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Um livro fascinante, um romance passado na época mais gloriosa da história humana, a Atenas de Péricles, apresentando fatos históricos meticulosamente pesquisados, é o que nos oferece Taylor Caldwell com sua excepcional capacidade narrativa.
Péricles é um homem solitário porque se recusa a permitir que homens ambiciosos imponham o despotismo e destruam a liberdade tão arduamente conquistada pelos atenienses. Por isso é atacado, caluniado, vê seus poucos amigos serem perseguidos, assassinados e exilados.
Ainda jovem, casa com Dejanira, sua prima, por quem sente aversão, apenas porque essa união atende a seus interesses políticos. Mas sonha sempre com a mulher impossível, que vai encontrar anos depois, Aspásia, surgindo um dos mais ternos romances de amor que a História registrou.
Fídias, o escultor, Sócrates, Anaxágoras, Zênon de Eleia e incontáveis outros personagens desfilam pelas páginas deste livro, todos amigos de Péricles e Aspásia. Sofremos com ele as suas angústias pessoais, a morte de seu amigo Íctis, as desavenças com os filhos Xantipo e Paralo, as conspirações para o derrubar.
Em meio a tudo, as guerras cruéis com Esparta, que levam a um amargo fim, a construção da Acrópole, um dos mais célebres e admirados monumentos até hoje erigidos, as dúvidas e tormentos de Péricles. É uma história acontecida há muitos séculos, mas que possui uma atualidade impressionante. Afinal, não dizia Santayana que aquele que esquece o passado está condenado a repeti-lo?
A GLÓRIA QUE PASSOU vem juntar-se à lista de excelentes livros da consagrada escritora Taylor Caldwell já publicados pela Record, contando-se entre os mais recentes Os Capitães e os Reis, Testemunho de Dois Homens e Médico de Homens e de Almas.
Abstive-me neste livro de dar uma bibliografia completa, porque todos os estudiosos da Grécia e de Péricles conhecem todos os livros muito bem e já os leram tão cuidadosamente quanto eu.
Desde a infância, a Grécia me fascinou, em especial Atenas. Não posso dizer o mesmo das intermináveis guerras e escaramuças do período de Péricles. As guerras, conquanto às vezes tenham interesse, principalmente quando se travam em prol da liberdade e da dignidade do homem, mostram uma tendência a repetir-se através da história e nem sempre por motivos virtuosos.
A glória que foi a Grécia não foi a glória do povo de Atenas, mas de alguns de seus filhos que, em face da mais terrível oposição e perseguição, lutaram para fazer dela a maravilha do mundo. Foi na Grécia que teve início o primeiro movimento para regular e limitar o poder do governo, para dar ao povo voz ativa no governo e para incentivá-lo a votar e a exprimir a sua opinião. O fato de que depois o povo se sentiu muito feliz em abdicar da sua liberdade de palavra e do seu direito de inibir o governo quando este se tornasse opressivo em troca de um pouco de segurança é uma triste lição da história que se tem repetido muitas vezes desde os tempos de Péricles.
Aristóteles disse: "A nação que não aprender com o passado estará condenada a repeti-lo". Temos visto isso muito e muito na história e estamos sempre a pique de incorrer na condenação.
Este livro conta a vida dos homens que fizeram Atenas gloriosa e tornaram a sua história coisa diferente da narração de guerras aborrecidas e governos opressores, mas, para apresentar os heróis importantes e em sua perspectiva própria, é necessário mostrar como o seu governo, concebido sob as nobres leis de Sólon, se tornou despótico e como os heróis combateram esse governo e às vezes — mas raramente — venceram.
Se essa sequência de fatos não parece estranha é porque, de fato, não é estranha. Basta estudar um pouco a história presente para ver também como é sinistra e penetrante a tirania em nosso mundo moderno neste presente momento. Se não aprendermos com o passado, estaremos condenados a repeti-lo.
......
A glória que foi a Grécia ...
O gênio de uma nação só se manifesta uma vez na história. Representa a sua glória e a sua imortalidade nos anais dos homens. É aristocrático, discriminatório, radiante e seletivo, abjurando tudo o que é medíocre, plebeu e mundano. É dominante. É espiritual. É a chama que emana do centro do Universo, que é a geração da vida. É o relâmpago que incendeia o pequeno espírito do homem e o eleva muito acima do campo e do arado, da casa e do monte de feno, numa súbita revelação de grandeza. É um gênio mais que tudo masculino, pois a aristocracia da alma é puramente masculina e nunca feminina, dado que esta só se ocupa de assuntos mesquinhos e insistentes trivialidades. Transcende a humildade da vida quotidiana e sustenta no Olimpo o menos importante dos homens, ainda que por uma breve hora. Nunca é democrático, pois a democracia é uma coisa destrutiva, urdida no espírito inferior dos homens invejosos.
Para que uma nação sobreviva em glória deve cultivar apenas o princípio masculino e o seu nome será inscrito em ouro na história e resplandecerá através dos séculos.
ZÊNON DE ELEIA
Primeira Parte ASPÁSIA
"Ela não era só a mais bela das mulheres, mas uma mulher de espírito e caráter, de encanto e ternura, a quem muito devem as mulheres de Atenas."
SÓCRATES
Capítulo 1
A jovem e bela mãe veio chorando ver sua filha, Aspásia.
— Ela é como Afrodite, nascida como uma pérola do mar — disse à mulher mais velha, Targélia. — Quem sabe o destino que lhe está reservado, misteriosamente tecido pelas Fúrias? O pai queria destruí-la. Felizmente, consegui salvá-la e trazê-la para ti. Não tem ela cabelos cor de ouro, olhos como as folhas do outono e uma carne de nácar, minha filha? Quem teria coragem de destruir uma criatura assim? Entretanto, o pai a mataria ainda agora, se a soubesse com vida, pois qual é o pai que se orgulha de gerar uma filha?
— Ela é por demais inteligente — disse Targélia num tom de consolo. — Tem um espírito cintilante, que desfere miríades de luzes como um prisma. Tornar-se-á uma cortesã magnífica, ainda mais do que foste, minha bela.
A mãe teve um gesto inquieto.
— Preferiria que ela se casasse com um homem distinto.
A outra mulher replicou, franzindo desdenhosamente a boca.
— Para ser relegada aos aposentos das mulheres enquanto o marido se divertisse em companhia de mulheres impressionantes?
— Mas teria segurança — murmurou a mãe, que se chamava Acília.
— Nenhuma mulher tem segurança com um homem. Esposa, amante ou cortesã, não há mulher segura com um homem. É por isso que nos devemos proteger com mil artifícios, disfarces e estratagemas.
— Mas uma esposa tem segurança dentro da lei — disse a mãe, acariciando a cabeça da filha.
— Essa lei pode ser quebrada pela vontade de um homem, minha querida.
A bela mãe sorriu e pareceu de novo jovem.
— As mulheres são mais poderosas do que a lei. Não conhecemos outra lei que não seja a nossa natureza e a natureza está acima da lei. — Enxugou as lágrimas num lenço de seda de que se desprendia um perfume exótico. — Sim, as mulheres são superiores à lei, mas não somos por natureza própria ilegais. Na verdade, somos a própria lei.
— Eu sempre disse — murmurou Targélia — que devias ter sido filósofa.
— Infelizmente, eu amei — disse a mãe. — Nenhuma mulher que ama pode filosofar.
— O homem também não pode — disse Targélía. O amor é o grande destruidor da lógica e da inteligência. O sexo nos governa a todos. Até que o sexo se acabe. Vem então a sabedoria. Mas a sabedoria é um fogo frio, que ilumina, mas não aquece.
A mãe olhou para o azul profundo do céu da Ásia Menor e depois para o golfo, cujo tom não era muito diferente, de modo que mar e céu pareciam uma só cortina palpitante suspensa sobre a terra. Acília continuava agitada por seus tumultuosos pensamentos.
— Se Axtoco, o pai de minha filha, pudesse agora vê-la e ouvi-la, levá-la-ia para a casa dele comigo e com suas outras concubinas, embora ela seja ainda muito jovem. Mas eu não quero que ela venha a ser uma cortesã.
Targélia refletiu. Havia tomado esse nome, que pertencera a uma das mais belas e inteligentes cortesãs de Mileto. Mas ela não era pessoalmente bela, ainda que tivesse uma presença fascinante e mutável. Entretanto, a inteligência era como uma luz em seu rosto e os seus olhos embora desencantados — pois havia conhecido muitos homens — brilhavam graças ao líquido que ela usava para dar-lhes realce. Os olhos eram também penetrantes e alegres. Um cosmético lhe escurecia as pálpebras e unguentos vermelhos cintilantes se lhe espalhavam pelas faces e pelos lábios. Isso lhe dava uma aparência libertina que os homens achavam irresistível. Comandava a moda entre as mulheres de Mileto, ainda quando se tratava das matronas virtuosas e das donzelas, pois o seu bom gosto era considerado excelente. Conversava com a jovem mãe a seu lado, alisando o seu peplo escarlate e verde, e os seus cabelos dourados, que rebrilhavam ao sol, eram adornados de fitas verdes. Tinha um corpo de virgem, fluido e juvenilmente gracioso. Só as mãos denunciavam a idade e nem todos os óleos da Ásia poderiam recalcar aquelas veias salientes ou amaciar as rugas. Mas eram eloquentes aquelas mãos e ela usava muitos anéis com raras gemas para esconder as juntas desgraciosas. Um amante dissera uma vez que ela criava música no ar com as mãos, tão fluentes eram os gestos, sem haver jamais um movimento brusco ou uma posição forçada.
— Levaste Aspásia para Mira (antiga cidade da Lícia, atual Turquia. N. da Rev.)— disse ela — quando tinha apenas alguns dias de idade, fugindo da casa do teu amante, depois de tê-la ocultado das vistas de seu pai. Foi em minha casa que Axtoco te escolheu e te vem sendo fiel à sua maneira, mais do que tem sido às suas esposas e outras concubinas. És feliz, Acília, pois vejo felicidade na maciez de tua pele, no brilho dos teus cabelos e na cintilação das tuas joias. Serias por acaso tão feliz se fosses uma mulher emparedada, respeitada pela lei, mas desprezada por teu marido, relegada aos aposentos das mulheres, a suspirar na solidão, enquanto alguma concubina dormisse com teu marido?
Acília pensou,
— Não. Mas qual é a mãe que não deseja segurança e honra para suas filhas e onde pode haver segurança e honra senão no casamento com um homem ilustre?
— Não — replicou Targélia, encolhendo os ombros, — Desejar segurança é insensatez. Não aceito que o casamento seja o único refúgio para as mulheres. Muito mais desejáveis são bens, educação, joias e poder sobre um homem. Os homens raramente se cansam de uma concubina sedutora, mas se fartam inevitavelmente das esposas. As concubinas sabem divertir um homem e, no fundo, essa é a verdadeira função de uma mulher. Nós ensinamos às nossas moças que o destino da mulher é divertir, obsequiar, servir e consolar um homem, e por esses dotes admiráveis qualquer homem pagará uma fortuna e será capaz até de dar a vida. Quantos homens na história morreram pelas suas esposas? Mas nossos poetas cantam homens que tudo sacrificaram por uma amante.
— Os homens são muito estranhos — disse Acília.
— É essa a primeira lição que ensinamos às nossas moças. É impossível a uma mulher compreender um homem, que é muito primitivo, ao passo que nós, mulheres, já nascemos sofistas. Tenho discutido nesta casa com muitos nobres filósofos, os quais tem declararam que admiravam a minha conversa e os meus dotes intelectuais e me julgavam tão sutil quanto eles, o que não considerei grande elogio. Mas, como era inevitável, deixaram as mãos deslizar sob o meu peplo e tocar nos meus seios, depois do que terminamos nossas doutas dissertações em minha cama. Tornará isso os homens incompreensíveis? Os homens nunca esquecem que são, antes de mais nada, homens e que amam as mulheres, apesar da inteligência delas. Tudo isso é ao mesmo tempo lisonjeiro e irritante. Mas fomos nós que fizemos o mundo?
Estavam sentadas no pórtico exterior da bela casa de colunas das cortesãs, sobre o Golfo de Latmic, perto da foz do rio Meandro. O olor dos jasmins crescia com o doce eflúvio das rosas. Mulheres cantavam alegremente no interior da casa tangendo alaúdes e harpas e, por um instante, o belo rosto de Acília se encheu de lembranças e anseios. Olhou para sua filha Aspásia e pensou se, na verdade, não seria melhor para ela ser preparada como uma consumada cortesã, requestada, honrada, amada e cumulada de presentes por homens eminentes, do que ser uma esposa aprisionada em tristes aposentos, vendo apenas o marido quando a necessidade de filhos dele lhe desse a ordem indiferente, e tendo apenas a companhia de escravos analfabetos, de servos dos teares e das cozinhas e de mulheres tão ignorantes quanto ela própria.
Acílía e Targélia bebiam os melhores vinhos importados de Rílos, onde os deliciosos vinhedos vicejavam em encostas secas e ensolaradas, e comiam finos pastéis no pórtico exterior, escutando a música, o sussurro do mar e o riso das fontes nos jardins que as cercavam, Duas escravas balançavam leques de penas sobre as cabeças delas e uma leve brisa se elevava do mar, cujas águas se abrasavam com a aproximação do crepúsculo. Tudo era muito tranquilo e langoroso e Acília tornou a suspirar, lembrando a sua felicidade e alegria como menina e como adolescente.
Aspásia se apoiava nos joelhos da mãe e comia, cheia de satisfação, um pastel recheado de sementes de papoula, mel e cascas de limão. Acílía sorriu para os grandes olhos castanho-claros da filha, repletos de fluidas luzes misteriosas e centelhas rápidas e ensombrados por cílios dourados de grande comprimento. Os cabelos da menina caíam-lhe bem pelas costas e pareciam uma massa de suaves fios dourados. As feições eram delicadas e sugeriam uma crescente maturidade, embora ela tivesse apenas seis anos de idade. Quando sorria, como naquele momento, covinhas de doce colorido corriam-lhe pelo rosto e adejavam em torno dos lábios cheios e escarlates. Havia nela um encanto cativante, uma certa fascinação. Ela é muito mais bela do que eu era, pensou Acília com orgulho. Infelizmente, o destino da mulher era triste, quer fosse amante, esposa, concubina ou escrava. Não poderia haver para nós um destino mais alto?
Targélia viu a expressão inconstante e melancólica da mãe e disse:
— Tenho preparado muitas meninas e moças, mas Aspásia é mais que todas elas. Embora muito jovem, é já uma filósofa. Tem uma aparência encantadora. O espírito dela exigirá a atenção e o respeito até dos homens mais dissolutos. Prevejo para ela um futuro maravilhoso. Ela tem o destino nos olhos profundos e insondáveis.
— As mulheres têm de transformar este mundo dos homens — disse Acília de repente, estendendo a mão para proteger a cabeça cintilante da filha.
Targélia encolheu os ombros.
— Seria uma vantagem para nós? Os homens são agora nossos adoradores e nossos escravos. Não desejamos a igualdade com eles. Perderíamos os nossos privilégios e não ganharíamos senão rudeza, ansiedade, trabalho e desrespeito.
Riu e continuou:
— Os homens devem continuar a proteger-nos e nós continuaremos a governá-los com os nossos carinhos. Quem se senta num trono nunca tem paz, nem descanso. Mas aquela que é a voz por trás do trono, por mais escondida que esteja, tem todas as vantagens e prerrogativas do poder e consegue dormir tranquilamente à noite.
— Enquanto for jovem e bela — disse Acília, suspirando.
Targélia se aborreceu.
— Suspirar quando é mais feliz foi sempre um dos seus defeitos, minha querida. Mocidade? Há homens sábios e nobres que proclamam a sua preferência pelos frutos verdes. Mas são governados por mulheres que não são jovens... e permanecem radiosas, como qualquer mulher poderá permanecer, se o desejar. É apenas o homem enfadonho e fracassado que procura a sua fútil mocidade na mocidade de uma mulher e julga a mulher apenas uma coisa ou uma escrava.
A jovem Aspásia bebia um cálice de vinho, mas olhou para a mãe acima da borda do cálice com olhos sábios, alegres e cheios de compreensão. Ela tem seis anos, pensou Acília, com alguma inquietação, mas nunca foi jovem.
Targélia voltou para ela os olhos astutos e disse:
— Chamei um adivinho para Aspásia. Ele predisse que ela brilhará como a lua sobre seu país, terá poder sobre grandes homens e será em toda parte uma inspiração para os poetas.
— Ora, adivinhos! — exclamou Acília com indulgente desdém.
Apesar disso, sentia-se lisonjeada e satisfeita. Deixou uma bolsa com moedas de ouro na mesa de marfim e madeira de limoeiro,
— Nada deve faltar a minha filha. Confio em ti, Targélia, pois tenho bons motivos para isso. És mais sábia do que eu. Procede com Aspásia como bem quiseres, pois estou vendo que a amas.
Targélia puxou a menina para junto de si, beijando-lhe a fronte de uma alvura láctea e passando as mãos pela bela teia dos cabelos dourados, leves e finos.
— Aspásia e eu nos compreendemos — disse ela afetuosamente — apesar dos nossos momentos de rebelião. Não há no espírito dela incertezas, dúvidas ou hesitações. Ela conseguirá, quando mulher, o que quiser, pois já é imensa a sua força de vontade.
Acília se levantou ao ver que sua liteira, carregada por quatro escravos núbios de corpo reluzente, nus da cintura para cima e tendo à cabeça turbantes vermelhos, tinha chegado aos portões. O rosto de ébano dos escravos era escultural, impassível e cheio de secreta dignidade. Abriram as cortinas bordadas, escarlates, da liteira e Acília entrou, reclinando-se na seda amarela das almofadas.
Quando os escravos levantaram a liteira e se puseram em marcha, ela não fechou as cortinas. Havia nela uma triste premonição, como se soubesse que nunca mais veria a filha, que de pé nos degraus do pórtico lhe dava adeus com a indiferença fácil de uma criança. Acília ainda olhava quando Aspásia se voltou e correu rapidamente para a casa, esquecendo a mãe. Acília deu um suspiro e uma lágrima lhe surgiu entre os cílios, que estavam cobertos de pó de ouro. Tirou então um espelhinho de prata da bolsa e enxugou cuidadosamente a lágrima. Lembrava-se de que Axtoco detestava mulheres de olhos avermelhados e fugia delas impacientemente. Compôs um sorriso fascinante, tendo o cuidado de não enrugar a pele em torno da linda boca. Abriu um pequeno jarro de alabastro que também levava na bolsa e passou nos lábios essência de rosas. Pensou então no pano dourado do Oriente e na mulher que lhe fazia os vestidos.
Capítulo 2
Targélia estava em companhia de suas melhores jovens — escolhidas todas tanto pela beleza quanto pela inteligência — no pórtico voltado para o poente. Era aquela sua hora favorita, antes do jantar, pois não se interessava pelo dia, durante o qual dormia, depois de uma noite de festa. Mas, depois de banhada em água perfumada, ungida com óleo de sutis fragrâncias, delicadamente pintada e empoada, com os cabelos artisticamente arranjados e o seu peplo disposto satisfatoriamente, com os seus broches cintilantes e um colar de pedrarias ao pescoço para esconder as rugas lívidas, sentia-se capaz de enfrentar de novo a vida. "A noite é feita para o amor, para a reflexão, para a filosofia e para o riso", costumava ela dizer. "O dia é que é feito para as guerras, para os camponeses, para os que trabalham arduamente, para os homens de músculos e de atividade, para lavradores, cabras e carneiros. Por outras palavras, para aqueles que cuidam pouco dos prazeres da vida ou nada sabem deles, empenhados como estão em trabalhos e suores. Disso, nós, heteras, fomos misericordiosamente libertadas, pois enquanto as laboriosas esposas dormem, nós nos divertimos em companhia de seus ilustres maridos. Na verdade, nossa vida é invejável, apesar do ódio que nos votam as matronas imbecis e pesadas das casas enérgicas".
Tinha envelhecido muito pouco, malgrado os quatorze anos decorridos desde que Aspásia fora entregue pela mãe àquela casa.
— A mulher não deve cerrar a fisionomia. Isso forma rugas na testa e em volta dos olhos e os homens detestam rugas. Não deve rir demais; isso lhe provoca sulcos em torno da boca. É preciso, sem dúvida, ter sempre o rosto alegre. Mas nunca um rosto que lembre as máscaras do teatro, com muita emoção e muita ênfase. Um sorriso doce, que leve em conta a curva dos lábios, um brilho no olhar, como lhes foi ensinado, uma gentil inclinação da cabeça — todas são coisas desejáveis e não envelhecem a mulher. Antes, realçam-lhe os encantos. Os gestos também nunca devem ser muito acentuados. Isso aborrece os homens, que não gostam de mulheres vigorosas, salvo na cozinha e na cama. Uma mulher deve sempre insinuar; nunca afirmar. Reitero estes conselhos, meus tesouros, para que vocês possam ter êxito e riquezas e ser sempre atraentes e sedutoras.
Eram oito as jovens que selecionara e entre elas estava Aspásia, a sua favorita, que tinha incrível beleza e incrível inteligência e fora ensinada a nunca ser agressiva entre os homens. "Atendimento, sempre. Divertimento, sempre. Mas nunca sem elegância".
Targélia fiscalizava a alimentação das suas jovens tão vigilantemente quanto lhes preservava a virgindade, que seria dada ao pretendente mais rico e mais ilustre, mediante o pagamento de um preço bem alto a Targélia. Mas as jovens não eram virginais de espírito e de coração. "Até os frutos verdes devem conter uma promessa de maturidade e sabor, minhas queridas".
Queria certo brilho nas suas jovens e incentivava os amores entre elas, mas com discrição, para que mais tarde fossem amantes de homens e não de mulheres. Na verdade, se uma delas se mostrava demasiado ardente nos seus transportes para com uma irmã, Targélia a transferia para outra casa, onde ela poderia ser preparada a fim de dar prazer a alguma viúva rica ou a alguma matrona bem instalada insatisfeita.
— A cor e macieza da pele de uma mulher são as suas melhores qualidades — ensinava ela às suas jovens, — Por isso, não devem ficar expostas ao sol, mas procurar sempre a sombra, devidamente agasalhadas, pois o beijo de Febo queima, enegrece e transforma a pele num couro gretado, o que é repulsivo a homens exigentes e de bom gosto,
As jovens só se banhavam em água na qual eram dissolvidos óleos perfumados, sendo-lhes aplicadas suaves loções depois do banho. Os cabelos eram escovados à noite e pela manhã, durante uma hora, no mínimo, com a ajuda de escravos, e a carne era massageada até ficar com o brilho e a macieza do mármore.
— A beleza natural de uma mulher, por maior que seja, começa a declinar entre os dezoito e os vinte anos, quando é irresponsavelmente negligenciada. É preciso começar a cuidar da beleza o mais tardar aos cinco anos de idade, e conservá-la sempre. Muitas mulheres desta escola foram de notáveis belezas até depois dos sessenta anos. É uma arte que as mulheres devem cultivar durante toda a sua vida, pois os homens, infelizmente, nunca olham além da pele, dos seios firmes e dos quadris e coxas redondas de uma mulher, para ver os seus dotes intelectuais. É raro o homem que aprecia o espírito de uma mulher. Na verdade, os homens chegam a irritar-se com o espírito feminino quando não tem o acompanhamento de um rosto e de um corpo formosos. Neste caso, o espírito é uma alegria a mais. Uma boca rosada que pode compor epigramas e discorrer sobre coisas eruditas é encantadora. Mas uma boca murcha a destilar sabedoria faz qualquer homem correr.
Targélia dizia ainda:
— Só no momento da puberdade a mulher pode enfrentar sem receio a luz do dia. Depois dos quatorze ou quinze anos, é a luz de Ártemis que é lisonjeira, bem como a luz frouxa de lâmpadas e velas. Há agora uma nova moda de lâmpadas suspensas do teto, mas devem ser evitadas como traidoras, pois traem todas as mulheres que passaram da puberdade.
Todas as jovens, não apenas as oito selecionadas, tinham poucos momentos de lazer na escola das cortesãs. Frequentavam aulas dadas por mestres e mestras muito competentes, onde aprendiam — não as artes domésticas que eram a província de jovens incultas destinadas pelos pais ao casamento — mas a arte da política, a filosofia, uma linguagem requintadamente perfeita, retórica, música, dança, o arranjo do vestuário, as distinções entre os perfumes, a sedução, as artes da conversação, a história, os leves exercícios atléticos para conservar e acentuar a esbelteza do corpo, elementos de arte médica, matemática — "é preciso depois tratar com banqueiros" — decoração e arranjo dos móveis, seleção de tecidos, movimentos graciosos, penteados, a arte dos sofistas, caligrafia, cuidados com livros, literatura, poesia, escultura, pintura, ciência mas, acima de tudo, como agradar e prender um homem e todas as artes do amor, inclusive as perversões.
— Os moços são como touros — dizia Targélia com severidade.
— Portanto, a não ser que sejam imensamente ricos e importantes, não lhes entrego nenhuma de minhas jovens. Para eles, uma prostituta qualquer e uma das minhas delicadas cortesãs são a mesma coisa na cama e, como todos têm equipamento idêntico, não há distinção. Por isso, tenho o cuidado de não arrumar as coisas entre eles e uma das minhas jovens, exceto em raras ocasiões e sempre com o consentimento dela. Há em tudo isso um grande perigo. Uma jovem é capaz de apaixonar-se por um moço e não pode haver pior destino, pois os moços são caprichosos e logo se enfastiam até da mais desejável das mulheres, ansiosos como vivem por novidades e sem o menor interesse pela conservação. Mas um homem de meia-idade precisa de ser induzido e quando é levado à satisfação demonstra generosamente o seu reconhecimento por meio de dinheiro e de joias e também de adoração. Tenham cuidado, pois, com o amor, pois engana e mente. Os homens também enganam e mentem, e a mulher que não tiver capacidade de tratar com eles estará perdida.
As jovens aprendiam também a ser delicadas.
— Nada há mais detestável do que uma mulher grosseira e libertina — diziam Targélia e os outros professores. — Nunca devem proferir uma palavra indecente ou ter um gesto lascivo, ainda na maior paixão, que espero nunca venham a sentir, pois a paixão pode destruir uma mulher. Nunca devem esquecer que são grandes senhoras, dotadas de gosto, discriminação e cultura. Devem controlar sempre as emoções e nunca proferir uma censura áspera, por mais justificada que seja. A gentileza é muito desejável.
Uma vez, Aspásia disse na sua bela e doce voz, embora os olhos lhe faiscassem de rebelião:
— Não passamos então de brinquedos para o prazer de homens que podem ser inferiores a nós?
Targélia sorriu, pois era impossível irritar-se com Aspásia:
— É melhor dizer que somos joias preciosas. Como se guarda uma joia? Em veludo, bem protegida e apreciada, avaliada como o bem mais precioso, adorada e exibida com orgulho. Não somos utensílios de cozinha, Estes cumprem a sua função e são usados pelas esposas, cujos maridos nos dão ouro e pedras, descansam a cabeça em nossos joelhos e nos adoram. Será que adoram suas esposas? Fogem delas.
As jovens recebiam ensinamentos intensivos sobre a natureza dos homens e sobre a maneira de preservar de embaraços as suas emoções, pois isso poderia arruiná-las. Targélia recomendava com muita veemência às jovens o cultivo de um desprezo pelos homens, que certamente não deviam nunca revelar.
— Se desprezarem os homens, estarão sempre serenas na companhia deles e poderão mostrar até uma atenção afetuosa como a que se pode ter por um cão. Graças ao desprezo, vocês se manterão imunes às inclinações destrutivas e ficarão livres de paixão e de indignação natural, tornando assim tanto as emoções quanto as expressões do rosto brandas, distendidas e imperturbáveis. O desprezo exclui a piedade. Quando se tem piedade de um homem, cria-se um estado detestável e alarmante que acaba levando ao desespero. Sem dúvida, deve-se adotar uma atitude de discreta dedicação, pois os homens desejam que todas as mulheres lhes sejam dedicadas. Mas nunca essa dedicação deve ser sincera. Isso equivale ao suicídio. Em resumo, o amor deve ser a si própria, sem nunca ser dissipado com um homem.
"Os poetas podem cantar o amor. Mas esse amor não é o amor das esposas. É o amor das mulheres que dominam os seus sentimentos e que sabem ser esquivas bem como docemente licenciosas sem nunca serem inteiramente possuídas. Se Ártemis se tivesse apaixonado por Acteão e se tivesse casado com ele, este logo se teria cansado do amor dela e procuraria uma alegria mais fugidia. Os homens exigem todo o coração de uma mulher. Finjam que o dão todo e, quando o homem se sentir seguro na sua posse, dêem-lhe motivo para sentir alarma, não abertamente, mas com um sorriso, a cabeça levemente aparada e um desprendimento gentil dos braços dele, O homem então recomeçará a procura do amor e pleiteará as afeições da mulher com ouro e joias.
— Devemos então viver exclusivamente para nós? — perguntou Aspásia com muita seriedade.
— Quem mais existe além de nós? — perguntou Targélia. — Escutei as digressões de um filósofo famoso, que era tão hábil e sábio que podia convencer a todos de que tudo era ilusão, de que todos nós somos sonhos, salvo para a pessoa que sonha, e que nada existe senão o nosso eu. Como podemos provar a existência de qualquer outra pessoa? Como podemos ter certeza de que não estamos inteiramente sozinhos dentro de um sonho?
A escola contratava homens e mulheres experimentados que desenvolviam todas as artes e perversões do amor diante das alunas fascinadas.
— Há mais alegrias no amor — discorria Targélia — do que a que provém da simples cópula, que temos em comum com os animais e que tem como objetivo grosseiro a reprodução. Trata-se de um ato apressado, sem delicadeza, nem realce. Conquanto vocês devam abster-se pessoalmente do prazer completo, têm de aprender a dar o máximo de prazer e, se estiverem empenhadas também nesse prazer, não poderão ser peritas com um homem, nem fazê-lo delirar com sensações exóticas. Sejam voluptuosas, mas jamais sejam vulgares. Abandonem-se sutilmente, mas que o abandono nunca seja completo. Um véu é mais sedutor do que um corpo nu. A sutileza é mais desejável que o impudor. Uma mulher nunca deve dar tudo, mesmo fingindo, exceto por um momento ou dois.
Ensinava as jovens a nunca demonstrarem desgosto ou aversão e a nem sequer sentirem quer uma coisa, quer outra.
— Entretanto — dizia ela — se não puderem dominar completamente a repulsa que sentirem, componham um epigrama ou um poema enquanto estiverem empenhadas em amor com um homem ou pensem num melhor penteado ou no dinheiro que possuem. Se vocês se mostrarem hábeis e eficientes, lembradas das lições que receberam, os homens nunca suspeitarão dos seus verdadeiros sentimentos. Repito que uma mulher nunca deve entregar-se inteiramente em nenhuma ocasião. Nunca deve dar ouvidos a rogos, mas apenas sorrir convidativamente e prometer.
Reunida ali com as suas jovens naquele entardecer, Targélia se rejubilava com a beleza delas e especialmente com a de Aspásia, pois a promessa de sua infância não só não deixara de cumprir-se, como também não fora plenamente profetizada, Aspásia era mais alta do que as outras jovens, o que a princípio causara apreensão a Targélia, que depois se lembrara, porém, da saudação registrada em Homero: "Filha dos deuses, divinamente alta e mui divinamente loura!" Aspásia era decerto divinamente loura e Targélia não se lembrava de nenhuma das suas jovens do passado ou do presente que se pudesse comparar com ela. Entre todas aquelas belezas de madeixas pretas, castanhas, ruivas e louras, de olhos brilhantes, faces rosadas, colos alvos e seios palpitantes, de covinhas, curvos lábios rubros, queixos de alabastro e corpos ágeis, Aspásia era uma Afrodite juvenil entre simples mortais. Apesar de sua beleza, ficavam apoucadas na presença dela como o bronze perde o lustre ao lado do ouro e pareciam, apesar de sua graça excepcional e selecionada e dos seus encantos sensuais, simples campônias diante de uma rainha. Todas usavam os peplos simples e brancos que eram um sinal de virgindade, com cintas de prata de feitura modesta, mas o peplo se tornava radioso sobre o corpo perfeito de Aspásia, sugerindo sensualidade e incomparáveis deleites. A sua carne parecia translúcida, de tal modo que a luz forte do sol parecia penetrá-la, tornando-a quase transparente nos seus matizes róseos. Os cabelos dourados eram, como dissera a mãe, uma teia de luz e flutuavam ao vento, descendo, quando soltos, até os joelhos e formando um manto de ouro que ela gostava de estender sobre o corpo depois do banho. Targélia, mulher prática e astuta, sentia um assomo poético ao olhar para a aparência de Aspásia, com o rosto oval a terminar num queixo com covinhas de uma redondeza emocionante e com a cabeça a levantar-se de um longo pescoço esbelto, flexível como uma serpente e de uma alvura de leite. O nariz era do formato grego clássico adorado pelos escultores e a boca de um vermelho forte e veludosamente macia. Não era desmesurada, nem exígua e quando ela sorria cintilavam em torno as covinhas, encantadoramente. Os olhos eram excepcionalmente grandes, engastados em finas sombras violetas e cercados por espessos cílios dourados. Eram de uma cor cativante, como a do vinho castanho-claro, e cheio de luz.
Tudo isso, aos quatorze anos de idade, era suficiente para desorientar os homens, pensava Targélia com prazer. Mas, por mais bela que fosse Aspásia, a sua inteligência superava a beleza. Targélia havia notado que em geral uma grande beleza era acompanhada de uma inteligência menor, mas esse não era o caso com Aspásia. Não tinha ela apenas dotes excepcionais em música com uma voz de grande doçura, extensão e sensibilidade, mas era também uma dançarina soberba cujos movimentos eram ao mesmo tempo carnais e inocentes. A conversação de Aspásia não repetia coisas decoradas ou aprendidas na escola. Era cintilante e inteligente, cheia de sutilezas e insinuações, ao lado de uma irrequieta impertinência que provocava risos entre os mais apáticos e sérios. Observava tudo e os seus comentários eram inventivos e dotados de percepção, chegando às vezes a ser surpreendentemente sábios e profundamente intelectuais. Superava os mestres nos exercícios retóricos e era capaz de discorrer convictamente sobre qualquer assunto. Havia nela uma alegria espontânea que se comunicava aos outros e dissipava as tristezas porventura existentes.
Targélia temia às vezes que houvesse um poder mais do espírito que da carne na personalidade de Aspásia e que os seus pensamentos nem sempre fossem femininos. Embora fosse indescritivelmente sedutora e um êxtase para os olhos, tinha observações às vezes muito aceradas e diretas, muito adversas a qualquer simulação. Por essa razão, os mestres de Aspásia procuravam ensinar-lhe mais autodomínio do que às outras jovens e, embora ela parecesse aquiescente e escutasse atentamente, havia em seus olhos um breve brilho de divertido desafio.
Esse brilho tinha aparecido com muita frequência naquela tarde quente e perfumada no pórtico exterior, como se alguma coisa houvesse despertado a tendência de Aspásia à rebelião, e as observações de Targélía eram quase sempre feitas com os olhos voltados para ela. Não compreendia Aspásia que tinha a aparência de uma imperatriz e um espírito que podia obrigar ao respeito até alguns dos homens mais eruditos e que esses dons não deviam nunca ser ameaçados pelo desprezo sem disfarces, por protestos apressados e por um ar de impaciência? Os homens não gostavam de mulheres audaciosas e Aspásia, apesar do seu encanto, da sua graça e das suas maneiras encantadoras, podia ser impiedosa e franca na revelação do seu desdém pelos tolos. Havia ocasiões em que seus lindos olhos e seu rosto admirável brilhavam ou se ensombreciam de raiva ou ressentimento e a paixão surgia como um relâmpago, não a paixão de uma criatura sensual, mas a de uma mulher irritada ou que se achava desagradável a conversação que então transcorria.
— Queria dizer alguma coisa, Aspásia? — perguntou Targélia vendo a fisionomia da moça transformada e fervilhante de pensamentos.
— Quero sim — disse imediatamente Aspásia, com uma vivacidade mais de rapaz do que de moça e com uma voz arrebatada, ao mesmo tempo clara e vibrante. — Não sou uma mulher de carne e de osso, dotada de espírito, de emoções e de opiniões? Devo suprimir tudo isso e ficar subordinada a serviço de um homem que pode ser inferior a mim, a despeito de sua riqueza e de sua posição? Devo fingir que, diante dele, não passo de uma simples mulher, ainda que seja culta e excelente em conhecimentos e com todas as paixões de uma criatura humana que observou muito e pensou ainda mais? Sim, sei perfeitamente o que me foi ensinado, mas me revolto diante de tal destino.
Targélia teve um leve sorriso, embora no seu íntimo estivesse amedrontada.
— Fomos nós, as mulheres, que fizemos este mundo? Fomos nós que dispusemos que a mulher seria inferior ao homem, ainda quando este é menos inteligente, mais grosseiro e mais obtuso do que nós? Não obstante, podemos governar os homens como nenhum homem é capaz de governá-los e escravizá-los à nossa vontade. Somos um mistério para essas criaturas mais grosseiras e em nosso mistério está o nosso poder. Eles nos temem e nos adoram ao mesmo tempo, pois somos mais sutis e muito mais hábeis e temos a força da terra em nossa carne e em nosso espírito. Somos insuperáveis em gentis e deliberados artifícios e nos rimos deles no fundo de nossos corações.
As deusas são mais ágeis e mais astuciosas do que os deuses e devem observar que Atena, Afrodite e Hera são veneradas ao mesmo tempo que amadas pelos deuses e que podem infundir terror na alma de Zeus, o rei de todos eles. Alegremo-nos com esses pensamentos e imaginemos nosso resplandecente futuro.
Acrescentou com um sorriso mais amplo e com um dedo levantado em advertência:
— Quem, em verdade, governa os deuses e os homens? Afrodite, a deusa do amor e da beleza, a voluptuosa sem véus. Até Atena, mais sábia entre os deuses e deusas, e a própria Hera, não são veneradas com tanta devoção quanto Afrodite, nem fazem girar os mundos como ela. Os quadris da deusa do amor são mais poderosos do que a fronte de Atena e Afrodite não é virgem e tem seios.
As jovens riram com prazer e até a discordante Aspásia foi forçada a sorrir.
Targélia perguntou então, subitamente séria:
— Que deseja desta vida, Aspásia?
A jovem encolheu os ombros e baixou a cabeça.
— Alguma coisa mais do que o que me está reservado, mas o que é não sei.
Targélia levantou-se e disse:
— Procura o que queres nos braços de um homem, pois é só aí que o encontrarás e em nenhum outro lugar.
A rebelião faiscou nos olhos de Aspásia e Targélia acrescentou:
— A verdade é que os homens têm tudo o que nós queremos e tudo podem dar-nos.
Targélia viu que os olhos de Aspásia se cavavam e escureciam de pensamentos e esboçou um gesto de satisfação.
As jovens eram ensinadas por mulheres eruditas, algumas das quais tinham sido cortesãs, mas Targélia empregava também homens de idade respeitável e de aparência modesta, pois é preciso guardar bem as virgens.
Um ano antes, os mestres tinham procurado Targélia, dizendo-lhe:
— A jovem Aspásia tem um espírito complexo e mostra grande talento. Aspira a conhecer todas as coisas e não com superficialidade. Interessa-se por digressões sobre medicina, matemática e arte, fazendo perguntas incisivas e difíceis, não se contendo com respostas vazias. Em suma, quer saber tudo o que nós sabemos e não aceitará ensinamentos apressados. Tem um espírito de homem e isso pode ser uma infelicidade.
— Já desconfiava disso — disse Targélia, não sem uma ponta de orgulho. — Mas qual o cérebro humano que pode conter todo o conhecimento? Entretanto, se uma pessoa de talento é dotada generosamente pelos deuses, que derramam prodigamente sobre a pessoa escolhida os seus tesouros mentais, pode acontecer com ela o que acontece quando é criada uma mulher bela, que é perfeita em todos os sentidos. Aspásia é notável tanto em inteligência quanto em beleza. Quer assenhorear-se de todas as coisas. Mas em que é ela mais proficiente?
Um velho sábio disse, cofiando a barba branca:
— Ela se sente fascinada por Sólon, o fundador da democracia, e por todas as suas leis. Ela quer saber por que a Grécia não segue as leis de Sólon, estabelecidas há mais de cem anos. Explicamos que os atenienses eram caprichosos e inconstantes demais como um povo para exigir que os seus governantes observassem uma constituição imutável, pois suspeitam do que consideram inflexibilidade, mesmo em leis perfeitas.
— Nossa Aspásia é então política, além de matemática e artista? — perguntou Targélia, sorrindo.
— Não faz parte de nossas funções — disse uma professora — descobrir o talento de cada jovem e desenvolvê-lo a fim de que ela possa ser a companheira perfeita de um homem da mesma tendência e ocupação?
— Decerto — disse Targélia. — Mas nossa Aspásia é versátil e seus talentos são igualmente enormes. Tem miríades de olhos, todos bem desenvolvidos. Em que é que julgam, então, que ela é mais proficiente? Em política, em matemática, em arte ou em ciência?
— Interessa-se também por medicina — disse o médico — e é muito destra e inventiva em matéria de poções. Está frequentemente junto ao leito dos enfermos e muitas vezes me pergunto se o pai dela não terá sido Apolo.
Targélia riu.
— Tenho certeza de que não foi. Mas o conceito é justo, pois não brilha ela como o sol? Que mulher essa! Só um poderoso sátrapa persa seria digno dela. Não a desanimem. Respondam-lhe com profundidade e sinceridade, respeitando-lhe a inteligência. Ela nasceu em Mileto e não na Grécia, onde se desprezam as mulheres e a sua inteligência. É verdade que estamos atualmente sob o domínio dos gregos, mas ela é filha da Ásia Menor.
Sorriu para os mestres inquietos.
— Os deuses devem na verdade protegê-la, pois, se tivesse nascido na Grécia, seria confinada no gineceu e não poderia aprender coisa alguma. Deem a Aspásia tudo que puderem e não tenham receio de fatigá-la. O espírito é ilimitado.
Pensou no preço que poderia pedir por Aspásia, mas, ainda assim, tinha tanto orgulho dela como se fosse sua mãe. A moça era uma joia prodigiosa, que merecia superior polimento e engaste para reluzir em toda a sua glória.
Uma joia assim, ainda por cima virgem, merecia mais que um sátrapa da Pérsia. Seria mais de desejar um imperador. Entretanto, os persas eram muito ricos e poderosos. Devia-se reconhecer até que eram mais sutis que os gregos, mais até que os requintados atenienses com os seus filósofos. Os persas tinham uma velha filosofia céptica, incompreensível para os homens do Ocidente. Eram menos musculosos e diretos, embora fossem terríveis guerreiros quando se enfureciam.
Targélia sentia-se fascinada pela humanidade em todas as suas manifestações. Os homens tinham sido criados pelos deuses ou num acesso de completa loucura ou em obediência a uma força maior que eles próprios. Isso era um tema para os filósofos que diziam conhecer a natureza do homem e eram tão ignorantes quanto o mais humilde camponês. Targélia pensou numa das superstições dos gregos, o Deus Desconhecido, cujo altar estava ainda vazio, mas a quem eles veneravam. Não sugeriam também os persas a esse Deus? Targélia encolheu os ombros. Os homens procuravam os deuses, mas as mulheres procuravam a vida, e talvez tudo fosse a mesma coisa. Mas era o ventre das mulheres que gerava deuses e homens e nisso consistia o poder e a sabedoria das mulheres. Zeus era o rei dos deuses e dos homens, mas era governado por sua mulher Hera e vivia em verdadeiro terror dela. Não era de admirar que tanto deuses quanto homens tivessem medo das mulheres. Estas detinham um poder misterioso. Podiam elevar os homens ao Parnaso ou precipitá-los no Hades.
O professor de ciência disse a Aspásia:
— Não há verdade senão quando uma experiência pode ser repetida muitas vezes, com o mesmo resultado e sem qualquer desvio. Essa é a realidade, e a realidade é só o que podemos conhecer.
— Que é a realidade? — perguntou Aspásia.
— Realidade é aquilo que pode ser provado, distinguido pelos nossos cinco sentidos e, como eu disse, repetido muitas vezes na mesma experiência. Tudo mais é metafísica, fábula, conjeturas e sonhos de loucos ou de poetas ébrios.
— Como Homero, por exemplo — disse Aspásia com a sua seriedade que muitas vezes exasperava os professores.
O professor franziu o rosto. Apanhou um punhado de varetas e agitou-as diante do rosto de Aspásia, enquanto as outras alunas sorriam entre si e mudavam de posição nos seus bancos de madeira.
— Aqui estão dez varetas. Uma dezena. Toda a matemática se baseia nessa regra de dez, por mais que se usem símbolos esotéricos.
Jogou as varetas para o alto e deixou-as cair em cima da mesa. A queda foi desordenada. Aspásia se inclinou sobre a mesa e examinou as varetas.
— Mas a realidade não se baseia na causalidade — causa e efeito? — perguntou então.
— Certo.
— E o padrão, a experiência deve repetir-se indefinidamente em todos os sentidos para que seja válida?
— Certo.
O professor levou a mão à barba e olhou Aspásia em grande prazer, pois a beleza da jovem não o empolgava e as suas observações quase sempre o desconcertavam, o que muito divertia as outras moças.
Aspásia levantou as varetas e os seus olhos cintilantes se voltaram enigmaticamente para o professor. Deixou as varetas caírem tilintando sobre a mesa e não afastou o olhar do professor. As varetas, caíram de outra maneira e ela então as estudou,
— Causalidade, realidade. A experiência é sempre a mesma e nunca varia. Mas olha estas varetas. Deixei-as cair do mesmo modo por que as deixastes, Cipo, mas a forma por que caíram foi inteiramente diferente. Farei nova demonstração.
Tornou a apanhar as varetas dentro de profundo silêncio, quebrado apenas pelo grito rouco de um pavão no jardim. Deixou cair as varetas. Formaram ainda outro padrão que ela olhou com surpresa.
— As mesmas varetas, o mesmo gesto e até a mesma posição dos meus dedos nelas. Entretanto, o padrão resultante foi diverso de cada vez, Dez varetas e talvez dez mil padrões diferentes. Assim, a realidade deve ter padrões mutáveis e nem as experiências nem os resultados delas são os mesmos, embora as condições sejam idênticas. Devemos concluir então que a realidade tem milhões de faces e nunca se repete e que, se uma experiência pode ser reproduzida exatamente, isso é apenas uma ilusão e não uma verdade?
O professor teve vontade de bater nela e disse, contendo a sua raiva:
— Isso é um raciocínio insensato de mulher. O tremor dos seus dedos, a aceleração do seu pulso, o mais leve golpe de vento, tudo isso pode destruir a exatidão da experiência. Se pudesse deixar cair as varetas através de toda a eternidade com a mesma exatidão, dentro das mesmas condições absolutas, teria sempre um padrão imutável.
— Isso é teoria — disse Aspásia. — Não pode ser provado. E não disseste que o que não pode ser provado não é realidade?
O professor não replicou e ela continuou:
— Nada permanece como era. Todas as coisas, todas as condições mudam, inclusive as estrelas na sua passagem e os ventos no ar. A realidade é, portanto, efêmera e o que é real hoje é falso amanhã ou até no momento seguinte. Pobres mortais que somos! Devemos regular nossas vidas na esperança de que haja alguma coisa invariável em nossos assuntos e de que a causalidade seja inevitável e a realidade, um fato. Mas nada disso é verdade. Somos barcos desgovernados a flutuar em águas de mistério e em ondas que nunca se repetem, traídos pelas próprias estrelas. Nada é fixo ou certo e vem daí nossa aflição. Nossos conceitos da realidade são subjetivos e não objetivos, pois a objetividade não existe.
— Nega então a objetividade, Aspásia?
— Certamente. Nossas tentativas de objetividade decorrem da nossa subjetividade particular. Cada qual tem a sua própria e nenhuma é semelhante a outra.
— Não acredita no absoluto?
Ela arqueou as sobrancelhas douradas como que em espanto.
— Não há absoluto — disse ela e a sua expressão se alterou sutilmente. — Salvo, talvez, com Deus, cuja realidade ainda não foi provada, pelo menos de maneira satisfatória para os nossos cientistas. Ele também é subjetivo. Considero a objetividade como nada mais que uma confusão no espírito dos homens, e como uma opinião privada, porque em que assunto podem todos os homens concordar por completo?
— O seu raciocínio é superficial e caótico! — exclamou o professor, já então fora de si na sua raiva. Varreu as varetas de cima da mesa e elas caíram ruidosamente no chão. Gostaria de fazer o mesmo com Aspásia.
— Mostra onde está o meu erro — disse ela.
As outras jovens estavam encantadas, mas Aspásia franziu o cenho para elas e disse:
— É mais do que possível que as minhas conclusões sejam tão sem base quanto as de nosso professor ou de qualquer outro mortal. Ninguém possui a verdade sobre qualquer coisa que seja.
— Está perturbando e distraindo minhas alunas e destruindo também a minha autoridade — disse o professor. — Retire-se da minha sala e não volte senão amanhã.
O professor encolerizou-se ainda mais com o súbito sorriso de prazer de Aspásia ao deixar a sala, com os cabelos a segui-la como uma nuvem luminosa, o belo rosto sereno e alheado. Parecia uma ninfa que ali tivesse ido parar, sem ser vista e sem ver, entregue apenas aos seus pensamentos e desejos, indiferente ao que a cercava.
Foi para os jardins, onde as sombras dos sicômoros, dos carvalhos e dos mirtos caíam nítidas e em tons verde-escuros na relva e nos caminhos empedrados e onde pássaros presos em gaiolas pendentes dos galhos chilreavam em companhia dos que estavam em liberdade no ar luminoso. As flores nos canteiros feriam os olhos com a sua viva intensidade e o grande tanque dos peixes ressoava de um azul apaixonado. Para Aspásia a cor tinha um som para o ouvido e as leves ressonâncias das fontes quentes pareciam ter uma cor secreta própria. Nela, todos os sentidos se fundiam e eram intercambiáveis, de tal modo que o gosto, o olfato, a audição, a visão e o tato se juntavam numa só emoção, muitas vezes tão aguda e ardente que era impossível suportá-la sem uma avassaladora turbulência espiritual. Ouvia o profundo murmúrio do mar além dos jardins. As estátuas nas grutas e nas fontes se revestiam de luz. Uma leve brisa lhe erguia os cabelos e agitava a longa túnica branca, enquanto o sol lhe aquecia as faces, os pés e as mãos. Um renque de palmeiras estalava as suas frondes e um papagaio numa gaiola gritava e depois ria. Não havia outros sons senão esses.
Ela podia abandonar-se toda à alegria e à veemência do momento. Já esquecera o seu infortunado professor. Algum tempo antes, entrara em outra sala de aula como aluna. Levantou as mãos delicadas e deixou correr por elas a luz do sol, maravilhando-se com a sua translucidez e com o sangue rosado das suas margens. Que admirável coisa era o mundo e tudo que nele havia! Um pé de grama, uma pedra, uma folha encerravam glórias e mistérios superiores a tudo que pudessem dizer poetas ou filósofos. Nada era comum, nada era desprezível, enfadonho, inerte ou sem beleza, mas brilhava com íntimo esplendor e pasmo diante de sua própria existência. Nada podia ser adequadamente explicado ou compreendido; nada podia ser plenamente conhecido. Havia nisso o mais profundo interesse e assombro. Examinou um anel dos seus cabelos, sentindo-lhe a maciez sedosa e a presença viva. Mas o que era na verdade, além de sua aparência? Que realidade mais profunda havia sob aquilo que podia ser sentido, provado, ouvido, visto ou tocado?
Os pensamentos de Aspásia ainda eram pueris e cheios de admiração, mas a intensidade desses pensamentos não era pueril, como não o era a paixão que lhe agitava o seio núbil quando contemplava tudo que existia. Foi tomada de inquietação e, de repente, prendeu as mãos juntas para conter o seu fervor. Desejava voar, correr para o mar, atirar-se no chão, ter todas as coisas entre os braços e unir-se a elas. Havia nela uma fome imensa, sem nome e sem limites, sem contornos, nem formas, mas que a devorava e a fazia, às vezes, chorar. Uma borboleta, vermelha como sangue, caiu-lhe nos joelhos como se fosse uma pétala de rosa e, ao vê-la, os olhos se lhe encheram de lágrimas. Não era apenas a beleza do inseto que lhe fazia o coração bater com tanta força. Era a própria existência da borboleta e o enigma dessa existência. Sentia-se cheia de admiração por alguma coisa que não sabia o que era.
Por trás dela, a casa com as suas colunas e os seus murais pintados parecia feita de um fogo claro, e mais flutuava do que pousava no chão. Ouviu então os sons dos alaúdes e dos cantos e procurou acalmar-se, pois naquele momento tinha de ir para a sala do médico, que ensinava às jovens o que elas tinham de saber sobre as artes da cura.
Olhou para o céu e murmurou impetuosamente:
— Permiti-me, ó deuses, um pouco de sabedoria, um pouco de conhecimento, um pouco de compreensão, para que eu possa ser mais que um animal do campo que rumina a sua comida e deixa cair os seus detritos. Fazei-me ser plenamente humana e manter dentro de mim a divina febre do assombro, a divina procura de uma explicação!
Capítulo 3
O médico, homem ativo e de expressão ágil, era, como Aspásia e Targélia, um jônio de Mileto. Chamava-se Équíon. Nunca fora escravo. Nascera livre numa família próspera que fabricava ornatos de ouro e prata e frequentara uma escola de medicina no Egito. Era grande, gordo e musculoso, com um rosto redondo e vermelho, olhos que pareciam cintilantes pedras azuis e eram alegres. Era calvo, com uma abóbada rosada que se erguia acima das bastas sobrancelhas pretas, e tinha várias papadas abaixo do queixo como testemunho de boa digestão e excelente apetite. Gostava de usar túnicas breves de cores vistosas, nenhuma delas esmaecida, que lhe mostravam as pernas muito bem-feitas apesar de sua corpulência. Era um dos amantes de Targélia e ela lhe pagava bem, sem subestimar-lhe os talentos na cama ou na sala de aulas. Ela gostava da boca cheia, vermelha e sensual de Équion, que estava sempre sorrindo, pois tinha dentes perfeitos de que se orgulhava. Não tinha o mesmo orgulho do seu nariz, que Targélia comparava zombeteiramente a um nabo e em cujas narinas cresciam viris pêlos negros.
Vivia contente em educar as jovens da escola de heteras e, se tinha desejos por alguma delas, era prudente o bastante para limitar-se a um contato aparentemente paternal num ombro, num braço ou numa face. Era também muito preguiçoso, apesar do seu vigoroso apetite e preferia a vida de luxo naquela casa a praticar a medicina na cidade, pois o trabalho podia ser árduo e oferecer poucas compensações em matéria de dinheiro ou de estima.
Vivia numa pequena casa própria de mármore nos terrenos da escola, onde Targélia mandava chamá-lo quando estava com disposição para ser divertida e tratada com rudeza na cama. Era amável, inteligente e muito bom médico. Na opinião de muitos, os seus conhecimentos médicos eram espantosos e os remédios que aplicava, mágicos.
Era céptico e não sentia piedade pelo sofrimento. Considerava a doença um desafio ao seu eu. A doença era para ele uma afronta pessoal e não despertava qualquer compaixão, pois detestava tudo que era doentio e procurava suprimi-lo. Os egípcios diziam que um médico só podia verdadeiramente curar quando seu coração era tocado e as suas emoções despertadas em relação a um doente, mas Équion tinha provado que essa noção era falsa e sentimental. Havia necessidade tão-somente de perícia e a doença era um inimigo que devia ser compreendido e derrotado, pois era feia e ele detestava o que era feio. Tinha também a funda suspeita, com a qual os egípcios não concordavam, de que cada homem era sua própria moléstia e provocava muitos dos seus padecimentos. Intimidava e repreendia os doentes ao mesmo tempo que os tratava e julgava cada um dos seus triunfos sobre a doença também um triunfo sobre os fracos e recalcitrantes que preferiam obstinadamente a doença à saúde. Mais que tudo, detestava as fraquezas, pois no fundo do coração era um guerreiro. Havia nele aquela crueldade natural que é o apanágio dos grandes cirurgiões e nunca a mão lhe tremeu ao brandir o escalpelo, nem o suor da ansiedade lhe umedeceu o rosto.
Tinha um golpe de vista que enxergava o inimigo ainda que oculto por trás de um rosto jovem de lábios róseos ou no fundo de olhos faiscantes. Tinha aconselhado Targélia a passar adiante muitas jovens, entregando-as ao primeiro pretendente que aparecesse. Ela jamais discutia com ele. Tinha visto muitas vezes os resultados quando deixara de seguir os seus conselhos. As jovens em breve adoeciam e morriam, com surpresa e confusão para os clientes, mas não para Équion.
— Não lhe disse que a moça tinha rins doentes, sangue preguiçoso ou coração fraco, embora essas coisas não fossem aparentes para você ou para os outros? — perguntava ele a Targélia, quando ela recebia uma carta cheia de lamúrias de algum homem rico que levara a jovem para casa de boa fé.
— Fez bem era livrar-se dela — dizia Équion, rindo. — O comprador? Ora, um homem que compra um cavalo ou uma mulher deve entender do assunto ou então é um imbecil que não merece qualquer simpatia.
Ele bem sabia que nenhuma das mulheres era realmente comprada, pois não era uma escrava e podia deixar o seu protetor no momento em que o quisesse, mas gostava de considerar as jovens potencialmente doentes e, portanto fracas, como inferiores a cães ou cabeças de gado.
Sentia-se mais encantado por Aspásia do que pelas outras belas jovens, muito embora ela não fosse uma aluna dócil e provocasse discussões com ele. Preferia as suas divergências desagradáveis, as suas observações aceradas, as suas perguntas e discussões à meiga aceitação das outras. Via pouco respeito servil naqueles grandes olhos castanhos e sabia que ela escutava avidamente não apenas para aprender, mas também para interpelá-lo se ele mostrasse alguma dúvida. Mas, quando ela o admirava sinceramente e se aproximava dele para não perder uma só palavra, a satisfação de Équion eia imensa. Sentia com espanto que recebera a aprovação de um colega, e não de uma simples mocinha.
— Ela tem na verdade alma de médico — dizia ele a Targélia. -— O seu prodigioso talento me estarrece. Costuma-se dizer que as mulheres belas têm uma alma de macaco, mas o que minha experiência mostra é que as mulheres dotadas de inteligência pelos deuses são também agradáveis aos olhos.
— Ela é digna de um imperador — tornava a dizer Targélia.
— Ou do próprio Apolo — dizia o médico. — Mas vamos esperar que Zeus, no qual não acredito, não a descubra e não a roube numa chuva de ouro. Ou não a engravide, na figura de um cisne, como fez a Leda, embora eu deva dizer que uma mulher que puser um ovo será um espetáculo muito interessante para um médico.
— Você não é Zeus — disse-lhe Targélia, com um sorriso brincalhão, mas cheio de intenções. — Não se esqueça disso.
— Mas você é uma verdadeira Hera, minha adorada — respondeu ele num galanteio.
Targélia riu e replicou:
— Dizem na cidade que você é insaciável.
— Apenas boatos, minha divindade. Não sabe então que lhe sou fiel?
— Sei que não é, mas me diverte, me satisfaz e eu gosto de conversa e de sua companhia.
Ficou pensativa durante alguns momentos e disse:
— Às vezes, tenho receio de que Aspásia não venha a ser a melhor das companheiras para um homem, porque os homens não gostam de uma mulher de língua afiada. Ela é rebelde e de temperamento difícil. Aconselho-a e censuro-a quase sempre por isso.
— Há homens que preferem ter nos braços uma mulher de fogo a uma mulher complacente. Qual é o cavaleiro que não gosta mais de montar um cavalo fogoso do que um burro ou uma égua lerda? Acho que tem um verdadeiro tesouro dentro de casa, Targélia,
— Um tesouro bem guardado por mim — replicou Targélia.
Por isso, Équion, ainda que desejasse Aspásia, que era sadia, admirável de aparência e intelectual, procedia da maneira mais correta com a sua aluna. Apreciava muito a vida luxuosa que levava e não deixaria nem mesmo uma Aspásia ameaçá-la, por mais que desejasse a jovem. Mas tinha as suas fantasias, com as quais tinha de contentar-se.
As jovens entraram naquele dia na sala de aula como um punhado de pétalas de rosa tangidas pelo vento. Équion sentiu os lábios secos. Viu Aspásia e notou, com o seu olho clínico, que ela estava perturbada e preocupada. Era um sinal de que seria mais discutidora do que de costume. Ela se sentou numa das cadeiras e olhou para ele com os olhos distantes. Não ocorreu a Équion que ela nem tomava conhecimento da presença dele. No seu egocentrismo, julgou que ela estivesse pensando nele e na aula que ia dar. Endereçou-lhe um sorriso cauteloso a que ela não retribuiu, baixando o olhar para as mãos entrelaçadas.
— Discorreremos hoje — disse ele, pensando com prazer que a sua sala parecia um jardim — sobre a verdade segundo a qual um corpo são é consequência de uma mente sã. Já tratamos do tema anteriormente, mas desejo ampliar essa noção.
Aspásia reanimou-se e levantou a mão. Équion franziu a testa, mas curvou a cabeça.
— Na tua opinião, Équion, cada homem é sua própria doença e a saúde é apenas uma questão de pensamento criterioso e de uma filosofia serena.
— É verdade, Aspásia.
— Neste caso, todas as doenças, excluída a hipótese de um acidente, são criadas no espírito do paciente?
— Certo.
Aspásia sorriu desdenhosamente.
— Se uma criança é atacada da Doença Branca, é ela responsável pelo seu padecimento mortífero?
O médico olhou para ela sem muita satisfação.
— E se uma criança nasce com uma deformidade ou com uma doença que a matará, pode ser acusada, na tua opinião, de pensar erradamente?
Équion sentiu diminuída a sua predileção por Aspásia e se surpreendeu com uma quase insensibilidade a seus encantos. Teve uma breve tosse e respondeu:
— Os egípcios têm uma teoria, segundo a qual os homens trazem em si, nas suas vidas atuais, corrupções mentais procedentes de vidas anteriores, e essas corrupções se manifestam nos corpos das crianças.
— Acreditas nisso, professor?
As autoridades eclesiásticas não aceitavam que os homens vivos tivessem tido existências anteriores, Équion sentiu-se em perigo diante daquela menina disposta a argumentar. Disse cautelosamente:
— Há muitos mistérios neste mundo, minha filha.
— Mas sustentas a teoria de que o homem é a sua própria doença! Como pode então uma criança recém-nascida ser doente e morrer dessa doença?
O médico abriu os braços, sorriu como que iluminado pelo sol e recorreu a um aforismo:
— Quem pode saber o que existe na cabeça de uma criança?
Disse então Aspásia:
— A infância não está muito longe de mim, que sou, aos quatorze anos, ainda jovem. Lembro-me dos meus pensamentos infantis. Não eram misteriosos. Relacionavam-se com apetites e pequenos prazeres, como acontece com todos os pensamentos de crianças. Por que então tenho saúde e outras pessoas adoecem?
— Teve pais que tinham saúde — disse Équion.
— Não conheci meu pai e nem cheguei a ouvir-lhe a voz. Minha mãe morreu há três anos. Não tinha a melhor das constituições. Do contrário, não teria morrido da peste dos pulmões. — Fez uma pausa e prosseguiu: — Disseste que eu tive pais sadios. É possível, então, que crianças sadias sejam descendentes de pais sadios? Entretanto, já vi nesta casa escravos que não eram robustos e de quem nasceram-filhos que não eram doentes, nem deformados. E já vi muita mãe jovem e vigorosa dar à luz um menino que não pôde sobreviver, de tão doente que era. Considerando todas essas coisas, não devemos ter cuidado em dizer que todas as doenças são produzidas pelos doentes, de onde se segue que não devemos desprezar os pacientes?
— A medicina — disse o médico, muito vermelho — é uma ciência exata. Mas cada homem é um indivíduo e, por isso, o que matar um homem não afetará outro, nem lhe causará a menor perturbação.
— Deves reconhecer então que é uma arte misteriosa, oculta e subjetiva? É exclusiva e não pode ser aplicada a todos os homens?
Isso era contrário a todas as convicções e teorias de Équion. Aspásia alisou os cabelos com as mãos e teve um sorriso zombeteiro.
— Ao que parece, a medicina é uma arte e não uma ciência. Só deviam tratar dela artistas, homens de raciocínio subjetivo e presciência oculta.
Équion duvidou de que algum dia tivesse achado aquela jovem bela. Percebia os risos discretos das outras.
— Tenho feito operações para tirar pedras, e as pedras eram idênticas. Não havia arte nisso!
— Mas alguns viveram depois da operação e outros não — disse Aspásia. — Por conseguinte, os pacientes não eram idênticos e não era possível prever nem a vida, nem a morte dos mesmos.
Équion disse triunfantemente:
— Os que sobreviveram eram mentalmente sadios e os que não viveram tinham o espírito doente!
— Como se pode provar isso, se a medicina é uma ciência exata?
Vendo que ele não respondia, Aspásia disse:
— Tudo isso é muito subjetivo. Não há meio de prová-lo com exatidão. Não se trata, pois, de uma ciência, mas de uma arte, e a arte é imprevisível.
— Já disse, Aspásia, que, embora a medicina seja uma ciência exata, nenhum homem é igual a outro.
— Nunca reconheceste isso até agora — disse Aspásia. — Isso mostra que os homens nem sempre são a sua própria doença, mas são governados por misteriosos fatos que não percebemos e talvez nunca cheguemos a perceber. Pergunto eu: é uma doença num homem exatamente como é em outro?
— Não. Mas aqui também entra em jogo a reação individual da mente.
— A mente é, pois, subjetiva. Quem já viu a mente? Pode-se operar à procura dela ou modificá-la com a ponta do escalpelo? Pode às vezes ser dominada pelo ópio, como nos disseste um dia, mas não permanecerá dominada. É verdade que um homem pode matar-se por força dos seus pensamentos e, desde que a mente é subjetiva, é claro que o corpo também o é. Não é verdade que um corpo doente pode afetar a mente e que a dor pode transformar um filósofo, por mais estoico que seja, num animal uivante sem vergonha e sem dignidade?
— É porque induziu primeiro a dor em sua mente — disse o médico, que já sentia ódio pela jovem.
— Como se pode provar isso?
— É uma coisa que não pode ser provada com certeza! — exclamou ele.
— O que não pode ser provado com certeza não é objetivo e não é uma ciência. É apenas uma hipótese. Em consequência disso, não é a medicina hipotética?
Alguns mestres egípcios haviam falado disso, mas Équíon os desprezara como sonhadores secretos, que não tomavam conhecimento da realidade.
— Afirma então, Aspásia, que devemos considerar a medicina como simples taumaturgia?
— Não se deve desprezar a taumaturgia como parte da medicina subjetiva — disse Aspásia com a maior seriedade. — Não temos Delfos, os sacerdotes e a nossa religião, que se baseiam em magia, contemplação, reflexão e crença no que não pode ser apreendido pelos nossos sentidos? Negar essas coisas seria blasfêmia e heresia.
— É uma sofista, Aspásia — disse Équíon, mortalmente pálido. — Torce a verdade e turva a água cristalina com as suas elucubrações. O seu raciocínio é falho. Quem pensa que é, mocinha?
— Sou uma realista subjetiva — disse Aspásia com outro dos seus sorrisos aparentemente inocentes.
— Uma contradição em termos!
— Como o é nossa filosofia e como o são até nossas próprias vidas.
Équíon pensou em Targélia, que muitas vezes o perseguia com divergências semelhantes. Mas sabia que Aspásia também discordava de Targélia em muitos pontos.
— Tem um espírito discordante — disse ele com severidade. — Discute pelo prazer de discutir e não creio que acredite nos seus próprios argumentos.
— Procuro apenas o conhecimento — replicou Aspásia, com intolerável serenidade.
— E que foi que lhe ensinou o seu conhecimento limitado?
— Que nada existe além do espírito e, como o espírito é subjetivo, tudo mais é também subjetivo.
— Minha filha — disse Équion, reanimando-se e ostentando um radioso sorriso — se algum dia for operada da pedra ou tiver um filho, ficará sabendo com toda a certeza que a dor é objetiva e não subjetiva.
— Se eu sofrer então, a dor que todos sofrem nas mesmas circunstâncias, a culpa será minha, culpa do meu espirito deformado?
— Vamos passar à enfermaria — disse Équion, exasperado além de todo o controle.
Procurava convencer-se de que os argumentos da jovem eram deficientes e indignos da atenção de um homem de ciência. Aspásia procurava apenas a glorificação de si mesma, atraindo a atenção para a sua pessoa, como costumavam fazer os seres inferiores que são as mulheres, reconhecendo assim a sua inferioridade. Mugia como uma novilha e considerava os seus mugidos filosofia. Precisava de ser espancada e não de indulgência. As moças riam discretamente em torno dele e Équion sentia um aperto na garganta. Passara a odiar Aspásia e o seu ódio o tornava voluptuoso, dando-lhe vontade de levá-la para a cama, onde lhe ensinaria a verdadeira objetividade! Percebeu horrorizado que os seus pensamentos tinham provocado uma manifestação material, o que, chegando ao conhecimento das jovens, provocou mais risos. Fingiram-se desconcertadas e cobriram os rostos com os dedos espalmados, por entre os quais espiavam. Mortificado, Équion apertou a faixa da cintura.
Tinha de falar seriamente com Targélia. O professor de ciência lhe dissera que Aspásia discutira também com ele sobre o mesmo assunto de objetividade e subjetividade. Uma coisa era preparar bem uma hetera para que ela pudesse conversar com o homem ilustre de quem se tornasse amante e outra era apresentar uma mulher que fosse capaz de discutir com o seu homem e preferisse isso a tudo mais.
Passaram por um estreito corredor de mármore branco. À esquerda, havia colunas dóricas, entre as quais os jardins brilhavam em cambiantes de cor e luz. As fontes cintilavam ao sol e parte da água caía sobre as flores, levantando no ar uma fragrância que a brisa quente espalhava. Nesse momento, Aspásia pensou que se havia qualquer realidade era a beleza e se existia qualquer verdade estava ela na harmonia. Desde que os homens não eram de modo algum harmoniosos, não havia verdade neles. Os seus pensamentos eram sombrios, complicados e insidiosos e, portanto, eles eram cegos para a beleza, apesar de todos os seus êxtases sobre ela. Somos uma raça pérfida, pensou ela, tão feia e incongruente dentro do mundo que é um grande mistério que os deuses nos tolerem, dado que os deuses existam.
Entraram na enfermaria, uma sala grande, clara e limpa, de janelas abertas. Havia ali apenas camas estreitas e individuais não as camas usualmente repletas dos hospitais. Aquela era a enfermaria dos escravos, que servia para homens, mulheres e crianças. Outra sala, belamente decorada, se destinava às jovens heteras e estava dividida em cubículos individuais, cheios de flores e com atendentes peritas. Apenas duas ou três das heteras se interessavam pela enfermaria e uma delas era Aspásia. Logo que entrou na enfermaria, Équion esqueceu as moças. Ali reinavam a sua autoridade e os seus conhecimentos entre os seus pacientes. Foi de cama em cama, examinado e interrogando doentes e atendentes numa voz clara e concisa. Aspásia o seguia com admiração e profunda atenção. O seu respeito pelo médico foi restabelecido. Ele podia não ser bondoso ou atencioso, podia mostrar um pouco de rudeza nos seus exames ou indiferença pelos gemidos dos doentes, mas seu julgamento era irrepreensível e ele afirmava nesse ponto o seu conhecimento céptico das extravagâncias do espírito humano, o que o levava a descobrir prontamente os que preferiam a doença ao trabalho e ao dever e a denunciá-los. Aspásia refletiu que em muitos pontos Équion e ela estavam certos; ambos divisavam parte da verdade. Havia doenças que eram induzidas pelas pessoas voluntária ou involuntariamente, mas havia doenças que chegavam por si mesmas e era quase impossível definir-lhes a categoria.
A calva rósea de Équion rebrilhava ao sol que passava. Havia atenção nos seus olhos, ainda que não houvesse piedade. Interessava-se mais pela doença do que pelo doente. Mostrava-se nisso cientista e não médico. Levava uma lâmina e um estilete para tomar notas para sua informação própria.
Parou ao lado da cama de um escravo gordo de cerca de trinta anos e olhou-o com mau humor.
— Aqui está um homem que não só devora toda a comida excelente e abundante que lhe é dada nesta casa, mas também, sempre que pode, rouba bocados da cozinha, especialmente os que tenham excesso de óleos, especiarias e molhos ricos. Não contente com isso, tem sido visto a tirar furtivamente a comida dos pratos dos companheiros na mesa, privando assim os outros dos alimentos necessários, que ganharam com o seu trabalho. Bebe, sem ser visto, do copo dos outros e não se corrige nem com as ameaças, nem com os castigos do chefe dos escravos. Os restos dos pratos da dona da casa e das suas alunas e professores são devorados por ele antes que voltem para a cozinha. Vejam-lhe o tamanho da barriga. Observem a cor de açafrão dos olhos desse ladrão e a cor amarelada dos olhos. Vejam-lhe as papadas. Não é a fome que o impele. É um escravo do estômago, que é o seu deus. É de admirar que tenha pedras no fígado, na vesícula e nos rins? Já esteve nesta enfermaria muitas vezes, sofrendo tormentos com a extração das pedras. Mas isso o corrigiu? Não!
Encarou o homem e bateu com a mão no rosto dele. O escravo teve uma contração de dor e gemeu. Équion teve um sorriso triste.
— Na primeira vez em que ele apareceu aqui, dei-lhe uma dose de ópio para aliviar a dor, que, na verdade, é ainda pior do que a de um parto difícil. Mas não lhe darei mais ópio. Ele se contorce na cama e pede a morte aos deuses quando está sofrendo. Mas não terá mais ópio enquanto não aprender que comer moderadamente é a única maneira de acabar com os seus padecimentos. Depois disso, com certeza não mais sofrerá, nem precisará de ópio.
Aspásia perguntou em voz baixa:
— Que é que o obriga a comer tão desastrosamente e a roubar comida?
— A gula — respondeu o médico, olhando para a jovem e vendo com satisfação que em seus olhos havia respeito, sem sombra de zombaria. — Nasceu nesta casa e nunca se viu privado, desde que nasceu, de comida em abundância. Sempre teve com que satisfazer a fome de qualquer homem e ainda um pouco mais.
— Por que então — perguntou Aspásia — não se contenta ele com o que tem e procura comer dessa maneira ruinosa?
— Pode perguntar-lhe — disse Équion com desprezo.
Aspásia se curvou sobre o doente, cujo rosto gordo e amarelado estava coberto de suor e cujos olhos e boca estavam apertados com pena de si mesmo. A sua expressão implorava a compaixão de Aspásia e ele gemeu, A moça franziu o cenho.
— Você é gordo e ouviu a condenação pelo médico da sua gula e do seu enorme apetite. Sabe que tanta comida assim o faz sofrer e poderá até matá-lo se não parar. Por que é que faz isso?
— Porque tenho fome — murmurou o escravo.
— E por que tem fome?
O homem se calou. Olhou para o rosto sereno e belo de Aspásia e julgou ver nele uma terna e jovem piedade. Passou a língua pelos lábios grossos e gordurosos, baixou os olhos e disse:
— Porque desejo a liberdade.
Aspásia pensou na resposta. Os cabelos maravilhosos lhe caíam pelo rosto enquanto ela se curvava sobre o homem. Disse então num tom grave:
— Isso é fácil de resolver. Targélia é compassiva e bondosa e eu sou sua favorita. Posso convencê-la a dar-lhe a liberdade para que possa partir quanto antes desta casa para viver e morrer como um homem livre, trabalhando para que possa ganhar o dinheiro necessário para comer, vestir-se e ter onde morar. Desde que o dinheiro que vai ganhar será pouco, terá de abster-se de alimentos ricos, de camas macias e dos seus divertimentos com as escravas. Beberá em pequenas quantidades o vinho do país. A sua gordura desaparecerá e deixará de sentir dores. Liberdade é isso e dou-lhe os parabéns por preferir a pobreza aos confortos da vida e um abrigo incerto à segurança de um teto sobre a sua cabeça.
O escravo arregalou os olhos, cheio de medo, e perdeu a sua expressão matreira e sofredora. Sentou-se de repente na cama, umedecendo os lábios que pareciam ter encolhido.
— Como é que eu vou viver? — perguntou ele.
Aspásia sorriu.
— Como os outros homens livres vivem. Pelo seu trabalho, pelo seu esforço e pela sua inteligência. Que é que você faz nesta casa? Ajuda na cozinha, serve à mesa e limpa os objetos de cobre e de prata. Mas terá de achar ocupações diferentes, pois essas tarefas mais fáceis são executadas em outras casas por outros escravos. Mas será melhor assim! O trabalho pesado reduzirá a sua gordura e sua fome e uma vida moderada prolongará seus dias.
Aspásia piscou o olho para o médico, que se mostrava muito interessado pela conversa.
— Équion — disse ela — estás disposto a apoiar meu pedido a Targélia para libertar este pobre homem sofredor, que anseia pela liberdade acima de tudo?
— Certamente — disse ele. Olhou para o escravo, que estava excessivamente pálido e bateu-lhe no ombro, dizendo: — Amanhã estará livre, pois Targélia o levará à presença do magistrado. Poderá então arrumar tudo o que tem e partir desta casa.
O escravo correu os olhos desesperadamente em volta, intimidado com os sorrisos de Aspásia e do médico.
— Vinho, em nome dos deuses! — exclamou, estendendo as mãos trêmulas como se estivesse morrendo de sede no deserto.
O médico abanou a cabeça.
— Não! Desde que é agora um homem livre, não terá mais direito a vinho dentro desta casa. Mas, como vai receber muitos presentes de sua generosa senhora, terá com que pagar. Por isso, vou pedir vinho, mas terá de pagá-lo, O preço atual é vinte dracmas por um jarro pequeno. Pagando, poderá beber à vontade.
Fez menção de afastar-se, mas o escravo agarrou desesperadamente a fímbria da túnica verde do médico. Quase caiu da cama, arrastado pela sua corpulência.
— Isso é crueldade, senhor!
O médico arqueou as sobrancelhas, como se estivesse espantado.
— Crueldade? Por atender ao seu desejo de liberdade e permitir-lhe deixar de sofrer e andar por onde quiser como um homem livre? Não é isso o que deseja?
O escravo arquejava e tremia. Continuou a segurar a túnica do médico, rolou os olhos e disse:
— Não! Não quero ser livre!
O médico, que tinha assumido uma expressão benévola durante a conversa, mostrou imediatamente nas suas feições e nos seus olhos a sua repulsa e desprezo, fazendo o escravo encolher-se. Disse então:
— Você não quer ser livre. Deseja apenas continuar a sua existência de parasita e satisfazer o seu monstruoso apetite. Vou-lhe dizer uma coisa: não pedirei a sua liberdade à Senhora Targélia, pois vejo que você realmente a despreza e teme, como acontece à maioria dos homens neste mundo covarde. Quase todos preferem ser escravos a assumir a responsabilidade da sua existência! Essa é a história da humanidade, Aspásia. A liberdade não é desejada quando acarreta trabalho árduo e privações, bem como perigos e fome, desde que se falhe em vista das próprias fraquezas!
Aspásia inclinou a cabeça, concordando.
— Misericórdia! — exclamou o escravo, atento apenas ao seu dilema. — Não quero ser livre!
O médico deixou transcorrer uma longa pausa, como se estivesse meditando, com o rosto severo. Disse afinal:
— Disse que não farei qualquer pedido à Senhora Targélia, mas imponho uma condição. Você terá de dominar o seu monstruoso apetite. Estou cansado de vê-lo nesta enfermaria. Mas, se você continuar a comer e a roubar comida além de suas necessidades, terá a sua liberdade e será mandado para fora desta casa. Está compreendendo?
O escravo teve um trêmulo sorriso. O alívio se transformou num abundante suor que lhe correu pelo corpo. Meneou a cabeça como uma criança travessa que fosse perdoada.
— Está bem, Mestre. Mas mande dar-me um pouco de ópio para aliviar esta dor que eu juro que nunca mais se repetirá.
— Nada de ópio. Vai sofrer essa dor, sabendo que esse é o preço dos seus excessos do passado, em que você não incorrerá mais. Essa dor não é nada em comparação com os riscos da liberdade, que os homens de bem preferem aos confortos da escravidão. Mas você não é um homem de bem.
Afastou a mão do homem de sua túnica e saiu, seguido de Aspásia, a quem disse:
— Deve ter observado que esse homem é a sua própria doença, como tive ocasião de dizer. Nascem essas pessoas com tal deficiência? É claro. Mas tiveram pais fracos, a quem nunca se deveria permitir gerar e conceber.
Équion parou e sacudiu o dedo diante dela.
— Todos os crimes contra a saúde são pagos ou pelas próprias pessoas ou pelos seus descendentes. É essa a lei da vida e quem sou eu para negá-la?
— Nem mesmo em nome da misericórdia?
— Misericórdia? Por acaso os fracos sentem misericórdia pelos fortes a quem exploram ou arruínam? Não! Abandonam o corpo do hospedeiro como parasitas, depois de terem produzido a morte. São os fortes, os bravos e os livres que eu admiro e aos quais sou capaz de ajudar. Estou quase sozinho nesta posição. Há filósofos que dizem que um homem tem direito a ser protegido pelo simples fato de ter nascido, embora ninguém lhe tivesse pedido que nascesse. Não é isso um erro desprezível?
— Na verdade, em muitos sentidos — disse Aspásia, enquanto as outras jovens enfastiadas da visita se aproximavam — a compaixão indiscriminada pode ser destrutiva, como já me foi dado observar. Mas não há algumas pessoas a quem devemos dispensar piedade?
— Não conheço pessoas assim, salvo algumas que foram vítimas das fraquezas de outros homens — disse o médico em crescente impaciência.
— Se fossem fortes, teriam consentido em ser vítimas de pessoas fracas?
O médico parou. Em seguida, deu uma risada.
— Sem dúvida, é muito bom seu argumento! — exclamou ele e tocou-lhe o ombro, deixando a mão com um anel escorregar até ao braço. Sentiu-lhe a macieza e o calor, não afastando logo a mão.
Olhou Aspásia bem no fundo dos olhos castanhos e sorriu.
— Dou-lhe os parabéns, sabe? Acho que devia fazer parte do governo, ainda que seja uma mulher.
Visitaram as camas de outros doentes. A visão interior de Aspásia era mais penetrante e ela via o que até então não vira, embora em muitos casos estivesse em dúvida. Chegaram à cama de uma jovem escrava que gemia com as dores do parto, sem poder dar à luz imediatamente.
— Cometeu ela algum pecado contra a saúde para sofrer tanto? — perguntou Aspásia.
— Por mim, deixaria essa escrava morrer — disse o médico.
— A sua incapacidade de ter um parto normal é um defeito físico que pode ser transmitido por ela a suas filhas. Por que se deve permitir que ela submeta outras gerações a tais sofrimentos?
— Trata-se de uma decisão difícil — disse Aspásia.
— Este é um mundo de duras realidades, já lhe disse. A crueldade em nome da saúde, da higiene e da justiça é uma coisa que não deve ser desprezada. Muita gente morreria antes do tempo? Decerto. Mas quanto sofrimento seria evitado com essas mortes!
Aspásia pensou que certamente era uma lei da natureza que os fracos e os deficientes deviam morrer. A piedade humana violava frequentemente essa lei. Era uma virtude ou um mal? Devia meditar sobre isso quando estivesse sozinha. Não obstante, não acreditava que o médico tivesse inteiramente razão. Perguntou então:
— Que acha dos guerreiros feridos em batalha ou dos homens que sofrem, não por culpa sua, mas dos outros homens?
— A esses posso socorrer — disse o médico e Aspásia sorriu.
O médico riu para ela, demonstrando a sua afeição.
— Minha filha, afirmou ainda há pouco que nada existe verdadeiramente além do espírito e que tudo é, portanto, subjetivo. Considera a dor também subjetiva? Neste caso poderia ser controlada por um esforço da vontade,
Aspásia riu
— Aqui estou derrotada pelo meu próprio argumento — respondeu ela.
Mas, ainda assim, não estava inteiramente convencida de que a piedade fosse absurda e uma fraqueza que devia ser detestada. Quantos homens eram aprisionados ou mortos pelas poderosas autoridades eclesiásticas que perseguiam incessantemente a heresia e a impiedade? Não mereciam esses homens piedade e justiça? Não eram às vezes a piedade e a justiça a mesma coisa? O mundo estava cheio de enigmas. De uma coisa tinha ela certeza: não havia lei suficientemente ampla que abrangesse a vasta complicação da conduta e da existência do homem. A natureza tinha apenas leis amplas, mas os homens tinham inteligência e tinham de discriminar. A derrota da natureza criara as civilizações, a beleza, a ordem, a filosofia e a arte, liberando os grandes imponderáveis do espírito humano. A natureza, em si mesma, era caótica e tinha de sofrer restrições para que a vida não regredisse à selva e ao primitivismo.
As jovens entraram na sala de aula presidida por uma professora severa, que olhou para Aspásia sem qualquer afeição. A beleza da moça lhe causava inveja; as suas controvérsias a mortificavam. A professora, que se chamava Maia, considerava a arte apolínea da matemática como a verdadeira lei, inflexível e objetiva, incessantemente válida. A matemática governava o universo e a professora a venerava como uma manifestação da sabedoria dos deuses. Sem a regra da matemática, não haveria absolutamente vida e nem planeta, nem estrelas seriam guiados nas suas passagens por um edito eterno e exato.
— Mas nós temos espíritos — disse Aspásia naquele dia, quando a professora discorreu de novo sobre o tema. — Nossos espíritos não são exatos, nem são um resultado da matemática. Se fôssemos assim governados, a conduta de um homem seria igual à de qualquer outro homem e todo homem se reduziria a um simples conjunto de números, sendo possível prever o seu pensamento, Que acontece ao espírito, que não está subordinado a uma validade aparente e à regra da exatidão e da matemática?
— Se os governos insistissem em que a regra da matemática fosse aplicada aos assuntos humanos, não haveria desordens, revoluções, pensamentos imprecisos ou emoções deletérias — disse a professora.
— Não seríamos então homens — disse Aspásia.
Exasperada, a professora perguntou:
— Que é um homem?
— Ah! — disse Aspásia. — Aí está uma questão que não pode ser resolvida pela matemática.
— Prefere o caos à ordem? — perguntou a professora, indignada.
— A maioria prefere a ordem, mas nega que a matemática tenha alguma coisa a ver com isso — disse Aspásia. — A ordem resulta da inteligência e da compreensão de que os homens não poderiam existir dentro do caos e da desordem.
— Essa compreensão se baseia na verdade segundo a qual dois e dois são quatro — disse a professora, cada vez mais exasperada.
Aspásia abanou graciosamente a cabeça.
— É verdade que neste mundo dois e dois são quatro. Mas como pode ser provado que essa lei prevalece nos outros mundos que giram em torno dos sóis? Pode ser que neles dois e dois sejam cinco. Quem sabe se a própria matemática não é subjetiva e não prevalece em toda parte ao mesmo tempo?
— A matemática não é subjetiva, Aspásia. Só existe uma lei através de todos os universos.
— Como se pode provar isso, Maia?
— Por indução e dedução, jovem discordante.
— Mas esses métodos são subjetivos, Maia. Não passam de processos mentais.
— Há um espírito maior do que o seu, minha filha, que criou as leis que governam os universos, com exatidão e quantidade constantes.
— Esse espírito é também subjetivo, Maia.
A professora olhou para ela e arremedou-a, dizendo:
— Como se pode provar isso, Aspásia?
Aspásia riu e as outras alunas riram com ela.
— Tudo isso é um tremendo mistério, o que é muito provocante. E as conjecturas são também provocantes. Um homem desprovido de constantes indagações é um animal.
Não obstante, a matemática interessava profundamente Aspásia, ainda que ela julgasse que as suas leis exatas só se aplicavam a este mundo. Ela aperfeiçoava a sua mente com a mente de outras pessoas e apreciava o diálogo que podia revelar pontos de vista muito interessantes. Mas os professores não gostavam de diálogos que lhes contrariassem as opiniões. Não sabiam que eram as convicções didáticas que tinham que aborreciam a jovem Aspásia, pois ela não acreditava em qualquer absoluto. O espírito dos homens devia ter liberdade de andar por onde quisesse e só devia sofrer restrições quando se chocasse com o espírito dos outros homens e causasse destruição ou opressão.
Em suma, a liberdade era a lei da vida florescente e quando os homens maus renunciavam a ela induziam a morte.
Não dizia a Maia que a matemática era para ela o maior de todos os mistérios e infinitamente interessante. Maia ficaria atônita, julgava ela, de encontrar alguém que acreditasse que a matemática era de algum modo misteriosa, tão misteriosa como aquele que a estabelecera. Estava começando a perceber vagamente que aqueles que excluíam os mistérios e lhes negavam a existência, eram terrivelmente obtusos apesar da sua erudição. Começava a desprezar os dogmáticos. Temia aqueles que acreditavam que tinham a solução de todas as coisas.
Ficou pensando, esquecida da sala de aula. Todas as ciências se baseavam na "lei" da causalidade. Mas ela duvidava de que a causalidade governasse tudo. Em muitas ocasiões, o espírito do homem chegava a conclusões sem causa objetiva. Como os homens eram quase sempre emotivos e muito pouco governados pela sabedoria, devia-se esperar que causas concretas nem sempre levassem a resultados inevitáveis e que estes raramente fossem previsíveis.
As outras alunas bocejavam durante a aula, embora algumas, pensando na sua futura riqueza, se interessassem pela matemática. Mas as riquezas não eram exatas, nem imutáveis, pensou Aspásia. Quando os governos degradavam a moeda, por exemplo, reduzindo a quantidade de ouro existente nela, a riqueza, o deus dos mercadores, podia desaparecer ou perder o valor. Só de uma coisa o homem podia ter certeza: não havia nada certo neste mundo. Era divertido e ao mesmo tempo triste ver a grande maioria dos homens negar obstinadamente isso. Devia-se acompanhar os acontecimentos, interessado neles, mas sem querer tirar dos mesmos conclusões muito rígidas, que eram o último refúgio dos tolos. Por que o conhecimento era inevitavelmente inimigo do mistério? Entretanto, ninguém podia explicar adequadamente o que era o homem, nem provar-lhe de maneira irrefutável a origem. Sem o assombro diante dos fatos, o conhecimento era coisa morta.
Nunca serei amante de um homem privado de curiosidade intelectual. Mas existiriam homens assim? Targélia nunca falara deles.
Havia um assunto que lhe empolgava o espírito e lhe dava intensa alegria. Era a arte. Vinham depois a história e o governo. Era estranhável que Targélia não desse grande importância a esses assuntos na educação das suas alunas. Dizia ela que só os considerava importantes para que as heteras pudessem falar deles com aparente conhecimento, caso fossem amantes de homens que se interessassem por essas coisas. "Ainda assim", dizia ela, "os homens não gostam de uma mulher muito entendida nesses assuntos".
Não obstante, os professores de sua escola eram competentes. Targélia tinha horror à incompetência.
Para Aspásia, a arte era a coroa do espírito humano e tinha a única validade real, ainda que fosse subjetiva. Entrava na aula de arte com a alegre antecipação que é o verdadeiro atributo de um intelectual. As outras jovens, com raras exceções, só davam atenção à arte quando esta era capaz de realçar os encantos de uma mulher e torná-la agradável aos olhos dos homens. Preferiam a arte dos cosméticos e gostavam da dança e da música porque as tornavam encantadoras e porque tinham a exuberância da mocidade.
Capítulo 4
O professor de arte, chamado Tmolo, do nome de uma montanha, se alegrava em Aspásia, que era a sua melhor aluna, sendo além disso dócil e interessada. Ao contrário da maioria dos gregos, Tmolo não subestimava o espírito das mulheres. Sem as mulheres, poderia a arte existir? Não, estava convencido disso. As mulheres eram a suprema criação artística dos deuses. Podiam sem dúvida destruir tanto deuses quanto homens. Mas não era a própria beleza um terror imortal e estranho e, portanto, destrutivo? Sem a arte, dom e ornamento dos deuses, não poderia haver civilização, nem justificação da vida. Tudo mais era mundano, prosaico e mortiço. Nada mais empolgava tanto a inteligência, a glória e a alegria do espírito, exaltando-o e elevando-o acima da carne. Tornava o homem realmente homem. Tmolo tinha visto que Aspásia concordava com ele, Certa vez lhe dissera: "Tmolo, és um filósofo" e ele compreendera. Recebera esse comentário como um elogio, muito embora ela fosse muito jovem e ele, muito velho.
Tmolo era pequeno e de corpo mirrado, encurvado e encanecido, mas os seus olhos eram vivos e plenos de insaciável juventude e alegria de viver, pois ele, como Aspásia, achava todas as coisas belas, ainda que se tratasse de um sapo rugoso, de uma pedra coberta de líquen ou de uma erva daninha. A fealdade não o revoltava, pois acreditava que todas as coisas eram intrinsecamente belas.
— Uma velha encarquilhada, sem dentes e de cabelos brancos, com as mãos deformadas, tem uma glória inata — dizia ele. — Não vive e não está no mundo? Então é bela. A vida que levou e os pensamentos que teve a moldaram. Foram horríveis? Talvez, mas também tiveram mistério e, portanto, certo encanto. Quando aprendermos que nada é enfadonho, mesquinho ou desprezível, poderemos ter serenidade, e a serenidade é a alma da arte,
— Ainda que a arte reproduza a violência? — perguntou Aspásia.
— A violência, minha filha, faz parte da vida e quase sempre é uma aceleração e um drama. Podemos vê-la tal como é, um aspecto da vida. E a vida é, por si mesma, uma arte.
Considerava os homens que não podiam ver essas coisas como desastrosos e indignos de ser chamados humanos. Constituíam, além disso, uma ameaça aos outros homens.
— Nem todos os seres que mostram forma humana são humanos — explicava ele. — Há homens que não têm plena humanidade ou mesmo qualquer humanidade. O aspecto não é tudo. Há ainda a alma. Já ouvi dizer que há pássaros que criam abrigos encantadores e delicados para as suas companheiras, escolhendo cores e tessituras de flores para completar um ninho cheio de simetria e de fragrância. Não são esses pássaros mais humanos na verdadeira acepção da palavra do que o homem que considera simplesmente a pedra, a madeira e os tijolos um abrigo adequado? O dom da humanidade não se limita ao homem. Tenho sabido que muitos animais demonstram as virtudes da compaixão, da justiça, da lei, da ternura e do amor. São mais humanos que os homens que não possuem essas qualidades.
Amava os deuses, embora os julgasse ora por demais desregrados e caprichosos, ora excessivamente humanos. Não eram todos belos, inclusive o coxo Vulcano? Zeus violara Leda e dos ovos dela tinham nascido os Gêmeos, Helena de Tróia e Clitemnestra.
— Mas a história de Leda e do Cisne é de imortal beleza — dizia ele. — Imagine a esplêndida moça em toda a sua radiosa beleza e o cisne de asas brancas a debater-se contra o seu seio.
As outras tinham rido maliciosamente disso. Mas Aspásia compreendera. Da tumultuosa violência tinham-se originado a bela Helena e os Gêmeos. Do amor lascivo tinham nascido as formas dos deuses e o rosto e a sedução inesquecíveis de Helena de Tróia. Mas Helena pensava que não se podia aceitar a violência sem sentido, que era desprezível; só era aceitável a violência que produzia beleza,
Tmolo justificava tudo aquilo de que resultavam coisas amáveis. Entretanto, a recalcitrante Aspásia tinha às vezes suas dúvidas. Mas amava Tmolo e perdoava-o.
Escravos e escravas de marcada beleza posavam para as heteras nas aulas de pintura, escultura e mosaicos. Os corpos eram cuidadosamente escolhidos em função da sua beleza e da sua juventude. Embora Targélia insistisse em que Tmolo devia pôr em realce os atributos das atraentes diferenças sexuais e expor os escravos ao exame minucioso das virgens, discorrendo sobre as suas qualidades e dotes, o professor preferia discutir esses assuntos dentro dos quadros de arte.
— Não há em arte aspectos pudicos ou libidinosos — dizia ele. — Aquilo que é belo está acima da vulgaridade ou da impureza. O mal não está nos objetos, mas no observador. Trazemos para a arte todas as nossas falsidades e degradações, mas as coisas não são por si mesmas obscenas nem excitantes. Em suma, o que vemos pode ser interpretado com inocência e admiração ou com malícia. Tudo depende de nós.
Na sua maioria, as alunas preferiam olhar e rir, o que irritava Tmolo.
— Insensatas! — exclamava ele. — Não criaram os deuses os homens e as mulheres? Julgaram quaisquer deles licenciosos ou obscenos nos seus corpos? Essas coisas existem apenas em suas cabeças e isso é uma tristeza. Na minha opinião, os moços são inatamente grosseiros e impuros. Essa é a maldição da humanidade.
Uma vez, Aspásia lhe disse:
— Não é a crença de que certas coisas são más e revoltantes que lhes realça o valor nos espíritos humanos?
Tmolo pensou nisso e disse:
— Infelizmente, é verdade.
Apesar disso, lutava com as moças que lhe eram confiadas. Dizia-lhe que a arte está acima do bem e do mal. Sabia que com isso desafiava as reservadas autoridades da igreja, que viam o mal em tudo, e chegavam a condenar a nudez dos atletas e, sem dúvida, a própria beleza.
— Certamente destruiriam as abelhas que fertilizam as flores, se tivessem coragem para tanto — dizia Tmolo amargamente.
Aspásia ponderava sobre essas coisas e sabia que eram verdadeiras. Como Tmolo, deplorava que os escultores pintassem a nobre majestade branca das estátuas de mármore.
— Deve haver inocência — repetia incansavelmente Tmolo. — Por que tem a humanidade de infligir a sua mesquinhez e mediocridade no que é naturalmente simples e completo? Se existe algum mal no mundo é na complicada estrutura da alma humana deformada, que procura conspurcar com os seus detritos tudo aquilo que é puro.
Aspásia aprendeu mais com Tmolo a conhecer a verdadeira glória e a veneração que ela merecia que com os seus professores de teologia.
Tinha sabido desde a infância que não era capaz de criar uma grande escultura e não tinha aptidão para a pintura apesar de todos os seus esforços. Tmolo consolava-a, dizendo:
— Não é necessário criar a beleza para apreciá-la, minha filha. Para que trabalham escultores e pintores? Para a alegria daqueles que lhes veem as obras. Nem todos podemos ser artistas. Mas será aquele que vê, ama e admira menor do que aquele que cria e também ama e admira? Exigem os deuses que sejamos também deuses? Não. Basta que nos alegremos neles e naqueles que foram dotados por eles.
Aspásia podia ter nas mãos um pedaço frio de mármore e sentir-se arrebatada. O coração se lhe expandia quando tocava em mosaicos ou contemplava um quadro. Essas reproduções da natureza a exaltavam e o seu gosto era imaculado e seguro. Como seu professor, odiava a mediocridade.
— A excelência — dizia Tmolo — é a meta final de todo verdadeiro artista. Não é importante que nem todos os que amam a excelência sejam artistas. Basta que a apreciem. Essa apreciação é a coroa e o contentamento de todos os artistas. Sem a compreensão da excelência, o homem é um animal.
E acrescentava:
— Infelizmente, nenhum artista atinge na sua obra a perfeição pela qual se esforça. A perfeição fica além da humanidade, o que não quer dizer que se deva abandoná-la como meta.
Para Aspásia, que desejava ser excelente em tudo, essas palavras eram um consolo. Por isso, cultivava a sua adoração e a sua compreensão da beleza. Esperava fervorosamente que um dia pudesse influenciar um homem poderoso a tornar-se um patrono das artes. Não lhe seria possível tolerar um homem que lhe admirasse a beleza e não tivesse consciência do seu sentido mais alto. A sensualidade não era suficiente. A beleza física era transitória. Aquilo que era gravado na pedra, pintado em cores luminosas e escrito eloquentemente em livros permanecia. Helena de Tróia estava morta, mas a lembrança de sua beleza continuava viva para inspirar poetas e artistas. A lenda era eterna e nunca envelhecia ou se corrompia. Era por isso que os deuses continuavam a ser magníficos, acima da poluição humana,
Naquele dia, Tmolo tinha uma nova modelo para as suas alunas.
A mocinha, nua e cintilante como âmbar, tinha cerca de doze anos e estava inocentemente inconsciente da sua nudez. Os longos cabelos negros tocavam seios ainda em botão e os seus pêlos púbicos eram escassos. Olhou com curiosidade para as alunas que a cercavam, mas era uma curiosidade infantil, vazia e apenas vagamente consciente. Apoiava um cotovelo num meio pedestal de mármore e movia-se incessantemente. Chamava-se Cléo. Esbelta e delicada, estava sendo considerada da parte de Targélia como uma candidata a hetera, pois era viva de inteligência e encantadora em tudo que se referia à sua pessoa. Targélia a recebera pouco antes como empregada. Sabia-se que era filha de uma bela cortesã e de um homem importante de Mileto.
Cléo olhou mais atentamente para as jovens que tinham tomado os seus lugares para modelar em barro e fazer pinturas ou mosaicos e achou-as todas um pouco velhas. Fixou então os olhos em Aspásia, que parecia um foco de luz dentro da sala. Sentiu-se tomada imediatamente de infantil adoração, como alguém paralisada pela visão de uma ninfa. Atraída pelo olhar insistente da mocinha, Aspásia olhou para ela e sentiu-se cheia de admiração. Era como uma estátua do jovem Eros e se assemelhava à primavera. Como sempre, Aspásia sentiu tristeza e frustração por não poder modelar como queria e ser incapaz de reproduzir a beleza que via. Uma das alunas tinha queda para a pintura. Aspásia aproximou-se dela e viu que a moça já estava delineando a cabeça de Cléo com toques rápidos de carvão e já havia desenhado o jovem corpo perfeito. Com uma ponta de inveja, Aspásia foi ver o trabalho de outra que juntava pedrinhas para formar um mosaico. Pensou que não teria tanta paciência. Meu espírito dá muitos saltos, pensou ela. Entretanto, achou uma pedrinha azul que a colega estava procurando. Quando a pedra se adaptou perfeitamente às outras, a moça a olhou cheia de gratidão. Meu olho é bom, pensou Aspásia, mas as mãos não me obedecem.
Tornou a olhar para Cléo. A luz do sol tocava o corpo da menina e parecia brilhar através dele, como se tocasse em mel. Aspásia suspirou. Compreendia o que Tmolo queria dizer quando afirmava que ninguém podia reproduzir a natureza em sua vivida radiosidade, por mais que sonhasse e trabalhasse. Era por isso que ele nunca ficava satisfeito com o que havia criado.
Tmolo, que amava Aspásia, viu o rosto tristonho e pensou: Por que não pode ela compreender que é impossível ser excelente em tudo? Mas sabia que era da natureza do gênio não desejar senão a perfeição e, por isso, não censurou Aspásia pelo seu desespero quando ela tentou em vão modelar em barro, cinzelar no mármore e trabalhar com os pincéis na tela. Era um martírio para ela a permanência naquela sala. Não queria, porém, sair de lá.
A aula seguinte foi de retórica e nela Aspásia se distinguia, podendo esquecer a humilhação que sentira na sala de Tmolo. A voz dela, ressoante, firme e intensamente musical, comovia o professor até às lágrimas. Era uma voz sem as restrições habituais de uma mulher. As outras alunas escutavam embevecidas, ainda que muitas vezes mal compreendessem o assunto. Os olhos de Aspásia ganhavam um brilho fora do comum e os seus gestos eram cheios de graça. Quando ela citava um trecho de Homero, a sala parecia encher-se da glória dos Gêmeos, de Aquiles, de Apoio, de Hércules e de Ulisses. Tinha uma voz de sereia, pensava o professor. Helena de Tróia devia ter tido uma voz assim, pois a simples beleza não basta para escravizar os homens.
Depois dessa aula, vinham a dança e a música e o ensino da lira e da flauta. Aí Aspásia também se distinguia, embora não desse importância particular à dança. Mas a música a encantava. Podia, já então, manejar de tal modo os instrumentos musicais que eles pareciam ter maior dimensão e profundidade, enchendo a alma de emoção.
As suas aulas de teologia não eram ocasiões felizes. Ela se abstinha de falar, sabendo que os castigos impostos pelas autoridades eclesiásticas a quem fosse suspeito de heresia ou até de divergência em relação à religião vigente eram bem severos. Entretanto, o rosto se acendia e os olhos se tornavam desdenhosos ante um ou outro pedantismo piedoso. O professor reduzia a grandeza dos deuses a simples mortalidade e acreditava que, degradando o que era majestoso e inexplicável ao baixo nível do entendimento dos homens, tornava tudo mais compreensível.
Transformava o Olimpo, morada dos deuses, num subúrbio de Atenas ou até de Mileto.
Aspásia sempre se sentia em pé de guerra quando ia para a aula de política e de história, sendo detestada pelo professor em virtude dos seus argumentos e controvérsias.
— Quem escreve a história? — perguntara ela certa vez. — Simples mortais que apresentam as suas interpretações pessoais, com base nos seus caprichos e nas opiniões subjetivas do que lhes chegou ao conhecimento, A história pode ser destorcida com a maior facilidade. Quanto à política, não passa de um exercício de mau humor.
Mas os assuntos a empolgavam ao mesmo tempo que a irritavam. Dizia-se que, se o nariz de Helena de Tróia tivesse sido mais comprido ou os seus olhos menos luminosos, Tróia nunca teria sido incendiada, nem o marido dela desejaria vê-la morta, nem Páris a teria raptado. Nessas trivialidades, soçobravam os casos dos homens! Aspásia achava a política e a história extraordinariamente divertidas em vista da luz que lançavam sobre as inconstâncias da natureza humana.
— São coisas dignas de comediantes — dissera ela um dia. — Mas certamente não devem ser consideradas como uma verdade objetiva e imutável.
Em outra ocasião, tinha dito até que a história parecia feita por loucos e que a maior de todas as loucuras era a guerra, opinião que não a tornara muito simpática aos olhos do professor.
— Não é tudo feito pelo homem e consequência do homem? — perguntara ele.
Ao que Aspásia respondera:
— Não. Há imponderáveis além do conhecimento e da compreensão do homem.
O professor disse que ela era muito jovem e, além disso, mulher, não tendo, portanto, importância nada do que ela dissesse. As outras, que não amavam Aspásia em vista de sua beleza e de sua superioridade, riram satisfeitas. Ao menos, Aspásia, com os seus argumentos, atenuava o tédio das aulas e elas lhe eram gratas por isso.
O professor se chamava Eneias e era grego. Por isso, discorria frequentemente sobre a derrota dos persas.
— Não sou supersticioso — dizia ele — mas acredito no destino. Atenas foi salva, com toda a Grécia, graças a uma misteriosa intervenção. Parecia impossível que Xerxes pudesse ser derrotado por nós, gregos irrequietos, que suspeitávamos e odiávamos uns aos outros, constantemente desavindos e invejosos — homens das montanhas brancas, dos penhascos e dos desfiladeiros ásperos, das aldeias de pescadores, das pequenas cidades menores do que Atenas, que é por si mesma pequena e insignificante. Inferiores numericamente, ao menos na proporção de um por vinte ou mais, e tendo de enfrentar com os invasores imediatos apenas a primeira onda de um mar de soldados e marinheiros, os gregos esperaram o inimigo nas suas terras e águas sagradas e os repeliram ignominiosamente. Aquela pequena terra, toda em prata ardente e em montanhas, toda em furiosas torrentes, penedias e pequenos vales verdes, toda em luminosos mares purpúreos, aldeias pobres, estradas de pedra e campos cheios de pó sob céus ardentemente azuis, se recusou obstinadamente a ser conquistada e escravizada ao poderoso Xerxes e na verdade preferiu escolher entre a liberdade e a morte.
Aspásia admirava a poesia de suas palavras. Mas disse:
— Sólon afirmou que todos os homens devem ser livres. Mas nós temos escravos. Porventura um escravo não é um homem?
O professor olhou indignado para ela.
— Acreditamos que um escravo é uma coisa e não um homem. Os deuses decretaram a liberdade para os homens. Se um homem não nasce livre, não é verdadeiramente humano.
— Há algum erro no seu silogismo — disse Aspásia.
— Esclareça-me então — disse o professor, com raiva.
— Sólon foi um grande homem cheio de sabedoria. Desejou estabelecer uma república. Mas Atenas decaiu numa democracia. Daí decorreu uma grande tragédia no governo. Mas não importa. O que Sólon disse foi que todos os homens devem ser livres, livres igualmente de governos curiosos e intervencionistas. Não dividiu a humanidade em seres que nascem livres e seres que nascem escravos. Pleiteou que a escravidão fosse abolida e não considerou um escravo uma mera coisa, mas um homem.
O professor não levou em consideração o que a jovem dizia. Respirou fundo e continuou com a sua lição de história.
— Os espartanos, cuja austeridade eu em geral deploro, eram os mais disciplinados dos homens e constituíam uma comunidade de soldados que viviam exclusivamente para a guerra, mas não podiam ser comparados com as esquadras e os exércitos de Xerxes. Quanto a nós, atenienses — continuou com um sorriso satisfeito — somos voláteis e nos orgulhamos de nossa inteligência, de nossa energia e do nosso amor pela beleza. Praticamos espertezas nas feiras e afirma-se que não merecemos a confiança dos nossos irmãos gregos. Mas muito menos se pode dizer dos homens de Tebas, aos quais todos julgam que não são civilizados.
"As cidades e aldeias ficaram em pânico e mandaram tão poucos guerreiros quanto era possível, conservando a maior parte dos homens em casa para defender suas mulheres, seus filhos e as grosseiras paredes de suas casas, bem como os seus animais domésticos. Esses guerreiros deviam enfrentar o inimigo em vários pontos. Mas os homens de Xerxes eram numerosos como gafanhotos, árabes, cabalianos, milênios, tibarênios e cólquidos com capacetes de madeira, medos de rostos magros e escuros e fama de valorosos guerreiros, negros vestidos com peles de animais, psidianos, mosquianos, saspírios e trácios — rios de cavalos, de bois e de faiscantes carros de guerra. Noventa mil homens armados de arcos e lanças, sem mencionar os que estavam armados de espadas e os próprios persas, que são famosos pela sua ferocidade, e os mercenários císsios, assírios, citas de calças de feltro e os bárbaros cáspios de botas de saltos altos e roupas de muitas cores. Toda essa gente se derramou pelas planícies ardentes da Grécia e levantou uma poeira brilhante que os raios do sol tocaram. Também enfrentaram os gregos nas águas incandescentes.
"Nas Termópilas, as forças persas se viram diante de apenas sete mil espartanos mal armados exceto de coragem, mesmo diante de sua descrença e de seu medo, mas dispostos a defender o desfiladeiro até à morte. Posso observar aqui, como ateniense, que os espartanos são tão insensatos como formigas, mas não deixam de ser grandes guerreiros...
— Uma coisa se relaciona com a outra — disse Aspásia.
— Afirma-se que o próprio Xerxes teve pena deles e os admirou. Os espiões lhe disseram que o desorganizado e desunido exército de espartanos, tebanos e atenienses era comandado por Leônidas, de Esparta, um rude capitão e homem de ainda mais rude independência. Como a sociedade de Esparta, tão diferente da nossa, de gregos livres, pôde produzir um homem como Leônidas é um mistério e foi um mistério também para Xerxes. Leônidas era um homem ríspido, mas inteligente, ao contrário dos seus compatriotas espartanos, que são apenas cruéis e valentes. O solo das Termópilas ressoou como um tambor e como o trovão dos deuses sob os pés dos homens armados de muitas nações de Xerxes, inclusive a sua Companhia de Imortais, suas tropas pessoais e melhores. E os gregos os enfrentaram no estreito desfiladeiro e os fizeram parar até que foram traídos por um dos seus homens, que guiou os persas por um caminho que contornava a passagem. Xerxes dizimou os heroicos espartanos e avançou para Atenas, incendiando a cidade até aos alicerces.
— Um homem é sempre traído pelos seus e por aqueles a quem mais ama — disse Aspásia.
— Ah! — exclamou o professor, enraivecido. — Já que é de tão grande e venerável idade, como sabe disso?
Aspásia respondeu com a sua exasperante serenidade:
— Não nos ensinaste isso com a história, Eneias?
— Está bem — disse o professor, mais calmo. — Vamos continuar. Os espartanos e os tebanos a pé, com alguns atenienses, homens de pouca importância, derrotaram o irresistível Xerxes em Mícale e, ainda mais, em Salamina e depois em Plateia. Como foi possível isso? No final, esses bravos homens tinham apenas as mãos nuas, os pés ensanguentados, os dentes e as unhas, pois suas fracas lanças e espadas e os seus frágeis barcos tinham-se fragmentado e desintegrado. Que grande ânimo secreto os fizera lutar assim e os elevara acima da média comum dos homens, ainda que durante algumas horas? Que tinha inspirado os seus pequenos espíritos invejosos e rixentos e lhes dera uma centelha divina e uma incrível coragem?
— Estavam lutando pela própria vida — disse Aspásia, — Nada tinham a perder senão a vida.
— Nega então o heroísmo e a capacidade do homem de lutar por alguma coisa maior que ele? — perguntou o professor, espicaçado além do tolerável.
— Nego que os homens lutem por alguma coisa maior do que eles mesmos — disse Aspásia. — Isso é contrário à natureza humana.
— Não acredita na nobreza pessoal?
— Nunca pude observá-la.
— É uma céptica, minha filha, e só me inspira piedade.
— Sou uma estudiosa do gênero humano. Um homem luta para proteger a sua pessoa e os direitos que preza. Se lutasse por alguma coisa mais, seria um louco ou um deus.
O professor deixou um silêncio carregado de intenções cair sobre a sala, olhando Aspásia com os olhos semicerrados. Perguntou por fim:
— Está querendo equiparar os loucos aos deuses?
Falou numa voz bem branda, pois muitas vezes já dera a entender que não acreditava nos deuses. Mas Aspásia percebeu a perigosa armadilha e respondeu:
— Multas vezes se diz que a loucura é comparável à divindade. Isso mesmo já nos disseste, Eneias, falando na divina loucura.
— Referia-me à poesia e à divina loucura de um homem capaz de lutar por alguma coisa mais nobre que ele mesmo, como também à divina loucura dos artistas. A guerra é também uma arte, como nós, gregos, sempre temos dito, embora os jônios tenham sido um pouco tardos em perceber isso.
— Nós em outros tempos nos aliamos a Esparta, o que, por si só, foi uma loucura — disse Aspásia.
Naquele dia, para cansaço das outras alunas, Eneias prosseguiu na sua disputa com Aspásia sobre a diferença entre uma república e uma democracia. Ele reafirmava que se tratava da mesma coisa. Mas Aspásia disse:
— Sólon desejava uma república livre. Mas, embora os gregos atendam a esse desejo, são apenas uma democracia e, por conseguinte, uma coisa perigosa. Infelizmente, Sólon concebeu os fundamentos de uma república, mas não deu forma ao seu estabelecimento. Por isso, o governo de Atenas caiu nas mãos dos tiranos, que introduziram a democracia. Os atenienses são muito inconstantes, tomam muito interesse por assuntos insignificantes e vivem muito cheios de riso e do espírito de mudança para poderem realizar a república sonhada por Sólon.
— Se é tão entendida assim, Aspásia, defina as diferenças entre uma democracia, como é Atenas, e uma república.
— Não é a primeira vez que faço isso, Eneias. Mas vou repetir. Uma república, assim disse Sólon há mais de um século, é o governo subordinado a uma lei escrita e permanente em lugar de um governo subordinado a decretos imprevistos e mutáveis, que é o que constitui a democracia. Disse ele que uma república é o governo em que o povo obedece aos governantes e os governantes obedecem às leis. Mas numa democracia os governantes obedecem às massas, que são caprichosas, violentas e ávidas. Daí se origina o caos e, por fim, a tirania.
A discussão continuou. Na opinião de Eneias, a voz do povo era a voz dos deuses e esse era o fundamento da democracia. Caiu então na armadilha. Uma república representava na verdade o povo, mas acreditava muito na lei e não levava em conta os desejos inconstantes dos governados.
A isso Aspásia replicou:
— Deve então a lei — estabelecida e justa, que assegure ao povo um governo estável e o respeito desse governo à lei — tornar-se um joguete, como uma bola, em nome do povo? Deve ser interpretada pelos caprichos dos egoístas, dos indivíduos naturalmente ilegais e exigentes, daqueles que são governados pelos seus apetites e não pelo espírito, e que não sentem respeito por um governo de ordem?
— Que desprezo o seu pelo povo, Aspásia!
— Eu apenas observo, Eneias.
Poucas alunas compreendiam a discussão, mas todas elas se divertiam de ver a fria compostura de Aspásia e a raiva mal disfarçada do professor. Aquilo, pelo menos, atenuava a monotonia das aulas.
O crepúsculo se aproximava e a aula foi encerrada. O céu no poente parecia ouro em fogo, resplandecente de luz. O mar e a terra embaixo se estendiam em tons purpúreos e sombras errantes. As folhas dos mirtos estavam revestidas de prata, os ciprestes erguiam as pontas para o céu que se enegrecia e as frondes das palmeiras tremulavam ao vento manso da tarde. Subia da terra um cheiro intenso de jasmins e rosas, de pedra fresca e de água, enquanto as fontes lançavam os seus jorros frágeis tocados de ouro e lilás.
Passeando pelo jardim antes da refeição da noite, Aspásia deparou com Cléo sentada junto a um tanque onde o sol acendia reflexos dourados. A menina vestia uma túnica bem curta cor de prata e os seus cabelos pretos estavam enrolados na nuca. Olhou timidamente para Aspásia e levantou-se. Aspásia olhou para o tanque onde peixes irisados dançavam languidamente e depois para Cléo.
— Diga-me, Cléo, qual é o desejo do seu coração?
— Queria ser também uma hetera, Senhora.
— Soube que vai ser. Ficará satisfeita?
— Por que não? Não é a mais desejável das coisas?
Aspásia deu um suspiro, Era uma louca em esperar qualquer outra resposta, pois Cléo de nada sabia. Estava sempre a procurar na humanidade uma inteligência que raramente existia.
Tinha cada vez mais consciência naqueles dias de uma inquietação espiritual e de alguma coisa que crescia dentro dela sem que pudesse saber de que se tratava. Havia nela uma solidão como nunca havia sentido, um desejo sem forma, uma pressão, um calor que era ao mesmo tempo intensamente físico e profundamente espiritual.
Ficou a olhar o crepúsculo, enquanto o vento lhe levantava os cabelos e os deixava cair sobre os seus ombros como se fosse um abraço. Suspirou e a ansiedade aumentou dentro dela como se fosse uma grande fome, embora ela ainda não soubesse de quê. Seria dentro em breve esclarecida e de maneira desastrosa.
Capítulo 5
O professor de atletismo das jovens morreu e Targélia foi comprar um substituto no mercado dos escravos. Escolheu um escravo de notável beleza, de lábios vermelhos e sorridentes e alegres olhos azuis. Tinha também uma massa de cabelos castanhos, músculos indescritíveis e o corpo de um jovem deus. Era macio como óleo, polido como bronze, tinha maneiras cativantes e uma disposição alegre e satisfeita.
Targélia pensou que o homem era um tesouro, sentindo um calor no corpo como havia muito não sentia. Estava-se cansando de Équion e de seus outros amantes maduros, que pareciam estar sentindo os efeitos da idade enquanto a ela o amor jamais cansava. Às vezes, adormeciam nos seus braços, deixando-a nervosa, sem sono e sem satisfação,
Era, entretanto, uma mulher prudente, e quis saber por que aquele modelo de perfeição era posto à venda, muito embora o preço fosse alto. Soube então que o seu senhor descobrira que Talías estava interessado nos rapazes de sua casa e resolvera vendê-lo. Targélia estranhou que o senhor não se tivesse aproveitado dos prazeres implicados e tirou a ideia da cabeça. Não seria possível a uma sedutora como ela educá-lo na arte das afeições normais? De qualquer maneira, Talías seria um professor de atletismo seguro para as suas resguardadas moças.
O que Targélia não sabia era que a notícia que tivera de Talías não era verdadeira. O jovem escravo havia rendido os seus encantos tanto a mulher de seu senhor quanto as filhas dele, que tinham chorado quando ele fora levado para o mercado. Seduzira também todas as escravas e os prantos haviam durado dias depois da partida dele. Três escravas tinham ficado grávidas. Talías, homem de grandes proezas, era incansavelmente erótico e possante. O senhor havia pensado em mandá-lo castrar, mas a sua natureza masculina se rebelara contra isso, para felicidade de Talías. Como um homem castrado, Talías não teria valor, exceto nos bazares orientais e entre homens viciosos, sendo muito precioso para isso. Assim, o senhor resolveu vendê-lo por bom preço, guardando silêncio sobre as suas tendências. Quem o comprasse que se cuidasse.
Targélia estudou o jovem corpo atlético minuciosamente, tanto como mestra de cortesãs quanto como mulher. Levou-o para um canto e conversou com ele. As suas alunas não deviam desenvolver músculos, pois os músculos numa mulher eram repelentes para homens de qualidade. Os exercícios atléticos deviam ser limitados e só se destinavam a arredondar e dar firmeza a um belo corpo feminino. Talías escutava atentamente e os seus belos olhos começaram a brilhar ante a perspectiva. Sendo inteligente, absteve-se de fazer comentários, embora sentisse a maravilha que o esperava. Um verdadeiro viveiro de mulheres bonitas! Esperava que fossem também criteriosas. Disse a Targélia que sabia exatamente o que ela queria, e Targélia não perdeu tempo em dizer que poderia também querer outras coisas, por conta própria. Afinal de contas, era muito experiente e não seria a primeira vez que transformava uma predileção por homens numa predileção por mulheres. Olhou para o pescoço dele, que parecia uma torre de bronze, viu os músculos do peito e dos braços e passou a língua pelos lábios. Por fim, exigiu examiná-lo sem a sunga. Era cautelosa e queria ter certeza de que não a estavam logrando. O exame correspondeu a tudo que ela poderia desejar. Talías acompanhou o exame e compreendeu perfeitamente. Teria prazer em fazer a vontade daquela mulher e partir depois para mais satisfatórias conquistas. Tinha uma natureza jovial e acomodatícia e sabia como atender às mulheres e torná-las suas escravas. Uma de suas senhoras tinha sido uma esplêndida professora. Era muito ardente, o marido tinha uma hetera e ela sofria de desejos insatisfeitos. O que Talías não sabia a respeito de mulheres era insignificante.
Targélia comprou-o. Levou-o para casa na sua liteira fechada e fez-lhe carinhos. Ele se fingiu modesto e retraído, mas houve determinado fenômeno que entusiasmou Targélia, a qual pensou com alegria que o conseguira despertar como nenhuma mulher até então o fizera e que, portanto, ele seria um escravo em sua cama. Levou-o para a cama logo que chegou a casa e ele disse timidamente que ela fora a primeira mulher que lhe revelara o que era a feminilidade e que ele duvidava de que qualquer outra fosse capaz de excitá-lo tanto. O desempenho dele foi excelente e Targélia, transportada de alegria e de contentamento, mandou colocar-lhe a cama junto da sua porta. Era uma coisa surpreendente para uma mulher tão astuta como Targélia, mas a sua natureza feminina a envolveu. Não se cansava do jovem escravo e sentia-se florescer como uma mulher de novo jovem e desejável. Talías apreciava também a situação. Quando as cortinas estavam fechadas no quarto perfumado, ele quase não via as rugas de Targélia, pois ela tinha um corpo ainda belo e juvenil. Além disso, sabia as artes do amor e tinha apetites peculiares que ele atendia. No intervalo, Talías olhava as moças a quem ensinava e as amava por antecipação, especialmente a Aspásia.
Targélia era franca com as jovens, que a ouviam com os olhos pudicamente baixos. Dizia ela que Talías não se interessava por mulheres, de modo que não adiantava que exercessem as suas artes sobre ele, por mais inocentemente que fosse. Sugeria também que ele não era inteiramente um homem. As jovens escutavam, sem acreditar numa só palavra do que ela dizia. Havia comentários entre os escravos e os gritos de felicidade de Targélia tinham sido ouvidos à noite juntamente com os seus protestos de dedicação. Além disso, Talías mostrava uma expressão muito complacente, Era evidente que Targélia não suportava ficar por muito tempo longe dele e lhe acariciava o braço ou o rosto mesmo em presença das alunas, enquanto os olhos se perturbavam. Adquirira também um aspecto de juventude e vitalidade, de energia e vivacidade. As moças notavam isso e olhavam para Talías por entre as pálpebras semicerradas.
Quanto a Aspásia, que amava a beleza, ela o achava fisicamente encantador. Desde que ela nunca via outros moços, a juventude do homem a atraía. Estudava-lhe o rosto, o peito, o corpo. Conversava com ele brevemente nos intervalos das aulas de atletismo e das lições com o arco e com a flecha. Ela o julgava até certo ponto inteligente, mas era evidente que ele não podia acompanhá-la e não lhe percebia as sutilezas. Era, entretanto, um belo animal e o seu contato, quando ele lhe ensinava a manejar o arco, lhe dava uma sensação aguda que ia repercutir em todos os seus nervos.
O que Targélia não sabia era que, apesar da amizade de Aspásia por ela, a jovem se debatia em tremendo conflito interior e numa revolta feroz e silenciosa. Aspásia tinha passado a odiar e amar ao mesmo tempo Targélia, sendo às vezes atormentada por um desejo de anônima vingança. Havia também o fato de que seu corpo, em geral refreado e contido, estava experimentando as crises da adolescência e do desejo, Muitas vezes, à noite, imaginava Talías ao seu lado na cama e ficava banhada de suor, enquanto as mãos se agitavam no ar e lhe tocavam o corpo. As sombras violáceas cresciam sob os seus olhos e tornavam-na mais sedutora e bela. Targélia, sem saber o motivo dessa transformação, se rejubilava. A virgindade de Aspásia alcançaria um preço enorme. Havia potentados orientais, ricos além de qualquer imaginação, que poderiam interessar-se pela maravilhosa Aspásia. Targélia começou a enviar para o Oriente discretas mensagens. Enquanto isso, Aspásia invocava a sua protetora Atena Pártenos para que lhe desse um homem de inteligência, graça e compreensão. Nesses momentos, uma vaga frieza lhe invadia o corpo e ela se contentava durante algum tempo em sonhar com teorias e abstrações, e em longas dissertações intelectuais com um homem de espírito sutil e filosófico. Mas também pensava cada vez mais em Talías, pois sua carne a deslumbrava e ela vivia assim em desordenado conflito entre a corrupção e a inteligência.
A jovem Cléo fora admitida na escola de heteras, sendo-lhe dado um quarto ao lado de Aspásia. Esta não ficara muito satisfeita, pois descobrira que Cléo a admirava e tinha começado a copiar todas as suas maneiras e gestos e até as entonações de sua voz, imitando um certo jeito que Aspásia tinha de inclinar a cabeça com branda zombaria, arregalando os olhos de espanto e tocando o lábio inferior com o polegar. Havia estranhas luzes nos grandes olhos negros de Cléo quando ela olhava para Aspásia. Tinha uma aparência um tanto atrevida e uma pequena boca rósea que tremia quando Aspásia falava com ela. Mostrava-se servil em relação a Aspásia, que julgava essa persistente atenção irritante. Quando Cléo lhe tocava timidamente o corpo estremecia, pois as mulheres não a atraíam e Cléo não primava pela inteligência, embora fosse dotada de uma vivacidade natural. Outras, mais cruéis do que Aspásia, ter-se-iam aproveitado dessa adoração. Mas Aspásia desdenhava a baixeza.
Um dia, Cléo se aproximou dela pelas costas enquanto Aspásia estava sentada sozinha a pensar à sombra dos ciprestes e, levantando um anel dos seus cabelos, beijou-o. Revoltada, Aspásia se levantou, bateu no rosto da outra sem dizer uma palavra e afastou-se. Cléo atirou-se ao chão num paroxismo de dor e de desejo e começou a contorcer-se, arrancando punhados de grama e chorando. Olhando para trás, Aspásia viu isso e franziu os lábios com desgosto e aversão, pois não havia inocência em seu espírito. Pensou em comunicar tais fatos a Targélia, mas sentiu pena no fundo do coração e não queria ver Cléo mandada para o dormitório onde as moças assim eram rigorosamente adestradas para dar prazer às mulheres. Julgava que a menina tivesse predileção apenas por ela e esperava que com o tempo ela se curasse dessa aberração.
Quando pensava em Talías, Aspásia pensava também em Cléo, mas não com as mesmas intenções. Durante algum tempo, recuou da ideia de explorar a mocinha que lhe era tão dedicada. Mas o seu desejo por Talías aumentava. Olhava para os braços queimados do sol e sentia a emoção percorrer-lhe o corpo, dando-lhe calor e tensão. Imaginava o contato do corpo dele e quase se sentia desmaiar ante a perspectiva que a fazia dobrar-se e tremer. Lembrava-se de Targélia ter dito que uma mulher não devia ter uma reação assim diante de um homem, pois então tudo estava perdido e ela podia amá-lo, o que era uma calamidade.
Um dia, Aspásia procurou Cléo e lhe sorriu com todo o seu encanto sensual. Surpresa com a condescendência, Cléo começou a tremer e os olhos se lhe encheram de lágrimas. Aspásia levou-a para a sombra de um bosque de mirtos e lhe tocou o rosto e o colo. Os olhos de Cléo se enevoaram, embora Aspásia sentisse repulsa. Cléo olhou para Aspásia como se estivesse diante de uma deusa e não podia compreender essa estranha e súbita ternura da parte de quem sempre a evitara. Quando Aspásia inclinou a cabeça e beijou-lhe delicadamente os lábios, Cléo cambaleou e a outra, dominando a sua repugnância e vagamente envergonhada, amparou-a e juntou o corpo ao dela.
Sussurrou então ao ouvido de Cléo:
— Uma noite dessas, meu amor, quando as pessoas que nos guardam tiverem saído, vá ter comigo,
Cléo tremeu e beijou timidamente o colo de Aspásia. Nesse momento, Aspásia teve receio de corromper permanentemente a natureza da jovem. Mas pensou em Talías e ponderou que a todas elas eram ensinadas as artes do amor, sem que isso constituísse qualquer vergonha. Se houvesse consequências, Targélia que as enfrentasse.
Depois das lições de atletismo à tarde, as jovens tomavam banho com água perfumada e se retiravam para os seus quartos, onde dormiam. Um dia, antes de afastar-se, Aspásia procurou provocar particularmente Talías. O escravo olhou-a, ficou muito vermelho e estremeceu da cabeça aos pés. Aspásia sorriu com todas as artes que lhe haviam ensinado e o encarou com os olhos encantadores. Apoiou-se por um instante em Talías e deixou que ele visse a curva sedutora dos seus seios, ao mesmo tempo que suspirava. Ele fechou os olhos e tornou a estremecer. Vendo que estavam a sós, Aspásia lhe tocou o peito. O rosto de Talías se cobriu de suor e os seus olhos se tornaram suplicantes, cheios de paixão e de desejo. Ela permitiu que a mão dele se transviasse pelo seu corpo e sentiu uma reação de ardor como nunca julgara possível. Baixou as pálpebras, os seus lábios se umedeceram e os seios se intumesceram. Sentiu um desejo quase incontrolável de arrastá-lo ali mesmo para a terra verde, mas desistiu ao ver que outras alunas se aproximavam, rindo. Fingiu estar interessada na colocação de uma flecha no arco, consciente do suor frio que lhe banhava a testa. O sol a ofuscava e ela sentia que nada mais existia além do centro do seu corpo, que se tornara pesado e ao mesmo tempo lânguido e palpitante. A proximidade de Talías era alucinante e de repente lhe pareceu nada mais existir no mundo senão o desejo que sentia.
— Esta noite? — murmurou ela.
Talías quase não podia acreditar, mas murmurou com voz trêmula:
— Durmo no quarto de Targélia. Mas vou esperá-la neste jardim, naquele bosque de mirtos, à meia-noite. Oh, não posso crer que me ame, minha adorada! Por Castor e Pólux, eu morreria de alegria se a pudesse possuir ao menos uma vez! Ártemis não se lhe pode comparar e nem mesmo Afrodite!
— Viva. Não pense em morrer — disse Aspásia, enquanto as outras alunas tagarelavam por perto como um bando de pardais. — É como se eu estivesse diante de Adônis.
Quando ele a tocou intimamente com a mão, Aspásia pensou que fosse explodir em chama e só com dificuldade pôde afastar-se dele. A sua carne se tornara de repente muito fraca, ansiosa pela entrega e pela plenitude da satisfação.
Pouco depois disso, chamou Cléo para um canto e lhe disse:
— Meu amor, sou devota de Ártemis, a deusa da lua que é eternamente virgem, e hoje é noite de lua cheia. Quero venerar a deusa em silêncio no jardim. Creio que não me posso entregar a homem algum e devo, como Ártemis, viver longe dos contatos dos homens. Tenho de suplicar a ajuda dela. Por isso, meu amor, arrume sua cama de modo que os guardas que passarem à noite com suas lanternas pensem que está dormindo nela. Vá então para minha cama e cubra bem a cabeça para que ninguém estranhe os seus cabelos pretos. Murmure coisas baixinho como eu costumo fazer no sono. Suspire de vez em quando como eu. Assim enganará a todos. Pode fazer-me esse pequeno favor, querida? Saberei recompensá-la.
Os olhos de Cléo estavam tão cheios de adoração quanto os de Talías, mas tão abjetos lhe pareciam que Aspásia sentiu um frio no coração. Cumpriria a sua promessa e daria prazer à jovem depois de experimentar o seu prazer. Conseguiria de algum modo vencer a sua aversão. Tinham-lhe ensinado que tudo se paga nesta vida e ela estava disposta a pagar, por mais repugnante que isso fosse para ela e prejudicial a Cléo.
Disse então:
— Jure pelos coriscos de Zeus que nunca me trairá.
Cléo jurou com a sua vozinha incerta e Aspásia ficou satisfeita. Afastou delicadamente a mão de Cléo que se encaminhava para o seu seio e saiu. Aspásia tinha uma consciência muito viva, mas estava começando a compreender que, quando uma mulher deseja um homem, não tem consciência alguma e só pensa na sua satisfação.
Estava rigidamente estendida na cama em seu quarto sem porta, pois se tratava apenas de um cubículo, até que a lanterna dos guardas tivesse brilhado fracamente sobre sua cama. Murmurou alguma coisa, como se tivesse sido perturbada. A luz da lanterna saiu pelo corredor, dançando nas paredes brancas, e afinal apagou-se. Sorriu sozinha. A janela, no alto da parede do quarto, estava aberta e o luar de prata entrava por ela, cobrindo-lhe os pés. Havia no ar quente um cheiro apaixonado de jasmins, a fragrância da relva e o odor aromático dos pinheiros e ciprestes. Ouvia-se o murmúrio das fontes ao luar e ao longe um rouxinol cantava ternamente e uma coruja soltava pios dolorosos. A pedra quente exalava o seu cheiro peculiar, árido, mas excitante e então as rosas desprenderam o seu perfume como se fossem tocadas pelas vestes esvoaçantes da própria Ártemis, a correr com a sua matilha branca aos calcanhares.
Os guardas só fariam nova ronda daí a uma hora e, a esse tempo, ela já deveria ter voltado. Esperou um pouco e então saiu da cama em silêncio e foi até o quarto de Cléo. Os olhos da jovem brilhavam na escuridão como opalas escuras e ela se levantou imediatamente para abraçar Aspásia, que lhe sentiu o calor do corpo através da camisa. Tolerou um abraço, beijou a testa inocente e desvencilhou o corpo, murmurando frases suaves e consoladoras, Um vento balsâmico soprava e podia ouvir-se a voz sonâmbula e hipnótica do mar, como se as pálpebras pesadas tivessem caído sobre os olhos de Poseidon e o deus também dormisse.
Aspásia se envolvera num manto negro. Saiu do seu quarto, onde Cléo agora dormia com os cabelos pretos cobertos, e se moveu pelo corredor como uma mariposa. Via os archotes cravados nos muros além do átrio e, mais adiante, a luz de uma lâmpada que cheirava a âmbar. Não havia som algum, à exceção do canto do rouxinol, do sussurro do vento, do pio da coruja, do farfalhar das folhas e do murmúrio do mar.
Um guarda atravessou o átrio de espada em punho e Aspásia colou o corpo à parede e prendeu a respiração. Os seus pés nus sem demora se molharam de orvalho e ela sentiu o cheiro da relva pisada. Corria tão velozmente como Ártemis sobre a terra quente e cintilante. A lua estava bem no alto, como uma enorme chapa de luz dissipando a escuridão. Evitando todos os lugares descampados, Aspásia se apressava, ousando apenas respirar e atenta ao menor alarma ou movimento. O coração batia-lhe desordenadamente e o corpo todo tremia. Cobrira os cabelos dourados com o capuz do manto, que descera sobre o rosto, de modo que parecia fazer parte das próprias sombras.
Chegou ao bosque de mirtos, arquejando um pouco de tanto correr. As copas das árvores estavam banhadas pela luz da lua e as folhas brilhavam como se estivessem revestidas de prata, murmurando suavemente com vozes de seda. Além dos jardins e do gramado, o mar pulsava mansamente, como se fosse uma planície branca, imóvel quase. Atrás de Aspásia, as colunas da casa entre as quais se mostrava ocasionalmente a luz de um archote, brilhavam como se fossem de alabastro. A luz dos archotes lembrava folhas que se queimavam e o cheiro da resina se misturava com a fragrância da terra e das flores.
Aspásia parou sob a sombra compacta dos mirtos. Ainda não havia o som de alguém que estivesse fora de casa naquela noite, a não ser ela e o guarda. Internou-se no bosque. Não se atrevia a chamar o homem. Talías teria sido detido pela senhora? Não pudera sair da cama? De repente, sentiu no braço o contato da mão forte de um homem. Teve um sobressalto e quase começou a chorar de emoção. No mesmo instante, uma boca ardente e sôfrega se colou à dela, braços fortes a cingiram e ela caiu por terra, sentindo o corpo quente de Talías sobre ela e a ponta de uma língua entre os seus lábios.
Teve de repente medo do desconhecido, embora a sua carne estivesse erguendo ao ar um cântico vigoroso e alegre, tal como nunca ouvira. Era como se todos os tambores e todos os alaúdes do universo vibrassem dentro dela numa doçura maior do que a da própria vida e, do mesmo passo, tão dominante, estranha e terrível quanto a vida. Tentou fracamente libertar-se de Talías, mas ele a prendeu com o braço. Levantou-a com a outra mão e então os lábios dele lhe tocaram o seio virgem, e um langor de êxtase a dominou, imobilizando-a.
A relva esmagada trescalava. O rouxinol cantava mais docemente. As fontes murmuravam e então tudo se transformou numa confusa onda de sons, numa catarata de perfumes, em que os mirtos cantavam, as luzes dançavam e o mundo era uma câmara de prazer. Havia um balbuciante gemido de amor nos ouvidos de Aspásia, o crescente arquejar da paixão de um homem, e ela não se podia mover, comprimida pelo peso do corpo de um homem, sentindo-lhe os cabelos no rosto e a inexorável e rígida entrada entre as suas coxas macias.
Houve então um grito feminino rápido e assustado, prontamente silenciado por lábios ardentes. Depois, o chão pareceu subir e descer sob o corpo de Aspásia e o próprio mar crescer num delírio, até que um momentâneo êxtase lhe apagou a consciência. Sentiu que a sua carne fazia parte da carne do mundo inteiro e era arrastada num arrebatamento quase intolerável. Sentia que estava desvendando todos os segredos do universo e que tudo o que até então soubera era de infinita insignificância. Deu-se toda àquela alegria, incoerente e murmurosa, naquele abraço mútuo e ardente.
Por fim, houve um crescente gemido de homem, cada vez mais tumultuoso, e um prazer selvagem e triunfante dominou Aspásia, o prazer de ser conquistada e conquistar. De repente, tudo se transformou em fogo e trêmulos transportes além de qualquer descrição.
Capítulo 6
Quando Aspásia voltou para casa, lembrou-se da sua promessa erótica a Cléo. A carne ainda lhe palpitava e o coração ainda batia enlevado. Por isso, a simples ideia de Cléo a acumulava de desgosto. Entretanto, percorreu resolutamente o corredor até chegar ao seu quarto e descobriu com alegria que Cléo estava dormindo profundamente com a mão sob o rosto. Mas estava na cama de Aspásia e esta, depois de pensar um pouco, foi para a cama de Cléo e lá se deitou. Exausta de prazer, adormeceu no mesmo instante, mas não antes de cobrir os cabelos.
Acordou antes do amanhecer e foi acordar Cléo, dizendo:
— Não diga nada. Dormiu a noite toda, minha querida, e tem de voltar para o seu quarto imediatamente, pois daqui a pouco estará na hora de nos levantarmos.
Os olhos de Cléo se encheram de lágrimas de decepção e Aspásia tolerou os seus abraços e carícias por um breve instante. Depois, forçou-a gentilmente a sair, fazendo promessas para o futuro. Mal se havia acomodado na cama, os guardas apareceram a fim de acordar as jovens para um novo dia.
Estava na aula de matemática quando recebeu um chamado de Targélia. Era uma coisa excepcional e Aspásia ficou pálida de apreensão. Seguindo o escravo, foi até à sala de Targélia e encontrou a mestra das heteras furiosa. Nunca a vira assim, pálida e carrancuda, com os olhos brilhantes. Aspásia pensou que tudo estava perdido e que ela fora descoberta. Obedecendo a um gesto de Targélia, sentou-se e ficou à espera, com as mãos entrelaçadas num joelho. Se Targélia não estivesse com tanta raiva, havia certamente de querer saber o motivo da palidez de Aspásia e do medo que lhe enchia os olhos.
Targélia perguntou de repente:
— Alguma coisa a perturbou esta noite, Aspásia?
Ela quer atormentar-me, pensou a moça. Passou a língua nos lábios e abanou em silêncio a cabeça. Targélia a olhava implacavelmente e ela afinal teve forças para falar.
— Durmo muito bem, Targélia. Poucas coisas podem fazer-me acordar.
Targélia brincou com o colar que tinha ao pescoço e continuou a olhar fixamente para Aspásia. Disse então:
— Sei que você não é capaz de trair uma companheira. Não é a primeira vez que percebo isso. Mas o caso é muito grave. Não ouviu passos furtivos durante a noite e não viu ninguém passar?
Aspásia olhou firmemente para ela e um pouco do medo que sentia se atenuou.
— Não vi e não ouvi nada.
— Não viu nenhuma de suas companheiras no corredor?
— Não. Dormi a noite toda.
Targélia disse, sem abandonar o seu ar carrancudo.
— Um dos guardas olhou no quarto de Cléo e descobriu a ausência dela. Com muita discrição, para não alarmar as outras, correu a casa toda, inclusive as latrinas. Nada de Cléo. Os guardas que estavam do lado de fora e no pórtico nada viram. Só um deles, muito supersticioso, disse que vira um vulto de mulher ao luar, mas quando tentou segui-la, ela desapareceu, de modo que ele tem certeza de que viu uma ninfa. Não lhe pôde distinguir as feições, mas jura que a lua se refletia no rosto dela. Depois disso, convenceu-se de que viu a própria Ártemis,
Ao dizer isso, Targélia franziu a boca desdenhosamente e com uma raiva ainda maior.
Oh, deuses, pensou Aspásia, redobrando de medo. Cléo! Se a menina ficasse calada, sofreria terríveis castigos e seria transferida para as mais humildes ocupações. Era ainda muito jovem e, por isso, temendo os castigos, poderia dizer a verdade. Ambas as probabilidades eram igualmente horríveis. Disse então numa voz trêmula:
— Ah, agora me lembro, Cléo, que é ainda uma menina sem juízo, veio até minha cama, dizendo que tivera um pesadelo e estava com medo. Ficou durante algum tempo comigo, enquanto eu procurava consolá-la.
Targélia olhou fixamente para Aspásia e então disse:
— Não sabe mentir, Aspásia, e deve ser esta a primeira vez em que tentou mentir. Por que pretende proteger alguém como Cléo? Não tem afeição por ela e tenho visto que procura evitá-la. Apesar disso, diz que a deixou ficar em sua cama. Julga-a uma menina. Entretanto, é apenas dois anos mais moça do que você, que já é núbil. Vou interrogá-la.
— Ela vai posar de novo para Tmolo. Não seria conveniente interromper a aula dele.
Vendo que Targélia ainda estava refletindo, Aspásia continuou:
— Talvez Cléo seja nervosa. A noite de ontem de lua cheia. Pode ser que, depois de sair de minha cama, ela tenha andado pelos jardins, inquieta e sem poder dormir.
— Já notou alguma predileção da parte dela por algum jovem escravo? — perguntou Targélia.
— Há poucos escravos aqui. Quase todos são mais moços do que Cléo. Os outros não são de grande beleza e trabalham nos jardins o dia inteiro. Não, Cléo não olhou para nenhum deles com qualquer atenção. Tive uma ideia. Por que não manda Équion examiná-la para confirmar-lhe ou negar-lhe a virgindade?
Targélia fez cara feia.
— A sugestão é excelente, mas acontece que não confio em Équion. Poderá destruir-lhe a virgindade com os dedos, se não fizer coisa pior.
— Neste caso, Targélía, deverá fiscalizar pessoalmente a Équion.
— Também uma boa sugestão e é o que eu vou fazer. Équion está na cidade e só voltará amanhã de manhã. Enquanto isso, procure não alarmar Cléo, Aspásia. Ela poderá fugir.
Depois que saiu da sala de Targélia, Aspásia não voltou às aulas, pois estava muito preocupada com o que acontecera. Foi para o seu quarto, sentou-se na cama e começou a pensar dentro do seu desespero. A situação exigia uma decisão extrema. Não podia deixar Cléo sofrer pela sua lascívia. Ainda que confessasse — e a simples ideia a fazia tremer — Cléo seria punida pela sua participação na aventura. Devia haver ação instantânea.
Pensou então em Talías pela primeira vez. A descoberta do caso acarretaria a penalidade mais severa que um escravo poderia receber, a castração. Não o amava, mas ele poderia tornar-se uma vítima dela. Já não se lembrava dos êxtases que sentira nos braços dele, mas estava resolvida a não deixar que ele sofresse por ela. Ajoelhou-se ao lado da cama e puxou um pequeno cofre de bronze em que guardava o que tinha de mais precioso. Uma bolsa com moedas de ouro, último presente de sua jovem mãe, ainda estava ali e era bem pesada.
Tinha de procurar Talías, que, enquanto não era chamado para dar as suas aulas, passava o tempo nas cozinhas, conversando com os outros escravos. Não havia ninguém em quem confiasse para mandar chamá-lo. Mas tinha de enfrentar o perigo. Saiu do quarto e foi para os jardins, indo até ao lugar onde as moças praticavam com o arco, sob a direção de Talías. Encontrou o seu arco e lançou mal duas flechas ao alvo, queixando-se em voz alta da sua imperícia. Os jardineiros a observavam dissimuladamente e admiravam a beleza e as atitudes do seu corpo jovem. Olhou para um velho jardineiro que estava perto e chamou-o imperiosamente. O jardineiro obedeceu no mesmo instante.
— Vou entrar numa competição com as outras moças — disse ela — e ainda não sei manejar o arco, o que muito me envergonha. Vá chamar na cozinha Talías, aquele escravo preguiçoso e sempre faminto. Ele tem de me ajudar quanto antes.
O jardineiro fez uma reverência e levou a mão ao peito. Era pouco inteligente além de velho e ela escolhera bem. Tornou a pegar o arco e, embora fosse mais ou menos perita no exercício, errou o alvo muitas vezes deliberadamente. Sentou-se afinal na grama, com um aspecto de absoluta desolação.
Dentro em pouco, Talías estava ao lado dela, com os olhos brilhantes das lembranças do que havia acontecido naquela noite. Depois de olhar furtivamente em torno, Aspásia levou um dedo aos lábios e ele ficou calado. Levantou-se então e disse em voz alta:
— Tem de ajudar-me. Estou hoje ainda pior com o arco do que sempre fui.
Como ele era moderadamente inteligente, compreendeu que havia acontecido alguma coisa e empalideceu. Não era permitido que uma aluna visse a sós um professor e ele assim sabia que, de qualquer maneira, corria perigo. Ajudou Aspásia a levantar-se e lhe murmurou ao ouvido enquanto lhe limpava as roupas:
— Que é que há, minha adorada?
— Silêncio — disse ela, pegando o arco nas mãos dele e colocando uma flecha no mesmo. — Procure representar. Mostre-se aborrecido com a minha falta de jeito. Coloque a mão sobre a minha quando eu puxar a corda do arco. Apoie-se em minhas costas. Censure-me em voz alta. Agora.
Os jardineiros viam com espanto a orgulhosa e jovem hetera ser censurada por um escravo pela sua falta de jeito. Acreditaram piamente em tudo, pois Talías era naturalmente um ator. Era insultuoso mesmo para aquela mulher a quem adorava. Só Aspásia via a sua palidez, as suas mãos trêmulas e o medo em seus olhos. Ela não o desejava mais. Sabia apenas que ele tinha de ser salvo. Colocou-lhe a bolsa de ouro na mão e ele imediatamente a guardou na cintura sem uma exclamação sequer.
Ela disse sussurrando:
— Não me faça perguntas. Deve fugir imediatamente. Não espere a noite, quando os guardas são mais vigilantes e perseguem até sombras. Siga calmamente pela estrada. Não suspeitarão de nada, pois é o escravo predileto de Targélia. Só lhe posso dizer que está correndo o maior perigo e não deve esperar nem uma hora que seja. Está com muito ouro. Vá até ao porto e embarque no primeiro navio que partir, seja qual for o seu destino. Não tem nenhuma marca de escravo e o ouro responde a todas as perguntas. Fique à vontade e seja até arrogante. Compre uma mala na cidade e encha-a de roupas, mandando depois alguém carregá-la até ao navio. Todos pensarão que é seu escravo.
O terror contorcia o rosto de Talías. Ela o empurrou.
— Vá agora. Não há um minuto a perder. Vista a sua melhor túnica, use sandálias e um manto. Vá.
— Fomos descobertos — disse ele por entre os dentes.
— Fomos — disse ela com impaciência.
— E que vai acontecer com você, minha doce ninfa?
A despeito do medo que sentia, Aspásia ficou emocionada.
— Se você fugir, nada me acontecerá.
Com uma praga, ele tomou o arco das mãos dela e jogou-o no chão. Os jardineiros ficaram ainda mais espantados, Ele se afastou dela, como se estivesse profundamente insultado, a murmurar coisas. Aspásia ficou a olhá-lo com um ar de raiva e mortificação. Bateu os pés e voltou correndo para a casa, sacudindo a cabeleira do pescoço e dos ombros. Era uma nuvem de ouro ao sol.
Voltou ao seu quarto e estendeu-se na cama. Cobriu o rosto com as mãos. Não acreditava nos deuses, mas pediu a Afrodite proteção para Talías e para Cléo. Havia seduzido a ambos. Não deviam sofrer por culpa dela. Cléo já corria menos perigo e teria de sujeitar-se apenas ao exame de Équion, que lhe comprovaria a virgindade. Aspásia suspirou com a intensidade de suas emoções.
Mais tarde, depois de ter sido forçada a comparecer às aulas, foi para os jardins em companhia das outras jovens, que conversavam animadamente. Talías não havia aparecido. Uma das moças queria ir avisar o mordomo da casa, mas Aspásia, sabendo que todos os minutos eram preciosos, disse com desdém:
— Ora essa, ele come e bebe demais! Deve estar dormindo no quarto, bêbado.
— Ou talvez nos braços de Targélia — disse outra.
As moças riram.
— É claro então que não devemos perturbá-lo — disse Aspásia.
— Vamos praticar com o arco um pouco.
Ela tinha autoridade e as outras obedeceram. Cléo estava entre elas com o seu rosto inocente de criança. Vendo-a, Aspásia se sentiu intimamente aflita. Nenhum mal devia acontecer à pobre menina.
O mordomo, que chegara ao pórtico para ver as alunas a distraírem-se notou a ausência de Talías.
Aproximou-se e perguntou:
— Onde está Talías? Não devia estar a adestrá-las no manejo do arco?
— Talías? — perguntou Aspásia, como se estivesse admirada.
— Não estava aqui ainda há um momento?
Ficou muito desconcertada quando uma das alunas disse:
— Não. Desde que estamos aqui, ainda não apareceu.
— Então deve estar com Targélia — disse Aspásia. — Venham. Vamos jogar e apanhar a bola.
O mordomo se encantava com a graça e com o riso alegre das moças. Olhou-as durante muito tempo. Via de relance as pernas roliças e jovens enquanto elas corriam e as túnicas se erguiam a meio, enquanto os ternos bustos ofegavam. Tinha certeza de que nem na Arcádía eram as ninfas mais formosas e mais perfeitas de rosto e de formas. Passava de vez em quando a língua pelos lábios ressequidos. De repente, pensou que nunca vira Talías ausente por tanto tempo. Voltou para a casa e Aspásia ficou ansiosa ao vê-lo partir.
Quando as moças entraram em casa, encontraram tudo em confusão. Os escravos corriam nervosamente de um lado para outro e havia em todos os cantos conversas agitadas. Targélia estava com o mordomo no átrio. Avistando Aspásia, sua favorita, perguntou-lhe:
— Viu Talías?
Aspásia parou, pareceu pensar na pergunta e disse:
— Vi, sim. Faz uma hora talvez.
As outras moças fizeram um coro de vozes musicais e declararam que tinham passado o dia sem ver Talías.
— Onde foi que o viu, Aspásia? — perguntou Targélia e Aspásia percebeu que tinha cometido um erro.
Pensou um pouco e disse:
— Foi depois da aula de história. Ele passou pelo corredor. Passou então por nós.
— Não! — gritaram em coro as outras.
— Passou, sim — insistiu Aspásia. — Parecia preocupado com alguma coisa que ia fazer e não falou com ninguém.
— Disseram-me que ele deu uma lição com o arco hoje de manhã — disse Targélia.
— É verdade. Fui eu que pedi.
Targélia apertou os olhos.
— Como é que, sendo tão boa como é com o arco, precisou de uma aula isolada de Talías?
— Havia algumas coisas que eu não entendia bem e ele me esclareceu tudo.
Targélia continuou a encará-la.
— Talías não foi mais visto depois que um dos guardas o avistou caminhando calmamente pela estrada da cidade.
Aspásia encolheu os ombros e murmurou:
— Ele voltará.
— Talvez. Não tem dinheiro. Possui apenas algumas joias sem valor que eu lhe dei. Levou tudo. Mandei alguns escravos até ao porto. Ninguém ali se lembra de tê-lo visto. Apesar disso, é claro que Talías fugiu.
— Não creio — disse Aspásia. — Que motivo tinha ele para fugir?
— Essa é a questão — disse Targélia numa voz apreensiva.
Voltou os olhos para Cléo, que a olhou inocentemente, e Targélia não pôde conter um gesto de frustração. Mas era uma mulher muito esperta e olhou em seguida para Aspásia, a quem achara muito evasiva.
Não era raro em Mileto escravos fugirem, pois os castigos eram em geral rigorosos e muitas vezes terminavam em morte. Mas Talías tinha sido um escravo mimado e amante de Targélia, que o havia adorado e lhe concedera muitos privilégios.
Naquela noite, Targélia não apareceu na hora do jantar e as moças conversaram discretamente sobre o caso, rindo e piscando maliciosamente os olhos. Sabiam que Talías estava sendo ativamente procurado no campo e na cidade, onde as autoridades tinham sido notificadas. Talías tinha desaparecido como por encanto numa nuvem de mistério. Aspásia, prestando atenção ao que se dizia, começou a sentir-se mais tranquilizada. Um homem de aspecto distinto, com um escravo e uma mala, bem vestido e com maneiras arrogantes, não seria suspeitado de ser um escravo fugitivo. Além disso, Mileto era um porto movimentado e muitos passageiros embarcavam ali para diversos destinos.
Targélia estava inconformada. Amara Talías e o tratara em sua casa como um homem livre, dando-lhe presentes e ternuras. Ele comera à mesma mesa de Targélia e dormira na sua cama. Não parecera em momento algum inquieto ou descontente. Assim sendo, devia ter havido alguma coisa extraordinária. Escravos que tinham boa vida como Talías não tinham razões para fugir. Talías havia mostrado sempre contentamento e felicidade, Era um homem que vivia no presente e todas as suas horas naquela casa tinham sido cheias de prazer. Tudo fora cheio de riso, de alegria e de ansiedade para subir à cama de Targélia. Não era possível que ele se deixasse ofuscar pelo desejo de liberdade, a ponto de desprezar tudo isso. Targélia conhecia com autoridade as tendências humanas e sabia que Talías fugira não por amor à liberdade, mas era consequência de um acesso de medo. De que tivera ele medo? Naturalmente de ser descoberto.
Não podia deixar de pensar em Aspásia, que se havia mostrado tão indiferente e parecia empenhada em convencer Targélia de que havia visto Talías no corredor. Sentiu-se profundamente decepcionada. Até então, Aspásia não tentara enganá-la. Por que então estava fazendo isso?
A resposta era terrível e arrasadora.
Targélia começou a pensar no que os guardas haviam dito a respeito da noite anterior e teve vontade de chorar. Aspásia! Aspásia, que era a joia da casa, amada e protegida, tendo à sua frente um grande destino... era incrível. Mas Targélia sabia que todas as coisas são possíveis neste mundo.
Mandou depois um escravo chamar Cléo. Enquanto esperava, banhou os olhos com água de rosas e se arrumou. Cléo entrou timidamente no quarto, olhando para tudo, pois nunca estivera ali. Admirava os belos mosaicos da parede, brilhantes e tão vívidos que pareciam mover-se, e as estátuas pintadas de Hera, Ártemis, Atena e Afrodite. Havia tapetes persas de belos desenhos pelo chão de mármore, delicadas mesinhas de madeira de limão, ébano e marfim e cadeiras douradas cobertas de almofadas. Lâmpadas egípcias de vidro, prata e ouro pendiam do teto ou descansavam nas mesas. Delas desprendia-se um odor de rosas, de lírios e de sândalo. Havia também finos vasos de vidro delicadamente trabalhado perto das paredes.
Numa gaiola de ouro, um papagaio cacarejava uma canção obscena. Num pequeno recesso, ficava a opulenta cama de Targélía, com colchas de seda e lã e travesseiros macios. Tudo brilhava voluptuosamente. As janelas estavam abertas ao vento noturno e por elas entrava o cristalino solilóquio das fontes e o sussurro do mar.
— Venha cá, minha filha — disse Targélia, involuntariamente emocionada ao ver a jovem mal saída da infância e de aparência tão fresca quanto uma flor de amendoeira. A moça aproximou-se timidamente e ergueu com curiosidade os olhos negros. No mesmo instante, Targélia ficou sabendo com amarga certeza que Cléo não saíra da casa na noite anterior. Disse então com uma voz que procurou fazer calma e bondosa:
— Cléo, tem de dizer-me a verdade, senão ficarei muito zangada, e minha zanga é uma coisa que deve ser levada a sério. Dormiu bem na noite passada?
Cléo olhou para ela e ficou de repente muito vermelha. Targélia teve então a momentânea esperança de que tivesse sido Cléo e não Aspásia quem fora ter com Talías ao luar. Cléo assentia, sem poder falar.
A esperança fez Targélia dizer quase com ternura:
— Não tenha medo, minha filha. Quero só saber da verdade. A qualquer momento, saiu desta casa ontem à noite, depois de ter ido deitar-se?
A menina sacudiu negativamente a cabeça com tal presteza que Targélia se convenceu de que ela não estava mentindo e sentiu o coração cheio de tristeza e também de intensa raiva.
— Soube pelos guardas que sua cama estava à meia-noite vazia e que uma das moças foi vista nos jardins.
Olhou para Cléo e sua voz retornou mais dura enquanto as mãos se torciam sobre os joelhos.
— Foi você?
Cléo deu um grito de pavor e caiu de joelhos diante da mestra das cortesãs, batendo com a cabeça no chão, num terror abjeto. Os cabelos pretos lhe corriam pelos ombros e lhe cobriam as costas. Usava a túnica simples das heteras com um cinto de fitas e a vestimenta se estendia sobre o frágil corpo, delineando todos os ossos. A piedade era um sentimento quase estranho à natureza de Targélia, mas nesse momento ela teve pena de Cléo. Entretanto, tocou a menina como se a estivesse espetando com o pé e repetiu:
— Foi você? Ah! Está abanando a cabeça. Onde esteve ontem à noite, Cléo?
— Na cama de Aspásia.
Targélia respirou fundo e tornou a ter esperança. Seria possível que, apesar de tudo, Aspásia não a tivesse enganado e lhe tivesse dito a verdade?
— Por quê? — perguntou a Cléo. Teve um pensamento desagradável em relação a Aspásia e a Cléo, mas logo o rejeitou. Olhou para a trêmula criança, que começara a chorar, com o corpo sacudido pelos soluços.
— Cléo, não há nenhum mal em que tenha ido à cama de Aspásia para ser consolada depois de um pesadelo.
Cléo continuou imóvel ainda por um instante. Depois, levantou de repente o corpo e sentou-se nos calcanhares, com o rosto a sorrir por entre as lágrimas e mostrando a alegria de quem se vê livre de um tremendo perigo.
— Foi isso justamente o que fiz e Aspásia me consolou.
Targélia olhou a menina durante muito tempo e com a sua experiência percebeu que ela estava mentindo. Sentiu-se tomada de cólera e de tristeza. Bateu palmas e uma escrava abriu a cortina e entrou no quarto. Ouvia-se nesse momento no pórtico externo o som de alaúdes e de vozes de moças que cantavam ao luar.
— Vá chamar imediatamente Aspásia — disse Targélia.
A escrava fez uma reverência e retirou-se, Targélia voltou de novo a atenção para Cléo. A menina estava pálida como um osso novo. Até os lábios pareciam brancos e o seu olhar era temeroso por entre as negras ondas dos cabelos. Ela me olha como se eu fosse uma górgona, pensou Targélia, tão fixo é o seu olhar e com tamanha intensidade de horror e de medo. Isso era intolerável para Targélia, que não era cruel. Cléo fora usada por Aspásia sem que a outra pensasse no verdadeiro pavor que a menina sentia naquele momento.
Targélia deixou de olhá-la. Tudo era silêncio no quarto, à exceção dos gritos roucos do papagaio e do eco do canto das moças no pórtico. Targélia não sabia qual a emoção predominante nela, se a tristeza, se o quente ódio que sentia por Aspásia, que não só a enganara, mas também seduzira lascivamente Talías. Não tinha a menor dúvida de que tinha havido sedução, desde que Aspásia não era fácil e Talías era muito cauteloso para abordá-la abertamente. Mas Targélia tinha também ódio dele, além de sentir-se profundamente humilhada. Se ele ainda estivesse na casa, mandaria açoitá-lo ou torturá-lo até à morte. Com o coração despedaçado, jurou que havia de encontrá-lo, ainda que isso lhe custasse toda a sua fortuna. Mandaria colocar em toda Mileto e principalmente no porto cartazes oferecendo um prêmio a quem o capturasse.
A cortina se abriu e Aspásia entrou no quarto, com o rosto calmo, mas rígido. Havia penteado os cabelos à grega, enrolando-os com fitas. Olhando-a, Targélia teve mais uma vez consciência da sua beleza, mocidade, graça e majestade. Essas coisas haviam seduzido Talías. Targélia sentia-se velha, feia, acabada e murcha, e essa convicção lhe redobrava a raiva, Era como uma harpía diante de uma ninfa, uma harpía que, para ter algum amor, era forçada a comprá-lo.
Aspásia inclinou a cabeça em saudação. Viu a fisionomia de Targélia e Cléo de joelhos e então o seu coração se encheu de terror. Pensou que estava perdida. Mas era altiva. À sua maneira majestosa, aproximou-se de Targélia e daqueles olhos transbordantes de ódio. Nunca fora uma escrava, mas esse fato não a protegeria da vingança de Targélia, a qual conhecia muitos homens poderosos em Mileto que estavam em dívida para com ela e fariam o que ela quisesse.
Targélia percebeu com prazer o desespero de sua favorita e sorriu. Foi um sorriso hediondo. Que restaria daquela beleza depois da flagelação e da tortura? Imaginou Aspásia coberta de sangue, com aquele lindo corpo lacerado, aquele rosto desfigurado e aqueles olhos admiráveis apagados pela agonia e pela morte. Ela, Targélia, seria vingada, bastando para isso uma simples ordem sua. Ansiava por esses momentos de destruição. Seria um prazer para ela. Não sentia o menor resquício de compaixão por aquela mulher que a humilhara e traíra.
Aspásia volveu os olhos para Cléo e teve pena da menina. O quarto suntuoso pareceu dançar diante dos seus olhos num caleidoscópio de cores que se confundiam, cresciam, desapareciam, fugiam e voltavam. Cléo olhava arrasada para Aspásia a pedir-lhe socorro e então estendeu a mão para a túnica de Aspásia e agarrou-a desesperadamente. A contrição inundou a alma de Aspásia e os seus olhos se encheram de lágrimas. Ela ia provavelmente morrer, mas nada devia acontecer àquela menina. Comovia-se profundamente de ver o corpo ainda infantil, o sofrimento estampado no rostinho redondo, os pezinhos que saíam de baixo da túnica e a abjeção da sua atitude.
Disse então suavemente, como uma mãe a falar a uma filha:
— Pode falar, Cléo. Pode contar à Senhora Targélia o que aconteceu ontem à noite.
Cléo hesitou e Aspásia não pôde mais olhar-lhe o rosto, pois viu que a menina tinha receio não apenas por si, mas por ela também.
— Fale, Cléo — tornou a dizer — e tudo estará bem.
Assim tranquilizada, mas sem desviar os olhos daquela a quem adorava, Cléo murmurou:
— Aspásia disse que queria venerar Ártemis à luz da lua. Pediu-me por isso que me deitasse na cama dela e cobrisse bem os meus cabelos pretos, depois de arrumar as roupas de minha cama para dar a impressão de que eu estava deitada nela. Saiu então e eu adormeci. Ela me acordou antes do amanhecer e eu voltei para minha cama.
A doce menina é prudente mesmo nessa idade, pensou Aspásia. Não disse uma palavra a respeito de nossas promessas de carinho. Estendeu em seguida a mão sobre a cabeça curvada de Cléo e disse a Targélia:
— Foi apenas isso. A menina é inocente de qualquer coisa. Se houve algum erro, foi exclusivamente meu. Eu me sentia inquieta e queria olhar para a lua.
— Você anda muito inquieta ultimamente, Aspásia — disse Targélía em tom zombeteiro, olhando Aspásia com uma estranha mistura de amor e de ódio.
Olhou então para Cléo, ajoelhada e em prantos diante dela, e disse:
— Pode sair, minha filha. Não estou mais zangada com você, pois agora sei que foi apenas uma vítima. Vá para sua cama.
Cléo levantou-se e enxugou as lágrimas com as palmas das mãos como uma criança. Os lábios lhe tremeram. Olhou para Targélia e depois para Aspásia. Esta sorriu para a menina, beijou-a e encaminhou-a para a cortina. Cléo fugiu com os seus passos rápidos pelos tapetes e pelo chão de mármore.
— Não se sente envergonhada de ter corrompido essa menina, Aspásia? — perguntou Targélia.
— Não a corrompi. Ela lhe disse a verdade e eu também lhe disse a verdade.
— Toda a verdade, Aspásia?
Embora isso não parecesse possível, Aspásia ficou ainda mais pálida do que já estava. Pôde apenas murmurar:
— Cléo e eu lhe dissemos a verdade.
— Está mentindo — disse calmamente Targélia. — E Talías? Encontrou-se com ele ao luar e eu sei para quê. Nega isso?
Aspásia fechou os olhos por um momento. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Targélia continuou:
— Ele me deixou à meia-noite, pensando que eu estava dormindo. Demorou algum tempo para voltar. Pensei que tivesse ido às latrinas ou tivesse ido passear nos jardins, pois a noite estava quente e a lua estava muito bonita.
Isso não era verdade, mas Targélia estava disposta a suportar até ao fim a sua mortificação.
— Seduziu o meu escravo, Aspásia. Ele é jovem e leviano, enquanto você sabe muitas artes. Ele vai morrer em consequência de sua infâmia. Morrerá entre atrozes sofrimentos e eu a forçarei a estar presente para contemplar a sua obra.
Aspásia não se pôde mais dominar.
— Talías foi encontrado?
— Foi — respondeu Targélia depois de uma pausa. — Tentou embarcar num navio no porto e foi capturado. Soube disso há pouco. Será entregue aqui nesta casa amanhã de manhã. Prepare-se para um espetáculo interessante, Aspásia. Talías é jovem e forte, mas suplicará a morte muito antes de acabarmos com ele.
Aspásia ainda era jovem e muito crédula. Além disso, Targélia nunca mentira para ela. Olhou em torno desvairadamente, como se procurasse algum socorro. Desesperada, caiu de joelhos diante de Targélia e juntou as mãos convulsivamente, O belo rosto branco estava contorcido e banhado de suor,
— Perdoe-o. Só eu sou a culpada. Seduzi-o porque o calor do meu desejo era demais para mim e eu tinha de ser aliviada. Qualquer homem me serviria. Como disse de Cléo, ele também foi minha vítima. Ensinou-me que os homens são dominados por paixões irreprimíveis e que, nesses casos, qualquer mulher se torna desejável. Eu aprendi aqui as artes da sedução e ele não tem a minha experiência, nem a minha inteligência. Tudo foi apenas um momento de loucura para ele. Não é culpado. Não passa de um homem.
O rosto de Targélia se contraiu até que ela ficou horrorosa. Os cosméticos só serviam para acentuar-lhe as rugas. Os cabelos pintados de ouro eram ridículos. Ela via o seu amado Talías entre aqueles torneados braços brancos. Via-o beijar aquele seio adorável. Via-o penetrar naquele corpo e podia até ouvir os seus arquejos. Seria mais delirante do que na cama dela, pois estaria possuindo a mocidade e uma beleza quase divina. E aquela moça, de quem tinha cuidado desde que nascera e que tinha pela frente um destino glorioso, perdera tudo. Targélia sentia uma imensa dor. Por si mesma, por Talías e ainda mais por Aspásia, a quem amara como uma filha e cujas maravilhosas perspectivas estavam destruídas. Targélia nunca havia chorado em toda a sua vida, mas naquele momento compreendia que era só o que lhe poderia dar algum alívio. Dominou-se, porém.
— Como foi que Talías fugiu? — perguntou ela.
— Dei-lhe o resto do dinheiro que minha mãe me deixou. Aconselhei-o a fugir e não me arrependo. Gostaria de que ele tivesse ido para um lugar seguro. Lembrar-me-ia sempre disso com alegria.
— Pode então alegrar-se. Ainda não foi capturado. Quando o for, mandá-lo-ei trabalhar nos campos acorrentado, para que não possa fugir de novo. Está satisfeita?
Aspásia levantou-se e pela primeira vez olhou com ódio para Targélia.
— Mentiu-me então. E eu tinha confiança em você.
— Você me mentiu também e a minha confiança em você era absoluta. Vá para sua cama, Aspásia. Pensarei esta noite no que vou fazer com você. Pode ter certeza de que não se vai sentir feliz com a minha decisão. Posso mandá-la trabalhar nas cozinhas ou nos campos. Posso mandar açoitá-la até que morra ou até que sua beleza fique destruída para sempre. Saberá de tudo amanhã de manhã.
Aspásia sabia que nada tinha a perder e disse:
— Não sou uma escrava. Nasci livre e sou livre. Nada pode fazer de ilegal contra uma mulher livre, por maior que seja a sua raiva. Pelas leis de Mileto, a minha falta é leve e não justifica punições extremas.
Targélia se levantara para dar a Aspásia permissão para retirar-se. Ao ouvir isso, olhou-a com desprezo.
— Acha então que os juízes de Mileto vão preocupar-se com o destino que eu der a uma criatura insignificante como é você? E não se esqueça de que ajudou um escravo a fugir e isso é um grave crime. Pense nisso, insolente.
— Deixe-me sair de casa esta noite. Nunca mais nos veremos.
— E para onde irá, louca? A pé, com o peplo em cima do corpo e sem dinheiro? Irá vender-se como escrava, o que não é nada mais do que merece? Ou irá ser uma prostituta pública?
— Não sei o que é que vou fazer — disse Aspásia com a impetuosidade e a ilimitada confiança da juventude. — Bastará sair daqui. Rebelo-me há muito contra o destino que escolheu para mim. Ao menos, escaparei disso e com muita alegria.
Targélia pensou um pouco e disse:
— O destino que você trata com tanto desdém era um destino de poder, de riqueza, de conforto, de adoração e de carinho como amante de um homem escolhido e distinto. Você prefere as ruas de Mileto com toda sua sordidez? Prefere os encontros com os homens grosseiros do cais e dos matadouros, das oficinas e do mar, em troca de algumas dracmas e de um pouco de pão e vinho?
Aspásia ficou calada durante algum tempo e afinal disse:
— Eu teria liberdade de criar o meu próprio destino para a vida ou para a morte.
— Está falando como uma imbecil. Vá para a sua cama. Ainda não resolvi nada. Mas saiba que poderei largá-la amanhã, sem dinheiro e sem roupas, nas ruas de Mileto. Poderá então usar as artes que lhe foram ensinadas para ganhar um pedaço de pão.
— Posso ir procurar meu pai, pois minha mãe me disse quem era ele. Terá pena de mim e me dará abrigo.
Targélia riu desdenhosamente, jogando a cabeça para trás de modo que os tendões de seu pescoço se destacaram horrivelmente à luz das lâmpadas.
— Seu pai, idiota? Depois que você nasceu, ele queria matá-la porque você era mulher e foi sua mãe que a salvou. Você sabe muito bem disso. Ele sempre negou que fosse seu pai, pois não há homem que goste de confessar que gerou uma filha. Seria capaz de matá-la ainda hoje, se estivesse vivo.
— Morreu? — perguntou Aspásia com voz trêmula.
— Claro que morreu. Há apenas quatro meses, de febre. Mas não precisa acreditar em mim. Descobrirá isso talvez amanhã por si mesma, quando eu a largar nas ruas de Mileto.
Fez um gesto imperioso, mandando-a sair, e Aspásia, ainda com a bela cabeça bem erguida, retirou-se.
Targélia atirou-se na cama e chorou desesperadamente por si, pelo perdido Talías e pela perdida Aspásia.
Capítulo 7
Apesar da espessa camada de sombra negra, os olhos de Targélia estavam inchados e vermelhos na manhã seguinte, quando ela foi consultar Équion, que a ouviu com profundo interesse. Os olhos lhe brilhavam e ele tinha vontade de dizer a Targélia: "Dê-me a moça para servir como criada em minha casinha, cuidar de meu jardim ou preparar minha comida". Mas compreendeu que seria imprudente fazer isso. Deu de ombros. Disse então:
— Perdeu a virgindade e agora não tem mais valor.
— Ora, nós conhecemos tão bem as artes de enganar os homens que qualquer mulher pode passar por virgem.
— Graças a um pouco de sangue de galinha, algumas simulações e gritos de dor, isso é bem possível — disse Équion, rindo.
— É verdade que os homens são insensatos e acreditam naquilo em que querem acreditar. Além disso, julgam as mulheres bem pouco inteligentes para enganar com sucesso.
— Lá isso é verdade — disse Équion, fazendo cara feia. — A moça é jovem e indefesa. Pode fazer com ela o que quiser.
Era um céptico, mas não sabia que Targélia havia passado a noite em claro, pensando angustiosamente numa maneira não de destruir Aspásia, mas de salvá-la. Mas, fosse o que fosse, deveria ser feito prontamente. Ela não poderia permanecer naquela casa, como um lembrete constante de vergonha e perfídia para Targélia. Por isso, naquela manhã, mandara um escravo saber dos estrangeiros de distinção que tinham chegado nos navios para tratar de negócios em Mileto ou que estavam a caminho da Grécia. O escravo ainda não havia voltado.
— É possível que ela ainda seja virgem — disse Équion, como se estivesse pensando a sério no assunto. — Afinal de contas, não é muito fácil violar uma virgem e, quando o homem é um escravo, pode ter ficado amedrontado. Pode também ter encontrado grande resistência. Posso examiná-la discreta e particularmente.
— Tenho certeza de que ela não é mais virgem. Tenho experiência nessas coisas, Équion. E depois, se Aspásia ainda fosse virgem, não o seria mais depois de sair de sua sala. Nós nos entendemos muito bem, Équion.
Ambos riram.
Muitos gregos e jônios tinham tido oportunidade de ver Aspásia naquela casa, sem que a jovem soubesse disso. Esses homens confiavam em Targélia. Dar-lhes uma hetera violada quando eles desejavam apenas uma virgem seria repreensível e perigoso. Muitos deles haviam desejado ardentemente Aspásia e tinham oferecido enormes quantias a Targélia, mas ela, como uma mãe, não quisera separar-se logo dela e, por outro lado, Aspásia ainda não completara o seu aprendizado. Mas agora tudo se agravava com o fato de Aspásia ter sido deflorada por um escravo mesquinho.
Targélia deu ordens para que Aspásia recebesse esclarecimentos com a maior urgência possível sobre a arte de simular a virgindade. Até os estrangeiros, os homens do Oriente, estavam sujeitos a um pequeno embuste, pois se distinguiam pelas suas riquezas e davam ainda mais valor à virgindade do que os gregos e os jônios.
A princípio, Aspásia não quis receber os ensinamentos. Mas afinal, não sendo tola, concordou. Ainda estava pálida, apática e pesarosa por sua causa e também por causa de Targélia que, afinal de contas, fora uma mãe para ela. Com alegria, teve permissão para continuar a comparecer às aulas, pois Targélia não queria que houvesse escândalo na casa. Viu também que a pequena Cléo não seria punida de maneira alguma. Aspásia ficou muito grata por tudo isso e voltou a amar Targélia, embora com um pouco de relutância e ressentimento. Parecia ainda que ela não ia ser punida severamente, embora soubesse que não poderia continuar naquela casa que de repente passara a ser-lhe tão cara. Pensava no seu destino e tinha receio do desconhecido.
Talías não fora capturado e isso também muito alegrava Aspásia. Era um patife e encontraria um jeito de viver. Não tinha a menor dúvida disso. Conhecia bem as coisas do mundo e tinha muitas habilidades. Aspásia o invejava e pensou mais uma vez nas restrições que as mulheres sofriam e que as tornavam dependentes do capricho dos homens. Não tinham posição, salvo como matronas ou como prostitutas, e Aspásia não queria ser nem uma coisa, nem outra. A não ser assim, as mulheres só podiam existir como escravas e isso enchia de revolta o coração de Aspásia.
O escravo que Targélia mandara ao porto voltou cheio de notícias. Um persa, com um rico séquito, chegara naquela manhã a Mileto e estava hospedado em casa de um homem famoso de Mileto, que se chamava Cadmo e havia muito desejava Aspásia. Targélia ficou ao mesmo tempo satisfeita e inquieta. Não podia ofender Cadmo, mas queria interessar em Aspásia o persa, Al Talif, que tinha fama de ser imensamente rico e amigo pessoal de Xerxes. Podia pagar um bom preço por Aspásia. Cadmo, embora rico, não podia pagar esse preço, como descobrira, a seu pesar, meses atrás. Targélia não gostava dos persas, mas um sátrapa como Al Talif podia ser tolerado e era tolice lembrar os ataques dos persas à Grécia. Afinal de contas, pensava ela, Xerxes tinha sido muito gentil.
Targélia pensou em Cléo. Certa vez, Cadmo se queixara, visando com isso a uma redução de preço, de que Aspásia já não era muito jovem, pois contava quinze anos de idade. Preferia meninas. Em vista disso, Targélia escreveu uma carta a seu caro amigo Cadmo, informando-lhe que tinha em casa uma menina de apenas doze anos de idade. Cléo tinha na verdade treze anos. Descreveu Cléo como uma flor de amendoeira na primavera. Ainda não chegara à puberdade e devia ser muito desejável para Cadmo. Então, de passagem, convidou Cadmo para jantar e depois ouvir música em sua casa, em companhia do seu hóspede estrangeiro. Os jantares de Targélia eram famosos, pois muitas de suas jovens eram exímias na dança e no canto. Cadmo apreciava muito essas festas em tais ocasiões, levava sempre a Targélia generosos presentes. Tinha ela já na casa de Cadmo duas heteras, além de um sortimento de belas escravas. Estava certa de que ele ia gostar da inocência, da virgindade e da falta de espírito de Cléo. Ela ainda não aprendera todas as artes da sedução, mas isso aumentaria o seu valor aos olhos de Cadmo.
Certa de que Cadmo aceitaria o seu convite, Targélia preparou a casa, pois o convite era para aquela noite. Mandou ordens a Cléo e a Aspásia para que dormissem durante o dia e depois se vestissem esmeradamente após cobrirem o corpo de perfumes e de óleos.
Aspásia pensou logo que Targélia ia dispor dela. Estava quase acabrunhada de pesar. As emoções daqueles últimos dias haviam-na exaurido. Esperava que o homem desconhecido não a julgasse desejável e a rejeitasse. Mas as escravas eram peritas nas artes da beleza. Quanto a Cléo, estava exultante e Aspásia olhava-a com piedade, ouvindo-a tagarelar. Cléo não tinha a menor dúvida. Ia entrar na casa de um homem rico e ali seria cuidada e mimada como uma amante em muitos sentidos. A menina desconhecia o que tudo isso poderia significar e Aspásia suspirava com pena dela. As pessoas sem espírito se contentavam com qualquer destino, contanto que não tivessem de sofrer fisicamente. Cléo seria uma concubina feliz, sem suspeitar nunca de que tinha uma alma de mulher. Mas muitos gregos afirmavam que a mulher não tinha alma e podia, portanto, comparar-se a um cão ou a um escravo.
As flores mais belas, perfeitas e perfumosas tinham sido escolhidas para enfeitar a casa, juntamente com galhos de hera, de samambaias, de loureiro e de mirto. Vasos de âmbar com essência de rosas, sândalo e outras substâncias odoríferas estavam encostados à parede e seriam depois acesos para que os aromas se espalhassem pela sala. A própria Targélia determinara o jantar. Haveria corações de alcachofra em azeite e vinagre, pães macios e brancos para serem servidos em folhas verdes e frescas, enchovas e sardinhas nadando em azeite de oliva e especiarias, enguias do Lago Copais, importadas, mariscos e mexilhões na manteiga, polvo em molho picante, carnes de conserva e defumadas, carne recheada com cevada e fígado, aves, inclusive um pavão assado e servido adornado com todas as suas penas, línguas de rouxinol grelhadas e preparadas com temperos exóticos, leitões, pernas de carneiro assadas, aves cozidas em azeite, alho, tomilho e hortelã, cabritos cozidos no leite de suas mães, famosos caldos negros com pedaços de carne de porco, sangue e com sal e vinagre, muitas variedades de peixes frescos, couve em salmoura, cebolas cozidas, queijos de muitas espécies, azeitonas pretas e verdes, panquecas delicadas cheias de mel, bagas vermelhas e roxas também adoçadas com mel, lentilhas e vagens preparadas de muitas maneiras e acompanhadas de carne de porco defumada, uvas, figos, passas, limões e maçãs; e principalmente aguardente da Síria e os melhores vinhos, bem como pastéis de nozes moídas, sementes de papoula e o mais brando queijo de cabra.
Um banquete assim se destinava a convidados ilustres e nobres, mas o que sobrava era servido às jovens heteras durante vários dias. Em geral, a alimentação das alunas era simples e frugal. Targélia detestava a gordura, ainda que certa redondez não fosse desdenhada. Quando as moças souberam por intermédio das conversas das escravas que Aspásia e Cléo estariam presentes ao banquete, ficaram cheias de inveja, pois isso queria dizer que tinham sido escolhidas para apresentação aos ilustres visitantes. Abraçaram alvoroçadas as duas jovens. Cléo não cabia em si de satisfação, mas o rosto pálido de Aspásia continuou sombrio. Não disse uma só palavra e se submeteu quando lhe pintaram as pálpebras com carvão, tingiram-lhe as faces com uma substância vermelha e lhe passaram nos lábios uma pasta oleosa para realçar-lhes a cor. Continuou calada enquanto as escravas a banhavam e lhe passavam no corpo rosado óleos perfumados, pondo-lhe depois sandálias douradas nos pés. Os seus cabelos foram penteados com flores e fitas de muitas cores. As escravas vestiram-na com um peplo novo, verde como um lago, com um cinto de prata no qual estavam engastadas pedras preciosas. Um véu, transparente como a luz da lua, foi lançado modestamente sobre seus ombros e braços nus. Sob o mesmo a carne palpitante se entrevia ainda mais sedutora.
— Uma verdadeira Ártemis! — exclamaram as moças num coro de admiração e numa salva de palmas, mas Aspásia nada disse.
— Vamos esperar que um Páris a escolha — disseram elas — pois é certamente mais bela que Helena de Tróia.
Mas Aspásia permaneceu muda. Sentia uma paralisante agonia de desespero. Gostaria de fugir, mas não tinha para onde. Não encontraria uma só casa que se lhe abrisse, nem uma só alma caridosa que lhe desse proteção e refúgio. Pensou em matar-se, mas a sua juventude se revoltou com a ideia.
Cléo pensava de maneira inteiramente diversa. Vestida de amarelo com um cinto dourado, os longos cabelos pretos enfeitados de fitas e caindo pelas costas como numa criança, trazendo um fio de pequenas pérolas ao pescoço ambarino, estava encantada consigo mesma e ria e pulava no seu entusiasmo. Esquecera por completo o terror sentido na noite anterior. Os olhos pretos brilhavam e dançavam como dois pedaços de cristal negro. Os lábios cheios eram um botão de rosa. O seu jovem corpo poderia ter sido o de um rapaz, tão pequenos eram os seios em botão e tão estreitos se mostravam os quadris e as coxas. Tudo havia sido cuidadosamente planejado, pois Targélia sabia das preferências de Cadmo.
As moças mais exímias na dança e nos alaúdes e flautas foram escolhidas para executar músicas suaves durante o banquete e estavam vestidas como ninfas das florestas, com ramos de hera nos cabelos, e tinham os pés nus. Vestiam peplos translúcidos da cor das folhas do loureiro e as suas tranças de várias cores caíam livremente sobre os ombros e os seios. Estes apareciam por entre as dobras dos peplos e os bicos tinham sido pintados de um leve róseo. Haviam sido escolhidas não só porque eram peritas em dança e música, mas também porque, não sendo tão belas quanto Aspásia e Cléo, não iriam ofuscar a beleza das jovens apresentadas.
O salão de jantar era o maior da casa. Decoravam-no pequenas fontes perfumadas, belas estátuas, tapetes persa, as mais preciosas lâmpadas e mosaicos de incomparável beleza. Cestas com rosas pendiam do teto e havia montões de rosas espalhados pela mesa coberta com uma tela de prata. Travessas e pratos bem como colheres e facas eram de prata. Os copos e cálices enfeitados de hera provinham do mais caro vidro egípcio esmaltado de ouro e incrustado de ametistas e opalas.
As janelas estavam abertas para a noite quente, com as cortinas verdes corridas, de modo que se podia ouvir perfeitamente o farfalhar das palmeiras, o sussurro dos sicômoros, dos carvalhos, dos mirtos e dos ciprestes e o murmúrio constante do mar.
Targélia recebeu os convidados no átrio. Estava vestida de carmesim e amarelo com um enorme colar egípcio que lhe caía sobre o seio. Desprendia perfumes exóticos a cada movimento do corpo ainda esbelto. Brilhavam-lhe pedrarias nos cabelos pintados de amarelo, nos braços e nos dedos. Estava esplêndida, heroica mesmo e os dentes brancos e os olhos brilhavam.
— Sejam bem-vindos à minha humilde casa — disse ela, inclinando-se com uma reverência diante de Cadmo e de Al Talif, o sátrapa da Pérsia.
— É bem difícil chamá-la de humilde, Targélia — disse Cadmo, que tinha uma voz esganiçada e gestos efeminados.
Correu os olhos em torno com orgulho e olhou então para Al Talif, satisfeito de que o outro estivesse visivelmente impressionado. Que estaria ele esperando? pensou Cadmo. Um bordel miserável? Ora, em Mileto talvez não houvesse tanta riqueza quanto na Pérsia, mas o povo não era rústico.
Passaram ao salão de jantar, onde as moças já estavam tocando e dançando. Al Talif e Cadmo sentaram-se em coxins cobertos de brocado e Targélia sentou-se numa cadeira de marfim diante deles. Duas cadeiras estavam à espera de Aspásia e de Cléo. Escravos vestidos como faunos serviram aguardente em cálices e vinho nos copos. Cadmo ofereceu uma libação aos deuses, Al Talif olhava para tudo com curiosidade. A casa das cortesãs era muito mais luxuosa do que a de Cadmo, que era um homem rico. Tudo ali lhe parecia de muito bom gosto. Se a moça que lhe ia ser apresentada era tão bela e tão refinada quanto aquele ambiente, seria certamente muito desejável. Al Talif, que não era muito loquaz, escutava sorrindo a conversa da dona da casa e de Cadmo, tomando goles de aguardente e consciente das moças que dançavam e faziam música em segundo plano. Gostaria de levar todas para o seu harém, especialmente as que tivessem pele e cabelos claros. A sua concubina favorita era da Ilha de Cós e tinha cabelos cor de prata com tons dourados e olhos profundamente azuis. Mas, infelizmente, havia poucas mulheres como a sua favorita e ele não acreditava que qualquer das heteras de Targélia pudesse comparar-se com ela, ainda que, na opinião de Cadmo, fossem mais sedutoras.
Targélia sabia que Cadmo ainda desejava Aspásia, embora ela, aos quinze anos, fosse velha demais para ele. Disse por isso:
— Meu caro Cadmo, reservei-lhe uma joia. Como lhe escrevi hoje, é uma simples criança e está ainda em botão, não tendo ainda chegado ao estado de mulher. Chama-se Cléo e não nasceu de escravos ou de camponeses. É filha de um pai ilustre e de sua adorável concubina. Devo avisá-lo porém — concluiu ela, com um sorriso — que o preço dela é muito alto.
— Os seus preços são sempre altos — disse Cadmo, fazendo sinal a um escravo para encher de novo o seu copo — mas, na verdade, as suas jovens são excepcionais.
O salão estava impregnado de fragrâncias embriagadoras. Os rostos dos convidados começaram a ficar afogueados não só de calor, mas também de aguardente. Reclinavam-se nos macios coxins e sorriam de antecipação.
Targélia mandou chamar Aspásia e Cléo para se sentarem ao lado dela. Olhou para Al Talif e a aparência do persa lhe agradou. Esperava que ele fosse bom para Aspásia e suspirou, lembrando-se de que os orientais tinham ainda mais desprezo pelas mulheres do que os gregos.
As moças tocaram uma melodia mais viva e mais alegre e, a um sinal de Targélia, Aspásia e Cléo entraram no salão.
Capítulo 8
Al Talif, o sátrapa da Pérsia, olhou para Aspásia enquanto ela, se encaminhava em silêncio para a mesa e pensou: Ela é muito mais bela do que Narcissa, o meu lírio de Cós, e é também muito mais jovem. Não podia acreditar que pudesse haver uma mulher tão bela e tão sedutora, tão perfeita de rosto e de formas. Agitou-se no seu coxim, com os olhos rebrilhantes de desejo. Quanto a Cadmo, depois de um olhar cobiçoso para Aspásia, voltou-se todo para o encanto primitivo de Cléo, que tinha corpo e rosto de criança e ainda guardava a timidez natural da infância. Imaginou imediatamente aquela pequena virgem em sua cama. Fosse qual fosse o preço de Targélia, aquela menina devia ser dele e naquela noite. Teria muito cuidado com o defloramento, pois poderia matá-la se fosse muito violento e assim perderia o seu dinheiro,
Cléo comeu dos pratos incomuns com um prazer franco e encantado. Quando a mão de Cadmo se insinuava sob o seu peplo, ela logo a afastava para entregar-se toda ao prazer da comida. Para ela, Cadmo não era mais do que um importuno. Estava muito interessada nos pratos para pensar no seu dever de dar-lhe atenção. Ele esfregou as palmas das mãos pelos seios dela e disse todo radiante a Targélia:
— Agora é que os seios estão nascendo!
— Procure não aborrecer a menina, Cadmo — disse Targélia.
Aspásia não comeu quase nada e tomou um copo de vinho. Estava cada vez mais reservada. Por entre os seus longos cílios sedosos, havia observado tanto Cadmo quanto Al Talif. Já havia visto Cadmo uma vez de longe e a impressão que tivera de um enorme sapo não se havia modificado. Era baixo e gordo, com uma grande cabeça redonda, olhos esbugalhados e quase não tinha cabelos. Tudo nele era oleoso e rude, inclusive as orelhas grandes e os lábios grossos. Suava muito até quando os ventos frios do inverno sopravam do mar. Não parava de enxugar o rosto, o pescoço curto e as mãos espalmadas, bebendo o vinho frio da mesa como se fosse água. O seu rosto se distendeu e os olhos ficaram mais vermelhos. Não podia desprender os olhos de Cléo. Estava ricamente vestido de escarlate e azul e tinha nas mãos mais anéis do que Targélia. Cheirava a suor e a essência de rosas. Olhava para Cléo, estendendo as pernas pelos coxins, e o seu desejo aumentava.
Aspásia tremia de pensar que Cléo, a imatura avezinha, ia parar nas mãos daquele homem. Julgava que ele poderia esmagá-la mortalmente com o peso do corpo. Despedaçaria aquele frágil corpo com a sua brutalidade. Ah! Por que não tinha ela ouro suficiente para fugir com a menina e escondê-la? O ouro resolve tudo. Sem ele, os deuses são surdos às nossas súplicas, apesar da piedade dos filósofos. Viu Cadmo apalpando um dos seios nascentes de Cléo e teve ímpetos de matá-lo. Cléo bateu-lhe irritadamente na mão e se entregou de novo à volúpia da mesa. O rosto redondo da menina estava rosado pelo vinho.
Aspásia nunca havia aprendido a ser resignada, mas estava começando. Nada havia que ela pudesse fazer para ajudar Cléo. Voltou então toda a sua atenção para Al Talif, a quem estava sendo apresentada. Não era escrava, mas Targélia, de acordo com a lei, tinha poder sobre ela e o que Targélia quisesse fazer dela era legal e tinha de ser aceito. Targélia queria que Al Talif a levasse e não lhe cabia senão obedecer.
Al Talif não era o homem parecido com Cadmo que ela havia temido. Era de meia-idade, devendo ter talvez trinta e cinco anos. Era alto e esbelto, quase magro. Estava magnificentemente vestido à maneira oriental, usando um manto de padrão complicado em vermelho, azul, verde, amarelo, violeta e ouro, o qual parecia não ter princípio nem fim. O manto era feito da mais fina seda com reflexos cambiantes. A cintura fina era cingida por um cinto que imitava uma serpente com a cabeça cravejada de pedras e a boca aberta. Uma serpente semelhante, mas menor lhe passava pelo pescoço e havia outras serpentes ainda menores nos pulsos e nos ombros. Um manto curto de pano de ouro lhe cobria os ombros largos, mas magros. As sandálias eram também de ouro e tinham correias feitas à semelhança de uma víbora igualmente coberta de pedrarias. Havia muitos anéis em suas longas mãos morenas, os quais brilhavam muito e quase todos reproduziam o motivo da serpente. Usava ainda brincos, que eram aros de ouro.
Levava à cabeça o primeiro turbante que Aspásia tinha visto. Era de um pano entretecido de ouro e estava semeado de pedras preciosas. Parecia uma coroa de tão alto e largo. Dava-lhe um aspecto majestoso, erguendo-se acima das orelhas pequenas e da testa alta e lisa como se fosse feita de mármore escuro.
Foi, porém, o rosto que mais atraiu a atenção de Aspásia. Como o resto do corpo, o rosto era estreito, fino e quase tão escuro quanto o de um etíope. Tinha olhos estranhos, quase tão grandes quanto os de Aspásia. Pareciam ora castanhos, ora cinzentos, brilhando e variando de acordo com os seus pensamentos. Tinha longos cílios negros e sedosos e as sobrancelhas eram como as asas de um pássaro que se levantavam para a sua testa, dando-lhe uma expressão bárbara e um tanto cruel. O nariz era pequeno, mas adunco. A boca, extremamente móvel e desdenhosa, parecia levemente tocada de cosméticos. Tinha o ar dissimuladamente zombeteiro da aristocracia persa e todo o seu rosto era sutil e oculto, ficando além da compreensão da-gente ocidental. Havia em torno dele uma aura de secreta obscuridade que, contra a vontade dela, prendia a atenção de Aspásia. Ali estava um homem que nada revelava dos seus pensamentos ou emoções e que tinha domínio sobre si mesmo.
Lembrava-se, das lições que recebera, que os homens que eram senhores de si se mostravam inevitavelmente fortes e poderosos, muito acima do nervosismo e dos sentimentos desastrosos dos outros homens, Al Talif, pensou ela com crescente respeito, nunca se permitiria veemências vulgares.
Apesar do seu medo, Aspásia começou a admirar o homem, que tinha elegância e compostura e falava muito pouco. Às vezes, um brilho de divertido interesse se lhe acendia nos olhos e os lábios dele se franziam, ouvindo a conversa de Cadmo e Targélia, a qual se tornava cada vez mais obscena. Aspásia chegou à conclusão de que a licenciosidade era, para ele, uma coisa para as estrebarias e não para homens educados.
Quando olhava para Aspásia, o seu olhar parecia impenetrável e distante. Pensou que a estava observando e a julgava de pouca importância. Nisso estava errada, pois Al Talif estava pensando, todo surpreso, que ali estava uma jovem inteligente e sutil. Não sabia se isso devia agradar-lhe ou aborrecê-lo. Ela ainda não tinha dito uma palavra, mas ele lhe vira os planos do rosto e a expressão dos olhos. Era um homem que conhecia as mulheres, mas Aspásia lhe parecia excepcional e ele a desejava. Narcissa não passava de um belo animal. Aspásia seria um maravilhoso acréscimo ao seu harém. Era uma mulher que tinha espírito e com quem ele poderia conversar. Riu intimamente e se lembrou do conceito comum, segundo o qual o homem que conversa com uma mulher se rebaixa, pois conversa com uma criatura sem alma que se limita a falar sem saber o que diz.
Al Talif tinha várias esposas e um grande harém. Quando queria compreensão intelectual, um homem ia procurar outros homens. Olhou para Aspásia, pensando de novo, indeciso, na sua inteligência ou falta de inteligência. Poderia alguma coisa aproveitável sair daquela boca adorável? Se fosse esse o caso, seria tudo infinitamente provocante...
Dirigiu-lhe a palavra pela primeira vez e Aspásia pensou que a voz dele não era estridente e rude como a de Cadmo, mas baixa, calma e tão grata ao ouvido quanto o murmúrio do mar.
— Disseram-me que nesta casa as mulheres aprendem muitas coisas que as outras mulheres jônias ou gregas desconhecem, e que, ao mesmo tempo, a inteligência delas é respeitada.
— É verdade, sim — disse Aspásia, falando, apesar da sua amargura, em voz clara e alta. O persa se surpreendeu com a ressonância e a fascinação da voz dela, embora deplorasse a sua altura.
Na Pérsia, as mulheres apenas murmuravam e, ainda assim, de cabeça curvada e olhos baixos. Mas Aspásia encarou-o diretamente e ele viu os olhos dela, maravilhando-se, pois havia neles luzes cambiantes, como se contivessem águas cristalinas.
— Mas isso não nos adianta muito, pois somos desprezadas — acrescentou ela.
Na Pérsia, os homens não falavam com as mulheres como falavam com os outros homens. Desviavam os olhos para não se contaminarem, olhando muito tempo para uma mulher. Entretanto, para sua surpresa, Al Talif lhe sustentou o olhar e depois contemplou com prazer o corpo de Aspásia, dos seios jovens e cheios aos quadris virginais.
Não agradou a Aspásia esse exame de sua pessoa, a que ela não estava habituada. Era como se ele estivesse pensando nas qualidades, de um escravo a quem quisesse comprar. Por isso, corando, tratou de examiná-lo também e o persa, percebendo isso, teve vontade de rir. Uma bela égua árdega, pensou ele. Será muito agradável amansá-la.
Uma escrava que tinha uma doce voz musical começou a cantar uma canção de rua, acompanhando-se com uma pequena harpa.
Não tentes fazer-me amar-te
Pois juro pelas estrelas
Que serei sempre infiel.
A lua me fez errar
Deixou que me seduzisses
Mas não te dei meu coração.
Só uma vez é que se ama,
Depois, só há solidão.
O amor chega bem depressa
E foge logo depois.
Só fica então a tristeza
E desejo sem amor.
Aspásia tinha rido na primeira vez em que ouvira essa canção, mas estava convencida naquela noite de que nunca amaria homem algum. Achava o amor repulsivo, mas sabia que, se algum homem a desejasse, teria de obedecer.
Percebeu que o persa, depois de escutar a canção e a conversa de Cadmo e Targélía, sorria. Perguntou-lhe então:
— Gostaria de viver em minha terra?
Aspásia encolheu os ombros,
— Tem alguma importância o lugar onde eu viva? Não me é dado escolher. Vai para a Grécia, senhor?
Ele tossiu discretamente como se ela lhe tivesse feito uma pergunta atrevida e embaraçosa.
— Para ficar no meio de tantas guerras e turbulências, Aspásia? Não creio que pudesse ficar muito tempo na Grécia, caso fosse descoberto. Trato dos meus negócios neste refúgio que é Mileto, onde me encontro com gregos que são mercadores, lapidários, artífices, armeiros, negociantes de azeite, de obras de arte e de muitas outras coisas. Aqui somos todos homens práticos e não inimigos. Os mercadores não são sentimentais. Só se interessam pelo ouro. Não acha isso bom?
Aspásia tomou um gole de vinho e perguntou:
— Não é o ouro o objetivo de todas as guerras?
— Os gregos não pensaram assim quando invadimos o seu pequeno país. Mas os que lutaram contra nós não eram mercadores. Diziam que amavam a liberdade. E a liberdade é também uma ilusão.
Aspásia desviou os olhos dele, sentindo a hostilidade dominá-la, pois tinha aprendido que a liberdade era o único bem pelo qual valia a pena lutar. Vendo que o homem a estava examinando de novo como se ela fosse um animal, os seus pensamentos se tornaram confusos. Olhou para as mãos morenas do homem e imaginou-as em contato com o seu corpo. Surpreendentemente, não sentiu repulsa, nem temor. Tinha ouvido dizer que na Pérsia as mulheres dormiam aos pés de seus maridos ou senhores como se fossem gatas e jurou a si mesma que isso nunca lhe aconteceria, ainda que fosse morta pela sua desobediência.
Houve uma súbita exclamação de Targélia em que o aborrecimento se misturava com uma exultação de ébria. Cadmo tinha tirado o peplo de Cléo e fizera sentar-se em seus joelhos a menina que chorava, embora estivesse bem tonta do vinho que bebera. Começou a explorar com os dedos o corpozinho bronzeado de Cléo. Aspásia levantou-se impulsivamente e cingiu nos braços Cléo, que se debatia procurando livrar-se do homem, cheia de medo. Cadmo estendeu prontamente a mão, agarrou um dos seios de Aspásia e apertou-o com um riso e um olhar saturados de canalhice. Ela deu um grito e tentou livrar-se da mão de Cadmo, mas o homem apertou ainda com mais força e com a unha do polegar machucou-lhe dolorosamente o bico do seio.
Mais tarde, Al Talif pensou que o seu procedimento fora ridículo, tratando-se de uma mulher e, especialmente, de uma hetera. Aspásia, refletiria ele depois, fora presunçosa e atrevida na sua tentativa de salvar aquela menina que havia interessado a um homem e que devia estar muito grata por isso na sua insignificância. Fora decerto o grito de Aspásia que o fizera levantar-se prontamente, pois já havia mentalmente decidido que ela seria sua e era intolerável ver outro homem tocar no que era propriedade sua.
Aspásia viu a mão do persa estender-se como uma serpente sobre a mão de Cadmo que lhe agarrava o seio. Cadmo deu um grito de dor e soltou a menina. Cléo caiu de joelhos no tapete e ficou chorando como um cachorrinho.
Cadmo levou a outra mão ao pulso e gemeu como uma mulher, exclamando:
— Quebraste-me o pulso! Que as Fúrias te levem!
Al Talif riu e falou calmamente:
— Não deve estar quebrado. Bati apenas com a quina da mão, aplicando uma lição que nós, persas, recebemos da velha terra de Catai. Se eu te tivesse acertado o pescoço, estarias morto agora, meu amigo!
Sacudiu a cabeça, rindo, como se reprovasse a sua impetuosidade.
Aspásia caiu de joelhos diante da soluçante Cléo e tomou-a nos braços, olhando furiosamente para Cadmo. Targélia, estupefata, não sentia mais qualquer vestígio de embriaguez. Nunca em sua casa havia acontecido uma coisa daquelas, por mais embriagados que estivessem os seus clientes. Receava principalmente que o desfecho do episódio fosse os dois homens rejeitarem as heteras, a Aspásia pelo seu atrevimento e a Cléo pela sua absurda oposição às carícias de Cadmo.
— Vou mandar buscar unguentos imediatamente! — disse ela a Cadmo.
Voltou-se para Al Talif e declarou:
— Estou envergonhada com a ação de Aspásia. Mas ela tem o estouvamento da mocidade. Imploro perdão para ela.
Por entre os dentes cerrados, ainda segurando o pulso, Cadmo disse:
— Entregue-me Aspásia e eu prometo que será açoitada todas as manhãs como castigo. Nenhum outro homem poderia querer uma víbora dessas!
Olhou para Aspásia com uma mistura de ódio e desejo e tocou-a de lado com a ponta da sandália.
Al Talif agarrou o pulso machucado de Cadmo e disse, olhando-o bem nos olhos:
— Não toques no que me pertence e não a ti, meu caro amigo.
Cadmo recuou. Torceu-se de dor e lembrou-se de que tinha negócios bem lucrativos com Al Talif. Passou por cima de sua raiva e disse:
— Vamos brigar por causa delas? Nunca! Estou envergonhado.
Cléo estava chorando abraçada a Aspásia e esta se sentia desesperada. Targélia deu um suspiro de alívio e perguntou a Cadmo:
— Vai levar Cléo para casa esta noite?
Ele olhou desdenhosamente a menina, mordendo o lábio e fechando astutamente os olhos.
— Notei que ela está perto da puberdade. O preço dela terá de ser reduzido, pois dentro de um ano não terá mais valor para mim.
— Ela não é uma escrava — disse Targélia, tomada subitamente de pena das duas jovens sentadas no tapete.
Além disso, Cadmo tivera o atrevimento de tocar Aspásia, sua favorita, com o pé, como se fosse uma cadela. As escravas que tocavam e dançavam e os escravos que serviam a mesa estavam imóveis, à espera.
— Cléo — continuou Targélia — nasceu livre e ainda é livre. Quando tiver tido prazer com ela e saciar-se dela, mande-a de novo para mim.
Olhava muito séria para Cadmo, que teve receio naquele momento de nunca mais ser convidado para aquela casa de alegrias e de requintes.
— Deverá tratar a menina com muito cuidado e gentileza — disse Targélia. — Se acontecer alguma coisa a ela, nem todas as riquezas o salvarão de minha raiva e da punição das autoridades.
— Não seja insolente — murmurou Cadmo. O pulso estava inflamado e doía. — Serei acaso um bárbaro, um assassino? A menina será bem tratada em minha casa.
Targélia bateu palmas e apareceram dois escravos, a quem ordenou água quente, unguentos e ataduras.
Al Talif tinha voltado para a sua cadeira. Olhou para Aspásia e viu os seus cabelos dourados misturados com os cabelos pretos da menina, que ela abraçava maternalmente, entre murmúrios de consolação. Não estava chorando como Cléo. O seu rosto parecia cinzelado em mármore.
O persa sentiu naquele momento uma ternura imensa por Aspásia e ficou tão espantado com essa emoção inusitada por uma mulher que quase deu gargalhadas, por ser tão ridículo. Entretanto, ao ver o sofrimento que havia nos olhos dela, emocionou-se de uma maneira estranha, porque era um homem que desconhecia quase a piedade.
Ele se aproximou e tocou de leve o ombro de Aspásia, inclinando-se um pouco. Ela levantou a cabeça e olhou-o em mudo silêncio. Havia alguma coisa escondida no fundo daquele rosto moreno e daqueles olhos sutis. Os lábios avermelhados se franziam em impulsos secretos. Havia na face espaços bronzeados e metalicamente duros que lhe aumentavam a virilidade.
Não o temo, pensou Aspásia espantada. Acompanhá-lo-ei com prazer, pois sei no fundo do coração que ele não é como os outros homens. Disse então:
— Peço-lhe que leve também Cléo.
Mas ele abanou a cabeça, afastou a mão e saiu como a censurá-la. Os seus brincos de ouro brilhavam à luz das lâmpadas.
— Ela não é minha e não posso levá-la — disse ele, e olhou para Cadmo, em quem o próprio Équion estava fazendo um curativo.
Embora Aspásia sentisse o desespero no coração, compreendia. Al Talif era um homem de honra.
Capítulo 9
Kurda, chefe dos eunucos e também eunuco, olhava com ódio para a mulher de cabelos dourados. Fazia já três anos que aquela detestável mulher governava aquela casa, aquele palácio, com mais poder do que uma rainha legítima, certamente com mais poder do que as quatro nobres esposas do senhor, que era o governador daquela província. Não vigoravam para ela os limites do harém, onde viviam duzentas jovens concubinas e escravas. Não eram para ela os címbalos, as flautas, as cítaras e os passos de dança para alegrar Al Talif quando repousasse dos assuntos oficiais. Dizia-se até que ela não dormia encolhida aos pés dele como um animal de estimação.
Kurda não podia, porém, acreditar nisso, pois certamente nenhuma mulher poderia dormir com o senhor na mesma cama. Seria uma blasfêmia, uma obscenidade, uma coisa inominável que Al Talif nunca iria permitir. Jamais cometeria o crime de rebaixar-se tanto!
O chefe dos eunucos estava junto aos portões de bronze que levavam ao vestíbulo do palácio e observava a passagem majestosa e senhoril de Aspásia pelo pátio banhado de sol. Pensou com má vontade que ela nem ao menos era jovem. Dizia-se que tinha dezoito anos e era como uma folha seca. Era tão velha quanto a mais velha esposa do senhor que já tivera cinco filhos, que lhe faziam a ela muita honra. Era muito mais velha do que as concubinas do harém, que na sua maioria não tinham ainda passado dos quatorze anos. Depois dessa idade, as mulheres começavam a declinar e o senhor não tolerava velhas. Entretanto, suportava e tolerava aquela mulher. Era incrível! Era vergonhoso! Teria ela lançado sobre ele um sortilégio do Ocidente para perturbar o juízo de Al Talif? Se assim era, ninguém no palácio podia estar em segurança. Aqueles cabelos dourados eram uma teia de desgraças, em que tudo seria enredado, sem defesa possível. Kurda, inteiramente devotado ao seu senhor, ainda que Al Talif fosse seguidor de Zoroastro e não realmente persa, mas medo, tinha vontade de chorar de temor e de raiva sempre que via aquela filha de Arimã, o espírito imortal do mal, eternamente em guerra com Mitra e com o homem. Sem dúvida alguma, Mitra faria cair calamidades não só sobre o palácio, mas sobre todo o vale do Polvar.
As numerosas mulheres do palácio provocavam e até atormentavam um pouco Kurda e os seus eunucos, mas o temiam também, pois ele podia à vontade mandar açoitar e infligir outros castigos às mulheres do harém. Só as princesas, as mulheres de Al Talif, e as favoritas especiais estavam a salvo da má vontade e do ódio de Kurda ao sexo feminino. Mas aquela mulher do Ocidente, que não era princesa nem verdadeira concubina e nem sequer uma escrava, fingia não tomar conhecimento da existência dele, muito embora ele usasse calças de pano de prata ou de ouro com bordados escarlates, azuis, amarelos e purpúreos, com um casaco também magnífico e um turbante maravilhoso, um cinto de ouro cravejado de pedrarias e um alfanje de excelente qualidade. Em vista da atenção que ela lhe dava, ele bem poderia ser um chacal preso na corrente. Nunca lhe pedira favores nem concessões, como faziam as jovens concubinas e as escravas e nunca lhe dera uma moeda de ouro ou um presente como faziam as outras quando ele lhes atendia aos caprichos femininos. Só uma vez ela o olhara diretamente e com impaciência, levantara a cabeça como se fosse dizer alguma coisa e no mesmo instante se afastara. Infelizmente, ele não tinha testículos e por isso ela o desprezava. Ela, a impura, se julgava superior a um ser que era puro. Devia saber que os escravos não-castrados da casa e os criados livres o respeitavam pelo seu poder e que o próprio Al Talif muitas vezes lhe ouvia as opiniões e lhe pedia conselhos.
Mas ela estava envelhecendo! Dentro em pouco, seria banida para as camadas mais baixas do harém, onde cuidaria das crianças e serviria às novas favoritas, lavando-lhes os pés e passando-lhes óleo no corpo. Nessa ocasião, ele, Kurda, se vingaria. Mandaria açoitá-la todos os dias ao amanhecer até que ela não resistisse mais e morresse, quando mandaria atirar-lhe o corpo aos cães selvagens das montanhas. Ninguém a lamentaria. Era temida e odiada não só pelas esposas nobres, mas por todo o harém, que se alegraria com o triste destino daquela insolente que não só desdenhava Kurda, mas também as esposas e as outras concubinas.
Enquanto isso, porém, ela se mostrava odiosa e distante. Naquele momento, Kurda observava-a sombriamente. Ela havia atravessado metade do pátio ladrilhado de azul e branco e fora parar diante da fonte de jade, com um enorme tanque onde um golfinho de mármore branco parecia dançar graciosamente na iridescência dos repuxos. Colocou a mão no tanque e sorriu para o golfinho. Kurda viu o seu perfil estrangeiro e estremeceu. Nunca usava o véu recatado e decente das mulheres virtuosas, que não só resguardava o rosto das mulheres dos olhares concupiscentes dos homens, mas também protegia do sol a delicada pele das mulheres. Na verdade, Arimã guardava bem as suas fiéis imundas. Os lábios dela eram vermelhos como uma romã, as faces eram levemente rosadas, o pescoço e a testa eram de uma alvura de leite e os ombros quase nus — obsceno! — eram tão brancos quanto o golfinho de mármore. O nariz não era sutilmente recurvo como o de uma mulher nobre; era reto e impudicamente arrebitado na ponta. Isso demonstrava a sua origem escrava. Quanto à lasciva cor dos seus cabelos, era evidente que nenhuma mulher possuía cabelos tão amarelos. Eram certamente pintados, mas isso era uma coisa que se devia esperar de uma mulher na idade dela. A mãe de Al Talif tinha pintado os cabelos, mas de preto, o que era permitido numa mulher. Mas a cor dos cabelos daquela mulher, como a da grega de Cós, que já voltara para a terra dela, era ostensivamente falsa. As mulheres bárbaras do Ocidente não tinham o menor respeito pela decência. Como era triste e estranho que o heroico imperador Xerxes não tivesse conquistado aqueles bárbaros! Podia-se dizer, a esse propósito também, que Arimã protegia os seus fiéis e que Mitra era muito paciente e benigno até com os bárbaros, que não o conheciam, nem honravam.
Kurda, cada vez mais descontente, observou que Aspásia estava com um vestido vermelho, quase tão vermelho quanto a sua boca, caindo com arte e justeza sobre o belo busto e os quadris, depois do que descia até os pés calçados de sandálias douradas e cobertas de pedrarias, O vestido era artisticamente bordado e parecia feito não de pano, mas de uma gaze aérea tecida com as cores do arco-íris. Não levava nada à cabeça e os cabelos louros eram agitados por um vento quente e perfumado que corria pelos múltiplos arcos em ponta do pátio. Os ladrilhos azuis e brancos do chão refletiam-lhe a imagem. A água da fonte lhe lançava no rosto longas sombras radiosas e penetrantes reflexos. Os braços brancos e roliços eram cingidos de pulseiras com pedras preciosas e um colar de opalas lhe pendia do pescoço.
Kurda era supersticioso. Julgava-a um espírito mau, tão estranha era ela e tão poderosa nos assuntos do palácio. Tudo era absolutamente inexplicável e ele fez o sinal usado para afugentar os demônios. Às vezes, ele, o poderoso Kurda, a temia, sentindo depois vergonha dessa indignidade.
Incrível e muito alarmante para ele era o fato de que ela não passava o seu tempo no harém, nem dormia num dos quartos designados para as princesas. Dizia-se que dormia com o Senhor Al Talif e Kurda não podia cometer a baixeza de acreditar numa coisa dessas, embora ela tivesse um quarto próprio que superava em esplendor os quartos das princesas. Tinha dez escravas exclusivamente para o seu serviço.
O chefe dos eunucos era um homem imensamente alto e imensamente gordo, com uma enorme barriga e um grande rosto pálido e liso, como um traseiro de criança. Os olhos pretos e miúdos se sumiam nas dobras da carne facial, o nariz parecia um cogumelo, a boca era breve e amuada como a de uma criança e as papadas eram tantas que não se podia ver o pescoço. A aparência geral do homem era grosseira, quando não grotesca, e, quando ele falava, Aspásia não podia deixar de sorrir ao ouvir a voz estridente, fina e feminina. Mas bem sabia como ele era perigoso, cheio de rancores e perversidades. Tinha ouvido dizer que todos os eunucos eram como ele. Detestavam as mulheres e eram malvados, encontrando nas torturas o mesmo prazer que outros homens encontravam nas mulheres. Mas sem dúvida Kurda superava todos os seus irmãos nesse particular. Sabia que, embora ele odiasse todas as mulheres do palácio, até as princesas a quem atendia, tão solicitamente e guardava com tanto ardor, odiava a ela em primeiro lugar, A princípio, tivera compaixão dele, julgando que o homem ressentia a sua mutilação, mas dentro em pouco ficou sabendo que Kurda se orgulhava da sua deficiência e a considerava um sinal de superioridade. A sua grande barriga se projetava entre as abas do seu casaco bordado. O umbigo era pintado de rosa, o que Aspásia julgava particularmente obsceno.
Certa vez, ela se fizera a pergunta: Por que me odeia ele mais que às outras mulheres e sempre me olha com vontade de matar-me? Durante algum tempo, não ocorreu a Aspásia que o eunuco tinha um amor todo feminino por Al Talif e compreendia que o sátrapa a amava como nunca amara outra mulher. O pior de tudo, porém, era que Aspásia era tratada naquela casa como uma imperatriz. Nunca era banida para os lugares onde as mulheres viviam. Durante os baquetes, sentava-se à mesa com o sátrapa e os outros convidados, conversando como os homens conversam, enquanto todos o ouviam em fascinada atenção. Os convidados não a desprezavam, nem a consideravam insignificante, como consideravam as suas próprias mulheres e filhas, e isso indignava o ciumento Kurda. Os homens a olhavam como se estivessem sob o fascínio da lua dourada a surgir do alto de uma montanha.
O chefe dos eunucos tinha o direito de espancar alguma concubina ou escrava que se tornasse recalcitrante no harém, devendo, porém, ter o cuidado, ao aplicar esse e outros castigos, de não marcar o corpo da mulher ou feri-la de qualquer maneira. Desde o momento em que Aspásia entrara no palácio, Kurda compreendera que ela estava a salvo dos seus castigos e que lhe devia falar com mais respeito do que o merecido pelas mulheres de Al Talif.
Ela exercia também uma fascinação sobre Kurda, a fascinação de um ódio de morte, a fascinação de uma mulher estonteante em face do seu ostensivo rival. Não julgava Aspásia bonita. Considerava-a mesmo repulsiva e não compreendia a cegueira do seu querido sátrapa. O próprio cheiro que se desprendia dela era revoltante, pois ela não usava os lânguidos e fortes almíscares do Oriente. Dela se exalava um aroma constante de lírios e jacintos, como se fosse o cheiro natural do seu corpo. Bastava que ela aparecesse para que ele ficasse a olhá-la como a um basilisco, incapaz de mover-se até que ela se afastasse. Só a morte ou a degradação dela poderiam satisfazê-lo. Sonhava muito com essas coisas e sabia que tinha apenas de esperar até que Al Talif se cansasse dela. Isso desejava não apenas Kurda, mas as esposas ofendidas e as outras mulheres do harém. Tinham julgado Narcissa intolerável porque ela havia assumido, como favorita, os ares de uma sultana, tratando condescendentemente até as esposas. Aquela Aspásia era muito pior, pois era infinitamente mais bela. Dizia-se até no harém que o próprio Artaxerxes, depois de vê-la no palácio, a desejara e oferecera por ela uma quantia igual ao resgate de um reino. Mas nenhuma mulher do harém acreditava nisso. Kurda acreditava porque sabia que era verdade.
Olhando-a com raiva naquele dia, como sempre a olhava, Kurda a viu, como de costume, levantar a cabeça da fonte e olhar para a vista hipnótica dos altos arcos em ponta azuis e brancos que se estendiam do pátio como miríades de reflexos decrescentes num espelho. Pareciam prolongar-se indefinidamente, diminuindo com a distância, um por dentro do outro, numa ilusão de coisa interminável. Abriam-se na pedra branca trabalhada das paredes intermédias. A pedra era tão lavrada que parecia feita de delicada renda. Tudo era ladrilhado de azul e branco num piso que parecia de vidro, nunca era manchado pela poeira ou sequer por uma folha caída, e refletia as cores e as formas das pessoas que passavam por eles. A direita, o chão ladrilhado, as paredes e os arcos terminavam em pequenos degraus brancos que levavam a magníficos jardins suspensos, com grutas, tanques, pequenas fontes de ébano, canteiros de flores, compactos bosques de oleandros, ciprestes, palmeiras, mirtos, carvalhos e estranhas árvores que pareciam fetos e sinuosos caminhos de saibro vermelho. Por ali passeavam pavões e nas águas viam-se flamingos róseos como a madrugada, patos amarelos e pardos, cisnes brancos e pretos e garças de bico vermelho. As margens dos tanques de um verde de esmeralda ostentavam massas cascateantes de flores de muitas cores sobre as quais adejavam nuvens de borboletas polícromas. Pássaros exóticos de todas as cores estavam em gaiolas douradas penduradas nos galhos das árvores e cantavam em companhia dos que estavam em liberdade ao lado deles. Havia pouca ou nenhuma grama ali e o chão estava coberto de hera e outras plantas rasteiras ou então mostrava a areia prateada bem trabalhada pelo ancinho ou o cascalho branco cintilante. Aqui e ali havia grandes vasos chineses com galhos floridos que mostravam flores como gotas de sangue, ouro e lápis-lazúli. Sobre tudo se estendia um céu luminoso da cor do peito dos pavões, cheio de tanta claridade que não era possível olhá-lo durante muito tempo. Privava as sombras de qualquer escuridão, de modo que até as que dormiam no chão, nas flores ou na areia, tinham apenas uma incandescência mais leve. O calor era seco e acre, de tal forma que nenhum cheiro se elevava da terra, exceto o do pó aromático e da pedra que pareciam à beira da ignição.
As próprias fontes pareciam de pedra líquida e estavam muito quentes. Nos tanques coloridos, peixes vistosos se moviam lentamente e de quando em quando subiam à superfície em busca de ar. Lírios aquáticos, brancos ou róseos, se agrupavam compactamente contra o sol, nas suas moitas de folhas verdes flutuantes. Havia poucas estátuas e estas eram de bronze e não de mármore, apresentando formas estranhas para os olhos ocidentais. Algumas mostravam deusas de muitos braços retorcidos, muitas mãos e muitos seios, com rostos apavorantes cheios de malignidade e ferocidade sobrenatural. Viam-se deuses de turbante, de correspondente ferocidade, com chamas a emergir da boca, dos ombros ou dos escudos esculpidos. Todos eles tinham pernas curtas, musculosas e malfeitas e pés nus com muitos dedos. Aspásia os achava temíveis e repulsivos, especialmente os que tinham dentes irregulares que apareciam entre os lábios negróides. Às vezes, descobria uma estátua que segurava pelos cabelos uma cabeça cortada e sentia um arrepio no corpo. Já descobrira que a mentalidade oriental era muito mais complicada, obscura e impenetrável do que a mentalidade ocidental, que tinha clareza e lógica de raciocínio. A mentalidade ocidental passava de um ponto racional para outro, mas a oriental se retorcia em espirais, sendo misteriosa além da sua compreensão. Entretanto, julgava-a interessante e provocante, apesar da sua obscuridade, das suas sugestões secretas e até de suas insinuações de coisas tortuosas e acima do entendimento humano. Certa vez, um velho filósofo dissera, na casa de Targélía: "Nada do que é humano me é estranho". Se ele se tivesse aventurado até ali, pensava Aspásia com uma ponta de humor, não se julgaria tão seguro assim ou chegaria à conclusão de que havia coisas superficialmente humanas que não podiam ser compreendidas ou que tinham emergido de alguma força invisível de sensibilidade que não correspondia absolutamente à humanidade, tendo as qualidades das naturezas elementares ou semelhantemente apavorantes.
Era só quando não tomava conhecimento das estátuas que, de alguma maneira, personificavam o espírito oriental que Aspásia podia admirar a beleza dos jardins. Preferia contemplar os pássaros, os pavões, as garças mansas, os flamingos e os papagaios ou olhar para as montanhas nuas ou azuis que cercavam o vale verde e fértil. Fascinavam-na incessantemente os jardins suspensos que cobriam os muros dos jardins, estendendo-se pela terra acima dos muros em ondas de flores e folhagem, nas quais se engastavam invisíveis fios de água. Mas não havia fragrância. Era só à noite que os jasmins e rosas exalavam a sua doçura à luz da lua. Entretanto, Aspásia preferia não visitar os jardins à noite, pois uma vez tinha visto as estátuas adquirirem uma espécie de vida monstruosa, feroz, contorcida e ameaçadora, e isso a havia atormentado. Sabia que o seu povo não se distinguia pela compaixão ou pela ternura desinteressada, mas o espírito oriental, como o mostravam as suas obras de arte, tinha elementos de complexa crueldade e indiferença pelo sofrimento que eram repulsivos ao espírito ocidental. "Todos os homens são iguais", sentenciara o filósofo. Aspásia discordava energicamente.
Não se podia dizer que a mentalidade oriental fosse inferior à ocidental. Em muitos sentidos sutis e ocultos era até superior. Tinha, porém, elementos únicos, esquivos e enigmáticos, oblíquos e incompreensíveis para a inteligência ocidental. Muitas vezes, em conversa com Al Talif e seus amigos, ela tinha consciência da confusão em que ficava, pois os argumentos nunca chegavam a uma conclusão satisfatória, mas pareciam continuar indefinidamente em labirintos que ela não podia acompanhar e que a desnorteavam. Não levavam a qualquer objetivo que ela pudesse divisar. Para os orientais, discutir era apenas abrir visões místicas e não esclarecer no final um assunto. Um ocidental estabelecia a base inicial para uma discussão, definia os seus termos, demolia o adversário com irrefutável lógica ou era demolido pelas falhas do seu raciocínio.
— Mas nós discutimos — Al Talif lhe dissera — mais para confundir ou para exibir o desenvolvimento de nossa inteligência à admiração dos outros. É um exercício de mistério. Nunca é vazio como a lógica ocidental, que não tem verdadeira imaginação. Nós discutimos, não para informar ou esclarecer, mas para mistificar. É sempre excitante e nos inspira o espírito, embriagando como vinho.
— Não chegam nunca a uma conclusão — disse Aspásia.
— Por isso mesmo, as nossas discussões têm mais validade do que as ocidentais com as suas conclusões, porque nada no céu ou na terra é conclusivo, mas está sempre em mudança e transformação, nunca se gravando na pedra eterna.
— Não possuem o mérito da ordem, senhor.
— A realidade também não, Aspásia. Não há uma realidade fixa, como já deve ter percebido. Há realidades dentro de realidades e todas elas mudam de forma e de relacionamento, sem nunca haver repetição. Compreendeu, minha deusa do sol?
— Não — disse Aspásia e riu.
Mas estava inquieta. Preferia ter limites, mesmo para a imaginação e para as conjeturas, tudo com base numa aceitação de termos, por mais subjetivos que fossem. "Do contrário, é o caos", diria ela.
Al Talif dava de ombros, achando graça.
— Não conhecemos coisa alguma, além de nossa mera existência e da fraqueza de nossa imaginação e de nossas hipóteses. Além disso, que nos é aparente, só existem enormidades e formas vagas que nos afligem quando as vislumbramos e a que se dá o nome de caos. Nós, no Oriente, suspeitamos da existência dessas coisas. Vocês preferem que os seus deuses ou seres sobrenaturais sejam definidamente humanos e governados pelas mesmas leis que governam os homens. Esse egocentrismo é ofensivo e infantil.
Informou a Aspásia que as terríveis divindades nos jardins não representavam seres reais. Eram emanações desses seres "ou, se preferir, dos seus atributos ou paixões". Mas tais seres, por si mesmos, não tinham conhecimento da humanidade ou, se o tinham, não se preocupavam, nem se interessavam. Tinham uma identidade própria, para sempre incompreensível ao homem. Só as suas emoções, as suas naturezas se projetavam às vezes no insignificante mundo do homem e, ainda assim, não por vontade deles, mas por acidente.
Aspásia sentia então um estremecimento de terror inexplicável. Podia rejeitar tudo isso, com receio de perder a razão. Mas a mentalidade oriental aceitava tudo e não se aproximava da loucura. Talvez os gregos se tivessem mostrado dispostos a morrer para deter os persas, compreendendo de certo modo que, se o Oriente prevalecesse, não haveria terreno em que o Ocidente pudesse resistir e sobreviver. O espírito ocidental pereceria com todas as suas razões, as suas leis e a sua aceitação de uma realidade comum. Era corrupto o espírito oriental? Não, decerto, no sentido geral de corrupção. Mas que mais era ele? Aspásia não sabia, ainda que vagamente pressentisse e recuasse mentalmente. Todas as relações entre Ocidente e Oriente deviam ser necessariamente superficiais e baseadas num acordo sem profundidade, aceitável e proveitoso para ambos os lados. Saindo daí, não havia possibilidade de encontro. Não se poderiam efetuar negociações na base da boa vontade, pois esta para o Ocidente tinha um sentido e, para o Oriente, outro. Os sentidos eram incompatíveis e provinham de raízes imutáveis.
— Em toda parte, no Ocidente ou no Oriente — dizia Al Talif — os homens têm um terreno em comum. É o ouro. Ele é que produz o contato, o entendimento universal. Pode-se discordar em tudo mais, mas não em matéria de ouro. Vocês, do Ocidente, nos acham tortuosos. Nós os achamos ingênuos.
Aspásia compreendia que ele não a estava depreciando como mulher, mas a toda a sua raça. Isso às vezes a confundia. Os persas e os medos eram povos arianos, como ela também era e, entretanto, não havia compreensão completa. Ele lhe afagava os belos cabelos e os beijava demoradamente. Aspásia sorria. Pensava que os homens tinham outro terreno em comum além do ouro, as mulheres. Uma mulher inteligente de qualquer raça podia enfrentar um homem de qualquer raça e habilmente conquistá-lo, no Ocidente ou no Oriente. Reconhecia, porém, que Al Talif jamais se deixava inteiramente conquistar, como acontecia com os homens do Ocidente. Podia ceder, aparentemente amá-la e admirá-la, respeitá-la mesmo, mas também podia de repente mandá-la embora e deixar de tomar conhecimento dela, às vezes durante dias. Permanecia intacto e invulnerável e por essa razão a fascinava. Ela não o amava com o que entendia por amor, mas venerava-o e muitas vezes temia-o, porque ele era um mistério para ela. Era-lhe também grata por muitos motivos e não precisava de simular paixão por ele. Ele era perito nas artes de tratar as mulheres e isso frequentemente a humilhava, porque, quando usava com ele as carícias que havia aprendido, ele a olhava com um brilho de ironia nos olhos, como se estivesse a observar uma menina precoce. Ele tinha força e as mulheres, Aspásia tinha de reconhecer, adoravam a força.
À direita do lugar onde Aspásia estava naquele momento, no pátio, havia janelas por toda a extensão dos muros, não em ponta como os arcos, mas arredondadas. Essas janelas eram cobertas por gradis de bronze, como se fossem as grades de uma prisão. Ali estava a vida do palácio. A construção era mais redonda que quadrada, com uma cúpula de deslumbrante brancura, cercada de torreões altos e finos como esguias agulhas de pedra. Havia outro pátio secreto, menor do que aquele. Levava ao harém e era usado exclusivamente pelas mulheres do palácio e pelos eunucos que as guardavam. Aspásia ia às vezes a esse pátio, mas não era bem recebida, embora procurasse falar com as mulheres e as esposas.
Os gregos, como todos os povos do Ocidente, exaltavam o corpo humano e tinham verdadeiro culto por atletas, pugilistas, atores, dançarinas e prodigiosos corredores e lançadores de disco. Eram um povo físico. Mas os persas não eram, O corpo era para ele de menor importância que o espírito, com exceção dos corpos de suas mulheres e dos seus valorosos guerreiros. Tinham uma certa indolência de temperamento e deploravam os corpos suarentos e os excessos de atividade. As mulheres do harém eram cheias de corpo e até gordas e os homens admiravam isso. Era estranho que Al Talif não julgasse a esbelteza e a agilidade de Aspásia deploráveis. Acariciava-lhe os longos flancos delgados, os seios rígidos e firmes, o ventre côncavo e ela se admirava disso, mesmo na excitação que sentia, quando pensava no peso excessivo das esposas e concubinas do sátrapa. Pensava às vezes que isso só acontecia porque ele era medo e não persa. Contudo, quando comprava uma escrava, ele só se interessava pela gordura da mesma.
Uma vez, ela lhe dissera em tom de queixa:
— Não posso absolutamente compreendê-lo.
— Minha pomba branca, creia que isso é uma felicidade para você.
Insinuara algum terror no seu espírito oriental e ela, ao mesmo tempo que se encolhia, se enamorava.
Não se sentia infeliz. Tinha um professor que febrilmente lhe procurava ensinar a língua e os costumes da Pérsia e ela tentava aprender para agradar a Al Talif. Vivia constantemente curiosa e interessada. Tinha acesso à biblioteca de Al Talif e aos locais de seu uso privativo, onde ficavam as obras de arte que ela ao mesmo tempo repelia e gostava de ver. Contudo, sentia-se às vezes deprimida pelo excesso de ornatos, pelos aspectos inumanos das esculturas de jade, pedra, lápis-lazúli e bronze, pelos mosaicos formais de uma só dimensão e pelas atitudes estáticas, que pareciam eliminar por completo a flexibilidade e o movimento. Em suma, pareciam negar a existência da carne, do sangue e do coração palpitante, sendo apenas símbolos.
— Ah! Não sei como devo acreditar no que me diz — exclamou ele um dia, rindo. — Não me disse uma vez que tudo é símbolo no Universo, minha doce Aurora?
Aspásia queria dar-lhe uma resposta, mas não encontrava palavras. Ele conhecia mais a mentalidade ocidental do que ela a oriental. Al Talif aceitava a maneira de pensar estranha como um fenômeno do mundo, coisa que para ela não era possível,
Aspásia acreditava que ele a amava, ao menos como uma novidade.
Perguntou-lhe:
— Você me abandonará dentro de alguns anos, quando eu ficar velha?
Ele a olhara com aquela ternura divertida que ela às vezes julgava intolerável e dissera:
— Lírio de Xalímar, você nunca ficará velha.
Ele lhe falava do Egito e da Índia e dos costumes e crenças dessas regiões. O espírito dela se interessava e Aspásia se mostrava ansiosa por aprender.
— Essa sua vontade de saber é o atributo das pessoas que ficam eternamente jovens. Aprendem com a alma ansiosa, com os olhos que procuram sempre brilhantes e com os corpos que nunca se curvam. Minha mãe era assim.
Foi essa a primeira e única vez em que Al Talif falou de sua mãe.
— Sente-se muito sozinha? — perguntou ele.
Quando Aspásia respondeu que nunca tinha conhecido realmente a solidão, ele sorriu como se estivesse profundamente satisfeito. Ela havia recebido dele preciosos presentes de joias e ouro e sabia que poderia deixá-lo no momento em que quisesse. Mas não queria deixá-lo. Havia ocasiões em que sentia a exaltação da felicidade.
Às vezes, ele a levava no seu carro coberto, cintilante de esmalte e pedrarias, puxado por belos cavalos árabes com arreios de prata e guiado por escravos núbios seminus e de turbante, até aos bazares barulhentos e repletos, nos arredores da cidade de Mugrab. Ali, numa planície cheia de sol e de gente, cercada pelas montanhas azuis e cor de açafrão, estendiam-se filas intermináveis de tendas, das quais se desprendia um olor misto de especiarias, bosta, sândalo, nardo e areia, de mistura com uma poeira quente que cobria tudo como ondas de ouro iluminado pelo sol. Havia ali montões de pimenta indiana em pó, com uma cor que ia do ouro pálido ao vermelho violento, mesas retorcidas e ornamentos e joias de metal amarelo e prata engastados de turquesas semipreciosas, pérolas de qualidade inferior e granadas, peças de sedas e tecidos bordados, doces exóticos e jarros de leite coalhado, tapetes como flores esparsas, sandálias e botas do couro mais fino e palha. Havia mercadores da Ásia, da Ásia Menor, de Catai, da Arábia e do Egito, todos vociferantes e insuportavelmente loquazes, discutindo, rindo, praguejando, andando de tenda em tenda, examinando os concorrentes, tentando depreciar-lhes os produtos, agitando tesouros diante do rosto dos fregueses, gritando e zombando dos preços que lhes eram oferecidos. Havia barracas que vendiam carnes e aves assadas, bolos, pastéis, vinho em garrafas e barris, cerveja e até aguardente da Síria. Outras vendiam azeitonas em barris, réstias de cebolas, repolho e pepinos em salmoura e estranhos pães cozidos com sementes e mel e pululantes de moscas. Camelos, que levantavam ainda mais poeira, eram arrastados pelas estreitas passagens, gritando obstinadamente, olhando com desprezo a multidão e resistindo aos seus donos, ao lado de uma grande quantidade de cachorros e gatos e de cabras e bois amarrados. Gansos, galinhas e patos estavam presos em trançados de vime e os seus gritos agravavam os barulhos febris e desordenados que se elevavam de todo o ajuntamento. Havia barracas onde se vendiam facas, cimitarras, espadas e punhais de cabo de prata e onde se ouvia o barulho rascante das pedras de amolar. Homens musculosos de pele amarela e cabeça rapada tinham barracas de flores, verduras, roupas de lã, mesas e cadeiras de teca e de ébano delicadamente lavradas e incrustadas de marfim e madrepérola e pequenos objetos de cerâmica ou enfeites de louça e porcelana, muitos deles bem artísticos e com um extraordinário colorido. Havia homens pretos de rosto pontudo, velho e impassível que abriam pequenas caixas trabalhadas para serem olhadas só por homens, e cujas mesas forradas de seda eram cercadas de fregueses que riam e davam cotoveladas uns nos outros como garotos maldosos.
Havia barracas de homens que trocavam dinheiro. Eram homens de todas as raças, de olhar vivo e rosto sério, e suas barracas estavam sob a guarda de homens de espada em punho. Havia nelas um constante tilintar de moedas de ouro, prata, bronze e latão, entre cofres trancados e gavetas com correntes. Os vendedores se mostravam calmos e um tanto desdenhosos, enquanto os fregueses gritavam, blasfemavam, ameaçavam, discutiam, batiam as mãos nas mesas e jogavam sacos de moedas à sua frente. Os homens das barracas pareciam alheios àquilo tudo e só falavam entre si às vezes, recusando os sacos de moeda de vez em quando, apesar dos protestos dos fregueses. Alguns tomavam notas em grandes livros, tão calmamente quanto se estivessem muito longe de toda aquela agitação. O barulho que havia nessas barracas sempre cheias de gente era estupendo.
— Observe — dizia Al Talif a Aspásia, que olhava todo esse tumulto por trás do véu que lhe escondia o rosto — que os homens que fazem transações com dinheiro não se deixam alterar nem desconcertar. O ouro e a prata exercem uma influência moderadora sobre as pessoas. Na verdade, dominam o mundo por mais que os filósofos e os sacerdotes digam o contrário. Se eu quisesse um conselho tão imutável quanto às leis dos medos e persas, tão cristalino e adequado como elas, procuraria esses homens que tratam com dinheiro. Vivem isolados da realidade dentro de um cristal e não têm pensamentos perturbadores. É claro que eu não iria a um templo consultar os deuses.
— Mas o ouro e a prata só têm valor no espírito subjetivo dos homens — replicou Aspásia. — Não têm valor intrínseco. Foram concebidos graças a ideias e essas ideias podem ser abaladas.
— Aconselho-a a discutir essas opiniões esotéricas com os banqueiros — disse Al Talif, tocando-lhe no rosto velado como quem tocaria numa filha amada. — Duvido, porém, de que fossem concordar com você.
— Essas coisas são apenas símbolos, ainda que muito convenientes, adotados pelos homens para representar o que tem realmente valor: comida, casa, mercadorias de troca, terra e outros bens.
— Neste caso, os homens dariam e dão a vida apenas por símbolos — disse Al Talif, rindo, — Mas você mesma disse isso nas suas discussões comigo.
Aspásia, embaraçada, não respondeu, e ele continuou:
— Afirmou que também os nossos deuses são simples símbolos de nossas esperanças, desesperos e anseios, não tendo talvez existência objetiva. Entretanto, nós, no Oriente, cremos que os símbolos são manifestações exteriores de uma realidade invisível e incognoscível. Ah! Os filósofos que desprezam o ouro e os sacerdotes que condenam a fome do ouro mal podem sobreviver se não receberem uma manutenção comprada com aquilo mesmo que desprezam.
Aspásia, que tinha grande senso de humor, riu com ele.
— Tenho observado que é muito raro encontrar um filósofo magro ou um sacerdote faminto. Têm de comer como os outros homens, senão morrem.
— Se quisessem provar a sua hipótese de que o ouro não tem valor e de que a avidez pelo mesmo é reprovável, seria preciso que se deixassem morrer de fome em praça pública, a fim de darem um exemplo aos outros homens — disse Al Talif. — Adoro os idealistas que condenam a posse dos bons terrenos mas que, apesar disso, os desejam.
Toldos de todas as cores, listras e fazendas imagináveis eram batidos e agitados pelos ventos quentes do deserto. As montanhas além do deserto eram quentes como lápis-lazúli e latão contra um céu de bronze polido, no qual o sol era a boca de uma fornalha ardente. As multidões de fregueses e mercadores, de homens e de mulheres que gritavam eram atropeladas por hordas de crianças que corriam entre as filas de gente e de animais, crianças morenas, descalças e nuas, de cabelos pretos emaranhados e as caras manhosas e oleosas, levando nas mãos pães quentes ou restos de carne fumegante, que tinham roubado dos braseiros ou das mesas. Burros com cestos carregados no lombo paciente eram espancados e puxados no meio do ajuntamento, enquanto chicotes cantavam, rodas rangiam, pragas roucas enchiam o ar e cabeças se quebravam. Todos, com exceção das crianças, estavam vestidos de preto, vermelho ou azul empoeirado. Os homens usavam na cabeça panos amarrados com cordas e as mulheres, pesadamente veladas, só deixavam ver os olhos que esquadrinhavam tudo.
Aspásia não podia descer do carro sozinha, mas só em companhia de Al Talif e da sua guarda de eunucos, sob o comando de Kurda, todos de espadas desembainhadas. Mercadores levavam a Aspásia carne de carneiro moída com cogumelos e cevada, tudo assado e embrulhado em folhas verdes, e vinho acre em copos de metal. Al Talif, rodeado pelos seus eunucos, sorria quando Aspásia declarava que a carne era por demais temperada e quente para o seu gosto e que o vinho era muito ácido. Ria quando, apesar disso, ela comia e bebia, apreciando a estranheza e a novidade. Recusara o leite coalhado, espesso e brando, servido em grandes vasos de barro, mas, persuadida por ele, provara e o achara muito reconfortante. Procurava sempre agradar a Al Talif, não só porque isso fazia parte da educação que recebera, mas também porque a aprovação dele a fazia feliz. Al Talif lhe levava frutas desconhecidas que tinham uma riqueza e um sabor superiores a tudo que ela conhecia. Os bolos quentes, recheados de mel, sementes e especiarias, ou as carnes temperadas com coriandro e cravo lhe agradavam.
— Ainda não vi carne de porco — disse ela em dado momento.
— Raramente comemos carne de porco — disse ele, fechando a cara e sem dar mais explicações.
Ela recebeu um prato de barro com peixe cru, sentindo alguma inquietação, mas comeu-o com cebolas e vinagre e achou-o saboroso. Havia também peixe frito com alcaparras e um molho picante com azeite que lhe fez arder a língua, e vinho refrescado com suco de limão. Al Talif se divertia muito com essas experiências, rindo como um garoto. Comprava de vez em quando para ela algum enfeite de ouro ou de prata, colares, anéis, brincos ou pulseiras, ou alguma estatueta ou vaso de bronze de que Aspásia se agradava. Ela tomava essas coisas nas mãos e detidamente as examinava, tentando compreender o Oriente. Uma vez, Al Talif lhe comprou um nenúfar de jade branco, incrivelmente belo com as suas folhas de jade verde. Nunca mais ele lhe saiu das mãos. Acreditava que em certos momentos dele se evolava um doce perfume.
Em outra ocasião, ele lhe comprou uma estatueta de marfim tirada do túmulo de algum nobre egípcio. Havia muitas estatuetas dessas nas barracas de egípcios de rosto escuro e olhos negros dissimulados. Aspásia sentiu aversão pela estatueta. Quando a girava nas mãos, ela se tornava de uma só dimensão, repudiando a sua humanidade e os seus aspectos e contornos quentes.
— É Osíris, filho e também marido de Ísis — explicou-lhe Al Talif. — Dizem que ele, como o mais virtuoso e mais sagrado salvador do seu povo, foi por este assassinado. Levantou-se então dos mortos e subiu ao céu, de onde governa a humanidade a que ama.
— Os deuses da Grécia são mais belos e mais lógicos — disse Aspásia.
Estampou-se de novo no rosto de Al Talif aquela expressão inexplicável, em que havia gravidade e reserva e que ela não conseguia interpretar. Depois, ele lhe falou da religião egípcia, de Ptá, o Deus Todo-Poderoso, que governava todos os infinitos universos e se relacionava com toda a criação.
— Os gregos — disse Aspásia — são mais felizes quando os deuses os esquecem, pois as atenções deles são quase sempre desastrosas. Preferimos adorá-los de longe e só pedir-lhes ajuda quando precisamos dela.
Mais uma vez, ele «se mostrou grave e alheado e ela ficou triste, sem saber em que o havia ofendido. Procurava não ofendê-lo nunca, não por medo, mas por respeito. E também em virtude de alguma coisa que se aproximava perigosamente do amor, coisa de que ela não suspeitava. Fora ensinada a nunca amar um homem. Isso levava a calamidades, dissabores, desesperos e à desintegração da personalidade de uma mulher, que se tornava uma escrava.
De outra vez, ele lhe deu uma intrincada bola de marfim esculpido de Catai. Havia nela interstícios e Aspásia viu outra bola menor dentro dela e, depois, outra bola dentro da segunda e mais outras, cada qual menor do que aquela em que estava encerrada. Não havia pontos de junção, nem qualquer indicação de como cada bola esculpida entrara na outra, e ela ficou perplexa. Al Talif explicou que a bola tinha sido originariamente de uma só peça, o envoltório exterior.
— Como então foram feitas as outras? — perguntou ela.
Ele se limitou a abanar a cabeça. Ela continuou maravilhada e insinuou a ponta do dedo, pintado de vermelho à moda oriental, nos interstícios. As bolas internas giraram; não estavam presas.
Então, imprevisivelmente, isso a afligiu,
— Você prefere soluções? — perguntou-lhe Al Talif.
Ele a tinha feito parecer absurda aos seus próprios olhos e ela, ao lado dele, olhou-o vivamente. A luz quente do sol bateu-lhe nos olhos que doeram, mas ela continuou a olhá-lo, vendo como a luz se esbatia nos planos escuros e bronzeados do rosto magro do homem como se incidisse sobre metal, acendia as grandes argolas de ouro das orelhas, mas não podia iluminar-lhe os olhos secretos. Al Talif tinha naquele momento uma expressão pensativa que ela havia visto de outras vezes e que sempre a perturbava.
A multidão estava bem perto deles, embora mantida a distância pelo grupo de eunucos ricamente vestidos e de espada em punho. Os homens os insultavam, mas se afastavam deles, pois sabiam que dentro daquele círculo estava um homem importante. Mas eram muitos os que o cercavam, vestidos em mantos sujos e empoeirados, pretos, amarelos e vermelhos, tendo à cabeça panos listrados presos com cordas de nós, os rostos ávidos e escuros, sôfregos como chacais, cheios de abjeção e curiosidade. Não reconheciam naquele homem vestido com riqueza, mas sem ostentação o governador da província, pois ele escondia a meio o rosto num capuz e vestia um manto de seda negra discretamente bordado de ouro. Nunca fazia essas excursões sem os seus homens. Preferia passar anônimo pelas feiras, sem receber as honras a que tinha direito.
Em dado momento, o vento ardente levantou parcialmente o capuz e o véu de Aspásia, revelando as madeixas dos seus cabelos dourados. Os homens que observavam tiveram uma exclamação de espanto ao ver não só os cabelos, mas também a brancura e o vermelho das suas faces e a sua beleza. Aproximaram-se para contemplar melhor essa visão incrível e chegaram a fazer pressão sobre os eunucos, cujas cimitarras brilhavam ao sol ofuscante. Al Talif não deu sinal algum de estar vendo a ralé da feira, mas empurrou Aspásia para trás dele, o que era a posição normal de uma mulher em companhia de um homem, e voltou para o carro. Os olhos de Kurda se esbugalharam de ódio por aquela mulher que punha em perigo o seu senhor. Seguiu Aspásia. Os eunucos, brandindo as espadas, protegeram a retirada. Aspásia, olhando apenas uma vez para trás, viu os olhos de Kurda ansiosos pela morte dela e, mais atrás, por entre as movimentadas barracas, os rostos atônitos da multidão, momentaneamente paralisada de admiração.
Não teve medo. Só quando estava de novo no carro com Al Talif, sentiu algum receio. Ele não disse uma só palavra e passou duas semanas sem sair com ela. Aspásia não lhe pediu qualquer explicação, pois sabia que isso irritaria Al Talif, que não julgava que as mulheres fossem dignas de ser esclarecidas sobre o procedimento dos homens.
Mas um dia ele a levou ao local onde Ciro havia derrotado Astíages, último rei dos medos, numa batalha da qual havia partido para uma carreira de conquista e poderio que só terminou quando ele chegou a ser o maior imperador de toda a história até então conhecida.
Proclamara-se rei dos persas e dos medos, unindo os dois povos sob um só império, num domínio invencível que se estenderia a todas as terras entre o Grande Mar e a Pérsia e até ao Egito e à Grécia.
Mandara construir no local um grande palácio, levantado em vários terraços na entrada para Fars, e ali nascera uma cidade para exaltar-lhe a glória. Uma grande coluna fora erguida ao lado do palácio de quatro lados, com uma inscrição em três línguas, susiano, assírio e persa, que dizia: "Eu sou Ciro, o Rei, o Aquemênida!". A grossa coluna circular, que se elevava para o incandescente céu azul, era ornada por uma figura alada e por uma reprodução gravada do túmulo de Ciro.
O silêncio os rodeava, o silêncio que seguia invariavelmente a partida dos poderosos e dos grandes, dos que são superiores aos outros homens, e o vento do deserto soprava impetuosamente no vale. Aspásia sentiu-se tomada de respeito e perguntou:
— Ele era um aquemênida?
— Sim — respondeu Al Talif, olhando para a coluna gigantesca. — Era também um pequeno chefe de tribo até que enfrentou Astiages, o poderoso rei medo, e o derrotou aqui.
Aspásia olhou com curiosidade a seu senhor.
— Não tem ódio dele? — perguntou Aspásia.
Ele lhe devolveu o olhar com uma mistura de zombaria e exasperação.
— Claro que não! O Rei Ciro era divino. Embora fosse apenas um pobre governante tributário de Anshan, conseguiu o que parecia impossível, unindo os medos e os persas para deles fazer a coroa preciosa e invencível do mundo. Nós, medos, veneramos a sua memória. Foi um herói nobre, misericordioso e justo, que homenageou as mulheres que tinham observado a batalha. Pense bem. Ele foi como um dos seus gregos que enfrentaram Xerxes nas Termópilas e em Salamina, dispondo apenas de armas primitivas. Podia ser comparado ao seu Leônidas espartano...
— Sou jônia e não espartana ou ateniense.
Ele não deu atenção à réplica e murmurou:
— A maior das virtudes é a coragem, a mais heroica. No campo da coragem, um chefe humilde se iguala a um imperador, pois ambos empunham a mesma bandeira. Já visitei o túmulo de Ciro, com a sua cripta de ouro num terraço em ascensão de blocos de pedra branca parecidos com as pirâmides do Egito. A mulher dele era egípcia e eu li a inscrição do túmulo, que é a seguinte:
"Homem, quem quer que sejas e de onde quer que venhas (porque sei que virás), eu sou Ciro, que fundou o império dos persas. Não me invejes o punhado de terra que me cobre o corpo."
A voz dele, dentro do silêncio profundo, era sonora, dominante e até comovente. Aspásia se sentiu muito abalada. Al Talif afastou-se então dela e voltou, ao seu jeito abrupto, para o carro. Aspásia seguiu-o em silêncio. Uma vez no carro, com um escravo a protegê-la do sol com um guarda-sol vermelho, disse a Al Talif:
— Um punhado de terra. É para onde vão reis e escravos e é também o fim de toda a glória e toda a servidão.
— É também o fim de todos os cães vadios — respondeu ele como se responde a uma criança.
— Você me acha ridícula, não é? — perguntou ela.
— Infelizmente, você é apenas uma mulher — disse ele, beijando a mão de Aspásia ao ver-lhe o olhar magoado, — Mas não são sempre as mulheres que conquistam, enquanto os homens, até os mais poderosos, são apenas escravos delas?
Se algum homem de sua raça dissesse isso, ela poderia sentir-se aplacada. Mas dele só podia pensar que zombava dela apesar dos seus beijos, dos seus sorrisos indecifráveis e das suas palavras amáveis. Todos os homens eram na verdade estranhos, mas aquele era o mais estranho de todos. Aquela era uma das ocasiões em que tinha medo dele porque não o compreendia. Era caprichoso, ao mesmo tempo terno e cruel, cruel como uma criança pode ser. Em outras oportunidades, era grandioso e magnânimo, parecendo ainda mais civilizado do que os atenienses. Às vezes, era simples e direto como a água clara; em outras, era tão enigmático quanto a bola de marfim que lhe tinha dado. Por que a desejara ele na casa de Targélia? Nem sabia se ele tinha verdadeira afeição por ela. Acreditava que não era a sua beleza que entusiasmava e encantava aquele oriental. Receava com frequência que não era sua inteligência, o seu conhecimento ou as suas artes que o cativavam, pois quando ela se mostrava mais séria e sincera ele começava a rir, ainda que elogiasse essas suas qualidades. Sentiria ele a sua partida? Tinha a impressão de que ele a esqueceria no instante em que deixasse de vê-la. E ela sentiria a falta dele? Claro que sim, ó deuses!
Ela colocou as mãos sobre os olhos e procurou não chorar, pois as lágrimas já lhe faziam arder as pálpebras.
Teve um pensamento horrível. Seria possível que ela apenas o divertisse durante algum tempo como uma novidade e, por isso, ele lhe cultivava a companhia e tolerava a presença? Exibia-a diante de seus convidados como exibiria um animal de estimação excepcional, mas desprovido de humanidade, que sabia fazer truques divertidos e encantadores, simulando forma humana? Divertia os convidados, como divertia o seu senhor, e pelas mesmas razões?
Essas coisas voltaram a mortificá-la. Resolveu que na próxima festa ficaria sentada em silêncio, sem sequer sorrir, fingindo imbecilidade. Se Al Talif ficasse aborrecido com ela, que ficasse!
Começou a pensar na sua última visita à feira e às barracas onde se vendiam escravos.
Tentara sempre evitar o triste espetáculo. Voltava para o carro e ali ficava sentada sob o toldo listrado de vermelho e branco a abanar-se com um leque de penas cravejado de joias enquanto Al Talif regateava preços com os ruidosos e gesticulantes vendedores. Vivera cercada de escravos na casa de Targélia, mas desde muito cedo se insurgira contra a degradação a que eram sujeitos os seres humano a quem os gregos consideravam como simples "coisas". Além disso, havia estudado diligentemente as leis de Sólon e sabia da esperança do sábio de que a escravidão fosse um dia banida pelas nações civilizadas. Entretanto, os escravos eram considerados bens valiosos na Grécia e os estados que lhe eram subordinados. Mereciam alguma atenção dos seus senhores e eram com frequência amados e favorecidos, educados, quando eram inteligentes, e consultados.
Não era o que acontecia no Oriente. Os senhores tinham poder de vida e morte sobre os seus escravos e podiam ordenar-lhes a destruição sem mais compaixão do que se esses escravos tivessem sido cães danados ou criminosos. Na Grécia, havia algumas leis que protegiam a vida dos escravos e os colocavam de algum modo salvo dos castigos monstruosos.
Só uma ou duas vezes, percebendo a aversão dela, Al Talif exigira que Aspásia estivesse presente enquanto ele comprava escravos. Ali, em grandes barracas cobertas, de pé numa plataforma, viam-se homens, mulheres e crianças de todos os estados e idades e de muitas raças, desde os etíopes e árabes mais escuros aos homens de marfim claro da índia ou de Catai e aos povos bárbaros ainda sem nome de olhos azuis e cabelos claros. Ali ficavam em silenciosa resignação como animais amarrados. As mulheres tinham panelas à sua frente para indicar que eram cozinheiras e ajudantes de cozinha; meninos e meninas tinham os corpos cobertos de unguentos como uma proteção contra o sol violento. Havia velhas que sabiam coser. Viam-se rapazes castrados que exibiam as suas mutilações e tinham rostos lisos como os de meninas. Havia velhos cujas mãos mostravam que eram jardineiros, trançadores de vime ou aguadeiros, enquanto as moças tinham cartazes que lhes atestavam a virgindade e usavam escassas roupas que deixavam ver os cabelos púbicos tratados ou rapados, com os bicos dos seios pintados de vermelho. Crianças agarravam-se desesperadamente ao peito das mães. Homens jovens acorrentados estavam prontos para os trabalhos pesados e havia velhos com tabuinhas, rolos de pergaminho e estiletes que os identificavam como escribas. Viam-se ainda dançarinas com tamborins, belas como estatuetas, e parteiras com os apetrechos do seu ofício.
Todos, sem exceção, mostravam aquela expressão de resignação ao destino, embora, às vezes, vendo um homem refinado como parecia Al Talif, uma leve esperança se lhes acendesse nos olhos. Al Talif ia de um escravo para outro, com o dedo escuro nos lábios. Examinava as mocinhas como examinaria animais, separando-lhes as coxas e olhando-lhes as partes como entendido, verificando a firmeza dos pequenos seios, sentindo os músculos fortes de um homem ou contemplando as cicatrizes dos rapazes castrados para ter certeza de que não havia possibilidade de invalidez ou de infecção. Nunca falava com os escravos. Entendia-se apenas com os mercadores, fazendo perguntas, regateando, dando de ombros.
Aspásia nunca estivera num mercado de escravos e ficou horrorizada. Al Talif, que era tão delicado e gentil em sua casa, exibia ali uma insensibilidade em que Aspásia achava difícil acreditar. O seu tratamento dos escravos não tinha qualquer delicadeza. Era rude e perito. O pior de tudo para Aspásia era que os escravos não tinham um só gesto de revolta ou de repulsa ante as indignidades de que eram vítimas, algumas das quais eram muito íntimas e perversas. Al Talif nunca deixava de examinar certas moças para ter certeza de que eram virgens, Aspásia fechava os olhos, revoltada, quando pressentia a introdução do indicador. Outras vezes, ele levava para o mercado homens que achava incompetentes ou mulheres de quem se havia cansado e os vendia como se fossem gado.
Por fim, ela disse um dia:
— Senhor, não me leve mais para os mercados de escravos. Para mim e uma coisa insuportável.
Ele arqueou as sobrancelhas com espanto e a olhou como se olharia uma curiosidade.
— Acha que se deve comprar um cavalo ou uma vaca sem verificar se estão em bom estado e em condições de prestar bons serviços?
— Mas não se trata de cavalos e vacas. Os escravos são tão humanos quanto eu e você.
Ele riu, olhou-a com incredulidade e em seguida deu-lhe as costas.
— Ainda que o aborreça e ainda que me exile, não irei mais ao mercado de escravos.
Para surpresa dela, depois de olhá-la fixamente, ele encolheu os ombros. Mas nunca mais a forçou a acompanhá-lo ao mercado de escravos.
Ela havia chegado naquela noite à conclusão de que ele a detestava. Tinha deixado de corresponder à paixão dele e se conservara nos braços dele inerte e sem resistência como uma escrava. Ele a olhara à luz das lâmpadas douradas e de cristal e vira a repulsa e o rosto apartado dela. Homem sutil e intuitivo, havia compreendido. Afastou-se dela e Aspásia afinal se levantou e foi para o seu quarto com o coração mais frio do que a neve de inverno nas montanhas. Al Talif não pareceu tomar conhecimento da partida dela.
Ela se deitara na sua cama, sem sono, e chorara, não sabia se de desgosto ou de tristeza. Ele não a chamou durante vários dias e cada dia era marcado de sofrimento para ela. Quando, uma noite, ele mandou um eunuco chamá-la, ela se levantou imediatamente da cama e se vestiu como uma noiva, trêmula de alegria. Sentia também alguma vergonha, mas sua satisfação afinal superou isso e ela entrou no quarto dele com um sorriso tão radioso que ele mais uma vez se emocionou com a beleza de Aspásia. Ele tirou as roupas que lhe cobriam os ombros e lhe encheu o busto de pétalas de rosas, com o rosto cheio de ternura e contentamento.
— Você é uma tola, minha adorada pomba de peito branco. Mas eu já a perdoei. Dê-me esses lábios mais doces e macios do que essas rosas.
Ela já lhe havia dado antes a sua paixão, mas se superou naquela noite, quase soluçando de emoção e prendendo-o nos braços alvos como em desespero. Mas, quando voltou para o quarto dela e se lembrou, ficou muito vermelha de recordação e de embaraço.
Pensava também em coisas desconcertantes e arrasadoras que lhe haviam acontecido naquele dia. No jardim, sentira os olhos malignos de Kurda a observá-la dos portões do palácio. Vendo-a triste e de cabeça baixa, dissera para si mesmo, decerto com o fervor do seu ódio: "A estrangeira está triste. Desagradou a meu senhor? Permita Mitra que assim tenha sido, pois dentro em breve será banida!"
Sentindo o olhar do eunuco, Aspásia levantara a cabeça e, vendo o ódio que se estampava naquela cara repulsiva, sentiu um frio no coração e uma solidão como nunca sentira em toda a sua vida.
Capítulo 10
Aspásia havia considerado a situação das mulheres na Grécia bem ruim, mas na Pérsia era muito mais terrível. Livre ou escrava, filha, irmã ou esposa, concubina ou cortesã, sultana ou mãe ou prostituta miserável, as mulheres eram menos que pó diante dos homens. Eram como objetos desprezados. Eram ridicularizadas, escondidas por serem vergonhosas, suspeitadas dos instintos mais baixos, irrequietas como macacos, desprovidas de senso como sapos, tão impuras sexualmente como cães, estupidamente vaidosas como pavões, traiçoeiras como animais selvagens, imundas, corruptas, sem alma, maliciosas, ávidas como gansos, irascíveis e instintivamente malévolas, privadas de verdadeiras características humanas. Eram também julgadas incapazes de raciocínio, sendo simplesmente tagarelas e pretensiosas. Nada possuíam, nem sequer os seus corpos. Desde que a Pérsia era governada com o mais absoluto despotismo e não mostrava nem os aspectos duvidosos da democracia corrupta, as mulheres não tinham recurso algum contra as leis que as consideravam mais baixas do que os animais. Tinham apenas uma função ou partes de funções: proporcionar um dote aos homens com quem se casavam, conceber filhos para seus maridos ou senhores, trabalhar, divertir, dar prazer. Se não possuíam qualquer desses atributos, as leis não lhes protegiam nem a vida. Se uma menina recém-nascida não era querida pelo pai, não era exposta às intempéries até morrer, nem adotada por uma mulher sem filhos, nem vendida a um mercador de escravos. Era simplesmente estrangulada e jogada no lixo para ser comida pelos cães selvagens ou pelos chacais. As mulheres eram impuras até quando nasciam e quem as estrangulava eram as parteiras, pois nem mesmo de um escravo se poderia exigir isso.
Na Grécia, se uma matrona pertencia a uma casa nobre, rica ou ilustre e se possuía irmãos e pai, tinha muita autoridade dentro de sua casa e os maridos às vezes a temiam. O seu dote, ainda que entregue ao marido, tinha de ser fiscalizado pelos banqueiros e pelos homens de sua família. Quando se divorciava ou ficava viúva, o dote lhe era restituído com juros devidos e os lucros acrescidos. Se uma mulher tinha filhos, recebia consideráveis homenagens do marido e, ainda que fosse relegada aos aposentos das mulheres, não pudesse ser vista por homens estranhos, não pudesse sair senão em companhia das mulheres que a serviam, nem sentar-se à mesa com o marido, não deixava de gozar de certa posição e respeito. Depois, havia as heteras, belas, instruídas e desejadas, que eram muitas vezes extremamente poderosas e adoradas pelos homens, embora odiadas pelas matronas virtuosas.
Embora, de acordo com as leis gregas, a mulher fosse presumidamente incapaz de gerir negócios pessoais, podia, diante de atos de crueldade ou violência do marido, enviar uma queixa ao arconte, protetor legal dos incapazes, o qual julgava se ela tinha direito ou não ao divórcio e à separação do marido, além da restituição do dote. Até as mulheres mais pobres e mais humildes tinham o direito de assim agir. Os ricos contratavam advogados eloquentes, pagos pela família da esposa. Em muitos casos, o arconte aceitava as alegações e libertava a mulher do seu casamento.
Na verdade, nos tempos homéricos e minóicos, as mulheres tinham quase tanta importância e valor perante a lei quanto os homens. Foi depois que Atenas e as cidades que lhe eram subordinadas caíram sob o domínio dos tiranos e da democracia que as mulheres perderam a sua posição nos assuntos públicos. Antes desse tempo, as mulheres votavam nas eleições, escolhiam maridos para as filhas, tinham bens próprios, divorciavam-se à vontade dos maridos e decidiam sobre o homem com quem se iam casar. Tinham também autoridade sobre os filhos e escolhiam mulheres para eles. Tinham o direito protegido por lei de herdar dos maridos e dos pais.
Eram mulheres como Aspásia, heteras e esposas de considerável inteligência, riqueza e instrução, que estavam lutando para melhorar a posição das mulheres na Grécia e fazê-las voltarem aos velhos direitos e privilégios de que tinham outrora gozado e que gostariam de ver restabelecidos.
Mas a Pérsia não tinha uma história assim e Aspásia vivia em rebelião. Era bem verdade que ela reinava sobre a casa mais até que as esposas de Al Talíf e que todos atendiam aos seus desejos, com exceção de Al Talíf. Entretanto, ela sabia que isso lhe era concedido, não em virtude dos seus direitos naturais como pessoa humana, mas porque era uma amante mimada, cujos privilégios eram tênues e poderiam ser anulados a qualquer momento por um capricho do senhor. Assim acontecera com Narcissa, e Aspásia pressentia que o seu destino seria o mesmo de Narcissa quando Al Talif se cansasse dela. Chegara muito recentemente à conclusão de que Al Talif não tinha verdadeira consideração nem por ela nem pelo seu espírito e se divertia simplesmente com ela, achando ridículas as suas "presunções" de ser inteiramente humana, conquanto apreciasse as artes amorosas, inclusive as perversões, que lhe haviam ensinado.
Aspásia estava errada nisso, mas não tinha meios de apurar a verdade. Al Talíf lhe elogiava a beleza e o gosto em vestir-se e em escolher perfumes, agradava-se das suas seduções, mas raramente ou nunca lhe louvava os aforismos ou as opiniões. Foi muito depois que Aspásia compreendeu, como Targélia lhe havia dito, que os homens, até mesmo um homem como Al Talif, sentiam um medo antigo e primordial das mulheres. Targélia afirmava isso, mas Aspásia ainda não vira o menor sinal desse medo. Tinha aprendido que o mesmo podia ser habilmente usado e manejado por uma mulher para tirar vantagem de um homem. Aspásia não acreditava nisso. Podia ser verdade com os homens do Ocidente, mas certamente não o era no Oriente!
Tinha apenas dezoito anos e ainda não lhe ocorrera que os homens em toda parte usavam medidas punitivas contra as mulheres, cercando-as de reservas e depreciando-as, baixando leis para contê-las, desumanizá-las e humilhá-las, justamente em consequência desse medo primitivo.
Sabendo embora que a sua presença era malvista no harém, onde as mulheres a consideravam uma estrangeira suspeita, invejam-na e repeliam-na, desejando que ela fosse rejeitada, ia todas as manhãs à parte do palácio reservada às mulheres. As quatro esposas costumavam também visitar o harém e ficar entre as concubinas e escravas, escutando a música e as canções dos alaúdes, harpas, citaras, címbalos e tamborins, e assistir às danças eróticas, comendo doces e pastéis e bebendo vinho. Reclinavam-se em macias almofadas de seda enquanto as escravas lhes cuidavam dos cabelos e as outras mulheres as distraíam. Havia muitos falatórios, risos e um geral contentamento feliz. Contavam-se histórias obscenas e as escravas lhes levavam crianças, que as mulheres e concubinas que tinham dado filhos a Al Talif admiravam pela sua beleza, brincando com elas. Algumas escravas letradas liam poesias para as mulheres gordas e sonolentas do harém. Havia sempre lágrimas quando os versos falavam em amor, em luar e na tristeza das separações eternas.
Se Aspásia fosse mais velha e compreendesse mais a vida, perceberia que as mulheres do harém e as esposas viviam felizes, e nada mais desejavam além daquele conforto lânguido, dos prazeres da mesa, do vinho e da música. Não conheciam nada melhor. Nunca se queixavam da sua degradação, pois que mais poderiam desejar além da proteção e dos favores do senhor? Era uma alegria suficiente na vida e elas tudo aceitavam com serenidade.
Aspásia julgava isso incrível. Não podia compreender que nenhuma daquelas mulheres não desejasse secretamente a sua dignidade e liberdade, para adquirir estatura humana. Até as mulheres gregas se estavam agitando inquietamente e os arcontes, mesmo contra a vontade, as escutavam. Se as mulheres gregas estavam alimentando no coração cada vez maior insubmissão em face da sua subordinação e do desprezo masculino, aquelas mulheres da casa de Al Talif não podiam deixar de sentir tais anseios, pois não tinham todas as mulheres a mesma natureza e os mesmos desejos, por mais que vivessem oprimidas? Aspásia estava ultimamente determinada a atiçar esse fogo, ativar essa rebelião incipiente e elevar o seu sexo. Inspiravam-na um medo instintivo, a indignação e principalmente o orgulho.
Durante esses três anos, nunca se esquecera do que Hesíodo dissera: "Se todos os dias juntares um pouco a um pouco e fizeres isso sempre, dentro em pouco isso se tornará grande". Acreditava que tinha juntado "um pouco a um pouco" todos os dias no harém e que "dentro em breve" as esposas e concubinas compreenderiam a indignidade em que viviam e protestariam contra ela.
Por isso, visitava o harém todos os dias e não se importava com os risinhos, os olhares de incompreensão, o desprezo divertido e até o ódio e a inveja das mulheres que a consideravam insolente e pouco feminina, sem entender palavra de suas conversas e de suas exortações. Na realidade, estavam começando a acreditar que ela ameaçava a vida feliz que levavam. Quando estavam na cama com Al Talif, murmuravam impertinentemente contra ela, tentando dizer que ela era uma fonte de agitação e uma louca que devia ser banida. Não podiam compreender por que ele não lhes escutava as advertências. Algumas proclamavam que ela era uma feiticeira e havia enredado o senhor em seus sortilégios maléficos, enquanto outras conjuravam os astrólogos e os magos do palácio para que livrassem Al Talif desse encantamento maligno. Desde que os astrólogos e os magos também desprezavam Aspásia e tinham queixas dela, concordavam com prazer. Faziam o horóscopo de Al Talif e lhe diziam que os infortúnios o acometeriam por intermédio da mulher estrangeira, a qual possuía um demônio que se considerava insultado e ria de todos eles.
— Seria bom que houvesse mais feiticeiras assim em meu palácio — dizia Al Talif. — Seria um lugar muito mais agradável.
Se soubessem que ele a amava — segredo que ele escondia até da própria Aspásia com receio de que ela o explorasse — julgariam todos estar ouvindo as palavras de um louco, pois qual era o homem que podia amar uma mulher, salvo na poeira, que não fazia parte da vida, mas era apenas um divertimento para as horas de lazer e de sonho?
Certa manhã, bem cedo, Aspásia atravessou o palácio sozinha, dos seus aposentos magníficos até ao harém. Usava um traje oriental e não a túnica ou o peplo da Grécia. O vestido era azul, cor que Al Talif preferia, pois afugentava os espíritos maus. Era justo e revelador nos ombros, no busto, na cintura e na barriga, descendo depois em amplos folhos e pregas bordados a ouro. Não levava nada à cabeça e os cabelos flutuavam como uma nuvem clara, chegando-lhe até aos quadris. Os braços estavam em parte descobertos e ostentavam muitas pulseiras cravejadas de pedras. As sandálias eram também recamadas de pedra sobre os arcos brancos e os dedos pintados. O rosto forte, mas delicado estava sério, como o estavam os olhos cor de topázio. Os eunucos e os guardas viram-na passar. Os guardas a desejaram e até os eunucos sentiram estremecimentos nos seus corpos mutilados. Todos a julgavam um espírito mau, pois como uma mulher simplesmente humana poderia possuir tamanha beleza, ter movimentos tão graciosos, movimentos tão fluídos, tanta brancura rosada e dourada? Até o seu ar majestoso era admirável, estranho e imponente. Acreditavam até que ela não comesse, pois não engordava, e os demônios não se nutriam de comida humana. Subsistiam graças a indizíveis abominações. Dizia-se que ela conversava à mesa com o senhor como se fosse um homem e só isso apavorava os habitantes do palácio, que diziam em segredo que ela não era uma mulher, mas uma demoníaca aparição masculina. Era, portanto, impura e perigosa. Cada homem, cada eunuco, cada guarda fazia o gesto contra o mau-olhado quando ela aparecia.
Passou pelos corredores brancos e cintilantes, cujas portas eram cerradas pelas cortinas de seda azuis, vermelhas e amarelas, com o chão coberto por belos tapetes persas. Almofadas de seda e mesas chinesas se alinhavam junto às paredes, ao lado de imensos vasos cheios de flores. Dos arcos gradeados voltados para os jardins, vinham os cheiros fortes das flores, da água e da resina, de mistura com os gritos dos papagaios e dos pavões, o grasnar dos patos e os cantos dos jardineiros. Por toda parte, havia os reflexos ondulantes das fontes e o sol, batendo no chão, nas paredes e nos mosaicos, parecia estar pintando tudo de novo. Havia ao longe a música de citaras e harpas, o som abafado de risos femininos e os passos apressados de algum escravo no chão de mármore.
Era ainda muito cedo, mas já havia vida e movimento no palácio com a presença de muita gente. Aspásia chegou às portas duplas de bronze que davam para o harém. Guardavam-nas enormes eunucos, de cabeça rapada, gordos, nus da cintura para cima, vestidos com calças e turbantes bordados, tendo nas mãos grandes espadas nuas. Tinham correntes de ouro nos pescoços roliços e pulseiras de ouro nos braços. Os sapatos de couro dourado eram virados para cima nas pontas. Olharam Aspásia sem a menor gentileza, embora com respeito. Ela notou que faziam o gesto contra o mau-olhado e sorriu, deixando brilharem os dentes brancos. Mas teve de esperar que lhe abrissem as pesadas portas de bronze, o que fizeram sem qualquer pressa.
Ela entrou no grande salão onde as mulheres costumavam ficar. O ambiente ali era mais escuro, pois a luz se coava através de grades de ébano, esculpidas de Catai, havia grossos tapetes uns por cima dos outros, as paredes eram cobertas de cortinas de seda e por todo o chão estavam espalhadas almofadas de todas as cores, divãs macios e uma infinidade de mesas da índia cobertas de cestas com frutas, doces e bolos, urnas cheias de vinho já àquela hora da manhã e muitas flores nas mesas e no chão, de modo que o ar ali, mais quente do que nos corredores, tonteava, ainda mais com os cheiros fortes de almíscar e a falta de arejamento, embora as numerosas escravas nunca deixassem de agitar os enormes leques de penas de avestruz. Havia também um cheiro de suor perfumado, que era repugnante para os sentidos ocidentais. Aquele excesso de luxo nunca deixava de desagradar a Aspásia, que o julgava lascivo, sufocante e intolerável. Tudo cheirava a carne de mulher, indolente e dissipada, cheia de óleos, de suor e de sensualidade. Parecia a Aspásia um voluptuoso canil de cadelas mimadas, constantemente no cio e produzindo ninhadas. Apesar de tudo, havia na casa de Targélia uma certa atmosfera de austeridade controlada e elegante, de reserva civilizada.
Julgava o harém depravado, com uma depravação do espírito que não se conhecia em Mileto ou na Grécia. Pensava muitas vezes que a complicação, o supercomplexo e bordado, os requintes de luxo que visavam ao conforto animal eram não só repugnantes, mas também decadentes e dissolutos. Tendo uma mentalidade ocidental, sentia-se revoltada com a redundância, com o acúmulo de detalhes sobre detalhes, que enfartava como o exagero carnal. Nunca podia ficar em pé de igualdade com a mentalidade oriental e aceitar o exagero de ornamentação. De um modo especial, isso a cansava e oprimia.
Teve consciência da hostilidade com que foi recebida. O harém estava cheio de mulheres que conversavam, faziam música barulhenta e riam. Crianças nuas corriam de um lado para outro, enchendo a boca de comida, pedindo alguma coisa às mães ou brigando. Alguns macacos pequenos se penduravam nas cortinas e guinchavam, enquanto gatos miavam e subiam às mesas para devorar a comida e papagaios gritavam em gaiolas douradas. O ar quente e abafado parecia a Aspásia a própria atmosfera malcheirosa do Hades. Havia um cheiro fétido, um odor enjoado de frutas que começavam a apodrecer, tâmaras, figos, laranjas e melões, em belos vasos esmaltados chineses. Até das flores subia um eflúvio doentio.
As mulheres gordas e lustrosas de óleo, com calças ricas e casacos; apertados, se reclinavam em almofadas tão balofas quanto elas ou em macios divãs, sem véus, lânguidas, sorrindo, conversando, rindo, brincando com as crianças ou repreendendo escravas que exageravam a mão com as escovas de cabelos e os pentes, aplicando cosméticos e perfumes, coçando as cabeças ou os corpos voluptuosos, murmurando indecências ou castigando uma criança mais exigente. Os leques de penas de avestruz não refrescavam nem afugentavam por muito tempo os enxames dê moscas que enchiam insistentemente os pratos de comida e de doces. A música soou desagradavelmente aos ouvidos de Aspásia, pois lhe pareceu discordante e incoerente.
Por muito tempo, Aspásia tentara ensinar as concubinas mais jovens a ler e a escrever, a apreciar as obras de arte e até um pouco de filosofia. A princípio, as jovens pareceram interessadas e até aprenderam um pouco. Depois, a sua natural indolência se fez sentir e elas perguntaram, nas suas vozes amuadas, que interesse aquilo poderia ter para elas.
Ela respondera:
— Como seres humanos que são, têm o direito de conhecer e compreender o mundo.
Ouvindo isso, as mulheres mais velhas riram e disseram:
— Para nós basta conhecer os homens.
Aspásia se lembrou dos ensinamentos de Targélia e reconheceu com relutância que esse conhecimento era de fato o que havia de mais importante no mundo, mas que uma mulher tinha também espírito e alma e tinha obrigação de cultivá-los.
Quando ela disse isso às mulheres, elas se espantaram e encolheram os ombros ante essas ideias bárbaras. Tinham tudo que um homem pode dar-lhes. De que mais precisavam ou que queriam mais? Depois, quem já ouvira dizer que as mulheres tinham alma e espírito longe dos homens? Era um verdadeiro absurdo. A vida que levavam era agradável. Não era exatamente para isso que tinham sido criadas? Diante dessa argumentação falsa, da convicção branda e superior das mulheres, Aspásia não tinha outro caminho senão desesperar.
Entretanto, havia insistido. Naquele dia, quando entrou e foi envolvida pelo barulho das conversas, pelos sorrisos de zombaria, pelas bocas que se empanturravam de comida, pelo barulho do tamborim, da citara, da harpa, da flauta e da lira, e pela algazarra das crianças, viu, com um vago alarma, que era Kurda que estava estacionado no harém em lugar dos eunucos habituais. Estava meio escondido atrás de um reposteiro e Aspásia recuou instintivamente, tão fortemente o desprezava. Os olhos do eunuco brilhavam como os de um animal selvagem na escuridão. Não podia deixar de tomar conhecimento dele e de sua espada deliberadamente desembainhada.
Esperou até haver um relativo silêncio, tentou não ver o sorridente repúdio nos olhos das mulheres, o desdém invejoso que sentiam por ela, a disposição com que esperavam as suas palavras, como se esperam as palhaçadas de um comediante.
Disse então:
— Devem ter notado que sou a favorita de nosso senhor, o nobre Al Talif, e isso as tem feito ressentidas e infelizes. Já pensaram algum dia em saber por que ele preferiu a mim?
Elas pensaram nisso, trocando breves olhares furtivos. Por fim, uma das esposas, sentada num divã, disse:
— Você o faz rir e ele precisa de riso como um rei precisa de um bufão para diverti-lo. Nós servimos às mais profundas necessidades e paixões dele, coisa que você não pode fazer. Ora, você ainda não lhe deu nem um filho. Por isso, ele não a considera senão como um jogral, um saltimbanco, uma dançarina sem a menor importância.
Ela falava de puro despeito, pois sabia que Aspásia era tratada na casa como se fosse uma rainha.
— Eu lhe falo à alma e ao espírito — disse Aspásia, muito pálida e orgulhosa.
As mulheres deram gargalhadas, descansando a cabeça nos ombros umas das outras, batendo as mãos entre si, fingindo-se exaustas de tanto rir, estendendo-se nas suas almofadas de muitas cores e dando suspiros de assombro. As escravas riam também e as crianças gritavam alegremente sem saber por quê. Todo o harém foi sacudido por uma onda de alegria zombeteira. O próprio Kurda riu da estrangeira. Só ali Aspásia encontrava a sua verdadeira posição de escrava rejeitada.
Uma das esposas disse:
— Na noite passada, o senhor me chamou para a sua cama, mostrou prazer com os meus esforços e eu dormi aos pés até amanhecer o dia. Recompensou-me então com um presente e um sorriso. Onde estava você, Aspásia de Mileto?
— Hoje de manhã — disse uma concubina de cerca de treze anos — meu senhor me chamou para dar-lhe prazeres excepcionais. Atendi-o bem e ele disse que eu era deliciosa. Onde estava hoje de manhã, Senhora?
Eu estava na biblioteca lendo, pensou Aspásia. Apesar disso, sentia-se terrivelmente humilhada, diante de tudo que sabia de Al Talif e do seu harém. Ele nunca falava daquelas mulheres com ela e Aspásia julgava que elas não tinham importância para ele.
— Vou dar ao senhor o seu terceiro filho — disse a segunda esposa. — Está por acaso grávida, Aspásia de Mileto?
É um absurdo sentir-me traída, pensou Aspásia. Sou uma hetera e a principal concubina de Al Talif. Por que então hei de sentir-me degradada?
— Ele voltou ontem da cidade, cansado — disse a terceira esposa. — Chamou-a por acaso para a sua banheira de mármore verde para ungir-lhe o corpo, massageá-lo e fazer-lhe carinhos? Convidou-a ele então para entrar também na banheira e entregar-se a atos de amor e ternos consolos? Brincou com ele como se fosse uma fêmea de golfinho perseguida por um macho? Vestiu-o depois em roupas macias e lhe deu vinho enquanto ele se reclinava e cantou docemente até que ele dormisse? Onde estava você, Aspásia sábia? Saiba que tenho de novo em mim um filho dele.
Eu estava meditando nos versos de Hesíodo, pensou Aspásia e se sentiu mortifícada. Nunca Al Talif lhe havia pedido essas coisas, como pedia às suas esposas e concubinas,
Era formalmente chamada à sua cama quando ele a desejava e então se acariciavam e amavam, mas de nenhum outro modo ele lhe pedia que o servisse do mais fundo de seu coração de mulher. Depois do ato do amor, ele discutia com ela poesia, política, arte e filosofia, com a cabeça voltada no travesseiro para ela até adormecer. Esquecia que os braços dele ainda podiam cingi-la como se ela fosse um tesouro. Quando se tratava de prazer e de divertimento, mandava chamar suas mulheres ou suas escravas e uma terrível tristeza a dominou e ela temia que fosse a tristeza do amor.
Refugiou-se então no seu orgulho. Era jônia, fora educada, era um ser humano e não um simples objeto como aquelas mulheres. Era um pobre consolo, mas apegou-se a ele. Al Talif podia divertir-se à vontade com aqueles animais que ela em vão tentara elevar à condição humana. Ela possuía o espírito dele e era respeitada, como esperava, e podia diverti-lo com epigramas, histórias e filosofias. Não era essa a melhor parte? Tinha as suas dúvidas.
Notou então duas meninas nuas que brincavam com as outras crianças e a quem não se lembrava de já ter visto. As escravas de instante a instante as agarravam para massagear-lhes o corpo com óleos e pentear-lhes os longos cabelos que trançavam com pérolas. Não deviam ter ainda sete anos, eram lindas e tinham pele azeitonada, estando ainda muito longe da puberdade. Os seus corpos infantis eram lisos e vulneráveis e as suas partes privadas eram fechadas e tenras. Tinham como únicos ornamentos brincos de pérolas e esmalte. Mas os olhos infantis estavam besuntados de pintura, as faces gordas reluziam de unguentos e as vozes eram estridentes e pueris. Corriam e brincavam com as outras crianças até que eram de novo agarradas. Uma comia com prazer uma romã e a outra apertava de encontro ao peito sem seios uma boneca, à qual beijava e mostrava às outras, esperando sem dúvida que a admirassem. Eram como cordeirinhos recém-nascidos e Aspásia se sentiu emocionada.
— É a primeira vez que vejo essas meninas — disse ela. — Quem é a mãe dessas gêmeas?
As mulheres riram e uma delas disse:
— O senhor as comprou ontem no mercado de escravos, como um presente para um grande mercador de Damasco.
Aspásia ficou aterrada e pensou em Cléo que, aos treze anos e antes de ter chegado à puberdade, fora entregue a Cadmo.
— Para ser criadas? — perguntou ela. — Já estão na idade?
As mulheres riram ainda mais e se balançaram nas nádegas gordas.
— Não. Vão ser concubinas — disse uma delas.
— Mas elas vão morrer — disse Aspásia sem poder acreditar.
A esposa mais velha disse com um ar de superioridade à bárbara:
— Elas já receberam hoje os instrumentos fálicos de marfim.
Aspásia notou então vestígios de sangue nas coxas das meninas.
Levou as mãos ao rosto e estremeceu. As escravas, vendo o olhar dela, limparam o sangue indiferentemente e passaram unguentos nas partes. As meninas gemeram um pouco e depois foram brincar com as outras.
Aspásia voltou-se para as quatro mulheres de Al Talif.
— Vocês, que são mães, não se revoltam com essa profanação, defloramento e tortura de crianças? Não acham isso abominável?
Elas a olharam com ironia e espanto.
— Não é para isso que as mulheres nascem? Para dar prazer aos homens? — perguntou a primeira esposa.
Aspásia compreendeu então plenamente pela primeira vez que o conceito oriental do sexo feminino era aceito pelas mulheres sem despertar contestação nem revolta, como um destino contra o qual seria absurdo insurgir-se.
A esposa mais velha, que não detestava Aspásia tanto quanto as outras, perguntou gentilmente:
— Por que procura destruir a nossa felicidade?
Aspásia fez um gesto amplo com os braços brancos.
— É isso a que chamam felicidade?
— Sim. Que mais poderíamos querer? Infelizmente, estrangeira, sua cabeça é atormentada por demônios turbulentos.
— Vou protestar junto ao senhor esta noite contra essa monstruosa tortura de crianças e pedir-lhe que as tire deste harém nocivo.
Em seguida, Aspásia saiu com o coração a bater de raiva e desgosto. Seguiu-a um coro de risadas das mulheres e ela se sentiu impura.
Capítulo 11
Aspásia fora chamada para comparecer naquela noite a um banquete dado por Al Talif em honra de alguns convidados ilustres. Foi banhada, ungida e perfumada por suas escravas, tendo os longos cabelos escovados com cheirosas loções. Exasperada de rebelião e horror com o que tinha visto no harém, não quis usar trajos orientais e escolheu uma túnica grega com debruns de prata e uma toga do mais fino linho egípcio da cor de uma pétala clara de jacinto. Penteou-se à maneira grega com fitas de prata, deixando descoberto pela túnica e pela toga o pescoço branco pelo qual passava um colar de pérolas. Não usou nenhuma cor nos lábios ou nas faces.
Quando se viu assim diante do espelho polido, teve a impressão de estar diante de Atena Pártenos, a deusa virgem da sabedoria, e tão imaculada quanto ela. O seu aspecto era austero e remoto e as escravas se sentiam intimidadas. Os olhos castanhos mostravam perigosos brilhos. Pretendia reprovar Al Talif com todos os gestos e com todas as entonações de voz. Enfrentá-lo-ia com os seus princípios ocidentais e o seu aborrecimento e, na cama, censurá-lo-ia friamente.
Embora ela devesse dissimular a sua raiva sob um tênue véu, naquela noite rejeitaria essa atitude. Era uma mulher de cultura e de importância e estava decidida mais uma vez impor-se a Al Talif. Era companheira dele e não escrava, concubina ou esposa condescendente. Podia deixá-lo quando bem quisesse. Pensou nas riquezas que ele lhe dera. Com o coração apertado, refletiu na ideia de deixá-lo e sentiu vontade de chorar.
Resolveu descansar num divã em seu quarto para pensar e coordenar o espírito antes de aparecer no salão dos banquetes. Pela primeira vez, o sussurro do vento nas árvores, o cheiro dos jardins e os gritos dos pássaros não a acalmaram. Tudo parecia em discordância, a zombar dela.
Compreendia que as mulheres orientais não tinham o menor respeito pela vida humana, tal como seus senhores ou talvez ainda menos. Deploravam o destino daquelas duas meninas como deplorariam o de uma mosca, de um gafanhoto ou de um rato.
Contra a sua vontade, começou a dormitar no calor lânguido do dia. Acordou em sobressalto ao sentir que lhe tocavam o ombro. Era uma escrava que lhe dizia:
— Senhora, o Senhor Al Talif pede a sua presença com urgência no quarto dele.
Era muito estranho. Ele nunca desejava vê-la tão cedo assim. Levantou-se, arrumou-se e tomou o caminho do quarto do sátrapa. Os corredores estavam excepcionalmente silenciosos e ela não viu ninguém.
Só ouviu o rumor de escravos que cantavam e tangiam instrumentos musicais.
Um eunuco estava de guarda à porta do quarto. Olhou para ela e abriu a porta com insolente lentidão. Ela entrou e fez uma reverência, como de costume.
Al Talif, cujo quarto era luxuoso e cheio de tesouros e perfumes, estava sentado aos fundos num divã. Estava esplendidamente vestido com calças escarlate, uma camisa de seda de uma alvura de neve e um casaco azul bordado com pedras preciosas. Tinha à cabeça um turbante imponente e o rosto moreno estava impassível. A sua atitude era reservada e vigilante, como a de uma pantera, que aguarda o momento do ataque. Não respondeu à saudação de Aspásia. Limitou-se a olhá-la sem qualquer expressão no rosto. Foi então que Aspásia viu Kurda ao lado dele. Tinha um chicote nas mãos e um sorriso malévolo lhe pairava no rosto gordo.
— Senhor — murmurou Aspásia, refazendo-se do choque provocado pela presença do eunuco.
— Fique diante de mim — disse Al Talif com uma voz que Aspásia não lhe conhecia.
Não era uma voz raivosa, emotiva ou exaltada. Era simplesmente indiferente, como de alguém que fala a um escravo. Aspásia estremeceu. Seria aquele o mesmo homem que a tomava apaixonadamente nos braços, chamando-lhe o seu lírio de Xalimar, a sua rosa da índia, a sua flor da lua e que agora estava ali tão frio e tão distante? Pela primeira vez, sentiu apreensão e desânimo. Tornou a olhar para Kurda e viu seu odioso ar de triunfo. Ergueu altivamente a cabeça e esperou. Al Talif continuava a olhá-la como se ela fosse uma escrava abaixo da sua atenção, que se havia insinuado impertinentemente na sua presença.
— Tenho tido muita indulgência com você — disse ele por fim. — Já há algum tempo, venho sabendo que anda aborrecendo as mulheres da minha casa com exortações dementes e com ataques às autoridades e aos costumes do nosso país. Não protestei. Cheguei a pensar que você poderia diverti-las ou dar-lhes alguma vivacidade com que elas pudessem divertir-me. Mas finalmente apelaram para mim e pediram que eu proibisse a sua presença como uma intrusão perturbadora e desagradável. Disseram-me que tentou levantá-las contra o meu prazer e o meu conforto. Não podem mais suportar as suas ridículas barbaridades ocidentais e delas resolvi agora libertar minhas mulheres. Não poderá mais visitá-las, a menos que consiga dominar sua língua e ser uma delas.
Aspásia esqueceu o seu medo e ficou muito vermelha.
— Não sou bárbara, senhor. Sou uma mulher livre e não uma escrava. Não sou uma concubina ignorante, nem uma esposa gorda e imbecil cujo único prazer consiste em comer, estender-se em almofadas e servir às suas vontades.
— Quem é você então? — perguntou ele, inclinando a cabeça.
Ela sentiu o coração bater.
— Sou sua companheira, a seu prazer, para conversar com você, à sua vontade. Nasci livre, sou educada e meu espírito tem sido admirado.
Ele abriu uma caixa de doces, tirou uma tâmara com mel e saboreou-a demoradamente, olhando-a.
— De que valem essas coisas para mim, mulher que eu comprei em Mileto? Paguei um preço muito alto a Targélia pelos alegados prazeres de sua companhia. Você não me agrada mais.
Aspásia se sentiu atordoada e alguma coisa muito grande lhe estalou no coração. Lágrimas lhe vieram aos olhos. Mas levantou orgulhosamente a cabeça e disse:
— Posso ir-me embora então e não cansá-lo mais com a minha presença, nem aborrecê-lo com as minhas ideias. Se pagou um alto preço por mim, eu o devolverei.
— Com os presentes que eu lhe dei — disse ele com a mesma voz baixa e terrível.
Aspásia ficou em silêncio. Estava morrendo de vergonha e de alguma coisa mais que não podia compreender.
— Você não é mais nem jovem — continuou ele. — Tem dezoito anos. Cansei-me de minha Narcíssa quando era mais jovem. Tinha dezessete anos e eu não quis mais saber dela. Por que então vou tolerar que você perturbe minha paz, agite minhas mulheres e ponha em tumulto a minha casa?
Kurda teve um riso abafado de alegria e de vitória, mas Aspásia não olhou para ele. Toda a intensidade dos seus olhos se fixava em Al Talif, diante de quem ela estava como uma deusa branca, sem cor nas faces ou nos lábios.
— Se fiz essas coisas que lhe desagradam, senhor — disse ela — foi porque não tolerei mais ver meu sexo degradado, minha feminilidade envergonhada e minha própria existência rebaixada a uma condição inferior à de um cão.
Ele levantou as sobrancelhas.
— E eu fiz isso com você?
— Não. Mas fez às mulheres do seu harém e eu vi na delas a minha ignomínia por mais bondoso que tenha sido comigo.
Ele disse muito devagar, como se aquilo o desgostasse:
— Já deve ter aprendido que as mulheres não podem ser consideradas como verdadeiramente humanas nos países civilizados. Insurge-se, entretanto, contra essa verdade absoluta. É presunçosa assim porque fui indulgente com você? Nunca foi tratada nesta casa como uma mulher do harém. Tenho-lhe dispensado honras de que nunca se ouviu falar em meu país. Aceitei-a quase como se fosse igual a mim. Você não soube ser grata a nada disso. Tentou incitar à rebelião dentro de minha casa a criaturas que valem menos que um bom cavalo.
— Algumas dessas criaturas são mães de seus filhos! — exclamou Aspásia, espicaçada pela ideia. — Ou são seus filhos menos do que o pó também porque nasceram de um bom cavalo ou de um cão?
— Seu pai considerou você menos digna de viver do que um asno. Foi sua mãe que a salvou e a deu a Targélia. Do contrário, você teria morrido na infância. São os homens da sua terra mais compassivos e gentis do que eu?
Ouvindo isso, Aspásia ficou em silêncio por um momento, mas depois disse:
— Se vim ao mundo para alguma coisa foi para elevar a posição de minhas irmãs de sexo, libertá-las da desonra, e fazê-las reconhecerem que são humanas também, com prerrogativas humanas. Duas vezes foi assim: quando vigoravam as leis de Sólon e no período homérico. Dizem também que as mulheres de Israel são honradas pelos seus homens e respeitadas pelos seus filhos.
— Você é na verdade instruída, mas nas coisas erradas — disse Al Talif, sorrindo, e o seu sorriso era mais ameaçador do que a sua voz. — Você diz que é minha companheira, uma companheira que eu comprei. Não sabe que aos olhos de nossas leis não passa de um animal? Entretanto, se quiser, poderei mostrar-lhe a minha compaixão e libertá-la. Poderá ir para onde quiser, mas sem os presentes que lhe dei.
Aspásia se lembrou de repente da ameaça que Targélia lhe tinha feito havia quase quatro anos e, no seu desespero, pensou quase imediatamente em suicídio. Não havia outra libertação possível. Era evidente que AI Talif se cansara dela, ainda que, duas noites antes, lhe tivesse beijado até os pés no seu enlevo e lhe tivesse dito que ela era mais cara ao seu coração de que todos os seus bens e o cargo que ocupava. Mas Targélia ensinava às suas alunas que o que um homem diz no calor da volúpia não deve ser levado a sério, sendo conveniente explorar esses juramentos no mesmo instante, antes que o desejo arrefeça ou seja satisfeito.
Parte do seu espírito contemplava a sua situação desesperada, mas o seu coração estava massacrado de sofrimento e desejo e os seus lábios brancos se descerraram em agonia.
— Faça o que quiser comigo. Não tem mais a menor importância.
Ele a olhou durante muito tempo, como se a estivesse sondando.
Disse afinal:
— Soube que proferiu algumas palavras rudes quando descobriu as mulheres que vou dar de presente esta noite para meu amigo de Damasco.
— São crianças e não mulheres!
— São animais! Você se incomodaria se o meu presente fosse um casal de cordeirinhos ou um jovem potro?
— São seres humanos!
Ele deu de ombros.
— Eu não havia percebido isso. Aspásia, já devia ter notado há muito tempo que no Oriente a vida humana vale muito pouco. Não tem o menor valor, a menos que a pessoa venha a nascer numa boa família e não seja uma fêmea, quando então não terá importância alguma. Mas um cavalo árabe terá beleza e tem valor. Há nele o que admirar e amar.
— Zoroastro não veio em favor dos animais, mas dos homens — disse ela, cada vez mais desanimada. — E Mitra também.
— Não vamos discutir — disse Al Talif, fechando os olhos por um momento. — Vieram em favor dos homens, sim, mas não das mulheres, que nunca no Oriente foram consideradas como tendo almas.
Kurda pensou com impaciência: Por que ele conversa com essa criatura como se ela tivesse alguma inteligência?
Aspásia deu um suspiro com desalentada exaustão e tornou a dizer:
— Faça de mim o que quiser.
— É essa a minha intenção — disse Al Talif e estendeu a mão para Kurda.
O eunuco lhe entregou prontamente o chicote que tinha nas mãos. Al Talif bateu devagar com ele no joelho, produzindo um som agudo e silvante dentro do quarto. Aspásia não podia acreditar no que os seus olhos viam. Voltou-se apavorada para Kurda e estremeceu,
— Não — disse Al Talif. — Não vou mandar Kurda açoitá-la, embora por muito menos eu pudesse mandar açoitar minha esposa favorita. Não quero nem que ele assista ao seu castigo. Pode sair, Kurda.
O eunuco ficou amargamente desapontado. Queria aquele esmagamento final da estrangeira, a absoluta humilhação daquela mulher. Hesitou. Mas Al Talif lhe disse imperiosamente:
— Saia daqui, escravo.
Kurda fez uma reverência, saiu de costas e fechou lentamente a porta. Aspásia deu um suspiro, ao deixar de ver-lhe a cara balofa e odiosa.
Al Talif levantou-se e se aproximou dela.
— Tire as roupas até à cintura.
Aspásia olhou com terror para o fino e mortífero chicote. Nunca haviam batido nela, salvo numa vez em que recebera um leve tapa da nervosa Targélia. Apesar dos seus esforços para dominar-se, a carne lhe tremia de medo e de vergonha. Olhou para o rosto de Al Talif em busca de algum sinal de compaixão, mas não o encontrou. Era incrível para ela que aqueles lábios que tão duramente se cerravam a houvessem beijado, que aquelas mãos que empunhavam o chicote a houvessem acariciado, dando-lhe prazer. Era mais essa incredulidade que o orgulho que a mantinha parada e muda.
Com uma praga, ele a agarrou pelos cabelos e com a outra, que segurava o chicote, lhe tirou a toga e a túnica dos ombros, rasgando-as. Forçou-a a ficar de joelhos. Empurrou-a para a frente e ela ficou estendida no chão. Mas Aspásia se levantou imediatamente. Ficou de joelhos, com as mãos a cobrir os seios e a cabeça erguida.
— Como queira — disse ele. — Será a sua última decisão nesta casa.
Al Talif levantou o chicote, que silvou e desceu sobre os ombros e sobre as costas de Aspásia. Foi como se um punhal a tivesse ferido. Mas não tremeu, nem deu um gemido. Comprimiu os lábios e olhou para longe. O chicote tornou a silvar e a atingi-la. De cada vez, era com renovado fogo e ferocidade. A dor era quase insuportável. A sua delicada carne branca tremia, mas não fugia. As mãos protegiam os seios das pontas do chicote, mas as costas das mãos começaram a ficar esfoladas. Depois, as costas pareceram em chamas e o seu tormento foi quase maior do que ela podia suportar. Até que o silvo e a queda do chicote foram os únicos sons audíveis dentro do quarto. Ela era como uma estátua de mármore a receber golpes que não podia sentir. Não chorava, não tentava fugir, não gemia. Houve um momento em que pensou que fosse desmaiar, mas ficou livre dessa última indignidade, como ficou de pedir perdão.
Afinal, Al Talif parou e jogou o chicote com raiva para o lado. Ela se levantou, com todo o corpo massacrado. Sentia o sangue correr-lhe das espáduas. Em seguida, calmamente, sem olhar para ele, começou a cobrir a sua nudez com os restos das suas roupas.
De repente, sentiu no corpo as mãos de Al Talif, que começou a beijar-lhe os vergões das costas e a carne despedaçada com uma paixão que nunca havia demonstrado, mesmo nos seus momentos mais delirantes. Murmurava palavras incoerentes, que eram quase gemidos. Atordoada, ela suportou isso. Al Talif foi buscar um jarro de água e um vidro de unguentos e começou a fazer-lhe curativos com mãos mais delicadas que as de uma mulher.
— Por que fez isso comigo? — exclamou ele.
Meio tonta e ainda sem consciência plena do que estava acontecendo, Aspásia fechou os olhos. Surpreendeu-se então nos braços dele, apertada contra o seu peito, enquanto ele lhe beijava a testa, o rosto, os lábios e o colo, com o coração a bater desordenadamente contra o dela. Sem vontade própria, Aspásia levantou os braços, cingíu o pescoço de Al Talif e começou a chorar. Sem saber por que, a dor no coração, mais terrível do que a dor na carne, foi desaparecendo e deixando em seu lugar uma agoniada doçura.
Capítulo 12
Ainda que Aspásia estivesse dominada pelas suas emoções quando atravessou os longos corredores azuis e brancos de volta ao seu quarto» não pôde deixar de ter consciência do estranho silêncio contido que envolvia o palácio. Compreendeu então que a sua humilhação às mãos de Al Talif se espalhara por todos os corredores e aposentos, conto um pássaro em vôo e que, embora nada ouvissem, todos estavam maldosamente alegres e triunfantes. O corpo lhe doía terrivelmente, apesar dos unguentos, e ela prosseguia, com os farrapos de roupas em torno do corpo e a cabeça erguida, consciente dos olhos invisíveis e satisfeitos que a olhavam por trás das grades ou das cortinas. Os cabelos, lhe caíam em desordem e ela os afastou dos ombros doloridos.
Disse com muita calma às escravas que resolvera usar outro vestido e elas lhe levaram um manto oriental escarlate e ouro. Permitiu que lhe dessem banho de novo e que tornassem a passar-lhe unguentos nas contusões e nos ferimentos.
Não fora dispensada de comparecer ao banquete dado por Al Talif. Perfumou-se com essência de jasmim e usou um colar egípcio de grandes pedras e franjas de ouro, prendendo depois nos cabelos fios de pérolas. Estava muito pálida, sem a cor natural das faces e dos lábios. Aplicou a pintura e, por fim, prendeu ao corpo um cinto resplandecente de ouro,
Olhou pela alta janela gradeada do seu quarto e viu que o sol forte da tarde desenhava com o seu ouro os contornos das montanhas cor de ocre. A planície e o vale mais baixo estavam impregnados de uma poeira dourada entre as sombras violáceas. Tudo lhe parecia um sonho silencioso e as violentas cores do céu, da terra e das montanhas se mostravam desprendidas e distantes.
Tenho de deixá-lo, pensou ela. Mas essa ideia fixa era perturbada por outra: Talvez eu não possa deixá-lo, pois o amo ao mesmo tempo que o odeio. Não podia compreender essas agitações contraditórias, ora furiosas, cheias de ódio e ressentimento, ora dissolvidas numa ternura misteriosa. Queria chorar, mas as pálpebras estavam secas e doloridas. Por fim, algumas coisas definidas emergiram dos seus pensamentos caóticos.
Quando saísse dalí, iria para Atenas e abriria uma escola para mulheres como a de Targélia, mas sem ensinamentos libidinosos. Seria uma academia para moças inteligentes, que nunca seriam meras concubinas com tinturas de instrução para ainda mais impressionar os homens poderosos. As moças teriam a aprendizagem de várias profissões. Pensou então desanimadamente: Que adiantará isso quando as mulheres são tão desprezadas até na civilizada Ática e os homens lhes negam alma e inteligência? Teve então uma ideia que a deixou exultante. Uma mulher educada e instruída, em companhia de outras com os mesmos atributos, poderia de novo ser uma força na vida da Grécia e entender-se, não apenas pelo sexo, com os homens com quem se ligasse.
O poder do espírito dessas mulheres seria maior do que o poder de sua beleza, porque a beleza com o tempo desaparecia, ao passo que o espírito crescia, quando bem cultivado. Dizia-se que no Egito as mulheres da família real tinham grande influência sobre os faraós, seus maridos, até em assuntos do estado e que essas mulheres recebiam uma educação tão cuidada quanto a de seus irmãos. Não era impossível nem que mulheres governassem o Egito. Na Grécia, havia sacerdotisas, como também no Egito, onde a deusa Ísis era ainda mais venerada que Horo e Osíris e tinha sacerdotes especiais para cuidar-lhe dos altares. No Egito, as mulheres não eram consideradas impuras e, se tinham alojamentos especiais, era porque assim o desejavam e esses alojamentos não podiam ser invadidos pelos maridos e pelos filhos, salvo com permissão especial.
Se isso era possível em outros países, seria possível de novo na Grécia. Quanto à Pérsia... Aspásia encolheu os ombros e logo contraiu o rosto de dor. Relegou o assunto bem para o fundo da consciência e, serena como uma deusa oriental e com a mesma altivez, encaminhou-se para o salão dos banquetes, para juntar-se a Al Talif, que já mandara chamá-la.
Os vestíbulos e corredores estavam iluminados por lâmpadas e archotes cravados nas paredes e as sombras amarelas e vermelhas dançavam nos pavimentos azuis e brancos e nos reposteiros de muitas cores. Os jardins estavam mergulhados em trevas, mas os rouxinóis já haviam começado a cantar. Potes de incenso ardiam nos cantos e impregnavam o ar quente, dominando até o cheiro das flores colocadas em grandes vasos chineses. Aspásia não viu ninguém a não ser os vultos vigilantes dos eunucos. Um vento do deserto soprava através dos arcos, tão quente que não refrescava, agravando apenas o calor da pedra, da terra e das montanhas. Trazia também um cheiro de pimenta e especiarias ao atravessar a terra.
Um eunuco abriu para ela as cortinas do salão de banquetes e Aspásia lhe notou o sorriso dissimulado. Entrou no salão, que era bem grande, com o seu piso de mármore quase inteiramente coberto por tapetes persas de muitas cores e desenhos. As paredes mostravam mosaicos generosamente pintados que retratavam flores, árvores e horríveis monstros. Al Talif achava-se num recesso do salão, num divã cheio de almofadas, no qual reclinava quase completamente o corpo. Os outros convidados estavam sentados com as pernas cruzadas em grandes almofadas de seda no chão. Cada qual tinha à sua frente uma mesinha com copos dourados para o vinho, pratos chineses, colheres e facas, à maneira oriental. A alguma distância, havia músicos que tocavam flautas, citaras e harpas. Grandes lâmpadas de bronze pendiam do teto pintado, queimando óleos perfumados e lançando uma luz difusa sobre os convivas. Os escravos corriam silenciosamente de um lado para outro, levando pratos de comida e jarros de vinho.
Al Talif estava esplendidamente vestido num pano tecido de ouro com uma faixa vermelha à cintura, com borlas douradas. Usava um turbante também de pano de ouro, preso por fios de prata. Nunca tinha parecido a Aspásia mais belo e mais desejável, apesar de todo o ódio que tinha por ele e do desejo desfalecido que lhe enchia o coração. Estava conversando com os convidados e não se interrompeu ao vê-la entrar, mas languidamente a convidou a sentar-se ao lado dele no divã. Como de costume, encaminhou-se para o divã e teve permissão para sentar-se aos pés dele. Por um instante, teve a vaga consciência de ouvir um homem soltar uma exclamação de espanto, sem demora contida. Mas como os convidados de Al Talif em geral se assombravam com a sua beleza, não deu maior importância ao fato.
Havia vários homens presentes, todos eles resplandecentes nos seus mantos e turbantes. Comiam e bebiam com lisonjeira voracidade e escutavam o que dizia o dono da casa. Aspásia apenas os via. Não lhe era permitido falar, a menos que Al Talif ou um dos convivas lhe dirigisse a palavra. Ficou sentada em silêncio aos pés dele, toda em rosa, ouro e brancura de mármore, com as mãos juntas no colo. De vez em quando, como se afagasse um cachorro de estimação, Al Talif lhe tocava distraidamente o braço, os ombros nus ou o colo ou levantava um anel dos seus cabelos, que depois deixava displicentemente cair. Pela primeira vez, sentiu as faces afogueadas de vergonha com esse tratamento, mas não deu o menor sinal de repulsa. Isso só serviria para surpreendê-lo e enraivecê-lo e ela já havia sentido o peso da raiva de Al Talif. A sua carne tremia, contra a vontade dela, ao contato de Al Talif e ela desprezava o descontrole dos seus nervos, embora cedesse voluptuosamente à sensação. Para distrair-se, começou a olhar para os fabulosos anéis que ornavam os dedos dele, até que os olhos lhe doeram.
Al Talif não era apenas governador da província. Era também um rico e astuto mercador. Possuía muitos bazares naquela cidade e em muitas outras, muitas frotas de navios, caravanas, um banco e inúmeros olivais, campos, pomares e prados com incalculáveis rebanhos de carneiros, bois e cabras. Tinha sociedade em várias indústrias e possuía uma profusão de lojas de joias e curiosidades, inclusive objetos de arte. Dizia-se que, ainda por cima, era um implacável usurário. Mas nunca fora acusado de saquear a sua província, como faziam outros governadores, e seus julgamentos, embora severos, eram invariavelmente honestos. Era recebido com respeito não só na corte de Artaxerxes, mas também em Samarcanda, Persépolis, Nakch-i-Rustam, Kerman, Kashan e Damasco. Aspásia sabia de tudo isso, sentia o poder de Al Talif e se regozijava com ele, ao mesmo tempo que o repelia.
Sem dúvida, pensava ela, enquanto se sentava aos pés dele e ouvia os risos e as conversas dos homens em muitas línguas, a glória e o fulgor da alma humana não se deviam apagar nas mulheres.
Olhou para os convivas, a quem não conhecia, mas da sua aparência calculou que dois fossem babilônios, um medo, dois egípcios, três sírios, quatro árabes de pele escura, dois indianos e um grego. O último era jovem, com olhos lascivos e cabelos castanhos... O coração de Aspásia foi tomado de pânico e de um atordoado terror. Estava olhando para Talías, o qual a olhava com as mesmas profundas emoções, que a princípio Aspásia não notara.
Al Talif nunca apresentava Aspásia aos seus convidados, nem estes a ela. A posição dela era imediatamente reconhecida. Não era uma escrava. Era um pouco mais que uma concubina favorita, mas não era uma esposa, pois tinha permissão de deixar os aposentos das mulheres e poderia falar com os homens quando estes lhe falassem. Desde que os convivas eram invariavelmente homens ricos, ilustrados e viajados, muitos deles se lembravam das heteras de que tinham ouvido falar ou tinham visto e respeitavam a hetera tanto pela sua beleza quanto pela sua inteligência. Eram mulheres afastadas dos haréns e dos casamentos prosaicos e muitas vezes exerciam verdadeiro poder. Por isso, ainda que alguns homens se ofendessem com a presença de uma mulher no banquete, outros tinham prazer em olhar para Aspásia e ouvir o que ela dizia, invejando Al Talif pela posse de tal tesouro.
O sátrapa era um homem intuitivo e sutil e, embora não tratasse Aspásia quando estava entre os seus convidados com a mesma ternura e atenção que lhe dispensava em particular, tinha uma consciência aguda da presença dela, da proximidade do seu corpo e até da sua respiração. Sabia muito bem quando ela sentia tédio, aflição ou desinteresse durante aqueles encontros no salão de banquetes. A dignidade e a calma que Aspásia demonstrava nessas ocasiões eram admiráveis e enchiam-no de orgulho. Sabia assim naquela noite que ela estava profundamente perturbada. O corpo dela estava rígido. Era sinal de que alguma coisa lhe havia atingido as emoções e de que ela, misteriosamente, sentia medo.
Continuou a falar com um dos egípcios, mas olhou-a pelo canto dos olhos sem compreender. Ninguém ainda falara com ela, nem ele mesmo. Estaria sentindo alguma dor? Era verdade que a palidez dela acentuava o vermelho das faces e dos lábios, mas não havia contrações dos músculos que denotassem um sofrimento físico. Estava conversando em egípcio, língua que ela não conhecia muito bem. Por isso, ela não podia estar ofendida com o tom levemente obsceno da conversa. Antes de tudo, Aspásia não era obscena. Não estava sofrendo um acesso de qualquer doença, pois parecia em excelente saúde. Viu-a então olhar para um dos convivas como se ele fosse um basilisco e depois desviar os olhos. Um leve arrepio lhe percorreu o corpo e Al Talif percebeu isso.
Para quem olhara ela? Olhou os convidados um por um sem deixar de conversar, de sorrir e de comer as pequenas porções de carne de carneiro bem condimentada e de alcachofras no seu prato. Tomou até pequenos goles de vinho. Teria ela reconhecido algum daqueles homens, mercadores como ele? Era impossível, pois nenhum deles estava manifestando o alarma que ela sentia. Todos estavam atentos ao que lhes fora servido nas mesas ou trocavam ocasionalmente breves comentários com os seus vizinhos. Aspásia já conhecia dois ou três deles; os outros lhe eram desconhecidos. Entretanto, um deles a havia aterrorizado. Como era possível isso? Era bem verdade que dois ou três eram velhos e procediam grosseiramente à mesa, mas Aspásia tinha visto convivas semelhantes no passado. Al Talíf ficou ainda mais curioso. Aspásia estava sentada com os olhos discretamente baixos, com as mãos enlaçadas nos joelhos. Era evidente que estava fazendo uso de toda a disciplina que lhe haviam ensinado. Depois, para surpresa de Al Talif, ela sorriu um pouco, franzindo os lábios vermelhos.
Aspásia estava pensando: Talías não terá coragem de me trair, porque é um escravo foragido, apesar de sua bela túnica azul grega, de sua toga magnífica, de suas joias e dos seus perfumes. Ele está mais apavorado do que eu estive há alguns momentos, pois sabe com certeza que, se eu abrir a boca, ele será capturado e mandado para Mileto a fim de ser punido. Agora, que o medo se atenuara nela, Aspásia teve compaixão dele, embora não pudesse saber como ele chegara àquela posição de ser um convidado de honra de Al Talif. Não podia deixar de ver como era belo, requintado nas maneiras e nos gestos e manifestamente rico. Não lhe tinha ainda ouvido a voz, nem sabia o nome que ele estava usando. Lembrou-se de que ele sempre fora esperto e inteligente, solícito em atender à disposição dos outros e então, pensando na preocupação que ele tivera por ela antes de fugir, sentiu uma curiosa afeição por ele. Queria principalmente assegurar-lhe que ele não corria perigo algum da parte dela.
Não está mais com medo, pensou Al Talif. Aspásia bebeu o vinho de um copo de prata à sua frente, pegou com a colher um pedaço de carne e comeu-o. As cores lhe tinham voltado ao rosto e a mão já não tremia. Sentindo que Al Talíf a observava atentamente, voltou a cabeça e sorriu para ele, ainda que sem nenhuma expressão nos olhos. Graças a algum motivo complicado e muito feminino, ela se julgou de algum modo vitoriosa sobre ele, pensando: Aquele homem que ali está entre os seus convidados me tirou a virgindade, embora você tivesse acreditado ter-me privado dela, senhor. Não cheguei à sua cama imaculada. Entreguei-me a ele num bosque de mirtos, numa noite quente de verão em que o luar banhava as folhas sobre a terra escura, e ele me fez conhecer a alegria. Os beijos dele foram os primeiros que conheci e os braços dele me apertaram tão fortemente quanto os seus. Amei-o durante uma hora.
Comprazia-se nesses pensamentos. A sua beleza nunca fora maior do que naquele momento em que a boca se franzia maliciosamente.
Vendo isso, Al Talif fechara o sobrecenho. Nunca tivera a pretensão de saber tudo a respeito de Aspásia. Ela era cheia de mistérios para ele e talvez fosse por isso que sempre a achava tão sedutora. Aspásia sempre lhe escondia alguma coisa e, por mais que ele se esforçasse, jamais conseguia apreender-lhe os pensamentos mais íntimos.
Vendo o sorriso secreto com que ela tranquilamente comia e bebia vinho, lembrou-se de que as heteras aprendiam todas as artes, especialmente as de fugir às decepções. Estaria ela tentando convencê-lo de que o castigo que sofrera não tinha a menor importância e que, ao fim de tudo, ela é que saíra vitoriosa? Era uma atitude desagradável.
Talías a estava olhando não com menor atenção. Por fim, não sendo tolo, compreendeu que Aspásia não iria traí-lo, do mesmo modo, pensou ele com convicção, que ele nunca poderia traí-la. Ambos tinham boas recordações de uma noite de alegria. Aspásia estava serena. Os seus olhos se encontraram. Ela sorriu e desviou o olhar. Al Talif percebeu esse sorriso, mas Aspásia costumava sorrir assim para os convidados e ele não deu maior importância ao fato. Ela estava preparada para ser amável e encantadora em silêncio.
Talías, imensamente tranquilizado, sentiu voltar-lhe toda a sua coragem, que não era pequena. Dirigiu-se então a Al Talif com grande cortesia e respeito.
— Dizem, Senhor, que entramos através do mundo num período de paz e esclarecimento. É essa também a opinião do seu nobre Imperador?
— Só haverá paz, meu caro Damos, quando o mundo inteiro se tornar um vasto mercado — disse Al Talif. — Nunca discuto as guerras, que são desagradáveis. Interrompem as relações naturais entre as nações, pois diminuem e restringem os mercados do mundo, empobrecendo-os. Numa guerra não há vencedores, mas apenas vítimas tanto entre os conquistadores quanto entre os conquistados. O mercado é o único lugar pacífico onde todos os homens podem encontrar-se, discutir, enganar, mentir, comprar aquilo que quiserem, exibir uma cobiça simples e honesta sem qualquer vergonha, organizar caravanas e comércio, travar discussões sinceras e vivas, salvo com os fregueses, disputar com os outros mercadores, planejar expedições, exibir novidades e coisas belas de países distantes, despertando assim a compreensão e a admiração pelo que é estranho e bem-feito, e facilitando o conhecimento entre os homens. Até as confusões e os aspectos repulsivos dos mercados dão calor ao espírito.
Fez uma pausa para comer um pedaço de melão, um punhado de cerejas e algumas ameixas. Uma súbita lufada de vento frio entrou pelos arcos do salão, pois o ano se aproximava do fim e só os dias eram ainda de escaldante calor. Aspásia pensou: Talías agora se chama Damos. Mas onde mora e por que está aqui nesta casa? A simpatia e o interesse por ele aumentaram enquanto ela escutava a conversa que era feita em grego.
Al Talif sorriu e disse:
— Tenho visto mercadores cujos governos estavam em guerra conversarem amistosamente entre risos no mercado. O comércio é o único assunto sobre o qual todos os homens podem ficar de acordo, exceto entre os filósofos, que preferem contestar uns aos outros para provar as suas superiores atividades mentais. As ideias novas não podem ter os seus preços fixados no mercado e talvez por isso sejam muito justamente desprezadas.
Olhou com um sorriso para os indianos, que se mostravam aristocraticamente meditativos, pois na índia pululavam ideias e religiões.
Continuou então:
— O comércio é a única atividade em que os costumes e as culturas do mundo inteiro se recebem amistosamente e, por isso, o mercado é a nossa única esperança de paz. Os mercadores têm uns pelos outros o maior respeito porque tratam de coisas tangíveis e de realidades. Você, meu caro Damos, e todos nós que estamos presentes aqui somos mercadores. Falamos, portanto, uma língua comum. Competimos, mas não nos matamos. Isso cabe aos governos ambiciosos, aos soldados profissionais e a outros seres inferiores. Já não descobriu, Damos, que as estradas da Pérsia, todas as rotas de caravanas que vêm da sua Damasco através da Pérsia, estão livres de ladrões? Até os governos têm a maior consideração pelos mercadores.
— Mas você mesmo, prezado Al Talif, é o governo — disse um dos mercadores indianos. Não comia a carne que era servida, mas apenas verduras, frutas e vinho, pois era budista,
— De fato, sou governador desta província e meu Imperador se compraz em ter um mercador aqui. Os mercadores raramente saqueiam e, quando o fazem, isso é bem recebido pelos seus companheiros, que estão preparados para agir da mesma maneira. Ainda nessas ocasiões, há uma certa honestidade franca misturada com esperteza, que todos nós compreendemos. Os mercadores só podem sobreviver e ter lucros — e não são os lucros profundamente admirados? — numa atmosfera de confiança e tranquilidade. Quando os lucros são destruídos e suspensos, como em tempo de guerra, as civilizações declinam. Vamos beber ao mercado, onde a turba pode encontrar-se com o mercador e com o príncipe na mais completa igualdade e compreensão, sem choques nem ódio.
Quer dizer então, pensou Aspásia com bondosa alegria interior, que Talías é agora um mercador de Damasco. Al Talif lhe estava nesse momento acariciando displicentemente o pescoço e os outros mercadores, depois de beberem o vinho dos seus copos, olhavam-no com interesse e oculta inveja.
Al Talif olhou então para Aspásia e sorriu para ela. Disse na sua voz notavelmente rica:
— Que é que acha de nossa conversa, meu amor?
Talías foi o único homem presente que não se espantou dessa pergunta feita a uma mulher, por mais bela que fosse. Aspásia sorriu para Al Talif e disse com uma doçura ácida que era muito significativa para ele:
— Estou pensando no que um filósofo grego disse de homens como os que estão aqui presentes e que se queriam fazer passar por simples mercadores. "Devemos ter cuidado e olhar debaixo de cada pedra, senão um orador nos morderá".
Houve alguns homens que fizeram cara feia, mas Al Talif riu. Levantou a mão de Aspásia, beijou-a e disse:
— Ser louvado por minha eloquência por esses lábios é mais embriagador do que o vinho.
Levou o seu copo aos lábios de Aspásia e ela bebeu um gole, inclinando depois a cabeça em agradecimento.
Al Talif acrescentou, beliscando-lhe a orelha:
— Permita agora que eu cite Eurípides: "Uma mulher deve ser boa para tudo dentro de uma casa; mas fora de casa não tem utilidade".
Os convivas riram e o sorriso um pouco amargo, mas encantador de Aspásia continuou, embora ela tivesse ficado vermelha.
— Permita, Senhor, responder com o que Heródoto disse da sua nação: "Têm o costume de só deliberar sobre assuntos da maior importância quando estão bêbados. Quando discutem alguma coisa em seu juízo perfeito, tratam de embriagar-se para um segundo exame". Senhor? está bêbado ou não?
Todos os convidados ficaram imóveis como estátuas, prendendo a respiração diante do imperdoável insulto ao dono da casa. Mas Al Talif tornou a rir e apoiou a mão no ombro de Aspásia.
— Meus amigos, devem ter observado que esta bela coisa cita os filósofos como um papagaio repete palavras, sem compreender nada. Apesar disso, devem ter visto que as suas frases são surpreendentemente apropriadas e com respostas prontas. O que desejo que me digam é o seguinte: Fui um bom professor? Ou pode ela realmente pensar?
Estremeceu e cobriu o rosto, fingindo terror. — Livrem-nos disso os deuses!
Os convidados riram. Aspásia olhou diretamente para Al Talif, o que era uma deliberada afronta. Estava tão cheia de raiva que começou a levantar-se para sair sem permissão. Estava tão pálida como um pano de linho branco e os seus olhos fuzilavam. Todos os convivas viram isso. Só Talías pensou: "Minha pobre Aspásia! "
Tão consciente dela quanto sempre, sem realmente olhar para ela, Al Talif estendeu a mão e agarrou-a pela coxa com tanta força e autoridade que ela teve de baixar o corpo de novo para o divã.
A mortificação de Aspásia era completa. Estava certa agora de odiá-lo. Os escravos serviram mais vinho, pastéis e pêssegos da cor da aurora.
Al Talif olhou para Talías, mas Aspásia compreendeu que ele se estava dirigindo a ela, pois reconhecia aquele tom de voz. Esperou, com o coração em tumulto, a nova calamidade.
— Damos, de Damasco, que é a própria Grécia, tenho um presente para você, pois já fizemos muito bons negócios, ainda que nunca tenha estado nesta casa.
Bateu palmas e um eunuco apareceu de um dos arcos.
— Vá buscar as duas moças que comprei há dois dias.
Aspásia sentiu náuseas. Pensou nas meninas que vira no harém naquele dia e fechou os olhos.
— São verdadeiros tesouros, meu caro Damos, e escolhi-as pensando em você. Não preferimos todos as que são jovens e intactas?
Talías fez um gesto de assentimento.
— Prometo — continuou Al Talif — que não têm o menor senso, e só podem falar coisas agradáveis e sem nexo. Não é isso que todos queremos principalmente numa mulher?
Talías sorriu incertamente, sem olhar para Aspásia, que o encarava fixamente.
— Principalmente! — responderam em coro os outros convivas.
As meninas foram levadas juntas para o salão e deram-se as mãos para proteção. Era evidente que estavam amedrontadas e que se haviam levantado do seu sono. Túnicas de linho branco lhes cobriam os corpos miúdos e os pequenos pés estavam nus. Mas os cabelos finos empastados pelo sono tinham sido penteados apressadamente e amarrados com fios de seda, de modo que os rostinhos delas podiam ser vistos na sua infantilidade, na sua inocente vulnerabilidade e no seu espanto. Piscavam os olhos ante a claridade das lâmpadas. Os convivas soltaram murmúrios de aprovação, muitos deles com desejo.
Os lábios delas eram infantis e despidos de qualquer artifício. Os braços, as pernas e os rostos azeitonados brilhavam de óleos perfumados e nos pescoços indefesos havia pérolas tão lustrosas como elas. Os olhos de Aspásia se encheram de lágrimas.
Al Talif puxou-as para junto dele num gesto paternal e então lhes levantou as túnicas para que os corpos infantis e as partes sem pêlos fossem vistas por todos. Admirou-as demoradamente.
— São gêmeas e tão sadias como cordeiros recém-nascidos, sem o menor sinal, até agora, de mãos de homem. Não serão uma glória para a sua cama, Damos? Só daqui a uns dez anos serão velhas demais para seu gosto. Daqui até lá serão como meninos. Não é assim que os gregos preferem?
Talías estava mais inquieto ainda. O seu rosto se mostrava muito vermelho. Sentiu então a força do olhar de Aspásia e olhou rapidamente para ela.
Ela fez então uma coisa imperdoável. Falou sem que ninguém se tivesse dirigido a ela. Exclamou:
— São escravas e muito jovens e indefesas para fugir. Quem as socorreria? Quem as esconderia e consolaria? Quem lhes daria ouro?
Talías empalideceu. Compreendeu a ameaça explícita naquela clara voz e soube que ela estava disposta a destruir-se e a ele também para salvar as duas meninas. Além disso, não sentia desejo por elas e não era depravado. Hesitou em confusão. Não se atrevia a recusar um presente de Al Talif, mas podia sentir o terrível desafio de Aspásia, que se calara. Al Talif não tomara conhecimento dela, como se ela não tivesse falado. Os outros convivas não podiam acreditar na tolerância dele diante do atrevimento daquela mulher.
Talías falou então:
— Estou profundamente comovido, senhor, com a sua gentileza e condescendência.
Fez uma pausa e os outros convivas aplaudiram as suas palavras.
Talías continuou:
— Minha esposa me deu um filho, mas deseja uma filha ou duas. Vou levar as meninas para ela, que não pode mais ter filhos, mas me trouxe um excelente dote e tem sido uma boa esposa em todos os sentidos.
O sorriso de Al Talif ficou parado no rosto e os outros convivas trocaram sinais de espanto. Mas o sorriso de Talías era bravo.
— Minha esposa — continuou ele — é uma mulher muito virtuosa e filha única dos pais, que a criaram com muito carinho e a educaram. Pode compreender-se isso, pois o seu povo foi levado de Babilônia por um chefe chamado Abraão e vive agora na terra de Israel. Esse povo tem algum respeito pelas mulheres. Permita que lhe agradeça em nome de minha esposa e não se ofenda se eu pedir a ela que lhe mande uma mensagem em que externe o seu reconhecimento.
Al Talif falou com gravidade, inclinando a cabeça.
— As meninas são suas, meu caro amigo, e pode fazer com elas o que quiser.
Olhou de repente para Aspásia, viu as lágrimas nos olhos dela e o seu sorriso trêmulo. Tocou-lhe então o joelho com mão carinhosa e deixou a mão demorar-se ali. Aspásia baixou a cabeça para que não a vissem chorar e prendeu com o outro joelho os dedos de Al Talif, numa carícia involuntária. Ela me perdoou, pensou ele, e sorriu satisfeito.
— A mensagem de sua esposa será bem recebida — disse ele a Talías. — Pode levar as meninas como filhas para ela.
Mais tarde, chamou Aspásia à sua cama e beijou os ferimentos que lhe havia causado. Ela se voltou impulsivamente para ele, descansou-lhe a cabeça no peito e sem saber por que, na sua confusão de pensamentos, sentiu felicidade, desejo e uma emoção perigosa que não quis examinar,
— Se me tivesse pedido aquelas meninas para servirem-na como empregadas, eu as teria dado a você. Não, não diga nada — disse Al Talif, beijando-a e abraçando-a.
Capítulo 13
Al Talif tinha de ir a Damasco com uma de suas caravanas e convidou Talías a acompanhá-lo, permitindo que o guia de Talías dirigisse também a sua caravana. Talías sabia do esplendor de comidas, de vinhos e de mulheres de que Al Talif se fazia acompanhar nessas expedições e aceitou pressurosamente, pensando nas grandes tendas e no luxo dos persas e nas dançarinas e cantoras. Pensou também em Aspásia, sem saber se ela acompanharia o seu senhor.
Naquela tarde, o sátrapa estava ausente do palácio e Talías, que sempre se aborrecia quando não estava empenhado em alguma atividade, passeava pelos jardins, comendo um punhado de tâmaras maduras. Achava o palácio opressivo, apesar dos salões, das fontes e da sua magnificência oriental. Não gostava também de Damasco, mas ali tinha os seus negócios e sua mulher — tinha apenas uma. Muitas vezes, pensava em Mileto e na Grécia, que podia visitar à vontade, especialmente Atenas. Não se atrevia ainda a ir a Mileto, onde nascera, pois poderia ser reconhecido como um escravo fugido e capturado. Na Grécia, porém, encontrava refúgio da tensão ardente do Oriente. Era bom falar sua própria língua entre mercadores como ele, que o admiravam e respeitavam, bem como apreciar, como ele dizia, comida honesta.
Notou Kurda, que pareceu não vê-lo, pois estava olhando fixamente para alguém no jardim. Olhou na mesma direção e viu Aspásia, sentada à sombra de um grupo de tamareiras num banco de mármore, cujos braços eram esculpidos na forma de tigres persas. Parecia uma jovem abandonada e entregue aos seus pensamentos. A sua carne e a sua túnica não eram mais escuras do que a pedra em que ela se sentava. O coração de Talías bateu de prazer, pois muitas vezes se lembrava de Aspásia até nos braços de sua esposa e a amava. Notou a quieta melancolia que se mostrava no rosto dela. Estava olhando alheadamente para um tanque de peixes. Atravessou o caminho em direção a ela, fazendo ranger o saibro sob os seus elegantes sapatos.
Ela levantou a cabeça, olhou-o distraidamente e então o seu rosto se transformou. Kurda redobrou de atenção às portas do palácio. Certamente, até aquele bárbaro devia compreender que nenhum homem hóspede de uma casa pode aproximar-se assim de uma mulher, na ausência do dono da casa e longe da vista de escravos e atendentes! Mas Talías, apesar de conhecer bem o Oriente, esqueceu tudo no seu desejo de falar a sós com Aspásia e de olhá-la de mais perto à luz do dia. Ela o viu aproximar-se, voltou os olhos alarmados para Kurda, que tinha deixado as portas e estava nesse momento nos degraus que levavam ao jardim, com o rosto gordo cheio de ansiedade.
Não se moveu, mas quando Talías se aproximou, todo sorridente, ela disse em voz baixa:
— Tudo isso é muito indiscreto, Talías. Aquele homem é o chefe dos eunucos e está empenhado em destruir-me. Vigia-me constantemente para poder contar alguma coisa perigosa a Al Talif.
Talías parou e o sorriso lhe desapareceu do rosto.
— Não olhe para ele e não se sente ao meu lado — disse Aspásia num sussurro. — Vamos dar a impressão de que somos estranhos e que você deseja apenas distrair-se um instante em minha companhia, sem deixar de me desdenhar.
Ela se levantou, indicou que ele deveria sentar-se e ficou de pé diante dele.
— Aspásia — murmurou ele com infinita tristeza.
Ela se comoveu com o tom de voz dele e tentou sorrir.
— Não sou infeliz, Talías. Há horas e até dias em que me sinto muito feliz e contente.
Ela assumiu uma atitude humilde e Talías sacudiu levemente a cabeça.
— Infelizmente, não sou, afinal de contas, senão um escravo, mas nunca a esquecí, nem ao que você na verdade é.
— Que sou eu? — disse ela com súbita amargura. — Não sou mais que a concubina comprada de meu senhor, pouco mais que uma prostituta.
Talías olhou para uma das estátuas de bronze do jardim e disse:
— São verdadeiramente monstruosas. Não acha que representam bem o Oriente?
— Fale-me da Grécia e de Atenas, que eu não conheço — disse ela.
— Ah, Atenas! — exclamou ele, mas ela lhe fez um sinal de advertência e Talías baixou a voz. — Atenas fervilha, como o mar, de ideias, de movimentos e de grandes homens. Já ouviu falar em Péricles, o famoso filho de Xantipo? O pai dele foi há muitos anos uma potência em Atenas e derrotou em Mícale os restos da esquadra de Xerxes. Xantipo foi um herói e se casou com Agariste, sobrinha de Clístenes. Foi ela a mãe de Péricles. A família dela era aparentada com os antigos tiranos de Sício e pertencia também à família dos Almeônidas. Decerto, já ouviu falar no ilustre Péricles.
— Péricles? Creio que já ouvi meu senhor falar dele depreciando-o, pois os persas ainda acreditam que os gregos são bárbaros, apesar das vitórias que tiveram sobre Xerxes. Péricles não é um político?
— É mais que isso. Quanto a Al Talif, cita os filósofos gregos com tanta facilidade que não pode acreditar que os gregos sejam bárbaros.
— Ele acredita que só a Pérsia seja inteiramente civilizada, ainda que reconheça que os filósofos gregos estão merecendo a atenção do mundo inteiro. Fala comigo muito pouco da história moderna ou dos acontecimentos das nações. Diz que isso o aborrece e que prefere as coisas exclusivamente do espírito — disse ela com um sorriso de mofa, ao lembrar-se do harém de Al Talif. — A biblioteca dele é constantemente reabastecida com as obras de muitos filósofos, mas ele está convencido de que os filósofos persas são mais sutis, desenvolvidos e certamente mais profundos. Tenho autorização para ler o que quiser na biblioteca dele, mas quase que só leio os filósofos gregos, pois o meu conhecimento das outras línguas não é muito grande.
— Vive tão presa aqui como quando vivia na casa de Targélia — disse Talías.
— Talvez mais ainda, Talías. Só vou às vezes ao mercado. Não tenho companheiras, nem amigas. Não fique tão compungido, meu Talías. Já lhe disse que muitas vezes sou feliz.
— Ele é de fato um homem do espírito — disse Talías, que se sentia fascinado por Al Talif. — Mas é também um mercador e muito rico e perspicaz. Por que ele não lhe fala do que vê e ouve nas cidades que as suas caravanas visitam?
— Sou apenas uma mulher — disse Aspásia e sorriu. — Ainda assim, conversa comigo de todas as coisas que não se referem ao presente imediato. Temos conversas muito elevadas quando estamos sozinhos. Mas fale-me desse famoso Péricles.
Havia orgulho na voz de Talías quando ele disse:
— Péricles é um estadista. Mais ainda, é casado com a filha de uma casa nobre e tem dois filhos. É muito rico. Foi educado por Zênon de Eléía, que lhe ensinou o poder da dialética, e pelo famoso astrônomo Anaxágoras, A sua eloquência pode transformar o mármore em carne palpitante. Pode até comover as duras autoridades eclesiásticas. Ajudou a acusar Címon, numa acusação de suborno depois da campanha de Címon em Tasos. Atacou também o Aerópago há dois anos e, embora fosse atribuído ao seu colega Efialtes o mérito da renúncia à aliança com Esparta e à aliança com a Tessália e com Argos, isso se deveu ao trabalho de Péricles, que cedeu o passo ao mais velho e permitiu que ele fosse homenageado por esses atos. Péricles é um homem de honra, discrição e tolerância.
— Todos esses nomes nada significam para mim. Sou mesmo uma mulher ignorante.
— Infelizmente — disse Talías. — Vou continuar. Quando Efialtes foi assassinado, Péricles herdou a mais alta posição no Estado. Não abandonou o sonho de Efialtes de dar independência administrativa aos cidadãos de Atenas. Tem constantemente atacado a Eclésia, pois, além de arrojado, é bravo.
Olhou pensativamente para Aspásia e disse:
— Péricles tem uma hetera como companheira. Seria bom que estivesse no lugar dela, bela Aspásia.
Ela teve um breve riso e Talías continuou:
— Péricles tem um nobre espírito e vive irritado com a intolerância das autoridades religiosas. Dizem que ele costuma dizer aos seus amigos que Atenas precisa de um rejuvenescimento do corpo e da alma. Muitos concordam com ele, mas o fato não está contribuindo atualmente para a sua popularidade. Mas ele, como Zeus, não tem receio de lançar raios, pois é de temperamento olímpico e se distingue pela sua compostura e pela sua dignidade divina. É também muito belo e altivo. Dizem também que tem a cabeça deformada e é por esse motivo que usa quase sempre um enorme capacete. Mas isso pode ser uma calúnia.
Aspásia se calou e a melancolia tornou logo a espalhar sombras sobre seu rosto. Diante disso, Talías, que era naturalmente cordial, disse impulsivamente:
— Quem me dera que eu pudesse ajudá-la como você me ajudou, Aspásia.
Ela sorriu e disse:
— Não fui inteiramente generosa com você, meu caro Talías. Mas ainda não me contou o que lhe aconteceu depois que fugiu de Mileto.
— Tomei o primeiro navio que encontrei e, depois de muitos dias de viagem, acabei chegando a Damasco. Fiz amizade com um rico mercador que não tinha filhos homens. Era da terra de Israel e eu me casei com a filha dele. Abracei a religião deles e... — Fez uma pausa durante a qual ambos riram. — Sofri devidamente a circuncisão, embora ainda seja olhado com desconfiança por meu sogro. É um homem muito devoto, mas não tem motivos de queixa contra mim. Ainda me restava boa parte do ouro que você me deu e eu o empreguei criteriosamente com Efraim. Não sou um homem desconhecido em Damasco — terminou ele, baixando os olhos numa simulação de humildade que fez de novo Aspásia rir.
— Estou muito feliz com o seu êxito — disse ela.
Ele fez menção de tomar-lhe a mão, mas ela o fez parar com outro sinal de advertência.
— É melhor deixar-me agora, Talías-Damos, e que os deuses o acompanhem.
Olhou para Kurda, que ainda estava na escada do jardim, com as mãos nos quadris e as pernas apartadas, numa atitude arrogante. Olhava com mais ansiedade para os dois de longe e evidentemente ainda, procurava escutar o que diziam. Mas os dois haviam falado em voz baixa.
— Que os deuses e Jeová também estejam com você, Aspásia. É bem possível que ainda nos encontremos.
Pensando em Kurda, Aspásia fez uma reverência cerimoniosa a Talías, que correspondeu à saudação e afastou-se dela. Talías passou diante de Kurda com um sorriso amável, mas o eunuco olhou-o zangadamente e não se moveu, de modo que Talías teve que dar a volta em torno dele. Aspásia voltou ao seu lugar no banco do jardim, recordou tudo o que Talías lhe havia dito e pensou: Estou emparedada aqui como uma ninfa presa dentro de um cristal ou sou como Dríope, que foi transformada numa árvore muda e, quando alisar os cabelos para ter certeza de que ainda estou viva, voltarei com as mãos cheias de folhas.
Riu depois e deu um suspiro. Mas as folhas são cheirosas e prateadas. Meu destino poderia ser bem pior.
Kurda foi procurar Al Talíf, inclinou a cabeça quase até os joelhos e disse:
— Senhor, a estrangeira voltou a ser indiscreta.
Al Talif fechou a cara irritadamente.
— Ela aborreceu de novo minhas mulheres, apesar das ordens que eu dei?
— Ah, quem dera que fosse só isso, Senhor! Foi coisa muito pior.
Kurda fez uma cara e uma atitude de tragédia com tal exagero que Al Talif não pôde deixar de sorrir.
— Pode contar-me.
Kurda hesitou. Sabia que Talías era um hóspede de honra da Casa e por isso havia preparado cuidadosamente a sua história.
— Seu nobre amigo, Damos, passeava no jardim pouco antes do escurecer e a estrangeira aproximou-se atrevidamente dele e falou-lhe. Ele quis retirar-se imediatamente, mas ela o forçou a sentar-se num banco de mármore. Com certeza, não querendo ofender uma pessoa de sua casa, Senhor, ele assentiu e ela ficou diante dele e os dois conversaram. Procurei ouvir o que diziam, mas estavam falando muito baixo,
O rosto de Al Talif se mostrou impassível.
— As mulheres de Mileto não vivem reclusas como as nossas e meu hóspede é de Atenas, onde as mulheres têm mais liberdade.
Ordenou a Kurda que se retirasse e o eunuco se sentiu agoniado pela decepção. Quanto a Al Talif, sentiu algum aborrecimento com o procedimento de Aspásia. Apesar da sua malevolência, Kurda não assistira a qualquer inconveniência e, conhecendo bem Aspásia, não acreditava que ela tivesse abordado Damos impudicamente. No que se referia a Damos, ele se casara com uma mulher israelita e sem dúvida estava habituado a uma atitude mais tolerante em relação às mulheres. Aspásia frequentemente se negava a usar um véu no palácio ou no jardim como as outras mulheres e ele, Al Talif, sempre fora indulgente a esse respeito com ela. Era uma bela mulher, sentara-se aos seus pés duas noites antes e ele havia conversado com ela diante dos seus convidados, Damos pensara naturalmente que ela gozava de uma posição privilegiada na casa e quisera fazer-lhe uma gentileza. Al Talif bateu com o dedo nos dentes e mandou chamar Aspásia.
Dentro em pouco, ela entrou no quarto e Al Talif estendeu a mão para ela, que foi imediatamente sentar-se aos seus pés. Como sempre, o belo rosto de Aspásia se iluminara na presença dele. Al Talif serviu-lhe um copo de vinho e entregou-o, beijando-lhe a mão. Ela deu um suspiro. Do seu corpo vinha um suave perfume de lírio e isso agradava a Al Talif, pois era o seu perfume predileto.
— Soube, meu cisne de neve, que foi indiscreta hoje — disse ele.
Aspásia estremeceu e ele notou isso. Ela pensou imediatamente em Kurda. Teria ele ouvido alguma coisa no jardim? Ouvira as palavras de afeição e admiração de Talías? Conseguiu dominar o seu tremor e perguntou:
— Em que foi que o ofendi, Senhor?
— Não é dos nossos costumes, Aspásia, as mulheres se aproximarem de homens estranhos e conversarem com eles em segredo.
Ela se esforçou para rir.
— Isso deve ser coisa de Kurda! Ele tem um espírito como uma cloaca imunda. E minha conversa com seu hóspede Damos — não é assim que ele se chama? — se referiu apenas às meninas que ele recebeu de presente para sua esposa.
Al Talif olhou-a com seriedade e perguntou:
— E que foi que disse nessa conversa, minha adorada?
— Disse-lhe que pedisse à mulher dele que amasse as duas meninas e fosse uma mãe para elas.
— Você é muito obstinada! Queria ter certeza de que as meninas não seriam utilizadas como eu havia determinado.
Aspásia sabia que sua melhor defesa era ser audaciosa. Aproximou-se de Al Talif, beijou-lhe a boca e disse:
— Pode qualquer mulher confiar num homem? É verdade que eu desejava tranquilizar-me. Não merecia isso, depois do castigo que me fez sofrer?
Deixou cair o vestido de modo que as espáduas e as costas com as marcas das chicotadas foram bem visíveis. Deixou-o depois cair ainda mais e os seus belos seios se ostentaram para de. Ela o olhou ingenuamente como se isso tivesse acontecido por acaso e o rosto moreno de Al Talif se ruborizou. Ele estendeu as mãos para os seios dela e ela sentiu o coração bater de desejo, não de medo.
— Há ocasiões — murmurou ele — em que eu penso que você é uma verdadeira criança.
Beijou um dos seios e Aspásia fechou os olhos, agradecendo mentalmente a Targélia os truques e controles que lhe havia ensinado.
— Perdoo o que fez — disse ele.
Lembrou-se então do que pensara durante todo aquele dia na cidade e disse:
— Devo partir para Damasco amanhã. Ficarei fora daqui por algum tempo. Tenho pensado muito na falta que vou sentir de você, meu doce tesouro, e da minha impaciência por voltar aos seus braços. Resolvi por isso não me privar da alegria de vê-la e de receber seus beijos. Vou levá-la comigo.
O efusivo prazer demonstrado por ela deu-lhe satisfação. Apertou a mão dele de encontro ao seio sem nenhuma necessidade de dissimular.
— Senhor, só lhe posso dizer que, se ia ficar ansioso por mim naquela grande cidade, embora rodeado das suas mulheres, muito mais ficaria eu ansiosa, se ficasse aqui sozinha, sonhando com a sua pessoa em minha cama e desejando a sua volta!
Ele percebeu sinceridade e felicidade na voz dela e compreendeu que era aquela a primeira vez em que tinha certeza de que ela não o estava enganando com os artifícios que aprendera. Emocionou-se e sentiu vergonha do seu prazer.
— Mas você usará sempre um véu — disse ele, acariciando-a.
— Tenho sido indulgente com você aqui em minha casa, mas não poderá ser assim durante a viagem, nem em Damasco. Não quero que ninguém olhe para você e sinta logo vontade de matar-me para levá-la.
— Como o touro que roubou Europa? — perguntou ela, rindo.
— Já ouvi dizer que as mulheres de Damasco são muito belas.
— Ao contrário. São extremamente feias. Os homens são belos e corruptos e as mulheres são virtuosas e horrendas. Usam véus menos para esconder os rostos do que para livrar os homens do sofrimento de olhar para elas. Se os homens de Damasco vissem seu rosto, doce Ísis, perderiam todos a cabeça.
Al Talif fê-la deitar-se ao lado dele no divã e Aspásia pensou ao abraçá-lo: Infelizmente, eu o amo, mas ele nunca saberá disso.
Capítulo 14
Aspásia nunca tinha visto uma caravana. Só depois de fazer parte da caravana de Al Talif, começou a compreender que tinha vivido tão confinada dentro do palácio que, apesar das bibliotecas e dos livros comprados para ela, fora sufocada não apenas pelo luxo, mas também pela monotonia e pela falta de comunicação com os outros. Na casa de Targélia, tinha havido a diversidade e os ensinamentos dos professores, as visitas ao porto e às lojas e a presença dos estranhos que eram amigos de Targélia. Tinha havido sempre conversas ou discussões estimulantes e trocas de ideias grandes ou pequenas. Havia constantemente notícias do mundo levadas pelos convidados de Targélia, que incentivavam as suas heteras inteligentes a fazer perguntas, a dar opiniões e a discutir amistosamente. Chegavam constantemente meninas que eram examinadas pela mestra das cortesãs, que decidia ou não aceitá-las. E tinha havido risos e jogos entre as alunas, brincadeiras, conversas, dança e música.
Mas fazia mais de três anos que Aspásia não tinha acesso a nenhuma dessas coisas. Nada tinha visto além do mercado. Não entrara em cidade alguma. Não tinha visto o mar, mas apenas um riozinho que passava perto do palácio. Vivia aprisionada entre paredes, guardada a todo instante pelos eunucos, e nunca via outras pessoas, salvo em companhia de Al Talif, quando este recebia convidados. Tinha falado brevemente com esses convidados, que lhe admiravam a beleza, mas ficavam desconcertados com o seu espírito. Tenho vivido como morta para o mundo e o mundo tem estado morto para mim, pensava ela. O tempo tem passado como o vento do deserto, vindo de onde não sei e indo para lugares misteriosos que eu nunca vi. Tenho vivido dentro de um sonho e só agora percebo que os sonhos me sufocaram. Só desperto quando o senhor me chama para atender ao seu prazer. Depois, torno a adormecer e o mundo rola sem meu conhecimento ou consciência. Durante esse sonho, tenho lutado desesperadamente para continuar viva, mas com o correr dos meses e dos anos as minhas lutas foram menores e a minha inquietação decresceu. Tenho sido uma rã numa moita de lírios dentro da água estagnada de um jardim silencioso e deserto, olhando sem coragem para o sol e nada vendo ao derredor de mim. A pederneira não dá centelhas se não for batida pelo ferro e, há muito tempo, meu espírito não tem tido contato com o fogo.
A sua agitação, quando a caravana partiu muito antes do nascer do sol numa fria manhã de outono, era tão grande que o coração lhe batia febrilmente e ela quase chorava de alegria. Velada, envolta num quente manto carmesim de lã, fora guiada para fora dos muros por Al Talif, que sorria para os seus olhos cintilantes como um pai. Archotes acesos tinham sido cravados em seus suportes nos muros externos e lançavam sombras avermelhadas ao vento da madrugada sobre a caravana que esperava.
Aspásia olhava para tudo ansiosamente. Tinha a impressão de que uma multidão de camelos, asnos e cavalos carregados se estendia da luz vacilante dos archotes ao fundo da escuridão, tanto de um lado, quanto do outro. Percebia o movimento de homens e de animais, os gritos dos camelos, os relinchos dos cavalos, os zurros dos asnos, nos atarefados preparativos da partida. Homens com grandes mantos escuros e turbantes que lhes cobriam as cabeças e os rostos corriam de um lado para outro, levando cargas que eram colocadas no lombo dos animais, falando, praguejando e rindo, com os olhos muito vivos à luz dos archotes. Havia neles um ar do barbarismo do deserto e sua voz era ouvida em gritos ásperos e impacientes. Berravam tanto quanto os animais que tratavam, arrastavam ou espancavam. O cheiro mau que se lhes desprendia dos corpos suarentos e sem banho era também furioso e nem o perfume dos jardins atrás dos portões nem o aroma do vento podiam atenuar aquele fétido composto de suor, falta de banho, lã molhada, urina e esterco. Tinham uma animalidade que a delicada Aspásia julgava repulsiva. Apoiava-se no braço e no ombro de Al Talif, que vigiava tudo atentamente, cercado de guardas com espadas e lanças.
Aspásia viu que os camelos eram amarrados em filas de cem, com cordas de crina que iam da traseira de um animal ao pescoço do outro, e que estavam todos bem carregados de mercadorias. O primeiro camelo, chefe da caravana, todo enfeitado de panos coloridos, franjas e borlas e campainhas, batia nervosamente as patas. Um asno, que não levava carga, devia guiar as longas filas de camelos. Olhava calmamente para tudo e Aspásia, rindo, apontou-o a Al Talif.
— Ah, sim — disse ele. — É um animal muito sabido que tem profundos pensamentos próprios. Não tem muito boa opinião dos camelos, mas estes confiam nele.
Deixou Aspásia, afastou os guardas para o lado e foi até onde estava o asno.
— Estou muito orgulhoso de você, Hamshid. Sei que nos protegerá mais uma vez.
O animal agradeceu o elogio com um grave zurro e esfregou o focinho em Al Talif, que o afagou carinhosamente e voltou para onde estava Aspásia. Ela estava rindo por trás do véu e os seus olhos castanhos de cílios dourados estavam acesos de alegria.
— Senhor — disse ela — tenho a impressão de que ama mais os animais do que qualquer criatura humana, homem ou mulher.
Ele respondeu com toda a seriedade:
— São honestos e trabalham arduamente. Por isso é que os respeito. Poderiam sobreviver sem nós. Nós é que não poderíamos viver sem eles. Diante dessa verdade, onde é que fica a nossa inteligência vaidosa?
Aspásia ficou por um momento desconcertada. Pensou de novo, com um suspiro, como o seu espírito se havia embotado, por falta de exercício e de estímulo, dentro dos muros do palácio. Decidiu não desagradar em nada a Al Talif, pois o desprazer dele a desanimava e ela queria rever o mundo cheia de alegria, como se a tivessem libertado de uma prisão. Queria provar, tocar, cheirar, ouvir e ver tudo. Além disso, se Al Talif ficasse satisfeito, poderia levá-la em outras viagens, talvez até à Grécia.
Notou pela primeira vez que ele estava armado, com uma grande espada curva à cintura. Como os homens que o cercavam, estava vestido com roupas de lã escura e um manto pesado, levando também à cabeça um pano de lã preso com cordas. O pano áspero lhe cobria não apenas a cabeça, mas também o rosto, do nariz para baixo, deixando a descoberto os olhos, os quais mudavam do cinza para o castanho à luz cambiante dos archotes, enquanto ele vigiava homens e animais.
Aspásia só o vira em momentos de graça e elegância, como um sátrapa aristocrático. Agora, transformara-se num homem do deserto como os outros. Tinha a magreza feroz dos filhos do deserto, o mesmo conhecimento dos lugares distantes, dos perigos, dos riscos, dos arcais intermináveis e das tempestades. Não tinha certeza de conhecê-lo mais. Não sabia se algum dia já o havia conhecido. De repente, ele olhou para ela e, embora o rosto estivesse oculto, ela pôde ver que os olhos sorriam como se lhe tivesse adivinhado os pensamentos e se divertisse com eles. Tornou a apoiar-se nele.
Os guardas abriram caminho e Talías se aproximou numa saudação. Estava também vestido como Al Talif, mas os seus olhos se mostravam jovens e alegres acima do pano que lhe cobria o rosto e um anel de cabelos castanhos aparecia em sua testa. Olhou brevemente para Aspásia.
— Minha caravana partirá amanhã, senhor. É muito pequena em comparação com a sua.
— Não é preciso temer os ladrões na Pérsia — disse Al Talif. — Mas creio que já sabe disso.
— É verdade, mas nem sempre estaremos na Pérsia. Já fui roubado duas vezes.
— Viajará sob a minha proteção, meu caro Damos. Levamos bandeiras reais e nem os ladrões mais audaciosos se atreverão a atacar-nos entre a Pérsia e Damasco. Além disso, estamos bem armados, pois pode acontecer que algum bando despreze nossos estandartes ou não os reconheça.
Os olhos de Talías mostraram inquietação.
— Nunca matei um homem...
— Já matei muitos e não apenas na guerra — disse Al Talif. — Depois da primeira morte, as outras perdem a importância.
Falava com indiferença e com um toque de desdém pelo grego. Os seus olhos se tornaram frios e arrogantes.
— Viajará a meu lado, Damos. Tenho o mais forte e mais nobre dos cavalos da Idumeia que nada teme, exceto uma égua nervosa.
Talías riu, mas estava ainda inquieto. Levantou o manto como se quisesse examinar os pés e Aspásia viu que ele estava usando, como Al Talif, botas altas de couro. Em seguida, deixou cair o manto, cumprimentou e afastou-se. Al Talif ficou a olhá-lo e disse:
— Nosso Damos nunca matou um homem. Creio também que não montou ainda em muitos cavalos.
— Eu também nunca montei num cavalo — disse Aspásia e ele riu.
—•Meu doce rouxinol, você viajará com conforto e sob proteção, como lhe prometi. Não haverá vento do deserto, areias em tempestade ou sol escaldante que possam atacar a sua pele delicada.
Estendeu a mão, levantou um pouco o capuz de Aspásia e lhe afagou os cabelos. Acrescentou:
— Nem a glória destes cabelos, que são para mim mais preciosos do que todo o ouro guardado nos cofres de meus bancos.
Essa frivolidade a desconcertou e Al Talif percebeu isso e tornou a rir.
— E aqui está o meu bom Karawan-Serashkier, que nos guardará a todos e nos levará em segurança ao nosso destino com todas, as nossas mercadorias, ao mesmo tempo que se encarregará de resolver as pendências entre os meus homens.
Aspásia viu então aproximar-se o homem mais alto e mais magro que já conhecera, vestido em mantos de lã preta. Tinha tirado o pano que lhe cobria o rosto e ela pôde ver o aspecto feroz das suas feições, a violência destemida dos olhos vivos e pretos e a crueldade da boca de lábios finos. Fez uma reverência a Al Talif.
— Tudo pronto, Senhor,
A voz dele tinha a aspereza do grito de um falcão.
— Muito bem, Raís — disse Al Talif.
Tocou no ombro do homem e os dois trocaram olhares de respeito mútuo.
A hora da partida tinha chegado e o barulho dos homens e dos animais se elevou a uma altura incrível. Parecia discordante e ensurdecedor, mas Aspásia viu que à confusão sucedera a ordem. O brilhante crescente de âmbar da lua aparecia no alto de uma montanha, cujos contornos eram ainda imprecisos como os de uma nuvem escura dentro de outra nuvem mais clara. Mas a leste já havia uma sombra azulada. Um grupo de mulheres veladas se aproximou dos guardas. Al Talif apontou para elas e disse de repente a Aspásia:
— Pode ir. Não tenha medo.
Duas das mulheres levavam lanternas e Aspásia acompanhou o grupo silencioso, sabendo que eram cinco das mulheres que a serviam e que cuidariam dela. Al Talif não havia dito a ela como viajaria. Olhou para ele. Estava falando com um dos guardas e parecia tê-la esquecido, como se ela fosse uma criatura sem importância para ele.
Ela não falou com as mulheres, que a cercaram. As das lanternas iam à frente, passando por filas intermináveis de camelos, cavalos e jumentos. Os archotes borbulhavam e cheiravam a resina quente. Os homens não tomavam conhecimento do pequeno grupo de mulheres, as quais tinham para eles menos valor que os animais.
A caravana passara a ser um vago movimento dentro da escuridão, embora Aspásia ouvisse os relinchos, os gemidos e as vozes rudes dos homens. As mulheres levantavam as lanternas bem para o alto a fim de que Aspásia não tropeçasse. Avistou a abóbada do palácio acima dos muros e teve a impressão de que a mesma formava uma espécie de névoa sob a lua e as estrelas. Vivera prisioneira sob aquela abóbada muitos anos. Mas estava livre. Sentiu uma súbita exultação porque era -jovem e era devolvida ao mundo que tanto desejava e amava.
Olhou em volta com curiosidade. A caravana começava a mover-se. A luz da lanterna brilhava sobre um olho aqui, sobre um vulto ali, sobre uma perna musculosa mais adiante, ou sobre uns arreios. Ao longe, ouvia-se o tilintar das campainhas do camelo-chefe. Uma trombeta foi tocada. As mulheres estugaram o passo e Aspásia as acompanhou. Tinham receio de ser deixadas.
Chegaram a um grupo de quatro plataformas compridas e largas, cada qual puxada por seis cavalos pretos com arreios de prata e penachos na cabeça. Sobre cada plataforma havia uma grande tenda de lã castanha com as cortinas fechadas. A primeira era a maior e um nômade com um estandarte montava um dos cavalos.
— Essa é a tenda do senhor — disse uma das mulheres.
Até as rodas das plataformas revestidas de ferro eram incrustadas de prata e esmalte. A segunda tenda, um pouco menor, tinha sido reservada para Aspásia e duas de suas mulheres. As outras dormiriam na terceira tenda até que fossem chamadas a prestar os seus serviços.
Entre elas, como Aspásia calculava, havia dançarinas, cantoras, peluqueiras e músicas. A quarta tenda também levava mulheres.
Aspásia subiu a plataforma para a sua tenda acompanhada por duas escravas. A cortina da porta foi aberta. Ela entrou e ficou deslumbrada. Lâmpadas suaves de vidro amarelo estavam presas às paredes, cobertas de tapeçarias belas e luxuosas, ornamentadas com curiosos desenhos de flores, aves, árvores e arabescos entretecidas com fios de ouro e prata que brilhavam à luz das lâmpadas. O chão da tenda era coberto de tapetes persas e indianos de colorido não menos, brilhante, espessos e macios sob os pés. Havia pequenas mesas e armários de bronze e os famosos coxins vermelhos e azuis de Damasco, nos quais a pessoa podia sentar-se, deitar-se ou dormir, todos com franjas e borlas douradas. Em muitos deles, havia colchas de lã afegã e de seda dobradas para proteger o sono de qualquer friagem do deserto ou das montanhas. Toda a tenda era impregnada do cheiro do sândalo e do nardo. Aspásia sentiu o calor da tenda e a sua fragrância lânguida e sonolenta. Teve de súbito vontade de dormir, pois havia estado nos braços de Al Talif cheia de ansiedade e de paixão e não dormira a noite inteira. As mulheres lhe tiraram o véu e as outras roupas e lhe vestiram uma camisa de linho branco, depois do que ela se deitou num dos coxins e adormeceu quase no mesmo instante, sem ver que uma colcha fora estendida sobre ela e que as outras mulheres tinham-se deitado também nos coxins. O movimento do veículo era embalador e o aroma, envolvente. Aspásia dormiu como se tivesse tomado algum remédio.
Mas acordou ao amanhecer, depois de um breve sono. As mulheres dormiam e gemiam baixinho, de boca aberta. Aspásia jogou um manto sobre a camisa, abriu a cortina da tenda e olhou pela porta. Mas ficou intimidada e sua velha exaltação diante dos espetáculos da beleza voltou como uma pessoa errante que foi banida e volta à pátria para reencontrar tudo, inebriada. Ou como um cego que recupera a visão.
A caravana estava atravessando uma planície semeada de rochedos grandes e pequenos e de muita poeira. Mas o sol no oriente era um vasto incêndio de ouro palpitante e de açafrão laivado de escarlate e de esmeralda e parecia estender-se de ponta a ponta do horizonte. Lançava sombras amarelas e violáceas no chão cinzento. As pedras na terra nua se acendiam de instante a instante e ardiam em gigantescos e efêmeros núcleos de fogo. Não havia sons nessa estupenda incandescência do céu, exceto os que fazia o carro na sua marcha. Então, na fímbria do mundo, a aresta de rubi do sol começou a subir na sua panóplia de bandeiras à espera e a tenda da noite, com o seu tom de jacinto, se dobrou no ocidente.
Aspásia sentiu que estava vendo pela primeira vez em sua vida o sol nascer. Abriu mais as cortinas da tenda e o seu rosto foi iluminado pela grandeza da cena que contemplava de olhos escancarados. Os cabelos lhe esvoaçavam ao vento matinal.
Ouviu então o tropel de um cavalo e viu surgir ao lado da tenda um homem montado como uma estátua de ferro a destacar-se contra o fundo revolto do céu. Reconheceu Al Talif montado num grande cavalo, com os olhos voltados para a frente. Não pareceu ver a mulher à porta da tenda.
Parece um centauro, pensou Aspásia, e é tão irreal como se o fosse. Cavalgava ao lado da tenda, silencioso e firme, alto e flexível. Nunca parecera tão remoto a Aspásia, tão afastado dela, tão estranho, tão dominante de tudo o que o cercava. Sentiu uma ponta de medo e um tremor de orgulho. Al Talif tocou o cavalo com o chicote e o animal se lançou para a frente como se estivesse voando e não correndo, tal como se fosse Pégaso, e desapareceu com o cavaleiro. Uma estranha impressão de solidão e tristeza caiu de repente sobre Aspásia e ela tornou a deitar-se nos coxins, mas não para dormir.
A caravana fez uma parada. Aspásia se levantou e as duas mulheres se levantaram com ela, resmungando. Abriu a cortina da tenda e viu que a caravana havia parado num oásis verde onde havia muitas palmeiras. Os homens estavam gritando e começavam a encher baldes e vasilhas com água da fonte para os cavalos e camelos. Uma fina poeira dourada flutuava no ar quente. O sol já ia bem alto no céu e o calor tocava o rosto de Aspásia como uma ardente mão. Não sabia se devia ficar na tenda ou se podia descer. As mulheres a vestiram, cobrindo-a depois com o véu e com o manto. Em seguida, fizeram uma reverência e disseram que ela podia acompanhá-las. Logo que desceu, Aspásia viu uma mulher mais velha, velada e envolta em trajes escuros, que levava severamente pela mão uma menina. O rosto da menina estava descoberto, mas besuntado de cosméticos contra a luz violenta e ela mostrava um ar de confusão e de pavor. Não devia ter mais de dez anos. O vestido era azul e branco, mas os cabelos eram da cor do vinho castanho. A mulher a puxava com impaciência pela mão e dizia alguma coisa numa língua que Aspásia não podia compreender, mas que era evidentemente uma repreensão. A criança chorava, num pranto soluçante e assustado, com a cabeça baixa.
As duas se aproximaram da tenda de Al Talif e subiram. Dois dos homens de Al Talif, que viajavam na tenda com ele, apareceram, desceram da plataforma e tomaram o caminho da fonte. O coração de Aspásia se confrangeu de cólera e desespero pelo choro da menina. As mulheres que a serviam quiseram que ela acompanhasse os homens, mas ela preferiu ficar. As mulheres esperaram pacientemente. Aspásia ouviu então um grito abafado de dor dentro da tenda de Al Talif e teve de se conter a fim de não correr para lá. Sentia-se mal. A menina dentro da tenda tornou a gritar como um animal torturado. Ouviu então a pancada surda de uma mão de homem na carne infantil e os gritos da menina se transformaram em gemidos de sofrimento. A voz de Al Talif pôde então ser ouvida, entrecortada de raiva e impaciência.
Mas eu sempre soube disso, pensou Aspásia. Nunca ignorei o destino das mulheres do harém, das mocinhas, das meninas. Entretanto, nunca ouvira até então os gritos de uma criatura indefesa. Sentiu-se tomada de pena e de humilhação. Apenas algumas horas antes, o corpo moreno de Al Talif estivera deitado ao lado de sua carne branca, abraçado com ela e a falar-lhe com voz carinhosa. Dissera que ela era a luz de sua vida, o seu lírio, o seu cisne, a sua pomba. Mas Targélia sempre havia dito às suas alunas que os juramentos de um homem, os seus protestos de amor eterno não passavam de mentiras com a intenção única de enganar quem fosse no momento a sua companheira e perturbar-lhe os sentidos. Fora advertida do perigo de amar qualquer homem, pois isso poderia levar a mulher à destruição. A mulher que amava se transformava numa vítima da indiferença brutal do homem, dos seus enganos e da sua perfídia. Odeio-o, pensou ela com raiva e sou contrária principalmente ao que ele está fazendo com aquela criança inocente.
Tentou dominar o coração revoltado. As mulheres que a acompanhavam tinham também ouvido tudo e não davam qualquer importância ao fato. Foi com elas até à área reservada para o descanso das mulheres no oásis. Deram-lhe para beber água bem fria. Estenderam na relva uma toalha de linho na qual colocaram um jarro de vinho, fatias de carne de carneiro, frutas, pão, queijo e um vaso cheio de espumante leite de cabra, além de um prato de alcachofras oleosas. Todas as mulheres, e eram muitas, se sentaram em círculo e começaram a conversar. Tinham tirado os véus. Uma parede de lona fora levantada para protegê-las dos olhares dos homens. Aspásia, como a favorita do senhor, ficou isolada das outras, mas era observada e servida. Não teve vontade de comer. Limitou-se a beber água. Estou sendo ridícula, pensou ela. Sabia desde o começo quem ele era. Sabia que era impiedoso e cruel como uma criança, mas também bondoso e dotado de inteligência e poder. Apesar disso, deixei-me iludir, julgando-o superior aos outros homens nos seus apetites e paixões. Targélia não me havia avisado? Entretanto, nos braços desse homem, fui como cera derretida e acreditei nos seus juramentos, regozijando-me com os seus carinhos! Ele não me iludiu. Eu mesma é que me iludi, porque desejava a ilusão. Mas, a partir deste momento, não serei mais iludida.
Uma sensação de energia a empolgou e até o seu desespero se atenuou. Poderia fugir dele como Talías fugira da casa de Targélia? Poderia apoderar-se do ouro e das joias que Al Talif lhe dera e ir para a Grécia? Infelizmente, era uma mulher, e as mulheres que viajavam sozinhas corriam sérios perigos. Mas eu sou forte, aprendi as artes da defesa pessoal em casa de Targélia e não hesitaria em matar, se fosse necessário. Os seus pensamentos se tornaram um tanto confusos quando ela pensou na situação da mulher no mundo. Pensou então em Talías. Ele tinha jurado ajudá-la se ela precisasse da sua ajuda. Devia muito a ela, era naturalmente benévolo e muito a amara, ao menos por uma noite. Ainda assim, como podia uma mulher confiar num homem? A voz cética de Targélia lhe ressoava aos ouvidos. Tomem, arranquem tudo de um homem enquanto ele está encantado em vocês e então partam, com a alma e o espírito intactos, para outro homem que possa dar presentes. Se um homem se casar com uma de vocês, a situação muda por completo, pois aos olhos do homem uma esposa, ainda que traída ou rejeitada, continua a ser uma parte dele e tem direito a receber alguma honra e responsabilidade dele. É esse o egoísmo dos homens. Mas a mulher sem casamento não tem proteção, exceto de si mesma. Nunca se esqueçam disso, pois do contrário estarão em grave perigo.
Devo ligar Talías a minha pessoa, para que eu possa usá-lo, pensou ela. As suas mulheres insistiram para que comesse. Mas ela sacudiu a cabeça, recusando. Pensou que, se uma mulher se tornasse tão cruel e impiedosa quanto um homem, poderia ter êxito. Mas quanto isso custaria à sua feminilidade, à sua alma de mulher, à sua ternura, doçura e compaixão?
Os olhos de Aspásia estavam secos, mas ela chorava intimamente. Devia haver alguns homens capazes de amar com paixão uma mulher, honrando-a e respeitando-a sem deixar de levar a sua própria vida no mundo dos homens. Seguramente o amor não devia ser apenas luxúria para todos os homens.
Todos estavam voltando à caravana com grande alarido e Aspásia se levantou com suas mulheres. Sentia um profundo cansaço, uma indizível depressão. Passou pela tenda de Al Talif. A cortina se abriu e a mulher idosa apareceu, levando novamente a menina pela mão. A menina chorava como um cordeirinho ferido e mutilado, tropeçando, curvada e com as mãozinhas a agarrar a parte inferior do corpo. Aspásia não se pôde conter. Correu para a menina e tomou-a nos braços, com grande espanto das mulheres. Apertou de encontro ao peito a cabecinha castanha. Murmurou palavras de consolo e a menina chorou e agarrou-se a ela como a uma mãe. Al Talif apareceu então à porta da tenda, apertando o cinto.
Aspásia olhou para ele e Al Talif lhe viu os olhos acesos. Viu-lhe o desgosto e o horror. Mas nada disse. Nem sequer encolheu os ombros. Sou uma louca, pensou Aspásia. Que é para ele essa menina ou qualquer outra mulher?
Alisou os cabelos da menina e restituiu-a à mulher que a guardava. Al Talif desceu da plataforma e foi para onde estavam os seus homens. Não tinha por ela nem desprezo e isso era o pior de tudo. Entrara no mundo dele por seu consentimento e pelo consentimento de Targélia. Tinha sabido desde o começo que para Al Talif ela era apenas uma mulher.
Por Castor e Pólux, jurou solenemente Aspásia, recuperarei o domínio de mim mesma e nunca, a partir deste momento, um homem me iludirá mais. Enganá-lo-ei como ele enganou outras mulheres, pois uma mulher é mais inteligente que qualquer homem.
Sem dúvida, naquele mundo complexo e vário, podia haver amor, orgulho e dignidade entre um homem e uma mulher. E eu tenho de encontrar um homem assim, ainda que tenha de percorrer o mundo inteiro.
Ela não sabia que Al Talif a amava e que para ele as outras mulheres eram apenas diversão e necessidade e tinham, principalmente, o encanto da novidade. Ele percebera a repulsa e o aborrecimento dela e ficara irritado. Aspásia tinha passado mais de três anos naquela casa e havia ficado cega e surda, sem compreender coisa alguma. Tinham ambos conversado durante inúmeras horas e isso não dera resultado algum. Ele queria ir para ela e tê-la nos braços, ainda impregnado do suor e do sangue da menina anônima. Mas Aspásia não podia compreender, embora fosse uma hetera. Ele também estava cheio de dor e de raiva. Ela nunca iria compreender que ele a amava e ele não tinha ânimo de tentar convencê-la. Entre homens e mulheres, ainda que falassem a mesma língua, havia um abismo intransponível, escavado na própria vida e na própria natureza deles.
Enquanto suas mulheres dormiam no calor do fim da tarde, Aspásia escreveu para Targélia, usando as tabuletas e o estilete que levava numa de suas arcas.
Salve, Targélia, que me é mais cara do que uma mãe!
Durante todos estes anos, não nos temos escrito cartas, minha doce amiga, porque não podia mandar cartas, nem recebê-las, se me mandassem. Não tenho sido infeliz na minha situação. Tenho tido, na verdade, muita felicidade.
Mas agora acho as circunstâncias insustentáveis e intoleráveis. Estou com a ideia de fundar em Atenas uma escola para moças, embora não uma escola de cortesãs. Não ria, cara amiga e mãe.
Mas sei que não vai rir, porque sempre soube o que eu trazia na alma desde a infância e sabe da minha rebelião contra a degradação das mulheres. Na Pérsia, a degradação é muito maior que em Mileto ou na Grécia. Sabe certamente disso, pois não é claro que sabe de todas as coisas? Basta. Vou mandar esta carta graças aos bons ofícios de um tal Damos de Damasco, que é ali um rico mercador. Imploro-lhe que ajude esta a quem amou tanto quando ainda era uma criança em sua casa. Quando for possível, irei vê-la e à minha antiga casa. Até lá, peço que me procure uma casa em Atenas onde eu possa viver e abrir minha escola. Que Hermes, o veloz, dos pés e do capacete alados, lhe leve esta carta e me traga a sua resposta aos cuidados do mercador Damos, que mora em Damasco, na rua chamada Direita. Nunca a esqueci nem às minhas irmãs e anseio pelo momento de abraçá-la e de lançar-me a seus pés como sua amada filha, para chorar nos seus braços e contar-lhe minha história. Entrego-a à proteção de Atena Pártenos, a quem sempre venerou e honrou.
Estava chorando quando assinou e fechou a carta, que depois guardou no seio. O que tinha de fazer depois era mais perigoso e o coração lhe batia mais depressa só de pensar. Olhou para suas mulheres e viu que ainda dormiam. O calor dentro da tenda era quase intolerável, embora já estivesse perto do crepúsculo. Prendeu o véu diante do rosto, levantou a cortina da tenda e saiu para a plataforma, olhando furtivamente para um lado e para outro, com o corpo balançado pelo movimento da plataforma. Os homens que tangiam os cavalos estavam quase adormecidos nas suas selas e o estandarte estava meio caído sob a luz ainda, forte do sol. Aspásia esgueirou-se pelo lado da tenda e encontrou, como esperava, um canto estreito da plataforma que estava coberto de pó e de areia. Sentou-se alí, à espera do aparecimento de Talías, que ela sabia que costumava andar a cavalo em companhia de Al Talif e, às vezes, sozinho.
O céu do poente era, na sua vastidão e no seu colorido, ainda mais belo do que tinha sido o do amanhecer e toda a terra estava agora rósea da luz do sol que se aproximava do horizonte como um enorme disco de fogo. Ao longe, havia uma cadeia de montanhas que parecia uma fileira de dentes negros quebrados. De repente, uma miragem apareceu no deserto, a miragem de uma bela cidade branca cheia de torres, torreões e minaretes, com muralhas douradas. Tão clara era a visão, tão perfeita nos seus detalhes sob a luz ardente que Aspásia se convenceu de que a cidade estava realmente próxima. Mas, em dado momento, tudo desapareceu.
Manteve o véu sobre o rosto a fim de proteger-se do sol. Ouviu o tropel de um cavalo que se aproximava e, dando graças aos deuses, viu que o cavaleiro era, na verdade, Talías e estava sozinho. Ele a divisou sentada na plataforma e sofreou o cavalo, admirado. Ela retirou o véu e levou um dedo aos lábios, implorando silêncio. Ele tocou o cavalo com os calcanhares e chegou mais perto, correndo por toda a parte os olhos azuis inquietos. Viu o belo rosto de Aspásia pálido e choroso e sentiu o coração comovido, apesar de todo o seu temor de Al Talif. Inclinou o corpo do alto do cavalo e perguntou num sussurro:
— Que é, Aspásia?
Ela se levantou para ficar mais perto dele, O cavalo tinha um hálito quente que lhe queimava o rosto. Podia ver perfeitamente os grandes dentes brancos do animal. Estendeu a carta a Talías, que logo a pegou.
— Mande esta carta antes de chegarmos a Damasco, meu caro Talías. Peço nela que a resposta seja mandada para você, naquela cidade.
Ele olhou a carta, viu a quem era dirigida e hesitou.
— Não tenha medo, que não o traí. Dei a Targélia seu novo nome e o nome da rua em que você mora em Damasco. — Com as mãos juntas no peito, suplicou: — Ajude-me, Talías, como eu o ajudei, pois estou em perigo.
Ele arqueou as sobrancelhas cheio de espanto e ela continuou:
— Sou menos que uma escrava.
Pensou então: Sim, sou menos que uma escrava, pois tenho de fugir de um amor que me atormenta e que eu desprezo.
Os grandes olhos castanhos de Aspásia, tão cheios de cintilações e de fulgores, fixara-se em Talías com tanto desespero que ele se esqueceu de ter medo. Guardou a carta no manto e sorriu numa promessa a Aspásia. Bateu então com os calcanhares nos flancos do cavalo e o animal partiu impetuosamente.
Aspásia sentia-se abatida e fraca. Talías nada tinha falado, mas ela sabia que podia confiar nele, e não falara porque era um homem cauteloso. Continuou ainda por algum tempo sentada na plataforma, procurando refazer-se da emoção. Levantou-se por fim e voltou para a tenda com a luz ensanguentada do poente. As mulheres se espreguiçavam nos coxins, bocejando.
Al Talif não mandou chamá-la naquela noite, nem na noite seguinte e Aspásia não sabia se devia alegrar-se ou sentir-se deprimida. Desejava-o terrivelmente e sabia que isso era apenas o começo da dor que iria sentir. Mas a sua resolução continuou firme.
Capítulo 15
A caravana subia lenta e pesadamente o alto platô entre os vales do Tigre e do Indo, uma vasta bacia cercada de montanhas, alimentada pelos rios Tigre e Eufrates e parcialmente dividida pelo deserto. O ar do platô era frio e os cumes das montanhas estavam já cobertos de neve. Ali, naqueles imensos ermos, viviam leões e tigres, veados, linces, lobos, hienas, chacais, javalis, porcos-espinhos, texugos, lebres, martas e doninhas, cujas vozes podiam ser ouvidas à noite em coros estridentes nas montanhas ou na planície. O dia era repleto dos gritos e dos cantos de inúmeras variedades de aves. Às vezes, encontravam-se ali os raros e belos gatos persas, que podiam ser domesticados e passavam a constituir o enlevo das mulheres das cidades, que gostavam de acariciá-los e tratá-los, murmurando palavras doces diante daqueles misteriosos olhos azuis. Os rios eram cheios de salmões, esturjões, arenques, percas e bremas, especialmente nos estuários.
O platô fervilhava com a vida dos animais e das aves e nele se encontravam pequenas moradas dos viris e robustos camponeses, sadios e bravos, dos quais Dario falara com tanta admiração e orgulho e que encarnavam para ele tudo que havia de sólido e de forte numa nação. "Se esses camponeses se tornarem urbanos e corruptos com a civilização, o país morrerá com todas as suas virtudes que nascem do solo, do ar puro e das florestas cerradas". Falara também deles com orgulho, dizendo: "Um persa, filho de persas, um ariano, de raça ariana, não deve dominar toda a terra? Temos o sangue de uma raça viril". Ao que vários filósofos e soldados gregos replicavam: "Somos chamados de efeminados pelos persas, cujos homens pintam os lábios, mas nós os derrotamos com os nossos arcos e a nossa força feminina. Fomos nós que iniciamos a destruição daquele império insaciável".
Mas um filósofo persa dizia também em resposta: "Começamos a decair quando construímos cidades enormes e esquecemos nossos deuses. O ar de uma cidade é fétido e os seus templos são corruptos. As cidades não são a verdadeira morada de uma raça gloriosa; são os seus túmulos".
Sozinha, isolada, quase desprezada, Aspásia estava, apesar disso, com o seu recém-desperto sentimento da vida, entrando na existência como se saísse de um sonho que a paralisara. Participava novamente da vida do mundo, dos seus sons e das suas visões, das suas mudanças e vitalidades empolgantes, do seu tumulto e do seu imprevisto, interessada profundamente em tudo, malgrado a sua tristeza. Sentira a mesma coisa ao deixar o refúgio da casa de Targélia, mas naquela ocasião o sentimento era mais intenso, pois vivera inteiramente emparedada na casa de Al Talif. Vivia numa estuante expectativa, numa transfiguração de esperança, embora tudo fosse ainda fraco e eivado de tristeza. Dizia a si mesma, parafraseando um filósofo grego: Observo, logo existo. A sua vivacidade natural voltava pouco a pouco, parecendo o restabelecimento da circulação num braço ou numa perna muito tempo apertados.
Ainda que esperasse o chamado de Al Talif que nunca vinha, sentia uma atenuação do terrível desespero que a princípio a acometera. Descobriu que havia momentos em que se esquecia inteiramente dele e olhava para as montanhas, os rios, as florestas, os vales, as planícies, os penhascos, os lagos azuis e as cataratas com ansioso assombro. Muitas vezes, abria um pouco a cortina da tenda e ficava ali de pé a olhar como uma criança libertada para coisas que nunca vira. Viu uma vez uma colossal migração de borboletas no ar trêmulo. A luz do sol batia nas asas vermelhas, pretas e douradas que subiam e desciam como um gigantesco xale da índia que Al Talif lhe havia dado. Em outra ocasião observou uma dança de pássaros numa manhã prateada e estendeu os braços como se quisesse voar e ir dançar com eles.
Cercavam-na os cheiros, odores e fragrâncias e travos de um novo mundo, muito afastado da opulência, dos pesados perfumes, do luxo imóvel e da monotonia do palácio. A relva fresca e verde, as árvores escuras cujos nomes ela desconhecia, as moitas esparsas de flores vermelhas, azuis, amarelas e brancas, os córregos brilhantes e irrequietos como mercúrio, as barulhentas cachoeiras que abalavam o ar e corriam ao lado das caravanas, poentes e nascentes de majestade incomparável, circundando montanhas verde-escuras, cor de ocre e até vermelhas à medida que o verão avançava, rios que corriam como fogo branco sob os raios do sol, ilhas fluviais que pareciam empenachadas de enormes penas de avestruz, cavernas de boca negra — tudo isso ela via com maravilha e alegria renovadas. As vozes que ouvia de homens, animais e pássaros eram novas para ela. A atmosfera estava impregnada de resina e do cheiro da vegetação fria, da pedra ainda mais fria e da água gelada. Respirava o ar cristalinamente líquido e brando e às vezes os pulmões lhe doíam com aquela doce pureza a que ela não estava habituada e os olhos se lhe enchiam de lágrimas. A caravana entrava em sombrias arcadas de florestas e Aspásia se sentia intimidada com a altura verde das galhadas e com as colunas sombrias dos troncos que passavam lentamente por ela. Compreendia pela primeira vez que há uma sutil diferença entre conhecimento e compreensão. O primeiro podia ser ensinado; a segunda era um dom feito à alma. Teve uma súbita e nova compreensão da vida e da Divindade e foi abalada pela reverência que isso lhe inspirava. Certa vez, quando viu um rio estreito cor de ouro entre margens altas e sombrias e outro que parecia uma veia de púrpura manchada de ouro, mal pôde conter o seu prazer e o seu impulso de adoração.
Tinha de novo consciência de ser jovem e estar viva, ao ver diante dos olhos tantas maravilhas em constante mutação. As suas frágeis esperanças começaram a crescer. Pensou então que era isso o que os homens temiam nas mulheres. Temiam que, libertadas dos braços e das ordens de um homem, as mulheres vissem o mundo e quisessem participar dele, passando de um estado de servidão, que as tornava vítimas de uma paixão a figuras integrantes da humanidade. Um exultante escravo devia sentir a mesma coisa quando descobria que era livre apesar das suas cadeias e um senhor deve sempre temer o momento em que percebe que pode dominar o corpo de um escravo, mas não consegue dominar-lhe o espírito.
A decisão de Aspásia de conseguir final e absoluta liberdade se reforçava de hora para hora. Era só à meia-noite, quando dormia sozinha e um profundo silêncio a envolvia, que ela sofria tormentos de ansiedade e molhava de pranto os travesseiros de seda.
Uma noite, a caravana parou num caravançará, numa grande planície, sob o céu escampo. Era quadrado e cercado de muros. Nas paredes, havia pequenas janelas, com aberturas para deixar entrar o ar na parte inferior. Dentro, havia uma arcada cercada de depósitos com uma parte reservada para os cubículos que serviam de dormitórios. O centro não era coberto como nos outros compartimentos, havendo uma fonte e um poço para homens e animais. Havia apenas uma entrada bastante larga para permitir a entrada de camelos, mas era protegida por portões e portas reforçadas. Bancos de pedra se espalhavam pelo chão lajeado. Dezenas de camelos, cavalos e burros podiam ser guardados e aliviados por uma noite de suas cargas. No segundo andar, havia cubículos semelhantes para os chefes das caravanas, enquanto o seu pessoal dormia embaixo.
Guardas experimentados patrulhavam o caravançará e eram bem alimentados e tratados com respeito pelos proprietários das caravanas, que dependiam para sua segurança da vigilância e da bravura deles.
Aspásia viu a lenta, mas constante entrada dos camelos, homens, cavalos e burros portões adentro, embora as quatro tendas não entrassem. Só os cavalos foram retirados para passar a noite guardados. Os homens armados de Al Talif ficaram também do lado de fora, envoltos nos seus mantos depois da refeição da noite, preparada em grandes fogueiras armadas do lado de fora, e dormiram sobre a relva de espada em punho. Uma sentinela permaneceu acordada. O mistério da noite caiu sobre todos os que dormiam. Uma grande lua cor de âmbar subiu pelos degraus de ametista do céu e Aspásia pensou em Ártemís, a deusa virgem que subia, serena e vigilante, levando no braço o seu escudo luzente.
As mulheres que serviam a Aspásia dormiam e ela desceu e deixou-se ficar, a olhar embevecida para o céu. Uma profunda sombra purpúrea caía sobre a planície, embora bem a oeste houvesse ainda uma tênue faixa escarlate do sol que se retirava com todas as suas bandeiras. Em seguida, enquanto Aspásia olhava, houve uma rápida cintilação verde no horizonte e o sol desapareceu com todo o seu séquito. O silêncio e a escuridão aumentaram e a lua se tornou mais esplendorosa e viva. Mas eram as estrelas, não obscurecidas pelo pó amarelo de Mileto ou pelas névoas do oceano, que seduziam o coração de Aspásia.
Nunca vira tamanha grandeza, tão soberba majestade quanto a que os céus naquele momento lhe ofereciam. Sempre julgara que as estrelas fossem de uma universal brancura, com uma exceção para o vermelho-claro de Marte. Mas via naquele momento que eram de todas as cores brilhantes, âmbar, azul, cereja, ouro, topázio, rosa, carbúnculo, granada, heliotrópio, assim como de um deslumbrante branco. Havia algumas tão grandes que parecia fácil colhê-las como tâmaras maduras e outras que deixavam na sua passagem uma cauda de fogo. Veio-lhe a ideia de que com tal magnificência devia haver um acompanhamento de reis e trombetas que enchessem o céu de música, enquanto todos os homens deviam cair de joelhos e voltar o rosto para o chão para não ofenderem com o olhar tanta majestade. Valeu a pena nascer para ver esses esplendores com os meus olhos, pensou Aspásia. Basta conhecê-los durante uma hora para que a morte depois nada signifique. Que palavra humana poderá glorificar as estrelas, que música poderá honrá-las? Que prece estará à altura delas?
Ouviu de repente uma voz grave e solene dizer ao lado dela:
— Os céus narram a Sua glória e o firmamento é a obra de Suas mãos.
Teve um sobressalto violento e viu um vulto alto envolto num manto com um capuz. O homem tornou a falar:
— Que é o homem para que tomes conhecimento dele e o filho do homem para que o visites?
— Al Talif — murmurou ela, levando as mãos ao peito.
Tremia e ele se aproximou dela, estendendo as mãos que ela tomou em silêncio. Ficaram olhando juntos o espetáculo do céu e Aspásia sentiu o coração inundado de alegria.
— Assim dizem os judeus por intermédio de um dos seus cantores — disse Al Talif, olhando para o céu.
Os dedos dele eram quentes e firmes sobre os dela e um profundo contentamento exaltava Aspásia. Toda a sua raiva, aversão e tristeza estavam esquecidas. Ele se lembrara dela. Pensou também: Como são infelizes os corações das mulheres! Traem-nos até em nossas almas e nossas resoluções. Mas os corações dos homens nunca são traídos assim. Quando querem abandonar as mulheres, é para sempre que as abandonam. Nossas almas, porém, são banhadas pelas fontes amargas de nossas lágrimas e sempre temos desejos secretos, embora voltemos a amar.
Podia sentir que Al Talif a olhava ternamente das sombras do capuz como se se tivessem separado ainda na noite anterior, sob os maiores protestos de amor. A revelação da glória de Deus acima dela era perturbada pelas lágrimas que lhe enchiam os olhos, de modo que tudo se tornava um prisma de muitas cores trêmulas que flutuavam no ar.
Perto, os homens dormiam enrolados nas suas mantas e uma sentinela passou, depois de um olhar respeitoso, mas curioso para o homem e a mulher. Al Talif disse:
— Acima de nós está a vida do Mundo, a Alma do Mundo, como dizem os gregos. É a vida de todos os homens, seja qual for a religião que sigam, o que os comanda acima de tudo. Os taoístas dizem: "Como julgas, assim julgam os outros". Os budistas receberam o ensinamento: "Não magoes os outros com aquilo que te magoa". Os hindus dizem: "O resumo do dever é não fazeres aos outros nada que para ti seria doloroso". Os judeus dizem: "Não faças ao teu semelhante o que não queres que te façam". Em todas as outras coisas quase todas as religiões diferem, menos nisso. Essa é a Lei. Assim disse Zoroastro e assim disse Mitra. Essa é a Lei.
Al Talif olhou para o céu quase com uma humilde veneração. Mas Aspásia não pôde deixar de dizer:
— A Lei, entre os homens, não se aplica às suas relações com as mulheres,
— Você jamais compreenderá isso, minha pomba branca.
— Já aprendi, Al Talif, que é essa invariavelmente a resposta que os homens dão às mulheres, embora isso não faça sentido nem para eles mesmos. Entretanto, murmuram essas palavras absurdas tanto para justificar os seus erros quanto para confundir.
Podia senti-lo sorrir, embora lhe apertasse a mão com mais força.
— Não é muito gentil uma mulher refutar as palavras de um homem. Mas eu amo você apesar da sua língua acirrada.
Fui perdoada pela ofensa que ele cometeu, pensou Aspásia. Mas assim é que são os homens. Isso também foi uma coisa que eu aprendi.
Podia ver o céu de novo e ambos olharam para ele num silêncio que era mais eloquente do que as palavras. Por fim, Al Talif disse:
— Como já teve ocasião de notar, meu amor, homens e mulheres não falam a mesma língua, ainda que usem as mesmas palavras. Isso é talvez a nossa maldição ou talvez seja uma bênção divina. Quando falo de Deus é com a terrível convicção de que Ele tenha conhecimento de mim. Mas quando as mulheres falam de Deus é para importuná-Lo com pedidos e cheias da soberba confiança de que Ele está sempre disposto a ouvi-las e até grato porque elas se lembraram Dele. Mas basta. Vamos viver as nossas vidas tão inofensivamente quanto possível, embora quase sempre falhemos. Quem sabe se também as nossas intenções têm valor para Ele/que as compreende?
Ajoelhou-se de repente e baixou a cabeça para o chão, ficando imóvel, enquanto Aspásia o observava, espantada com a complexidade do homem e sacudindo a cabeça. Seria possível que o Deus dos homens e o Deus das mulheres fossem duas divindades diferentes?
Mas o seu amor por ele era um fogo renovado e impetuoso no seu coração e ela se abandonou a ele. Podia amar-se mesmo sem compreender? Não dissera um filósofo: "Amar ou perecer?" Por isso, Eros como a Justiça, devia ser cego e perdoar sempre.
Al Talif levantou-se e estendeu a mão para ela, dizendo:
— Venha.
Ela foi então com ele até à tenda, deitou-se ao lado dele e retribuiu-lhe os carinhos. Em dado momento, pensou de novo no traiçoeiro coração das mulheres, que perdoavam todas as rudezas dos homens, porque os amavam e não podiam deixar de amá-los.
Antes de se separarem, ao amanhecer, Al Talif disse, como se a conversa entre eles não tivesse sido interrompida:
— Para sobreviver, os impérios e os homens têm de crescer intelectual e espiritualmente, pois, do contrário, morrem. Essa é a lição de Deus e da natureza para tudo aquilo que vive. Se os que vivem se esqueceram disso, serão extintos e só os abutres, as raposas e os onagros herdarão a terra.
Foi até à porta da tenda e olhou para o céu do nascente. Uma grande coroa de fogo se elevava lentamente e Aspásia percebeu que ele havia esquecido no mistério do seu próprio ser. Não estava aplacada, mas também não estava ofendida. Sentia-se principalmente confusa e se lembrava de que Targélia lhe havia dito que o conhecimento, mútuo entre os sexos era impossível. Isso reforçava o princípio segundo o qual um ser humano não pode compreender outro, sendo cada pessoa encarcerada dentro de sua alma, como uma árvore o é pela sua casca. E ainda mais, os homens nunca podiam compreender verdadeiramente Deus e não podiam perceber os motivos e o verdadeiro ser dos seus semelhantes.
Havia apenas uma virtude acima de todas as outras, a compaixão. Era superior até à compreensão, pois esta podia levar a julgamentos severos e o julgamento era a prerrogativa exclusiva de Deus.
Capítulo 16
A caravana chegou à antiga cidade de Damasco numa tarde, pouco antes do escurecer. Aspásia teve a impressão de que a cidade murada marchava ao encontro da caravana. As muralhas douradas cintilavam à luz do sol no ocaso. Acima delas, viam-se os torreões iluminados, as torres esguias e as cúpulas que rebrilhavam sobre um céu cor de heliotrópio. Ali estava o "Mercado do Deserto" dos mercadores, famoso pelo seu vinho do Hefron, pelas suas lãs, pelos seus frutos secos, pelos seus linhos, pelos seus tecidos, pelas sedas finíssimas de muitas cores, pelas púrpuras de Tiro, pelos coxins com borlas de ouro e de prata, pelos trabalhos de couro de incrível finura, pelos trabalhos de filigrana de ouro e prata com pedrarias, pelos esmaltes, pelas obras de madeira com incrustações de metais, pelos maravilhosos brocados, pelas armas do incomparável aço damasceno, pelas obras de arte de latão e bronze, pela sua Rua Direita coberta, onde os ricos mercadores moravam e tinham as suas lojas e onde ficavam os bancos, os mercados, as fontes e as hospedarias.
Começava na Porta Damascena e ia de leste para oeste, sendo poucos os que não tinham ouvido falar de suas maravilhas, de seus espetáculos, das suas opulências, do seu comércio e do seu poder. Mais velha do que a lembrança ou os anais dos homens, Damasco fora assaltada muitas vezes por inimigos cobiçosos, egípcios, israelitas, assírios e muitos outros, mas a todos sobrevivera e seria em breve chamada de "imortal".
Era uma cidade fervilhante aquela joia do deserto, quente, poeirenta, cheia de ruas estreitas e portas em arco, violentamente colorida, perfumada e ao mesmo tempo malcheirosa, calçada com pedras polidas por inúmeras sandálias e botas, toda iluminada à noite por archotes vermelhos e ofuscada durante o dia pelo sol ardente, inquieta, ansiosa, complexa, céptica, que se vangloriava de possuir em profusão os maiores artistas e artífices do mundo, Sobre tudo pairava o cheiro das especiarias aquecidas na pedra ardente e o dos excrementos e urina de homens e animais. Havia ali palácios de esplendor oriental que nem podiam ser comparados aos do resto do mundo e vielas sujas e barulhentas, ladrões, mendigos e poetas, deuses floridos e Baals e Astartés alados, todos cultuados numa atmosfera de benigna tolerância.
Era uma cidade deslumbrante, que embora não tivesse a grandeza de outras, despertava entusiasmos e se entusiasmava, sempre trêmula sob a poeira amarela que a cobria, reluzente ao sol, como que feita de partículas de ouro e como uma nuvem de pérola à luz do luar.
Ouviam-se as línguas de muitas nações e de muitas raças e ali todos os homens se apressavam apesar do calor, como se quisessem correr e não andar. Havia mulheres veladas por toda parte, vendendo em barracas flores, doces, pedaços condimentados de carne, arroz, vinho, fazendas, queijos e ornatos. Os seus gritos e discussões eram mais estridentes do que os gritos dos camelos, cavalos e burros quando as caravanas chegavam ou saíam. Em quase todas as ruas, havia uma hospedaria, pobre ou luxuosa, para viajantes e mercadores. Podiam ver-se nelas rostos da mais pura brancura até o reluzente preto do etiope e do núbio.
A Porta de Damasco, feita de bronze, foi prontamente aberta pelos guardas que reconheceram os estandartes ilustres da caravana de Al Talif. Acima do arco da porta ondulavam bandeiras alegres e podia ver-se a estátua de pedra de uma criatura ambígua, meio leão, meio mulher, com asas e coroa, que tinha um rosto belo e majestoso. Aspásia olhava embevecida enquanto a caravana transpunha lentamente a porta e entrava numa estreita rua de subida com muros-dos dois lados. No alto das muralhas, muita gente procurava gozar o ar fresco da tarde, comendo guloseimas que levavam nas mãos, discutindo, rindo, olhando com curiosidade a caravana que chegava, fazendo pilhérias, cuspindo e arregalando os olhos. Aspásia podia ouvir por toda parte uma música estranha para os seus ouvidos. Tinha julgado os mercados de Mileto e da Pérsia insuportavelmente barulhentos. Pareciam-lhe, porém, mudos em comparação com o tumulto que então ouvia, o insone fragor de uma cidade que superava a imaginação. Enquanto a caravana avançava pela rua, homens e mulheres em mantos de várias cores se refugiavam em aberturas nas paredes. Como o sol descambava no horizonte, os archotes começavam a crepitar nos suportes e as lanternas principiavam a mover-se de um lado para outro como inúmeras estrelas.
As mulheres de Aspásia se divertiam discretamente com o interesse demonstrado por ela, porque já tinham estado em Damasco e, por isso, sorriam atrás dos seus véus. O véu de Aspásia estava quente e sufocante sobre o seu rosto, mas ela não o tirou. Via as fisionomias dos homens de Damasco e lhes reconhecia a beleza e os olhos grandes, brilhantes e irrequietos. Viam a mulher alta à porta da tenda e lhe notavam a esbelteza do corpo mesmo sob os trajes desfavoráveis, mostrando a sua admiração com sorrisos e inclinações das cabeças. Uma vez, em risonho desafio, tirou um instante o véu e os homens que a viram tiveram expressões de deslumbrada admiração. Alguns chegaram a acompanhar a tenda, sendo afugentados pelos guardas, que vociferavam imprecações e mostravam os chicotes ameaçadores.
Por fim, na rua chamada Direita, a caravana se separou das suas quatro tendas e os ocupantes destas desceram sob guarda à entrada de uma hospedaria de altos muros. Entraram num pátio em que se via um pequeno jardim com uma fonte. Havia às janelas das quatro paredes do pátio muita gente que olhava os recém-chegados, especialmente as mulheres, pensando que muitas delas eram belas escravas que seriam vendidas no dia seguinte no mercado dos escravos. A luz vermelha dos archotes enchia o pátio, onde havia no ar uma profusão de mariposas e outros insetos.
Os torreões, as torres e as cúpulas brilhavam sob a lua alta, como se tudo fosse revestido de prata. Aspásia e suas mulheres foram levadas para dois quartos da hospedaria, ricamente decorados de sedas, brocados e divãs, mesas chinesas lavradas e cadeiras de marfim, com o chão coberto de tapetes de vários padrões. Aspásia logo descobriu que as janelas eram gradeadas de ferro em forma de vinhas.
Levaram um jantar de carne de carneiro assada com legumes, numa abundância de alho e de azeite. Havia também tâmaras, mel, pão claro e macio, vinhos, várias espécies de queijos, molhos e temperos de cheiro pungente e montões de frutas. Aspásia jantou, escutando a música, as vozes e o clamor da cidade. Os sinos começaram a tocar a esmo até que todo o ar ficou cheio dos seus sons doces ou fortes. Sentia-se alegre e interessada, voltada com muito amor e gratidão para Al Talif, que concordara em dar-lhe aquele prazer. Os vasos de azeite faziam lucilar a sua luz nos quartos e eram docemente perfumados, não só para dar prazer aos sentidos, mas também para combater o mau cheiro que se desprendia das latrinas embaixo.
Aspásia adormeceu sobre os coxins, depois de tomar banho em água perfumada de jasmim. Sorriu no sono, com os cabelos dourados espalhados em volta dela. O seu rosto feliz tinha a inocência de um lírio e as suas mulheres odiaram-na e invejaram-na.
Na manhã seguinte, Aspásia foi chamada à presença de Al Talif. Ficou surpresa, pois raramente era chamada antes da noite. Passou o véu sobre o rosto, vestiu-se de linho claro com fios de prata e se encaminhou, seguida por duas de suas mulheres, até onde estava Al Talif. Os aposentos dele eram suntuosos e ele estava meio reclinado num divã parecendo feliz e contente. Perto dele, estava Talías, que fez uma reverência à entrada de Aspásia, e Al Talif sorriu. Estendeu a mão a Aspásia e ela se sentou, como de costume, aos pés dele, olhando então para Talías. Afastou o véu e Talías lhe viu o rosto curioso, fresco e um pouco ansioso. Quase imperceptivelmente, fez um sinal afirmativo com a cabeça, Aspásia ficou então sabendo que a carta já fora remetida.
— Parece, minha rosa branca, que meu amigo Damos trouxe a mulher a esta hospedaria a fim de agradecer-me as duas meninas que lhe foram dadas. Quer agradecer-lhe também. Chama-se Hepziba bas Efraim e está na sala ao lado. Deseja vê-la?
— Se meu senhor não faz objeção — respondeu Aspásia.
Al Talif riu e tocou-lhe o rosto,
— O seu senhor não faz objeção — disse ele em tom de zombaria.
Talías baixou os olhos como se estivesse embaraçado. Um eunuco abriu uma porta a alguma distância e Aspásia se levantou, saindo com as suas mulheres.
A sala ao lado servia evidentemente de refeitório e, quando Aspásia ali entrou, uma mulher jovem se levantou timidamente. Estava sem véu e se vestia com muita simplicidade, sendo as suas maneiras muito comedidas. Tinha um rosto jovem e comum, que parecia implorar condescendência. As duas jovens sentaram-se ao lado uma da outra em amplos coxins e começaram a comer uns doces especiais feitos de mel e amêndoas raladas. Eram ambas rosadas, limpas e pacientes.
Hepziba tinha belos olhos azuis e macios, cabelos castanhos parcialmente descobertos. Parecia envergonhada em presença de Aspásia e os seus lábios pálidos tremiam um pouco. Disse em aramaico:
— Quero agradecer-lhe a grande gentileza que teve em dar-me aquelas duas filhas, às quais já amo, embora as tenha visto pela primeira vez hoje de manhã.
Aspásia ficou emocionada e disse:
— Não fui eu. O presente foi de Al Talif.
Ao ouvir o nome, Hepziba cerrou o cenho e Aspásia se admirou disso. Hepziba deu um profundo suspiro e declarou:
— Foi o que meu marido me disse. Mas me disse mais alguma coisa... Vejo agora, Senhora, que não é apenas tão bela quanto Raquel ou Rute, mas também tem o coração tão grande como o das Mães de Israel...
Aspásia não acreditava que Talías houvesse falado da beleza dela a Hepziba e sorriu.
— Damos é feliz em tê-la, Hepziba bas Efraim... e a senhora deve ser também muito feliz em ter Damos...
Por alguma estranha razão não revelada, os olhos da mulher se encheram de lágrimas. Tomou a mão de Aspásia e beijou-a, dizendo num sussurro:
— Agradeço-lhe também em nome de Damos.
Aspásia ficou alarmada. Olhou por cima do ombro, mas não viu ninguém. Respondeu então:
— Há coisas que um homem não deve contar nem à sua esposa, e a indiscrição de Damos me surpreende. Não vamos falar mais disso, nem agora, nem em outra qualquer ocasião.
— O que meu marido me diz fica guardado no fundo de meu coração — disse Hepziba e levantou a cabeça. — Se um homem não pode confiar na mulher que o ama, em quem vai confiar?
Quando foi que Al Talif já confiou em mim?, pensou Aspásia com um impulso de tristeza. Mas olhou para a outra mulher com grande interesse. Ali estava uma mulher cujo marido desprezava a sua feminilidade, mas, apesar disso, a honrava e lhe confiava todos os seus segredos. Isso pareceu uma coisa muito invejável a Aspásia e a encheu de vagas aspirações. Sem dúvida, Al Talif sempre falava com ela de filosofias e coisas abstratas, mas nunca havia permitido que ela o visse como ele realmente era, salvo na noite em que haviam ficado sob a luz das estrelas. Ainda nessa ocasião, achara-o enigmático. Desejava um homem que pudesse confiar inteiramente nela como Damos manifestamente confiava em Hepziba e que pusesse a própria vida nas mãos dela. Só então, uma mulher podia ser feliz, contente e orgulhosa, sem se sentir em momento algum desprezada, solitária ou esquecida.
Hepziba, embora sempre tivesse vivido protegida, amada e respeitada, percebeu tudo com a sua intuição feminina e foi tomada de compaixão por aquela mulher jovem e bela que de repente parecia tão carente e desolada. Um raio de sol bateu no rosto de Aspásia, o que só serviu para agravar a sua atitude de tristeza. Hepziba se voltou para as duas meninas que a acompanhavam e disse, tocando-lhes o rosto:
— Esta é Rute e esta é Raquel, minhas duas filhas.
As crianças tocaram com a cabeça o seio dela e então trataram de comer os doces que estavam ao lado com a sua sofreguidão infantil.
— Elas já a amam — disse Aspásia.
Hepziba olhou-as com um sorriso resplandecente.
— Eu também já as amo muito. Serão irmãs de meu filho.
As duas mulheres ficaram então caladas. Ouviam os veículos que passavam sobre as pedras do pátio e o distante rumor da cidade. Aspásia pensou: Essa mulher é feliz como eu nunca fui. Trocaria de lugar com ela com muito prazer.
Não havia para Hepziba noites de êxtase seguidas de devastações da alma. Não teria medo também de rejeição ou de abandono por meio de divórcio ou banimento. Pela primeira vez em sua vida, Aspásia viu a possibilidade de outra vida em que pudesse haver graça, serenidade e amor-próprio. Viu nas mãos de Hepziba os sinais das suas labutas no tear e na cozinha, entre as servas. Hepziba devia trabalhar e cantar tranquilamente, esperando a volta de um marido que a honrava e a visita de um pai que a idolatrava. Que valiam diante disso todas as suas joias e opulências? O coração dela se alvoroçava quando ouvia a voz de Al Talif e quando lhe via o rosto. Sempre, porém, no fundo dessa alegria havia o temor do que pudesse acontecer. Mas Hepziba não era atormentada por esse temor imprevisível e era por isso abençoada pelos deuses. Talías, sempre que voltava para casa, cingia a mulher em segurança nos braços.
Hepziba a estava olhando e compreendia a dor que ela sentia, pois Damos lhe tinha dito que ela era uma cortesã que fora comprada por Al Talif. De acordo com as leis israelitas, mulheres assim eram apedrejadas por adultério e licenciosidade. Mas ela sentiu necessidade de abraçar Aspásia com a mesma ternura com que abraçara as meninas, de chorar com ela e de consolá-la. Isso a confundia extremamente porque jamais conhecera uma mulher libertina e a compaixão que sentira por Aspásia a surpreendia.
A jovem judia não podia dominar a sua tristeza, que tinha uma causa que ela só vagamente percebia, mas que apesar disso a compungia profundamente. Entregou a Aspásia um embrulho de seda amarrado com fitas.
— Trouxe-lhe isso em sinal de gratidão. Meu marido disse que talvez lhe agradasse.
— Eu é que lhe agradeço a gentileza, Hepziba — disse Aspásia.
Quis desembrulhar o presente, mas Hepziba cobriu prontamente os olhos com as mãos e disse;
— Peço-lhe que não faça isso, É uma imagem gravada e, segundo me disse meu marido, de origem pagã. Comprou-a hoje de manhã no bazar para sua satisfação.
— Não sabe o que é? — perguntou Aspásia, admirada.
A outra mulher sacudiu a cabeça e desceu as mãos para o colo, dizendo:
— Isso não é permitido.
Aspásia ficou ainda mais admirada. Ter-lhe-ia Damos comprado alguma coisa obscena? Ficou corada e Hepziba, vendo isso, murmurou:
— Deve perdoar-me, mas os judeus piedosos não olham para imagens gravadas. Por isso é que passo pela cidade com as cortinas da minha liteira fechadas. Se não me engano, é a estatueta de um deus.
Aspásia teve vontade de rir.
— Quer dizer então que perde as vistas e os encantos da cidade?
— Tenho minha casa e meus filhos, minhas mulheres e meus pais, meu querido marido, meus jardins e minhas amigas. Que mais pode uma mulher desejar?
De fato, pensou Aspásia, olhando para o embrulho do presente em suas mãos. Um constrangimento caiu então entre elas, pois nada mais havia para dizer entre uma cortesã infeliz e uma esposa ternamente amada. Hepziba, que raramente era efusiva, pôs as mãos nos ombros de Aspásia e beijou-lhe o rosto. Aspásia, com os olhos marejados de lágrimas, retribuiu o cumprimento. Depois, dirigiu-se em silêncio para a sala em que estava Al Talif.
Talías não estava mais presente e o sátrapa perguntou:
— Que é que você tem nas mãos, minha linda?
— Acabo de ver o que é realmente uma mulher — disse Aspásia, começando a abrir o embrulho.
Não percebeu a expressão sombria e ambígua de Al Talif, nem o viu mover-se inquietamente no divã ou notou o seu olhar carrancudo.
— É um presente de Hepziba, mas ela não me deixou abri-lo na presença dela.
-— Neste caso — disse Al Talif — deve ser alguma coisa útil ou comestível. Conheço bem os judeus. Se é coisa útil, que fará você dela? Se for comestível, deverá ser delicioso.
A seda do embrulho caiu e Aspásia teve nas mãos a estatueta de marfim bem esculpida e minuciosa de um deus gordo e sorridente, barrigudo e com as pernas cruzadas à frente do corpo, de acordo com um costume que ela havia observado entre os hindus.
— Buda — disse Al Talif, estendendo a mão para pegar a estatueta. Rodou-a entre os dedos e examinou-a com prazer. — Isto foi feito por um artista excepcional. Nunca vi nada mais perfeito. Deve ter custado uma pequena fortuna a Damos, pois é evidente que aquele judeu apóstata a comprou.
Olhou para Aspásia e deixou de sorrir. Colocou o objeto de marfim branco na palma da mão morena e a estatueta brilhou à luz da manhã com uma leve resplandecência dourada.
— Buda, o inefável — murmurou ele. — O máximo em matéria de renúncia ao mundo. Venha sentar-se ao meu lado, meu amor. Afirma-se que, quando se esfrega a barriga de um Buda desejando alguma coisa, o desejo será atendido. Assim diz a superstição.
Segurou a imagem nas duas mãos e apresentou-a a Aspásia que, sorrindo, esfregou a barriga do Buda, murmurando:
— Faça-o amar-me tanto quanto eu o amo!
Baixou a mão e perguntou:
— Não vai também pedir alguma coisa ao Buda?
— Não sou supersticioso — disse Al Talif.
Colocou a imagem cuidadosamente na mesa à sua frente. Aspásia tornou a observar a mesma expressão enigmática que havia visto sob a luz das estrelas.
Como se falasse consigo mesmo, Al Talif murmurou:
— Os persas honram todos os deuses como manifestações da Divindade, Buda, Lao Tsê, Zoroastro, Mitra, Zeus, Ahuramazda, Ptá, Osíris, Vichnu e até o vingativo Jeová dos judeus. Vivemos no melhor entendimento com todos eles, pois que interessa o nome que os homens dêem a Deus? Deus tem infinitas faces e aspectos e se revela como deseja. Basta que os homens O amem.
Um deus que desse importância ao amor dos homens era uma ideia estranha para Aspásia. Até então pensara nos impulsos de adoração que tinha sentido e que lhe teriam parecido misteriosos, exaltando-a durante breves momentos.
Al Talif continuou a falar:
— Tenho sabido que em todas as religiões se acredita que Deus possa nascer para os homens com forma humana. Os caldeus e os judeus O esperam e os egípcios falam do nascimento de Osíris. Não é incompreensível que todas as religiões tenham a mesma crença, embora sem nada saberem umas das outras?
— Em todos os templos gregos — disse Aspásia — há um altar sem ornamentos com a inscrição: "Ao Deus Desconhecido". Mas esse Deus não tem sacerdotes, nem celebrações, nem crentes, nem cerimônias, nem oferendas.
— Ainda não — disse Al Talif, cobrindo com o pano de seda a imagem do Buda.
Aspásia estava profundamente interessada no que ele havia dito e no tom de sua voz, o que a levou a pensar nos segredos e nos mistérios daquele homem a quem tão desesperadamente amava.
— Mas Ele virá?
— Virá, sim — disse Al Talif. — Talvez amanhã, talvez daqui a muitos séculos. O tempo não existe para Ele.
— Mas existe para a humanidade — disse Aspásia com tristeza.
— Isso é uma ilusão nossa — replicou Al Talif.
Fechou os olhos e Aspásia percebeu de repente que ele estava muito cansado. Saiu em silêncio.
As suas mulheres estavam ausentes e Aspásia gozou de uma doce liberdade, pois eram raros os momentos em que ficava sozinha. Foi até à janela gradeada e olhou para o movimentado pátio lá embaixo.
Viu que Talías estava de pé num canto, evidentemente à espera de que ela aparecesse. Sorriu ao vê-la como um irmão alegre e beijou-lhe a mão. Em seguida, afastou-se rapidamente. Aspásia seguiu-o com os olhos, cheia de amizade e gratidão. Esqueceu-se de que ele já fora um escravo, pois naquela saudação dele havia compreensão, segurança, bondade e promessa.
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CONTINUA
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Capítulo 17
Aspásia acompanhou Al Talif aos bazares da cidade e se sentiu como uma criança em toda a sua alegria e curiosidade. Os olhos se arregalavam e iluminavam acima do espesso véu e ela procurava apreender todo o pitoresco movimento e ver tudo ao mesmo tempo. Al Talif levou-a a um joalheiro e ali, numa sala interna onde uma mulher sem véu não poderia ofender os olhares dos homens, comprou-lhe um colar de opalas todas de um fogo azul, róseo e cor de pérola nos seus reflexos cambiantes. Ele mesmo lhe prendeu o colar ao pescoço e tirou-lhe o capuz, fazendo os cabelos rolarem por sobre os ombros. O joalheiro ficou deslumbrado. Era um homem muito rico e, como julgou que Aspásia fosse uma escrava favorita, chamou respeitosamente Al Talif a um canto e ofereceu uma fortuna por ela. Enquanto isso, ela se olhava embevecidamente num espelho de prata. Ouviu Al Talif proferir palavras irritadas e depois divertidas. Mas a língua lhe era desconhecida.
Al Talif voltou para junto dela e pareceu olhá-la com novos olhos.
— Agrada-lhe essa bagatela, minha flor dourada de hibisco? — perguntou ele, passando-lhe os dedos pelo colar e pelo pescoço.
Ela olhou-o ardentemente e então ele deixou de sorrir e olhou para ela com uma severidade que Aspásia só poucas vezes antes tinha visto e nunca havia compreendido. Era como se ele estivesse tentando interpretar suas palavras, seus gestos e suas expressões, de tal modo que ela nunca podia ter certeza.
— Se isso lhe agrada, Senhor, tanto quanto agrada a mim, então posso dizer que sou feliz.
Ele deu um suspiro e afastou-se dela.
Comprou-lhe sedas bordadas e brocados, sandálias cravejadas de pedrarias, vasos para cosméticos de jade e de marfim esculpidos, enfeites de ouro e brincos de feitio estranho que desciam até aos ombros, mas eram leves como se fossem de penas. Comprou-lhe cintas de ouro e prata cinzelados, também cravejadas de pedras. Bastava-lhe admirar alguma coisa para que no mesmo instante ele a comprasse. Um manto de penas de pavão a encantou e ele o estendeu no mesmo instante nos ombros dela, acariciando-a. Ele lhe dizia a origem de todas essas coisas e ela exclamava:
— Que mundo maravilhoso é este, onde há tanta beleza?
— O que os homens fazem é apenas uma pobre imitação da natureza — dizia Al Talif com indulgência. — Quando as penas desse manto estavam nos pavões vivos, eram mais esplêndidas. A vida vale mais que qualquer artifício, por melhor ou mais bem-feito que seja. Você, Aspásia, é mais bela do que a estátua de uma deusa ou de uma ninfa, por maior que seja a arte com que for esculpida.
Ela se mostrava lisonjeada por esses tributos, mas desejava no fundo do coração que ele a considerasse não como um objeto de encantamento, cuja beleza seria em breve levada pelas mãos predatórias do tempo, mas como uma mulher com alma e espírito. Pensou em Hepziba e, por sua vez, olhou para o lado e tudo o que ele lhe havia comprado de belo e de precioso perdeu o valor. Representavam uma homenagem não a ela, mas ao que, aos olhos dele, havia de agradável nela. Quando ele se cansasse dela, todos esses tesouros não o impressionariam e ela seria apenas uma efígie artificial para a ostentação dos mesmos, como se fosse uma loja de mercador. Talvez quisesse todas aquelas coisas para uma mulher mais jovem e ela seria privada delas e da própria vida, pois que poderia ser a vida sem ele? A desolação caiu sobre ela e o seu espírito se tornou um deserto árido sem qualquer oásis e com a perspectiva apenas da morte. Tateou as opalas como se fossem pedras frias.
— Alguma coisa? — perguntou ele, vendo-a pensativa.
— Nada, Senhor — respondeu ela, embora pensasse em seu coração: O que me deu não é na realidade o que eu desejo. E o que desejo é o que todas as mulheres desejam e que os homens nunca podem dar-lhes, ao menos na medida dos seus desejos.
Sabia que à noite ele saía com alguns companheiros para jantar em casas de luxo e depois divertir-se com música, dançarinas e mulheres lascivas. Em companhia de eunucos armados e de servas, cobertas de pesados mantos e véus como ela, podia visitar bazares e templos sem a presença dele. Ainda atônita, começava já a sentir alguma saciedade e cansaço. Desde que as mulheres não podiam comer em público, ela e suas mulheres eram levadas para grandes salas nos fundos das casas que vendiam doces, vinhos, romãs, pastéis, carne moída bem condimentada servida em folhas de parreira, pão com sementes de gergelim e curiosos bolos recheados de sementes de papoula com mel, nozes e tâmaras. Sentadas ali, quase em silêncio, devoravam o que haviam comprado. As salas eram invariavelmente quentes e sem janelas, embora luxuosamente mobiliadas e cheirando não só a comida, mas...
Capítulo 17
Aspásia acompanhou Al Talif aos bazares da cidade e se sentiu como uma criança em toda a sua alegria e curiosidade. Os olhos se arregalavam e iluminavam acima do espesso véu e ela procurava apreender todo o pitoresco movimento e ver tudo ao mesmo tempo. Al Talif levou-a a um joalheiro e ali, numa sala interna onde uma mulher sem véu não poderia ofender os olhares dos homens, comprou-lhe um colar de opalas todas de um fogo azul, róseo e cor de pérola nos seus reflexos cambiantes. Ele mesmo lhe prendeu o colar ao pescoço e tirou-lhe o capuz, fazendo os cabelos rolarem por sobre os ombros. O joalheiro ficou deslumbrado. Era um homem muito rico e, como julgou que Aspásia fosse uma escrava favorita, chamou respeitosamente Al Talif a um canto e ofereceu uma fortuna por ela. Enquanto isso, ela se olhava embevecidamente num espelho de prata. Ouviu Al Talif proferir palavras irritadas e depois divertidas. Mas a língua lhe era desconhecida.
Al Talif voltou para junto dela e pareceu olhá-la com novos olhos.
— Agrada-lhe essa bagatela, minha flor dourada de hibisco? — perguntou ele, passando-lhe os dedos pelo colar e pelo pescoço.
Ela olhou-o ardentemente e então ele deixou de sorrir e olhou para ela com uma severidade que Aspásia só poucas vezes antes tinha visto e nunca havia compreendido. Era como se ele estivesse tentando interpretar suas palavras, seus gestos e suas expressões, de tal modo que ela nunca podia ter certeza.
— Se isso lhe agrada, Senhor, tanto quanto agrada a mim, então posso dizer que sou feliz.
Ele deu um suspiro e afastou-se dela.
Comprou-lhe sedas bordadas e brocados, sandálias cravejadas de pedrarias, vasos para cosméticos de jade e de marfim esculpidos, enfeites de ouro e brincos de feitio estranho que desciam até aos ombros, mas eram leves como se fossem de penas. Comprou-lhe cintas de ouro e prata cinzelados, também cravejadas de pedras. Bastava-lhe admirar alguma coisa para que no mesmo instante ele a comprasse. Um manto de penas de pavão a encantou e ele o estendeu no mesmo instante nos ombros dela, acariciando-a. Ele lhe dizia a origem de todas essas coisas e ela exclamava:
— Que mundo maravilhoso é este, onde há tanta beleza?
— O que os homens fazem é apenas uma pobre imitação da natureza — dizia Al Talif com indulgência. — Quando as penas desse manto estavam nos pavões vivos, eram mais esplêndidas. A vida vale mais que qualquer artifício, por melhor ou mais bem-feito que seja. Você, Aspásia, é mais bela do que a estátua de uma deusa ou de uma ninfa, por maior que seja a arte com que for esculpida.
Ela se mostrava lisonjeada por esses tributos, mas desejava no fundo do coração que ele a considerasse não como um objeto de encantamento, cuja beleza seria em breve levada pelas mãos predatórias do tempo, mas como uma mulher com alma e espírito. Pensou em Hepziba e, por sua vez, olhou para o lado e tudo o que ele lhe havia comprado de belo e de precioso perdeu o valor. Representavam uma homenagem não a ela, mas ao que, aos olhos dele, havia de agradável nela. Quando ele se cansasse dela, todos esses tesouros não o impressionariam e ela seria apenas uma efígie artificial para a ostentação dos mesmos, como se fosse uma loja de mercador. Talvez quisesse todas aquelas coisas para uma mulher mais jovem e ela seria privada delas e da própria vida, pois que poderia ser a vida sem ele? A desolação caiu sobre ela e o seu espírito se tornou um deserto árido sem qualquer oásis e com a perspectiva apenas da morte. Tateou as opalas como se fossem pedras frias.
— Alguma coisa? — perguntou ele, vendo-a pensativa.
— Nada, Senhor — respondeu ela, embora pensasse em seu coração: O que me deu não é na realidade o que eu desejo. E o que desejo é o que todas as mulheres desejam e que os homens nunca podem dar-lhes, ao menos na medida dos seus desejos.
Sabia que à noite ele saía com alguns companheiros para jantar em casas de luxo e depois divertir-se com música, dançarinas e mulheres lascivas. Em companhia de eunucos armados e de servas, cobertas de pesados mantos e véus como ela, podia visitar bazares e templos sem a presença dele. Ainda atônita, começava já a sentir alguma saciedade e cansaço. Desde que as mulheres não podiam comer em público, ela e suas mulheres eram levadas para grandes salas nos fundos das casas que vendiam doces, vinhos, romãs, pastéis, carne moída bem condimentada servida em folhas de parreira, pão com sementes de gergelim e curiosos bolos recheados de sementes de papoula com mel, nozes e tâmaras. Sentadas ali, quase em silêncio, devoravam o que haviam comprado. As salas eram invariavelmente quentes e sem janelas, embora luxuosamente mobiliadas e cheirando não só a comida, mas também a incenso. O famoso vinho do Hebron era frio e ficava na língua como uma doce lembrança. Era bem forte e Aspásia às vezes dormitava na sua liteira e esquecia, por algum tempo, a dor nova que levava no coração.
Muitas noites, ficava acordada até ouvir Al Talif chegar ao pátio, às risadas com os seus companheiros. Nesses momentos, levantava-se e ia até à janela gradeada para vê-lo por um instante à luz da lua ou das estrelas, desejando ardentemente que ele a chamasse. Mas a alvorada começava a incendiar o céu do nascente e ela sabia que ele tinha ido para o seu quarto e a esquecera, deixando-a emparedada na hospedaria como estivera emparedada no palácio. Convencia-se de que era uma louca por chorar e que não podia ser outro o seu fim implacável. Contudo, ainda vivia e poderia talvez viver de novo.
Deviam passar ainda muito tempo em Damasco. Os dias corriam imutáveis para Aspásia como um sonho que se repetia. Compreendia que Al Talif estava vendendo as mercadorias que trouxera na caravana e comprando mercadorias novas para as suas lojas, mercados e bazares. De vez em quando, convidava-a para comer com ele ao meio-dia. Mas parecia sempre muito preocupado e, muitas vezes, se levantava abruptamente quando chegava alguém para consultá-lo e não voltava mais. Ela podia então optar entre dormir à tarde como toda a Damasco dormia, à exceção dos mercadores e dos banqueiros, ou sair com os guardas e as mulheres para ver outra parte da cidade. Pensava que nada há de pior que a ociosidade e ela era uma mulher ociosa. Tentava ler os livros que Al Talif lhe comprava, mas o sentido das filosofias e dos poemas lhe escapava e as alusões lhe pareciam críticas.
Pensou que Hepziba a havia esquecido, pois Al Talif lhe havia dito em tom de zombaria que a judia logo a convidaria para jantar. Mas Aspásia não recebeu qualquer convite e se encheu de decepcionado ressentimento. Sem dúvida, Hepziba a considerava impura e não queria que sua casa fosse poluída por uma mulher como ela.
Começou a pensar na casa que teria em Atenas, mas isso também estava tomando todas as características de um sonho impossível, Al Talif nunca a deixaria partir enquanto não se cansasse dela e o ar de Damasco a enchia de languidez e lhe tirava a esperança. Só existia para o prazer de Al Talif. Fora disso, não tinha existência. Era como uma bola de vidro que flutuasse ao sabor do vento, refletindo luzes e cores, mas sem possuir nada disso dentro de si mesma. Onde estava a incandescente resolução que a possuíra poucos meses antes? A sua apatia aumentava e só se tornava animação na presença de Al Talif.
Um dia, disse a ele:
— Tinha esperança de ver Hepziba outra vez. Ela esqueceu a promessa que me fez.
Al Talif virou o rosto para o lado e disse:
— Damos me disse que ela tem estado doente. Outra coisa. Sei que você tem prazer em ver a cidade, mas desejo que de hoje em diante conserve-se em seus aposentos, sem ir mais à rua.
— Mas é minha única diversão.
— Estou-lhe dando uma ordem — disse ele severamente. — Também não quero que beba da água do poço. Beba apenas vinho. Não coma frutas, a não ser que você mesma as lave e descasque com sua faca e com seus dedos. Não deixe a água entrar em sua boca nem para lavar os dentes e, quando tomar banho, tenha cuidado e feche bem a boca para não entrar água, a qual não deve também tocar em suas narinas.
Ela se sentiu alarmada.
— Há rumores de que uma doença se está espalhando pela cidade e os médicos acreditam que se transmita pela água dos poços e dos rios. Pode ser uma superstição, mas não custa nada ser prudente.
O alarma dela aumentou.
— E com sua pessoa, Al Talif? Está sendo prudente?
Ele deu de ombros e sorriu.
— Devo beber e comer o que me dão nas casas dos meus amigos e dos meus colegas mercadores, mas as cozinhas deles são muito requintadas e nenhum mal me poderá atingir. Esta hospedaria tem fama de ser muito limpa. Mas você não deve sair dela. Se lhe acontecesse alguma coisa, eu ficaria desolado. Um homem tem de zelar pelo seu tesouro, e não é isso o que você representa para mim?
Ela respondeu com acrimônia:
— Até o momento em que eu não for mais seu tesouro e estiver mareada aos seus olhos.
A vida dela se tornou então mais cheia de restrições do que nunca. Não podia nem descer ao pátio e via o medo no rosto das mulheres. Ouvia-as falarem em sussurros e manusearem amuletos. Perguntou-lhes uma vez, com impaciência:
— De que é que estão com medo?
Mas elas não responderam. Limitaram-se a olhá-la furtivamente. Não queriam dizer-lhe nada, pois ela poderia cair furiosamente sobre elas e até despedi-las. Eram mulheres pouco inteligentes e sem instrução, dóceis e lerdas, que não sabiam conversar e pouco lhe serviam de companhia. Além disso, eram do Oriente e havia uma incompreensão mútua entre elas e Aspásia. Começaram a cantar coisas dissonantes e balançar o corpo, sentadas no chão. Aspásia sabia que estavam implorando os seus deuses horrorosos. Mas como teriam elas sabido dos rumores da doença a não ser por intermédio dos eunucos? Os eunucos eram piores do que mulheres nos seus falatórios. Entretanto, raramente ou nunca diziam alguma coisa a ela.
As mulheres eram também muito mais velhas do que ela. Eram aos seus olhos gordas e repulsivas. Desde que não saíam mais dos quartos, começavam a enchê-los do cheiro do seu suor, do incenso que com mais abundância queimavam e de perfumes enjoativos. Da janela, via também que os homens queimavam incenso no pátio e faziam fogueiras, ao mesmo tempo que entoavam cantilenas monótonas. Talvez a temporada das caravanas estivesse chegando ao fim, pois dias se passavam sem que ela visse chegar uma que fosse. Começava a ter medo e vivia ansiosa por notícias.
Afinal, não se conteve mais e disse a Al Talif:
— Tenho de saber das coisas! Que doença é essa de que me falou? Quer que o medo me arrase? É melhor saber do que desconhecer as coisas, por piores que sejam.
Al Talif parecia cansado. Aspásia via com temor que seus olhos não tinham mais o mesmo brilho, o nariz parecia maior e os lábios se cerravam de um jeito amargo.
— Vou-lhe dizer então, Aspásia. É a doença chamada cólera.
Aspásia estremeceu ao ouvir isso.
— Cólera? Há muitos mortos?
— A quarta parte da cidade morreu. Achei melhor poupar-lhe esse conhecimento. As portas da cidade estão fechadas. Ninguém pode entrar, nem sair. Adiantou alguma coisa saber?
Ela tornou a exclamar:
— Cólera!
— Sim, até os médicos estão morrendo, Aspásia.
Ela levou as mãos ao rosto e fechou os olhos por um instante:
— Quase todos estão morrendo, Senhor.
— É verdade, e eu não queria que você ficasse com medo. Estará em segurança aqui, se tiver cuidado com o que comer e beber.
— E que lhe poderá acontecer, Senhor? — perguntou ela, muito pálida e com os olhos dilatados pelo pavor.
— Tomo cuidado também comigo. Agora, já sabe por que estamos presos aqui. Se não fosse isso, já teríamos partido há três semanas. Não é por minha vontade que a mantenho numa prisão.
Ela estendeu as mãos para Al Talif, toda trêmula.
— Peço-lhe então que não saia mais de casa!
— Tem receio de que eu adoeça e morra e você fique abandonada aqui? Não se aflija, meu amor. Meus homens a levarão para casa. E seu nome, doce flor, figura em meu testamento.
— A família de Damos está bem?
— A mulher dele morreu há uma semana.
Proferiu essas palavras como se ela o tivesse ofendido e ele quisesse ofendê-la também,
Ela apertou as mãos, sentindo as lágrimas virem-lhe aos olhos.
— Hepziba? Ó, deuses! E as crianças? E Damos?
— As crianças foram atacadas, mas já estão melhorando, E Damos me disse que teve cólera na infância.
Aspásia chorou pela bela e jovem mulher, cobrindo o rosto com as mãos. Quando levantou a vista, percebeu que Al Talif havia saído da sala. O medo que sentia por ele se tornou delirante e ela foi para os seus aposentos, onde começou a andar de um lado para outro, torcendo as mãos e murmurando preces incoerentes, embora lhe parecessem supersticiosas e inúteis. As mulheres, esquecidas do próprio medo, olhavam-na sombriamente e se faziam perguntas que não obtinham respostas. Estaria a estrangeira caindo doente? Aconchegavam-se umas nas outras, numa procura infantil de proteção.
Aspásia parou diante delas de repente, olhou-as e teve raiva delas, apenas porque presenciavam a sua descontrolada angústia.
— Que amuleto é esse que você usa, Sera? — perguntou a uma das mulheres, apontando o objeto que a outra levava pendurado do pescoço.
Sera cobriu o amuleto com a mão, pois sabia que a estrangeira tinha mau-olhado. Torceu o corpo e resmungou, mas não respondeu. Tomada de uma raiva como raramente sentia, Aspásia investiu furiosamente contra a mulher, afastou-lhe as mãos e tocou-lhe no pescoço o amuleto de prata.
Vira certa vez um amuleto desses ao pescoço de um egípcio, mas não se interessara por ele, embora o objeto fosse de ouro e cheio de pedrarias. O que tinha agora nas mãos era do comprimento do seu dedo mínimo. Era uma haste delgada e a cerca de um terço do seu comprimento havia uma barra transversal, tão delgada quanto a baste. A ponta da haste tinha uma argola pela qual passava uma corrente de prata. Não era um objeto tão belo, nem tão caro quanto o que o egípcio tinha usado. Aspásia já tinha visto muitos amuletos, mas só encontrara dois daquela espécie.
— De onde veio isso, que significa e qual o deus que se pode invocar por intermédio dele? — perguntou ela.
Sera parecia atordoada.
— Encontrei isso numa loja em Míleto e o mercador grego disse que tem grandes poderes, pois é o sinal do Deus Desconhecido, mas qual é o Deus eu não sei. O amuleto promete vida eterna e ressurreição dentre os mortos.
— Que loucura! Vida eterna. Ressurreição dentre os mortos.
Apesar da sua depressão, Aspásia sentiu o ridículo daquelas crenças. Lembrou-se então de que os egípcios acreditavam na vida eterna e na ressurreição dos mortos, pois tinham muito cuidado, por isso, em conservar os corpos dos mortos, especialmente quando se tratava de pessoas de sangue real. Mas até as famílias pobres vendiam tudo que tinham para assegurar essa conservação e embalsamar os corpos. Lembrou-se também de uma conversa que tivera com Al Talif. Tinham falado do Deus Desconhecido, cujo altar O esperava nos templos gregos, e da espalhada crença na sua vinda através de todas as religiões, principalmente no Oriente.
Deixou o amuleto escorregar lentamente dos seus dedos para o pescoço de Sera, que o escondeu apressadamente dentro do vestido.
— Isso protege de doenças, Sera?
— Isso eu não sei, Senhora. O grego disse apenas que tinha grandes poderes. Que mais se pode desejar além de proteção do mal, da doença e da morte?
— É verdade — disse Aspásia. — Não é o que todos desejamos?
Voltou-se e continuou a andar de um lado para outro. Não estava velada, nem tinha a cabeça coberta dentro do quarto. Quando ela passava pelas janelas gradeadas, as barras de sol alternadamente a atingiam e deixavam, e os seus cabelos dourados ficavam-lhe em chama acima da testa clara e das faces pálidas. Continuava de mãos postas, até que estas ficaram úmidas de suor e, enquanto isso, murmurava:
— Se és na verdade o Deus Desconhecido, não deixes o meu amado morrer! Protege-o de todo o mal. Dizem que amas os homens, queres ser amado por eles e serás nascido entre nós. Tem, portanto, compaixão como os nossos deuses não têm. Tem compaixão. Se ele morrer, eu não poderei viver.
Uma leve frieza, talvez um torpor, lhe tocou o coração e ela ficou mais calma. Foi então que ouviu um leve tilintar contra as grades da janela. Foi até à janela e olhou para fora. Viu Talías lá embaixo, vestido num manto escuro, com o rosto abatido e os olhos vermelhos. Tentou sorrir para ela e então mordeu os lábios. Havia apenas dois homens no pátio dantes repleto e estavam conversando a alguma distância dele.
Aspásia olhou para trás e viu que as mulheres estavam de novo sentadas no chão e tinham recomeçado as cantilenas. Encostou-se às grades, com o rosto cheio de pena e de desejo de dizer a ele quanto estava sentida pelo que acontecera. Talías compreendeu. Os seus olhos azuis dantes tão alegres encheram-se de lágrimas. Ele levou a mão ao bolso e olhou em volta. Mostrou uma carta fechada, e o coração de Aspásia deu um pulo, A carta só podia ser de Targélia. Desesperada, tornou a olhar para as suas mulheres. Nada tinham visto, nem ouvido. Os pensamentos lhe corriam pela cabeça como pássaros alvoroçados. Soube afinal o que tinha de fazer. No aposento vizinho, tinham sido preparados cômodos para ela e suas mulheres, a fim de que elas não tivessem de procurar as latrinas do pátio. Havia ali uma pequena janela. Levava à cintura uma corrente de prata, ornada de granadas e ametistas, de que se agradara num bazar e que Al Talif havia comprado para ela. A corrente era bem comprida e podia dar-lhe várias voltas pelo corpo, chegando até aos seios.
Olhou de novo para Talías, apontou para a janela do outro aposento e observou as mulheres. Com um suspiro, foi até ao cômodo ao lado, que não tinha portas senão aquela de comunicação com o quarto onde estavam as mulheres. Fechou as espessas cortinas azul e ouro e foi em silêncio à janela, Talías estava à espera embaixo. Tirou rapidamente a corrente enrolada na cintura e a fez descer, segurando uma das pontas, por entre as grades da pequena janela, prendendo a respiração e com os olhos fitos nos dois homens que conversavam.
Talías pegou rapidamente a ponta da corrente e prendeu nela a carta. Esta subiu pela parede escura como uma borboleta e Aspásia pegou-a. Talías tocou então a testa em despedida e afastou-se, dirigindo-se para as latrinas do pátio.
O coração de Aspásia batia descompassadamente. Olhou para as cortinas fechadas, encostou-se a uma parede e leu:
Saudações a Aspásia, que me é mais cara que uma filha.
Como fiquei alegre de receber sua carta, pois nunca esteve ausente de minha lembrança! Chorei de prazer e da esperança de tornar a vê-la. Vou fazer imediatamente o que me pede e procurar uma casa em Atenas como deseja, mas julgo essa casa que tem em vista muito estranha, Não discorrerei, entretanto, sobre o assunto, pois o mensageiro está à espera para levar esta carta. Deve primeiro vir a esta sua casa em Mileto, onde a terei mais uma vez nos meus braços e poderemos então falar de muitas coisas. Fico à sua espera e rogo a Hermes que a traga para mim com as suas asas.
Aspásia guardou a carta no seio. O que iria fazer com ela seria outro problema. Não sabia exatamente naquele momento como poderia deixar Damasco e Al Talif. Isso ficaria para o futuro.
Entretanto, sentia uma exultação, como se um vento de liberdade tivesse passado pelas grades de uma prisão e sua decisão, que ficara tanto tempo sopitada, começou a crescer dentro dela, a princípio como um fio de água e logo como um rio caudaloso e claro.
Quando as noites esfriavam muito depois do calor do dia, acendia-se um braseiro no quarto onde ela dormia com as suas mulheres. Aspásia pôde jogar a carta nos carvões do braseiro e viu-a transformar-se em cinzas. Depois, como a Fênix, renascia das cinzas com vida renovada. Depois que as mulheres dormiram, ela começou a pensar. Ainda que ele me deixe ir, como poderei deixá-lo? Terei de ficar com ele meu coração, meu amor e tudo que eu sou, e, daí por diante, serei apenas como uma sombra do Hades. Mas é preciso que eu vá antes que ele se canse de mim e eu vagueie como um fantasma nos aposentos das rejeitadas, sem que ninguém me queira e sem que ele me chame, entre prantos e suspiros através das noites intermináveis.
Capítulo 18
Durante várias noites, Al Talif não chamou Aspásia, mas ela o ouvia passar pelo pátio, que naquela época ressoava muito pouco com os passos dos que entravam na hospedaria ou de lá saíam. Por isso, podia-se ouvir a fonte no centro do pátio à noite e várias vozes. Às vezes, a voz de Al Talif lhe parecia extremamente arrastada e cansada. Levantava-se então e olhava para ele à luz dos archotes vermelhos e via-o caminhar de cabeça baixa. Tinha vontade de chamá-lo, mas o amor-próprio a impedia de fazer isso. Não queria ser uma mulher importuna, implorando o amor dele como uma cadela jogada aos seus pés.
Os dias imutáveis iam-se repetindo. Pouco barulho vinha da cidade, que jazia em silêncio, prostrada pelo medo. Um dia, pela manhã, Aspásia recebeu um chamado para ir ao quarto de Al Talif. Passou um pente pelos cabelos desgrenhados, pois naquele tempo ela se descuidava de sua aparência. Passou nos lábios e nas faces um unguento vermelho. Ficara muito pálida e abatida dentro daquela prisão sem sol. Vestiu uma túnica cor de jacinto, prendeu um colar de prata e ametistas ao pescoço e se perfumou com traços de essência de rosas. Foi então para o quarto de Al Talif. Era ainda muito cedo e o chamado era de causar estranheza. Os dois eunucos armados abriram-lhe a porta em pesado silêncio e ela entrou.
Cheia de horror, viu Al Talif estendido na cama de coxins, numa atitude de completo colapso, com o seu perfil cinzento voltado para o teto. Três escravas estavam reunidas numa parede afastada e dois homens estranhos ao lado da cama esfregavam o queixo e conversavam em voz baixa. Eram egípcios, como ela viu pelos trajes, pelas caras escuras e pelas bolsas médicas ao lado deles.
Havia no quarto um terrível mau cheiro feito de vômitos e de fezes e Aspásia sentiu-se tontear e tremer. Ninguém dera atenção à sua chegada. Ela se aproximou da cama e olhou para Al Talif. Curvou-se sobre ele, que tomou conhecimento do cheiro e da presença dela.
Virou o rosto para ela e tentou sorrir. Os olhos sumidos dentro das órbitas estavam baços. O brilho bronzeado das faces, que também estavam sumidas, tinha desaparecido. A boca estava ressequida e um pesado suor lhe cobria o corpo de grandes gotas brilhantes. O corpo estava bem menor.
Levantou para ela a mão sem força. Ela caiu de joelhos e tomou essa mão, que estava quente como se ela tivesse tocado em fogo. Apesar da sua angústia, isso a espantou, pois indicava uma febre muito alta. Era evidente que Al Talif estava muito mal e às portas da morte.
Lembrou-se, apesar do seu terror, que os doentes de cólera não tinham muita febre. Pôs a mão por baixo das cobertas. A barriga dele estava crescida e ele gemeu muito, embora a pressão exercida por ela fosse extremamente leve. Os egípcios olhavam-na com surpresa.
Esquecendo tudo mais e só pensando na situação em que estava seu amado, Aspásia continuou o seu exame, e por um instante, um sorriso irônico lhe brilhou no rosto. A região do lado direito estava especialmente crescida e endurecida sob o toque dos seus dedos. Fez uma leve pressão e o doente deu um grito, empurrando a mão dela.
Aspásia jogou para trás os cabelos solto e olhou para os médicos, que sorriram desdenhosamente. Viram então os grandes olhos dela, cintilantes como topázios e cheios de autoridade.
— Não está com cólera — disse ela com voz forte e clara. — Há quanto tempo está doente?
Houve silêncio durante alguns momentos e por fim um dos médicos disse:
— Há vários dias. Por que diz que não é cólera?
A voz dele era quase respeitosa e não mostrava o desprezo pelas mulheres quase invariável entre os povos arianos. Um dos médicos pensou: Ela parece ísis, dourada, branca e rósea. Talvez seja uma sacerdotisa da deusa.
— Aprendi medicina com um famoso médico, na casa de Targélia, em Mileto, e nunca deixei de me interessar por ela. Ele tem tido evacuações frequentes e cólicas dolorosas?
O mais jovem dos médicos aproximou-se dela com muito interesse e uma expressão de gravidade.
— Isso mesmo — disse ele, quase como se estivesse falando com um colega.
Viu a profunda inteligência que animava o rosto de Aspásia e se lembrou de que no Egito as sacerdotisas exerciam frequentemente a medicina. Esqueceu-se de que ela era uma concubina favorita, cuja posição era pouco superior à de uma escrava, e acrescentou:
— Mas isso também se verifica em alguns casos de cólera.
— Há um pouco de febre na cólera — disse Aspásia, falando exclusivamente com ele, enquanto o médico mais velho cofiava, a barba. — Ele vomita muito como na cólera?
— Vomita, mas não com muita frequência.
— Por outro lado — continuou Aspásia — é claro que na cólera não há inflamação e endurecimento do lado direito da barriga. As fezes são claras, pardas ou escuras sem ejaculações sanguíneas na maior parte dos casos. Escute, a urina dele é deficiente ou inexistente?
Nesse momento, o outro médico se aproximou.
— A produção de urina é quase normal apesar dos vômitos e das dejeções. Retém às vezes a água que bebe.
— Está sofrendo dores — disse Aspásia. — Não pode suportar qualquer toque na barriga. Isso não é normal na cólera, que ataca muito pouco os intestinos.
O médico mais velho perguntou indulgentemente:
— E pode-se saber qual é o seu diagnóstico, Senhora?
— Diarreia — disse Aspásia. — É grave e pode ser fatal, mas não é tão grave quanto a cólera.
Tornou a tremer e apertou com força a mão de Al Talif como para ímbuí-Io da energia e da determinação de viver que ela sentia. Tinha a fronte molhada com a intensidade de suas emoções.
— Diarreia? — disse um dos médicos. — É uma doença que conhecemos bem e não nos parece que se trate disso.
— Pode ser, senhores, porque Al Talif está atacado de uma forma muito virulenta da doença. Ouvi dizer que no Egito a doença é endêmica e em geral mais benigna do que em outras regiões onde há menos defesas contra ela e por isso mesmo a doença se apresenta com formas mais graves. Peço que me deixem tratar de Al Talif, pois a diarreia não é rara na região onde vivemos, entre escravos e pobres. Só é rara entre os ricos que vivem bem. Deixem-me tratar dele. Já está quase morto e o meu tratamento não poderá fazer-lhe mal algum.
A mão febril de Al Talif tocou-lhe o rosto. Aspásia tornou a segurar-lhe a mão e perguntou aos médicos:
— Que é que lhe estavam dando em tratamento?
— Purgativos, E vinho de ervas.
— Oh, deuses! Dão-me permissão para ordenar o tratamento?
Os médicos se entreolharam, sorriram e encolheram os ombros,
— O amor pode muitas vezes fazer coisas que os melhores médicos não conseguem. O caso dele é grave. Os seus cuidados não podem agravar o estado do doente.
— Aspásia — disse Al Talif com voz bem fraca.
— Você está em minhas mãos! — disse ela, impetuosamente. — Vai-me obedecer, pois do contrário morrerá!
Houve um grande espanto no rosto abatido, mas ele não disse mais nada.
Aspásia chamou as escravas reunidas no outro lado do quarto.
— Abram as janelas para que ele não morra sufocado! Abanem-no delicadamente. Vão buscar bastante água fresca misturada com aguardente síria. Preparem também uma mistura de três colheres de leite de cabra, uma colher de mel e meia colher de sal. Peçam na cozinha que preparem uma boa quantidade de caldo de carne quente.
O caldo deve ser dado a ele de meia em meia hora e o leite, o mel e o sal de duas em duas horas. Depressa!
As escravas se lembraram de que a estrangeira era uma feiticeira e se apressaram em cumprir-lhe as ordens, depois de fazerem o sinal para afugentar o mau-olhado.
— Mas esse não é o tratamento para a diarreia — disseram os médicos. — Nós damos leite de cabra fervido e arroz.
— Já disse que em vosso país a diarreia não é muito grave e pode ser facilmente curada com repouso e cuidados, ó deuses, em que casa meu Senhor teria apanhado isso?
Olhou para Al Talif como se fosse uma mãe a repreender um filho.
— Se tivesse ficado aqui na hospedaria, isto não lhe teria acontecido!
Al Talif tentou rir, mas apenas esboçou uma sombra de sorriso. Ela lhe encostou a mão no rosto e ele lhe beijou a palma.
— Deve-me ajudar — disse ela. — Não contrarie as minhas ordens. Procure reter os alimentos. Graças aos deuses, não é cólera.
Al Talif olhou para os médicos com o velho brilho irônico no olhar, mas viu com surpresa os médicos aquiescerem com gravidade.
— Vamos deixá-lo em mãos bem competentes, Senhor — disse o mais velho. — Passaremos novamente aqui à noite.
Os dois homens hesitaram. Em seguida, muito cerimoniosamente tomaram a mão direita de Aspásia e beijaram-na. Al Talif ficou ainda mais espantado. Aspásia recebeu a homenagem com uma leve inclinação da cabeça e ficou feliz de não estar tratando com médicos arianos que a considerassem apenas uma escrava atrevida. Saíram com ar imponente e ela sorriu para Al Talif com lágrimas nos olhos. Os dedos dele afagaram os cabelos dourados que caíam sobre os ombros de Aspásia e ela voltou a cabeça e beijou-os.
As escravas levaram a água fresca misturada com aguardente e Aspásia banhou Al Talif com a mistura. Preparou depois o leite com mel e sal e olhou-o severamente quando ele fez cara feia.
— Se vomitar, vai ter de beber de novo.
Uma hora depois, forçou-o a beber o caldo de carne. Enquanto esperava, sentou-se no chão ao lado dele, apertando constantemente os dedos contra o pulso e o pescoço. O pulso febril começou a melhorar. Antes de chegar a noite, ele adormeceu de exaustão.
À noite, os médicos voltaram, examinaram o doente e disseram a Aspásia:
— Senhora, arrebatou o doente das portas da morte e não podemos saber se isso foi resultado da sua solicitude ou do seu tratamento.
Ela não saiu de perto dele durante vários dias, exceto para tomar banho ou comer. Nunca deixava um escravo aproximar-se dele sem antes lavar as mãos e o rosto com sabão, água e vinho. Observava-lhe as dejeções. Alimentava-o com as próprias mãos, repreendendo-o severamente quando ele reclamava. Banhava-o várias vezes por dia com a mistura de água e aguardente e de cada vez a febre baixava mais um pouco.
— Uma vez — disse ela — você declarou que eu era uma verdadeira criança. Mas as mulheres às vezes amadurecem e abandonam a infância. Isso não acontece com os homens, principalmente quando, estão doentes. Tornam-se crianças teimosas e malcriadas.
As forças de Al Talíf estavam voltando e ele disse quase com o seu poder de voz anterior:
— Isso é apenas uma ilusão feminina.
— O que nós vemos nos homens é também uma ilusão, a mais fatal de todas. Se Hera, Ártemis, Deméter, e Atena Pártenos não nos guardassem a nós, mulheres, nos confortassem e nos orientassem, a raça humana há muito teria desaparecido da terra.
— Acha que isso seria muito terrível? — perguntou ele, rindo.
— Absolutamente — disse ela e os dois riram juntos.
Nunca tinha havido tanta ternura entre eles, nem mesmo nos momentos de paixão. Mas a resolução criava raízes no espírito de Aspásia. Havia nela uma firmeza nova. Pensava a cada instante que não era mais jovem. Tinha já dezenove anos e era preciso tomar uma decisão antes que fosse tarde demais. As doenças da velhice chegam bem depressa para as mulheres. Quando estava sozinha, sentia o coração fraco e pesado e chorava muito.
Ela disse a Al Talif, numa tarde dourada, quando ele estava sentado na cama a fim de comer o que ela lhe havia preparado.
— Vou restituí-lo em boa saúde a suas esposas e suas mulheres e elas deviam ser-me gratas por isso.
Ele a olhou muito sério e perguntou:
— Não fala de você, minha querida?
Ela olhou pela janela, onde o sol pousava em fogo num lago de esmeralda. Disse então:
— Ouço ventos que vêm de longe e me ressoam na alma.
Ele a acariciou sem compreender. Aspásia sorriu apesar das lágrimas e tratou de dar-lhe a comida. Al Talif não se cansava dos cuidados dela e, muitas vezes, quando ela dormia em seus coxins ao lado dele, erguia o corpo no cotovelo para olhar-lhe o rosto pálido.
Compreendia que ela não era mais jovem, mas era mais preciosa para ele do que a própria vida e todas as outras mulheres eram como se não existissem. Não podia conversar sobre isso com ela. Não compreenderia, sendo mulher. Ela suspirava no sono e ele não sabia por quê. "Os ventos? " Era muito ambíguo para ele. As mulheres gostavam, muito dessas fantasias que nada significavam. Tocava-lhe os cabelos, e dormia também, contente.
Capítulo 19
Havia na cidade um grande jardim cheio de pássaros, fontes, macacos e muitos animais estranhos. A epidemia de cólera desaparecera e havia de novo por toda Damasco o rumor dos bazares e das caravanas, da música, das lojas, dos risos, dos sinos e dos templos repletos de gente que agradecia o término da peste. Até os que tinham perdido amigos ou parentes sentiam o curso do ano, pois as amendoeiras estavam em flor e os mirtos e os sicômoros se esmaltavam de belas folhas verdes. As oliveiras brilhavam com prata nova e as árvores frutíferas eram nuvens de neve branca ou rósea contra o fundo de opala do céu. Até os camelos resmungões andavam mais depressa e os cavalos corriam.
Al Talif e Aspásia estavam sentados ao lado um do outro nesse vasto jardim e olhavam os reflexos das fontes que elevavam para o alto os seus repuxos transparentes. Estavam rodeados de eunucos armados e das mulheres de Aspásia. A liteira os esperava com o seu teto dourado e esculpido a brilhar ao sol.
Aspásia estava ao mesmo tempo triste, cansada e esperançosa. Al Talif lhe segurava a mão sob o manto carmesim que ela vestia e os olhos dela, acima do véu, fitavam-no com ternura. Al Talif ainda estava fraco e às vezes tinha tremores de frio à noite, mas era evidente que dentro em pouco estaria bom. A sua magreza era menor de dia para dia.
— Daqui a quatro semanas poderei viajar com minha caravana — disse ele. — Voltaremos então para casa.
Ela nada disse. Olhou para o lado.
— Não ficará sentida de deixar Damasco? — perguntou ele.
Ela sacudiu negativamente a cabeça. Um pássaro vermelho pousou perto deles, mas logo bateu as asas e voou.
— Devo a vida a você, querida — murmurou Al Talif. — Se não fosse você, eu estaria a estas horas junto com meus antepassados.
Ainda então, Aspásia não falou, pois havia uma dor insuportável a restringir-lhe a garganta. Por fim, depois de longo silêncio, disse:
— Não acredita que tudo está predeterminado pelo destino? Se estivesse destinado a morrer agora, teria morrido, por mais que eu tivesse feito.
O riso de Al Talif era quase tão forte quanto antes da sua doença.
— Não sou supersticioso, nem acredito no destino. Já lhe disse, minha rosa do vale, que nada é predeterminado e que tudo nos acontece acidentalmente. Não é possível que qualquer Divindade possa tomar conhecimento da nossa insignificância na vastidão dos Seus domínios.
A volta à saúde fazia-o sentir-se novamente jovem. Ainda na noite anterior, Aspásia dormira mais uma vez nos braços dele e, mesmo depois de saciado, ele a prendera de encontro ao peito como se prende ansiosamente o maior tesouro da vida. Não, já deixara de ser jovem, mas ainda era bela. E não era nem na beleza que ele pensava quando recordava as atenções, o cuidado e a dedicação de Aspásia. Pensava nas horas que ela havia passado ao lado dele, lendo para ele e observando ansiosamente todas as suas mudanças de expressão. Nenhuma tarefa lhe parecera repulsiva e não julgara qualquer aspecto da doença dele repugnante ou revoltante. Cuidara dele como se fosse uma mãe, através de noites de sofrimento e de espasmos convulsivos em seus intestinos. Nessas ocasiões, quando instava com ela para que fosse descansar, via-a apenas sorrir debilmente, enquanto ela emagrecia de dia para dia e os seus lindos olhos perdiam o brilho no rosto translúcido. Jamais acordava sem vê-la ao lado ou curvada sobre ele. Às vezes, fechava os olhos e dormia de pura exaustão, mas segurando a mão dele. Ao menor movimento que ele fizesse, ela acordava, imediatamente vigilante. Nunca permitia fque uma escrava cuidasse dele.
Recordando tudo isso, ele se emocionou e disse:
— Amanhã, meu amor, levá-la-ei ao meu joalheiro e tudo que ele possuir será seu. É um pobre sinal de gratidão pela minha vida, mas é a única recompensa que posso oferecer.
Ela baixou a cabeça e perguntou a si mesma: Só isso?
Disse então:
— Não quero mais joias, Senhor, pois já as tenho de sobra dadas pela sua generosidade.
— Como posso então pagar-lhe, Aspásia?
Um suor frio correu pelo corpo de Aspásia. Teria de falar naquele momento ou nunca mais se sentiria com coragem de falar. Levantou para ele os olhos cheios de lágrimas sob o véu e disse:
— Deixe-me ir em paz e com a sua bênção, Senhor,
Ele se espantou. Voltou-se para que pudesse melhor fitar os olhos dela.
— Deixá-la ir, Aspásia? Para onde iria você e por quê?
— Quero voltar para minha velha casa em Mileto durante algum tempo. Depois, irei para Atenas a fim de abrir uma escola para moças que desejem ser mais do que um simples joguete nas mãos dos homens. Ajudá-las-ei a viver como os deuses querem que as mulheres vivam, pois Atena não trabalha infatigavelmente, Ártemis também, Deméter não cuida da terra e Hera não é rainha do Olimpo? As deusas são importantes no seu sexo. É claro que as mulheres da terra devem ter também vidas importantes.
Al Talif estava ainda incrédulo, mas a palidez lhe cobria o rosto moreno como a sombra de uma asa branca.
— Quer deixar-me, Aspásia?
— É preciso, Senhor — disse ela, olhando-o firme e diretamente, embora as lágrimas já lhe transbordassem das pálpebras para as dobras do véu.
Al Talif sentia um aperto no peito, como se tivesse sido mortalmente ferido. Largou a mão dela e o seu olhar se entristeceu de tal modo que Aspásia fechou os olhos, tamanho era o seu medo de fraquejar e desdizer-se.
— Em que foi que a ofendi, Aspásia, para que tenha vontade de partir e abandonar-me para sempre?
Ah, pensou ela, se me tivesse amado ainda que fosse um pouco, eu não pensaria em fugir, centro da minha alma. Mas os homens nunca podem amar na medida de nossas esperanças, pois tal é a natureza deles. Mesmo quando amam, esse amor é evanescente e uma nova mulher serve de consolo e esquecimento. Não o censuro, meu querido. Lamento apenas a minha loucura em ter esperança quando a esperança era impossível. Esqueci o que aprendi em casa de Targélia e foi esse meu grande erro. Sou uma mulher.
Desde que ela não falava, ele continuou:
— Quer dizer então que cuidou de mim não por amor, mas como uma escrava cuida do senhor, uma dedicada escrava que cumpria o seu dever?
Ela disse em voz baixa:
— Lembrei-me dos anos que passamos juntos, da nossa afeição e das nossas alegrias. Lembrei-me também de que, sendo um homem importante, sua vida devia ser salva.
—•Para quê? Para quem? — perguntou ele com amargura.
— Para suas esposas e seus filhos. Não representam nada para a sua pessoa, Senhor?
Al Talif pensou em três filhos seus, já crescidos, de quem tinha orgulho e que o amavam. Embora não fosse costume os pais honrarem as filhas, havia duas delas cuja beleza e gentileza lhe faziam bem ao coração.
Aspásia disse:
— Era preciso restitui-lo à sua família e ao amor que todos lhe têm. Ainda é o senhor e o protetor de todos eles. Não é bastante isso?
Ele não falou. Os seus olhos mudaram com os seus pensamentos e com as suas paixões rebeldes. Disse então:
— O que lhe dei não tem valor algum, Aspásia?
— Tem um valor inestimável. Nunca o esquecerei. Mas tenho de partir.
Ele levantou o véu de Aspásia para ver-lhe o rosto e não notou como o lábio inferior de Aspásia tremia.
— É lamentável que seja culta, Aspásia — disse ele com voz áspera. — A cultura não é para as mulheres, pois as transforma em seres diferentes daqueles para que foram criadas pela natureza.
— Para ter cultura a pessoa deve ser inteligente. A inteligência das mulheres deve então ser desperdiçada?
— A natureza das mulheres é amar, criar e servir. As mulheres nada têm com o mercado, o comércio ou os assuntos do mundo.
— Ainda não respondeu à minha pergunta, Senhor.
— Não há resposta para absurdos — disse ele, acrescentando ao fim de uma pausa: — Não há nada que eu possa fazer para persuadi-la a ficar comigo?
Há, sim, pensou ela. Pode dizer que me ama, ainda que seja mentira — e jurar que eu lhe serei eternamente cara. Disse, porém, quase inaudivelmente:
— Nada do que está em seu poder me persuadirá, Senhor, pois não me pode dar o que eu desejo. É verdade que pode tomar suas joias e me deixar indefesa no meio da rua, como uma vez já me ameaçou de fazer. Não sei como poderei viver sem as joias. Só lhe peço é que me deixe ficar com elas e me liberte.
— Julga-me cruel e ingrato?
Ó deuses, pensou ela, é só em gratidão que meu amado pensa! Sentiu um leve desfalecimento.
— Não estou pedindo gratidão que é coisa mesquinha, relutante e difícil. Fiz o que tinha de fazer e, portanto, não vamos mais falar nisso. Há certamente uma coisa que ainda me pode dar: paz.
— Não teve paz comigo?
Aspásia levou a mão ao peito, onde a dor era enorme, e disse:
— Não.
Ele não respondeu logo. A sua palidez aumentou, mas quando ela o tocou alarmada, ele lhe empurrou a mão para o lado e esquivou-se.
— Só os mortos têm paz — disse ele. — É uma loucura pensar que isso está ao alcance dos vivos. Ou será que Targélia não lhe ensinou isso?
— Como sempre, estamos conversando, mas pensamos em coisas diferentes. A paz que eu desejo, Senhor, não a poderá compreender.
Al Talif faz um sinal para os carregadores da liteira e disse:
— Compreendo apenas uma coisa. É que me quer deixar. Devo-lhe muito, Aspásia. Devo-lhe muitos anos de prazer, de conversas elevadas e de contemplação de sua beleza. Tem sido minha companheira em horas vazias, as quais encheu de contentamento e alegria. Nenhuma mulher foi para mim o que você foi e isso também eu nunca esquecerei.
— O mundo está cheio de mulheres — disse ela, apesar de sua dor. — Não será difícil substituir-me.
Isso o ofendeu mais que qualquer outra coisa e o levou a dizer abruptamente:
— Tenho uma caravana que vai partir amanhã? Deseja seguir com ela?
Amanhã! Não haveria despedidas. Era bom, mas seria terrível.
— Sim — respondeu ela.
— Tenho homens que a levarão para onde quiser ir, Aspásia. Espero que isso lhe agrade — disse ele, sem emoção. — As joias são um sinal de gratidão e eu lhe mandarei também uma bolsa com moedas de ouro. Vá em paz, Aspásia, se é isso o que mais que tudo deseja — concluiu ele com um sorriso.
Não desejo, meu amado, pensou ela. Mas é tudo o que me resta neste mundo hostil. É um desejo estéril, o desejo dos moribundos e dos desesperançados. Mas é só o que eu tenho.
Voltaram em silêncio para a hospedaria. Era um silêncio muito cheio de tristeza para poder admitir palavras. Naquela noite, Al Talif mandou entregar-lhe uma grande bolsa cheia de moedas de ouro, mas que chegou desacompanhada de qualquer palavra ou pedido de despedida. As suas mulheres lhe arrumaram as malas, rindo de alegria quando ela não estava olhando. Murmuravam entre si.
"A estrangeira foi dispensada. O contentamento vai voltar à casa do senhor. Ela tem mau-olhado. Todas nós nos alegraremos no harém com a ausência dela".
A caravana partiu com a tenda de Aspásia. Não houve despedidas de Al Talif, nem sinal da sua solicitude. Já me esqueceu, pensou Aspásia. Deitou-se nos coxins em sua tenda e, quando a caravana se pôs em marcha, ela abriu a cortina e olhou. Mas não viu Al Talif. As portas da hospedaria se fecharam e a caravana partiu. Se Al Talif tivesse aparecido, Aspásia correria para ele e imploraria que não a deixasse ir.
Como somos infelizes quando os deuses ouvem as nossas preces!, pensou ela do fundo do seu desespero. Tornou a deitar-se nos coxins, cobriu o rosto com um pedaço de seda e entregou-se a um tormento tal como nunca havia sofrido até então. Era como uma concha arrojada na praia, vazia do animal que a havia habitado. Estava também vazia e apenas o vento soprava sobre os destroços de sua vida, sussurrando desgraças, desolação, coração despedaçado, o fim da vida e uma imorredoura solidão. Não derramou lágrimas. Os mortos não choram. Podem apenas recordar.
Capítulo 20
O outono chegou de novo à Pérsia e as grandes caravanas começaram a mover-se para os seus muitos destinos. Mas Al Talif não acompanhou qualquer delas.
— Ainda me estou recuperando de uma doença grave — dizia ele aos amigos e aos outros mercadores. — Além disso, já não sou jovem.
Todos aceitavam a explicação por gentileza. Comentava-se, porém, em toda parte, que a bela Aspásia, a flor do seu harém e sua adorada, desaparecera da casa. Fora banida por ele ou morrera em Damasco?
As mulheres e os eunucos faziam também comentários. As mulheres estavam felizes com a partida da irmã de Arimã e eram assíduas nos seus esforços por divertir o senhor. A sua esposa mais velha sugeriu que ele adquirisse uma nova esposa jovem nos mercados de escravas da Grécia ou da Macedônia, onde, ao que se dizia, havia lindas mulheres tão louras que os cabelos eram quase brancos, com olhos da cor dos jacintos e carne que parecia feita de pérolas. Além disso, eram hábeis na música e na dança e alegres e graciosas. A esposa mais velha, que amava o marido, estava alarmada com ele. Estava ficando emaciado e seu rosto moreno, que nunca fora animado ou alegre, parecia sombrio como se fosse esculpido em bronze. Não aceitava convites. Sentava-se nos jardins ou se trancava nos seus aposentos e não falava. Entrava raramente na sua biblioteca, que sempre fora um dos seus mais prezados tesouros. Não comprava livros novos. E não recebia visitantes.
As mulheres que tinham servido a Aspásia em Damasco eram ansiosamente procuradas e tinham de repetir inúmeras vezes tudo que sabiam. Era bem pouco, mas a imaginação maliciosa inventava detalhes fictícios. O senhor se cansara do atrevimento da estrangeira. Estava ficando velha, não dera um filho ao senhor e era preguiçosa e turbulenta. Tinham-na ouvido muitas vezes discutir com ele. Sugeriam até que a misteriosa doença que o atacara e que o levara a um passo da morte tinha resultado dos sortilégios dela. Quando ficara bom, ele compreendera tudo, apesar da malevolência da estrangeira, e a mandara embora. Fora incorporada a uma pequena caravana e ninguém nunca mais tinha sabido dela.
— Alegrem-se — diziam elas às esposas, às concubinas e às escravas. — Ele compreendeu tudo a tempo. Se não fosse a intervenção de Mitra ou de Zoroastro, teria morrido!
A esposa mais velha era inteligente e tinha um pouco mais de discernimento.
— Neste caso, sabendo de tudo isso, por que ele não mandou matá-la?
— Ela tinha lançado um encantamento sobre ele. Eu mesma vi — disse Sera.
— Uma verdadeira Circe — disse uma das escravas que era grega. Foi obrigada a explicar. As outras mulheres exprimiram o seu horror, levantando os braços e os olhos.
— Ela fez nosso senhor virar um porco! — exclamou a esposa mais jovem, apertando o filho mais novo de encontro ao peito, toda trêmula.
A esposa mais velha murmurou:
— Tudo isso é tolice. Ele a adorava. Como é que eu sei disso? Uma mulher que ama como eu sabe muito bem quando outra mulher possui o coração do homem a quem ela ama. Sabe isso dentro do coração. Ela também o amava. Ele murmurava o nome dela quando dormia ao meu lado e sorria ao luar. Um homem não faz isso quando o seu amor não é retribuído. Não estou cansada de saber disso?
As outras a olhavam com má vontade, mas com respeito.
— Não obstante — prosseguiu a esposa mais velha — é muito bom que ela não nos perturbe mais. É um mistério com o qual devemos contentar-nos. Vamos aos templos agradecer e pedir que ele a esqueça rapidamente.
— Ele a deixou levar todas as joias que lhe tinha dado.
— Outro sortilégio! — exclamou a escrava grega.
— Tolice — disse a esposa mais velha. — Sortilégios não podem atingir o senhor, que é mais poderoso do que eles. Se ele a deixou levar as joias foi porque teve vontade, embora ainda ache isso inexplicável, — Ela se aborrecia com qualquer alusão à idade de Aspásia, pois era cerca de um ano mais velha. Deu um suspiro e acrescentou: — Quem pode compreender os homens? Fazem o que querem, ainda que nós, mulheres, não possamos compreender.
Mas uma das mulheres que tinham servido a Aspásia em Damasco trancou os lábios. O que ela tinha para dizer era coisa muito preciosa para servir de comentário no harém. Poderia render um bom dinheiro. Quem o pagaria? Acabou pensando em Kurda, que não tinha ido a Damasco. Ele lhe pagaria bom dinheiro. Mas ele não gostava muito de conversas com as mulheres do harém e vivia sempre atarefado em volta de Al Talif, cheio de consternação com a aparência dele.
Houve rumores de que Al Talif dera para passear pelos compridos corredores à noite, sob a luz do luar ou das estrelas, como um homem angustiado e incapaz de dormir. Podiam ouvir-se os seus passos que ressoavam monotonamente até ao romper do dia. Dizia-se também que de vez em quando gemia e batia as mãos em desespero.
As mulheres falavam de Aspásia chorar na sua tenda depois da partida de Damasco.
— Deixou-se cair como um lírio num oásis e nunca mais disse uma palavra.
— É claro então — disse a esposa mais velha — que os dois se amavam. Por que foi que se separaram?
Uma vez, quando Al Talif dormia ao lado dela e acordou, ela lhe disse delicadamente:
— Senhor, voltou para nós e para os meus braços. A estrangeira não lhe servia e fez bem em tê-la banido. Mas os homens não condenam ao banimento as mulheres a quem amam, a menos que elas procedam mal. Teria a estrangeira procedido mal?
— Não. Mas não vamos mais falar disso. O que passou, passou.
— Sofre por causa dela, Senhor, e isso lhe faz mal.
Ele se levantara da cama e fora passear no extenso corredor que Aspásia gostava noite e dia de percorrer. Olhava as cenas que ela havia olhado. Sentava-se onde ela se sentara. Tudo isso fez recrudescerem os comentários. Al Talif passava horas no quarto de Aspásia, aonde nunca fora até então, com a porta fechada. E chegava a dormir na cama que fora dela.
Às vezes, tinha ódio dela por aquele ardente e implacável desejo. Julgava a cada momento ouvir-lhe a voz, sentir-lhe o perfume, escutar-lhe o riso, animar-se com a sua conversação esclarecida ou experimentar o contato das suas brancas mãos. Lembrava-se de como ela havia cuidado dele e perguntava em voz rouca: "Por que não me amou, Aspásia? Foi um cálculo de sua parte cuidar de mim para que eu consentisse na sua partida, que uma vez lhe negara?" Mas sabia que Aspásia não era de modo algum calculista. Tinha sido sempre de impecável honestidade, de uma integridade que nada poderia perturbar, de um orgulho que desprezava mesquinharias e mentiras. Tinha-lhe pedido paz e ele havia concordado. Que paz desejava ela? Não sabia. Sabia apenas que alguma coisa se contorcia dentro dele em agonia e desespero, em fúria e solidão. Era em vão que ele se tentava convencer de que ela era apenas uma mulher, num mundo de mulheres amáveis, que fora uma hetera a quem comprara na famosa casa de Targélia. Havia ocasiões em que ele era dominado por um desejo quase incontrolável de encontrá-la, de um impulso de suplicar-lhe que voltasse, de usar até a força para conseguir isso, caso fosse necessário. Mas, conhecendo Aspásia, sabia que isso não adiantaria nada. O pássaro que foge não pode ser capturado e, quando o é, definha em sua gaiola, por mais carinho que lhe seja dado. Com esses pensamentos, levava as mãos aos cabelos e rolava a cabeça em tormento, repetindo-lhe o nome como num encantamento.
Tinha ódio de si mesmo por esse sofrimento, mas não podia livrar-se dele. Deixara-a ir sem confessar o seu amor, sem exprimir a necessidade que tinha dela. Começava a pensar que, se tivesse feito essa confissão, ela teria ficado de pura piedade dele. Mas ela nunca o amara. As artes que empregara para agradar-lhe e dar-lhe um prazer quase insuportável eram artes ensinadas e, portanto, não lhe vinham do fundo da alma. A ideia de uma mulher ter pena dele e de ficar com ele por piedade era-lhe repugnante ao corpo e ao espírito. Mas havia momentos em que se sentia tão abjeto quanto um escravo flagelado e teria sido bastante para ele vê-la e tê-la nos braços.
Era inútil pensar que era um sátrapa e um rico mercador muitas vezes recebido com honras na corte de Ártaxerxes, ao passo que Aspásia nada mais era que uma mulher comprada e que nem mais jovem eia. Não era para sua paixão que ele a desejava com aquele terrível desejo. Era por ela mesma. Deixara-a ir sem formular uma súplica, sem fazer a menor censura. Que eram para ele depois disso as suas esposas e todas as suas mulheres? Não eram a singular Aspásia, a incomparável. Ao lado dela, todas eram corvos sombrios diante de um pássaro de fogo ou humildes pardais diante de um rouxinol. Eu a amava mais do que era possível, pensava ele. Esperava esquecê-la dentro de uma semana, de um mês, no máximo. Mas ela deixou a sua lembrança nos corredores, nos jardins, em toda a minha casa. Acordo à noite para procurá-la e não a encontro. Se tivesse morrido, eu não a choraria mais do que choro neste momento.
Não queria nem ver os filhos a quem amava. Não eram Aspásia e suas mulheres não eram Aspásia. Tudo o que possuía no mundo não tinha sentido sem ela. Os seus cabelos começavam a branquear nas têmporas e a angústia que lhe ia na alma lhe cansava o corpo e o deixava desprendido e inerte.
O rosto de Aspásia não lhe saía da lembrança, sorridente, sério, provocante, pensativo ou alvoroçado como o de uma criança. Via-a a discutir com ele filosofias e assuntos obscuros. Havia admirado com alguma resistência a inteligência dela que, como via agora, tinha sido para ele uma fonte de água fresca em pleno deserto. Tinha sido excepcional e cintilante, acerada como uma lâmina damascena. certeira e sutil. Ela o compreendera como ninguém havia ainda compreendido. A. presença dela lhe tinha dado conforto e desafogo, quando não estavam juntos na cama. Encontrara contentamento nela. Lembrava-se de como tinham rido e pilheriado juntos, Fora muitas vezes brutal com ela, repelindo-a e até esquecendo-a. Sabia agora que ela nunca lhe saíra do pensamento apesar de tudo isso e que sempre voltava para ela como um amante insatisfeito que nunca se pode saciar da amada.
Infelizmente, deixei-a ir, meu cisne branco, minha adorada, pensava ele repetidamente. Não sabia o que possuía até que a perdi e voltei para as mulheres vazias que sabem apenas tagarelar e ter um corpo. Aspásia tinha também um corpo, não muito diferente do das outras mulheres. Confesso agora que não era seu corpo que eu amava, mas sua alma, seu espírito, o que era toda você, minha querida. Quem pode substituí-la? Vejo-a em toda parte e todas as coisas me fazem recordá-la de uma maneira que já não suporto. Tive muitas mulheres, muitas esposas e sou um homem. Será que os homens só amam as que partiram para sempre? Não pode ser verdade, porque sempre a amei, sempre a quis junto a mim, sem jamais me esquecer.
Às vezes, envergonhava-se e tinha raiva de si mesmo. Mas o anseio por Aspásia continuava e aumentava de dia para dia. Mal podia comer o que lhe levavam. Vivia alheio a tudo, dentro de uma nuvem que lhe fazia todas as coisas parecerem irreais. Aspásia tinha vivido com ele apenas quatro anos. As esposas estavam com ele havia muito mais tempo. Entretanto, na sua lembrança, parecia que sempre a conhecera e que a esperara através do tempo.
As suas esposas mandavam intencionalmente os filhos para os jardins, mas eles não o alegravam mais. Não os admirava, nem lhes desejava a presença. A conversa deles era a mesma das esposas e, assim, eram de igual desinteresse para ele. Ia para a biblioteca, pegava os livros que ela costumava ler e um dia, com horror, molhou um rolo de pergaminho com as suas lágrimas.
Sera procurou afinal Kurda, que a escutou com os olhos brilhantes. Lambeu os beiços. Deu a Sera a moeda de ouro que ela pedia e chegou a bater-lhe no ombro em sinal de satisfação e agradecimento. Interrogou então o chefe da caravana, que interpelou os homens que tinham conduzido a plataforma com a tenda de Aspásia. Depois de algumas semanas, encontrou um dos homens no pátio que havia observado uma ocorrência estranha e, depois, ainda outro.
Kurda pensou. Como iria o senhor receber essa informação? Com fúria, incredulidade e castigo para ele? Ou com gratidão? Kurda ficava muitas vezes acordado à noite, esfregando o queixo glabro e pensando na melhor maneira de agir. Afinal, não pôde mais esperar e procurou AI Talif na biblioteca. Entrou silenciosamente e Al Talif, magro e carrancudo, olhou-o com impaciência. Kurda fez uma reverência.
— Senhor, trago-lhe notícias da estrangeira que baniu há quase um ano, se puder suportá-las.
Al Talif levantou-se e os seus ossos se tornaram sob a sua pele como duro metal.
— Fale! — exclamou ele.
Teriam encontrado Aspásia? Onde poderia ir buscá-la? O coração lhe batia desesperadamente dentro do peito.
Kurda correu os olhos em torno e hesitou.
— A notícia vai aborrecê-lo, Senhor, e eu receio que sua cólera recaia sobre mim, que sou inocente, e não sobre o homem com quem aquela mulher o traiu.
Al Talif ficou imóvel. Olhou para Kurda e cerrou a boca ressequida. Disse por fim:
— Não houve homem algum, nenhum amante. Mas conte a sua história. Sei que a odiava, mas não o punirei, por mais absurdo ou vil que seja o que me vai contar.
Kurda olhou para ele humildemente e disse:
— O homem foi um dos seus companheiros, dos seus amigos, que o acompanhou numa caravana. Trata-se de Damos, o mercador de Damasco, que foi hóspede em sua casa.
Ainda olhando para Kurda, Al Talif se sentou devagar. Lembrou-se da noite em que Damos jantara com ele, em que lhe dera as duas meninas de presente e Aspásia interviera. Lembrou-se de que, antes disso, ela ficara muito agitada ao entrar no salão de banquetes e ele pensara que ela talvez tivesse reconhecido algum dos convivas.
— Continue — disse ele a Kurda, com as mãos cerradas dentro do seu manto de brocado.
A despeito do seu medo, Kurda contou bem a história e coerentemente. Encontrara um dos homens que tinham conduzido a tenda de Aspásia. O homem vira Damos aproximar-se da plataforma a cavalo, tendo visto antes Aspásia sair da tenda e ir sentar-se na retaguarda da plataforma. Tinha olhado por simples curiosidade e vira Aspásia entregar uma carta a Damos. Tinham falado rapidamente e em voz baixa, o que impedira o homem de perceber alguma coisa. Aspásia parecia estar implorando alguma coisa a Damos.
— O homem falou com um companheiro sobre esse estranho caso — disse Kurda, olhando para Al Talif, receoso de qualquer gesto de violência da parte dele. — Mas o companheiro disse que, desde que Damos era seu amigo, Senhor, e convidado na caravana, a estrangeira devia estar mandando uma mensagem para o Senhor que, como era sabido, não a via desde muitas noites. Convenceram-se de que a explicação era essa e não pensaram mais no caso.
Al Talif nada disse. A garganta de Kurda ficou seca. Não lhe agradavam aqueles terríveis olhos fitos nele.
Mas Sera, uma das mulheres que serviam a Aspásia, tinha observado coisa muito mais grave em Damasco. Contara a Kurda que Aspásia ficara muito inquieta, quando aprisionada na hospedaria durante a epidemia de cólera. Andava de um lado para outro no quarto, como um demônio, com uma expressão selvagem. Uma tarde, Sera, que estava fazendo as suas preces contra a peste, vira Aspásia parar de repente diante de uma janela e olhar para baixo como se alguém ou alguma coisa lhe tivesse chamado a atenção. Pouco tempo depois, tinha ido à sala onde tinham sido instalados os lavatórios e fechara cuidadosamente as cortinas. Sera tinha corrido para a janela e vira embaixo o amigo do Senhor, Damos, que estava olhando para a janela da sala vizinha. Notara então com espanto que Aspásia tinha desamarrado a sua corrente de prata e a passara por entre as grades para Damos, que prendera a ela uma carta, que Aspásia puxara rapidamente, depois do que Damos se afastara do local.
Sera havia olhado por um canto da cortina e vira Aspásia ler a carta e depois guardá-la no seio, Sera nada dissera às outras mulheres, pois era prudente e pouco dada a falatórios. Mas continuara a observar Aspásia e vira pouco depois jogar a carta num braseiro.
Depois de informado desses fatos, ele, Kurda, fizera investigações, e não só ouvira a história da entrega por Aspásia de uma carta a Damos enquanto a caravana estava em viagem para Damasco, mas também descobrira dois homens da caravana que estavam no pátio da hospedaria e tinham visto Damos fazer furtivamente entrega de uma carta a Aspásia. Tinham negado a princípio, pois não haviam visto claramente Aspásia à janela. Mas conheciam bem Damos, pois ele fizera parte da caravana e tinha andado a cavalo em companhia do Senhor em muitas ocasiões. Se estava tendo comunicação com alguma mulher, que interesse poderia isso ter para eles?
— Qualquer dessas revelações seria suficientemente grave, embora se pudesse encontrar uma explicação para qualquer delas — disse Kurda. — Mas há três fatos e, combinados, eles têm a maior importância.
Al Talif durante muito tempo ficou em silêncio. Não acreditava nem por um instante que Aspásia lhe tivesse sido infiel. Sabia que Damos era grego e era bem provável que tivesse conhecido Aspásia, embora negasse ter vivido em Mileto ou sequer conhecer essa cidade. Tinha mentido, portanto. Al Talif se lembrava de que Damos sempre havia mostrado especial deferência com Aspásia e lhe falara sobre ela na hospedaria por ocasião da visita de Hepziba. Tinha falado dela como se fosse uma grande senhora e não uma cortesã. Tinha, além disso, permitido que sua esposa conversasse a sós com ela, o que era uma concessão muito estranha da parte de um judeu virtuoso. E ele não havia demonstrado que o era, levando as meninas para sua mulher e não para a sua cama?
Teria sido ele um cliente casual de Aspásia quando ela ainda estava em casa de Targélia? Não. Targélia só entregava virgens a homens importantes ou ricos e Aspásia tinha sido uma virgem na cama dele, Al Talif. Tinha certeza disso. Tinha havido também uma qualidade incorrupta em Aspásia, uma frescura, uma inexperiência que não poderiam certamente ser fingidas diante de um homem que tinha a experiência de Al Talif.
Aspásia tinha sido seduzida a afastar-se de seu senhor ou tinha convencido Damos a ajudá-la a fugir, mas o motivo disso Al Talif não podia perceber. Damos, privado de uma esposa amada e amorosa, tinha ficado em Damasco, a chorá-la e a cuidar dos filhos. Havia derramado lágrimas quando Al Talif se despedira dele. Nada podia consolá-lo da perda de Hepziba e o seu pesar era genuíno. O seu desespero nada tinha de fingido. Não tinha havido, portanto, comunicação sensual entre ele e Aspásia.
Entretanto, se não fosse ele, Aspásia ainda estaria em sua casa e Al Talif não estaria à beira da loucura. Quem era o correspondente daquelas cartas, uma mandada na estrada de Damasco, outra recebida em Damasco. Só podia haver uma resposta: Targélia. Aspásia não conhecia mais ninguém salvo as outras moças da casa de Targélia e nenhuma delas devia mais estar lá, pois já cinco anos eram passados. Só podia ter sido Targélia. Al Talif sentiu na sua raiva o sangue subir-lhe ao rosto. Iria logo que pudesse à casa de Targélia e arrancaria Aspásia daquele lugar infame. Depois, a raiva se amainou num raio de esperança e ele ficou disposto a convencê-la com ternura a voltar, ainda que ela tivesse outro protetor.
Havia ainda o caso de Damos, que lhe traíra a amizade.
Kurda estava diante de seu senhor à espera, observando as transformações na fisionomia de Al Talif, o arquear de suas sobrancelhas, a afluência de sangue ao seu rosto, a constrição dos seus lábios e a palidez que às vezes substituía o rubor.
Por fim, Al Talif tomou conhecimento do eunuco que esperava diante dele.
— Mande Sera e os homens da caravana falarem comigo, se eles ainda não voltaram para a Síria.
Kurda saiu correndo da sala, quase exultante. De nada soubera durante muito tempo até que Al Talif mandou chamá-lo.
— Tenho uma tarefa para você, Kurda — disse Al Talif com voz firme e clara. — Mas, antes, receba esta bolsa como sinal da minha gratidão.
Kurda ficou radiante e beijou a mão de Al Talif.
— Pode ordenar o que quiser, Senhor!
— Tem de ir a Damasco e providenciar para que um homem seja discretamente assassinado, Damos de Damasco. Não faça isso pessoalmente. Contrate assassinos. Não volte enquanto a missão não estiver cumprida.
— As suas ordens serão obedecidas! — exclamou Kurda alegremente e correu a fim de preparar-se para a viagem e para planejar a morte de Damos com tamanha habilidade que ele nunca seria acusado de coisa alguma.
Al Talif viajou então até Mileto e procurou a envelhecida Targélia. Ela o recebeu com muita deferência e grandes demonstrações de alegria. Disse imediatamente:
— Por que não trouxe minha filha, minha querida Aspásia, para visitar a quem lhe tem tanta amizade? Como vai ela em sua casa? Já lhe deu filhos?
Al Talif a contemplou com. olhos que pareciam punhais. Sentia-se decepcionado e deplorava a perda de suas esperanças.
— Ela nunca lhe escreveu, Targélia? Você a amava tanto e era tão amada por ela!
— Não recebo notícias dela, desde que saiu desta casa para acompanhá-lo, Al Talif. E não escrevi uma só linha para ela. Por que me olha assim? Aconteceu alguma coisa a Aspásia?
— Ela está bem — disse Al Talif e retirou-se, recusando o convite de Targélia para que visse as jovens que tinha em casa.
Quando voltou, alguns meses depois, encontrou Kurda em casa. O eunuco não disse coisa alguma, mas fez um sinal afirmativo, com sorridente satisfação. Al Talif deu-lhe outra bolsa.
Em seguida, abandonou-se por muito tempo a profundo desespero.
Segunda Parte PÉRICLES
"Ele era, mais que todos os homens, justo ",
ZÊNON DE ELEIA
Capítulo 1
Depois de Zênon de Eleia ter visto Péricles, filho de Xantipo e de Agariste, Xantipo fez uma visita a Zênon em sua casa.
— A mãe de meu filho — disse Xantipo — se interessa pela aparência que, segundo ela, é a primeira porta para o poder. Julga ela que a cabeça de Péricles se ergue muito acima do cenho e das feições.
— Porventura um grande homem lamenta não ser aceito pelas aclamações dos obscuros, dos inferiores, dos insignificantes? Ao contrário, rejubila-se, pois o que é comumente aceito é execrável e degradante, além de desvalioso. Um saltimbanco, um atleta, um palhaço, um bufão, um pugilista, um cantor ou um ator, qualquer desses pode ser aplaudido pela multidão inferior, cujos apetites são os apetites das estrebarias. Quem desejaria ser aplaudido por essa gente?
— Está querendo dizer que meu filho não pertence ao mundo comum? — perguntou Xantipo.
— Devo dizer-lhe que nunca me enganei com um aluno — disse Zênon com dignidade. Se eu não tivesse contemplado os olhos calmos, diretos e radiosos de seu filho, não teria visto o que vi, nem teria consentido em servir-lhe de mestre. Tem uma presença majestosa, apesar de sua pouca idade, e a majestade é coisa muito de admirar. Considero-o o mais belo dos jovens, embora tenha apenas doze anos de idade. Há virilidade no seu porte e autoridade no seu olhar. Prevejo para ele um futuro que superará o dos homens inferiores e que repercutirá através dos tempos.
.....
— Imploro aos deuses que ele seja um bom soldado — disse o pai.
— Fala como soldado — disse o professor, sorrindo indulgentemente. — Acredito que seu filho terá gênio militar, pois tenho-o observado, mas será também a glória da sua nação. Consultei os oráculos de Delfos.
— Mas isso é superstição — disse Xantipo, que era extremamente supersticioso, ainda que em muitos sentidos fosse céptico e pragmático.
— Já se disse — murmurou o mestre — que a superstição nasce da experiência. Quem sabe o que regula o destino e os casos dos homens?
O pai pensou, alisando o linho branco do seu manto.
— Falou na "glória de sua nação". Haverá maior glória do que a de um soldado?
— Dizem que a história é a sombra dos grandes homens. Ou dos homens monstruosos. O gênio militar é admirável, pois mantém uma nação no seu aspecto material. Mas há outro gênio, a chama da inteligência. Seu filho possui ambos os gênios. Como disse, consultei os oráculos de Delfos. Juro que Apolo me respondeu.
O pai se mostrou incrédulo.
— Apolo lhe respondeu, Zênon?
O professor desviou os olhos, sorrindo, diante do olhar iluminado de descrença do outro.
— É o que eu creio. Ou então foi alguma força lógica. Não sou uma mulher histérica, nem um homem dado a sonhos idiotas. Reflito sobre as coisas. Mas há em minha alma algo que me diz que seu filho não é do molde comum e que não o animam aspirações comuns.
Zênon de Eleia, celebrado pelos filósofos seus colegas como o criador da dialética — isto é, ele provava que a discussão tem por fim não uma vitória pessoal, mas o estabelecimento da verdade — era um homem jovem e magro de baixa estatura, com um rosto estreito, branco e pontudo, no qual os dois grandes olhos pretos brilhavam cheios de luz, dominando-lhe as feições e dando-lhe uma expressão de extraordinária vivacidade e empolgante força. Esqueciam-se os outros atributos insignificantes que o caracterizavam, tais como um cenho branco perpetuamente franzido, os cabelos crespos e curtos que lhe caíam pela ponta das grandes orelhas, um pequeno nariz arrebitado e a boca inquieta — que sugeria erradamente um temperamento instável — quando aqueles olhos brilhantes e intensos estavam voltados para o interlocutor. Era então que o observador subitamente intimidado tomava conhecimento de uma presença, de um clarão por trás do brilho menor desses olhos e de uma concentração de enorme e incessante energia. Muitos sentiam que o frágil corpo do filósofo poderia ser consumido a qualquer momento nessa incandescência, sem poder suportar o núcleo de chama que dentro dele ardia. Mas, desde que as suas maneiras eram simples e até algumas vezes tímidas e ele nunca discutia em voz alta nem com qualquer manifestação de arrogância, sendo invariavelmente bondoso, cortês e interessado nas opiniões alheias, havia quem lhe negasse sabedoria e dissesse que ele apenas refletia o gênio superior de seu mestre e amigo Parmênides, que sabia desprezar as inteligências inferiores e tinha uma língua acerada na ironia. Alguns até julgavam o seu olhar por demais ardente e ridicularizavam a sua proeminência, fingindo...
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