que teria de encontrar um lugar para pôr o bebé a salvo de Gerde. Falámos da possibilidade de ir para a Terra, mas não lhe pareceu boa ideia, porque Gerde e os sheks planeiam exilar-se lá.

- Sim, e ele está a ajudá-los - acrescentou Jack, bufando. - Suponho que é a sua maneira de salvar Idhún... condenando a Terra. Outra das suas brilhantes ideias.

- Achas que o faz por isso? Os Seis não vão seguir Gerde até à Terra, pois não?

- Acho que não. Mas, ainda assim... o que ele está a fazer não me parece bem. Os humanos da Terra não merecem ter de levar com Gerde, e, além disso, caso o nosso mundo tivesse os seus próprios deuses, como a receberiam? Atirar o problema para outro não me parece uma boa opção.

Victoria não disse nada. Jack olhou para ela.

- E tu? Ias sair, não? Estás atrasada para alguma coisa? Ela negou com a cabeça.

- Ninguém está à minha espera. Ia apenas dar um passeio.

- Dar um passeio? - repetiu Jack, incrédulo. - A estas horas? Todas as noites?

Victoria sorriu.

- Alguma vez saíste de noite para contemplar as estrelas, para ver se vias uma estrela cadente?

- Sim, muitas vezes - respondeu ele, sem entender onde ela queria chegar.

- Passas as horas a olhar para o céu, observando as estrelas - prosseguiu Victoria. - E todas te parecem igualmente bonitas. No entanto, do que estás à espera é de uma estrela especial, uma estrela cadente. Aquela estrela que sabes que só tu vais ver, durante um único instante e unicamente porque estavas a olhar. Alguma vez viste uma estrela cadente? E pediste-lhe um desejo?

- Sim, claro. Como todos.

- Essa estrela cadente é, nessa altura, a tua estrela. E depositas nela os teus sonhos, as tuas ilusões... e possivelmente cumprem-se; ou talvez a estrela não estivesse

a ouvir nesse momento. Não importa; o que conta é que levantas a cabeça para o céu para ver as estrelas, para encontrar essa estrela cadente com que partilhas o

teu coração por um breve instante... mesmo que o desejo que formulaste ao vê-la não chegue a cumprir-se nunca.

Jack dirigiu-lhe um longo olhar.

- É isso que fazes à noite? Procurar estrelas cadentes? Victoria sorriu.

- Mais ou menos. Queres acompanhar-me esta noite? A pergunta apanhou Jack de surpresa.

- Eu? Mas...

- Devias dormir - acrescentou Victoria -, mas se ficares mais tranquilo vendo-o com os teus próprios olhos, então vem comigo. É difícil explicá-lo com palavras.

Jack hesitou, mas acabou por assentir.

- Está bem. Dá-me um minuto para me vestir, depois estou pronto.

Rando foi o primeiro a avistar o quarto sol naquela noite.

Tinha-se adiantado aos outros para reconhecer do ar o terreno, quando, depois de atravessar uma pequena cadeia montanhosa, viu-o ao longe: uma esfera de chamas que batia como se de um coração vulcânico se tratasse.

Não se deu ao trabalho de se aproximar mais. Deu meia-volta, regressou para junto dos outros e falou-lhes do que tinha visto.

- Não poderemos aproximar-nos muito mais - disse. - Por detrás das montanhas estará demasiado calor para poder resistir.

Os yan esboçaram um sorriso de presunção. Passavam a vida a suportar as elevadas temperaturas de um deserto que ardia debaixo de três sóis. O calor não os assustava.

- Lembrem-se dos nómadas - advertiu-os Rando, e o sorriso desapareceu dos seus rostos.

-Já estão todos em Umadhun - disse Eissesh. - Excepto os sheks de KashTar. Sussh não considera que eles estejam em perigo. A sua maior preocupação é agora os rebeldes.

- Teimoso - pensou Gerde; não se deu ao trabalho de falar, porque teria tido de gritar para se fazer ouvir no meio do vendaval que fustigava o acampamento e tinha consciência de que o shek captava os seus pensamentos. - Não entendo porque se agarra tão obstinadamente a esse pedaço de terra ressequida. Já não resta nada para defender.

- Não considera que tenha de retroceder diante dos sangues-quentes. Para ele, os únicos rivais dignos dos sheks eram os dragões.

- Isso é porque não sentiu nas suas escamas a presença de nenhum dos Seis. Mas, quando o sentir... será demasiado tarde. E os szish? - perguntou subitamente, mudando de assunto.

- Não vão chegar a tempo ao Abismo - respondeu Eissesh - mas procuraram refúgio nas montanhas.

- Está bem - assentiu ela. -Já podes ir com eks, Eissesh. Para Vmadhun ou com os szish, o que julgares conveniente. Mas assegura-te de que alguém fica com eles para evitar que se aproximem demasiado da zona dos vulcões.

- E tu? - perguntou a grande serpente, semicerrando as pálpebras.

- Eu tenho os meus próprios planos - limitou-se Gerde a responder.

- Não nos vais acompanhar a Umadhun?

- E arriscar-me a que os Seis me encerrem nesse mundo morto? Nem pensar. Não, Eissesh. Tenho uma ideia melhor. Se correr bem, vai dar-nos algum tempo para respirar. Se não correr... há que começar de novo.

Eissesh não perguntou o que significava aquilo. Despediu-se com um gesto, abriu as asas e levantou voo. Uma rajada de ar mais violenta do que as outras agitou com fúria a longa cabeleira de Gerde, mas ela não se mexeu. Contemplou, pensativa, como o shek se afastava e depois, ignorando o furioso assobio do vento, que anunciava a proximidade do deus Yohavir, passeou o olhar pelo acampamento, que estava totalmente deserto.

À excepção da sua árvore-casa, onde a esperavam duas pessoas.

Quando entrou, Christian ergueu a cabeça para olhar para ela. Estava pálido, mas sereno. Junto a ele encontrava-se Assher. Sentia-se inquieto, porque Gerde ordenara que todos os szish procurassem refugio nas montanhas... todos, excepto ele. E ainda não conhecia a razão.

Christian sabia, mas não lhe disse. A lógica dizia-lhe que o mais prudente era sair dali, fugir para Umadhun que, agora que sabia onde ficava, lhe parecia um lugar bastante mais seguro e tranquilo do que Idhún naquele momento. Mas Gerde tinha-lhe ordenado que ficasse; e não era só isso: havia também uma razão para que o fizesse. Christian sabia que alguém tinha de proteger a sétima deusa, e Gerde sabia que o shek estava disposto a fazê-lo, não só porque lho tinha ordenado, mas também porque convinha aos seus próprios planos.

A fada passeou o olhar pelo interior da sala. O hexágono continuava lá, pintado no chão, sobre a casca da árvore. Gerde semicerrou os olhos e, sem uma palavra, ocupou o seu lugar no centro. Christian teria jurado que a tinha visto tremer, embora fosse apenas por um breve instante.

O shek também se sentou, mas fora do hexágono. Ordenou a Assher que se sentasse junto dele, e o szish, depois de dirigir um olhar hesitante a Gerde, obedeceu.

Gerde inspirou fundo e fechou os olhos. Contudo, voltou logo a abri-los para olhar para Christian e Assher.

- Já sabem o que têm de fazer - murmurou, mas o certo era que Assher não sabia. Christian, no entanto, assentiu.

Procurou relaxar, mas os seus músculos continuavam tensos. Percebeu que o szish o olhava, interrogativo. Não lhe retribuiu o olhar.

Gerde fechou as pálpebras de novo. A sua respiração foi-se tornando cada vez mais lenta, e Christian surpreendeu-se a si mesmo contendo o fôlego. Quando, por fim, Gerde abriu os olhos outra vez, as suas pupilas tinham desaparecido e o seu rosto era completamente inexpressivo, apenas uma fria máscara de mármore.

A sétima deusa tinha abandonado o seu invólucro carnal para viajar por outros planos.

O seu aspecto era inquietante, mas, apesar disso, Christian não podia afastar o olhar dela. Assher, em contrapartida, desviava a vista para qualquer outra parte, tentando não pensar no violento assobio do vento. Foi ele quem se apercebeu de que a árvore-casa de Gerde tinha começado a crescer, lenta e silenciosamente.

Quis alertar o shek, mas não se atreveu a mexer-se, com medo de quebrar a concentração de Gerde.

De qualquer forma, não era preciso. Christian já sabia que Wina e Yohavir se estavam a aproximar. E agora que a Sétima deusa se tinha libertado do seu corpo mortal, não tardariam a descobri-la.

A essência de Gerde deslizou, veloz, pelas orlas das dimensões. Conhecia o lugar que tinha procurado visitar em viagens anteriores, mas, desta vez, tomou o sentido contrário e apressou-se a afastar-se dele tanto quanto pôde.

As diferentes dimensões tomaram forma diante dela, como um vasto leque de possibilidades. Gerde descartou-as, uma atrás da outra, velozmente. Apercebeu-se então de uma dimensão suficientemente afastada para levar a cabo os seus propósitos. Uma dimensão suficientemente extensa para que os outros Seis demorassem a encontrá-la. Chegou até ali, mas permaneceu no plano imaterial, sem descer ao mundo físico. E, então, lançou um sinal.

Rápida como o pensamento, procurou regressar ao seu corpo, que estava em Idhún. com um pouco de sorte, os Seis iriam segui-la até ao plano imaterial daquela dimensão; mas, assim que chegassem, ela já estaria de volta.

As coisas não saíram como esperava. Uma presença interpôs-se entre ela e o seu objectivo. Ali, no plano imaterial, todos os deuses eram iguais, mas conheciam-se entre si. E há muitos milénios que a sétima deusa conhecia o nome daquela presença, porque não era a primeira vez que se enfrentavam.

"Irial", pensou.

Como chegara tão depressa? A Sétima compreendeu que se devia ao facto de Irial não estar no plano físico, não ter descido ainda a Idhún, como os outros cinco. Um erro de cálculo que podia custar-lhe muito caro...

Gerde percebeu a alegria de Irial, a sua sensação de triunfo por a ter finalmente encontrado. Sabia que os outros cinco não tardariam a chegar, porque os Seis estavam estreitamente ligados entre si. E não se tratava apenas de terem criado dois mundos juntos. Os Seis tinham estado muito mais unidos desde que se tinham livrado da Sétima.

Mas entretanto... antes que chegassem todos... havia um breve instante, uma possibilidade mínima... de regressar...

Muito longe dali, no plano físico do mundo conhecido como Idhún, numa árvore que tinha crescido no sopé dos Picos de Fogo, dois mortais temiam pelas suas vidas.

O vento fortíssimo ameaçava arrancar a árvore pela raiz; e a árvore, por sua vez, esmerava-se em crescer cada vez mais, para cima e para baixo, pelo que as suas raízes, mais compridas e fortes, continuavam a agarrar-se obstinadamente ao chão.

No interior, Assher encolhia-se sobre si próprio, aterrorizado. Christian estava sereno, mas só na aparência. Não tinha afastado o olhar de Gerde. Estudava o seu rosto com atenção, procurando adivinhar, através dele, o que estava a acontecer no plano dos deuses.

Gerde não tinha a menor intenção de os enfrentar. Procurou fugir, regressar ao seu corpo... mas a essência de Irial rodeava-a, perseguia-a, obrigava-a a dar a cara.

Gerde sabia que Irial procurava cortar-lhe a sua única possibilidade de fuga, que buscava o fio fino que a unia ao seu corpo material, para o quebrar e impedi-la de voltar a escapar. Se o conseguisse, a sétima deusa ficaria presa no plano imaterial e já não poderia esconder-se do olhar dos Seis.

Não tinha a menor intenção de que isso acontecesse. Mas também tinha previsto aquela possibilidade.

Irial obrigou-a a retroceder um pouco mais. Gerde concentrou mais as suas energias em evitá-la. O vínculo que a unia ao mundo material foi-se tornando cada vez mais fraco...

- Temos de sair daqui! - gritou Assher. - Temos de escapar! Tentou chegar a Gerde, para a arrastar para fora do hexágono, mas Christian impediu-o.

- Quieto! - gritou-lhe, para se fazer ouvir por cima do uivo do vento e dos estalidos da madeira à sua volta. - Não devemos movê-la do sítio!

Tinha ficado muito perto de Gerde e agarrava o braço do szish com força. Assher tentou libertar-se, mas Christian não o soltou. Continuava com o olhar cravado no rosto de Gerde, que permanecia pálido e inexpressivo.

- De que estás à espera? - perguntou Assher, aterrado.

- Que volte - respondeu Christian. - Ou que não o faça.

O szish quis retroceder, mas ele não o permitiu. Continuava a retê-lo, com firmeza.

Gerde continuava a fugir. Sabia que, quanto mais tempo passasse naquela dimensão e quanto mais longe fosse, mais se debilitaria o vínculo com o seu corpo mortal. Mas não tinha outra opção: Irial estava por todo o lado, por todo o lado... e Gerde apercebeu-se, com horror, de que já não era capaz de encontrar o fio que a unia à vida mortal...

Alheio aos gritos de Assher, ao ensurdecedor rugido do vento, ao facto de que, ao crescer sem controlo, a árvore-casa ia reduzindo cada vez mais os seus espaços ocos, Christian continuava a olhar fixamente para Gerde.

Pareceu-lhe ver uma alteração. Para ter a certeza, estendeu a mão que tinha livre e tomou o pulso de Gerde, quase com delicadeza.

Não lhe encontrou pulsação.

- Maldição - murmurou o shek.

Puxou Assher para si. O szish debateu-se e procurou libertar-se com um feitiço, mas Christian foi mais rápido. Voltou-se para ele, com determinação, e olhou-o nos olhos.

No meio do caos produzido pelos deuses, apesar do seu medo e da sua confusão, Assher teve plena consciência do que o shek pretendia. Um pânico irracional percorreu a sua espinha dorsal quando o seu olhar se encontrou com aqueles olhos de gelo. Quis suplicar pela sua vida, mas não lhe restava voz.

Ali... o fio. Gerde descobriu, com alívio, que o seu vínculo com o plano material continuava a existir. Agarrou-se a ele.

Naquele momento, outras cinco presenças irromperam com força naquela dimensão. Irial retirou-se um pouco, talvez para ir ao seu encontro...

Ali... um pequeno espaço.

A sétima deusa escapuliu-se, tal como sempre fizera, milénio após milénio, e apressou-se a voltar, através das diferentes dimensões, até ao corpo que a aguardava do outro lado: um corpo pequeno e miserável, mas que era capaz de lhe garantir um mínimo de segurança.

A sua pena... a sua prisão.

Assher sentiu de repente que o gelo se retirava da sua mente e podia respirar de novo. Deixou-se cair, extenuado, sem conseguir acreditar que ainda estava vivo. Forçou a vista e olhou à sua volta, temeroso.

Ao seu lado estava Christian. Assher retrocedeu um pouco, por instinto. Mas o shek não lhe estava a prestar atenção.

Sustinha Gerde, que voltara a si, nos braços. Os seus olhos voltavam a ser completamente negros e as suas faces tinham recuperado alguma cor. E, embora parecesse estar exausta, sorria.

Foi então que Assher verificou que a calma tinha regressado à árvore. O vento tinha parado de soprar. As plantas tinham parado o seu crescimento desenfreado.

- Enganei-os, Kirtash - sussurrou Gerde, com esforço. - Enganei-os a todos.

Christian entendeu o que isso significava.

Gerde tinha arranjado maneira de atrair os deuses de volta à sua dimensão. Os Seis tinham abandonado Idhún... embora fosse apenas temporariamente. O shek fechou os olhos durante alguns segundos, esgotado.

- Quanto tempo demorarão a voltar? - perguntou, com voz neutra.

- Não tanto como queríamos - respondeu Gerde, cansada; fechou os olhos e caiu profundamente adormecida.

Tinham saído do castelo sem o menor percalço. Jack não procurara esconder-se, mas ninguém o impedira de sair, embora tivesse visto os guardas hesitar. Imaginava que avisariam Alsan se não regressassem dentro de um período de tempo razoável, mas não lhe importava. Não tinham nada a esconder, disse a Victoria quando se embrenharam pelas ruas da cidade.

No entanto, ela tinha abanado a cabeça, preocupada.

Tinha-o conduzido aos arredores da cidade, onde bateram à porta de uma casa pequena, coroada por uma cúpula, ao estilo de Celestia. Tinha-Ihes aberto a porta um

celeste idoso, que, apesar da hora tardia, não pareceu surpreendido ao ver Victoria.

- Pensava que não vinhas esta noite, dama Lunnaris - murmurou, sorrindo.

- Atrasei-me um pouco - respondeu ela, devolvendo-lhe o sorriso. Espero não te ter acordado.

- Parlei já está na cama, mas eu aguardava-te acordado. Entra; o pássaro está a dormir, mas descansou bastante. Vais encontrá-lo onde está sempre.

- Obrigada, Man-Bim.

Atravessaram a casa, um lar simples e agradável, e chegaram ao pátio traseiro. Ali, em cima de um poleiro, dormitava um enorme e belo haai, com a cabeça debaixo da asa. Victoria acariciou-o e falou-lhe com palavras doces quando acordou.

- Chama-se Ingá - disse em voz baixa. - Pertence a Man-Bim, mas empresta-mo sempre que quero sair da cidade.

- Sair da cidade? - repetiu Jack. - Para ir aonde?

- Procurar estrelas cadentes - sorriu ela.

Ingá podia carregar com os dois e Victoria tinha já uma certa destreza a montar pássaros haai, de modo que não tiveram problemas com a descolagem. Jack não disse nada quando o pássaro planou sobre a cidade de Vanis e virou para oeste. Parecia que se movia ao acaso, sem um rumo determinado. Victoria mantinha as rédeas soltas e permitia ao animal voar para onde entendesse.

Jack não tardou a esquecer a sua inquietação para desfrutar do passeio. Só tinha viajado de haai uma vez, antes de aprender a transformar-se em dragão, e gostara. Além disso, as luas brilhavam sobre os dois, cúmplices, e a brisa da noite sussurrava docemente nos seus ouvidos.

Finalmente, Ingá descera perto de um bosquezinho. Victoria e Jack tinham pulado do seu dorso e deixaram-no a chapinhar num ribeiro.

Agora passeavam por entre as árvores, aparentemente sem rumo. Jack começava a suspeitar por que motivo ela tinha ido ali. Mas Victoria parecia cada vez mais inquieta.

Olhava à sua volta, procurando algo, ou alguém, talvez. Contudo, o bosque continuava em silêncio.

- Devias apressar-te a fazer o que quer que tenhas de fazer - disse Jack. - Há um longo caminho de volta à cidade e temos de nos levantar ao primeiro amanhecer.

- Eu sei - assentiu ela. - Mas fomos parar demasiado longe de qualquer lugar habitado. Há uma aldeia perto do rio... embora não saiba se teremos tempo de chegar e dar uma volta antes que se faça demasiado tarde para regressar.

Jack sorriu, compreendendo que a sua intuição era acertada.

- As tuas estrelas cadentes são pessoas, Victoria?

Ela respondeu com um sorriso rasgado. Jack rodeou os seus ombros com o braço.

- Então não forces - aconselhou-a. - Faz o que costumas fazer todas as noites, como se eu não estivesse aqui. Não tens de me demonstrar nada. Se não tiveres sorte esta noite, talvez amanhã encontres o que procuras.

Victoria não disse nada. Tinha ficado a olhar fixamente para ele e Jack sentiu-se inquieto.

- O que foi?

- Estava enganada - respondeu ela, com doçura. - Vi uma estrela cadente esta noite.

Enquanto falava, foi-se transformando lentamente em unicórnio. Jack deixou escapar uma exclamação de surpresa e olhou para ela, comovido.

Não era a primeira vez que a via assim. No entanto, Victoria não costumava adoptar a sua outra forma, ou pelo menos não com a mesma frequência com que Jack o fazia.

com o coração a bater com força, Jack aguardou que o unicórnio se aproximasse dele. Não se moveu quando sentiu a sua suave crina a acariciar-lhe o braço. Victoria ergueu a cabeça, e o seu corno roçou docemente a face dele.

E algo o encheu por dentro, uma torrente quente e renovadora que percorreu as suas veias, fazendo-o sentir-se mais vivo do que alguma vez estivera. O rapaz caiu de joelhos, maravilhado; quando Victoria apoiou a cabeça sobre o seu ombro, ele rodeou o seu pescoço com os braços e enterrou o rosto na sua crina, para que ela não visse que tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Não devias ter feito isto - sussurrou Jack ao fim de algum tempo. Sou um dragão, de modo que vou ser um desastre como feiticeiro. Não devias desperdiçar a tua magia comigo.

- Não é assim que funciona - sorriu Victoria. - A entrega da magia náo se deve reger por razões lógicas. Tem de nascer do coração.

Jack ergueu a cabeça. Victoria tinha voltado a transformar-se em humana e olhava para ele, intensamente. Jack sentou-se no chão, ainda maravilhado. Victoria sentou-se junto dele.

- Há quanto tempo andas a fazer isto? - perguntou.

- Desde que voltei da Terra. Quer dizer, assim que recuperei os meus poderes.

- E encontraste muita gente desde então? - indagou Jack, entusiasmado. - Quantos são? Quem são?

- Não penso dizer-to - replicou ela. - É um segredo entre eles e eu. Jack abanou a cabeça, perplexo.

- Mas porquê?

- Porque deve ser um presente e não um fardo. Devem ser eles a decidir se querem desenvolvê-lo ou não. Sabes... nem toda a gente quer abandonar tudo para estudar numa escola de feitiçaria, por muito que Qaydar teime em pensar o contrário. E tal como estão as coisas... ser um feiticeiro pode não ser uma vantagem. Entendes-me?

- Acho que sim. Kimara, por exemplo, sentia saudades da sua terra quando estava a estudar com Qaydar.

- Não se trata apenas disso. Gerde está a utilizar um corno de unicórnio para criar feiticeiros leais à sua causa. Qaydar quer que utilize o meu para criar feiticeiros leais à sua. Não vejo uma grande diferença, Jack.

Ele voltou-se para olhar para ela, surpreendido.

- Não vês grande diferença? - repetiu. - Como podes dizer isso?

- O que eu quero dizer é que os dois querem ter os feiticeiros ao seu serviço. E eu acho que os feiticeiros devem ser livres para decidir o que fazer com o dom que lhes foi dado.

Os líderes da Ordem Mágica sempre ansiaram por controlar o processo de criação de feiticeiros, mas não conseguiram nunca governar os unicórnios. Agora, tirando

Gerde, eu sou a única que pode conceder a magia e tenho também uma identidade humana, pelo que Qaydar tem a possibilidade de me controlar a rrúm e de obter o que os seus predecessores nunca conseguiram. Os unicórnios eram seres indómitos: ninguém podia capturá-los nem controlar os seus movimentos. Em contrapartida, eu vivo como humana, entre os humanos. Não posso nem sair à noite sem que me peçam explicações. Compreendes? Não querem deixar-me livre, Jack. Têm medo de me perder, medo de perder a magia. Só que a magia não pertence a eles e sim a toda a gente. E, nos tempos que correm, com a Ordem Mágica em risco de desaparecer, Qaydar não deixará passar esta oportunidade. Por isso devo continuar a agir por minha conta.

- De qualquer forma, Victoria, deves saber que algumas das pessoas a quem entregaste a magia irão à Torre de Kazlunn.

- Eu sei: já estão a fazê-lo. Por isso chegará uma altura em que terei de ir embora... pelo menos, até que Qaydar compreenda que não deve impor as suas regras, que os feiticeiros não lhe pertencem.

- Ir embora para onde? Victoria, vais ter um bebé...

- Já sei - cortou ela em voz baixa. - Sabias que foi assim que eu percebi? Uma vez transformei-me em unicórnio e, ao regressar ao meu corpo humano, senti... algo diferente. Não sei há quanto tempo crescia dentro de mim, mas, nesse momento, soube que estava lá... E tenho de cuidar dele, porque posso admitir que haja quem queira utilizar o meu poder para os seus próprios fins... Ashran, Gerde, Qaydar... é-me indiferente. Mas não vou permitir que aconteça o mesmo ao meu filho. Às vezes até desejo que seja um miúdo humano normal, e outras vezes quero, pelo bem de Idhún, que herde a minha capacidade de entregar a magia, para que alguém continue a consagrar novos feiticeiros quando eu não existir. Mas os unicórnios nunca foram escravos de ninguém, compreendes? E não quero esse futuro para ele.

Jack olhou para ela, em silêncio. Algo no seu rosto revelou-lhe que Victoria estava a recordar a forma como Ashran a tinha utilizado, arrebatando-lhe selvaticamente a magia, primeiro, e amputando o seu corno depois.

- Haverá outros como ele - compreendeu. Victoria não respondeu.

- Também foi um unicórnio que entregou a magia a Ashran - disse Jack. - E a Gerde. Mesmo antes de serem recipientes do sétimo deus, já eram seus aliados.

- Pedimos desejos quando vemos uma estrela cadente - recordou Victoria. - Mas nem sempre as estrelas escutam.

Parecia triste. Jack abraçou-a.

- Lamentas que seja assim?

- Não, não é isso. É que às vezes não sei se tudo isto vale a pena. Muitas noites regresso sem ter encontrado ninguém que desperte em mim o desejo de partilhar a magia. E não posso evitar perguntar-me o que acontecerá quando eu não existir. A magia vai acabar por morrer em Idhún, Jack, faça o que fizer. Uma só pessoa não pode abraçar o trabalho de toda uma raça. Eu vou continuar a fazer o que devo fazer, mas não servirá de nada. Se Idhún sobreviver a isto, dentro de vários séculos, quando o último feiticeiro tiver morrido, quando eu já não existir...

- Entendo o que queres dizer - disse Jack. - Eu sinto o mesmo. Eu sozinho contra toda a raça shek. É suposto eu continuar a lutar e nem sequer tenho a certeza de ser a coisa certa a fazer, embora Alsan se empenhe em dizer-me que sim.

Permaneceram algum tempo em silêncio, abraçados, contemplando as luas, até que Jack voltou à realidade.

- Faz-se tarde - disse - e devemos ir. Além disso, tens de devolver o pássaro ao seu dono, não tens? De onde o conheces? - perguntou, com curiosidade. - Como é que

to empresta?

Victoria não respondeu, mas Jack adivinhou imediatamente.

- É uma das tuas estrelas cadentes - compreendeu com um sorriso.

- Uma dessas estrelas que preferem levar uma vida tranquila, em vez de abandonar tudo para seguir os desígnios da Ordem Mágica - respondeu ela com suavidade. - Uma

dessas estrelas que Qaydar não deve conhecer.

- Entendo - assentiu Jack. - Seja como for, temos muito que fazer.

Victoria assentiu. Levantou-se e chamou ingá com um assobio. Passado pouco tempo, os dois retomaram o voo, no dorso do haai, de regresso ao castelo de Vanissar.

Ydeon e Shail chegaram à Torre de Kazlunn mais tarde do que esperavam. Shail calculara que alcançariam as suas portas ao terceiro entardecer, mas a noite surpreendera-os a meio do caminho. Para quem tinha as pernas tão compridas, o gigante era assombrosamente lento. Detinha-se a observar tudo, com interesse, e não parecia ter nenhuma pressa.

Quando, por fim, chegaram à torre, era já noite cerrada, e Shail duvidou que os deixassem entrar.

Contudo, teve uma surpresa. Quando bateram à porta, abriram imediatamente e conduziram-nos à presença de Qaydar.

O Arquifeiticeiro estava na sua sala a trabalhar, apesar da hora tardia. Quando ergueu a cabeça para eles, não detectaram nem uma sombra de cansaço no seu olhar. Pelo contrário, Shail não se lembrava de alguma vez o ter visto tão contente.

Apresentou-o a Ymur e falou-lhe dos motivos por que tinham ido à Torre.

- Conheci Ashran, sim - confirmou Qaydar. - Estivemos ao mesmo tempo nesta mesma torre, quando ele não era mais do que um aprendiz. Mas não me lembro de ele se ter destacado especialmente. Só sei que às vezes se metia em problemas por procurar na biblioteca livros muito acima do seu nível. Não sei dizer-vos se era ambicioso ou apenas extraordinariamente curioso. Talvez as duas coisas.

- Gostaria de consultar os volumes da tua biblioteca, se não achares inconveniente - disse Ymur.

- Os volumes da nossa biblioteca estão escritos em idhunaico arcano, sacerdote.

O gigante fez uma expressão despreocupada.

- Oh, não me referia aos livros de magia. Interessam-me mais os livros de história. Os conhecimentos sobre o mundo que a Ordem guarda. Presumo que tudo isso estará escrito em idhunaico comum, não é?

- Sim... mas recordo-te que alguns de nós, feiticeiros, ficaram quinze anos fechados nesta torre, quando resistíamos ao império de Ashran. Asseguro-te que tivemos muito tempo para procurar informação sobre ele. Não encontrámos nada.

- Talvez porque não procuraram a informação certa - interveio Shail.

- O que Ymur deseja saber é onde terá Ashran encontrado algo que o levasse a interessar-se pelo sétimo deus, e de que se tratava exactamente.

Qaydar olhou para eles, pensativo.

- Bem - disse, por fim -, suponho que nos pode ter passado alguma coisa ao lado. Embora não veja que utilidade possa ter tudo isso, agora que Ashran está morto.

- Mas Gerde não está - murmurou Shail - e o seu poder é muito semelhante ao que Ashran teve um dia.

Qaydar assentiu.

- Então está bem. Não quero prender-vos mais; sem dúvida que estão cansados.

Acompanhou-os ao corredor. Lá esperava-os um servente para os guiar aos seus aposentos, mas apenas levou Ymur consigo. Foi o próprio Qaydar que escoltou Shail, e

este adivinhou que queria falar-lhe a sós.

Não se enganou.

- Como está Victoria?

- Bem... Encontra-se em Vanissar, com Alsan e Jack. Regressou da Terra completamente curada - acrescentou, sorrindo.

Qaydar sorriu por sua vez.

- Eu sei - disse. - Falaram acerca disso? Disse-te quantos são?

- Quantos são? - repetiu Shail, perplexo.

- Refiro-me aos feiticeiros que consagrou. Até agora, chegaram-nos três.

- Três feiticeiros? Tirando Kimara?

- Vejo que não sabias - compreendeu Qaydar. - Neste últimos dias, chegaram várias pessoas que diziam possuir o dom da magia: um silfo e dois humanos. E diziam a verdade: a Ordem conta agora com mais três aprendizes.

- É uma grande notícia - respondeu Shail, com sinceridade. - Mas como sabemos que são feiticeiros consagrados por Victoria e não por Gerde?

- Porque todos eles disseram ter visto o unicórnio. Tu sabes o que se sente quando se vê um unicórnio, Shail. Não podiam estar a fingir.

Sbail não respondeu. Ainda estava a assimilar a notícia.

- Surpreende-me que não te tenha dito - comentou Qaydar.

Shail recordou as escapadelas de Victoria, o receio de Alsan, as reticências dela em falar do assunto. Sorriu.

- Sim, fê-lo. À sua maneira, fê-lo.

Os rebeldes de Kash-Tar demoraram mais algumas horas a subir as montanhas. Mas, quando chegaram a um dos cumes e contemplaram o horizonte, pareciam desorientados.

Ali não havia nada. Apenas três sóis, como sempre, espreitando no horizonte.

Rando, de cima, também tinha visto. Apressou-se a pousar junto dos seus companheiros.

- Estava ali ontem à noite! - exclamou da escotilha superior de Ogadrak. - Juro!

Goser ia replicar, quando, de repente, um dos seus homens lançou um grito de advertência. Os yan cravaram os seus olhos avermelhados no horizonte. Os humanos fizeram o mesmo, mas tiveram de afastar o olhar imediatamente, porque os sóis cegavam-nos.

Contudo, a luz solar nunca tinha feito mal à vista dos yan, a quem ninguém podia igualar a decifrar os sinais do deserto.

- O que se passa? - perguntou o outro piloto.

Os yan demoraram um pouco a responder, e isso era estranho neles.

- Sheks - disse então Goser, semicerrando os olhos.

Rando deixou cair para um lado a tampa da escotilha, aturdido.

- Não é possível - murmurou.

Os yan já murmuravam entre eles, receosos.

- Ohumanotraiu-nos! - disse alguém.

- Conduziu-nosdirectamenteaumaarmadilha!

O olhar de Rando cruzou-se com o de Kimara e detectou um vestígio de dor e decepção nos olhos dela, que endureceram em seguida.

- Traidor! - cuspiu.

- Nãomeinteressaquesejaumaarmadilha - disse então Goser, pegando num dos seus dois machados e brandindo-o ameaçadoramente. - Euvoulutar;quemvem?

Todos os yan lançaram o seu grito de guerra. Os humanos pensaram um pouco mais.

- Etu - disse então Goser, apontando para Rando com a extremidade do seu machado -, virásconnosco.

Pouco a pouco, Gerde foi recuperando forças. Dormiu durante todo o dia. Quando abriu os olhos, Christian estava ao seu lado.

- Foram-se embora? - foi a primeira coisa que perguntou, com esforço.

- Sim, Gerde, foram - respondeu ele. - Mas não tardarão a perceber que regressaste e voltarão para te procurar.

- É indiferente: temos uma pausa. Temos tempo para acabar de preparar tudo.

O shek não respondeu.

- Mas se regressarem antes do tempo - prosseguiu Gerde -, teremos de fugir daqui. Não consigo enfrentá-los outra vez e estou cansada de lutar.

- Quanto tempo?

Ela negou com a cabeça.

- Não sei. Estas coisas são lentas, mas os Seis têm pressa. Talvez o teu unicórnio tenha sorte - acrescentou, trocista. - Talvez tenha de me ir embora antes de ela dar à luz. Claro que ficaria para trás, com seis deuses furiosos procurando-me por todo o mundo, mas... a vida é assim. E tu, Kirtash? Irias salvar-te comigo ou condenar-te com ela?

- Iria salvar-me com ela - respondeu ele com um sorriso.

- Isso não depende de ti - replicou Gerde. - Embora queiras acreditar que sim.

As duas facções chocaram entre o segundo e o terceiro entardecer.

O grupo de serpentes não era muito numeroso. Se os rebeldes não estivessem tão cegos de raiva, talvez se tivessem perguntado como era possível que três sheks e dois pelotões de szish fossem os responsáveis por tamanha destruição. E, provavelmente, os sheks também teriam chegado à mesma conclusão que eles, se não tivessem enlouquecido de ódio quando detectaram os dois dragões artificiais.

Rando não teve outro remédio senão defender-se. Os sheks precipitaram-se sobre ele e sobre o outro dragão, obrigando-os a lutar. E, num primeiro momento, Rando respondeu à provocação e Ogadrak rugiu sobre as areias de Kash-Tar, vomitando o seu fogo contra as serpentes. Porém, numa das suas típicas manobras temerárias, o piloto pareceu ver uma figura que corria em direcção ao coração do deserto, afastando-se da batalha. Bateu as asas e elevou-se mais alto para a ver melhor. Sim, não havia dúvida. Era um szish e fugia, sem se importar que os seus pés se enterrassem na areia até aos tornozelos, afastando-se da luta que se travava nas suas costas.

Rando teve um pressentimento. Procurou desembaraçar-se do shek que o seguia e planou sobre a figura fugitiva. Não conseguiu confirmar a sua identidade, mas, mesmo assim, desceu a pique sobre o szish e meteu as garras de fora.

O fugitivo voltou-se para ele e fez um feitiço de ataque. Ogadrak balançou quando a magia atingiu uma das suas asas, perfurando-a.

- Au! - exclamou Rando, tão dorido como se tivesse ele mesmo recebido o golpe.

No entanto, não retrocedeu. Moveu as alavancas, com determinação, e Ogadrak enganchou o szish entre as suas garras sem problemas. Bateu as asas e conseguiu elevar-se um pouco mais, embora algo inclinado, enquanto o seu prisioneiro esperneava com todas as suas forças.

Mas Rando não teve tempo de se felicitar pela sua habilidade. Ouviu um cicio atrás dele, um cicio que lhe gelou o sangue, e descobriu que um dos sheks o estava a seguir.

- Deixa-me em paz! - gritou-lhe, mesmo sabendo que não o ouviria. Estou a desertar!

Deu uma volta sobre si mesmo no ar, para despistar o shek, esquecendo por um momento que levava um szish entre as garras. "Não me vai perdoar por isto", pensou.

Voltou-se bruscamente contra o shek e vomitou o seu fogo contra ele. A serpente guinchou, furiosa, e retrocedeu, mas Rando, temerariamente, baixou a cabeça de Ogadrak e investiu de novo, com os cornos para a frente. Sentiu o tremendo golpe do corpo da serpente quando chocou contra o dragão, mas não se deteve. Voltou a atacar uma e outra vez.

Foi um pouco difícil, porque não podia utilizar as garras dianteiras, que agora sustinham o szish, e que costumavam ser-lhe muito úteis na hora de agarrar os escorregadios corpos das serpentes. Mas, finalmente, conseguiu lançar uma nova labareda ao rosto da serpente, cegando-a. Deixou-a a retorcer-se de dor no ar e escapou dali, tão depressa quanto foi capaz.

Nas suas costas, a batalha prosseguia com tanta ferocidade que ninguém se apercebeu de que se ia embora.

Pousou junto a um pequeno oásis, com um poço e duas árvores, quando os três sóis já iam muito altos. Deixou Ogadrak num equilíbrio precário sobre as suas patas traseiras e depositou cuidadosamente o seu prisioneiro sobre a areia.

Prisioneiro que, como imaginara, não era prisioneiro, mas sim prisioneira.

- Enlouquecessste! - gritou-lhe Ersha quando desceu do dragão. O que tenho de fazer para me livrar de ti, sssangue-quente?

- Ei! - protestou Rando, ofendido. - Ajudei-te a escapar! Não era isso que querias?

- Podia essscapar eu sssozinha, muito obrigada! - ciciou ela. - Por pouco matavasss-me!

Rando abanou a cabeça.

- bom, não foi assim tão terrível. Já estamos aqui, não? - Dirigiu-lhe um breve olhar. - Deduzo que não acreditaram em ti.

- Osss sssheksss examinaram a minha mente e viram asss minhasss memóriasss. Acharam que havia alguma coisssa e por issso fomosss investigar. - Lançou-lhe um olhar incendiário. - Tinham logo de essstar ali. Para onde foi a esssfera de fogo?

- Não sei. Mas não tenciono perder tempo a lutar enquanto essa coisa continuar solta por aí.

A szish riu brevemente.

- Foi issso que eu pensssei. Enquanto vínhamosss de Kosssh vimosss coisssasss... todo um oássisss carbonizado. Até messsmo a água da lagoa ssse evaporou. E a guarnição de ssszisssh que havia lá...

- Não continues - estremeceu Rando. - Imagino.

- Enquantos essstava a lutar contra vocêsss - prosseguiu Ersha -, imaginei que a bola de fogo voltava e nosss sssurprendia ali... a lutar unsss contra osss outrosss... - encolheu os ombros. - Não tive vontade de essstar ali quando voltassse... por issso acabei por desssertar... como tu - acrescentou com um sorriso sinistro.

Mas Rando fez uma expressão despreocupada.

- Não é para tanto - disse. - Desertar, quero dizer. Não é a primeira vez que o faço.

Contudo, voltou-se para contemplar o horizonte com uma certa tristeza. Ersha apercebeu-se do gesto.

- Por acassso deixasss alguém para trásss, humano?

- Talvez - respondeu Rando, com um sorriso enigmático. - Talvez.

Dias depois, um quarto feiticeiro chegou à Torre de Kazlunn. Nessa altura, Shail já havia partido para Vanissar e Ymur estava fechado na biblioteca. Qaydar recebeu-o na sua sala e interrogou-o a fundo. Tinha verificado que, de facto, a magia pulsava nele... mas fazia-o de uma forma estranha, devorando-o por dentro, produzindo nele um sofrimento intenso. O Arquifeiticeiro suspeitou que aquilo poderia ser obra de Gerde.

- Foi Victoria quem me entregou a magia - disse o feiticeiro, adivinhando-lhe os pensamentos. - Também lhe chamam Lunnaris, o último unicórnio.

Falou-lhe de Victoria: contou-lhe que a tinha guiado até à Torre de Drackwen, primeiro, e até à Torre de Kazlunn, depois, porque ela tinha intenção de matar Kirtash, a quem responsabilizava pela morte do último dragão. Disse as datas exactas em que aquilo tinha acontecido. Qaydar sabia que dizia a verdade. Poucas pessoas sabiam o que tinha acontecido com Victoria naqueles momentos tão difíceis para todos.

Mas não lhe passou pela cabeça relacionar Yaren com o indivíduo que, segundo lhe contaram, tinha atacado Victoria tempos antes. Ninguém lhe tinha dado muitos pormenores.

- E havia algo estranho no seu olhar - concluiu Yaren. - Costumam descrever os unicórnios como criaturas cheias de luz, mas ela era sinistra. Ninguém era capaz de a olhar nos olhos sem sentir um arrepio.

Qaydar não respondeu. Não podia duvidar da palavra de Yaren. Ele mesmo tinha experimentado uma profunda sensação de terror ao olhar para Victoria na noite em que ela abandonara Nurgon para ir à procura de Kirtash.

Yaren interpretou mal o seu silêncio.

- Foi antes de ela perder o seu poder depois de enfrentar Ashran explicou. - Sei que tens motivos para duvidar, mas...

- Vieste aqui porque tens intenção de te juntar à Ordem Mágica? interrompeu Qaydar.

Yaren inspirou fundo.

- Quero estudar magia aqui, na torre. Pensei muito e cheguei à conclusão de que só aqui poderei desenvolver o dom que me foi entregue. Solicito que me admitas como aprendiz. Peço-te.

- Sabias que não és o único novo aprendiz?

- Ouvi falar de uma mulher de Kash-Tar...

- Não me estou a referir a ela. Falo de pessoas que chegaram nos últimos dias.

O feiticeiro compreendeu.

- Victoria - sussurrou. - Victoria recuperou o seu poder. Lançou-se para trás, consternado. Uma mescla de emoções confusas

inundou o seu coração: raiva, inveja, ódio, impotência... e um ténue raio de esperança.

- Vejo que não sabias. Bem, eu também não sabia que tinha consagrado mais feiticeiros, além de Kimara, antes de derrotar Ashran. Nunca me falou de ti.

A esperança morreu, sufocada pela dor e pela raiva, por aquela magia sinistra que aniquilava impiedosamente todos os sentimentos positivos que nasciam nele.

- Não me surpreende - disse. - Não sou precisamente a sua melhor obra.

Falava lentamente, como se cada palavra que pronunciasse lhe exigisse um tremendo esforço. Qaydar olhou para ele, compassivo, mas também intrigado.

- Como é possível que a magia do unicórnio tenha tido este efeito tão devastador em ti?

Yaren esboçou um sorriso maldoso.

- Toda a gente se engana no início e melhora com a prática - disse. Os unicórnios não são uma excepção.

 

             COROAÇÃO

Faltavam já poucos dias para que o novo rei de Vanissar tomasse posse do trono e em todo o Nandelt a chegada do dia de Ano Novo era aguardada com expectativa... e alguma incerteza.

Porque, por estranho que pudesse parecer, toda a gente sabia a data da coroação, mas ninguém tinha a certeza da identidade da pessoa que ia ser coroada.

Para assombro de todos e alegria de muitos, o príncipe Alsan tinha regressado ao seu reino para reclamar o trono. E Covan, cavaleiro da Ordem de Nurgon, que fora seu mestre na academia e desempenhara a função de regente durante a sua ausência após a batalha de Awa, tinha-o recebido no castelo.

Poucos dias depois, tinha-se tornado pública a notícia de que no dia de Ano Novo o povo de Vanissar teria um novo rei. No entanto, não se tinha esclarecido se esse novo rei seria Alsan ou o próprio Covan.

Em princípio, tudo apontava para que fosse Alsan, herdeiro legítimo do rei Brun, a cingir a coroa. Mas havia rumores de que várias pessoas ilustres haviam sido convocadas para assistir a uma espécie de prova que teria lugar na noite do Triplo Plenilúnio. Se Alsan superasse a dita prova, seria coroado. Caso contrário, renunciaria ao trono em favor de Covan.

Nos três meses que haviam decorrido desde o regresso do príncipe, ninguém tinha esclarecido oficialmente se os rumores tinham ou não fundamento. Enquanto isso, Alsan tratava de governar o reino e Covan era o seu braço direito, pelo que, com o tempo, o povo acostumou-se à ideia de que, efectivamente, o príncipe herdeiro assumiria o trono.

Foi então que, apenas uns dias antes da data da coroação, a Venerável Gaedalu em pessoa chegou à cidade.

Corriam rumores de que estivera lá algum tempo antes, em segredo e que apoiara Alsan na hora de reclamar o trono, mas que depois tinha voltado a partir para coordenar a reconstrução do Oráculo de Gantadd, que tinha sido arrasado pelas águas. Embora ninguém tivesse a certeza de que isto fosse verdade, desta vez não se pôde duvidar de que a Mãe Venerável estava na cidade. Entrou pela porta principal, com todo o seu séquito, e Alsan em pessoa foi recebê-la e escoltou-a até ao castelo.

Os líderes das igrejas não costumavam estar presentes naquele tipo de cerimónias. A tradição ordenava que não se envolvessem em assuntos políticos, embora na prática costumassem enviar um representante de cada Oráculo à coroação de um rei de Nandelt. Se o representante não chegasse, o novo rei ficava a saber que o Oráculo não aprovava aquela coroação. Era tudo o que se permitia ao poder sagrado. Teria sido de mau gosto que o Pai ou a Mãe opinassem abertamente sobre um assunto desses, e, por este motivo, também não compareciam nas coroações.

O facto de Gaedalu ter decidido quebrar a tradição de uma forma tão óbvia era um indício de algo importante. Certamente, o mundo tinha mudado muito e aquela era a primeira coroação em Nandelt desde a derrota de Ashran. Mas talvez a Mãe não tivesse vindo para a cerimónia, mas sim para aquela suposta prova que ia realizar-se na véspera.

No entanto, Gaedalu não foi a única a ir a Vanissar naquela altura. Apenas dois dias depois, quando o primeiro dos sóis já se punha no horizonte, Ha-Din, Pai da Igreja dos Três Sóis, apresentou-se na cidade. Também desta vez Alsan foi recebê-lo e guiou-o até ao castelo, juntamente com todo o seu séquito.

No limiar do terceiro entardecer, um grupo de feiticeiros da Torre de Kazlunn, liderados por Qaydar, o Arquifeiticeiro, chegava às portas de Vanis.

A chegada destas três personagens eclipsou um pouco a presença, menos extraordinária, de outros soberanos de Nandelt: a rainha Erive de Raheld, um representante da câmara de nobres que regia os destinos de Nanetten e o príncipe herdeiro de Dingra, filho do rei Kevanion, que falecera na batalha de Awa. Ainda não tinha sido coroado por ser muito jovem, mas estava a preparar-se para assumir as rédeas do reino e a sua presença em Vanissar indicava que tinha intenção de esquecer o passado e estabelecer uma nova aliança com Alsan.

Todos estavam dispostos a esquecer o passado, disse Victoria para consigo, enquanto passeava pelas ameias, contemplando o horizonte. Tinham decorrido quase três meses desde que os Seis tinham desaparecido inexplicavelmente de Idhún. Tinham terminado os sismos, os maremotos, os ciclones e o crescimento indiscriminado de árvores e plantas. Parecia que o pesadelo tinha acabado e os idhunitas tinham-se apressado a começar com a reconstrução das povoações afectadas para apagar o quanto antes as marcas da destruição. Para retomar as suas vidas, como se nada tivesse acontecido.

Mas não tinha terminado. Nada tinha terminado.

Levou uma mão ao ventre, inquieta e esperançosa ao mesmo tempo. O seu filho crescia dentro dela, despertando todo o tipo de novas sensações no seu íntimo. Ainda não tinha dito a ninguém. Jack acompanhara-a durante aqueles três meses e sabia que Christian, à distância, também pensava nela e estava disposto a vir ao seu encontro se fosse necessário.

Mas não tintia sido preciso; pelo menos, até ao momento. E Victoria desejava que as coisas continuassem assim.

No entanto, embora tivesse começado a usar roupas um pouco mais folgadas, não tardaria a ser evidente para toda a gente que estava grávida.

Suspirou no seu íntimo. O certo era que aquele não era o maior dos seus problemas.

- Andava à tua procura - disse uma voz atrás dela, sobressaltando-a. Voltou-se. Shail estava ali, sorrindo-lhe.

- com toda esta confusão, Zaisei não teve ocasião de te cumprimentar - disse-lhe. - Já me perguntou por ti duas vezes. Onde te escondias?

- Também estive ocupada - respondeu Victoria, evasiva.

Queria ver Zaisei, mas não podia. Na realidade, não podia ver nenhum celeste, porque a sua gravidez estava já suficientemente avançada para que qualquer um deles pudesse perceber o que se passava com ela. Há algum tempo que deixara de incomodar Man-Bim à noite. Era Jack quem a acompanhava, levando-a sobre o seu dorso, quando sentia a necessidade de "procurar estrelas cadentes". Tinham continuado a utilizar aquela expressão quando falavam do assunto, embora já não fosse necessário. A notícia de que Victoria estava a consagrar novos feiticeiros era já do domínio público, o que andava a causar muitos problemas à rapariga.

- Não queres ver Qaydar? - inquiriu Shail. - Também perguntou por ti. Victoria não respondeu. Shail pôs-se ao seu lado.

- Porque não queres voltar à Torre de Kazlunn, como te propôs?

- Já te expliquei, Shail. Não sou uma das aprendizas de Qaydar. Quer que o informe de quem são os novos feiticeiros, como são, onde estão... para ir à procura deles, como se lhe pertencessem. Se vou continuar a entregar a magia, não posso, não devo seguir as suas normas. Os unicórnios devem ser livres para que a magia seja livre, lembras-te? Compreendo que ele se sentiria mais tranquilo se me fechasse na sua torre e tivesse conhecimento de tudo o que eu faço, mas as coisas não funcionam assim. A magia é algo muito sério e poderoso e não deve estar nas mãos de uma só pessoa ou instituição. Por isso, os unicórnios podem entregá-la, mas não utilizá-la. Por isso, ninguém pode capturar ou subjugar um unicórnio.

- Eu sei, Vic, mas não podes viver sempre como um unicórnio. Ou podes?

- Não - disse Victoria a meia-voz, suspirando. - É-me permitido que cumpra o meu dever de unicórnio, mas não me é permitido agir como tal.

Shail inclinou a cabeça.

- E o que vais fazer, então? Ficar aqui, em Vanissar?

- Não sei - respondeu Victoria, com sinceridade.

Jack tinha criado raízes em Vanissar. Durante aqueles três meses, ele e Victoria viajaram muito. Tinham estado em Celestia, visitado as sacerdotisas de Gantadd, tinham até feito uma breve viagem à Torre de Kazlunn. Havia sempre coisas a fazer, sobretudo, depois da visita dos deuses. Tinham ajudado na reconstrução da cidade e actuado como embaixadores de Vanissar mais de uma vez. Victoria aproveitara aquelas viagens para percorrer, como unicórnio, lugares diferentes. Recordava claramente, por exemplo, a náiade que surpreendera no seu tanque, em Derbhad. Tinham olhado uma para a outra durante um único segundo, e Victoria sentira aquela conexão, aquele impulso que a levara a aproximar-se dela e a tocá-la com o seu corno. Recordava a expressão dela e como os seus olhos se tinham enchido de luz momentaneamente, quando lhe entregara a magia. Em contrapartida, Victoria apenas lhe perguntara o seu nome.

Chamava-se Lisbe.

Não se esquecera, nem nunca esqueceria. Também não esqueceria o jovem gigante com quem se deparara numa das suas primeiras expedições, quando ainda ia sozinha. Tinha encontrado os gigantes à beira do caminho, a descansar depois de um duro dia de caminhada. Deslizara então entre eles, como um raio de lua, e nem sequer a tinham visto. Só um deles lhe tinha chamado à atenção. Vigiara-o da sombra até que ele se separara do grupo para se aproximar do rio. Então, ela tinha-se mostrado diante dele.

Chamava-se Ymon.

Victoria sabia que Ymon não iria nunca à Torre de Kazlunn, que, depois daquele encontro, tinha seguido o seu caminho e que agora estava, com os outros gigantes, a tentar começar uma nova vida na Cordilheira de Nandelt. Uma opção tão respeitável como a de Lisbe, que já estudava com os aprendizes de Qaydar.

Havia mais, e Victoria lembrava-se claramente dos seus rostos e nomes. E sabia quantos eram. Demasiados, para tão breve tempo, mas a Qaydar ainda lhe pareceriam poucos.

Não; Victoria não podia ficar num só lugar, fosse Vanissar ou Kazlunn. Tinha de se movimentar pelo mundo, viajar, percorrer diferentes cidades, povoações, aldeias. Porque todos, no Norte ou no Sul, em todos os cantos de Idhún, tinham direito a sonhar que um dia veriam um unicórnio.

Jack, todavia, sentia-se cada vez melhor em Vanissar. Tinha estado a treinar com Covan, conhecera outros cavaleiros de Nurgon e estava a ponderar entrar na Ordem. Embora também se sentisse atraído pelos Novos Dragões. Voara outras vezes com eles e gostava.

No entanto, Victoria sabia que não partilhava totalmente dos ideais de uns nem de outros. Não queria continuar a lutar contra as serpentes, como faziam os Novos Dragões. E as rígidas normas dos cavaleiros de Nurgon pareciam-lhe artificiais: uns princípios que, em muitos aspectos, não se ajustavam à realidade complexa e em mutação que ele conhecia.

Porém, agora todos se tinham unido para lutar contra um inimigo comum: Gerde.

Todos sabiam que a fada se escondia algures nos Picos de Fogo, e Jack suspeitava que fosse nas proximidades do Abismo, a entrada para Umadhun. Era o único lugar onde se podiam ter escondido tantos sheks.

Porque continuavam em Idhún, Jack tinha a certeza disso. Sentia a presença das serpentes, sabia que algumas delas entravam e saíam de Umadhun. Sabia-o porque, se todos os sheks já tivessem ido para a Terra ou se estivessem escondidos em Umadhun, ter-se-ia sentido estranhamente vazio.

De modo que estavam a preparar um grande exército para atacar as forças de Gerde. Jack sabia que Christian ainda estava com ela, mas dissera a Victoria que estava cansado de esperar de braços cruzados que acontecesse alguma coisa.

- Os deuses foram-se embora e deixaram-nos Gerde aqui. Não estou disposto a aceitar que ela reconquiste este mundo, renovando o império de Ashran, e muito menos a permitir que leve todos os sheks para a Terra. Lutaremos e obrigaremos o Sétimo a sair do seu corpo. Talvez regresse assim à sua dimensão de origem, onde os Seis estarão à sua espera. Se Christian for tão inteligente como diz ser, vai afastar-se e não se intrometerá.

Victoria duvidava que Christian fosse realmente afastar-se, mas sabia que não conseguiria dissuadir Jack. Este não só odiava estar sem fazer nada, como também, além disso, detestava profundamente Gerde; talvez mais do que odiara Ashran. Se alguma vez estivera indeciso sobre se deveria participar ou não na guerra, o seu catastrófico encontro com a fada dissipara todas as suas dúvidas.

- Jack sente-se bem em Vanissar - disse Shail, trazendo-a de volta à realidade. - Quando tudo isto acabar, talvez queira ficar aqui. Não no castelo, claro. Imagino que queiram ter uma casa própria e tudo isso...

Victoria inspirou fundo.

- O problema não é Jack, sou eu - disse. - Sabes quantas pessoas por dia vêm para pedir que lhes conceda a magia? Alsan teve de designar um secretário especificamente para as atender, que toma nota dos seus pedidos, dos seus dados e dos motivos por que querem ser feiticeiros...

É de loucos, Shail. As coisas não funcionam assim.

- Então, porque não mudá-las um pouco? - replicou ele. - Porque não começar a fazer isto de outra maneira?

- Seleccionando os melhores candidatos? - Victoria sorriu. - Foi assim que decidiste que amavas Zaisei? - perguntou-lhe, repentinamente. Tomando nota dos pedidos das candidatas e seleccionando a mais apta de todas elas?

- Não é a mesma coisa - protestou Shail.

- Não, mas é parecido. Todos temos o direito de ser amados alguma vez. Se só os melhores pudessem ter a opção de receber o amor de outra pessoa, quantas pessoas teriam parceiro? com a magia passa-se o mesmo. Todos têm o direito de um dia verem um unicórnio, Shail. Não os podes seleccionar. com que critérios o farias?

- Entendo - murmurou o feiticeiro. - Suponho que para mim é simples, dado que já recebi o dom do unicórnio. Mas, se não tivesse sido assim... não sei se teria querido que me pusessem numa lista ou que me excluíssem dela.

- A magia é a energia do mundo, Shail. Faz parte de todos. Por isso... não posso ficar em Vanissar, nem em Kazlunn, nem em nenhum outro lugar. Imagina que estabelecia a minha casa em algum dos reinos. Todos os outros exigiriam que me mudasse para o seu. Lutariam para me ter. Porque no lugar onde eu viver haverá mais feiticeiros, e isso é algo que interessa a qualquer soberano. Agora todos se uniram porque temem os sheks, mas, no dia em que eles não existirem, o mundo irá dividir-se e todos lutarão para obter os dons do último unicórnio... se souberem onde o encontrar. Por isso nunca houve maneira de encontrar os unicórnios. E se algum dia decidisse criar raízes, teria de ser num lugar que não fosse do domínio público.

- E então o que vais fazer? Victoria dirigiu-lhe um longo olhar.

- Não sei - confessou. - Eu quero estar com Jack, mas não lhe posso pedir que passe o resto da sua vida a viajar de um lado para o outro. Por outro lado... Shail, estou a fazer tudo o que posso, mas não sei se servirá de alguma coisa. O que será da magia quando eu já não existir? Por acaso o que estou a fazer não será prolongar a sua agonia um pouco mais?

Shail suspirou. Não tinha respostas para aquelas perguntas. Naquele momento, uma terceira pessoa chegou às ameias. Victoria retrocedeu instintivamente, mas já era demasiado tarde: tinha-os visto.

- Estás aqui! - saudou Zaisei. - Shail, andava à tua procura. A Mãe está a tomar o seu banho e eu...

Reconheceu então Victoria e aproximou-se dela para a cumprimentar. A jovem não tinha onde se esconder, de modo que se adiantou uns passos, com um sorriso forçado.

Zaisei apercebeu-se de que não era bem-vinda quando já estava prestes a abraçá-la. Deteve-se por um momento, confusa, e olhou para ela, quase como a pedir desculpa. Victoria abanou a cabeça e abraçou-a calorosamente.

- Fico contente por te ver - disse-lhe, e era verdade. Zaisei detectou aquele sentimento de carinho que emanava de Victoria, e que se sobrepôs à ligeira rejeição que pressentira nela no início. Afastou-se um pouco, e então notou algo diferente nos sentimentos que lhe transmitia, uma mescla de esperança, doçura, alegria, expectativa e inquietação... tudo junto.

Uma criança celeste talvez não tivesse sido capaz de decifrar aqueles sintomas, mas Zaisei tinha estado perto de mulheres grávidas noutras ocasiões. Deu um passo atrás e olhou para ela, com os olhos muito abertos. Victoria lançou-lhe um olhar de advertência, mas não era necessário. Zaisei soube imediatamente que queria mante-lo em segredo. Caso contrário, já teria corrido a notícia.

- Eu também fico muito contente por te ver - respondeu, com suavidade. - Espero que possamos falar um pouco: há muito que não sei nada de ti.

Victoria assentiu, sorrindo.

- Vamos ter uns dias muito ocupados, mas tenho a certeza de que encontraremos um tempinho.

- Fico muito contente por Alsan - disse então Shail. - É muito importante para ele ocupar o lugar que o seu pai deixou. Sente que tem uma dívida para com ele por ter abandonado Vanissar ao partir para a Terra.

- Mas fê-lo para salvar Idhún! - objectou Zaisei.

- Sim, e ao fazê-lo descurou o seu próprio povo, deixando que o seu pai morresse na luta contra as serpentes e que o seu irmão tivesse de se render a Ashran. Embora não o diga, sente-se responsável por tudo isso. Quer emendar os seus erros passados.

- Sim, repete muito isso ultimamente - murmurou Victoria, algo abatida.

A sua relação com Alsan melhorara um pouco, embora não completamente. Sem dúvida, a notícia de que Victoria estivera a consagrar novos feiticeiros aliviara a sua desconfiança em relação a ela e o facto de Christian não se ter deixado ver por ali em todo aquele tempo também era um ponto a favor. Mas não bastava. Cada vez que falava com Victoria, Alsan não podia evitar olhar para o anel que ainda brilhava no seu dedo, prova irrefutável de que a relação da jovem com o shek continuava. De modo que ambos se tratavam com uma fria cortesia. No entanto, não tinham voltado a ter uma discussão séria, e Victoria considerava isso melhor do que nada.

- Acham que a bracelete que usa o irá proteger do Triplo Plenilúnio?

- perguntou então Shail, baixando a voz.

As duas raparigas trocaram um olhar pensativo.

Alsan não se separava daquele bracelete nem por um instante. E parecia funcionar: naqueles três meses, tinha havido três plenilúnios de Ayea, e mais um de Ilea, e nenhum deles parecera afectá-lo minimamente. Claro que nem a lua vermelha, nem a verde, tinham poder suficiente para o transformar completamente, com ou sem bracelete. Se Alsan estava ou não curado, só Érea podia fornecer a resposta, e, desde a noite da intervenção de Gaedalu no bosque de Awa, a lua maior não voltara a mostrar-se cheia. O próximo encontro com ela seria três dias depois. Na noite de fim de ano. A noite do Triplo Plenilúnio.

Victoria desviou o olhar. Era estranho pensar que já tinha passado quase um ano desde a morte de Ashran, desde aquela terrível noite que ainda lhe provocava pesadelos. Talvez se tratasse de uma intuição totalmente irracional, mas o Triplo Plenilúnio deixava-a receosa. A experiência dizia-lhe que nada de bom podia sair de uma conjunção astral, embora aquela ocorresse em Idhún todos os anos, desde o início dos tempos, sem nenhuma consequência, não mais perigosa do que qualquer eclipse na Terra.

Zaisei abanou a cabeça.

- Se o bracelete o proteger - disse -, será um alívio; mas não tenho a certeza se o facto em si é bom. Esse objecto tem uma pedra extraída da Rocha Maldita, Shail.

Enquanto não soubermos o que é...

Deixou a frase por concluir, mas ninguém teve ânimo de a terminar.

Tinham procurado mais informação sobre aquela rocha. Tinham consultado livros e documentos antigos, perguntado a pessoas mais velhas e mais sábias, sem sucesso. Ainda não tinham ideia da natureza daquele objecto, nem estavam seguros do efeito que podia produzir nas pessoas.

A Alsan parecia estar a fazer-lhe bem. Voltava a ser o de antes; até estava a recuperar, pouco a pouco, a sua antiga cor de cabelo.

Porém, Victoria não tinha a certeza se a mudança lhe agradava.

Certamente, Alsan era de novo o cavaleiro rígido e inflexível que conhecera, duro como uma rocha, firme nas suas convicções, seguro de si. Voltava a ter fé nas normas que lhe tinham inculcado desde criança, conceitos como a honra ou o dever tinham, outra vez, um sentido para ele.

Justamente por isso, já não tolerava nenhuma infracção, nada que se afastasse do seu conceito do mundo. Tudo voltava a ser preto ou branco. O cinzento estava a desaparecer para ele, tal como desaparecia do seu cabelo.

Shail, Victoria e Zaisei continuaram a falar, desta vez de coisas mais banais. Mas os três sentiam aquela inquietação indefinível, aquela impressão de que os problemas ainda não tinham acabado, de que estavam apenas a viver um período de descanso, a calma que precede a tempestade.

O pior ainda estava por vir.

- Quero falar contigo sobre uma coisa, Victoria - disse então Zaisei, mudando de assunto.

A jovem olhou para ela, cautelosamente.

- É acerca de um dos feiticeiros que vieram com Qaydar. Victoria franziu o sobrolho, compreendendo.

- Falaste com ele? - perguntou.

- Não foi preciso. Cruzei-me com o grupo quando chegou. Senti... tudo o que esse jovem traz dentro de si. Não gosto de revelar as emoções alheias, mas não pressentia isso numa pessoa desde que...

- Não continues - cortou Victoria. - Sei a que te referes. vou falar com Qaydar sobre isso.

Shail olhou para ambas, intrigado.

- De que estão a falar? Victoria suspirou.

- Trata-se de uma pessoa que eu conheci - simplificou. - Tenho um assunto pendente com ele, mas é algo estritamente pessoal, algo que devo solucionar sozinha. Agradecia-vos que não comentassem com mais ninguém.

- Nem sequer com Jack?

- Especialmente com ele.

Shail e Zaisei entreolharam-se, mas não fizeram mais comentários.

Finalmente despediram-se de Victoria e deixaram-na sozinha nas ameias. Ao ir embora, Zaisei dirigiu um olhar significativo à rapariga, um olhar que queria dizer "temos de falar". Victoria assentiu quase imperceptivelmente. Por um lado, temia revelar o segredo que guardara tão zelosamente durante aqueles três meses. Por outro, aliviava-a imenso a possibilidade de poder confessá-lo a mais alguém. A alguém que fosse uma mulher. O certo era que, embora não o tivesse dito a Jack, sentia muita falta da sua avó. Diante de Jack mostrava-se serena e segura de si, para não o preocupar; mas não deixava de ser uma mãe inexperiente e ansiava pedir conselho a outra mulher mais vivida. E, embora Zaisei ainda não tivesse tido filhos, era uns anos mais velha do que ela.

com um suspiro, Victoria voltou a entrar e desceu as escadas, preocupada. O aviso de Zaisei a respeito do feiticeiro que viera da Torre de Kazlunn não a apanhara

totalmente desprevenida. Há algum tempo que sabia que Yaren estudava com Qaydar.

Foi à procura do Arquifeiticeiro e encontrou-o nos aposentos que lhe tinham atribuído.

- Demoraste a vir ver-me, Victoria - sorriu Qaydar.

- Não devias tê-lo trazido - disse ela sem rodeios. - Aqui corre perigo. Se Jack souber que está aqui...

- Disseste-me que Jack não o conhecia.

- Nunca o viu, mas ouviu falar dele. O Arquifeiticeiro olhou-a fixamente.

- Tentou fazer-te mal, não foi? Quando estavas convalescente. Ele foi

a pessoa que...

- Não lhe guardo rancor - cortou Victoria. - Mas preciso de saber se fizeste progressos com ele.

Qaydar abanou a cabeça com um suspiro.

- Está a tornar-se cada vez mais instável. Tento ensiná-lo da mesma forma que aos outros, mas alguns feitiços simplesmente parecem estar fora do seu alcance... em concreto, todos aqueles conjuros que implicam um trabalho com seres vivos.

- As plantas murcham, os animais adoecem, as pessoas sofrem - adivinhou Victoria. - É isso que a sua magia provoca.

- É mais do que isso. Cada vez que utiliza o seu poder, sofre uma dor intensa. Apesar disso, insiste em continuar a praticar porque se recusa a ser menos do que o resto dos aprendizes. Não quer ficar para trás. De modo que, quanto mais tempo passa connosco, mais prolonga a sua agonia e mais se azeda o seu carácter.

- Então, não conseguiste fazer nada por ele?

- Continuo a estudar o seu caso, mas de momento apenas posso tentar aliviá-lo com feitiços curativos; no entanto, o efeito dura muito menos do que no resto das pessoas, como se a escuridão que há dentro dele absorvesse cada pequena gota de luz que procuramos introduzir na sua alma. Além disso, tenho a sensação de que, acalmando a sua dor, apenas curo os sintomas, mas não vou à raiz do problema. Por isso trouxe-o.

Victoria fechou os olhos. Já tinha imaginado que mais cedo ou mais tarde aquilo aconteceria.

Umas semanas atrás, ela e Jack tinham visitado a Torre de Kazlunn e a jovem falara com Qaydar acerca de Yaren. Não chegara a vê-lo nessa altura, porque arranjara maneira de o evitar. Mas o Arquifeiticeiro insinuara-lhe que procurasse fazer alguma coisa por ele. Victoria, porém, recusara-se. Podia renovar a sua magia, isso era certo; mas tinha medo de que, ao fazê-lo, apenas conseguisse remover a energia negativa que habitava em Yaren, provocando-lhe ainda mais dor e sofrimento.

- Achas que tentará atacar-te novamente? - inquiriu Qaydar. - É por isso que o evitas?

Victoria negou com a cabeça.

- Sabe que recuperei o meu poder; talvez ainda tenha a esperança de que serei capaz de o ajudar. Tenbo medo de matar essa esperança, Qaydar. Tenho medo de já não ser capaz de fazer nada por ele. Sou a responsável pela escuridão que tolda a sua alma; não quero tapar também o último raio de luz que possa chegar até ela.

- Tens assim tanta certeza de que não iria funcionar? Victoria abanou a cabeça.

- Como limparias um oceano contaminado, Qaydar? É mais fácil sujar as coisas do que limpá-las. E pode ser que, ao tentar, não façamos mais do que piorar tudo. Antes de tentar, quero ter a certeza de que é a opção correcta. Ou a única opção.

Qaydar assentiu.

- Entendo - murmurou.

Christian xhegou ao desfiladeiro entre o segundo e o terceiro entardecer.

Poucos podiam aproximar-se daquele lugar. Todos os sheks o tinham proibido terminantemente, por segurança. Christian era um dos únicos, não só por ser um dos poucos que sabiam o que se estava realmente a passar ali, mas também porque a sua parte humana o tornava mais difícil de detectar. O que Gerde estava a levar a cabo naquele lugar era tão importante, tão crucial para os sheks, que todos se mantinham afastados para não chamar a atenção sobre ele. A sua base principal era mais longe, a norte, perto do Abismo. Mas, embora todas as serpentes se encontrassem ali, aquilo não era mais do que um chamariz.

Christian deteve-se à entrada do desfiladeiro e contemplou a tela que flutuava a meio metro do chão. Era de cor avermelhada e tinha uma textura fluida, irisada. Não parecia sólida, porém, não era possível ver o que havia por detrás dela.

Uma Porta.

Aquilo era o resultado de vários meses de trabalho. Romper o tecido interdimensional tinha sido complicado, e mante-lo estável, ainda mais. Aquela era a Porta para o exílio dos sheks quando chegasse o momento, se tudo corresse bem.

Christian contemplou-a com ar crítico. Era demasiado pequena para que um shek entrasse por dela. Mas, de momento, Gerde não precisava de mais, e uma Porta muito maior seria facilmente detectável.

O shek olhou à sua volta. Junto à parede rochosa crescia uma pequena árvore-casa, demasiado estreita para que Gerde se sentisse confortável, mas que funcionava como casa temporária. Entre as suas raízes gatinhava um bebé.

Christian demorou uns segundos a reconhecer Saissh. Aproximou-se e pôs-se de cócoras junto dela para a observar de perto.

Tinha crescido muito nos últimos tempos. Mais do que o normal.

O shek ficou a ver, pensativo, como a menina brincava com uma casca meio solta. Não conseguiu evitar lembrar-se de Victoria e do seu bebé, e sentiu o impulso de tomar Saissh nos braços... apenas para ver como se saía. Sorriu para consigo e abanou a cabeça. Pela primeira vez, sentiu que a saudade o devorava por dentro e fechou os olhos para sentir Victoria do outro lado da sua percepção. Ela continuava a usar o seu anel, mas, por alguma razão, isso já não lhe bastava. Sentia saudades dela. Precisava de a ver.

Um barulho fê-lo voltar à realidade, e ergueu-se, com cautela. Mas era apenas Assher, que saíra da árvore para vigiar o bebé e que o contemplava com algum receio.

- Gerde não está aqui - disse abruptamente. - Foi... a esse outro sítio

- acrescentou, indicando a Porta com um gesto.

- Era o que imaginava - assentiu Christian. - Não importa, eu espero. Tenho de falar com ela.

- O que estavas a fazer com a menina? - inquiriu Assher de repente.

- A ver o quanto cresceu. Quando Gerde ma mostrou pela primeira vez, tinha poucos meses de vida e agora já gatinha.

- E quase caminha - assentiu Assher com orgulho. - Mas sei que isso não é normal num bebé humano. Foi essa deusa, a que faz crescer as coisas.

- Wina? - Christian olhou-o fixamente. - A presença de Wina afectou-a? Fê-la desenvolver-se mais depressa?

Assher assentiu.

- Os szish afastaram-na tanto quanto puderam, mas cresceu na mesma. Quando Gerde a viu, disse que não teria sido assim tão má ideia deixar que se desenvolvesse um pouco mais. Acho que tem vontade de que cresça e possa começar a aprender magia também.

Christian semicerrou os olhos, pensativo.

- Eu também cresci - acrescentou Assher -, na noite em que... - Calou-se, subitamente, mas Christian sabia que queria dizer "na noite em que estiveste prestes a matar-me". - Na noite em que evacuámos o acampamento porque chegaram dois dos deuses.

Christian olhou para ele de relance e verificou que, efectivamente, o szish estava um pouco mais alto.

- Mas a mim não me afectou - disse. - Continuo como sempre.

- Porque tu já és adulto - replicou Assher. -Já não podes crescer mais, apenas envelhecer. E Wina não faz envelhecer as coisas, desenvolve-as.

Adulto? Christian sorriu. Certo, tinha quase vinte anos. O tempo passava de forma tão estranha que às vezes esquecia-se disso. Aqueles três meses, por exemplo, tinham deslizado pela sua vida de forma lenta e vagarosa, mas tinham-lhe parecido uma eternidade. No entanto, o tempo que decorrera desde o seu regresso a Idhún, com a Resistência, até à queda de Ashran, parecia ter passado tão vertiginosamente como um remoinho.

Contemplou, pensativo, como Assher pegava em Saissh e a levava ao colo para o interior da árvore.

- Surpreende-me que Gerde te deixe cuidar dela - comentou com ele, telepaticamente, para não ter de levantar a voz.

- Sabe que não vou voltar a traí-la - respondeu-lhe o jovem szish de dentro da árvore. - Suponho que é muito mais do que se pode dizer de ti.

Christian sorriu de novo, sem se sentir de todo ofendido. Assher temia-o, respeitava-o e odiava-o ao mesmo tempo, mas, desde a noite em que Gerde enganara os deuses, atrevia-se a confrontá-lo, pois guardava-lhe rancor por ele ter tentado matá-lo. Além disso, era a sua maneira de o desafiar a enfrentá-lo por Gerde. Julgava que o tinha atacado para poder ficar com ela.

Christian nunca se dera ao trabalho de lhe dizer que não tinha o menor interesse em matá-lo e muito menos em "arrebatar-lhe" Gerde. Também não lhe explicou qual era o destino que a sua idolatrada feérica lhe tinha reservado. Em breve, saberia por si mesmo.

Voltou-se de novo para a Porta, cujo contorno cintilava suavemente, indicando uma alteração. Aproximou-se e observou-a com curiosidade. A superfície de um violeta apagado ondulava, como que movida por uma leve brisa. Uma figura apareceu então do outro lado, como um fantasma. Christian aguardou. Conhecia muito bem aquela silhueta.

De imediato, Gerde atravessou o umbral, a cambalear. Christian tomou-a nos braços quando já caía ao chão.

- Kirtash - disse Gerde, com esforço. - O que estás a fazer aqui? Vão florescer os rebentos de ardécala.

Christian não respondeu. Acomodou-a um pouco melhor sobre o chão e aguardou que recuperasse um pouco. Não lhe parecia nada estranho que Gerde voltasse de uma viagem desorientada e exausta e a dizer coisas absurdas. Acontecia sempre.

- Inventei uma planta nova - disse ela. - Tem duas cores, sabes? Cinzento e amarelado. Como a pele de Saissh. Mas é demasiado cedo para a plantar. A ardécala ainda não floresceu.

- Gerde, não há tempo para isso - replicou Christian. - Temos de partir o quanto antes. Não há tempo para minúcias.

- Não, não, a ardécala é importante. Tem de cobrir o chão todo, para que se possa respirar. - De repente, parecia que ia chorar. - Milhões de anos. O trabalho de milhões de anos... tenho de o fazer em tão pouco tempo, tão pouco tempo... eu sozinha. Não consigo fazê-lo, não consigo fazê-lo. Vamos morrer todos.

Christian quis dizer-lhe algo, mas não encontrou as palavras. Naquele momento, chegou Assher com Saissh nos braços. Entregou-a a Gerde, sem uma palavra.

- Olá, pequena - saudou-a a fada, sorrindo debilmente.

Fechou os olhos e inspirou fundo. Pouco a pouco, foi regressando à realidade.

- Levem-me à minha árvore - disse então.

Assher apressou-se a levantá-la, adiantando-se a Christian. O jovem contemplou como os dois se afastavam juntos, lentamente. Aos seus pés, Saissh gatinhava, e o shek inclinou-se para pegar nela.

A menina procurou esquivar-se e, quando Christian a ergueu entre os braços, desatou a chorar escandalosamente.

Ainda apoiada em Assher, Gerde voltou-se e sorriu-lhe, astuta.

- A treinar para quando fores papá, Kirtash? - troçou.

- É apenas um bebé - respondeu Christian com indiferença. Pegou nela, apesar de estar a chorar e a espernear, e levou-a de volta para a árvore.

Quando Gerde se sentou no interior da árvore, com as costas apoiadas no tronco, pareceu sentir-se muito melhor. Christian deixou Saissh perto dela e aguardou. Por fim, Gerde abriu os olhos para olhar para ele.

- Há que tempos que não te via - comentou. - Como vão as coisas em Nandelt?

Christian inclinou a cabeça.

- Aproxima-se o dia da coroação de Alsan - disse. - Os líderes dos sangues-quentes reuniram-se em Vanis para a cerimónia. E o exército dos Novos Dragões cresce dia após dia - acrescentou. - Estão a preparar-se para nos atacar.

- Isso já o sabíamos.

- O ataque é iminente. Provavelmente aguardam que Alsan suba ao trono, mas não vão esperar muito mais.

Gerde semicerrou os olhos, pensativa.

- O que se passa com os feiticeiros?

- Há onze feiticeiros novos na Torre de Kazlunn - informou Christian.

- Mas talvez haja mais. - Fez uma pausa e acrescentou: - Yaren encontra-se entre eles.

A fada inclinou a cabeça.

- Suspeitava disso - comentou apenas. - Bem, não creio que devamos preocupar-nos. Ao que parece, Victoria recuperou o seu poder, de modo que saberá defender-se perfeitamente de alguém como ele.

Christian não disse nada.

- E o dragão? - indagou Gerde. - O de verdade, quero dizer.

- Continua em Vanis, pelo que sei. Apoiando o seu amigo Alsan. Juntou-se aos Novos Dragões ou aos cavaleiros de Nurgon, ou a ambos, não sei. Não falei com ele.

- Que engraçado. Como se ele quisesse falar contigo. Christian não respondeu.

- E os cavaleiros? - continuou Gerde.

- Iniciaram uma campanha para recrutar novos discípulos para a academia. Estão a treiná-los intensivamente. Também eles querem recuperar a glória perdida.

- Estou a ver - comentou Gerde. - E Victoria? Viste-a?

- Não - respondeu Christian -, mas sei que está bem, tal como o bebé. Gerde não fez qualquer comentário.

Nas últimas semanas, Christian não tinha passado muito tempo com a sua gente. No entanto, apesar de trabalhar como espião para Gerde e, como tal, ter tempo de sobra para rondar por Vanissar e ver Victoria, não se tinha aproximado do castelo de Alsan, não por medo de ser descoberto, mas porque não queria comprometê-la.

- Os sangues-quentes preparam-se para atacar - murmurou então Gerde. - Mas eu preciso de um pouco mais de tempo. A última coisa que eu queria agora era um grupo de dragões de madeira a fustigar os meus sheks. Odeio que me distraiam quando estou a fazer alguma coisa importante.

- De quanto tempo mais necessitas? - perguntou Christian, inquieto. Gerde dirigiu-lhe um sorriso maldoso.

- Até nascer o bebé de Victoria, por exemplo. O shek franziu o sobrolho.

- Não estás a falar a sério. Há coisas mais importantes do que essa criança. Vais ficar à espera dele enquanto os Seis continuam à tua procura e os Novos Dragões atacam a nossa base? Não tardarão a encontrar este lugar, Gerde. Não podes arriscar tudo por um bebé.

- Não, é verdade. Então, teremos de levar Victoria connosco, não achas?

Christian suspirou.

- Não é uma boa ideia.

- Nem imaginas o que poderia fazer com essa criança, se for o que julgo que pode ser - acrescentou Gerde. - Teria mais potencial do que Assher e Saissh juntos. E, se for em grande parte humano, como imagino... não me dará tantos problemas como tu.

- Pode não ser meu filho - recordou-lhe Christian.

- Então, matamo-lo - respondeu Gerde com indiferença. Christian ergueu a cabeça.

- Já te avisei que não vou permitir que toques nessa criança.

- Não estás em situação de exigir nada, Kirtash. Mas, uma vez que não pareces entender, vou esclarecer umas coisas. Se me vir obrigada a ir embora daqui antes do tempo, não terei nenhum motivo para manter com vida o teu unicórnio nem o seu bebé, porque, tal como tu, já não me vão servir de nada. De modo que os matarei antes de ir... será o meu presente para os sangues-quentes... e para ti - acrescentou, com um sorriso.

Christian não disse nada.

- Por isso, se queres que continuem vivos, terás de me conseguir mais tempo. Preciso de tempo para acabar de preparar tudo, tempo para que nasça o bebé de Victoria... Se os sangues-quentes atacarem, esse tempo acaba-se. Porque aí os sheks não terão outro remédio senão sair à luz do dia, e os Seis irão encontrar-nos... e acabará tudo.

- Entendo - disse Christian a meia-voz.

- Convém-te que esse bebé seja teu filho, Kirtash, e nesse caso convém-te entregar-mo. Caso contrário, matarei os dois. Já sabes: se não me for útil, não vale a pena que continue viva. Fiz-me entender? - com total clareza.

- bom - suspirou Gerde. - Então vai a Nandelt e trava os Novos Dragões.

Christian olhou para ela, sem ter a certeza de ter ouvido bem.

- Travar os Novos Dragões? Eu sozinho?

- Oh, vamos, não são mais do que humanos montados em dragões de brincar - riu Gerde. - Sabota as suas máquinas ou, melhor ainda: fala com o teu amigo dragão e diz-lhe que não lhe convém que nos ataquem.

- Não é meu amigo.

- Partilham a mesma mulher, isso une muito - sorriu Gerde. - Tenho a certeza de que compreenderá se o pedires pelo bem de Victoria. Diz-lhe que estou disposta a aguardar até ao final da sua gravidez, embora seja apenas por curiosidade, para ver que tipo de ser nasce dela. Mas que a minha curiosidade se evaporará rapidamente se vir um único dos seus dragões de madeira a sobrevoar os Picos de Fogo.

- E conto-lhe também que estás disposta a matar Victoria e o bebé, no caso de ser seu filho? - replicou Christian. - Ou que o levarás contigo se for meu?

- Não acho que precise de saber tanto - sorriu Gerde. - Não te parece?

O shek não respondeu.

- Vamos, vai-te embora - despachou-o ela. - Não vais querer perder a coroação do nosso amigo príncipe, pois não?

- Quanto tempo? - perguntou Zaisei em voz baixa. Victoria hesitou.

- Não tenho a certeza - disse por fim. - Foram três meses em Idhún, mas não sei quantos passaram na Terra. Os vossos meses só duram vinte e um dias... mas são dias maiores.

Estavam as duas numa sala afastada, sentadas junto à janela. Tinham ido para ali depois do almoço, para poderem falar calmamente. Zaisei inclinou a cabeça.

- As mulheres humanas demoram entre oito e nove luas vermelhas a dar à luz - disse. - As celestes, um pouco menos. - Dirigiu-lhe um olhar crítico. - Não tardarás a notar que a cintura se alarga.

- Já estou-a notar - murmurou Victoria. - E sinto-me mal de manhã, e dói-me o peito. O certo é que tudo isto não me está a cair muito bem.

Zaisei sorriu.

- Isso é perfeitamente normal. Convivi com mulheres grávidas no Oráculo. No início, sentiam algum mal-estar, mas depois passava. Os últimos meses trazem consigo incómodos... de outro tipo.

Victoria enterrou o rosto entre as mãos. Zaisei passou-lhe um braço pelos ombros.

- Não tenhas medo. Não estás sozinha. O vínculo que há entre ti e Jack é forte e verdadeiro. Isso é o mais importante na hora de trazer filhos ao mundo: que sejam fruto do amor...

A celeste não acabou a frase, porque pressentiu a súbita inquietação que inundou o coração de Victoria. Compreendeu tudo imediatamente. Afastou-se um pouco dela e fitou-a, com os olhos muito abertos.

Victoria ergueu a cabeça e retribuiu-lhe o olhar.

- O que foi?

- O teu bebé... não é de Jack? - perguntou Zaisei, num sussurro. Victoria abriu a boca, mas não foi capaz de responder imediatamente.

- Não será de Kirtash, pois não? - murmurou a celeste, muito preocupada. - Victoria, não te terá...?

- Não - cortou ela, com firmeza. - Não tens porque te inquietar, Zaisei. Asseguro-te que o meu bebé é fruto do amor. Mas não sei de que amor acrescentou, com um sorriso.

- Oh. Entendo.

- Zaisei, tu sabes o que sinto por ele, sabes que é mútuo.

A celeste abanou a cabeça.

- Da última vez que vi Kirtash, havia acabado de cravar uma espada no peito de Jack.

- Eu sei - murmurou Victoria. - Posso assegurar-te que o senti como se a tivesse cravado em mim.

- Sim - assentiu Zaisei. - Eu lembro-me. Também estava lá. E sei como te sentiste. Por essa razão, quiseste matá-lo depois.

Mas Victoria negou com a cabeça.

- Não, enganas-te. Por muito que o odiasse na altura, não agi assim por vingança. Apenas procurava emendar o meu erro.

- Não entendo. Victoria suspirou.

- Não pude evitar apaixonar-me por ele, Zaisei, apesar de sermos inimigos. Mas uma vez... quando ainda lutávamos em lados contrários... pedi-lhe que perdoasse a vida a Jack, e ele fê-lo... por mim. Na altura tive uma sensação estranha. Pensei que não valia a pena continuar a lutar, que era absurdo combater e que o ódio não tinha nenhum sentido. Que o amor era muito mais poderoso. Que podia resolver todos os problemas e mudar tudo. Que tolice, não é?

- Não é nenhuma tolice. Nós, os celestes, pensamos assim.

- Christian... Kirtash juntou-se a nós por mim, porque me amava. Jack aceitou-o a contragosto e Alsan fê-lo porque não teve outro remédio, mas esteve contra desde o início. E eu sei qual era a opinião dele sobre a nossa relação: que só podia trazer-nos problemas, não só a mim, como a todos os membros da Resistência. Eu não quis acreditar. Recusei-me a admitir que a única forma de solucionar tudo fosse continuar a odiar, continuar a lutar, até mesmo contra aqueles que amamos.

Mas então... aconteceu aquilo nos Picos de Fogo. Christian e Jack lutaram e foi Christian que venceu.

- Não pudeste evitar pensar que tinha sido culpa tua - disse Zaisei. Victoria assentiu.

- Pensei que tinha estado enganada: que Alsan tivera razão desde o início; que tinha sido uma estúpida acreditando nos meus sentimentos e que o meu erro era o motivo por que Jack estava morto. Tinha de fazer o que não tinha feito na devida altura: lutar contra o meu inimigo, matá-lo, por muito que o amasse. Isso não devolveria a vida a Jack, mas era o mínimo que podia fazer pela minha gente. Porque quis morrer na altura, sabes? Mas não podia partir e deixar as coisas assim. Sem fazer nada para corrigir o meu estúpido erro.

Zaisei engoliu em seco. A dor de Victoria ao recordar aquele episódio era tão intensa que a magoou a ela também. Mas então, subitamente, a jovem sorriu.

- E sabes de uma coisa? Não tinha sido um erro. Foi o próprio Jack quem mo fez ver, quando ele mesmo evitou que eu matasse Christian.

- Ele fez isso? - perguntou Zaisei, impressionada.

- Sim - sorriu Victoria. - Os dois às vezes conseguem ser muito chatos, porque quando não discutem estão obcecados em proteger-me, mas amo-os imenso. E quanto mais tempo passamos juntos, mais sólido e intenso é o que sinto por eles.

- É porque têm uma história juntos. Mas... não pensaste... em optar por um dos dois?

Victoria olhou fixamente para ela.

- E romper um laço?

Tinha acertado em cheio. Zaisei empalideceu um pouco.

- É verdade - admitiu em voz baixa. - Irias romper um laço.

- Não posso fazer isso a nenhum dos dois. Não lhes posso partir o coração depois de tudo o que passámos... olhar para Jack, ou para Christian, nos olhos e mentir-lhe, dizer-lhe que não o quero mais ao meu lado, que prefiro estar com "o outro". Christian não acreditaria em mim. Dir-me-ia quê não é isso o que realmente sinto, e teria razão. E, por muito que lho pedisse, não se iria embora assim, sem mais nem menos, não enquanto tivesse a certeza de que ainda o amo. Quanto a Jack...

- Não o aceitaria - murmurou Zaisei.

- Imagina que, depois de tudo o que passámos juntos, lhe dizia que queria deixá-lo para estar com Christian? - Abanou a cabeça. - Iria doer-Ihe mais do que saber que não tenho preferências.

- Não tens, pois não? - quis assegurar-se a celeste.

- Não, não tenho. Mas se algum dia decidir romper a minha relação com um dos dois, será com Jack. E no dia em que o fizer não será porque amo mais Christian, mas sim porque terei chegado à conclusão de que ele será mais feliz sozinho do que comigo. Em relação a Christian, não tenho dúvidas. Sei que ele me prefere ao seu lado e que não lhe importa que Jack também esteja. Quanto a Jack... se um dia chegar a ter a certeza de que não posso fazê-lo feliz...

- Serias capaz de o olhar nos olhos e dizer-lhe que já não sentes nada por ele, que preferes estar com o shek?

- Se o fizesse, mentiria como uma miserável. E iria partir-lhe o coração. Mas se tiver de o fazer para o seu bem, Zaisei, asseguro-te de que o farei.

A celeste suspirou, pensativa.

- Se Jack fosse um celeste, não faria sentido sequer tentares. Ele saberia de qualquer forma que o amavas.

- Já devia sabê-lo - murmurou Victoria -, sem necessidade de ler a minha mente, como Christian faz, ou de sentir o que eu sinto, como tu consegues fazer. Mas não é o caso, por isso imagino que, se fosse necessá rio, poderia tentar enganá-lo para o afastar de mim.

- Isso só vos faria sofrer - advertiu-a Zaisei, um pouco assustada; a ideia de mentir para romper deliberadamente um laço parecia-lhe especialmente cruel, pelo que procurou mudar de assunto. - E o que irá acontecer quando a criança nascer? Fará com que tenhas preferências... por um dos dois?

Victoria sorriu.

- Duvido muito. Mas se for filho de Christian... talvez Jack simplesmente não seja capaz de o aceitar. Disse-lhe que compreenderia que quisesse romper a nossa relação se o meu bebé não for seu filho ou por qualquer outro motivo. Diz que não tem intenção de fazer tal coisa e que, quando aceitou continuar ao meu lado, mesmo sabendo que eu estava com Christian, sabia que isto podia acontecer. Mas julgo que no fundo tem medo. Se mudasse de opinião, eu não poderia censurá-lo.

Zaisei abanou a cabeça.

- E o shek? O que irá ele fazer se deres à luz o filho de um dragão? Iria voltar-te as costas?

Victoria sorriu.

- Não - disse apenas, segura e convicta.

Zaisei sorriu. Acariciou com suavidade o ventre de Victoria.

- Desejo-te que nasça saudável e que seja feliz - disse. - Independentemente de qual dos dois o tenha gerado dentro de ti.

- Muito obrigada - respondeu Victoria, emocionada. - O certo é que estou muito esperançada com esta criança. Se pudesse escolher... adoraria que fossem dois. E que um tivesse os olhos de Christian, e o outro, o sorriso de Jack.

Zaisei, que achava que os olhos do shek eram frios e desumanos, estremeceu ao imaginar um bebé com semelhantes características. Mas a alegria de Victoria era sincera... e contagiosa. A celeste sorriu por sua vez e abraçou-a com carinho. Victoria pestanejou para conter as lágrimas.

- Ando muito sensível ultimamente, pareço uma tonta - desculpou-se, secando os olhos.

- É normal, no teu estado - disse Zaisei.

- Não tinha contado isto a ninguém - disse Victoria em voz baixa. Só disse a Jack e a Christian e, bom... Jack também está entusiasmado, mas tem medo e além disso

preocupa-o o que vai acontecer entre nós se o meu bebé não for dele. Quanto a Christian... - Hesitou. O certo era que não voltara a vê-lo nem a falar com ele desde a noite em que lhe tinha dito que estava grávida. - Não o vejo muito ultimamente. Não é bem recebido aqui.

Zaisei reflectiu.

- Se o shek for o pai do teu bebé, terás problemas, Victoria.

- Eu sei - assentiu ela.

- Ele tem consciência disso?

- Suponho que sim. E acho que é por isso que se mantém afastado.

- Mantém-se afastado porque é um cobarde - cortou então uma voz vinda da porta. - Para lutar está sempre a postos, mas assumir responsabilidades não é com ele.

As duas jovens voltaram-se, sobressaltadas. Jack estava a olhar para elas, muito sério.

- Jack... - começou Victoria, mas ele levou um dedo aos lábios e fez um gesto com a cabeça, indicando -lhe que se aproximava mais alguém pelo corredor. Ouviram-se as vozes de Alsan e Shail.

Jack inclinou-se junto de Victoria. Tomou-lhe as mãos e obrigou-a a olhá-lo nos olhos.

- Victoria - disse em voz baixa. - Não podemos manter isto em segredo por muito mais tempo. Temos de o dizer, torná-lo público.

- Torná-lo público? - repetiu Victoria. - Para que se converta num assunto de Estado?

- E como pensas escondê-lo? Victoria não disse nada.

- Mais cedo ou mais tarde, toda a gente saberá - insistiu Jack.

- Saberá o quê? - perguntou a voz de Shail atrás deles.

Jack respirou fundo. Ergueu-se e puxou Victoria com suavidade, para que se levantasse também. Depois, susteve o olhar de Alsan e Shail, com segurança.

- Victoria está grávida - anunciou. Rodeou os seus ombros com o braço e acrescentou com um sorriso rasgado. - Vamos ter um bebé.

Os dias seguintes foram uma loucura para toda a gente.

Embora Alsan tivesse preferido que a cerimónia da coroação fosse sóbria e discreta, a presença de tantas personalidades importantes no seu castelo exigia um mínimo de protocolo e tornaria o acto em algo mais mundano do que imaginara.

Por esta razão, tanto ele como Covan tiveram muito trabalho naqueles dias, e os seus amigos não hesitaram em ajudá-los em tudo o que puderam. Não só havia que receber os convidados e respectivos cortejos, como seria necessário organizar um banquete digno deles para depois da coroação... para não falar da coordenação das diferentes homenagens que se iam realizar. Tanawe enviara três dos seus dragões, que presenteariam os presentes com uma exibição aérea; os novos cavaleiros de Nurgon tinham intenção de saudar o futuro rei num desfile e os novos feiticeiros tinham preparado um pequeno espectáculo de magia. Victoria fez notar que não podiam fazer tudo isso no pátio do castelo e que teriam de procurar, portanto, um lugar mais amplo, talvez fora das muralhas da cidade.

- Isto não é um espectáculo, é uma coroação - protestou Alsan. Não tem de ser visto como uma festa, é algo sério e solene.

- Noutras circunstâncias, seria - respondeu Victoria. - Mas o povo precisa de uma festa, necessita de recuperar a confiança. Achas que os dragões, os feiticeiros e os cavaleiros vão fazer uma exibição apenas para honrar o novo rei? Precisam de mostrar ao mundo quem são. Necessitam de acreditar, uns e outros, que não se extinguiram depois do reinado de Ashran.

Alsan olhou para ela, pensativo.

- Talvez tenhas razão - admitiu. - Mas eu queria reservar tudo isso para outra ocasião especial - acrescentou, com um sorriso expressivo.

Victoria sorriu por sua vez, mas sentia-se inquieta. Alsan recebera com grande satisfação a notícia da sua gravidez, mas apenas porque estava convencido de que Jack era o pai do rebento. Aquilo parecia tê-lo reconciliado com Victoria: a jovem não só estivera a consagrar novos feiticeiros, como também, além disso, tinha estreitado a sua relação com Jack de forma conclusiva. Como devia ser.

Victoria, contudo, não se sentia à vontade com aquela situação. Não lhe importava que Alsan achasse que o seu bebé era filho de Jack, porque havia muitas possibilidades de que assim fosse. O que realmente temia era tudo o que implicava aquilo que Alsan sugeria: tornar o nascimento do seu filho numa festa pública.

Embora ainda não o tivessem anunciado oficialmente, para não eclipsar a cerimónia da coroação, a notícia já se tinha espalhado pelo castelo. Jack e Victoria tinham recebido os parabéns de amigos e conhecidos, entre eles Qaydar, que já lhes tinha perguntado se achavam que o seu filho herdaria o poder de Victoria de conceder a magia.

E viriam mais. Por uma razão ou por outra, o nascimento daquele bebé despertaria grande expectativa. Todos iriam querer saber mais acerca dele: que aspecto teria, se seria um ser extraordinário ou um bebé humano normal... A cada dia que passava, Victoria desejava com mais força que o seu filho fosse uma criança normal e não chegasse nunca a manifestar qualquer poder ou capacidade de transformação.

- O certo é que preferia que o nascimento do meu bebé fosse algo mais... privado - confessou a Alsan, com um sorriso forçado.

- Também eu preferia que a coroação fosse um pouco mais íntima fez notar o príncipe -, mas, como tu mesma disseste, o povo precisa de uma festa e de recuperar a confiança. Esta cerimónia, juntamente com a celebração do nascimento do teu filho, irá unir-nos a todos muito mais, não achas?

- E é por isso que estou disposta a enfrentá-lo, apesar de saberes que prefiro passar despercebida - respondeu Victoria, com firmeza. - Mas não quero isso para o meu filho. Quero que leve uma vida normal, pelo menos até que tenha idade suficiente para decidir o que quer fazer, se quer ser... uma personagem pública e importante ou, pelo contrário, se prefere ser uma pessoa anónima e levar uma vida tranquila.

- Pelo simples facto de ser quem é, não terá uma vida tranquila, Victoria - replicou Alsan, muito sério. - É o filho do último dragão e do último unicórnio. Mesmo que não venha a ter nenhum poder especial, a sua mera existência é já um símbolo para muita gente. E isso acarreta obrigações. Da mesma maneira que quem nasce príncipe deve assumir a responsabilidade de governar um povo e esforçar-se por estar à altura das circunstâncias, quer queira quer não.

Victoria não disse nada. Cerrou os lábios e murmurou:

- Posso então começar a organizar tudo para que a coroação se realize nos arredores da cidade?

- Sim... - suspirou Alsan. - Agradecia-te muito que te ocupasses disso. No entanto - acrescentou -, o que vai acontecer na véspera...

- Isso sim não tem porque ser um espectáculo público - tranquilizou-o Victoria - e podemos fazê-lo no pátio do castelo. Já tinha pensado nisso.

Alsan sorriu.

- Obrigado - disse somente.

Não tinham voltado a falar do assunto, mas Victoria cumprira a sua parte com diligência. No dia anterior à coroação, quando o segundo dos sóis já desaparecia no horizonte, tudo estava preparado para a prova a que Alsan se submeteria e que decidiria se no dia seguinte cingiria ele a coroa ou, pelo contrário, se seria Covan o novo rei de Vanissar.

Tinham disposto em linha as cadeiras no pátio do castelo. Alsan sabia qual era a sua: tratava-se da cadeira de ferro com correntes à qual estaria preso durante toda a noite. Embora Victoria se tivesse encarregado de que o ourives forjasse aquela cadeira com adornos e filigranas e a coroasse com o brasão de armas de Vanissar, não deixava de ser um trono de ferro com correntes.

- Achas isso humilhante, não é? - perguntou-lhe Shail naquela tarde. Alsan não respondeu logo.

Tinham-se reunido, juntamente com Jack, numa pequena varanda que dava para o pátio do castelo, para descansar um pouco antes da prova que decidiria o futuro de Alsan. Tinham contemplado dali o primeiro entardecer e agora assistiam ao segundo. Mas não tinham pressa. Mereciam aquele descanso, e Alsan precisava da companhia dos seus amigos.

- Seria humilhante se essas correntes tivessem de me reter - disse Alsan ao fim de algum tempo. - Mas não vão ser necessárias, porque não me vou transformar.

- Então desejo-te tudo de bom como rei - murmurou Jack. - Mas deves ter em conta que, se o deves a esse bracelete, vais depender dele para o resto da tua vida.

Alsan dirigiu-lhe um olhar severo.

- Devo-o aos deuses - corrigiu. - O seu poder mantém cativo o animal que há em mim.

- Mas não o arrancou do teu interior, Alsan. Continua aí.

- Se me extraírem o espírito do animal, morrerei. É isso que sugeres que faça?

- Claro que não - replicou Jack, aborrecido. - Quero que sejas rei, se é o que desejas. Mas sobretudo quero que tu estejas bem. E que te lembres de que sem esse bracelete voltarias a ser o de antes.

- Por isso nunca o tiro. Por isso ninguém deve saber o que acontecerá se o perder - acrescentou Alsan, e as suas palavras continham não só uma advertência, mas também, como Jack pareceu entrever, uma ameaça velada.

Não insistiu no assunto.

- Então e tu? - perguntou-lhe Shail, recostando-se na sua cadeira. Zaisei disse-me que Victoria já está de três meses. Já lhe deram nome? acrescentou, com um sorriso.

- Ainda não. Nem sequer sabemos se vai ser menino ou menina... mas Victoria diz que prefere que seja uma menina.

- Então?

Jack sorriu. Também ele dissera o mesmo, e a resposta de Victoria, meio a brincar, meio a falar a sério, tinha-o feito rir: "Porque acho que já há demasiados homens na minha vida!" Julgando que Alsan não fosse achar muita piada, disse, sem responder à pergunta:

- Não há maneira de saber antes de nascer, pois não? Não há ecografias em Idhún.

- Eco-quê?

- Esquece - riu Jack.

- Não pensaram em abençoar a vossa união? - perguntou então Alsan, subitamente. - Já sei que não é necessário, mas... bom, as pessoas falam muito e existem rumores acerca de uma relação entre Victoria e Kirtash...

- Não são rumores, é um facto - cortou Jack.

- Um facto passado - replicou Alsan, com firmeza. - Mas, se formalizarem a vossa união publicamente, já não restará nenhuma dúvida acerca da lealdade de Victoria à nossa causa.

Jack lançou-se para trás, um pouco confuso.

- Queres que nos casemos? Por motivos políticos?

- Por motivos políticos, dizes? - repetiu Alsan, tão ofendido como se o tivesse insultado. - Obviamente que não! Já sabes que isso é impossível!

- Não, não sabe - interveio Shail, conciliador; voltou-se para ele. Sabes, Jack, há séculos que em Idhún já não existem casamentos por questões políticas ou económicas, ou por qualquer outro motivo que não seja um sentimento sincero. O matrimónio, como cerimónia ou como instituição, desapareceu da nossa cultura há muito tempo. Desde que os celestes ficaram encarregados da cerimónia de união.

" Tudo começou quando um sacerdote celeste teve de presidir à união entre dois príncipes humanos. Imagina a situação: diante de um público de nobres, reis e embaixadores de outras raças, o sacerdote tentou pronunciar várias vezes as palavras que uniriam o casal no casamento, mas não conseguiu. Acabou por levantar a cabeça e dizer em voz alta: "Lamento, não posso abençoar uma união que não existe. Estas duas pessoas não se amam."

- A sério? - disse Jack, estupefacto. - E o que aconteceu?

- Procuraram outro sacerdote e levaram a cerimónia a cabo, apesar de a noiva não parar de chorar. Mas o episódio foi muito comentado e, desde então, cada vez mais casais começaram a exigir que fosse um celeste a casá-los, para assim demonstrar ao mundo que o seu amor era sincero. Podes imaginar o resto. O que começou como uma moda romântica tornou-se uma revolução.

- com o tempo, o casamento desapareceu enquanto tal - prosseguiu Alsan, mais calmo. - O certo é que, do ponto de vista dos celestes, tem a sua lógica: uma união não existe porque um sacerdote o diz, existe porque duas pessoas se amam, independentemente do que o sacerdote disser. Por isso a cerimónia se chama agora "abençoar a união" e só pode ser realizada pelos sacerdotes celestes. Se duas pessoas não se amam, a cerimónia não pode levar-se a cabo, porque não há nenhuma união a abençoar.

- E os sacerdotes celestes são infalíveis? Como podem saber que duas pessoas se amam de verdade?

- Eles dizem que existem laços entre as pessoas - explicou Shail. Laços que as unem: de amor, de amizade, carinho... Para nós é algo abstracto, mas para eles é muito real, porque conseguem realmente ver esses laços e as relações que existem entre as pessoas, tal como conseguem ver a roupa que usam. Dizem que o laço que une duas pessoas que estão apaixonadas tem uma cor e uma intensidade especiais. Para eles, portanto, os ritos de casamento de outras raças não faziam nenhum sentido: eles sabem que são duas pessoas que se amam que criam esse laço e não uma cerimónia, seja quem for que a celebre. De modo que se limitam a testemunhar que esse laço existe e a abençoar o casal, desejando-lhes que o laço perdure e que sejam muito felizes. São os sacerdotes que o fazem para conservar um pouco a tradição, mas qualquer celeste poderia realizar uma cerimónia de união.

- E nunca mentem quanto a isso?

- Não podem. Para eles, os laços são algo sagrado: não podem fingir que um laço existe, se nunca existiu, ou se há algum tempo que se desfez... e vice-versa.

" Tudo isto alterou a nossa concepção do mundo. Os celestes são muito discretos, não falam dos laços alheios a não ser que se lhes pergunte, e naquela época toda a gente começou a perguntar. Imagina o que tudo isso acarretou. As outras raças descobriram subitamente que podiam existir laços de amor entre pessoas de diferentes raças, idades, condições ou situações sociais, mesmo entre as do mesmo sexo... Os laços estavam por todo o lado e nós não os víamos. Suponho que, de certo modo, para os celestes deve ter até parecido engraçado. Foi como se todos os outros tivessem de repente descoberto que os sóis existiam, quando já os iluminavam há milénios.

- Todos os apaixonados reivindicaram o seu direito a amar-se - acrescentou Alsan, com um sorriso. - Foi uma época bastante caótica, mas as igrejas reagiram bem. Decidiram reformar a ideia que tinham do casamento e deixar que os celestes se ocupassem desses assuntos. E mudaram muitas coisas, entre elas, os casamentos de conveniência.

- Isso é bonito - opinou Jack. - Quem dera que as coisas fossem assim na Terra.

- Não têm os celestes - replicou Shail, com um sorriso rasgado -, o que é de lamentar. Não só são uma raça encantadora, como além disso ensinaram-nos muito acerca das relações e dos sentimentos.

- Suponho que agora entendes um pouco melhor o meu comentário de há bocado - disse Alsan. - Entre Victoria e tu já existe um laço suficientemente forte para que valha a pena incomodar um sacerdote celeste para que oficie uma cerimónia. A única coisa que fará será confirmar que estão apaixonados, nada mais. E estão, não?

- Claro que sim - replicou Jack, rapidamente.

- bom, pensa nisso. Acho que seria bom para todos que celebrássemos a vossa união, antes ou depois do nascimento do bebé, como quiserem. Este tipo de coisas anima as pessoas e fá-las sentirem-se melhor, sobretudo em tempos difíceis. De facto, seria uma boa ideia que o próprio Ha-Din celebrasse a cerimónia...

- Eh, eh, não vás tão depressa - protestou Jack. - Não disse que sim. Tenho de pensar nisso e, obviamente, falar com Victoria.

- Vai estar de acordo. Não há nenhum motivo para que te diga que não, estou enganado? Além disso, vai ter um filho teu.

- E...? - perguntou Jack, sem entender onde queria chegar.

- bom... um filho não implica necessariamente um laço, mas vocês já estão apaixonados e isto irá unir-vos ainda mais. Agora são uma família, com bênção ou sem ela. E não sabes o quanto a ideia me deixa feliz. Por isso, quero celebrá-lo publicamente e quero que seja o próprio Pai da Igreja dos Sóis a declarar perante todos que sim, que existe um laço entre ti e Victoria. Agora que Victoria está mais unida a ti do que alguma vez esteve a Kirtash, é muito provável que acabe por afastar esse shek da sua vida para sempre. Acima de tudo, tu és o pai do seu bebé.

Sorria, orgulhoso e emocionado, mas Jack não pôde evitar sentir-se incomodado.

- De qualquer forma, tenho de falar com Victoria sobre isso - repetiu. Alsan retirou importância ao assunto com um gesto.

- Todas as futuras mães adoram declarar que estão apaixonadas pelo pai do seu filho - assegurou-lhe. - Talvez proteste um pouco contra a ideia de ser uma cerimónia

pública, mas não te dirá que não. Afinal de contas, vais ter um bebé.

- Pára de repetir isso, por favor - murmurou Jack, sentindo-se cada vez pior. - Já te disse que temos de falar sobre o assunto.

- E além disso temos outros assuntos mais urgentes para tratar - acrescentou Shail, detectando a tensão crescente de Jack. - O terceiro dos sóis começa a pôr-se.

Sobreveio um breve silêncio. Depois, Alsan pôs-se de pé.

- Então, vamos descer - disse apenas.

Pouco depois, os três apareciam no pátio. Ali já os aguardavam Covan e Victoria, e pouco depois saiu Gaedalu, acompanhada de Zaisei. Quando o último dos sóis já se punha no horizonte, apareceram Qaydar, Ha-Din e a rainha Erive de Raheld, seguida de Denyal, dos Novos Dragões.

Todos eles iam ser testemunhas. No entanto, outras pessoas acompanhavam-nos. Dois cavaleiros de Nurgon e meia dúzia de soldados do castelo, bem armados, rodearam Alsan. com Qaydar tinham chegado mais dois feiticeiros. Um deles era Yber, o feiticeiro gigante que, tempos antes, tinha sido capaz de controlar o príncipe de Vanissar numa das suas transformações.

As testemunhas ocuparam os seus respectivos lugares. Ia ser uma noite muito longa, mas Alsan mostrava-se sereno. Reagiu com naturalidade quando os cavaleiros o conduziram para a cadeira, fizeram-no sentar-se e rodearam-no com fortes correntes.

- Apenas por segurança - asseguraram-lhe, e Alsan assentiu. Tinha falado sobre isso com Covan e sabia que aquilo era necessário.

Denyal, Covan e Jack certificaram-se de que as correntes estavam bem postas. Antes de se afastar dele, Jack apertou com suavidade o braço de Alsan, para o animar. Depois, regressou para junto de Victoria e sentou-se ao seu lado. Deram as mãos, inquietos.

Também Shail estava nervoso. Tinha trocado algumas frases carinhosas com Zaisei, mas depois retrocedera para junto da muralha, onde estava Yber, e ambos trocavam impressões em voz baixa.

Os outros, simplesmente calaram-se e esperaram.

Pouco a pouco, o céu foi escurecendo e apareceram as primeiras estrelas. Todos aguardavam, tensos.

Por fim, as luas apareceram no horizonte, redondas, perfeitas. Primeiro deixou-se ver Ilea, a lua verde, brilhante e magnífica. Seguiu-a Ayea, a pequena lua vermelha, emergindo no céu nocturno. E, por último, fez a sua aparição, no meio das outras duas, ocupando o vértice inferior do triângulo, a rainha da noite idhunita, a belíssima Érea, a lua de prata, onde, segundo a tradição, habitavam os deuses.

Todos contemplaram, assombrados, o triplo plenilúnio que se erguia sobre as suas cabeças, enquanto noutras partes da cidade já soava música de festa, celebrando a iminente chegada do Ano Novo, como sempre se fazia naquela data.

Mas naquela ocasião festejava-se, além disso, mais duas coisas: na manhã seguinte Vanissar teria por fim um novo rei e havia já passado um ano desde a derrota de Ashran, o Necromante, e dos seus sheks, na batalha de Awa.

Foi isto o que Jack e Victoria também recordaram. Durante alguns segundos, olharam um para o outro, e Jack apertou a mão de Victoria com mais força.

Um ano.

Um ano desde aquela noite fatídica em que Victoria tivera de escolher entregar o seu corno, e a sua vida, para salvar a dos seus entes queridos. Um ano desde aquela noite em que o céu ardera, levando consigo as vidas de centenas de sheks e a de Allegra, a avó de Victoria. Um ano desde a queda da Torre de Drackwen, desde a morte de Sheziss.

Um ano desde a derrota de Ashran, o Necromante.

Victoria baixou a cabeça, comovida, e dirigiu um pensamento à sua avó. Também se lembrou de Christian. Há exactamente um ano, os três tinham enfrentado o seu inimigo, juntos. A tríada.

Onde estava Christian agora?

Procurou não pensar nisso e ergueu a cabeça para olhar Alsan.

Também fazia um ano que Alsan se transformara no animal sanguinário que acabara com a vida do seu próprio irmão... e aquela era a razão, recordou a si própria, por que estavam ali aquela noite.

Mas desta vez o rosto de Alsan não tinha mudado. Imóvel como uma estátua, acorrentado ao seu trono de ferro, contemplava a beleza do Triplo Plenilúnio.

Continuava a ser ele.

As testemunhas ainda aguardaram durante bastante tempo, até que a voz telepática de Gaedalu soou na mente de todos.

- Superou a prova - disse somente.

- Eu prefiro esperar um pouco mais - disse Covan. - Não devemos deixar nada ao acaso.

Gaedalu manteve-se em silêncio, mas semicerrou os olhos. Jack perguntou-se se Covan pretendia realmente obrigar as pessoas mais ilustres de Idhún a permanecerem acordadas numa cadeira durante toda a noite de fim de ano. Pelos vistos, o mestre-de-armas pareceu pensar o mesmo, porque acrescentou:

- Se estiveres demasiado cansada, Mãe Venerável, podes retirar-te. Os cavaleiros e eu ficaremos a velar o príncipe.

Ninguém se mexeu.

A primeira-a ir embora, contudo, foi a rainha Erive de Raheld. Levantou-se e declarou que se retirava para os seus aposentos. Despediu-se dos presentes e, antes de ir, inclinou-se brevemente diante de Alsan.

- Alteza... - saudou. - Vemo-nos amanhã, na tua coroação.

Alsan respondeu-lhe com cortesia e desculpou-se por não poder levantar-se. As suas palavras, impregnadas de humor, fizeram sorrir toda a gente.

Victoria chegou a ver Gaedalu retirar-se, quando a sua pele começou a secar, e Zaisei, que foi com ela. Depois, o sono foi-lhe fechando lentamente os olhos...

Acordou com as primeiras luzes da aurora. Continuava na sua cadeira; tinha adormecido com a cabeça apoiada no ombro de Jack.

- O que aconteceu? - murmurou, um pouco aturdida.

- Ssshh - fê-la calar Jack, em voz baixa. - Olha.

Victoria ergueu a cabeça e viu que Alsan ainda estava acorrentado à sua cadeira e que Yber, o gigante, se encontrava atrás dele. Sentiu-se inquieta, mas então viu que tudo parecia continuar tal como horas antes; a roupa de Alsan estava intacta e nem a cadeira de ferro nem as correntes pareciam ter sofrido danos.

Yber estava justamente a retirar as correntes que tinham prendido Alsan até então. Quando caíram ao chão, ruidosamente, acordando Shail, que também adormecera contra o muro, Alsan levantou-se, devagar, mexendo os braços para os desentorpecer. Não parecia zangado por ter sido submetido àquela prova, nem contente por a ter superado. No seu rosto transparecia uma expressão estranha, distante e, ao mesmo tempo, pensativa.

Covan adiantou-se então uns passos. Os dois cavaleiros que o tinham acompanhado seguiam-no de perto.

Ambos, príncipe e mestre, trocaram um longo olhar. Depois, lentamente, Covan dobrou o joelho diante de Alsan e os cavaleiros imitaram-no.

- Suml-ar-Alsan, rei de Vanissar! - disseram em uníssono.

A Jack pareceu-lhe que era uma cena tremendamente solene, pelo que se levantou da sua cadeira. Victoria imitou-o.

Alsan inclinou a cabeça e estendeu a mão a Covan para o ajudar a levantar-se. Depois, os dois homens uniram-se num abraço fraterno.

No entanto, os olhos de Alsan olhavam mais além, por cima do ombro de Covan. Jack não pôde evitar voltar-se para seguir a direcção do seu olhar.

As cadeiras das testemunhas estavam já quase todas vazias. Qaydar retirara-se pouco antes do primeiro amanhecer e os soldados também tinham voltado aos seus postos há algum tempo.

Denyal, em contrapartida, continuava ali. Ficara um pouco afastado, junto à porta, e contemplava a cena com os olhos semicerrados. Jack viu-o levar a mão ao coto do seu braço esquerdo e sacudir a cabeça para, de seguida, dar meia-volta e ir-se embora, sem dirigir a Alsan uma só palavra.

Porém, não era para ele que Alsan olhava.

Havia uma pessoa, além de Jack e de Victoria, que não se tinha movido da sua cadeira.

Era Ha-Din, o celeste, o Pai Venerável.

Jack não tivera ocasião de falar com ele desde a sua chegada a Vanissar, e o certo era que também não fora ao seu encontro. Temia que Ha-Din percebesse as suas dúvidas a respeito da gravidez de Victoria e, embora Zaisei lhe tivesse assegurado que o seu medo e insegurança podiam ser facilmente interpretados como os temores de um pai novato, Jack sentia-se mesmo assim inquieto.

No entanto, os olhos de Ha-Din estavam agora cravados em Alsan. Não sorria, mas também não o observava com reprovação. Jack detectou um vestígio de inquietação na sua expressão, como se tivesse captado em Alsan algo de que não conseguia gostar, mas não pudesse definir o que era.

Finalmente, Ha-Din levantou-se e, com um sorriso forçado, inclinou a cabeça perante Alsan. O jovem correspondeu ao gesto.

Jack não era um celeste, mas, apesar disso, percebeu claramente a tensão existente entre os dois.

Depois, Ha-Din deu meia-volta e dirigiu-se aos seus aposentos. Alsan deixou de lhe prestar atenção. Shail estava já junto do amigo, e os dois comentavam, sorridentes, os resultados da prova.

- O que está a acontecer? - murmurou Victoria, desconcertada.

- Também reparaste? - perguntou Jack, preocupado.

Não puderam falar mais, porque, naquele momento, Shail indicou-lhes com um gesto que se aproximassem. Jack inspirou fundo.

- Anda - disse, tomando a mão de Victoria. - Vamos felicitar o novo rei de Vanissar.

 

                RUPTURA

A cerimónia da coroação teria lugar quando Kalínor, o sol maior, alcançasse o seu ponto mais alto sobre o céu idhunita.

Até lá ainda faltava algum tempo.

Os que tinham presenciado a prova de Alsan até ao fim mal tinham dormido: tirando o próprio Alsan e os cavaleiros que o vigiavam, que não tinam pregado olho, os outros tinham cabeceado no decurso da longa noite. Porém, não houve tempo para descansar. Ainda faltava preparar muita coisa para a cerimónia.

Tinham escolhido uma clareira nos arredores da cidade, perto do bosque. Ali tinha-se colocado uma tribuna com três assentos, como era habitual nas coroações dos reis de Nandelt. Dois deles seriam ocupados pelo futuro rei e pela pessoa que ia colocar a coroa sobre a sua cabeça. Normalmente, este gesto costumava ser realizado por alguém da mesma família, mas, dado que Alsan já não tinha irmãos e que os seus pais também tinham morrido há muito tempo, seria outro soberano quem lhe cingiria a coroa. Neste caso, Alsan tinha escolhido Erive, rainha de Raheld.

O terceiro assento estava reservado para um representante da Ordem de Cavalaria de Nurgon. Naturalmente, seria ocupado por Covan.

Também havia uma bancada para os convidados importantes,

O resto do público teria de permanecer de pé, dado que não havia cadeiras para todos. Por seu turno, os cozinheiros do castelo tinham passado toda a manhã e grande parte da noite anterior a preparar centenas das empadas de ave típicas de Vanissar. Também se serviriam grandes quantidades de nunk, uma bebida muito comum em todo o Nandelt, que se fazia com bagas silvestres fermentadas. Todos os que fossem à cerimónia da coroação não só contemplariam o espectáculo que os feiticeiros e os dragões artificiais de Tanawe iriam oferecer, como além disso iriam para as suas casas com o estômago cheio.

Apesar do cansaço que sentiam, os amigos de Alsan continuaram a supervisionar os últimos pormenores, até não haver quase nada para supervisionar.

- Acabam de enviar o altar do templo, e na clareira não sabem muito bem onde colocá-lo - informou Jack a Shail e a Victoria, a meio da manhã. - O que faço? Pergunto a Gaedalu onde devem colocá-lo?

- Não é necessário incomodá-la por algo tão óbvio - respondeu Shail.

- Trata-se de um pequeno altar de oferendas, que se coloca sempre à entrada do lugar de oração; neste caso, junto ao caminho que conduz à clareira, por onde vão chegar as pessoas. Toda a gente sabe disso. Qual é o problema?

- Pelos vistos, bloqueia a entrada - respondeu Jack. Shail deixou escapar um suspiro exasperado.

- vou ver o que se passa. Acompanham-me? - perguntou-lhes.

- Eu, sim - disse Jack -, mas Victoria devia ficar no castelo até à hora da cerimónia.

Ela assentiu, com alguma resignação. Nos últimos tempos quase não saía do castelo em plena luz do dia. As pessoas costumavam abordá-la na rua para lhe suplicar que lhes concedesse a magia.

- vou certificar-me de que está tudo bem na cozinha - disse. - Onde está Alsan?

- Foi à capela rezar - disse Shail. - Para pedir aos deuses saúde e boa sorte no seu reinado, claro. É a tradição.

Victoria lançou uma olhadela ao céu.

- Despachem-se - disse -, depressa começarão a chegar as pessoas à clareira e tem de estar tudo a postos.

Christian tinha chegado à cidade ao primeiro amanhecer, mas não se tinha aproximado do castelo. Depois de rondar pela clareira onde ia celebrar-se o acto da coroação, tinha-se escondido entre o mato com as primeiras luzes do dia e pôs-se a observar dali as pessoas que iam e vinham, nos preparativos para a cerimónia.

Não deixara de se perguntar por que razão tinham escolhido aquele dia, o dia de Ano Novo, para a festa da coroação de Alsan. Na noite anterior houvera um Triplo Plenilúnio, e Christian sabia o efeito que as luas exerciam sobre o príncipe. Imaginava que tinham mantido Alsan acorrentado durante toda a noite; não estaria em muito boas condições, portanto, para assistir à sua própria coroação.

Porquê aquele dia? O aniversário da morte de Ashran era uma data simbólica, sem dúvida. Mas também se tratava do aniversário da morte de Amrin, o irmão de Alsan, às mãos deste. Coroar-se rei de Vanissar no dia em que todo o seu povo recordava o seu anterior soberano não era uma ideia inteligente. Porquê?

Christian estava ao corrente da presença em Vanissar de Ha-Din, Qaydar e Gaedalu. Não demorara a saber dos rumores acerca da "prova" à qual supostamente iam assistir como testemunhas. Não lhe foi difícil relacionar as coisas e compreender que tinha a ver com o Triplo Plenilúnio.

Será que Alsan conseguira dominar o espírito do animal? Parecia impossível, contudo, era a única explicação que fazia sentido.

Enquanto matutava sobre aquilo, foi testemunha de como um grupo de noviços do templo chegava à clareira e dispunha o altar das oferendas, bloqueando o caminho de entrada. Havia espaço para passar, mas, pelos vistos, não o suficiente, porque depressa lhes chamaram à atenção e pediram-lhes que o retirassem. Isso deu origem a uma discussão, até que, pouco depois, um rapaz foi enviado ao castelo, certamente para solicitar a intervenção de alguém com mais autoridade.

Christian aguardou pacientemente. Pouco depois viu chegar Jack e Shail.

Como de cada vez que via o dragão, teve de controlar o impulso que o levava a desembainhar Haiass e a lançar-se contra ele. Observou Shail com curiosidade, ao ver que caminhava com bastante desenvoltura sobre as suas duas pernas, e sorriu para consigo. Não havia dúvida de que Ydeon fizera um bom trabalho.

O shek contemplou como, todos juntos, moviam o altar de oferendas, um pesado bloco hexagonal, para o colocar num dos lados do caminho. Quando Jack se ergueu para secar o suor da testa, Christian cravou nele o seu olhar gélido.

Jack não demorou a sentir um arrepio e a olhar à sua volta, visivelmente inquieto. Felizmente, os outros estavam ocupados com o altar de oferendas e não repararam no gesto.

- Quieto - disse-lhe Christian telepaticamente. - Não sejas tão óbvio, vais chamar a atenção de alguém.

Jack estremeceu ligeiramente.

- Christian? - pensou. - Onde estás?

- Escondido, por agora. Tenho de falar contigo.

- Sobre quê?

- Dir-te-ei pessoalmente, se tiveres um tempinho e pudermos falar a sós. Tem a ver com Victoria.

Jack hesitou durante uns segundos. Ergueu a cabeça e cravou o olhar no lugar exacto onde se escondia Christian, sinal inequívoco de que já o tinha detectado.

- Estás bem? - perguntou-lhe Shail, inquieto. Jack voltou à realidade.

- Sim, eu... estou um pouco zonzo. Demasiadas emoções e demasiado trabalho, suponho. Se não precisam de mim aqui, vou dar uma volta: preciso de espairecer. Não demoro.

Shail assentiu. Jack deu meia-volta e afastou-se pelo caminho, sem olhar para trás.

Se o tivesse feito, teria visto que Alsan se aproximava por entre as árvores. Chegou junto de Shail quando Jack já se perdia numa esquina.

- Disseram-me que havia problemas com o altar das oferendas - disse.

- O que aconteceu?

- Nada que nós não tivéssemos conseguido solucionar - tranquilizou-o Shail. - Relaxa, está bem? O futuro rei de Vanissar não devia sair a correr do seu castelo por causa de um altar num mau sítio.

Alsan mal o escutava.

- Onde vai Jack? - perguntou, com curiosidade. O feiticeiro encolheu os ombros.

- Disse que precisava de espairecer.

Alsan franziu o sobrolho, mas não disse palavra.

Do mato, Christian também o tinha visto. Apercebera-se da mudança na sua expressão e na cor do seu cabelo. Perguntou-se se teria usado algum tipo de tinta para fazer desaparecer do seu cabelo a cor grisalha que combinava tão pouco com as suas feições juvenis, mas descartou a ideia: não era o estilo de Alsan, ou Alexander, ou como quer que se chamasse.

Seria verdade, então, que conseguira dominar o animal que havia nele? A rápida mente de Christian já estava a estabelecer conexões. Se existia algo, ou alguém, capaz de submeter um espírito tão cheio de raiva e de fúria como o que batia no interior de Alsan... poderia esse algo ou alguém subjugar o ódio inato de sheks e dragões?

A presença de Jack distraiu-o daqueles pensamentos. Abanou a cabeça e deslizou por entre a vegetação para ir ao seu encontro.

Reuniram-se um pouco mais longe, numa clareira do bosquezinho que rodeava a planície.

- O que vieste cá fazer? - perguntou-lhe Jack com alguma brusquidão.

- Trago más notícias.

- E desde quando não trazes más notícias?

- Não sejas tão agressivo, está bem? Trago más notícias porque as coisas estão a ficar muito feias por cá, embora, nesta cidade, neste castelo, façam questão de pensar que está tudo bem.

Jack procurou acalmar-se.

- Está bem. De qae se trata desta vez?

- Sei que estão a preparar um ataque contra a base de Gerde nos Picos de Fogo.

-E...?

- Suspende-o.

Jack ficou boquiaberto.

- O que disseste?

- Já me ouviste.

Jack respirou fundo, várias vezes, para não lhe responder uma barbaridade. Depois, conseguiu dizer:

- Por alguma razão em especial?

Christian olhou para ele. Parecia que estava à procura das palavras adequadas, o que não era próprio dele.

- Porque Gerde o diz. Se não cumprirem as suas exigências... se não a deixarem em paz... Victoria morrerá.

Jack ficou momentaneamente sem fala.

- E dizes isso assim tão calmo? - recriminou-o.

- Não estou calmo! - explodiu Christian. Dominou-se muito a custo.

- Trata-se de uma situação muito delicada. Gerde é muito poderosa, Jack, para o caso de não te teres apercebido. Se quiser matar Victoria, mata-a. Se quiser matar-te a ti, mata-te. Se quiser matar-me a mim, basta-lhe estalar os dedos...

- E por isso tornaste-te seu escravo?

- Não - respondeu o shek. Tinha recuperado a sua calma gélida. Estou com ela por outros motivos, que não espero que compreendas. Mas o teu último encontro com Gerde devia ter-te ensinado que não és rival para ela. Não é como nos tempos de Ashran. Não há profecia, Jack, e isso significa que os deuses não vos protegem.

Jack abanou a cabeça.

- Não acredito em ti - disse. - Se pudesse matar Victoria, já o teria feito.

Christian demorou um pouco a responder.

- Já deves saber que está interessada no seu bebé - disse a meia-voz. Aguardará que a criança nasça, mas se se sentir importunada pelos sangues-quentes...

- Espera - cortou Jack. - Então, o interesse de Gerde pelo bebé de Victoria é real? Não estamos a falar de especulações? Isso significa que realmente pensa que a alma dessa criança lhe pertence? Isso quereria dizer...

Não acabou a frase. Olhou para Christian, pálido e com os olhos muito abertos, mas o shek não respondeu à sua pergunta.

- Temos mais cinco ou seis meses, calculo - disse. - Não é muito, mas é melhor do que nada. Pelo bem de Victoria, não incomodem Gerde. Zanga-se com muita facilidade.

Jack estava a tremer, mas conseguiu dizer:

- Não penso ceder à sua chantagem.

- Arriscarias a vida de Victoria e do seu filho... por uma questão de orgulho?

Jack ergueu a cabeça.

- O que tens tu a ver com esse bebé? - exigiu saber. - Como te atreves a vir aqui, quando durante todo este tempo não foste capaz de te aproximares dela, nem que

fosse apenas para ver como estava? Como... como te atreves a voltar depois de teres passado todo este tempo com Gerde? Quem pensas que és?

Tinha levantado a voz, e Christian fulminou-o com o olhar. Jack controlou-se muito a custo.

- Não tens o direito de vir dizer-me o que tenho de fazer - concluiu -, e muito menos com a desculpa de que é pelo bem de Victoria. Porque sou eu quem estáa cuidar

dela, sou eu quem se preocupa com ela e com o seu bebé. Onde estiveste tu durante todo este tempo?

Christian não respondeu. Jack abanou a cabeça.

- Não podes voltar agora e insinuar... que, afinal de contas... Não conseguiu continuar.

- Que afinal de contas o quê? - perguntou Christian, com suavidade.

- Por acaso atormenta-te a possibilidade de o bebé de Victoria não ser teu filho?

Jack semicerrou os olhos e fitou-o com ódio.

- Vão abençoar a nossa união - atirou-lhe. - Será uma cerimónia pública.

- Fico contente pelos dois - respondeu Christian, com calma. - Mas será melhor dizê-lo a Victoria primeiro.

Jack levou a mão ao punho da espada, furioso, mas conteve-se e, a custo, retirou-a.

- Às vezes, custa-me acreditar que realmente a amas - disse a meia-voz. - Não posso deixar de me perguntar o que viu ela em ti. Não a mereces.

Christian não disse nada. Jack abanou a cabeça, exausto.

- Não sei se acredito em ti quando vens e me pedes que não levante a mão contra Gerde. Se realmente é tão poderosa como dizes, não se daria ao trabalho de exigir que não a ataquemos. Se o faz, é porque nos teme.

- Acho que não - respondeu Christian. - Simplesmente, limita-se a ordenar-me que feche a janela para que não entrem bichos incómodos.

Jack semicerrou os olhos.

- Então, sabes uma coisa? Que se dê ao trabalho de a fechar ela mesma.

Christian dirigiu-lhe um longo olhar.

- Às vezes, também a mim me custa crer que sintas alguma coisa por Victoria - comentou. - Algo que não seja apenas o desejo de a ter como se fosse uma medalha, claro.

Não falaram mais. Jack não respondeu à acusação de Christian, que se despediu com uma leve inclinação de cabeça e desapareceu como uma sombra, entre as árvores.

Quando Jack regressou à clareira, Alsan e Shail ainda lá estavam.

Regressaram juntos ao castelo, mas Jack não lhes falou do seu encontro com Christian. Porém, ambos notaram que estava arisco e pouco falador. Shail atribuiu-o ao facto de ter dormido pouco. Alsan, por sua vez, não fez nenhum comentário... mas dirigiu-lhe um estranho olhar.

Victoria estava a acabar de se preparar para a cerimónia. As aias do castelo tinham escolhido para ela uma túnica branca de mangas largas, com um cinto azul largo... um cinto que se ajustava à sua cintura mais do que ela teria desejado. A sua gravidez já não era nenhum segredo entre os amigos, mas também não era um assunto de domínio público... ainda. Estava a decidir se devia pôr ou não o cinto, quando sentiu um ligeiro formigueiro num dedo, e estremeceu. Ergueu a mão direita; sim, ali estava: Shiskatchegg emitia suaves centelhas vermelhas.

Sentou-se na beira da cama, fechou os olhos e levou a pedra do anel aos lábios.

- Christian? - pensou, quase com timidez.

A voz telepática dele soou nalgum recanto da sua mente.

- Olá, Victoria.

O coração dela bateu mais depressa. Engoliu em seco. Sentira muitas saudades dele durante todo aquele tempo. No entanto, a sua sensatez impôs-se às suas emoções.

- Não devias ter vindo - disse-lhe. Sabia que, para poder contactar com ela com tanta facilidade, Christian tinha de estar relativamente perto. Corres perigo.

- Também tu - replicou ele. - E sei que não devia contactar contigo, mas...

Victoria aguardou, ansiosa, que ele terminasse aquela frase, que dissesse algo parecido a "tive saudades tuas", "precisava de te ouvir outra vez"...

- Isto é importante - acrescentou Christian, e Victoria nunca chegou a saber se era o final da frase anterior ou o início da seguinte. - Sei que Alsn está a preparar

um exército, Victoria. Um exército para lutar contra Gerde. Ela...

Interrompeu-se. Victoria captou pensamentos confusos, como se o shek procurasse pôr as suas ideias em ordem, estabelecer uma lista de prioridades. Aquilo não era

próprio dele.

- Não - disse Christian subitamente, com brusquidão. - Não era isso o que queria dizer-te.

Houve um breve silêncio, carregado de expectativa.

- Como estás? - perguntou ele, de repente. - E o bebé? Victoria respirou fundo.

- Bem - pensou. - Está tudo bem. Novo silêncio.

- Fico contente - disse Christian então. Pareceu duvidar antes de acrescentar: - Pensei muito em ti.

Ela engoliu em seco. Tinha um nó na garganta.

- Eu sei, Christian - tranquilizou-o. - Faz o que tiveres de fazer, mas, pelo que mais amas, sê prudente.

Quase pôde sentir que ele sorria, onde quer que estivesse.

De novo, pareceu que ele permanecia em silêncio. E, subitamente, algo inundou a mente de Victoria, uma sensação intensa como uma descarga eléctrica, mas infinitamente mais agradável, e a presença de Christian preencheu todos os seus sentidos, como se ele estivesse ali mesmo, junto dela. Escapou-se-lhe uma exclamação sufocada.

Sabia o que tinha sido aquilo. Não era a primeira vez que experimentava algo assim, embora, obviamente, nunca o tivesse feito daquela maneira.

Christian tinha-a beijado sem lhe tocar, à distância, roçando na sua mente os pontos necessários para despertar as lembranças de beijos passados. Era estranho e belo, distante e ao mesmo tempo muito mais íntimo do que qualquer contacto corporal. Por instantes, a mente de Victoria ficou em branco, enquanto todo o seu corpo estremecia num agradável arrepio.

- Isto é tudo o que posso dar-te, por agora - disse ele. - Mas não é, nem por sombras, tudo o que quero dar-te.

Victoria não foi capaz de pensar em nada coerente. com suavidade, a mente de Christian abandonou a sua. A jovem ergueu a mão para beijar o anel e deslizou a outra para o seu ventre.

E assim a encontrou Jack, quando entrou no quarto apenas uns segundos depois. Victoria ergueu a cabeça, sobressaltada. Tinha os olhos húmidos.

Jack demorou uns momentos a dizer:

- Estás bem?

Victoria abanou a cabeça.

- Sim. É só que...

- Christian finalmente contactou contigo... depois de três meses sem dar sinais de vida.

Victoria não lhe perguntou como o sabia. Encolheu os ombros e sorriu.

- Faz-se tarde - disse. - Já devem estar à nossa espera.

Pouco depois, a comitiva saía do castelo. Abriam caminho seis cavaleiros da Ordem de Nurgon, entre os quais estava Covan. Seguia-os Alsan, caminhando com passos serenos e enérgicos. Atrás dele iam Ha-Din e Gaedalu, com os seus respectivos cortejos. A seguir caminhavam Jack e Victoria, seguidos por toda a realeza de Nandelt.

E, por último, encerrando a marcha, Qaydar e os feiticeiros.

Percorreram toda a cidade no meio dos vivas dos vanissardos. Parecia, por fim, que Alsan ia ser coroado novo rei de Vanissar. Talvez ainda houvesse quem duvidasse que Alsan era a pessoa adequada para ocupar o trono; mas o facto de ser apoiado por tantas pessoas importantes e o alívio por o futuro de Vanissar parecer finalmente definir-se um pouco ajudaram a afastar aquelas dúvidas dos corações.

A comitiva atravessou as portas da cidade e dirigiu-se para a clareira, que já estava a transbordar de gente. Sobre eles, vários dragões artificiais sulcavam os céus.

Mas desta vez Jack não ergueu a cabeça para os contemplar e sentir o desejo de voar com eles.

Enveredaram pelo caminho que conduzia à clareira e passaram junto ao altar hexagonal.

As oferendas que se depositavam nele eram puramente simbólicas, uma expressão dos desejos de boa vontade dos cidadãos. Assim, aos pés do altar, amontoavam-se flores, penas de ave, vasilhas de água e pequenas bandejas com alimentos simples.

Victoria deteve-se para deixar as suas oferendas: um frasquinho de água, uma flor e um bolinho.

- E a pena? - perguntou Jack.

Victoria negou com a cabeça, mas não deu mais explicações.

A flor simbolizava o amor e a fertilidade. Aqueles que deixavam flores desejavam ao futuro rei ou rainha que encontrasse um parceiro para formar uma família.

As oferendas de comida, quer fossem frutas ou bolinhos, representavam o desejo de que o seu reinado fosse próspero para todo a gente.

A água implicava um desejo de saúde e longevidade para o novo soberano.

E, por último, a pena de ave representava a glória e a supremacia, o desejo de que o rei voasse mais alto do que qualquer um. Normalmente, os reis obtinham a supremacia sobre os outros pela força das armas.

Jack entendeu.

- Oxalá os deuses escutem as tuas preces - disse-lhe ao ouvido.

- Oxalá - suspirou Victoria.

Contudo, o altar das oferendas estava cheio de penas de ave. Alsan ganhara um nome a combater, e todos esperavam que continuasse assim. Em contrapartida, poucos tinham deixado tigelas com água. Havia uma certa quantidade de oferendas de comida e bastantes flores. Mas, sobretudo, penas.

- É isto o que todos esperam dele? - perguntou Victoria, com alguma amargura. - Que continue a lutar?

- Praticamente não fez outra coisa em toda a sua vida - comentou Jack. - Mas entendo o que queres dizer.

A sua mão entrelaçou-se na dela. Victoria olhou para ele e sorriu-lhe.

Jack desejou que aquele instante não terminasse nunca. Mas pesava-lhe a sua recente conversa com Christian. E se os dois já sabiam? E se o bebé que Victoria esperava

era filho do shek e lho tinham escondido? E se...?

- Estás nervoso hoje - disse-lhe Victoria de repente. - O que se passa contigo?

- Estive a pensar - cortou ele, impulsivamente. Inclinou-se para ela e perguntou-lhe ao ouvido: - Gostarias que abençoassem a união?

Disse-o à queima-roupa, quase sem pensar. Aquela manhã tinha alardeado diante de Christian que iam celebrar a cerimónia da união, e o shek, com aquela sua irritante capacidade de se adiantar aos outros, adivinhara que ainda não tinha consultado Victoria. "Enfim, isso é apenas uma formalidade", pensou Jack. Estavam claramente apaixonados. Não havia motivo para que ela dissesse que não.

Mas o semblante de Victoria mudou assim que lho propôs. Os seus olhos ficaram maiores e empalideceu um pouco; ou, pelo menos, a Jack pareceu que sim.

- Não é como se fosse um casamento - apressou-se ele a esclarecer. Um sacerdote celeste limíta-se a...

- Eu sei - tranquilizou-o ela. - Sei o que significa a bênção da união. Foi ideia de Alsan?

Jack deteve-se durante uns segundos, ofendido.

- Alsan explicou-me em que consiste - continuou - e disse-me que seria boa ideia, sim. Mas podes ter a certeza de que não te perguntaria se não o quisesse realmente. Por quem me tomas?

Victoria tomou-lhe a mão, conciliadora.

- Eu sei. É só que... bom, não esperava que me falasses disto... aqui e agora.

Jack fechou os olhos, amaldiçoando-se pela sua falta de jeito. A conversa com Christian enervara-o um pouco e fizera-o precipitar-se. É claro que devia ter esperado pelo momento adequado, num ambiente mais íntimo.

- Lamento... foi um impulso. Mas isso não significa que não queira fazê-lo na mesma.

Olhou para ela, expectante. Mas Victoria dirigiu-lhe um olhar como quem se desculpa.

- Eu também gostaria - respondeu -, mas não posso fazê-lo, Jack. Lamento.

A recusa foi para ele como um balde de água fria. Soltou a mão de Victoria como se o queimasse.

- Mas... porquê? - sussurrou. - É por causa de Christian? Victoria inclinou a cabeça.

- Em parte - disse.

Jack não perguntou mais nada, mas a lembrança de uma conversa recente com Alsan veio inoportunamente à sua memória: "Todas as futuras mães adoram declarar que estão apaixonadas pelo pai do seu filho", dissera ele.

Também falara do muito que tudo aquilo uniria Victoria e o pai do seu bebé. Só que Alsan partira do pressuposto de que se tratava de Jack.

Mas... e se não fosse? Era por isso que Victoria acabava de recusar que abençoassem a sua união? E se o tempo que passara com Christian os tivesse unido tanto que ela escolhesse definitivamente o shek, ou gerasse um filho seu, ou ambas as coisas?

Estremeceu. Não queria acreditar nisso, mas que outro motivo podia levá-la a recusar as sua proposta, salvo o temor de que o sacerdote dissesse perante toda a gente que ela não estava apaixonada por ele?

Sentiu que a mão de Victoria enlaçava a sua e ouviu a voz dela no seu ouvido.

- Não tem a ver contigo, Jack. Não precisas que um celeste te diga o que já sabes, ou devias saber.

- E o que devia saber? - replicou ele, com alguma dureza.

Viu o semblante magoado de Victoria, mas não chegou a ouvir a sua resposta, porque naquele momento Alsan subia ao estrado e a multidão rompia numa salva de aplausos.

Foi uma cerimónia estranha. Jack e Victoria sentaram-se juntos, esforçando-se por parecerem felizes e calmos, mas a preocupação transparecia nos seus semblantes, e a tensão entre ambos era palpável.

Felizmente, a maior parte das pessoas estava demasiado longe deles para se aperceber do que acontecia. Além disso, também havia muitas outras coisas em que reparar.

A cerimónia em si foi curta e austera. Alsan dobrou um joelho diante da rainha Erive, que o fez pronunciar o juramento de lealdade ao seu reino. com voz firme e serena, Alsan proclamou, como era tradição, que todo o Vanissar era agora o seu lar, e os seus habitantes, a sua família. E, como tal, iria esforçar-se para que nada lhes faltasse enquanto ele continuasse vivo, para os defender pela força das armas, se fosse preciso, e para governá-los com sabedoria e bondade.

Jack esqueceu as suas divergências com Victoria quando Erive colocou a coroa sobre a cabeça de Alsan e todos os presentes irromperam em gritos de júbilo. Alsan ergueu-se e dirigiu a todos um olhar sereno; Jack detectou um brilho de orgulho e alegria a latejar nos seus olhos escuros e sorriu, aplaudindo o novo soberano de Vanissar com todas as suas forças.

Ao seu lado, Victoria também aplaudia. Porém, não pôde deixar de reparar que havia uma pessoa no palco que não participava da alegria geral.

De novo, Ha-Din, o Pai Venerável.

Permanecia sentado, com as mãos no regaço e, embora o seu semblante parecesse sério e inexpressivo, os seus ombros descaídos revelavam um profundo abatimento.

Depois do juramento de fidelidade dos cavaleiros vanissardos e da saudação formal dos reis e nobres dos outros reinos, Alsan pronunciou um discurso.

Não foi um discurso muito longo, nem muito eloquente. Alsan recordou o seu pai, o rei Brun, e jurou fazer o possível para ser tão bom soberano como ele tinha sido. Prosseguiu falando das provações sofridas pelo seu povo na era de Ashran. Falou da sua viagem em busca do dragão e do unicórnio e de como os trouxera de volta para que os ajudassem na luta contra os sheks.

Á medida que o discurso ia avançado, Victoria ia ficando cada vez mais tensa. Olhou pelo canto do olho para Jack e descobriu, pela forma como franzia o sobrolho, que também ele não estava satisfeito com o rumo da conversa.

Alsan acabou o seu discurso proclamando que a luta ainda não tinha terminado. E declarou, com voz forte, que não descansaria até exterminar a última serpente de Idhún.

Victoria moveu a cabeça, preocupada.

- Isto não pode ser bom - murmurou, mas ninguém a ouviu, porque todos estavam a aclamar Alsan.

Mal soube o que aconteceu a seguir. Os dragões artificiais começaram a sobrevoar a clareira, fazendo piruetas no ar, mas Victoria não lhes prestou atenção. E viu que Jack levantava a cabeça para olhar para eles, embora mal os visse; pela sua expressão séria e pensativa, parecia evidente que tinha a mente noutra coisa.

Quando os dragões se afastaram da cidade, de volta a Raheld, um dos feiticeiros da Torre de Kazlunn adiantou-se e inclinou a cabeça diante do público do palanque. Atrás dele havia seis aprendizes que iam oferecer a todos uma mostra da sua magia.

Victoria ergueu a cabeça. Aqueles aprendizes deviam ser feiticeiros que ela mesma consagrara nos últimos tempos. A possibilidade de voltar a vê-los animou-a um pouco.

Contemplou como os aprendizes deleitavam os presentes com uma dança de sombras mágicas, que se erguiam sobre eles e dançavam, entrelaçando-se, como que movidas pela brisa.

Todos os rostos eram familiares. Entregara a magia a todos eles não há muito tempo.

Yaren não estava entre eles.

Victoria franziu o sobrolho, preocupada, e olhou de relance para Qaydar, que estava sentado no palco perto deles. Yaren também não se encontrava junto dele. Respirou fundo. Estava convencida de que o tinha visto sair do castelo com os outros. E o seu instinto dizia-lhe que não podia andar muito longe.

Talvez fosse o momento de voltar a enfrentá-lo.

Murmurando uma desculpa, levantou-se do seu lugar e dispôs-se a ir embora. Lançou um olhar fugaz a Jack, mas este fingiu não ter percebido. Victoria desceu pelas escadas e deslizou até à parte posterior das grades, desejando que ninguém detectasse a sua ausência demasiado cedo.

Encontrou-o não muito longe dali, no bosquezinho que rodeava a clareira. Ou talvez fosse ele que a encontrou a ela. Olharam-se nos olhos.

- Voltamos a ver-nos - disse Yaren lentamente.

- Certo - respondeu Victoria, suavemente. - O que queres fazer agora? Matar-me? Falar?

O feiticeiro semicerrou os olhos.

- Sei que recuperaste o teu poder. Sei também que tentei matar-te. Mas, apesar disso, deves-mo, Lunnaris. Deves-me uma magia limpa. Não ma podes negar.

Victoria sorriu.

- Depois do que aconteceu da última vez, ainda insistes em pedir-me que te entregue a magia?

Yaren empalideceu.

- Olha para ti - prosseguiu Victoria. - A magia está a criar raízes dentro de ti, flui pelas tuas veias cada vez com maior facilidade. Não devias permiti-lo.

- Por acaso estás a insinuar que não devia continuar a estudar na torre? Que nunca chegarei a ser um feiticeiro como os outros?

Victoria apontou para os seus pés com um breve gesto. Yaren baixou o olhar. A erva murchava aos seus pés, tornava-se de uma feia cor amarelada, como se a terra em que crescia tivesse sido regada com veneno puro.

- Será pior - disse Victoria com suavidade.

- Então conserta-o - replicou Yaren entre dentes. Victoria fechou momentaneamente os olhos.

- Posso voltar a entregar-te a magia, uma magia limpa. Mas não posso garantir-te que isso purifique o teu corpo. Talvez te provoque mais dor e sofrimento. Talvez fosse necessário canalizar a minha magia durante muito tempo, e ainda assim não sei se funcionaria.

- Estou disposto a experimentar.

- E se não der resultado?

Yaren esboçou um sorriso maldoso.

- Então nada me impedirá de te matar. Victoria inclinou a cabeça.

- Achas que isso aliviará a dor que sentes?

- Talvez não - reconheceu Yaren. - Mas estou convencido de que sentirei prazer vendo-te morrer. Porque não suporto que continues a entregar a magia a outras pessoas, que estejas a criar novos feiticeiros e a tornar real para eles o sonho que para mim não foste capaz de realizar. Não é justo.

- Então, o que queres? Queres que tente renovar a tua magia? Arriscar-te-ias a experimentar?

Yaren hesitou.

- Devo fazê-lo?

Victoria encolheu os ombros.

- A decisão é tua. Já te adverti uma vez das consequências de receber a minha magia e, apesar de tudo, insististe em avançar. Agora aviso-te que a única coisa que posso fazer por ti talvez não seja suficiente. Tu é que escolhes.

Yaren olhou-a longamente. Depois, devagar, dobrou um joelho diante dela.

- Deves-mo - disse simplesmente. Victoria suspirou.

- Como queiras. Vamos tentar... e que os deuses nos ajudem a ambos.

Transformou-se em unicórnio. Sentiu-se inquieta, porque deixou de sentir o seu filho dentro de si. Acontecia-lhe sempre que levava a cabo aquela transformação, e sabia que, ao recuperar o seu corpo humano, recuperaria também o seu bebé. Mas não conseguia acostumar-se.

Ao vê-la, Yaren recuou ligeiramente, por instinto, e olhou-a com desconfiança. No entanto, não demorou a deixar cair a cabeça. As madeixas de cabelo loiro taparam-lhe a cara.

Victoria avançou para ele e baixou a cabeça lentamente, até que o seu longo corno roçou o rosto de Yaren, docemente.

A torrente de magia penetrou no interior do jovem, e era uma magia pura, limpa e bela. Por um instante, uma sensação de paz e de harmonia com tudo o que havia de belo no mundo invadiu-o e fê-lo suspirar, extasiado. Mas acabou de forma rápida e brutal quando aquela energia removeu a sua própria energia, espalhando-a por cada fibra do seu ser e fazendo-o sentir a dor mais intensa que alguma vez experimentara.

Yaren deixou escapar um grito e procurou fugir-lhe, aterrado. Mas o unicórnio empurrou-o, fazendo-o cair no chão, e reteve-o entre as suas patas, enquanto continuava a canalizar energia para ele. "Tenho de o limpar... tenho de o limpar...", era a única coisa que pensava. Contudo, depressa se apercebeu de que aquela magia negra que estava a remover a afectava também a ela. Voltou a experimentar a dor, a angústia, o ódio, enquanto Yaren se debatia no chão, gritando em plena agonia. Victoria cerrou os dentes e esforçou-se por captar ainda mais energia do ambiente para a derramar no interior de Yaren; esperava que a nova magia acabasse por fazer desaparecer o antigo poder obscuro do feiticeiro, mas não sabia de quanto tempo necessitaria, nem se Yaren resistiria.

Sobrepondo-se à dor, Victoria olhou para ele, inquieta: os olhos de Yaren emitia uma luz intensa, radiante, mas o seu rosto continuava a ser uma máscara de sofrimento. E Victoria compreendeu que era inútil; que, se continuasse assim, o corpo do jovem não resistiria a toda aquela energia e acabaria por explodir. E que, derramando mais magia no seu interior, apenas contribuía para espalhar a energia suja pela sua essência... ainda mais.

com um arquejo surdo, retirou o corno e deixou-se cair sobre os seus quartos traseiros, extenuada. Yaren ficou enroscado, a tremer e a soluçar como uma criança. Victoria recuperou o seu corpo humano, mas ainda demorou um pouco a libertar-se daquela sensação de angústia e sofrimento. Acariciou o seu ventre, inquieta, desejando que a energia negativa que absorvera de Yaren não tivesse afectado o seu bebé.

Lentamente, o feiticeiro ergueu-se e olhou-a com profundo ódio.

- És um monstro - disse, e cuspiu aos seus pés.

Victoria não disse nada. Ficou ali, ajoelhada enquanto uma horrível sensação de desânimo lhe inundava o coração. Yaren abanou a cabeça e, ainda a cambalear, afastou-se dali.

Victoria enterrou o rosto entre as mãos, destroçada. "Já está. Matei a sua última esperança. Mas tinha de o tentar", pensou. Era o mínimo que podia fazer.

Ficou ali mais algum tempo, ajoelhada, abraçando-se a si mesma, perguntando-se o que devia fazer a seguir. Não conhecia ninguém a quem pudesse consultar acerca do caso de Yaren. Qaydar não sabia como curá-lo. Se os unicórnios tivessem tido conhecimento de um remédio para aqueles casos, obviamente tinham levado o segredo com eles.

Então, repentinamente, um suave arrepio percorreu-lhe as costas. Conhecia aquela sensação.

Pouco depois, Christian estreitava-a nos braços.

- O que aconteceu? - perguntou o shek, inquieto. - Estás bem? Senti...

- Estou bem, Christian - tranquilizou-o ela, com um sorriso. - vou recuperar. E tu? O que fazes aqui? Julgava que te tinhas ido embora. Sabes que devias manter-te afastado.

Christian sorriu por sua vez.

- Ainda andava por aí. Mas tens razão, não deveríamos estar a fazer isto. Se te virem...

- Não é por isso, não me importa que me vejam - replicou Victoria, com voz sofocada. - Estou cansada de fingir que não te amo. Que pensem o que quiserem, que digam o que quiserem. Não vou renegar o que sinto por ti.

Christian acariciou-lhe o cabelo, pensativo, e olhou para ela com uma emoção contida.

- Não esperava ver-te hoje - reconheceu. - Nem sequer tinha pensado falar contigo. Mas...

- Mas Jack atirou-te à cara que nunca apareces, não foi?

- Não foi só por Jack - protestou ele. - Precisava de ter a certeza de que estavas bem.

Contou-lhe que, depois da sua conversa, estivera para se ir embora, dado que já nada o retinha ali. Mas intrigava-o a mudança que se produzira em Alsan e ficara um pouco mais, para observar das sombras a coroação.

- Agora tenho de regressar. Não sei se Jack fará o que lhe pedi, mas, pelo menos, Gerde gostará de saber que tu e o teu filho se encontram bem.

Victoria inclinou a cabeça.

- Então Gerde continua interessada no meu bebé - disse. - Tem assim tanta certeza de que é...?

- Meu? Sabe que existe essa possibilidade. Aguardará até que nasça ou até que possa saber com certeza que aspecto tem a sua alma, mas espero na altura ter encontrado uma solução.

Victoria olhou para ele intensamente.

- Existe mesmo uma solução para tudo isto?

- Não uma solução que satisfaça toda a gente, naturalmente. Mas basta-me uma solução que me sirva a mim e às pessoas que me importam.

Naquele momento, soaram mais vivas e aplausos. A exibição tinha terminado.

- É a hora do almoço - suspirou Victoria. - Será melhor voltar antes que dêem pela minha falta.

Christian voltou a abraçá-la e fechou os olhos para desfrutar da sua presença.

- Eu sim, senti a tua falta - confessou em voz baixa. Victoria apoiou a cabeça no seu ombro e engoliu em seco.

- E eu - sussurrou, quase sem voz. - Não sei porque... cada vez me é mais difícil separar-me de ti.

- Eu sim, sei porquê - disse Christian, mas não acrescentou mais nada. Ainda permaneceram juntos por mais uns instantes, sussurrando palavras ternas de despedida, antes de se separarem com o coração apertado.

Victoria regressou à clareira, que já tinha sido invadida de gente. Quase todos estavam perto do lugar onde se repartiam as empadas e as jarras de nunk, mas, mesmo assim, Victoria teve dificuldade em encontrar os seus amigos entre a multidão. Detectou Zaisei um pouco mais longe, olhando em volta, algo desconcertada. Dirigiu-se para ela, mas um rapaz interceptou-a.

- Dama Lunnaris! Peço-te; sei que não sou digno, mas se quiseres...

- Não funciona assim - respondeu ela, com suavidade. - Desculpa-me...

Ainda teve de evitar mais duas pessoas antes de chegar a Zaisei.

- Victoria! Onde te tinhas metido?

- Sentiram a minha falta? - perguntou ela, preocupada.

- Calculei que se tratava de uma urgência, mas, como estavas a demorar, comecei a ficar preocupada... viste a Mãe Venerável?

- Também se foi embora? - estranhou Victoria. - Talvez esteja com Ha-Din.

- O Pai Venerável regressou ao castelo com a sua escolta antes da exibição dos dragões. Gaedalu estava comigo na altura...

- bom, com tanta gente, não é de estranhar que a tenhas perdido de vista. Talvez tenha ido felicitar Alsan.

- Foi o que eu pensei, mas também não o vejo. Subitamente, um horrível pressentimento começou a

ganhar forma no coração de Victoria. Deu meia-volta e, sem uma palavra,

desatou a correr.

Apenas uns instantes mais tarde, sentiu no seu próprio peito a dor aguda e intensíssima de Christian, uma dor insuportável que ultrapassava em muito a dor física.

Deteve-se de repente e deixou escapar um grito.

Várias pessoas viram-na e aproximaram-se dela para a socorrer. Mas Victoria, reunindo forças na fraqueza, libertou-se delas e continuou a correr, desesperadamente,

até ao lugar onde Christian lutava pela sua vida.

O shek foi apanhado de surpresa numa emboscada ao abandonar a pequena clareira onde estivera com Victoria. Desfizera-se dos três primeiros soldados sem grandes dificuldades, mas então tinha aparecido Alsan.

Christian retrocedeu apenas uns passos e ergueu Haiass para deter o embate de Sumlaris, a Imbatível. Esperara algum comentário por parte de Alsan, mas ele limitou-se

a dar um passo atrás para depois voltar a atacar, sem uma palavra.

Não era a primeira vez que lutavam, mas decorrera muito tempo, cerca de dois anos, desde o seu último duelo na Terra. Na altura, o shek tinha saído vencedor e só a intervenção de Jack e de Victoria impedira que Alsan morresse com a fria mordedura de Haiass.

Contudo, desta vez foi diferente. Alsan havia sido sempre um guerreiro sereno e prudente, mas agora combatia com ferocidade, equilibrando-se na fina linha existente entre a temeridade e a segurança de quem sabe, com total certeza, que está a fazer o que é certo. Os golpes de Sumlaris eram, também, mais fortes. A lâmina mítica parecia ter-se tornado mais forte, tal como o ânimo de que a empunhava.

E um novo brilho iluminava os seus olhos escuros, um brilho que nada tinha a ver com o olhar do animal.

- Luta, cobarde! - atirou-lhe Alsan quando Christian se esquivou.

O shek manteve-se em silêncio, não cedendo à provocação. Continuou a lutar à sua maneira, esquivando-se e contra-atacando, movendo-se com a destreza de um felino. Quando Alsan desferiu um golpe suficientemente poderoso para ter cortado o braço ao qual estava destinado, Christian decidiu que não podia estar com contemplações, por muito que tivessem combatido juntos na Resistência, por muito que Alsan fosse amigo de Jack e de Victoria. Ergueu Haiass, que cintilou por um instante à luz dos sóis, e descarregou-a contra Alsan.

O rei de Vanissar levantou a sua espada para a deter e as duas lâminas chocaram novamente.

Então, subitamente, algo se cravou no ombro de Christian.

O jovem abriu os olhos, surpreendido. Tinha sido atacado por trás; ouvira o assobio produzido pelo dardo momentos antes de se enterrar na sua carne, mas a postura

que se vira obrigado a manter enquanto combatia com Alsan impedira-o de se esquivar.

No entanto, não era nada de grave. O seu corpo de shek aguentaria quase qualquer veneno, se é que o dardo estava envenenado. Mas, acima de tudo, tinha de saber quem o atacara pela retaguarda.

Empurrou Sumlaris com força para se desembaraçar de Alsan e girou bruscamente o tronco.

Não chegou a ver o seu atacante, não só porque este parecia ter-se esfumado, mas também porque Alsan arremeteu de novo contra ele.

E, pela primeira vez, apanhou-o desprevenido.

O shek já se tinha voltado para Alsan e aguardava o golpe deste. Interpôs Haiass entre ele e o seu adversário, mas o que não esperava era que Alsan atacasse com ambas as mãos. Christian deteve Sumlaris a escassos centímetros do seu corpo e procurou proteger-se, num acto reflexo, da mão esquerda de Alsan, que se lançara sobre ele.

Demasiado tarde. O rei de Vanissar alcançou o seu objectivo.

No entanto, não era um punhal o que tinha na mão, mas sim um objecto negro, redondo e polido.

Christian retrocedeu por instinto.

O objecto acompanhou-o.

Colou-se ao seu corpo como um parasita, queimando a sua roupa como se fosse ácido e enterrando-se na sua pele. Aterrado, Christian soltou Haiass e procurou arrancá-lo

do peito. Mas aquela estranha gema cravou-se ainda mais na sua carne, causando-lhe uma dor intensa e lancinante.

Christian caiu no chão de joelhos, sentindo um horrível cheiro a queimado e contemplando, atónito, como aquela coisa estendia pela sua pele longos filamentos escuros,

como as patas de uma gigantesca aranha, que percorriam todo o seu peito, marcando-o com horríveis cicatrizes.

Depois, os seus sentidos toldaram-se, como se tivesse metido a cabeça debaixo de água, e já não viu nem ouviu mais nada.

Alsan e Gaedalu contemplaram o shek inerte aos seus pés.

-Já não parece tão perigoso, pois não? - disse ela com rancor.

Alsan olhava-o com um certo brilho de pena no seu olhar. Não pela sorte do criminoso, mas sim porque um adversário temível tinha sido derrotado... de uma forma que, no fundo, não parecia de todo justa.

- Podemos matá-lo já - disse a Mãe Venerável.

De repente, uma sombra veloz penetrou na clareira e arrojou-se sobre Christian. Gaedalu retrocedeu um passo, sobressaltada, mas o semblante de Alsan endureceu.

- Afasta-te dele, Victoria - ordenou.

A rapariga estava a examinar a sinistra pedra incrustada no peito de Christian e ignorou Alsan. Verificou então que a gema absorvia a sua magia curativa ou talvez a fizesse ricochetear. Victoria não tinha muita certeza quanto a isso; o que sabia era que, de alguma maneira, aquela pedra não lhe permitia ajudar Christian.

- Afasta-te dele, Victoria - repetiu Alsan. A jovem voltou-se para ele.

- O que é-que lhe fizeram?

- Fizemo-lo pagar, criança - disse Gaedalu. - Nem sequer tu poderás salvá-lo da morte que merece.

Mas Alsan negou com a cabeça.

- Há que julgá-lo primeiro. O mundo inteiro deve conhecer os crimes que cometeu, saber que o castigamos por eles.

Gaedalu olhou para ele com uma certa raiva.

- Em quase todas as culturas idhurútas, o castigo por tudo o que fez é a morte - disse.

- Então, não há problema se esperarmos um pouco mais - disse o rei.

- Além disso, dizem que, se o herdeiro de Ashran morrer, todas as serpentes se irão embora. Se isso for verdade, os idhunitas merecem preparar-se para desfrutar

do espectáculo da libertação do nosso mundo.

Gaedalu semicerrou os olhos.

- É um erro adiar a sua morte. Alsan sorriu com tranquilidade.

- Enquanto tiver essa coisa cravada no peito, é completamente inofensivo.

- Completamente inofensivo! - repetiu Victoria. - Mas se o está a matar!

Os semblantes de pedra de Alsan e Gaedalu não mostraram a menor compaixão.

Naquele momento, mais pessoas chegaram à clareira. Tratava-se de Jack, Covan e Shail, acompanhados por vários cavaleiros de Nurgon.

- O que está a acontecer aqui? - perguntou Shail, perplexo.

Alsan voltou-se para eles, sorridente.

- Cavaleiros, acabámos de capturar um dos nossos inimigos mais perigosos: Kirtash, o shek, o filho de Ashran, o Necromante.

Ouviu-se um murmúrio desconcertado, que Alsan calou com um gesto.

- Esta criatura - acrescentou, apontando para Christian, que jazia nos braços de Victoria - cometeu inúmeros crimes. Dotada de uma astúcia impiedosa e maligna, conseguiu enganar muitas pessoas, entre as quais me incluo. Também eu acreditei que ele podia albergar bons sentimentos no seu coração negro. Mas enganei-me e agora procurei emendar o meu erro.

Victoria ergueu a cabeça. Não há muito tempo, também ela pronunciara palavras como aquelas a Zaisei, para lhe explicar porque é que, tempos antes, quisera matar Christian. A diferença entre Alsan e ela consistia em que Victoria tinha motivos para desejar que Christian continuasse vivo. O rei de Vanissar, não.

Alguns dos cavaleiros tinham desembainhado as espadas, mas Alsan deteve-os.

Victoria mal escutou como procurava convencê-los de que era essencial que o shek fosse julgado em público e que todo o Idhún conhecesse pormenorizadamente a longa lista de crimes que lhe atribuíam. A rapariga acariciou a testa de Christian e encontrou-a estranhamente quente. Afastou-o com suavidade e ergueu-se.

- Isto é cruel - disse, interrompendo Alsan. - Aquela gema está a matá-lo, Alsan. Não sobreviverá muito mais tempo.

- Já não podemos tirar-lha - disse Gaedalu. - E, mesmo que pudéssemos, certamente que não o faríamos.

É a única coisa capaz de deter alguém como elek.

Victoria fechou os olhos. E abriu-os logo a seguir.

- Sabiam que estava perto - murmurou. - Mantinham-me vigiada. Alsan abanou a cabeça.

- Sabia que não tardaria a vir ver-te, Victoria. És o seu ponto fraco. Ela ergueu-se.

- Enganas-te - disse. - Sou neste momento o seu maior apoio. Porque aquele que ousar tocá-lo sequer terá de passar por cima de mim.

Os cavaleiros olharam para ela com incredulidade e um certo assombro.

- Victoria, não é o momento para caprichos - disse Alsan, tenso, avançando um passo.

Ela semicerrou os olhos.

- Por cima do meu cadáver, Alsan - reiterou.

O rei deteve-se durante uns segundos e franziu o sobrolho. Olhou para Victoria e depois voltou a cabeça para Jack, que observava tudo com uma estranha expressão

no rosto, sem intervir.

Compreendeu. Retrocedeu um pouco e contemplou a jovem e o shek que jazia aos seus pés, aturdido.

- Tu... vocês... Contemplou-a com profundo asco.

- Já te disse - recordou-lhe Gaedalu. Alsan abanou a cabeça.

- Nunca pensei que chegarias tão longe, Victoria - disse, e cada uma das suas palavras ia carregada de desprezo e repugnância. - Nunca imaginei que... fizesses algo mais do que namoriscar com esse shek.

Victoria tremia por dentro, mas a sua voz não hesitou nem um instante quando, levando uma mão ao ventre, disse:

- Pois agora que finalmente levas a sério o que eu sinto por ele, deves compreender porque não posso permitir que toques num só fio de cabelo daquele que pode ser o pai do meu filho.

De novo, ouviram-se murmúrios escandalizados. Tinham chegado mais pessoas à clareira, mas Victoria não lhes prestou atenção. Os seus olhos estavam cravados em Alsan.

- Dás-me asco - cuspiu Alsan. - Não me importa que tenhas pertencido à Resistência ou que, por alguma razão que ainda não consigo compreender, sejas o último unicórnio do mundo. Se insistes em proteger essa serpente... morrerás com ela.

Avançou para Victoria, com Sumlaris desembainhada, mas alguém se interpôs.

- Deixa-a em paz, Alsan - ordenou Jack, muito sério.

- Afasta-te, rapaz - grunhiu o rei. - Não merece que a defendas. Não merece...

- Deixa-a em paz - repetiu Jack. - Disse-te uma vez que era a mãe do meu filho e não mentia, não totalmente. Antes juraste que ias defender Vanissar como se fosse a tua família. Bem, eu não sou rei, mas suponho que não me vais negar o direito a defender a minha família. Todos os que fazem parte dela - acrescentou.

Alsan fitou-os. Depois olhou em redor.

- Vais defender o shek... de toda esta gente? - perguntou, carrancudo. Os murmúrios aumentavam de intensidade. Alguém pediu aos gritos a morte para o filho de Ashran. Jack vacilou.

- Levem-no para o castelo - ordenou Alsan. - Iremos prendê-lo até que possamos fazer um julgamento.

Jack hesitou por alguns segundos, mas por fim assentiu e afastou-se um pouco. Teve de puxar Victoria para que se afastasse também, porque resistia a separar-se dele.

- Não vais conseguir tirá-lo daqui, Victoria - sussurrou-lhe. - Se lutares, acabarão por matá-lo, e não podes protegê-lo de toda esta gente. Aceita o facto de que, por uma vez na sua vida, perdeu.

Victoria desprendeu-se dele e permaneceu junto de Christian. Levantou-o um pouco e pôs o braço dele sobre os ombros.

- Eu levo-o para o castelo - disse. - É melhor que, entretanto, vás pensando em como tirar-lhe essa coisa do peito.

- Não me ameaces, Victoria - replicou Alsan. - Também tu estás sob suspeita.

Victoria não disse nada. Começou a andar atrás dele, de regresso ao castelo, escoltada pelos soldados e cavaleiros, que mantinham a multidão afastada. Jack ficou sem saber se devia ajudá-la a carregar o shek, mas, antes que pudesse tomar uma decisão, Shail aproximou-se dela e susteve o inerte Christian pelo outro braço.

- Salvou-me a vida algumas vezes - disse, ao aperceber-se do olhar de Alsan. - É o mínimo que posso fazer por ele.

- Tudo isso poderá ser discutido no julgamento. Embora suspeite qual vai ser o resultado: os crimes deste shek superam largamente as suas boas acções.

- vou tirá-lo dali - declarou Victoria. Jack abanou a cabeça.

- Victoria, não há nada que tu possas fazer. Só vais conseguir piorar as coisas.

- Achas que vou ficar de braços cruzados enquanto Christian morre?

Tinham voltado ao seu quarto no castelo. Victoria não protestara quando Alsan fizera encerrar Christian numa masmorra e colocara vários guardas à porta, mas dirigira-lhe

um longo olhar desafiador.

Só a intervenção de Jack, Shail e Zaisei o impedira de a prender também.

- Não exageres - disse Jack -, está apenas inconsciente. A pedra que tem no peito é feita do mesmo material que

o bracelete de Alsan, e a ele faz-lhe bem.

- Ele não é um shek - replicou Victoria, secamente. - Essa coisa afecta os sheks, Gaedalu sabia disso muito bem quando foi buscar esses fragmentos ao Reino Oceânico.

Jack inclinou a cabeça.

- Se existisse algo capaz de matar os sheks de forma tão eficaz, ter-se-iam livrado deles há muito tempo. Tenho a certeza de que apenas o enfraqueceu. No seu estado, está mais seguro estando preso; se o tirares dali, matam-no.

Victoria ergueu a mão diante de Jack para lhe mostrar o anel que usava.

- Vês isto? Está mudo, Jack. Morto. Não capto Christian do outro lado, e asseguro-te que isso não é um bom sinal. Tudo isto do julgamento é uma farsa: vão matá-lo de qualquer forma.

Jack olhou fixamente para ela.

- Não queres que seja julgado? É a sua oportunidade para contar ao mundo a sua versão dos factos, Victoria. Poderá explicar de uma vez por todas que motivos tem para apoiar Gerde, por que razão não devemos atacar a sua base e, acredita em mim, vão ouvi-lo...

- Não poderá contar nada se estiver morto.

- Tens medo de ouvir a longa lista de pessoas que assassinou? Medo de que não encontrem nenhum motivo para o perdoar?

- Sei tudo o que ele fez, Jack. Entendo que Gaedalu o odeie e lhe guarde rancor por ter matado a sua filha, e respeito isso. Gaedalu tem o direito de lutar pelos seus entes queridos. Estou a fazer o mesmo.

- A filha de Gaedalu não tinha matado ninguém, Victoria.

- A minha avó também não tinha matado ninguém, e estava na lista de Christian. Ele respeitou a sua vida porque era importante para mim, e que fez ela com essa vida? Sacrificou-a para matar centenas de sheks!

- Allegra foi uma heroína, Victoria! Como te atreves a falar assim dela?

- É uma heroína para os sangues-quentes - respondeu Victoria. - Para os sheks é uma genocida. Mas, para mim, era simplesmente a minha avó, e irei amá-la sempre e recordá-la sempre com carinho. Muitos de nós lutamos nesta guerra porque não temos outra opção. Também não escolhemos o lado onde queremos lutar.

- Em que lado lutarias tu, Victoria? - replicou Jack, cortante.

- Se pudesse escolher? Não lutaria em nenhum, Jack.

- Nem sequer contra aqueles que exterminaram a tua raça?

- Destruí-los não irá devolver a vida aos unicórnios. Nem aos dragões.

- E achas que devemos esquecer tudo, assim, sem mais? Victoria suspirou.

- Só digo que Christian não deve ser julgado por um tribunal humano. Quantos sheks mataste, Jack? Achas que és menos assassino do que ele? Gostarias de ser julgado por um tribunal de serpentes?

Jack não soube o que responder. Victoria deixou cair os braços, exasperada.

- Não posso crer que, depois de tudo o que aconteceu...

- vou defender Christian no julgamento, Victoria - cortou ele. - vou falar de tudo o que fez pela nossa causa, de como lutou ao nosso lado contra Ashran e nos salvou a vida tantas vezes. Mas não podes negar... a Gaedalu e a todos os outros... a oportunidade de olhá-lo na cara e de lhe perguntar porquê.

- Porque era o que tinha de fazer, nem mais - respondeu Victoria. Irão perguntar-lhe se se arrepende e ele dirá que não pode sentir remorsos por ter feito o que na altura considerou o mais certo. Isso fá-los-á sentir-se melhor... a Gaedalu e a todos os outros? Irão sentir-se melhor quando Christian tiver morrido?

Jack ergueu a cabeça para a olhar nos olhos.

- Talvez - replicou, muito sério. Victoria respirou fundo.

- Não estou a dizer que aprovo o que fez - disse. - Não estou a dizer que me pareça bem. Mas, simplesmente... não posso permitir que lhe façam mal. Não posso ficar quieta enquanto ele morre. Esperar sentada que o matem - suspirou. - Não posso.

- Também tu estiveste quase a matá-lo por vingança - recordou ele. Esqueceste-te disso?

- Não. E também não me esqueci de que foste tu quem deteve a minha mão. Por isso sabes melhor do que ninguém do que estou a falar.

Jack fechou os olhos, cansado.

- O que pretendes? Que o tire daí? Victoria ergueu o queixo.

- Não. Não faz sentido tentares salvá-lo se achas que não é mais do que um criminoso. Mas para mim é muito mais do que isso, Jack, e sim, vou fazer algo quanto a isso. Não te estou a pedir ajuda, autorização nem aprovação. Só te peço que entendas a minha posição.

Jack levantou o olhar para ela.

- Se a entendo? - retorquiu com voz gélida. - Entendo-a perfeitamente. Estás louca por ele e isso impede-te de ser objectiva.

- E tu estás com ciúmes e odeia-lo, por isso não consegues ser objectivo. Jack levantou-se de rompante, furioso.

- Objectivo! - replicou. - Estive em Umadhun, Victoria, no mundo das serpentes! Se me tivessem encontrado, ter-me-iam matado... sem julgamento!

- com julgamento, sem julgamento, o que importa? Ter-te-iam matado por seres um dragão. Da mesma maneira que o vão matar por ser um shek, simplesmente. Por lutar no lado contrário.

Também tu mataste muitos sheks sem julgamento. Se tivesses podido, terias mesmo matado Sheziss, sem a conhecer, apenas por ser uma shek... estou enganada?

Jack não respondeu.

- Mas tens razão numa coisa - prosseguiu Victoria. - Não importa quantos motivos possa dar-te para justificar a minha atitude. vou fazer alguma coisa por Christian,

vou salvá-lo, porque o amo. Assim, sem mais.

- Já tinha reparado - disse Jack, tenso. - Então, vamos acabar com esta farsa. Vai-te embora com ele, fujam juntos, criem o vosso filho. Eu sempre fui o elemento que sobrava nesta relação, não fui?

Victoria olhou para ele, sem acreditar no que estava a ouvir.

- Não é possível que ainda duvides do que sinto por ti. Queres mais provas? Por acaso queres que deixe Christian morrer só para te demonstrar que és importante para mim? É isso o que me estás a pedir? Era isso o que esperavas que fizesse quando Ashran me exigiu que escolhesse entre os dois? É isso que ainda não me perdoaste?

Jack não respondeu. Victoria abanou a cabeça, exasperada, e deu meia-volta para se ir embora.

- Espera - deteve-a Jack, quando ela já ia a sair. - Tencionas mesmo salvá-lo, apesar de tudo?

- Sim - respondeu ela sem hesitar. Jack cerrou os dentes.

- De acordo, faz o que achares conveniente - disse, sem conseguir conter-se. - Mas, se passares por essa porta... não te dês ao trabalho de voltar.

Victoria semicerrou os olhos, mas não disse nada.

Em silêncio, com suavidade, abriu a porta, saiu do quarto e voltou a fechá-la atrás de si.

Jack ficou uns segundos de pé, a tremer. Depois, uma súbita fraqueza invadiu o seu corpo e deixou-se cair sobre a borda da cama, pálido. Enterrou o rosto entre as mãos e murmurou:

- Sou estúpido, estúpido...

Mas não se levantou. Não foi à procura de Victoria, nem correu a avisar Alsan das intenções da jovem. Simplesmente ficou ali, angustiado, a pensar, a perguntar-se se agira bem: se estava a deixar escapar o amor da sua vida ou se, pelo contrário, acabava de recuperar... a sua liberdade.

Zaisei estivera presente durante a discussão entre Alsan e Victoria, depois da cerimónia da coroação. Escutara sem intervir, mas, como celeste que era, tinha feito muito mais do que ouvir.

Captara as dúvidas de Jack; o medo que Victoria escondia atrás daquela expressão desafiadora; a fria determinação de Alsan, raiando o fanatismo; e, sobretudo, o ódio que o coração de Gaedalu albergava.

Continuava a sentir aquele ódio agora, várias horas depois. Tinha acompanhado Gaedalu até à capela do castelo. A Mãe Venerável dirigira uma prece de agradecimento

aos deuses por terem propiciado a captura do shek; mas, embora aquele facto enchesse a varu de satisfação, Zaisei sabia que não descansaria até vê-lo morto.

A jovem celeste temia Kirtash, mas não a ponto de desejar a sua morte e menos ainda depois de ter falado com Victoria acerca da origem do seu bebé.

- Vão matá-lo, não vão? - perguntou subitamente, em voz baixa, enquanto regressavam aos aposentos de Gaedalu.

- É o que merece - respondeu Gaedalu. - De facto, já devia estar morto.

- Pode ser o pai do bebé que Victoria espera.

- Mais um motivo.

Zaisei guardou silêncio durante uns segundos. Depois suspirou, preocupada.

- Mãe, compreendo que odeies Kirtash, e respeito a tua dor. Mas esse jovem não pode ser simplesmente um monstro. Se por um lado despertou o ódio em muitas pessoas, por outro também é capaz de provocar sentimentos positivos. Despertou um profundo amor no coração de Victoria...

Gaedalu parou bruscamente e fitou-a.

- E isso exime-o de todos os seus crimes?

Zaisei retrocedeu, intimidada pela violência do seu ódio e da sua dor.

- Também salvou a vida de Shail - admitiu em voz baixa. - Talvez por isso...

- Talvez por isso és capaz de ver algo de bom nele? Achas que não te fez mal nenhum? Achas que não tens nada a ver com esse shek? Pois enganas-te.

Zaisei ficou imóvel, no meio do corredor, enquanto Gaedalu prosseguia o seu caminho. A celeste correu para a alcançar.

- Mãe! O que quiseste dizer com isso? O que tenho eu a ver com Kirtash? Tinham chegado à frente da porta dos aposentos de Gaedalu. A varu entrou, sem responder às perguntas de Zaisei, e ela seguiu-a até ao interior do quarto.

- fecha a porta - ordenou Gaedalu.

Zaisei obedeceu. Mal tinha acabado de girar a aldraba já a voz telepática da Mãe Venerável ressoava na sua mente:

- Conheci a mãe de Kirtash. Não me lembro do seu nome, sei apenas que era ouvinte num dos Oráculos... como a tua mãe. Eram amigas, de facto. Surpreende-te? - Sorriu. - Pois isso não é nada.

Zaisei percebeu os sentimentos de raiva que pulsavam no interior de Gaedalu e teve medo.

- Não sei se quero conhecer o resto...

- Mas eu quero que conheças - disse Gaedalu, sem piedade. - Porque deves conhecê-lo. Escondi-to durante todo este tempo, mas já tens idade para saber a verdade.

A jovem celeste engoliu em seco e deu meia-volta para a encarar. Gaedalu sorriu, com amargura.

- Foi depois da conjunção astral - disse. - Todos os Oráculos tinham sido destruídos, menos o nosso, o de Gantadd. Por isso muitas mulheres vieram procurar refúgio sob o seu tecto. Entre elas estava a mãe de Kirtash. Conhecia a tua mãe, ambas tinham escutado a Primeira Profecia. Chegou desesperada, dizendo que Ashran lhe tinha arrebatado o filho de ambos. Eu não quis ter entre os muros do Oráculo alguém que tivesse mantido uma relação tão estreita com o homem que tinha exterminado os dragões e os unicórnios, o homem que fizera os sheks voltar. Mas a tua mãe intercedeu por ela. Por isso, apenas por isso, deixámo-la ficar. Tens ideia do que fez essa mulher?

Zaisei negou debilmente com a cabeça.

- Tempos depois, os Oráculos falaram de novo - recordou Gaedalu. Chamei a tua mãe para que anotasse as palavras da Segunda Profecia, juntamente com a irmã Eline e a irmã Ludalu. Apareceu com a cabeça e o rosto cobertos por um capuz e disse que tinha contraído uma ligeira maleita nos olhos e que a luz o. magoava. Ninguém suspeitou que não era ela... até que encontrámos a verdadeira Kanei no seu auarto, deitada na cama. Estava morta há várias horas.

Zaisei olhou para ela sem conseguir acreditar.

- Sim - confirmou Gaedalu. - A mãe de Kirtash tinha envenenado a sua infusão de ervas para poder ocupar o seu lugar entre os ouvintes. Sabia que eu não lhe permitiria escutar a Segunda Profecia, por isso matou Kanei para ficar no seu lugar. Depois, desapareceu do Oráculo e não voltámos a vê-la. Quem sabe se não continua a actuar como espia para Ashran.

Zaisei deixou-se cair contra a parede, lívida.

- Porque não mo disseste? - murmurou.

- Para não te fazer sofrer, filha. Mas diz-me, agora... terias mais piedade de Kirtash do que a sua mãe teve pela tua?

Zaisei não disse nada. Fechou os olhos e duas lágrimas rolaram pelas suas faces.

Havia cinco guardas a vigiar a masmorra onde Christian definhava, embora o shek estivesse demasiado débil para mover um só músculo. Porém, todos eles tinham estado tensos durante toda a noite. Sabiam que guardavam um inimigo perigoso e que não deviam dar-lhe uma só oportunidade de escapar. Além disso... talvez estivesse a fingir.

Espreitavam várias vezes através das grades da janelinha, apenas para verificar que continuava na mesma posição de sempre, deitado no chão, como se fosse um saco velho, murmurando palavras incompreensíveis, no meio do seu delírio. Não se parecia com o temível assassino que tinha sido o braço direito de Ashran. Mas, por via das dúvidas, os guardas continuavam atentos ao menor indício de alteração e o próprio Qaydar tinha reforçado a porta da prisão com a sua magia.

Porém, nenhum deles esperava que a salvação do shek viesse de outro lado.

De repente, uma luz fortíssima inundou o corredor, uma luz que os cegou durante bastante tempo. Quando, a pestanejar, o primeiro guarda conseguiu extrair a espada do cinto, uma sombra lançou sobre ele e atingiu-o em pleno rosto, fazendo-o cair para trás, desmaiado. O vulto, rápido como um raio, disparou um pontapé no estômago de outro guarda, e depois bateu-lhe com a cabeça contra a parede. O terceiro conseguiu esquivar-se de um novo pontapé do seu atacante, apesar de a luz ainda o obrigar a mover-se às cegas. Brandiu a espada, mas algo parecido com um bordão golpeou o seu fio com força e arrancou-lha das mãos. Momentos depois, jazia também no chão, junto aos outros dois. O vulto, escudado na radiante luz que ofuscava os sentidos dos guardas, desembaraçou-se do quarto, também sem muitos problemas. Só o quinto conseguiu ver-lhe a cara e a surpresa paralisou-o durante um instante:

- Dama Lun...? - começou, mas recebeu um golpe no peito, que o deixou sem respiração, e caiu no chão de joelhos. Outro golpe, desta vez nas fontes, fê-lo perder os sentidos.

Victoria afastou os corpos dos guardas e. deteve-se durante uns segundos, com o coração a bater com força. Levou uma mão ao ventre. "Prometo-te que não haverá mais solavancos, por agora", disse em silêncio ao seu filho por nascer. "Mas aguenta, por favor. Temos de salvar Christian."

Rezando para que o combate não tivesse tido efeitos negativos sobre o seu bebé, Victoria ergueu o báculo diante da porta da masmorra. A primeira descarga de energia deixou-a intacta. Mordendo o lábio inferior, Victoria tentou novamente e desta vez absorveu ainda mais energia do ambiente. A porta abanou. A protecção mágica de Qaydar ressentiu-se.

Victoria experimentou pela terceira vez e, desta vez, os gonzos cederam, o ferrolho saltou e a porta abriu-se com um ranger.

A jovem precipitou-se para o interior da cela e agachou-se junto ao prisioneiro.

- Christian? - perguntou-lhe num sussurro. - Estás bem?

- Victoria - murmurou ele; tinha os lábios ressequidos. - Onde estás? Não consigo ver-te.

Ela franziu o sobrolho, preocupada. A luz que o báculo gerara já se estava a extinguir e não podia ter cegado os olhos de Christian, porque a porta estava fechada. Passou uma mão à frente do seu rosto, mas o olhar perdido dele não reagiu.

- Estou aqui - sussurrou. - Ao teu lado.

Abriu-lhe a camisa para ver o estado da gema que lhe tinham cravado no peito. Continuava lá, como um parasita, embora as estrias negras que desenhara na sua pele não se tivessem espalhado. Victoria colocou uma mão na testa do shek.

- Estás quente - disse. - Isto não pode ser bom para ti. Tenho de te tirar daqui.

- Estou... sozinho - gemeu Christian, e havia um tom de autêntico pânico na sua voz. - Não há ninguém, Victoria, está tudo... tão escuro.

- Estou contigo - insistiu ela. - Não estás sozinho.

- Não... há... mais ninguém - murmurou ele, e o seu rosto, habitualmente impassível, era uma máscara de terror. - Não sinto nada...

A Victoria apertou-se-lhe o coração, mas não perdeu mais tempo. Obrigou-o a levantar-se e apoiou-o no seu ombro.

- Vamos, tenta caminhar - sussurrou-lhe ao ouvido. - Temos de sair daqui antes que nos encontrem.

Arrastou-o pelo corredor, desviando-se dos corpos inertes dos guardas. Um deles começava a voltar a si.

- Fecha os olhos, Christian - ordenou. De novo, deixou que uma luz fortíssima banhasse o corredor. Ouviu que o soldado gemia; imaginou que devia cobrir os olhos com os braços, mas não parou para olhar para trás. Não tinham muito tempo.

Aos tropeções, saíram das masmorras. Na sala dos guardas, Victoria deteve-se durante uns segundos para fazer saltar o cadeado do baú das armas confiscadas aos presos. Encontrou lá Haiass e resgatou-a, com a esperança de que Christian pudesse voltar a empunhá-la num futuro próximo.

Ainda teve de enfrentar mais três soldados e dois cavaleiros de Nurgon antes de...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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