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A GLÓRIA QUE PASSOU - P.2 / Taylor Caldwell
A GLÓRIA QUE PASSOU - P.2 / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Segunda Parte PÉRICLES
"Ele era, mais que todos os homens, justo ",
ZÊNON DE ELEIA
Capítulo 1
Depois de Zênon de Eleia ter visto Péricles, filho de Xantipo e de Agariste, Xantipo fez uma visita a Zênon em sua casa.
— A mãe de meu filho — disse Xantipo — se interessa pela aparência que, segundo ela, é a primeira porta para o poder. Julga ela que a cabeça de Péricles se ergue muito acima do cenho e das feições.
— Porventura um grande homem lamenta não ser aceito pelas aclamações dos obscuros, dos inferiores, dos insignificantes? Ao contrário, rejubila-se, pois o que é comumente aceito é execrável e degradante, além de desvalioso. Um saltimbanco, um atleta, um palhaço, um bufão, um pugilista, um cantor ou um ator, qualquer desses pode ser aplaudido pela multidão inferior, cujos apetites são os apetites das estrebarias. Quem desejaria ser aplaudido por essa gente?
— Está querendo dizer que meu filho não pertence ao mundo comum? — perguntou Xantipo.
— Devo dizer-lhe que nunca me enganei com um aluno — disse Zênon com dignidade. Se eu não tivesse contemplado os olhos calmos, diretos e radiosos de seu filho, não teria visto o que vi, nem teria consentido em servir-lhe de mestre. Tem uma presença majestosa, apesar de sua pouca idade, e a majestade é coisa muito de admirar. Considero-o o mais belo dos jovens, embora tenha apenas doze anos de idade. Há virilidade no seu porte e autoridade no seu olhar. Prevejo para ele um futuro que superará o dos homens inferiores e que repercutirá através dos tempos.

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— Imploro aos deuses que ele seja um bom soldado — disse o pai.
— Fala como soldado — disse o professor, sorrindo indulgentemente. — Acredito que seu filho terá gênio militar, pois tenho-o observado, mas será também a glória da sua nação. Consultei os oráculos de Delfos.
— Mas isso é superstição — disse Xantipo, que era extremamente supersticioso, ainda que em muitos sentidos fosse céptico e pragmático.
— Já se disse — murmurou o mestre — que a superstição nasce da experiência. Quem sabe o que regula o destino e os casos dos homens?
O pai pensou, alisando o linho branco do seu manto.
— Falou na "glória de sua nação". Haverá maior glória do que a de um soldado?
— Dizem que a história é a sombra dos grandes homens. Ou dos homens monstruosos. O gênio militar é admirável, pois mantém uma nação no seu aspecto material. Mas há outro gênio, a chama da inteligência. Seu filho possui ambos os gênios. Como disse, consultei os oráculos de Delfos. Juro que Apolo me respondeu.
O pai se mostrou incrédulo.
— Apolo lhe respondeu, Zênon?
O professor desviou os olhos, sorrindo, diante do olhar iluminado de descrença do outro.
— É o que eu creio. Ou então foi alguma força lógica. Não sou uma mulher histérica, nem um homem dado a sonhos idiotas. Reflito sobre as coisas. Mas há em minha alma algo que me diz que seu filho não é do molde comum e que não o animam aspirações comuns.
Zênon de Eleia, celebrado pelos filósofos seus colegas como o criador da dialética — isto é, ele provava que a discussão tem por fim não uma vitória pessoal, mas o estabelecimento da verdade — era um homem jovem e magro de baixa estatura, com um rosto estreito, branco e pontudo, no qual os dois grandes olhos pretos brilhavam cheios de luz, dominando-lhe as feições e dando-lhe uma expressão de extraordinária vivacidade e empolgante força. Esqueciam-se os outros atributos insignificantes que o caracterizavam, tais como um cenho branco perpetuamente franzido, os cabelos crespos e curtos que lhe caíam pela ponta das grandes orelhas, um pequeno nariz arrebitado e a boca inquieta — que sugeria erradamente um temperamento instável — quando aqueles olhos brilhantes e intensos estavam voltados para o interlocutor. Era então que o observador subitamente intimidado tomava conhecimento de uma presença, de um clarão por trás do brilho menor desses olhos e de uma concentração de enorme e incessante energia. Muitos sentiam que o frágil corpo do filósofo poderia ser consumido a qualquer momento nessa incandescência, sem poder suportar o núcleo de chama que dentro dele ardia. Mas, desde que as suas maneiras eram simples e até algumas vezes tímidas e ele nunca discutia em voz alta nem com qualquer manifestação de arrogância, sendo invariavelmente bondoso, cortês e interessado nas opiniões alheias, havia quem lhe negasse sabedoria e dissesse que ele apenas refletia o gênio superior de seu mestre e amigo Parmênides, que sabia desprezar as inteligências inferiores e tinha uma língua acerada na ironia. Alguns até julgavam o seu olhar por demais ardente e ridicularizavam a sua proeminência, fingindo acreditarem que se tratava de um traço histérico ou feminino, talvez do sintoma de alguma doença física ou mental. Imitavam-lhe a voz branda, que muitas vezes se tornava estridente e incerta quando ele se via diante de altercadores arrogantes. Escarneciam dos seus braços magros e infantis, deixando de ver-lhe as mãos grandes e belas.
Mas as pessoas perceptivas escutavam-no com respeito e levantavam-se quando ele entrava numa sala ou parava junto a uma colunata para falar a estudantes, tendo depois a impressão de que tinham estado por alguns momentos na presença de uma força irresistível, que fazia o próprio ar vibrar. Acreditavam que a simplicidade dele fosse a simplicidade do mármore iluminado pelo sol ou a simplicidade do fogo.
Zênon tinha considerável patrimônio, mas vivia sem ostentação nos subúrbios de Atenas, contente com uma casinha quadrada e branca, onde uma parreira se estendia pela latada. Não tinha escravos e cuidava dos serviços domésticos pessoalmente, a ponto de fazer o seu próprio queijo de leite de cabra, assar o seu próprio pão e beber o vinho resinoso das suas próprias uvas. Essa vida austera não era afetação, nem desprezo do luxo, nem mesmo consequência de uma simplicidade inata. Chegara à conclusão de que quanto menos necessidades um homem tem, mais independente é e que as necessidades que afligem o espírito e servem ao corpo voraz são artificiais e não devem ser cultivadas em detrimento do espírito. Mas amava a terra e sua casinha ficava perto de um bosque de oliveiras e árvores frutíferas. Havia pequenos caminhos de saibro vermelho à beira dos ciprestes verdes, de muitas flores e de uma vista do mar de púrpura. Cultivava tudo que crescia entre as suas mãos e costumava dizer, sob as zombarias dos que o invejavam, que adquirira a sabedoria que possuía ouvindo as suas árvores e a sua terra.
Aceitava poucos alunos particulares, mas só um de cada vez e quando estava convencido de que o aluno possuía qualidades excepcionais de inteligência e de espírito. A não ser isso, preferia discorrer na fresca luminosidade das colunatas com os alunos de outros filósofos e mestres à tarde, sem depreciar jamais os mentores dos seus ouvintes, mas procurando hábil e eloquentemente ampliar as ideias dos jovens. Ficava entre eles vestido com uma túnica simples de linho branco ou cinza, presa à cintura por uma corrente simples de prata, que ele esfregava constantemente com os dedos no costume nervoso de um homem cujas reflexões eram mais vastas e mais rápidas do que a sua língua carnal. Mas a política o desgostava, salvo quando estava em jogo um princípio filosófico universal e, apesar disso, único. Como essas ocasiões eram raras, preferia deixar a política de lado e chegara uma vez a dizer que os políticos deviam ser abolidos, opinião que não concorrera para aumentar a sua reputação de sabedoria.
Era conhecido como um mestre dos paradoxos e tinha prazer em proferi-los. Corria também frequente perigo da parte das autoridades ortodoxas e dos sacerdotes de Atenas, pois afirmava repetidamente que só o Um existia e que a crença em Muitos era um erro. "Está bem, que seja Zeus, se é preciso dar um nome ao Incognoscível, mas somente Zeus", dizia ele. Reconhecia, porém, que podia haver sublime poesia no conceito de Muitos e que o monoteísmo não podia verdadeiramente ser compreendido pelos espíritos finitos dos homens. "Se os homens não podem estar simultaneamente em dez mil lugares e ter um conhecimento universal, é impossível que compreendam a onipresença da Divindade, a sua onisciente consciência e o seu infinito conhecimento". Até então, os sacerdotes não o haviam abertamente perseguido ou importunado, pois o julgavam louco e destituído de importância.
Xantipo lhe fizera anteriormente uma visita, numa tarde cheia de luz, aparecendo na sua liteira com ornatos de prata levada por seis escravos pomposamente vestidos. Nunca estivera até então com Zênon, embora soubesse de sua fama, pois era um político poderoso, e notável guerreiro, que comandara um esquadrão que aniquilara parte da esquadra de Xerxes, em Mícale. Sendo um homem astuto sabia também que a ostentação não impressionaria Zênon, mas era um homem que amava o luxo e os acessórios das riquezas e, como dissera chocarreiramente a sua mulher Agariste, não era um hipócrita pretensioso para visitar um homem de sabedoria a pé e com sandálias empoeiradas.
Zênon estava inspecionando as suas oliveiras novas quando Xantipo chegou. Voltou a cabeça e olhou calmamente o visitante. Já vira Xantipo de longe em muitas ocasiões e reconheceu-o. Aproximou-se para recebê-lo sem pedir desculpas das mãos manchadas e das folhas murchas caídas nos seus ombros estreitos. Havia terra numa de suas faces sumidas. Mas nada podia diminuir o esplendor dos seus olhos ou a súbita lucidez do seu sorriso. Xantipo sentiu-se inexplicavelmente impressionado e se comoveu ao olhar para aqueles olhos, como muitos homens se haviam comovido.
Desceu, portanto, da sua liteira em lugar de reclinar-se nas almofadas e de falar com Zênon através das cortinas abertas. Estendeu a sua forte mão de soldado e Zênon apertou-a com infantil simplicidade. Entretanto, o hábil político e soldado compreendia que Zênon não era um simplório e pouca vulnerabilidade possuía. Estava encouraçado pela sua virtude.
Por sua vez, Zênon estudou o visitante e ficou surpreso, como sempre, com o rosto de Xantipo que lhe desmentia as profissões e o seu valor e gênio como militar. Xantipo era alto para um grego e seu corpo tinha a agilidade e a flexibilidade de um atleta, com uma peculiar rapidez de movimentos. Sugeria poder implícito e masculinidade. O rosto, longo, estreito, pálido e liso, tinha a delicadeza desdenhosa de um aristocrata persa. Na verdade, Xantipo admirava os persas, que derrotara. Isso lhe dava à expressão uma sutil arrogância, que tinha feito dele um grande favorito junto às mulheres. Usava a barba curta e em ponta dos persas. O nariz era fino e aquilino e a boca, sensual, vermelha e cheia. Mas os olhos eram da cor do céu grego ao meio-dia, intensa e incrivelmente azuis, embora duros e claros. As sobrancelhas eram pretas, como o era o cabelo sob o capuz branco do seu manto. Começavam muito perto dos cantos internos dos olhos e subiam para as têmporas, dando-lhe um ar cínico que intimidava os menos sutis.
— Saudações, Xantipo — disse Zênon.
— Conheces-me, Zênon de Eleia? — perguntou Xantipo com alguma surpresa.
— Já o vi de longe — respondeu o filósofo. Estendeu a mão para a casinha branca, coberta no momento pelo verde primaveril das parreiras. — Posso oferecer-lhe meu vinho, meu pão, meu queijo e algumas frutas?
— Muito lhe agradeço — disse Xantipo, com um olhar cheio de penetrante curiosidade.
A serenidade de Zênon indicava que esperaria qualquer explicação do outro no seu devido tempo.
Xantipo estava habituado ao servilismo até dos seus iguais, mas Zênon não era servil. Deixou Xantipo seguir à sua frente para entrar na casa, mas o guerreiro parou um instante a fim de olhar a terra verde, o pomar, os canteiros e a vista que mostrava o porto prateado do Pireu, a Acrópole com a sua coroa de novos templos baixos e o casario branco e róseo de Atenas, tocado pelos raios do crepúsculo e estendido pelas suas colinas. Além ficavam o mar, agitado em ondas azuladas e purpúreas, e os navios ancorados, balançados pelo vento e pela maré. Alguns navios saíam para o mar e suas veias brancas captavam plenamente o brilho do sol.
Xantipo não era sentimental, mas no fundo do seu coração era um poeta. Olhando para a paz do cenário, para a beleza simples dos jardins que cercavam a casinha de Zênon, para as cabras que pastavam nas vizinhanças e sentindo o aroma da terra primaveril, da relva e das árvores em flor, viu-se tomado do orgulho, da humildade e da exultação de ser grego. Não era de admirar que os deuses — embora não acreditasse neles — preferissem a nobre terra da Grécia ao próprio Olimpo. E também certamente as filhas da terra grega. O vento do mar era quente e puro como a seda, fresco e novo como o linho lavado ao sol.
— Este é um lugar de alegria — disse Xantipo.
— Assim é e será no futuro. Alegria e beleza, paixão e deleite, cor e transparência e bem assim absoluta ressonância da mente e do espírito. Sei disso no fundo do meu coração. Tenho tido minhas visões.
Xantipo não depositava muita fé nas visões, embora também as tivesse. Entrou na sombra fresca da casa e, embora fosse um adepto do luxo, teve prazer em ver a austeridade da moradia, com os móveis apenas suficientes, as paredes brancas e o chão de pedra lua. Os livros ocupavam mais de metade do espaço. Além da sala de entrada, viu o pequeno quarto de Zênon com a cama estreita e uma arca oriental, que era só o que havia de colorido na casa, com os seus esmaltados e o seu fecho ornamentado. Olhando para essa arca, Xantipo, o guerreiro e voluptuário sem muito disfarce, compreendeu que havia em Zênon uma tendência à exaltação e à observância da boa vida. Zênon entrou na casa e colocou na mesa um jarro de leite de cabra, um prato de queijo, azeitonas, um pedaço de pão grosseiro, mas cheiroso, um vaso de vinho, um prato de ervas, mel, aspargos e bagas novas, ácidas e excitantes na sua fragrância. Havia também um prato de alho fresco, um vidro de vinagre e uma porção amarela de acre manteiga de leite de cabra. Pratos e copos eram feitos do barro vermelho da Grécia, como os que usavam os camponeses. As colheres e as facas eram de metal bem rude e os guardanapos, de um linho áspero.
— Um banquete — murmurou Xantipo.
As suas palavras eram de simples gentileza, mas teve a surpresa de sentir um consentimento profundo e satisfeito no coração. Sentou-se à mesa num banco. Zênon fez uma libação aos deuses e Xantipo arqueou as sobrancelhas. Zênon sorriu e disse:
— Se eles existem, devem ficar satisfeitos.
Xantipo sorriu também.
A luz avermelhada do crepúsculo entrava pela pequena janela ao alto enquanto os dois homens faziam o reconfortante repasto. Durante todo o tempo, Xantipo lançou olhares de curiosidade, interesse e cálculo sobre Zênon. Tinha pensado que a sua missão fosse simples. Via que não o era. O contentamento e a tranquilidade, tão puros e insondáveis quanto a água, enchiam a casa.
Disse por fim a Zênon:
— Tenho um filho de doze anos de idade, Péricles. Preciso de um mestre para ele e tenho ouvido falar muito bem de ti, Zênon de Eleia.
Zênon pareceu alarmado e ansioso.
— Só aceito poucos alunos e só um de cada vez, de acordo com os meus desejos.
— Quais as condições que exiges para um aluno, Zênon?
Zênon hesitou. Correu os olhos pela sala como se quisesse pedir desculpas na sua aflição.
— Só aceito alunos excepcionais, que me provocam e despertam o meu interesse. Acredita que seu filho esteja nessas condições? disse ele, voltando para o guerreiro os seu olhos extraordinários.
Xantipo bebeu o vinho do copo que Zênon imediatamente encheu de novo. A luz rubra do sol lhe batia no rosto e Zênon olhou-o com interesse, pois via a formação entre desdenhosa e delicada da fisionomia sutil.
— Creio que meu filho tem qualidades excepcionais, embora ainda seja muito moço. É grave, ponderado e tem certa reserva. Interessa-se por muitas coisas estranhas. É disciplinado por si mesmo. Não precisa de conselhos, castigos ou repreensões. É todo de uma peça como se fosse de pedra, como a configuração do mármore.
— Infelizmente — murmurou Zênon.
— Infelizmente? — perguntou Xantipo, admirado, inclinando-se no seu banco.
— Homens assim são perigosos. Sabem desde que nascem o que querem e ninguém pode desviá-los disso. Estão imbuídos do destino e isso pode ser um desastre para os outros homens inferiores.
Xantipo ficou extremamente lisonjeado e satisfeito.
— Talvez, como pai, eu tenha exagerado as qualidades de meu filho.
— Assim espero e, por outro lado, não espero — disse Zênon e, embora fosse abstêmio, encheu o copo pela terceira vez e bebeu apressadamente o vinho.
Cruzou as mãos, as suas grandes mãos brancas de sábio, em cima da mesa e contemplou-as, dizendo:
— Verei seu filho.
— Mandarei uma liteira buscá-lo amanhã — disse o soldado.
Levantou-se e Zênon se levantou com ele. Acompanhou-o até à porta, onde os escravos esperavam. Quando Xantipo o deixou, Zênon encostou-se à porta, olhou para a distância e pensou, balançando duas ou três vezes a cabeça como se estivesse ao mesmo tempo agitado e apático. O sol se tornara uma sangrenta mancha no céu e o vento do mar era frio.
Zênon voltou às suas cabras e disse a um jovem bode que arremetia contra ele, brincalhonamente:
— Meu filho, você nada tem de humano e disso deve dar graças aos deuses.
Capítulo 2
Zênon olhou por entre as cortinas bordadas da liteira para as colinas de Atenas, que já tremiam com o calor e a luminosidade, embora a manhã mal estivesse começada, para as casas brancas agrupadas, com os seus telhados vermelhos, para as nuvens que se alteavam do pó cintilante e prateado que pairava sobre tudo, e para o azul intenso do céu da Grécia.
Atenas era uma cidade bem pequena. Talvez dois anos antes, fora incendiada até aos alicerces por Xerxes. Apenas alguns trechos suburbanos, onde Zênon e Xantipo viviam, tinham escapado. Entretanto, como a Fênix, tinha renascido das cinzas e, com um zelo e uma energia característicos, se reconstruíra. A sua efervescência intelectual não tinha sido menor que a sua força interior e a sua fogosa determinação. Dentro em breve, os seus muros enegrecidos tinham sido rebocados, os seus templos remodelados e os seus pomares replantados. Apesar de tudo, não era uma bela cidade. O campo dominante invadia-lhe as ruas estreitas e nunca estava muito longe até das casas mais ilustres. Era comum ver bandos de cabras, carneiros, gansos e porcos tangidos ao lado das paredes das casas novas, dos templos e dos prédios do governo. Pastavam nas encostas que subiam barulhentamente para a acrópole ainda quase nua, e os seus pastores, esquecidos dos persas e dos seus archotes, sentavam-se à sombra dos loureiros ressecados, comendo pão e queijo e bebendo o seu vinho resinoso. O coração da cidade, como antes do incêndio, tresandava a latrinas e excrementos de animais.
Tinham sido os espartanos e os tebanos descalços, juntamente com alguns atenienses, homens todos modestos, que haviam derrotado o poderoso Xerxes em Mícale e, mais que tudo, em Salamina e depois em Plateia? Por que fora a Grécia salva apenas por um evidente milagre? No fim, os gregos tinham tido apenas para lutar as mãos nuas, os pés ensanguentados, as unhas e os dentes, pois as suas frágeis lanças e espadas de ferro e os seus navios fracos e haviam desfeito e desintegrado. Que grande ânimo secreto os tinha levado a lutar assim, tornando-os maiores que os outros homens, ainda que por breve tempo? Que era que havia inspirado pequenas almas invejosas e turbulentas e lhes infundira uma incrível coragem?
O amor da liberdade. Ah, pensou Zênon, esse amor é mais forte na alma dos homens do que o amor das mulheres, do ouro, da prata e da conquista. Entretanto, pensou Zênon, enquanto a liteira subia por outra colina num trecho de leve frescura, alguma coisa mais salvara a Grécia quando parecia impossível a sua salvação. Os sacerdotes falavam dos deuses. Zênon acreditava nos fados e às vezes ponderava a hipótese da Divindade. Seria possível que a Grécia tivesse sido salva deliberadamente e, neste caso, para que destino? Sorriu das suas fantasias, e o seu sorriso não era zombeteiro, mas apenas levemente divertido. Se ele pudesse simplesmente acreditar por inteiro nos deuses! Nesse momento, alguma coisa profunda se moveu em seu coração, como se uma serpente dourada se tivesse movido num leito de metal, e Zênon sentiu uma doçura e uma poderosa emoção que jamais conhecera até então.
A casa de Xantipo, que se salvara do fogo, brilhava muito branca ao sol e o seu telhado cintilava como se fosse feito de rubis. Era cercada por um muro branco baixo, que se estendia por uma profusão de flores vermelhas, purpúreas, róseas e brancas, além das quais se erguia uma barreira de afilados ciprestes. Mas a casa ficava numa elevação e não era inteiramente escondida. Havia no portão um escravo trajado como um soldado que, depois de dar-lhe entrada, voltou a assumir atitude militar. Zênon avistou então todo o terreno, cortado pelos caminhos de saibro vermelho entre os canteiros em flor, com arbustos exóticos e grandes vasos chineses cheios de flores e ramos verdes. A casa era alta. Tinha dois andares com colunas jônicas que resplandeciam ao sol. O átrio era fresco, cheio de fontes e do cheiro dos fetos. Era uma das casas mais requintadas da pequena Atenas e tudo o que nela havia era elegante. A alma artística de Zênon ficou satisfeita.
Entrou na frescura do átrio e foi recebido por Xantipo, que vestia uma longa túnica azul com um cinto de prata de origem oriental, no qual se via um punhal alexandrino de bela feitura. A sua figura parecia deslocada naquele nobre exemplo de comedida arquitetura grega, parecendo mais própria para o palácio de um sultão. Xantipo sugeriu imediatamente uma colação. Sentaram-se à sombra de uma parede no pórtico externo e um escravo apareceu com um excelente vinho resfriado nas águas de uma fonte, pão branco macio, frutas, ótimo queijo, um prato de carne de ganso e outro de carne de porco fria, alcachofras em azeite de oliva e alho, e bagas frescas ainda molhadas de orvalho. Zênon viu que os pratos eram de prata ou da melhor cerâmica e que os copos eram de vidro egípcio ornamentados com folhas de parreira e uvas de prata.
Um escravo ficou atrás dele com um longo leque de folhas de palmeira, que não só produzia uma brisa suave, mas também afugentava as moscas. Xantipo derramou uma libação em honra dos deuses e sorriu para Zênon, que lhe seguiu o exemplo. Um bando de pombos, com as asas de fogo tocadas pelo sol, voou-lhes sobre as cabeças. O calor aumentava e havia o seco e agradável odor da pedra, do pó, das especiarias e da terra quente. Zênon comia com vontade. Dos fundos da casa e dos aposentos das mulheres vinha um eco de vozes e risos femininos, de mistura com os sons de uma lira.
Xantipo disse:
— Agariste, minha mulher, não é ignorante e sem inteligência como o são quase todas as senhoras atenienses, pois foi educada na casa do pai e faz um juízo muito alto de si mesma e de sua inteligência. Na verdade, tenho julgado a opinião dela muito feliz em numerosas ocasiões. Ela tem lampejos de sabedoria que podem até ser assustadores num homem. Ela deseja vê-lo depois que falar com nosso filho. Espero que não se ofenda com isso.
Zênon hesitou e então inclinou a cabeça.
— Tenho visitado a Escola das Cortesãs e encontrei lá mulheres de extraordinária inteligência e beleza. Conversei com elas para minha edificação. Targélia, que tem atualmente uma escola assim em Mileto, é uma mulher de qualidades magníficas de alma e de espírito. É um prazer visitá-la.
— Ah, sim — disse Xantipo, que tinha uma amante que fora uma protegida da Escola — ela é um paradigma do que as mulheres deviam ser e não são. Talvez isso seja uma felicidade para a nossa nação, pois está escrito pelas Sibilas que, quando as mulheres dominam uma nação e os seus homens, intrometendo-se na política e nas artes da guerra e da inteligência, essa nação entra em decadência.
— Entretanto — disse Zênon — acho um lamentável desperdício dos recursos humanos desprezar as mulheres que têm inteligência como a nossa e podem até superá-la. Quando possuem também beleza, encanto e talento, são notáveis e quem lhes pode resistir?
— As mulheres precisam apenas de um homem, mas os homens precisam de muitas mulheres. Nada é tão funesto para o espírito quanto a monotonia.
— Pois eu julgo a monotonia estimulante — disse Zênon e, vendo o olhar de espanto de Xantipo, apressou-se em acrescentar: — Quando o ambiente e a vida não estão agitados, não distraem o espírito. Mas, quando se tem de atender às mil trivialidades da existência, que passam como as sombras das nuvens, mas parecem no momento ser imperiosas, é impossível meditar sobre uma hipótese, examinar uma teoria científica, seguir até ao fim de um raciocínio filosófico ou encarar uma ideia de espantosa originalidade. A pessoa é forçada a cuidar de pequenos fatos como um camponês cuida de suas vacas e, depois desse trabalho, está exausta.
Sorriu para Xantipo, que o olhava com interesse.
Um lagarto irisado apareceu entre as pedras do pórtico e um escravo já ia bater no animal com um pau, quando Zênon o interrompeu com uma voz excepcionalmente áspera.
— Devemos deixar viver as coisas belas, pois há bem poucas coisas belas vivas neste mundo. Além disso, em que esse lagarto o ofendeu? Mordeu-lhe o pé ou envenenou-o? Tem tão boa razão para viver quanto você e quem é você para dar-lhe cabo da vida?
Ficou então com o rosto vermelho, pois havia repreendido um escravo na presença do seu senhor. Mas Xantipo lhe disse com a sua voz musical:
— Falou a verdade. Quem é o homem para decidir que algum ser é mais baixo do que ele? E os animais nos superam numa coisa. Têm a virtude do seu ser e respeitam as leis que lhes são dadas. Nós não procedemos assim.
Zênon disse:
— Respeitam as leis do seu ser. Mas não acha que talvez sejamos mais inteligentes do que os animais porque nos rebelamos constantemente contra as leis do nosso ser?
— Trazemos conosco o fogo de Prometeu — disse Xantipo com o rosto iluminado pelas suas elucubrações mentais e com os olhos muito brilhantes voltados para Zênon. — Não é muito melhor possuirmos um fogo perigoso como nosso servo do que não possuirmos fogo algum? É graças à rebelião que o homem conhece alguma coisa maior do que ele e toma conhecimento dos deuses, embora estes o destruam. Os animais não se rebelam. — Torceu o copo entre as mãos e pareceu cada vez mais entusiasmado. — Não há virtude positiva em seguir as leis do seu ser.
Zênon sorriu.
— Eu poderia escrever um tratado sobre isso, embora sem contar com a aprovação dos sacerdotes,
— De fato — disse Xantipo. — Falamos como homens violentos e a rebelião deve ser deplorada.
— Há muito que dizer do uso da violência inteligente — disse Zênon. — Foi dos seus vórtices que os deuses ascenderam e foi do holocausto que surgiram os mundos.
Xantipo bateu palmas para chamar o guarda do átrio.
— Voltamos assim às velhas questões. Desde que o homem é uma presença perturbadora e estranha neste mundo, revoltado sempre contra as leis naturais e em consequência disso a provocar incessantemente o caos, não seria melhor que ele fosse eliminado?
— Os deuses são violentos — disse Zênon, rindo. — Com o fogo vivo de Suas Mãos, Deus golpeia os universos e das rochas acesas forma os continentes. Os mares se convulsionam e vomitam ilhas, rios e lagos. A natureza é turbulenta e mutável e talvez isso nos possa ensinar uma importante lição.
— É verdade — disse Xantipo, franzindo o cenho, descansando o cotovelo na mesa e colocando o queixo barbado na palma da mão. — Há, entretanto, políticos que dizem que, se tivéssemos reis-sacerdotes e pudéssemos exigir obediência e um comportamento dócil dos homens, entraríamos numa terra imortal de alegria e realização.
— Neste caso — disse Zênon — seriam os políticos que governariam e não os reis-sacerdotes. Os sacerdotes são obsequiosos e obedientes diante do poder dos outros.
Os maliciosos escravos estavam escutando e, por isso, até o guerreiro bravo e poderoso que era Xantipo, que detestava os sacerdotes, se apressou em dizer:
— Quem tem acesso aos deuses senão os sacerdotes?
Piscou dissimuladamente os olhos para Zênon, cujo rosto se tornou imóvel como se fosse de mármore, não de medo, mas de desgosto do mundo.
O guarda apareceu e Xantipo ordenou a presença de seu filho Péricles.
O jovem Péricles entrou no pórtico em companhia do escravo que o servia, um homem idoso e barbado. Zênon olhou para o jovem Péricles, de doze anos de idade, filho de Xantipo, de la casa de Colargo e da tribo de Acamântis. Xantipo olhou para o filho com sorridente orgulho e disse:
— A mãe dele, como talvez saiba, Zênon de Eleia, é neta de Clístenes, que expulsou do poder os filhos de Pisístrato, pôs fim aos tiranos e tentou voltar às leis e aos princípios de Sólon. Mas isso, como sabemos, foi um sonho pouco prático. Minha mulher costumava dizer às suas escravas na época do nascimento de nosso filho que fora para a cama com um leão.
E Xantipo tornou a piscar os olhos para Zênon.
O sol no pórtico era ofuscante e mesmo àquela hora as sombras eram alongadas e azul-escuras, enquanto o céu era de uma cor ressoante como que feita de uma chama azul-turquesa. Péricles estava no centro desse brilho refletido, calmamente e com contentamento, quase como se fosse indiferente à observação de um estranho e como se os seus pensamentos estivessem muito longe dali. Parecia alto para a sua idade e era magro, mas musculoso. Parecia ter mais idade. Vestia a túnica verde curta da pré-adolescência com a bordadura grega na fímbria e nas mangas. As pernas eram franzinas, mas firmes e os pés nas sandálias, compridos e estreitos. O seu corpo e a sua atitude tinham a graça e a elegância que os atenienses tanto admiravam e a pele era de uma brancura de leite. O rosto mostrava a finura e a força dos ossos patrícios, tão sutilmente formados que pareciam estar perto da carne e dominá-la. O nariz era levemente aquilino e a boca rósea, cheia e um pouco sensual, mas bem-feita e controlada. Os olhos eram de um azul muito claro entre cílios que pareciam descorados, quase como nos olhos de uma estátua. Os cabelos eram da cor do linho brilhante e se curvavam na nuca e em torno das faces. O pescoço branco era longo, magro, erguido e flexível.
Tudo isso compunha uma certa beleza estranha e masculina, exceto a testa, que, embora da cor e da rigidez do mármore, subia a uma altura fora do comum, do mesmo modo que o alto da cabeça, dando assim um alongamento desproporcional ao rosto, que ficava diminuído e minguado. Essa grotesca desproporção teria chamado a atenção dos sacerdotes e das autoridades como anormal e Péricles, se tivesse nascido de pais menos ilustres, teria morrido desde a infância, encerrado num grande vaso. As autoridades não permitiam a sobrevivência de desvios corporais ou aberrações fisionômicas.
Em deferência ao garoto, pois sabia como os jovens são suscetíveis aos olhares dos adultos, Zênon não olhou diretamente para Péricles, fixando um ponto perto do rosto dele.
— Salve, Péricles, filho de Xantipo — disse ele em voz clara e gentil.
— Salve, Zênon de Eleia.
Zênon se surpreendeu com a voz cheia de Péricles, que não era esganiçada como a das crianças.
— Já falei a meu filho de ti, Zênon — disse Xantipo — e disse que eu estava tentando convencer-te a ser professor dele.
Pela primeira vez, Péricles olhou diretamente para Zênon e este voltou a surpreender-se, pois não viu o olhar desconfiado e medroso de um menino, mas o olhar ponderado e calculista de um homem sem temor, mas cauteloso.
Olhando para o jovem, Zênon soube com toda a sua intuição que não tinha necessidade de interrogar Péricles para descobrir-lhe a inteligência. Naqueles olhos claros estava implícita a inteligência com fogo interior, com critério e poder latente. Os olhos brilhavam com aquele fulgor que só provém de um espírito excepcionalmente inteligente, Péricles tinha voltado a atenção para Zênon, regressando de um lugar remoto onde a mesma estava empenhada, mas assim procedera com penetrante vigor, que era perfeitamente consciente e concentrado e não difuso ou vago.
Na verdade, pensou Zênon, trata-se de um menino fora do comum — se é possível chamá-lo de menino — e de potencialidades, terríveis.
Zênon nunca tinha dito isso a nenhum dos seus alunos, mas disse; a Péricles.
— Aceita-me como seu professor, Péricles, filho de Xantipo?
O menino sorriu cortesmente, olhou para o pai e respondeu:
— Aceito.
Rindo intimamente de si mesmo, Zênon teve a impressão de que havia recebido uma homenagem.
— Ele lê e escreve adequadamente — disse Xantipo, que havia compreendido a troca de palavras e ficara satisfeito. Cofiou a barba, preta e disse:
— Está resolvido então. Não acharás meu filho apático, Zênon de Eleia, mas animado de um espírito curioso e de uma ansiedade de ser esclarecido e guiado.
Duvido muito de que ele possa ser guiado a não ser por uma mulher e, ainda assim, em determinadas ocasiões, pensou Zênon.
— A mãe dele foi educada por professores na casa do pai — disse Xantipo — pois ele tinha a ilusão de que as mulheres possuem inteligência.
Zênon não se conteve mais e disse:
— Péricles, não é da sua natureza aceitar alguém imediatamente. Por que me aceitou?
— Porque já li alguns dos seus escritos — disse o menino.
Zênon arqueou as sobrancelhas.
— E que foi que achou deles?
— São lúcidos — disse Péricles, sorrindo para Zênon, como se fosse um homem conhecedor e um pouco bem-humorado.
— Isso é um elogio — disse Zênon, muito sério. — Se o jovem pôde compreender um sábio, então este conseguiu tornar-se inteligível.
Viu que Péricles o estava olhando com aquela perturbadora convergência que não permitia a intrusão de qualquer outro pensamento.
Xantipo dispensou o filho com um beijo. Péricles fez uma reverência formal a Zênon e. partiu com seu escravo. Não saiu correndo, como fariam outros meninos. Caminhou com a firmeza e a tranquilidade de um homem.
Zênon disse a Xantipo:
— Seu filho não é uma criança. Já é um homem e é para mim uma honra ensiná-lo.
— Talvez minha mulher tenha mesmo ido para a cama com um leão — disse Xantipo, rindo. — Um leão branco de juba dourada. Não é o que meu filho parece?
Zênon não respondeu frivolamente como Xantipo esperava. Pensou um pouco e então disse gravemente:
— Sim.
Juntou as mãos entre os joelhos, olhou para as pedras do pórtico e então tomou um gole de vinho. Xantipo olhou-o atentamente e depois deu de ombros. Bateu palmas e, quando o escravo chegou, disse-lhe:
— Vá chamar a Senhora Agariste no gineceu e diga-lhe que venha falar-me imediatamente.
Como Zênon era um homem além de hóspede, Agariste entrou no pórtico em companhia de duas escravas que, como de hábito, usavam cabelos curtos, túnicas longas e braços e pés nus. Mas Agariste vestia um peplo de linho cor de açafrão com um cinto de ouro intrincadamente trabalhado e era de tão grande estatura que não tinha necessidade dos sapatos de saltos altos que as outras senhoras atenienses usavam. Os broches dos ombros resplandeciam de pedras e havia muitos anéis em suas mãos longas, brancas e esguias, enquanto os braços estreitos estavam cheios de pulseiras. Tinha uma figura nobre, embora fosse um tanto magra para o gosto de muitos homens. O seu busto se erguia lindamente sob as dobras do peplo, sendo evidente que ela não precisava de artifícios para elevá-lo. Os cabelos eram naturalmente louros, com um brilho intenso e tão abundantes e ondulados que ela não tinha de usar perucas para melhorá-los. Estavam amarrados com fitas douradas. Zênon viu que era da mãe que Péricles herdara o forte refinamento da estrutura facial, a pele branca, a boca cinzelada, o nariz aquilino e o azul quase descorado dos grandes olhos. Mas Agariste era altiva e fria, ao passo que o filho era grave e majestoso. Era evidente que ela fazia um juízo muito elevado da sua pessoa e da sua inteligência. O seu olhar era augusto e as suas maneiras sugeriam que ela considerava o marido — guerreiro famoso e político de habilidade muito de admirar — como pessoa que não era inteiramente igual a ela. Quanto a Zênon, a quem desejara ver e cujas obras conhecia, pareceu-lhe um homem pequeno, de aparência pouco distinta, de cabelos grosseiramente cuidados e corpo infantil. Ficou decepcionada e até curiosamente ofendida. Percebendo isso Zênon pensou: Teria ela esperado um Aquiles, um Apolo ou, pelo menos, um Hércules saído de um poema de Homero?
— Zênon de Eleia, a Senhora Agariste, dona de minha casa — disse Xantipo, que a admirava e respeitava, mas antipatizava com ela violentamente. Amava-a à sua maneira pelos seus dotes de caráter, pela sua beleza e pela história de sua família. Mas a julgava quase sempre enfadonha, pois não tinha senso de humor e ostentava apenas arrogância.
Ela curvou a cabeça leve e friamente para Zênon e este viu a graça do seu longo corpo por entre as dobras cuidadosamente arrumadas do peplo. Xantipo não a convidou a sentar-se, e isso ela não podia fazer sem o convite do marido. Ela olhou prontamente para uma cadeira de ébano incrustada de pérolas e, quando Xantipo nada disse, um leve rubor se lhe espalhou pelas faces transparentes e os olhos claros tiveram por um momento um duro brilho metálico.
Estudando-a com um leve sorriso e depois de breve silêncio, Xantipo disse:
— Não disse que desejava falar com Zênon de Eleia, Senhora?
Xantipo se recostou então na sua cadeira e começou a chupar um limão.
A mortificação agravou o rubor da mulher. Sem olhar para Zênon, falou com o marido.
— Considera-o, Senhor, um professor conveniente para nosso, filho?
Zênon começava a ter pena dela e disse:
— Senhora Agariste, julgo Péricles exemplar e sinto nele um grande destino. Consenti, por isso, em ser professor dele.
Agariste, cada vez mais humilhada, ouviu a voz de Zênon e as palavras que muito lhe agradaram. Voltou a cabeça para ele, mas conservou os olhos apartados. Disse com uma voz tão fria e tão sem cor quanto a neve:
— Zênon de Eleia, está repetindo o que ouço em meus sonhos e vejo nas minhas visões. Não penso que esteja exagerando ou querendo ser lisonjeiro. Creio que diz apenas a verdade.
— Assim é, Senhora — disse Zênon.
Aborrecido com o fato de que Xantipo parecia empenhado em descobrir uma certa noz numa travessa cheia delas, procurando com o seu longo dedo magro, Zênon se levantou num gesto de cortesia para com Agariste.
Xantipo encontrou a noz que procurava e quebrou-a com os fortes dentes brancos, enquanto os olhos azul-escuros cintilavam de alegria.
— Está satisfeita, Agariste? — perguntou ele, acomodando-se na cadeira, como se estivesse falando a uma escrava favorita.
Agariste, cujo rosto vermelho se tornara branco de raiva e de vergonha, inclinou a cabeça e Zênon não pôde deixar de admirar-lhe a compostura e a dignidade, tanto mais porque ela não era uma pessoa de maneiras agradáveis.
— Muito bem. Pode então retirar-se — disse o marido, levantando a mão num gesto gracioso.
Xantipo sabia que Agariste pretendia interrogar Zênon cerradamente, encarecendo a honra que lhe era feita, e procurando intimidá-lo enquanto lhe estudasse as teorias e as palavras. Tivera a esperança de impressionar o filósofo e de fazê-lo admirar os seus atributos. Erguendo a nobre cabeça, voltou-se e, acompanhada por suas escravas, saiu da presença dos homens, com o seu peplo tão imóvel quanto uma pedra amarela. Xantipo viu-a partir e fingiu examinar-lhe o corpo e os movimentos como os homens examinam as qualidades de uma hetera antes de escolhê-la. Zênon não achou graça nisso.
Xantipo percebeu-lhe a atitude e sorriu.
— A Senhora Agariste é uma mulher de muitas qualidades e não se distingue apenas pela sua beleza. A sua conversação é cinzelada em granito.
Zênon não pôde deixar de sorrir e disse:
— Voltarei amanhã bem cedo para iniciar a instrução do meu aluno.
Depois disso, despediu-se e saiu.
Acreditava que os oráculos de Delfos eram fraudulentos e ridículos, não passando de uma impostura de sacerdotes ansiosos pelas oferendas dos supersticiosos e dos crédulos. Num momento sem vigilância, fizera uma investigação rápida das cavernas dos oráculos. Sem dúvida, um oráculo havia previsto a derrota de Xerxes e dos seus bárbaros num momento em que essa simples ideia parecia absurda e até os sacerdotes tinham fugido dos templos. Outro profetizara a futura fama e glória da Grécia e Zênon, que raramente era místico, acreditava implicitamente nisso.
Doze anos antes, os oráculos haviam anunciado o nascimento de um grande herói que traria o relâmpago imperial do Olimpo e das mãos de Zeus para aquela pequena cidade de apenas quarenta mil almas, na sua maioria escravos, e escreveria o nome de Atenas no mármore imortal para o olhar reverente dos séculos.
Capítulo 3
— Há uma coisa que se pergunta desde o início dos tempos — disse Zênon ao seu aluno e com um olhar cortês para Agariste, que estava sentada perto e escutava atenta e gravemente. — "Que é o homem? " Foi essa a pergunta que fez o homem primitivo vestido de peles quando se contemplou de repente nos lagos tranquilos das florestas antigas. "Quem sou eu?", perguntou ele. "Vivo, procrio, como, defeco e morro como os animais que caço. Percebo, porém, uma diferença. Que diferença é essa que me torna um homem?" Era menos moral que os animais das selvas, das planícies e das montanhas. Sabia que era fraco em comparação com os dentes, as garras e a força dos animais, sendo também menos ágil do que eles. Compreendeu que os animais tinham o seu código próprio de moral, de disciplina e de comportamento, o qual não podia ser violado senão à custa de morte ou destruição.
"Seria ele, ao fim de tudo, menos que os animais? Em todos os aspectos de sua natureza bestial, os animais eram soberbos, decisivos e cheios de confiança. Ele, porém, não era. Nós sabemos que o homem possui poucos instintos, e que escolhe, por vontade própria, em grande extensão, o que pensará e qual será o seu futuro. Essa é, portanto, a diferença fundamental entre o homem e os outros animais, a Escolha. Torna-o essa capacidade um proscrito no mundo natural onde foi concebido ou a sua desobediência à lei lhe dá superioridade sobre os animais? Não está em paz consigo mesmo.
"Falamos do domínio da razão nos assuntos humanos. A razão tem sido analisada. Baseia-se, ao que se diz, na observação de uma realidade comum, num reconhecimento do que é a realidade. Mas o que é a realidade para mim, talvez não seja para ti, Péricles, nem para os outros homens. Para sabermos o que é o homem, temos antes de saber o que é a realidade.
— Em que é então que podemos basear a vida e modelar o nosso futuro? — perguntou o jovem Péricles, que tinha então quinze anos de idade.
Zênon refletiu.
— Há necessidade de leis objetivas, pois somos uma espécie ilegal, apaixonada, perversa e vingativa. Chegamos à conclusão de que é preciso para a sobrevivência de nossa tribo ter leis objetivas, embora estejamos vigorosamente em guerra contra a lei, tanto subjetiva quanto objetiva. Não aceitamos como os animais aceitam. De que misterioso fruto comemos para sermos rebeldes contra nós mesmos e desafiarmos até os deuses?
Contemplou os olhos claros e pensativos de seu aluno, que nada lhe disseram senão que o jovem Péricles estava pensando.
— Ninguém definiu verdadeiramente o homem. A resposta pode estar no espírito de Deus. Mas certamente não está no nosso, por mais categóricos que sejam o sacerdote, o filósofo ou o cientista — disse Zênon, sorrindo e comendo uma tâmara.
— O jovem Anaxágoras disse que nós somos homens porque temos polegares em oposição. Mas vários macacos também os têm e nunca edificaram um templo, nem elaboraram um corpo de leis próprias. Outros têm dito que nós somos diferentes porque pensamos e temos consciência do pensamento e de nós próprios. Tenho observado alguns cães e especialmente os gatos egípcios. Estou convencido de que eles também pensam.
— Mostra-se incoerente, Zênon de Eleia — disse Agariste, que estava sentada juntamente com o filho e o professor deste no pórtico exterior, à luz do entardecer. — Exprime paradoxos e então sorri como se eles lhe dessem prazer. Propõe questões sem nunca resolvê-las. Sugere mistérios, apresenta-os e então despreza-os como meras trivialidades.
Zênon olhou-a com piedade. Estava sentada na sua cadeira de madeira de limoeiro incrustada de marfim, enquanto uma escrava às suas costas a abanava com um longo leque de folhas de palmeira. Os seus cabelos eram como um trigal ao poente. Ela fazia valer a sua inteligência não com calma e modéstia ou sequer em pé de igualdade, mas numa espécie de triunfante desafio e exagerado orgulho.
Nisso, pensou Zênon, ela não confirmava a hipótese da inteligência das mulheres. Sorriu gentilmente para Agariste.
— Senhora — disse ele, de algum modo aborrecido de que o jovem Péricles estivesse a olhá-lo com uma chispa de divertido interesse nos olhos — é minha intenção fazer o meu aluno ponderar sobre minhas questões, paradoxos e incoerências para que possa formular respostas e hipóteses próprias, que depois discutiremos.
— Creio que o dever de um mestre é apresentar os fatos e os motivos desses fatos — disse Agariste com severidade.
— Senhora, há uma enorme diferença entre a filosofia e o que reconhecemos universalmente que é a verdade.
— Não reconhece então a existência de qualquer verdade absoluta?
Zênon hesitou. Olhou para os jardins em torno da casa, para os muros resplandecentes de cor e, mais além, para os trechos prateados das colinas de Atenas que surgiam entre os pinheiros, os ciprestes e os olivais que as cobriam como um manto tremulando ao vento da tarde. Mas o céu no zênite ainda era como um fogo azul.
— A verdade absoluta não pode ser conhecida pelos homens, pois nenhum homem pode chegar à verdade por si só. A verdade absoluta, do mesmo modo que a realidade absoluta, é prerrogativa de Deus e de mais ninguém.
— Não acredita então que os homens sejam como deuses, embora Homero tenha sugerido isso?
— Não posso discutir com Homero porque ele era poeta e os homens em sua grande maioria não o são. Estamos mais próximos dos animais do campo e, quando chegamos a conhecê-los, podemos iniciar a penosa subida para o nosso mistério, a partir desse terreno comum.
Agariste sacudiu a cabeça. Péricles apresentou ao seu professor uma travessa azul e branca.
— Aceite uma maçã, Zênon.
Olhando para ele, Zênon viu um brilho sutil no rosto do rapaz e quis rir, mas se conteve em sinal de respeito por Agariste.
— Não pode negar a verdade e a realidade das Termópilas! — exclamou Agariste, exaltada,
— Sei que resistimos durante algum tempo nesse lugar aos persas — disse Zênon. — Mas talvez, como dizem muitos no Oriente, tudo seja ilusão.
Tirou uma dentada da maçã que Péricles lhe tinha dado e bebeu um gole de vinho. Estava de pé junto à mesa e não sentado porque, embora, como muitos sábios, preferisse sentar-se, Agariste irritava até a serenidade do seu estado de espírito.
— Ilusão! — exclamou Agariste, movendo-se impetuosamente na sua cadeira, agitando-se no vestido azul-claro e arfando de tal maneira que o peito lhe subia e descia aflitamente. — Isso não é apenas leviandade, Zênon de Eleia! É traição!
Zênon fechou por um instante os olhos. Ouviu um breve riso perto e soube que o mesmo partia de Péricles, que estava sentado no seu banco duro de estudante e se divertia à custa da mãe e do professor.
— Não usa nem um punhal! — exclamou Agariste, exasperada com o silêncio de Zênon, interpretado por ela como uma desaprovação da sua inteligência feminina. — De que vale um homem sem ter ao menos uma pequena arma para defender-se?
Zênon deplorou que ela dissesse isso. Agariste era uma mulher de espírito, mas podia descer a trivialidades e ataques pessoais quando alguém tinha um pensamento em conflito com o seu.
— De quem e de que devo defender-me, Senhora? — perguntou ele calmamente. — Sou apenas um humilde filósofo e professor.
Péricles falou então:
— Há muitas pessoas capazes de atacá-lo, Zênon. Pode julgar-se o mais inofensivo dos homens, mas muitas das suas ideias e palavras têm provocado antagonismos na cidade.
Fez sinal a um escravo e disse a este com uma autoridade que surpreendeu Zênon:
-— Vá buscar para o ilustre Zênon de Eleia um dos punhais do Senhor Xantipo.
Olhou então diretamente para Zênon e disse com firmeza:
— É essa minha decisão.
O escravo trouxe um punhal egípcio de valor considerável, cravejado de turquesas e ametistas e com grandes pedras vermelhas, algumas das quais cinzeladas.
— É um objeto precioso e belo — disse Zênon. — Xantipo não ficará aborrecido com o presente?
— Ele tem a maior consideração pela sua pessoa e não lhe recusaria coisa alguma — disse Péricles.
Zênon prendeu o punhal ao seu velho cinto de prata. Sentiu a arma bater-lhe desagradavelmente na coxa. Péricles o observava com um sorriso zombeteiro.
— Espero que saiba fazer uso de um punhal, Zênon.
O rosto do filósofo se tornou muito sério.
— Sei usar uma espada também.
Péricles ergueu as sobrancelhas douradas.
— Na guerra?
— Para defender-me — disse Zênon.
Olhou para Agariste, que estava evidentemente pensando no valor do punhal. Péricles viu isso e voltou-se para a mãe com gentileza, mas com autoridade.
— Minha mãe, posso pedir-lhe que nos deixe a mim e a Zênon a sós para uma discussão?
Agariste levantou-se imediatamente em companhia de sua escrava, mas com o rosto rubro, e exclamou:
— Serei de uma inteligência tão inferior que não possa compreender essa discussão, Zênon?
— Vamos falar como homens — disse Péricles, afastando-se da mãe e esperando abertamente que ela obedecesse. Olhou para Zênon, que estava mais uma vez embaraçado em face da situação da pobre mulher. Ela saiu imediatamente de cabeça erguida e Zênon teve de novo pena dela.
Quando Agariste saiu, Zênon sentou-se, colocou os cotovelos magros em cima da mesa e olhou o queijo, o vinho, o pão, o mel, as frutas e as azeitonas que estavam diante dele. Começou a mordiscar uma coisa e outra, sem consciência do que estava fazendo, pois os seus pensamentos estavam muito longe dali.
O sol estava desaparecendo no ocidente num incêndio de vermelhos e verdes. Os telhados baixos de Atenas rebrilhavam e das paredes brancas escorriam sombras vermelhas. Havia sons murmurosos de homens e animais e odores agradáveis subiam das pedras e da terra branca e vermelha. Havia um cheiro forte de jasmim. As palmeiras começavam a farfalhar ao vento. Ouvia-se em algum lugar um coro de vozes femininas e de risos inconsequentes. O alto do céu se estava transformando num tom dourado. Os sons da pequena cidade embaixo eram um surdo rumor que mal se ouvia. As flores do jardim cheiravam muito.
Com os braços cruzados sobre a mesa, Péricles esperava. Olhava Zênon comer e uma ou duas vezes beliscou uma tâmara. De vez em quando, olhava para o porto e via o mar tomando uma cor prateada e de um roxo escuro. A cabeça da lua se erguia no céu, branca e frágil como a morte, Zênon falou afinal, mas olhava para o porto, onde alguns navios estavam saindo com a maré.
— É muito estranho que o governo e os sacerdotes não reconheçam um mal evidente e procurem combater males que na verdade não existem e que apenas lhes ofendem as sensibilidades deformadas.
— Meu pai é da mesma opinião — disse o jovem Péricles. — Ele acredita que os governos são maus por sua própria natureza, pois quem domina outros homens abusa do seu poder para a própria vaidade e engrandecimento.
Zênon olhou vivamente para seu aluno e disse:
— Isso sem dúvida alguma, é verdade.
— Quem deve governar então?
Zênon teve um sorriso amarelo.
— Na verdade, quem? Quando os homens se tornarem plenamente humanos — coisa que não creio que jamais venha a acontecer — poderão governar-se a si mesmos.
Cuspiu um caroço de azeitona e bebeu sombriamente um gole de vinho. Disse então:
— Os animais têm a sua regra de autoridade. Os mais sábios e mais fortes controlam sucessivamente as camadas inferiores até chegarem às mais baixas, sem que haja disputas. Mas está crescendo aqui em Atenas o erro da democracia, que é um recuo do governo racional. Todos os homens são iguais, dizem os seus filósofos. Mas que é ser igual? Significa a igualdade perante a lei ou a igualdade privilegiada em consequência das exigências furiosas dos inferiores invejosos? Vai descobrir Péricles, que os políticos são os mais covardes dos homens. Estão à procura de votos.
Péricles esperava. Uma grande borboleta branca esvoaçou sobre a mesa e colheu nas asas a luz forte do poente. Foi tudo como um breve relâmpago. Péricles ficou fascinado. Como era bela a natureza até nas suas menores manifestações! Péricles não falava dos seus sonhos mais íntimos a ninguém, nem mesmo a Zênon.
O filósofo ergueu os olhos e examinou o seu aluno. Pensava no que devia transmitir ao jovem. Muitos filósofos acreditavam que o homem tinha um conhecimento instintivo de coisas privadas, conhecimento esse acentuado pela observação dos animais domésticos no seu acasalamento e que quaisquer riscos, erros ou incompreensões seriam corrigidos pela experiência. Esses mesmos filósofos diziam, com alguma verdade, que não era possível dar aos jovens o valor da experiência dos mais velhos, desde que a mocidade despreza o conhecimento amargo, a sabedoria e a sagacidade dos mais velhos e prefere errar por conta própria e destruir a própria vida como se ninguém tivesse vivido até então. Infelizmente, pensou Zênon. O mundo é muito velho e a cada dia envelhece mais e nunca mais será um planeta "novo". Só a repetição será saudada como novidade e progresso, pois os jovens desconhecem a história antiga da sua tradição.
Zênon olhou para os jardins e viu os pavões e os patos no seu tanque, os gatos e cães da casa que passavam e os pássaros que cantavam. O poente banhava tudo com a sua luz avermelhada e Péricles continuava à espera, pensando que Zênon era quem tinha mais nobre aparência entre todos os homens que conhecia.
Zênon murmurou como se estivesse falando consigo mesmo,
— Você me perguntou se eu tinha medo de armas. E eu respondi que houve um tempo em que eu levava uma espada. Mas depois deixei-a de lado. Matei dois homens com minha espada.
Péricles espantou-se e disse:
— Por que então não quer estar presente quando eu tomo minhas lições de esgrima?
— É verdade. Isso me desperta lembranças desagradáveis. Muitos homens merecem ser executados, mas é horrível ser o carrasco. Não posso esquecer os homens a quem matei, embora merecessem certamente morrer.
— Temos consciência — disse Péricles, com uma expressão ao mesmo tempo zombeteira e divertida.
— Os animais também — disse Zênon.
Olhou de novo para os animais domésticos e acrescentou:
— Já notou os instintos de acasalamento desses animais?
— Já — disse Péricles.
— Sabe então que é dessa maneira que nós, seres humanos, também nos acasalamos.
Péricles estava achando tudo muito divertido,
— Claro que sei. Nossos corpos não são em princípio muito diferentes dos corpos dos animais.
Zênon assentiu.
— É quando nos desviamos dos instintos profundos de nossa natureza que nos tornamos inferiores aos animais,
— Elucide — disse Péricles, franzindo a testa.
— Há uma filosofia que é recente em nossa história, ainda que seja antiga na prática. Nós, gregos, gostamos de dar um manto branco de moralidade aos nossos pecados, conquanto civilizações mais velhas sejam mais cépticas e mais pragmáticas. Nós, gregos, costumamos dizer que nossas esposas e nossas concubinas não nos satisfazem inteiramente que os homens não podem ter verdadeiro amor por uma mulher, que é inferior e não tem alma, nem espírito de qualquer importância. Por isso, devemos procurar o amor ideal e a perfeição do entendimento em pessoas do nosso sexo para uma exultante troca de ideias. Não vivem os homens por meio de ideias, poesia e comunicação?
Zênon continuou:
— Se o amor entre homens, do mesmo sexo, se limitasse a discussões, troca de ideias e conversas e ao entusiasmo da exposição das teorias, ninguém teria quaisquer objeções.
Péricles estava em silêncio.
Depois de uma pausa, Zênon disse:
— Mas quando os homens substituem a capacidade física da mulher pela de outros homens, entram num mundo crepuscular no qual há não apenas perversão da natureza, mas também do espírito e da alma dos homens.
Os olhos azuis de Péricles se arregalaram inocentemente e ele perguntou:
— É possível uma coisa assim?
Zênon encarou o rapaz e pensou: "Quanta inocência fingida!" Disse então:
— Sejamos homens. O amor entre um homem e uma mulher é verdadeiramente amor, um grande mistério e uma excelsa glória. Exalta, edifica, eleva, faz de duas pessoas uma só carne, quase imune às calamidades externas, firme, na maior intimidade que qualquer ser humano pode conhecer, maior que a amizade, superior à mera procriação de filhos.
— Mas não se casou, Zênon — murmurou Péricles com um leve tom de espanto nos olhos.
— Não me casei, mas amei. Amei muitas mulheres, mas não encontrei uma só com quem me quisesse casar. Pela sua natureza, as mulheres são da terra, como dizem os sábios, e se preocupam com as coisas da terra, inclusive os seus úteros, mas isso não as torna inferiores, pois quem pode viver sem a terra?
Fez uma pausa e continuou:
— Há alguns anos, contratei um jovem escriba, pois meus amigos eram de opinião que o que eu escrevia e dizia devia ser registrado. Encontrei um jovem erudito chamado Felan, que tinha muita educação e finura e um espírito intuitivo e dedutivo. Levei-o para minha casa e ele pode anotar minhas reflexões e minhas ideias súbitas, bem como minhas dissertações e minhas teorias.
Zênon passou a mão pensativamente pelo queixo.
— Se eu tivesse tido mais discernimento, teria notado que Felan era um moço de muita delicadeza e sensibilidade, com uma aparência feminina. Era dado também a emoções e impulsos, com reações não muito adequadas a um homem. É verdade que grandes poetas e outros artistas podem comover-se até às lágrimas diante da beleza de um poente, de uma estátua ou de um poema épico, mas Felan podia emocionar-se da mesma maneira ao contato do focinho de um cordeiro ou de um cabrito. Chorava diante da suave tessitura do linho ou à vista de uma criança com a boca borbulhante de saliva. Tratava-se de manifestações femininas, mas eu mal as notava.
Zênon observava atentamente Péricles enquanto falava na sua voz tranquila e harmoniosa.
Mas a sensibilidade extrema e, às vezes, histérica de Felan não diminuía, como não decrescia o seu entusiasmo exagerado por tudo o que Zênon dizia, mesmo o que fosse mais trivial. Tudo isso era muito embaraçoso para o sábio, mas ele era naturalmente indulgente e bondoso. Tinha avançado tanto nas suas ansiosas excursões pelo seu próprio espírito e pelo espírito dos outros, que deixava de ver o óbvio. Felan o amava como uma mulher ama um homem.
— É extremamente perigoso para um homem viver exclusivamente pelo espírito — disse Zênon a Péricles — pois, quando isso acontece, pode tropeçar na menor pedra do caminho e quebrar a cabeça. Pode tropeçar numa pedra que uma criança teria evitado. É verdade que Felan frequentemente me inquietava com a manifesta adoração que tinha por mim, mas eu atribuía tudo injudiciosamente à sua mocidade e à sua gentil falta de complexidade. Um dia, afinal, disse-lhe: "Não me deve seguir constantemente, Felan, como se me fossem cair pedras preciosas dos lábios, quando, muitas vezes, não quero senão coçar meu ânus sozinho". Pensei que, dizendo isso, o faria rir, mas ele corou, olhou para mim com abjeta veneração e disse: "Mestre, caem pedras preciosas dos seus lábios até quando está calado". Em seguida, beijou-me de repente a mão, caiu de joelhos, cingiu-me os joelhos com os braços e confessou o seu amor por mim com tanta paixão e com tão balbuciante sinceridade que, apesar da minha repulsa, senti, não horror, mas apenas pena e tristeza.
Zênon deu um suspiro, passou a mão pelos olhos e contemplou os últimos raios vermelhos do sol sobre as montanhas já escuras do ocidente.
— Eu não me devia ter sentido tão surpreso e assustado. As provas tinham estado havia muito tempo diante dos meus olhos e eu poderia tê-las visto a qualquer momento, a despeito da minha cegueira. Fiz Felan levantar-se da melhor maneira possível, falando calmamente, mas ele me abraçou e beijou na boca, tal como se fosse uma mocinha impetuosa. Foi um beijo que queria ser lascivo, mas ainda tinha o inocente impulso de uma criança.
Zênon olhou para Péricles e perguntou em voz quase inaudível:
— Está compreendendo, meu aluno?
— Estou, sim — disse Péricles. — Tenho sabido dessas coisas por intermédio de vários dos meus companheiros, embora sem a honestidade, a compaixão e a compreensão que demonstrou, mestre.
— Ah — murmurou Zênon, tranquilizado. — E qual é sua opinião, Péricles?
O rapaz encolheu os ombros.
— Não acho essas coisas nem repulsivas, nem atraentes. Mas falou do ataque que lhe foi feito por homens armados.
— Achei difícil chegar a uma decisão absoluta e agir com autoridade — confessou Zênon. — Por isso, embora me fosse tudo muito penoso e eu só estivesse cedendo à necessidade, dispensei Felan e mandei-o para casa com uma carta ao pai, na qual dizia que chegara à conclusão de que minhas "palavras imortais" não mereciam ser registradas, ao mesmo tempo que elogiava a extraordinária inteligência de Felan, bem como a sua competência e lealdade.
"Felan me deixou banhado em lágrimas e com muitos pedidos para que eu reconsiderasse a minha decisão. Homens como Felan têm a intuição secreta de uma mulher. Precisei de muitas horas para convencê-lo a deixar a minha casa, enquanto outro homem tê-lo-ia forçado a sair em questão de momentos. Há ocasiões em que acredito que a bondade é covardia maior do que uma nobre virtude.
Quando Zênon era jovem, o pai dele o havia mandado para a melhor escola de esgrima de Atenas. Embora os atenienses não se tornassem bons guerreiros, pois tinham muito senso de humor e uma inteligência satírica, podiam lutar tão bravamente quanto os espartanos, quando a isso eram forçados.
— Meu pai se espantou ainda mais do que eu — disse Zênon — quando eu me tornei um excelente esgrimista, pois ambos havíamos pensado que não podia haver grande amor entre mim e o aço das espadas. Quando o meu mestre de esgrima declarou que minha aprendizagem estava terminada, meu pai deu de presente uma boa espada, afiada como uma navalha e tão pontiaguda como uma língua de mulher. Os copos eram de ouro engastado de pedrarias. Para agradar a meu pai, eu nunca a tirava da cintura.
"Dormia com ela na cama como se fosse uma mulher. E ela me salvou a vida, pouco depois de eu ter mandado Felan embora.
"Numa noite de luar, a casa em que atualmente moro foi invadida por dois homens, vestidos com mantos e capuzes. Arrombaram minha porta e avançaram para mim com punhais que brilhavam ao luar. Felizmente, eu estava acordado, pois, do contrário, seria assassinado em minha cama. Qualquer hesitação me teria custado a vida. Saltei da cama, empunhei minha espada e corri para o homem mais próximo, dando-lhe uma estocada. O capuz lhe caiu da cabeça e eu vi que era Felan. Morreu sem dar um gemido.
"O horror que senti com isso quase foi a causa de minha morte, pois fiquei paralisado por um momento ou dois, vendo o sangue•escuro e quente correr do coração do meu pobre secretário. Então, pelo canto dos olhos, vi o outro homem avançar para mim. Movi-me para o lado e feri-o levemente no ombro esquerdo. Se demorasse um segundo, ele me teria traspassado o coração. Atingi-o então com minha espada na barriga — e ele caiu gemendo, ao mesmo tempo que o punhal lhe caía da mão.
"Ajoelhei-me ao lado dele, vi que se tratava de um desordeiro ou um escravo e nunca tive raiva de ninguém como tive dele. Felan era ainda moço, mas aquele era um homem brutal de meia-idade. Bati com a cabeça dele rudemente no chão e exigi uma explicação. Ele não me reconheceu. Creio que foi a morte de Felan que me enraiveceu e despedaçou o coração. O fato de que Felan tivesse desejado a minha morte me parecia menos odioso de que aquele homem, que me era totalmente desconhecido, a tivesse desejado também.
"O homem confessou que era escravo na casa do pai de Felan e era muito dedicado ao rapaz, por quem tinha uma amizade quase paternal. Felan lhe havia dito que eu o insultara "mortalmente", acusando-o diante de outros amigos nas arcadas, troçando das suas ambições intelectuais e aconselhando-o a limitar as suas aspirações ao transporte de lenha para as termas. Isso havia revoltado o escravo, a quem ele dissera que só o meu sangue poderia apagar tantas afrontas contra o filho de uma casa ilustre. Felan então sugerira que os dois viessem juntos à minha casa para deliberadamente matar-me.
Zênon ficou calado por tanto tempo que afinal Péricles teve de perguntar:
— Como explicou o fato aos guardas e aos juízes da cidade?
Zênon passou a mão pelo queixo e olhou para o poente, onde as sombras da noite já se adensavam com tanta rapidez que aa casas brancas pareciam ossos espalhados pelos flancos das colinas.
— Foi no pai de Felan que eu pensei em primeiro lugar — disse Zênon, — Arrastei, portanto, os corpos até a beira do penhasco perto de minha casa e deixei-os cair jogando depois os punhais.
Péricles olhou incredulamente para a pequena estatura e para a magreza do professor.
— É notável a força que se pode encontrar em si mesmo em caso de necessidade — disse Zênon. — Eu estava empenhado não só em poupar as sensibilidades do pai de Felan, que era meu amigo, mas também em esconder dele a aberração do filho, pois se tratava de um homem altivo e de um eminente soldado, que teria morrido de dor se soubesse da propensão do filho, ainda mais se tomasse conhecimento de que o filho chamara um escravo para ajudá-lo a assassinar um homem que dormia. Voltei para minha casa e lavei o chão com todo o cuidado para tirar as manchas de sangue. Ao amanhecer, fui ao templo de Ares, que nunca foi o meu deus favorito, a fim de oferecer um sacrifício pela alma dos homens que eu fora forçado a matar e para demonstrar a minha gratidão pela força que o deus me dera naqueles terríveis momentos.
"Depois que as autoridades fizeram as suas investigações, chegaram à conclusão de que Felan e seu escravo tinham sido assassinados, por ladrões quando Felan ia visitar-me.
Zênon ficou de novo em silêncio e Péricles esperou. Por fim Zênon disse:
— Desde então, nunca mais andei com uma espada, embora a tenha pendurada numa das paredes de minha casa. Evito circunstâncias e situações que poderiam forçar-me a usar a espada em defesa de minha vida.
— Essas circunstâncias e situações nem sempre podem ser evitadas — disse Péricles, cujos cabelos dourados rebrilhavam na escuridão que anunciava uma tempestade. — Muitas vezes vai para casa a pé, recusando a liteira de meu pai. E se fosse numa dessas ocasiões atacado por ladrões, sem ter meios de defesa? Deixar-se-ia matar mansamente? Não seria isso uma forma de covardia?
Zênon riu.
— Creio que lhe ensinei muita lógica. De qualquer maneira, conservarei sempre à cintura este punhal que me deu e o usarei como os outros atenienses. A legítima defesa não é crime e recusar-se a defender-se é um instinto de escravo e não de homem. Mas, que comentário triste sobre os nossos tempos é que às vezes tenhamos de matar para não sermos mortos!
De repente, levantou-se, como que invadido por alguma inquietação, e foi até ao parapeito diante do pórtico e ali ficou olhando para o negro céu do ocaso. Péricles foi para junto dele e olharam juntos a cidade e o céu. Um relâmpago abriu então um rastro fulgurante no céu, logo seguido do estrondo belicoso de um trovão. Por um instante, Péricles foi iluminado por uma luz fantástica e Zênon olhou-o com apreensão. Era como se uma estátua branca e dourada, tivesse adquirido vida.
Graças aos deuses, pensou Zênon. Eu o havia julgado muito controlado, muito senhor de si, muito alheio às circunstâncias externas. Temos de agradecer aos deuses a existência de homens que podem inquietar-se.
A tempestade aumentou, as palmeiras se agitaram desvairadamente, a terra exalou um quente odor de pânico e desejo e sombras negras e brilhantes correram pela cidade aos pés deles. Zênon tocou o ombro do seu aluno e disse:
— Não se deixe perturbar. A vida ou esmagará seu coração ou o transformará em pedra. Isso é inevitável. Mas a escolha será sua. Péricles ergueu os olhos para as alturas sombrias da acrópole.
— Tenho um sonho — murmurou ele como se não tivesse ouvido as palavras de Zênon. — É um sonho de mármore, mas terá vida — disse ele, sorrindo para o seu professor.
Dos aposentos das mulheres, vinham as vozes das escravas que cantavam com acompanhamento de alaúdes e Zênon julgava um ato de bravura cantar assim diante da tempestade. É a resposta que todos nós devemos ter. Nada mais podemos fazer diante dos deuses terríveis.
Capítulo 4
Embora tivesse a aversão do aristocrata e do céptico ao homem comum, Xantipo sentia o ódio do homem sociável à opressão dos tiranos e dos governos. Costumava dizer: "Ninguém pode ser livre numa cidade se todos os homens não forem livres. Um escravo anula a liberdade de todos". Na verdade, o amor abstrato do patrício à liberdade é que o atraíra desde o princípio para as Leis de Sólon. Como muitos atenienses superiores, sabia que o governo devia ter uma Constituição que assegurasse os direitos dos cidadãos. Atenas tinha vivido em agitação desde o tempo dos tiranos, e Xantipo desejava restabelecer em toda a sua pureza as Leis de Sólon, das quais os tiranos se haviam apropriado para oprimir o povo e perverter os próprios ideais de Sólon.
— Os mais nobres conceitos dos homens são invariavelmente corrompidos e interpretados à luz dos interesses egoístas, ainda que os perversos proclamem abertamente a sua adesão a esses conceitos, — dizia ele ao filho. — Os homens mancham tudo aquilo em que tocam, até os pés dos deuses. A Constituição de Sólon para a nossa cidade foi um documento destinado a libertar os homens da incerteza e do medo e elevá-los a um governo nacional justo, conferindo-lhes os benefícios da liberdade, pois é só no seio da liberdade que, uma nação pode manter-se, prosperar e crescer. A lei, a ordem e o consentimento dos governados foram as coisas que Sólon desejou para Atenas e daí nasceu a sua Constituição. Veja agora o que os homens maus fizeram dessa Constituição sem que deixassem de proclamar o seu amor a ela.
Como um homem requintado, era contrário a todas as tentativas de um governo opressivo de regular com as suas leis a sua vida pessoal.
— Nós executamos espiões — dizia ele a Péricles. — Mas os governos são os espiões mais persistentes, pois devemos estar sempre vigilantes para não sermos escravizados, pelas suas penas infatigáveis e pela sua ambição de poder.
Desconfiava sempre dos outros homens e essa desconfiança havia aumentado durante toda a sua vida. Dissera certa vez, pilheriando até certo ponto: "Devia ser permitido aos cidadãos decidir todos os anos qual das altas autoridades do governo devia ser executada em praça pública pelos crimes cometidos contra o povo".
Chamava a atenção do filho para o preceito de Sólon, segundo o qual "um estado era bem governado quando o povo obedecia aos governantes e os governantes obedeciam às leis".
Infelizmente, tudo terminava com os governantes a exigir obediência a leis que eles mesmos desrespeitavam pressurosamente quando isso lhes interessava e lhes aumentava as riquezas.
— Não creio que haja nisso contradição — dizia Xantipo. — A natureza humana é assim mesmo.
— Como então — perguntava o jovem Péricles — podemos obrigar todos a cumprir as leis, inclusive os governantes?
— É impossível — dizia o descrente Xantipo. — Mas cada geração deve fiscalizar os seus governantes e insistir em preceitos originariamente nobres, mas que têm sido deformados pelas exigências. Sonha com uma transformação da natureza humana, meu filho? O homem é um animal esfomeado, que só pensa no seu estômago e nos seus órgãos genitais. Deve, portanto, ser periodicamente contido por meio de leis objetivas.
Olhou para Péricles que o escutava e acrescentou com um sorriso:
— Apesar de tudo, devemos lutar durante toda a nossa vida pela vitória da justiça. Mas sem muitas esperanças. Deve ter aprendido que, quando os deuses deixaram de habitar no meio dos homens, a última que se afastou foi a deusa da justiça. Sem dúvida, será também a última a voltar.
Às vezes, a sua língua ferina e a sua indignação diante da fraude e da crueldade tornavam-no impaciente e o faziam perder a cautela quando travava discussões filosóficas com amigos em quem parcialmente confiava. Isso acontecia em jantares nos quais havia vinho em abundância. Era então que o seu temperamento o arrastava a dissertações imprudentes, nas quais, porém, não acreditava de todo. Zombava dos deuses, que para ele estavam a serviço dos sacerdotes, e dos governantes, que estavam a serviço de si mesmos. Gostava de fazer dialética e paradoxos e julgava a humanidade ridícula, principalmente quando procurava levar-se a sério. Isso ofendia a muitos que se diziam homens corretos, preocupados com princípios e virtudes. Julgavam que Xantipo, com os seus duros olhos azuis fitos neles, os estava acusando de suas patifarias e hipocrisias ocultas, conquanto, na verdade, ele estivesse apenas rindo de si mesmo.
Dizia ele;
— O sonho de Sólon de uma república foi o mais glorioso e divino de todos os sonhos, pois previa o estabelecimento por homens justos e inteligentes de uma lei honesta que não distinguisse entre pobres e ricos e conferisse liberdades e direitos a todos aqueles que fossem capazes de exercê-los. Mas, infelizmente, temos visto que o sonho de uma república degenerou nas realidades de uma democracia caótica, que oprime todos aqueles que não podem comprá-la com ouro ou com prestígio. Que deve então substituí-la? Sempre ouvi dizer que um despotismo benévolo é o melhor de todos os regimes, mas quando se poderá encontrar um déspota benévolo que não sucumba à sua natureza humana e não se torne um ditador perverso?
— Devemos modificar a natureza humana — dizia com uma expressão piedosa o mais perverso dos seus companheiros. — O homem é capaz de tornar-se mais que um homem.
Ao ouvir isso, Xantipo ria desabaladamente.
Os seus mais caros amigos escreviam discretamente aos sacerdotes e ao governo para dizer que Xantipo era um homem ímpio que zombava dos deuses e dos sacerdotes, ao mesmo tempo que desprezava o governo constituído. As suas observações avançadas eram exageradas, a sua tendência ao riso céptico era condenada com uma demonstração de sacrilégio e os réprobos ainda sugeriam que ele era o mais licencioso dos homens. O governo começou então a tomar profundo interesse não só pelas suas "convicções", mas também pelos impostos que ele pagava.
Ninguém sabia dos seus desesperos, exceto a sua deliciosa concubina, que o cingia nos seus braços perfumados para escutá-lo e consolá-lo. Ele lhe beijava o seio e dizia:
— Ao fim de tudo, minha querida, só o amor é verdade, prazer e plenitude, mas até o amor pode ser pervertido pela luxúria e pelo desejo de retribuições. Beije-me. Terei a ilusão de que sou amado e essa é a mais triste de todas as ilusões.
Era um homem muito solitário. Mas até disso ria.
Sendo rico, provocava inveja. Sendo patrício e um guerreiro que contribuíra para salvar a Grécia, era menosprezado pelos inferiores que não tinham tradições aristocráticas e eram apenas pretensiosos. Mas, como um homem confiante, subestimava perigosamente os seus inimigos e a malícia dos seus amigos, pois, como ele mesmo diria mais tarde: "Nós, cépticos, somos os mais ingênuos dos homens. No fundo do coração, esperamos que os homens sejam melhores do que realmente são e que nós, na realidade, acabamos desmentidos".
Desconfiava dos seus próprios atenienses. Ainda que honrassem a memória de Sólon e embora os tiranos como Clistenes e Pisístrato houvessem às vezes posto em vigor as Leis de Sólon, os atenienses eram um povo muito inconstante e muito caprichoso para exigir que seus governantes obedecessem a uma Constituição imutável, pois desconfiavam do que chamavam inflexibilidade até nas leis mais perfeitas. Entretanto, os atenienses acalentavam o sonho de uma república perfeita e nobre, na qual uma Constituição impessoal, imune aos ataques dos homens viciosos e ambiciosos, pudesse existir como um monumento de mármore acima da natureza humana.
Xantipo não julgava isso um paradoxo ou uma incoerência, como alguns dos seus amigos.
— Os sonhos -— dizia ele — são a matriz do futuro e quem sabe se as futuras gerações não os poderão tornar uma brilhante realidade?
— Levando em conta as leis heróicas de uma república estabelecidas por Sólon — honradas, mas não obedecidas pelo nosso povo — é estranho que Sólon tivesse chegado a ser Arconte de Atenas e que não fosse assassinado — disse ele a sua mulher, Agariste, num dia de bom entendimento com ela.
Mas Agariste, cujos antepassados tinham contribuído para a deposição dos tiranos, e que realmente acreditava na existência de uma república ateniense, se inquietou com a observação.
— Que acredita, então, que seja o nosso governo? — perguntou ela.
— Não desejo lacerar os seus delicados ouvidos com minha opinião, Agariste. Mas, a despeito de nossas afirmações de que somos um povo livre — que não somos — não passamos de uma civilização escrava, ainda que Solón desejasse libertar os escravos. Nossos escravos e aqueles que não têm os direitos de cidadania são a maioria da população de nossa cidade-estado. Honramos Sólon venerando-o, mas desprezamos as ideias dele.
Agariste julgou esse pensamento frívolo. Não tinham seus pais ajudado a derrubar os tiranos? Onde no mundo inteiro havia governo tão perfeito e um clima intelectual igual ao de Atenas? Começava a suspeitar de que Xantipo não tinha profundo respeito e amor pela sua cidade e que não era, portanto, um verdadeiro patriota. Embora soubesse que alguns homens eram executados por ordem dos sacerdotes e do governo por suas opiniões, acreditava que esses homens eram traidores e que o próprio Sólon, se fosse vivo, concordaria com ela.
— Você é uma mulher inteligente — disse Xantipo, que ainda se sentia benévolo — mas não compreendeu uma só palavra do que eu disse. Não venera Sólon? Pois uma das convicções dele foi que a influência das mulheres era eternamente perniciosa. Discordo dele quanto a isso, mas nem sempre.
— Há muitas mulheres que pensam como homens! — exclamou Agariste.
— Sem dúvida, quando o sexo delas está morto — disse Xantipo, cuja benevolência se havia esgotado.
Deixou a mulher e foi procurar a sua cortesã, que o recebeu com sorrisos de alegria, levou-o imediatamente para a sua cama de seda e serviu-lhe vinho. Xantipo olhou para o rosto sereno e belo da mulher e viu que havia sinceridade no fundo dos seus olhos cor de avelã e que ela o amava. Estendeu a mão para ela e disse, fazendo-a ficar ao lado dele e acariciando-lhe os seios.
— Afrodite foi talvez o mais sábio de todos os seres divinos, pois é do amor que nascem as artes, as ciências, a poesia e a justiça, ao passo que a política, embora compreenda as aspirações e as filosofias dos homens, é em comparação um exercício sem importância.
Agariste ficou cheia de uma raiva amarga e silenciosa quando o marido a deixou e foi para os braços de uma mulher indigna. Respeitava Xantipo, às vezes admirava-o e era em geral subserviente para ele, compreendendo que ele era de uma família ilustre e um herói para muitos em Atenas, ainda que nos últimos tempos parecesse estar ficando esquecido. Nos primeiros anos do casamento, ele dava a impressão de encantar-se com a inteligência dela e passava horas a conversar com ela, acariciando-lhe o rosto ou os cabelos. Passara, porém, a considerá-la enfadonha.
Era inevitável que Xantipo chamasse a atenção dos sacerdotes e dos homens do governo e que eles se interessassem muito por ele, pois muitos o invejavam. Além disso, havia as cartas de denúncia dos seus amigos discretos, muitos dos quais eram homens de importância, que dispunham de prestígios e de riquezas. Outrora, ele fora mais discreto, mas ultimamente talvez as conversas com o filho tivessem dado mais clareza às suas ideias e ele as expunha sem muitas reservas.
Xantipo foi polidamente convidado a comparecer perante os sacerdotes para uma "consulta", pois ele era um homem muito respeitado e não podia ser capturado e levado à força à presença deles, sendo, além do mais, rico e poderoso. Os sacerdotes e os juízes tinham a intenção de apenas repreendê-lo e coibi-lo, mas alguns entre eles queriam a sua morte, embora o temessem. O herói não era um simples filósofo que gostasse de falar ou um professor entusiasta, cuja condenação causaria poucos comentários, mas era, por isso mesmo, ainda mais perigoso.
Quando Xantipo recebeu a intimação, convocou imediatamente a presença de sua mulher. Ela veio dos alojamentos das mulheres para o pórtico exterior. O marido tinha um pergaminho na mão e o examinava com um sorriso irônico. Xantipo olhou para Agariste e indicou-lhe uma cadeira, na qual ela se sentou com dignidade.
Xantipo disse então sem olhar para ela:
— Recebi uma intimação da Eclésia e do Tribunal de Justiça para comparecer diante deles amanhã ao meio-dia, a fim de explicar algumas das minhas convicções. — Jogou o pergaminho no chão e exclamou: — Malditos sacerdotes velhos! Juízes ignorantes que nada conhecem além dos seus preconceitos! São tão valentes e compreensivos como bodes!
Agariste ficou branca como um pedaço de linho, abriu a boca de pasmo e um brilho de horror e sofrimento lhe lampejou nos olhos. Percebendo isso, Xantipo ficou surpreso e intrigado, pois nunca havia conscientizado que sua mulher o amasse.
Emocionado e vendo que ela estava tremendo, Xantipo aproximou-se dela e disse:
— Não temas por minha segurança e por minha pessoa, meu amor. Posso enfrentar esses filhos de Sísifo que, como o pai, insistem incessante e inutilmente em empurrar uma pedra por uma encosta acima e sempre a veem rolar de novo e voltar para o seu lugar. Mas são persistentes na sua insensatez e moldam as leis à sua própria imagem.
Agariste ficou ainda mais pálida, pensando nas suas escravas, que tudo estavam ouvindo. Xantipo tomou-lhe a mão com uma gentileza que ela não conhecia desde muitos anos e por um instante ela ficou emocionada e as lágrimas lhe umedeceram os olhos altivos. Retirou afinal a mão e juntou-a à outra sobre o joelho, assumindo então o aspecto de um monumento de mármore à luz quente do sol.
— É incrível que uma coisa assim aconteça ao nosso nome! — disse ela por fim.
Xantipo ficou por um momento desconcertado. Depois, sorriu ironicamente e voltou em silêncio para a mulher os olhos cintilantes. Agariste torceu as mãos e o seu seio arfou. A luz mudou quando as palmeiras e os sicômoros agitaram as frondes e estenderam pelo chão branco do pórtico a sombra de suas folhas. Agariste estava mais agitada de momento a momento com os pensamentos inteiramente confusos.
— Nosso nome? — disse Xantipo. — Minha cara Agariste, há alguma coisa em jogo além do nosso nome. É a minha vida!
Mas ela continuou a dar voz aos seus pensamentos.
— Nunca houve qualquer mancha no nome de minha família! Levamos sempre vidas honradas, nobres e irrepreensíveis a serviço da nação! Tivemos sempre, com razão, mais orgulho do que os reis! Os anais de nossa história viverão para sempre no coração e no espírito dos homens. Mas agora há uma nódoa, uma infâmia...
— Sou mesmo um homem muito infame — disse Xantipo, servindo-se de um copo de vinho na mesa de mármore ao seu lado. — Sou um patife, um escravo desprezível, um criminoso que lancei lama sobre o nome de sua família. Com certeza, não tenho família! Sou apenas um soldado sem valor, um hilota!
O tom dele enfureceu Agariste, que disse:
— Não tem consideração pelo seu nome, meu marido.
Xantipo olhou para ela acima da borda do seu copo e ela viu, apesar da sua perturbação, um ódio irônico nos olhos do marido e exclamou:
— Antes a morte que a infâmia!
Xantipo riu. Deixou cair o copo na mesa com um baque e disse:
— Para você, meu amor, talvez. Para mim, não. Gosto da companhia de homens inteligentes. Gosto dos meus livros, dos meus jardins, dos meus olivais, dos meus navios. Gosto de banquetes e de música. Gosto da manhã e da noite. Gosto dos seios quentes e perfumados de mulheres desejáveis e tenho alegria nas coxas delas. As suas conversas são naturalmente cansativas, mas os corpos são deliciosos e para que, senão para isso, foram as mulheres criadas?
Diante desse insulto, o rosto pálido de Agariste ficou vermelho de humilhação.
— Por essas coisas que me agradam — disse Xantipo — vou lutar pela minha vida.
Agariste não era tola e disse então:
— Não pense nem por um instante que eu seja insensível ao perigo que está correndo, meu marido. Deve ter sido indiscreto sob a ação do vinho. Sem dúvida, a sua hetera o traiu.
— Isso não — disse Xantipo. — Pago sempre à minhas mulheres e elas me são gratas. Quando as abandono, encontro para elas amantes mais jovens e mais viris e dou-lhes joias preciosas. Lembra-se daquele colar de rubis de minha mãe? Dei-o há uma semana a minha hetera em sinal de reconhecimento pela sua compreensão, pela sua afeição e pelo cuidado que tem comigo.
Agariste sempre desejara aquele colar. Os seus lábios tremeram e ela quase chorou.
— Você me está atormentando, Xantipo. Não acredito em muita coisa do que está dizendo, mas há uma possibilidade de que eu o tenha provocado a exercer tamanha crueldade. Mas penso no meu nome e no seu. Não há nenhum homem de prestígio a quem possa recorrer para afastar de você essa indignidade?
— Não, meu amor. Vou enfrentar os sacerdotes e os juízes e troçar deles.
Agariste estava lívida.
— Pense em nosso filho, se não quiser pensar em nossos nomes. Um homem sem defesa, a não ser a sua própria voz, está perdido. Você devia ter mais orgulho para não comparecer diante dessa gente.
— Justamente por isso — disse Xantipo, — Comparecerei diante dessa gente, ainda que isso me custe a vida, embora eu não pretenda entregá-la sem luta. Mas, como você disse, a morte é preferível à infâmia e seria uma infâmia para mim curvar-me ante qualquer decreto dos sacerdotes ou dos juizes, que têm a tisna da escravidão, apesar de toda a sua empáfia de seres inferiores. Fala de nosso filho. Acha que ele se sentiria feliz de ver o pai rastejar como um escravo diante de homens inferiores? E você se sentiria feliz?
— Não — disse ela e, pela primeira vez, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Cobriu o rosto com as longas mãos brancas e chorou. Mas Xantipo, que se sentia profundamente ofendido, levantou-se e deixou-a.
Foi procurar a sua concubina na bela casinha que lhe dera. Deitado na cama dela, falou do seu problema. Ela estava ao lado dele, nua e rosada como Afrodite ao sair das espumas do mar, com os cabelos jogados para trás, de modo que nenhuma de suas belezas estava oculta. Os bicos dos seus seios eram como botões de rosa fechados e a boca era uma chama ardente. Enquanto escutava gravemente, o espírito ágil dela trabalhava. Gaia conhecia um homem de grande influência em Atenas, que muito admirava Xantipo e que, em troca de uma hora na cama dela sem que Xantipo soubesse, faria tudo que ela pedisse.
— Amanhã, ao meio-dia? — perguntou ela. — Tenho então de me apressar e ir ao templo de Palas Atena, que é toda sabedoria e protege os sábios, entre os quais está você, meu Xantipo.
Xantipo amava Gaia mais do que ele mesmo suspeitava, além de ser naturalmente indulgente com as mulheres. Por isso, deixou-a pouco depois para que ela pudesse ir ao templo. Sabia que àquela hora os seus melhores amigos já deviam saber da intimação e tinha de evitá-los para poupar um constrangimento recíproco. Dirigiu-se então para os seus olivais.
Logo que ele saiu, Gaia chamou um dos seus escravos e mandou-o levar um recado ao homem que ardentemente a desejava. Banhou-se em água perfumada e escravas esfregaram-lhe óleos perfumados no corpo e lhe escovaram os cabelos até que estes brilharam como a folhagem do outono ao sol. Vestiu um macio peplo azul com um braço à mostra, no qual prendeu uma pulseira que o seu decepcionado pretendente lhe mandara com uma braçada de lírios. Não sentia escrúpulos de sacrifício ou de aversão. Homens eram homens e todos os homens davam prazer e o recebiam com alegria e gratidão e ela sabia agradar e conhecia todas as artes do amor.
Pensou nas artes e nas posições que deviam agradar ao homem e sorriu. Amava Xantipo e aquela excursão não lhe faria mal algum, podendo, ao contrário, fazer-lhe um grande bem, desde que ele de nada soubesse. Ela era uma mulher muito hábil.
Preparou-se para gozar também o encontro, pois uma mulher passiva nunca podia ser verdadeiramente amante. As escravas mudaram os lençóis de seda de sua cama e espalharam perfumes pelo quarto. Estudou pensativamente o seu corpo perfeito. Seria capaz até de suportar por Xantipo a perversão da flagelação. Fez votos para que o homem que ia visitar preferisse prazeres mais exóticos e mais ternos. Entretanto, uma mulher não conhecia nunca um homem enquanto não se deitava com ele, apesar de toda a simplicidade infantil dos homens. Ou era essa simplicidade simplesmente grosseira? Pouco importava. Passou mais perfume pelo corpo e mandou preparar uma refeição no átrio para quando o visitante chegasse. A sua cozinha era famosa.
— Ah, Atena — murmurou ela — és a deusa da sabedoria, nascida com todos os teus atributos da fronte de Zeus. Mas Afrodite é a mais poderosa das deusas, pois tudo que vive se curva diante dela.
Xantipo, que admirava o espírito de Gaia, pois ela fora bem adestrada também nas coisas da inteligência, lhe dera de presente uma estatueta de alabastro de Atena Pártenos. Gaia mandou tirar a estatueta da cabeceira de sua cama e colocar em seu lugar um grupo indecente de Afrofite e Adônis. Sorriu para os dois amantes entrelaçados. Não pediria joias, pediria apenas pela vida de Xantipo. Depois, se Teos quisesse um acordo permanente, poderia entender-se graciosamente com ele.
Xantipo foi para o Tribunal de Justiça na Pnice, que ficava a meio caminho da acrópole. Dispensara a sua liteira e o seu carro e seguia a pé, sozinho. Por isso mesmo, chegou empoeirado, com as sandálias manchadas e as roupas em desalinho. Mas a fisionomia era serena e clara e os cabelos estavam bem arrumados. Não usava joias. Poderia ter sido um escravo, se não fosse o rosto e a cabeça erguida quando entrou no tribunal. Sorria como se estivesse a lembrar-se de algum gracejo.
A Eclésia, ou assembleia popular, e os sacerdotes estavam à espera dele em semicírculo numa pequena sala circular de mármore castanho e branco. Todos estavam sentados severa e solenemente nas suas cadeiras. Os sacerdotes olhavam para as suas mãos entrelaçadas nos joelhos e pareciam orar aos deuses para que lhes dessem sabedoria e esclarecimento. Os juízes pareciam mais vivos e imponentes. Todos vestiam mantos brancos, como se fossem estátuas. O sol entrava pelas pequenas janelas altas em estreitos feixes, de modo que os mosaicos brancos, róseos, azuis e amarelos do chão estavam quase obscurecidos. Uma grande estátua da Justiça, vendada e com a sua balança, se alteava atrás dos homens sentados. O sol batia no rosto e no peito da estátua, embora tudo mais ficasse na sombra. Contra uma parede redonda, havia uma fila de bancos de mármore para os advogados e outras pessoas interessadas. Só duas pessoas ocupavam os bancos naquele dia. Uma era Zênon; a outra era Teos, um dos grandes cidadãos libertinos de Atenas.
Soldados montavam guarda junto às portas de bronze e nas extremidades das filas de sacerdotes e juizes. Estavam armados e de couraça como imagens imóveis, com os olhos voltados para a frente.
Ninguém falou quando Xantipo entrou, exceto um homem revestido de um manto que estava perto das portas de bronze e proclamou com uma voz como a de Nêmesis:
— O nobre Senhor Xantipo está presente para ser julgado.
Xantipo fez uma breve pausa ao reconhecer Zênon e Teos e arqueou as sobrancelhas. Um filósofo e um libertino ateniense eram as únicas pessoas que se interessavam pelo seu destino, ao menos para escutar. O seu leve sorriso se ampliou. Ninguém era tão ineficiente quanto um filósofo e Teos, famoso pela sua vida dissipada, suas mulheres, seu bom humor, sua riqueza e sua falta de interesse pela política, era certamente o mais estranho dos advogados para um acusado!
O conhecimento entre Xantipo e Teos era apenas superficial, pois os dois homens nada tinham em comum. Encontravam-se de vez em quando na casa de amigos comuns, mas a conversa displicente de Teos, a sua proclamada ignorância de assuntos importantes como a poesia e as artes da guerra, a sua recusa a empenhar-se em discussões sérias e seu tédio evidente quando isso acontecia, seus gracejo às vezes rudes, suas atitudes frívolas, suas gargalhadas ao ouvir um epigrama bem-feito, o ar indiferente com que tomava conhecimento de todas as injustiças, seu desligamento de todos, tudo isso às vezes irritava Xantipo, que o julgava tolo, leviano e mau-caráter, pois era sabido que Teos não hesitava em subornar os governos para conseguir o que desejava. Não era soldado, não mostrava a menor preocupação com os destinos de Atenas, era crédulo ao ponto de parecer ridículo e parecia preferir a companhia de gente baixa e até de escravos libertos à dos seus iguais, e muitas vezes podia ser encontrado a beber mau vinho em tavernas sujas e repletas em companhia de ladrões e vagabundos do cais e das piores vielas da cidade. No meio dessa ralé, era o mais alegre dos companheiros e, quando os amigos o censuravam por isso, costumava dizer:
— Acho mais realidade e mais alegria entre os patifes do que na vossa augusta companhia, meus caros.
Era um homem da idade de Xantipo, belo, esbelto, alto e, para os mais reservados cidadãos de Atenas, sempre detestavelmente perfumado e manicurado. Embora já não fosse jovem, tinha um rosto liso como o de um rapazinho, com feições alegres e rechochundas, olhos muito vivos e uma boca quase feminina de tão vermelha. Tinha uma expressão viva e alegre como se ele julgasse a vida sempre jovial, como julgava de fato, e estivesse à espera de novos prazeres e novos divertimentos a cada instante. Só lhe aparecia no rosto uma máscara de aborrecimento ou enfado quando alguém lhe dizia palavras de sabedoria.
Vestia-se sempre da maneira mais elegante possível e adotava até o estilo egípcio de grandes colares de ouro e pedras preciosas. O seu modo de vida em sua casa toda ornamentada era de um sibaritismo fora do comum e, quando se reunia ali com os seus amigos, havia sempre algazarras e gargalhadas, de mistura com uma música licenciosa. Ao contrário dos seus amigos, não tinha biblioteca e não desejava a solidão. Vivia cercado de companheiros que tinham a mesma propensão libidinosa, o mesmo gosto por pilhérias e distrações grosseiras e, principalmente, por mulheres. A sua cabeça arredondada tinha uma auréola de crespos cabelos curtos, que pareciam ter vida própria.
Xantipo o detestava e procurava evitá-lo sempre que podia.
— É um garoto perpétuo — costumava dizer. — Tem desejos como um sátiro, discriminações como o mais baixo dos escravos e a inteligência de um peixe.
Às vezes, antipatizava impacientemente com aquele homem feliz que nunca se interessava por qualquer assunto importante, julgava que a existência não tinha finalidade alguma e rejeitava toda responsabilidade, salvo com o seu prazer.
— Há um tempo para tudo, até para ser insensato -— dizia Xantipo. — Mas não é possível ser insensato sempre.
Xantipo, que era pessoalmente um homem jovial, com frequência achava a vida ridícula e sem objetivo e gostava de um gracejo como qualquer pessoa, muitas vezes se irritava com o fato de Teos parecer julgá-lo pesado, enfadonho e desprovido de senso de humor. Na verdade, era considerado por Teos a espécie de homem que o próprio Xantipo detestava.
Entretanto, ali estava Teos, o irresponsável, o homem perfumado, o réprobo, o leviano, o homem sem imaginação e sem sutileza, que nada sabia de poesia ou das complexidades da lei, sentado ao lado de um filósofo profundo como Zênon, na qualidade de advogado de Xantipo! Havia um toque humorístico na situação, pensou Xantipo, ainda que não pudesse exatamente definir qual era. Teos não era certamente seu amigo íntimo e nunca julgara a sua companhia divertida ou desejável. Quanto a Zênon, era considerado suspeito pelos sacerdotes e pelos juízes, diante dos quais se sentava em silenciosa dignidade e com uma aparência pouco impressionante.
— Onde está seu advogado, Senhor? — perguntou um dos juízes, um homem enorme e de olhos frios.
Xantipo estava perante eles de pé e, de repente, teve uma grande vontade de rir. Apontou para o banco de mármore onde estavam sentados Zênon e Teos.
— Ali estão os meus advogados.
Três dos mais importantes juízes e sacerdotes examinaram os pergaminhos à sua frente com rostos carrancudos. Pensavam nas suas pesadas bolsas.
— Isso é muito irregular — disse um dos sacerdotes.
— Quase todas as coisas neste mundo o são — disse Xantipo,
Odiava os fanáticos, pois eram sempre broncos e cruéis, sendo capazes de condenar um homem que discordasse deles por menos que fosse e desejavam sempre o sangue dos dissidentes. Gabavam-se do seu amor à tolerância e afirmavam que a defenderiam até à morte, ainda que fossem tão intolerantes quanto um touro enfurecido. Eram os hilotas da virtude, sendo ao mesmo tempo os menos virtuosos dos homens em muitos aspectos dos importantes assuntos da vida.
Xantipo olhou para Teos e este sorriu satisfeito, apalpando as contas do seu colar egípcio. Zênon estava cheio de aflição e ansiedade. Passava constantemente a língua pelos lábios e torcia as suas mãos de filósofo.
Alguém tossiu ruidosamente e um sacerdote pegou um pergaminho, dizendo:
— Senhor Xantipo, é acusado de impiedade e desrespeito pelo governo e pelas suas sábias decisões. Afirma-se que não acredita nos deuses e não tem consideração pela santidade dos mesmos. A única penalidade para tais crimes é a morte, pois, quem protegeu Atenas e toda a Grécia senão os deuses, principalmente Atena Pártenos, nossa protetora? É acusado, de ter feito gracejos sobre a virgindade da deusa, formulando insinuações obscenas sobre o assunto.
Xantipo não se pôde conter de novo. Levantou a mão fina e longa e disse com voz simpática:
— É claro que isso é uma mentira. Atena não tem belo aspecto e nada tem de sedutora, pois a sabedoria é severa e não pode ser atraente. Qual é o homem que deseja a sabedoria acima de tudo? Estou ainda para conhecer esse homem. Os homens preferem as coxas das mulheres a qualquer dissertação filosófica ou a qualquer teoria, salvo quando são incapazes. Em resumo, a sabedoria é o refúgio da impotência.
Até os juízes e os sacerdotes subornados tiveram uma exclamação de espanto.
— Não acredita nos deuses, Senhor? — perguntou um deles, com voz rouca.
Xantipo estava começando a achar tudo muito divertido, embora se tratasse de um jogo muito perigoso e mortífero. Abriu os braços eloquentemente.
— Só um idiota não acredita em alguma coisa maior do que o homem, pois não obedecem as estrelas a leis impenetráveis, bem como o sol e a lua? Quem estabeleceu essa lei e essa ordem inefável? Os homens? Mas os homens são insetos indefesos, que não sabem ao certo das suas origens nem do seu destino. Podem esses seres insignificantes determinar as revoluções das constelações e das Plêiades? Que decreto dos homens pode proibir o nascer do sol ou da iluminação dos céus? Quem regula as marés e as estações? Pode algum homem ordenar às montanhas que mudem de lugar? Ou mandar o mar retirar-se das costas? Quem pode ordenar que as oliveiras, os campos e as palmeiras frutifiquem? Quem deu ao homem o conhecimento para comandar os ventos? Algum juiz já proibiu um vulcão de explodir ou uma tempestade de agitar as águas? A lua se move de acordo com leis fixas e nenhum homem pode regular-lhe as fases. É arrogância •da parte dos homens acreditarem-se onipotentes e reguladores de sua própria vida.
Xantipo falara com uma eloquência e um ardor que até a ele surpreenderam. Zênon olhava-o incredulamente e Teos estava muito sério.
Um juiz disse com uma voz severa:
— Afirma-se, entretanto, que tem zombado da própria divindade que agora defende.
Zênon levantou-se, ergueu as mãos e todos o olharam, como que espantados de que ele estivesse presente.
— Um homem sábio zomba da impertinência dos ignorantes que pretendem reduzir os deuses ao baixo nível em que vivem e torná-los iguais a eles ou até inferiores.
Olhou para eles e os seus olhos vivos pareceram encher a sala de luz e atrair a atenção de todos.
— Quem já definiu os atributos da Divindade? Quem já pôde firmar opinião sobre a sua natureza? Quem pode dizer o que para a Divindade é impiedade ou piedade? Um homem humilde que se rejubila com a luz do sol e da lua, venera a vida e fica maravilhado com o mistério de sua própria existência, um homem assim, ainda que não fale nos deuses, é mais amado pela Divindade do que o homem pomposo e complexo que proclama conhecer os atributos e a natureza da Divindade e exige que os outros homens aceitem os seus frágeis conceitos. É graças à nossa falta de conhecimento que nos aproximamos de Deus e é graças à nossa ignorância que começamos a compreender. Deus tem suas leis e é só com humildade que podemos percebê-las, ainda assim muito vagamente.
— Não acredita então que os deuses estabeleceram um corpo de leis para o bom comportamento e a obediência dos homens, Zênon de Eleia? — perguntou um dos sacerdotes.
Zênon sorriu e respondeu:
— Não estou sendo julgado, mas vou responder à sua pergunta. Só podemos descobrir a vontade de Deus por meio de nossas preces e meditações na solidão. Podemos encontrar as Suas leis nas leis da natureza que ele criou. O que governa um grão de areia ou a menor espiga de trigo também governa o homem, A lei é uma só. Os sóis obedecem a Deus e lhe conhecem a lei. Reflitamos sobre ela. A lei e a ordem fazem parte da natureza de Deus e estão patentes aos olhos inocentes das crianças, conquanto sejam complicadas, elaboradas e obscurecidas pelos pervertidos sofismas dos homens.
Sorriu para os sacerdotes e para os juizes.
— Meu amigo Xantipo foi acusado de impiedade. Mas o maior sacrilégio é dar a Deus a imagem e a semelhança do homem, atribuindo-Lhe todas as paixões e erros da humanidade bem como toda a selvajaria e acreditando que podemos conhecê-Lo por menos que seja. Desse crime Xantipo é inocente. Quem dentre vós pode dizer que conhece seja o que for do Incognoscível? Xantipo tem repetidamente afirmado que isso está acima da nossa capacidade e quem poderá desmenti-lo? Discordar dessa verdade é ser realmente ímpio.
— Os deuses nos deram capacidade para compreendê-los — disse um dos sacerdotes. — Nega isso, Zênon de Eleia?
— Quem disse que nós podemos compreender os deuses? perguntou Zênon. — Os próprios deuses? Não. Apenas homens arrogantes e sem inteligência o declararam.
Sentou-se em seguida, olhou gravemente para os sacerdotes silenciosos e disse com sua voz ressoante:
— Quem dentre vós tem coragem de declarar que conhece os atributos da Divindade e está a par de Sua natureza? Quem se atreve a proferir essa blasfêmia diante de tão augusta assembleia?
O mais velho dos juízes e o que tinha sido mais fortemente subornado por Teos estava ficando impaciente, quando pensava na refeição do meio-dia que deixara de fazer e pela qual ansiava. Deixou de lado o seu pergaminho e disse:
— Zênon de Eleia expôs o caso com inteligência e exatidão. Não somos presunçosos. Só o seríamos se travássemos uma discussão sobre os deuses com Xantipo, que não sabe mais do que nós.
Xantipo fez uma reverência e baixou a cabeça zombeteiramente, dizendo:
— É talvez uma bênção divina sermos todos ignorantes, pois conhecer até parte da verdade poderia ser a morte para todos nós.
Mas outro juiz, que não fora subornado, disse:
— Compreendo que se trata ainda no caso de insolência em relação à lei. Tenho aqui uma acusação de um amigo anônimo do tribunal, segundo a qual Xantipo tem abertamente desrespeitado e ridicularizado a nossa democracia, vangloriando-se de não ter pago os devidos impostos. Responda, Xantipo: Que é que tem a dizer contra a liberdade de que goza sob o nosso governo, estabelecido por Sólon?
Xantipo tinha uma resposta espirituosa para dar, mas se coibiu a tempo. Assumiu uma expressão pensativa, mas o rosto fino e delicado se avermelhou em consequência da raiva que teve de reprimir. Ergueu as sobrancelhas e perguntou:
— Está querendo que eu defina a liberdade?
— É o que se depreende das minhas palavras — disse o juiz, que odiava Xantipo pela sua origem aristocrática, pela sua fama e pelas suas riquezas.
Xantipo olhou para ele e os seus olhos pareceram pedras brilhantes e polidas.
— Que é liberdade? É o direito que tem um homem de exigir que o seu governo o deixe viver e se abstenha de imiscuir-se nos seus assuntos particulares e em sua vida e de regular a sua conduta quando esta não ofende a ninguém e não prejudica os direitos dos seus semelhantes. É o direito que tem o homem de possuir bens e pagar impostos sobre eles para o bem da comunidade e a proteção dos seus bens e de sua pátria de inimigos externos e internos. É o direito que tem um homem de viver em paz consigo mesmo e com os seus vizinhos e de gozar o fruto do trabalho de suas mãos e da sua inteligência. É o direito do homem a ser um homem e a viver livre do paternalismo e das medidas das autoridades mesquinhas. Em suma, é o direito de não ser um escravo. Trata-se de direitos simples e honestos. O que passar daí é opressão.
— E julga que o nosso governo não está à altura dessas expectativas? — perguntou um dos juízes.
Xantipo não respondeu imediatamente. Disse então com voz muito branda:
— Nobre juiz, acredita que o nosso governo está à altura dessas expectativas?
O juiz desviou os olhos e disse com voz tonitruante.
— Não só acredito como sei que é assim!
— Senhor — disse Xantipo — quem sou eu, um simples soldado que ofereceu a vida à pátria e a serviu com sangue e com honra, para discutir com quem nunca foi um soldado, mas sempre fez parte de uma profissão muito honrosa. Quanto ao seu conhecimento, alego a minha ignorância do mesmo.
Teos deu uma risada e os sacerdotes e os juízes se entreolharam, alguns com raiva e frustração, outros com dissimulado bom humor.
Foi então que Xantipo, intrépido e sofisticado, perdeu a calma que até então conseguira precariamente manter.
— Falam de Sólon! — exclamou. — Mas Sólon imaginou uma república de leis justas, sob as quais todos os homens seriam livres, principalmente livres de governos caprichosos e predatórios. Sonhou com uma nação em que os homens pudessem expor abertamente as suas discordâncias e reclamar que os erros fossem corrigidos — os erros cometidos pelo governo contra o povo. Não temos uma república assim, meus senhores. Não temos nem qualquer espécie de república. O que temos é uma democracia degenerada, o domínio da turba sem inteligência, que tem apetites, mas não espírito. Assim, sendo, podemos ter absoluta certeza de uma coisa apenas. O mundo é governado por imbecis, como nunca deixou de ser e sempre será, pois, os imbecis presumem que a sua esmagadora maioria confere sabedoria, e qual é o político ou o juiz que se poderá insurgir contra a maioria? Vós, senhores?
Teos teve ímpetos de dar gritos. Com aquelas palavras, Xantipo lavrara a sua sentença de morte. Aqueles a quem Teos havia subornado ficaram também alarmados. Um deles disse severamente:
— Distingue entre uma república e uma democracia, Xantipo? Não são a mesma coisa?
— Não — respondeu Xantipo com calma convicção.— Uma república é um governo representativo, A democracia é governo pelo caos. Que é que temos em Atenas hoje em dia, senhores?
Os sacerdotes e os juízes estudaram os seus pergaminhos. Não tinham qualquer veneração especial por um homem bravo que era também um soldado ilustre e sabiam que homens como Xantipo representavam uma ameaça à sua própria existência. Entretanto, muitos ainda o temiam e outros receavam que Teos exigisse a devolução do dinheiro do suborno. Depois de algum tempo, um juiz tossiu ruidosamente e lançou sobre Xantipo um olhar sinistro.
— Alega-se que sonegou impostos, Xantipo. Que pode dizer a isso?
Xantipo riu suavemente.
— Onde está meu acusador? Convoquem-no e cotejemos os impostos pagos por ele com os impostos que eu paguei. Aposto minha vida como, dracma a dracma, fui mais honesto do que ele.
Desde que os juízes nada disseram, acrescentou ao fim de algum tempo:
— Será que a justiça também está morta e não é apenas cega? Ou o governo não é mais exercido por meio de julgamentos imparciais e está apenas à mercê de delatores infames?
Em face de novo silêncio, declarou:
— Só pode haver uma resposta para isso. Mas também isso está acima da minha capacidade como soldado.
O juiz que havia recebido o mais avultado suborno perguntou ansiosamente:
— Quer dizer, Xantipo, que alega incompetência tanto sobre a natureza da Divindade quanto sobre a natureza da lei?
— Senhor, sou o mais incompetente dos homens aqui presentes e talvez o mais ignorante, se é possível,
O juiz apressou-se em dizer:
— Essa humildade muito o recomenda, Xantipo, e é devidamente considerada pela assembleia e por este tribunal, com vistas à atenuação de sua sentença.
Olhou para Teos, que estava de testa levemente franzida. Teos tinha esperado no máximo que Xantipo fosse condenado a ficar no ostracismo até que ele, Teos, se cansasse da bela Gaia. Pensou então no sabor dos seus lábios e na doçura dos seus abraços perfumados.
Vendo a testa franzida de Teos, o juiz falou ainda mais apressadamente:
— Por conseguinte, este tribunal e a assembleia são de opinião que sofra o ostracismo, longe de Atenas, até que nós, em nossa clemência, estejamos inclinados a chamá-lo. Não somos insensíveis à sua fama bem merecidamente ganha, Xantipo, e a sua cidade não lhe é ingrata. Não é inocente, como sabe, mas a sua culpa é fruto da ignorância e da incompetência. Deve ser-lhe grato viver numa democracia justa e benévola, que não se vinga dos seus inimigos incompetentes, que não falam por maldade, mas por incapacidade.
Ao ouvir isso, Xantipo começou a rir, mas teve os braços prontamente agarrados por Teos e Zênon, que o levaram para a porta. Desvencilhou-se dos amigos ao chegar aos degraus de mármore e disse, rindo:
— Fui salvo por um filósofo...
Olhou então para Teos, com súbito espanto.
— E por você, Teos. Que veio fazer aqui, já que nunca se interessou nem pela religião, nem pela justiça?
Teos sorriu alegremente.
— Não fui sempre seu amigo, Xantipo? Não o admirei sempre?
— Não — disse Xantipo.
Teos tornou a segurar-lhe amavelmente o braço.
— Minha liteira está aí à espera. Dê-me a honra de levá-lo para casa.
Quando Xantipo chegou a casa, mandou chamar a mulher, olhou para ela sem emoção e disse apenas com indiferença:
— Fui condenado ao ostracismo por tempo indeterminado, mas meus bens não serão confiscados e eu não serei nem executado, nem aprisionado.
Agariste chorou, mas Xantipo não ficou para ouvir seus protestos, nem seus lamentos. Dirigiu-se para a casa de Gaia, que o recebeu com a costumeira alegria. Consolou-se ao calor dos seus braços e dos seus beijos. Xantipo não compreendia por que, mas, até quando Gaia sorria, as lágrimas lhe corriam pelas faces rosadas.
De sua vila em Chipre, Xantipo escreveu para seu filho Péricles, dizendo:
"Um homem deve amar, acima de tudo, não só a sua liberdade, mas também a liberdade dos outros, sob pena de ser menos que um homem. Sem dúvida, a liberdade é uma abstração, mas não é isso o que acontece com todas as coisas perfeitas? Devemos, entretanto, lutar por ela, ainda que não possamos plenamente atingi-la. Temos o nobre dever de amar tudo o que é perfeito, pois a perfeição é a Sombra de Deus e nós podemos, como é de nossa vontade e desejo, descansar nessa sombra, apesar de nunca vermos quem é que a lança".
Péricles se admirou de ler essas palavras de seu pai polido e zombeteiro, que nunca havia venerado os deuses e sempre ria do seu culto. Ficou profundamente emocionado.
Capítulo 5
Ainda que Agariste julgasse o filho perfeito e o próprio Xantipo tivesse o receio de que Péricles mostrasse um excesso de virtudes, Zênon suspeitava de que o rapaz fosse mais complexo e de caráter mais complicado do que aparentava. Percebera nos olhos de Péricles lampejos de impaciência, desprezo, hostilidade e intolerância. Certa vez, tinha havido até um brilho de interessada brutalidade. Zênon não admirava na humanidade a perfeição, que a teria tornado inexpressiva e sem vida e colorido, mas admirava a capacidade que tinha Péricles de dominar a língua e também a súbita e desagradável vivacidade dos seus olhos quando uma emoção menos que admirável os agitava. Nesses momentos, os olhos claros se acendiam numa chama intensa, que demonstrava capacidade de raiva e até de furor.
Péricles era muito admirado pelos jovens de suas relações e pelos pais deles. Apesar disso, havia nele um alheamento que rejeitava a intimidade mas atraía e inspirava o desejo de aproximar-se dele, desejo esse invariavelmente frustrado. Havia uma qualidade tantálica em sua natureza. Quando ele saía da escola de esgrima, dirigida por um competente liberto chamado Quílio, nunca parecia ansioso por ter companheiros que fossem com ele até sua casa, mas era sempre cercado de jovens ansiosos e aduladores, que muitas vezes se desviavam do seu caminho para acompanhá-lo.
Por fim, Zênon chegou à conclusão desoladora para ele de que Péricles possuía o misterioso dom dos deuses de atrair o coração e o espírito dos homens e de inflamar-lhes a imaginação e as emoções imprevisíveis, de uma maneira que poderia ser destrutiva.
Infelizmente, pensava Zênon, eram esses os atributos de um político e, como se dizia, os políticos não nasciam, eram excretados.
Havia na escola de esgrima de Quílio um jovem de dezesseis anos que era escarnecido e ridicularizado até pelo diretor da escola, embora fosse de boa família e filho de um grande soldado. O seu nome era Íctis, o que significa "peixe", e só isso despertava a hilaridade dos seus cruéis colegas. Tinha vergonha do seu nome, mas a mãe dele, que alegava a sua devoção a Poseidon e sugeria que no seu tempo de moça o deus do mar a seduzira, insistia no nome. Além disso, tinha um temperamento tímido e esquivo, movimentos lânguidos e vivia numa aura de permanente culpa, pois era muito modesto e nada tinha de atlético. Absorvia conhecimentos como o musgo absorve a chuva e parecia reverdecer e vicejar com toda a sua preparação intelectual, o que não o recomendava perante os seus companheiros mais robustos. Péricles, ainda que desprezasse o jovem, nunca o provocava nem ria dele. Observava-o de longe com uma expressão inexplicável, que ao mesmo tempo traduzia interesse e alheamento.
Íctis era tão alto quanto Péricles, que era mais alto que seus companheiros. Era, porém, magro e sua pele tinha uma transparência pálida, peculiar, que parecia revestir um corpo desprovido de sangue. Isso lhe dava uma aparência de doente crônico, pois até os seus lábios eram descorados. O nariz era macilento e grande demais e tinha uma particularidade que despertava o riso dos outros rapazes. A sua ponta ficava quase completamente rosada quando ele tomava interesse por alguma teoria ou hipótese acadêmica. Os seus olhos castanhos eram quase completamente redondos e se arregalavam ainda mais, quase sem pestanas, sempre que ele tomava conhecimento de um pensamento ou de uma palavra nova. A grande boca sem relevo denotava grande sensibilidade. Gaguejava e às vezes nem podia falar com o medo que sentia daqueles que o cercavam. O queixo breve e sumido nada tinha que o distinguisse. Os seus professores e a mãe o adoravam e o pai o desprezava, por julgá-lo um fraco. Além de ter professores em casa, frequentava a mesma academia de Péricles. Só era perito na esgrima, que intimamente detestava, mas isso lhe valia alguma espécie de tolerância da parte dos seus companheiros. Tinha uma voz esganiçada como a de uma mocinha e seus cabelos castanho-claros, escorridos e sem brilho esvoaçavam ao vento, pois eram muito finos.
Ele e Péricles eram excelentes esgrimistas e muitas vezes um encontro entre os dois era ganho por ele. Interrompia as polidas felicitações de Péricles com abjetos pedidos de desculpas, insistindo em dizer que Péricles era bem melhor do que ele e que só vencera por um golpe de sorte ou algum descuido do seu antagonista. Péricles o abandonava impacientemente no meio das suas justificações. Íctis via-o afastar-se, acompanhando-o de olhos compridos, quase sem ouvir os risos daqueles que tinham assistido ao encontro.
Havia ocasiões em que Péricles sentia um pouco de pena de Íctis e quando o via muito acossado pelos companheiros intervinha com uma palavra ou um olhar que refreava os outros. Às vezes, a compaixão se agravava até transformar-se em cólera e tendência a proteger, o que também aborrecia Péricles. Convencia-se de que Íctis nada representava para ele. Não sentia admiração por ele, salvo no particular dos conhecimentos e da inteligência. Quando de vez em quando se via timidamente seguido de longe por Íctis, o aborrecimento de Péricles chegava a ponto de concretizar-se numa palavra rude, que ele, entretanto, conseguia conter. Íctís é um pobre-diabo, pensava Péricles aos quinze anos. Não obstante, tem direito a viver sem perseguições como todos os homens, ainda que o seu nome ridículo lhe seja bem adequado.
Um dia, Péricles se demorou além do habitual na academia a fim de discutir com um professor um ponto de lógica, que esperava debater com Zênon naquela noite. Queria provar que a validade e a verdade não tinham muito em comum. A validade de uma coisa podia muitas vezes, não passar de um sofisma, ao passo que a verdade era granítica e não apenas um jogo de silogismos. O professor não se agradou da argumentação, pois era acadêmico e pedagogo, mas tinha grande respeito por Péricles e por sua família. Cedeu sem convicção num ponto e Péricles perdeu de repente o interesse e se retirou. Viu então Íctis a escrever no seu banco num pergaminho e sentiu-se curioso a respeito do rapaz e do seu ar de entusiástica intensidade. Aproximou-se do banco em toda a sua beleza marmórea e olhou por cima do ombro de Íctis, sem que este desse mostras de perceber a sua presença.
Íctis tinha escrito o seguinte em palavras febris:
"Oh Tu que não tens nome, porém és o compêndio de todos os homens,
A manhã é Teu manto, o crepúsculo Teu coração,
Os ventos são Tua roupagem, e o fogo Te serve,
Não possuis trono, mas és o Rei de todos os Tronos.
O universo é tua morada, ainda que não tenhas altares.
És a vida, o sol, a chama que cria as estrelas.
Os deuses Te adoram, mas os homens não conhecem Teu ser.
Nada perdura, nem a vida nem os mundos, sem o teu conhecimento.
Só Tu é que sabes que a duração de um inseto é igual
à de uma montanha, pois o tempo não conta para Ti, que és real.
Quando revelarás Teu rosto a todos os homens e proclamarás no trovão: "Sou aquele que foi, que é e que eternamente será?
Não havia nada antes de Mim, e ninguém haverá depois."
Péricles julgou o poema fraco, mas escrito com entusiasmo e adoração. A que deus se referia ele? Péricles sorriu. Íctis percebeu então a presença dele. A ponta do seu nariz se avermelhou e os olhos se tornaram confusos.
— Não sabia que era poeta — disse Péricles.
Íctis, desnorteado pela condescendência de Péricles, começou a gaguejar.
— Não... não é um poema, Péricles. É... é apenas uma prece.
— A quem?
Os olhos de Íctis se encheram subitamente de luz, como se ele tivesse tido uma visão.
— Ao Deus Desconhecido — murmurou.
— Mas isso abrange todos eles — disse Péricles.
Íctis pareceu inquieto e embaraçado, mas com uma certa obstinação. Sacudiu a cabeça.
— Só há um Deus, o Deus Desconhecido. Há um pequeno altar, que Lhe é dedicado, no templo de Zeus. Está à espera.
— De quê, Íctis?
O outro baixou ainda mais a cabeça.
— Já ouvi um sacerdote dizer que está esperando o dia da revelação, quando todos os homens O conhecerão e saberão que não há outro Deus.
— O monoteísmo não é um conceito religioso novo — disse Péricles. — Mas não é bem-visto pelos nossos sacerdotes, que o consideram uma aberração estrangeira, inventada pelos egípcios há alguns séculos.
Íctis ficou calado e Péricles esperou. Por fim, Íctis sussurrou:
— Eu O adoro. Ele me invade os sonhos, os pensamentos, a vida. Vejo o sinal de Suas mãos no céu do ocaso. Ouço-Lhe a voz no trovão, nos ventos, nos rios. Vejo-Lhe o rosto refletido no mar e modelado nas nuvens. As montanhas tremem sob Seus pés e a terra se abala à Sua passagem.
Juntou as mãos como se estivesse rezando e Péricles suspeitou de que realmente estava.
— Os sacerdotes considerariam isso heresia — disse Péricles.
— São homens cegos e maus — exclamou Íctis com um calor fora do comum.
Péricles olhou apressadamente para o professor, sentado a uma mesa nos fundos da sala, e disse em voz baixa:
— Não sabia que tinha pensamentos tão perigosos, Íctis. É melhor não transmiti-los a ninguém.
Hesitou. Não soube o que o levou a tocar de leve o ombro de Íctis antes de afastar-se.
A caminho da casa de seu pai, começou a pensar no que Íctis tinha dito. Tinha muitas vezes discutido com Zênon a injustiça e a arbitrariedade dos sacerdotes e dos governos que não admitiam opiniões diferentes das suas e perseguiam os discordantes como blasfemos e perigosos à ordem pública. Péricles pensava no pai e sua testa branca se contraía de cólera. Naquele dia, pensou em Íctis e se espantou com a veemência que o rapaz tímido e reservado havia demonstrado. Talvez haja alguma verdade no que ele diz, pensou Péricles, e as ideias dele não sejam tão insignificantes quanto parecem. Pela primeira vez em sua vida curta e confiante, Péricles refletiu que muitos julgamentos e opiniões que ele mantinha podiam ser objeto de uma análise honesta. Mas isso poderia confundir, distrair e, por fim, paralisar uma pessoa! Tinha de ser inflexível em relação às suas convicções, ainda que algumas fossem manifestamente absurdas e falsas e, ao chegar a essa conclusão, Péricles riu em voz alta.
Como se havia demorado muito no caminho, os habituais colegas servis que o acompanhavam tinham ido já para casa. Além disso, o dia estava ameaçador. O céu se mostrava cheio de nuvens negras tão baixas que até ocultavam o cimo da acrópole. A chuva começara a cair em gotas finas e penetrantes que pareciam feitas de cacos de vidro. Aproximavam-se as festas de Cronos e a chuva trazia de mistura pequenos flocos de neve. Já se acendiam lanternas nos pórticos das casas e viam-se pelas janelas lâmpadas acesas, embora ainda se estivesse no começo da tarde. O vento gemia nos pinheiros e ciprestes e havia um surdo som de tambor no ar cortante. As montanhas estavam purpúreas e imitavam uma gigantesca mulher reclinada.
Péricles se embrulhou no seu manto de lã e levantou o capuz sobre a cabeça alta. Havia pouca gente na rua e quem passava ia principalmente em liteiras carregadas por escravos apressados ou em carros cobertos. Péricles começou a descer a colina da escola para iniciar a subida da casa de seu pai. Lutando contra a força do vento, não viu que Íctís, encantado com a condescendência demonstrada por Péricles, seguia-o indefeso como se fosse um escravo que o guardasse. Péricles caminhava rapidamente, mas Íctis com as pernas longas e o corpo leve não tinha dificuldade alguma em acompanhá-lo. Ficava, porém, um pouco para trás, pois receava o desprazer de Péricles ao descobrir a sua presença e não desejava mostrar-se como um intruso a alguém que considerava quase como uma divindade.
Atenas ficava abaixo dele com a Agora repleta e começando a rebrilhar de luzes amarelas como se fossem estrelas. Péricles começou a subir para a casa de seu pai. Chegou a um bosque cerrado de ciprestes negros que se erguiam como torres. Tinha quase passado pelo bosque quando um homem enorme, embrulhado num manto e encapuzado, avançou para ele, com um punhal erguido, que brilhava fracamente à luz da tarde chuvosa.
— Morte ao filho de Xantipo, o traidor! — gritou o homem com voz rouca.
Péricles era atlético e ágil. Esquivou-se ao golpe, pulando para o lado. O capuz lhe caiu da cabeça, expondo-o ao vento e à chuva. O homem era mais alto e mais forte do que ele. O rosto estava oculto, mas Péricles teve a impressão de que havia nele ferocidade, ódio e violência. Chegou no mesmo instante à conclusão de que sua melhor defesa era a fuga, pois era veloz na carreira. Mas o homem era mais rápido. Agarrou Péricles pelos cabelos e tornou a levantar o punhal.
Estou perdido, pensou Péricles, mas, apesar de aterrorizado, começou a lutar pela vida. Agarrou o pulso levantado com a arma e prendeu-o nas duas mãos. O homem o balançou como se fosse um macaco pendurado de um galho e tentou jogá-lo ao chão. Péricles dobrou as pernas, deixando-se balançar, mas determinado a não cair. Gritou pedindo socorro, mas o vento não deixou que sua voz fosse muito longe. Os seus pés se arrastavam pelo chão e os seus joelhos eram esfolados pelas pedras, mas tinha consciência apenas do bater de seu coração e da necessidade de deter aquele braço assassino. Enquanto isso, e assassino lhe esmurrava com a mão esquerda a cabeça e as costas. O sangue do nariz e da testa de Péricles começou a escorrer-lhe pelos olhos.
Então, de repente, o homem o largou e ele caiu pesadamente no chão, ouvindo uma praga e um grito abafados. Levantando-se apoiado nas mãos e nos joelhos, olhou para o que estava acontecendo e não pôde acreditar no que via. Íctis dançava perto dele. Havia tirado o seu grande manto de lã e o jogara sobre a cabeça, os ombros e o corpo do atacante, prendendo fortemente o manto com uma das mãos enquanto com a outra golpeava fortemente o desconhecido com o seu punhal por entre as dobras do manto. A longa túnica de Ictís flutuava em torno dele como a túnica de um dançarino e as suas longas pernas magras estavam ativas e rápidas. Parecia um Pã emaciado.
Tudo isso Péricles viu num instante ou dois. Puxou também o seu punhal e investiu contra o assaltante, brandindo a arma incessantemente e cheio de uma raiva concentrada.
O homem procurou reagir, mas os dois rapazes eram demais para ele, que, ainda por cima, estava cego e abafado pelo manto. Deu pontapés desesperados nos dois rapazes que não podia ver e, dentro em pouco, as pernas dele escorriam sangue.
Começou, porém, a enfraquecer com os ferimentos que recebera perto do coração e gemia, ainda lutando. Por fim, ergueu o corpo como um cavalo que morre, e caiu pesadamente no chão. Debateu-se ainda por alguns momentos e afinal se estendeu, imóvel.
Os dois rapazes pararam acima dele, ofegantes, com os punhais ensanguentados nas mãos. Limparam o suor das testas com as costas da mão esquerda. Por fim, Péricles se curvou, arrancou o manto de Íctis e levantou o capuz do homem. Tinha uma barba preta e era completamente desconhecido para ambos.
— Está morto — disse Íctis em voz exultante, batendo com o pé no homem caído.
— Não o conheço — disse Péricles.
Quase não podia falar de tão exausto. Tinha a respiração entrecortada. Viu Íctis apanhar o seu manto manchado e embrulhar-se nele. Íctis olhou então para Péricles e disse, gaguejando:
— Ficou... ferido, Péricles? Acho... que hesitei... mais do que devia e peço-lhe desculpas.
Péricles ouviu isso com incredulidade e, em seguida, apesar da respiração difícil, começou a rir. Lançou os braços para Íctis e cambaleou de encontro a ele, pois ainda se sentia fraco e tinha a cabeça tonta. Íctis passou-lhe o braço pelo corpo e a cabeça de Péricles caiu sobre o ombro do seu salvador. De vez em quando, tinha ataques espasmódicos de riso ao lembrar-se das palavras de Íctis, que lhe pedira desculpas por haver hesitado alguns momentos antes de salvá-lo.
Quanto a Íctis, estava cheio de contentamento e seu único desejo era continuar assim, dando apoio a Péricles por toda a sua vida.
Péricles principiou a chorar tanto de satisfação quanto de alívio. Afastou-se do braço de Íctis, abraçou-o, beijou-o nas duas faces e disse:
— Salvou-me a vida. Por isso, eu lhe serei eternamente grato, meu caro Íctis.
— Não foi nada — murmurou Íctis, com o coração a pular de alegria dentro do peito.
— Quer dizer então que minha vida não é nada? — disse Péricles com amargura.
Vendo, porém, que Íctis ficara desconcertado com as suas palavras, tornou a abraçá-lo.
Um guarda da cidade apareceu entre os torvelinhos da tempestade aos gritos e com a espada desembainhada. Agarrou rudemente Íctis pelo ombro e Péricles teve de dizer com voz fraca:
— Ele me salvou desse vagabundo desconhecido, ladrão e assassino, que me atacou, sem dúvida para roubar-me. Esse aí é meu colega de escola e eu sou Péricles, filho de Xantipo.
O guarda, subitamente acovardado, insistiu em acompanhar Péricles até a casa. Instintivamente, embora não conhecesse Íctis, desprezou-o como os outros sempre faziam e como se ele estivesse usando o capacete banhado nas águas do Lete que torna os homens invisíveis, Íctis ficou timidamente de lado, habituado como estava a esse tratamento, e quando Péricles se voltou e lhe pediu que o acompanhasse até à casa de seu pai, Íctis abanou em silêncio a cabeça e, para livrar-se de novos embaraços, afastou-se com a mesma calma com que tinha aparecido. Péricles viu-o sair com espanto, afeto e gratidão e disse ao guarda:
— Aquele é o homem mais valente que já conheci. Devo-lhe o que eu sou e tudo o que eu vier a ser.
Contou o episódio a sua mãe Agariste e ela, quando se recobrou do susto, da indignação e da ansiedade, disse:
— Devia ter deixado que um escravo o acompanhasse, como eu sempre quis!
— Não sou mais criança — disse Péricles com impaciência. Aborrecia-se ainda com o fato de que sua mãe não tivesse manifestado gratidão pelo que fizera Íctis e acrescentou: — Nem eu, nem Íctis.
Agariste estava também impaciente e fez um gesto com as longas mãos brancas, negando toda importância ao fato:
— Ele não podia fazer outra coisa pelo filho de Xantipo e Agariste senão o que fez.
Péricles encarou-a espantado à luz da lâmpada.
— Poderia ter fugido, pois estava também sob a ameaça de morte. Mas não fugiu. Conheço Íctis. Salvaria qualquer pessoa injustamente atacada e prestes a ser assassinada, pois nunca houve uma alma tão cheia de coragem e de bondade.
Agariste sacudiu os cabelos cor de trigo.
— Sem dúvida, ele tem coragem, mas você é o filho de seus pais e de seus antepassados ilustres. Íctis, ainda que não seja de uma casa desconhecida, não se pode comparar com você. Ele ajudou a salvá-lo porque você é quem é, meu filho, e ele tem esperanças de glórias e de uma futura recompensa.
— Acha que um homem iria arriscar a vida por essas coisas? — perguntou Péricles com desprezo.
Olhou fixamente para a mãe. Seria ela realmente pouco inteligente, apesar de todas as suas pretensões e de todos os seus conhecimentos? Péricles franziu os lábios ante essa ideia, depois rodou nos calcanhares e foi para os seus aposentos, muito perturbado. Refletiu que até os aristocratas podiam ter alma baixa e mesquinha, tolhidos por um egoísmo ridículo.
Foi uma lição que ele nunca mais devia esquecer. Sob a influência dela, procurou calmamente os seus companheiros no dia seguinte e informou-lhes que tinham de cessar as provocações e perseguições de Íctis, pois este passava a ficar sob sua proteção e devia ser honrado pelo seu desprendimento e bravura. Os outros ficaram atônitos. Alguns até se mostraram recalcitrantes e ressentidos. Era difícil admitir que alguém tão insignificante e tão absurdo quanto Íctis, tão diferente como era deles, pudesse ter algum valor. Péricles divertiu-se com isso. Começava a ver que a humanidade era incompreensível quando não era perigosa.
Entre todos os que acompanhavam Péricles a caminho de casa, Íctis era agora o único que tinha permissão para seguir a seu lado. Péricles passou a prestar atenção às palavras suaves e hesitantes de Íctis, que lhe eram apresentadas humildemente, como se fossem apenas flores do campo oferecidas a uma divindade. Certa ocasião, Péricles, disse a Zênon:
— Ensinou-me mais que qualquer outro, meu caro mestre, mas há algo que deixou de ensinar: Como é agradável oferecer a própria vida por um amigo, um amigo que não merecia tal oferenda!
De sua gratidão nasceu a admiração por uma alma terna e nobre, por uma inteligência tão brilhante quanto o reflexo da prata. Mais tarde, Péricles iria dizer:
— Tenho muitos homens de grande espírito e inteligência a me cercarem, como folhas de louro, a me servirem e aconselharem. Mas nenhum é como Íctis.
Íctís escreveu para Péricles um pequeno poema, que só foi encontrado depois de sua morte:
Quão justo e clemente é Péricles, o filho de Xantipo!
Suas indulgências são mais quentes que o sol, mais suaves
Que a luz de Ártemis. Sua alma é resplandecente
Assim como seu rosto, e o coração é feito de coragem.
Atenas irá venerar seu filho e os séculos haverão de abençoá-lo.
Quando esse poema foi mostrado a Péricles, este escondeu o rosto entre as mãos e murmurou:
— Ah, sou eu que nada sou e não Íctis!
Capítulo 6
Agariste disse ao filho, com aquela firmeza altiva que adotara em relação a ele ao longo dos últimos anos, com receio de que a considerasse menos desde a morte de Xantipo:
— Está em idade de casar e gerar filhos, em memória de seu pai.
Péricles era invariavelmente bondoso e cortês com a mãe, mas não mais a levava a sério.
— Infelizmente, só posso gerar filhas.
Agariste recusou-se a admitir a frivolidade do filho.
— Estou pensando na minha amada sobrinha Dejanira.
Péricles não precisou simular incredulidade e aversão.
— Dejanira! A viúva de Hipônico? Ela é mais velha do que eu. Tem pelo menos vinte e seis anos e um filho, Cálias...
— E é conhecida como "A Rica" — acrescentou Agariste, — As riquezas não devem ser desprezadas, pois somos todos aristocratas.
Estavam sentados no pórtico exterior, de onde se descortinava Atenas flutuando suavemente à luz rósea do pôr-do-sol que se aproximava. As colinas distantes eram cor de jade e de um roxo desmaiado, algumas prateadas, cercando Atenas como se fosse uma taça esmaltada.
— Deve estar gracejando, minha mãe — disse Péricles, vestido apenas numa túnica curta, por causa do calor. Cruzou as pernas compridas e brancas e contemplou a mãe com uma expressão que esperava ser de afeição indulgente. — Não apenas Dejanira é mais velha do que eu, uma viúva com um filho, como também é estúpida e feia, baixa e gorda, um rosto que parece de uma leitoa enfezada. A voz é como a corda de uma lira que está fora do tom, estridente e desagradável. Ouvi-la falar é sofrer uma agressão aos ouvidos. Só pode estar gracejando, minha mãe.
O rosto de Agariste, ainda bonito e imponente, ficou vermelho de raiva.
— Prefere então a sua hetera, aquela mulher ignóbil e desavergonhada que trata de doentes?
— A minha Helena pelo menos é inteligente, maravilhosa de se contemplar. É também da minha idade e possui uma língua alegre e divertida, enquanto a conversa de Dejanira, como a cabeça da Medusa, pode transformar qualquer pessoa em pedra, de pura fadiga. Quando Dejanira não se está queixando, está-se lamuriando; quando não está fazendo nenhuma dessas duas coisas, está comendo ou dormindo. Além do mais, ela sua e cheira mal, de tal forma que nem mesmo a essência de rosas, que tão prodigamente usa, é capaz de disfarçar. Será que ela algum dia já tomou um banho? Os trajes lhe envolvem o corpo como se fosse a uma barrica, dando a impressão de que está eternamente grávida. Os peplos e túnicas, embora caros, nela parecem ser a vestimenta de uma escrava que trabalha nos campos, permanentemente sujos. E ainda por cima ela se bamboleia.
Péricles levantou-se, como se quisesse encerrar a conversa, por ser absurda demais. Chegou mesmo a rir um pouco e a piscar para a mãe. Mas Agariste tinha a persistência de uma abelha atraída por um favo de mel; quanto mais lhe resistiam, mais obstinada se tornava.
— Suas observações são obscenas, meu filho, revoltantes, indignas de uma aristocrata. A aparência lhe parece um elemento de tão extrema importância?
— Sempre disse, minha mãe, que a aparência é da maior importância. Agora, no entanto, insinua que não é.
Péricles estava começando a ficar ligeiramente irritado, não apenas por causa de Dejanira, mas também porque receava contrariar a mãe em demasia. A sua amada Helena não lhe dissera que o coração de Agariste estava afetado, o que se podia observar pela recente palidez, um tanto arroxeada, e pelas veias que latejavam intensamente no pescoço esguio e branco, sempre que ela ficava nervosa, por menos que fosse? Péricles ainda amava a mãe, apesar de Agariste ultimamente deixá-lo cada vez mais irritado com suas pretensões e arrogância. Além do mais, ele era um soldado notável e estava começando a se envolver em política, na qual ainda não conquistara um sucesso de monta.
Ignorando o comentário do filho, Agariste disse:
— Esquece que o pai dela é neste momento um arconte de Atenas e pode ser-lhe de uma ajuda das mais valiosas?
Péricles contemplou a mãe em silêncio. Ficava um tanto surpreso, como sempre acontecia, quando Agariste demonstrava a sua astúcia excepcional em relação às ambições e pensamentos dos outros. Nessas ocasiões, recordava-se de que a mãe podia ser uma tola em diversos aspectos, pronunciando os maiores absurdos, mas era também uma mulher dotada de inteligência. Ainda não a informara de que a política o atraía irresistivelmente; contudo, de alguma forma, Agariste sabia-o, apesar de ele não ter confidenciado suas intenções a ninguém, com exceção de Anaxágoras, a quem a mãe detestava.
— Ele deve ter subornado a muitos para ser eleito — comentou Péricles.
— Meu irmão jamais subornaria ninguém — gritou Agariste, extremamente pálida, tremendo. — Pertencemos a uma casa honrada!
— Até mesmo os aristocratas adoram o poder e sua segunda paixão é o dinheiro, por mais vulgar que isso possa parecer. E são capazes de usar o dinheiro para alcançarem o poder, sem a menor hesitação.
Péricles realmente não acreditava que o arconte, um homem orgulhoso e repulsivamente virtuoso, houvesse comprado votos. Poderia recorrer à influência que exercia para atingir os seus fins, mas nunca o ouro; não porque desprezasse o dinheiro, mas porque a influência era mais delicada e não exalava qualquer cheiro publicamente. Além do mais, a influência não podia ser descoberta, um fato que o prudente arconte certamente levava em consideração. Péricles jamais gostaria do tio e sabia que Xantipo o detestava, imitando-o frequentemente, com grande ironia, para diversão do filho.
Agariste estava protestando contra o comentário de Péricles a respeito do tio, mas ele não prestou qualquer atenção. Estava pensando, os lábios contraídos. Seria a abominável Dejanira a sua trilha mais rápida para os campos agitados da política? Estremeceu ao pensar nela; mas Péricles era um homem excessivamente ambicioso. Desprezava a Eclésia (assembleia popular) por oprimir e embrutecer Atenas, por sua democracia crassa e degenerada. Estava convencido de que, ingressando na política, poderia contribuir para a libertação de Atenas e seu novo império, tornando-a grande e livre para os feitos magníficos que o futuro lhe reservava. Havia ocasiões em que podia sentir o coração de Atenas pulsando, embora um tanto sufocado, sob seus pés; ansiava por proporcionar-lhe espaço para a expansão, para a glória. O militar tinha bem pouca influência sobre o governo. Um homem determinado que quisesse proporcionar à sua amada terra as asas reluzentes que se espalhariam pelo mundo só teria um acesso ao poder necessário: a política. Até mesmo o profundo Anaxágoras assim o reconhecera, com tristeza, embora deplorando o fato.
Poderei suportar Dejanira por Atenas? pensou Péricles. Sabia a resposta. Poderia evitar-lhe o leito, mas isso irritaria o pai dela. Mas como poderia gerar filhos a Dejanira, quando ela lhe era tão repulsiva, bem como a aristocratas empobrecidos que tanto precisavam de dinheiro? Poderia obstruir as narinas com pedaços de pano quando tivesse de acompanhá-lo ao leito, refletiu Péricles. E o que dizer dos filhos que iria gerar? Iriam assemelhar-se a leitões, como a mãe? Será que Atenas valeria filhos assim? Infelizmente, ele sabia a resposta. Atenas valia qualquer coisa que um homem pudesse oferecer-lhe, qualquer sacrifício que se pudesse fazer por sua amada terra não era nada. Péricles sentiu o estômago embrulhado, mas disse à mãe:
— Deixe-me pensar a respeito. Talvez possa, minha mãe, persuadi-la a tomar um banho e reduzir o mau cheiro, pelo menos para a noite do casamento.
— Tal comentário não apenas é repulsivo como também cruel. — Agariste sabia que vencera e sorriu, aquele seu sorriso frio, mas delicado. — Dejanira é uma jovem saudável e você não está acostumado à fragrância da saúde. Prefere os odores de aposentos fechados, em que se afoga no vinho com seus companheiros, divertindo-se com mulheres libidinosas. Assim como a sua Helena, que não tem respeito por seu sexo e se mete nos matadouros dos médicos, chafurdando na imundície e esquecendo que é uma mulher.
Péricles riu.
— Até hoje, minha mãe, não me lembro de uma única ocasião em que ela tenha esquecido que é mulher.
Agariste corou com a insinuação e desviou a cabeça, como se assim evitasse de ver algo terrivelmente lascivo. Levantou a mão para proteger-se de qualquer menção adicional a Helena, um gesto que Péricles considerou não apenas irritante, mas também artificial. Helena era como uma rosa que desabrochara exuberantemente, sendo às vezes tão ingênua quanto qualquer jovem simplória, apesar de toda a sua inteligência e humor, da compreensão frequentemente amarga da humanidade. Robusta, alta, às vezes um tanto gorda, Helena era para Péricles como uma jovem Hera... mas sem as impertinências e ciúmes de Hera. O riso dela era alto e sonoro, adorava um gracejo acima de tudo, não simulava horror diante de uma piada mais rude dos acampamentos militares. Ao contrário, até gostava e muitas vezes acrescentava um epigrama.
Posso esquecer Dejanira nos braços de Helena, pensou Péricles, afetuosamente, sorrindo. Apesar de Helena não pertencer a homem algum, mas ser apenas de si mesma, e o seu leito só raramente estar à minha disposição.
Agariste observava atentamente o filho, Ele é como um jovem Apolo! pensou ela. Apesar das sobrancelhas espessas, que ficam um tanto grotescas e ofuscam ligeiramente as feições perfeitas, é o homem mais bonito de Atenas e seu perfil sugere força, assim como inteligência. Quem se pode comparar a meu filho? O futuro dele está assegurado. Dejanira mais parece uma filha de Erisicton, que comeu a própria carne em sua voracidade insaciável por comida. Dejanira não adora a mesa como um altar de seu corpo imenso? É a pura verdade. Mas Dejanira é muito rica, meu irmão é poderoso e irá ajudar Péricles. Dejanira não será um grande incômodo, pois os homens são homens e sempre sabem procurar consolo entre muitas mulheres. A beleza não é necessária numa esposa e nem mesmo é muito apreciada por um marido depois de alguns anos. Os homens acabam por se acostumar a suas esposas e as abandonam, por mais lindas que sejam. Meu marido não preferia uma hetera a mim?
Zênon de Eleia retirara-se para sua pequena propriedade rural profundamente grato por tal oportunidade. Seu lugar na vida de Péricles foi ocupado por Anaxágoras, como companheiro e amigo querido. Muita coisa Péricles aprendeu com Anaxágoras, de estética e da capacidade, em todas as circunstâncias, de manter a dignidade pessoal, mesma sob as mais fortes pressões. Anaxágoras havia nascido em Clazomene, dez anos antes de Péricles. Naquela ocasião, estava com trinta e três anos. Chegara a Atenas um ano antes, procedente da Ásia Menor, atraído à cidade grega por sua cultura e fama de ser a terra dos filósofos, embora estes se estivessem tornando cada vez mais as vítimas da Eclésia, sempre mais cruel e implacável na perseguição e extermínio de todos aqueles que se atreviam a discordar de suas posições.
Anaxágoras era um homem alto e esguio, o rosto alongado e sério, a boca extremamente sensível, o nariz comprido e fino, com uma ponta afilada. A expressão era suave e invariavelmente tranquila, as faces salientes e largas, os olhos maiores e mais azuis que Péricles já vira, uma inteligência radiante e um senso de ridículo excepcional. Embora de meia-idade, tinha o porte gracioso e um tanto estouvado de um jovem. Os gestos eram disciplinados, mas eloquentes. Os cabelos pretos pareciam pintados no crânio frágil, as orelhas anormalmente grandes mostravam-se até translúcidas, meio rosadas, em contraste com a palidez natural da pele.
Sua fama como matemático e astrônomo alcançara Atenas muito antes de sua chegada em pessoa. Fora recebido com elogios e afeição por seus colegas atenienses, apesar da sempre alerta Eclésia ter-lhes arrefecido o entusiasmo, sem maiores dificuldades. Anaxágoras estava sob severa vigilância, por causa de seus conhecimentos, ensinamentos e escritos científicos. Em desacordo com as convicções da Eclésia, cujas ideias da Divindade eram extremamente limitadas, fixas e dogmáticas, portanto mais veementes e arrebatadas, Anaxágoras era culpado de formular indagações, apresentar hipóteses dúbias e chegar a conclusões heterodoxas. Seu único defeito era a impaciência com os tolos, ao contrário do que acontecia com o gentil Zênon, que deles apenas se apiedava. Anaxágoras era capaz de se mostrar brusco com a estupidez humana, não importando qual fosse a fonte, jamais se desculpando por tal atitude. Mostrava-se amargamente revoltado com o fato de a Eclésia, outrora um nobre corpo de representantes dos cidadãos com direito a voto, conforme Sólon a instituíra, ter-se transformado num corpo ignóbil e belicoso de inquisidores, era mais ou menos por eles dominada, temendo-os em sua suposta taumaturgia e intimidade com os deuses.
— A liberdade é o bem mais desejável do homem — costumava dizer Anaxágoras — seguida apenas pelo conhecimento e sabedoria. Mas estes não podem existir sem liberdade. Só que a liberdade, a menos que esteja resguardada por uma constituição inalterável, pode-se transformar no instrumento dos tiranos, que usam a sua própria liberdade para destruir a dos outros.
Muitos dos membros da Eclésia eram homens ignorantes, cuja única pretensão a orgulho era o fato de serem homens livres e cidadãos de Atenas com direito a voto, sendo invariavelmente devotos conformistas. Quando Anaxágoras, introduzindo seu método científico, declarou que podia prever eclipses e que estes não eram súbitos caprichos dos deuses, a Eclésia ficou horrorizada, debatendo se devia ou não pronunciar a maldição "contra aqueles que enganam o povo". Anaxágoras não estava em Atenas dois anos antes, quando o debate começara. Em determinada ocasião, Péricles disse-lhe:
— É aconselhável ser prudente.
Ao que Anaxágoras respondeu:
— A prudência é o último refúgio do covarde. — Vendo o sorriso juvenil de Péricles, ele acrescentou: — Embora seja uma virtude num homem bravo. Não falo em paradoxos, como o seu antigo mestre, Zênon, pois a ciência não reconhece os paradoxos como uma característica da Divindade, mas sim como um problema natural que constitui um desafio e pode oferecer uma solução capaz de explicar que não existe absolutamente nenhum paradoxo, mas apenas confusão nas mentes dos homens desinformados. Os prodígios religiosos não têm lugar no reino da ciência, onde apenas os fatos contam.
— Mas ainda resta o mistério do homem — comentou Péricles.
— Pois então vamos analisá-lo e talvez chegar a uma explicação.
Como todos os cientistas, Anaxágoras estava convencido de que não existia nenhum mistério e que, através da exploração científica, todos os véus cairiam, um a um. De certa forma, ele próprio era também um dogmático, o que Péricles compreendia perfeitamente. Se Anaxágoras tinha alguma fraqueza, era na sua insistência de que o método científico e os cientistas impediriam o caos. Apesar de toda a oposição, ele introduziu em Atenas a investigação científica da Jônia, que mais tarde iria influenciar Sócrates.
Acreditava que o corpo de conhecimento já estava completo, mas que o homem, por alguma degenerescência, perdera a capacidade de nele penetrar fundo, — O que significa que acredita na Divindade, que tem preservado esse corpo de conhecimento para o uso do homem — comentou Péricles.
Ao ouvir tal comentário, os olhos azuis de Anaxágoras tornaram-se extremamente graves.
— Um cientista que não está consciente da Anima Mundi é tão insignificante quanto a própria Eclésia e não merece ser chamado de um homem douto.
Sua admiração pelo que descobria era uma decorrência da perfeição das maravilhas que a pesquisa revelava.
— Nenhum homem deve encarar a ciência sem um espírito de reverência; sem a reverência, há apenas arrogância, vaidade e presunção, que destroem a própria essência da investigação científica.
A cada nova descoberta, Anaxágoras sentia-se mais exultante. Havia nele também uma extrema gentileza, compadecia-se da humanidade, era a caridade em pessoa. Péricles considerava-se o mais magnânimo e sábio dos homens, o único que até então tinha beirado a verdadeira excelência. Anaxágoras exercia uma profunda influência sobre o homem mais jovem.
Costumava ensinar não apenas nas colunatas, como também abriu a sua própria academia, pequena, cobrando uma pequena taxa pela frequência. Não hesitava em expulsar os jovens cuja inteligência o desapontava, assim como os totalmente materialistas. Costumava dizer:
— É verdade que todas as coisas são governadas por leis naturais, mas a existência de uma lei implica a existência de um Legislador; aquele que pensa que tudo provém do Acaso cego é tão idiota quanto o que nega totalmente a existência do Acaso.
Péricles riu ao ouvir tal observação e disse:
— Neste caso, a Divindade é caprichosa.
Ao que Anaxágoras respondeu:
— A Divindade também possui um senso de humor. Para conhecê-lo, basta observar os animais em ação. Não me estou referindo aos atos deliberados dos homens, mas sim às reações espontâneas dos animais inocentes.
Ele ensinava que havia uma Unidade em todos os universos, das estrelas à menor das campinas floridas; a variedade entre as espécies e a infinita variedade eram manifestações, até mesmo para o mais obtuso dos homens, da Mente divina que governava o caos aparente e era ilimitada e incompreensível.
— Essa Mente está em incessante movimento e é desse movimento que evoluem todas as coisas, das configurações maravilhosas de uma concha marinha aos deslocamentos das estrelas. Se essa Mente cessasse seus movimentos, que constituem a criatividade, então tudo desapareceria e deixaria de ser. Haveria apenas o vazio, o nada.
Ao ser acusado de impiedade, por insistir no "mecanismo" do universo, Anaxágoras respondia que isso era um exercício de semântica, que o "mecanismo" era a lei da Mente Divina. Foi então acusado de "incoerência"; afinal, "mecanismo" não implicava uma máquina não governada pela Mente criadora? E era nesse momento que ele erguia as mãos aos céus, num gesto de desespero.
Considerava a matemática não um campo tedioso, mas sim um tema de investigação no funcionamento e nas leis da Anima Mundi, um mistério maravilhoso. Introduziu um corolário de esoterismo na matemática. Confrontado com a sua própria declaração de que não existia qualquer mistério, respondia que a sua definição de mistério não era a mesma de outros homens. Como Zênon de Eleia, disse que a especulação era o primeiro passo na direção da compreensão dos mistérios comuns e de suas soluções. Mas o Mistério da Divindade não era passível de ser compreendido pelos homens. A Eclésia alegava que ele era de fato um perigo para o povo, pois tudo que dizia não apenas confundia a filosofia — como eles a entendiam — mas também alarmava "as mentes mais simples". Quando Anaxágoras declarou que "as mentes mais simples" não tinham lugar na filosofia, foi acusado da própria arrogância que tanto desprezava e condenava. A Eclésia alegou que isso era uma demonstração de indiferença e desprezo pelas pessoas comuns; portanto, ele era um "inimigo" dessas pessoas. Ao que Anaxágoras riu tristemente.
— Parece-me que ameaço a própria Eclésia, pois certamente não existem pessoas incomuns ali reunidas.
Não tinha a menor tolerância com aqueles que se opunham à investigação científica, por mais "ímpia" que pudesse parecer.
— A única impiedade é negar que a Mente Divina seja maior do que a mente do homem.
Péricles comparecia às aulas e experimentava, invariavelmente, uma exaltação do espírito e uma profunda emoção ao ouvir os ensinamentos daquele homem impressivo. Tinha a impressão de que ocorria uma expansão em si mesmo, um aumento de percepção. Anaxágoras aperfeiçoava e coloria os seus sonhos para a Grécia mais que qualquer outro mestre. Foi Anaxágoras quem lhe disse que sua mente se tornara por demais absorvida com as artes da guerra e política, Péricles indagou:
— Pode a mente de um homem conter todas as coisas?
Ao que o filósofo respondeu:
— Não há limite para a mente do homem, não há fim à sua especulação, se ele não for indolente e não disser a si mesmo que sua mente pode conter apenas tantas matérias e que se torna necessário julgar o que é importante e o que não é. Quem somos nós para decidirmos a importância de qualquer coisa?
— Exceto a da verdade — respondeu Péricles, com uma solenidade zombeteira, — Não foi isso o que já havia dito, meu caro cientista?
Anaxágoras respondeu:
— Até mesmo a verdade tem suas variáveis e nós, cientistas, as reconhecemos... se somos cientistas de verdade. — E depois de uma pausa ele acrescentou: — Até mesmo a realidade muda ou é transformada quando o homem a percebe.
Péricles já ouvira de Fídias, que era da mesma idade de Anaxágoras, mas sendo um homem tão ocupado ainda não tivera uma oportunidade de conhecê-lo. Mas Anaxágoras em breve mudou tal situação. Levou Péricles ao estúdio do escultor, que já possuía então uma fama considerável, tendo executado a incomparável Atena para Pelene e o memorial de Maratona em Delfos, A imensa estátua de bronze de Atena, que se erguia por cima da acrópole e era um marco para os marinheiros, fora projetada e moldada por Fídias. Ele tinha muitos discípulos; alguns dos mais dotados imitavam-no habilmente.
Era ateniense, filho de Carmides. Embora ainda bastante jovem, já era calvo; tinha um sorriso suave e tímido, infinitamente atraente e suplicante. Sua oficina era tão modesta quanto ele próprio, igualmente empoeirada, repleta de manchas de tinta e de aparas de metal; mas era extremamente ruidosa, enquanto ele era reservado e silencioso. Cumprimentou Anaxágoras afetuosamente, tocando-o gentilmente no ombro e sorrindo timidamente. Dava a impressão de pensar que Anaxágoras estava-se rebaixando ao visitá-lo e por isso sentia-se humildemente grato. Olhou para Péricles um tanto timidamente, pois tinha medo de estranhos. Já vira Péricles a distância, no teatro e na Eclésia, assim como nos jogos, mas não sabia o nome dele.
— Meu amigo Péricles, um soldado insigne e, infelizmente, também um político em ascensão, desejava conhecê-lo, meu caro amigo — disse Anaxágoras.
O filósofo estava vestido tão humildemente quanto o escultor famoso, mas nada podia reduzir-lhe a aparência de grandeza. Fídias conduziu os dois visitantes para fora de sua oficina, à luz do meio-dia. Havia ali um jardim pequeno, mas perfeito, de mirtas, carvalhos, sicômoros, cercando caminhos de pedrinhas, e um único canteiro de flores, ao centro, com uma fonte em que se encontrava uma de suas próprias obras: uma pequena mas delicada estatueta de bronze de Psiquê, com uma borboleta no ombro, as asas abertas, apenas um pé pousando no pedestal, O metal fora polido pela água que fluía sobre ela, de tal forma que parecia ouro reluzente à luz forte do solo. Ela uma estatueta tão impecavelmente modelada que parecia ter vida; as veias infinitesimais nas mãos e tornozelos pareciam latejar com a passagem de sangue. No rosto adorável havia um sorriso de anseio virginal, um desejo ardente de amor. Péricles se aproximou da fonte para admirar a obra. Fídias ficou observando-o, com uma expressão de satisfação, enquanto pensava: Embora esse jovem seja um tanto pomposo nas atitudes e na fala, não se pode negar que há algo de esplêndido nele, algo solidamente imponente e sincero, Como se tivesse ouvido tal pensamento, Péricles virou-se subitamente e fitou Fídias nos olhos, dizendo a si mesmo que ali estava um grande homem que compreendia mais do que os outros podiam imaginar, por mais simples que fosse o seu aspecto. Péricles podia agora compreender o que Zênon estava querendo dizer ao falar que era apenas o homem inferior que se jactava, que assumia ares de importância e que se tinha em alta conta. Infelizmente, no entanto, os homens verdadeiramente grandes eram frequentemente ignorados pelo populacho, até mesmo pelo governo e por homens eminentes, já que não tinham quaisquer pretensões. Ele próprio, Péricles, não podia deixar de reconhecer que às vezes não era totalmente inocente no desdém declarado e podia menosprezar os outros quando ficava impaciente.
Um discípulo trouxe vinho, queijo e azeitonas, pão e mel, pondo tudo numa mesa tosca, à sombra de um carvalho. Veio também um prato de tâmaras e figos. Fídias não apresentou qualquer desculpa hipócrita pela simplicidade daquela refeição. Enquanto os três se sentavam, comiam e bebiam, Péricles concluiu que a comida era de pouca importância para o escultor, assim como para Anaxágoras. O vinho era execrável, barato; no entanto, Fídias não era um homem pobre. É provável, pensou Péricles, que ele considere tão pouco a comida e o vinho quanto considera o dinheiro. Da oficina, vinha o barulho constante de marteladas e vozes juvenis.
Em voz hesitante, como que suplicando perdão por suas palavras, Fídias disse:
— Meu sonho é ver Atenas como o centro supremo da beleza, assim como da filosofia e da ciência. — Levantou a cabeça, contemplou a acrópole, e o seu semblante se tornou sublime pelos sonhos nele estampado. — Vejo um templo ali, o Partenon de Atena, com uma estátua da deusa na frente, em marfim e ouro, uma grande estátua de frente para o amanhecer, heróica, terrível, dominadora, banhada pela luz da Aurora, refulgindo contra o céu azul.
— Não é um sonho impossível — comentou Péricles, deixando Fídias novamente satisfeito com a sonoridade de sua voz. — Eu também o desejaria, pela glória da Grécia. E, embora Anaxágoras os despreze, o fato é que os políticos se tornam necessários para que se possa obter o dinheiro que transforma um sonho em realidade.
— Mas temos uma democracia por demais degenerada, tão preocupada com as barrigas dos cidadãos que não dispõe de tempo para se importar com a glória da nação — disse Anaxágoras. — Somente as repúblicas e os impérios podem-se erguer acima da sarjeta e alcançar o esplendor. As democracias são femininas, enquanto as repúblicas e os impérios são masculinos; é aí que está a diferença entre a mediocridade e a grandeza.
Anaxágoras pôs-se a invectivar, como de hábito, contra a Eclésia e os juízes, embora sem rancor, simplesmente com pesar. Fídias escutou atentamente, suspirando ao final e dizendo:
— Até mesmo as artes, que são imortais, devem suportar os apetites vorazes do populacho. Está absolutamente correto, meu caro Anaxágoras, ao acreditar que o espírito é mais importante que o corpo. Mas é impossível explicar isso ao governo. Ou talvez eles tenham medo de reconhecê-lo, em sua caça aos votos.
Fídias levou os visitantes de volta à oficina, Péricles comentou:
— Não estou vendo muito mármore aqui. Trabalha principalmente em ouro e marfim ou bronze?
— Acho o mármore por demais enfadonho — dísse Fídias, novamente com o ar de quem receava ofender com suas palavras. — Mas sonho em ver a acrópole coroada por mármore, tão puro quanto a luz, tão imponente em seu aspecto quanto uma montanha.
— E que você irá ornar com seu gênio — disse Anaxágoras. — Como são lindos os elementos da natureza, marfim, ouro, metais, mármore! Falam nas vozes do silêncio, que são sagradas!
Péricles ficou observando, fascinado, enquanto Fídias pegava um cinzel e punha-se a trabalhar numa estatueta de Zeus. O cinzel faiscava e cortava como se fosse manteiga, enquanto Péricles se maravilhava com aquele poder elegante e meticuloso. O pequeno semblante começou a emergir, predominante, as feições divinas. Como se pensasse em voz alta, Fídias comentou:
— Um dia, é possível que eu amplie esta pequena estatueta numa estatura sobre-humana, não apenas para a minha própria satisfação, mas também para a de todos que a contemplarem.
Seu rosto se entristeceu um pouco, como se receasse que tal sonho não tivesse muita esperança de se converter em realidade.
Ao deixar a oficina de Fídias com Anaxágoras, Péricles levava um presente do escultor, uma estatueta de marfim, não maior que seu dedo indicador, de uma mulher adorável, com um rosto definido e heróico. Tinha o corpo de uma jovem deusa, embora maduro na aparência. Os cabelos estavam entrelaçados à moda grega, presos com fitas, que Fídias colorira de ouro. Um braço estava erguido no gesto de prender a túnica no ombro direito, uma perna perfeita estava meio revelada. A expressão era pensativa, mas firme, havia uma ligeira insinuação de humor em sua boca. Péricles contemplou a estatueta na palma da mão e disse:
— Onde poderá existir uma mulher tão bem-dotada assim, não apenas de beleza, mas também de caráter e sutileza? É verdade, tenho a minha linda cortesã, que me é como um espelho, refletindo tudo o que lhe digo. Reconheço que ela possui as suas graças. Mas não é tão feminina como esta, tão terna na aparência, tão humana e divina ao mesmo tempo, dando a impressão de possuir tão grande profundidade mental.
— Está falando de Helena, a médica? — indagou Anaxágoras, surpreso, pois conhecia Helena.
— Não. Helena não pertence a nenhum homem, nem mesmo a mim, embora muitas vezes seja a minha companheira. Estou falando de Pomona, a minha ninfa.
Péricles contemplou novamente a estatueta, que lhe dava a impressão de se mexer na palma de sua mão, de estar prestes a falar. Enfiou a mão no bolso e tirou um lenço de seda, envolvendo cuidadosamente a estatueta e guardando de novo no bolso.
— Se eu encontrar uma mulher assim... o que é impossível, é claro... ela será para mim mais do que a minha própria vida.
Ao descerem pela Agora, Péricles disse, como se estivesse continuando uma conversa consigo mesmo:
— Os sonhos de Fídias se converterão em realidade. Tenho certeza, no fundo de minha alma.
Ele pôs a estatueta de marfim na arca ao lado de sua cama e a contemplava por longos períodos, dominado pelo anseio e desejo. Certa ocasião sonhou que ela crescia e descia da arca, era uma mulher alta que lhe sorria, inclinava-se em sua direção e sussurrava:
— Tenho esperado por um homem como você. Haveremos de nos encontrar.
Ao despertar, Péricles sentiu-se reconfortado e depois disso passou anos a procurá-la em todas as reuniões, em todos os templos. Sempre terminava desapontado, mas jamais deixou de a procurar.
Capítulo 7
Péricles não tinha a menor intenção de se casar cedo e frequentemente acalentara a esperança de poder escapar inteiramente ao casamento. Era discreto o bastante para não discutir essa segunda intenção na presença de inimigos potenciais ou amigos passageiros, É que estava na política e era perigoso divergir do costume popular, especialmente no caso de um homem que não tinha irmãos mais velhos para continuarem a linhagem da família. Chegara a aventar a possibilidade depois de seus dois anos de efebia ou serviço militar, quando a mãe lhe insinuara que tal era o seu dever para com a família. Bem que tivera as suas relações com as mulheres que seguiam os acampamentos militares, quando era um jovem oficial; tivera também lindas escravas na casa de seu pai e uma que outra concubina. Apaixonara-se pela exuberante Helena, uma antiga hetera, agora médica, bastante censurada em Atenas. Helena, no entanto, era uma companheira feliz de qualquer homem que a atraísse, o que constituía outra violência contra a virtude pública. Mas não amava a ninguém, exceto o seu antigo protetor, um médico de renome que lhe ensinara as artes da medicina. Quando ele morrera, Helena ficara profundamente desconsolada; mas era uma mulher saudável, naturalmente alegre, gostava dos homens. E, assim, passara a conceder seus favores a quem escolhesse, à sua própria vontade e desejo, Fora Helena quem apresentara Péricles a Pomona, uma jovem hetera, promovendo a ligação entre os dois. Helena era naturalmente generosa e amável. Articulara a relação em parte por afeição, tanto por Péricles como pela jovem, mas em parte também para desviar Péricles de sua própria pessoa, para livrar-se das importunações dele.
Em suma, Péricles desejara-a só para si e Helena considerava tal pretensão ao mesmo tempo tediosa e presunçosa. Contudo, não queria ferir os sentimentos e arrasar a paixão de Péricles, repelindo-o abruptamente. Deixava-o ocasionalmente partilhar seu leito, mas não lhe encorajava a devoção. Aceitava os presentes dele alegremente, exibindo o seu sorriso suave, de prazer genuíno. Também apreciava a consideração genuína de Péricles por uma mulher que era inteligente e que não a desprezava, ao contrário de muitos outros atenienses. Como pessoa de bom senso, Helena sabia também que havia muitas ocasiões em que até mesmo uma mulher orgulhosa e auto-suficiente precisava da proteção e influência de um homem proeminente, especialmente se tal homem era um político e tinha posses. Além disso, Péricles era um homem bonito e uma companhia divertida, quando não se mostrava por demais pomposo. Helena persuadiu-o a não levar a si mesmo e às questões públicas demasiadamente a sério, como era a propensão de Péricles. Apresentara-o a homens famosos pelo espírito e linguagem irreverente, nos banquetes suntuosos que oferecia em sua casa. (Helena era capaz de comer e beber como um homem, vorazmente, não considerando o ascetismo como uma virtude. Em decorrência, seu corpo alto era voluptuoso, embora não chegasse a ser gordo.) Acima de tudo, ela possuía um extraordinário senso de humor, jovial, às vezes um tanto rude; conseguira suavizar a língua cáustica de Péricles, a tal ponto que a impaciência natural dele não mais explodia com tanta frequência em insultos arrogantes, insultos que expunham as fraquezas e defeitos secretos de um homem ao riso dos outros.
— Uma coisa que aprendi é que os tolos podem às vezes alcançar o poder e tornar-se perigosos — disse ela a Péricles. — Além do mais, um pouco de generosidade não faz mal a quem a dá. A condição de humanidade já é trágica e triste o bastante para que a agravemos ainda mais, mesmo quando estamos exasperados com toda a razão.
Helena introduziu a compaixão relutante na vida de Péricles. Ela tinha um rosto redondo e rosado, os lábios cheios e vermelhos, um narizinho arrebitado, os olhos castanhos emoldurados por pestanas da mesma cor que os cabelos, que eram de um castanho avermelhado e que ao sol adquiriam a cor de cobre. Sabia rir como um homem jovial e geralmente o fazia. Ao saber que Péricles era um tanto sensível por causa de sua testa muito alta, sugeriu-lhe que usasse um elmo em público, em todas as ocasiões. E rira quando ele o fizera, pois sua sugestão fora em boa parte apenas um gracejo. Foram a sua generosidade espontânea e beleza que levaram Péricles a adorá-la, além de admirar-lhe a inteligência, apesar das censuras e contrariedade de Agariste. Helena ensinava medicina aos jovens, além de exercê-la, tendo a sua própria enfermaria, que lhe fora deixada pelo único homem a quem realmente amara. Os amigos lhe eram devotados, os inimigos se mostravam implacáveis; estes não chegavam a afligi-la, pois Helena era uma mulher corajosa e não se empenhava em conquistar a boa vontade ou apaziguar quem a odiasse. Embora tivesse a mesma idade de Péricles, tinha em relação a ele um sentimento ternamente maternal. Para as mulheres de Atenas, era um escândalo revoltante, com sua liberdade e modos livres; mas tal fato não chegava a incomodá-la. Suas únicas amigas, do mesmo sexo, eram as heteras.
— Um dia, as mulheres inteligentes não mais serão consideradas rameiras como acontece atualmente, mas serão respeitadas e honradas — disse ela a Péricles. — E você, meu bem-amado, irá contribuir para que essa situação condizente se imponha.
Em resposta, Péricles disse:
— E você será a primeira a ser honrada.
Péricles foi procurá-la uma noite para dizer que as circunstâncias e as preces e argumentos da mãe haviam-no persuadido a assumir um compromisso de casamento com a prima, Dejanira, através dos ofícios do pai dela, o Arconte Dédalo. (Na verdade, era um compromisso entre dois homens, o pretendente e o pai, se ainda vivo.)
— Ela me trará um dote apreciável, tanto do pai como do marido falecido e não lamentado — disse Péricles a Helena. — E melhor do que isso, me trará influência e poder por intermédio do pai. O que é ótimo, pois não tenho tempo a perder.
Helena assumiu uma expressão grave e fitou Péricles com uma intensidade fora do normal, os olhos castanhos pensativos,
— Já vi Dejanira em procissões de casamento e em sua liteira, acompanhada pelo pai.
— Não resta a menor dúvida de que ela nada tem de bonita — comentou Péricles, o rosto franzido. — Como também não se pode alegar que Atena dotou-a de alguma inteligência.
— Isso nada significa — disse Helena, dando de ombros. — Imagino que um homem deve casar, para continuar a linhagem de seus ancestrais. E ouvi dizer que Dejanira é uma matrona de muitas virtudes, diligente na administração de uma casa. Além do mais, embora já seja um homem rico, meu Apolo, jamais se devem desprezar mais riquezas.
— Concordo em que um homem casado não pode querer mais. Mas eu tinha a esperança de escapar inteiramente ao casamento e devotar minha vida à nação.
— Já observei que os homens casados não têm o hábito de permanecer por muito tempo em suas casas — comentou Helena, com um sorriso. — Deixam as esposas em casa e elas podem ser úteis sob muitos aspectos. Poderia ter arrumado algo pior.
— Pelo menos ela terá de tomar o banho nupcial ritual.
— Não seja indelicado, meu Apolo. Ordene a suas escravas que espalhem nardo pela câmara nupcial.
Helena falara despreocupadamente, mas sentia-se perturbada, não apenas por Péricles, mas também por Dejanira. Já ouvira falar da estupidez de Dejanira e outros defeitos de caráter dela; sabia também que Dédalo frequentava os bordéis não apenas no que julgava ser um sigilo absoluto, mas como alguém vai ao médico para tratar de uma grave doença, detestando a necessidade e quase sempre odiando também a curandeira por tal necessidade. A esposa de Dédalo era uma mulher excepcionalmente parecida com a filha. Helena poderia sentir compaixão dele, se Dédalo não fosse tão intensamente desdenhoso e não condenasse acerbamente os que careciam de sua própria dedicação, sincera e arrebatada, sem qualquer hipocrisia, à probidade pública e particular.
— Ele detesta a si mesmo pelo que não consegue evitar, possivelmente mais do que detesta a outros, com menos ou nenhum escrúpulo — comentava Helena. — É como um homem que detesta a ação de suas entranhas, mas é obrigado a ir à latrina, tampando o nariz contra o cheiro. Podem-se compreender homens assim, mas não podemos perdoá-lo por sua severidade em relação aos outros, por seu desejo de vingança. Ao castigar seus semelhantes, eles estão-se castigando a si mesmos e sofrendo intensamente.
Péricles não era tão generoso para com Dédalo, a quem considerava repulsivo.
— Ele é magro como um esqueleto, o rosto mais parece uma caveira, a boca é como uma tâmara ressequida, só que sem qualquer doçura. Quando lhe apertei a mão por ocasião do compromisso de casamento, a sensação foi a de sacudir dedos formados de frágil pergaminho, tão pouca é a vida que contém aquele corpo. Todo o seu poder está na voz, que é como uma buzina, e na atitude, que expressa virtude cívica. Ele também é honesto, o que constitui uma raridade entre os atenienses. E acredita realmente no que diz. Sua palavra não precisa de um juramento para ser sacramentada e decerto isso conta a seu favor. Como minha mãe, tão bonita, pôde ter um irmão assim é uma das sete maravilhas extraordinárias do mundo.
— Também já o vi pessoalmente e sei que não está longe da verdade. Ah, meu infortunado Péricles! Contudo, creio que esse casamento lhe será vantajoso. E sempre poderá recorrer a consolos fora de casa, não é mesmo?
Os olhos claros de Péricles fitavam-na com tamanho ardor e ternura que Helena abraçou-o, suspirando enquanto sorria. Não entendia por que não o amava, sentindo apenas uma afeição profunda. Não era ele o homem mais desejável de Atenas, não possuía todos os atributos de mente e caráter que podem atrair uma mulher, não era viril, gentil e atencioso nos braços dela? Mas Helena amara outrora e não mais conseguira amar qualquer outro homem, por mais ilustre que fosse. Como uma compensação, Helena jantou sozinha com Péricles naquela noite, em sua linda casa, providenciando para que a mesa apresentasse os pratos prediletos dele, assim como os melhores vinhos. Enquanto comiam, Helena nada falou de sério, mas divertiu-o com os boatos maliciosos que corriam pela cidade e com as últimas e mais obscenas pilhérias que andavam contando.
Péricles acalentava secretamente a esperança de que ainda ocorresse alguma calamidade que lhe evitasse o casamento com Dejanira. Mas o dia de inverno no mês de Gamelião amanheceu claro, o que Agariste declarou ser um bom presságio, mas Péricles considerou desastroso. Vira Dejanira em festivais de família, quando o marido ainda estava vivo, experimentando por ele uma sincera compaixão, se bem que um tanto escarninha. Recordava-se de que Dejanira jamais tivera o menor vestígio de beleza, nem mesmo quando era criança e moça; agora, como viúva, parecia-lhe particularmente repulsiva. Antes do casamento, ela tivera pelo menos um corpo esguio e mantivera-se razoavelmente higiênica, com a ajuda de escravas. Mas até isso já havia acabado.
No dia em que Agariste proclamou que tudo era auspicioso, Péricles disse para si mesmo: há coisas piores que o casamento que podem ocorrer a um homem, mas no momento não acredito nisso. Escolhera Anaxágoras para seu padrinho, o que deixou Agariste furiosa. E a raiva dela aumentou ainda mais pelos convidados dele para a festa do casamento, "toda aquela malta intragável de filósofos dos becos mais imundos", não os homens de distinção que Péricles deveria ter escolhido. Ela jamais gostara de Zênon de Eleia, nem mesmo nas melhores ocasiões. Zênon era outro dos companheiros de Péricles. Agariste estava convencida de que o filho só tomara tais iniciativas para aborrecê-la. Somente o fato de o irmão tê-la informado dubiamente que aqueles "maltrapilhos" estavam proporcionando fama a Atenas é que conseguiu atenuar a raiva de Agariste. Mas ela reconhecia que eles tinham alguma inteligência; e não eram também muito pobres, não usavam trajes ordinários, não guardavam os sapatos, quando os tinham, apenas para os jantares mais importantes, a fim de preservá-los pelo máximo de tempo possível? Ao ouvir isso, Péricles comentou:
— É melhor ter os pés nus que o cérebro vazio.
Friamente, para irritar a mãe ainda mais, Péricles insistiu em saber dos detalhes da cerimônia de purificação de Dejanira, na noite anterior ao casamento, a que Agariste comparecera. As mulheres da casa da noiva e parentes do sexo feminino haviam seguido em procissão para buscar água da fonte chamada Calírroe. Todas carregavam tochas e havia dois tocadores de flauta, ao invés de apenas um, à frente da mulher que levava os baldes especiais para recolher a água. Em seguida, nos aposentos das mulheres, a noiva foi cerimoniosamente despida.
— Ah, mas que visão deleitável deve ter sido! — murmurou Péricles, sombriamente.
Dejanira fora esfregada e meticulosamente limpa com óleo perfumado, depois vestida de linho claro. Seguida de parentes e acompanhantes, comparecera à presença do pai, para o sacrifício oferecido a Zeus, Hera, Apolo, Ártemís e Peito. (Gamelião era considerado um mês particularmente favorável para casamento, por ser o mês de Hera, a deusa do casamento.) Pela segunda vez, como se fosse uma noiva ainda virgem, Dejanira oferecera seus brinquedos e bonecas.
— Ah, infelizmente ela não pôde oferecer também o filho! — comentou Péricles, para ira da mãe. — Pensei que essa cerimônia fosse apenas para as virgens. Mas não é possível que ela jamais se tenha deitado com o marido, gerando o filho, que se lhe assemelha de maneira extraordinária, por algum processo de partenogênese?
Agariste, ultrajada demais para responder, foi supervisionar a decoração de sua casa com grinaldas de oliveira e folhas de louro, assim como a casa de Dédalo estava sendo também decorada, naquela manhã nupcial. A câmara nupcial, que Péricles se recusou a inspecionar, estava sendo também enfeitada com oliveira, folhas de louro e flores. Como o tempo estava frio, havia braseiros em todos os aposentos; as cortinas estavam fechadas sobre as janelas, apesar de o sol brilhar lá fora. Péricles, que jamais se mostrava inquieto, estava inquieto naquele dia; saiu de casa para respirar o ar frio e contemplar sua amada cidade. E lhe disse:
— Estou fazendo isso por ti. Estou-me oferecendo a mim mesmo em sacrifício. — Olhou para a grande estátua de bronze que Fídias criara e murmurou: — Atena, minha protetora, fazei com que o meu sacrifício sirva para aumentar a vossa glória.
A estátua na acrópole olhava firmemente para leste, a luz da manhã rebrilhando em seu rosto vigoroso e grave. Mas a face de Atena não estava mais grave que a de Péricles, cujos olhos claros tinham a cega expressão de uma estátua, um fenômeno que muitos achavam desconcertante. Como Atena, ele usava um elmo que ocultava a extraordinária altura de sua testa e cabeça. Estremeceu à brisa fria e aconchegou-se melhor no manto. Decidiu embriagar-se, embora normalmente fosse comedido ao beber.
Por volta de meio-dia, Péricles estava dormindo em seu quarto, roncando sonoramente. Agariste, ao ouvi-lo, contraiu os lábios, embora tivesse de admitir para si mesma que talvez ele tivesse razão, considerando Dejanira, sobre a qual não tinha quaisquer ilusões. Mas Dejanira era rica e o pai dela, um homem poderoso; havia coisas piores do que casar-se com ela, especialmente para um homem ambicioso como Péricles.
Enquanto dormia, numa aura de vinho amargo, Péricles sonhou novamente com a sua linda estatueta. Fídias presenteara-o com uma imagem ampliada, do tamanho de uma mulher alta e esguia, que novamente se inclinou sobre ele. Mas desta vez beijou-o nos lábios, pôs a mão gentilmente em seu pescoço e sussurrou:
— Já estou chegando, ó meu amado!
Péricles pôde sentir todo o calor daquela boca, tão fragrante como lírio, tão suave como uma pena, os cabelos, entre prateados e dourados, caindo sobre o pescoço, os ombros e as mãos de Péricles. Os olhos dela, tão perto dos olhos de Péricles, eram castanhos como o vinho de outono, salpicados de ouro, de luz a falsear. Parecia radiante e vital para ele, sorriu. Péricles despertou abruptamente na penumbra do quarto, procurando-a, os olhos arregalados, tão real lhe parecera a presença dela, tão iminente. Tinha certeza de que podia sentir o odor de lírios. Virou-se de lado, o coração batendo descompassadamente, ansiando pelo que certamente não passava de um sonho. Estava tão desolado quanto um homem despojado da esposa amada, antes mesmo da consumação do casamento. O pensamento de Dejanira era-lhe agora insuportavelmente repulsivo e ele teve de fazer um tremendo esforço para não se levantar e fugir de casa e da própria cidade de Atenas, correr pelo mundo em busca da visão que sonhara. Finalmente, gemendo, ele levou a estatueta aos lábios e beijou-a, colocando-a em seguida debaixo do travesseiro e voltando a dormir, até quase o pôr-do-sol. Ao acordar, sentia-se atordoado e entorpecido, sem qualquer sentimento — o que era uma sorte, pensou. Depois, riu para si mesmo. O que era o casamento, no final das contas, que não uma conveniência para produzir filhos? Estava levando a questão demasiadamente a sério. Helena não o estava sempre advertindo de que assim se comportava em todas as coisas?
— Só existem duas coisas que merecem o máximo de seriedade: o nascimento... e a morte — dissera ela, apenas três noites atrás. — Entre as duas, quando se é sensato, há apenas a hilaridade. Pois a vida não é hilariante, mesmo quando trágica?
Péricles não respondera. Havia ocasiões em que desconfiava de que Helena, apesar de sua sabedoria, podia ser frívola; naquela noite, Péricles se mostrara tão irritadiço que Helena, exasperada, acabara por mandá-lo embora e, imperdoavelmente, aconselhara-o a ir procurar sua futura esposa.
Ao pôr-do-sol, Péricles estava aparentemente calmo, altivo e rigidamente controlado. O rosto, sob o elmo, era tão destituído de expressão que parecia menos carne e mais pedra branca. Assim acontecia não por causa de seu temor pelo casamento com Dejanira, mas porque Anaxágoras lhe ensinara que, em todas as circunstâncias, um homem de verdade não pode deixar de ter autodisciplina, especialmente em acontecimentos de grande importância ou sob pressão extrema.
— Deixar que a mente fique perturbada é imperdoável — comentara Anaxágoras,
— Zênon de Eléía achava que eu tinha um autocontrole exagerado — respondera Péricles.
— Ah, mas há uma diferença sutil, embora profunda, entre uma aparência de autocontrole e o esforço e angústia físicos e mentais envolvidos na verdadeira autodisciplina que controla as emoções interiormente, enquanto a aparência é sempre e tão-somente exterior. A verdadeira autodisciplina produz a paz de espírito, pois representa o domínio absoluto do ego de uma pessoa. A primeira, por sua vez, produz ao final o colapso físico e espiritual, pois nada é mais terrível que a ausência de controle sobre as próprias fraquezas. A serenidade está na mente, quando se tem o domínio dos pensamentos. Sem isso, um homem se torna vítima de emoções fortuitas, que surgem e se vão abruptamente, sendo capazes de destruí-lo, por serem incontroláveis, selvagens, animalescas.
Anaxágoras sorrira bondosamente para o jovem amigo, antes de acrescentar:
— Você possui uma extraordinária serenidade e firmeza na aparência. Mas isso deve-se transmitir à sua mente e emoções. Quando fui atacado nas ruas por jovens desgrenhados e desvairados, que discordavam violentamente das minhas teorias, não senti medo, raiva ou exasperação, muito menos indignação. Sabia que eram apenas ecos do nosso passado primitivo e caótico e não tinham a menor importância.
E no dia de seu casamento Péricles refletia sobre o que Anaxágoras dissera: As emoções objetivas e aparentes podiam ser habilmente usadas por um político para impressionar os eleitores... quando se queria conquistar um cargo público. Contudo, pensou Péricles, desolado, sou apenas carne e sangue e estou longe de alcançar a verdadeira serenidade. Seria melhor, neste mundo aterrador, parecer-se com mármore por dentro e por fora do que sentir paixões ardentes? Ou será que o mármore era vivo, como Fídias dissera? (Zênon comentara certa vez que todas as coisas tinham o seu ser: ser é sentir e a própria pedra se desenvolvera e por isso tinha consciência.) Péricles experimentou uma ligeira confusão em sua mente. Ocorria-lhe, o que não constituía um pensamento original, que a vida era por demais desconcertante, tenebrosa e enigmática, não hilariante como dissera Helena, a menos que se considerasse os terremotos divertidos e a humanidade misteriosamente atormentada ridiculamente cômica e engraçada. Anaxágoras declarara que um homem de verdade não se limitava a se erguer acima da calamidade. Permanecia impermeável à calamidade. Péricles sacudiu a cabeça. Havia ocasiões em que um homem devia chorar ou morrer. Sangue era sangue, não importava o que os filósofos pudessem dizer. Um homem podia não escapar a si mesmo nem a sua herança humana. Talvez até mesmo Deus fosse a vítima de sua própria natureza. Infelizmente, pensou Péricles, o que dizer de nós, meros mortais, se tal acontece? Devemos todos lidar com tangíveis, Deus ou homem, mesmo que não tenham sido feitos por nós. A realidade nos defronta a todos. Ao contrário do leste, o oeste é pragmático.
Capítulo 8
Entre os convidados ao casamento estava o tímido e emotivo Íctis, que era deplorável, de um ponto de vista sereno e filosófico, em sua ausência de moderação. Seus sentimentos estavam sempre visíveis, no ligeiro tremor constante do rosto e nos olhos ardentes e intensos. Parecia sempre à beira de um colapso; tinha a sensibilidade de um homem que fora esfolado. Uma palavra suave ou um sorriso gentil podiam levá-lo às lágrimas. Frequentava as colunatas e seguia os filósofos, escutando atentamente, às vezes chorando, como se insuportavelmente comovido. Os filósofos achavam tal reação agradável, se bem que um tanto cômica. O mesmo não acontecia com os discípulos. Não sabiam que ali estava uma alma pura que ansiava por beleza, justiça e verdade e não podia entender um mundo que carecia dessas coisas tão terrivelmente. (Pior de tudo, não podia expressar com eloquência a grandeza que percebia e assim podia apenas balbuciar, embora o espírito vibrasse. Parecia ter a língua paralisada.)
Contudo, Íctis podia escrever. E escrevia anonimamente, espalhando seus escritos por toda Atenas, utilizando rapazes para largarem pedaços de pergaminho em lugares públicos e nas portas das casas. Seus poemas eram medíocres, embora comoventes. Mas as polêmicas que despertavam eram vigorosas e magnéticas. Ressoavam de paixão, eloquência, um fogo intenso. Questionava a tudo, mas sempre com humildade, se era pertinente à Divindade. Contudo, quando questionava o governo, era como se um vulcão houvesse rompido a sua estabilidade rígida e estivesse despejando chamas e lava por toda a cidade, com uma ira incontrolável.
Seu ódio particular era contra a democracia hipócrita de Atenas, que simulava servir ao povo, mas servia apenas aos políticos. "O Venerando Criador de nossas leis outrora beneficentes, Sólon de sagrada memória, procurou instituir uma república justa, em que não haveria escravos e todos os homens seriam iguais perante a lei, em que todos, poderiam sempre recorrer ao governo, se prejudicados ou privados de seus direitos. Os tiranos proclamaram que seguiam as leis de Sólon; mas na verdade desvirtuaram-nas em proveito próprio e quase destruíram Atenas com sua venalidade, astúcia e exigências. Presumia-se e ainda se presume que era o traje imaculado da virtude que envolvia os demônios, emprestando-lhes um ar de autoridade e santidade. Harpias a revoar com as asas brancas da justiça! Onde está o homem, na Atenas de hoje, de qualquer posição, que possa declarar com honestidade: ‘Sou um homem livre’? Impostos onerosos destroem a ambição e criam a apatia nos fortes e a mendicância nos fracos. Nenhum homem sabe, neste exato momento, se a sua terra lhe pertence ou se o governo irá tomá-la amanhã com propósitos malignos. A Eclésia é um covil de ladrões, uma congregação de mentirosos e opressores! Priva os homens honrados de seus bens ou suas vidas. Eleva os Cérberos a guardiães do povo! O rio Estige fluí através de Atenas e seus domínios. Quem haverá de construir sobre ele uma ponte, pela qual os homens livres possam escapar e encontrar a segurança?"
A Eclésia simulava ignorar tais escritos. E se alguém lhes mostrava, riam indulgentemente e comentavam:
— É obra de um estouvado, um tolo, um idiota descontente. Quem perderia tempo a ler tais bobagens, a não ser os escravos... se é que os escravos podem ler? Atenas não é rica, poderosa e orgulhosa, não está repleta de artistas e filósofos, não é a maravilha do mundo moderno? Tudo isso não poderia florescer se Atenas estivesse oprimida por seu governo, reprimida e silenciada. Sempre haverá descontentes. Se justa for a causa deles, dar-lhe-emos a atenção que merecer. Mas quando a causa for estúpida e irracional, devemos ignorá-la.
Mas a Eclésia não ignorava os escritos de Íctis. Mobilizaram espiões para procurá-lo. Somente uma pessoa estava convencida de que sabia quem era o autor daqueles escritos inflamados que estavam perturbando as mentes dos cidadãos e fazendo-as pensar em seu governo, mesmo acima de suas mesquinhas preocupações cotidianas. Esse homem era Péricles. E tomou a decisão de conversar com Íctis, para o próprio bem do amigo. Prudência, prudência, disse Péricles a si mesmo, como se estivesse falando com seu tímido amigo. E depois acrescentaria, não sem amargura:
— Meu caro Íctis, a verdade é um tempero fatal e pode envenenar o governante. Concordo com você, mas ainda não é chegado o momento. Prudência, não. Paciência, sim.
Em seguida, porém, Péricles escarnecia de si mesmo pela prudência que assumia. Mais nações, pensava ele, eram destruídas pela paciência indiferente do povo que por qualquer outro predador. Um povo que tinha tanta tolerância para com o mal merecia morrer em sua própria indulgência. Havia uma diferença entre indulgência por imperfeição natural e indulgência por corrupção. A primeira era civilizada; a segunda, pérfida.
Depois, Péricles refletiu que nada havia mais invencível que um homem justo e íntegro que se lançasse a reparar o que estava errado. Por mais gentil e tímido que pudesse ser, Íctis possuía a alma de um Hércules disposto a limar os Estábulos de Augias, mesmo que isso lhe custasse a vida. A ira virtuosa era uma arma terrível, mais forte que o aço de Damasco; aquele que a usava precisava tomar cuidado para que não virasse contra si próprio e o destruísse Péricles decidiu que, em algum momento durante as festividades do casamento, iria conversar discretamente com Íctis e recomendar-lhe... o quê? Que se preocupasse mais com a própria sobrevivência? Era essa a caverna sombria em que os trêmulos covardes morriam da própria inércia. Se os homens tinham algum motivo por que viverem, era pela verdade, honra e justiça. Por qualquer coisa a menos, por qualquer concessão, um homem não passava de uma besta voraz, exclusivamente preocupado com seus apetites e uma deplorável segurança.
Péricles pensou no pai, Xantipo, e o coração se lhe confrangeu. O que o pai teria dito a Íctis que não fosse uma mentira apaziguadora?
Acompanhado pelo padrinho e outros amigos, Péricles seguiu para a casa de Dédalo, onde seriam realizadas as cerimônias do casamento. Estava tão absorvido com seu sonho de uma mulher mítica e deslumbrante e com o problema de Íctis que o pensamento de sua própria situação fora relegado a um segundo plano. Percebendo a abstração dele, os amigos mantinham um silêncio respeitoso.
A casa de Dédalo já fervilhava de alegres convidados, enfeitada com folhas de louro e ramos de oliveira, as flores um tanto murchas definhando no ar frio. Muitos membros da Eclésía já lá se encontravam, exibindo os afáveis e sorridentes rostos de políticos, a todos cumprimentando, como se fossem os homenageados. Finalmente foi dado um sinal e todos se encaminharam para o salão de banquete, onde as mesas estavam postas para os homens, inclusive o noivo e seus acompanhantes, com outras mesas atrás para as mulheres. Dédalo, apesar de muito rico, era frugal e parcimonioso; assim, as toalhas que cobriam as mesas eram de lindo cru, as colheres e facas revestidas com uma tênue camada de prata. Ali não havia tapeçarias, não havia murais preciosos, apenas umas poucas estatuetas dos deuses domésticos, em pedestais de pedra. O chão de pedra estava frio. Não havia cortinas de seda nas janelas, onde pendiam apenas rudes telas de lã. Não se viam braseiros espalhados para aquecer o ar, a não ser o que estava no centro do salão de banquete, um tanto parco, O arconte se gabava de sua austeridade. Péricles concluiu que ele era mais mesquinho do que austero. Os vasos nos cantos do salão estavam cheios pela metade de ramos caídos, sem quaisquer flores.
Péricles avistou a noiva a distância, numa túnica recatada de linho azul, com uma toga por cima, de um azul mais escuro. Usava um véu e tinha uma coroa de flores sobre a cabeça visivelmente imensa e redonda, que parecia assentar diretamente sobre os ombros, sem um pescoço a sustentá-la. As amigas sentavam-se à sua volta, falando animadamente, mas ela permanecia apaticamente silenciosa, como sempre, exceto nas raras ocasiões em que sua voz fina e estridente, em tom de lamento, se sobrepunha às vozes das outras mulheres, para se queixar disto ou daquilo. Como era a pessoa mais importante entre as mulheres naquele dia, algumas destas davam atenção a suas queixas, apesar de fúteis e irrelevantes, sem expressarem uma insatisfação real contra qualquer coisa. A mãe, tão robusta e informe quanto a filha, a mesma cabeça imensa e arredondada, as mesmas feições de extrema estupidez, estava sentada ao seu lado, em taciturno silêncio. Semeie estava bastante satisfeita com o casamento da filha com o belo e distinto Péricles. Mas, a julgar por sua expressão soturna e cautelosa, a impressão era de indiferença ou mesmo aversão. Os cabelos grisalhos eram escorridos por natureza, embora estivessem meticulosamente enrolados e presos em fitas vermelhas para as cerimônias nupciais. Os trajes eram pardos, não havia joias a adorná-la. Como a filha, Semeie exibia um nariz que mais parecia um focinho, as narinas grandes e grossas, a testa curta e amarelada, as faces ainda mais pálidas, a boca fina bruscamente virando para baixo, os olhos pretos, pequenos e fundos, a se deslocarem constantemente numa desconfiança de tudo e de todos, O queixo mostrava-se intumescido pela gordura.
Agariste olhou para Semeie e Dejanira e suspirou. Olhou para o filho no outro lado do salão e sentiu um remorso profundo. E pediu a sua protetora, Atena, que Péricles gerasse filhos senão lindos, pelo menos com um pouco da sua inteligência.
Péricles estava sentado entre os homens, à direita de Dédalo, dominado por uma sombria tristeza. Olhava para a noiva velada e para a mãe dela, ambas incrivelmente parecidas, e estremecia interiormente. Geralmente Péricles bebia com cuidado e moderação, mas agora empenhava-se em ficar embriagado. O vinho era execrável, embora forte. Felizmente Dédalo se lembrara de servir uísque sírio e Péricles, com um tremor de repulsa, tomou-o, comendo depois apressadamente um pedaço de pão preto. Acostumara-se à comida militar durante as campanhas de que participara, caso contrário a refeição o teria deixado nauseado. Havia leitões preparados sem qualquer esmero e sem nenhum sabor, havia carne de caça, aves e peixes, sem qualquer molho, uma massa de favas e lentilhas sem inspiração nem sabor. Havia cebolas murchas, sofrivelmente cozinhadas, as azeitonas, tanto as verdes quanto as maduras, tinham o gosto excessivo da salmoura. Os queijos eram ressequidos, duros, com uma crosta exagerada. As massas, insípidas. As frutas, murchas e já começando a apodrecer. Os próprios camponeses comiam melhor. O banquete do casamento teria sido desprezado pelos escravos da casa de Xantipo. Péricles bebeu mais uísque. Finalmente sentiu-se envolvido por um torpor agradável, uma apatia como de sonho dominou-lhe o corpo. As vozes pareciam mais altas e incompreensíveis. As risadas forçadas dos homens tornaram-se joviais a seus ouvidos. Péricles pensou: nada dura para sempre. Podia esquecer o pesadelo do amanhã, a visita das harpias, a presença das Medusas.
Dédalo, que se orgulhava de seu apetite controlado, comeu moderadamente, observando atentamente quando os convidados se serviam de mais vinho, e punha-se a calcular o custo. Viu as duas garrafas de uísque se esvaziarem e franziu o rosto. Detestava a imoderação. Também detestava a frivolidade, mas Semeie insistira em música; por isso, um escravo tocava — sem que o espetáculo fosse completado por lindas dançarinas! — uma flauta e uma lira, alternadamente, com uma patética ausência de talento. Péricles, mergulhando cada vez mais na embriaguez, tinha a impressão de estar ouvindo os gemidos no Hades. Só que não mais se importava. O rosto bonito estava vermelho. O elmo se inclinara para cima de uma orelha. A vestimenta de seda do casamento estava manchada de vinho e gordura — logo ele que era tão meticuloso! Olhou para Anaxágoras, que estava comendo pouco, com sua delicada polidez e imperturbável cortesia. Péricles piscou-lhe um olho ostensivamente, o mesmo fazendo para Fídias. Ambos passaram a evitar-lhe o olhar. Íctis, que não se importava com iguarias e delícias culinárias, parecia prestes a se lançar numa polêmica. Péricles chutou-lhe a perna agilmente por baixo da mesa e o amigo fitou-o com uma expressão furiosa, confuso e aturdido. Mas algo nos olhos claros que nele se fixavam levou-o a manter o silêncio. Íctis odiava o arconte, que para ele personificava todos os crimes da Eclésia. Sua boca sensível tremeu visivelmente; contudo, obedeceu a Péricles, seu ídolo, aquele que a seus olhos representava todas as virtudes heróicas. As lamparinas pendentes espalhavam sua luz diretamente sobre a festa de casamento, sem acrescentarem qualquer fragrância. Um vento frio soprava pelo salão intermitentemente e o único braseiro no centro irradiava um calor insuficiente. Os poucos escravos corriam apressadamente de um lado para outro, suando profusamente, pressionados e subjugados pelo excesso de convidados para seus serviços.
Um jovem escravo caminhava apaticamente entre os convidados, carregando um cesto com bolos de gergelim e entoando as palavras tradicionais:
— Evitei o pior, encontrei o melhor.
Péricles sentiu um impulso quase incontrolável de desatar a rir. Olhou para a mesa a que estava sentada a noiva. Dejanira ainda usava o véu, mas rapidamente enchia a boca por baixo, vorazmente, como se estivesse faminta. A voz esganiçada chegava de vez em quando aos ouvidos de Péricles, que pensou: espero não sentir a tentação de estrangulá-la esta noite. Não seria uma grosseria da minha parte? Afinal, sou um gentil-homem. O uísque impregnou-lhe toda a mente, o que constituía uma solução misericordiosa. Sua única vontade agora era dormir. Havia um odor acre no ar que não lhe agradava. Não sabia que provinha do uísque em sua taça e nas roupas. Dédalo estava irritado. O genro certamente estava-se comportando de maneira muito estranha, O arconte não nutria ilusões — pois tinha olhos para ver — e sabia que a filha só era desejável por seu dinheiro e posição. Contudo, estava ressentido com aquela aberta manifestação de embriaguez de Péricles. Se ele continuasse a beber aquele uísque abominável, acabaria ficando inconsciente, o que seria um escândalo. Além do mais, era um uísque caro e estava sendo desperdiçado. Fez um gesto para que se afastasse o escravo que estava prestes a encher novamente a taça de Péricles. Mas este se apoderou da garrafa e despejou o conteúdo na taça, bebendo tudo de um só gole, como se fosse o vinho militar. Pôs-se a tremer em gargalhadas, o que alarmou seus amigos. As gargalhadas em público constituíam um comportamento estranho a Péricles, que invariavelmente se empenhava em manter o decoro e a distinção.
Houve em seguida a entrega dos presentes à noiva. Ela e a mãe a tudo examinaram ávida e habilmente calculando o preço de cada presente. Ao final, mostraram-se satisfeitas, fitando-se com um ar prazeroso. Os convidados não haviam esquecido que a noiva era filha de um arconte, um homem que poderia tornar-se um inimigo malévolo e perigoso. Fídias presenteara a noiva com uma estatueta de Hera, em bronze reluzente, os detalhes incrivelmente meticulosos, a tal ponto que os convidados não puderam conter exclamações de sincera admiração. A reação do arconte foi diferente. Aquilo nada representava. O valor não passava de algumas dracmas. O escultor era famoso; deveria no mínimo ter oferecido uma estatueta de marfim e ouro. Dédalo sentiu-se insultado. Olhou para Fídias com uma expressão furiosa, através das pálpebras meio cerradas. Fama! E dar um presente tão ordinário? Essa não! Ele, Dédalo, não iria esquecer tamanha ofensa.
Era agora chegado o momento da procissão que levaria a noiva à sua nova residência. A carruagem nupcial já estava preparada, dois cavalos brancos atrelados. Anaxágoras, como padrinho do noivo, era obrigado a guiá-la, pela tradição. Mas ele esquecera tal contingência e ficou bastante alarmado, até que Fídias também ofereceu seus serviços. Péricles jamais se lembrou depois como entrou na carruagem, cambaleando e rindo, para sentar-se ao lado da noiva ainda velada. Teve apenas a vaga impressão de que algo volumoso lhe servia de arrimo, algo contra o qual tombava, desamparado, enquanto a carruagem avançava pelas pedras irregulares do calçamento da cidade, balançando, aos solavancos. A noite ia avançada e as pedras brilhavam esbranquiçadas da geada; no céu, a lua cheia era uma bola incandescente e fria a desfilar por entre nuvens escuras. As pessoas corriam para as portas de suas casas, a fim de assistirem à passagem do cortejo nupcial, grande e ruidoso. Todos os convidados do casamento iam a pé, seguindo a carruagem e carregando tochas acesas; as flautas e liras mal podiam ser ouvidas sobre o rugido do hino nupcial. Meninos começaram a seguir o cortejo, pulando como faunos, enquanto os convidados lhe atiravam moedas e doces.
Agariste deixara antes a casa de Dédalo, retornando à sua própria casa, a fim de receber os noivos. Contemplou a perfeição de seu lar, comparando-o com o despojamento mesquinho da casa do irmão. Deu as ordens necessárias aos escravos, todos esplendidamente vestidos. E ficou esperando, pálida e distinta em sua vestimenta rosa, os alfinetes nos ombros e cabelos falseando à luz de fragrantes lamparinas, os cabelos dourados parecendo esculpidos em sua cabeça. Mostrava-se satisfeita com a decoração do átrio. A casa estava ornada com folhas de louro, ramos de oliveira, folhas de murta e as últimas flores da estação; havia muitos braseiros aquecendo todos os cômodos. Um odor de nardo impregnava toda a casa, como se fosse uma brisa fragrante.
Um escravo trouxe-lhe uma tocha e uma coroa de murta. A coroa foi cuidadosamente colocada em sua cabeça. Agariste suspirou, pensando em Xantipo, que estaria usando a coroa, enquanto ela ficaria empunhando a tocha. Ouviu o barulho do cortejo e calmamente se adiantou. O administrador do salão fez-lhe uma mesura e abriu as portas. O vento frio agitou os trajes de Agariste, fazendo-a estremecer. O cortejo já estava agora à porta, a carruagem na frente. Escravos se adiantaram rapidamente para ajudarem os noivos. Dejanira desceu, o véu flutuando ao vento. Os escravos tiveram alguma dificuldade com Péricles, sob os risos dos convidados. Foi preciso suspenderem-no para que deixasse a carruagem e depois ampararem-no para que se mantivesse ereto. Péricles começara a cantar uma música licenciosa das ruas da cidade, o que aumentou ainda mais a hilaridade dos convidados, muitos dos quais o acompanharam... para humilhação de Agariste. Esta não tinha certeza do sentido exato das palavras mais grosseiras, mas podia adivinhar as insinuações. Impassível, em silêncio, Dejanira avançou à esquerda do noivo, arrastando-se como uma camponesa. Dédalo ignorou o canto libidinoso, pois muitos dos que cantavam eram seus amigos. Mas Semeie resmungou sua irritação,
Ao entrar no átrio, Dejanira recebeu uma chuva de figos secos e amêndoas, como mandava a tradição. Os olhinhos pretos se deslocaram rapidamente de um lado para outro, por baixo do véu, contemplando a cena festiva, mas acima de tudo inspecionando o luxo da casa, que considerava exagerado. Agariste aparentemente era pródiga com dinheiro. Dejanira, criada numa casa frugal, onde cada dracma era contado duas vezes antes de ser relutantemente largado, estava ocupada a decidir mentalmente que, agora que era dona da casa do seu marido, tinha que ser firme na administração. Havia escravos demais, havia uma prodigalidade excessiva. As lindas tapeçarias seriam enroladas e cuidadosamente guardadas e só voltariam a ser exibidas nas festividades. Os murais seriam cobertos por panos, para preservar o lustro. Dejanira não admirava a tia, a quem considerava presunçosa e pouco feminina em seu saber. Agariste iria em breve saber quem mandava naquela casa. Enquanto assim pensava, Dejanira mastigava o bolo nupcial de gergelim e mel, as migalhas caindo-lhe pelo véu e sobre os imensos seios. O suco de marmelo que lhe haviam dado escorria-lhe pelo queixo.
Péricles estava com os olhos vidrados, o rosto muito vermelho. Os convidados amparavam-no para que não caísse, Era evidente que não estava era plena consciência. Foi levado para a câmara nupcial e posto na cama, onde ficou estatelado. A lamparina à beira da cama projetava um clarão dourado, iluminando a estatueta que Fídias lhe dera. A noiva entrou, ainda mastigando. A porta foi fechada atrás dela. Os dois ficaram a sós. No átrio, Dédalo entregou formalmente o dote de Dejanira ao representante do marido dela.
Dejanira levantou o véu e contemplou Péricles, o rosto grande agora corado, os olhos pretos brilhando. Tendo sido casada antes, sabia como lidar com um marido embriagado. Tirou lentamente a roupa de Péricles, deslocando-o vigorosamente de um lado para outro, até que ele ficou como uma estátua branca caída na cama. Dejanira parou por um momento, admirando-o. Estava sorrindo, os seios lhe arfavam. Amor querido, disse ela em sua mente, eu te adoro desde a primeira vez em que te vi, numa festa de família, quando eras apenas uma criança. Meu sonho de casamento contigo finalmente se converteu em realidade. Agora, me deitarei ao teu lado e te tomarei em meus braços, como há muitos anos venho ansiando.
Do outro lado da porta, um dos amigos do noivo estava formalmente de guarda. Os convidados altearam as vozes num hino nupcial, com tanto entusiasmo que a casa ressoava. O propósito era afastar os maus espíritos que podiam estar rondando por ali para causar danos.
Dejanira, que não era uma noviça em tais cerimônias, despojou-se de suas roupas, ficando apenas com a camisola curta. Hesitou por um momento, acabou tirando-a também. Novamente ficou imóvel, em sua nudez volumosa. A luz da lamparina incidia-lhe sobre as intumescências e dobras das vastidões de gordura. Os seios mais do que amplos inchavam e se enrijeciam; o corpo informe tremia, as coxas obesas, cobertas de veias arroxeadas, balançavam. Ela tirou os grampos dos cabelos e a massa preta e opaca caiu-lhe sobre os ombros, seios e costas. Apagou a lamparina e estendeu-se na cama, ao lado do marido adormecido, que roncava.
Pôs a mão no peito dele, comprimiu a cabeça contra seu ombro. Começou a ofegar profundamente. As mãos se deslocavam pelo corpo do marido. Dejanira já não ouvia o canto além da porta. Sua respiração queimava a carne de Péricles.
Ele estava sonhando novamente com a estatueta, que rapidamente assumia a forma flexível de uma mulher. Podia contemplar o rosto dela, como se iluminado pela lua. Estava deitada ao seu lado e murmurava palavras afetuosas em seu ouvido; podia sentir a respiração dela em sua boca, no rosto, na barriga.
— Amor, amor... — sussurrava ela. — Meu adorado. Estou ao teu lado. E te pertenço.
A mão dela era quente, cada vez mais quente, e vagueava por seu corpo deliciosamente. Péricles começou a tremer de prazer.
— Coração do meu coração! — gritou Péricles.
E Dejanira fechou os olhos, num espasmo de alegria. Péricles rolou para cima dela, gemendo de êxtase, apertando-a firmemente. Viu os lábios vermelhos e os olhos escuros de seu amor, sorrindo-lhe, num luar etéreo que existia apenas em sua mente inebriada. Uma fragrância de lírios flutuou-lhe até as narinas.
— Ah, doçura da minha alma... — murmurou Péricles.
E assim o casamento foi consumado. Mas Dejanira não sabia que fora consumado com uma mulher de sonho, na escuridão da câmara nupcial.

Capítulo 9
Um dia, alguns anos depois, Péricles estava em seu gabinete oficial na Ágora, meditando sobre a inacreditável confusão, a duplicação até o último grau, o caos na administração do governo, a multiplicação irracional de burocratas, os numerosos arcontes, o Areópago, as Assembleias, os incontáveis magistrados de vários títulos, o Conselho dos Quinhentos, os Onze, a Helieia, o Dicastério, os muitos tribunais e cortes, com júris de quinhentos a dois mil homens, todos convencidos de que suas opiniões e julgamentos eram a verdade, a única verdade, assim o proclamando em altos brados durante as sessões, sem falar na Boulé, o senado, que a democracia trouxera para Atenas, "em nome do povo".
O próprio Péricles se opusera ao Areópago, que tentara restaurar sua autoridade, para designar apenas aristocratas refinados para os cargos de poder no governo; havia ocasiões em que refletia, com pesar, que talvez se houvesse enganado ao assumir tal posição. Talvez qualquer outra coisa fosse melhor que o tumulto e o turbilhão em todos os setores do governo, com a dissonância das vozes desprezíveis das turbas e massas e seus sicofantas — juízes de baixa extração que se ressentiam dos homens superiores de inteligência, educação e família — além da corrupção geral da democracia.
O governo dos asnos! dizia Péricles para si mesmo, melancolicamente. Assim era a democracia que então governava Atenas. (Mas ele desconfiava de seus companheiros da aristocracia apenas um pouco menos, pois esse caminho levava à tirania de uns poucos, em contraste com a tirania das turbas.)
Contrastava tudo isso com a República simples que Sólon imaginara, em que uma Constituição estável, a que todos os homens deviam obedecer, orientava o governo e os magistrados. Mas, infelizmente, a natureza veemente e volúvel dos atenienses em geral tornara isso impossível; estavam sempre clamando por "novas leis para novos tempos" e o governo invariavelmente os atendia, em nome dos votos. Os homens de bem, os homens justos, estavam sendo postos no ostracismo, especialmente quando tentavam restaurar a ordem e a racionalidade de uma república ou protestavam contra a tirania do governo eleito pelas turbas. Pelo menos metade do eleitorado — "democracia!" — era de analfabetos. Sólon dissera que somente os homens de alguma instrução, bom senso e integridade deveriam votar, mas estadistas subsequentes haviam classificado tal posição de "discriminação contra os cidadãos livres de Atenas". É que sabiam, em seus corações ardilosos, pervertidos e exigentes, que se fosse permitido o voto apenas aos cidadãos indicados por Sólon, eles próprios jamais conseguiriam galgar qualquer cargo público.
As repúblicas eram estáveis, abertas e organizadas, cautelosamente prudentes em relação a propostas insensatas e irresponsáveis de novas leis. Eram tão humanamente imparciais quanto possível, num mundo naturalmente desigual. As repúblicas lidavam com a probidade em cada homem, sob uma Constituição; o favoritismo não tinha lugar nas repúblicas. As repúblicas possuíam a natureza masculina da força, firmeza, justiça, razão e aversão ao emocionalismo, com um horror à anarquia desvairada e ao tumulto do governo das turbas. Pois as turbas estavam acima de tudo interessadas na satisfação de apetites mesquinhos e prazeres inferiores. As repúblicas eram realmente equitativas na aplicação das leis; não faziam distinção entre malfeitores, quer nascessem na prosperidade quer se tratasse de camponeses. As repúblicas eram comedidas e cautelosas quando tratavam com outras nações, sempre conscientes de que os homens são homens e por isso não se pode confiar quando suas emoções estão em jogo, ao invés da lei e da ordem. As repúblicas não eram imperialistas, pois que preocupadas exclusivamente com o bem-estar do seu próprio povo; era por isso que as repúblicas só iam à guerra depois de profunda relutância, quando a segurança nacional estava em perigo. As repúblicas possuíam o amor masculino pelo conservantismo em todas as coisas e uma desconfiança constante das inovações perigosas. A lei, para as repúblicas, era sagrada, a essência da sabedoria e experiência da humanidade. Quando construíam, asseguravam que a construção estivesse assentada em pedra. Acima de tudo, as repúblicas eram amadurecidas.
Mas as democracias eram femininas, na medida em que se deixavam impelir apenas pelas emoções intensas e passageiras, pela preocupação com o imediato, indevidamente ambiciosas por serem vaidosas, possuíam muitas línguas e se mostravam caóticas, apaixonadas e tortuosas por questões insignificantes, dominadas pelo estômago e não pela mente e razão, discordantes e arrogantes, presunçosas e hostis, abaladas por rumores, negligentes e exigentes, imaturas e muitas vezes infantis, sem se preocuparem com a integridade, apenas com as satisfações imediatas, ansiosas por prazeres, risos e emoções fáceis. Não tinham qualquer preocupação com o futuro e o conceito de lei e ordem deixava-as impacientes, a imposição sempre levando a rebeliões revolucionárias. Podia-se confiar nas repúblicas tanto quanto se confiava em quaisquer instituições humanas. Mas as democracias eram instáveis e perigosas, não apenas para si próprias, mas para todo o mundo, pois nelas vicejavam o terrorismo e as sementes de sua morte violenta. As democracias, governadas apenas pelas paixões e arbítrios, amavam as guerras. Em suma, as repúblicas eram governadas pela lei; as democracias, pela ausência da lei.
Péricles começou a sonhar com a república de Sólon e com a sua posição e poder na instituição.
Quando Efialtes foi assassinado, Péricles recebera ou assumira a posição de liderança no governo. Sua eloquência era hipnótica. Merecia o crédito pela expansão do Estado e a continuação da política de Címon. Enviara duzentas embarcações para apoiar os rebeldes egípcios contra os persas e despachara destacamentos contra a Fenícia e Chipre. Fora mais ou menos forçado a realizar as ambições da democracia de Atenas e aquiescera com guerras contra a própria Grécia. (Tinha a ideia de consolidar as várias facções e rebeldes numa nação coesa.) Aliara Atenas aos megáricos, que haviam sido ameaçados por Corinto, adquirindo assim a hostilidade de Corinto. Sabia que inevitavelmente haveria mais guerra e derramamento de sangue, antes que fosse possível realizar a sua esperança de uma nação unida. Talvez, numa nação assim, a paz e o comércio pudessem florescer e Atenas se transformasse no sol radiante do mundo ocidental. Não se permitiu desanimar pelo ceticismo de Anaxágoras e pela timidez de Zênon, seus amigos queridos. Havia ocasiões em que um homem vigoroso precisava agir sozinho.
— Não criei tais situações — argumentava Péricles com Anaxágoras. — Mas tenho que enfrentá-las. Somente quando as paixões estiverem subordinadas à razão é que uma nação pode esperar a liberdade, a ascensão das artes e ciências, um governo justo.
— O que significa que tenciona enfrentar a força com a força? — foi a indagação de Anaxágoras.
— Quando se está enfrentando um tigre, não se pode entoar ternas canções. Não sou Orfeu. Devo encarar as coisas como de fato são e não como uma quimera de ilusão. A esperança não passa de uma mentira quando não se enfrenta a realidade. Não foi você mesmo quem disse isso?
— Também falei que a maior arte do homem é a meditação.
— Um homem morto não pode meditar. Portanto, tenciono permanecer vivo. Mais tarde meditarei... depois que acabar a confusão.
Péricles sabia que sua liderança em Atenas era precária. Estava lidando com uma democracia instável e não com a república de Sólon. Lidava com magistrados e burocratas, com imprevisíveis arcontes e com todos os outros lacaios de um governo corrupto dominado pelas turbas. Podia ser assassinado, como acontecera com Efialtes. Mas há muito que já chegara à conclusão de que a prudência excessiva resultaria na inércia. Não possuía o fatalismo ou a capacidade de renúncia dos filósofos. Era impulsionado por um sonho vital, como desde a infância acontecia. Amava sua terra. Iria salvá-la do domínio dos inferiores, da desordem de rebeldes insensatos. Frequentemente contemplava a acrópole e ali imaginava uma coroa de luz, um diadema fulgurante, a ascensão do mundo livre ocidental em oposição ao despotismo consumado do oriente. Atena era a sua protetora e Cronos, a sua esperança.
Conversava a respeito com Helena, sua amante fortuita. Ela ficava escutando, não apenas com simpatia, mas também com compreensão.
— Precisa de uma hetera de muita inteligência e grandeza de coração — disse-lhe Helena.
Péricles quis abraçá-la, rindo, mas Helena se desvencilhou, acrescentando:
— Não pertenço a nenhum homem e não sou sua hetera meu amado. Precisa de uma mulher que se dedique exclusivamente a você e não a um amor morto.
Helena ficou em silêncio por um momento, pensativa, até que sua expressão voltou a ser jovial, e comentou, brejeiramente:
— Acho que conheço a mulher de que está precisando. É jovem, protegida de Targélia de Mileto, linda, perfeita. Abriu aqui em Atenas uma escola para moças de boa família, riqueza e posição. Certamente já deve ter ouvido falar a seu respeito.
— Está-se referindo a Aspásia? — A expressão de Péricles era de aversão. — Ela é notória. Moldou sua escola no exemplo da escola de Safo de Lesbos. O que posso querer com uma lésbica?
— Safo tem sido injustamente caluniada — respondeu Helena, em tom de censura. — Mas, por que é mais repreensível uma mulher amar outra mulher do que um homem a outro homem?
— Você não poderia compreender — respondeu Péricles, sorrindo.
Helena bateu-lhe de leve no ombro nu.
— É essa a tola resposta de todos os homens a uma pergunta incômoda de uma mulher. Nada responde, a não ser que se recusam a nos explicar qualquer coisa. Vamos voltar a Aspásia. Ela foi outrora a amante e companheira de um sátrapa persa. Deixou-o há dois anos, carregada de ouro e joias. A opressão das mulheres na Pérsia é ainda pior do que na Grécia e ela luta pela emancipação de todas as mulheres, assim como eu. Se começar a rir, meu amor, irei expulsá-lo desta casa. Quero toda a sua atenção, por favor.
— Já ouvi falar de Aspásia e Targélia de Mileto, já me contaram que desde a juventude o sonho de Aspásia é o de fazer com que as mentes das mulheres sejam respeitadas, tanto quanto seus corpos amados e desejados, e que se reconheça que elas têm uma missão neste mundo, tanto quanto o dever de gerar filhos a seus maridos. As mulheres possuem talentos exclusivos e quem pode saber quantos gênios do sexo feminino não morreram durante o parto? Temos almas, além dos órgãos genitais.
Péricles assim respondeu:
— Eis algo que jamais neguei. Tenho uma mãe inteligente, com muitos atributos, embora se esteja tornando irascível com a idade. O que não é de admirar. Dejanira é a única autoridade na casa, onde a arrogância mais velha enfrenta a arrogância mais jovem. E é terrível... e perigoso... enfrentar a ira de Dejanira. Assim, minha pobre mãe foi silenciada e tenho que consolá-la frequentemente, recordando que foi ela e não eu quem desejou um casamento tão desastroso.
— Não me desvie do assunto de Aspásia, Péricles. Ela não é lésbica. Dizem que é muito exigente na escolha de seus amantes. Falam também que já teve muitos, mas não acredito, por ser Aspásia tão exigente e tão preocupada com a sua escola. Muitos de seus amigos mais esclarecidos têm entregue as filhas aos cuidados de Aspásia. Ela não apenas lhes ensina as artes da canção, música e dança, mas também proporciona uma excelente educação além disso, igual à dos homens. Zênon de Eleia dá aulas na escola intermitentemente, ensinando filosofia e dialética.
— Com que finalidade? — indagou Péricles, com uma seriedade que agradou a Helena. — O que pode fazer neste mundo uma mulher inteligente e instruída?
— Sou médica — recordou Helena, passando os dedos pelos cabelos que lhe caíam sobre os ombros e seios nus. — É verdade que sou considerada indigna, o que não reputo muito importante. Muitos dos meus pacientes são homens de posição e posses. Tenho alguma reputação, uma escola de medicina e um hospital. E sou também muito rica. Não sou a única entre minhas irmãs, Muitas heteras casaram com homens nobres e famosos, homens de boa família, que procuram a inteligência e o talento de uma mulher, Não me havia prometido, Péricles, que ajudaria as mulheres a alcançarem uma posição na vida, a fim de que possam ser encaradas como seres humanos e com todo o respeito?
— Jurei que o faria. Se tivesse filhas, ao invés de dois filhos, não poderia estar mais determinado.
— Ótimo! — Helena deu-lhe um beijo de recompensa. — Vou oferecer um jantar a Aspásia e você será um dos convidados.
Péricles tornou-se cauteloso. Tinha a convicção de que, à exceção de Helena e umas poucas outras heteras, as mulheres de inteligência não se importavam com a beleza pessoal e não a cultivavam, considerando-a uma futilidade. Sempre tomara cuidado para não deixar que Helena percebesse tal opinião, que ele compartilhava com muitos outros homens. A mãe também fora uma exceção. Péricles indagou:
— Qual é a aparência dela?
Helena fitou-o atentamente com os imensos olhos azuis.
— Isso tem alguma importância?
— Não gosto de harpias. Ninguém, homem ou mulher, deve negligenciar uma aparência agradável.
Helena suspirou.
— Aspásia é considerada a mulher mais bonita de Atenas, embora já não seja jovem, pois está com vinte e dois anos. Nunca ouviu falar de sua beleza?
— Disseram-me que é uma górgona.
— Certamente foram homens que nunca a viram. Para um homem poderoso, que tudo ouve e vê, você tem sido bastante ignorante. Darei esse jantar em minha casa e você terá de vir. A voz de Aspásia é tão maravilhosa quanto a sua aparência, embora não seja suave, nem maviosa. Parece o canto que se ouve numa concha e os homens simplesmente ficam fascinados. Ela é também muito divertida.
— Ou seja, um paradigma. Seja como for, ainda não me falou da aparência de Aspásia, a não ser que se trata de uma mulher bonita. Já constatei que quando uma mulher diz que outra do seu círculo é encantadora, isso significa invariavelmente que não é uma rival e causa repulsa aos homens.
— Está falando de mulheres mesquinhas e banais, que possuem mentes como as dos porcos — disse Helena. — Quando eu digo que uma mulher é bonita, é porque se trata realmente de uma mulher bonita. Aspásia é tão alta quanto eu, embora mais esguia, com um corpo que deixaria Afrodite invejosa. Os cabelos são claros, de uma cor que parece ter sido fabricada tanto com o luar quanto com a luz do sol. Por que de repente me olha tão atentamente, Péricles?
— Estou apenas escutando.
— Aspásia tem o rosto oval, uma pele leitosa e rosada, a boca que parece uma romã. Não há um só detalhe dela que não seja perfeito. Fídias já a moldou em bronze, com base na recordação de uma pequena estatueta que criou há muito tempo. Por que treme tanto, meu amor?
— Por acaso estremecí?
Péricles empalidecera consideravelmente. Preocupada, Helena apalpou-lhe a testa, para verificar se estava com febre, sentiu-lhe o pulso, e ficou alarmada ao descobrir que este disparara. Inclinou-se para a pequena mesa ao lado da cama e despejou mais vinho num copo, levando-o aos lábios de Péricles.
— Não estou doente — disse Péricles, tomando o vinho. Sua expressão era distante, mas logo um interesse o dominou. — Preciso conhecer essa famosa Aspásia...
Helena sorriu de alívio. A descrição que fizera da amiga mais jovem deixara Péricles impressionado, o que lhe agradava intensamente, tanto por ele quanto por Aspásia. Afinal, Helena possuía um coração terno e generoso. Esqueceu que era uma mulher livre, uma médica de renome, pondo-se a conspirar. Quanto mais pensava na união de Aspásia e Péricles, mais entusiasmada e determinada se tornava a promover tal união.
— Direi a Aspásia que vai conhecer o homem mais poderoso de Atenas — comentou ela, rindo jovialmente.
— A não ser pelos malditos arcontes e todo o resto do governo.
— Amor querido, está esquecendo que Péricles também integra o governo.
A conversa com Helena ocorrera na noite anterior e Péricles quase a esquecera, pois sua mente estava por demais angustiada, sentado no calor de seu gabinete na Agora, pensando em Atenas e seu governo. Por causa da disciplina de sua mente, Péricles podia concentrar os pensamentos em qualquer assunto, com exclusão de todos os demais. Nada o desviava de uma reflexão em que estava empenhado. Tirara a toga do cargo e vestia apenas uma curta túnica amarela de linho, sem mangas. Cruzara os braços brancos e musculosos sobre o peito e pusera os pés metidos em sandálias sobre a mesa. Como sempre, estava de elmo, porque ainda era muito sensível em relação à sua testa alta e crânio comprido. O rosto bonito tinha uma expressão pensativa. Livros, pergaminhos, tabuinhas e penas estavam espalhados sobre a mesa, à espera de sua atenção. Por que os burocratas, pensou ele com repulsa, eram sempre tão preocupados e zelosos com penas e pergaminhos, como se tivesse alguma importância o que fervilhava em suas mentes mesquinhas? Não havia ninguém tão ocupado quanto um homem sem posição nem importância. Era patética a convicção deles de que seus registros ou sugestões conquistariam a imortalidade, especialmente em se tratando de leis opressivas.
Péricles podia ouvir o rumor do movimento intenso nas ruas que cercavam a Agora, o clamor de milhares de vozes impacientes. Os plebeus atenienses eram ruidosos e insistentes, ao contrário dos aristocratas. O que não era de surpreender; era igual em todos os países a turba que se reunia nos mercados. Em outros países, no entanto, essa turba não votava, exceto na cidade-estado em ascensão de Roma, na Itália. Péricles prometeu a si mesmo que um dia visitaria Roma, que se dizia ter sido fundada com base num fratricídio, mas que também era considerada uma cidade de moral e virtudes inabaláveis, de uma atividade intensa e diligente, cujo grande herói era Cincinato, o pai de seu país. Dizia-se também que Roma possuía um governo representativo e que se assemelhava a uma república, pelo menos em embrião. Péricles já recebera uma solicitação do Senado Romano para que permitisse o envio de uma delegação, a fim de estudar as leis de Sólon e sua legislação.
Tenho a impressão de que vão ficar desapontados com o governo que possuímos, pensou Péricles, mudando de posição na cadeira, irrequieto. Mas não há mal algum em inspirar uma nação nova com o sonho de Sólon, embora nós mesmos não o tenhamos realizado. Os raios do sol entraram pela janela alta e estreita, trazendo uma nuvem de poeira dourada e o cheiro habitual de uma cidade no calor, composto dos odores de pedras quentes e latrinas, fezes de animais, ar fétido, e muitos outros que não se podiam identificar. Um enxame de moscas entrou pelas janelas e Péricles tratou de afugentá-las, irritado. Muitas pousaram na mesa e especialmente na borda da taça de vinho com uma borra no fundo. Algumas pousaram nas coxas brancas e musculosas de Péricles. Ele pegou um pergaminho enrolado e matou-as. Essa é a única utilidade, disse a si mesmo, para as mensagens de um burocrata. Afastou de sua carne as moscas mortas e jogou o pergaminho para longe.
Um guarda de cimo emplumado e couraça de couro bateu na porta de bronze e depois abriu-a, cautelosamente. Quase bateu em retirada ao perceber a expressão furiosa de Péricles; mas prontamente recuperou a coragem e disse:
— Senhor, o nobre Arconte Dédalo está aqui para consultá-lo sobre um assunto de grande importância.
Péricles murmurou algumas palavras particularmente obscenas e incisivas a respeito do sogro, depois levantou e sacudiu a cabeça para o guarda. Enfiou os polegares nos lados do cinturão de prata e advertiu-se a controlar os pensamentos irritados, Quando Dédalo entrou, correndo os olhos ao redor furtivamente como era seu hábito, Péricles cumprimentou-o cordialmente e conduziu-o a uma cadeira. Dédalo estava mais ressequido e encarquilhado do que nunca, ainda mais magro, o rosto mais parecendo uma caveira, os trajes marrons cobertos de poeira.
Ao que Péricles podia recordar, Dédalo jamais tivera uma expressão amável; e a idade estava fazendo com que o rosto esquelético se tornasse mais desagradável a cada dia. Estava amargurado por não ter conquistado a posição de Rei-Arconte com poderes extraordinários, pois era um homem ambicioso... ambicioso pela glória pessoal e não por sua terra. Péricles não podia perdoá-lo por isso, assim como não podia perdoá-lo por muitas outras coisas, inclusive ter gerado Dejanira.
Dédalo contemplou a imponência do vulto e a dignidade do semblante que o genro oferecia. Secretamente, tanto respeitava como se ressentia de Péricles, que sempre lhe parecera totalmente incompreensível. Péricles também o intrigava, pois embora se mostrasse invariavelmente sereno, calmo e firme, evitava qualquer conversa mais séria com Dédalo. Por isso, o arconte chegara à conclusão de que Péricles, apesar de toda a sua fama de soldado e estadista, era inatamente frívolo. Péricles geralmente assumia uma posição de indiferença e frivolidade em seus contatos com Dédalo, pois não sentia qualquer estima pelo pai de Dejanira e o considerava indigno de merecer o tempo de um homem inteligente. Dédalo não desconhecia o poder de Péricles, mas sabia também que havia determinados poderes de que o genro não se poderia apropriar; graças aos deuses; eram os poderes reservados aos arcontes. Estavam a salvo de Péricles, pois o povo não homenageava e votava nos arcontes?
Não obstante, Dédalo sentia-se orgulhoso por Péricles ter-se casado com sua filha e costumava gabar-se dele para os outros arcontes quando estavam a sós. Contudo, incessantemente se queixava dele a Dejanira, que concordava plenamente em que Péricles era um homem difícil, se bem que um marido generoso e pai indulgente, mas carecendo do respeito devido a um arconte.
— Em que posso servi-lo, Dédalo? — indagou Péricles. — Vinho frio, pão, queijo, frutas? Tenho ameixas e uvas frescas ali naquele armário.
Dédalo gesticulou em recusa.
— Não tenho tempo para frivolidades, Péricles. Vim procurá-lo por causa de um problema de extrema importância.
Péricles duvidava de tal possibilidade, mas inclinou a cabeça com o elmo gravemente e sentou-se a um canto da mesa, à espera. Dédalo desejou que ele se sentasse em uma cadeira, pois a presença de Péricles era por demais opressiva, quando estava muito perto. Essa qualidade dele intimidava homens maiores que Dédalo. O arconte ficou subitamente furioso por sentir essa força em Péricles, essa iminência que tantas vezes parecia tão silenciosamente ameaçadora. Mas Dédalo conteve a sua fúria, embora sentisse as faces arderem.
— Já ouviu falar de Íctís? — indagou o arconte, em sua voz áspera e desagradável.
Péricles arregalou os olhos claros, que logo voltaram a ser como os olhos de uma estátua, cegos e ocultos. Geralmente atemorizavam homens mais sutis, inteligentes e poderosos do que Dédalo, mas este julgava-os simplesmente desagradáveis. Era como se Péricles se tivesse afastado para algum lugar distante, o que deixou Dédalo irritado.
Num tom suavemente perigoso, Péricles respondeu:
— Sabe perfeitamente que não apenas já ouví falar de Íctís, Dédalo, como também que ele é um dos meus mais queridos amigos e salvou-me a vida quando éramos jovens.
Péricles fez uma pausa, sentindo-se subitamente alarmado; conseguiu ocultar esse alarme do sogro abominável, mas ficou bastante tenso.
— Sabe também, Dédalo, que Íctís é de uma família das mais distintas, quase tão eminente quanto a minha.
E certamente muito mais honrada do que a sua, acrescentou Péricles mentalmente, para si mesmo. Dédalo, sempre cauteloso, percebeu a advertência na voz de Péricles. Mas era um homem rancoroso, e a maldade pura fê-lo sentir-se menos temeroso de Péricles naquele dia do que normalmente acontecia. Lembrou a si mesmo que Péricles não era totalmente invulnerável. Ainda havia coisas que ele não podia fazer, apesar da posição que ocupava.
— Sei de tudo sobre a família de Íctis, Péricles. O pai dele foi banido por opiniões heréticas e morreu no exílio. Apesar de sua opinião generosa sobre Íctis, Péricles, a verdade é que a família dele não é tão notável assim. Nem é rica.
Péricles continuava com os olhos de estátua fixos em Dédalo e não respondeu. Ficou simplesmente esperando.
— Íctis desperdiçou seu patrimônio comprando e libertando escravos sem valor, assim como em suas atividades, ao mesmo tempo ímpias e subversivas, do governo.
Dédalo observava Péricles atentamente, mas o rosto do genro continuou impassível.
— Conheço a dedicação de Íctis à libertação de escravos, Dédalo. E acho que é uma atitude admirável. Não era justamente isso que Sólon também queria? Não é contra a lei conceder a liberdade a infelizes que estão sofrendo sob os açoites e torturas de amos cruéis. A misericórdia não pode ser desdenhada. Falou também nas "atividades" do meu amigo. Quais são?
Dédalo levantou a mão, que parecia descarnada.
— Ele não é seu amigo, Péricles? Certamente já deve saber que Íctis é o autor de escritos sediciosos denunciando e acusando o governo de todas as infâmias e opressão, de corrupção e violação das leis de Sólon, de infidelidade para com o povo de Atenas, e clamando por sua derrubada.
Dédalo continuava a observar o genro atentamente, mas Péricles ainda parecia indiferente. Em seu tom áspero, Dédalo acrescentou:
— Ele é seu amigo. Essas atividades não o ofendem?
— Não acredito que Íctis tenha feito tais coisas. — O comentário de Péricles era aparentemente desinteressado e divertido. — Eu certamente saberia se Íctis tivesse feito aquilo de que acabou de acusá-lo. Ele foi convidado a meu casamento. Estudamos juntos. Posso considerá-lo mais do que um irmão. Não acredito nessas tolas acusações contra Íctis. O mundo está repleto de homens malévolos. Íctis provavelmente ofendeu alguém, sem a menor intenção, pois é tímido e retraído, dá a impressão de fraqueza. Portanto, está sujeito a hostilidade, especialmente a hostilidade dos homens brutais.
Dédalo acabou perdendo o controle.
— Se ele é realmente seu amigo, então você também está em perigo, Péricles! Só tenho um conselho para lhe dar, já que é o marido de minha filha e um homem ambicioso: negue que o conheça muito bem. Declare, se lhe perguntarem, que Íctis não passa de um mero conhecido de infância. Se for pressionado e lhe recordarem que ele é visto frequentemente em sua companhia, trate de denunciá-lo, simule horror quando lhe falarem em seus escritos.
O coração de Péricles batia descompassadamente dentro do peito, mas ele manteve exteriormente a atitude de serenidade. Sabia que Dédalo o odiava, apesar de todo o orgulho que podia sentir dele. Sabia também que a posição de Dédalo como arconte seria investigada; afinal, ele não era o pai da esposa de Péricles? Assim, Dédalo era forçado a proteger tanto a sua posição como a de Péricles, por mais que sentisse ódio e ressentimento contra o genro.
Em tom desinteressado, Péricles indagou:
— Já foram formuladas acusações públicas contra Íctis?
— Já foram recebidos sete mil óstracos — respondeu Dédalo, de novo observando Péricles atentamente.
Mas a reação de Péricles foi rir jovialmente, dando uma palmada num dos joelhos.
— Duvido muito de que Íctis conheça sequer sete homens em Atenas! Que absurdo é esse? — Mas logo sua expressão voltou a ser grave e ele acrescentou: — Os que apresentaram esses óstracos são mentirosos e caluniadores, deviam ser processados por difamarem o caráter gentil de um homem inofensivo e misericordioso.
Péricles levantou-se, começou a andar de um lado para outro da sala, a expressão indignada, respirando ruidosamente, fazendo questão de que Dédalo percebesse como se sentia afrontado,
— Foram camponeses analfabetos, que devem ter amigos que assinaram os óstracos por eles! Não se sabe quantos homens já foram condenados ao ostracismo ou mesmo executados pela Assembleia em consequência do recebimento de óstracos forjados, produzidos aos milhares sob as ordens de um homem rancoroso que desejava vingar-se de outro ou era movido pela maldade em seu coração. Não se sabe quantos cidadãos já foram subornados e pressionados a enviarem seus óstracos, quando um criminoso deseja a fortuna ou a posição do acusado, quando simplesmente o inveja por um que outro motivo.
Dédalo gritou:
— Está acusando a Assembleia de corrupção, de ser o instrumento de homens malévolos e insidiosos?
Posso acusar de coisas muito piores, pensou Péricles, cerrando os dentes. Ele parou de andar, de costas para Dédalo, pensou por um momento na situação. Era de fato terrível. Mas precisava salvar Íctis a qualquer custo.
Percebendo que Péricles não iria responder à sua pergunta, Dédalo acrescentou:
— Não sabia ainda que descobrimos, através de fontes confidenciais e indiscutíveis, que Íctis está sendo realmente condenado por seus escritos e que a Eclésia tem centenas deles em seu poder? E Íctis não negou que fosse o autor, quando interrogado.
Péricles ficou imóvel. Mas como Íctis pudera ter sido tão estúpido a ponto de não negar a autoria dos escritos incendiários? Ah, mas que homem de integridade destemida que vivia sob aquele exterior inofensivo, sob aquele comportamento retraído! Atenas seria libertada e salva se pudesse contar com dois mil homens como íctís!
— E isso está acontecendo além do recebimento dos óstraços — disse Dédalo, irritado com o silêncio e as costas voltadas de Péricles. — Não tem nada a dizer, marido de minha filha?
Péricles virou-se lentamente, encarando o sogro. Por um momento, Dédalo sentiu-se intimidado e assustado, embora as feições de Péricles continuassem serenas e os olhos claros permanecessem indiferentes, impassíveis. Falando bem devagar, a voz firme, Péricles declarou:
— De uma coisa pode estar certo, Dédalo. Vou defender Íctis do ostracismo e perante a Eclésia.
Dédalo começou a se levantar, os braços erguidos acima da cabeça, as feições distorcidas. Mas, antes que pudesse falar qualquer coisa, Péricles já havia deixado a sala.
Capítulo 10
Péricles amava seus filhos, Xantipo, de oito anos, e Paralo, dois anos mais novo. Milagrosamente, nenhum dos dois se parecia com a mãe, Dejanira, uma graça pela qual Péricles fizera muitas oblações aos deuses, quando haviam nascido. Xantipo parecia-se com o avô do mesmo nome e Paralo, embora tivesse os olhos pretos de Dejanira, possuía a aparência e estatura de Péricles. Xantipo tinha do avô o senso de humor aguçado e a malícia, assim como a inteligência ágil e o corpo esguio e elegante e já se tornara conhecido por seu espírito vivaz. Paralo era sisudo, o caráter um tanto inflexível, encarando a vida, já aos seis anos, como algo sério, e raramente ria ou brincava; era mais forte e mais alto que o irmão mais velho e tinha os movimentos mais ponderados. Paralo era superior no lançamento de disco, luta-livre e pugilismo. Xantipo era fluído como água, Paralo tenaz e de opiniões inabaláveis, sempre determinado.
Péricles tinha o hábito de encontrar-se com os filhos, antes de jantar sozinho, ao pôr-do-sol, para uma hora de conversa, brincadeiras e comentários sobre os preceptores de ambos. Às vezes, Xantipo, o mais velho, tinha permissão para jantar com o pai; mas Paralo era ainda muito novo e fazia sempre as refeições com a mãe, nos aposentos das mulheres. Ambos gostavam da mãe, Dejanira, embora Xantipo frequentemente a provocasse; Dejanira não tinha a menor vocação para o gracejo e limitava-se a fitá-lo com uma expressão irritada, franzindo o rosto, incapaz de compreender-lhe as facetas. Paralo ficava do lado da mãe, pois Xantipo muitas vezes zombava dele também, embora pudesse responder-lhe, no mesmo tom de zombaria. Entre os dois, Dejanira preferia Paralo, não apenas porque se parecia com Péricles, mas também porque aparentemente era o mais generoso e o que tinha uma sensibilidade mais terna.
Não tinham outros filhos, pois Péricles não voltara a chamar a esposa para sua cama desde o nascimento de Paralo. Ele receava que os deuses pudessem não se mostrar tão benevolentes com outros filhos, que poderiam nascer com a aparência e obtusidade sólida da mãe. Além do mais, Dejanira era-lhe cada vez mais repulsiva, mais insuportável às suas narinas. O que era pior, Dejanira adorava-o e sempre o fitava com olhos suplicantes; quanto mais execrável ela lhe parecia, mais compaixão Péricles sentia por ela. Por isso, tratava de evitá-la, embora reconhecendo que Dejanira era extremamente capaz na administração doméstica, aumentando a fortuna do marido através da frugalidade e de grande eficiência.
Péricles jamais interferia nas questões domésticas, limitando-se a não permitir que Dejanira transformasse sua casa numa réplica da casa do pai; exigira também que ela tratasse Agariste com deferência e lhe escutasse os conselhos em relação às refeições dele e aos preparativos para recepções a convidados. Dejanira, que o idolatrava servilmente, obedecia a todas as suas recomendações, embora detestasse Agariste e a considerasse uma mulher frívola. A própria Dejanira quase que vivia na cozinha, supervisionando as escravas e o preparo das refeições, vigiando cada fragmento de comida e cada dracma. As melhores iguarias eram apenas para Péricles. Dejanira deplorava os gostos extravagantes do marido e a sua exigência dos melhores vinhos. Quando Agariste protestou que agora comia como os escravos, Péricles interferiu em seu favor. Agariste voltou a comer na sua própria mesa, separada de Dejanira e dos filhos. Dejanira manifestava abertamente o seu desdém pelos itens dispendiosos servidos a Agariste, os bons vinhos, a louça luxuosa. Um dia, com a sua voz esganiçada, ela comentou:
— Assim, vamos acabar indo à falência.
Ao que Agariste respondeu:
— Até lá, vamos comer como seres humanos e não como porcos.
O filho de Dejanira e de Hipônico, Calías, tinha então dezesseis anos; era uma réplica masculina da mãe, baixo, maciço, gordo, temperamento desagradável. Ressentia-se da aparência e dos feitos dos irmãos e se consolava com o cognome que lhe davam, "O Rico", pois era o herdeiro do pai. Era tão mesquinho quanto a mãe e vestia-se avaramente como um escravo. Os preceptores desesperavam-se com a sua educação. Não era um atleta. Preferia as brigas de galo, apreciando-as mais na medida em que eram mais sangrentas. Também gostava de jogar; mas como não era avesso a trapacear, raramente era convidado a participar de jogos com os companheiros da academia. Chamavam-no, ofensivamente, de O Cão. Calías só gostava de jogar com os próprios dados, viciados, o que lhe permitia ganhar regularmente. Por isso, ninguém aceitava jogar com ele a não ser com dados comuns, com os quais ganhava apenas esporadicamente, como os outros. A exigência provocava acessos de fúria em Calías; como ele era tão forte quanto gordo, poucos queriam enfrentá-lo. Na briga, Calías era tão desleal quanto nas trapaças e costumava desferir joelhadas na virilha do oponente,
Odiava Péricles e escarnecia dele na presença da mãe, sempre que Dejanira o permitia, o que passou a acontecer depois que Péricles a rejeitou, deixando-a com o coração magoado e angustiado. Embora geralmente de pensamento lerdo, Calías parecia ser capaz de perceber quando a mãe não lhe proibia os comentários desdenhosos. Nessas ocasiões, Calías provocava os irmãos, que o desprezavam e abertamente o desdenhavam, fingindo serem surdos às calúnias contra o pai. Calías ria grosseiramente. Tentara tratar os irmãos mais moços de maneira brutal em mais de uma ocasião, até que finalmente Péricles lhe aplicou uma surra na presença de Xantipo e Paralo, com Dejanira assistindo, a se lamuriar e a retorcer as mãos. Mas a verdade é que ela amava Calías menos que aos filhos mais novos e sentiu-se relutantemente aliviada quando ele mandou um escravo arrumar a arca de Calías para uma visita prolongada à casa de Dédalo. O arconte preferia-o aos netos mais moços.
Nos últimos meses, Péricles conversara com seus banqueiros sobre o dote de Dejanira e o aumento que tivera, pois chegara à conclusão de que devia divorciar-se da esposa. Embora raramente a visse, achava a presença dela em sua casa cada vez mais insuportável. Via o sofrimento da mãe, que não podia escapar a Dejanira como ele fazia, com suas heteras e outras mulheres de menos reputação. Via as expressões revoltadas dos escravos, que se ressentiam de Dejanira e constantemente se queixavam ao capataz da má alimentação e dos alojamentos apinhados; o capataz, por sua vez, encaminhava as queixas a Péricles. Este era um amo generoso e tratava-os como servos remunerados mais do que como escravos, frequentemente recompensando-os prodigamente; e se lhe pedissem com insistência, era capaz de libertá-los, embora advertindo-os dos perigos da liberdade. Quando a convidados distintos foram servidos vinhos ordinários em garrafas ricamente ornamentadas, por ordens secretas de Dejanira, Péricles decidiu que não mais era possível continuar a suportá-la. Censurara asperamente Dejanira por sua humilhação e ela desatara em lágrimas, tentara abraçá-lo, balbuciando:
— Queria apenas economizar seu dinheiro, meu senhor...
Péricles a repelira como se repelem os cães importunos e desobedientes.
Nem mesmo o fato de os filhos possuírem uma afeição profunda pela mãe podia impedi-lo de procurar o divórcio. Os filhos poderiam visitá-la na casa de Dédalo, a intervalos regulares. Péricles receava que a vulgaridade de Dejanira pudesse contagiar Xantipo e Paralo; além do mais, detestava Calías, tanto quanto Calías o odiava. Péricles, sempre pragmático, receava também que Calías pudesse contagiar seus filhos de alguma forma. Quanto aos próprios sentimentos de Dejanira, não os levava em consideração; duvidava de que ela tivesse qualquer capacidade de devoção, embora se mostrasse repulsivamente apaixonada nas poucas vezes em que a chamara a sua cama, por um senso de dever e compaixão. Não mais sentia qualquer compaixão por Dejanira. Tinha que livrar-se dela e o mais depressa possível. Dejanira não tinha a menor premonição de que os advogados do marido já estavam preparando o processo de divórcio.
No dia em que Dédalo foi procurá-lo, Péricles não chamou os filhos ao chegar a casa, ao pôr-do-sol. Queria ficar sozinho, pensando no perigo mortal que seu amigo Íctis corria, e em como deveria agir para protegê-lo e salvá-lo. Indagando entre seus amigos na Agora, Péricles descobrira que não se pensava apenas no ostracismo para Íctis, mas também em morte. O Rei-Arconte fora consultado apenas duas horas antes; o próprio Dédalo não o sabia no momento em que visitara Péricles, sendo informado uma hora depois.
Enquanto tentava jantar, Péricles ignorava que naquele exato momento Dédalo conversava com Dejanira, aterrorizado e furioso.
— Ele irá destruir a todos nós se defender aquele Chilon! Já incorreu no desfavor dos homens de influência, que não apenas se referem à sua semelhança com o tirano, Pisístrato, mas garantem que está procurando o poder arbitrário. Foi acusado de cinismo, pelo fato de ser um aristocrata que se afastou dos seus iguais e defende os humildes, simplesmente para garantir sua posição. Mas comenta-se também que, embora ele finja ser amigo dos plebeus, prefere evitar a presença deles e raramente os recebe. É também ambicioso, sinistro, ambíguo, tem muitos amigos influentes. Não é segredo para ninguém que foi o instigador do banimento de Címon, que era um bomem amado pelo povo, só porque cobiçava a posição dele. Contudo, minha filha, seu marido conspirou com Címon mais tarde, a fim de que este conquistasse o comando da esquadra. Ao mesmo tempo, ele conspirava implacavelmente para conquistar o poder em Atenas, com o consentimento de Címon. Há até o rumor de que ele promoveu o assassinato de Efialtes, o grande e popular estadista.
Dejanira lamuriou-se, retorcendo as mãos gordas e fitando o pai através das lágrimas.
— Não sei nada disso, meu pai! E acredito que as mentiras tenham sido inspiradas pela inveja!
— Pois eu acredito em tudo, embora ele seja o marido da minha filha! — declarou Dédalo, veementemente. — Péricles deseja ser um monarca. O partido aristocrata com razão o teme e o odeia, pois considera-no um traidor da nação, da família, dos ancestrais. Temem o seu poder, que assumiu ilegalmente...
Com um espírito resoluto que não lhe era comum, Dejanira interrompeu Dédalo, dizendo firmemente:
— Pai, isso não é verdade! Os cidadãos de Atenas o elevaram à posição em que está por seus próprios méritos!
— Cale-se, mulher!
Furioso, Dédalo levantou as mãos, como se fosse agredir a filha. Dejanira encolheu-se de medo, recomeçando a chorar.
— O partido aristocrata induziu Tucídides o Calvo, parente de Címon, a se opor a Péricles. É um homem de bem, um homem intrépido. E vai conseguir vencê-lo! Tucídides não é um hipócrita para cortejar o povo a fim de conquistar o poder pessoal. Você não leu os escritos nos muros de Atenas, vergonhosas acusações contra Péricles, do próprio povo que ele defende contra os aristocratas. Pode estar certa de que ele ambiciona ser rei, o que Atenas não irá tolerar!
Dejanira limitou-se a sorrir, desconsolada. O pai fitava-a com uma irritação crescente.
— Ele é seu marido. É o pai dos seus filhos. Deve fazer com que a escute, deve persuadi-lo de que poderá ser destruído se persistir em seus planos de defender Íctis, acarretando também a sua destruição e de seus filhos.
Dejanira teve um novo acesso de choro e seu rosto ficou extremamente vermelho. Desviou os olhos e murmurou:
— Não tenho qualquer influência sobre Péricles, meu pai. Raramente o encontro. Ele me evita. Receio que me despreze. Não entro mais em seu quarto, desde o nascimento de Paralo. Ele me abandonou por mulheres dissolutas. Você disse que, ao falar-lhe hoje, Péricles virou-lhe as costas e se retirou, depois de pronunciar palavras terríveis. E você é um arconte, um homem de posição. Se ele não dá atenção ao próprio sogro, por que haveria de dar a mim?
Dédalo levantou-se, tremendo de raiva. Contemplou a filha mortificada; embora raramente sentisse compaixão, sentiu-a naquele momento. Pôs a mão na cabeça de Dejanira e murmurou, a voz trêmula:
— Minha filha, eu não sabia dessa indignidade a que Péricles a submete; sua mãe também não sabia, pois me teria contado. Só há uma solução: deve deixá-lo e pedir o divórcio, voltando para a casa de seu pai com os meninos. Somente assim as pessoas irão compreender que não tem qualquer culpa, que renunciou a seu marido pela traição dele, afastando os filhos de sua casa, para que não fossem desonrados e punidos pelo nome do pai.
— Deixar Péricles? — balbuciou Dejanira, os olhinhos pretos se esbugalhando de angústia. — Ele é meu marido! E eu o amo, não importa as humilhações que me tenha infligido, muitas vezes na presença dos próprios escravos!
Dédalo agarrou-a pelos ombros gordos e sacudiu-a.
— Não pensa em seus país, minha filha? Sou um arconte. Será que não compreende que não apenas você e seus filhos serão destruídos pelas ações insensatas desse homem, mas também o mesmo acontecerá com seus pais! Cinco pessoas inocentes! Vai deixar que todos nós morramos ou sejamos exilados, e que nossas fortunas sejam confiscadas? Vai tranquilamente permitir que você e toda a sua família passem a viver numa miséria atroz, longe de Atenas, em alguma ilha bárbara? Será que gerei uma filha humana ou um ciclope, que vê apenas com um olho e é cego aos sofrimentos daqueles a quem deve amar obedientemente?
Dejanira fitou o pai através das lágrimas. Compreendeu que Dédalo estava realmente desesperado e assustado. A cor sumiu-lhe do rosto. Dédalo sacudiu a cabeça, com uma expressão sombria.
— É isso mesmo. Nossas fortunas, senão mesmo nossas vidas, correm um perigo fatal nas mãos do homem a quem chama de marido. Vai ter a coragem de defendê-lo e permanecer a seu lado, até que todos nós mergulhemos no Estige?
Dejanira estava tão dominada pelo terror e angústia que não conseguiu falar. Ficou retorcendo as mãos, os soluços a lhe sacudirem o corpo.
— Fale com ele! — ordenou o pai. — Fale com ele esta noite! Se Péricles permanecer obstinado, mande-me um aviso e providenciarei liteiras para vir buscá-la e às crianças. Voltará para a casa de seu pai e pedirá o divórcio. Diga isso a ele.
Dejanira comprimia as mãos contra o peito, o rosto apático contorcido pelo medo e sofrimento, pelo amor sem esperanças. E balbuciou:
— Tentarei. Juro por Hera que tentarei. É tudo que posso prometer. Se fracassar... — Ela fez uma pausa, deixou escapar um soluço mais alto, antes de arrematar: — ...voltarei para sua casa, meu pai. Mas só amanhã.
— E ele será obrigado a devolver seu dote e tudo que se lhe acrescentou.
Dédalo suspirou de alívio. Achava, como um homem ganancioso, que a perda do dote de Dejanira seria para Péricles um golpe muito pior que a perda da família.
Dejanira murmurou, em voz quase inaudível:
— Ele ama os filhos. Pode não permitir que sejam afastados de sua companhia.
— Se isso acontecer, poderemos pedir, depois que deixar esta casa e quando ele estiver arruinado, que as crianças sejam devolvidas, para livrá-las da influência nefanda do pai. Não fique tão aflita, minha filha. Tente primeiro, como é seu dever, persuadi-lo a reconsiderar a decisão que tomou. Se tal não acontecer, deve deixá-lo a todo custo. — Dédalo passou a mão descarnada pelo rosto, suspirando. — Não sou um homem inteiramente desprovido de influência. Seus filhos certamente me serão entregues, para ser o guardião deles. Posso alegar que jamais concordei com o casamento, mas que minha irmã me arrancou o consentimento.
Dejanira era capaz de perceber muitas coisas. Sabia que fora Dédalo quem propusera o casamento e não Agariste. Pensou em Agariste com um ódio súbito, Agariste que não se dava ao trabalho de disfarçar o desprezo que sentia pela nora.
— Foi por meu intermédio que ele galgou o poder — disse o arconte. — Eis algo que jamais poderei esquecer. Teria sido melhor que as Fúrias me paralisassem a língua para não poder ajudá-lo!
Dédalo abraçou a filha e partiu. Depois de muito pensar e hesitar, Dejanira mandou um escravo a Péricles, suplicando que permitisse à esposa visitá-lo imediatamente. Enquanto esperava a resposta, Dejanira lavou os olhos avermelhados, escovou os cabelos e mudou os trajes amarfanhados, passando essência de rosas nos braços e no pescoço. Desolada, contemplou-se em seu espelho de prata, confessando a si mesma, pela primeira vez, que não tinha atrativos, beleza ou atributos que pudessem prender um homem, especialmente um homem como Péricles. Julgara-se desejável pelo dinheiro e pela posição do pai em Atenas. Agora, vagamente, compreendia que Péricles não precisava do dinheiro dela e que era mais poderoso do que seu pai. Por isso, não podia suplicar-lhe nesses termos. Ah, se eu tivesse beleza e fosse jovem! bradou Dejanira mentalmente. Mas sou feia e velha, já há cabelos brancos em minha cabeça, tenho três queixos. Ela sentiu-se desesperada como nunca antes ficara, em toda a sua vida.
Mesmo assim, consolou-se com o pensamento de que Péricles poderia escutar conselhos sensatos, pelo bem dos filhos, se não mesmo por ela. E havia também Agariste, que igualmente corria um perigo mortal.
Dejanira ficou imóvel, com o espelho refulgente e cravejado de joias na mão, o olhar perdido no espaço. Agariste... Por mais que a detestasse e por mais que tivesse tentado relegá-la a uma posição inferior, Agariste podia agora transformar-se numa formidável aliada. Andando a bambolear o mais depressa que era capaz, Dejanira seguiu para os aposentos de Agariste.
Agariste jamais cedera os seus aposentos luxuosos e confortáveis à nova dona da casa. Depois de jantar, retirava-se para lá e se deitava, pois estava cada vez mais enferma e os médicos muito falavam de seu coração. Não conseguia esquecer o marido, Xantipo, descobrindo-o a aumentar de estatura e virtudes ao longo dos anos. Frequentemente acusava-se de estupidez por não tê-lo compreendido, chegando mesmo algumas vezes, em seu orgulho, a censurá-lo. Xantipo amara-a, muito embora também a detestasse, O casamento não fora contratado, no verdadeiro sentido da palavra. Xantipo vira-a e se apaixonara, indo procurar o pai de Agariste, declarando seu amor e suplicando que consentisse no casamento. À sua maneira, Xantipo honrara-a por muitos anos, jamais usando os serviços de uma hetera ou qualquer outra mulher. Eu própria é que o afastei, dizia Agariste a si mesma em suas noites insones, com minhas presunções e vaidade. Insistia em demasia para que me admirasse por minha inteligência. E não sabia, até depois de sua morte, que ele me admirava por isso, muito embora jamais o tivesse confessado a mim.
E Agariste pensava, tristemente, que só se adquire a sabedoria quando é tarde demais. Os deuses eram perversos.
Raramente ela dormia profundamente; apenas cochilava, volta e meia acordando a sorver o ar ansiosamente, uma dor intensa no coração. Caíra num desses cochilos irrequietos quando uma escrava entrou no aposento e disse suavemente:
— A Senhora Dejanira deseja falar-lhe por um momento sobre uma questão de extrema importância.
Agariste, piscando os olhos à luz suave das lamparinas acesas, esforçou-se por se sentar e ficar ereta. A respiração era ruidosa e difícil. Uma quente brisa noturna entrava no quarto pela janela aberta, trazendo uma fragrância de rosas. Agariste lançou um olhar furioso à escrava. O que Dejanira poderia estar querendo falar-lhe, Dejanira que jamais entrara naqueles aposentos e nunca fora convidada? As duas mulheres se evitavam na medida do possível. Dejanira nunca lhe pedira os conselhos, exceto em raras ocasiões. Sempre que se falavam, Dejanira fitava Agariste com uma expressão de irritação e ressentimento e, invariavelmente, tentava impor sua autoridade, como dona da casa. Era sistematicamente repelida por Agariste, mas mesmo assim persistia em sua obstinação. Haviam mesmo discutido no dia anterior, Agariste desdenhosa e arredia, Dejanira balbuciando de raiva e insistência. Agariste finalmente dissera:
— Pode ser a filha de meu irmão, o arconte, mas para mim tem as maneiras de uma mulher de cozinha e das mais atrevidas. Seu pai é meu irmão e assim você descende de uma família nobre, mas sua mãe é tão vulgar quanto você e só o dinheiro concedeu-lhe alguma distinção. Ensinou-a muito bem e é tão insuportável quanto ela.
Dejanira se afastara, furiosa, impotente, balbuciando imprecações.
Agariste disse então à escrava:
— A Senhora Dejanira deseja falar comigo? Um dos meus netos por acaso está doente?
Ela se empertigou ainda mais na cama, assustada, pois muito amava os filhos do seu filho.
— Não sei, Senhora — respondeu a escrava. — Mas a Senhora Dejanira implora que a receba e escute o que tem a dizer-lhe.
Somente uma grande emergência poderia levar Dejanira a procurá-la assim, pensou Agariste, Ela tomou o remédio na mesinha ao lado da cama e estremeceu interiormente, enquanto esperava a chegada da nora. Ajeitou a túnica sobre os seios ainda bonitos; o rosto, no entanto, estava encovado, coberto de rugas, vincado pela dor, extremamente pálido, os cabelos dourados há muito que tinham perdido o brilho, eram agora opacos e repletos de fios brancos. Uma pontada de dor angustiante contraiu o coração de Agariste, que ofegou e se recostou nas almofadas, o suor frio de apreensão e mortalidade banhando-lhe o corpo. Tinha a sensação de que um vento frio penetrara subitamente no aposento. Os lábios pálidos ficaram ressequidos, e ela teve a sensação de experimentar o gosto de sangue.
Dejanira entrou no aposento, soluçando. Mas ela possuía a superficialidade mental dos estúpidos e era facilmente distraída por coisas insignificantes, mesmo quando dominada por uma aflição profunda, como naquele momento. Olhou ao redor, curiosa, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelas faces. Quase esqueceu, pelo menos por um momento, a missão que a levara até ali, enquanto os olhos pretos inchados examinavam o aposento com uma expressão de desaprovação, fixando-se nas mesinhas dispendiosas e nas lamparinas de ouro e vidro do Egito, nos brocados de Damasco na janela, nas cadeiras de marfim e ébano, nas paredes pintadas que mostravam Pã e os faunos em aplicações de madeira, nos tapetes persas no chão de mármore. A cama não era simples como as que geralmente se encontravam nos aposentos gregos, mas opulenta, com sedas e lã. Havia inúmeras estatuetas de mármore em nichos, todas de uma feitura incomparável. Há muitas fortunas aqui, pensou Dejanira. Fortunas que devem ser investidas em navios, cargas e bancos. Ela sentiu-se dominada pela raiva e ressentimento. E depois se sentou, sem ser convidada, numa frágil cadeira, que rangeu em protesto contra o seu peso. Pôs-se a soluçar novamente.
— Em nome dos deuses, conte-me o que aconteceu! — gritou Agariste.
Dejanira era normalmente impassível e não exibia qualquer emoção; por isso, Agariste presumiu que a notícia que lhe trazia era terrível. Em sua angústia, sentiu um ímpeto quase incontrolável de agredir aquela mulher informe.
Dejanira finalmente falou:
— Estamos arruinados, seremos destruídos! Todos nós! — A voz era áspera e dissonante, ela balançava-se nas nádegas volumosas, as lágrimas continuando a escorrer-lhe pelo rosto. — Péricles atraiu a ira das Fúrias contra nós e estamos todos perdidos!
Agariste ficou incrédula. Não acreditava que o filho, tão comedido e controlado, tão lacônico ao falar, a não ser quando se dirigia à Assembleia, pudesse ter sido tão impetuoso e temerário quanto Dejanira estava insinuando. Recostou-se nas almofadas e disse, em voz fria e autoritária:
— Conte-me tudo.
Era quase impossível para Dejanira relatar uma história coerente, pois seus pensamentos invariavelmente descambavam para irrelevâncias. Assim, Agariste foi obrigada a concentrar toda a sua atenção no fluxo de palavras que saíam daquela boca gorda e úmida. Soluços ruidosos volta e meia interrompiam-lhe o fluxo. Dejanira falou da honra dos pais, dos delitos dos escravos na casa de seu marido, das depredações das cozinheiras no toucinho e no dinheiro, do destino dos filhos, de seu ego ameaçado, do medo e da proposta do pai, da insistência deste para que falasse com Péricles, de suas premonições de desastre que há muitos anos a vinham afligindo, dos deslizes de Péricles e suas amantes, do destino infeliz que o casamento lhe acarretara, do fracasso de Péricles no último investimento em navios para o Egito, das insuportáveis provações a que era submetida naquela casa, da falta de consideração que recebia por todo o seu esforço e empenho, além de incontáveis outras coisas.
Agariste sentiu vontade de gritar. Estendeu a mão pálida e magra e agarrou o pulso de Dejanira. E quase gritou:
— Fale logo de uma vez o que aconteceu! Será que não pode pôr um pouco de ordem em seus pensamentos e esclarecer-me? O que tem tudo isso a ver com o desastre a que se referiu?
O fluxo de queixas incoerentes cessou abruptamente. Dejanira sentiu-se ofendida pelo tom ríspido da tia e pela mão que lhe segurava firmemente o pulso. Esforçou-se por exibir alguma dignidade.
— Não lhe estou contando, Agariste? Mas jamais saberá de mim! Estamos perdidos!
Mas os olhos de Agariste mostravam-se agora suaves, arregalados. Dejanira abaixou a cabeça, o rosto úmido, tornou-se mal-humorado. Mal podia recordar as denúncias específicas que o pai fizera contra Péricles, pois sempre ficava confusa quando alguém falava muito depressa e não tinha condições de acompanhar. Mas Agariste, sentada na cama, muito empertigada, conseguiu finalmente apreender em parte o que Dédalo dissera à filha. Largou o pulso de Dejanira e recostou-se nas almofadas, ofegando. Ficou olhando para o teto dourado e pintado por um longo tempo depois que a voz esganiçada de Dejanira parou de soar, substituída por soluços desesperados.
A luz da lamparina, dourada e suave, iluminava as paredes e os móveis; um rouxinol começou a cantar nos jardins uma música triste e pungente. Agariste pensou rapidamente. Claro que Péricles não era insensível e indiferente ao perigo que estava correndo e ao risco a que lançava toda a sua família. Não era um homem volúvel ou irresponsável. Suas emoções, mesmo que agitadas, não o precipitavam a fatalidades. Suas amizades eram moderadas, se bem que firmes. Anaxágoras lhe ensinara isso; mas Péricles era naturalmente prudente. Agariste foi novamente dominada pela incredulidade, embora soubesse que Dejanira tinha tão pouca imaginação que lhe seria impossível ser tão inventiva e exagerada.
Ela interrompeu bruscamente os soluços de Dejanira, dizendo:
— Mal posso acreditar no que acabou de falar a respeito de meu filho. Irei com você aos aposentos dele, pois sua escrava já anunciou que Péricles vai recebê-la.
Ela olhou para Dejanira desdenhosamente, levantou-se com dificuldade e vestiu uma toga branca sobre a roupa com que estava dormindo. O coração batia-lhe dolorosamente, mas o seu semblante estava composto.
— Vamo-nos embora.
Ela saiu na frente, seguida por Dejanira, como se fosse uma serva, gemendo interminavelmente. Agariste caminhava como uma deusa, orgulhosamente reprimindo a dor e pensando, enquanto Dejanira bamboleava atrás dela como uma sombra obesa e fungando.
Péricles estava sentado em sua biblioteca, mas não estava lendo. Tinha o rosto sério, compenetrado. Franziu-o ao ver as duas mulheres entrarem, mas imediatamente concentrou toda a sua atenção na mãe. Percebeu-lhe a palidez translúcida e prontamente convidou-a a sentar-se, mas não estendeu o convite à esposa.
— Fui informado de que somente Dejanira desejava ver-me — disse ele para a mãe, o tom gentil. — Está doente. Por que se levantou para visitar-me esta noite?
Agariste sacudiu a mão na direção de Dejanira, mas sem fitá-la. Em poucas e concisas palavras, repetiu o que Dejanira lhe contara e as ameaças de Dédalo. Possuía uma mente objetiva e era capaz de se expressar claramente em poucas frases. Enquanto falava, observava atentamente o rosto de Péricles. Tornara-se novamente impassível, uma máscara de mármore a ocultar seus pensamentos. Quando Agariste acabou de falar, Péricles recostou-se na cadeira e ficou em silêncio. A mãe esperou. Os soluços e exclamações eventuais de Dejanira povoavam a biblioteca. Seus cabelos pretos estavam desgrenhados, pois ficara constantemente passando os dedos entre eles, em sua angústia. Tinha as faces inchadas, os olhos e o nariz vermelhos. Balbuciava a todo instante lamentos sobre a ruína da família, a posição do pai como arconte, o exílio, confisco de todos os bens. Mas nem Péricles nem Agariste lhe dispensavam a menor atenção.
Péricles finalmente falou, dirigindo-se à mãe:
— É tudo verdade. Tenho que defender Íctis, pois ele é um homem de bem, simples e justo. E ainda por cima fala a verdade. Infelizmente também a escreve e divulga.
— Compreende as consequências que poderão advir se fracassar, meu filho?
— Já as avaliei devidamente. Não devo fracassar. Preciso apenas persuadir Íctis a se retratar e suplicar misericórdia. Ele preza as minhas opiniões e orientação e deve concordar. É um homem arrebatado, mas também maleável. Há horas que estou pensando em tudo isso e cheguei à conclusão de que um breve ostracismo será a única punição de Íctis.
Péricles não se sentia tão confiante quanto alardeava, mas queria dissipar os temores da mãe e acalmá-la.
Agariste suspirou de alívio. O filho era o homem mais poderoso de Atenas. Ela pensou em Xantipo, que seria capaz de defender um homem e seus princípios, por mais que os deplorasse. Mas Xantipo fora imprudente em muitas ocasiões, o que jamais acontecera com Péricles. Não obstante, pai e filho eram ambos exemplares nas virtudes públicas e jamais deixavam de cumprir seu dever. Agariste suspirou outra vez, tristemente.
Péricles virou-se para a esposa, pela primeira vez, o rosto ainda mais impassível.
— Devo informá-la, Dejanira, de que me estou preparando para o divórcio. Você tornou minha casa um lugar insuportável, semeou a confusão e discórdia. Deve sair daqui amanhã e voltar para a casa de seu pai, levando Calías; mas meus filhos deverão ficar.
Os pensamentos confusos de Dejanira ficaram totalmente tumultuados. O desespero dominou-a. Desatou em soluços altos e histéricos. Tentou aproximar-se do marido, mas Agariste conteve-a. A mãe disse para o filho, a voz serena:
— É mesmo o melhor. Vivemos numa casa infeliz desde o seu casamento, Péricles, E não se deve sofrer a infelicidade, se é possível afastá-la.
Ela levantou-se e segurou Dejanira pelo braço, firmemente, obrigando a mulher mais jovem a fitá-la.
— Já deve ter verificado que nenhum de nós está em perigo e que tudo não passa da imaginação desvairada de seu pai. Vá imediatamente para seus aposentos e prepare-se para deixar esta casa pela manhã.
Dejanira ainda se debateu por um momento, procurando desvencilhar-se, enquanto Péricles se limitava a observar. Mas ela logo cedeu, desatando num novo acesso de lágrimas, entremeadas com explosões de acusações, queixas, súplicas, argumentos incongruentes. Péricles fechou os olhos, cansado. Suando, Dejanira exalava um cheiro extremamente desagradável e o meticuloso Péricles contraiu as narinas, o mesmo fazendo Agariste.
— Vamo-nos embora! — disse Agariste, firmemente. Mas ela sentiu compaixão de Dejanira, que fora tão brutalmente descartada e rejeitada. — Não adianta chorar dessa maneira. Amanhã é o momento para a reflexão e decisão.
Dejanira fitou-a com os olhos esbugalhados, lambeu o suor do lábio superior. Pensou que Agariste lhe estava assegurando que não precisaria deixar a casa. Os seios arfaram e ela permitiu que Agariste a retirasse do aposento.
Ao atravessarem os corredores, disse para a mulher silenciosa que caminhava a seu lado:
— Amo Péricles. Ele é minha vida, meu amor. Na nossa noite de núpcias, ele me chamou de amor. Jamais me esqueci. Abraçou-me não apenas com paixão, mas também com alegria.
Agariste alteou as sobrancelhas, sem acreditar. Ficou também surpresa ao descobrir que Dejanira fosse capaz de amar daquela maneira, com tanta intensidade. Sentiu novamente compaixão dela e a mão que segurava o braço de Dejanira mostrou-se bondosa e confortadora. Mas Agariste sabia que as decisões de Péricles eram inexoráveis.
Capítulo 11
Embora Anaxágoras houvesse declarado que um homem que não era capaz de submeter o corpo e as emoções à sua vontade não chegava a ser um homem completo, Péricles descobriu que não conseguia dormir naquela noite. Disciplinara-se a tomar decisões firmes e agir de acordo, sem se lamentar e sem lançar olhares ansiosos para trás. Uma decisão irrevogável, que depois se revelasse catastrófica, era melhor do que a vacilação, que enfraquecia um homem. O primeiro passo era a ação, o segundo a inação; o primeiro era a vida, o outro a morte sem brilho. Péricles há muito que decidira divorciar-se da esposa, o que não significava que fosse insensível ao sofrimento angustiado, às declarações de amor, suplicais e lamentos de Dejanira. Mas isso não havia abalado a sua decisão; a compaixão era frequentemente uma manifestação de covardia, da qual a pessoa mais tarde se arrependia amargamente. Ou ficava hostil e revoltada, sabendo que sucumbira à manipulação astuciosa e fora traída pela chantagem emocional dos outros.
Para ele, a situação de Íctis era muito mais grave. Incapaz de dormir, incapaz de chegar a uma decisão — era um homem prudente, apesar de toda a sua determinação e caráter — levantou-se muito antes do amanhecer e mandou uma mensagem para os alojamentos dos escravos de que iria sair imediatamente. Um escravo sonolento trouxe-lhe um melão frio, peixe cozido, pão e vinho, para a primeira refeição do dia. Péricles comeu, pensativo, tamborilando com os dedos sobre a mesa. Havia momentos em que ficava furioso com o amigo em perigo pela imprudência dele. Íctis também arriscara seus poucos amigos, a mãe viúva e os parentes. No momento seguinte, porém, Péricles dizia a si mesmo: Ele é um bravo e a coragem é uma virtude mais desejada que qualquer outra. Fez o que devia. E isso é tudo que um homem pode fazer.
Péricles ficou olhando para a lamparina enfumaçada que ardia na escuridão do pequeno refeitório. Amaldiçoou o governo, do qual fazia parte, por sua opressão. Amaldiçoou os arcontes, a Assembleia e a Eclésia. Embora Dédalo o tivesse acusado de cortejar e lisonjear as turbas, nenhum aristocrata de Atenas desprezava as turbas mais que o próprio Péricles. Jamais relutara em manifestar sua aversão e sempre reconhecer o seu temor das turbas, que eram incontroláveis, irracionalmente apaixonadas, estúpidas, presas fáceis de qualquer demagogo insidioso, gananciosas, exigentes, pensando sempre com a região abaixo do umbigo e jamais com a área acima do queixo. Para Péricles, eram o perigo para qualquer nação, pois careciam de heroísmo, fervor patriótico e espírito de renúncia. Sua única preocupação imediata era a satisfação dos seus baixos instintos animais. Mas, pela pressão de seu número esmagador, eram perigosas para o Estado, para a lei e a ordem. Convidavam ao caos. O atleta ou o estadista que aclamavam hoje seria destruído amanhã, com a mesma ausência de discriminação, com a mesma falta de um julgamento criterioso. O que desagradava aos outros homens apenas ligeiramente, incitava à anarquia entre as turbas, à destruição, à sede de sangue. Por tudo isso, não se podia deixar de temê-las.
Os aristocratas, de um modo geral, não sabiam distinguir entre as turbas e aqueles a quem Ciro, o Grande tanto exaltara: os camponeses vigorosos e resolutos, os artesãos, os pequenos comerciantes, os construtores e operários conscienciosos, os escribas, os oficiais do exército e dos navios, os cozinheiros, os estalajadeiros, os tecelões e ferreiros, os pequenos investidores, os fabricantes de navios, os donos de moinhos e muitos outros, de cuja existência uma nação dependia. Mas Péricles sabia fazer a distinção entre essa gente e as turbas. Acalentava a esperança de que a classe média em expansão, interpondo-se entre os aristocratas e as turbas, acabaria por ter grande força e influência; por isso é que a cultivava. Para ele, tais pessoas constituíam o-próprio coração de uma nação; seus julgamentos, embora frequentemente simples e raramente complexos, geralmente eram sólidos e sensatos. Também tinham uma profunda desconfiança do governo e das autoridades eleitas, o que Péricles considerava extrema sagacidade. Ao contrário das turbas, que adoravam o poder, a classe média dele desconfiava. Pagava os impostos compulsórios com pesar — as turbas geralmente não pagavam impostos — e reclamava em voz alta. Votava de má vontade, mas com cuidado. As turbas votavam em qualquer rosto simpático ou mentiroso eloquente.
Para seus companheiros da aristocracia, Péricles era ambíguo; alguns chegavam a insinuar que era um traidor de seus ancestrais. Para as turbas, ele era um homem execrável, um opressor. Mas a classe média admirava-o e respeitava-o. Sabia que Péricles se preocupava com seus problemas e que também a admirava. Ele conseguira livrá-la de muitos impostos aduaneiros, quando seus membros se empenhavam no comércio e importavam ou exportavam mercadorias. Não era segredo em Atenas que Péricles desejava transformar a cidade num centro de beleza e glória, para a alegria das multidões e grande honra no exterior. Mas seus inimigos — e eram muitos — condenavam-no por transferir o tesouro comum da Grécia da ilha de Delfos para a própria Atenas, onde estaria disponível para a construção de templos e belos edifícios públicos e teatros, além da erradicação dos becos e casas infectos, e das estreitas ruas antigas. Péricles desejava estimular todas as artes e a erudição; seus inimigos ricos odiavam-no por isso, pois seu dinheiro não era mais importante e valioso que toda a música, quadros, estátuas e teatros do mundo? Já a classe média regozijava-se com seus planos. Os aristocratas e poderosos agitavam as turbas contra Péricles. Ele estava tirando o pão da boca dos pobres e expulsando-os de suas "modestas" habitações. De que valiam as artes e edifícios espetaculares se as barrigas estavam vazias? A classe média, embora não chegasse a compreender plenamente a grandeza do que Péricles propunha, tinha uma vaga visão da imponência, sentia-se orgulhosa e confiava nele. Na verdade, era o único homem no governo a quem ela não temia e de quem não desconfiava.
Fora essa classe média que Íctis agitara, levando-a a pensar e analisar os fatos, a interromper suas atividades incessantes e orgulhosas por longos momentos a fim de considerar seu governo. Ele era uma ameaça. Íctis declarara que uma nação só se tornava grande quando estimulava uma variedade de opiniões, protegia todas as religiões e levava em consideração as divergências criteriosas. Mas uma cidade que se intimidava na conformidade do pensamento e que se tornava simplesmente um amontoado de cordeiros humildes e acovardados, sob o guante do governo, era uma cidade morta, onde não podia florescer qualquer ideal e onde não se podia ver o esplendor de tudo que era nobre. Tornava-se o covil dos lobos de cima e dos chacais de baixo. Por essas opiniões, Íctis devia morrer.
A guarda de Péricles, seis soldados montados, de elmo e couraça de couro, apresentou-se. Péricles levantou-se da mesa e foi ao encontro da guarda. Seu carro estava esperando lá fora, puxado por dois cavalos brancos. Péricles sempre o guiava pessoalmente. Não era como os carros esplêndidos dos aristocratas, dourados e esmaltados. Mas Péricles não era um homem preocupado com ostentações pessoais, apesar de possuir uma das casas mais lindas de Atenas. Subiu no carro e pegou as rédeas, entregues por um escravo, ao qual falou gentilmente, agradecendo. Não sabia ainda que a mãe morrera naquela noite em sua cama, serenamente. Ninguém na casa sabia, naquele momento.
Enquanto desciam a colina, com os soldados a empunhar tochas, Péricles olhou para o Pireu, o porto de Atenas. Algumas tochas ainda ardiam ali e já se podia avistar algum movimento de lanternas. Atenas ainda dormia. Olhando para o porto e além, Péricles avistou uma linha de fogo purpúreo surgindo no horizonte do mar escuro, que estava informe e quase que totalmente silencioso. A lua redonda deslizava lentamente para o horizonte a oeste e as estrelas pareciam correr para acompanhá-la. Uma brisa fria tocou o rosto de Péricles, cheirando a terra e água, a relva úmida, a flores desabrochando.
Ele se envolveu melhor no manto que o abrigava; seu elmo parecia uma lua vermelha, ao clarão das tochas. Os cascos dos cavalos e o barulho das rodas do carro no calçamento de pedras provocavam ecos na cidade adormecida. A linha de fogo no horizonte do oceano foi-se espalhando rapidamente na direção da terra, um tapete refulgente lançado sobre o mundo antes da entrada de um rei. Muito em breve Febo estaria conduzindo seu carro incandescente pelo céu e Atenas despertaria. As sombras douradas e róseas já se estavam alongando pelo céu escuro, as colinas no outro lado da cidade começavam a ficar delineadas pela primeira claridade do amanhecer. A brisa que soprava contra o rosto de Péricles ia-se tornando mais quente a cada momento. Atenas não era mais espectral, não era mais uma cidade de contornos indefinidos. Os tetos planos pareciam prateados, entre as colinas voltadas para o sol. Os pequenos templos brancos na acrópole faiscavam, definindo-se lentamente, um a um, timidamente, como a se livrarem da névoa. Os pássaros sobrevoavam a cavalgada que os incomodava em seus ninhos, gritando estridentemente. Um pastor com seu cajado e seus carneiros obrigou-os a pararem por um momento; os cães latiram.
A grande Agora branca ainda estava abaixo de Péricles, o teto começando a se avermelhar no amanhecer que rapidamente se expandia, os muros e colunas brancas refulgindo debilmente. A parte superior do teatro emergia das sombras. Abruptamente, Péricles pode avistar diversos veículos ruidosos, carros e carroças, ouvindo também o som de vozes a se erguerem asperamente no viçoso amanhecer.
O carro e os cavaleiros chegaram à rua da Agora, o maior centro de reuniões de Atenas, que fervilhava de movimento do amanhecer até depois de meia-noite. Podiam-se encontrar ali os ginásios, bastante populares entre os combalidos que precisavam de exercícios e os membros sedentários do governo. Ali havia também muitas lojas e escritórios, o Odeon, o salão de música em que regularmente se realizavam concertos, bazares e pequenas tavernas, onde os homens se reuniam para almoçar na metade do dia, tomar vinho e discutir incessantemente, jogar dados, gamão ou damas, trocar os últimos rumores, escândalos e notícias, as últimas piadas obscenas. Ali se instalavam as barbearias e lojas de tecidos, os pequenos joalheiros e muitos outros. Barracas de flores alegravam as ruas em torno da Agora. Podia-se encontrar também ali uma profusão de atores, saltimbancos, malabaristas, mágicos, dançarinos esfarrapados e astrólogos, todos gritando estridentemente para chamar a atenção, lutando para ganhar um dracma em troca de seus trabalhos, no meio da multidão, nos degraus das colunatas ou nas ruas ao redor. Oficinas de todos os tipos se encontravam na Agora, sempre repletas, assim como as lojas, onde as pessoas se reuniam para discussões prolongadas, com gestos veementes, inspecionando mercadorias que não tinham a menor intenção de comprar. Ao meio-dia, era preciso abrir caminho com os cotovelos e joelhos para se encontrar um lugar numa das tavernas, que cheiravam a vinho, cerveja e uísque derramados, a suor e carne assada, a peixe frito e pão fresco. Ondas de calor quase visíveis erguiam-se acima da Agora ao meio-dia, especialmente nos meses de calor.
Muitas autoridades do governo tinham seus gabinetes na Agora. Era o caso de Péricles. Embora de natureza arredia e preferindo sempre a companhia de si mesmo, Péricles gostava do rumor das multidões ao seu redor, de sentir o coração de sua amada cidade pulsando nas ruas e colunatas lá fora.
O grupo finalmente chegou ao nível da Agora. Péricles começou a se perguntar por que chegara tão cedo, muito antes da sua hora habitual, esquecendo as horas insones, a sensação de urgência, inquietação e ansiedade. Íctis, pensou ele, amargamente, não morreria antes do meio-dia... se é que morreria. Ainda teria que haver o julgamento. Péricles puxou abruptamente as rédeas, contendo os cavalos, quando um jovem apareceu de repente na rua à sua frente. O jovem esquivou-se agilmente e virou o rosto sorridente e zombeteiro para Péricles, saudando-o. Tinha uma aparência de Pã e parecia possuir a agilidade de um cabrito montês. O rosto era bastante feio, com um nariz que parecia um caqui, os cabelos cortados irregularmente, uma barba rala e incongruente. As orelhas grandes saltavam da cabeça como alças de cântaros.
Mas os olhos eram extraordinariamente brilhantes e mostravam uma vitalidade intensa; ao fitá-los, a pessoa esquecia inteiramente o corpo pequeno e esquelético, aparentemente deformado, os trajes miseráveis. Os olhos eram castanhos, quase tão claros quanto os de Péricles; ao mesmo tempo, porém, pareciam estar em chamas, de tão radiantes, dando a impressão de que a cor fora inteiramente consumida pelo fogo, deixando apenas o seu clarão espetacular.
Péricles reconheceu-o, embora jamais tivesse trocado uma palavra sequer com o jovem, que já era famoso por sua argumentação e filosofia, por seus ensinamentos nas colunatas da Agora e perto dos templos. Anaxágoras referia-se àquele jovem com aprovação e admiração. Mas Atenas fervilhava de filósofos, todos famintos, veementes e confiantes, embora humildemente vestidos e muitas vezes descalços.
A luz da manhã incidia em seus olhos, enquanto contemplava o séquito subitamente detido. Péricles, que raramente sorria, descobriu-se a sorrir. E indagou, sacudindo o chicote distraidamente:
— Está cobiçando a morte, Sócrates?
— Não é o que todos fazemos, até os mais felizes? — respondeu Sócrates, com um sorriso insolente. Ele não se sentia intimidado na presença daquele que era considerado o homem mais poderoso de Atenas e a quem já vira muitas vezes na Agora. — E por que a morte haveria de ser temida? Se é um sono interminável, não desejamos todos dormir? E se há vida além da morte, então também é bom. A morte não deve ser detestada.
— O dia mal começou para se filosofar — comentou Péricles.
Sócrates sorriu novamente, inclinando a cabeça. O grupo se afastou. Sócrates ficou observando, a coçar as axilas distraidamente. Depois, tão rápido quanto um grilo, desapareceu numa adega. Sentou-se a uma mesa e disse ao taverneiro:
— Acabei de me encontrar com Péricles, filho de Xantipo. É um homem por demais sisudo e insensível, apesar de não ser velho. A gente deve rir do mundo ou perecer.
Enquanto isso, Péricles havia chegado a seu gabinete e seguia para a sua sala particular, passando por uma massa de autoridades subalternas e escribas, que começavam a chegar. Sentou-se à sua mesa e começou a pensar na situação. Foi dominado por uma terrível apreensão, informe e indescritível. Enfrentou resolutamente o problema de Íctis. A mente estava mais vigorosa do que ao longo das horas sombrias da noite. Mas Péricles estava consciente do cansaço físico. Repassou silenciosamente os argumentos que preparara em defesa do amigo, procurou esclarecer melhor alguns. Estremeceu, assustado, diante de alguns. No entanto, sabia que eram argumentos sensatos e o terror não era por si mesmo. Amaldiçoados sejam os fanáticos, pensou Péricles, suspirando. Mas será que, sem eles, as águas túrgidas poderiam agitar-se, fluir, ficar mais claras? Em suas mortes, eles adquiriam uma estatura que jamais haviam possuído em vida; é algo em que não se pode deixar de refletir, pensou Péricles.
Um jovem escriba, em silêncio, trouxe uma tigela de frutas, uma taça e um pequeno cântaro de vinho, colocando tudo ao lado dele. Péricles assentiu, sem falar. Taciturno, tomou um pouco de vinho, comeu uma maçã. A porta se abriu e Anaxágoras entrou: um homem de grandeza, apesar da túnica simples. Sentou-se diante de Péricles e disse.
— Nosso amigo, Íctis, vai ser julgado amanhã perante a Eclésia. — Ele serviu-se de um pouco de vinho numa taça que Péricles silenciosamente lhe oferecera e acrescentou: — E certamente será condenado à morte. A Eclésia praticamente já decidiu.
Como Péricles continuasse calado, Anaxágoras continuou:
— Está chegando o momento em que nenhum homem terá permissão de criticar o governo, por mais brandamente que seja, nem de especular sobre os deuses. Acima de tudo, o governo teme os homens esclarecidos e os polemistas. A ditadura de um único homem já é terrível; ele geralmente adquire inimigos suficientes para ser um pouco cauteloso. Mas a ditadura de todo um governo deve ser muito mais temida. Não há nada pior do que homens inferiores investidos do poder absoluto. Apoiam-se mutuamente, obedecem às orientações uns dos outros, odeiam e temem o povo, ao qual consideram o inimigo comum, uma ameaça ao seu poder. Os burocratas são os chacais famintos da sociedade. Creio que é justamente isso que o infortunado Íctis vem proclamando... para o seu desastre.
Como Péricles continuasse calado, limitando-se a encher novamente o cálice com uma expressão desanimada, Anaxágoras acrescentou:
— Você é um homem polêmico, Péricles.
Péricles deu de ombros,
— Sei disso. E você também o é, Anaxágoras.
— Tem razão. O governo não acredita no método científico, que lida com a realidade e não com emoções. Os fatos são odiosos aos que estão no governo e a seus lacaios, que formam as turbas do mercado. Preferem fantasias e teorias que não estão baseadas em fatos e na natureza humana. É claro que isso é uma loucura. E confesso que não espero chegar à idade avançada.
Péricles fitou-o atentamente e Anaxágoras sorriu debilmente, sacudindo a cabeça.
— Serei uma vítima da verdade, que é tremendamente odiada pelos burocratas e pelas turbas. Nós dois sabemos que os sonhos são ilusórios, mas os burocratas só tratam de sonhos. Em proveito próprio, é claro. Não resta a menor dúvida de que vivemos numa era do absurdo. Sei que já tentou instituir uma religião transcendental, um monoteísmo, baseado tanto na reverência como na realidade. Assim, também corre perigo, meu caro amigo.
— Você estava falando de Íctis. Tenciono ir até a prisão esta manhã. Tentarei persuadi-lo a ser cauteloso, a não enunciar fatos nocivos a respeito de si mesmo, a não se lançar num discurso inflamado em defesa da liberdade.
— Como pode fazer uma coisa dessas, logo você, que constantemente se manifesta em defesa da liberdade do indivíduo? Não era você quem dizia que sem liberdade um homem é menos do que um animal?
Péricles fez um gesto impaciente e cansado.
— Chega um momento em que a melhor defesa e ofensiva de um guerreiro é a prudência... para poder ganhar a batalha. E salvar a própria vida. Se ele perecer... o que acontecerá com suas convicções e argumentos? Também morrerão.
— Não creio. Mas, em suma, o que está querendo dizer é que tudo se resume a uma opção entre a verdade eterna, mesmo que seja necessário morrer por ela, e a concessão.
— Zênon de Eleia já disse muitas vezes que a concessão é um meio de ganhar tempo.
Anaxágoras suspirou.
— Zênon é um intelectual. Mas agora não temos tempo para concessões. O que vai dizer a Íctis?
Péricles ficou ligeiramente irritado pelo que Anaxágoras dissera a respeito de suas próprias convicções, contra as quais estava lutando inutilmente. E disse, com alguma exasperação:
— Talvez seja melhor que você e não eu converse com Íctis!
Anaxágoras ficou esperando, enquanto fitava Péricles calmamente. Péricles levantou-se, começou a andar de um lado para outro, praguejando em voz baixa.
— Tentarei persuadi-lo a ser comedido, para o seu próprio bem, para a segurança de sua família. A cautela não deve ser desprezada, quando está em jogo a vida de um homem e a segurança de sua família. Se eu fracassar...
Péricles parou abruptamente. Anaxágoras continuou esperando.
— Se eu fracassar, só restará um recurso: defendê-lo perante a Eclésia, mesmo que tenha de declará-lo louco, não sendo assim responsável por seus escritos.
— Mas acontece que a Eclésia está querendo a morte dele acima de tudo mais. Se você os convencer de que Íctis é louco, irão encarcerá-lo pelo resto da vida.
Péricles, que começara a suar, tirou o elmo, passando a mão pelos cabelos úmidos. E disse:
— Você não oferece qualquer solução.
— Na vida, não há soluções. Um homem pode apenas fazer o melhor que pode, sob a orientação de sua razão. Reconheço que Íctis não se destaca pela razão. Ele não é um filosofo. É apenas um homem que a ama sua pátria e está disposto a morrer por ela.
— Também amo, mas tenho que enfrentar os burocratas para fazer o que é possível. Que as Fúrias acabem com todos eles!
Anaxágoras levantou-se. Apoiou as palmas das mãos na mesa e fitou Péricles fixamente.
— Sempre pode rezar — disse ele, suavemente.
Péricles soltou uma risada brusca.
— Como pode dizer uma coisa dessas, logo você, que acredita na verdade e nos fatos científicos?
— Nunca neguei a Deus. Pois a verdade, como a ciência a revela, proclama a Sua existência.
Percebendo que Péricles não estava com disposição para discussões abstrusas, Anaxágoras retirou-se. O sol da manhã entrava pela janela alta, os raios quentes, a poeira dourada flutuando. Péricles sentiu-se de súbito doente e extenuado. Seria a prudência um mero instinto de conservação ou o caminho certo do homem sensato? Era um enigma que nenhum filósofo conseguira resolver. Nem qualquer religião. Seria melhor viver na paz cautelosa ou morrer por um princípio que podia não sobreviver ao amanhã? Qual seria a verdade suprema? Talvez existisse em Deus, porque certamente não existia no homem!
Péricles mandou chamar seu carro e os guardas. Passou pela adega em que Sócrates ainda estava bebendo e meditando. Sócrates viu-lhe o rosto e pensou: Lá está um homem transtornado. E quando um homem está transtornado assim, o melhor que tem a fazer é afastar-se do tumulto da vida e dos argumentos conflitantes, para poder pensar fria e lucidamente, sem permitir a interferência das emoções. Ele deve definir seus próprios termos, à luz da razão, para depois agir de acordo, mesmo que isso seja um golpe para seu coração e sua sensibilidade. Este é de fato um mundo triste. Muitas vezes um homem pensa que está agindo nos termos de sua razão, quando na verdade seus atos decorrem de desejos ocultos e impulsos incontroláveis. Ah, como procuramos sempre enganar a nós mesmos! Frequentemente, quando acreditamos que estamos agindo pelo mais puro dos altruísmos, estamos no fundo obedecendo ao instinto de conservação. Sócrates suspirou e disse ao taverneiro:
— Torne a encher minha taça. Há ocasiões em que temos de nos refugiar no vinho, se não queremos enlouquecer.
— Os persas dizem que somente quando um homem está embriagado pode ver as coisas claramente — comentou o taverneiro.
Sócrates riu, uma risada fina e estridente, e sacudiu a cabeça.
-— Mas também se diz que o vinho é uma ilusão. — Ele tomou um gole. — Embora uma ilusão das mais agradáveis. Se os deuses não desejassem que nos embriagássemos de vez em quando, por que nos teriam ensinado a arte da fermentação? Para destruir-nos ou para proporcionar-nos uma paz momentânea?
— Os deuses não desejam a nossa destruição, Sócrates — disse o taverneiro, com um ar de piedosa virtude, percebendo que novos fregueses haviam entrado e estavam escutando.
— Quem sabe? Há ocasiões em que acredito que os deuses lamentam terem-nos criado.
É verdade, pensou Sócrates, este é um mundo doloroso, repleto de enigmas. Seria melhor ser impiedoso neste mundo ou desmanchar-se na compaixão e ser destruído? Sobreviver era ser bom. Os destruídos, portanto, não eram bons. O argumento era válido. Mas seria moral, seria verdadeiro? Era um argumento a ser debatido. Havia uma grande diferença entre a validade e a verdade.
Péricles subiu a acrópole até a prisão dos "Onze" ou Comissários Criminais, onde Íctis estava preso. Era uma prisão temível e sombria, onde somente eram encarcerados os prisioneiros mais perigosos, suspeitos de serem inimigos do Estado.
O sol estava muito quente e o céu se mostrava incandescente, um fogo azul a queimá-lo. O mar além do porto refulgia como uma planície de lua branca resplandecente. Atenas estava aninhada entre as colinas, que a cercavam com braços de ocra. Bosques de oliveiras subiam pelas encostas, numa onda de prata lavrada. A distância, podia-se avistar pequenos vales verdes faiscando ao calor com um brilho de esmeralda. Mais além, surgiam os pomares, os agrupamentos de árvores, ciprestes, palmeiras, plátanos, carvalhos. Viam-se também ao longe ovelhas e vacas, pontos minúsculos a se deslocarem na paisagem.
Os guardas sentiram-se intimidados ao verem Péricles e seu séquito. Ele foi prontamente admitido e os guardas espantados levaram-no à cela de Íctis. O que aquele homem tão poderoso teria a ver com um reles criminoso?
Como Íctis era não apenas um cidadão de Atenas, mas também de uma família ilustre, sua cela era cômoda, arejada e limpa. Um membro de sua família trouxera um tapete para cobrir o chão de pedra, alguns móveis, uma cama confortável. Mas Íctis não era um homem que apreciasse os confortos da vida, mal os percebendo ou com eles se importando. Estava sentado na cama, imerso em seus pensamentos, as mãos cruzadas entre os joelhos. O rosto extremamente sensível estava contraído, a boca suave tinha um ar de tristeza. Não era possível encontrar em toda Atenas um homem menos perigoso, pensou Péricles. Contudo, Íctis era perigoso por ser um homem de bem e amar sua pátria, pelo que devia ser punido. Também não fazia concessões à verdade. Era de fato uma ameaça aos governos, pois perturbava a morte tranquila da escravidão.
Péricles fez um gesto ao guarda para que não abrisse ainda a porta gradeada; ficou olhando para o amigo através das barras de ferro. Como muitos homens de paixões fortes e intensas, Íctis não envelhecera muito, parecendo quase tão jovem quanto o rapaz que há muitos anos salvara a vida de Péricles. Contudo, os anos pareciam ter expandido os imensos olhos castanhos, ampliado a transparência da carne, alongado o nariz trêmulo, tornado mais firme a boca emotiva. Os lisos cabelos castanhos haviam recuado no crânio delicado, de tal forma que a testa, sempre alta e larga, parecia agora dominar inteiramente o rosto. Muitos dos antigos colegas de Íctis escarneciam do que descreviam como "queixo fraco e vacilante", recuando por baixo do lábio inferior. Mas Péricles sabia, com um intenso desespero, que ali estava um homem corajoso, um homem de valor, que jamais se afastaria do que considerava o seu dever.
Péricles contemplou-o por longo tempo, as sobrancelhas franzidas numa expressão angustiada, o elmo debilmente iluminado pelas lanternas penduradas nas paredes dos corredores. Finalmente fez um gesto para que o guarda abrisse a porta e disse em tom firme e autoritário:
— Pode-se retirar que o chamarei quando eu me quiser ir embora.
O guarda saudou-o, Péricles entrou na cela e ficou esperando impacientemente até que desaparecesse o ruído dos passos do guarda que se afastara.
Íctis estremecera ao ouvir a voz de Péricles. Levantando-se lentamente, deixou escapar uma exclamação abafada; era impossível determinar se de protesto ou satisfação pela presença do amigo. Um lampião ardia na mesa ao lado da cama em que Íctis estava sentado; sobre a mesa, havia também diversos livros.
Íctis finalmente exclamou:
— Péricles! Não devia ter vindo aqui!
A voz alta era quase feminina em sua entonação. Péricles hesitou, depois estendeu a mão. Íctis apertou-a. Lágrimas afloraram-lhe aos olhos e Péricles desviou o olhar.
— Por que eu não deveria ter vindo? — indagou ele. — Não sou seu amigo?
Íctis lançou um olhar para a porta gradeada com uma expressão aterrorizada e alteou a voz:
— Não, você nunca foi meu amigo, Péricles, filho de Xantipo! Nós nos conhecíamos apenas ligeiramente, nada mais do que isso! — Ele respirou fundo, o corpo tremendo. — Se quiser ser generoso, senhor, deixe-me a sós imediatamente e esqueça... — Por um ou dois segundos, Íctis não conseguiu falar. — ... esqueça que algum dia me viu.
Péricles compreendeu no mesmo instante. Seus inimigos já o acusavam de possuir um coração de mármore, pois quase que invariavelmente se mostrava frio e distante, ao contrário da maioria dos exuberantes atenienses. Agora, porém, o rosto rigidamente controlado se atenuou e ele sentiu uma pontada de dor. Pôs a mão no ombro trêmulo de Ictís, e o apertou firmemente. Íctis tornou a sentar-se na cama, visivelmente angustiado. Péricles puxou uma cadeira e sentou-se perto dele, contemplando-o outra vez, com uma expressão terna. E disse, com a voz sonora que podia sempre provocar emoções nos outros:
— Íctis, meu amigo, meteu-se numa triste situação, contra a qual o adverti há muitos anos,
— Estou bem lembrado de que me avisou — murmurou Íctis, sem conseguir desviar os olhos do rosto que tanto amava e que adorava quase servilmente.
— Mas não deu atenção às minhas advertências.
Íctis fez um gesto desesperado com as mãos.
— Obedeci Àquele que eu amava muito mais profundamente.
— O Deus Desconhecido?
Íctis assentiu.
— O que é minha vida? Não é absolutamente nada além de obediência.
Péricles contraiu os lábios.
— Os deuses por acaso lhe comunicaram seus desejos, Íctis? Falaram com você durante a noite? Recebeu alguma mensagem de Palas Atena? Não acha que é presunção demais? Como pode saber que eram ordens e desejos dos deuses?
Íctis levou a mão ao peito magro.
— Ouvi a voz de Deus no meu coração. Deus é o inimigo da tirania, de tudo que oprime o homem. E obedecer a Deus é melhor do que obedecer a qualquer governo injusto.
Péricles franziu o rosto. Seria possível salvar aquele homem patético e inocente, aquele homem honesto e fervoroso, mas haveria sempre o perigo de retaliação. Ao final, ele acabaria sendo assassinado. Péricles coçou o queixo, os anéis falseando à luz do lampião. Inclinou-se na direção de Íctis, baixando a voz:
— Tem mãe, Íctis, tem irmãs e primos. E todos o adoram. Sabe qual será o destino deles se a Eclésia o julgar culpado de heresia e traição?
Íctis fechou rapidamente os olhos, num acesso de desespero. Tornou a abri-los um instante depois, fitando Péricles. E Péricles viu a bravura estampada naqueles olhos, a luz firme e inabalável, brilhando intensamente como uma estrela.
— Minha mãe e minhas irmãs sabem o que tenho de fazer. Sabem que não posso deixar de obedecer, que preciso lutar por minha terra, para que seja novamente livre e um sol no mundo dos homens.
— Sabe que é bem provável que todos os seus bens, terras e dinheiro sejam confiscados, que sua família seja condenada ao ostracismo, se persistir em seu curso atual?
— Sei disso.
A voz de Íctis era tão baixa que Péricles mal conseguiu ouvir. Irritado e desesperado, Péricles disse:
— A uma atitude heroica e nobre, Íctis, mas é também um sacrifício que nenhum homem deve pedir à sua família!
Ele se levantou e começou a andar pela cela, em passos rápidos e ruidosos. Íctis ficou a observá-lo, mais angustiado do que nunca, até que finalmente murmurou:
— Já conversei tudo isso com minha família e todos sabem que não posso assumir outra atitude. — Como Péricles não respondesse, aumentando a rapidez dos passos como única reação, Íctis acrescentou: — O que faria no meu lugar, meu amigo?
Péricles parou abruptamente. Virou-se para a janela pequena e alta, de costas para Íctis. Continuou em silêncio por longo tempo. Ficou segurando os cotovelos, seu gesto predileto, os dedos se contraindo, até ficarem brancos como pedra. Depois, lentamente, virou-se para Íctis, dizendo, com a franqueza fria e brutal que era tão bem conhecida dos cidadãos de Atenas:
— Não sei, Íctis, por Castor e Pólux, não sei. . .
Ele voltou a sentar-se, pondo as mãos sobre os joelhos nus. Olhou para Íctis, que não foi capaz de decifrar-lhe a expressão impassível.
— Muitas vezes penso que as nações são ingratas. Os bravos morrem por seu país e sempre morrem alegremente. Lutaram por seus povos... e seus povos os esqueceram. Talvez seja melhor ser uma doninha viva do que um leão morto. A gratidão e a memória das nações são bem curtas. Deve um homem morrer por coisas tão efêmeras?
Íctis fez um gesto de resignação e insistiu:
— Posso apenas fazer o que devo, — Como Péricles permanecesse calado, ele indagou: — O que acha que devo fazer?
Desta vez, Péricles hesitou por tanto tempo que parecia até que não tinha ouvido. Mas Íctis viu-lhe os olhos, os músculos do rosto contraídos. Péricles hesitava porque detestava as palavras que achava que não podia deixar de dizer:
— Você deve se retratar.
Íctis levantou-se bruscamente. Contemplou Péricles de cima. O amigo desviou os olhos.
— Retratar-me? Está-me recomendando que me avilte tanto assim, que negue tudo que amo e prezo, que repudie todas as minhas convicções, renuncie à minha própria vida?
Sem olhar para ele, Péricles disse:
— Alguma causa vale a sua vida, sua família e sua paz, Íctis?
Íctís sentou-se, como se os joelhos lhe falhassem. Inclinou-se na direção de Péricles e murmurou, suplicante:
— Conheço-o há muito tempo, meu amigo, tenho-me inclinado diante de sua sabedoria e integridade, do amor que sente por sua terra, pois são maiores do que o que eu tenho. Sei disso no fundo do meu coração. — Ele tornou a bater no peito frágil. — No meu lugar, tenho certeza de que não se iria retratar...
Mas Péricles disse, como se falasse para si mesmo:
— Não sei... Nenhum homem pode confiar totalmente em si mesmo, assim como não pode adivinhar o que fará sob perigo de morte ou desonra. Quem proclamar que pode é um mentiroso, querendo apenas iludir-se.
Íctis pôs as mãos sobre o rosto, como para evitar alguma visão terrível, num gesto de desespero. Depois de algum tempo, disse:
— Tenho enfrentado tudo que pode ser enfrentado, a não ser o fim supremo. E jamais me desviei. É melhor morrer do que trair a si mesmo e a tudo que faz um homem.
Péricles odiou as palavras que pronunciou a seguir:
— O melhor é comprar um tempo para respirar, depois lutar mais habilmente, mais sutilmente, com uma arma mais poderosa, conhecendo plenamente o inimigo.
Íctis baixou as mãos.
— Você faria isso, Péricles?
— Já disse que não sei. Com toda a sinceridade, é a única resposta que lhe posso oferecer.
Péricles não podia aguentar a visão do rosto de Íctis, que assumira a máscara da morte, sem viço, inexpressiva. Lentamente, Íctis desviou a cabeça. Era como se tudo que amara, tudo em que se apoiara ao longo da vida, tivesse desmoronado bruscamente, tragado por ondas silenciosas.
— Eu não gostaria que você morresse, Íctis. É um dos poucos homens de probidade que conheço, um dos poucos em quem posso confiar. Salvou-me a vida. Só por isso eu lhe serei sempre grato. Mais do que isso, porém, ensinou-me uma tremenda lição. É meu amigo e só posso dizer a mesma coisa de bem poucos homens.
O fervor começou a voltar lentamente ao rosto de Íctis, que se virou ansiosamente para Péricles.
— Neste caso, você me desprezaria se eu traísse tudo aquilo por que sempre vivi! E que é justamente tudo que você também preza, Péricles!
Péricles ficou calado. Sentia-se velho, cansado, nauseado. Pensou em Anaxágoras, no que este pensaria daquela conversa. Péricles podia ver aqueles olhos penetrantes. Pareciam fixados nele, naquela cela, reluzentes e firmes.
Levantou-se novamente e recomeçou a andar pela cela, a cabeça baixa. Íctis observava-o, acompanhando todos os seus movimentos com os olhos arregalados. A chama do lampião tremia às lufadas de ar quente que entravam pela janela. Os pergaminhos na mesa se remexiam.
Íctis voltou a falar, a voz outra vez suplicante:
— De que valeria minha vida se eu mentisse para mim mesmo, se ignobilmente me retratasse e recebesse permissão para escapulir-me, como um cão escorraçado? Como poderia viver comigo mesmo? Como poderia continuar seu amigo, Péricles, se seguisse o conselho que me está dando?
Péricles suspirou. Não parou de andar. Tateou a adaga de aço de Damasco no cinturão, sentiu as pedras preciosas do cabo. Parou diante de Íctis.
— Receio que eu também não poderia viver comigo mesmo.
Íctis cruzou as mãos, os olhos radiantes, com um brilho reverente.
— Vale dizer, Íctis, que só tenho um recurso. Vou defendê-lo perante a Eclésia.
O brilho dos olhos de Íctis desapareceu no mesmo instante. O terror e o alarma se lhe estamparam no rosto, com uma palidez mortal. Abriu a boca, num grito de pavor.
— Não! Não pode fazer isso, Péricles! Tem inimigos poderosos. Iriam aproveitar-se do fato de você me defender para destruí-lo, arruiná-lo, até mesmo provocar a sua morte!
O horror dominava-o, a angústia o confundia. Em voz tão firme que até o desconsolado Íctis prendeu a respiração para ouvir, Péricles disse:
— Passei a noite inteira pensando e cheguei à conclusão de que devo defendê-lo, se você se recusar a ser prudente. Não vamos falar mais sobre isso. Eu também, Íctis, tenho de fazer o que devo.
Íctis caiu de joelhos diante do amigo, erguendo as mãos cruzadas em sua direção.
— Não! Não vou aceitar esse sacrifício monstruoso! Não vou permitir! Quem sou eu comparado com você, Péricles, filho de Xantipo, a glória de sua terra?
— Você é meu amigo. E é mais do que isso: é um bravo.
Péricles se inclinou para levantar Íctis. Os olhos de Íctis estavam desvairados, dominados pelo pavor e pela angústia; correram pela cela, depois voltaram a se fixar em Péricles. Engoliu em seco.
As lágrimas afloraram-lhe aos olhos. Afastou as mãos de Péricles e pôs-se a balbuciar desesperadamente:
— Não! Não! Não! Não pode fazer isso! Atenas precisa de você! Não pode morrer por mim, um homem insignificante!
Antes que Péricles tivesse tempo de reagir, a mão de Íctis avançou rapidamente e segurou o cabo da adaga que estava no cinturão do amigo. Íctis levantou-se de um pulo, afastou-se de Péricles, sorriu tristemente, a adaga na mão erguida.
— Adeus, meu amigo querido! Viva por Atenas!
E antes que o aturdido Péricles se pudesse mexer, Íctis cravou a adaga no próprio peito. O sangue esguichou, Íctis cambaleou. Péricles amparou-o em seus braços, curvado sob o peso daquele corpo inerte.
Péricles levou-o para a cama, a respiração rouca e ofegante enchendo a cela.
— Oh, deuses! — balbuciou ele.
Péricles inclinou-se sobre Íctis, que estava estendido na cama, com um sorriso de felicidade estampado no rosto, um sorriso de amor e triunfo. Péricles olhou para a adaga, ainda cravada no peito de Íctis. O sangue fluía ao redor. Péricles começou a tremer. As pedras preciosas no cabo faiscavam à luz do lampião.
Íctis ainda tentou falar, mas morreu antes de consegui-lo, ainda sorrindo, de êxtase, amor e triunfo. No derradeiro momento, ele tocou a mão de Péricles, num gesto de consolo.
Sem desviar os olhos daquele semblante lastimoso, tão manso, tão vitorioso e tão destemido, Péricles fez um esforço para ficar de pé, empertigado, embora todo o seu corpo tremesse.
Íctis novamente lhe salvara a vida. Péricles cobriu os olhos com a mão e chorou.
Capítulo 12
O Rei-Arconte olhou para Dédalo com uma expressão indecifrável e disse:
— Apresentou graves acusações contra o Chefe de Estado, Péricles, filho de Xantipo. É verdade que o Chefe de Estado deve pairar acima de qualquer censura, mesmo que seja apenas um homem como nós. Na sua posição oficial, não deve ser culpado de qualquer delito, mesmo que seja apenas um ser humano em sua vida particular. Está simplesmente furioso, meu amigo, porque ele pediu a anulação do casamento, quando sua filha recusou o divórcio. — O Rei-Arconte levantou a mão. — Não nos vamos deixar dominar pelas emoções. Os seus clamores têm sido histéricos. Os problemas de sua filha, Dejanira, não têm qualquer relação com o comportamento de Péricles. Muitos homens se divorciam de suas esposas ou pedem a anulação do casamento, O governo não está interessado nem preocupado com os problemas domésticos de seus membros.
"Está querendo que seus netos, Xantipo e Paralo, voltem para a custódia da mãe, sob a sua tutela. Péricles é o pai. Os homens têm pleno arbítrio sobre seus filhos, o que não pode ser negado a Péricles. As crianças estão contentes com a companhia do pai e adoram-no. Não nos vamos preocupar com crianças, que são insignificantes. É uma fraqueza pensar em crianças, que nada são até se tornarem homens. Antes disso, são imaturas e sem qualquer importância. Não há lugar em nossa vida nacional para as crianças. O futuro delas pertence aos pais e não às mães iradas, que pensam com os ventres e não com as mentes... se é que as possuem.
"Quais são as suas outras arrebatadas acusações? Íctis morreu em sua cela, por suas próprias mãos, matando-se com a adaga de Péricles. Nega isso. Alega que Péricles, o eminente Chefe de Estado, deliberadamente assassinou Íctis, para evitar que o pobre coitado "traísse" suas ligações com Péricles! Se Péricles desejasse a morte de Íctis, poderia facilmente envenená-lo com cicuta, discretamente. Ou poderia ter repudiado a amizade com desprezo. Por que precisaria matá-lo pessoalmente? É ridículo pensar, por um instante sequer, que Péricles, o Chefe de Estado, se rebaixasse à condição de um assassino ordinário dos becos escuros da cidade!
— Eu o odeio! — gritou Dédalo,
O Rei-Arconte franziu o rosto.
— O governo não tem lugar para sentimentos pessoais. O governo é disciplinado... ou deveria ser... indiferente às aberrações de instabilidade feminina. Como Sólon disse, não se deve permitir que as mulheres interfiram nos negócios de Estado. Portanto, pare com isso. Se não for processado por calúnia, meu caro Dédalo, deverá controlar sua língua e emoções. Foi você mesmo quem promoveu o casamento de sua filha com o nobre Péricles. Agora, por algum motivo que é o único a conhecer, deseja destruir Péricles, o Chefe de Estado. Não admiro Péricles, mas sei quando algo é absurdo. Portanto, é melhor acabarmos logo com isso.
Dédalo empertigou-se, os dentes cerrados.
— Hei-de me vingar!
O Rei-Arconte deu de ombros.
— Se Péricles for misteriosamente assassinado, não me esquecerei dessas palavras. — Uma pausa e ele acrescentou: — Não estou de acordo com os planos de Péricles de desperdiçar os dinheiros públicos na construção de monumentos e templos à glória de Atenas. Não estou de acordo com a sua política. Não admiro a sua defesa do que ele chama de "o meio" entre os aristocratas e as turbas. As turbas constituem simplesmente a ralé da sociedade. Precisam ser controladas durante todo o tempo. Não faço a menor distinção entre as turbas do mercado e a promoção que Péricles faz dos comerciantes e lojistas, dos artesãos e trabalhadores especializados, das profissões inferiores, como médicos e advogados. O povo é formado por que gente? Cães, nada mais do que isso. Não obstante, Péricles tem-se mostrado um administrador prudente e eficiente. Suas opiniões são pessoais. Somente o tempo poderá dizer se ele está certo ou errado. O povo moderado de Atenas o adora e não se pode desprezar essa parcela da população. Vamos esperar. Enquanto isso, meu amigo, trate de controlar-se.
— Que as Fúrias o devorem!
O Rei-Arconte voltou a dar de ombros.
— Os deuses têm seus caminhos, que nos são desconhecidos. Se Péricles deve progredir ou morrer, é um julgamento que a eles cabe. E agora, por favor, deixe-me em paz. Estou cansado de suas explosões e acusações, nenhuma das quais é relevante.
Depois que Dédalo se retirou, o Rei-Arconte ficou pensando na confusão que resulta quando se mistura política com emoções. Os homens deviam abster-se de introduzir seus pênis nos negócios públicos e impedir que suas emoções violentas interferissem com a conduta apropriada do governo. Talvez fosse esperar demais. Por isso, não era de admirar que os governos fossem veementes e clamorosos. Nem mesmo os deuses estavam imunes às paixões.
Péricles não sabia a quem devia chorar mais, se Íctis ou sua mãe. Apesar de seus fingimentos e afetações, Agariste fora uma mãe excelente e dedicada, uma mulher realista, embora há muito tempo houvesse assegurado que fora levada para a cama por um leão branco com uma juba dourada — ostensivamente o pai de seu filho. Era a sua pequena fantasia e ninguém a levava a sério. Possuíra uma inteligência excepcional, que sempre fizera questão de alardear; fora também generosa, uma característica que procurara ocultar como sinal de fraqueza, mas que frequentemente se manifestava de maneira espontânea, muitas vezes para seu arrependimento posterior. Administrara a casa com firmeza e eficiência, fazendo com que os escravos respeitassem tanto a sua autoridade como a sua justiça. Fora uma esposa casta e amara o marido, lamentando sinceramente a morte dele, um homem do qual sempre sentira o maior orgulho, apesar da sua língua ríspida e da insistência em preservar a honra da família. Infelizmente, Agariste jamais tivera qualquer senso de humor, o que levara Xantipo a evitá-la e muitas vezes deixara Péricles irritado.
Infelizmente, não são as qualidades dos mortos que recordamos, pensou Péricles, mas, sim, os sorrisos fáceis, as palavras de amor, mesmo que falsas, a jovialidade ou a ausência desta. As banalidades nos atraem; o homem mais nobre não é recordado com afeição e reverência se era céptico em relação a seus semelhantes ou se tinha atitudes bruscas e uma honestidade inflexível. Um homem que falava a verdade era odiado durante a vida e esquecido após a morte. Preferimos os mentirosos afáveis, mesmo que nos tenham magoado e enganado.
Péricles sentia um ódio intenso contra o homem anônimo que traíra Íctis. O amigo escrevera seus protestos anonimamente. Portanto, somente alguém a quem amara e em quem confiara poderia tê-lo denunciado a seus inimigos. Mas não era o que sempre acontecia? Quem dissera que um inimigo rancoroso devia ser menos temido que um amigo declarado e pródigo em manifestações de lealdade? Ele, Péricles, tinha poucos amigos, não apenas porque era um político, mas também porque repudiava todas as adulações, todas as declarações de dedicação, todos os votos de fidelidade eterna. Desconfiava especialmente dos últimos. Era isso, aos amigos é que se devia temer.
Péricles estava determinado a descobrir o amigo querido, o amigo leal e de confiança, que fora a causa da prisão e morte de Íctis. Não havia a menor dúvida de que, se descoberto, ele iria declarar que assim agira no interesse da nação, que estava acima da amizade. Os mentirosos eram assim mesmo. A maldade era um atributo terrível que todos os seres humanos possuíam, embora divergissem em outros atributos. Era inspirada por inveja, desdém particular e cruel da vítima, ganância ou alguma mesquinha ofensa imaginária que a vítima teria infligido a seu algoz. Muitas vezes era simplesmente uma decorrência do caráter heroico desta; os homens são capazes de suportar qualquer coisa, menos a virtude profunda nos outros. Por alguma razão, a virtude provocava o ódio entre a humanidade, assim como o vício é secretamente admirado. Somos uma espécie maligna, pensava Péricles; e só não somos eliminados pelos deuses porque estes são indiferentes ao nosso destino ou então extremamente generosos.
Agora, ele tinha de procurar o amigo querido e de confiança de Íctis. Não poderia denunciá-lo publicamente, porque o governo iria elogiá-lo por sua lealdade. Era preciso assassiná-lo e, antes da morte, informar-lhe por que estava sendo executado.
Anaxágoras disse:
— Isso por acaso devolverá a vida a Íctis? Deixe Deus julgar o traidor.
— Deus é esquecido — comentou Péricles. — Quem pode saber se vivemos depois da morte? Mas um homem que sabe que está enfrentando a morte sofre terrivelmente, às vezes até enlouquece. Que seja esse o destino do traidor.
Os homens, Péricles já haviam concluído, não são comprados pela amizade, mas apenas pelo dinheiro e algumas vezes pelo medo. O medo talvez fosse o melhor meio, pois sempre poderia haver alguém capaz de oferecer um suborno em dinheiro mais alto. Assim, noite e dia, Péricles pensava na identidade do amigo confesso de Íctis. Quando a descobrisse, iria recorrer ao medo para levar alguém a matar o amigo desconhecido. Foi procurar a mãe de Íctis, que estava de cama, em sua angústia profunda. Era uma mulher de semblante generoso e atitude digna. Foi encontrar-se com Péricles no átrio de sua casa; tinha o rosto contraído de desespero, mas o comportamento era sereno. Vestia-se de preto, os olhos em chamas na aparente tranquilidade das feições.
— O melhor amigo do meu filho? Era você, Péricles, embora só o visse raramente. Íctis seria capaz de morrer por você. Seu colega mais chegado? Era Turnus, um antigo companheiro de estudos, a quem meu filho pateticamente amava. Turnus já esteve comigo diversas vezes, consolando-me, oferecendo seus serviços desinteressados...
— Ahn... — Péricles recordou-se do antigo mito de outro Turnus, que derrotara Palas e ficara com seu cinturão de ouro, cravejado de pedras preciosas. — Por acaso Íctis deixou em seu testamento alguma coisa para Turnus, que é filho de Patroclo, um dos arcontes ?
— Deixou, sim — respondeu a mãe de Íctis, cujo rosto se contraía espasmodicamente, apesar do seu controle. — Deixou um terço de seu patrimônio.
O dinheiro é sempre um estímulo à traição, pensou Péricles, com intenso ódio e amargura. Recordou-se de Turnus em sua juventude; era um jovem compenetrado, a expressão sempre ansiosa, a proclamar sua virtude e firmeza, a lealdade aos amigos, um jovem de olhos grandes e sérios, que fixava nos outros, a testemunhar sua sinceridade. Sinceridade? Era o manto dos patifes. Os homens honestos frequentemente tinham a aparência de patifes. Turnus, filho de Patroclo, o Arconte, era um homem aparentemente sóbrio e distinto, a praticar ostensivamente a caridade, sempre ativo em defesa dos amigos... ou pelo menos era o que ele próprio declarava. Péricles continuou a interrogar a mãe de Íctis. Isso mesmo, Turnus fora o único que encorajara Íctis em seus ataques ao governo venal. Chegara mesmo a ajudar Íctis no preparo de alguns panfletos. E sempre se mostrara como uma espécie de filho para ela.
Péricles lembrou que Patroclo era tão avarento quanto Dédalo e extremamente rigoroso com seu único filho, que tinha a reputação de pródigo e dissoluto e que acabara com o dote da esposa com intensa alegria. Ela pedira o divórcio, o que obrigaria Turnus a lhe devolver o dote, com juros. Mas ele não dispunha de dinheiro e o pai se recusava a dá-lo, pois não aprovava o comportamento do filho. Turnus era um homem bastante ativo, segundo Péricles se recordava. Mas todos os empreendimentos dele sempre acabavam fracassando. Era também um jogador e podia ser encontrado a qualquer momento na Agora, jogando dados, gamão, xadrez ou damas, com outros de sua espécie. Sua voz impregnada de sinceridade ressoava por toda parte. Aconselhava os amigos sobre investimentos que mais tarde provavam ser desastrosos para todos, menos para Turnus, que os persuadira a aplicarem seu dinheiro. De olhos grandes e expressão sincera, exuberante em seus negócios, entusiasmado na persuasão, Turnus já convencera muitos homens e mesmo aqueles a quem enganara ainda o julgavam um homem honrado e estavam certos de que os empreendimentos tinham fracassado apenas por azar, jamais por culpa de Turnus, que se condoía e lamentava com eles.
Péricles deixou a desconsolada mãe de Íctis, tendo-se afligido ainda mais com o sofrimento dela. Fervia de raiva e determinação. Fez algumas indagações a respeito de Turnus e descobriu algo secreto que o deixou ainda mais furioso.
Fez em seguida outras indagações a respeito de seus próprios amigos. Qual era o que mais o temia? pensou Péricles, implacavelmente.
Mandou chamar Jasão, filho de pai ilustre, que era não apenas um burocrata de grande poder, mas também ligado a Péricles pelo mais profundo respeito. Jasão era um homem alto e sereno, de meia-idade, maneiras suaves, escrupuloso em seus deveres, neste caso não por medo, mas sim por causa do seu caráter. Era famoso por sua generosidade natural, que nada tinha de simulada, e por sua compaixão, também não simulada. Ao que se soubesse, jamais cometera um ato cruel ou injusto. Ele e Péricles haviam sido colegas de estudos e ambos tinham protegido Íctis. Jasão era também um patriota e amava Atenas quase tanto quanto Péricles. Péricles sentia por ele uma afeição profunda e frequentemente o consultava, em problemas mais difíceis. Contudo, sem a menor hesitação, Péricles escolheu-o para ser o carrasco de Turnus, a quem Jasão desprezava.
Jasão não apenas respeitava Péricles, como também lhe retribuía a afeição. Péricles o incluía entre os seus poucos amigos. Cumprimentou Jasão com a sobriedade habitual, mas sorriu e estendeu-lhe a mão, na intimidade de sua casa. Péricles pediu vinho e pastéis para o amigo; enquanto comiam e bebiam, conversaram sobre os negócios de Estado. Jasão estava desconcertado. Haviam conversado sobre aqueles mesmos problemas no dia anterior. Fixou os olhos castanhos em Péricles com extrema curiosidade; mas como era um homem cortês, não perguntou por que fora convocado para um encontro com Péricles quase ao pôr-do-sol.
A atitude de Péricles mudou abruptamente e ele assumiu aquele olhar cego que tanto intimidava os outros. E disse em voz baixa:
— Pensei muito hoje em como você assassinou sua esposa, Calipso, há dois anos.
Jasão empalideceu, as feições suaves se lhe contraíram. Ficou olhando para Péricles, sem dizer nada.
— É verdade que ela merecia ser morta — acrescentou Péricles, suavemente, sacudindo a cabeça. — Afinal, era famosa pelo temperamento perverso e pela depravação. Não abusou de você e dos filhos que você teve de sua primeira esposa falecida? Não lhe mentiu, a fim de que as crianças não pudessem herdar seus bens? Não tentou aviltar sua filha para que perdesse a estima do pai? E também não o traiu, pois era uma mulher de extraordinária beleza? Mas você a amava e confiava nela, apesar dos terríveis defeitos de caráter de Calipso. Nossos corações sempre nos traem e somos impotentes quando atingidos pelas flechas de Eros, mesmo quando tudo indica que a pessoa a quem amamos nos enganou, insultou e injuriou.
Jasão tinha a boca e a garganta tão ressequidas que emitiu um ruído de vômito. Depois de uma ou duas tentativas, conseguiu finalmente encontrar a voz:
— Por que me está recordando tudo isso, Péricles?
Como se Jasão não tivesse falado, Péricles continuou:
— Ame e confie... e morra. É sempre inevitável, como já constatei. Somos levados à loucura em relação àqueles a quem amamos e em quem confiamos, pois não passamos de seres lamentáveis, escravizados por nossas paixões degradantes. Quem não as despreza?
Os olhos impassíveis fixaram-se novamente em Jasão, que começara a tremer.
— Realmente, sua esposa merecia morrer. Contudo, não a matou pessoalmente. Contratou um assassino e pagou-o generosamente. Mas depois ele começou a oprimi-lo, exigindo mais dinheiro do que fora combinado, sob a ameaça de traição. Disse que escreveria uma confissão e em seguida fugiria para a sua terra natal, a Arábia, a fim de escapar à punição.
"Você veio procurar-me, a mim, seu amigo, em desespero, pois sabia que eu sou um homem discreto e que tudo faz por amizade. Expôs-me toda a situação. Estava pensando em contratar outro assassino, para se livrar do árabe. Contudo, temia que ele também pudesse traí-lo mais tarde. O assassinato é uma corrente interminável. O assassino não sabia que eu era seu amigo. Mandei investigá-lo. Era um ladrão, embora soubesse esconder muito bem os seus crimes, já havia assassinado outras pessoas. Mas não havia qualquer prova concreta contra ele, pois era um homem esperto e hábil. Consegui, porém, obter as provas necessárias e ele foi devidamente executado.
— Foi isso mesmo — murmurou Jasão.
Pela primeira vez, ele percebeu um brilho perigoso nas profundezas daqueles olhos impenetráveis, Péricles suspirou e recostou-se na cadeira, como se estivesse extremamente cansado.
— Há uma coisa terrível que aprendi neste mundo dos homens, um mundo que não criei. Mantenho fichas completas de amigos e inimigos, que acumulei pessoalmente. Todos sabem que não sou um homem maligno... mas confio em bem poucos, se é que em alguém. Não se sinta ofendido, Jasão. Considero a amizade algo extremamente frágil e os amigos, imprevisíveis. O irmão de hoje pode-se transformar num inimigo mortal, com ou sem provocação. Assim é a natureza humana.
Sentindo que estava morrendo, Jasão novamente sussurrou:
— É meu inimigo, Péricles?
Péricles sorriu ligeiramente, embora a consciência o estivesse atormentando. E disse francamente:
— Ainda não, Jasão. Mas tenho a sua ficha e esperava jamais ter que usá-la. De qualquer forma, tenho que me proteger. Creio que nunca precisarei entregá-lo aos carrascos. Mas, como dizem os egípcios, quem sabe o que o amanhã nos reserva?
— Pretende usar o dossiê contra mim, Péricles?
— Não... a menos que me force a isso, tornando-se meu inimigo ou por qualquer violação dos seus deveres. Pode confiar em mim um pouco mais do que nos outros. Quero saber de uma coisa. Conhece o nome e o paradeiro do segundo assassino profissional a quem pensou em contratar para liquidar o primeiro?
Jasão engoliu em seco.
— Conheço. — Péricles assentiu e Jasão acrescentou: — Deseja que alguém seja assassinado, Péricles?
— Exatamente. Quero a morte de Turnus, o filho de Patroclo. Descobri que foi ele quem denunciou às autoridades o nosso pobre amigo Íctis. Amor e confiança! Ah, quantas monstruosidades são cometidas à sombra dessas virtudes! Talvez até sejam justificadas... Mas não importa. Quero a morte de Turnus, o mais depressa e secretamente que for possível. Seu assassino pode tramar um aparente acidente para provocar-lhe a morte, assim como o primeiro assassino fez com sua esposa.
— Turnus, o filho de Patroclo, o Arconte! — O rosto de Jasão estava quase em estado de choque. — Foi ele quem traiu Íctis? Mas esse é um crime de proporções calamitosas! O pai dele é um homem muito poderoso e não vai aceitar calmamente um acidente com o filho. Irá investigar e estarei perdido!
— Não precisa desesperar-se. Daremos um jeito no assassino. Tenho meus planos. O homem será surpreendido no ato de cometer o crime e será também morto, antes de ter tempo de falar. É uma promessa que lhe faço. Providenciarei tudo, os detalhes serão previstos meticulosamente.
Tremendo mais do que nunca, Jasão abaixou a cabeça e ficou pensando. Depois de algum tempo, tornou a erguer a cabeça e fitou Péricles.
— Por que não lhe posso dar o nome do assassino e você providencia tudo pessoalmente... meu amigo?
Péricles sorriu novamente.
— Sou o Chefe de Estado.
Jasão cruzou as mãos, num gesto convulsivo.
— Detesto o assassinato.
— Eu também. Mas, algumas vezes, é eficaz... e necessário. Não foi o caso de sua deplorável esposa?
Jasão estremeceu.
— Eu estava à beira da loucura. Mas um assassinato sempre leva a outro...
— Discordo... meu amigo. — Péricles tirou do cinturão uma bolsa com moedas de ouro e colocou-a em cima da mesa. — Não precisa comprar pessoalmente o assassino, Jasão. O dinheiro será meu. Há um outro problema. Antes da execução, que será de livre escolha do assassino, este deve dizer a Turnus: "Esta é a vingança por Íctis." Que Turnus pense nisso antes de morrer. Caso contrário, o assassinato não terá sentido.
Como Jasão nada falasse, Péricles acrescentou:
— O primeiro assassino foi realmente inventivo. Calipso foi acidentalmente enforcada por seu próprio colar de pérolas, que se prendeu num gancho do quarto. Espero que o segundo assassino seja igualmente inventivo. Mas somente você poderá saber. E não precisa contar-me.
Jasão continuou calado. Péricles suspirou.
— Se Turnus não for executado... e devemos considerar que será uma execução justa... então serei obrigado, por uma questão de honra, a tornar público o dossiê que tenho sobre você, meu pobre amigo.
Jasão balbuciou:
— Se o fizer, certamente haverão de perguntar por que não apresentou o dossiê antes.
Os olhos de Péricles assumiram uma expressão de inocência.
— Ora, meu caro Jasão, sou um homem escrupuloso e quis completar investigações meticulosas antes de acusá-lo prematuramente! E o dossiê só ficou totalmente pronto ontem!
— Nunca pensei que me pudesse fazer uma coisa dessas, Péricles, que fosse capaz de causar-me a ruína.
— E por acaso a causei? Não pretendo fazê-lo, a menos que se torne meu inimigo ou deixe de cumprir os seus deveres.
— Jamais farei isso e você sabe perfeitamente, Péricles.
Péricles deu de ombros.
— Não faça promessas precipitadas, Jasão, pois é apenas um homem e também possui a maldade em seu coração, como todos os seres humanos, independentemente de posição ou virtudes pessoais. Confio em você tanto quanto sou capaz de confiar em alguém... o que não posso deixar de confessar ser muito pouco. Há ocasiões em que os homens são levados à maldade apesar de todos os seus escrúpulos. Diga-me uma coisa, Jasão: não acha que Turnus merece... a execução?
— Acho, sim — respondeu Jasão, com uma sinceridade relutante.
— Neste caso, pense no que lhe estou propondo não como um assassinato, mas sim como uma execução justificada. Como sabe, sou um homem que respeita a lei e a ordem. Mas há algumas coisas que estão além do alcance da lei. Não estou defendendo a justiça particular, embora a considere algumas vezes necessária. O crime hediondo deve ser punido. A lei costuma ser morosa, mesmo quando o crime é óbvio. Contudo, frequentemente os piores crimes são tão habilmente tramados que não é possível obter provas, o que deixa os juízes frustrados. Somos agora os juízes de Turnus, que não apenas está fora do alcance da lei convencional, como também seria exaltado pelo governo por seu ato de "patriotismo".
Jasão cobriu parcialmente os olhos com a mão.
Péricles fitou-o com uma expressão impaciente.
— Pensei que já lhe tivesse dito, Íctis o amava e confiava nele, o que despertou o escárnio e a maldade de Turnus. Ele também procurou o lucro. O governo cancelou-lhe as dívidas.
— Ó deuses, como o homem pode ser tão perverso? — gritou Jasão.
— Eis algo que jamais contestei. Nossa iniquidade clama por vingança dos próprios deuses.
Jasão levantou-se, lentamente, as mãos tremendo de maneira visível. Olhou para a bolsa com as moedas de ouro por um longo tempo; Péricles ficou observando-o. Depois, Jasão pegou a bolsa, subitamente determinado.
— Será feito o que é preciso.
Péricles abraçou-o.
— Acha por acaso que é um julgamento mesquinho da minha parte e que estou contente por isso? Pode estar certo de que não. E não sou apenas o Chefe de Estado, mas também não conheço nenhum assassino.
— Vai destruir o dossiê contra mim depois que tudo estiver acabado, Péricles?
Péricles ficou em silencio por um longo tempo e depois sacudiu a cabeça, genuinamente pesaroso.
— Não, Jasão. Eis algo que não lhe posso prometer. Um dia, você pode-se tornar meu inimigo. Rezo para que isso não aconteça, pois o amo.
Depois que o desolado Jasão se retirou, Péricles entregou-se à sua própria angústia. Fora impiedoso, muito mais do que costumava ser. Não lhe agradava o sofrimento que impusera a Jasão. Mas Jasão era apenas um instrumento em nome da justiça. E a justiça, aquela deusa tantas vezes injuriada, precisava ser apaziguada. Os próprios deuses frequentemente escolhiam os homens para serem os instrumentos da punição aos maus.
Cinco dias depois Turnus retirou-se bruscamente de um jogo de dados com os amigos e mandou buscar seu carro, dominado por um nervosismo intenso. Depois partiu em grande velocidade na direção da casa do pai. Os cavalos tropeçaram misteriosamente ou ele os chicoteou com um frenesi excessivo. Turnus foi arremessado para fora do carro e bateu com a cabeça numa coluna de mármore, morrendo. Os amigos comentaram a sua palidez súbita em meio ao jogo, seus olhos desvairados, a fuga inesperada. Jasão estava entre eles.
Péricles mandou chamar Jasão, que entrou em seu gabinete em silêncio, o rosto extremamente pálido e impassível. Péricles fechou a porta e disse:
— Nêmesis estava com ele.
— Tem razão — murmurou Jasão, fechando os olhos por um momento.
— Seu assassino é um homem muito esperto, Jasão. Infelizmente, meus agentes não tiveram tempo de eliminá-lo, pois não recebi qualquer aviso da sua parte.
Jasão permaneceu calado, a cabeça baixa, olhando para o chão. Péricles continuou:
— Precisamos saber o nome dele e onde vive.
Jasão sacudiu a cabeça.
— Ele jamais falará.
Jasão pôs em cima da mesa a bolsa com moedas de ouro que Péricles lhe entregara. Péricles ficou olhando para a bolsa, dominado por uma compaixão profunda. E finalmente disse:
— Não me deve contar nada. — Foi até um armário, abriu uma arca de latão e tirou um maço de papéis enrolados. Entregou-os a Jasão. — Eu também jamais falarei. Aqui está seu dossiê, meu amigo. Destrua-o o mais depressa possível.
Espero jamais ter que me arrepender deste gesto, pensou Péricles, tristemente. Jasão balbuciou:
— Ele era um homem dos mais iníquos.
No dia seguinte, Anaxágoras disse a Péricles:
— Deus impôs Sua própria vontade para vingar Íctis.
Péricles sorriu-lhe suavemente,
— Não foi um golpe de sorte? Nem precisei interferir.
Anaxágoras retribuiu o sorriso, embora relutantemente.
— Quem pode limitar os instrumentos de Deus? Ele muitas vezes utiliza os homens para executar Sua vontade. — Tomou um gole da taça de vinho e acrescentou: — Contudo, não deve presumir sempre, Péricles, que os seus atos representam a vontade Dele. Ele pode ter outros planos.
Capítulo 13
Péricles chegou à casa de sua amada Helena, que o saudou com seu sorriso costumeiro, efusivo e jovial, abraçando-o.
— Receio perdê-lo esta noite, ó meu Apolo!
— Jamais, minha Hebe!
—Péricles—beijou-a ternamente e afagou-lhe os cabelos castanho-avermelhados, presos pelas travessas de diamantes que lhe dera. Não brilhavam mais do que os olhos de Helena. Ele deu-lhe uma palmada no traseiro e Helena conduziu-o do átrio ao salão de jantar, rindo. Ela sussurrou-lhe uma anedota lasciva e Péricles sorriu em apreciação, embora não admirasse a licenciosidade nas mulheres, a não ser na cama. Mas os médicos eram famosos por seus gracejos impróprios.
O salão já estava repleto de convidados, embora estes ainda não se tivessem sentado. Os escravos circulavam entre os convivas, com vinho, cerveja e uísque, além de acepipes saborosos. As cortinas de seda nas portas e janelas moviam-se à brisa que soprava e podia-se ouvir um ribombar distante e ameaçador nas colinas, onde se avistava de vez em quando o clarão azulado de um relâmpago. Lindos lampiões egípcios e damasquinos, de vidro, ouro e prata, estavam na comprida mesa de jantar, à espera; nos afrescos do teto havia ninfas, sátiros e faunos, em cores intensas, A mesa estava coalhada de rosas do final da estação, lírios e samambaias, que espalhavam sua fragrância pelo salão. As cadeiras e divãs, tanto à mesa como encostados nas paredes de mármore amarelo, eram forrados de seda e veludo, de muitos matizes, mas todos se combinando harmoniosamente. Até mesmo os vasos chineses, transbordando de flores, nos cantos e junto das paredes, haviam sido escolhidos com um gosto criterioso, por suas formas e decorações. Helena era médica, mas também uma mulher de apurado gosto artístico.
Helena raramente convidava, se é que alguma vez já o fizera, matronas insípidas e apáticas. Assim, Péricles sabia que as lindas mulheres presentes eram ricas, cortejadas e sedutoras cortesãs, todas escolhidas criteriosamente por sua aparência, espírito, inteligência e talentos de entretenimento. Constatou, com extremo prazer, que seus amigos Zênon de Eléia e Anaxágoras estavam entre os presentes. Mas foi com surpresa que descobriu entre os convidados o jovem Sócrates, malvestido, com sua barbicha de bode, o rosto feio, a vivacidade constante. E o que deixou Péricles ainda mais surpreso foi observar que Zênon e Anaxágoras escutavam-no atentamente e com evidente satisfação. O tímido escultor, Fídias, também estava presente.
Péricles parou à entrada do salão, ao lado de Helena, contemplando os convidados, especialmente as mulheres, antes de seguir adiante. Lindas mulheres não eram novidade para ele; conhecia a maioria das mulheres presentes e já lhes desfrutara a companhia e a conversa. Mas seu coração entrou em erupção no instante em que viu a desconhecida. Estava inteiramente perdido.
Era a mulher de sua estatueta e de seus sonhos, a mulher com quem, numa fantasia inebriada, consumara o casamento com Dejanira. Ela não era jovem; devia ter vinte e poucos anos e assim já perdera o primeiro viço da juventude. Mas tinha a maturidade de uma pera pronta para ser comida, de uvas aguardando o momento de se transformarem em vinho. Falava com Fídias, a expressão compenetrada, uma taça na mão; o escultor estava extasiado. Era bem mais alta do que Fídias e, ao contrário das outras mulheres, os cabelos dourados caíam-lhe soltos pelas costas, quase até os joelhos. Usava uma grinalda de botões de rosa. Possuía a sedução e o corpo esguio de uma cortesã, a mesma elegância de gestos. A túnica era de seda verde, a cor predileta de Péricles, e parecia flutuar em torno do corpo mais como água tingida do que como tecido. Os contornos do corpo eram inacreditavelmente perfeitos, os seios empinados e cheios, a cintura delicada e frágil, os quadris se projetando graciosamente. Tinha a cintura envolta por um cinturão de ouro, cravejado de pedras preciosas. Trazia braceletes nos braços muito brancos e redondos, pulseiras nos pulsos finos, anéis faiscantes nas mãos adoráveis. Usava sandálias de ouro, também cravejadas de pedras preciosas. Quando ela se mexeu, Péricles pôde contemplar-lhe os tornozelos, tão bem torneados quanto os de uma estátua. Sentiu uma atmosfera diferente e estranha a envolvê-la, uma ausência de consciência pessoal, uma falta de artifício, apesar do esplendor dos trajes e das joias, especialmente de um colar incomparável de opalas, rubis e diamantes. Sua atenção profunda não estava concentrada em si mesma, como faziam as outras mulheres, mas em Fídias, a quem ouvia com interesse e respeito. O escultor mostrava-se quase exuberante na presença dela, esquecido de sua timidez, os olhos brilhando ansiosamente. Não estava gaguejando, os gestos eram veementes, a animação o dominava visivelmente. Péricles ficou impressionado.
Péricles contemplou o rosto da desconhecida, não querendo acreditar que um semblante pudesse ser tão impecável, quer ela estivesse de perfil ou de frente.
O rosto, como os braços, ombros e pescoço, parecia translúcido, dava a impressão de que a luz passava através dele e não ao redor. As faces e os lábios eram de um vermelho natural, os olhos castanhos mais pareciam vinho, o nariz era perfeito, havia uma covinha no queixo. A boca maravilhosa insinuava uma grande firmeza, como se ela muito houvesse sofrido, mas agora tivesse uma extrema serenidade, que não era afetada, mas natural. Parecia equilibrada e controlada, deixando transparecer um alto grau de disciplina pessoal. Às vezes, inclinava a cabeça para trás, num gesto gracioso de impaciência, mas jamais deixava de prestar atenção ao que Fídias dizia, aparentemente cativada pelas palavras dele. Sorriu em determinado momento, exibindo covinhas deslumbrantes nas faces. Acima de tudo, aparentava possuir uma inteligência excepcional.
— Aquela é Aspásia — sussurrou Helena, sorrindo. — A harpia, a Medusa...
Confuso, Péricles pensou em Helena de Tróia, em ninfas e dríades, em águas verdes e luar, fogo, chama e neve, em clareiras repousantes e tempestades furiosas. Aquela mulher era todas as mulheres numa só. Contudo, não aparentava docilidade e complacência, apesar de todos os seus atributos femininos. Era uma mulher de convicções, inteligente, opiniões definidas e firmes, que bem conhecia a natureza humana, sabia que podia ser dobrada pelo amor, mas jamais quebrada. As paixões podiam dominá-la por um instante, mas jamais a destruiriam. Permaneceria sempre ela mesma, intacta e invulnerável. Havia algo de impressionante em torno dela, algo que advertia contra as intrusões vulgares, pois tudo nela insinuava uma aristocracia expressa.
Ela virou a cabeça uma ou duas vezes, olhando para Péricles, mas como se não o visse. Péricles pôde constatar que os olhos dela eram repletos de luzes brilhantes, como água a se deslocar ao sol. O que não os impediam de serem indecifráveis, encimados por pestanas douradas. Ele pensou num remanso no meio da floresta, as sombras mudando de posição com o vento que sopra por entre as árvores, contendo segredos profundos, nada vendo senão o próprio ser.
Nisso ele estava enganado. Aspásia, embora escutando atentamente o que Fídias dizia, notara imediatamente a presença de Péricles e soubera quem ele era. Um olhar de relance lhe revelara a alta estatura de Péricles, a força do corpo compacto, os cabelos louros lembrando a juba de um leão, a aparência de poder e segurança, sem qualquer ostentação. Ela contemplara o rosto de Péricles, sereno e impassível, rigorosamente controlado, o nariz reto e firme, os lábios severos que pareciam esculpidos no rosto. Vira também o elmo, que ele invariavelmente usava, até mesmo em ocasiões festivas, para ocultar a testa e o crânio alongados. Ele usava uma túnica verde e uma toga de linho branca, cinturão e braceletes de prata, uma única joia no dedo, uma safira tão azul e iridescente quanto o céu da Grécia. Ele é poderoso, pensou Aspásia, um homem entre os homens; Helena não exagerara em seu entusiasmo exuberante. E Péricles tinha os olhos tão claros que pareciam nem ter foco. Ela duvidava de que aqueles olhos deixassem de perceber qualquer coisa, mesmo o que não tivesse maior importância. Acima de tudo, ele possuía a imponência olímpica.
Ela sentiu-se arrebatada, pela primeira vez desde que partira de Al Talif, o que não a agradou. Prometera a si mesma que nunca mais voltaria a olhar para outro homem com interesse ou atração. Como os dois eram diferentes, o homem impenetrável e complexo do Oriente e aquele homem do Ocidente com a aparência de mármore inalterável! Aspásia percebeu que estavam fixados nela os olhos de Péricles, aqueles olhos inexplicáveis, que nada revelavam. Não restava a menor dúvida de que, para ele, Aspásia não passava de outra mulher bonita, pronta para ser explorada. Pois ela iria mostrar-lhe. Helena assegurara que Péricles não era como os outros homens, mas a céptica Aspásia não acreditava.
Ela permitiu que um escravo tornasse a encher sua taça. Bebia quase com a mesma satisfação que Helena. Olhou rapidamente para Péricles. Ele não demonstrava qualquer aversão ou desagrado. Helena e Péricles aproximavam-se agora e Aspásia exibiu-lhes um rosto sem qualquer expressão, nem mesmo um vestígio de sorriso. Disse para Fídias, em sua voz maravilhosa:
— Devemos continuar a nossa conversa, pois também penso em Atenas como a glória da Grécia.
Virou-se para Helena e Péricles, os olhos apenas expectantes, corteses. Helena dissera-lhe:
— Péricles é um homem que respeita as mulheres e não as considera como animais, próprias apenas para procriar, ou estúpidas. Conhecendo-o, poderá exercer alguma influência sobre ele.
Aspásia sorriu ceticamente para si mesma. Helena era uma mulher inteligente, mas Aspásia desconfiava de que ela era ardorosa demais em seus relacionamentos com os homens e excessivamente crédula. Afinal, Helena sempre se gabava de seus amantes, afirmando que todos eram homens inteligentes, além de distintos, com a maior consideração pelas mulheres. Aspásia agora desconfiava de todos os homens, recordando-se de Al Talif. Levava uma vida ascética desde que o deixara, apesar dos rumores maliciosos que circulavam em Atenas. Prometera a si mesma, vezes sem conta, que jamais voltaria a amar outro homem. Isso só levava à destruição. Targélia tinha razão, o que não a impedia de ainda amar e sentir saudade de Al Talif, ansiando por seus beijos e carícias.
Helena abraçou Aspásia, como já o fizera antes, e exclamou:
— Você se torna mais fascinante a cada momento que passa. Cuidado! Péricles, filho de Xantipo, Chefe de Estado, se dignou de nos dar a graça de sua companhia esta noite. Já lhe falei muito a respeito dele.
Ela olhou divertida para Péricles, que pegou a mão de Aspásia, inclinou-se e beijou-a.
— Os rumores a seu respeito não eram falsos — murmurou ele.
Aspásia ficou satisfeita com a voz eloquente de Péricles.
— E o que dizem os rumores a meu respeito?
Péricles viu as luzes intensas nos olhos dela dançarem brejeiramente. Ainda segurando-lhe a mão, sorriu e respondeu:
— Apenas o que é elogioso.
— É extremamente generoso, mas não o creio.
Péricles constatou que ela possuía um brilho malicioso nos olhos, e que parecia subitamente uma menina. Apertou-lhe a mão com mais força, quando Aspásia tentou retirá-la. Ela franziu de leve o rosto, de onde o sorriso desapareceu. Sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo; o ponto de sua mão em que haviam pousado os lábios de Péricles pareciam estar em brasa, um calor intenso se lhe irradiava pelo braço. Há dois anos não se sentia assim e ficou assustada. Estava confusa; fitou os olhos claros de Péricles e compreendeu que estava na presença de um homem implacável. A emoção a dominou, toda a sua carne parecia latejar.
— Já ouvi falar de sua escola — comentou Péricles.
— O que muito me agrada, senhor. Educo moças dos doze aos dezessete anos, para que se possam tornar dignas cidadãs de Atenas.
Aspásia ficou esperando um comentário jocoso, um dar de ombros. Mas ele continuou a fitá-la com toda a seriedade, dizendo apenas:
— Infelizmente, elas não podem votar.
— Houve uma época, nos tempos homéricos, em que as mulheres votavam. E não tenho a menor dúvida de que uma mulher é tão digna de votar quanto as turbas do mercado.
O intenso interesse de Péricles por ela aumentou ainda mais. Ali não estava uma mulher leviana e inconsequente; a sua primeira impressão a respeito dela estava confirmada.
— Concordo plenamente, Senhora. Tive uma mãe de inteligência excepcional, que valia pelo menos dez mil homens das turbas do mercado.
Ele sorriu para Fídias, que timidamente estava tentando afastar-se.
— Fídias, temos muito que conversar, sobre seus planos para glorificar nossa cidade.
— Estou inteiramente ao seu dispor, Péricles. Já tenho os primeiros desenhos do Partenon. — O rosto de Fídias adquiria uma súbita animação. — E espero que os aprove.
Péricles assentiu, virando-se novamente para Aspásia, cuja mão ainda segurava.
— Diga-me uma coisa: o que ensina às moças em sua escola para ter conquistado tanto renome?
— História, ciência, arte, matemática, medicina, patriotismo, poesia, literatura, responsabilidade, autoestima, astronomia, arquitetura... qualquer que seja o caminho indicado por seus talentos naturais. — Aspásia ficou à espera de um altear de sobrancelhas desdenhoso, mas Péricles continuou sério. — Não ensino os deveres domésticos, pois isso é da esfera das mães; também não ensino religião, que é da esfera dos sacerdotes.
— E também não ensina canto nem dança?
— Não, não ensino. As artes de entreter devem ser ensinadas pelas mães. — Aspásia voltou subitamente a sorrir, as covinhas reaparecendo-lhe no rosto, — Certamente as mães são especialistas nisso, sendo casadas!
— Todas as moças em sua escola são inteligentes, Aspásia?
— Não aceito nenhuma com quem não tenha conversado pessoalmente e a quem não tenha aprovado. Não quero tolas nas minhas turmas, para exasperar os mestres e degradar o ensino. Minha escola não é um lugar para frivolidades e conversas inconsequentes. Também ensino ginástica, para a saúde das moças e desenvolvimento de seus corpos. Como os gregos dizem, uma mente sã precisa de um corpo sadio, para poder ser plenamente eficaz.
— Já conheci muitos grandes homens que não possuíam um corpo sadio, Aspásia. E também já vi muito homem sadio com mente de porco.
— O que realmente acontece, senhor. Ambos os tipos são infelizes. Faço o que posso em minha escola. Tenho duas moças que possuem membros deformados, mas são excepcionalmente inteligentes. Não sei como escaparam ao infanticídio. Provavelmente foram salvas pelas mães.
— É uma escola extraordinária — comentou Helena, notando que Péricles não largava a mão de Aspásia, apesar dos esforços esporádicos desta para se desvencilhar. — Devia mandar homens sérios observá-la.
— Vou-me lembrar disso — declarou Péricles.
Era um comentário polido, mas Aspásia não teve a menor dúvida de que Péricles falava a sério, não ociosamente.
— Ouvi dizer que é jônia e passou alguns anos na Pérsia — disse Péricles.
Isso quer dizer que ele sabe alguma coisa a meu respeito, pensou Aspásia. Ela fitou-o diretamente, com seus olhos luminosos.
— Fui companheira de um sátrapa persa durante quase cinco anos. Ou melhor, ele era medo.
— E ele deixou-a ir-se embora? — indagou Péricles, em tom incrédulo.
— Não. Eu o deixei por minha própria vontade. — Ela respirou fundo, sem desviar os olhos de Péricles. — Fiquei desolada e desesperada, mas tinha que deixá-lo, pois jamais poderei compreender o Oriente. Ele morreu há dois anos e deixou-me uma vasta fortuna. — Os olhos de Aspásia mostraram-se subitamente enevoados. — Ele já me havia procurado antes, sem conseguir encontrar-me. Seus advogados tiveram mais sorte. Estou usando o dinheiro que ele me deixou, na escola. Coisa que, tenho certeza, ele não aprovaria.
Ela não falava como as gregas e outras mulheres tinham o hábito de falar, timidamente, assustadas, desviando os olhos ao se dirigirem a um homem desconhecido. Ao contrário, falava com a franqueza de um homem, natural e objetivamente. Possuía um destemor óbvio, uma segurança incontestável.
Ela ainda ama o sátrapa, pensou Péricles, e o amor é a armadura de uma mulher contra os outros homens. Ali estava uma mulher que uma vez entregara seu coração com toda a paixão, talvez pelo resto da vida. Por alguma razão, isso o deixou irritado. Apesar do que Helena lhe dissera a respeito de Aspásia, pensara que ela teria o maior prazer em cair nos braços do Chefe de Estado, um homem rico e bonito. Afinal, ela era uma cortesã. Agora, Péricles estava em dúvida, o que só fez aumentar o desejo que já sentia por ela. Aspásia já não estava sequer sorrindo. O rosto empalidecera um pouco, como se a memória lhe trouxesse de volta os sofrimentos passados. Percebendo-o, Péricles sentiu um profundo respeito por ela, uma imensa ternura, desejando abraçá-la e confortá-la, não com paixão, mas com uma suave compreensão que nunca antes sentira por qualquer outra mulher.
A trovoada que rugia ao longe, nas colinas, avançou agora para a cidade, com os raios iluminando todas as janelas, o vento soprando forte e uivando por toda parte. Os escravos apressadamente trataram de fechar todas as portas e janelas, puxando as cortinas. Lá fora, as árvores começaram a tremer à aproximação da tempestade.
— Deve falar-me a respeito de seu persa... ou medo — disse Péricles. — É um povo poderoso, bravo além de qualquer imaginação, com uma história magnífica. Eu o respeito muito, mesmo como grego.
— Eles estão além da nossa capacidade de compreensão, por serem orientais — respondeu Aspásia.
Um suspiro escapou de seus lábios. E no mesmo instante Péricles viu o que era uma angustia intensa.
Os convidados se distribuíram pela mesa, rindo e conversando jovialmente. Esquecendo até mesmo a sua Helena, Péricles levou Aspásia para a cadeira ao lado do divã todo ornamentado que lhe estava reservado como o convidado mais eminente. Podia sentir o perfume dela, de lírios; perguntou-se se o perfume era o que agradava ao sátrapa persa, se Aspásia não o estaria usando em memória dele. Sentiu uma pontada de ciúme. Era a mulher mais linda que ele já conhecera, embora constatasse que não era deliberadamente voluptuosa nem recorria conscientemente às artes da sedução. Havia em Aspásia uma pureza excepcional, quase virginal, apesar de ser ela uma cortesã. Péricles já não acreditava nos rumores indignos que ouvira a respeito dela. Aspásia se despojara, como se fosse um traje, das lições que lhe haviam sido ensinadas por Targélia, os artifícios, sorrisos afetados e atitudes graciosas para seduzir e reter um homem. Se ela possuía alguma paixão agora, era por sua escola. Ele ouvira dizer que Aspásia tivera amantes, a fim de arrumar dinheiro para sua escola de moças. Mas sabia que não era verdade. O sátrapa deixara toda a sua fortuna para Aspásia. Devia tê-la amado profundamente, pensou Péricles, com uma pontada de ciúme ainda mais forte do que a anterior e também com algum ressentimento. Chegou à conclusão de que odiava o sátrapa, que a tirara da casa de Targélia diretamente para a sua cama.
Os convidados começaram a ocupar seus lugares, ainda conversando. Subitamente, a trovoada tornou-se mais intensa, houve um ribombar subterrâneo; a terra tremeu, os lampiões e cortinas no salão balançaram. Os convidados se entreolharam, assustados.
— Plutão está-se remexendo em seu leito de trevas -— comentou alguém. — Não resta a menor dúvida de que Proserpina está em seus braços.
Alguns riram, embora dominados pela apreensão. Ficaram esperando outro estrondo ameaçador, que não veio. As cortinas se aquietaram, o chocalhar das travessas, talheres e copos cessou.
— É estranho que as forças da natureza nos perturbem mais do que a extrema crueldade dos homens — disse Sócrates, em sua voz estridente. — Isso acontece porque não podemos controlar a natureza, mas podemos demonstrar uma crueldade ainda pior para com os inimigos.
— Nós, cientistas, estamos convencidos de que um dia poderemos controlar a natureza — comentou Anaxágoras.
Sócrates fitou-o com os olhos brilhando.
— Isso será uma calamidade ainda pior do que as fúrias incontroláveis da natureza. Não confio nos meus amados semelhantes. Somos mais inventivos que a natureza e temos a maldade no coração. A natureza, pelo menos, não faz discriminações e não conhece as paixões malignas.
— Você é sofista — disse Zênon.
— Não, sou estoico — respondeu Sócrates, — Suporto todas as coisas, até mesmo a humanidade, que é o mais difícil de todos os desastres a se suportar.
E ele riu jovialmente, a barbicha ridícula se sacudindo. A tempestade desabou sobre a cidade. Podiam-se ouvir os uivos frenéticos do vento, os trovões, o barulho das árvores, o bater da chuva contra os muros. Um escravo assustado entreabriu uma cortina e através do vidro todos puderam contemplar a água caindo intensamente, iluminada pelo clarão dos lampiões.
As mulheres sentavam-se em suas cadeiras, como pássaros de cores intensas, as joias faiscando, os rostos bonitos sempre prontos a agradar, as bocas prontas para conversar, os cabelos pretos, avermelhados, dourados, castanhos, lustrosos e macios, as vestimentas de muitas cores. Os homens acomodavam-se à vontade em seus divãs, afagando as mãos das mulheres, sussurrando-lhes. Mas Péricles não tocava em Aspásia. Helena, observando os dois, ficou satisfeita. Mas percebeu que Aspásia voltara a ficar triste e sabia o motivo. Ao receber a fortuna de Al Talif, Aspásia lhe confidenciara:
— Infelizmente, sei agora que ele me amava. Pensava que não. Se tivesse sabido antes, jamais o teria deixado.
Ao que Helena respondera, com extrema sensatez:
— Não se esqueça de que o Oriente lhe causou repulsa. Teria partido de qualquer maneira. Ou então Al Talif se teria cansado de você, quando ficasse velha. E, se isso acontecesse e ele a mandasse embora, não lhe teria deixado o dinheiro e os muitos tesouros que ornamentam sua casa. Há que se pensar nisso.
— O dinheiro não é a solução para todas as coisas — dissera Aspásia.
Helena rira, incrédula.
— Quando descobrir uma única coisa que não possa ser resolvida com dinheiro, minha cara, venha correndo contar-me!
Péricles também percebeu a tristeza distante no rosto de Aspásia, que parecia um pálido véu sobre as feições dela. Imaginou o motivo: ela estava-se recordando do sátrapa persa. Péricles sabia que, se a tocasse naquele momento, mesmo ligeiramente, Aspásia iria recuar. Além do mais, ela era uma mulher exigente e uma aproximação tão ostensiva iria ofendê-la. Péricles já sabia que a amava, como nunca antes amara outra mulher; e conhecia também as qualidades dela. Estava igualmente convencido de que Aspásia se sentia atraída por ele, embora relutantemente.
Um grupo de jovens escravas, nos fundos do salão, começou a dedilhar harpas e entoar suaves canções. A chuva transformara-se num tamborilar ameno e agradável sobre as janelas e paredes, o vento começava a amainar. Relâmpagos intermitentes ainda riscavam o céu, mas os trovões soavam cada vez mais distantes. A fragrância das flores, relva e árvores entrava irresistivelmente por uma porta aberta, os lampiões perfumados cintilavam.
Os jantares de Helena eram famosos não pela quantidade, mas pelo refinamento das comidas. O vinho era incomparável, o uísque não era aguado. Os amigos diziam que seus jantares eram delícias epicuristas, que estimulavam a boca e satisfaziam a alma. Não eram jantares para pessoas simplesmente famintas, desejosas não apenas de apaziguar estômagos que reclamavam, mas para homens que apreciam um bom prato como uma obra de arte, a ser contemplado com expectativa e prazer e depois saboreado lentamente. Todas as coisas, os lampiões perfumados, travessas, facas, alimentos, eram auxiliares da fala, da alegria da troca de ideias. Por esse motivo, Helena não apresentava distrações, como jovens dançarinas, acrobatas ou bufões. A conversa estava acima de tudo, era o molho mais importante, quer fosse frívola ou séria. É desnecessário dizer que Helena raramente convidava pessoas insípidas ou vulgares, que não pudessem contribuir com alguma satisfação mental para a reunião. Mesmo a música cativante das harpas, alaúdes e vozes era apenas um complemento para a conversa, jamais interferindo.
Pouco a pouco, Aspásia foi-se tornando cada vez mais consciente da presença de Péricles, apesar das recordações desoladoras de Al Talif. Começou a contemplá-lo rapidamente, descobrindo a firmeza das feições, que não apresentavam a menor insinuação de suavidade ou sentimentalismo. Quase imperceptivelmente, a expressão dele mudava, enquanto conversava com os outros. Não era uma expressão tão sutil quanto a de Al Talif ou tão esquiva e elíptica, havia um controle mais discreto, a intensidade era maior. Se tinha paixões, não eram patentes. Tinha autoridade, não apenas por incutir medo — o que Aspásia desconfiava de que era um recurso que ele só raramente usava — mas principalmente pela força de sua personalidade. A aura de autoridade era inequívoca. Péricles era o menos impetuoso dos homens, mas ela não tinha a menor dúvida de que sua ira seria terrível, se provocado. Não seria uma ira violenta. A própria contenção era assustadora, capaz de intimidar qualquer um. Mas havia momentos em que Aspásia podia perceber uma inquietação profunda em Péricles, o que só era discernível aos olhos mais sagazes. Helena estava certa. Ali estava um homem formidável, um homem entre os homens, um homem de pensamentos sólidos, capaz de refletir objetivamente e cujas decisões eram talhadas em pedra, depois de prolongada discussão interior. E era também um homem de precisão.
Aspásia se concentrara tanto em Péricles, involuntariamente, que não prestava a menor atenção à conversa ao seu redor. E ficava irritada quando lhe pediam a opinião. Como Al Talif, Péricles não iria desafiá-la com epigramas para se divertir, nem exigiria que demonstrasse sua inteligência perante convidados. Aceitara o fato de que ela era uma mulher inteligente e nunca insistiria para que se entregasse a exercícios intelectuais, apenas para divertir-se. Não podia imaginar aquele homem a se prostrar diante da Divindade, como Al Talif fizera; Péricles era orgulhoso, se bem que provavelmente reverente. Ela sabia, pelos comentários de Helena, que Péricles estava tentando levar a religião ateniense ao monoteísmo, o que provocara protestos dos sacerdotes. Ele também tinha um grande desprezo pelos governos, embora fosse o Chefe de Estado. Contudo, não havia nisso qualquer contradição. Péricles tinha o maior respeito pela humanidade, se bem que lhe deplorasse os excessos, a barbárie e a brutalidade, a turbulência e a natureza temerária, a imprevisibilidade infantil.
Ela ficou assustada com a sua própria fascinação por Péricles e virou-se para escutar o que os outros estavam dizendo. A conversa passara dos comentários sussurrados entre os vizinhos de mesa imediatos para uma discussão geral do iminente festival de três dias de teatro e outras artes.
Sófocles, o suave poeta e teatrólogo, introduzira três atores em cena simultaneamente; era famoso por seu bom senso, assim como pela força indiscutível de sua obra. Sua peça, Édipo-Rei, seria novamente apresentada no festival naquele ano, embora alguns sacerdotes houvessem protestado que havia poucos diálogos religiosos na obra.
— Tenho conversado com Sófocles a respeito de uma sequência para Édipo — comentou Zênon de Eleia. — Abordaria a expiação do mal do homem, através da penitência e da compreensão do próprio mal. Ele disse que iria pensar em nossa conversa e talvez escrevesse mais tarde uma sequência.
— Respeito Sófocles — disse Sócrates, a luz da controvérsia faiscando-lhe nos olhos brilhantes e incolores. — Admito que a expiação de um crime é perfeitamente desejável. Mas o autor de tal crime deve ser um homem que assumiu o mal deliberadamente e com completo conhecimento, vontade própria e maldade. Édipo não era assim. Seu crime era inocente, na medida em que não sabia que o estava cometendo, não o cometeu com deliberação, vontade e maldade, não tinha conhecimento de que sua esposa era a própria mãe e que o estranho hostil que enfrentara e matara era o pai. Arrancou os próprios olhos por um crime do qual era intrinsecamente inocente, por mais horripilante que possamos achá-lo. Foi um absurdo da parte dele, assim como o seu exílio voluntário.
Sócrates fez uma pausa, sorrindo para os convidados, que o escutavam atentamente.
— De certa forma, sou um sofista. A verdade, como eles dizem, é muitas vezes uma questão de opinião individual, variando de acordo com as culturas, filosofias, religiões e governos. Assim, podemos considerá-la subjetiva. A verdade convencionada é que Édipo cometeu um crime contra a natureza, a lei e a ordem. Mas também é verdade que ele não sabia que havia cometido um crime. Por que então deveria ter pago por alguma coisa? Por que deveria sequer ter-se empenhado num diálogo angustiante consigo mesmo, que o levou à destruição?
— Mas, Sócrates você mesmo — interveio Zênon — diz que a verdade suprema pode ser alcançada através do diálogo e da definição dos termos.
— O que tenho dito ou pretendi dizer é que assim se pode chegar a uma verdade convencionada — respondeu Sócrates. — Mas quem sabe qual é a verdade suprema, mesmo que muitos concordem? Os termos que pensamos definir são frequentemente um mero acordo sobre semântica, pois uma palavra que significa algo para um homem pode não significar a mesma coisa para outro. Portanto, na própria convenção, devemos reconhecer que essa convenção em si mesma é subjetiva e cada homem irá manter a sua versão pessoal do que foi acertado.
— Está discordando de si mesmo — comentou Péricles, sorrindo.
— Mas é justamente essa a função da filosofia! Devemos formular uma hipótese e depois demoli-la! — Sócrates riu, estridentemente, de si mesmo. — Não afirmo nada, nem mesmo que não afirmo nada! — Ele fez uma pausa, antes de continuar: — Se Édipo tivesse sido um homem prudente, dado à reflexão, teria percebido que não era realmente culpado de nada. Mas não se examinou a si mesmo e uma vida sem exame não vale a pena ser vivida.
Ele virou o rosto de fauno para Péricles e indagou:
— E o que o nosso político está pensando de tudo isso?
— Não escarneça da política — disse Péricles, com um ligeiro tom de reprovação. — Poderia dizer-me que a política nada representa para o homem inteligente? Não digo que um homem que não se interessa por política cuida da sua própria vida. Diria apenas que ele não tem o que fazer aqui.
— Tem toda a razão — disse Sócrates, — E saiba que não pretendi ofender. — Ele olhou jovialmente para Aspásia. — Há duas noites, Senhora Aspásia, não discutimos política em sua casa? Pode repetir o que disse sobre o governo, a fim de que todos os presentes possam não apenas ter o prazer de contemplar seu rosto, mas também o de ouvir suas palavras?
Aspásia corou, uma reação que Péricles achou extremamente sedutora, pois ela novamente parecia uma menina.
— Não foi nada de importante, Sócrates — disse ela. — Mas, se assim o quer, posso repetir: as repúblicas suprimem a aristocracia, as democracias suprimem a liberdade. Sendo assim, qual é o melhor governo? Já ouvi dizer, de alguém que era governador, que um despotismo benigno é o melhor; mas, como há poucos homens benignos e o despotismo lhes causa aversão, isso significa que meu... amigo... estava errado. Estou convencida de que uma república aristocrática é o melhor, embora possa parecer uma contradição. As democracias representam o pior tipo de governo; transformam-se em tiranias, pois quando cada homem fala, quer seja um tolo ou um sábio, o caos e o clamor dominam o governo e inevitavelmente um homem forte, talvez perigoso, assume o poder. É o homem a cavalo.
Péricles fitou-a atentamente, sorrindo divertido.
— Quer dizer que não gosta da nossa forma de governo?
Aspásia hesitou por um momento, procurando algum início de zombaria, mas sem encontrá-lo.
— Em sua atual forma, considero um desastre para Atenas.
Péricles tomou um gole de sua taça, antes de dizer:
— É o que também acho.
Ele pensou em Íctis, a quem ainda lamentava constantemente, e por isso não viu as expressões de surpresa nos rostos de alguns convidados. Mas Anaxágoras assentiu, depois Zênon e finalmente Sócrates, Péricles acrescentou:
— Há um grande clamor entre os políticos de Atenas agora que devem ser abandonados os meus planos para transformá-la no diadema do mundo, na arte e poesia, na ciência, no mármore e na cultura, para se atender às "necessidades domésticas do povo". Em suma, para se satisfazer a todos os apetites das turbas, como se satisfaz ao gado em troca do seu leite. Que no caso são os votos. Os críticos que protestam contra mim proclamam que seus planos derivam do amor que sentem pela humanidade, mas a experiência da história ensina que, quando o governo simula benevolência, está na verdade pretendendo abolir a liberdade. Já temos bem pouca agora, como os deuses sabem. Teremos ainda menos, se prevalecerem aqueles que alardeiam a pureza de suas intenções e de seus corações. Uma autoridade que realmente ama a humanidade procura elevá-la através da beleza e do conhecimento. Uma autoridade que pensa apenas nos estômagos está rebaixando e degradando a humanidade.
Péricles olhou para o seu velho mestre, Zênon, e disse com todo o respeito:
— O que pensa de tudo isso o autor de paradoxos?
Zênon pensou por um momento e depois suspirou.
— Estou ficando velho, Péricles, e descubro cada vez mais paradoxos. Não mais me parecem coerentes. Por exemplo: ansiamos pelo que é estranho a nossas naturezas. O homem violento deseja a paz, o covarde anseia pela bravura. O incongruente quer a harmonia, o plácido deseja as iniciativas. O lavrador sonha com as cidades, o homem urbano com os campos. Aquele que não pode amar admira o amor, o que ama está frequentemente disposto a odiar. Não estão querendo enganar a si próprios. São as coisas inatingíveis, o próprio material dos poetas. Nós, filósofos, infelizmente somos menos sagazes. Não mais anseio por compreender este mundo.
Helena, percebendo que os convidados haviam assumido expressões tristonhas, disse com um sorriso exuberante:
— Píndaro disse que a melhor cura é a alegria; portanto, vamos brindar a esta noite e a esta reunião, pois este momento é tudo que temos.
Aspásia fitou-a com extrema afeição e pela primeira vez sorriu genuinamente.
— Ésquilo comentou que o mais agradável de todos os vínculos é o que une anfitrioa e convidado. Assim, vamos brindar à nossa querida Helena, que condescende em dar aulas de medicina na minha escola, duas vezes por semana.
Depois do brinde e quando as harpas e cantoras entoavam uma canção mais alegre, Péricles disse a Aspásia:
— Fale-me da Pérsia, pois admiro os persas.
Novamente ela hesitou, o pálido véu da tristeza outra vez descendo sobre suas feições. Depois, começou a falar exclusivamente para Péricles, em voz baixa, enquanto os convidados gracejavam entre si e Helena contava mais uma de suas histórias indecorosas. Aspásia falou de Al Talif com dificuldade, embora com franqueza. Ao se tornar mais eloquente e perceber que Péricles a fitava com olhos desconcertantemente intensos, ficou menos constrangida. Foi dominada por uma animação inesperada. Descobriu que podia agora falar de Al Talif sem a angústia opressiva que suportara por tantos anos. Chegou mesmo a rir suavemente algumas vezes, ao relatar alguma história imprevisível ou conversa mordaz de Al Talif. Contudo, não pôde esconder de Péricles a melancolia do aristocrático medo, a amargura por trás dos seus ditos espirituosos.
— Eu teria gostado de conhecê-lo — comentou Péricles, quando ela finalmente ficou em silêncio, sorrindo para si mesma, de alguma recordação.
Aspásia levantou a cabeça para fitá-lo, teve um sobressalto e disse, como se estivesse espantada:
— Ele também teria gostado de conhecê-lo, Péricles! — Ela sabia que era verdade, o que a deixou ainda mais atônita. E acrescentou, agora sem qualquer angústia, apenas com admiração: — À sua maneira, ele era um grande homem. Jamais disse uma palavra enganadora ou astuciosa, mas era esquivo e inexplicável. Num momento se mostrava assustador e no momento seguinte era o mais gentil dos homens. Não nos compreendíamos mutuamente, mas...
— Vocês se amavam — disse Péricles, o ciúme a contrair-lhe a garganta. — E que homem afortunado ele foi por ter tido o seu amor, Aspásia!
— Ele foi poupado de um profundo sofrimento. Nunca soube que eu o amava.
Subitamente, o rosto dela já não era jovem, estava grave com o peso dos anos.
— Fala em mistérios, Aspásia. Não acredita no êxtase real do amor entre um homem e uma mulher?
— Ainda não o encontrei e estou convencida de que é imaginação dos poetas.
Aspásia parecia inquieta. Sabia que Péricles a estava examinando, com uma intensidade profunda, o que a deixava perturbada. Não sabia como se sentia em relação àquele homem, mas havia uma luta tremenda dentro de si mesma e um medo opressivo dominou-a. Depois de uma pausa, ela acrescentou:
— Devo contentar-me com minha escola, na esperança de que as mulheres sejam reconhecidas como seres humanos e obtenham permissão para manifestar seus talentos. O mundo é mais pobre por falta desse reconhecimento.
Em sua confusão, Aspásia pensou em desviar-se dele, mas Péricles disse:
— É o que também espero. Mas não era assim na Pérsia, não é mesmo? As mulheres persas submetiam-se à sua servidão?
Ela ficou horrorizada com a percepção de Péricles, pois não falara da monstruosa opressão das mulheres na Pérsia, nem da humilde aceitação pelas mulheres do destino que lhes era imposto. E ela balbuciou:
— Sem o menor protesto!
— Mas as mulheres de Atenas têm protestado, embora inutilmente, desde Sólon. Ou pelo menos algumas o estão fazendo. Atenas ficou enriquecida com sua presença, Aspásia.
Ela murmurou seus agradecimentos. Estava cada vez mais assustada. Podia sentir o calor do corpo de Péricles, agora tão perto do seu, o cheiro de samambaia que se desprendia dos trajes dele. Era como uma ameaça — ou um abraço. E ela temia a ambos. Tentou levantar-se, involuntariamente, numa fuga instintiva, mas prontamente voltou a sentar-se, uma neblina parecendo cobrir-lhe os olhos; sentiu-se fraca e aturdida. Olhou timidamente para o rosto de Péricles e constatou que havia nele apenas bondade e aprovação. Pensou novamente que havia algo de olímpico em Péricles, algo esplêndido. Sentiu que algo dentro dela se derretia e inexplicavelmente teve vontade de chorar. Viu as mãos brancas de Péricles perto dela; ansiava por que ele a tocasse, mas se encolhia. Nunca antes experimentara tal tremor íntimo, tamanho tumulto dos sentimentos, e não conseguia compreendê-lo. Era inteiramente diverso de sua paixão por Al Talif e não sentia qualquer pontada de traição.
Ao ficar a sós com Péricles, Helena disse-lhe, sorrindo:
— Com que então se apaixonou por minha formosa Aspásia, hem? Ora, não precisa ficar tão nervoso e irritado. Observei-o muito bem durante horas. Aspásia adora lírios. Mande-lhe uma braçada amanhã. E pode estar certo de que atingiu o coração dela.
— Ela é como uma ninfa que nunca foi despertada — comentou Péricles.
A cética Helena disse gravemente:
—•Pois então trate de despertá-la. Pela última vez, meu Hércules, pode partilhar o leito comigo esta noite. Será uma espécie de despedida. Não me sinto infeliz. Ao contrário, meu coração se regozija por sua futura felicidade. Mas saiba que não será fácil conquistar o coração de Aspásia. Devo rezar para Afrodite esta noite.
Deitado com Helena no leito dela, Péricles descobriu que podia abraçá-la, mas não como um amante ardente, apenas como um irmão terno ou um amigo sem paixão. Alarmado, pensou em impotência. Helena, no entanto, compreendeu o que lhe estava acontecendo e beijou-o com uma ternura desapaixonada. Pela primeira vez, pensou ela, Péricles amava realmente uma mulher e por isso, ao menos no momento, era indiferente a outras mulheres. Compreendo perfeitamente, refletiu Helena, pois quando eu tinha meu amado também não via quaisquer atrativos nos outros homens; e infelizmente, como ainda sou uma mulher fiel, continuo a não encontrar grandes atrativos nos homens, recordando meu amor.
Aspásia ficou deitada, insone, em seu leito casto, na casa pequena e aconchegante, ao lado de sua escola austera. A lua aparecia na janela, tão branca e pura quanto Ártemis, igualmente fria. Virou-se para o outro lado, inquieta e apreensiva. Não conseguia pensar em outra coisa que não fosse Péricles, ainda não com alegria, mas com desejo e uma agonia assustadora. Al Talif era um leopardo insinuante e tortuoso, olhos reveladores que refletiam emoções secretas, mas que não respondiam a um olhar inquisitivo. Péricles era como um leão, imponente e sobranceiro, determinado e solitário, parecendo uma montanha. O homem do Oriente e o homem do Ocidente eram singulares na medida em que ambos possuíam uma força enorme; contudo, um tinha a força do desconhecido e impenetrável, outro a força do aço, refulgente, mas frio. Um se movia com uma graça sutil, outro com uma força manifesta.
Aspásia lembrou-se de um fragmento que Safo Lesbos escrevera: "Agora o Amor domina o meu corpo e me deixa abalada, criatura fatal, entre doce e amarga."
Sentiu-se novamente assustada, novamente dominada pelo instinto de fugir. Mas no instante seguinte uma ternura imensa invadiu-a, a ternura da rendição. Aspásia chorou e sorriu, depois dormiu, sonhando que era novamente uma menina, no meio das murtas, ao luar.

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                                                                    CONTINUA
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Terceira Parte PÉRICLES E ASPÁSIA
"Não são as casas de tetos impecáveis ou as pedras de muros bem construídos, os canais ou ancoradouros, que formam a Cidade, mas sim os homens capazes de aproveitarem as oportunidades que se lhes oferecem."
ALCACUS (611-580 a.C.)
Capítulo 1
Dédalo, pai de Dejanira, estava parado diante do Rei-Arconte, tremendo de raiva histérica. E gritou:
— É uma infâmia! Um homem na posição dele, que leva uma meretriz notória, uma cortesã declarada, para o seu leito, muitas vezes para sua casa, deve ser removido pelos cidadãos virtuosos! No mínimo, os óstraços devem ser usados contra ele. É uma afronta ao público. Ele é um perdulário, insidioso e inacessível. Está despojando o tesouro acumulado à custa do trabalho do povo, com suas fantasias em arquitetura e proteção a pintores e escultores insignificantes, a filósofos descalços!
Dédalo quase engasgou de raiva; perdera totalmente as estribeiras. Conseguiu com dificuldade recuperar o fôlego e lançou-se a nova explosão de ódio:
— Uma meretriz, uma mulher notória e infame, que afronta a modéstia e a decência feminina e se comporta da maneira mais indecorosa possível, uma mulher que se compraz em corromper as moças! Não há uma só mulher de moral ilibada que não desvie o olhar à menção do nome ímpio dessa meretriz! O povo despreza Péricles e exige uma reparação e o seu afastamento!
O Rei-Arconte cofiou a barba e refletiu: Como é possível que homens como Dédalo possam exigir a todo instante o respeito às virtudes cívicas, ao mesmo tempo em que continuam a ter seus vícios secretos e repulsivos. Tanta raiva assim seria por inveja, por algum tormento interior? Os que proclamavam sua humildade, como Dédalo, eram muitas vezes excessivamente orgulhosos, mesmo quando tinham bem poucos motivos para orgulho. O Rei-Arconte, sempre procurando conhecer as fraquezas e os caracteres dos homens, sabia que, ao final das contas, o que um homem denunciava era a sua própria corrupção. Ao denunciá-la nos outros, absolvia-se de sua própria culpa. Dédalo devia ser observado.

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Em tom ostensivamente moderado, para expressar sua desaprovação aos excessos de Dédalo, o Rei-Arconte disse:
— Não há um único homem de alguma distinção ou riqueza que não tenha uma hetera, e isto já se tornou aceitável. Não nos casamos todos com mulheres estúpidas ou ignorantes, de boa família e dinheiro, para gerar-nos filhos, aumentar nossa fortuna e governar nossas casas? E todos nós, para escaparmos às mulheres com que casamos, não tratamos de arrumar alguma mulher bonita, amorosa e inteligente, para apaziguar nossos sentidos exacerbados? E quem nos pode culpar? O costume nos impõe esposas menos que deleitáveis, com inteligência inferior à dos asnos, mas que conhecem à medida de cada cântaro, as mil maneiras de cozinhar favas e manter os registros das despesas. Elas podem ser virtuosas... mas, pelos deuses, como são tediosas!... e talvez seja esse o pecado imperdoável da virtude. Podemos estar certos de que os filhos que nos dão são realmente nossos filhos; afora isso, as mães de nossos filhos são insuportáveis. E os nossos sacerdotes ficam apregoando a "constante elevação da humanidade através de cada geração"! Não passam de mentirosos e tolos. Um asno gera um asno. Não haverá qualquer "elevação" da humanidade enquanto um homem não puder escolher cuidadosamente uma esposa que tenha algo mais além de dinheiro ou aptidões para a cozinha, que tenha também alguma inteligência. Quando isso acontecer, poderemos gerar filhos e filhas superiores, não animais mundanos, incapazes de distinguir entre a luz do sol e as trevas. Até agora, a raça humana reconhece a escuridão apenas quando esta lhe proporciona um sono tranquilo e a luz do sol quando lhe aumenta as colheitas.
"Péricles é como todos nós. Procurou escapar das mulheres apáticas, de suas lamúrias servis, de seus histéricos acessos de raiva. Por que então se deve culpá-lo? Seria uma hipocrisia. Acusá-lo é trair as nossas próprias iniquidades.
O Rei Arconte sorriu ironicamente para Dédalo, cujas feições esqueléticas se tornaram vermelhas, e continuou:
— Pode deplorar Aspásia. Pelo menos ela está educando moças que não irão apenas cheirar a cozinha, a celeiro, a cercados de procriação. Serão uma alegria para seus maridos. É possível até que façam com que os maridos fiquem tão fascinados que acabem por se abster de heteras ou mesmo de meretrizes. Como Péricles costuma dizer, as mulheres também pertencem à raça humana, algo que muitos homens podem pôr em dúvida, ao pensarem em suas esposas. Na melhor das hipóteses, mulheres inteligentes podem proporcionar-nos filhos aptos a serem chamados membros da humanidade e...

 

 

                                                                

                                                   

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