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A GRANDE SOLIDÁO / Janet Dailey
A GRANDE SOLIDÁO / Janet Dailey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Enquanto os Estados Unidos estavam sendo ocupados por uma expansão no sentido oeste, a Rússia expandia seu território movendo-se para leste. Durante toda a sua primitiva história, uma mercadoria que a Rússia sempre teve em abundância para comerciar tanto com a Europa quanto com a China foram as peles - de zibelina, de arminho, de raposa, de urso e outras de grande valor. Tudo era computado em peles: os impostos, os salários, as multas e as recompensas eram pagas em peles.

Era o promyshlenik - ou promyshleniki no plural - uma estirpe de coureurs dês bois comparáveis aos montanheses americanos, que exploravam esse recurso natural. Enquanto a servidão prevalecia no resto do país, forçando as pessoas a trabalharem a terra para os nobres, esses homens eram livres para ir aonde lhes agradava, viajando em grupos, elegendo seus próprios líderes, compartilhando dos lucros de uma temporada de caça entre eles e os comerciantes que financiavam as expedições. Quando esgotavam os recursos de uma região rica em peles, eles se deslocavam para uma nova área, tendo afinal que enfrentar a selvagem vastidão da Sibéria, onde havia fartura de peles.

 

 

 

 

Os promyshleniki faziam a exploração e os cossacos seguiam-nos para tomar posse da terra. Um povo guerreiro das estepes ao norte do mar Negro, formavam uma classe social mais do que étnica, que roubava tão frequentemente quando comerciava e que prezava bastante sua liberdade. Eles haviam alcançado o Pacífico no século XVII e tinham ouvido rumores de uma "grande terra" para leste, do outro lado das águas. Na mesma época, cientistas europeus especulavam que a Ásia e a América deviam ser ligadas em algum ponto ao norte.

Foi Pedro o Grande quem mandou a primeira expedição exploratória ao Pacífico Norte e ao Ártico, ainda não mapeados, a fim de saber se os dois continentes eram ligados. Em julho de 1728, Vitus Bering, um dinamarquês servindo na armada russa, partiu com o navio recém-construído São Gabriel do estaleiro que ele havia montado próximo à foz do rio Kamchatka em direção ao mar que iria ostentar seu nome. Dois meses mais tarde voltou, convencido de que não havia uma

massa de terra ligando a Ásia e a América, mas sem trazer provas disso.

Uma maior e mais abrangente exploração foi ordenada pela imperatriz Isabel, uma expedição tão grande que foram necessários oito anos para transportar todos os homens, equipamentos e suprimentos através da Sibéria e para construir dois veleiros, o São Pedro, comandado de novo por Vitus Bering, e o São Paulo, comandado por um russo chamado Alexei Chirikov. Em junho de 1741, os dois navios içaram velas na baía de Avatcha, na península do Kamchatka. Depois de duas semanas velejando, o São Pedro e o São Paulo se viram separados no meio da chuva e do nevoeiro.

Acredita-se que a tripulação do São Paulo viu o que hoje se conhece como a ilha do Príncipe de Gales, no extremo sul do Alasca. Voltaram-se para o norte seguindo a entrecortada costa com seu labirinto de canais, baías e enseadas que cercam as grandes e as pequenas ilhas do arquipélago Alexandre. Dois dias após haverem pela primeira vez avistado terra, ancoraram na entrada de uma grande baía que se acredita ser o porto de Sitka. Chirikov mandou que se arriasse um dos dois escaleres do navio e enviou seu imediato e dez homens para explorar a entrada da baía. O escaler nunca mais foi visto. Vários dias se passaram até que Chirikov mandou seu contramestre e seis homens no segundo escaler à procura do primeiro. Este também desapareceu. O São Paulo permaneceu por aquela área durante diversos dias, mas não havia mais botes e o suprimento de água potável se reduzia. Chirikov consultou seus oficiais e decidiu voltar para o Kamchatka o mais rápido possível.

O São Paulo chegou a Petropavlovsk, seu ponto de origem, em outubro de 1741, e os marinheiros que voltaram falavam da abundante vida selvagem que tinham visto - grandes quantidades de lontras-do-mar, focas e leões-marinhos ao longo das rochosas costas.

A nave irmã, o São Pedro, tinha tomado rumo para nordeste depois de perder de vista o São Paulo. Sua tripulação também avistou terra os alcandorados picos da serra de Santo Elias, no Alasca.

Durante a viagem de volta para o Kamchatka, a tripulação, agora atacada pelo escorbuto, teve que batalhar contra nevoeiros e chuva, ventos com a força de furacões e uma violenta tempestade que jogou o navio centenas de milhas para o largo do Pacífico. Não foi senão no princípio de novembro que eles finalmente deram com uma massa de terra, que verificaram ser uma ilha, uma das do grupo Comodoro, ao largo da costa siberiana do Kamchatka. Bering, o capitão, morreu e foi enterrado na ilha que tomou seu nome. Outros membros da tripulação sobreviveram, recuperaram suas energias e construíram um barco com os restos de seu navio, que naufragara quando atingiram a terra. Em agosto de 1742, 46 membros da tripulação original de 77 homens entraram em Petropavlovsk com um carregamento de valiosas peles obtidas na ilha.

Aquilo serviu de prova para os promyshleniki e para os cossacos de que as terras a leste eram ricas em peles. A lontra-do-mar, que tão raramente se aventurava na costa siberiana, existia em outras partes em grande número. Sem temor à distância - eles, afinal de contas, já haviam coberto algo como cinco mil milhas - sentiram-se atraídos para aquela longínqua terra. O desejo de ver o que ficava além daquelas águas era forte, um anseio para conquistar essa nova terra e também tomar posse dela para o czar. A Rússia já se havia estendido através da Ásia e da Europa, por que não também através da América?

Por volta de 1742, a Inglaterra tinha uma dúzia de colónias. Au longo da costa do Atlântico na América do Norte; a França ocupava o território do rio Mississippi, de suas nascentes até a foz; a Espanha conquistara o México e a costa da Califórnia. A Rússia cogitava de tomar sua porção do rico continente norte-americano.

 

Petropavlovsk - Kamchaíski, Sibéria Agosto de 1792

Gritos abafados do lado de fora despertaram Luka Ivanovich Kharakov de seu pesado sono. Ele pulou do tosco leito procurando o mosquetão que havia colocado ao seu lado na noite anterior. Os nervos contraíram-se ao longo da cicatriz irregular que fechava a meio seu olho esquerdo e marcava-lhe o rosto antes de desaparecer em sua densa barba. Agora, inteiramente acordado e alerta, fez uma pausa para determinar a direção do ataque, e então percebeu o tipo da comoção do lado de fora, a ausência que nela havia de alarme. Ao mesmo tempo ocorreu-lhe que ele estava dentro da paliçada do ostrog (forte) em Petropavlovsk e não em alguma cabana de inverno isolada nas solidões da Sibéria.

Quando cessou a contração junto a seu olho, Luka sentiu o pesado latejar de sua cabeça substituí-la, resultado de uma noite passada bebendo raka. Os sons de gritos excitados e o latir dos cães continuavam do lado de fora. Ele enfiou pela cabeça uma manta de tecido franjada de couro, mas não se incomodou de fechá-la pelos lados com seu cinturão. Enterrou um barrete tecido em casa por cima de seus desgrenhados cabelos e foi para o lado de fora, investigar o que acontecia.

Uma enfadonha chuva caía como um nevoeiro das nuvens plúmbeas que cobriam os verdes morros de agosto que rodeavam Petropavlovsk. Sem se importarem com o miserável tempo, os habitantes da fortaleza corriam em direção ao porto localizado numa angra sossegada da baía de Avatcha.

Luka seguiu-os. Navios vinham com dificuldade e raramente a este extremo sul do império russo dos Romanov, e o aparecimento de um deles era um acontecimento.

Luka ouvira dizer que, há apenas algumas semanas, Chiriko levantara ferros deste mesmo porto no Sv Pavel (São Paulo) com destino a Okhotsk. Os cossacos estacionados no ostrog contaram-lhe as histórias que a tripulação do Sv Pavel tinha relatado a eles de sua viagem às costas setentrionais do continente americano, confirmando os rumores nativos de uma bolshaia zemlia - uma grande terra - além das escuras águas, uma viagem da qual sua nave irmã, o Sv Petr (São Pedro) nunca havia voltado. Talvez o péssimo tempo, muitas vezes tempestuoso, daqueles mares tivesse forçado o Sv Pavel a retornar.

Luka esperava que assim tivesse sido. Ele desejava saber mais acerca da quantidade de ilhas onde se dizia que as lontras-do-mar, que tão raro eram vistas na costa do Kamchatka, abundavam.

Sendo um promyshlenik - um caçador de peles - ele sabia o valor destas, especialmente a da rara lontra marinha. Sua pele alcançaria noventa rublos - mais até, alegava-se - na fronteira da China.

Quando se aproximou do atracadouro, Luka não viu nenhum navio ancorado na baía, apenas uma embarcação toscamente construída, de não mais que onze metros de comprimento, amarrada no cais. Gaivotas guinchavam no céu, fazendo coro à agitação causada pela chegada do estranho barco. Por toda parte as pessoas abraçavam homens de aparência selvagem vestidos de peles.

Reconheceu um cossaco que caminhava apressado para o ostrog como um daqueles com quem havia bebido na noite anterior. Abordou-o.

- O que significa toda essa excitação? Quem são esses homens?

- O Sv Peírl Eles não morreram!

Luka olhou espantado para aquele grupo maltrapilho de homens, uns quarenta ao todo, muitos deles desdentados, todos com barbas longas e hirsutas, vestidos com peles de animais. O navio não se perdera no mar, com toda a tripulação a bordo, como todo mundo havia acreditado, compreendeu Luka. Alguns haviam sobrevivido para contar a história - a história da grande terra que Luka mais desejava escutar. Ele meteu-se no meio deles, captando trechos de conversas enquanto olhava admirado para suas roupas de peles, reconhecendo lontras-do-mar, raposas e focas.

- Nossos cabos arrebentaram e o navio foi lançado contra os rochedos...

- ...pensávamos que tínhamos chegado ao Kamchatka...

- Não. Bering está morto. Lagunov também. Nós...

- Verificamos que era uma ilha...

Estacando, Luka virou-se para o homem que acabara de falar. Metade dos dentes dele haviam caído, e o resto estava preto por causa do escorbuto. Luka, no entanto, observava a roupa de pele de raposa que o homem vestia, não ligando para o fedor de seu corpo.

- Onde fica essa ilha? - indagou Luka.

- A leste daqui, não sei a qual distância - respondeu o homem, ansioso para falar de sua desventura agora que ela havia passado. - Levantamos velas há dez dias, mas nosso barco começou a fazer água três dias depois. Tivemos de jogar fora a maior parte de nosso chumbo e da munição, a fim de evitar mais água. Foi um milagre termos chegado aqui... Rapidamente fez o sinal-da-cruz, da direita para a esquerda, à moda da igreja russa ortodoxa. - Nós mesmos construímos o barco com o que pudemos salvar do Sv Petr. Todos os carpinteiros do navio haviam morrido.

Luka Ivanovich Kharakov era um promyshlenik, não um marinheiro; seu interesse concentrava-se na pele que o homem usava e de onde ela viera, não como o homem chegara ali.

- Havia raposas nessa ilha? - perguntou.

- Por toda parte. - Sua desagradável careta expunha gengivas desdentadas na parte superior. - Quando desembarcamos pela primeira vez na ilha, a raposa do Ártico foi o único animal que vimos. Elas também eram audaciosas... - declarou ele, amaldiçoando-as. - Quando alguém morria não tínhamos a chance de enterrá-lo antes que as raposas aparecessem por ali, lançando-se ao cadáver às dentadas. Era quase impossível espantá-las, e não podíamos desperdiçar pólvora atirando nelas. Todos nós estávamos fracos; no começo, apenas alguns poucos tinham forças para caçar.

- E as lontras marinhas? - Luka indicou outro dos sobreviventes vestido com uma comprida roupa feita de peles de lontra costuradas. Havia muitas também?

- As águas em volta da ilha estavam cheias delas. - O homem sorriu triunfantemente, depois pegou Luka pelo braço com dedos que pareciam garras e levou para a beira do cais. - Olhe!

Fardos de peles acumulavam-se no chão, as pilhas crescendo à medida que mais peles eram descarregadas do porão do barco. No meio dos pacotes de couros de raposas e focas, Luka reconhecia as escuras e lustrosas peles de lontra, e ajoelhou-se ao lado de um dos fardos. com uma faca cortou as tiras de couro que prendiam as peles e estas se soltaram.

Pegou uma delas e correu sua mão por sobre a pele quase negra, observando o brilho iridescente que essa ação criava. Afundou os dedos nos pêlos macios e espessos, mergulhando-os quase três centímetros antes de tocar no couro. E o tamanho da pele - um metro e meio de comprimento e sessenta centímetros de largura - era quase três vezes o tamanho de uma pele de zibelina. Era uma pele de primeira qualidade - valia seu peso em ouro. Era "ouro macio'. Por toda a volta dele havia mais fardos, cada um deles contendo quarenta peles.

Certa vez, há dois anos, ele havia matado dez lontras-do-mar aprisionadas num maciço pedaço flutuante de gelo encalhado na costa de Kamchatka. Dez peles, e Luka se julgara muito afortunado. Agora ele tinha sob as vistas aquelas centenas de peles, que admirava cheio de reverência.

- ...talvez novecentas peles. E isto sem contar as peles de raposa-azul e de focas.

Luka só ouviu a última metade da prosa do homem. Os músculos de sua garganta contraíram-se com a frustração e um quase ressentimento. Ele era o caçador! O que estavam esses marinheiros fazendo com uma fortuna em peles? Todos os invernos ele se embrenhava em regiões selvagens para caçar zibelinas com armadilhas, e cada vez voltava com menos Peles, mal ganhando para viver enquanto arriscava sua vida no brutal frio siberiano, entre tribos incivilizadas de nativos hostis, como os chukchi, Que lhe haviam causado aquela cicatriz que tinha no rosto.

- Nessa ilha, vocês mataram todas as lontras antes de partirem? Deixaram algumas? - Ele arregalou os olhos para o homem, que se encolheu ao penetrante olhar daqueles olhos escuros e profundos e da silenciosa ameaça daquela branca cicatriz irregular que corria da testa à barba.

- Sim. Eu lhe disse que havia muitas por toda a ilha. - O homem pegou na pele e rapidamente tornou a amarrar o fardo, depois afastou-se para encontrar mais alguém interessado em escutar a história de sua sobrevivência.

Suas mãos estavam vazias, mas Luka ainda podia sentir a sensação da macia e espessa pele por baixo de seus dedos. Havia mais perguntas que gostaria de fazer, mas não fez objeção quando o homem fugiu dele. Fardos de valiosas peles estavam empilhados diante dele e vozes tagarelavam por toda parte. Sua atenção no entanto não era atraída por nenhuma dessas vozes; seus olhos estavam no distante horizonte, além daquele pequeno braço da baía de Avatcha, apertando-se numa tentativa de enxergar além dele.

Tinha o sangue de umpromyshlenik, que corria apressado com o desejo de ver o que havia além da próxima montanha. Mas para Luka Ivanovich Kharakov não havia nenhuma montanha à frente dele. O mar o circundava; no entanto em algum lugar do outro lado daquela água cinzenta, agitada pelas tempestades, ficava a "grande terra" de montanhas sem fim e rios, um lugar de incontáveis riquezas.

Enquanto olhava para o que não podia ver, era tocado por um profundo desejo - peculiarmente russo - uma exaltada espécie de saudade de um lugar que ainda precisava ver. Seus antepassados tinham cruzado as estepes siberianas e as montanhas Stanavoi, entrado na península do Kamchatka, na perseguição à zibelina. Os antigos campos de caça estavam quase exauridos, e no entanto ele estava no limiar de um novo. A distância não era nada a temer; apenas o tempo. Tinha 25 anos, sua juventude se fora. A riqueza que procurava lá o esperava.

As gaivotas voavam e guinchavam acima dele, agitadas pelos fortes ventos que lançavam a maresia contra seu rosto. Nuvens baixas dirigiam-se para terra; mesmo assim, ele fitava o local onde o escuro céu cinzento diluía-se no escuro mar cinzento.

Que ele estivesse ali, naquele dia, vendo com seus próprios olhos a prova de que realmente havia ilhas onde pululavam as lontras, era certamente um presságio. Ontem quase havia decidido não passar a noite em Petropavlovsk, indo em vez disso até o local de reunião onde deveria encontrar-se com os outros membros de seu grupo de caçadores daquele inverno. Ele tencionava parar ali apenas o tempo suficiente para obter as bênçãos do padre para uma caçada bem-sucedida. Não se preocupara em fazer isso no ano anterior e sua caçada de zibelinas tinha sido pequena.

De forma alguma incomodava Luka Ivanovich Kharakov o fato que sua súbita necessidade religiosa tinha origens supersticiosas e um moderado grau de interesse. Da mesma forma que não o havia incomodado o fato de ter saído da oração na pequena igreja de Petropavlovsk para beber com alguns dos cossacos da guarnição.

A volta dos sobreviventes da tripulação naufragada de Vitus Bering levou Luka a adiar sua partida da aldeia por mais um dia e participar das celebrações. A praznik (festa) foi uma das melhores a que jamais assistira. Ainda ontem a carne, a vodca e o fumo pareciam estar em falta, no entanto apareceram em abundância nas festividades. Guizos forneceram a música para dançar, enquanto mulheres e jovens raparigas das cabanas dos nativos foram cumuladas de bebida e convencidas por outros meios a se juntarem aos homens.

Durante todas as diversões, Luka conseguiu falar com vários membros da desafortunada guarnição. Todos eles, com poucas variações, confirmaram a história do primeiro. Aprendeu tudo que podia acerca das agrestes ilhas sem vegetação que se erguiam das ondas e que formavam no mar um arco semelhante a uma gigantesca barreira, e sobre as águas que as rodeavam, fervilhando de mamíferos marinhos cobertos de peles.

Naquele inverno ele caçou a zibelina nas estepes siberianas e, nos poucos dias claros, observou os três falsos sóis que formavam um arco por sobre o verdadeiro. Teve tempo para refletir sobre as histórias e visualizar em sua mente a enormidade de peles amontoadas naquele cais. Aquela terra longínqua chamava-o. Durante a juventude ele vagueara para cima e para baixo, para um lado e para outro do Kamchatka, e agora sua alma ansiava pela terra além do horizonte. Ele lá iria, jurava. Era seu destino. A riqueza de peles que lhe havia fugido aqui no Kamchatka ele iria encontrar naquelas ilhas ao largo da costa da América.

 

Setembro de 1745

Enfunadas pelo vento, as velas quadradas feitas de couros amolecidos de renas esticavam as tiras de couro que as amarravam às vergas da embarcação de dois mastros. Pequena quantidade de água infiltrava-se através das juntas calafetadas do casco construído de madeira verde quando a proa primeiro se elevava em direção do céu, e depois mergulhava até o fundo do seio das ondas. Tendo como modelo uma embarcação projetada para o comércio fluvial no Volga, o barco, de fundo chato, quase não tinha quilha, o que lhe permitia com facilidade ser içado na praia e ao mesmo tempo permanecer bastante estável na água. Devido à crónica falta de ferro, suas pranchas de madeira verde eram rejuntadas ou "costuradas" - com atilhos de couro, o que dava origem a seu nome shitik, do verbo russo shi-it, que significa costurar.

Em qualquer direção da bússola para que se olhasse, tudo o que podia ser visto do acanhado tombadilho do barco fluvial era o soturno mar de Bering arfando ameaçador. Luka Ivanovich Kharakov estava de pé no apinhado espaço superior da embarcação, seus pés ligeiramente afastados para equilibrar o jogo do shitik, olhando para o horizonte plano do lado sudeste.

Ele não se preocupava com o fato de não ser o shitik destinado a navegar no oceano. Há dois anos, um barco semelhante comandado por um sargento cossaco de uma guarnição do Kamchatka, lançara-se numa expedição até o grupo de ilhas Komandorskie, onde morrera Bering. Ele voltara com toda a segurança no verão passado com um rico carregamento de peles, provando aos céticos a segurança daquela embarcação no mar. Luka não se incluía entre esses. Tinha-lhe sido recusada a oportunidade de aderir à companhia dos homens que viajaram a bordo do shitik Kapiton, preterido em favor dos marinheiros sobreviventes da tripulação de Bering.

Também não o incomodava o fato de ter sido este shitik construído por homens que nada entendiam da construção de barcos. Ele fora um desses, cuja experiência se limitava a barcos menores para navegar nos rios siberianos ou para atravessar lagos. O único entre todos que podia alegar familiaridade com o mar era o navegador do shitik e seu comandante. Prateiro de profissão, Mikhail Nevodchikov viera para a Sibéria em busca de fortuna. No Kamchatka descobrira-se que ele não possuía passaporte e fora forçado a entrar para o serviço do governo como membro da tripulação a bordo do navio de Bering, o Sv Petr. A despeito das duvidosas credenciais do homem, diziam alguns que Nevodchikov descobrira as mais próximas ilhas da América, o arquipélago que Bering chamara de ilhas Enganadoras.

Era em direção a elas que o shitik singrava o mar em seu curso para sudeste. Há seis dias que o barco partira da foz do rio Kamchatka e passara ao largo das ilhas Komandorskie, para onde o sargento da guarnição levara a segunda expedição. Ventos favoráveis tinham impulsionado constantemente o barco para seu destino: os campos virgens de caça que eles não teriam que compartilhar com outro grupo de caçadores.

Com seu madeirame rangendo, o shitik alçou-se numa outra onda. Após seis dias no mar, os trémulos gemidos do barco tinham-se tornado um barulho familiar e não causa de alarme. Muitas vezes durante aqueles primeiros dias, Luka esperara que aqueles desfiladeiros líquidos entre as ondas do oceano se fechassem e engolissem o pequeno veleiro, mas todas as vezes ele subira na crista da onda, depois mergulhara perigosamente no próximo profundo cavado e saíra ileso. No princípio da viagem ficara incomodado com uma leve sensação de enjoo, mas o movimento ondulante do mar não mais o perturbava.

Os estômagos de alguns membros da expedição de caça não eram tão fortes. O mau cheiro do vómito misturava-se com o fétido odor de corpos imundos, poluindo o vento. Alguém gemeu a seu lado com o súbito mergulho do shitik na próxima cava de onda. Luka olhou indiferente para o homem, meio espalhado no convés-e meio apoiado contra a amurada. Ele segurava o estômago com os braços arriados, enquanto sua cabeça rolava de um lado para outro, com os olhos fechados e a boca aberta, o vómito secando em sua barba e suas roupas.

Desinteressadamente, Luka observava o cossaco Vladimir Shekhurdin movimentar-se de um homem enjoado para o outro, umedecendo seus lábios com um pano molhado e espremendo gotas d'água em suas ressequidas bocas. Luka relanceou o olhar por seus companheiros no convés. O grupo de caçadores era formado de uma raça de homens duros, em número de uns cinquenta, promyshleniki de profissão, mas cujos antecedentes eram variados. Alguns eram criminosos: ladrões, sonegadores de impostos ou assassinos. Outros eram exilados; outros servos fugindo à tirania de seus donos. E alguns eram como ele: filhos de promyshleniki, possuídos pela ambição de correr terras. A mistura de seus passados pouco importava a ele; sua própria vida tinha suas sombras, sua brutalidade e sua violência.

Seu olhar caiu sobre as feições distintivas de um kamchadal - os olhos de pesadas pálpebras e os largos ossos faciais da raça mongol. Tocou com a mão a cicatriz de seu rosto, sentindo o frio do ódio invadi-lo frente àquele primo tribal dos chukchi que haviam trucidado seu pai e o desfigurado de forma permanente. Um punhado de kamchadals havia sido incluído na expedição de caça, indivíduos balizados pela igreja e portanto iguais a qualquer moscovita. Mas não para Luka... nunca para Luka.

Ao ser empurrado por trás, Luka virou-se zangado e logo controlou seu impulso de revidar o empurrão acidental. Viu Yakov Petrovich Chuprov restabelecer seu equilíbrio no instável convés. Ele sustentou o firme e vivo olhar do homem por um momento e depois cumprimentou-o com a cabeça discretamente. A reputação de Chuprov como caçador era bem conhecida dele e Luka decidira não se envolver com aquele homem de barba grisalha que poderia ser escolhido para dirigir a caçada. Há apenas alguns momentos ele vira Chuprov conversando com o navegador.

- Dentro de quanto tempo alcançaremos as ilhas? Nevodchicov lhe disse? - perguntou Luka. Após ultrapassarem as ilhas Komandorskie não tinham avistado terra, apenas o mar de um cinza de ardósia e o céu com ocasionais visões do sol espiando por entre as nuvens.

- Ele pensa que será em breve. - Uma gaivota voou rasante por cima da proa do shitik. - De acordo com ele, as aves marinhas são um sinal de que estamos próximos à terra.

Luka observou o crescente número de aves no ar, mas reconhecia poucas delas. Era versado em animais terrestres, mais do que nas criaturas dos ares e dos mares. A perspectiva de finalmente ver a terra que o havia perseguido todos esses passados anos enchia-o de enorme satisfação.

- Você acredita em Nevodchikov?

- Os ventos têm estado firmes e o tempo bom. - O promyshlenik encolheu os ombros. - Ele esteve por aqui antes; eu não.

Do lado de boreste do convés, um dos nativos kamchadal mareados pediu água. A alta e ereta figura do cossaco Shekhurdin abriu caminho pelo meio do convés apinhado. Luka olhou com desprezo para a magra e orgulhosa face do cossaco com sua barba caprichosamente aparada.

- Você vai desperdiçar nossa água com ele, Vladimir Andreivich? - interpelou-o Luka, dirigindo-se a ele por dois nomes como era o costume russo; o primeiro era o seu próprio, o segundo o do pai: Vladimir, filho de André.

- O homem está com sede - prosseguiu Shekhurdin, sem interromper-se.

Mas sua progressão foi rapidamente bloqueada por um segundo promyshlenik, um homem grandalhão e musculoso.

- Seria a mesma coisa você jogá-lo pela borda e dar água a ele, pois é onde irá terminar de qualquer maneira... - O riso de Belyaev revelava o largo espaço que separava seus dentes superiores, dando-lhe um aspecto enganadoramente estúpido. Mas seus olhos negros eram pequenos e astutos. Shekhurdin tentou contorná-lo, mas Belyaev não permitiu. - Estou lhe dizendo que ele não vai ganhar água nenhuma.

- Estou lembrado de vê-lo pôr as tripas pela boca aí na amurada uma ou duas vezes... - O cossaco não estava intimidado pelo promyshlenik.

- Mas fui procurar minha própria água quando tive sede - disse Belyaev, continuando a sorrir, sua barba preta e seu bigode em volta da boca chamando atenção para o espaço escuro entre os dentes. - Se aquele kamchadal não pode fazê-lo por si mesmo, jogue-o ao mar. Isto apenas fará com que nossa parte nas peles seja muito maior...

Luka concordou. Todos os homens da expedição tinham sido engajados numa base de participação. A metade dos resultados da caçada pertencia aos dois mercadores que tinham financiado a viagem e a outra metade seria dividida entre a tripulação, uma cota para cada homem, com exceção do navegador, que recebia três, o peredovchik - o chefe - que recebia duas e uma para a igreja. Se a caçada fosse proveitosa a cota de um promyshlenik podia chegar a uma pequena fortuna, o bastante para comprar uma terra ou um negócio - ou para embebedar-se com vodca durante um ano.

- Olhem! - gritou alguém. - O que é aquela mancha escura no horizonte?

A discussão no convés subitamente perdeu sua importância, quando Luka voltou-se para examinar o horizonte que às vezes estava acima e às vezes abaixo da proa do shitik mergulhando e se elevando com as ondas. Um homem trepou pelas enxárcias de couro cru até uma verga da vela principal quadrada. Todo mundo ficou tenso na expectativa de alguma palavra que soasse acima dos grunhidos do madeirame do arquejante barco.

- Está vendo alguma coisa? - perguntou Luka, abrindo caminho até a amurada perto da proa.

Intermináveis segundos se passaram até que um braço estendido apontasse na direção boreste pela proa e se ouvisse um grito: "Terra!"

Todos se amontoaram no lado direito do convés. Um minuto mais tarde, um clamor elevou-se com a visão de um promontório montanhoso projetando-se do mar. Mesmo o mais fraco dos homens enjoados conseguiu encontrar forças suficientes para içar-se até a borda e contemplar extasiado a abençoada visão de terra.

Vagarosa e firmemente, o modesto veleiro aproximou-se da ilha. Luka sentiu um assomo de animação, da espécie que sempre acompanhava a chegada a um novo território, um aguçamento dos sentidos e de suas faculdades. Já estava bastante perto para ouvirem a arrebentação estourando contra a costa rochosa da base da ilha.

Quando contornaram o lado norte da ilha, Luka estudou o terreno sem árvores coberto de verde com uma espessa vegetação. Até as rochas ostentavam uma grossa cobertura de capim. Para dentro da terra montanhas serrilhadas elevavam-se em tortuosas serranias, indicando as origens vulcânicas da ilha. Tinham um aspecto proibitivo, despidas de vida vegetal, enquanto na parte baixa um verdejante vale acenava-lhes, o vento agitando e fazendo ondular as altas touceiras de capim.

Um homem foi mandado à frente para fazer sondagem, enquanto o navegador Nevodchikov passava ao largo das rochas meio submersas e evitava os bancos de areia escondidos que apareciam na costa norte da ilha.

Contornaram a ilha e retornaram ao sul, cruzando o promontório situado mais para leste e a ampla baía que ele protegia no lado sudeste. Avistaram grande quantidade de vida animal no mar, por entre os campos de algas ao largo da costa rochosa. Em sua avidez de olhar para as numerosas lontras que curiosamente levantavam suas cabeças para fora da água, Luka apertava-se com os outros homens na amurada da embarcação. Era uma visão de fazer palpitar o coração de um caçador de peles.

Uma sólida massa de nuvens escondia o sol, mas Luka notou a sutil mudança de temperatura, uma ligeira injeção de calor naquele lugar, onde as frias águas do mar de Bering misturavam-se com as correntes mais quentes do Pacífico. Os gritos das aves marinhas, como miados, acompanhavam as batidas das velas com o vento e as lambidas ritmadas das ondas contra o casco da embarcação. Os píncaros alcantilados da ilha estavam embranquecidos com os dejetos das aves marinhas. Ele correu os olhos pela protegida baía e seu litoral sem encontrar qualquer vestígio de habitação; entretanto, recordava-se distintamente de ter ouvido o navegador mencionar a presença de uma raça de selvagens nessas ilhas.

- Pensava que havia nativos vivendo por aqui - disse ele para o homem à sua esquerda Shekhurdin, dando vazão a seu pensamento.

- Talvez não em todas as ilhas - sugeriu o cossaco. - A ilha de Bering não era habitada; esta também talvez não o seja.

- É uma ilha grande, umas setenta verstas de comprimento, eu diria. Talvez haja aldeias em outros lugares. - Luka não estava disposto a baixar sua guarda e não gostava do ar autoritário de Shekhurdin.

O homem tinha todas as características de um líder. Era inteligente e experimentado e, a despeito da aparência de magreza que a altura de Shekhurdin lhe dava, o homem era forte. Sua coragem se evidenciara na forma como havia enfrentado o desafio de Belyaev. Mas seu tratamento equitativo dos kamchadals a bordo exasperava Luka.

As velas de macio couro encheram-se com o vento quando a proa do barco de fundo chato soltou-se, apontando para o largo da ilha, numa mudança de curso.

- Por que estamos nos afastando? - perguntou a voz grossa de Belyaev. - Ali há lontras. Por que não paramos?

- Isto é bem típico de você, Belyaev - zombou Luka. - Tão logo vê algo, deseja agarrá-lo, sem ter a paciência de ver se alguma coisa melhor aparece.

Alguns acessos de riso seguiram-se à observação de Luka, mas foram contidos, no entanto, caso o às vezes brigão Belyaev se ofendesse; porém um pronto sorriso estampou-se em seu rosto coberto de negra barba.

- Se houver algo ainda melhor, eu também o pegarei! - declarou ele. - Pelo menos o primeiro não escorregará por entre meus dedos enquanto espero para ver se há mais...

Mas o Shitik prosseguiu seu curso, afastando-se da primeira ilha da cadeia à procura da próxima. Luka observava, à medida que a ilha desaparecia de sua vista, a primeira terra que ele vira em muitos dias. O oceano não era o seu elemento, e estava tão ansioso como qualquer um outro para sair daquele apertado barco e caminhar em terra firme. Mas não tão ansioso que não desejasse explorá-la primeiro.

- Desta vez concordo com Belyaev - disse Shekhurdin quando de novo Luka virou-se para o mar. apertando os olhos para avistar outro sinal de terra. - Eu teria ancorado numa daquelas baías.

Luka olhou para o orgulhoso perfil de Shekhurdin, seu fino nariz reto de uma aparência tão esguia quanto seu dono.

- Ainda é de manhã. Temos tempo bastante para explorar uma outra ilha.

- Presumindo, naturalmente, que exista uma. Sobre isto só temos a palavra de Nevodchicov, um camponês, um praieiro cuja única experiência é ter navegado com aquele dinamarquês, Bering. - Ele falava num tom baixo e cheio de determinação. - Precisamos refazer nosso suprimento de água doce; eu teria feito isso naquela ilha enquanto tínhamos a oportunidade antes de nos lançarmos mais para diante. Da mesma forma poderíamos ter encontrado alguma carne fresca. Não estamos lá tão bem de provisões.

O raciocínio dele era válido e Luka não discutiu com ele. Sempre se poderia ter argumentos a favor de uma posição ou da outra. Tinham iniciado aquela viagem com apenas um pequeno estoque de provisões - alguns presuntos, uma pequena quantidade de manteiga rançosa, rações de cevada e de trigo, de forma que houvesse pão nos feriados religiosos, salmão seco e, mais importante que tudo, um amplo suprimento de fermento para fazer "pão de garimpeiro", como proteção contra o escorbuto. Esperavam caçar e pescar para assegurar o restante de sua comida.

- Por mim, desejo ver mais dessas ilhas - afirmou Luka. - Um bom caçador escolhe os melhores campos de caça, não o primeiro onde encontra sua presa.

Shekhurdin ainda permaneceu ali por uns minutos; depois abandonou sua posição na amurada e misturou-se com os outros membros da expedição. O shitik prosseguiu em seu curso sul-sudeste singrando o mar cor de chumbo, enquanto as gaivotas planavam por cima deles e os corvos marinhos mergulhavam em suas pescarias.

Não demorou muito até Luka escutar vagos murmúrios de descontentamento entre os promyshleniki. Não se avistava mais a ilha e uma segunda ainda estava para aparecer. Ouviu alguém mencionar a diminuição do suprimento de água e adivinhou a fonte da dissensão.

Por volta do meio-dia avistaram a segunda ilha. Enquanto o barco se aproximava, a atenção da tripulação se dividia entre a ilha e seu capitão. Luka sentia a tensão no ar, os homens desejando ver qual seria desta vez a decisão.

A segunda ilha parecia menor que a primeira, mas a aproximação dela pelo barco foi a mesma, navegando paralelamente à recortada costa. Quando se aproximaram da entrada de uma angra em forma de ferradura, seus lados marcados por rochedos que se projetavam como dedos para o mar e o arco central uma praia de areia branca em curva, Luka viu Chuprov falando brevemente com o navegador. Segundos mais tarde, foi dada a ordem de arriar uma das velas quadradas.

Quando o shitik fez uma curva em direção às verdes elevações além da praia branca, a tensão dos tripulantes aliviou-se perceptivelmente, com sorrisos e murmúrios de satisfação. Um homem foi mandado para a proa a fim de fazer sondagens e manter-se alerta quanto a pedras submersas.

- Vamos ancorar aqui para passar a noite - disse Nevodchicov, elevando a voz para fazer o anúncio a todo o pessoal.

- Baixaremos a terra? - gritou um dos homens.

- Não até amanhã de manhã. Então Chuprov levará um grupo a terra para procurar água. Agora vamos usar as horas restantes de sol para explorar a área e escolher um ancoradouro seguro para a noite, até encontrarmos a melhor localização para passarmos o inverno.

Luka observou que Shekhurdin empertigou-se, seu rosto pálido de raiva por não haver sido escolhido para liderar o grupo de desembarque. Luka aprovou tanto a decisão quanto a escolha do líder; ele respeitava a experiência e o julgamento de Chuprov mais do que os do cossaco.

Depois do shitik ter sido manobrado para dentro da enseada, as velas foram colhidas e a âncora de madeira carregada de pedras jogada pela borda. O convidativo trecho de praia não dava nenhum sinal de habitantes nativos. As horas da tarde não foram desperdiçadas em repouso ou olhando para terra. Como preparação para o desembarque da manhã seguinte inspecionaram o escaler, os mosquetões foram desmontados e limpos e os tonéis de água deixados preparados. Enquanto isso, o barco balançava-se preso à âncora sob as pesadas nuvens, a água batendo em seu costado à medida que a rebentação caminhava em direção à praia ou quebrava nas rochosas escarpas dos lados da baía.

Com a primeira luz da manhã os homens começaram a mexer-se no tombadilho. Luka juntou-se à pequena fila de homens aguardando sua ração matinal de água, ansiosos para livrarem suas bocas do gosto enjoado do sono. Bocejava-se muito e havia muito coçar de barbas e esticar de membros, mas pouco falavam para interromper os sons dos ventos e das ondas.

Quando chegou a vez de Luka no tonel d'água, ele mergulhou a caneca para enchê-la e depois levou-a à boca. Após o primeiro gole de água choca, ele fez uma pausa e olhou desinteressado para a costa onde em breve estaria desembarcando com a expedição da manhã, recrutada no dia anterior por Chuprov. A praia não mais estava deserta.

- Onde está Chuprov? - perguntou ele bruscamente, enquanto sua atenção continuava presa à praia.

- Por quê? - resmungou alguém.

- Procurem-no. Temos visitas. - Luka fez um gesto com a caneca em direção à praia, mostrando um grande agrupamento de nativos.

Esquecendo a secura da boca, entregou a caneca cheia pela metade na mão do próximo homem na fila e dirigiu-se para a amurada. O resto do pessoal, espantado, ficou a observá-lo, todos por demais assustados para se moverem por alguns segundos. Alguém gritou para alertar os promyshleniki enquanto outros se amontoavam na borda ao lado de Luka.

- Quantos nativos haverá ali? - perguntou alguém.

- Parecem quase cem - disse outro.

Os nativos usavam casacos de um feitio estranho e na cabeça chapéus de um formato esquisito. Naquela distância era difícil julgar, mas os casacos pareciam ser feitos de penas e chegavam aos tornozelos. Os pés estavam descalços e os chapéus tinham o formato de cones assimétricos, com a parte mais longa projetando-se para a frente a fim de proteger os olhos.

Ao avistarem aqueles homens no tombadilho do shitik, os nativos começaram a gritar numa língua ininteligível e a movimentar-se, agitando lanças, arcos e flechas sobre as cabeças. Quase ao mesmo tempo, Luka percebeu o som de batidas de tambores; aquilo arrepiou sua espinha, fazendo os cabelos da nuca se eriçarem.

- De onde vieram eles? - exclamou em voz alta o homem ao lado de Luka.

Ninguém aventurou um palpite. Chuprov apareceu no tombadilho e os homens afastaram-se para deixá-lo chegar até a amurada. Usando uma luneta, ele estudou o grande bando de nativos dançando na praia e espetando o ar com suas lanças.

- Penso que eles irão atacar; devemos aprontar-nos para recebêlos - disse Belyaev, abrindo lugar ao lado de Luka.

Chuprov abaixou a luneta para apreciar toda a cena na praia.

- Distribuam os mosquetões e a pólvora - ordenou sem se virar. Belyaev sorriu e afastou-se da amurada para cumprir a ordem. Ele gostava das coisas que lhe incendiavam a carne: mulheres, vodca e lutas. Luka participava da mesma sede de sangue, mas a sua era arraizada num profundo e duradouro ódio.

O lugar na amurada foi ocupado na mesma hora por Shekhurdin.

- De acordo com Nevodchikov, esses nativos são supostamente amistosos. Mikhail Alexandrevich! - gritou ele para o navegador, que estava de pé por trás aos promyshleniki. - Você não disse que os nativos destas ilhas o ajudaram em sua viagem de volta?

Luka voltou-se para ouvir a resposta do navegador, porém Chuprov não demonstrou qualquer interesse.

- Sim - confirmou Nevodchikov. - Nós tínhamos ficado sem água doce; conseguimos comunicar nossa dificuldade a alguns nativos num barco e eles nos trouxeram água em dois vasilhames feitos de bexigas de focas.

Voltando-se de novo para a praia, Shekhurdin ficou observando as piruetas de dança dos nativos com suas coloridas vestimentas.

- Parece-me que eles desejam que a gente vá até a praia. Vejam o modo como eles nos convidam; não estão de forma alguma nos ameaçando. - Ele voltou a cabeça na direção de Chuprov, com um ar de desafio em seu gesto. - Se um grupo fosse à praia com os tonéis vazios, eles seriam capazes de guiar-nos até onde há água fresca.

- Eles estão armados e são em maior número que nós - disse Luka, rejeitando a sugestão.

- Os cossacos sempre foram superados em número por seus inimigos, mas isso nunca os impediu de marcharem através da Sibéria e de ocuparem-na para o czar. Nosso armamento é muitíssimo superior ao deles; mosquetões sempre vencem lanças. - Todos os promyshleniki a bordo já haviam lutado com nativos hostis em alguma época de suas vidas, e a vantagem nunca ficara de seu lado. Mas, no modo de pensar de Luka, uma coisa era ser apanhado em tal situação e outra procurá-la.

- Vamos esperar - replicou Chuprov, impassível. - Haverá muito tempo para lutar, se for necessário.

As batidas dos tambores nativos continuavam a soar, seus ritmos acompanhando a selvagem dança que não seguia nenhuma ordem aparente. Parecia espontânea e contagiante; um dos nativos, mais exuberante, começou a dançar, sendo imitado por outros. Quando estes paravam, exaustos, outros mais começavam. Ouvia-se uma cantoria, mas esta também era uma confusão de vozes. Os nativos pareciam estar se excitando até atingirem uma espécie de frenesi.

- Alguém pode entender o que estão dizendo? - perguntou Luka a Chuprov.

- Não é a língua kamchadal. Que tal koriakl - sugeriu ele, referindo-se a uma outra tribo nativa da Sibéria.

- Não, eu posso entender koriak, e chukchi também - interveio em resposta alguém do grupo.

- Talvez eles sejam aleutorski. - Um segundo mencionou uma raça de nativos siberianos que vivia na costa e que resistia agressivamente a todas as tentativas russas de fazê-la pagar tributos.

Aquele nome despertou um murmúrio de apreensão em todo o grupo, e os homens se viraram ansiosos para aceitar os mosquetões, o chumbo e a pólvora que Belyaev distribuía. Quando Luka começou a carregar e a escorvar seu mosquetão, Chuprov abandonou a amurada e dirigiu-se ao porão do barco. Voltou dentro de pouco tempo com alguns pacotes da pequena carga de mercadorias de comércio que havia a bordo, a maior parte consistindo de contas baratas de vidro, panos, utensílios de estanho e de cobre, facas de qualidade inferior e agulhas. Os pacotes de Chuprov continham os dois últimos artigos.

- O que vai fazer com estas coisas? - perguntou Luka.

- Dá-las como presentes e talvez dissuadi-los de qualquer intenção hostil. - Um sorriso encurvou a boca de Chuprov sem chegar a atingirlhe os olhos.

- Um gostinho deste chumbo será mais persuasivo para mudar suas intenções - disse Belyaev, levantando ligeiramente o mosquetão, seus grossos dedos abraçando com força o cano.

- Você tem mais sede de sangue do que aqueles selvagens, Nikolai Dimitrovich - acusou-o numa voz cheia de desprezo o cossaco Shekhurdin. - Eles podem ter vindo até aqui para comerciar. Que tal se tiverem couros de lontras?

O argumento não convenceu Belyaev. Ele deu um risinho maroto; se os nativos fossem mortos, acreditava, ele ainda ficaria com seus couros de lontras - se eles tivessem alguns - e de graça. Uma tal crueldade não era nem chocante nem repelente para Luka. Ele vivera nas selvagens paragens siberianas o bastante para saber que a sobrevivência entre nativos hostis dependia muitas vezes de intimidação. Luka considerava-a uma necessidade; além disso, não confiava em nativo nenhum. Eles eram uma raça traiçoeira, todos eles; e os aleutorski - ou aleútes, como eram muitas vezes chamados - mais do que os outros. Negociava com eles quando tinha de fazê-lo, mas nunca dava as costas para um deles.

Debruçado na amurada, Chuprov acenou para os nativos na praia e agitou os pacotes por cima da cabeça para atrair-lhes a atenção. Sua ação pareceu excitá-los; enquanto pulavam ainda mais selvagemente e convidavam-no a ir até a praia, as batidas dos tambores tornavam-se cada vez mais altas. Ignorando seus convites, Chuprov atirou os pacotes em direção à praia. Quando as ondas os despejaram na areia, diversos nativos de pés descalços lançaram-se ao mar para apanhá-los. O resto do grupo reuniu-se em volta deles na praia, criando uma massa de chapéus de estranho desenho e exagerados enfeites. O conteúdo dos pacotes foi exibido para grande admiração do bando, e os artigos passados de mão em mão para serem examinados e experimentados por vários indivíduos. Não demorou muito até que os nativos retribuíssem e jogassem aves recém abatidas para o shitik.

- Eles desejam fazer comércio - apressou-se Shekhurdin a assegurar a seus companheiros russos. Desde o início ele adivinhara as intenções amistosas dos nativos.

Os convites para que fossem à praia continuavam. Acomodando o mosquetão debaixo do braço, Luka lançou um olhar a Chuprov. O promyshlenik continuava a ver com ceticismo as estranhas atitudes dos nativos.

- Nós precisamos de água - disse calmamente Chuprov.

- Sim.

Seguindo a contrafeita concordância de Luka, Chuprov afastou-se da amurada e ordenou:

- Arriem o bote!

Luka estava entre os cinco homens selecionados para acompanhar Chuprov até a terra. Armados com mosquetões, pularam para os botes, levando um barril de água para ser enchido, e esperaram que Chuprov se juntasse a eles. Quando Chuprov pulou para o bote, trazia consigo mais artigos para trocas: fumo e cachimbos. Seguiram para a praia, com Luka e outro homem nos remos.

Alguns metros antes de chegarem à praia atingiram água rasa e embarcaram os remos, deixando que a crista de um vagalhão os levasse mais para perto de terra. Agarrando seu mosquetão, Luka pulou pela borda do bote e, com água até a cintura, começou a puxar a embarcação para a areia. Vários dos nativos avançaram e seus músculos ficaram tensos, mas verificou que tinham vindo para ajudar a encalhar o bote na praia.

Luka deu uma boa olhada nas armas deles, que consistiam de lanças e flechas primitivas com pontas de pedra. Ele chegou-se rápido para o lado de Chuprov quando o promyshlenik pulou na areia. Individualmente poderiam ser dominados, sobrepujados em número como estavam por esses nativos aleútes, mas como um grupo eles representavam um oponente formidável.

O ar estava fresco, mas Luka podia sentir o suor umedecendo-lhe a pele quando os nativos se amontoaram em volta deles, tagarelando excitados em sua estranha língua. Lambeu os lábios secos e ajustou sua empunhadura do mosquetão, ficando com o dedo perto do gatilho. O sangue latejava em seus ouvidos enquanto mantinha seus olhos em movimento.

Os longos casacos dos nativos eram feitos de couro e penas de aves, na maior parte comorões, papagaios-do-mar e alca-tordas, com as penas pelo lado de fora, e com as bainhas feitas com os pêlos da garganta de leões-marinhos. Seus estranhos chapéus eram confeccionados de finas tiras de madeira, às quais davam forma e depois colavam, e pintados com cores brilhantes e desenhos geométricos em espiral. Alguns tinham adornos de penas ou de figurinhas entalhadas em marfim. Luka porém estava mais interessado nos rostos por baixo daqueles chapéus. Eles compartilhavam das feições mongóis de muitas das tribos siberianas, incluindo os aleutorski - as grossas pálpebras, a larga estrutura do rosto e os narizes ligeiramente achatados. O cabelo era negro e liso e seus olhos de um castanho escuro. Muitos tinham finos bigodes e barbichas em ponta, mas nenhum ostentava a barba completa e cerrada dos russos.

O modo interessado como se amontoavam em volta de Luka e seu pequeno grupo era quase infantil. Demonstravam curiosidade por tudo, apontando para suas roupas, a faca que ele portava, suas botas e depois batendo língua ininteligivelmente. Postando-se ombro a ombro com seu companheiro promyshlenik, Luka conseguia manter os nativos à distância, permanecendo alerta contra qualquer mudança em seu comportamento.

Olhando de soslaio, viu quando Chuprov oferecia fumo e cachimbos aos nativos. Eles os examinaram com curiosidade, evidentemente não tendo a menor noção de seu uso. Um dos nativos deu a Chuprov um bastão com uma cabeça de foca entalhada em osso, depois fez um gesto na direção de um mosquetão, indicando que o desejava.

- Não. - A resposta de Chuprov foi fria.

Luka observou quando os sorrisos desapareceram dos rostos dos aleútes e sentiu que a atmosfera mudava. A zanga escureceu suas feições. Olhando em volta, ele avistou alguns nativos que se dirigiam para o bote encalhado.

- O bote! - gritou ele, avisando os outros. Eles recuaram até o bote, formando um arco protetor a fim de guardar seu único meio de transporte para levá-los de volta ao shitik. Imediatamente, os nativos começaram a atirar suas lanças contra os costados de madeira do bote. O resto deles apontava as afiadas pontas de suas armas na direção áos promyshlemki cercados.

Sem que ninguém precisasse lhe dizer, Luka viu que estavam abandonados à sua própria sorte; os homens a bordo do shitik em nada poderiam auxiliá-los. O barco estava ancorado fora do alcance de tiro de um mosquetão e o único bote do shitik era o que estava em poder deles. Se quisessem voltar para bordo do shitik, era claro que teriam de lutar para abrir caminho. Luka podia ouvir o barulho das lanças ricocheteando nos costados do bote e pensou durante quanto tempo ele resistiria àquele ataque.

- Fogo! - gritou Chuprov.

Não havia necessidade de escolher um alvo. Estes eram muitos e estavam bem próximos ums dos outros. No mesmo instante, o dedo de Luka apertou o gatilho e as verdes penedias em volta da baía ecoaram o trovejar do fogo dos mosquetões. O sangue espirrou da mão de um nativo que estava perto de Luka, manchando a areia branca. Amedrontados pela descarga explosiva das armas, a maior parte dos nativos recuou. Enquanto três dos promyshleniki recarregavam apressados suas armas, Luka ajudava os outros dois a arrastar o bote para dentro d'água.

Tão logo o bote flutuou, ele gritou pelos outros. Quando os nativos viram que estavam escapando, atacaram, lançando-se sobre os homens que corriam através da rebentação para o bote. Os mosquetões foram de novo descarregados, desta vez seu trovejante ronco causando entre os nativos apenas uma pequena hesitação. Não havia tempo para recarregar e os homens se precipitaram apressados para dentro do bote, no meio de uma chuva de lanças. Luka puxou o remo e impeliu o bote para fora da rebentação, rumo ao shitik. Miraculosamente, chegaram até seu barco quase ilesos, tendo sofrido apenas alguns cortes leves.

Uma vez a bordo do veleiro, foi dada ordem para içar âncora e levantar as velas. Depois de se lançarem ao mar, Luka ficou de pé no convés; com seus pés equilibrando-o contra o jogo da embarcação e seu rosto molhado de maresia, ele observava as nuvens baixas que corriam, aguardando avistar pela segunda vez aquela primeira ilha, seu novo destino.

Naquela noite ancoraram numa das baías da primeira ilha que haviam visto. O encontro hostil com os nativos incutiu-lhes certo grau de cautela, por isso colocaram quartos de sentinelas para se protegerem.

 

Na manhã seguinte, Chuprov foi até a terra com um grupo armado. Encontraram pegadas, confirmando a presença de nativos na ilha, mas nenhum foi encontrado. Também não foi encontrada nenhuma fonte de água doce nas vizinhanças da baía. O shitík levantou vela de novo, mantendo-se tão próximo da costa quanto possível e quanto permitiam os pontiagudos recifes e as pedras semi-submersas, enquanto procuravam outro lugar para desembarcar.

Ao cair da noite havia consideráveis resmungos entre os promyshleniki. O suprimento de água doce estava no último barrilete. Como é usual entre os homens, eles começaram a falar acerca de suas chances perdidas, as coisas que deveriam ter sido feitas de modo diverso. Se eles tivessem parado inicialmente na primeira ilha... Se tivessem capturado um nativo e o mantido como refém... Se. O nome de Shekhurdin foi mencionado tão frequentemente quanto o de Chuprov.

Logo depois do romper do sol no dia seguinte, Luka foi designado para uma turma de desembarque, para o caso em que sua perícia em comunicação por sinais se fizesse necessária. Desta vez o grupo era comandado por Shekhurdin.

Os ventos estavam fortes, varrendo as acidentadas montanhas em lufadas violentas, fustigando o rosto barbado de Luka e por vezes tirandolhe a respiração. Não havia árvores; o vento nunca lhes dera uma chance de criar raízes. De vez em quando via-se um mirrado arbusto crescendo agarrado ao solo, seus ramos espalhados próximos às rochas para oferecer a mínima resistência às varreduras do vento.

O caminhar por ali era difícil. No áspero terreno, rochas vulcânicas afiadas espetavam as solas das botas ou arranhavam a pele quando alguém tropeçava e caía. Nos vales que se internavam terra a dentro cresciam muito juntos capins altos e rústicos e samambaias. A espessa vegetação escondia a tundra esponjosa que ficava por baixo, uma espécie de areia movediça de material sedimentado com uma pequena crosta de cinzas vulcânicas. Firmava as botas no chão, fazendo de cada passo um esforço. Durante todo o tempo, o pequeno grupo de exploração permaneceu tão próximo à costa quanto o terreno o permitia, de forma a manter o vagaroso shitik à vista e sinalizar por socorro se necessitassem.

Quando a tarde já ia avançada, depois de subir agarrando-se com as mãos até uma das cristas serrilhadas que se estendiam das montanhas do interior como gigantescas garras ossudas, Luka fez uma pausa para restabelecer a respiração. Ele estava sem fôlego e arfando de cansaço, seus músculos fora de condição depois de tantos dias a bordo do shitik. Descobriu uma pedra onde sentar-se a sotavento da crista. O resto do grupo exploratório galgou com grande demonstração de cansaço o topo e parou para descansar com ele em posições abrigadas do incessante vento pelo rochoso espinhaço do cimo.

Abaixo deles via-se uma baía com as ondas encapeladas e um vale que se estendia para dentro da terra a partir da praia. Ao correr os olhos pela área, Luka localizou uma branca torrente que se precipitava de um alto platô verde, e depois descobriu o curso d'água que se formava em sua base e que serpenteava meio escondido por entre os altos capins do vale, até espraiar-se na baía.

- Olhe! Ali há água - informou a Shekhurdin.

Os ombros encurvados do cossaco endireitaram-se e ele ordenou vivamente "Vamos lá!", encontrando renovada energia, agora que sua missão em terra localizara o objetivo.

Luka respirou profundamente e apanhou o mosquetão que colocara no chão, a seu lado. Forçou as rígidas pernas a suportá-lo de novo, depois ajustou as cordas que amarravam o barrilete de madeira às suas costas, cortando seus ombros, e despencou pela forte rampa abaixo atrás de Shekhurdin. O capim molhado tornava seus passos escorregadios ao ganharem seu caminho para baixo.

Chegando ao plano, eles marcharam pelo meio do alto capim do vale. A cada passo, o chão pantanoso ondulava em torno deles, a terra coberta de capim rolando em ondas como se fosse um mar. Luka perscrutava a área em busca de quaisquer sinais de vida, o caçador dentro dele alerta pela presença de raposas no vale, ou lontras nas escarpas rochosas da baía. Por duas vezes haviam cruzado pegadas de nativos, mas apenas de manhã cedo.

Ao pé do promontório que se projetava no mar, formando um dos lados da baía, algo chamou-lhe a atenção. Diminuiu a marcha e percebeu um movimento no meio de uma elevação do terreno. Parando, Luka tentou focalizá-lo, numa tentativa de descobrir se era homem ou animal.

- Um aleutorski. - Sem que Luka o tivesse percebido, Shekhurdin parara ao mesmo tempo que ele, ao observar sua concentração em algum objeto à distância. Os exaustos membros restantes do grupo de bom grado pararam para olhar. - Você vê mais alguma coisa?

- Estamos distantes demais - respondeu Luka, sacudindo a cabeça. As ondulações do terreno tornavam difícil a observação.

- Não creio que ele já nos tenha visto. - Os olhos do cossaco brilhavam com a oportunidade que se lhe apresentava. - Quero que o capturemos e levemos de volta para o shitik.

Era prática comum entre os cossacos prender reféns para garantir sua segurança entre tribos nativas. De preferência eles tomavam os filhos dos chefes ou membros importantes das tribos. Mas Shekhardin estava mais do que disposto a pegar qualquer um disponível.

Andando abaixados, caminharam com dificuldade pelo terreno mole em direção às touceiras de capim, onde o nativo tinha sido localizado. Ele desaparecera de suas vistas por trás de uma das baixas elevações.

Quando estavam a uns cem metros do primeiro morro, uma figura surgiu do topo. Luka ficou imóvel para não atrair a atenção. A alta figura era uma mulher vestida numa espécie de traje de peles. Tinha a cabeça descoberta e ele podia ver o brilho escuro de seu cabelo apanhado atrás da cabeça num coque. Por um momento, ela parecia posar como uma estátua, e então Luka descobriu que olhava diretamente para ele. Um segundo mais tarde, ela deu um grito de alarme e disparou morro abaixo.

Shekhurdin precipitou-se à frente, acenando para que o seguissem. Luka demorou um pouco para atender a seu apelo; a tundra esponjosa tornava difícil andar com rapidez. Quando chegaram às elevações cobertas de capim alto, puderam ver o pequeno bando de nativos, na maior parte mulheres e crianças, correndo ao longo de um paredão de rocha escarpado e dirigindo-se para o interior, rumo a esconderijos entre as rochas na montanha.

- Não adianta. - Luka parou, respirando com dificuldade. - Nós nunca os alcançaremos antes do cair da noite.

Resmungando, Shekhurdin concordou e suspendeu a caçada.

- Quantos homens havia no bando? - perguntou.

- Tudo o que vi foram uns cinco - respondeu arquejante um dos promyshleniki.

- Isto é obviamente a aldeia deles. - O cossaco olhou para os cestos que haviam deixado no chão e as armações para secar peixe. - Eles devem morar em barabaras (habitações) subterrâneas como os kamchadals.

Luka olhou para o topo da elevação coberta de capim, de onde vira emergir a mulher, e levantando seu mosquetão para uma posição de atirar, galgou a elevação de terra arredondada, dizendo:

- Talvez alguns estejam escondidos ali dentro.

Quando se aproximou do que parecia uma escotilha de entrada no topo, ele movimentou-se com cautela. Ajoelhando-se ao lado da única entrada da choça nativa, tentou olhar para as sombras do interior. Nada se movia. Não havia nenhum som, exceto o que o vento fazia, soprando pelo capinzal e o quebrar das ondas na praia. Um pedaço de tronco de madeira com entalhes à guisa de degraus servia como escada para atingir o chão da choça. Luka desceu cuidadosamente, meio cego pela fumaça da lâmpada de óleo de baleia que lançava uma luz bruxuleante nos sombrios cantos abaixo dele e emitia considerável calor.

Quando pisou no chão de terra batida, o capim seco espalhado pelo piso do abrigo estalou sob seus pés. Afastou-se da escada, depois contornou-a vagarosamente, olhando para todos os cantos escuros. A barabara era grande, medindo uns doze metros de comprimento e uns seis de largura; costelas de baleia serviam como caibros para suportar o teto de barro e capim e postes verticais feitos de madeira retirada do mar formavam o suporte das paredes, enquanto pedaços mais longos sustentavam o travejamento do teto.

Divisórias feitas de esteiras de capim trançado, penduradas das vigas do teto, dividiam a choça em compartimentos. Luka moveu-se cautelosamente na direção delas, afastando-as uma após outra para abri-las com o cano do mosquetão. Dentro não havia ninguém escondido.

Relaxando um pouco a guarda, estudaram as coisas ali deixadas. Uma torcida de musgo queimava numa poça de óleo de baleia, dentro de uma lâmpada de pedra com o feitio de uma bacia. Ela ficava sobre um suporte, provendo calor para cozinhar e para aquecer o interior. Achou um berço de criança, utensílios de cozinha, pratos de madeira, panelas de pêra e muitos implementos feitos de ossos, mas nada de cerâmica. Havia muitos cestos de tamanhos que variavam desde muito pequenos, contendo agulhas feitas de ossos, até alguns muito grandes. Todos eram feitos de capim e tecidos, tão apertados que pareciam de pano. A maioria possuía tampas do mesmo material. Luka apanhou um que estava meio acabado, as finas tiras de palha projetando-se como uma franja; depois jogou fora o cesto inacabado e imediatamente começou a virá-lo à procura de alimento.

- Luka Ivanovich - gritou Shekhurdin da abertura no teto. - Encontrou alguma coisa?

- Não. - Ele andou na direção da tosca escada e então notou um grande balaio encostado nas sombras que não vira antes. Quando abriu a tampa, descobriu uma quantidade de toucinho de foca dentro dele. Carregando-o, subiu os toscos degraus até o topo e, ao sair do buraco, jogou o cesto no teto de taipa. - Isto era tudo o que havia aí dentro disse ele a Shekhurdin.

- Vamos acampar aqui esta noite - decidiu Shekhurdin, demonstrando apenas um interesse passageiro no conteúdo do cesto. - De manhã faremos um sinal para o shitik mandar o bote para terra.

Aproveitando o restante de luz do dia na tarde coberta de nuvens, encheram os barris de água no riacho e os levaram para o local da aldeia; depois foram procurar ao longo da praia madeira lançada pelo mar. Quando veio o crepúsculo, ardia um fogo brilhante num poço aberto no chão para cozinhar, a sotavento da bambara. Eles se amontoaram em volta do calor do fogo e ficaram mascando a gordura de foca.

Assumindo o primeiro quarto de vigia, Luka ficou sentado com os braços em torno do mosquetão, estudando a paisagem de seu posto a meia altura da elevação de terra. Abaixo dele, a luz da fogueira tremeluzia e ele escutava os primeiros roncos dos homens a dormir. O mar brilhava, marcado pelos cimos brancos das vagas e o vento corria pelo capinzal, seu ruído acompanhando o marulho das ondas. De vez em quando ouvia o bater de asas de alguma ave noturna ou o estranho grito da procelária, semelhante a uma risada.

Sobre sua cabeça as nuvens abriam brechas para dar-lhe uma visão da brilhante poeira de estrelas no céu. Ficou sentado e silencioso, suas ideias voltadas para dentro, para aqueles pensamentos íntimos que um homem tem quando está sozinho. Aos 28 anos de idade, esses pensamentos haviam-no moldado e construído seu mundo interior cheio de visões e sonhos do futuro. Sua mente vagueava, recordando coisas desconexas

- o uivar do vento nas velas do shitik, o chiado de um floco de neve na cinza quente, o calor do prolongado sol de verão - e o som da voz daquela mulher nativa gritando seu alarme.

Mudou de posição, ligeiramente irritado por aquele pensamento, e depois ficou imaginando sua causa. Sentia a solidão que o rodeava e pensou que era natural que as ideias de um homem sozinho se voltassem para uma mulher. Viu-a de novo em sua mente e cismou por que sua imagem o seguia.

Ele já se deitara com mulheres nativas antes, extravasando o calor que o inundava por dentro e também alguma porção do ódio que nutria pelos selvagens. Não conhecera nenhuma outra espécie de mulher, a não ser sua mãe, que era uma recordação de alguém macia e quente. Suave... Nada havia em sua vida de suave agora, exceto as peles - o espesso e brilhante negrume das peles de lontra. Essa era a suavidade que ele agora procurava.

Ao amanhecer avistaram o shitik se movendo com as velas levantadas a meio, junto à entrada da baía. Fizeram-lhe um sinal. Esperaram na praia com os tonéis cheios de água enquanto o bote era remado para terra e encalhado na areia. Os barris foram rapidamente carregados e Shekhurdin subiu a bordo. Luka e dois outros empurraram o bote para dentro da água e voltaram para a praia, a fim de aguardar o retorno do bote com mais homens. Shekhurdin tencionava capturar os nativos que tinham avistado.

Caiu uma chuva fina, tocada pelo vento. Luka verificou se a pólvora na caçoleta de escorva de seu mosquetão continuava seca e ficou sentado com os outros na areia, olhando em volta e esperando. Não havia nenhum lugar onde procurar abrigo do tempo miserável naquela vasta extensão de praia - nem árvore sob a qual se esconder em qualquer lugar da ilha, nem qualquer abrigo entre as rochas. Assim, toleravam a intempérie em silêncio. Luka descobriu na baía uma lontra-do-mar boiando de costas e brincando distraída com um marisco que segurava entre as patas; a lontra tinha o sorriso de um gato que observa o rato a brincar, sabendo como será curta sua liberdade.

Dentro de uma hora, o bote cheio de promyshleniki dirigiu-se de volta à praia. Luka examinou os ocupantes do bote e localizou Shekhurdin. A chegada do bote acabou com a indolente espera. Depois que o grupo de exploração, agora redobrado em número, acabou de reunir-se na praia, o bote a remo foi mandado de volta mais uma vez para a embarcação principal. Shekhurdin dirigiu seu grupo armado em direção ao interior, no rumo que os nativos em fuga tinham tomado.

A caminhada do dia anterior preparara Luka para os rigores da marcha desta manhã, mas aqueles novatos do shitik tinham de lutar com suas pernas acostumadas ao balanço do barco para vencer aquele terreno agreste.

Pouco depois do meio-dia avistaram um bando de nativos num penhasco ao longo da costa. Pareciam ser talvez uns quinze, mas era difícil determinar se aquele era o mesmo bando que avistaram no dia anterior. Shekhurdin mandou seus homens avançarem, confiante em cercar os nativos no penhasco e fazer alguns prisioneiros.

- Ninguém atire, a não ser que eu dê ordem - instruiu o cossaco.

- Nós queremos reféns, não cadáveres.

O vento encobriu o barulho de sua aproximação e a atenção dos nativos concentrava-se no mar, aparentemente absorvida por algum objeto, talvez o shitik em sua exploração ao longo da costa. Estavam quase em cima do bando de nativos antes que alguém gritasse um alarme. No mesmo instante, os machos adultos pegaram suas armas e formaram uma retaguarda para cobrir a retirada das mulheres e das crianças.

Quando Luka lançou-se ao ataque, viu uma mulher nativa agarrar um menino pequeno nos braços e correr à sua frente. Um segundo mais tarde, um nativo brandindo uma lança enfrentou-o. Agarrando o comprido cano do mosquetão como um porrete, ele desviou a lança que vinha em sua direção e imediatamente bateu no estômago do homem com a coronha curva da arma. Quando o nativo dobrou-se com o golpe, ele acertou com o cano no lado de sua cabeça e jogou-o ao chão. Instintivamente o nativo rolou pelo chão, afastando-se dele, e conseguiu ficar de pé, enquanto procurava sua arma, às tontas.

Luka deu um passo na direção dele, disposto a acabar com seu oponente, esmigalhando suas odiadas feições. No último momento, viu a lança que vinha de lado na direção dele e esquivou-se à sua aguçada ponta; depois virou-se e atracou-se com o inimigo. O prazer da luta estava em suas veias, uma quente e boa sensação que fazia todos seus sentidos reviverem. A força da parte superior do corpo do homem era demasiada para Luka e ele recuou, procurando um melhor equilíbrio, deixando-se cair de costas no chão e jogando o homem para trás por cima de sua cabeça. Conseguindo reerguer-se, ele viu o nativo levantar-se também e correr imediatamente atrás das mulheres e crianças. Luka partiu no seu encalço.

- Deixe-o fugir. - A ordem foi gritada por Shekhurdin. - Já temos nosso refém.

Enquanto seus pulmões arfavam para respirar, Luka voltou-se e viu um rapaz jovem, que não teria mais do que quinze anos, debatendo-se selvagemente, agarrado por dois promyshleniki.

Terminada a escaramuça, os promyshleniki se reagruparam em volta do refém. Luka deu um passo para juntar-se a eles, enquanto o braço do jovem era torcido atrás das costas, forçando-o a fazer em silêncio uma careta de dor. Um súbito grito a sua esquerda surpreendeu Luka, que virou-se em sua direção, levantando o cano do mosquetão.

Uma velha estava de pé ao lado de um monte de rochedos, onde deveria ter-se escondido durante o ataque. Segurava o ombro como se estivesse doendo. O avanço dos anos havia dobrado seu corpo, que uma vez fora alto, e tornado seus cabelos da cor das nuvens; o rosto queimado era no entanto relativamente isento de rugas, exceto pelas linhas horizontais divergentes partindo de seus olhos. Luka olhava espantado para o colar de pontos tatuados que cruzavam suas bochechas e as linhas paralelas que desciam pelo meio do queixo. Dois pedaços de ossos do tamanho de botões saíam de sua pele abaixo dos cantos da boca. Por último, o olhar de Luka caiu sobre a longa roupa com o feitio de um casaco feito de peles de lontra.

- De onde veio essa velha? - A pergunta de Shekhurdin colocou todos em guarda, sua súbita aparição fazendo-os imaginar se mais nativos não estariam escondidos por perto, talvez esperando para pularem sobre eles, apanhando-os desprevenidos.

- Eu me virei e dei com ela ali - disse Luka. - Ela deve ter se escondido naquelas rochas.

Shekhurdin fez um sinal a dois caçadores para que inspecionassem a área e vissem se havia mais nativos. Nisso, o cordão de guardas em torno do refém apertou-se mais. A velha, em vez de correr deles, apressou-se a seu encontro. Luka franziu o cenho com a atitude dela. O jovem gritou qualquer coisa, seu tom parecendo avisá-lo para se afastar. O promyshlenik mais próximo o fez calar a boca, batendo com a coronha do mosquetão no lado de sua cabeça. O rapaz caiu no chão, estonteado pelo golpe. A mulher tornou a gritar, levando a mão à cabeça como se tivesse sentido a pancada no rapaz; depois precipitou-se na direção dele. Shekhurdin interceptou-a antes que ela o alcançasse e empurrou-a para trás.

- Vá embora! - gritou, indicando com um movimento da mão que ela seguisse os outros membros de seu bando em fuga. Ela simplesmente continuou a encará-lo, sem aproveitar-se da oportunidade que ele lhe dava para escapar. - Vá, vá com os outros! - A impaciência enrouquecia sua voz e agitava os movimentos de seu braço. A velha desviou o olhar para o rapaz e depois disse qualquer coisa a Shekhurdin naquela língua estranha, gesticulando na direção do jovem. - Ponham-no de pé para que ela veja que ele não está machucado - comandou ele aos homens que guardavam o refém. Eles o levantaram e o deixaram de pé sem qualquer apoio. - Olhe! - disse Shekhurdin para a velha, acompanhando suas palavras com gestos das mãos numa tentativa de fazer-se entender.

- Ele não está machucado. Vá dizer isso a seu povo!

Ela permaneceu silenciosa, aparentemente sem nada compreender. Agarrando-a pelos ombros, Shekhurdin virou-a e empurrou-a na direção que os nativos tinham tomado. O impulso a fez dar alguns passos para a frente, mas ela parou e se voltou. Exasperado pela estupidez da mulher, o cossaco afastou-se e despachou-a com um gesto de mão.

- Todo mundo saia daqui! - ordenou ele.

Antes de entrar em forma com os outros promyshleniki, Luka lançou um último olhar preocupado à mulher. Inclinava-se a acreditar que ela era mais obstinada do que estúpida, embora não soubesse por que tinha tal impressão. De alguma forma, não ficou surpreso quando ela começou a segui-los.

- Talvez ela seja a mãe do rapaz - sugeriu alguém.

- É velha demais para isso - opinou outro.

Várias vezes tentaram mandá-la embora, mas em todas as ocasiões ela recuava alguns passos e parava; depois começava a segui-los quando retomavam a marcha. Afinal eles simplesmente a ignoraram; todos menos Luka. Ter um nativo atrás dele o inquietava, mesmo que fosse uma velha. Ela ainda os seguia quando chegaram a um trecho da costa onde poderia encostar um barco. Enquanto esperavam que o sitik aparecesse, ela permaneceu um pouco separada deles, sempre - assim pareceu a Luka ?- observando o rapaz. Achou que ela queria saber para onde o estavam levando.

Quando o shitik apareceu, Shekhurdin fez sinal para mandarem o bote. a mulher não foi incluída na primeira leva de promyshleniki a retornar ao barco com o refém. Manteve-se afastado enquanto o jovem era forçado a entrar. Quando a velha viu-o entrar no bote, correu para ele.

- Afaste-se, sua velha maluca! - gritou Shekhurdin, empurrando-a rudemente para trás e fazendo-a cair na areia. Olhando feroz para ela, o cossaco assumiu sua posição na proa do bote para acompanhar seu refém, fazendo sinal aos homens que permaneciam na praia para que a mantivessem afastada.

A mulher conseguiu erguer-se, mas Luka agarrou-a antes que pudesse correr para dentro d"água atrás do bote. Ela lhe disse qualquer coisa em sua língua atrapalhada, apontando para o shitik com seus mastros vazios ancorado ao largo. Ele sacudiu a cabeça e afastou-a com firmeza, advertindo-a para assim permanecer, levantando a mão. Notou o determinado ricto de sua boca, mas ela não mais tentou ir atrás do bote. Luka observou-a por um minuto e depois, satisfeito por não tratar-se de um truque, deixou-a e dirigiu-se para onde se encontravam os seis outros promyshleniki que aguardavam a volta do bote. Enquanto discutiam as excelentes perspectivas de caça, ele continuava vigiando a velha.

Quando o bote voltou a aproximar-se da praia, Luka entrou no mar para pegá-lo. A proa mal atingira água rasa quando a velha ultrapassouo e atirou-se dentro do bote, antes que alguém pudesse impedi-la. Sentou-se num dos bancos e cruzou os braços diante do peito, demonstrando com tal rigidez sua recusa a deixar que a removessem dali.

Luka examinou-a severamente, dizendo:

- Se está tão disposta a embarcar no shitik, velha, nós a levaremos para lá. - Fez sinal aos outros promyshleniki para deixarem-na.

Com a ajuda de um outro homem, Luka empurrou o bote para a água e depois trepou para dentro dele. Havia espaço no banco onde estava a velha e ele acomodou-se a seu lado. Contemplou-a, mistificado pela falta de medo que ela demonstrava. Ela, entretanto, mantinha os olhos voltados para a frente, sem desviá-los para lado nenhum e concentrando toda sua atenção no shitik para onde o jovem fora levado. Luka avaliou a lustrosa vestimenta de peles de lontra que ela usava. Em alguns lugares estava desgastada, mas as peles eram de primeira.

Tão logo o bote foi amarrado ao shitik, Luka pulou para o convés e esperou na amurada a fim de içar a velha para bordo. Shekhurdin explodiu ao vê-la:

- Que diabo ela está fazendo aqui? Por que não a deixou na ilha?

- Ela insistiu em vir - replicou Luka. - E achei - continuou, empurrando-a para a frente de forma a que os outros pudessem vê-la que os homens poderiam gostar de dar uma olhada no casaco dela, feito de peles de lontras.

Belyaev foi o primeiro a aproximar-se e estudar de perto a qualidade das peles. Depois levantou o queixo da velha, a fim de poder ver seu rosto.

- Velha megera! - exclamou, rindo. - Será que ela tem algum dente? - Enfiou dois dedos na boca da velha para abri-la e ela mordeuo, com força, a julgar pelo berro de Belyaev e a rapidez com que puxou o dedo mordido. - Ora, sua velha feiticeira... - Ele levantou o braço para esbofeteá-la, mas Chuprov impediu o golpe, segurando com um aperto de aço o punho de Belyaev.

- Não se deve abusar de nenhum destes reféns. - O comando dirigia-se a todos. - Nada iremos ganhar se os nativos souberem que os maltratamos.

Fazendo um esforço, Belyaev controlou seu temperamento e arriou o braço, devagar. Lançou um sorriso de escárnio à mulher e depois virou-se, mudando da expressão de escárnio para uma de zombaria dirigida a Luka.

- Da próxima vez que trouxer para bordo mulheres esquentadas como reféns, cuide que sejam jovens. Uma velha bruxa como essa não poderia dar-me prazer nenhum.

- Uma mulher é uma mulher... As noites são escuras e você não poderia ver seu rosto... - E Luka concluiu, sorrindo: - Ou quem sabe você tem medo do que ela poderia morder de outra vez?

O rosto de Belyaev tingiu-se de um vermelho escuro com as risadas de gozação causadas pela observação de Luka. Ele lançou um olhar irado a Luka e depois afastou-se, com um rosnado de desprezo. A velha aproveitou a distração e rapidamente cruzou o tombadilho e dirigiu-se para o rapaz.

 

A mulher Tecedeira, como ela era chamada pelo seu povo, examinou rapidamente Lança Pequena, para ver se ele tinha sido seriamente machucado. Na têmpora do rapaz havia um galo do tamanho de um ovo de gaivota, mas seus olhos estavam vivos. Via-se neles uma certa alegria porque ela estava ali com ele para compartilhar de sua provação.

Mas assim é como deveria ser; eles eram anaaqisagh, isto é, dependiam um do outro. Era um costume de seu povo que, quando nascia uma criança, uma pessoa mais velha era designada como anaaqisagh do recémnascido. Desde o tempo em que Lança Pequena era criança, a Mulher Tecedeira tinha providenciado para que tivesse comida, roupa e instrução. Tudo entre eles era compartilhado; ele nunca era censurado que ela também não o fosse; quando ele sentia dor, ela chorava por ele.

Mulher Tecedeira vivera sessenta verões e Lança Pequena somente dezesseis, mas aquele laço ligava-os solidamente em sua interdependência. Agora os ossos dela estavam ficando endurecidos com a idade, seus dedos entortados como garras pela dor. Ela ainda conseguia forçar suas oloridas mãos a tecer a palha de capim naqueles belos cestos que eram a marca registrada de sua perícia. Em breve, dentro de uns poucos verões, seria Lança Pequena quem a ajudaria a deixar este mundo, como ela o havia ajudado a entrar nele, cuidando dela como ela cuidara dele.

Assim eram as coisas. Fora isto que a havia trazido a esse estranho barco feito de madeira no meio dessa curiosa raça de homens. Tudo o que acontecia a Lança Pequena deveria acontecer com ela; ela não teria cumprido seu dever se não tivesse feito isso.

Suas pernas estavam cansadas, por isso sentou-se nas grosseiras pranchas de madeira. Lança Pequena juntou-se a ela. Os hábitos de observação haviam ensinado a cada um quando falar com um homem e quando ficar longe de seu caminho. Todos os sinais indicavam a última atitude para esse bando de homens, sinais facilmente lidos por qualquer pessoa treinada para observá-los - o aspecto de seus rostos, as veias pulsantes em suas têmporas, seus lábios apertados. Assim, ficaram sentados em silêncio.

A Mulher Tecedeira notou o rasgão na pele lateral da parka (agasalho longo com capuz) de Lança Pequena, onde ela havia sido cortada na luta. O lado coberto de penas estava voltado para dentro, contra seu corpo, como deveria ser, pois o tempo estava quente e esta não era uma ocasião social. Ela gostaria de ter suas agulhas para remendá-la, mas elas tinham ficado na choça.

Veladamente ela estudava os homens que se movimentavam pelo barco. O céu estava cheio de sinais de tempestade. A Mulher Tecedeira admirava-se de que esses homens não vissem aquilo. Seu olhar demorou-se com desagrado no grandalhão cheio de cabelos pretos no rosto, aquele que enfiara os dedos em sua boca. Ele tinha os olhos frios e cruéis da águia de cabeça branca, com uma cor negra no centro. Não confiava nele.

O homem que o impedira de bater nela, o que tinha o cabelo da cor de um filhote de foca, aquele deveria ser o chefe, concluiu a Mulher Tecedeira. Ela ainda não havia formado juízo sobre ele. Era o homem que o marido de sua filha descrevera depois que viera remando da ilha Agattu, no dia anterior, para avisá-los dos estranhos invasores com seus paus de fogo. A aldeia tinha dançado, dando as boas-vindas a eles, mas quando esse homem trouxera seus guerreiros para a praia, ele tinha aceitado um bastão de marfim ricamente lavrado, muito valioso e depois se recusara a dar seu pau de fogo em retribuição. Aquilo fora muito ruim. De acordo com o marido de sua filha, o homem gritou para os paus e eles fizeram um barulhão enorme - mais alto que o trovão. E um primo que estava perto demais ficou com um buraco na mão. A Mulher Tecedeira não achava que o homem de cabelo claro respeitasse os costumes de seu povo.

Meio temerosa, ela imaginava o que iria acontecer com eles. Provavelmente seriam levados nesse barco para a aldeia daqueles homens e feitos seus escravos. Lança Pequena era jovem e forte, mas ela era velha e não mais de muita utilidade. Talvez eles não ficassem com ela. Quando esse pensamento cruzou sua mente, ela olhou para o homem com a cicatriz no olho. Aquela marca em ziguezague cruzando seu rosto dava-lhe um ar malvado. Ela vira o desejo de matar em seus olhos, no entanto ele não a havia jogado fora do bote; fizera com que os outros homens a deixassem embarcar.

O vento começou a ganhar força e a Mulher Tecedeira encolheu os ombros e abaixou o queixo, de forma que a gola de sua parka pudesse oferecer alguma proteção contra a ventania. A tempestade aproximou-se em direção a esse estranho barco que parecia uma sólida muralha negra. Foi somente então que esses homens vestidos de forma estranha a notaram.

Ela ficou escutando-lhes os gritos, percebendo o desespero em suas vozes sem compreender as palavras e observando-os enquanto corriam desorientados pelo barco. Ficou a cismar se eles eram da alyeska, a terra firme Era óbvio que não eram destas ilhas, ou saberiam quão rapidamente as tempestades podem cair e teriam visto os sinais antes que o vento levantasse o mar em toda sua fúria.

As ondas sacudiam o barco de uma maneira selvagem. A madeira fazia um barulho como se gemendo, como se estivesse numa grande agonia. Alguém gritou e ela viu o pequeno bote afastar-se flutuando, seu cabo seguindo-o na água. A chuva caiu torrencialmente, encharcando tudo e todo mundo. Alguns homens agarraram-na e a Lança Pequena e fizeram-nos descer para o ventre do barco.

À medida que a tempestade bramia, o shitik rolava perdido nas enormes ondas, os ventos com força de furacão afastando-o da cadeia de ilhas. Apenas o navegador, seu mestre, e de vez em quando Chuprov, permaneciam no convés, tentando de alguma forma controlar o barco. Todos os demais, incluindo os dois reféns, refugiaram-se em baixo.

As madeiras verdes do casco do shitik estalavam e tremiam constantemente. Alguém a todo tempo operava a bomba, lutando para evitar que o barco fizesse mais água do que podia suportar. O apertado espaço sob o convés recendia com o cheiro de peixe seco e de corpos não lavados. Os vómitos criavam uma fedentina quase insuportável. Entretanto, ninguém se aventurava no convés, temendo-ser atirado para fora da borda pelas tempestuosas ondas.

À medida que o dia avançava e a tempestade não amainava, os nervos e o temperamento das pessoas ameaçavam estourar. Aquela sensação de um total desespero dominou Luka; ficou furioso porque aquele inferno recusava-se a terminar. Não podia acreditar que viera de tão longe apenas para que lhe fossem negadas as riquezas que ambicionava. A inércia deixava-o quase maluco. Não podia tolerar ficar ali sentado no escuro, naquele fedorento porão, escutando os arrepiantes gemidos da embarcação, pensando até quando ela suportaria aquele abuso, pensando quando ele iria ouvir as madeiras racharem e o mar invadir o barco, fechando-se em torno dele.

Ficando de pé, agarrou-se numa viga do convés para manter-se equilibrado contra o violento balanço do shitik. Quando andava em direção a um ponto seco, ele tropeçou num corpo no escuro; um pé calçado de bota chutou sua perna em revide. Luka deu-lhe um pontapé de volta: foi adiante. Alguém quer um pouco de comida? - Levantou a tampa da bare encheu a mão de pedaços secos. Alguém respondeu afirmativamente do canto mais próximo e Luka jogou um pedaço em sua direção. Ao lado dele um homem gemeu. - Quer um pouco? - Ofereceu um pedaço para o homem meio deitado.

Os olhos do homem abriram-se e fixaram-se no peixe, e a seguir deu outro gemido. Numa convulsão, seu estômago fez um esforço para vomitar, descarregando seu magro conteúdo. O vómito borbulhou em sua boca e escorreu por um canto, indo depositar-se em sua barba.

Escarnecendo dele, Luka deu de ombros e passou adiante. Parou em frente a Shekhurdin, que conseguia aparecer menos desgrenhado que o resto do pessoal. Encarou o olhar vazio do cossaco.

- É melhor comer, se tem estômago para isso - disse à guisa de conselho.

Shekhurdin estendeu a mão, pegou um pedaço de salmão e depois levou-o à boca. Arrancou uma tira seca como uma corda com os dentes e começou a mastigá-la.

- Dê um pouco para os reféns.

Todos os seus instintos rebelavam-se contra partilhar de seu magro suprimento de comida com os selvagens, mas ele os conteve, consciente do valor prático de tratar bem os reféns. Irritado, anuiu com a cabeça à sugestão de Shekhurdin.

Localizou o par amontoado num canto e conseguiu manobrar em volta de corpos esparramados no chão - alguns doentes, outros apenas desanimados - até chegar aos reféns. Agarrando-se com uma das mãos numa antepara, ofereceu-lhes pedaços de salmão seco. O rapaz virou seu pálido e doentio rosto para não ver o peixe, por certo lutando contra a náusea. Luka jogou um pedaço em seu colo. Quando ele começou a dar um pedaço para a velha, foi empurrado de lado rudemente e o balanço do shitik jogou-o no chão. Ao cair bateu com a cabeça em alguma coisa e rolou para um lado, tentando dominar a tontura que sentia.

- A mulher é velha - disse Belyaev de pé por cima dele. - Ela irá morrer de qualquer forma, então por que alimentá-la?

- Você é um louco, Belyaev - disse Luka, escarnecendo dele, enquanto o barco dava uma tremenda guinada e uma torrente d"água despencava pela escotilha. - Provavelmente todos nós vamos morrer.

O aço brilhou quando Belyaev sacou a faca de sua bainha no cinto.

- Então vamos matá-los agora. Se vamos morrer, devemos ter certeza de que eles serão mortos antes de nós.

Luka viu a loucura de um animal encurralado no rosto de Belyaev, a selvagem violência que acompanha o medo da morte iminente. Embora ele acreditasse que esta não era a hora de matar os reféns, não tinha a menor intenção de arriscar sua vida contra Belyaev para protegê-los. Os nativos não eram insubstituíveis; mais reféns podiam ser apanhados. Ficou imóvel quando Belyaev voltou-se para eles.

Shekhurdin surgiu do meio das sombras e colocou-se entre Belyaev e os reféns.

- Eu os fiz prisioneiros e direi quando morrerão, não você, Belyaev.

- Saia da minha frente, cossaco! - Belyaev tentou empurrá-lo para o lado.

Com inesperada rapidez, Shekhurdin lançou-se sobre Belyaev, procurando agarrar o braço com a faca. Ambos caíram no chão. Luka ouviu o barulho da faca escorregando por cima das pranchas de madeira e compreendeu que Belyaev estava desarmado. Os corpos debatiam-se no chão, na semi-escuridão.

O apertado porão dava vantagem ao mais pesado e mais musculoso Belyaev e privava Shekhurdin do espaço para usar sua rapidez. Dentro de minutos, Belyaev superou-o e acabou montado em cima do cossaco, com suas fortes mãos apertando-lhe o pescoço. Luka viu a fúria assassina que contorcia o rosto de Belyaev quando ele esganava a garganta do homem que estava por baixo, ao mesmo tempo mantendo-se fora do alcance dos dedos que procuravam furar seus olhos.

Observando que as forças abandonavam os braços de Shekhurdin, Luka pôs-se de pé. Essa morte de um companheiro promyshlenik era um assassinato e ele não podia plantar-se ali sem nada fazer. Deu uma gravata em Belyaev e dobrou-o para trás, fazendo-o cessar o estrangulamento. Por fim, Belyaev agarrou seu braço, as mãos abandonando o pescoço do cossaco. Saltando de lado, Luka usou seu impulso para jogar Belyaev de costas no chão. Quando ele começou a se levantar, Luka derrubou-o com um chute.

- O cossaco tem amigos que iriam matá-lo - avisou ele e depois ajoelhou-se ao lado da vítima. Seus dedos sentiram a fraca pulsação no pescoço de Shekhurdin, por debaixo da barba. - Você tem sorte, Belyaev, pois ele está vivo.

Luka ficou de pé ao mesmo tempo em que Shekhurdin se mexia, levando a mão à garganta. Afastando-se, foi procurar a faca, enquanto ouvia o homem que revivera tossindo e procurando respirar. Quando ele voltou com a faca de Belyaev, Shekhurdin estava sentado, seus ombros encolhidos com o esforço que fazia para respirar.

Passando por ele, Luka dirigiu-se a Belyaev e deu-lhe a faca com o cabo para a frente.

- Ponha-a na bainha.

O ressentimento brilhava nos olhos de Belyaev, mas ele enfiou a faca em sua bainha de couro.

- Você irá pagar por isso, Belyaev - ameaçou Shekhurdin em voz rouca.

- Estou tremendo de medo... - zombou ele, lançando um olhar cheio de malícia a Luka e murmurando selvagemente: - Devia ter-me deixado matá-lo.

Voltando-se, Luka viu os amargos negros pontos de ódio nos olhos de Shekhurdin. Observou quando ele engatinhou de volta ao seu espaço ao lado da antepara, um perdedor na luta, e adivinhou que o cossaco teria preferido a morte à ignomínia da derrota. Ospromyshleniki agora não mais o elegeriam peredovchik. A oportunidade de promover-se à atenção das autoridades siberianas como líder da caçada se fora.

Na escuridão alguém murmurava preces, mas o repetitivo canto não tinha significação para Luka. Ele se recordava dos ícones na igreja de Petropavlovsk e os padres vestidos de preto. Deus vivia na igreja, mas Luka não acreditava que Ele estivesse por perto desse buraco do inferno que era o barco. Eles estavam sozinhos. Se essa tempestade em breve não cessasse, provavelmente enlouqueceriam todos e se matariam. Nem ele mesmo estava seguro que pudesse enfrentar um outro dia assim.

Durante a noite a fúria da tempestade cessou e Luka acordou com o barulho de chuva, apenas chuva. Subiu para o convés e deixou que a chuva lavasse de seu corpo o fedor do porão - um fedor que incluía também o cheiro da loucura.

As velas foram desenroladas e o navegador marcou um curso para a direção em que julgava se encontrasse a ilha.

Chuprov parou ao lado dele.

- Não temos outra escolha. Se encontrarmos a ilha, temos que procurar um lugar para hibernar onde possamos encalhar o shitik. Perdemos nossa âncora e nosso bote. - E sorriu seu sorriso torto: - Lá chegaremos, com bozhe pomoshtch - com a ajuda de Deus.

Luka relanceou o olhar para os dois aleútes no convés. Naquele momento a mulher virou-se, um sorriso animando seu rosto, enquanto seu dedo em riste indicava-lhes que olhassem para bombordo, dizendo:

- Attu.

Muito ao longe, no distante horizonte, Luka podia ver o maciço montanhoso da ilha.

Levaram meio dia velejando para alcançá-la. Em sua prévia exploração da ilha que os nativos chamavam de Attu, havia visto uma baía conveniente para passarem o inverno. Puseram-se a procurá-la e esperaram pela maré alta; depois entraram nela e encalharam o barco de fundo chato na areia.

Enquanto no mar, Nevodchikov, o navegador, tinha sido a autoridade final. Agora que estavam em terra, os promyshleniki elegeram seu próprio líder. Yakov Petrovich Chuprov foi o escolhido.

Naquela noite Chuprov ofereceu orações ao santo padroeiro de sua expedição, depois ordenou que fosse feito pão de seu racionado suprimento de trigo e do precioso fermento, e prudentemente mandou circular os jarros de kvass, uma bebida feita de cereal fermentado. com seus estômagos cheios e o róseo brilho da bebida em seus olhos, a vida parecialhes mais uma vez boa e eles podiam beber à saúde do mar que não teriam de enfrentar de novo até o próximo ano, quando voltariam com o porão de carga cheio de peles de lontras-do-mar. Desta forma beberam, cantaram e dançaram à moda dos cossacos, jogando para cima os pés e as pernas enquanto o corpo rodopiava no chão.

Quando raiou a manhã, Chuprov fez com que Luka o acompanhasse quando ele levou a mulher a alguma distância do barco encalhado. Por intermédio de Luka ele presenteou a mulher com um lenço, agulhas metálicas e um dedal, o qual Luka teve que mostrar a ela como era usado. Depois, por meio de linguagem de sinais, Luka comunicou a ela o pedido de Chuprov.

- Você tem de voltar à sua aldeia. - Ele bateu no ombro da mulher e fez como se estivesse caminhando com os dedos em direção à montanha. - Diga a seu povo - ele fez um gesto mostrando a boca - que nosso líder deseja vê-los. Deseja comerciar com eles.

Luka duvidava se a mulher entendera, a despeito dos acenos positivos que fazia com a cabeça. Procurou deixar tão claro quanto pôde que o rapaz por enquanto ficaria com eles, fazendo-a acreditar que poderia liberá-lo quando ela voltasse com seu povo. Não sabendo a que distância a aldeia deles ficava da baía, ele lhe deu uma pequena quantidade da gordura de foca que haviam tirado da choça e um recipiente d"água e ficou observando quando ela se afastou a passos rápidos em direção às serriIhadas montanhas.

- Você acha que ela voltará? - perguntou Chuprov.

- Nós temos o rapaz. Alguém virá buscá-lo - afirmou Luka. É apenas uma questão de saber se eles virão ou não armados de lanças...

De seu posto de observação na encosta da montanha, Barbudo vigiava a área em torno de sua aldeia, seu olhar correndo longamente pelo céu, pelo mar e pela terra. Ele vigiava muitas coisas: os barcos dos exploradores, madeira carregada pelo mar, baleias ou leões-marinhos nadando perto da ilha, bandos de patos e os que entravam e saíam de sua aldeia.

Enquanto os olhos trabalhavam, seus pensamentos vagueavam. Havia muitas coisas a ponderar. Não era uma época" feliz em sua aldeia. Bastava-lhe olhar para as mulheres tecendo mortalhas para embrulhar os corpos de seu filho, Mão Pequena, e de seu primo, Cara de Lua. Ambos haviam morrido das feridas recebidas durante a luta com os exploradores, quando Lança Pequena e Mulher Tecedeira tinham sido capturados. Ele seguira os estranhos homens e vira quando eles levaram sua mãe e seu primo para o grande barco feito de madeira. Foi uma grande perda para ele suportar, tanto sua mãe quanto seu filho roubados dele - o passado e o futuro.

Havia muitas histórias em sua tribo, de barcos estranhos que naufragavam em suas costas com homens de outra raça a bordo. Seus barcos eram feitos de madeira untada com pedaços de uma substância dura

- mais dura do que pedra. Barbudo sabia que tais coisas eram verdadeiras. Seu irmão, Homem Forte, trocara muitas peles por um pedaço de um palmo dessa substância mais dura do que pedra. com toda a força de que ele dispunha e muito martelar, ele a transformara na ponta de uma anada lança para seu arpão. Barbudo tinha visto, tinha-a tocado. E os exploradores que mataram seu filho e lhe roubaram a mãe, a Mulher Tecedeira, tinham paus furados feitos daquela substância. Ele também os vira durante a luta, embora não os tivesse ouvido roncar como o trovão Que o marido de sua irmã de Agattu dizia que roncavam. Ele já vivera 38 verões. O cabelo acima de seus lábios tornara-se mais

esPesso e agora rodeava a curva de sua mandíbula e seu queixo. Mas ele formara Um homem esperto. O Criador não guiava seus pensamentos da mesma forma como fazia com os do Homem Forte, fazendo-o compreender as coisas. Barbudo não sabia o que tudo aquilo significava. A morte, como o nascimento, eram coisas da vida; mas aqueles estranhos exploradores, com seus paus de fogo mais duros do que pedra, eles o perturbavam.

O ar agitava-se suavemente em volta dele; era um dia de rara calma, o que provava que o vento não era mesmo um rio. Talvez o vento não fosse empurrar de novo os exploradores para a ilha durante o resto de sua vida. Talvez esse incidente fosse tornar-se uma outra lenda para o Contador de Histórias relatar ao cair da noite.

Descobriu um objeto estranho na baía. Barbudo imediatamente identificou seu formato como o de um caiaque remado por um único ocupante. Ele sabia que Homem Forte tinha saído da ilha para pescar. Esperou para ver se era ele voltando ou alguém de uma outra ilha vindo visitá-los. Quando o caiaque se aproximou da praia da aldeia, na crista de uma onda, ele reconheceu seu irmão, Homem Forte, e viu os vários linguados gigantes que ele havia pescado e que trazia amarrados em cima do caiaque.

Quando Barbudo voltou-se para olhar na direção da aldeia, notou uma mulher velha descendo com dificuldade a trilha que subia as verdes elevações que ficavam por trás da aldeia. Era parecida com Mulher Tecedeira. Esfregou os olhos e olhou de novo; era ela. Aos gritos, desceu do morro correndo para dentro da aldeia a fim de contar aos outros.

No instante que ouviu o grito de alerta, Cisne do Inverno pensou que os exploradores haviam voltado. Apressou-se a ficar de pé, deixando cair a parka meio acabada que tinha em seu colo e espalhando as peles de papagaio-do-mar que ainda não estavam costuradas. Seu filho menino, Empertigado, estava sentado no chão a apenas alguns metros, atirando dardos num alvo pendurado numa vara com o feitio de uma baleia. Cisne do Inverno correu e apanhou-o nos braços para fugir, seu coração batendo de medo. Ela não sabia no entanto em que direção correr - de que lado vinham os exploradores. Dando uma parada, olhou para o irmão de seu marido, Barbudo, pedindo-lhe instruções quando ele entrou na aldeia que havia lançado em tumulto com seus gritos. Mas em seus olhos não havia alarme, apenas uma expressão de espanto.

- Mulher Tecedeira! Ela voltou! - disse-lhes, apontando para a trilha do morro.

Mulher Tecedeira? Por um momento, Cisne do Inverno pensou que ele tivesse tido um acesso de loucura; vai ver que levara uma pancada na cabeça durante a luta com os exploradores. Apertou mais o filho contra o peito, sem ligar para o tamanho e o peso de seu corpo de cinco verões. A figura que se aproximava parecia realmente Mulher Tecedeira. Admirada, Cisne do Inverno arriou o menino no chão e depois moveu-se espantada junto com os outros para dar as boas-vindas à velha. O silêncio habitual, o evitar de conversas desnecessárias, que às vezes os levava a passar um dia inteiro sem falar, foi interrompido por uma barragem de perguntas de todos os lados.

- Como escapou dos exploradores?

- Vi quando eles a levaram com Lança Pequena para seu grande barco antes que caísse a tempestade e eles fossem embora – disse Barbudo, olhando para a mulher com os olhos brilhantes.

- Pensávamos que não fôssemos vê-la de novo. - Muitas vezes nestes últimos dias Cisne do Inverno olhara com tristeza para o cesto inacabado no qual Mulher Tecedeira estava trabalhando antes de ser capturada, acreditando que ela nunca mais veria aquelas mãos torcidas, mas altamente habilidosas, tecendo a palha em padrões tão bem apertados.

- Onde estão os exploradores?

- O que aconteceu com Lança Pequena?

- Está com eles - disse a mulher de cabelos grisalhos, conseguindo recuperar a respiração, e todo o mundo ficou em silêncio para ouvir sua história. - Eles me soltaram depois da tempestade. O mar estava muito zangado e balançou muito o barco deles, fazendo-o chorar e tremer de medo. Muitas vezes pensei que o mar iria engoli-lo.

Vários dos homens concordaram com a cabeça, relembrando experiências semelhantes em seus caiaques.

- Onde está agora o barco? - perguntou um deles.

- Eles o tiraram de dentro d'água e arrastaram-no para a praia. Mulher Tecedeira identificou a baía onde os exploradores tinham desembarcado. - Acho que eles querem ficar na ilha para caçar. O chefe deles me deu essas coisas quando me deixou partir. - Ela mostrou-lhes o pano maravilhoso com fios tão finos e tecidos tão apertados que ela, com toda a sua habilidade, jamais poderia duplicar. - E olhem para estas agulhas, feitas de pedacinhos de "mais duro que pedra". E isto! - E ela enfiou o dedal em seu dedo e mostrou-lhes como usá-lo.

- E Lança Pequena?

- Ele está vivo - assegurou ela à mãe do rapaz. - O chefe deles ficou com ele, não sei por quê. Acho que ele deseja que vocês vão buscálo. - Seu olhar incluía todos que se haviam reunido ao redor. - Ele deseja que todos vocês vão.

Um mal-estar espalhou-se entre eles com aquele convite. Barbudo explicou à mãe que Cara de Lua e Mão Pequena tinham sido gravemente feridos na luta com os exploradores e haviam morrido de ferimentos.

- O que desejam de nós? - Lâmpada de Pedra, o chefe da aldeia e pai de Lança Pequena, questionava o convite.

- Talvez seja um truque para nos capturar. Depois nos levarão como escravos para a aldeia deles, do outro lado das águas - sugeriu Olhos Ligeiros e virou-se para o lado da costa. - Vamos perguntar ao Homem Forte o que ele pensa.

Aliviada, Cisne do Inverno viu o marido dirigindo-se a eles, carregando três enormes linguados como se não pesassem mais do que um cesto e Penas de pato. Uma viseira de madeira presa em sua cabeça sombreava seus apertados olhos. Seu cabelo era liso e negro e um bigodinho eriçado escurecia o lábio superior. Ela imediatamente sentiu-se acalmada por sua Presença e orgulhosa por ele ser seu marido. Seu grosso e musculoso pescoço apenas dava uma indicação da maciça musculatura escondida por uma parca à prova d'água, feita de revestimento intestinal de leão ?- Mas Cisne do Inverno sabia que era o poder espiritual que ele havia ganho por meio de sua força que levava os mais velhos da aldeia a procurarem seus conselhos.

Homem Forte escutou atentamente enquanto a Mulher Tecedeira contava sua história e mostrava os presentes recebidos dos exploradores, terminando sua exposição com o convite. A despeito do fato de Mulher Tecedeira ter sido bem tratada e Lança Pequena não ter sido machucado, apesar dos presentes serem realmente maravilhosos, Cisne do Inverno não confiava nos homens de aspecto estranho. Entretanto, como os outros ela esperava pela opinião de Homem Forte.

Depois de pensar com muito cuidado no assunto, ele anunciou:

- Devemos conversar com eles. Se vieram caçar em Attu, deverá haver paz entre nós. - Era natural que eles fossem um povo amante da paz. A obtenção de seu sustento do mar exigia todas as energias de um caçador; tendo a aldeia que ser alimentada, pouco tempo sobrava para guerras.

- O que acha das mortes de Mão Pequena e Cara de Lua?

- Se matássemos dois dos estrangeiros como punição isto restauraria a paz? - A pergunta de Homem Forte os fez compreender que não. Talvez as mortes tivessem apaziguado sua raiva e as ofensas não se repetiriam. De qualquer forma, eles compreenderam que nada haveria a ganhar se mantivessem as hostilidades.

 

A totalidade dos mais de trinta habitantes da aldeia, incluindo as crianças, viajou no grande barco aberto de couro para a baía onde os esperavam os estrangeiros. Mulher Tecedeira, como todos os demais, ostentava todos seus enfeites, exceto seu colar de pedras de âmbar, que ela dera a Cisne do Inverno para usar. A mulher de seu filho era jovem e não possuía tantos ornamentos como Mulher Tecedeira. Mas ela também não os tinha quando Mata-Muitas-Baleias a trouxera para a aldeia para viver na casa da família dele e dar-lhe filhos. Seu marido havia morrido há muitos anos, vitimado pela mesma criatura que lhe dera tanta fama como caçador. O colar de âmbar fora um presente dele no verão em que morrera. Ela examinou o colar de pedras duras e amarelas, destacando-se contra a escura pele do casaco de Cisne do Inverno, depois olhou para a moça. Brincos de osso cinzelados com o feitio de uma flor adornavam suas orelhas, sua cor branca contrastando fortemente com o cabelo de um negro intenso. Os botoques por baixo dos cantos da boca eram discos de osso que chamavam com arte a atenção para a macia e carnuda curva de seu lábio. Sua pele levemente queimada era tão lisa como a superfície da água numa panela de barro, com um sombreado cor-de-rosa em suas bochechas. Havia uma tranquila força em seus traços, um brilho interior. Mu lher Tecedeira tinha em alta consideração a esposa de seu filho Homem Forte. De alguma forma, ela achava que as duas "eram parecidas", e dessa forma ligadas.

Um menino pequeno, de cinco verões, bloqueou sua visão de Cism do Inverno quando ficou em pé no banco, de forma a poder enxergar por cima da borda do barco de couro. Uma cabeleira espessa e escorrida cobria sua cabeça como um lustroso barrete negro. Ele era tão alto e empertigado que parecia um homenzinho. Vê-lo aliviava as dores em seus ossos; ali estava a continuação de sua carne, jovem e cheia de vida, não velha e cansada.

- Já estamos quase chegando lá? - Empertigado, neto da Mulher Tecedeira, perguntou à mãe com a seriedade de um adulto.

- Em breve - assegurou-lhe Cisne do Inverno.

Dois bancos para a frente, uma mulher jovem virou-se para olhar Mulher Tecedeira. A curiosidade se refletia em seus olhos escuros, que brilhavam num rosto de um quente fascínio.

- Se esses homens não são exploradores, por que não trouxeram suas mulheres? - perguntou a mulher Rosto de Verão atrevidamente.

- Porque eles vieram para caçar. Os animais marinhos farejariam as mulheres e fugiriam. - Mulher Tecedeira não demonstrou paciência com ela ou com sua pergunta. Sentia pena de seu neto, Escala-Rochedos, por haver escolhido aquela mulher cujos olhos pareciam estar sempre olhando para outro lugar. Depois de refletir sobre sua resposta, Mulher Tecedeira virou-se para seu filho mais velho, Vista Ligeira, e disse:

- Creio que esses homens irão pedir permissão para caçar em nosso território.

Ele resmungou qualquer coisa, dando a entender que ouvira as palavras, mas não disse nada. Cabia ao chefe da aldeia decidir sobre tal permissão. Seus olhos que enxergavam longe varreram a entrada da baía, procurando o canal isento de rochas submersas. Como todos os outros homens, ele estava vestido com suaparka de couros de aves, caprichosamente enfeitadas, com as penas do lado de fora. Um comprido tufo de barbas de leão-marinho enfeitava o alto de seu chapéu de madeira, pintado numa espiral de múltiplas cores. Era importante impressionar esses visitantes e estabelecer com eles boas relações. Eles constituíam um povo amante da paz, pronto a atribuir a um mal-entendido os recentes acontecimentos. Se o mar que os sustentava com suas riquezas tirasse uma vida,

Procuravam vingá-la. Devia-se procurar harmonia.

Quando o grande barco nativo - feito de couros de leões-marinhos com uma estrutura semelhante a costelas, armada com madeira entrou na baía, seus ocupantes viram o enorme barco encamado na areia, como uma baleia que houvesse dado à luz.

Quando pela primeira vez tinham avistado o barco ao largo da ilha, pensaram que era alguma nova espécie de monstruosa baleia. Mais tarde, quando se aproximou da costa, os vigias comunicaram que era um tipo de embarcação pertencente a um povo estranho.

Os homens de rostos cabeludos estavam de pé na praia, observando a chegada deles em silêncio.

- Por que eles não dançam em sinal de boas-vindas? - perguntou Vista Ligeira a Mulher Tecedeira.

- Não é hábito deles.

- Eles são os visitantes - disse Lâmpada de Pedra, o chefe de sua aldeia. - Nós é que devemos dar-lhes boas-vindas.

- Eles carregam seus paus de fogo - observou um dos homens.

- Eu acho que eles não são tão fortes que Homem Forte não pudesse quebrá-los - disse Rosto de Verão, lançando um olhar de admiração para o marido de Cisne do Inverno.

A parka de couro de papagaios-do-mar escondia o torso e os braços de Homem Forte, os poderosos músculos que lhe haviam angariado o nome. Desde o tempo de menino tinha sido submetido a um treinamento especial para atingir sua condição física. Poucos aceitavam o severo regime e menos ainda o completavam. Todo o mundo sabia que possuir uma força tão grande significava morte prematura, e a vida era preciosa.

No entanto, aqueles que eram dignos do título de Homem Forte atingiam também uma grandeza espiritual e grande sabedoria. Assim, Homem Forte não virou a cabeça para banhar-se no calor do olhar da mulher Rosto de Verão. Aquilo era algo que não durava muito - como o curto calor do sol antes que as nuvens se fechem de novo em torno dele, ou os dias de calor, que fazem nascer as flores selvagens antes da estação, fogem dos longos e tempestuosos meses de frio e de chuva. Mulher Tecedeira ficou contente por ver que seu filho sabia disso.

Quando o barco nativo foi visto entrando no porto natural da baía, todos ospromyshleniki foram alertados e mosquetões distribuídos entre eles. Seis homens acompanharam Chuprov até a beira d'água para ir ao encontro dos ocupantes do barco, enquanto o resto permanecia para trás, guardando o shitík encalhado. Três dias se haviam passado desde que tinham libertado a velha. Embora eles tivessem o jovem selvagem como refém, seus prévios encontros com os nativos da ilha faziam-nos desconfiados. Luka estava duplamente vigilante e cauteloso, um pequeno músculo contraindo-se num tique nervoso na face por onde corria a cicatriz.

- Eles estão trazendo armas? - A luneta permitia a Chuprov ver o que Luka, a olho nu, não podia distinguir à distância.

- Não. Trazem mulheres e crianças. - Chuprov baixou a luneta com satisfação no olhar. - Eles nunca as exporiam a qualquer perigo. Creio que podemos relaxar.

Luka chegou à mesma conclusão e mudou sua posição de pé na areia, afrouxando os tensos músculos. Quando o grande barco de couro aproximou-se da praia, Chuprov destacou dois homens para ajudarem os nativos a desembarcar.

- O barco deles parece-se com os baidars que os nativos constróem na Sibéria - observou Chuprov. - Um baldar como esse seria muito útil para nós depois que perdemos nosso bote na tempestade. Imagino o que eles aceitariam em troca por ele.

A necessidade de um bote estivera nos planos de Luka. A lontra-dojnar vivia nas águas do mar alto, raramente se arriscando fora de seu elemento natural e vindo à terra. Para caçá-las com sucesso era necessário um bote. A única fonte de madeira na ilha era a-que o mar ocasionalmente jogava à praia. O baldar oferecia uma solução para o problema. Luka ficou a observar os nativos pulando do barco de couro. Dos homens adultos â bordo, apenas sete tinham idade de poder lutar, os outros ou eram jovens demais ou muito velhos para representar qualquer ameaça. Se os nativos demonstrassem resistência à troca do barco, eles poderiam ser facilmente dominados e o barco tomado. Luka considerava que a necessidade que tinham dele era suficiente justificativa para tal ação. Se o barco não fosse deles hoje, amanhã o seria.

Notou a mulher de cabelos grisalhos entre o bando de nativos coloridamente vestidos que pulavam do baldar.

- A velha está no meio deles - disse.

- bom - murmurou Chuprov, e rapidamente identificou-a entre os outros membros de sua aldeia reunidos na praia. Quando ouviu a primeira batida de um pequeno tambor feito de bexiga, levantou as sobrancelhas numa expressão de forçada paciência.

- Tenho a sensação de que seremos forçados a suportar mais uma demonstração de dança nativa...

Quando o primitivo espetáculo começou, ospromyshleniki que guardavam o shitik chegaram-se mais para perto a fim de observá-lo, atraídos pela presença de crianças. Esses cruéis caçadores russos, às vezes bárbaros, tinham uma natural afeição pelas crianças. Mesmo Luka, cujos preconceitos eram profundos, achava encantadores os trejeitos dessas crianças de cabelos e olhos negros ao tentarem imitar as danças dos mais velhos.

Quando o último eco dos tambores e dos cantos foi engolido pelas verdes escarpas, a velha trouxe o líder da aldeia para cumprimentar Chuprov. O homem era alto, de rosto tipicamente largo, com uma pele lisa como couro. Os fios brancos espalhados por sua cabeleira eram as únicas indicações de sua idade.

Chuprov mandou trazer presentes de lenços, agulhas e dedais para serem distribuídos entre os nativos. Depois que a comoção cessou, ele fez um sinal a Luka para traduzir suas palavras ao líder por meio de sinais.

- Diga-lhe que viemos de uma terra longínqua do outro lado das águas, a muitos dias para oeste. Nosso governante é uma grande e poderosa mulher, que é muito sábia e muito generosa com aqueles que quiserem ser seus amigos.

A reação dos nativos ao saberem que os russos seguiam um líder convenceu Luka de que sua linguagem de sinais estava sendo compreendida.

- Acho que ele julga estranho que homens deixem uma mulher governá-los - comentou ele com Chuprov.

- Realce de novo o quanto ela é poderosa, a vastidão das terras sob seu domínio e as multidões de tribos e de gente que ela comanda - instruiu Chuprov e esperou até que Luka tivesse transmitido a mensagem.

- Diga ao chefe que, como as mulheres da aldeia dele, nossa czarina aprecia a pele de lontra mais do que qualquer outra. Diga-lhe que vimos a abundância de lontras-do-mar nas águas em torno desta ilha e que viemos aqui para caçá-las.

Observando as mãos do chefe nativo e interpretando seus movimentos, Luka traduziu a mensagem:

- Ele diz que é verdade, a lontra-do-mar... - Luka hesitou, meio incerto - ...acho que ele se referiu à lontra-do-mar como seu irmão... seu irmão, a lontra-do-mar, vive nas águas da ilha em grande número. E o chefe nos dá permissão de caçá-la no território de sua aldeia.

- Diga-lhe que se seus caçadores nos trouxerem as peles das lontras comerciaremos com eles. - Chuprov indicou a variedade de mercadorias exibidas sobre um cobertor atrás deles. O sortimento variava de colares de contas baratas até utensílios de cobre e de estanho, e algumas facas de qualidade inferior.

O líder dos aleútes examinou as mercadorias com interesse e depois deu sua resposta por meio de sinais:

- Ele diz que transmitirá a oferta a seus caçadores - traduziu Luka.

- Mas que dá muito trabalho matar uma lontra; são necessários muitos caçadores. Os homens da aldeia poderão trazer-nos algumas peles de lontra para comerciar, mas ele diz que a carne da lontra-do-mar não tem bom gosto e que seus caçadores precisam procurar alimento para suas famílias encherem os estômagos.

- Diga-lhe que compreendo. - Chuprov fez uma pausa e olhou para Luka, um brilho maroto aparecendo em seus olhos. - E diga-lhe que nossa czarina espera receber um tributo da aldeia dele: um presente de dez peles de lontra por caçador. Quando nosso barco for embora, no próximo verão, levaremos seus presentes para ela.

Luka transmitiu a mensagem para o líder dos aleútes, sabendo muito bem que a lei que cobrava tributos dos nativos não se estendia a essa nova terra. Se coletasse o tributo, Luka suspeitava que Chuprov faria um gesto entregando algumas peles para o agente do governo na Sibéria, mas o resto seria incluído no resultado da temporada de caça e a cota de cada homem teria um valor muito maior.

Não houve reação do chefe quanto à tentativa de obter peles sem pagar por elas. Em vez disso, ele mudou de assunto.

- Ele deseja saber sobre o rapaz - disse Luka.

- Belyaev, traga o rapaz aqui - ordenou Chuprov. Uma atmosfera de expectativa espalhou-se entre os nativos quando viram o caçador de barba negra dirigir-se para o grande barco que repousava na areia da praia, muito acima da linha da maré. Quando Belyaev voltou com o rapaz caminhando livremente a seu lado, um murmúrio percorreu as fileiras e a tensão desapareceu dos rostos. Chuprov escoltou o moço até os últimos metros ao encontro do chefe. - Diga a ele que não maltratamos seu jovem caçador e que o mantivemos de barriga cheia.

- Ele diz que está contente de ver seu filho - Luka acentuou a última palavra. Por um golpe de sorte, tinham um refém valioso.

- Explique ao chefe que gostaríamos de ficar com o filho dele disse Chuprov com um débil sorriso. - Ele é um rapaz inteligente. E, depois de uma pausa: - Você sabe o que dizer, Luka Ivanovich. Convença-o de que desejamos que o filho dele nos ensine sua língua. Invente qualquer coisa para mantê-lo em nossas mãos.

Com surpresa, o chefe nativo concordou com a proposta sem discussão. A atmosfera na praia tornou-se amistosa. Chuprov convidou os habitantes da aldeia a examinarem mais de perto as mercadorias em exposição e depois chamou o chefe à parte.

- Diga ao chefe que gostaríamos de livrá-lo daquele barco de couro sem valor - instruiu Chuprov a Luka. - Pergunte-lhe o que gostaria de trocar pelo barco.

- O chefe diz que o baldar é o único que eles têm. Se o trocassem por alguma coisa, seu povo não teria nenhum meio de voltar para a aldeia. - Luka observava cuidadosamente os delicados movimentos das mãos do homem. - Ele diz que é uma longa viagem por terra para sua aldeia e que é perigoso atalhar pelas montanhas do interior; a terra muitas vezes treme e grandes rochas caem.

- Peça-lhe que pense sobre o assunto - insistiu Chuprov. - Diga que seu povo pode construir para eles próprios um barco melhor.

- Ele promete que vai considerar a questão. Chuprov apontou para o monte de mercadorias e disse:

- Diga-lhe que examine nossos artigos e decida o que gostaria de receber em troca.

Aceitando a sugestão, o chefe juntou-se aos aldeões e examinou a mercadoria exposta. Alguns dos promyshleniki misturaram-se com os nativos, mas Luka permaneceu à parte, observando. Dentro de pouco tempo, os aldeões começaram a pegar os presentes que Chuprov lhes dera e a arrumá-los no baldar para partirem.

- E o barco? - perguntou Luka, olhando para a embarcação dos nativos.

- Há muito trabalho a fazer antes de podermos começar a caçar, teremos tempo de sobra - afirmou Chuprov, com um ligeiro sorriso. O chefe parece ser prestativo; creio que poderemos convencê-lo a abrir mão do barco.

Durante as duas próximas semanas os promyshleniki organizaram seu acampamento básico na baía e se concentraram em reunir um suprimento de alimentos. As águas Proviam uma fartura de peixe e os céus uma grande diversidade de aves marinhas. Para deleite dos promyshleniki, crescia grande quantidade de capim doce que lhes assegurava um suprimento de bebida alcoólica para o inverno. O sol raramente fazia uma aparição, mas o pesado nevoeiro e fortes ventos eram habituais. O clima ameno da ilha parecia, no entanto, quase balsâmico comparado com a brutalidade do tempo frio da Sibéria.

Na terceira semana, Chuprov dividiu os promyshleniki em cinco grupos. A maior parte deles permaneceria no acampamento sob sua chefia pessoal para caçar, superintender a distribuição de suprimentos e guardar seu refém, o filho do líder da tribo nativa. Os outros quatro iriam para diversos pontos da ilha para fazer contato com outras aldeias e estabelecer acampamentos afastados de onde caçar.

Além disso, ele designou os quatro homens que seriam encarregados de cada um dos grupos de caçadores. Quando Chuprov estava para indicar o promyshlenik que lideraria o grupo onde Luka se encontrava, este notou o modo como o cossaco Shekhurdin levantava os ombros e ficava mais um pouco empertigado. Não havia dúvida que ele esperava chefiar o grupo. Quando o nome de Nikolai Dimitrovic Belyaev foi chamado em vez dele, Shekhurdin enrijeceu-se e suas mãos ao lado do corpo fecharam-se em punhos. Luka sorriu de leve, sabendo o quanto o cossaco odiava Belyaev, e como era duplamente mortificante para Shekhurdin perder para ele.

- Peço que aqueles de vocês que nomeei para serem os chefes de seus grupos - começou Chuprov suas instruções -, mantenham os olhos abertos com seus homens. Mantenham-nos honestos; certifiquem-se de que não escondam nada para seu próprio uso. Verifiquem com cuidado se não estão comendo escondidos. E vocês, promyshleniki, observem seus líderes e cuidem para que cumpram os regulamentos. Quando voltarem, devem me comunicar todas as infrações.

A reunião foi encerrada com uma oração para uma caça bemsucedida, e depois os promyshleniki se dispersaram. Aqueles que estavam partindo foram reunir seu equipamento e suprimentos a fim de iniciarem sua marcha através da ilha e estabelecer acampamentos afastados.

Mais tarde naquela manhã, os quatro grupos de caçadores partiram, cada um para seu próprio quadrante da ilha. O grupo de Luka dirigiu-se para o lado sudeste, uma área com a qual ele já era familiarizado. Sua mochila era pesada e desajeitada; tudo o que eles necessitavam tinha de ser carregado em suas costas. Além de seus pertences pessoais, a carga de cada homem continha alguns dias de suprimentos de alimentação, incluindo um saquinho de trigo para fazer pão nos dias santos, armadilhas para raposas, arpões e redes para apanhar lontras. Marchavam armados com mosquetões, espadas, lanças e pistolas. Belyaev era encarregado do importante suprimento de fermento.

Lá pelo meio da tarde, Belyaev mandou fazer alto, determinando um pequeno descanso. Luka livrou-se da pesada mochila e arriou-a no chão, os músculos de seus ombros e de suas costas doendo do esforço de carregar aquele peso. Sentou-se, esticando-se e fazendo flexões para aliviar o enrijecimento. Quando olhou para trás, na direção do caminho que haviam percorrido, reconheceu o penhasco onde haviam capturado o rapaz. Como se aproximara dele vindo de uma direção diferente, não estava certo de que era o mesmo lugar até aquele momento.

- Foi por aqui que capturamos o filho do chefe, não foi? - Ao ouvir a pergunta, Luka voltou-se e deparou com Belyaev.

- Naquele penhasco - Luka indicou a direção com um gesto de cabeça.

- A que distância daqui fica a aldeia?

- Duas... talvez três horas de marcha. - Ele percorreu com os olhos a linha costeira à frente, tentando identificar alguns pontos conhecidos.

- Está vendo aquela ponta de terra? Fica do outro lado, na costa de uma baía.

Belyaev estudou o céu enevoado, tentando calcular o número de horas e dias que ainda restavam.

- Deveremos chegar lá antes que caia a noite - concluiu ele e depois riu para Luka. - Será um bom lugar para acampar esta noite... e talvez arranjar alguém para fazer nossa comida...

- A aldeia também tem um baldar - lembrou-o Luka. - Nós vamos necessitar de um.

- Sim - disse Belyaev e seu sorriso alargou-se. Levantando-se, Belyaev deu ordem para prosseguirem. Colocando

de novo suas mochilas aos ombros, o bando pôs-se outra vez em movimento. Belyaev dava o ritmo, de sua marcha, tencionando alcançar seu destino antes que escurecesse.

Quando galgaram o paredão de rocha que ficava por trás da aldeia, Luka fez uma pausa para examinar a situação e avaliar a força dos nativos. Contou quinze homens espalhados pelo local, alguns sentados olhando para o lado do mar, outros engajados em várias tarefas. Dois estavam na praia, onde meia dúzia de caiaques simples e duplos - estes últimos chamados bidarkas na Sibéria - estavam estacionados na areia. Um barulhento e esvoaçante bando de gaivotas brigava pelas entranhas de peixes jogadas fora no local onde algumas mulheres os limpavam. O vento trouxe até eles um grito de alerta que soou na aldeia. Um segundo mais tarde, Luka viu um homem correndo para a elevação de terra que servia de teto para a habitação dos nativos a fim de alertar os aldeões da aproximação dos russos.

Apreensiva, Cisne do Inverno observou quando o bando de estranhos abria caminho descendo a trilha da elevação que conduzia à aldeia. Instintivamente, agarrou com mais força o cabo trabalhado de osso da faca em forma de leque, esquecendo do linguado limpo que ela estava cortando em postas. Homem Forte apareceu por trás dela, seus pés descalços e calejados fazendo pouco barulho na areia. Ela voltou-se a fim de olhá-lo, mas sua atenção concentrava-se nos visitantes que se aproximavam. Por que vieram para cá? - perguntou ela, admirada.

- Para visitar, talvez para negociar. - Ele não parecia preocupado. Os instintos dela não eram tão confiantes. Cisne do Inverno observou quando seu marido se afastou para juntar-se ao chefe da aldeia e dar as boas-vindas aos recém-chegados.

Ao lado dela, Rosto de Verão começou a trabalhar no linguado já sem tripas com renovado vigor, cortando com perícia filés do peixe junto à espinha.

- Temos de preparar esses peixes de forma a poder alimentar nossos visitantes - disse ela e depois lançou um rápido e excitado sorriso na direção de Cisne do Inverno. - Esta noite vai haver muitos cantos e danças.

- Sim - disse Cisne do Inverno, forçando sua atenção de volta ao peixe, mas sem o entusiasmo pela tarefa que Rosto de Verão exibia.

- Talvez um dos estrangeiros ofereça presentes para dormir comigo esta noite. - Quando Rosto de Verão considerou essa possibilidade, seus escuros olhos brilharam.

Cisne do Inverno sabia que ela não aceitaria se uma oferta lhe fosse feita, embora tivesse o direito de fazê-lo se assim o desejasse. Um homem não possuía o corpo de sua mulher. Ela tinha a liberdade de deitar-se com outro homem se assim quisesse. Mas Cisne do Inverno nunca encontrara nos braços de outro homem o prazer que tinha com Homem Forte. E ela certamente não compartilhava em nada a curiosidade de Rosto de Verão sobre como seria copular com um dos estrangeiros.

Com o canto dos olhos, viu os homens de outras terras entrarem em sua aldeia. Todos os homens estavam ali para dar-lhes as boas-vindas, exceto Barbudo e três dos outros que andavam fora caçando. Tão logo o peixe ficou pronto, Cisne do Inverno ajudou as outras mulheres em sua apressada tarefa de acomodarem os inesperados visitantes dentro da habitação comunal.

Quando a refeição estava prestes a ser servida, Cisne do Inverno e Mulher Tecedeira afastaram a cobertura de capim seco, a fim de limpar uma área do piso de terra batida para a dança que seria realizada mais tarde. Quando acabaram, o chefe desceu a escada de tronco que vinha da abertura no teto parecendo uma escotilha, escoltando os visitantes até a casa de seus familiares. Cisne do Inverno ficou imediatamente cônscia da tensão no ar e do modo suspeito como os homens olhavam em volta deles. Os estranhos agarravam seus paus de fogo como se estivessem prontos a usá-los; seu comportamento a inquietava e ela escapou rapidamente para longe de sua vizinhança.

A barabara ficou em breve apinhada de aldeões e visitantes. A tensão pareceu aliviar-se quando as mulheres serviram a refeição de peixe cru temperado com uma pasta de frutinhas selvagens. Usando sinais com as mãos, Homem Forte e seus parentes machos estabeleceram um hesitante entendimento com os estrangeiros, mas havia muitos vazios na primitiva conversação.

As paredes de barro da semi-enterrada barabara guardavam o calor que emanava das lâmpadas de pedra e o que exalavam tantos corpos reunidos ali dentro. Procurando um alívio, Cisne do Inverno, seguindo o exemplo de outros membros de sua aldeia, tanto homens quanto mulheres, despiu a longa parka de pele de lontra, de forma a que o ar pudesse tocar sua pele nua. Muito raramente seu povo usava roupa dentro da barabara, exceto nos mais frios dias de inverno. Às vezes, em dias de verão excepcionalmente quentes, eles trabalhavam do lado de fora sem qualquer roupa.

Quando ela se movia por entre os estranhos, apanhando as gamelas de servir comida vazias, tinha consciência do modo como a olhavam. Aos poucos, Cisne do Inverno se acostumara à estranheza desses homens, seus olhos arredondados e seus rostos com espessas barbas, porém continuava a considerar suas estranhas roupas muito apertadas e imaginava como era que o ar jamais tocava sua pele. Suspeitava que eles deviam sentir muito calor em suas roupagens tão justas. O suor escorria da testa de alguns, mas nenhum deles fazia qualquer tentativa para tirar a roupa.

Terminado o banquete, era a hora de começar a dança. Cisne do Inverno observou com orgulho quando Homem Forte tirou sua parka de couro de aves e guardou-a dentro de seu cubículo particular na bambara. Seu corpo nu era exuberante com os maciços músculos, as pernas e braços parecendo nodosos troncos e o largo peito e os ombros assemelhando-se a uma rocha alisada pelo mar. Os longos torsos de todos os homens da vila eram notáveis pelo alto-relevo de sua musculatura e pouca gordura; entretanto, próximos a Homem Forte, eles pareciam fêmeas de focas ao lado de um macho dominador. Cisne do Inverno escutou os estrangeiros murmurando em sua desconhecida língua e sabia que estavam impressionados pela força de seu marido.

Ao ver as nativas retirando suas parkas, notando que nada usavam por baixo, o interesse de Luka foi despertado pela palidez de suas peles. Ao contrário de suas grosseiras faces e mãos, que ficavam expostas aos elementos, os corpos tinham uma tonalidade de marfim. Ficou olhando para as mulheres de seios nus que andavam por entre eles, e depois viu aquele brutamontes musculoso.

- Olhe só aquele ali - disse a Belyaev, sentado a seu lado. Relutantemente, o caçador russo desprendeu sua atenção das mulheres nuas que circulavam entre eles. - Creio que irá criar dificuldades.

- Eu não gostaria de meter-me numa encrenca com ele - concordou Belyaev, pensativo. - Era capaz de apostar que ele poderia quebrar o pescoço de um homem com cada mão e enrolar as pernas em volta de um terceiro e matá-lo também por estrangulamento.

- Precisamos ficar de olho nele.

- Você observou as mulheres? - murmurou Belyaev, concordando com ele. - Elas não são feias, mesmo com aqueles botões de marfim saindo de sua pele ao lado dos lábios. Eu receava que todas elas fossem Parecidas com aquela megera que você trouxe para o shitik. Será que poderíamos convencer algumas delas a aquecerem nossas camas esta noite? . com uns sujeitos parecidos com ele por perto, eu não procuraria

descobrir, se fosse você... - aconselhou secamente Luka. - Isto é, a não ser Que conserve seu mosquetão escorvado e pronto.

Você alguma vez já viveu com uma mulher nativa, Luka Ivanovich?

Aquilo significaria dar as costas para alguém de uma raça

estranha, confiar até certo ponto em alguém, e isto era algo que ele nunca seria capaz de convencer-se a fazer. Sempre limitara seu contato com mulheres ao tempo de duração do ato sexual, enxotando-as em seguida de sua cama.

- Eu já vivi uma vez. É uma coisa muito boa ter uma mulher por perto quando se deseja uma - disse Belyaev com seu sorriso maroto. Ela serve mais do que apenas para esquentar sua cama. Cozinha, costura e cuida de você. Dentro de algum tempo, todas começam a fazer exigências, mas então você as manda de volta para sua aldeia e arranja uma nova.

- Sim - concordou Luka enquanto observava quatro homens nus se reunindo na área onde o chão de terra tinha sido varrido para retirar a cobertura de capim solto. A eles se juntaram outros nativos com tambores feitos de bexigas.

Não lhe agradava ficar preso naquela barabara com todos aqueles nativos. Aquilo não oferecia nenhum espaço para uma luta; se os nativos os atacassem, seria um inferno para saírem dali. E a luta teria que ser um corpo-a-corpo, seus mosquetões de nada lhes adiantariam. Toda essa comida, dança e demonstrações de hospitalidade poderiam ser um ato de traição destinado a levar os promyshleniki a abrirem sua guarda, para então os nativos caírem-lhes em cima.

- Tenho pensado - disse Belyaev, observando uma das mulheres nativas passar por eles requebrando os quadris - que este seria um bor lugar para nosso quartel de inverno. As encostas rochosas abrigam o vale dos ventos, o córrego fornece água doce e a baía contém peixe. Há muitas lontras pela área. Se construirmos o acampamento perto da aldeia, teremos acesso aos barcos dos selvagens e suas mulheres...

- E se tornará mais fácil para eles matar-nos enquanto dormimos - ajuntou Luka.

- Tenho pensado nisso também. - Ele abriu seu largo sorriso, como sempre com isto chamando atenção para a característica falha entre seus dentes da frente. - E ainda não descobri que utilidade esses nativos podem ter para nós. Eles não pagam tributos. Não desejam caçar lontras. E não querem negociar conosco seus barcos. Agem amigavelmente, mas também assim o fizeram aqueles na outra ilha. E você teve que lutar para retirar-se daquela praia. Ocorre-me que poderíamos eliminar alguns problemas se acabássemos com alguns dos obstáculos que existem por aqui.

Luka relanceou o olhar pelo quarto, considerando de novo as reais chances. Ele não opunha mais restrições a matar um nativo do que a esmagar um besouro. No final das contas, a coisa poderia resumir-se a matar ou ser morto.

- Aqui não; não agora - disse Belyaev. Mas deixou claro a Luka que se os promyshleniki não pudessem obter o que desejavam, eles o tomariam.

As mãos batiam um ritmo primitivo nos tambores de bexigas enquanto os homens nus pulavam no chão de terra batida. Luka ficou a observar o nativo musculoso, todo nodoso e com a pele lustrosa. Ele representava a força de sua raça, o símbolo de seu poder - e a maior ameaça para os promyshleniki.

 

Enquanto Cisne do Inverno preparava a primeira refeição do dia, Homem Forte atendia aos exercícios do ritual matutino de seu filho, fazendo disso um jogo. Ela escutava os sons sem palavras que Homem Forte fazia quando, delicadamente, puxava o braço de Empertigado diretamente por sobre o ombro e para trás da cabeça, tornando ajunta flexível. Usualmente era o tio de seu filho, Barbudo, quem jogava com ele, porém este ainda estava ausente da aldeia, caçando.

Ela observou seu marido massageando os joelhos do filho. Empertigado estava sentado numa caixa, com as pernas esticadas e os pés descansando em outra caixa enquanto Homem Forte fazia uma ligeira pressão para baixo em seus joelhos. Dobrando os pés para a frente e para trás tanto quanto podia, Empertigado distendia os tendões do jarrete na parte traseira de sua perna. Dentro de mais cinco verões, Empertigado seria capaz de sentar-se confortavelmente dentro de um caiaque com suas pernas esticadas sem sofrer cãibras. Tal condicionamento lhe seria muito útil no futuro, mas no momento Cisne do Inverno simplesmente gostava de ver os dois juntos.

Mais cedo do que esperava, a comida estava pronta e ela teve de interromper sua distração. Quando os dois vieram comer, Empertigado marchava ao lado do pai. Sempre a divertia ver quão orgulhosamente ele se comportava, mas nunca o demonstrava.

A incompreensível língua dos estrangeiros chegou dentro do barabara através da abertura no teto.

- Será que eles vão embora hoje? - perguntou ela ao marido.

- Não. Eles vão ficar por aqui.

- Por quanto tempo?

- Até o próximo verão, quando eles partirão para a terra deles, do outro lado das águas.

Franzindo o cenho, ela examinou a habitação familiar, lembrando-se de como ficara apinhada de gente na noite passada.

- Mas eles não podem ficar aqui. Não há espaço bastante... Porém era mais do que a falta de espaço o que a preocupava. O modo como alguns a olhavam fazia com que ficasse constrangida na presença deles. Ela nunca tivera essa sensação quando homens de outras aldeias a olhavam, demonstrando seu desejo de a possuírem. Era uma sensação que não podia explicar, mas sabia que não lhe agradava.

- Eles construirão sua própria habitação.

Mas não era suficiente o fato de dormirem em outro lugar. Ela Queria que abandonassem a aldeia e nunca mais voltassem. Continuava a lembrar as mortes de Mão Pequena e Cara de Lua. Seu povo teria ficado tão disposto a perdoá-los como a família de Homem Forte estava. Teriam atacado os estrangeiros, expulsando-os da ilha.

- Por que confia nesses estrangeiros? - Ela sentia-se perturbada pela calma aceitação da situação por parte dele. - Não posso fazê-lo; quando eles olham para mim o que aparece em seus olhos não é coisa boa.

- É apenas porque seus rostos são diferentes dos nossos.

- E os hábitos deles são diferentes... - argumentou Cisne do Inverno. - Você já esqueceu que eles mataram Mão Pequena e Cara de Lua? Eles se mostraram hostis com o povo de minha aldeia em Agatu. Acho que eles são maus. Nós não devíamos deixá-los ficar aqui; devíamos fazê-los abandonar a ilha... e lutar com eles como fez meu povo, caso se recusassem. Fale com o chefe e avise-o do perigo de deixar esses estrangeiros viverem entre nós. Ele o ouvirá.

- Mas eles vieram em paz caçar nossa irmã a lontra-do-mar. Como poderemos guerreá-los? - Homem Forte fechou o semblante. - Isso seria errado.

- Eles trarão sofrimento para nossa aldeia. É uma coisa que sinto, - persistiu ela.

- Enquanto viverem em paz conosco, viveremos em paz com eles. O sofrimento virá se os guerrearmos.

Cisne do Inverno ficou observando seu marido enquanto ele comia, desejando desesperadamente acreditar na sabedoria dele.

Luka viu quando o aleúte emergiu da abertura superior da barabara. A purka de couro de pássaros manchada de ocre caía-lhe até os tornozelos e escondia seu poderoso físico, fazendo-o parecer igual a qualquer outro homem nativo, mas Luka sabia que isso não era verdade. Uma olhada para aquele grosso pescoço era tudo o que ele necessitava para identificá-lo. Na noite anterior ele havia observado a graça e a agilidade do nativo na dança; observou-a de novo quando o homem desceu da elevação da casa comunal em direção à praça da aldeia, com o rapazinho a seu lado imitando seus movimentos.

Pelas suas contas o número de homens nativos, jovens e velhos, era de quinze. Relanceou um olhar para Belyaev, especulando acerca das verdadeiras intenções do promyshlenik depois das coisas que ele dissera na noite passada. No momento, as intenções dele estavam concentradas numa mulher nativa. Luka observou quando Belyaev se dirigia para ela. Ela olhou-o com o interesse brilhando nos olhos escuros. Luka aprendera há muito que o sexo era um instinto sem discriminações.

- Gosto de sua parka - disse Belyaev, sorrindo e fingindo admirar seu vestuário. Passou a mão na espessa pelagem da lontra sobre seu ombro. Ela moveu-se ligeiramente, mas não tentou escapar ao toque. Encorajado, Belyaev tornou-se mais audacioso. - A pele é macia; fico a pensar se sua pele não será mais macia por debaixo da parka. - Passou a mão pela frente do casaco e parou quando estava por cima do seio, deixando que ali ficasse. - Apostaria que é. - A sugestão no tom dele pareceu enervá-la; ela afastou-se e virou-se como se fosse fugir. Belyaev agarrou seu braço. - Não corra. Estávamos apenas nos conhecendo.

Ela começou a lutar, tentando livrar-se dele, o pânico agora revelando-se em sua expressão. Um dos nativos deu um passo à frente e falou asperamente com Belyaev em sua língua aleúte. Uma tradução de seu aviso para permitir à mulher ir-se era desnecessária, sua atitude de desafio deixava isso claro. Luka ficou a observá-los, tenso, esperando para ver se ia resultar numa briga.

- Ela pertence a você, não? - Belyaev sorriu friamente para o nativo e soltou a mulher. - Eu estava apenas admirando suaparka - explicou ele por meio de sinais e ficou encarando o nativo até que este recuou. Tão logo o fez, Belyaev chamou-o de volta. - Talvez sua mulher esteja interessada em trocar aquela sua parka de peles por alguns objetos. Ele fez um sinal ao homem para segui-lo enquanto se encaminhava para sua mochila, que estava no chão.

Quando a abriu e espalhou o conteúdo de um pequeno saco sobre o capim amassado, um número maior de nativos chegou-se para observar. Belyaev começou a pegar um colar de contas vermelhas, mas um dos nativos descobriu um outro objeto na pilha de artigos e agarrou-o, falando excitadamente. Curioso, Luka aproximou-se; o objeto assemelhava-se a um parafuso de ferro enferrujado, e no entanto todos os nativos pareciam ansiosos por examiná-lo.

Luka franziu a testa. Nenhum outro objeto de comércio tinha criado um tal entusiasmo entre os nativos. Eles se voltaram excitados para mostrálo ao Sansão de sua tribo e ficaram observando-o enquanto ele o examinava. Seu sinal afirmativo de cabeça tranquilizou a todos, que recomeçaram a falar animadamente. Belyaev pediu que devolvessem o parafuso de ferro, o qual lhe foi relutantemente entregue. Então foi logo assediado com ofertas para trocá-lo, mas ele repetidamente sacudia a cabeça, devolvendo todos os artigos para dentro do saco.

- Por que ele não troca aquele pedaço de ferro sem valor pelo bidarkal - perguntou Shekhurdin, franzindo o rosto em desaprovação. Luka ficou cismando com a mesma coisa.

- Ele terá algum motivo - comentou Luka, embora não pudesse atinar com qual.

- E qual é o motivo dele para desperdiçar esta manhã? Deveríamos estar montando nosso acampamento e reunindo uma reserva de alimentos. Ele não mandou nenhum homem explorar e localizar as boas áreas de caça. Manteve-os todos aqui, inertes. Que líder nós temos! - declarou o cossaco, em tom de zombaria.

- Talvez ele esteja esperando problemas.

- Não destes nativos. Chuprov tem o filho do chefe como refém, o chefe já ofereceu seu povo para ajudar na construção de nosso quartel de inverno. Nada temos a temer.

Luka não dava muito valor a tal opinião. Virando-se de onde estava a mochila, Belyaev levantou-se e enfiou uma das mãos dentro dela. Depois caminhou na direção deles. Se Luka não tivesse visto Belief, arrumar o Parafuso de ferro em sua mochila, poderia jurar que ele acabara

dentro de sua camisa.

- Tenho a impressão de que eles negociariam a mãe deles por aquele pedaço de ferro - disse Belyaev, sorrindo.

- Por que não verificá-lo? - desafiou-o Shekhurdin.

- Você tem pouca experiência em comerciar, não é? - A expressão dele revelava desprezo pelo cossaco. - Comerciar não é algo que se faça apressadamente com estes nativos. Quanto mais se esperar, mais eles desejam o que você tem e mais aumenta o preço.

- Somos comerciantes ou caçadores? - retorquiu Shekhurdin.

- Eu não sei o que você, é, cossaco - zombou Belyaev. - Sei apenas que tem sorte em estar vivo. Se deseja continuar assim, saia de minha vista!

O rosto do cossaco ficou manchado de impotente raiva. Após um momento de hesitação, Shekhurdin virou-se bruscamente e retirou-se. Tendo sido superado por ele numa luta anterior, o cossaco não desejava lançar-se de novo em combate contra Belyaev. Mas Luka sabia que ele, se pudesse, procuraria outros meios de derrotá-lo.

- Ei! Afaste-se de minha mochila! - ouvindo o súbito grito de Belyaev, Luka voltou-se instantaneamente e ficou de frente para os nativos. Um deles estava mais perto da mochila do que os outros. Belyaev deu um passo em direção a seu embrulho e logo examinou seu conteúdo. Desapareceu! - exclamou ele em tom acusativo, erguendo-se para enfrentar o nativo que primeiro pegara o parafuso de ferro. - Você o roubou, seu selvagem larápio! Onde está? - Ele agarrou o pulso do aleúte e forçou-o a abrir a mão, mas sua palma estava vazia; da mesma forma estava a outra mão. - Onde você o escondeu? A qual desses cúmplices você o entregou?

Belyaev agarrou com seus dedos o colarinho alto daparka e apertou-o com seu punho de encontro à garganta do homem. Alarmado, o nativo lutou contra a pressão dele, enquanto seus companheiros olhavam, incertos. Belyaev empurrou-o de costas de encontro aos outros.

- Ele roubou o ferro - denunciou Belyaev a seus promyshleniki.

- Se o deixarmos ficar com a peça, eles roubarão tudo que temos. Devemos fazer dele um exemplo. - Voltando-se para o caçador que estava bem a seu lado, ele ordenou: - Atire nele!

Foi quase um tiro à queima-roupa. Quando o caçador apertou a coronha de madeira de encontro ao ombro, Luka preparou-se para a explosão, seus instintos de batalha despertando-se. O mosquetão troou, despejando fogo e fumaça da pólvora. Uma mulher gritou e o impacto da bala de chumbo arremessou o nativo no chão, mortalmente ferido. Uma criança começou a chorar ali perto.

Em vez de recuar aterrorizado, o homem forte da aldeia pulou para a frente - rápido demais para Luka reagir. Agarrou o mosquetão que atirara das mãos do promyshlenik e dobrou seu longo cano, dando-lhe o formato de uma ferradura. Essa demonstração de força inicialmente deixou todo mundo imóvel; depois, o caçador desarmado puxou de sua faca e atacou o poderoso aleúte.

- Não! - gritou Luka, alertando-o, pois reconhecia que uma lâmina de faca nunca iria imobilizar aquele nativo.

Mas o promyshlenik ou não o ouviu ou não ligou para ele. O aleúte negou o braço que brandia a faca, quebrou-o como um galho seco e depois fechou os dedos em volta do pescoço do homem. Os outros nativos, vendo a bem-sucedida oposição de Homem Forte, lançaram-se ao ataque.

- Vamos matá-los! Vamos matá-los todos! - A ordem berrada galvanizou os russos, impelindo-os a agir.

Luka rapidamente colocou-se em posição para um seguro tiro no musculoso aleúte e atirou. Viu o corpo dele enrijecer-se com o choque da morte, no mesmo instante em que um pequeno furo redondo aparecia na têmpora do homem. Não houve tempo para vê-lo desabar no chão ou para recarregar a arma. com o canto do olho, Luka notou um movimento e virou-se para enfrentar o ataque de uma faca.

Esquivando-se da lâmina, ele agarrou o pulso do homem e torceu-o, dirigindo a faca para o estômago do próprio atacante; depois, num movimento de foice, acabou de matá-lo. Uma vermelha golfada de sangue escapou da boca do homem, atingindo Luka. O ronco staccato do fogo dos mosquetões, os gritos e berros, o choro incerto de crianças assustadas, tudo misturava-se à distância. Para Luka nada era mais alto que o pulsar do sangue em seus próprios ouvidos e as batidas de seu coração. Esses abafavam todos os outros ruídos da batalha.

O morticínio começara. Nada poderia pará-lo agora.

Cisne do Inverno deixara a bambara pouco após Homem Forte. Procurando evitar os estrangeiros que a faziam tão incomodada, ela não se juntou às mulheres de sua aldeia. Em vez disso, pegou um cesto e foi para o vale coberto de verdura atrás da aldeia para colher frutinhas.

Não se afastara muito quando ouviu o estrondo de um tiro seguido pelo grito de uma mulher. Assustada, Cisne do Inverno deixou cair o cesto. Fora o pau de fogo... tinha que ser. Ela podia ver a agitação na aldeia, pessoas correndo em todas as direções como papagaios-do-mar. O grito, parecendo o soluço de uma criança aterrorizada, chegou até ela. Temendo por seu filho, Empertigado, ela correu em direção à aldeia.

No meio de toda aquela confusão, viu Homem Forte, com suas mãos em volta da garganta de um dos estrangeiros, seu rosto lívido de raiva. Um segundo mais tarde, localizou Empertigado observando solenemente seu pai. Soluçando aliviada, ela enlaçou-o nos braços e dobrou os om bros num gesto protetor, perturbada com o barulho ensurdecedor dos paus de fogo. Então começou a correr para fora da aldeia, tentando remover o filho de todo aquele perigo.

Empertigado deu um grito; Cisne do Inverno voltou-se para ver quando Homem Forte caía vagarosamente ao chão, suas feições congeladas numa máscara de morte, o sangue correndo de um buraco em sua têmPOra; deu um grito, horrorizada, e depois viu mais corpos ensanguentados no chão, nenhum deles estrangeiros. A resistência dos habies e Attu fora quebrada; os homens restantes começaram a fugir, mas os exploradores foram em seu encalço. Ela viu quando três deles apanharam Lâmpada de Pedra, o velho chefe da aldeia, e caíram sobre ele com suas facas.

Aterrorizada, ela temia que todos fossem mortos; seu único pensamento era correr para a trilha que subia pelo penhasco acima e esconder-se na montanha. Mas quando começou a correr naquela direção, Mulher Tecedeira interceptou-a.

- Não. Não há escapatória daquele lado. - As lágrimas corriam pelas faces da velha, mas nos olhos não havia pânico. - Eles perseguem todo mundo até apanhá-los, e os liquidam a faca.

- Empertigado - disse ela, cobrindo a cabeça do menino com a mão e apertando-o fortemente contra si. - Devo escondê-lo dos estrangeiros.

- Vem! - Mulher Tecedeira subiu apressada pela rampa de terra da barabara até a entrada pelo teto, e depois empurrou Cisne do Inverno para a escada de tronco, para ela descer primeiro. Suas velhas pernas não eram tão ágeis quanto as de Cisne do Inverno e ela desceu mais vagarosamente os degraus da escada. - Esconda-o no buraco da parede - disse, fazendo um gesto impaciente em direção a um cubículo.

- Sim - Cisne do Inverno finalmente entendeu.

Ela correu para o cubículo particular localizado na parede, com uma divisória de esteira de capim, e levantou a comprida cortina formada pelo tecido. Através dela, um compartimento fora escavado nas paredes de barro da habitação para prover uma pequena área de depósito. Apertou Empertigado com força por um momento, pensando se ela jamais iria agarrar de novo seu pequeno corpo, e depois colocou-o no compartimento escondido. Havia pouco espaço para ele; tinha de ficar sentado com os joelhos de encontro ao corpo e a cabeça roçando o barro em cima.

- Ouça-me com muita atenção. - À voz dela tremia; nos olhos dele havia medo e espanto. Cisne do Inverno fez um esforço para acalmar-se um pouco. - Deve ficar aqui escondido. Não faça nenhum barulho. Não importa o que acontecer, não importa o que ouvir, fique onde está... até... até que todos esses estrangeiros tenham ido embora.

- Onde você estará?

- Não se preocupe comigo. - Cisne do Inverno sorriu para evitar chorar. - Fique aqui. - Os gritos e exclamações de terror do lado de fora estavam diminuindo. Em breve os estrangeiros viriam para ver se havia alguém do lado de dentro.

Afastando os olhos do rosto do filho, Cisne do Inverno forçou sua mão a arriar a esteira, escondendo-o de sua vista, e da vista dos estranhos. Mulher Tecedeira ajudou-a a alisar a esteira de palha que formava a cobertura, fazendo com que ela caísse reta. Então, em passos rápidos, elas se movimentaram para o centro da barábara.

Um rosto apareceu na abertura do teto, um rosto coberto de barbas com olhos redondos. Cisne do Inverno encolheu-se, mas não havia nenhum lugar para correr. Mulher Tecedeira ficou calmamente de pé; instintivamente Cisne do Inverno aproximou-se dela. O homem virou a cabeça e gritou algo, depois começou a descer a escada, carregando seu pau de fogo. Quase ao mesmo tempo, outro estrangeiro agachou-se ao lado da abertura.

O homem desceu a escada até a metade e depois pulou para o chão. Movimentou-se com cuidado pela barabara, examinando todas as repartições e constantemente voltando-se a olhar para elas. Cisne do Inverno continha a respiração, temerosa de que ele encontrasse o esconderijo de seu filho. Os músculos de sua garganta afogavam-na com um grito silencioso para que ele ficasse quieto. Finalmente, o homem aproximou-se e fez-lhes um sinal para subirem a escada. Cisne do Inverno deixou a velha subir primeiro, desejando ficar para trás, mais perto de seu filho enquanto pudesse. Sentiu a dura cutucada do pau de fogo contra suas costas, mas não teve coragem de gritar, receando que Empertigado se esquecesse e viesse correndo para ver o que havia de errado.

De cima da habitação, ela pôde avistar a carnificina, os corpos dos homens espalhados torcidos em seus esgares de morte, as mulheres indo de um para outro chorando e as crianças vagando com as lágrimas correndo por suas espantadas caras. Todos os homens estavam mortos, sem faltar nenhum. Os estrangeiros tinham poupado somente as mulheres e as crianças. Cisne do Inverno supunha que eles tencionavam carregá-las para a aldeia deles do outro lado das águas e fazer delas escravas.

Como se fosse pela própria vontade deles, seus pés a carregaram para baixo do amontoado de terra em direção ao corpo de Homem Forte. Os estrangeiros não fizeram nenhuma tentativa de impedi-la. Ela ajoelhou-se a seu lado, fixando seus olhos sem vida. Chorando mansamente, ela esticou o braço e com delicadeza abaixou suas pálpebras para fechar os olhos.

Seus ombros dobravam-se ante o peso da culpa que sentia. Ela desejara que os estrangeiros fossem expulsos da ilha; ela desejara que os homens da aldeia lutassem e expulsassem os intrusos. Eles haviam tentado e agora estavam todos mortos, inclusive Homem Forte, seu invencível marido. Correu o dedo pela larga maçã de seu rosto, sentiu a pele ainda quente mas sem reagir a seu toque, já sem vida.

Correndo os olhos pela cena, Luka contou quinze mortos - toda a população adulta de homens da aldeia. Olhou para seus companheiros, notando que todos tinham os olhos permanentemente esbugalhados. Us feridos eram poucos; havia alguns cortes e o braço quebrado de Khmeevski Virando as costas, ele respirou profundamente para acalmar seus nervos alterados e sentiu o fedor de sangue, da fumaça de pólvora e do suor em Suas roupas- Não sentia nem satisfação nem pesar com o extermínio dos nativos. O morticínio apenas acabara; uma ameaça potencial tinha sido eliminada. Dirigiu-se a Belyaev para informá-lo. - Estão todos mortos - confirmou ele. - O que deseja que se faça com os corpos?

- Que as mulheres se encarreguem deles à sua moda. Isto as manterá ocupadas - disse ele, sorrindo com frieza.

Luka balançou a cabeça em resposta e depois seu olhar caiu sobre a mulher ajoelhada ao lado do corpo do musculoso homem que ele matara. Viu quando ela fechou os olhos do homem; a umidade das lágrimas que faziam brilhar suas faces fizeram-no vagamente embaraçado. A sensação não perdurou, pois Shekhurdin apareceu em seu campo de visão andando a passos largos, com a frente de sua camisa respingada de sangue. Ele parecia enjoado com o que via e tremia de raiva quando enfrentou Belyaev.

- Você não é um caçador, Belyaev. É um assassino sanguinário que gosta de matar só por prazer.

- Está parecendo pálido, cossaco.

- Você massacrou essa gente por um pedaço de ferro sem valor.

- Seus dentes estavam tão firmemente cerrados que precisava forçar as palavras por entre eles. - Onde está ele agora, Belyaev? Onde está aquele pedaço de metal pelo qual você ordenou o assassinato de todos esses homens?

Belyaev meteu a mão dentro da camisa e puxou o parafuso de ferro.

- Tenho-o aqui.

- E aposto que o teve aí todo o tempo - acusou Shekhurdin, com a voz arrastada. - Você queria uma desculpa para matá-los. Era o que desejava, não era?

- Era. Agora tenho barcos que nada nos custaram, um abrigo de inverno já construído, e mulheres para cozinhar, costurar e esquentar nossos leitos.

- Foram as mulheres. Tudo isso foi para que você pudesse ter uma mulher. Foi por isso que não mandou matá-las. - O lábio dele curvou-se, enojado.

- Vamos, Shekhurdin. Não vá dizer que não deseja a companhia de uma dessas mulheres? - provocou-o Belyaev. - Ou será que não é macho o bastante?

- Você não tem miolos; pensa com os colhões! Não entende o que realizou aqui? O refém que está em poder de Chuprov não tem agora nenhum valor para nós.

- Chuprov pode arranjar um outro - disse ele, encolhendo os ombros, mostrando sua despreocupação.

- Seu louco! Por que motivo iriam os nativos confiar em nós depois disso?

- Que me importa se eles confiam em mim ou não? Que me temam!

- declarou Belyaev.

- Você irá responder por esse massacre não provocado, Belyaev ameaçou Shekhurdin. - Pretendo fazer um relatório completo de seus atos.

- Faça isso! - Um sorriso provocador continuava a bailar em sua expressão. - Quem vai se incomodar com morte de quinze selvagens?

A czarina está longe, muito longe. Conte a chuprov. Isso não mudará nada.

- Direi a ele. E se ele não mandar chicoteá-lo, contarei ao agente do governo em Bolsheretsk.

- Você me faz tremer com suas ameaças, cossaco - disse Belyaev, jogando a cabeça para trás e rindo alto. - Vá! Vá e relate meus crimes a Chuprov.

- Farei isso. E depois verei o chicote arrancar a pele de suas costas - prometeu Shekhurdin e começou a retirar-se.

- Leve dois homens com você, cossaco - gritou-lhe Belyaev. A fim de carregar a pólvora e a munição que Chuprov vai me mandar de volta.

 

A cerração cobria como um sudário o local do massacre. Ténues farrapos dela penetravam na habitação semi-subterrânea pela entrada do teto de terra na tentativa de uma invasão; as hesitantes chamas das lâmpadas a óleo mantinham a cerração afastada com suas espirais de fumaça escura, provinda da queima das torcidas de musgo flutuando nas bacias de óleo de foca. Os turbulentos promyshleniki sentavam-se no chão, perto da luz, consumindo com grande apetite a comida preparada para eles pelas mulheres aleútes encolhidas nas sombras.

Belyaev gritou pedindo água, e depois ficou olhando com seus escuros olhos brilhantes quando uma jovem apressou-se a atender a seu pedido, trazendo-lhe uma vasilha feita do saco que envolve o coração dos leões-marinhos. Belyaev pegou a vasilha da mão da mulher, tomou um gole da água e depois cuspiu a maior parte.

- Um homem precisa de algo mais forte - declarou ele a seus homens. - Amanhã mandaremos as mulheres apanharem para nós capim doce; então poderemos destilar nossa própria bebida. Um homem precisa de seu trago diário para manter a frialdade longe de seus ossos.

Os caçadores russos fizeram eco a esse sentimento. Belyaev jogou a vasilha em direção à mulher nativa. Quando a apanhou, ele levantou a

vista para ela, seu interesse despertado pelo reflexo da luz da lâmpada

em seu rosto, que destacava sua estrutura óssea. Fechando a mão em torno

do tornozelo da mulher, ele impediu sua retirada.

Chega de comida - disse ele, descansando o prato de madeira.

Com um sorriso malicioso. - Está na hora de provarmos o resto de nossos despojos.

Sua mão subiu pela perna da mulher, levantando a barra da comprida parka que lhe chegava aos tornozelos e revelando uma perna musculosa. Ela procurou fugir dele e recuar para o grupo de mulheres silenciosas à sombra. Belyaev ficou de pé e sem apressar-se perseguiu-a, fazendo uma volta para impedi-la de alcançar as outras mulheres. Cercou-a numa brincadeira de gato e rato, avançando e recuando, deixando que ela pensasse que podia passar por ele, depois pulando para fechar a passagem, rindo-se todo o tempo.

Luka observava a brincadeira enquanto limpava seu prato com os dedos, lambendo-os depois para comer os restos de peixe que a eles aderiam. Tendo acabado, limpou a boca com as costas da mão, enxugando-a em sua barba. Enquanto isso, a mulher aleúte fingiu seguir numa direção e depois correu na outra.

- Pegue-a, Nikolai Dimitrovich! - Os homens riam ao vê-la quase escapar de seu líder.

Mas Belyaev agarrou-a antes que chegasse até as mulheres e apertou-a de encontro a seu corpo. Quando ela tentou lutar para livrar-se, deu-lhe um tapa no rosto. A resistência da mulher cessou instantaneamente. Ele enfiou os dedos no coque dos cabelos negros, forçou sua cabeça para trás, obrigando-a a encará-lo.

- Você me lançou olhares esta manhã - recordou ele, sorrindo.

- Agora aqui me tem. - Voltando-se, examinou os outros homens. O que estão esperando? Pegue aqui, Luka Ivanovich! - Ainda agarrando a primeira cativa, ele pegou o braço da mulher mais próxima e jogou-a na direção de Luka. - Pegue esta!

Ela tropeçou e caiu, esparramando-se no chão coberto de capim aos pés de Luka. Não fez tentativa de levantar-se nem ergueu a cabeça para fitá-lo, sua atitude inteiramente de submissão. Ele observou o brilho negro de seus cabelos e a brancura do pedaço de osso enfiado no lóbulo da orelha. Sentia pouco desejo, mas sabia o que os demais esperavam dele.

Levantando-se, ele agarrou o braço com que ela se apoiava no chão e arrastou-a. Ela mantinha a cabeça abaixada, seu rosto virado, mas ele não sentia vontade de olhar para ela. Luka parou, examinou os compartimentos divididos alinhados nos lados da barabara e escolheu o mais próximo. Quando ele se movimentou em sua direção, a mulher ofereceu sua primeira oposição; um safanão acabou com sua resistência e ela entrou na sua frente.

Luka abaixou a esteira da divisória para garantir privacidade, não desejando praticar o ato para entretenimento dos companheiros. Voltando-se, viu a mulher agachada na esteira de dormir, bem afastada da sólida parede de barro da habitação nativa. Agora ela o observava; a despeito do ambiente de sombras, ele reconheceu a mulher como a que vira ajoelhada ao lado do corpo do homem forte da aldeia, aquele que ele matara.

Sua hesitação foi breve. Fez um sinal para a mulher despir a parka de pele de lontra, desejando acabar logo com aquilo. Ela demorou a atendê-lo, demonstrando má vontade ao agarrar os lados da parka e puxála por cima da cabeça. A visão de sua pele pálida, brilhando como marfim polido na escuridão, despertou-lhe um breve desejo. Suas mãos hesitaram quando abriu a braguilha, enquanto os olhos corriam dos mamilos de um rosa escuro dos seios até o negro cabelo encaracolado do púbis, ambos destacando-se muito claramente contra a pálida pele. Acabou de afrouxar as calças e deixou-as cair a seus pés. Ela continuava deitada na enxerga, com a cabeça virada e os olhos fechados, o corpo enrijecido para recebê-lo.

O corpo dela era o de uma mulher, mas os botoques e as tatuagens no rosto eram de uma selvagem. Luka montou-a sem preliminares, forçando o membro intumescido para dentro de sua vagina seca, depois puxando-o um pouco para fora e enterrando-o de novo várias vezes, enquanto ela permanecia imóvel, os lábios firmemente cerrados. Longas semanas de abstenção sexual apressaram sua ejaculação.

Após o último estremecimento do clímax, ele arriou seu peso sobre ela até recuperar as forças. Tinha uma vaga consciência do suor que corria por dentro de seu colarinho, das batidas de seu coração e da dificuldade com que respirava. Mas a satisfação sexual trouxe consigo um vazio de prazer. Ele saiu de cima da mulher e ficou de pé para vestir as calças, ciente que ela ainda não se movera, embora não a olhasse.

Abruptamente, abandonou o compartimento para retornar à área comunal, abotoando as calças enquanto caminhava. Fez uma parada e acendeu o cachimbo, ignorando o deboche que se havia estabelecido na barabara e os risos e as obscenidades que o acompanhavam.

Encolhido contra as malcheirosas paredes de terra de seu esconderijo, Empertigado estava assustado com os sons que ouvia do lado de fora. Há apenas alguns minutos, ouvira barulhos no compartimento dos pais

- os grunhidos da respiração de um homem e o ruído ritmado de corpos esfregando-se um no outro. Não ouvira porém os suaves sons parecidos com miados que sua mãe fazia quando ela enroscava seu corpo no do pai. O homem saíra, mas ele estava certo que a mãe continuava ali.

Estava amedrontado e faminto. Sabia que ela lhe dissera para ficar ali, mas estava escuro e ele não queria mais ficar sozinho. Sem fazer barulho e cuidadosamente, Empertigado empurrou a esteira de palha até poder enxergar dentro do compartimento. Depois da escuridão negra como tinta de seu esconderijo, a luz que se filtrava pelas frestas laterais das repartições de palha de capim tecido parecia brilhante. Sua mãe estava deitada nua na enxerga de dormir, olhando vagamente para o teto de adobe. Estava tão parada... da forma que seu pai ficara depois de cair no chão.

Alarmado, Empertigado esqueceu qualquer precaução e escorregou

para tora do buraco escavado na parede. com o ruído farfalhante da esteira de Palha, a cabeça de Cisne do Inverno virou-se na direção dele. Ele ficou sentindo-se culpado, sabendo que deveria ter permanecido naquele buraco escuro e abafado. Ao sentar-se, apressada, ela lançou um

olhar por sobre o ombro, alarmada, e depois chegou-se a ele. Começou empurrando-o de volta para onde o escondera, depois hesitou e puxou-o em seus braços, apertando-o fortemente.

Algo estava muito errado, mas ele não sabia o que era. Ela agarrava-o com força e ele sentia a firme saliência dos seios apertando-se de encontro à sua pele. Não havia nenhuma segurança, nenhum conforto nos braços dela, e ele sentiu-se ainda mais assustado.

A cortina de palha que separava o compartimento do grande espaço central interior da bambara foi subitamente levantada. Empertigado piscou, desacostumado a tanta luz. A agigantada figura de um homem um dos estrangeiros - bloqueou parte da claridade. Enquanto a mãe o apertava contra si mais fortemente e se movimentava como para protegêlo, Empertigado olhava para o rosto do homem e para a cicatriz branca e irregular que quase lhe fechava o olho.

A mão do homem moveu-se e sua mãe deu um pequeno gemido, mas o braço dele passou adiante e foi abrir a esteira meio deslocada, expondo seu antigo esconderijo. Empertigado viu quando o homem voltou a olhálo e a seguir voltou-se, saindo do compartimento. Foram necessários vários longos minutos para que a tensão abandonasse o corpo de sua mãe e ela parasse de apertá-lo com tanta força.

A luz do sol penetrava por uma brecha entre as nuvens e as ondas refletiam seu brilho. Dois caçadores de peles russos estavam com água acima dos joelhos na baía, segurando firme a bidarka enquanto Luka trepava na longa e esguia versão aleúte do caiaque. Ajeitando-se na abertura única em sua parte superior, ele esticou as pernas, sentindo o reflexo de sua posição nos músculos das costas. Alguém entregou-lhe o remo de pás duplas e ele acenou com a cabeça a seus dois assistentes, dizendo que estava pronto.

A aldeia só tinha um baldar. Não era prático para todos os dez promyshleniki irem caçar lontras no mesmo barco grande de couro. Uma dúzia de bidarkas na praia ofereciam uma alternativa de transporte para os caçadores e a oportunidade de caçarem em diferentes áreas. Mas as bidarkas eram uma embarcação tão pequena e tão leve que os caçadores estavam preocupados sobre como iriam enfrentar as fortes ondas. Luka decidira experimentar uma nas águas protegidas da baía.

Com um empurrão, os promyshleniki lançaram a bidarka ao encontro das ondas. Luka mergulhou uma das pás do remo na água. Quase na mesma hora, a embarcação de couro virou e Luka viu-se mergulhado de cabeça para baixo na água de um verde sombrio, cuja superfície brilhava com a luz do sol. Ele agitou o remo atabalhoadamente, tentando endireitar-se junto com o barco, mas nada parecia dar resultado. Seus pulmões começaram a queimar, o corpo exigia oxigénio. Enfiou um dos lados do remo no fundo do mar, tentando empurrar-se para cima, mas só conseguiu agitar o sedimento do fundo, escurecendo ainda mais a água já borbulhante.

Subitamente, a bidarka começou a endireitar-se sozinha - ou assim parecia - até que um par de mãos agarrou-o e o trouxe para cima junto com o barco. Tossindo e engasgado com a água bebida acidentalmente, ele conseguiu focalizar a vista nos dois homens que o salvaram e que agora estavam empurrando a bidarka para água mais rasa.

- Quase me afoguei - disse ele, a respiração ainda entrecortada.

- Você não é homem bastante para manusear esse pequeno barco, Luka Ivanovich? - zombou Belyaev da praia.

Luka olhou-o irritado e disse aos dois homens que o haviam ajudado:

- vou tentar de novo, logo que tiver respirado um pouco.

Na segunda vez ele não foi tão brusco com o remo, esperando até sentir o equilíbrio da embarcação. Das primeiras vezes apenas tentou mergulhar experimentalmente o remo, mas quando ele o enterrou na água, seu centro de gravidade deslocou-se, desequilibrando a bidarka, que tornou a virar. Mais uma vez os promyshleniki tiveram que vir em seu socorro. Na terceira tentativa ele foi mais longe, em água mais profunda, mas virou outra vez. Conseguiu endireitar-se sozinho, mas não sem antes engolir uma porção de água e sentir o frio terror de um túmulo de água a rodeá-lo.

Enquanto estava sentado no apertado espaço aberto do barco, expelindo água e vomitando, receando mover-se para o barco não virar de novo, a maré vazante ameaçava carregá-lo para o mar aberto. Ouviu risos provindos da praia e viu quando um rapazinho aleúte de uns dez anos remava para fora numa bidarka. com perícia, o rapazinho manobrou seu esguio barco, encostando-o no de Luka, e amarrou-os um ao outro. Embora no rosto do rapaz não houvesse nem a sombra de um sorriso, Luka poderia jurar que estava rindo dele. Num silêncio zangado, ele sofreu a ignomínia de ser conduzido para a praia remado por uma criança.

Quando a longa e pontuda proa tocou o fundo arenoso em água rasa, Luka não perdeu tempo pulando fora e indo para a praia. Não ligou para a gozação de seus companheiros; naquele momento ele sentia que nada poderia novamente induzi-lo a aventurar-se naquela ratoeira mortal.

Dos baixios onde catava ouriços e mariscos, Cisne do Inverno tinha testemunhado o desastre de Luka. Ficara cansada com o esforço que fizera, desejando que o mar enchesse os pulmões do homem com sua água salgada. Mas o homem de quem se tornara escrava chegara até a praia, salvo. Sua esperança morreu. Nada poderia libertá-la - ou ao resto de sua aldeia. Os paus de fogo davam aos estrangeiros poder demais; ela aprendera a amarga lição de que seu povo não podia lutar com eles e vencer.

Algo próximo à entrada da baía chamou a atenção de seus olhos. As nuvens haviam-se fechado e o brilho do sol desaparecera. Sem o seu reflexo nos olhos ela pôde ver duas bidarkas dirigindo-se para a praia. a mulher temia o dia em que o irmão de Homem Forte, Barbudo, voltasse com os caçadores restantes da aldeia. Os estrangeiros tinham matado todos os homens; matariam a eles também. Cisne do Inverno gritou para alerta-los, mas o vento levou seu grito aos estrangeiros. Eles viram as bidarkas e prepararam seus paus de fogo. Cisne do Inverno ficou observando sem nada poder fazer, Quando Barbudo e os outros se aproximaram da praia, ignorantes do perigo.

Luka estudou o modo como os nativos nas bidarkas posicionavam suas embarcações para correrem com as ondas, remando um pouco para trás a fim de evitar ultrapassar a crista da onda. Experimentou uma relutante admiração por sua perícia, apreciando as dificuldades que ela envolvia. Quando viu as carcaças de um leão-marinho e de lontras amarradas no convés, a habilidade deles subiu mais um ponto em sua estimativa. Uma lustrosa pele era algo que poderia recolocá-lo numa bidarka.

- Devemos matá-los? - perguntou alguém a Belyaev.

- Não - disse Luka. - Vamos deixá-los que nos ensinem como manusear suas embarcações.

Belyaev abriu a boca para contrariá-lo, depois ponderou a sugestão e balançou a cabeça vagarosamente concordando.

- Você está certo. Eles podem nos ser úteis para muitas coisas. Afinal de contas, o que quatro caçadores podem fazer contra todos nós? Nós temos suas mulheres e suas crianças; eles farão o que mandarmos.

Quando os caçadores aleútes chegaram à praia, esperando as mesmas relações amigáveis que tinham compartilhado anteriormente com os estrangeiros, foram apanhados de surpresa, desarmados e aprisionados pelos promyshleniki. Estes juntaram os nativos e levaram-nos para â aldeia, sua chegada coincidindo com a volta de Shekhurdin e dos outros dois caçadores que tinham ido até o acampamento central.

- Bem? - Belyaev perguntou em tom de desafio ao cossaco de lábios cerrados quando ele se apresentou. - O que disse Chuprov?

- Nada - respondeu Shekhurdin, arreganhando os lábios e mostrando os dentes.

- Ele mandou mais pólvora e chumbo - disse um dos homens que voltara com Shekhurdin, sorrindo levemente para o cossaco.

- O que foi que eu lhes disse? - vangloriou-se Belyaev.

Cisne do Inverno não teve uma oportunidade de falar com Barbudo até a noite em que trouxe a comida dele. Mas ele já estava ciente da morte dos outros. Havia pesar em seu rosto enquanto olhava para ela; pesar e desespero.

- O que deveremos fazer? - indagou ele, atónito. - O que teria feito Homem Forte? Será que fugiria e iria até as outras ilhas, reunindo os caçadores das aldeias para lutar contra os estrangeiros? Será isso o que devemos fazer?

- Não. - Antes ela havia desejado lutar; agora via a futilidade dessa luta. - Eles nos derrotariam com seus paus de fogo, eles nos matariam a todos. Olhe aqui. - Ela mostrou-lhe uma bala de chumbo parcialmente amassada. - Isto é o que mata. Tirei isso de um buraco na cabeça de Homem Forte. Creio que foi jogada pelo pau de fogo. Vi como eles botam essas coisas no lado que é furado.

- Meu coração está cheio de ódio por eles - declarou Barbudo.

- Da mesma forma o meu. Mas o Homem Forte foi prudente ao aconselhar a paz. - Cisne do Inverno esforçava-se por pensar como seu marido e acreditar em sua opinião; o pensamento dela trouxera angústia para toda a aldeia e a dor de serem escravizados. - Você não resistiu

a eles, por isso não te mataram. Se os outros não tivessem lutado, os estrangeiros talvez não o matassem. Homem Forte estaria vivo se eu não o incitasse a usar a força contra eles. Tenho que assumir a culpa por sua

morte.

Luka viu os dois acocorados juntos, tramando alguma conspiração, e foi até eles. Agarrou o braço da mulher que transformara em sua concubina e empurrou-a para o outro lado do cómodo.

- Está enganada se pensa que pode me matar quando eu estiver dormindo, mulher! - A voz trovejava com a ameaça; submissa, ela manteve a cabeça baixa.

 

O incidente fez com que o nativo de barba inusitadamente fechada chamasse a atenção de Luka. Ele escolheu o aleúte para ensiná-lo a dominar a bidarka. Se alguma traição fosse planejada, ele queria o nativo sob suas vistas. O homem, entretanto, parecia tranquilo por natureza; não importava quanto Luka o espicaçasse, o caçador nunca demonstrava raiva e nem uma vez perdeu a paciência com a inaptidão de Luka com a bidarka.

Ao fim do mês, Luka explorara com sucesso a baía em toda sua largura e comprimento, aventurando-se até o mar aberto. Além disso, tinha aprendido um mínimo da língua aleúte, e o nativo decorara um punhado de palavras russas. Comunicavam-se numa complicada mistura de língua de sinais, aleúte e russo.

Durante esse espaço de tempo, os promyshleniki familiarizaram-se com sua porção particular da ilha e juntaram um bom suprimento de comida. Esta última coisa não era algo que os aleútes estivessem acostumados a fazer. O mar era como se fosse sua fazenda, à qual eles exploravam na medida de suas necessidades, e seus tempos de escassez raramente duravam muito. Haviam conhecido fome, mas nunca ao ponto de morrer. A maior tarefa que os russos enfrentavam era convencer as mulheres nativas que preferiam sua comida cozida à crua.

Ansioso para colher as benesses do oceano em peles, Luka lançou-se em altas expectativas, apenas para vê-las despencar. Primeiro, ele descobriu as limitações da pesca no grande barco aberto feito de couro. Embora o barco tivesse capacidade para levar uma grande quantidade de peles, seu tamanho tornava difícil a aproximação da lontra-do-mar impróprio para a perseguição. Era raro se aproximarem da caça o suficiente para lançar um arpão; tentaram atirar nas lontras com os mosquetões e apenas aprenderam que um mamífero marinho morto afunda quase imediatamente. Luka viu muitos dos valiosos animais fugirem de sua vista nas escuras águas.

A comprida e esguia bidarka era melhor adaptada para caçar aquela presa. Novamente Luka valeu-se dos serviços do aleúte cujo nome aprendera que era Barbudo. Desta vez ele o queria como guia. A princípio saíram para caçar numa bidarka de dois homens, Luka ocupando o lugar de trás, de forma que pudesse manter vigilância sobre o nativo.

Luka sempre se orgulhara de sua perícia como caçador, mas havia uma enorme diferença entre caçar em terra e no mar. A terra é sólida. Pode-se andar sobre ela; se o caçador cansar-se, pode deitar e descansar. Um animal deixa rastros na terra. Quando vem uma tempestade, um homem pode abrigar-se e esperar até que ela passe.

Mas o mar, o mar estava em constante movimento, flexionando seus músculos, subindo e descendo, subindo e descendo em potentes vagas. Raramente sua superfície estava calma, especialmente no inverno, quando os ventos sopravam com força de tempestade, açoitando-o e fazendo-o espumar, jogando para os lados a neve e o gelo. O mar também era perigoso porque embotava os sentidos e um homem incauto estava sempre correndo o risco de se afogar. Luka mantinha sempre em mente que um mergulho nas águas geladas significava a morte dentro de minutos.

E não havia pontos de referência no mar alto. Vezes sem conta ele ficou totalmente desorientado, sem a menor ideia da direção em que ficava a ilha. A princípio pensava que Barbudo fizera-o perder-se de propósito, que tudo fazia parte de um truque para matá-lo. Mas o aleúte nunca se perdia e sempre o trazia de volta para a ilha em segurança. Quando interrogava o nativo, ele lhe dizia que se "lembrava" do caminho: da direção que tomara, por quanto tempo, onde fizera uma volta, em que direção fora, e depois, compensando pela mudança do vento, ele revertia seus rumos.

A caçada de uma lontra-do-mar era primeiro uma questão de avistála, depois de chegar-se perto dela o suficiente para arpoá-la. Nenhuma das duas coisas era uma tarefa simples. A primeira incluía ficar constantemente a observar as ondulantes águas e a segunda às vezes envolvia horas de paciente perseguição. De acordo com Barbudo, seria melhor se houvesse uma meia dúzia de bidarkas, de forma que o mamífero pudesse ser cercado cada vez que vinha à tona após um mergulho; dessa forma ele se cansaria mais rapidamente.

Luka também descobriu que as armas dos aleútes eram superiores às suas próprias. O arpão dos nativos lançado de uma prancha flutuante tinha um alcance maior do que seu arpão no estilo de um dardo. Contudo a mais amarga descoberta foi sua inabilidade de controlar uma bidarka de um só lugar e ao mesmo tempo caçar. Ele só tinha sucesso quando caçava junto com o aleúte.

Do lado de fora da barabara rugia uma nevasca de fevereiro, mas o interior da habitação dos nativos estava aconchegante e quente. Alguns estavam sentados no chão forrado de capim jogando com uma mistura de resmungos e gritos de triunfo partindo de seu meio. Outros caçadores vagavam em torno do perímetro, observando o jogo ou brincando com as crianças aleútes, enquanto alguns poucos ficavam ao lado de um caldeirão de cobre e seu suprimento de raka, uma forte bebida alcoólica destilada de capim-doce macerado, cujo processo de fermentação natural era acelerado pela adição de um pouco de fermento.

Sentado isolado e sugando seu cachimbo já apagado, Luka observava distraído o cano do mosquetão que se projetava da tosca tampa de madeira do caldeirão. Aquilo era uma prova da segurança e da paz de que gozavam na aldeia, o fato que podiam desmontar uma de suas armas e usá-la para servir-se da bebida. Eles nada tinham a temer dos nativos. Sua vista desviou-se para Barbudo, que ocupava-se entalhando qualquer figura na cabeça de um novo arpão. O aleúte tinha uma arma na mão e, no entanto, Luka não sentia nenhuma razão para empunhar a sua. Houvera oportunidades demais durante os meses decorridos para Barbudo matá-lo e jogar seu corpo no mar, se esse tivesse sido seu desejo. Luka não compreendia esses nativos, que pareciam não ter inclinação para odiar. Eles haviam dizimado seu povo e tomado suas mulheres, no entanto os aleútes não demonstravam ressentimento.

Esfregou a cicatriz no rosto e ficou olhando para o crescente monte de peles de lontra, depositadas ao longo de uma das paredes da barabara. Ele abatera sua cota neste inverno, da mesma forma que qualquer outro promyshlenik, mas a porcentagem maior se devia aos quatro aleútes forçados a caçar com eles. Sentindo a frustração, mordeu com mais força o cachimbo.

O ruído que fazia o capim seco ao ser pisado alertou-o para a aproximação de uma outra pessoa. O cossaco Shekhurdin acercou-se com uma caneca na mão. Luka olhou rápido para cima, depois tirou o cachimbo da boca e bateu o fornilho de encontro a um pedaço de madeira, espalhando as cinzas frias.

- Por que não está por aí bebendo e arriscando no jogo uma parte de seu quinhão no resultado da estação de caça, Luka Ivanovich? - perguntou Shekhurdin, agachando-se e sentando-se em seus calcanhares. Ou será que está ocupado demais contando sua parte? - com um gesto ele indicou as lustrosas peles que tanto absorviam o interesse de Luka.

- Talvez... - Luka preferiu ignorar a provocação do cossaco. Você veio somente pelas peles, você e os outros. Devem estar se sentindo muito satisfeitos. - Ele levantou a caneca e engoliu outro gole da bebida fermentada.

O comentário do cossaco agravou a frustração que Luka já vinha sentindo, porque ele não estava nada satisfeito. Às vezes penso que eles só se arrastam até a ilha para descansar. Conhecem o mar e suas criaturas como eu conheço a terra.

- Nunca esperei ouvi-lo cantar louvores a um bando de caçadores marítimos nativos quando o vi sentado aqui, olhando para uma fortuna em peles - zombou Shekhurdin.

- Há muita riqueza ali, mas fico cismando quantas peles mais teríamos se aqueles aleútes ainda estivessem vivos. com mais quinze para caçarem conosco, teríamos que construir uma outra cabana só para armazenar as peles. - Luka recordava-se do massacre com grande arrependimento; o meio de chegar a uma fortuna maior do que ele jamais sonhara fora destruído naquele dia. Sabendo o que perdera, ele nunca podia ficar contente com o que tinha.

- Sim, é verdade - murmurou o cossaco, quase que para si mesmo.

Luka ergueu-se e deixou o cossaco com seu cálculo mental dos lucros perdidos. Sem querer juntar-se ao grupo dos barulhentos promyshleniki em torno do jogo de cartas, Luka parou ao lado da escada de troncos da entrada. Sentiu a corrente de ar frio da escotilha, que fazia espiralar a fina corrente de fumaça escura das lâmpadas de pedra. Pensou quanto tempo iria durar a tempestade; estava ansioso para reiniciar a caçada e compensar as peles perdidas.

Dois garotos brigavam no chão, lutando por um dardo. Luka reconheceu o menor dos dois como o filho de sua concubina, Empertigado. Ficou observando os futuros caçadores do mar enquanto os outros promyshleniki os açulavam. Os dois sendo tão jovens, a luta não durou muito. Empertigado emergiu da confusão brandindo orgulhosamente o dardo, seus pequenos ombros levantados e sua cabeça ereta.

Belyaev veio por trás do jovem e tirou-lhe o dardo da mão, erguendo-o fora de seu alcance. Rindo-se, ele ficou provocando o rapaz com o dardo, fazendo-o pular e depois levantando-o mais ainda. O jovem logo compreendeu a futilidade de seus esforços e lançou-se contra Belyaev, batendolhe nas pernas com o punho fechado. Belyaev reagiu com fingido medo a seu fraco ataque.

Luka também achou divertido até que a mãe do rapaz interveio e retirou-o dali, ralhando com ele por ter atacado seu algoz. O rapaz parecia abatido e um pouco emburrado. Quando Belyaev lhe ofereceu o dardo, Empertigado recusou-o e caminhou ereto para o outro lado do cómodo. Belyaev deu-o então à mulher; ela olhou para o lado do rapaz, mas não lhe entregou o dardo.

Luka descobrira que o nome dela era Cisne do Inverno. Conforme Barbudo lhe explicara, chamavam-na assim por causa do cisne que vinha para as ilhas somente no início do inverno. Luka reconhecera o gracioso animal quando ele ali parara em sua visita anual: o cisne-berrador de sua nativa Rússia. E naquela sua mulher havia uma graça e uma energia disciplinada, uma dignidade inata a despeito de sua cabeça muitas vezes abaixada. Ficou a observá-la quando ela voltou a costurar a parka de couro de pássaros que fazia para ele.

Naquela noite, quando estava deitado a seu lado no escuro, sem exigir nada da mulher, Luka ficou pensando como ele se acostumara a seus estranhos métodos de se enfeitar. Os botoques e a tatuagem não mais o repugnavam; eles não a desfiguravam mais que a cicatriz de seu rosto. Ela cozinhava, costurava, limpava as peles dele e obedecia. Para uma mulher nativa, ela era boa.

Ele pensou no corpo de Cisne do Inverno, sua cor e sua textura de marfim, embora quente e viva. Voltou-se a fim de olhar para ela, incapaz de dizer se estava dormindo. O desejo que ele não sentira antes agora o animava. Embora tocar-se raramente fizesse parte do ato, ele enfiou a mão por debaixo da pele que a cobria e tocou seu estômago para fazê-la sentir sua intenção. Quando percebeu o volume de uma área que sempre tinha sido plana, Luka hesitou e depois começou a tateá-la com seus dedos. Ela começou a mexer-se para uma posição que lhe permitisse montála, mas ele conteve seu movimento com uma pressão da mão.

- Está esperando criança? - Ele franziu a testa e depois viu que ela não havia entendido. Seu vocabulário russo recém-adquirido e limitado não incluía a palavra "criança". Luka repetiu-a e indicou o estômago dela.

- Sim - disse ela, balançando a cabeça.

Ele sentiu um pequeno movimento debaixo da mão, como se o bebé no útero estivesse confirmando sua presença. Retirando a mão, Luka ficou deitado de costas. Ele não havia considerado a possibilidade de que ela pudesse ter um filho seu. Que grande caçador o filho seria, pensou vagamente. Esta nova terra poderia prover grandes riquezas para um caçador. Mas aquilo trouxe de volta a lembrança da fortuna que poderia ter tido. Moveu-se agitado, amaldiçoando a pouca luz do dia durante o inverno e as violentas tempestades que o impediam de caçar. Pelo menos aqui o oceano não gelava como fazia no norte da Sibéria e as águas eram frequentadas o ano inteiro pela lontra-do-mar.

A cada dia o sol permanecia mais tempo no céu, embora sua luz mal atravessasse a cerração e as nuvens que sempre flutuavam no céu e brilhasse na ilha de Attu. O mar de Bering bloqueado pelo gelo, que havia batido de encontro às costas rochosas por todo o inverno, permitia relutantemente que as correntes quentes do Pacífico dominassem a ilha. A paisagem destituída de árvores adquiria um luxuriante viço de folhagens verdes, como o azevém, a urze e o putske - aipo selvagem - rivalizando com os vastos campos de tremoceiros, cravos-dos-pantanais e uma enorme variedade de outras flores selvagens.

Os promyshleniki caçavam febrilmente, conscientes-de que o tempo estava se escoando. Em breve, muito em breve, teriam que viajar de volta, e no entanto havia mais lontras, focas e leões-marinhos a serem caçados.

a cobiça os dominava; quanto mais peles, maior seria sua cota. Sempre que o tempo permitia, saíam em seus barcos armados com arpões e porrC iCS.

Para as mulheres nativas a época era também de muita ocupação, além da limpeza das peles que os caçadores traziam de volta para a aldeia, havia frutinhas do mato a colher e capim para secar a fim de fazer cestos e esteiras. Aquela era a estação em que as correntes de água doce estavam cheias de salmões desovando. Pegar os salmões era tarefa das mulheres, das crianças e dos velhos. Renques e renques de salmão a secar enfeitavam a aldeia; elas faziam tudo isso, além de cozinhar e costurar incessantemente.

Voltando de uma caçada muito produtiva, Luka ajudava seu parceiro aleúte, Barbudo, a arrastar a bidarka dupla para a praia, cuidando de evitar quaisquer rochas pontudas que pudessem furar o casco da embarcação. Suas pernas estavam duras e com cãibras das longas horas ajoelhado no fundo do barco. Ele simplesmente não podia sentar-se na bidarka com as pernas esticadas, tal como os aleútes. O esforço sobre os músculos era demasiado.

Descarregaram as peles ensanguentadas que haviam guardado dentro do caiaque aleúte, tendo ido previamente à costa para tirar o couro de suas presas de forma a ficarem com a carga leve e poderem caçar por mais tempo. Juntos carregaram as peles para a aldeia. Luka olhou para o céu, tentando avaliar as horas de sol ainda restantes e debatendo consigo mesmo se voltaria ou não para o mar após haver comido. Parecialhe que tomar uma decisão exigiria grande esforço, de forma que a postergou, na esperança de que alguma refeição quente lhe restaurasse as energias.

A seu lado direito, observou três promyshleniki andando com ar cansado pela precária trilha que levava à sauna que a expedição de caça construíra. Talvez mais tarde, disse a si mesmo, e adiou também aquela decisão, continuando a arrastar os pés até a aldeia. Viu Cisne do Inverno ajoelhada e debruçada sobre uma pele de foca, raspando os restos de carne agarrados ao couro. Fazendo uma pausa, ela esticou-se e passou a mão pela parte baixa de suas costas, arqueando a espinha. O estômago de Cisne do Inverno estava saliente e redondo, dando a impressão de que carregava uma grande bola dentro de suaparka. Quando voltou a seu serviço, havia muito pouco espaço entre sua barriga e o chão.

Luka pensou que sua hora em breve chegaria, mas não se preocupava com as longas horas em que ela trabalhava, pois ela nunca se queixava. E as mulheres nativas eram fortes; estavam acostumadas a essas coisas e assim ele não esperava outra coisa da mulher. Caminhou até ela e deixou cair as peles a seu lado.

- Estou com fome; me arranje qualquer coisa para comer - ordenou e depois afastou-se um pouco para livrar-se do mau cheiro da carne de foca apodrecida. Esgotado pelo cansaço, deixou-se cair no chão e observou os esforços que ela fazia, tentando cumprir sua ordem.

- Vêm homens - disse Barbudo, apontando para a trilha do penhasco.

Levantando a cabeça, Luka admirou-se com as figuras em trajes russos. Quando se aproximaram da aldeia, Luka pôde distinguir a cor de areia da barba de um homem, Chuprov. Superando seu cansaço, levantou-se para cumprimentar o líder da expedição.

- Avise os outros caçadores no acampamento - instruiu ele ao aleúte.

Quando Chuprov chegou à aldeia, os promyshleniki remanescentes já estavam ali para dar-lhe as boas-vindas. Encheram-se canecas com a última destilação de raka, que foram passadas para todos. Belyaev aguardou até que os viajantes tivessem saciado sua sede e esperou alguns minutos antes de indagar o objetivo da visita.

- O que o trouxe ao nosso acampamento, Yakov Petrovich?

- Nevodchikov diz que deveremos levantar velas para casa dentro de duas semanas - declarou Chuprov. - Precisamos de todo esse tempo para transportar todas as peles para o acampamento-base e preparar o shitik para a viagem.

- Não! - protestou Luka involuntariamente. E, como levantara uma objeção ao que fora decidido, viu-se obrigado a defendê-la. - A caça está muito boa; o tempo está bom. Por que deveremos partir agora? Por que não esperar mais umas semanas?

- Nevodchikov diz que os ventos favorecem a viagem nesta época do ano. A viagem será fácil.

- O que importa se os ventos nos favorecem? - Luka expôs seu argumento para todo o grupo. - Vocês se importariam se os mares estivessem bravios ou se a viagem durasse mais alguns dias desde que os porões do shitik estivessem estourando de peles? Viemos até aqui tão longe apenas para voltar com menos do que poderíamos ter caçado se ficássemos mais algumas semanas? Pensem em quantas lontras e focas mais poderíamos matar em duas semanas. No mínimo cinquenta, talvez umas cem. Valem nove mil rublos no comércio chinês. Digo que vale a pena ficar.

- Eu concordo!

- Sim!

- Fiquemos!

- Luka Ivanovich está certo!

Um coro de vozes manifestou sua concordância. Luka sorriu ligeiramente, mostrando satisfação. Sabia que se Chuprov insistisse em levantar velas tão cedo, os promyshleniki votariam para tirá-lo da liderança.

- O que dizem os outros acampamentos? - desafiou Luka.

- Eles relutam em partir agora - admitiu Chuprov. Outro murmúrio de concordância ouviu-se entre os caçadores russos.

- Você é o peredovchik - disse Belyaev. - Ainda dá as ordens. Diga ao navegador quando deveremos partir para casa.

Chuprov correu os olhos pelo bando de caçadores e depois concordou com a opinião da maioria.

- Partiremos em meados de agosto. Não mais tarde.

O alto e constante zumbido das mangangás vinha de uma maciça touceira de acônito. As flores de um azul escuro balançavam-se ao vento e rivalizavam com o raro azul do céu. Cisne do Inverno não ligava para a planta altamente venenosa em sua procura de raízes comestíveis, mas não tinha o mesmo sucesso em não ligar para as aborrecidas dores que sentia nas costas. Quando se abaixou para pegar seu cesto, a primeira contração forte atacou-a. Passou rápido, mas ela sabia que sua hora chegara. Chamou Mulher Tecedeira, que apressou-se a vir para seu lado. Imediatamente começaram a voltar para a aldeia, caminhando devagar.

As contrações eram fortes e a espaços regulares quando lá chegaram. Florzinha, a viúva de Lâmpada de Pedra, parteira da aldeia, foi chamada, enquanto as outras mulheres ajudaram Cisne do Inverno a descer para dentro da barabara. Nenhuma mãe ou bebé jamais havia morrido quando Florzinha estava presente ao parto. Mesmo quando a criança se apresentava na posição errada, ela sabia o que fazer. Certa vez tinha aberto uma mulher, tirado o bebé de sua barriga, costurando-a de novo; ambos sobreviveram. Cisne do Inverno não tinha medo com Florzinha a assisti-la, nem mesmo quando as dores se tornaram tão fortes que ela pensava que a romperiam.

- A cabeça está saindo - assegurou Florzinha a Cisne do Inverno, que permanecia acocorada.

Então, também pôde sentir aquela vida saindo de dentro de si. Um sorriso de alegria e alívio veio a seus lábios quando, um momento mais tarde, ouviu o grito. Viu quando Florzinha passou a criança, vermelha e enrugada, para Mulher Tecedeira limpá-la.

- É uma menina - disse ela a Cisne do Inverno. - Forte como a mãe. Quando, momentos mais tarde, o bebé foi colocado em seus braços, amorosamente examinou-o. Um cabelo negro espesso e macio como penugem de pato cobria-lhe a cabeça. Sabia que a vermelhidão e as rugas logo desapareceriam. Inspecionou maravilhada a pequenina boca e o narizinho, e os dedinhos, cada um com uma unha perfeitamente formada. Os olhos, no entanto, eram redondos, como o do homem chamado Luka. Mas Cisne do Inverno não ligava para isso; tinha sorte em ter um dono tão bom, recordou-se. Ele a tratava bem e nunca a espancara com raiva, como alguns dos outros homens faziam com suas mulheres. Se algumas vezes seu coração ansiava por dias mais felizes, ela se lembrava de seu próprio erro ao falar contra a paz.

Mas, com aquela criança nos braços, sentia-se outra vez feliz. Estava contente por ser uma menina, embora soubesse que a aldeia necessitava de caçadores. Uma menina poderia ajudá-la em seu trabalho e compreender certas coisas que um menino nunca poderia. Uma filha era qualquer coisa muito especial.

O bebé contorceu-se e sua boquinha abriu-se como a de um passarinho no ninho. Cisne do Inverno guiou-a até o bico de seu seio. Enquanto o bebé mamava, Cisne do Inverno alisava com um dedo a penugem negra na cabecinha da filha.

Mais tarde, quando a criança adormecera, Mulher Tecedeira trouxe Empertigado para ver sua nova irmãzinha. Olhou incerto para o bebé no berço de madeira que Barbudo fizera. Uma pequena mãozinha agitou-se no ar; quando ele a tocou, os dedinhos enrolaram-se em volta de seu indicador. Seu sorriso de surpresa encheu-se de espanto. Cisne do Inverno olhava orgulhosa para seus dois belos filhos.

As nuvens estavam orladas de cor-de-rosa pelo crepúsculo quando Luka voltou de sua caçada. Procurou Cisne do Inverno com ligeira irritação, pois desejava alguma comida e uma caneca de raka - e talvez alguém que lhe esfregasse os músculos das costas; as mãos dela eram hábeis para aliviar o dolorido em suas costas.

- Cisne do Inverno teve criança - disse Barbudo.

Por um momento as palavras não fizeram sentido para ele. Depois, Luka olhou atoleimado para os sorridentes olhos do aleúte. Seu filho tinha nascido. Tentou pensar no que isto significava, mas subitamente viu-se rodeado pelos promyshleniki do acampamento, suas quentes vozes bombardeando-o com congratulações que às vezes eram indecentes e às vezes brincalhonas. Batiam-lhe nas costas e depois, aos risos, empurraram-no em direção à bambara. A princípio Luka sentiu-se um pouco sem jeito, mas quando subia o teto da habitação havia uma certa leveza em seus passos. Tinha apenas ligeira consciência dos homens que o seguiam para dar uma olhada na criança recém-nascida com apenas algumas horas de vida.

No meio da escada ele viu Cisne do Inverno sentada ao lado do berço, as pernas encolhidas por debaixo da parka, apenas um pé descalço aparecendo. Sua cabeça estava voltada para a criança que ele ainda não via, com o brilho da lâmpada se refletindo em seus cabelos. Tal visão despertou uma imagem em sua mente: a do ícone da Virgem na igreja. Ela olhou para cima e a ilusão desvaneceu-se com a realidade dos botoques debaixo dos cantos de sua boca.

Movendo-se rapidamente, Luka cruzou o cómodo até o berço e ajoelhou-se para olhar o filho pela primeira vez. A criaturinha parecia tão pequena ali deitada, fazendo caretas em seu sono; não parecia nada com o que Luka esperara - de fato, ele era mesmo feio. Tocando-o, Luka esfregou as pontas dos dedos por cima da massa de cabelo que lhe cobria a cabeça, negro como a noite e macio como um peito de ganso. A testa do bebé franziu-se.

- Como se sente sendo pai, Luka Ivanovich? - os lábios de Belyaev abriram-se num sorriso que mostrava o espaço existente entre os dentes da frente.

Luka levantou-se, agigantando-se ao lado do berço.

- Ele um dia será um belo caçador - disse ele, falando asperamente para não parecer comovido, e depois recuando para que os camaradas pudessem ver seu filho.

- Não caçador - disse Cisne do Inverno, e levantou a coberta para mostrar o púbis liso do bebé. - Menina!

Um duro desapontamento seguiu-se ao choque inicial da descoberta.

nunca pensara que a criança pudesse ser outra coisa que não um menino. O riso zombeteiro dos promyshleniki aumentaram sua mortificação. Para que servia uma menina?, pensou ele, desgostoso.

-Como vai chamar-se sua filha? - o zombeteiro Belyaev queria saber. Quando Luka lançou-lhe um olhar irritado, o homem sorriu: Vamos lá, Luka Ivanovich, a criança precisa ter um nome!

Ele hesitou, mas se não a chamasse de alguma coisa, os homens nunca o deixariam em paz.

- Tasha. - Era um nome bastante comum. - Tasha Lukyevna completou ele, com isto dando à menina a situação legal de sua filha.

- Tasha - Cisne do Inverno experimentou o som do nome, depois baixou os olhos para sua filha e delicadamente baixou a coberta em volta dela. - Tasha - murmurou.

 

O continuado bom tempo e as boas caçadas provocaram um segundo adiamento da partida do shitik da ilha de Attu. Foi só no fim de agosto que os promyshleniki começaram a carregar sua grande safra de peles no grande baldar para serem transportadas para o acampamento-base.

Durante toda a semana, Cisne do Inverno ouviu-os falar de partida e observou quando eles transportavam os fardos de peles para o baidar. No meio da confusão e do barulho na barabara, ela permanecia com sua filha Tasha nos braços e segurando o filho pela mão a fim de mantê-lo a seu lado. Em volta dela, por toda parte, os homens vasculhavam todos os compartimentos, reunindo seus pertences e fazendo fardos com eles.

Observou quando Luka amarrou sua bagagem e ficou esperando incerta por alguma decisão sobre eles. Ela era sua escrava; com certeza ele iria levá-la para sua aldeia do outro lado das águas. Mas ele não lhe dissera para arrumar suas coisas; Cisne do Inverno receou subitamente que ele a pusesse no baidar sem nada do que era propriedade dela. Não podia suportar a ideia de deixar tudo para trás; andando ligeiro, colocou Tasha no berço e começou a ajuntar as coisas essenciais - seu cestinho de agulhas, suas facas curvas para escamar e limpar, uma cavadeira de raízes e alguns outros artigos.

Quando passou por Luka, procurando sua melhor parka e a sacola com as coisas mais valiosas, ele segurou-lhe o braço e perguntou:

- O que você está fazendo?

- Vamos para sua aldeia - disse ela, e então viu-o franzir a testa, surpreendido. - Você vai nos levar?

- Não - disse ele, baixando a cabeça para evitar seu olhar, enquanto rapidamente acabava de amarrar sua trouxa. - Você ficará aqui; não há espaço para vocês no barco.

Ela voltou a acocorar-se, atónita.

Mais tarde, ficou na praia com as outras mulheres e crianças

observando Barbudo e os três outros aleútes, os únicos homens adultos que restavam na aldeia, empurrarem o baldar pesadamente carregado para água mais profunda. O vento soprava a chuva fina como uma cerração contra seu rosto obscurecendo-lhe a visão do barco cheio de gente.

Quando o baldar se dirigiu para o mar alto, Cisne do Inverno compreendeu que a aldeia estava livre; seus amos estavam partindo. Mas a reanimação de seu espírito não durou, substituída por uma sensação de abandono. Estavam livres, mas como viveriam com apenas quatro homens para caçar e prover o sustento de uma aldeia inteira? Preocupada, apertou o bebé mais fortemente de encontro a si.

Quando os promyshlenik acabaram de reunir-se no acampamento-base, de reparar os danos causados no shitik pelo inverno, de reunir provisões para a viagem de volta, de lançar na água a embarcação e de carregar suas preciosas peles, duas semanas haviam-se passado. Em meados de setembro, eles suspenderam sua nova âncora de madeira, abriram as velas de couro de renas presas às vergas dos mastros gémeos do shitik e rumaram para a Rússia. O jovem refém que ficara órfão acompanhou-os, agora tutelado do navegador Nevodchikov, que se tornara muito afeiçoado ao rapaz nativo.

Pesadas nuvens cinzentas escondiam os picos vulcânicos da ilha e bravias ondas fustigavam sua costa rochosa. Luka postou-se próximo à popa do barco de fundo chato e observou a ilha se tornar cada vez menor. com seus pés afastados para equilibrar-se, balançava-se com o jogo do shitik à medida que esse cavalgava as ondas do oceano.

Belyaev aproximou-se, cruzando o convés movediço em direção à popa.

- Quanto acha que valem nossas peles, Luka Ivanovich? - Isso era uma questão de constante especulação entre eles.

- Eu diria uns cem mil rublos. - Ele duvidava que o preço de uma pele tivesse variado muito durante o ano que passaram fora.

- O que vai fazer com sua parte? - Todos faziam planos sobre como iriam gastar sua fortuna, desde coisas práticas até desperdícios. Era uma maneira de passar o tempo. A maioria deles, suspeitava Luka, iria acabar jogando e bebendo, desperdiçando assim sua parte. Havia poucos luxos para um homem gastar seu dinheiro nas tristes e isoladas cidades da Sibéria. Quem conseguia fortuna em geral ia embora; aqueles que ficavam, raramente conservavam a fortuna obtida.

- Eu não vou perdê-la jogando cartas numa taverna - afirmou Luka.

Belyaev riu-se; todos diziam isso.

- Então o que vai fazer?

Mantendo os olhos fixos na direção da ilha, Luka observou uma lontra-do-mar a cautelosa distância, sua cabeça à flor d'água como uma rolha flutuando.

- Talvez eu volte - respondeu ele. - Talvez use meu dinheiro para construir um barco próprio e financiar outra expedição a essas ilhas.

O lucro de tal empreendimento seria fabuloso, julgava ele. Havia tantas lontras vivendo naquelas águas que ele poderia voltar vezes sem fim.

- Foi bom na ilha, com muitos animais de pele. E as mulheres também não eram lá tão ruins, hem? - Belyaev abriu seu sorriso e deu uma palmada nas costas de Luka.

A boca de Luka torceu-se enquanto pensava na alta e elegante Cisne do Inverno. Lamentou que a criança não tivesse sido um menino.

Todos sabiam desde o começo da viagem que a demora em partir significava que encontrariam condições adversas. No segundo dia da viagem o mar engrossou e o tempo enfeou, com o vento açoitando o barco. E tais condições nunca melhoraram durante todo o percurso.

Lá pela quarta semana o suprimento de água reduzia-se ao que podiam juntar da chuva e a comida estava quase esgotada. Gengivas começaram a sangrar e o hálito dos homens começou a tornar-se fétido à medida que enfraqueciam com o escorbuto. E começavam a temer que tivessem partido tarde demais.

O shitik bateu-se contra as ondas e os ventos adversos por duas semanas mais, sofrendo muito, enquanto os homens lutavam para mantê-lo flutuando, remendando as velas rasgadas, escorando os mastros, reparando as rachaduras do casco e rezando para que sua sorte não tivesse terminado. Ninguém trabalhava mais duro que Luka.

Dobrado em dois para enfrentar o violento jogo do barco, ele chegou-se aos dois caçadores que guarneciam a bomba e bateu no ombro do mais próximo para tomar seu lugar. Embora os homens fossem rendidos frequentemente, eles apenas conseguiam manter-se à frente da constante invasão da água.

Ouviu-se um grito surdo no convés superior; um momento mais tarde, um homem gritou para baixo pela escotilha, sua voz crescendo numa nota de histérica alegria:

- Terra! Terra!

Até aquele momento Luka não sentira quão próximo estava de perder as esperanças. Agora esse sentimento cresceu dentro dele, dando-lhe a força de dez homens e fazendo-o esquecer a dor de sua boca sanguinolenta.

Abandonou seu posto na bomba e subiu aos pulos a escada da escotilha para ver com os próprios olhos.

Uma onda varreu o convés do shitik, quase atirando Luka pela borda quando ele surgiu do porão. Agarrou-se ao parapeito, a água encharcando seu corpo e correndo-lhe do cabelo e da barba. Um canto de uma vela soltou-se, rompendo a tira de couro que o segurava, e batia-se ao vento. Piscando para livrar-se da água salgada que fazia arder seus lábios, Luka olhou para o horizonte. A princípio viu apenas um amontoado de nuvens negras. O shitik jogou violentamente quando a próxima onda arrebentou em cima do convés, novamente encharcando-o. Aquilo era terra e não nuvens, compreendeu ele.

- Kamchatka! Aquilo deve ser o Kamchatka! Vamos conseguir! - gritou ele, exuberante, e jogou para trás sua cabeça emitindo um grito selvagem, sem ligar para a próxima onda que o engolfava.

A vela de vante soltou-se de sua escota e começou a debater-se presa à verga, como a asa quebrada de um pássaro. Os homens correram como loucos para agarrá-la, antes que o vento a soltasse por completo. Luka recuperou seu bom senso e juntou-se a eles para segurarem a pesada peça de couro molhado e amarrá-la. Ainda tinham que chegar à terra, embora a tempestade estivesse empurrando o barco desarvorado em sua direção.

Com suas velas quadradas, o shitik não era fácil de manobrar com bom tempo; numa tempestade ele era quase incontrolável. À medida que o barco se aproximava da costa, Luka podia ouvir o bramido das ondas estourando. De vez em quando podia ver a espuma que subia como plumas, quando rochas pontiagudas quebravam prematuramente a força dos vagalhões, fazendo-os voltar-se sobre si mesmos. O barco de fundo chato lutava para manter um curso afastado de terra mas não era páreo para a força do mar e cada vez mais se aproximava da costa.

Luka avistou a ponta afiada de uma pedra negra e brilhante emergindo das ondas e gritou um aviso para o navegador. O shitik gemeu ao tentar obedecer ao comando do leme, sua proa afastando-se ligeiramente da pedra, mas não o suficiente. Um segundo mais tarde veio um raspão mortal, seguido pelo barulho da madeira estilhaçada. Depois o shitik deu uma violenta sacudidela e parou bruscamente, quando parte de seu ma deirame cedeu e abriu-se por completo. O impacto fez Luka cair de joelhos.

- Arriem o escaler pelo lado! Ele vai afundar! - gritou alguém. Houve uma louca corrida para abandonar o barco quando a água do mar penetrou pelo rasgão aberto no casco. Luka forçou sua passagem por entre a massa de homens. Quando Shekhurdin tentou passar por ele, empurrando-o para alcançar o bote, Luka agarrou-o.

- As peles! Temos que salvar as peles!

- Você salva as peles, Kharakov! - rosnou o cossaco. - Prefiro salvar a minha pele!

Deixando-o passar, Luka olhou para a massa em pânico correndo para a amurada.

- Belyaev! - gritou para o promyshlenik de barbas negras. - As peles! Precisamos levá-las para o escaler.

O robusto caçador, que estava ao lado da amurada, hesitou e depois afastou-se dela para chegar-se a Luka.

- Rápido! Temos de agir depressa! - apressou-o ele.

Abriram a escotilha do porão de carga. Luka pulou para dentro do porão alagado e começou a atirar os fardos de peles pela escotilha para Belyaev. Trabalhavam febrilmente, escutando cada grunhido do agonizante shitik. Cada fardo que caía no convés era agarrado por Belyaev e jogado para o barco amarrado ao lado, enquanto os homens pulavam por sobre a amurada e lançavam-se nas águas agitadas a fim de nadar para a praia, a trinta metros de distância. As ondas continuavam a martelar de encontro à rocha o shitik empalado na pedra negra.

Dentro do porão, Luka andou meio afundado na água salgada e fria, pegou outro fardo de peles de um monte e recuou em direção à escotilha. Ouviu o alto e horrível barulho das madeiras rachadas e sentiu o casco mover-se debaixo dos pés quando jogou as peles pela abertura. Belyaev apareceu na escotilha e gritou-lhe:

- Chega! Saia daí agora! - Fez sinais apressados para Luka deixar o resto das peles. - O barco está se soltando. Eles não vão esperar!

- E Belyaev desapareceu de sua vista.

Luka deu um passo para segui-lo, depois hesitou, voltou para mais um fardo de peles. Uma enorme onda atingiu o shitik, quebrando-o em dois como um galho é quebrado no joelho de um homem.

Belyaev pulou da amurada, mergulhando. Voltou rapidamente à superfície e nadou para o escaler; alguém atirou-lhe um cabo, ele agarrou-o e enrolou-o em volta do pulso e se firmou quando o puxaram para dentro do escaler.

Depois que foi içado para bordo, um promyshlenik perguntou:

- Onde está Kharakov?

- Ali! - Arquejando, Belyaev apontou para onde estivera o shitik, mas nada restava dele, apenas boiavam alguns pedaços dos destroços que se soltaram da embarcação antes que afundasse.

 

Durante cinco verões, não vieram mais barcos estranhos para a ilha de Attu, e os aleútes viveram como sempre haviam vivido, enquanto sua irmã, a lontra-do-mar, brincava nas águas, raramente molestada. Às vezes, numa longa noite de inverno, um contador de histórias contava sobre a época em que os homens barbados tinham estado na sua ilha. E em quase todas as barabaras havia crianças de olhos arredondados como uma prova da visita deles.

Então, um outro barco chegou a Attu, cheio de homens que falavam a mesma língua que os primeiros visitantes. Cossacos, eles eram chamados. Disseram aos caçadores aleútes que eles tinham de pagar tributo à grande e poderosa mulher que governava do outro lado das águas e que esse tributo seria sob a forma de uma certa quantidade de peles de lontra. Também prometeram trocar coisas de ferro por peles. Mas quando os aleútes saíam para caçar, os cossacos tomavam liberdades com as mulheres deles.

Em breve, outros barcos vieram. Um partia e outro chegava para tomar seu lugar. Alguns tratavam bem os aleútes, outros não, mas qualquer oposição era rápida e brutalmente reprimida.

Dez verões após a chegada do primeiro barco, chegou um que se parecia com todos os que haviam abordado a ilha. Mas o homem que o comandava era diferente. Seu nome era Andrei Nikolaivich Tolstykh. Tinha os olhos da cor do céu quando as nuvens não o encobriam. Não usava as grosseiras roupagens dos cossacos; suas roupas eram de um feitio diferente e feitas de fazenda mais fina. Em seu dedo havia um anel com a gravura de uma águia de duas cabeças.

Era no entanto mais do que sua aparência que fazia esse cossaco, Andrei Nikolaivich Tolstykh, diferente dos outros que haviam abordado aquele lugar agora chamado de baía do Massacre. Ele tratava bem os aleútes e punia qualquer um de seus homens que tentasse enganá-los. Pagava os nativos que caçavam para ele e trocava ferro por peles de lontra. Entre as crianças que haviam sido colocadas sob sua proteção estavam Empertigado e sua meia-irmã, Tasha. Eles eram tratados com bondade e aprenderam a falar a língua dos cossacos. Alguns líderes haviam prometido antes a outros nativos que lhes ensinariam sua língua, entretanto raramente alguém aprendera mais do que um punhado de palavras.

Os aleútes da baía do Massacre souberam por Andrei Nikolavich Tolstykh que a grande mulher governante de seu país ficara grandemente aborrecida quando soube dos assassinatos cometidos pelos primeiros cossacos que vieram a Attu, e que os culpados haviam sido punidos por seus crimes. Ele os instruiu a procurarem-no sempre que algum de seus homens abusasse deles ou os tratasse mal, e ele cuidaria para que fossem punidos.

Os aleútes caçavam muito para ele por causa disso. E havia paz na ilha. Ficaram tristes quando o barco dele içou as velas no verão seguinte, carregado com mais de cinco mil peles de lontra. Tasha também ficou triste de vê-lo partir, mas os cossacos sempre partiam; muitos diziam que voltariam, mas poucos o faziam.

Como sempre, mais cossacos chegaram para tomar o lugar daqueles que se foram. E assim tudo continuou...

Desde que Tasha podia lembrar-se, sempre houvera cossacos na ilha, embora sua mãe lhe falasse sobre os dias em que não era assim. Ela ouviu muitas vezes a história da morte de Homem Forte, que era o pai de seu meio-irmão, Empertigado. Às vezes pensava que os cossacos que mataram Homem Forte deveriam ser diferentes de muitos que ela conhecia. Admitia que alguns tapeavam os caçadores aleútes e que outros batiam nas mulheres, mas eles sempre tinham sido bondosos para ela e fascinados pelos seus negros olhos redondos, embora ligeiramente oblíquos. Lembrava-se deles brincando e rindo com ela, deixando-a correr atrás deles ou fingir que lhes servia comida. E sua lembrança era iluminada pelo homem chamado Andrei.

Eles diziam que ela era mestiça - metade cossaca e metade aleúte. Agora, com quinze verões, ela era alta como a mãe, possuindo os mesmos fortes malares e a macia pele. Mas o rosto era mais fino. Junto aos cantos dos lábios havia duas ténues cicatrizes onde colocaram botoques quando era criança; há muito, muito tempo, um cossaco insistira com sua mãe, Cisne do Inverno, que os removesse e deixasse a pele crescer novamente.

Tasha entrou na aldeia carregando um cesto cheio de ouriços-do-mar que colhera com a maré baixa. Um grupo de cossacos matava o tempo do lado de fora de uma barabara que haviam construído, com uma abertura de lado em vez de ser no topo. Eles viram-na chegar e voltaram-se para observá-la.

- O que tem no cesto, Tasha? - perguntou um deles.

- Ouriços; novos e bem tenrinhos - respondeu ela.

- É assim que gosta deles, Fedor Petrovich? Jovens e tenros? Um outro riu-se e cutucou o cossaco que olhava para ela tão atentamente. Aquele a quem chamaram de Fedor livrou-se deles com um safanão.

Tasha caminhou até sua barabara. Ela sabia do interesse que Fedor tinha por ela; até agora ele não lhe havia oferecido presentes, mas esperava que em breve o fizesse. Já tinha idade para aceitar um marido.

- Por que você fala com esses cossacos? - A súbita pergunta de seu meio-irmão, Empertigado, pegou-a de surpresa. Não havia reparado nele recostado no lado da barabara abrigado do vento.

- Eles me fizeram uma pergunta e eu respondi - replicou.

Empertigado ficou de pé num movimento rápido e elegante. A orgulhosa e ereta postura que o marcara como adolescente caracterizava-o como um homem adulto de 21 verões. Por debaixo da roupa de couro de pássaros, seus músculos do peito e dos ombros eram muito desenvolvidos como resultado de suas longas horas como caçador remando em sua bidarka no mar. O cabelo liso e negro, brilhante como a asa de um corvo, descia até a gola alta de suaparka, emoldurando o rosto queimado e de malares salientes. Tinha também os olhos argutos de um caçador, e observava todos os detalhes, inclusive os cobiçosos olhares que os cossacos lançavam sobre sua irmã. Essa era mais uma das razões pelas quais ele se ressentia dos estrangeiros. Eles estavam sempre tirando alguma coisa dos aleútes. Cheio do orgulho de um jovem, ele se ofendia com as ações deles e não podia compreender por que seu povo os aceitava tão submissamente.

- Você fala demais com eles, Tasha. - Ele seguiu atrás dela enquanto a irmã caminhava ao longo das armações onde secavam salmões.

- Eles são meus amigos. - Ela parou junto à mãe e sua companheira de cabelos brancos, Mulher Tecedeira. As duas estavam ocupadas alisando os couros de dois corvos marinhos com uma raspadeira de pedra, tomando cuidado para não danificar as penas do outro lado. Os couros eram para uma nova parka e a vestimenta destinava-se a um cossaco. Ao saber disso, Empertigado irritou-se ainda mais.

- Eles não são nossos amigos. Veja como nossa mãe trabalha para eles. - Sentiu o olhar que a mãe lhe lançava, mas evitou-o por sabê-lo repreensivo.

- Eles pagam a ela por isso - disse Tasha e sentou-se no chão ao lado das mulheres a fim de começar a limpar os ouriços e remover a tenra carne de dentro deles.

- Talvez eles paguem. Eles me disseram que me dariam um pedaço de ferro por dez peles de lontra. Cacei toda a semana, mas quando lhes trouxe hoje as dez peles, eles se recusaram a entregar-me o ferro. Dizem que queriam doze. - Suas mandíbulas se enrijeciam ao evocar o incidente. - Ficaram com minhas peles e depois me disseram que eu deveria trazer mais doze para ter o ferro. Quando tentei explicar a eles que precisava trazer apenas mais duas, eles riram de mim; disseram que eu deveria ter as doze de uma vez. Agora eles têm minhas peles e o ferro; me enganaram e nada posso fazer.

- Nem todos os cossacos são assim - assegurou-lhe Tasha. Lembra-se de Andrei Tolstykh? Ele era honesto.

- Ele coletava tributos - replicou Empertigado. - Por que deveríamos dar peles a uma mulher governante que vive lá longe, do outro lado das águas? Eles dizem que, se o fizermos, ela nos protegerá. Digo que é um outro truque para roubar nossas peles.

- É o modo deles viverem - interveio sua mãe, Cisne do Inverno, com sua voz macia, tentando acalmá-lo. - Devemos respeitá-lo.

Empertigado voltou-se para ela, depois ficou um instante parado a observar os fios de cabelos brancos em sua cabeça. Às vezes doía-lhe o fato dela não poder entender seu ressentimento dos cossacos. No entanto, em sua mente sempre soavam as palavras do contador de histórias ao recordar a grande força de seu pai e o dia da grande batalha, quando Homem Forte tinha dobrado o pau de fogo do cossaco somente com a força de suas mãos nuas. Seu pai morrera resistindo aos cossacos. Empertigado orgulhava-se disso. A mãe, no entanto, só se lembrava daquele tempo com tristeza. Ele não desejava feri-la mais com seu ódio aos cossacos, mas precisava dizer o que acreditava se queria honrar a memória de seu pai.

Em consideração a ela, ele temperou suas palavras.

- Não podemos respeitar os hábitos deles e ainda assim respeitar a nós mesmos? Nosso povo vivia nesta ilha muito antes de eles virem. Deveríamos expulsá-los.

- Nós sempre demos boas-vindas aos visitantes - lembrou-lhe a mãe.

- Mesmo os visitantes que roubam de nós? - desafiou-a Empertigado. - Dançarino pegou um colar de contas e o chicotearam até que as costas dele ficaram em carne viva. Por que permitimos que eles tirem o que é nosso?

- Não adianta punir alguém pelo que fez de errado - disse ela, sacudindo vigorosamente a cabeça. - Isso não devolve a paz.

- Sei que não é hábito de nosso povo punir um homem por apenas um único erro. Mas se ele continua a repetir o mal feito, então algo se faz para impedi-lo - disse enquanto sua mãe baixava a cabeça, admitindo com seu silêncio que ele estava certo. - Deveríamos punir os cossacos por seus delitos.

Cisne do Inverno fez uma pausa em seu trabalho, segurando a pedrapome na mão.

- Os cossacos são muito numerosos, eles são fortes demais. Não temos armas comparáveis ao pau de fogo que eles chamam de mosquetão. Devemos manter a paz.

- Se tivéssemos os mosquetões deles poderíamos enfrentá-los. Sei como fazê-lo lançar as balas redondas. Observei-os muitas vezes e vi que quantidade de pólvora negra eles usam para fazer o mosquetão disparar.

- Eles nunca permitirão que você possua um - declarou Tasha.

- Não importa quantas peles de lontra você lhes ofereça, eles não trocariam um mosquetão por elas. Já vi outros tentarem.

- Um dia terei um - replicou Empertigado, sabendo que ela dissera a verdade.

- Não faça nada de tolo, meu filho - disse Cisne do Inverno, olhando-o preocupada.

Era inútil argumentar, ele compreendia; uma mulher não sentia em seu coração as coisas que ele sentia.

- Não - disse afinal.

Seus olhos de caçador foram atraídos para o mar. Um par de velas quebrava a fina linha do horizonte. Empertigado enrijeceu-se, lamentando a presença de mais um barco de cossacos em suas águas. Ficou observando o barco entrar na baía.

- Estão chegando outros. Quando irão parar? - perguntou, espantado.

Outras pessoas na aldeia observaram o shitik entrando na baía. A curiosidade e o hábito de dar boas-vindas aos visitantes da ilha levou tanto os cossacos quanto os aleútes para a praia. As peles de corvos marinhos e os ouriços foram postos de lado por algum tempo, enquanto Tasha corria na frente, ao passo que Empertigado ficava para trás com sua mãe e a velha e vagarosa Mulher Tecedeira.

Tasha observou as velas sendo arriadas e viu o espadanar de uma âncora lançada à água. Logo um escaler foi baixado e vários cossacos embarcaram nele, remando em direção à praia. O homem sentado à proa parecia vagamente familiar a Tasha. Ela olhou-o atentamente quando o barco se aproximou da praia. Havia algo em suas feições angulares e em seu queixo imberbe que mexia-lhe com a memória; mas as manchas prateadas laterais em seu cabelo castanho eram nítidas, e ela não se lembrava de haver visto antes um homem com cabelo assim.

Quando o barco aproou no raso, dois cossacos pularam na água e, com o auxílio de dois aleútes, encalharam-no na areia. Pessoas metiam-se na frente, tornando difícil a Tasha olhar bem para o homem; ele ficou de pé por alguns momentos, destacando-se sobre as cabeças dos outros, e Tasha notou seus olhos: azuis como o céu.

- Olhe! - disse ela e movimentou-se depressa por entre a multidão para o lado da mãe. - Veja quem é! Andrei Tolstykh! Ele voltou!

Incapaz de conter a excitação, ela correu para a frente e infiltrou-se por entre a multidão, até que chegou ao círculo interior dos observadores. Exceto pelo cinzento-prateado como as asas de uma gaivota em seu cabelo, Andrei Tolstykh pouco mudara nos cinco verões desde que ela o vira pela última vez. Ele era alto e magro, nem chegando perto da musculatura de um aleúte. Vestia-se de modo diferente; em vez das capas, chapéus com orelhas e calças dos outros caçadores cossacos, usava um casaco curto de abas quadradas e abotoado no peito, com culotes apertados que destacavam os músculos das pernas. Havia um tranquilo vigor em sua pessoa e uma calma que se tornava aparente agora quando ele se adiantou para cumprimentar a gente da aldeia.

- Onde está seu chefe? - perguntou ele em aleúte.

- Morreu há dois verões - respondeu Barbudo. - Meu nome é Barbudo; sou agora o chefe da aldeia.

Tolstykh passou a falar em língua cossaca:

- Ele era um bom amigo meu. Lastimo saber que não está mais conosco. Há cinco anos ele me deu permissão para caçar em Attu. Juntos conhecemos a paz.

- Lembro de você, Andrei Tolstykh - disse Barbudo, balançando a cabeça. - Viveu em paz conosco e fez trocas justas com nossas peles.

- Voltei à ilha a fim de pedir permissão para caçar, de forma que possamos mais uma vez viver em paz e camaradagem.

- Não posso lhe dar licença para caçar; já há três barcos de cossacos em Attu; não há espaço para outros. Deve ir para outra ilha.

Tasha ficou desanimada com o pronunciamento de Barbudo. Ela sabia que Empertigado muitas vezes se queixara de quão mais difícil se tornara encontrar e caçar o número cada vez menor de lontras-do-mar. Mais caçadores significava que haveria ainda mais competição. Mesmo sabendo disso, não diminuía seu desapontamento por Barbudo mandar embora o cossaco que outrora fora tão bom para ela.

Embora Andrei Tolstykh apelasse da decisão, Barbudo permaneceu irredutível.

- Permitiria que ancorássemos na baía por alguns dias? - perguntou então Andrei. - Meus homens estão cansados depois de nossa longa viagem por mar e precisam descansar. Nosso suprimento de alimentos e água doce está baixo; se tivermos que continuar até outra ilha, precisamos renová-lo.

- Podem ficar e reunir alimentos; mas não permito que cacem reafirmou Barbudo.

- Por favor, aceite estes presentes que lhes trouxemos, como sinal de minha boa vontade... - Andrei fez um sinal para os homens trazerem os presentes.

Além da grande chaleira de ferro fundido e das botas de couro de cabra para Barbudo, havia fazenda suficiente para cada aleúte fazer duas camisas, sete quilos de farinha de centeio, agulhas, quatro casacões pesados, luvas quentes para inverno e leves para o verão e um cinturão para cada homem da aldeia.

Tal generosidade da parte dos cossacos não era comum; quando um pedido era recusado, os presentes costumavam ser recolhidos. Barbudo ficou sensibilizado pelo gesto. Tasha desejava que ele pudesse mandar um dos navios embora e permitir que Andrei Tolstykh ficasse, mas a permissão já fora concedida aos outros e não poderia ser revogada.

- Lamento não poder falar bem sua língua. Infelizmente nenhum de meus homens o faz. Mas como iremos viajar para uma ilha onde os nativos também não conhecem nossa língua, vou precisar de intérpretes. Talvez permitisse que dois ou três de seus homens nos acompanhassem e traduzissem nossas palavras para seus vizinhos.

- Considerarei seu pedido - respondeu Barbudo cautelosamente.

- Queremos que os nativos saibam que viemos em paz, para negociar e caçar com eles. Intérpretes nos serão de grande ajuda. - Andrei Tolstykh inclinou a cabeça. - Esperarei por sua resposta. Enquanto isso, voltarei para meu navio e mandarei alguns de meus homens para trazerem água.

- Eu o convido a ir até minha barabara, de forma a podermos celebrar o retorno de Andrei Tolstykh. - A oferta de hospitalidade era obrigação do chefe da aldeia. - Farei com que minhas mulheres preparem comida. Haverá danças e cantos.

- Fico muito honrado - disse Andrei com ligeira mesura. Quando Barbudo voltou-se para escoltar Andrei Tolstykh até a habitação comunal da família, Cisne do Inverno falou no ouvido de Tasha:

- Vamos, temos muito que fazer.

- Quero falar com ele - replicou ela, cheia de animação. Tasha escapou antes que sua mãe pudesse objetar. Ela apressou-se

a colocar-se no caminho de Tolstykh e esperou até que ele a notasse. Quando isso aconteceu, ela fez uma cortesia do modo como lhe fora ensinado:

- Bem-vindo a Attu, Andrei Tolstykh.

Espantado com a visão daquela excepcionalmente bela e incomum mulher nativa, Andrei Nikolaivich Tolstykh parou para admirá-la. Vendo aqueles olhos negros e redondos e aquele rosto afilado, ele concluiu que ela deveria ser mestiça. Decorreram alguns segundos antes que notasse que ela falara em russo. Olhou de novo para a parka nativa de pele de foca debruada de lontra, para os pés descalços e o cabelo de um negro brilhante puxado para trás num coque à moda nativa. Era sem dúvida uma mestiça, obviamente exibindo o melhor de ambas as raças, concluiu Andrei.

- Não se lembra de mim? - perguntou ela, ansiosa. Franzindo a testa, ele voltou a examinar-lhe o rosto. - Sou Tasha. - Meteu a mão dentro da gola da parka e puxou um colar com uma cruz de prata de desenho ortodoxo. - O senhor me deu isso...

- Tasha! - repetiu ele, incrédulo. A esplêndida criatura era a menina magricela de olhos enormes que havia sido uma de suas reféns há cinco anos. - Você cresceu tanto que não a reconheci. É uma bonita mulher.

Ficou maravilhado com a transformação. Sua aparência tinha sempre sido fora do comum e vagamente atraente, com sua incomparável cútis, cabelos e olhos de um negro profundo. Andrei notou como seus olhos eram expressivos, no momento apresentando uma animação que seu rosto não demonstrava.

- Fico contente que se lembre de mim.

- Como poderia alguém esquecer de você, Tasha? - Quanto mais ele olhava para ela, mais se fazia essa pergunta. Havia algo um tanto exótico nos seus olhos com formato de amêndoas e em seus malares salientes. Nenhum homem podia olhar para ela sem ficar excitado por aquela mistura do selvagem com o civilizado. Ele já passara dos quarenta anos, mas não estava tão velho que não sentisse um assomo de luxúria. - Que idade tem você agora, Tasha? Quinze?

- Sim.

- Deve ter um marido.

- Não. Na ilha há poucos homens com quem me possa casar. E os homens das ilhas vizinhas raramente vêm visitar-nos, porque os cossacos estão sempre por aqui.

- Você encontrará um marido - afirmou Andrei, confiante.

- Devo ir-me agora - disse ela, começando a retirar-se. - Há muitos preparativos a fazer para a festa de boas-vindas.

Observou-a deslizar rapidamente em direção à aldeia; depois virou-se relutante para juntar-se ao chefe nativo. Ele contara com a anterior boa vontade que estabelecera junto aos ilhéus de Attu para facilitar-lhe essa estada; agora tinha de viajar para outro território. Sabia como era valioso ter a cooperação dos nativos. De alguma forma precisava convencer este chefe a dar-lhe intérpretes aleútes como reféns, para ajudar a garantir a segurança e o sucesso da expedição.

No dia seguinte às celebrações, Tasha estava sentada no lado da barabara ao abrigo do vento e trabalhava num pequenino cesto, um cesto tão pequeno que cabia na palma de sua mão. Embora os dedos de Mulher Tecedeira tivessem perdido sua destreza para trabalho tão fino, ela orientava as mãos de Tasha. Longas tiras de capim estavam arrumadas num cesto raso. Cada uma delas tinha sido cuidadosamente secada para atingir uma nuança desejada, a quantidade de tempo de exposição ao sol variando, na dependência da cor mais clara ou mais escura procurada. Tasha escolheu uma tira da pilha. com as unhas que eram deixadas crescer especialmente para esse propósito, ela com todo cuidado dividiu a lâmina de capim no sentido do comprimento obtendo uma tira fininha, quase tão fina quanto uma linha. Quando mergulhava o capim para torná-lo flexível, ela levantou os olhos para a mãe, que estava ocupada costurando as peles de corvos marinhos para fazer uma parka.

- Gosto de Andrei Tolstykh; ele é um bom homem - disse Tasha.

- Não seja tola! - A inesperada denúncia veio "de Empertigado, que ficou de pé, abandonando seu posto de observação a meia altura da cobertura curva da barabara.

Tasha começou a justificar sua afirmação e olhou para o irmão. Ele ainda estava curando as feridas à sua honra causadas no último encontro com os cossacos. Sua mente era determinada contra eles; era inútil discutir. Tasha tinha sua própria opinião. Voltando sua atenção para o cesto, declarou com firmeza:

- Eu gostaria que Barbudo tivesse dado a Andrei Tolstykh permissão para caçar.

- Meu desejo é que ele mandasse embora todos os barcos, que fizesse todos os cossacos partirem - replicou seu irmão e encaminhou-se para a praia.

A atitude dele perturbava Tasha e levava-a a questionar sua própria opinião, mas era difícil odiar como Empertigado fazia quando ela não havia sofrido nenhuma injúria. Ela sabia que os cossacos tinham feito mal a seu irmão e a outros, no entanto, quando pensava em Andrei Tolstykh, ela sabia que ele não cometeria tais injustiças.

- Suas pernas são jovens, Tasha - disse Mulher Tecedeira numa voz que a idade tornara rouca.- Vá buscar minha pedra-pome de raspar; a pele ainda está muito áspera.

Com os dedos nodosos, ela apalpou a pele interna do corvo marinho, mas sua mão estacou em seu exame enquanto observava a jovem pôr de lado o cesto inacabado, com as longas tiras verticais de capim cor de creme penduradas como uma pesada franja. Sua atenção permaneceu com Tasha até que ela estava bem longe de seu local de trabalho e depois transferiu-se para Cisne do Inverno. As mãos dela doíam. Todos os dias tinha que enfiar agulhas em pontos especiais de seu corpo para aliviar a dor.

- Sou uma velha. Meus olhos viram muita coisa - declarou Mulher Tecedeira. - Quando olho para seu filho e sua filha, vejo surgir problemas... muitos problemas.

Cisne do Inverno hesitou antes de enfiar a agulha na pele do corvo marinho e perguntou:

- Por que diz isso?

- No coração de seu filho há ódio contra o cossaco.

- Empertigado não agirá como um tolo. Sabe que eles são muitos e muito fortes.

- Ele é jovem; não gosta que o façam de tolo e estúpido. - Mulher Tecedeira sacudiu devagar a cabeça. - Ele desafiará os cossacos.

Cisne do Inverno resistiu àquela ideia, sacudindo a cabeça.

- Ele sabe que o matarão.

- Homens moços não pensam em morrer; apenas os velhos sabem que a morte está sempre por perto. - Observou o rosto de Cisne do Inverno, que lhe dizia que não desejava falar mais disso, e que sua conversa tinha despertado pensamentos preocupantes. Respeitando seu desejo, Mulher Tecedeira prosseguiu em outra direção. - Você tem olhos, Cisne do Inverno. Tem visto como os cossacos olham para sua filha; é diferente do modo como olham para as outras mulheres. É por causa do redondo de seus olhos, creio. Eles ainda não a levaram para a cama, mas em breve a levarão para a bambara deles e a farão viver com eles.

- Os cossacos sempre pegam as mulheres. - Era apenas porque ela havia envelhecido que ninguém a queria agora. Ela conhecia a dor da experiência e não a desejava para sua filha; doía-lhe pensar naquilo.

- Não há nada que possamos fazer.

- O Homem de Olhos Azuis tem sido justo com os aleútes. Ele não nos engana. Ele não se apossa de nossos baidars e não deixa que façamos parkas sem nos pagar por elas. Ele tem tratado bem os aleútes que têm ficado com ele para aprender a língua dos cossacos.

- Isso é verdade - e Cisne do Inverno retomou a costura das peles.

- Eu o ouvi pedir a Barbudo para mandar aleútes no barco para falar por ele nas outras ilhas. Seria melhor se Tasha e Empertigado fossem juntos; os dois conhecem a língua cossaca.

- Os dois? - Cisne do Inverno não pôde conter o choque e o desânimo que sentiu com a sugestão. Ela desejava os filhos a seu lado, embora já fossem crescidos. Algum dia Tasha iria com seu marido para a aldeia dele, mas isso ainda ia demorar. - Não!

- Será melhor - insistiu Mulher Tecedeira.- Se Empertigado for bem tratado, sua raiva não será tão grande. Se ele tiver que encontrar uma esposa, precisará visitar as aldeias de outras ilhas.

- Poderá ser bom para Empertigado - a lógica da Mulher Tecedeira derrotava Cisne do Inverno - mas Tasha não precisa ir.

- Consulte seu coração. Pergunte a si mesma o que é melhor. Se Homem Forte vivesse, o que aconselharia ele?

- Não cabe a mim decidir - Cisne do Inverno refugiou-se nisso.

- Barbudo deve decidir se mandará alguém da aldeia com Olhos Azuis, e quem irá.

- Ele agora é seu marido; você pode falar com ele sobre isto. Fizemos muitos sacrifícios em prol da paz. Desta vez você pode escolher que sacrifício fazer. - Mulher Tecedeira examinou de novo as peles dos corvos marinhos e depois devolveu-as à pilha para serem usadas na parka.

- Já está bastante lisa para um cossaco. - Lutando com suas juntas endurecidas pela idade, ela se pôs de pé. - Meu corpo diz que está cansado e que necessita de repouso..

Com passos laboriosos, ela subiu a elevação da barabara até a entrada pelo teto, cruzando com Tasha no caminho. Em breve ela não poderia mais vencer a escada de tronco por seus próprios meios; em vez disso teria que fazê-lo nas costas de seu filho Barbudo. Certa vez a tarefa de carregá-la teria caído em seu anaaqisagh, Dardo Pequeno, mas há muito tempo ele partira com os primeiros cossacos para jamais retornar a Attu. Quase todas as vezes que um barco de cossacos deixava aquelas águas um, dois ou três aleútes iam a bordo, na maior parte crianças nascidas de mulheres com as quais os cossacos tinham coabitado durante sua estada na ilha. Mulher Tecedeira sabia que sua nora tivera a sorte de ter os filhos junto a ela todos esses verões. Agora era hora de deixá-los ir.

Mais de uma semana se passara desde que Andrei Nikolaivich Tolstykh ancorara seu barco, o Andreian i Natalia, na baía. A maior parte do tempo a Passara estudando o mapa daquelas ilhas, traçado pelo almirante Nagaiev baseado nos diários de Bering e Chirikov. Comerciante de profissão, tinha uma grande veia de jogador. Os lucros que se podia

ter e aventuras nessas ilhas eram tão grandes que eles mais do que compensavam os riscos em cruzar os tempestuosos mares. Ele, entretanto, fizera sua fortuna três vezes e ainda voltava - um jogador sentindo a necessidade de enfrentar a sorte mais uma vez.

Em retrospecto, Andrei estava quase contente que o chefe lhe houvesse negado permissão para caçar em Attu. Nestes últimos dias ele conversara com alguns cossacos na ilha e com alguns nativos. Embora a lontra-do-mar continuasse a povoar as águas de Attu, seu número havia diminuído e elas se tornaram mais ariscas, mergulhando ao primeiro vislumbre de uma embarcação. Quanto mais tempo olhava para o mapa da cadeia de ilha, mais forte se tornava seu anseio pelo desconhecido. A princípio ele fora forçado a olhar para leste, agora o fazia com interesse, recolhendo qualquer informação que podia dos nativos acerca das ilhas que ficavam para o nascente. Esses aleútes eram inveterados viajantes marítimos, remando a longas distâncias em suas bidarkas para visitar ou comerciar com as outras aldeias nas ilhas do arquipélago de mais de mil quilómetros de comprimento. A não ser que tivesse estado pessoalmente num lugar, um nativo não demonstrava nenhum conhecimento dele, nunca informando por ouvir dizer, um traço do seu caráter que Andrei achou decepcionante.

Consciente de que sua partida de Attu não poderia mais ser retardada, Andrei foi à terra procurar Barbudo e falar-lhe de novo sobre a questão dos intérpretes. O relacionamento existente entre os ilhéus tornava os reféns imperativos. Eles poderiam ser sua única esperança se encontrasse nativos hostis para leste, bem como seriam muito úteis como intérpretes.

Ao aproximar-se da barabara do chefe, Andrei observou a rapariga andando pelo prado batido de sol e colorido pelos tremoceiros em flor. Ela mantinha a cabeça ereta, o rosto virado para cima, para o raro sol. Andrei parou para apreciar a menina-moça mestiça; andando despreocupada, ela balançava a seu lado um cesto, seu rítmico movimento combinando com suas longas e graciosas passadas.

O colorido lenço de seda que ele tencionara dar-lhe como presente estava guardado dentro de sua jaqueta. Ele o vinha carregando há vários dias, planejando dá-lo a ela cada vez que vinha a terra, mas assuntos mais importantes de sua expedição sempre o haviam ocupado. Agora ele ficava a cismar como podia tê-la deixado escapar de sua lembrança.

Fez um sinal aos dois promyshleniki que o acompanhavam a permanecerem onde estavam e caminhou sozinho ao encontro dela. Observou como a expressão da jovem se iluminava ao vê-lo, o interesse em seus olhos parecendo quase audacioso. Ficou lisonjeado por ela mostrar um tal agrado pela companhia dele. Por um momento, lamentou que fosse uma mulher; um homem teria mais influência sobre o chefe no caso em que Andrei ganhasse sua confiança e o persuadisse a falar em seu favor. Mas a presença de Tasha dominou rapidamente os pensamentos dele.

- Bom-dia, Tasha. - Ele encarou aqueles olhos redondos e oblíquos, negros como ônix.

- bom dia, comandante Tolstykh - respondeu ela, fazendo outra ligeira cortesia; ela a fazia com tanta naturalidade que não parecia fora de propósito a despeito de seu traje nativo.

- Estou vendo que esteve apanhando frutinhas do mato - disse ele, desviando os olhos para o cesto que ela segurava.

- Há muitas neste verão. Quer algumas?

- Não, obrigado. - Lembrou-se do lenço e procurou-o dentro da jaqueta. - No entanto, tenho alguma coisa para você. - O lenço era de seda chinesa, de um vermelho vivo. Quando ele passou-lhe às mãos o quadrado de material dobrado, a seda escorregadia escapou de suas dobras e das mãos dele. Tasha agarrou-o e seu rosto assumiu um ar maravilhado.

- É muito bonito! - disse ela, descansando no chão o cesto para apalpar o pano com as duas mãos. - Que fazenda é essa, que é macia como uma plumagem?

- Chamam de seda; vem da China. - Andrei conhecia o valor do comércio com a China. A única mercadoria que a Rússia tinha que interessava à China era a pele da lontra-do-mar e sua demanda excedia a capacidade da Rússia de supri-la, fazendo com que as peles se tornassem ainda mais valiosas. E os chineses não ligavam se as peles eram de primeira, pois haviam aperfeiçoado certa técnica de tingi-las e reter seu aspecto natural. Uma de suas peles tratada não aparentava diferença de uma pele da mais alta qualidade. Uma única pele na fronteira da China chegava a valer trezentos rublos de ouro. A seda, para Andrei, representava a China, e o comércio com a China significava peles de lontra valendo

?mais que seu peso em ouro.

- Seda - murmurou ela, e encostou o tecido em seu rosto. O vermelho vivo contra o negrume de seu cabelo e o marfim de sua pele faziam um chocante contraste.

- Olhe aqui! - Andrei tomou o lenço das mãos dela e enrolou-o em torno de sua cabeça, depois cruzou as pontas de forma a cobrir-lhe os ombros. A transformação foi notável; ele parecia estar olhando para o busto de uma mulher russa com intrigante sabor estrangeiro. Foi devagar que ele soltou as mãos do lenço e deixou-as cair de novo ao lado do corpo.

- É assim que se usa? - perguntou ela.

- Sim - respondeu Andrei, continuando a olhá-la, ainda encantado.

Vai para a aldeia?

Sim, preciso falar com seu chefe.

- vou acompanhá-lo. - Ela tirou o lenço da cabeça e tentou dobrar o escorregadio material em um pequeno quadrado. Depois de várias tentativas conseguiu fazê-lo e pegou seu cesto de frutinhas maduras.

Quando eles se dirigiam para a barabara, Andrei avistou Barbudo esperando para saudá-lo. Imaginou que o chefe fora avisado de sua vinda a terra para falar com ele. Era vital que convencesse o aleúte a deixá-lo levar alguns de sua gente com ele. Ouvindo as batidas de pés descalços caminhando a seu lado, Andrei virou ligeiramente a cabeça a fim de olhar para a moça. Embora seus pensamentos estivessem no encontro iminente, o perfil dela provocou novo impacto em seus sentidos. Por um momento ele compreendeu que um homem poderia perder-se por ela, mas logo seus pensamentos tomaram rumo diferente. Pouco antes ele deixara de lado a utilidade dela; agora Andrei reconsiderava o assunto.

- Tasha, tenho de falar com seu chefe sobre um assunto importante. Quero ter a certeza de que minhas palavras soem claras para ele. Você quer falar por mim? - disse sorrindo.

- Ficarei feliz de traduzir - concordou ela. Seus olhos negros estudaram-no com atenção. - Deseja falar com Barbudo acerca de ter alguém de nossa aldeia para acompanhá-lo às outras ilhas e servir-lhe de tradutor.

- Você sabia sobre meu pedido? - Andrei estava meio surpreso.

- Escutei quando Barbudo procurou o conselho de minha mãe e de outros acerca disso.

- Por que motivo ele consultaria sua mãe? - perguntou intrigado.

- Antes que ela se tornasse a segunda esposa de Barbudo, minha mãe, Cisne do Inverno, foi esposa de Homem Forte, o irmão de Barbudo. Ele tinha grandes poderes físicos e espirituais. Penso que Barbudo queria saber de minha mãe o que Homem Forte pensaria sobre este assunto. Ele tem grande respeito pela sabedoria de Homem Forte sobre tais coisas.

- O que lhe disse sua mãe? - Andrei não sabia que ela pertencia à família do chefe, mas não tinha escrúpulos em tirar-lhe informações.

- Não sei.

- O que pensa que ela disse? - Viu a relutância de Tasha em especular sobre algo que não sabia e pressionou-a para dar-lhe uma resposta.

- É importante, Tasha, ou eu não perguntaria. Preciso ter a ajuda do chefe nisto, de forma que possa caçar e negociar com as outras ilhas em paz e com amizade.

Ela hesitou por um momento e disse:

- Os contadores de histórias dizem que Homem Forte acreditava que devemos viver em paz com os cossacos.

- Ele era um homem sábio. - Um sentimento de satisfação aliviou um pouco a tensão que ele sentia. Os ventos pareciam soprar em sua direção. Sorriu afetuosamente para Tasha, compreendendo que ela poderia ser valiosa em sua reunião com o chefe.

Os homens dele alinharam-se por detrás de Andrei quando ele se aproximou do chefe. Depois de saudar o aleúte de grandes bigodes, Andrei explicou a razão da presença de Tasha a seu lado, preocupado que Barbudo pudesse objetar quanto à inclusão de uma mulher em sua conversa, mas o chefe concordou com a cabeça.

- Em breve meu barco estará levantando ferro para as ilhas do leste. Você é um importante chefe em Attu. Seu nome é pronunciado com respeito nas outras ilhas. - Andrei não tinha a menor ideia se isso era verdade, mas um pouco de lisonja não faz mal algum. Esperou até que Tasha tivesse terminado a tradução e continuou: - Desejo levar suas saudações quando visitar as aldeias para leste, de forma que elas saibam que vivíamos em paz e negociávamos em bons termos uns com os outros.

Andrei sabia que o chefe entendia muito do que ele dizia em russo mas escutava pacientemente a tradução que Tasha fazia. Seu domínio sobre a língua aleúte era limitado, mas Andrei detectou algumas palavras de embelezamento que Tasha ajuntou e compreendeu que tinha nela uma aliada.

- O nome de Andrei Nikolaivich Tolstykh também é conhecido nas ilhas como o de alguém que não engana os aleútes; - Tasha providenciou a tradução da fala do chefe, a maior parte da qual ele havia entendido. - Isto não pode ser dito de muitos cossacos que vêm caçar e negociar em nossas ilhas.

Andrei já encontrara antes a má vontade criada por outros russos devido à ganância.

- É importante que os aleútes nas ilhas que eu visitar saibam que venho em paz e oferecendo amizade. Se Barbudo consentir em mandar intérpretes de sua aldeia comigo, eles podem não somente traduzir minhas palavras mas também falar acerca de seu próprio conhecimento de minha correção no comércio e meu desejo de paz com os nativos.

- Cheguei a uma decisão a esse respeito. - Tasha traduziu a resposta de Barbudo e depois fez uma pausa para aguardar o resto. Andrei era treinado para não demonstrar reação, não importa que rumo tomasse a resposta. - Ele escolheu meu irmão, Empertigado, para acompanhálo. - Andrei ficou ao mesmo tempo aliviado e desapontado com a decisão. Um era melhor do que nada, no entanto ele preferia ter um mínimo de dois aleútes com ele. - Ele lamenta que não possa dispensar mais caçadores para acompanhá-lo.

- Diga-lhe que compreendo.

- Barbudo diz que meu irmão é um bom caçador e pode ajudá-lo a encontrar as ilhas onde a lontra-do-mar é abundante. E meu irmão compreende as palavras de sua língua muito melhor do que Barbudo. - Ela interrompeu a tradução palavra por palavra que vinha fazendo da explicação. - É também sabido que ele não gosta de cossacos. Para ele, falar a seu favor, terá muito peso.

Inconscientemente, Andrei balançou a cabeça em aprovação, admirando o astuto raciocínio por trás da escolha. Quando o chefe continuou a falar, Andrei perdeu o que ele estava dizendo e teve de esperar para Tasha transmiti-lo a ele.

- Barbudo diz também que irá necessitar de uma mulher para cozinhar e costurar, e que as mulheres das ilhas do leste não sabem como preparar a comida do jeito que os cossacos gostam. - Subitamente, ela pareceu espantada; em vez de concentrar sua atenção no chefe como vinha fazendo, ela voltou-se para Andrei, seus negros olhos cheios de surpresa. - Ele diz que sabe que você não trouxe sua esposa cossaca... que ela ficou em sua terra do outro lado das águas. Como terá necessidade de uma... ele oferece a mim como sua segunda esposa. Como uma demonstração de sua amizade, e não pede presentes em retribuição.

Igualmente espantado, Andrei encarou Tasha. O chefe devia saber que ele não era contrário a ter a companhia de uma mulher nativa em seu leito. Durante suas anteriores visitas à ilha, ele conseguira uma em troca de alguns presentes à família. De acordo com o costume aleúte, ela se tornara sua esposa. Eles não tinham propriamente uma cerimónia de casamento. O contrato era selado pela apresentação de presentes aos pais da mulher. Andrei também sabia que recusar a generosidade do chefe nesse caso equivalia a um insulto. Ficou grato que o chefe continuasse falando, o que lhe dava mais tempo para pensar.

- Ele diz que faço bonitas parkas e que sei como cozinhar ao gosto dos cossacos. Diz também que posso ser-lhe útil para falar suas palavras aos aldeões das ilhas do leste. Ele sabe que vai me tratar bem e que será um bom marido. - Ela corou ligeiramente. - Ele diz também que descobrirá que as mulheres de Attu são muito mais agradáveis à vista do que as mulheres das outras ilhas.

Agradáveis à vista parecia subestimação quando ele olhava para Tasha. Foi com dificuldade que ele voltou sua atenção para o chefe, tentando não pensar nos longos meses e nas longas noites que viriam.

- Diga a seu chefe que estou muito grato pela generosidade dele, e muito satisfeito. Ele muito me honra e aceito sua sábia decisão. Diga-lhe, por favor, que tenciono levantar velas com a maré alta de amanhã.

 

Por cima da cabeça deles e aos guinchos, as aves marinhas planam, suas asas cor de marfim branquejando contra um fundo de nuvens cinzentas. Pulando e mergulhando, um boto nada na esteira da popa do barco como se o escoltasse para fora da baía. Um vento firme enfuna as velas. Tasha virou seu rosto contra o vento e contemplou a vasta expansão de areia com as bidarkas alinhadas na praia. Daquela distância a silhueta de sua aldeia era apenas discernível e mesmo assim porque ela sabia para onde olhar.

Doía-lhe o coração deixar tudo aquilo que lhe era familiar - a ilha, sua casa, sua família - sua mãe, principalmente, e a velha Mulher Tecedeira. Mas seu pesar não excedia a excitação que sentia. Caçadores com frequência viajavam para outras ilhas a fim de comerciar ou em visita, mas mulheres raramente o faziam, a não ser que toda a família, às vezes toda a aldeia, fizesse a viagem. Tasha não saía da ilha desde que era garotinha, e então havia sido numa jornada para a vizinha ilha de Agattu, a fim de visitar a família de sua mãe. Agora estava a caminho de uma destinação desconhecida. Andrei Tolstykh, seu novo marido, dissera a Barbudo que dois verões poderiam decorrer até que ele retornasse a Attu.

- Para onde vamos? - perguntou ela, virando-se para seu irmão.

- Falei com o cossaco acerca de Adak e das pequenas ilhas aninhadas ao redor, onde a lontra-do-mar vive em grandes bandos. - A relutância com a qual ele transmitia essa informação evidenciava-se no tom seco de sua voz. Empertigado não compartilhava do entusiasmo de Tasha por aquela aventura.

- A caça será boa ali.

- Se as aldeias lhe derem permissão para caçar em seu território acrescentou Empertigado.

- Elas darão. Em troca, ele lhes oferecerá presentes e nós diremos que o cossaco procura negociar e viver em paz com eles. - Ela percebeu o ceticismo no olhar dele. - Você sabe que isso é verdade; ele não é como os outros.

- Não - concordou ele, relutante. - Mas ele é um cossaco; não confie muito nele.

Ultimamente, quando olhava para a irmã, tinha vagas lembranças de uma outra época, quando o homem com uma cicatriz no olho fizera sua mãe chorar. Agora Tolstykh era o marido de sua irmã; ele não desejava que Tasha fosse machucada, mas no entanto sentia-se impotente para impedi-lo. E odiava os cossacos por fazê-lo sentir-se assim. Concordara em acompanhar o comandante de rosto liso em parte para honrar os desejos de Barbudo e de sua mãe, mas em especial com a esperança de que, guiando os cossacos para novos locais de caça, eles eventualmente abandonariam a ilha que era seu lar.

Empertigado podia dizer pela expressão dos grandes olhos negros de Tasha que ela dava pouca atenção a sua advertência. Ela nunca penetrava além da cor do céu dos olhos do cossaco para perceber-lhe a ambição egoísta. Antes que os cossacos chegassem às ilhas, os aleútes nunca caçavam apenas para ficarem com a pele do animal; agora eles caçavam a lontra, tiravam a pele e jogavam a carcaça para os tubarões. Aquele não era o hábito deles e os cossacos eram os culpados.

Sua irmã, no entanto, era uma mulher; ela não podia entender que a vida de um caçador estava ligada à de sua presa; mesmo assim tentou explicar-lhe:

- Para um cossaco, os nativos são como a lontra-do-mar: quando eles tiram dele o que desejam, jogam fora o resto.

As ondas atingiram dois metros no mar aberto e encapelado. Quando o barco enfrentou a primeira onda e ela quebrou aos lados da proa, Tasha sentiu enorme alegria. A jornada começara; ela permaneceu encostada na amurada observando o balanço do mar e escutando os rangidos de estorço do madeirame do barco quando enfrentava uma nova onda.

Dentro de uma hora, sua cabeça começou a latejar. O constante balanço fazia o horizonte subir e descer com uma enjoativa regularidade, o movimento do barco causado pelas ondas fez seu estômago embrulhar-se. Começou a sentir calor e o suor a umedecer sua pele. Inclinando-se na amurada, deixou que os respingos do mar molhassem seu rosto, mas isto não diminuiu a pressão que sentia no estômago. Seus joelhos estavam estranhamente fracos.

Aos poucos teve a consciência de que estava ficando enjoada. Os sintomas que sentia eram os que Mulher Tecedeira lhe havia descrito quando contou acerca de dois caçadores aleútes de Attu que sofriam dessa doença. Tasha lutou para controlar sua crescente náusea e tentou fixar a vista em algum objeto que não se movesse, mas seus sentidos constantemente lembravam-lhe o movimento oscilante do convés. Eles não a alertaram, entretanto, para o som de passos que se aproximavam.

Tão logo eles ultrapassaram a linha de recifes ao longo da costa e ganharam o mar alto, Andrei ordenou a seu imediato que mantivesse o curso para leste e relaxou sua vigilância. Ele conhecia os perigos desses oceanos, a rapidez com que surgiam os nevoeiros, as ventanias e tempestades; assim, tirava uma folga sempre que podia. Quando deixou o imediato ao leme, notou Tasha na amurada, como uma figura de proa, seu rosto erguido recebendo o borrifo do mar. Tal visão despertou nele um fogo que há muito estava adormecido e ele encaminhou-se para a proa.

- Os ventos estão a nosso favor. - Ao som de sua voz ela voltou-se. Andrei teve uma rápida percepção de sua palidez e de seus olhos arregalados.

Um segundo mais tarde, ela voltou a apoiar-se na amurada, debruçando-se para fora. Pensando que ela tencionava atirar-se na água, Andrei agarrou-a. Quando suas mãos tocaram-lhe os ombros, ele sentiu o movimento convulsivo de seu corpo e ouviu o barulho que ela fazia vomitando. Os espasmos de vómito vieram um após outro até que ela finalmente arriou sobre a amurada, fraca demais para manter-se em pé.

As mãos dele continuavam a apoiá-la contra os balanços e os mergulhos do barco. Retirando-o de dentro de seu pesado casacão, ele pegou um lenço e com ele limpou os cantos da boca e o queixo de Tasha. Ela estava encharcada de suor e sua pele parecia pegajosa ao tato. com palavras ininteligíveis, ela murmurou algumas frases de gratidão.

Pelo canto dos olhos Andrei apercebeu-se de um par de pés descalços e calejados, projetando-se da barra de umaparka de couro de pássaros virada pelo avesso, com o couro tingido de ocre e vermelho para o lado de fora. Andrei virou-se para Empertigado e enfrentou o brilho acusador nos olhos dele.

- Ela está enjoada - explicou.

O aleúte examinou rapidamente o rosto pálido de Tasha como se para confirmar o enjoo, depois resmungou qualquer coisa e afastou-se, aparentemente indiferente à doença dela. O estado de fraqueza em que ela se encontrava despertou entretanto os instintos protetores de macho em Andrei.

Fez um sinal para que um dos promyshleniki no convés viesse auxiliálo e disse para Tasha:

- Vamos levá-la para baixo, onde você poderá se deitar. - Ela fez um gesto com a cabeça, mas ele não estava certo se era uma concordância.

O contínuo movimento do barco tornava difícil para Andrei e o promyshleniki manterem seu equilíbrio quando levantaram Tasha. Ela fez uma fraca tentativa para ajudá-los, mas seu esforço atrapalhou ainda mais. Ela gemia mansamente quando a arrastaram pelo convés oscilante até a escotilha, seu corpo inerte apoiando-se em Andrei.

A escotilha não era larga bastante para os três; Andrei fez um sinal de cabeça para o caçador, dispensando-o.

- Eu a levo daqui. - Pegou-a no colo e carregou o corpo inanimado escada abaixo.

Parando diante de sua cabine, abriu a porta com um pontapé e entrou com ela. A cabeça de Tasha oscilava de encontro a seu queixo, a maciez do sedoso cabelo roçando contra sua pele. Olhou-a quando ela tornou a gemer e depois carregou-a até seu beliche, onde a deitou.

Andrei sabia que vinha desejando levá-la para sua cama, mas estas não eram as circunstâncias que tinha em mente. O suor brotava de sua testa e da parte superior do lábio quando ela se sentou na borda do beliche, quase incapaz de manter-se firme. Andrei olhou para a comprida parca de lontra que ela usava, a qual, surpreendentemente, não fora suja pelo vómito.

- Vamos tirar isso - disse mais para si mesmo, pois duvidava que ela estivesse em condições de entendê-lo.

Após alguma dificuldade, ele conseguiu suspender aparka acima dos quadris de Tasha; depois foi fácil tirá-lo por sua cabeça. Por um breve momento, encantou-se com a visão de seu corpo nu, com a rigidez dos seios empinados. Sem o apoio dele, ela cambaleou e Andrei agarrou-a para endireitá-la, sentindo a firmeza de sua carne, uma sensação que não experimentava há muito tempo. O corpo de sua mulher há muito que era flácido e havia muito poucas prostitutas na Sibéria que não eram gordas, doentes ou feixes de ossos. A Sibéria era um lugar onde as mulheres envelheciam rapidamente. Um homem rico como ele podia escolher, mas a oferta era muito limitada.

Da garganta de Tasha escapou um gemido. Ela olhou para ele, seus olhos parecendo redondos como um pires. Subitamente, ela levou rápido a mão aos lábios; reagindo com rapidez, Andrei pegou o urinol e abriu sua tampa a tempo de colher o vómito.

Quando ela terminou, Andrei arriou-a de novo no beliche e com relutância cobriu seu corpo nu com um cobertor. Afastou-se para umedecer um pano com a água de um balde que havia em sua cabine e depois voltou ao beliche para limpar seu rosto úmido. Ela estava deitada imóvel, com os olhos fechados, as curvas de seus negros cílios lançando uma longa sombra na pele pálida. Andrei observou que sua cabeça estava apoiada no coque de seu cabelo e delicadamente passou a mão por trás de sua cabeça para soltá-lo. Afastou os cabelos do rosto, deixando as lisas tranças escorregarem entre os dedos.

Sinto-me tão doente! - murmurou ela com voz fraca. Sei como se sente - disse Andrei, dobrando o pano molhado e colocando-o sobre sua testa.

Levantando-se, olhou-a por um momento, depois foi até a mesa onde seus mapas do arquipélago estavam espalhados. Estudou-as novamente, procurando ver se havia algum outro agrupamento de ilhas além daquele que ele havia achado que correspondia à descrição que Empertigado lhe fornecera.

Ela ainda vomitou algumas vezes até que nada mais restava em seu estômago, exceto bile. Finalmente, a exaustão dominou-a e ela caiu no sono. Andrei continuou na cabine algum tempo, depois foi para cima a fim de verificar o curso. Permaneceu no convés por pouco tempo, atraído à cabine pelo pensamento de Tasha deitada em seu beliche.

Ao cair da noite, ela foi acometida por vómitos secos. Andrei mandou que lhe preparassem um caldo e alimentou-a com uma colherada a cada poucos minutos. Ela vomitou um pouco do caldo. Não era compaixão ou piedade que o mantinham na cabine. Andrei achava que era a oportunidade de deliciar-se com sua crescente fascinação por aquela mestiça - olhar por tanto tempo quanto desejasse para a curvatura de seus malares ou para o bico de um seio exposto, e ficar fantasiando o que quisesse...

- Sim, o que é? - perguntou Andrei em resposta a uma batida na porta.

- É um nevoeiro, senhor. Grosso como um creme de leite.

- Já vou subir.

Andrei esperou até que os passos se afastassem, depois caminhou até o beliche e ajeitou o cobertor em torno de Tasha mais uma vez. Ela gemeu de mansinho em seu sono. Ele acariciou-lhe o rosto com a ponta do dedo, sentindo a pele tão fresca e macia ao toque. Ela mexeu-se; relutantemente, virou-se e saiu da cabine.

Em cima, um denso nevoeiro cobria o barco, obscurecendo a visão da proa e escondendo o topo dos mastros. A visibilidade estava reduzida a uns poucos metros. Uma fantasmagórica quietude aumentava cada som; a batida de suas botas soava oca no convés escorregadio quando andou até o leme. Farrapos de névoa flutuavam ao seu redor, perturbados por sua passagem, enquanto água pingava das velas. Somente o movimento do convés e a batida das ondas contra o casco de madeira confirmavam que ainda estavam no mar e não vagando numa nuvem fantasma.

A bússola indicava que o barco mantinha seu rumo leste, mas era impossível ver o que estava à frente dele. De acordo com suas cartas, todas as ilhas deviam ficar para o sul de sua rota atual, mas os detalhes desses mapas eram, para dizer o mínimo, precários. Andrei não precisava alertar nenhum dos homens para ficarem atentos à arrebentação de ondas ou à presença de bancos de algas que significariam que estavam próximos da terra. O nevoeiro que os cegava fazia-os a todos vigilantes.

Já era quase de madrugada quando Andrei retornou à cabine, confiante em que seu barco não estava em perigo iminente. Tasha estava deitada de lado no beliche, descoberta da cintura para cima. A visão daquele corpo despertou-lhe um surto de energia que acabou com seu cansaço.

No entanto por maior que fosse a tentação de meter-se na cama com ela, o cheiro de vómito bastava para fazê-lo desanimar.

Vendo que aquela nudez era uma tentação grande demais para resistir, Andrei retirou uma de suas camisas de algodão do baú e enfiou-a em Tasha. Os cílios da moça abriram-se rapidamente uma vez, quando ele a levantou e enfiou-lhe um braço pela manga. Após abotoar uma parte da camisa, ele deixou a mão repousar na curvatura de um dos seios, sentindo como ele enchia sua palma. Ela gemeu, voltando a cabeça para o lado. Aborrecido, ele reconheceu que o gemido provinha mais do enjoo do que de prazer.

Levantou-se, pegou o cobertor extra do beliche e depois encaminhou-se para a lâmpada que balançava pendurada numa verga. Abaixou a torcida, deixando apenas uma pequena chama lançando uma luz fraquinha. As sombras imediatamente espalharam-se pela cabine. Enrolado no cobertor, acomodou-se na cadeira, permitindo que o suave movimento do barco o embalasse. O sono custou a vir, enquanto ele contemplava a fêmea em seu beliche - sua noiva nativa.

Durante uma semana inteira, Andrei passou a maior parte de seu tempo na cabine, onde Tasha alternava entre ataques violentos de enjoo e períodos de inatividade e náusea. Tinha momentos lúcidos quando objetava a ser alimentada de colher com o caldo ou o mingau que havia sido preparado para ela. Tentava fazê-lo por si mesma, mas não tinha forças para tal. Por duas vezes Andrei a banhou, os movimentos de suas mãos invariavelmente se tornando carícias.

Por várias vezes seu meio-irmão entrou na cabine sem anunciar-se, para ver como ela estava. Andrei sempre notava um elemento de desconfiança nos olhos do jovem, mas o aleúte nunca dizia nada, apenas ficava alguns minutos e depois saía. Andrei não tinha dúvida em sua mente de que Empertigado detestava os russos. Mesmo que o chefe não o houvesse dito, ele teria sabido. O caçador nativo mantivera-se alheio a toda companhia durante a viagem até aquele momento. Às vezes Andrei cismava até que ponto poderia confiar nele, mas era patente que o aleúte gostava muito de sua meia-irmã; enquanto Andrei estivesse de posse dela, ele tinha controle sobre o nativo.

Enquanto a água aquecia no samovar de latão, Andrei ajuntava folhas soltas de chá da China à pequena chaleira. Segurando-a sob a torneira na base do aparelho, ele abriu-a. A água quase fervente caiu em cima das folhas de chá no fundo da chaleira, desprendendo seu picante aroma. Era um cheiro bem recebido numa cabine que recendia a doença. Andrei deixou o chá curtir por algum tempo, depois encheu com ele dois copos com suportes metálicos. Levou um deles ao beliche onde Tasha estava sentada com as costas apoiadas na antepara e deu-o a ela. Os punhos da camisa de algodão estavam enrolados para liberar suas mãos, e as mangas escorregaram em seu antebraço quando ela levou o copo aos lábios. Tomou um pequeno gole e depois, sentindo-se fraca, arriou o copo em seu colo.

- Acho que estou melhorando - disse, mas sua voz era fraca. Ele sorriu, pois sabia que ela estava retendo melhor os líquidos nestes dois últimos dias.

- Gostaria de subir ao tombadilho depois do chá, para apanhar um pouco de ar fresco?

- Sim, gostaria.

Ele carregou-a para cima, enrolada num cobertor, e sentou-a sobre um barril num canto do convés, onde o vento não a alcançava. A atitude dele em relação a ela não era nem de gentileza nem de solicitude; era mais possessiva, deixando nos homens poucas dúvidas de que ele a havia tomado para si.

Respirando fundo, Tasha encheu os pulmões com o ar doce e fresco. Os movimentos do shitik não mais pareciam incomodá-la. Ela esperava ardentemente que afinal se houvesse acostumado. Nunca mais queria ficar enjoada assim. Envergonhava-se ao pensar quanto trabalho dera a Andrei, mas no entanto ficava também confortada pela lembrança de quantas vezes abrira os olhos e o encontrara ali, cuidando dela.

Seus olhos procuraram-no entre os caçadores no convés. Achou que gostava de suas feições de traços fortes tanto quanto de seus olhos. Havia nele força e determinação, aliadas a uma viva inteligência. Por sob o cobertor, tocou na camisa dele que usava. Acostumara-se a sentir aquele material contra sua pele e a proteção que oferecia ao áspero cobertor. Ele fora bom para ela; até Empertigado tivera de reconhecer. Ela observou o irmão sozinho apoiado na amurada, olhando para o mar; compreendia que ele nunca faria amizade com os cossacos, nem mesmo com seu novo marido.

A saída cansou-a rapidamente. O menor esforço parecia exauri-la. Assustava-a verificar como ficara fraca, quando sempre tinha sido tão forte. Encostou-se cansada contra a antepara da escotilha e fechou os olhos para descansar um momento. Alguém tocou-lhe o ombro e ela levantou os olhos, encontrando Andrei debruçado sobre ela.

- Está se sentindo bem?

- Estou cansada - admitiu.

Ele nada mais disse. Pegou-a no colo e levou-a de volta para a cabine e deitou-a no beliche. Tasha rolou de lado e adormeceu quase tão logo a porta fechou-se atrás dele.

Na tarde seguinte, Tasha estava deitada no beliche, seu estômago sentindo-se confortavelmente cheio com a pequena tigela de sopa que tomara. Andrei lhe assegurara que alimento e repouso eram o que necessitava para recuperar as forças. No entanto, agora que ela estava passando melhor, a inatividade a inquietava.

De repente, ouviu uma súbita agitação no convés, gritos abafados e pisar de botas. Esforçou-se para descobrir a causa de toda a agitação, mas só podia distinguir retalhos de palavras. A porta da cabine abriu-se e seu irmão entrou sem fazer barulho.

- O que aconteceu? Viram uma baleia? - Nada mais em sua aldeia criaria tal burburinho.

- Avistaram as ilhas. O alto e pontudo pico de Adak aparece acima das nuvens. O barco agora dirige-se para lá.

- Então chegamos - disse Tasha.

- Em breve verão como a caça por aqui é boa e saberão que não menti.

- Eles pensavam que você estava mentindo? - perguntou ao irmão.

- Ouvi alguns deles dizendo que eu talvez os estivesse guiando para o meio do mar. Um deles abriu um buraco em minha bidarka para que eu não pudesse fugir nela - respondeu com amargura.

- É um buraco muito grande? - Sem sua bidarka um caçador ficava impotente.

- Atinge a quase duas peles.

- vou consertá-la para você - prometeu Tasha e depois perguntou: - Andrei sabe disso?

- Não adiantaria de nada. Os cossacos alegam que algo caiu em cima do caiaque, mas sei como fica uma pele quando é cortada por uma faca. - Seu ressentimento era profundo, e o incidente era como água salgada numa ferida aberta. Tasha compreendia também que Empertigado estava dizendo aquilo para alertá-la. - Está se sentindo melhor?

- Sim - disse ela.

- bom. - Seus olhos fitaram-na por mais um minuto e depois ele virou-se e saiu da cabine.

Novamente sozinha, Tasha ficou escutando a redução da atividade no convés por cima de sua cabeça. com a ilha à vista, Andrei em breve teria necessidade dela para falar aos habitantes em seu nome. Jogou as pernas para fora do beliche e ficou de pé para testar sua força; cambaleou incerta por uns momentos, mas as pernas sustentaram-na. Caminhando devagar, Tasha atravessou a cabine até a mesa, e ali parou para apoiar-se nela, lutando contra a sensação de leveza em sua cabeça. Ouviu passos que se aproximavam do camarote e reconheceu-os como os de Andrei. A porta abriu-se quando ela se virava naquela direção, mantendo uma das mãos apoiada na mesa para equilibrar-se.

- Tasha... - A visão do beliche vazio o fez parar; voltando a cabeça, viu-a de pé ao lado da mesa. As rugas em sua testa juntaram-se, franzindo-a.

- Tasha, o que faz de pé?

- Precisava saber se podia andar sozinha. Não poderia ser de muita ajuda permanecendo deitada.

As fraldas da camisa alcançavam o meio das coxas, deixando um bom pedaço de perna exposto. Andrei notou a curvatura quase imperceptível de seus joelhos e compreendeu que ela estava menos firme do que parecia. Aproximou-se rápido e agarrou-lhe a cintura, arrebanhando as abas soltas de sua camisa. As mãos de Tasha imediatamente procuraram o apoio de seus braços, quando cambaleou para cima dele.

- De agora em diante, Tasha, deixe que eu decida de que forma melhor você pode me ajudar. - Até aquele momento Andrei não notara como ela era alta. Os olhos de Tasha estavam na altura de seu queixo; quando inclinou a cabeça para baixo, a dela ficou ainda mais próxima. Sentiu a nudez da pele sob a camisa e como era firme a carne.

Várias vezes nestes últimos dias ele agarrara seu corpo nu e flácido, desejando tê-la viva em seus braços. Por vezes demais suas mãos tinham-na acariciado sem retribuição. Agora as mãos dela agarravam-no, não importava que fosse apenas por fraqueza. Seu olhar dirigiu-se para a curva de seus lábios, ligeiramente entreabertos.

O olhar que queimava os olhos dele era algo que Tasha vira antes quando um homem desejava deitar-se com uma mulher; aquilo provocoulhe um calor no rosto e a fez sentir-se toda quente. O braço dele enlaçoua pela cintura e apertou-a contra si; ela .sentiu logo a pressão das pernas e do torso dele contra seu corpo.

Nada sabia sobre o toque das bocas que os cossacos chamavam de beijar. A curiosidade imobilizou-a quando ele baixou a cabeça e cobriu-lhe os lábios com sua boca. A princípio ela achou a pressão desagradável, depois descobriu que se ela não mantivesse a boca tão rígida, a sensação não era tão má. Estava mesmo começando a gostar um pouco quando ele afastou-se bruscamente e manteve-a a um braço de distância. O brusco movimento fez com que sua cabeça tonteasse.

- Pouco me importa se vou fazer amor com uma mulher que está fraca demais para fazer outra coisa que não ficar ali deitada - resmungou com voz embargada e levou-a para o beliche. - Fique aí até que esteja mais forte.

- Movimentar-se faz a gente ficar mais forte, não deitar-se numa cama - disse Tasha, mas tinha consciência da tremedeira de suas pernas.

- Você já se moveu bastante por enquanto - ordenou ele e após uma pausa perguntou: - Por que está me olhando desse modo?

Tasha só podia atribuir à recente doença fazê-la pensar tão devagar, mas por fim compreendeu que ele desejara ir para a cama com ela. Barbudo a dera a ele, mas Andrei a desejava. Ela o olhava agora com novo interesse, considerando-o como um amante em potencial. A despeito dos muitos verões de vida, ele parecia vigoroso e cheio de saúde.

- Você não lamenta que Barbudo me tenha dado para você. Você me desejava - disse ela.

- Isso é uma maneira muito simples de dizer as coisas, Tasha. E ela escutou-o suspirar.

- Ouvi dizer que os cossacos são muito brutos com as mulheres. Antes de responder, ele estudou-a demoradamente.

- Às vezes as necessidades de um homem são grandes e ele esquece sua própria força. Fique aí nessa cama e descanse antes que eu me esqueça da minha... - Fez meia-volta e abandonou a cabine. Tasha ficou sorrindo, secretamente satisfeita com sua descoberta.

 

As ilhas vulcânicas agrupavam-se num denso amontoado, criando uma multidão de baías, canais e recifes. Andrei deixou seus olhos vagarem por sobre as altaneiras montanhas cónicas que dominavam a paisagem e depois estudou as complexas costas daquelas ilhas despidas de árvores penedias a prumo, costões rochosos e praias de areia e seixos. Mas era o sistema de canais e recifes entre as ilhas o que mais o interessava. Plantas marinhas e leitos de algas cresciam no meio dos recifes, provendo comida para os ouriços-do-mar e outros crustáceos que eram a comida da lontra-do-mar. E os canais entre as ilhas eram o caminho para os mamíferos migratórios, tais como as focas de pêlo e as baleias. Ò mar era rico em alimentos e a multidão de lontras que já tinham avistado provavam que a caça seria muito rica.

- Esta área é uma excelente escolha - disse Andrei endireitando-se da amurada onde estava debruçado e olhando para o aleúte que estava a seu lado.

- Foi como eu disse que seria.

- Sim. - Mas os motivos dele intrigavam Andrei. De alguma forma duvidava que o aleúte o tivesse guiado a esse grupo de ilhas motivado por um desejo de ser-lhe útil ou de cooperar com ele.

Qualquer que fosse a razão, lá estavam. Andrei voltou sua atenção para a costa rochosa. Desde sua primeira visão do grupo de ilhas muito próximas uma das outras, uma estratégia começara a tomar vulto em sua cabeça. Para explorar completamente o potencial em peles da área, ele precisaria dividir seus promyshleniki em pequenos grupos e espalhá-los pelas ilhas. com apenas três ou quatro homens em um grupo, eles seriam altamente vulneráveis a quaisquer hostilidades por parte dos nativos; era imperativo que ele estabelecesse relações amistosas com os ilhéus.

Enquanto o shitik continuava velejando próximo à ilha principal, eles inspecionavam suas muitas baías e angras à procura de um local para passarem o inverno. No lado oeste da ilha avistaram duas pequenas baleias encalhadas na praia. A carne e a gordura desses mamíferos representavam um suprimento de comida para sua tripulação. André designou um grupo de desembarque para ir a terra e recuperar as baleias, instruindo o aleúte a acompanhá-lo. Não querendo correr nenhum risco desnecessário, mandou retirar mosquetões da reserva. Depois de haver distribuído seis o número de promyshleniki designados para o grupo - um sétimo par de mãos estendeu-se para pegar o próximo mosquetão. Andrei ergueu os olhos, surpreendido, e deparou com o firme olhar do meio-irmão de Tasha.

Andrei mudou sua empunhadura no mosquetão e acomodou o cano no cavado de seu braço dizendo:

- Não!

- Preciso levar um mosquetão, pois vou até a terra com os outros - argumentou Empertigado.

- Não! - Era uma lei não escrita das fronteiras da Rússia, que agora se estendia a essas ilhas, ainda não reconhecidas como uma porção do império dos Romanov, que nenhum mosquetão ou espada jamais deveriam ser dados aos nativos. Somente os loucos armavam os povos primitivos cujas terras vinham conquistar. Era por demais provável que as mesmas armas seriam usadas contra eles. - Você não tem necessidade de um mosquetão - disse. Afastando-se, ordenou que o bote fosse arriado.

Tão logo os promyshleniki acabaram de limpar as carcaças e carregaram a carne e a gordura da baleia no shitik, eles continuaram sua procura de um lugar conveniente para passar o inverno na ilha. Encontraram um ilhéu numa bidarka, um homem conhecido de Empertigado, que visitara a aldeia dele há uns anos. Presentearam-no com um pouco da carne de baleia, e ele guiou-os até uma baía abrigada que possuía um riacho de água doce e prometeu trazer seu povo para visitá-los. Tudo correu da forma mais suave - muito mais suavemente do que Andrei imaginara.

A ilha resplandecia avermelhada com os últimos dias do verão; ervas escarlates, tremoceiros roxos e ranúnculos amarelos ondulavam nos prados e alagadiços cobertos de flores selvagens. Pesadas nuvens rolavam pelo céu perseguidas por altos e potentes ventos, mas na praia onde andava Tasha havia apenas uma ligeira brisa para agitar-lhe os cabelos, mais uma vez penteados para trás num coque. Esta era sua primeira excursão à praia desde que haviam ancorado na baía, há dois dias.

- Parece estranho andar no chão - disse ela a Andrei. - Não joga como o barco.

- Suas pernas se acostumarão.

Tasha parou para olhar em volta e apreciar a localização escolhida. A maré baixa expunha um recife onde se poderia tirar polvos de suas tocas e apanhar algas e ouriços-do-mar. Os baixios descobertos pela maré e as lagoas por ela deixadas eram uma fonte de mariscos e patos. A baía protegida permitia pescar mesmo quando as tempestades assolavam o mar alto. Corvos marinhos e papagaios-do-mar faziam ninhos nas penedias próximas, oferecendo uma fácil fonte de ovos e couros para fazer parkas. Talvez o salmão frequentasse o riacho. E não era longe para caminhar até os prados onde havia plantas comestíveis e capim para tecer cestas.

- É um bom lugar. - Sua única falha parecia ser a escassez de madeira jogada à praia pelo mar, o que indicava que as correntes não arrastavam as madeiras para aquela baía.

- Servirá bem. - Uma discussão sobre o acampamento de inverno não era um tópico que o interessasse, especialmente quando só pensava em Tasha.

Ela estava de costas para Andrei, sua parka de peles escondendo o jovem e flexível corpo com o qual ele estava tão familiarizado - embora não tanto quanto gostaria de ficar. Ele acercou-se dela e colocou as mãos em seus ombros, inconscientemente massageando as espáduas arredondadas que eram forradas pela pele de um castanho-acinzentado. Ela moveu-se um tanto surpreendida com o contato dele, mas a pressão de suas mãos não a deixou voltar-se. Seu cabelo recém-lavado possuía o brilho negro de um corvo. Ele inclinou-se um pouco, quase tocando aquele negro brilho com os lábios.

- Quero dormir em meu beliche esta noite. Quero deitar-me com minha mulher. - Ele percebeu como sua voz se tornava rouca, excitada pela mera antecipação de levá-la para a cama. Quando percebeu a hesitação dela, teve uma boa ideia do que levava os homens ao estupro. Bruscamente ele virou-a para encará-lo, mas o vivaz e audacioso brilho nos olhos dela fizeram-no prender a respiração.

- Ficarei feliz de deitar-me com você, meu marido - anunciou ela num russo impecável.

Naquele momento Andrei convenceu-se de que ela era alguma espécie de feiticeira. Desde o princípio ele ficara fascinado por aquela mistura de cabelo e pele aleúte com os traços russos e intrigado com seus enormes olhos que se arqueavam nos cantos externos.

- Andrei - disse ele. - Andrei Nikolaivich.

- Ficarei feliz de me deitar com você, Andrei Nikolaivich. - O olhar dela nunca abandonou seu rosto; ele quase acreditava que ela desejava ir para a cama tanto quanto ele. A maior parte das mulheres que ele conhecera não demonstravam paixão, por mais peritas no amor que fossem, mas ele ficou intrigado com Tasha e com o sangue primitivo que se misturava com o russo em suas veias.

Naquela noite, com a lâmpada reduzida apenas a uma tímida chama, ele acariciou o corpo dela, que era da cor de leite. Ela não se mostrou inerte nem indiferente às suas mãos, e sim cheia de vida e de sensibilidade. Não foi o desejo de excitá-la que o levou a prolongar o momento em que treparia nela, mas o gozo egoísta dos pequenos gemidos que ela emitia e a sugestiva maneira como se agitava sob a carícia de suas mãos. Ele havia passado muitas noites insones naquela cadeira, olhando para aquela forma imóvel no beliche, e imaginando este momento para agora apressar-se.

Excitado demais para conter-se, ele penetrou-a. Quando rompeu sua membrana virginal, uma sensação de força surgiu nele. Apossou-se das riquezas daquele corpo macio que nenhum outro homem antes dele possuíra e deleitou-se em seu tesouro. O clímax veio com uma força esmagadora.

Esfogueado e transpirando, ele rolou de cima dela com o coração batendo violentamente dentro do peito. Ali deitado, lutando para regularizar a respiração, Andrei tentava lembrar-se da última vez em que seu prazer fora tão grande. Virando a cabeça, ficou olhando para Tasha enquanto a mão dela percorria seu estômago, como se tentando descobrir as mudanças ocorridas em seu corpo. Ela o fizera sentir-se como um garanhão de dois anos em vez de um cavalo cansado. Algo dizia que agora ele a possuiria e nunca mais a deixaria ir-se.

Nos meses seguintes, o acampamento básico foi montado na ilha Adak e Andrei viajou para algumas das aldeias vizinhas do arquipélago, sempre acompanhado por Tasha. Em toda parte ele foi bem recebido pelos nativos. Imediatamente despachou pequenos grupos de promyshleniki por todas as ilhas a fim de estabelecerem postos avançados. Quase todos os nativos que haviam encontrado até então tinham afirmado seu desejo de tornarem-se súditos fiéis de Sua Majestade Imperial e de pagar tributo sob a forma de peles de lontras.

Tudo estava excedendo suas expectativas, inclusive Tasha. Andrei viu-se completamente apaixonado por ela. Na cama nenhum ato era antinatural para Tasha; ela era completamente desinibida, sentindo-se livre para demonstrar sua recente descoberta da paixão. Surpreendentemente, entretanto, ele ficou de igual maneira estimulado pela rapidez mental da moça e sua avidez para aprender toda e qualquer coisa. Todos os assuntos que para ele eram rotina, para ela constituíam novidade. Quando começou a ver tais coisas através dos olhos dela, ele experimentou de novo todo o seu encanto. Ela era um elixir de juventude para ele, e às vezes Andrei sentia-se como bêbado. De repente passou a não ligar para as longas noites de inverno nesta parte do mundo e até lamentava o alongamento das horas de dia em que chegou com a primavera, a despeito do aumento do tempo de caça que facultava a seus homens.

Ao voltar de uma viagem de inspeção a uma estação avançada, Andrei velejou com o baldar para dentro da baía protegida e dirigiu-se até a parte da praia de areia onde o Adrían i Natalia estava encalhado. Um comprido e elegante caiaque aleúte estava na praia, não muito longe do barco. Quando o baldar aproximou-se da praia, Andrei notou dois caçadores nativos de pé ao lado de três promyshleniki destacados para seu acampamento central.

Quando eles viram a embarcação de peles caminharam para a beira d'água a fim de esperar sua chegada. Os dois aleútes mantiveram-se recuados enquanto os promyshleniki entraram com água até os joelhos na arrebentação e puxaram o baidar para a areia. Andrei desembarcou e examinou os nativos, não reconhecendo nenhum dos dois.

- O que desejam eles? - perguntou, recolhendo seu mosquetão e equipamento e colocando a arma a tiracolo.

- Creio que vieram para comerciar - respondeu o promyshlenik Popov. - Trouxeram algumas peles, mas não entendo bastante o que dizem para saber o que desejam.

- Onde está Tasha? - perguntou Andrei, franzindo a testa. Como aquela tinha sido uma viagem de um dia ele não a levara.

- Ela saiu por volta de meio-dia; acho que foi para as fontes de água quente. - Os promyshleniki sabiam muito bem que não deveriam segui-la. As ordens de Andrei relativas aos nativos eram estritas, e as referentes a Tasha ainda mais severas.

- Empertigado já voltou? - Há bem mais de uma semana, o meio-irmão de Tasha pedira permissão para caçar um pouco sozinho.

- Não.

- Muito bem. vou tentar ver se descubro o que eles querem. Após uma conversa meio atrapalhada com os aleútes, ajudada por sinais de mãos, Andrei pôde descobrir que as peles eram o pagamento de seu tributo. Parte da confusão inicial fora causada por sua insistência em que lhes dessem algo de volta. Finalmente ele concluiu que eles desejavam um recibo. Sem prova de que já havia sido pago, um outro cossaco poderia exigir o pagamento de seu tributo anual.

Tão logo lhe deu o recibo, eles carregaram sua bidarka para o mar e depois subiram para seus assentos separados, arrumando em torno deles o dispositivo à prova d'água feito de tripas de mamíferos para impedir que o caiaque fizesse água. Andrei observou quando remaram com sua perícia usual, furando a rebentação, e depois alongou a vista na direção das lagoas deixadas pela maré, que eram aquecidas com fontes termais a alguma distância da costa. Após uma ligeira hesitação, encaminhou-se para lá.

Embora fosse abril, apenas um indício do verde da primavera coloria a paisagem sem cor da ilha. Os picos cónicos achatados de origem vulcânica estavam cobertos de neve que o vento levantava e soprava em direção aos regatinhos que desciam encostas abaixo. Andando pela praia, Andrei estudava os estreitos da ilha. Dentro de mais um mês as focas de pêlo estariam subindo esses estreitos canais em sua migração anual para o norte. No outono elas voltavam, dirigindo-se para o sul com seus filhotes. Ninguém sabia para onde elas iam, embora, de acordo com as lendas dos aleútes, elas se juntassem às centenas de milhares numa ilha localizada ao norte.

A face da acidentada linha da costa mudava, interrompida por um largo rio rochoso que escorria em direção ao mar. Há muito tempo ele fora lava fundida dos vulcões da ilha; depois o mar a havia esfriado e transformado num rio de pedra, suas ondas e irregularidades da superfície permanentemente solidificadas e alisadas pelo quebrar das vagas. Os lugares mais baixos tornaram-se bacias alimentadas pelas marés, coletando água do mar misturada com água das fontes termais que se originavam em algum local próximo ao núcleo do vulcão. As águas nessas bacias de maré eram mais quentes que o ar o bastante para provocar emanações de vapor.

Quando Andrei subiu no antigo vazamento de lava, o brilho da luz do sol refletindo-se na água quase cegou-o. Parou para proteger seus olhos com a mão e procurou as nuvenzinhas de vapor que marcavam as piscinas enterradas. Em vez disso, viu uma estátua de mulher nua, esculpida de marfim, voltada para o sol com os braços erguidos como se quisesse abraçá-lo. Segundos decorreram até ele verificar que era Tasha; iluminada pelo sol, ela não parecia real.

Ele pulou por cima das rochas lisas, o barulho de seus passos abafado pela arrebentação das ondas.

- Tasha, o que está fazendo? - perguntou quando chegou perto

dela- Então notou que sua pele estava arrepiada. Agarrou aparka de pele

que ela deixara cair nas rochas e enrolou-a em torno dela. - Já vi você

caminhar na neve com os pés descalços a fim de não gastar suas botas, mas isto é ridículo! O vento está frio; o que, em nome de São Nicolau, está pensando? - Ele puxou as pontas da parka pela frente, deixando-a presa dentro dela, mas efetivamente só cobrindo seu torso.

- Quando uma mulher está esperando criança, deve mostrar seu corpo para o sol - replicou Tasha calmamente. Atónito, ele soltou a parka e Tasha livrou-se dela, caminhando para a beirada rochosa de uma piscina natural. - A água está quente; venha gozá-la comigo.

- Você está dizendo... que vai ter um bebé? - Andrei seguiu-a, custando a acreditar no que ouvira.

- Sim. - Ela abaixou-se na bacia rochosa que exalava vapor, de forma que a água cobriu-a até o pescoço. Ele começou a segui-la para dentro d'água. - Andrei Nikolaívich, você vai molhar suas roupas; tire-as! - Apressadamente, ele despiu-se e entrou na água morna.

- Você vai ter um bebé? - perguntou ele de novo, aproximando-se. Quando ela confirmou com a cabeça, os olhos sorrindo, ele passou a mão pelo seu ventre, que parecia tão plano como sempre. - Você tem certeza?

- O bebé ainda está pequeno. Virá no fim do verão. - O olhar dela procurava seus olhos. - Você está contente?

- Contente? - Ele perdera a esperança de ter um filho próprio desde que seu filho morrera ainda criança. E sua mulher Natalia nunca mais concebera. Descobrir que Tasha, a mulher que tantas alegrias lhe dera, iria também dar-lhe um filho, era mais do que um homem poderia pedir.

- Você nunca poderá saber como estou feliz neste momento. - Enlaçou-a gentilmente nos braços e depois beijou-a com ardor por muito tempo, enquanto a água tépida borbulhava em torno deles.

Passado algum tempo, ela esfregou a testa contra os lábios dele.

- Eu também estou feliz.

Andrei puxou-lhe a cabeça para trás e disse, encarando-a:

- Será um bebé bonito. - Ele se sentia muito orgulhoso: Tasha fizera aquilo por ele.

- Poderá ser uma menina... - ela o alertou.

- Menina... menino... Não tem importância. Será um belo bebé tendo você como mãe.

- E você como pai... - completou ela, olhando para a severa e queimada face que viera a adorar. com os dedos molhados, penteou a larga faixa de cabelo prateado em sua têmpora. - É costume a gente viver na aldeia do marido - disse, mas ele não compreendeu o modo como ela olhava para os arredores de sua ilha. - Fale de novo sobre sua aldeia, essa que chama de Irkutsk.

- Gostaria de vê-la? - Há muito Andrei vinha pensando se seria capaz de deixá-la. Quanto mais pensava, mais achava que nada impedia que a levasse com ele. Esta expedição iria render-lhe outros quinhentos mil rublos ou mais. Tinha como instalá-la numa casa, mantê-la como sua amante, especialmente agora que estava grávida de um filho seu. Não ha via razão para que Natalia um dia soubesse; as esposas costumavam ig norar tais arranjos.

Tasha ouvia encantada quando ele descrevia as casas com paredes de pedra e coisas chamadas janelas, feitas de vidro, que permitiam que se visse o lado de fora, os caminhos cobertos com pranchas de madeira para as pessoas andarem a pé, ou montadas num animal de quatro patas chamado cavalo, o edifício especial onde as pessoas contavam histórias fingindo ser as próprias personagens. Ela se maravilhava com a descrição da habitação dele, dividida em cómodos, com um para sentar, um para comer, um para cozinhar e outro para dormir.

- Parece tão estranho esse lugar onde você vive!

- Talvez a gente vá a São Petersburgo. Poderemos viajar numa tróica...

- Tróica, o que é isso?

Andrei riu-se e descreveu o veículo puxado por três cavalos emparelhados. Naquele momento ele não podia pensar em nada mais agradável do que ver a Rússia através dos olhos dela.

Tudo soava fascinante para Tasha, embora um pouco amedrontador. Mesmo assim ela sabia que, enquanto estivesse com Andrei, tudo estaria bem. Tantas coisas boas haviam acontecido com ela desde que se juntara a ele, como aquela criança crescendo no seu ventre.

- Quando iremos? - Ela movimentou os braços dentro da água para manter a quentura em seu redor.

- Não neste verão; a caça está boa demais. E eu não desejaria que algo lhe acontecesse durante a viagem. O mar pode se tornar muito violento; vamos esperar até o próximo verão.

- Empertigado vai ficar surpreso quando souber que vai ser tio. Tasha mal podia esperar para contar ao irmão que iria viver numa cidade de cossacos, apesar de saber que ele não iria se sentir feliz com isso.

- Ele ainda anda por fora caçando - disse Andrei.

Tasha olhou-o vivamente, detectando algo em seu tom de voz. Quando se tratava de seu irmão, ela sempre se colocava um pouco na defensiva.

- Está pensando que ele partiu e não voltará mais? Ele voltará. Concordou em acompanhá-lo para lhe servir de intérprete com os nativos. Ele só partirá junto com você. Às vezes ele vai muito longe para caçar, pois está cansado dos cossacos. Disse-me que não são bons caçadores.

- Não tão bons como os aleútes - admitiu Andrei. - Empertigado já saiu há muito tempo. Estou preocupado que tenha lhe acontecido alguma coisa.

- Em breve estará de volta. - Nuvens cobriram o sol; subitamente a água não parecia tão quente. - Temos que sair daqui; nossa pele vai ficar enrugada como uma ostra. - Tasha deslizou pela água até o lado da piscina de pedra e içou-se em sua lisa beirada. O vento soprou sobre sua pele, fazendo-a arrepiar-se quando pegava sua parka.

Passou-se mais uma semana até o regresso de Empertigado. Duas dúzias de Peles de lontra, quase todas de 1,80m de comprimento, foram descarregadas de sua bidarka de dois lugares, mas ele não demonstrava alegria a despeito de seu considerável sucesso. Quando Andrei tentou dar-lhe boasvindas, Empertigado encarou-o orgulhoso e com um ar de desafio, insistindo em negociar as peles imediatamente.

A barganha não durou muito e Tasha achou que Andrei foi muito generoso com seu irmão. Em troca das duas dúzias de peles Empertigado recebeu uma machadinha, contas de vidro e um pouco de tabaco, mas mesmo assim não parecia satisfeito.

Enquanto Andrei acompanhava seus homens ao galpão de madeira onde as peles eram armazenadas, Tasha trouxe alguma comida para o irmão. Ela sentou-se no chão e observou-o comer, esperando sinais em seu rosto que a convidassem a uma conversa. Essa regra de comportamento observada com cuidado na sociedade aleúte - não se intrometer nos pensamentos alheios - permitia a diversas pessoas viverem comunalmente numa única habitação e ainda reter alguma privacidade e paz. Tasha descobrira que os cossacos não tinham tal consideração. Empertigado já comera metade da refeição quando percebeu no olhar da irmã um interesse em comunicar-se.

Ela queria contar-lhe as novidades, mas conteve-se, sentindo que a ocasião não era propícia. Em vez disso, preferiu questioná-lo e deixá-lo falar o que lhe passava pela cabeça.

- Fez uma boa caçada? Foi longe?

Ele assentiu com a cabeça, enfiando o peixe cru na boca com seus curtos e grossos dedos. Após mastigar por algum tempo, ele engoliu o alimento.

- Fui para as ilhas Umnak e Unalaska. Os cossacos também estão lá, três barcos deles. - Olhou para os pedaços de peixe na tigela de madeira como se eles tivessem perdido seu sabor e depois ignorou-os. - Eles enganam os aleútes; roubam suas peles, suas bidarkas, seus baidars e outras coisas que desejam. Obrigam os homens das aldeias a caçar por eles, e enquanto estão ausentes os cossacos roubam suas mulheres, obrigam-nas a dormir com eles e batem nelas quando recusam.

- Isso está errado. Os cossacos serão punidos quando seus chefes souberem disso na Rússia - disse ela. Andrei dissera-lhe que seus governantes insistiam para que os nativos fossem bem tratados e puniam quem cometesse atos criminosos.

- Quando? - disse Empertigado, zombando de uma justiça tão ineficaz. - Isso de nada adianta para nosso povo agora.

- Não. - Tasha inclinou a cabeça sob o peso de sua lógica.

- Precisamos impedi-los.

Erguendo os olhos, Tasha notou seu olhar cheio de resolução, sentindo-se no mesmo instante inquieta.

- E como faremos isso? -Tasha examinou o cabelo negro do irmão cortado curto, cobrindo a testa, e o fino bigode negro que crescia sob o largo nariz. Depois fixou os olhos nos de Empertigado.

- Alguns dos chefes em Umnak e Unalaska estão dizendo que todas as aldeias devem unir-se, levantar-se contra os cossacos e matá-los - disse ele.

- Não a todos os cossacos...

- Temos tentado viver em paz com os cossacos desde que vieram para nossas ilhas. Mas eles cometeram crimes contra nós desde o começo, quando mataram meu pai e todos os homens da aldeia - lembrou-lhe Empertigado. - Nós não os punimos por seus crimes, por isso continuaram a cometê-los. Os mais velhos em Umnak e Unalaska reuniram-se em conselho e concordaram que os cossacos devem ser mortos, do contrário continuarão com seus crimes. Se quisermos voltar a conhecer a paz, temos de libertar nossas ilhas dos cossacos.

- Se os mais velhos das ilhas assim decidiram, esta deve ser a única solução, mas certamente eles não querem dizer todos os cossacos. Andrei Nikolaivich vive em paz com os aleútes. Os homens dele também; eles não maltratam ninguém.

- Os mais velhos dizem que o tributo é injusto. - Os cossacos são fortes e seus mosquetões poderosos. Mas somos mais numerosos. Os homens de todas as aldeias em todas as ilhas devem se unir. Devemos atacálos unidos, de repente, sem qualquer aviso. Assim poderemos vencer. Embora falasse baixo, a voz de Empertigado vibrava com seu comprometimento com a causa. - Prometi a Matador-de-Muitos-Patos que falaria com os nativos aqui, de forma que todos lutem contra os cossacos.

- Você não mataria Andrei Nikolaivich... - protestou ela. - Um filho dele cresce na minha barriga. Ele é um homem bom e justo. Por que iria fazer guerra a ele?

- Ele vai nos combater quando souber que cossacos estão sendo mortos. - Empertigado levantou-se, bem mais alto que ela. -Está tendo pensamentos egoístas, Tasha. Muitos dos nossos estão sofrendo sob o jugo cruel dos cossacos. Eles não vivem em paz, e não viverão enquanto existir um único cossaco.

Quando o irmão foi até a bidarka juntar sua tralha, Tasha compreendeu que era verdade o que ele dissera sobre ela: pensava apenas em sua própria felicidade com Andrei Nikolaivich. Não havia experimentado a opressão que seu povo sofria. Estava dilacerada entre o amor que sentia pelo cossaco e sua lealdade para com seu próprio povo.

A torcida da lâmpada estava bem levantada para lançar mais luz sobre o tabuleiro de xadrez colocado no meio da mesa. Tasha contemplava o padrão regular de quadrados claros e escuros, mas via poucas das peças Que os ocupavam, brancas e negras, confundindo-se com os quadrados. Quase não notou quando Andrei tomou seu cavalo negro, somente então reconhecendo que era sua vez de jogar.

Ficou observando as peças e tentando planejar seu movimento, mas não podia concentrar-se. Finalmente pegou um peão e avançou-o uma casa. Colocou os cotovelos na mesa, aguardando o próximo lance de Andrei no tabuleiro. Este veio rápido:

Xeque-mate - anunciou ele e Tasha teve que olhar mais uma vez Para o tabuleiro antes de perceber que o bispo dele pusera seu rei em xeQue e que nenhum movimento poderia salvá-lo. - Esta é a primeira vez que ganho um jogo de você há muito tempo. Está se sentindo bem?

- Sim - respondeu ela e observou-o arrumando as peças em seus respectivos lados do tabuleiro.

- Quer uma revanche?

A pergunta dele aproximava-se muito de seu próprio pensamento.

- Você procuraria uma revanche se fosse batido?

- Naturalmente. Eu ia querer uma chance para empatar.

- Meu povo nunca tem uma oportunidade para acertar as contas quando é batido pelos cossacos.

- Por que diz isso? - Andrei parou o que fazia e franziu a testa. Tasha não podia incriminar o irmão, mas disse:

- É verdade. Em Âttu os cossacos enganam os nativos na troca de peles ou fazem-nos pagar tributos mais de uma vez. Não há nada que meu povo possa fazer. Você não faz essas coisas... mas mesmo assim elas acontecem com outros.

- Está errado. Quando tais ocorrências são transmitidas ao agente da czarina, os culpados são punidos.

- Quem relata as ocorrências?

- Outros cossacos como eu, que desaprovam tal procedimento. Nem todas as maldades chegam aos ouvidos do governador-geral, mas a maioria chega. - Ele observou-a com os olhos semicerrados. - Por que a pergunta? Aconteceu alguma coisa?

- Eu estava pensando em casa e como estão indo as coisas com minha família. - Era uma meia verdade, mas não podia contar as maldades em Umnak e Unalaska sem trair o irmão. - Mas você se voltaria contra outro cossaco se ele maltratasse um aleúte?

- Sim. Se fosse um dos meus homens eu faria com que fosse punido. Do contrário, o denunciaria as autoridades competentes quando retomasse à Sibéria.

- Não há nada que você possa fazer enquanto isso?

- Não cabe a mim controlar as ações de homens que não estão sob meu comando. Não sou a lei. - A voz dele se tornava seca e impaciente.

- Que tal se um cossaco cometesse um delito contra um aleúte e este procurasse vingança? Se ele atacasse o cossaco, o que faria?

- Teria que impedi-lo.

- Mesmo que soubesse que o aleúte estava com a razão?

- Como poderia haver paz nas ilhas se permitissem acontecer tal coisa? Isso só criaria mais dificuldades. - Ele afastou a cadeira.- Esta conversa não tem sentido; não há nada a ganhar se continuarmos a discutir. Você não compreende a situação ou não faria perguntas tão tolas, Tasha. - Ele agarrou seu cachimbo e o fumo e saiu da cabine.

Ela olhou para as peças do xadrez, separadas por suas cores e alinhadas umas diante das outras. Viu também a falácia do argumento de Andrei. Os cossacos podiam cometer crimes sem medo de represálias de outros cossacos, mas os aleútes não. Andrei tinha de ficar impassível se um cossaco atacasse um aleúte, mas não era a mesma coisa se fosse de outra forma; ele não era tão justo quanto acreditara. com o coração pesado, Tasha compreendeu que Empertigado estava certo. Se os aleútes declarassem guerra aos cossacos, Andrei lutaria contra os nativos. Foi com grande dor que ela compreendeu isso, pois o amava muito.

Quando a primavera transformou-se em verão e a barriga começou a crescer com o bebé em seu útero, Tasha encontrou algum consolo na incapacidade do irmão persuadir os habitantes das aldeias a se unirem contra os cossacos. O cossaco de Olhos Azuis negociava corretamente com eles e não viam razão para se insurgirem contra ele devido aos problemas que outras ilhas vinham tendo com os cossacos.

Empertigado partiu em outra suposta expedição de caça, mas em vez disso viajou para Unalaska, a fim de relatar seu fracasso com os aldeões. Quando voltou, ela esperava que essa conversa de guerra estivesse acabada, mas não foi assim.

- Eles estão decididos a se livrar dos cossacos - disse-lhe Empertigado. - Dizem que mostrarão a seus irmãos aleútes que não há razão para temerem os cossacos. Todas as aldeias de Umnak e Unalaska têm um único pensamento e agora estão planejando como executá-lo.

- O que você vai fazer? Juntar-se a eles?

- Não sei. - Mas ela podia ver o desejo nos olhos do irmão. Eles querem que eu fique por aqui. Quando os caçadores aleútes virem que os cossacos podem ser batidos, talvez também lutem contra eles.

- Não... - Seu protesto foi débil, quase inaudível.

- Você vai contar a Andrei Nikolaivich sobre nossos planos? - perguntou ele com veemência.

Silenciosamente, ela sacudiu a cabeça em negativa.

 

Águias carecas eram pontos no céu, suas escuras asas abertas planando nas correntes termais da ilha, circulando cada vez mais alto. Embaixo o vento agitava os capins amarelados que douravam os prados. As elevações mais altas cobertas de liquens e de musgos exibiam os vermelhos, amarelos e laranjas da colorida paleta do outono. Apesar disso, o calor do verão ainda se fazia sentir.

Do lado de fora do abrigo semienterrado dos cossacos, cuja metade superior tinha paredes de troncos, doze promyshleniki reuniam-se para a cerimónia. Andrei pegou a criança de uma semana de idade dos braços de Tasha, apoiando com cuidado sua cabeça, e, meio desajeitado, transferiu o bebé enrolado numa trouxa para seus braços. Tasha ajeitou as bordas do cobertor quadrado em volta do corpinho que se agitava, ignorando seus gritos de protesto. Andrei afastou o cobertor do pescoço do bebé e embalou-o delicadamente. Seu peito inflava de orgulho ao olhar para o filho recém-nascido, mas sentiu uma ligeira perturbação quando viu as bordas desfiadas do cobertor de lã; seu filho merecia o melhor.

- Você deveria ter uma roupa de batismo - murmurou ele para a criança e depois sorriu, quando o vento ergueu uma ponta do cobertor e revelou sua cabecinha coberta de cabelos negros e macios. Andrei estava certo de que nenhum bebé jamais fora tão bonito como o seu. Observou as feições sombrias dos promyshleniki e voltou-se para Tasha, dizendo que estavam esperando-o.

- Eu estava pensando... talvez eu devesse ser batizada também... Ele ergueu ligeiramente a cabeça ao desaprovar em seu íntimo a ideia.

Nunca se considerara um homem muito religioso, e jamais considerara sua relação com Tasha como adúltera. Mas havia algo mais pecaminoso em coabitar com uma cristã.

- Não há necessidade - disse ele. - O batismo assegura que nosso filho não terá que pagar tributo quando crescer. E tributos não são coletados de mulheres. - Segurando o bebé com um braço, ele passou o outro pelas costas de Tasha e conduziu-a em direção ao grupo que os aguardava.

Aquela era a primeira oportunidade para os promyshleniki verem o filho de seu comandante. Quando Andrei chegou-se ao grupo, eles rodearam-no ansiosos para darem uma olhada no bebé. Comentários, cumprimentos e congratulações encheram o ar por alguns minutos. Após algum tempo, Andrei pediu silêncio e, diante daquela reunião de testemunhas, batizou seu filho.

- O servo do Senhor, Zachar Andreivich, é batizado em nome do Pai, amém, em nome do Filho, amém, e em nome do Espírito Santo, amém. - Fez o sinal-da-cruz, movimentando a mão da direita para a esquerda, conforme a tradição de sua fé.

Terminada a cerimónia, começou a festa. Copos de kvass foram servidos e vozes estridentes brindaram a Zachar Andreivich. Mas os gritos, risadas e todo aquele barulho provocavam muito mais ruído do que o pequeno Zachar Andreivich estava acostumado a ouvir. Como seu chorinho de protesto não foi atendido, ele lançou um berro a plenos pulmões.

- vou pegá-lo - disse Tasha, vindo em socorro de Andrei. De bom grado, ele entregou-lhe o barulhento filho.

Ela aconchegou-o de encontro ao ombro, segurando sua cabeça e sacudindo-o gentilmente para calar o choro. Andrei observou-a quando se afastava do barulhento grupo de caçadores russos. Achava-a de certa forma mais bonita do que antes; como se isso fosse possível, ela o agradava e excitava mais do que jamais o fizera. No entanto, ultimamente ele estava tendo apreensões acerca de seu plano para levá-la para a Rússia com ele.

Observava seu negro cabelo esticado para formar um coque no estilo nativo, sua longa parka de pele de foca enfeitada com orla de lontra e bordada com contas, e seus pés descalços com as solas endurecidas e calejadas. Criadas de quarto, costureiras e sapateiros podiam mudar sua aparência externa, mas quando ele procurava imaginá-la jogando uíste na casa do governador ou jantando na casa de um comerciante, ou assistindo ao teatro, não podia. Sua cultura era completamente estranha para ela. Não importa quão bonita ela fosse ou quanto se vestisse de acordo com a moda, não se adaptaria à vida social de Irkutsk.

Aquilo o preocupava muito, tal como o pensamento de abandonála. E havia seu filho; tinha um dever e uma obrigação para com ele. Andrei esperara tempo demais por um filho; não poderia abandoná-lo mais do que podia desistir de Tasha. Foi um problema com que lutou muitas vezes durante as longas noites do outono e do princípio do inverno.

Flocos de neve flutuavam no ar noturno. Uma fina camada cobria o chão e deixava claras impressões de dois pares de pés descalços que se afastavam das barabaras da aldeia, de onde provinham as surdas batidas dos tambores.

Tasha caminhava rápido enquanto a neve caía, acompanhando as longas passadas de seu irmão. Anos de exposição haviam endurecido seus pés contra o frio; naquele momento sentia mais a dolorida pressão nos seios repletos de leite, por isso apressava-se, varando o cortante ar frio.

A festa comunal promovida pela aldeia para agradecer às benesses do mar trouxera contentamento a seu espírito. As comidas cerimoniais e as danças rituais satisfizeram a necessidade que sentia de estar perto dos hábitos de seu povo. Ficara contente por Empertigado havê-la convencido a deixar o pequeno Zachar aos cuidados de Andrei e ir à festa anual com ele. Desejava apenas que tivessem levado junto o bebé, de forma a que pudesse ter ficado mais tempo, mas Andrei teimosamente se recusara a permitir que ela expusesse o filho à neve e ao frio, mesmo pela curta caminhada entre a barabara e sua habitação.

- O pequeno Zachar deve estar muito esfomeado agora. Eu deveria ter saído mais cedo, mas não quis perder a dança das máscaras. Cada palavra que ela dizia era acompanhada por uma nuvenzinha de vapor que o vento carregava.

- É prudente agradecer ao Criador pela generosidade de Seu mar ou Ele será capaz de diminuí-la nas próximas estações. E será bom para Zachar sentir fome num estômago vazio por um pouco de tempo - insistiu o irmão.

- Sim, mas Andrei Nikolaivich não gosta que ele chore. Ao menor choro de Zachar ele o pega no colo. Nunca vi um pai se preocupar tanto com um filho... - Mas ela o dizia com orgulho.

Andrei passava inúmeras horas com o filho. E desde o nascimento de Zachar sua paixão por ela parecia maior e suas manifestações amorosas mais ardentes. Tudo estava indo tão bem; mesmo os rumores acerca de guerra haviam cessado. Pelo menos Empertigado não mais tocara no assunto.

Quando chegaram à porta da pequena cabana, que fora parcialmente escavada no flanco de um morro, Tasha virou-se para o irmão e perguntou:

- Quer entrar para ver Zachar? - Ele cresce tanto...

Mas ele sacudiu a cabeça e desapareceu na noite, suaparka de couro de pássaro fundindo-se depressa com o remoinho de neve e a escuridão. Ela abriu a porta e entrou na cabana, logo sentindo o calor do interior; fechou rápido a porta para não desperdiçar o calor da lâmpada e virou-se ao ouvir o começo de um chorinho. Andrei andava de um lado para o outro, balançando a criança zangada contra seu ombro. Ao entrar no quarto, Tasha notou que o pequeno estava chupando a mãozinha.

- Ele está com fome - disse Andrei.

- Eu sei - replicou ela, tirando suaparka e estendendo-a no largo beliche.

Círculos molhados de leite manchavam a frente da camisa, e ela desabotoou os botões enquanto se sentava no beliche. Andrei entregou-lhe o bebé esfomeado e colocou-o em seu colo. Sua boca procurou o bico do seio quase antes que o tivesse ajeitado nos braços. Ele começou a mamar ruidosamente olhando para ela com seus olhos azuis de longas pestanas.

Sentado numa cadeira, Andrei observava-os. Se estivessem na Rússia seu filho teria uma ama-de-leite. Inclinou-se para a frente, descansando os cotovelos nos joelhos e juntando as mãos. Baixou um pouco a cabeça para evitar o reflexo do cabelo de Tasha, que brilhava com gotículas de neve derretida.

Seu filho era precioso para ele, mais precioso do que havia sonhado. Andrei desejava coisas para ele - coisas que podia e que iria lhe dar mesmo que isto significasse deixar Tasha para trás. Simplesmente não daria certo levá-la com ele.

- O que o aborrece, Andrei Nikolaivich?

- Estava pensando em casa - respondeu ele, levantando a cabeça mas sem poder enfrentar o olhar inquisidor.

- Está quase na época de sua festa - disse ela em um tom compreensivo.

- Ah, o Natal... - disse ele finalmente, adivinhando o que ela sugeria.

- Conte-me de novo sobre sua cidade, de modo que ela se torne familiar para mim.

Andrei hesitou. Ali estava a abertura; entretanto ele relutava em aproveitá-la, embora soubesse que devia.

- Estive pensando, Tasha... você não iria gostar - disse e depois apressou-se, antes que ela o questionasse: - A Sibéria não é como as ilhas; é cinzenta e feia. - Não mencionou as igrejas com suas cúpulas de cobre resplandecendo vermelhas ao sol. O vermelho era a cor da felicidade na Rússia. - Nossas casas, nossa comida, nosso modo de vida são diferentes daquilo que conhece. Seria muito estranho para você; agora eu percebo. Não teria família, não teria amigos. Lá é muito frio, Tasha, muito frio.

- Isto não me incomodaria. - Os olhos dela estavam arregalados, sua expressão revelando a tentativa que fazia para entender.

- O que faria lá, Tasha? Não há capim para tecer cestos, não há peles para limpar, não há couros de pássaros para fazer parkas, não há salmões para pegar nos riachos, não há ouriços para apanhar nos arrecifes... nada! Haveria apenas quartos: quartos para sentar, quartos para dormir, para comer, para cozinhar. Só isso. Ficaria muito infeliz. E eu a quero muito para vê-la infeliz...

- E as danças e o edifício onde as pessoas contam histórias?

- Isto ocupa apenas uma pequena parte do dia; em breve se cansaria disso também. - Andrei sabia que estava certo. Mesmo que ela pudesse aprender a aceitar essas coisas, ainda haveria o problema de seu filho... e o de sua esposa. Natalia poderia fechar um olho para Tasha sozinha, mas ficaria profundamente ferida de ter ali Tasha e Zachar, o filho que ela tanto almejara dar a ele nascido de uma outra mulher. E ele nunca poderia esconder seu orgulho da criança. Sabia também que Natalia de boa vontade criaria o menino. Tasha sozinha ela poderia aceitar; Zachar sozinho também, mas não os dois juntos.

- Para nosso filho é diferente - continuou ele, apressado. - Ele pode aprender os hábitos de meu povo. Desejo que ele tenha educação... que aprenda a ler e escrever... fazer marcas no papel - e aprender coisas úteis. Posso fazer isso para ele.

Os braços de Tasha protetoramente rodearam o bebé que mamava em seu peito.

- Você tiraria Zachar de mim...

- Apenas por pouco tempo, Tasha - assegurou-lhe ele, sério. Outras crianças aleútes já foram para a Rússia a fim de aprender nossa língua e nossos costumes e estudar nossos conhecimentos. E voltaram.

- Ele também sabia que aleútes tinham sido levados para a Rússia como afilhados, depois adotados. Zachar não precisaria ser seu filho bastardo; ele podia mais tarde ser considerado como seu herdeiro legítimo. - Zachar voltará. E eu também, Tasha. Tenho que levar este carregamento de peles para a Rússia neste verão. Sou um mercador, um comerciante. Isto é o que faço, da mesma maneira como Empertigado é um caçador. Eu voltarei para buscar mais peles e Zachar voltará comigo. - Pelo menos até que atinja a idade de ir para a escola... - Ficaremos juntos como estamos agora... aqui nas ilhas, onde você é feliz. Compreende?

Tasha encarou-o por longo tempo com seus olhos negros subitamente inexpressivos, depois disse:

- Compreendo.

Andrei endireitou-se na cadeira, aliviado. Não estava certo do que esperava que seria sua reação, talvez de raiva. Mas a aguda inteligência nativa de Tasha escutara a voz da razão.

- Não é uma coisa pela qual devamos nos preocupar agora. Ainda falta muito tempo para chegar o verão - disse ele, sorrindo.

- Muito tempo... - ecoou ela e acariciou o macio cabelo negro da cabeça do filho.

Quando o sol aproximou-se do solstício do inverno, as horas diurnas encurtaram. A atividade no acampamento e na aldeia próxima atingiu seu auge nessa ocasião. Poucos prestaram qualquer atenção a Tasha quando ela marchava apressada ao longo do caminho cheio de lama sob a neve. A paisagem de inverno era uma mistura da neve totalmente branca com as rochas negras, rodeadas pelas nuvens cinzas e a água de um cinzaesverdeado. Um bando de mergulhões escureceu o céu como uma espessa trilha de fumaça dirigindo-se para o mar. Mas o olhar de Tasha estava focalizado no irmão, agachado ao lado de sua bidarka, verificando uma parte da coberta de couro. Quando a viu chegar levantou-se.

Há dois dias que ela esperava pela oportunidade de falar com ele sozinho e não perdeu tempo:

- Preciso sair daqui. Zachar e eu temos que abandonar esta ilha - disse rapidamente. - Você nos tirará daqui?

- Por quê? - O irmão olhou espantado em direção à cabana. Ele a maltratou?

- Não. Ele está planejando levar meu filho. - Estava dominada pela agitação e a dor da traição de alguém em quem pensava que poderia confiar. - No próximo verão ele deseja levar Zachar com ele quando for para sua aldeia. Eu não deverei ir com eles. Ele diz que devo ficar aqui e que ele voltará. - Ela não acreditava nele; de todas as coisas que Andrei lhe dissera naquela noite uma ficara bem clara: - Ele vai roubar meu filho.

- Nunca se pode confiar em cossacos. - Empertigado lançou um olhar rancoroso para os promyshleniki que partiam para verificar as linhas de suas armadilhas.

- Devo pegar Zachar e abandonar a ilha enquanto Andrei Nikolaivich dorme. Não posso esperar.

- Para onde vai?

Tasha sacudiu a cabeça pois não tinha resposta.

- Não posso ir para nossa casa em Attu. Ele nos encontraria.

- Meus amigos em Unalaska nos receberiam bem em sua aldeia. Ele não iria procurá-la ali; ficaríamos em segurança. - O rosto dele refletia sua decisão. - Devemos partir esta noite.

- Reuni minhas coisas e as escondi. Logo que ele dormir, eu as tirarei do esconderijo e escaparei com meu filho.

- Eu pegarei o baldar dos cossacos e a encontrarei onde as águas correm por baixo da ponta de pedra. - Feitos seus planos, Tasha voltou para sua cabana e para o filho que ali dormia, a fim de esperar a chegada da noite.

A noite estava cheia com os tranquilos murmúrios do mar enquanto o baldar deslizava sobre as águas. O bebé embrulhado nos braços de Tasha fez alguns ruídos de protesto, mas não havia ninguém para ouvi-los, exceto seu irmão. A ilha de Adak ficara bem para trás; na cabana restara apenas o berço de Zachar. Tudo mais que possuíam estava no grande barco de couro, incluindo a bidarka do irmão e todo o seu equipamento de caça.

Empertigado faria outro berço para Zachar quando chegassem a Unalaska. O mar ondulante tinha um brilho prateado. Por cima deles as nuvens rasgadas revelavam as estrelas no céu noturno, e seus reflexos na água subiam e desciam com o movimento das ondas verdes esbranquiçadas.

 

Na ilha de Unalaska estavam em marcha os preparativos finais para engajar os cossacos em batalha. Os aldeões estavam observando os rituais e apelando para a presença protetora do Criador. A estratégia estava decidida: seria um esforço coordenado entre as aldeias das ilhas de Quatro Montanhas, Umnak e Unalaska, e as ilhas menores que as rodeavam. A força do inimigo na área era estimada em menos de duzentos cossacos enquanto que os aleútes contavam com mais de três mil guerreiros.

Durante todo o verão e o outono eles haviam fingido amabilidade com os cossacos, de forma a encorajá-los a dividir-se em pequenos grupos para a caça, como costumavam fazer quando não se sentiam ameaçados. Os aleútes haviam observado cuidadosamente as rotinas dos cossacos e usado seus hábitos para planejar emboscadas.

Ouvindo seus planos finais, Tasha compreendeu que os formidáveis cossacos poderiam ser sobrepujados e mortos. A amargura que sentia no coração se transformou em alegria. Eles deveriam ser punidos pelos males e sofrimentos que tinham causado, sofrimentos com os quais agora ela sentia empatia.

A aldeia em que Tasha e o irmão procuraram refúgio com o filho dela localizava-se numa grande baía encravada na ponta norte de Unalaska. Era uma aldeia pequena, composta de vinte caçadores vivendo comunalmente numa única bambara. A uma pequena distância dessa habitação, um grupo de onze cossacos construíra uma cabana de inverno com madeira jogada às praias pelo mar. Eles tinham vindo de um barco ancorado na baía, o qual podia ser visto da ilha quando o nevoeiro não o escondia.

Depois que Zachar acabou de mamar, Tasha recolocou-o no berço. Empertigado entrou na barabara acompanhado de dois outros caçadores; com um ar de triunfo ele mostrou as facas que conseguira em trocas com os cossacos e passou-as para os outros caçadores.

- Amanhã os cossacos saberão por que queríamos tantas facas anunciou ele, e os aleútes sorriram e balançaram as cabeças, compreendendo. Empertigado caminhou para o cubículo onde estava Tasha. A impaciência pela batalha estava em seus olhos quando se acocorou ao lado dela. - Começará amanhã de manhã. Antes do nascer do sol, leve o pequeno Zachar e esconda-o nos morros com as outras. As velhas concordaram em ficar aqui, de forma que os cossacos não alimentem suspeitas.

- vou ficar também. - Tasha conhecia o plano: a cada manhã metade dos cossacos saía da cabana para verificar suas armadilhas de raposas na ilha; um dos aldeões os atrairia a uma emboscada. Os cossacos que ficavam sempre vinham à barabara. Os demais caçadores os atacariam mal entrassem. - Conchinha olhará Zachar para mim.

Seu oferecimento agradou ao irmão: afinal estavam do mesmo lado.

- Fique do lado de fora pela manhã; quando começar o ataque, junte-se às outras mulheres nos morros.

- Assim farei.

Depois que sua chama foi apagada, a lâmpada de pedra foi levada para o canto mais remoto da barabara, de forma que não fosse virada na luta e seu óleo derramado. A luz do dia que se filtrava pela palhada do teto deixava uma grande parte da barabara em sombras. Dois dos caçadores aleútes ficaram dentro da área iluminada, com seus porretes e facas escondidos nas dobras de suas parkas. Empertigado esperava na sombra com os outros, em posição perto do tronco que servia de escada, pelo qual os cossacos em breve desceriam. Seus nervos estavam tensos, todos os seus sentidos alertas, o sangue pulsando forte na veia que lhe subia pelo pescoço. Sua pressão sobre o porrete que usava para caçar aumentou.

Alguns momentos antes, Parecido-com-Cobre, o sentinela postado no teto da barabara, fizera um sinal para avisá-los de que um grupo de cossacos saíra da cabana para verificar as armadilhas de raposas. Se seus hábitos se repetissem, em breve os outros cossacos fariam sua visita regular à barabara.

Subitamente ouviram-se saudações na língua dos cossacos e passadas aproximaram-se da abertura no telhado. Empertigado viu Parecidocom-Cobre descer na frente pelos degraus do tronco. Em voz muito baixa, o aleúte transmitiu o aviso:

- Estão vindo três; um trazendo uma machadinha.

Empertigado mergulhou mais nas trevas, torcendo seu corpo ligeiramente, de forma que não parecesse que seu interesse se concentrava nos cossacos que desciam a escada um a um, o tronco gemendo sob seu peso. O narigudo que trazia a machadinha desceu por último. Quando chegou próximo ao chão, os dois primeiros cossacos pareceram sentir que algo estava errado.

- Agghh! - Empertigado gritou o sinal para o ataque e, com um possante golpe de porrete, acertou o cossaco mais próximo nos ombros, atirando-o no chão de terra.

Empertigado pulou sobre o corpo e repetidas vezes cravou-lhe a faca nas costas, enquanto ao seu redor porretes e facas golpeavam em meio aos berros de aleútes e cossacos. Um segundo cossaco caiu e dois aleútes jogaram-se sobre ele com suas facas.

Quando Empertigado deixou o corpo de sua vítima, o cossaco de nariz grande, bastante ferido, começou a brandir sua machadinha como um possesso, girando-a para um lado e para outro, fazendo os nativos se afastarem enquanto ele recuava em direção à escada. Empertigado tentou bloquear sua fuga da barabara, mas a lâmina ensanguentada do machado descreveu um arco em sua direção. Ele deu um pulo para trás e sentiu como uma queimadura quando a lâmina cortou a parka e a parte carnuda de seu peito. Ignorando a dor, ele perseguiu o cossaco escada acima, mas a ameaça da machadinha em constante movimento impediu-o de agarrar as botas do homem e arrastá-lo para baixo.

Todos menos dois dos aleútes seguiram Empertigado escada acima atrás do cossaco em fuga; os dois que ficaram tinham sofrido severos cortes infligidos pelo homem brandindo a machadinha. Quando Empertigado saiu da escotilha no teto da habitação, o narigudo disparou numa corrida trôpega pelo teto abaixo e gritou um alerta para os cossacos que permaneciam na cabana. Um cossaco saiu correndo do meio do mato a alguma distância da cabana, erguendo as calças. Empertigado viu que tinha pouca chance de impedir que o homem armado de machadinha chegasse à cabana, mas o outro cossaco não estava armado. Correu para interceptá-lo.

Eles o rodearam a alguns metros da cabana. Empertigado viu o pânico nos olhos do homem quando se dirigiu para ele com sua faca. O cossaco agarrou-lhe o braço que empunhava a faca e Empertigado esforçou-se para sobrepujá-lo, sentindo o sangue escorrer do corte que lhe rasgara o peito. Alguns dos aleútes tinham pegado lanças antes de saírem da barabara, e um deles feriu o cossaco. Sua boca abriu-se com o choque e o horror da estocada e ele largou o braço de Empertigado, que logo enfioulhe a faca. O cossaco caiu de joelhos, enquanto os outros continuavam a feri-lo com suas lanças.

Parecendo quase simultâneos, estrondos ensurdecedores rasgaram o ar e dois aleútes giraram sobre si mesmos como se tocados por uma força invisível - os mosquetões dos cossacos. O homem no chão ainda se movia; sabendo que os cossacos precisavam de tempo para recarregar suas armas, os guerreiros ficaram para acabar com sua vítima.

Um cossaco saiu correndo da cabana e atirou-se no meio deles, esgrimindo uma enorme faca. Atingiu o flanco de Empertigado, cortandolhe a carne mas sem atingir nenhum órgão; ele recuou agarrando o enorme corte, a fim de evitar a perda do sangue que dele esguichava. Um outro aleúte caiu sob a faca do homem, o qual agarrou o camarada caído e começou a recuar em direção à cabana, enquanto outra salva de fogo de mosquetões troava pelo ar.

Com sua própria força severamente afetada pelas feridas, os aleútes afastaram-se do alcance do fogo dos mosquetões. Empertigado ficou parado um pouco para recuperar o fôlego, sentindo o cheiro de sangue e do suor da luta em seu nariz. Estava consciente da fraqueza que o dominava e do tremor de seus músculos com a fadiga.

- Nós os temos encurralados - disse Empertigado sentando-se, a respiração ofegante. - Os mosquetões deles podem nos impedir de entrar, mas em breve eles terão de sair para apanhar comida e água. Nós estaremos prontos.

- Apenas quatro estão vivos, e dois estão muito feridos - afirmou Parecido-com-Cobre. - Não escutamos nada sobre os outros. Acha que tiveram sucesso e mataram os cossacos?

- Em breve saberemos. - Um ou outro dos combatentes estaria voltando para a aldeia. Empertigado conseguiu ficar de pé, segurando sua ferida, o sangue pegajoso manchando sua parka. - Vamos. Precisamos libertar a energia dos corpos daqueles que matamos e levar nossos feridos para o acampamento de verão, onde as mulheres estão esperando.

Três dos guerreiros aleútes ficaram perto da cabana, para o caso em que os cossacos tentassem fugir para seu baidar; os outros voltaram para a bambara. Enquanto alguns ajudavam seus dois guerreiros feridos escada acima, Empertigado e os outros sacaram de suas facas e começaram a cortar os braços e as pernas dos cossacos massacrados. Tão logo as extremidades foram separadas dos corpos, eles as cortaram de novo nas juntas; por fim, juntando todos os pedaços, eles os carregaram para fora da barabara e os jogaram no mar, assegurando-se assim de que não haveria novo encontro fatal com os mortos.

Como os outros feridos, Empertigado lavou seus cortes no mar e colocou uma atadura sobre a ferida em seu flanco, mas não acompanhou os outros cinco caçadores feridos quando eles partiram para o acampamento de verão, aqueles que podiam andar ajudando os que não podiam. Permaneceu com os outros aleútes para manter o cerco à cabana dos cossacos.

Em breve o grupo da emboscada voltou para a aldeia. Empertigado olhou com inveja para as duas pistolas e os mosquetões que haviam capturado após aniquilarem o inimigo.

- Mostrem aos cossacos na cabana as armas e as roupas que vocês tiraram dos companheiros deles. Assim saberão que estão sozinhos na ilha

- instruiu-os Empertigado. Dois dos guerreiros deram um passo para fora e se colocaram a plena visão da cabana, agitando os frutos de sua pilhagem para que os homens lá dentro os vissem.

Aos primeiros sons de luta dentro da barabara, Tasha abandonara sua pretensa busca de madeira na praia e acenara às duas mulheres velhas da aldeia para que a acompanhassem. Juntas, elas marcharam através dos morros da estreita ilha até o acampamento de verão situado próximo a uma corrente d'água onde acorria o salmão durante o período de desova. Ali elas se haviam juntado ao resto dos aldeões - mulheres, crianças e homens velhos demais para lutar - e ficado à espera das notícias do resultado do ataque.

Zachar dormia no berço enquanto Tasha, a seu lado, enchia o tempo de preocupação costurando uma pequena parka impermeável para ele. Continuava a lembrar-se dos estrondos dos tiros de mosquetão vibrando pelos morros da ilha. Os ruídos ao seu redor agora eram o sopro do vento, os gritos misturados das aves marinhas e a voz de um velho recontando seus dias de valentia para alguma criança.

Parando de costurar, ela correu os olhos pelo horizonte na direção da aldeia, um horizonte dominado pelo vulcão coberto de neve da ilha de Unalaska, que alcançava até as nuvens. Deu um suspiro e retomou seu trabalho. O pequeno Zachar agitou-se; por um momento ela viu qualquer coisa de Andrei nas feições de seu filho e experimentou uma punhalada de dor que logo esvaiu-se.

Alguém deu um grito pedindo socorro. Levantando a vista, Tasha viu um grupo de guerreiros cambaleantes que se aproximavam do acampamento. Eram nove ao todo, cada um deles carregando ou meio suportando uns aos outros. Num pulo, ela largou sua costura, juntando-se às outras mulheres que se apressavam para ajudar os homens feridos e ensanguentados. Seu olhar procurou entre os rostos o de seu irmão. O alívio dela foi incerto quando verificou que Empertigado não estava entre eles. A expressão da fisionomia dos feridos deu-lhe no entanto esperança; nos olhos deles havia a luz da vitória.

Aquela, entretanto, não era a ocasião para fazer perguntas. Tasha pôs-se a cuidar das feridas das vítimas. Tal como as outras mulheres, sua perícia em cuidar de ferimentos vinha de uma variedade de fontes. O carnear quase diário da lontra-do-mar, cuja anatomia era comparável com a dos humanos, dava-lhes um conhecimento dos ossos, dos músculos e dos órgãos do corpo. A destreza de seus dedos provinha de tecer palha fina e a habilidade com que fazia suturas vinha do constante costurar de roupas e casacos de peles para baidars e bidarkas. Dos antepassados ela aprendera os meios de bloquear a dor enfiando agulhas em certas partes do corpo.

Enquanto trabalhava, soube que alguns dos feridos provinham do ataque aos cossacos na aldeia e que quatro deles foram feridos na emboscada armada para os que tinham ido verificar as armadilhas. Um homem pôde dizer-lhe que Empertigado sobrevivera e que ficara para cuidar dos quatro cossacos cercados na cabana deles.

O pequeno Zachar acordou e gritou para mamar, mas a necessidade dele não era tão grande como a daqueles homens, e ela deixou-o chorar. com todo cuidado, abriu a barriga de um homem onde uma bala de mosquetão tinha feito um furo redondo. Ao procurar no buraco a bala de chumbo, ela viu os líquidos do estômago do homem e percebeu que o órgão fora perfurado. Sabia que ele certamente morreria, mas mesmo assim prosseguiu e achou a bala de mosquetão, que retirou; em seguida, fechou o orifício no estômago e suturou a ferida externa. Afastou-se, consolada por saber que a agulha aliviaria bastante a dor da morte.

Agora os seios doíam com o leite acumulado. Tasha foi para perto do filho e aliviou o desconforto de ambos. Seu corpo balançava-se gentilmente enquanto o alimentava.

Durante o tempo em que a ameaça de luta persistia, os jovens, os velhos, as mulheres e os feridos ficaram no acampamento de verão, enquanto os guerreiros mantinham o cerco à habitação dos cossacos.

Depois do quarto dia chegou a notícia que era seguro retornar.

Os quatro cossacos haviam escapado da ilha durante a noite, chegando até seu baldar, acobertados pela escuridão, e deixando a baía.

- Não fizemos nenhuma tentativa para impedi-los - admitiu Empertigado a Tasha. - Não ousamos enfrentar os mosquetões deles à noite. Não éramos em número suficiente.

- Eles escaparam. Agora avisarão os outros. - Ela sabia que a surpresa era a melhor arma dos aleútes.

- Não há ninguém para alertar. - A satisfação curvava os cantos de sua boca. - Os cossacos que viviam no acampamento da ilha próxima foram todos mortos. E seu barco ancorado na baía não existe mais, os homens que estavam dentro dele morreram todos. Não há nenhum lugar para se esconderem. Já mandamos notícia para as outras ilhas para que fiquem de sobreaviso para os quatro cossacos.

- E quanto aos outros cossacos e os outros quatro barcos? - Ela temia que algum cossaco pudesse escapar e levasse a notícia do levante a seus camaradas nas outras ilhas. Receava que Andrei viesse para Unalaska. Se a achasse aqui depois de ter fugido dele, certamente lhe tomaria Zachar.

- Alguns já foram atacados; o resto o será em breve. - Ele hesitou antes de continuar: - vou para a aldeia de Makushin, na ilha de Unalaska, onde eles estão reunindo guerreiros para atacar a residência dos cossacos nas costas daquela baía.

Ela percebeu que Empertigado tencionava que ela permanecesse ali. Mas aqueles aleútes, embora tivessem sido bons para ela, eram estranhos. Empertigado era seu irmão; podia confiar nele em tempo de necessidade.

- Nós iremos com você, Zachar e eu.

- Haverá perigo - avisou ele.

- Enquanto houver cossacos nas ilhas haverá perigo. Se alguns deles fugirem, o perigo será maior. - Era estranho ouvir tais palavras saindo de sua boca.

Certa ocasião desejara que todos os cossacos fossem justos e bons como Andrei Nikolaivich Tolstykh. Mas não era justo e bom roubar o filho de uma mulher. Empertigado a prevenira de que Andrei lhe tiraria o que desejasse e a deixaria chorando. Tasha lamentava não tê-lo ouvido. Agora a dor que sentia a tornava fria por dentro e ela desejava poder expandir-se; mas seu coração ansiava por aquilo que havia perdido.

- Partiremos ao romper do sol amanhã - disse Empertigado.

Um grupo de setenta guerreiros aleútes reuniu-se para avançar sobre a habitação onde viviam quinze cossacos, segundo seus batedores. O barco deles estava ancorado na baía. Todos os guerreiros carregavam fardos de peles de lontra, para que os cossacos pensassem que vinham comerciar. O chefe dos cossacos, porém, suspeitou deles.

- Ele disse que se tínhamos ido negociar, então apenas dez de nós de cada vez podíamos ficar perto de sua habitação, não mais - disse Empertigado a Tasha quando se sentaram juntos naquela noite na barabara cheia de gente. Ele estava frustrado e zangado. - Dez, contra quinze cossacos com pistolas e mosquetões. Não podíamos fazer nada; não havia nenhuma chance de surpreendê-los nem de cair sobre eles com nossa superioridade numérica. Tínhamos que negociar as peles e ir embora.

- O que vão fazer agora? - perguntou ela quando ele endireitou as costas e sentiu um arrepio de dor na ferida, do lado em que ele recusara ser examinado.

- Um caçador que ficou para vigiar a habitação voltou para a aldeia há pouco, dizendo que três homens que caçam com os cossacos, mas que não são cossacos, vieram até a habitação. - Tasha suspeitava que seu irmão se referia à gente que Andrei chamava de kamchadals, uma tribo como os aleútes, mas que vivia na Rússia. - Ele disse que demonstravam muito medo e que acreditava que talvez tivessem escapado de um dos barcos que destruímos.

- Eles alertaram os cossacos; vocês não terão nenhuma chance de surpreendê-los - disse Tasha. - Estarão esperando por vocês.

- Já mandamos mensagens para outras aldeias. Precisamos de mais guerreiros se quisermos vencê-los - admitiu ele.

Foram necessários dois dias para os aleútes reunirem uma força maior e montar seu ataque à aldeia dos cossacos. Armados com lanças, arcos e flechas, desfecharam seu ataque, mas o fogo dos mosquetões da cabana os repeliu. De novo se viram obrigados a montar um cerco ao acampamento, de vez em quando trocando flechadas e balas de chumbo com os cossacos e carregando seus feridos para a retaguarda. Mais uma vez os cossacos fugiram e alcançaram a segurança de seu shitik na baía, mas não levantaram velas. Voltando para a barabara da aldeia que os abrigara, Empertigado conheceu o gosto do desapontamento. Passou por sua irmã sem falar e sentou-se na enxerga onde seu ativo sobrinho estava de barriga para baixo, agitando pernas e braços. Ficou escutando os alegres sons do bebé e observando quando ele empurrava o corpo para cima com suas mãozinhas, experimentando a força dos pequenos braços. Empertigado agarrou uma das mãos dele e apertou os quatro dedos até que as juntas ficaram brancas. Era um exercício que deveria ser feito regularmente caso se quisesse que a criança tivesse mãos quentes quando adulta. Empertigado apertou os dedos da outra mão, consciente de que Tasha o estava observando, esperando que falasse.

- A maioria dos guerreiros voltou para suas aldeias -disse ele. Suas famílias estão famintas e eles precisam caçar para alimentá-las.

- Os cossacos só precisam se preocupar consigo mesmos. Não têm famílias para alimentar. - Tasha reconhecia o peso que mulheres e crianças representavam em tempo de guerra.

- Eles dizem também que, enquanto os cossacos estão em seu barco, é muito perigoso atacá-los da água. Eles podem matar muitos de nós com seus mosquetões antes que alcancemos o barco.

- Por que os cossacos não se foram? Por que permanecem? Empertigado sacudiu a cabeça, depois atentou de novo para a pergunta e disse.

- Talvez eles acreditem que outros de seu grupo estão vivos; talvez pensem que não matamos o resto, de forma que esperam que eles voltem.

Durante o resto do inverno, e até o início da primavera, o shitik permaneceu no porto, ancorado próximo à costa. Os aleútes mantinham uma vigilância permanente sobre o barco, flechando quaisquer cossacos suficientemente tolos que se expusessem por muito tempo. Na época em que os machos das focas peludas nadam através dos canais entre as ilhas, em direção a suas desconhecidas colónias ao norte, os cossacos desfraldaram as velas do barco e partiram. Empertigado viu o barco partir e observou com alguma satisfação os sinais de tempestade no céu. No dia seguinte um vendaval assolou Unalaska, seus violentos ventos encapelando o mar e açoitando a chuva contra a ilha.

Mais tarde, veio da ilha Umnak a notícia de que o barco naufragara em suas costas e que os guerreiros locais haviam atacado os sobreviventes, matando cinco e ferindo todo o resto antes que finalmente fossem rechaçados. Os cossacos foram incapazes de impedir que os guerreiros saqueassem o barco naufragado. Agora a presa que fizeram podia ser negociada. Empertigado obteve um mosquetão, uma pequena quantidade de pólvora e balas de chumbo em troca do baldar no qual ele e Tasha haviam fugido de Adak. Inúmeras noites, durante o verão, Tasha observara-o limpando sua preciosa presa, como tinha visto os cossacos fazerem.

Durante todo o verão notícias de escaramuças isoladas entre os aleútes e um punhado de cossacos escondidos na ilha de Umnak chegaram à aldeia. Mas uma sensação de paz invadia as ilhas quando eles retomaram seus antigos hábitos de vida, livres da opressão dos cossacos.

Quando as frutas silvestres ficaram maduras e as baleias voltaram às baías, Tasha olhava para seu pequeno filho lembrando-se de que esta era a época em que os cossacos usualmente partiam para retornar a sua terra do outro lado do mar.

As velas de um barco de cossacos foram avistadas ao largo da ilha de Unalaska. Temendo que o barco fosse o de Andrei, Tasha pressionou o irmão a descobrir quem eram os cossacos e onde haviam aportado. Empertigado seguiu com um pequeno grupo de reconhecimento para observar a força dos cossacos.

Muitas das armas de fogo dos cossacos estavam em poder dos aleútes, mas os cerca de cem mosquetões e pistolas estavam muito espalhados entre os guerreiros das várias ilhas do grupo e seu suprimento de munição era escasso. Mesmo possuindo algumas armas dos cossacos, os aleútes não tinham capacidade para montar uma ofensiva contra um grande grupo deles. Sabiam que era preciso deixar que os cossacos desembarcassem em sua ilha se essa fosse sua intenção.

O grupo de reconhecimento localizou o veleiro dos cossacos ancorado numa das baías.

- Olhem! - Baleia Assassina chamou a atenção deles para alguns homens que se movimentavam no convés. - Lá está Solovey.

- Quem é Solovey? - perguntou Empertigado.

Um cossaco que trouxe seus homens para nossa ilha uma vez, para caçar e coletar tributo.

Após estudar o barco e seus homens por mais algum tempo, Empertigado anunciou:

- Deveríamos falar com eles.

Foram para a praia e fizeram sinais aos cossacos a bordo para que viessem à terra. Dentro em pouco alguns homens foram mandados à terra num barco de madeira. Baleia Assassina apontou Solovey para Empertigado. O homem alto e corpulento, de barba preta e com nariz adunco, sentava-se na proa da embarcação. Seus olhos pareciam duros e vivos. Quando ele pisou na areia o cossaco Solovey saudou primeiro Baleia Assassina e depois deu a todos presentes de fumo.

- Você é valente para vir a estas ilhas, Solovey. - Quando Empertigado falou-lhe na língua dos cossacos, o homem virou-se bruscamente para encará-lo.

- Valente? - Uma de suas espessas sobrancelhas estava mais levantada do que a outra. - Por que diz isso?

- Viu algum barco de cossacos?

- Não.

- Não encontrará nenhum aqui - disse Empertigado. - Nós destruímos todos os barcos de cossacos em Unalaska, Umnak e nas ilhas das Quatro Montanhas. - Observou quando o rosto de Solovey ficou drenado de sangue, e depois quando o sangue voltou-lhe às faces.

- Como os destruiu? - perguntou.

- Alguns foram lançados à costa e arrebentaram-se nas pedras; outros foram queimados.

- Onde estão os homens desses navios?

- Nós os matamos.

- Como os mataram? - Solovey encarava-o, incrédulo.

Empertigado contou em detalhes as operações de emboscadas, dizendo ao cossaco como os aleútes tinham atraído seus camaradas aos montes, depois caído sobre eles, cortando-lhes os tendões dos jarretes, de forma que não pudessem correr, e depois matando-os. Descreveu os ardis usados, trazendo peles para negociar, com tiras de couro tão apertadas em volta delas que os cossacos teriam que usar suas facas ou espadas para cortá-las, e como os guerreiros aleútes tinham usado este momento para cortar os pescoços dos cossacos.

Embora o rosto de Solovey ficasse mais vermelho de raiva e ele tremesse, continuou a olhar para Empertigado com dúvida nos olhos.

- Onde estão os corpos daqueles que vocês alegam terem matado? Apontando para o mar, Empertigado respondeu:

- Nós cortamos seus braços e pernas em pedaços e jogamos nas águas, para que eles não representassem mais perigo para nós.

Solovey praguejou tão rápido na língua dos cossacos que Empertigado não pôde entendê-lo. Imediatamente Solovey questionou os outros aleiotes para verificar se o que Empertigado dissera era verdade. Quando eles confirmaram, Empertigado observou a súbita atitude de cautela do homem. Em sua cintura ele tinha enfiada uma pistola e os cossacos ao redor estavam bem armados com mosquetões, enquanto Empertigado e os aleútes carregavam apenas facas. Eles eram quatro e os cossacos sete, entretanto Solovey olhava para eles da mesma forma que uma lontra avalia a proximidade do perigo; a seguir, ele relanceou o olhar pelos morros que se estendiam para além da praia, como se esperasse encontrar maior número de aleútes escondidos.

Aquela era a reação que Empertigado procurara. Desejava que aqueles cossacos sentissem o medo em seus corações; por esse motivo é que ele narrara o massacre dos cossacos em detalhes. Sabendo o que havia acontecido com seus companheiros, eles ficariam com medo dos aleútes, receando permanecer na ilha. Não havia razão de lutar com os cossacos se, em vez disso, podiam assustá-los.

Quando voltaram para o escaler e remaram em direção ao Sv Peter i Sv Pavel, Ivan Solovey notou que vários de seus homens olhavam apreensivos para os aleútes na praia. Sua inquietação apenas aumentou a raiva que fervia dentro dele.

- Acha que o que eles disseram é verdade, Solovey? - perguntou um dos promyshleniki.

- Eles estão contando vantagem - afirmou Solovey com energia, determinado a evitar que o medo e o pânico se espalhassem entre sua companhia. - Talvez tenham matado dois ou três russos; mas ter eliminado as guarnições de cinco navios é impossível!

- Por que iriam então alegar que o fizeram?

- São selvagens; você não pode acreditar neles. - O próprio Solovey perguntava-se de que serviria aos aleútes confessar atos tão horripilantes.

- Mas e se for verdade?

- Nós descobriremos se foi - afirmou Solovey.

Quando eles chegaram a bordo do navio, a história do massacre dos russos foi instantaneamente relatada aos outros promyshleniki. Solovey tolerou o caos de vozes que clamavam e demandavam respostas e levantavam perguntas apenas por pouco tempo.

- Silêncio! - berrou ele, dominando o clamor, e veio postar-se no meio do convés onde todos podiam vê-lo. Gradualmente o barulho foi se transformando num ocasional murmúrio à medida que ele olhava para cada um de seus homens. Seu olhar demorou-se no cossaco Korenev, que fora destacado no veleiro como coletor de tributos para o governo. Amanhã, Korenev, você pegará vinte homens, todos armados com mosquetões e pistolas, e fará um reconhecimento ao longo da costa. Veja se pode encontrar qualquer prova em apoio dessas loucas alegações dos aleútes.

Sua ação estabeleceu novamente um certo grau de ordem e disciplina no meio de sua tripulação. Mas da mesma forma que os promyshleniki, Solovey esperava ansioso pela volta do cossaco com seu relatório. Era duro acreditar que duzentos russos bem armados pudessem ser massacrados por um bando de selvagens armados apenas com arcos, flechas e lanças.

Todo mundo reuniu-se no convés quando o barco trazendo Korenev e seus homens aproximou-se do veleiro. Solovey foi a seu encontro quando ele subia a bordo.

- O que você descobriu?

- Encontramos apenas três habitações dos nativos, todas vazias, penso que os aleútes fugiram para as montanhas quando nos viram chegando - respondeu ele.

- Encontrou alguma coisa que desse crédito à história deles? - perguntou Solovey, pensando que os aleútes se comportavam como covardes.

- Recuperamos alguma roupa russa, duas pistolas e uma espada nas barabaras - disse o cossaco, encolhendo os ombros. - Eu diria que alguns russos foram mortos por esses selvagens para que tais-coisas caíssem em suas mãos.

 

Ninguem ousava aproximar-se de Andrei Tolstykh, de pé no convés da popa. Todos evitavam aqueles olhos azuis e gelados que podiam perfurar um homem e fazer sua pele arrepiar-se. Nenhum dos promyshleniki falava da mudança dele depois que a jovem mestiça fugira com seu filho recém-nascido há menos de um ano - certamente não de forma que ele pudesse ouvir. Embora ele continuasse barbeado e vestido com seu costumeiro cuidado, Tolstykh tinha agora o rosto encovado, olheiras profundas e escuras e mantinha os lábios apertados. Seu hálito recendia a kvass, no entanto a potente bebida nunca parecia afetá-lo.

Os poucos promyshleniki que estavam no acampamento-base naquela manhã de inverno, quando Tolstykh descobriu que a jovem se fora, lembravam-se da frenética busca que ele havia comandado. Os aldeões tinham sido acordados e retirados de suas barabaras e as habitações foram quase desmanteladas quando ele não pôde encontrá-la. Muitas vezes eles descreveram a seus companheiros caçadores, que tinham estado nas estações externas, o olhar no rosto de Tolstykh quando lhe informaram Que estava faltando um baldar e que o irmão aleúte da rapariga não era encontrado em lugar nenhum do acampamento; como ele havia ficado imóvel, como todo mundo tinha instintivamente recuado um passo, pressentindo sua fúria e desejando ficar fora de seu caminho. Mas não havia Palavras que pudessem descrever a dolorosa experiência de observar um homem quase ficando louco e a inquietação que se seguiu quando não ficou.

Nos meses passados Tolstykh vasculhara incansavelmente o grupo de ilhas onde os promyshleniki caçavam, indo a todas as aldeias e questionando todos os nativos, solicitando peles de lontras ou respostas. O porão do veleiro estava cheio de peles; uma resposta tinha mandado o veleiro nesse curso para leste em vez de ir para oeste e para casa, na Rússia. Um nativo dissera que o irmão da jovem por duas vezes visitara uma aldeia na ilha de Unalaska.

Sem ligar para as gotas de chuva impelidas pelo vento que fustigavam seu rosto, Andrei corria os olhos pela costa, obscurecida pela chuva, dessa grande ilha marcada por uma multidão de golfos pequenos como dedos e vastas baías. Havia notícia de cinco navios russos operando naquela região e no entanto ele ainda não vira nenhum, bem como qualquer estrutura na praia indicando a localização de acampamentos. O instinto primitivo que o guiara para essa ilha tornou-se mais forte quando velejou pela entrada de uma baía com o formato de dois dentes e circundou uma ponta de terra. Seu filho estava em algum lugar naquela ilha e Andrei sequer tentou explicar a certeza que sentia, nem para si mesmo. Se tivesse que desmontar a ilha, rocha por rocha, encontraria Zachar.

Além da ponta de terra, uma ampla baía mergulhava suas garras d'água no pescoço e nos ombros da ilha. Obedecendo à voz interior que lhe falava, Andrei mandou que o barco entrasse no porto natural, completamente consciente de que haviam passado ao largo de diversas baías que lhe teriam oferecido um fundeadouro igualmente seguro.

Alguns shitiks estavam ancorados nas águas mais calmas; suas velas colhidas e os mastros nus. À vista de um outro barco, os homens agitaram-se no convés; após três anos estavam cansados de sua própria companhia, ansiosos para avistarem outros rostos, talvez algo familiar, e curiosos para receberem quaisquer notícias de casa. O interesse de Andrei, no entanto, concentrava-se apenas na informação que poderia obter para levá-lo a seu filho.

Com cobertores para se proteger da chuva, os sentinelas no convés do shitik saudaram efusivamente o Andreian i Natalia quando ele encostou ao longo de seu bordo e lançou âncora. Andrei não respondeu a seus apelos; em vez disso, estudou os caçadores armados e as defesas improvisadas no tombadilho. O cossaco Maxim Lazarev respondeu à saudação do shitik; os sentinelas pareceram ficar desapontados ao saberem que eles estavam vindo há pouco de Adak. Disseram estar sob o comando de Ivan Solovey, o qual fora à terra com o contingente principal de caçadores, com isto respondendo ao apelo de Andrei para falar com seu líder.

Impaciente para falar com o homem e prosseguir em sua busca, Andrei ordenou que fosse arriado o escaler.

- Vão bem armados - aconselhou um dos sentinelas. - Tem havido problemas.

Mais dois sentinelas foram ao encontro do escaler quando ele aportou na ilha e escoltaram Andrei e seu pequeno grupo para o acampamento fortificado. Ele sentiu o nervosismo reinante no acampamento, que se tornou aparente quando entrou no abrigo de inverno e os homens que estavam lá dentro ficaram visivelmente assustados com a abertura da porta. Andrei reconheceu Ivan Solovey, embora ele conhecesse o homem, principalmente por sua reputação em Okhotsk como jogador e beberrão, e por dissipar com mulheres em um ano o ganho de três anos de caça de peles. "Soloviev" era o nome russo de rouxinol; nada havia nesse grosseiro homem de negras barbas que lembrasse o pássaro de doce canto. Dizia-se que seus homens lhe haviam posto o apelido de "Oushasnui Solovey" - o "Rouxinol Horroroso".

- Sou Andrei Nikolaivich Tolstykh, comandando o Andreian i Natalia - Andrei fez um ligeiro cumprimento de cabeça que sugeria uma cortês mesura. Ele sabia muito bem que seu nome era conhecido de Solovey - e de todos os que levantavam velas de Okhotsk.

- Ivan Petrovich Solovey, comandando o Sv Petr i Sv Pavel. Bemvindo a Unalaska, Andrei Nikolaivich. - De uma maneira sincera e amável, ele usou as duas mãos para apertar a mão e o braço direito de Andrei. - Estávamos começando a pensar que não havia outros veleiros russos na área.

- Ouvi dizer que há cinco operando neste grupo de ilhas.

Solovey subitamente pareceu tornar-se consciente da existência de outros ouvidos na cabana escutando sua conversação; quando tornou a falar, sua voz ecoava cheia de animação:

- Que espécie de anfitrião sou eu, deixando-o ficar aí de pé, todo molhado e frio? - Pegou o casacão de Andrei e jogou-o para um de seus homens. - Venha comigo - disse a Andrei. Tenho algo que irá esquentar-lhe o sangue.

Após sinalizar a seus homens para que ficassem afastados, Andrei seguiu Solovey para o quarto particular no fundo da cabana. Não havia cadeiras para sentar-se, apenas uma rede estendida e alguns barris de madeira; em cima de um deles via-se um samovar. Solovey fechou a rústica porta de madeira e depois dirigiu-se para a rede e retirou uma garrafa de conhaque barato, que estava escondida dentro do cobertor.

- Sente-se - disse Solovey, apontando para um dos barris.

- Estou velejando sob a proteção especial de um ucasse imperial concedido pela imperatriz Isabel Petrovna...

- Então você está no mar há muito tempo, Andrei Nikolaivich. Solovey despejou porções iguais de conhaque num par de canecas e dePOiS misturou a bebida barata com água quente do samovar. - Ela morreu. Seu sobrinho sucedeu-a no trono por um período curto, realmente muito curto... Agora é sua esposa, Catarina I, quem governa a Rússia. Dizem que ela conspirou para vê-lo assassinado. - Ele ergueu o caneco numa saudação de zombaria: - Tolo é quem confia numa mulher!

- Realmente... - murmurou Andrei, olhando para seu caneco e

depois levantando-o para beber. Deixava-o doente pensar como tinha sido feito de tolo por Tasha, como confiara nela... - Dois reféns sob minha Proteção escaparam. Tenho razões para acreditar que fugiram daqui para Unalaska. Agradeceria qualquer assistência que pudesse ceder para ajudar em minha busca nas aldeias desta ilha.

- Acho que não entende a situação aqui. - A expressão de Solovey tornou-se grave e pensativa. - Nem eu estou certo de que entendo...

- Um de seus homens mencionou que tem havido problemas.

- Pode ser mais sério do que isto. - Solovey olhou para a porta e depois baixou a voz. - Os nativos da ilha vêm-se vangloriando de que mataram todos os russos que havia por aqui. Cinco barcos, você falou? Não encontramos nenhum...

- Talvez tenham levantado velas para casa - sugeriu Andrei.

- Talvez... E talvez tenham sido massacrados, seus corpos cortados em pedaços e jogados ao mar, como alegam os aleútes, e seus shitiks queimados ou afundados. Sei que os nativos têm mosquetões e roupas russas em seu poder. E sei que fomos alertados para partir, ou sofrer o mesmo destino de nossos camaradas. - Solovey esvaziou sua caneca de bebida e dirigiu-se até a garrafa ao lado do samovar para reenchê-la. Duvidei disso a princípio, mas tenho ouvido a mesma história de mais de um aleúte, de alguns que eu conhecia de viagens anteriores. com pequenas variações, as histórias são sempre as mesmas. - A mão que segurava a caneca de estanho tremia. - Eles todos contaram com muitos detalhes como cortaram os jarretes dos russos, de forma que não pudessem correr, e depois picaram-nos em pedacinhos.

- Se o que você sugere é verdade, várias aldeias devem ter-se aliado - disse Andrei, franzindo a testa.

- Sim - concordou Solovey, olhando-o firmemente nos olhos. Agora eles brincam com nossas cabeças, espalhando o medo entre meus homens. Eles prometem esperar até o inverno, quando eu dividir minha força em grupos de caça; então eles emboscarão cada um dos grupos e nos matarão a todos, como fizeram com os outros. Mas não vão nos pegar desprevenidos. Então agora é minha vez de pedir a você que me ajude a vingar as mortes de nossos conterrâneos. Não podemos permitir que o assassinato deles fique impune.

Essa afirmação lembrou a Andrei o que ele dissera a Tasha no ano anterior - que um nativo deve ser punido por qualquer crime contra um russo independentemente da provocação. Agora ele acreditava nisso com mais convicção.

- Não importa se realmente houve um levante maciço da parte dos aleútes - afirmou Andrei. - Quer seja verdade, ou quer eles estejam falando apenas para reunir coragem para uma tal ação, suas vozes devem ser caladas". Devemos esmagar essa semente de rebelião antes que se espalhe por outras ilhas.

- É também o que penso, Andrei Nikolaivich. - Solovey abriu um sorriso quando pegou a garrafa de conhaque e derramou mais um pouco de seu conteúdo na caneca de Andrei. - Não basta que eles inclinem suas cabeças para nós. Desejo colocar meu pé em seus pescoços.. - Você já foi capaz de determinar a força das várias aldeias da ilha?

- Minha prioridade tem sido estabelecer-me firmemente na ilha e incutir ordem e disciplina entre meus homens.

- Uma vez que os nativos mostraram tamanha boa vontade em conversar, devemos interrogá-los sobre as coisas que precisamos saber. Se, como ele suspeitava, Tasha e o irmão tivessem fugido para esta ilha com seu filho, sua presença seria conhecida pelos habitantes de Unalaska. Isto simplificaria sua busca e diminuiria o risco para seu filho se soubesse onde eles se escondiam.

Quando Andrei saiu para retornar ao barco, a garrafa de conhaque estava vazia e as histórias dos alegados massacres de mais de duzentos russos já estavam nos lábios de seus homens, como lhes foram contadas pelos promyshleniki de Solovey. Saber das atrocidades cometidas pelos aleútes tornou Andrei ainda mais determinado a encontrar seu filho e afastá-lo daqueles selvagens.

Após ficar claro para os aleútes em Unalaska que Solovey não pretendia deixar a ilha, planos foram formulados pelos velhos da aldeia e pelos líderes guerreiros para montar um ataque contra o acampamento dos cossacos. Sua localização num trecho desimpedido de terreno próximo à praia, fornecia a seus defensores um amplo campo de fogo. Não havia nenhuma cobertura no terreno, nenhuma maneira de aproximar-se sem ser visto, o que significava que eles seriam expostos ao poder de fogo superior dos cossacos. A não ser, sugeriu Empertigado, que esperassem pelo espesso nevoeiro que tão frequentemente cobria a ilha para lançarem seu ataque. Todos concordaram.

Entretanto, a chegada de um segundo veleiro cossaco criou uma preocupação para os líderes. Tinham aprendido que podiam derrotar os cossacos com uma combinação de surpresa e força superior. Agora já não estavam seguros do número que teriam de enfrentar num ataque. A cortina da chuva tornara impossível determinar se os cossacos a bordo haviam baixado à terra. Por duas vezes, viram homens num pequeno barco próximo à praia.

Devido à facilidade de Empertigado em falar e entender a língua dos cossacos, ele foi escolhido, junto com Baleia Assassina, para visitar o acampamento do inimigo a pretexto de negociar mercadorias, avaliando assim sua força. Empertigado carregava um fardo de peles de lontras debaixo do braço e, junto com Baleia Assassina, partiu do acampamento temporário onde os guerreiros haviam se reunido como preparação para o ataque aos cossacos. Como sempre, as mulheres e as crianças, incluindo Tasha e seu filho, tinham sido mandadas para uma aldeia fortificada em outro lugar da ilha.

Quando se aproximaram do acampamento, ainda fora do alcance dos mosquetões, Empertigado ouviu o brado do guarda cossaco alertando os outros sobre sua presença. Várias vezes no passado haviam procurado desculpas para se encontrarem com os cossacos, portanto esta ocasião não Pareceria incomum para eles, sabia Empertigado. Seguindo adiante no mesmo passo, ele observou o aumento de atividade no acampamento e o interesse com que os cossacos vigiavam os outros lados.

- Viemos para comerciar! - gritou Empertigado na linguagem deles e levantou o fardo de peles para o guarda ver.

Com um movimento do cano de seu mosquetão, o cossaco acenou lhes para prosseguirem. Esperou até que eles estivessem alguns passos adiante dele e depois seguiu-os, enquanto outro homem tomava seu lugar. Empertigado não viu rostos estranhos entre os homens do lado de fora quando ele e Baleia Assassina se aproximaram da cabana. Solovey aguardava-os ao lado da porta.

- Viemos para comerciar - repetiu Empertigado, parando a uma pequena distância dele.

O olhar de Solovey caiu sobre as peles de lontra que ele carregava e depois examinou os dois homens.

- Vamos para dentro, a fim de escapar deste vento. - Abriu a porta com um empurrão e entrou na cabana, seguido por eles.

Todas as reuniões anteriores tinham transcorrido do lado de fora. Nunca lhes fora permitido entrar na edificação. Empertigado moveu-se rápido para aproveitar a oportunidade de contar os cossacos do lado de dentro e avaliar a resistência da habitação.

Consciente de que muitos olhos o encaravam com desconfiança, Empertigado circulou o olhar às pressas pelo comprido e mal iluminado aposento, analisando os rostos barbados voltados para ele à procura de um estranho. Não havia nenhum rosto que não fosse familiar entre os mais de sessenta homens ali reunidos. A porta fechou-se atrás dele, impedindo a entrada da cinzenta luz daquele dia chuvoso. Empertigado virou-se a meio, sentindo-se aprisionado, e depois forçou seus músculos a relaxar quando Solovey aproximou-se.

- Mostre-me o que trouxe. - Solovey apontou para as peles. Quando Empertigado começou a oferecê-las, o cossaco sacudiu a cabeça e disse: - Desembrulhe. - Empertigado sabia que Solovey se lembrava das histórias que ouvira acerca de cortar o pescoço de um cossaco quando ele estava ocupado, desamarrando pacotes de peles. Saber que Solovey sentia essa necessidade de cautela, quando ele e Baleia Assassina eram os dois únicos aleútes no acampamento, deixava-o satisfeito.

Após desamarrar a tira de couro, Empertigado colocou as peles numa barrica e deu um passo para trás a fim de que Solovey pudesse examinar as peles. O quarto úmido cheirava fortemente a tabaco e ao cheiro peculiar do corpo dos cossacos. Água suja pingava do teto de palha encharcada da estrutura. Empertigado ouvia os assobios do vento usando o ruído que ele fazia para ajudá-lo a localizar as seteiras cobertas de madeira ao longo das paredes sombreadas, através das quais podiam atirar com os mosquetões.

- Essas peles valem muito pouco; veja só as falhas - afirmou Solovey.

Embora soubesse que as peles eram de qualidade inferior, Empertigado discutiu com Solovey sobre seu valor, para que Baleia Assassina tivesse mais tempo de estudar seu inimigo.

- Você deveria pagar o que peço, Solovey. Essas peles talvez sejam as únicas que terá. Está com medo de mandar seus caçadores atrás das lontras-do-mar. - Ele percebeu o cossaco enrubescer com o escárnio dele.

- Você está pedindo muito alto por elas.

- Onde estão os cossacos do outro navio na baía? - Empertigado fez uma pilha com as peles e enrolou a tira de couro cru em volta delas. Talvez estejam mais dispostos a negociar.

- Vá até o navio deles e pergunte.

- Não há nenhum deles aqui? - Empertigado estudou os homens no aposento, desta vez não fazendo nenhuma tentativa de disfarçar seu interesse.

- Não. Nossas acomodações são suficientes apenas para nós. - Solovey inclinou a cabeça ao fazer uma pergunta: - Quantos vivem juntos em sua barabara?

- Quarenta e dois. - Ele pegou as peles e colocou-as sob o braço.

- Contando mulheres e crianças?

- Sim. - Ouviu vozes do lado de fora da cabana e o ruído de passos chapinhando na lama e se aproximando da porta. Num relance a luz do sol desenhou a silhueta negra do homem que entrava; depois ele deu um passo cruzando a abertura e fechou a porta. De repente, Empertigado viu as características asas de cabelos brancos nas têmporas do homem e ficou rígido com o choque. Os olhos azuis que lhe devolveram o olhar pertenciam sem dúvida a Tolstykh. Por muito tempo Tasha temera que ele viesse aqui à procura deles, mas Empertigado nunca acreditara que ele chegasse até ali.

O sangue começou a pulsar forte em sua cabeça. Precisava fugir e prevenir Tasha. Rápido, ele mudou a empunhadura, jogou o fardo na cabeça de Tolstykh e deu uma corrida para a porta.

- Peguem-no! - gritou Tolstykh.

Empertigado conseguiu abrir a porta exatamente quando alguém o segurava por detrás; enquanto lutava para se livrar, Baleia Assassina passou por ele como uma flecha e fugiu.

Outros braços se fecharam em torno dele e Empertigado sentia-se esmagado pelo peso de tantos outros a agarrá-lo. Lutou desesperadamente contra eles, mesmo depois de saber que não havia esperança de escapar. Por fim, parou de lutar.

- Amarrem as mãos dele. - Andrei olhou-o de lado, satisfeito agora por ver o irmão de Tasha bem preso. A busca chegava ao final. Ele quase podia antecipar o momento de vitória, quando recuperaria seu filho. Andrei esperou até que os pulsos do selvagem estivessem amarrados bem apertados atrás de suas costas, e depois ordenou aos promyshleniki que rodeavam o nativo que se afastassem.

Após um momento de hesitação, eles se moveram para expor o prisioneiro. Andrei deu um passo à frente para encará-lo:

- Onde estão eles? - A pergunta foi recebida com silencioso desafio. - Você vai me dizer!

Um promyshlenik todo enlameado apareceu na porta.

- O outro fugiu - relatou a Solovey. - Ele está ferido. Devemos persegui-lo?

- Não - disse Solovey, olhando para seu prisioneiro. - Este nos dirá tudo o que precisamos saber.

- Ponham-no no escaler - ordenou Andrei. - vou levá-lo para o Andreian. - Antecipando um protesto de Solovey, ele o enfrentou: Este aleúte é meu refém: gostaria que estivesse presente quando o interrogarmos.

Por um momento Solovey pareceu a pique de desafiá-lo, mas depois pensou melhor. Tolstykh era um mercador rico, possuidor de considerável poder e influência na Sibéria, e estava viajando sob um ucasse imperial. Remoendo-se, Solovey cedeu.

Sob pesada guarda, o alto aleúte foi levado com uma corda em volta do pescoço para o escaler do Andreian i Natalia encalhado na praia. Poucas palavras foram trocadas quando o barco foi lançado na água e se dirigiu cruzando as sombrias águas da baía para o navio ancorado próximo ao Sv Petr i Sv Pavel. Raros sons se ouviam além do ocasional guincho de uma ave marinha e o gemido dos remos em suas forquetas.

De seu assento à popa do escaler, Andrei contemplava a negra cabeça do irmão de Tasha sentado tão ereto à sua frente. Os ombros de Empertigado estavam puxados para trás pela corda que amarrava seus pulsos e mãos, exagerando a rigidez de sua postura. O orgulho e a dignidade de seu comportamento irritavam Andrei.

Em todos os contatos com os aleútes ele havia sido justo. Sempre que recordava como tinha ficado preocupado acerca dos sentimentos de Tasha, tornava-se zangado e amargo. Que velho tolo tinha sido em pensar que ela o amava; por tempo demais havia esquecido que ela era meio selvagem. Estava claro que ela o odiava, como todos os aleútes odiavam os russos; Empertigado nunca escondera seus sentimentos. A própria presença dele em Unalaska provava a Andrei que estava envolvido no fomento deste levante dos nativos.

Mesmo que não fosse pelo fato de seu filho estar vivo em algum lugar da ilha, Andrei teria permanecido em Unalaska para sufocar a revolta antes que se espalhasse pela cadeia de ilhas. Nenhum russo, promyshlenik ou mercador, admitia que se abandonasse qualquer parte do arquipélago ao controle da população nativa. Fortunas demais podiam ser feitas naquelas águas para deixar que selvagens ignorantes o impedissem. Eles haviam conquistado dois continentes e meia dúzia de raças, aprendendo a silenciar protestos locais a fio de espada.

Mal chegaram a bordo do navio, começou o interrogatório. Andrei concentrou o interrogatório no tamanho e força da resistência, na localização das aldeias, no número de guerreiros e na quantidade de armas de fogo russas em mãos dos nativos. O paradeiro do filho ele deixou para o final.

Nenhuma pergunta foi respondida. Uma parte de Andrei estava contente por Empertigado recusar-se a falar - a parte dele que prazerosamente soltaria a língua do irmão de Tasha. Estudou aqueles olhos negros e achatados por um momento e depois sorriu.

- Você me dirá o que quero saber. Vai dizer-me tudo que desejo saber - disse Andrei em voz baixa; depois transferiu sua atenção para os guardas que estavam a seu lado. - Dispam-no e amarrem-no ao mastro; depois tragam o cnute.

O cnute era um chicote mortífero. Suas correias secas e endurecidas de couro cru eram entretecidas com arames afiados, dobrados como um anzol, para arrancar a carne da vítima. Na Rússia constituía um instrumento de punição corporal e poucos sobreviviam a uma sentença de 120 chicotadas.

Os promyshleniki amarraram o prisioneiro nu ao mastro de vante, esticando seus braços bem para o alto, acima da cabeça. Seu comprido e pálido torso e os largos e musculosos ombros apresentavam uma superfície sem máculas para testar a cruel eficiência do chicote russo.

- Amordacem-no - instruiu Andrei. - O som se transmite a uma grande distância por sobre a água. Não há necessidade de que os amigos ouçam seus gritos.

Colocada a mordaça, Andrei ordenou ao oficial dos cossacos que iniciasse a flagelação. Na primeira chicotada, o corpo de aleúte contorceu-se numa convulsão; as tiras endurecidas deixaram estrias vermelhas que se entrecruzavam nas largas costas do nativo. O sangue correu das estrias cortadas na pele. De novo, o cossaco baixou o chicote com toda força, vergastando os músculos dos ombros, os afiados anzóis arrancando mais carne. Empertigado contorceu-se debaixo do golpe.

Depois de seis chicotadas, suas costas estavam cobertas de sangue. Andrei observava o modo como o irmão de Tasha se agarrava mais ao mastro ao ouvir o fraco zunido do cnute cortando o ar antes de atingi-lo. Os músculos de seus braços inchavam, seus pulsos forçavam os nós das cordas que o mantinham em posição; então as correias que arrancavam a carne atingiam-no, espalhando sangue e pedaços de pele. A mordaça feita de um lenço afogava o grito, transformando-o num urro inumano.

A atenção de Andrei se concentrava naquelas costas, como que hipnotizado pela subida e queda do chicote. Observava o brutal cnute cair uma vez após outra, as tiras de couro cru já escurecidas pelo sangue.

Então, o corpo deixou de ter convulsões de dor. Empertigado caiu preso ao mastro, sua cabeça rolando para um lado, os joelhos dobrados, as cordas amarradas em volta dos pulsos suportando todo o seu peso, enquanto o sangue escorria pelos braços, vindo de onde as cordas tinham deixado a pele em carne viva.

Com um súbito pânico, Andrei compreendeu que Empertigado estava inconsciente. Não podia lembrar-se de quantas chicotadas foram desferidas. Uma dúzia? O dobro? Havia perdido a conta. Rapidamente moveu-se para agarrar o braço do cossaco, antes que tornasse a baixar

o ensanguentado cnute.

- Se o matou, seu sangue será o próximo a experimentar o cnute ameaçou Andrei, tremendo de raiva. O cossaco nervosamente recuou Um passo, todo o rubor da excitação desaparecendo de seu rosto.

- Ele está vivo - anunciou Solovey após examinar o chicoteado nativo, e depois removendo o lenço sujo que o amordaçava.

- Água o fará reviver - afirmou Andrei, escondendo seu alívio.

Olhando com raiva para o cossaco, disse: - Pegue um balde!

- De água salgada - completou Solovey, com bestial astúcia. Olhando para a carne viva exposta pelo açoite, Andrei concordou

Com a cabeça vagarosamente:

- Sim, encha o balde com água do mar.

Após o cossaco ter jogado o balde de madeira pela borda do barco e enchido com a água salgada da baía, ele o carregou até o corpo imóvel e jogou a água sobre as costas laceradas. Um gemido provindo do fundo de sua garganta cortou o ar enquanto o aleúte se arqueava rigidamente.

- Soltem-no - ordenou Andrei.

Dois promyshleniki do acampamento de Solovey cortaram as cordas que o amarravam ao mastro. Soou outro gemido quando ele despencou sobre os joelhos. Agarrando seus braços, os caçadores russos puseram-no de pé e arrastaram-no até o seu líder, que se postara ao lado de Andrei. Empertigado porém estava apenas semiconsciente, a cabeça pendida, o queixo quase tocando o peito.

Andrei agarrou um punhado dos cabelos dele e ergueu-lhe a cabeça, observou seu rosto. Contemplou indiferente as lágrimas que escorriam dos olhos vidrados.

- Quantos guerreiros há nesta ilha?

- Quatro... - revelou com a voz rouca -.. .talvez cinco centenas...

- Onde? - perguntou Andrei.

- A maior parte... espalhados... pelas aldeias. - Cada palavra parecia exigir um grande esforço.

- Onde está a maior concentração de guerreiros? - insistiu Andrei, mas o irmão de Tasha olhou-o atoleimado e fechou a boca num gesto mudo de resistência, movendo a cabeça vagarosamente em negativa.

-Derrame mais água salgada nas costas dele - disse Andrei ao oficial cossaco, enquanto largava seus cabelos e recuava um passo. - Mas faça-o devagar...

Quando a salmoura escorreu pelas costas em carne viva do nativo, um grito estrangulado de dor irrompeu de sua garganta e ele se torceu em convulsões. Andrei ficou observando enquanto ele estrebuchava e retorcia com a tortura. Mostrou um fraco sorriso de satisfação quando ouviu o aleúte murmurar "Não, não", junto com um longo gemido. com um gesto de mão ordenou ao cossaco que parasse de derramar a água salgada.

- Onde fica a maior concentração de guerreiros? - Andrei teve que repetir a pergunta, enquanto fracos tremores agitavam o corpo do aleúte. Desta vez, quando seus olhos encontraram os de Andrei, havia medo.

- Não longe... no acampamento temporário... - Sua respiração era entrecortada e fraca, angustiada pela dor que o consumia. - Duzentos... duzentos e cinquenta guerreiros.

- Tão perto daqui... - murmurou Solovey.

- Por que há tantos num único lugar? - perguntou Andrei. Derrubado pela insuportável dor, e pela ameaça de mais, aos poucos

ele revelou tudo: a razão pela qual viera ao acampamento, o plano de atacá-lo sob a cobertura de nevoeiro, o número de armas de fogo em poder dos aleútes - sem esconder nenhum detalhe.

Tão logo ficou evidente que nada mais havia a ser revelado, Solovey dirigiu-se ao acampamento com seus homens, a fim de preparar-se para o iminente ataque. Andrei prometeu apoiá-lo com um contingente de seu navio, mas tais reforços não seriam transportados para terra até que baixasse o nevoeiro, de forma que os aleútes não tivessem conhecimento do acréscimo nas forças do acampamento.

Quando o bote levando Solovey e seus homens desatracou do Andreian i Natalia, Andrei voltou-se para a forma semiconsciente atirada no convés. Quase nenhum pedaço de carne nas costas do homem permanecia intacto. Sem se importar com a sangueira à sua frente, Andrei abaixou-se ao lado e puxou-lhe os cabelos para levantar a cabeça.

- Onde está Tasha? Onde está meu filho?

O nativo balbuciou uma resposta ininteligível em sua língua. Andrei puxou brutalmente os cabelos do homem, virando sua cabeça um pouco mais para trás e mandando que falasse em russo.

Embora a resposta fosse pouco coerente, Andrei entendeu o suficiente. Seus dedos soltaram os cabelos do aleúte, cuja cabeça caiu de novo no tombadilho. Levantando-se, Andrei olhou em direção norte. A chuva fina reduzia a visibilidade, escondendo o outro lado da baía. Seu filho estava lá, numa grande aldeia, para onde tinham sido mandadas as mulheres e as crianças. Em breve ele o agarraria nos braços de novo; essa certeza correu-lhe pelas veias como um tónico revigorante.

- O que fazemos com o prisioneiro? - perguntou o cossaco em voz hesitante.

- Amarre-o - disse Andrei, afastando-se.

 

O espesso nevoeiro cinza-esbranquiçado parecia abafar todos os sons. Uma horda de figuras, como almas penadas, avançava furtivamente na lúgubre solidão, fechando-se em silêncio em torno da cabana de construção rústica. Alguns dos nativos usavam coletes de proteção feitos de hastes de madeira trançada e nervurada, essa vestimenta significando seu posto de chefes das aldeias. O grupo guerreiro avançou até uns dez metros da estrutura, aparentemente sem ter sido detectado. De repente, sem qualquer aviso, os russos do lado de dentro abriram fogo; à queima-roupa,

O resultado foi devastador. Os aleútes tentaram invadir a cabana, mas a barragem de fogo de mosquetão os fez recuar. Desistindo da batalha, eles abandonaram o campo, deixando uns cem mortos para trás.

A bordo do Andreian i Natalia, Empertigado foi por alguns momentos despertado de seu doloroso estupor pela trovoada de tiros de mosquetão. Ouviu os gritos de morte de seus companheiros guerreiros e sentiu a esmagadora culpa da traição. Uma lágrima correu-lhe pelo rosto enquanto permanecia de olhos abertos, contemplando vagamente os remoinhos do nevoeiro. Tinha sido a dor que o fizera falar. Eles deviam entender o que era ficar aprisionado nos estertores de uma agonia mortal e não morrer. Fechou os olhos, mas não havia alívio para o sofrimento que torturava seu corpo e seu espírito.

Quando o nevoeiro finalmente clareou, eliminando a possibilidade de que os nativos pudessem tentar outro ataque traiçoeiro, os russos aventuraram-se para fora da cabana. Os feridos que encontraram entre os mortos foram liquidados sem piedade e todos os corpos empilhados numa cova comum. Depois de localizar o acampamento abandonado do destacamento guerreiro, eles destruíram as habitações provisórias e vários baidars.

Frustrado, Solovey contemplava o acampamento destruído.

- Esses amaldiçoados nativos agora provavelmente espalharam-se por todos os pontos da ilha.

- Creio que não - disse Andrei e fez um sinal aos dois promyshleniki que guardavam o prisioneiro para trazê-lo à sua presença. Enfraquecido pela perda de sangue e pela insuportável dor nas costas, ele teve de ser arrastado para a frente.

- Para onde terão ido os guerreiros quando saíram daqui? - Houve uma sacudidela apenas perceptível da cabeça negando qualquer conhecimento. - Teriam eles ido para a aldeia onde se encontram as mulheres e as crianças? - perguntou Andrei com confiança e notou com satisfação o pequeno aceno de concordância.

- Estava cismando por que você manteve o filho da puta vivo disse Solovey com um sorriso de aprovação. - Essa aldeia fica muito longe daqui?

- A uma hora de marcha. - Andrei sabia que não precisava dizer mais do que isso. Por natureza, Solovey era cruel e dado a excessos. A vingança do massacre de seus compatriotas fornecia ao russo uma pronta desculpa para dar vazão às suas brutais paixões.

Solovey reuniu os homens e informou-os de seu novo objetivo.

- Antes do fim do dia esses selvagens aprenderão quanto lhes custará derramar sangue russo.

O aviso do vigia chegou muito tarde para dar tempo de evacuar mulheres, crianças e feridos da aldeia. Todo mundo refugiou-se dentro da barabara de paredes de barro. A habitação tinha sido construída para defesa, com postes interiores suportando uma passadeira superior de madeira, de onde os guerreiros podiam lançar suas flechas através de aberturas no teto. Os homens treparam por escadas improvisadas de troncos para tomar suas posições defensivas e aguardar o assalto dos cossacos.

Em companhia de seu filho, Tasha juntou-se às mães, que reuniram todas as crianças num extremo da barabara, assim liberando as outras mulheres para cuidar dos feridos e dos enfermos. Em toda a volta crianças choramingavam e gritavam, confusas e assustadas pelo pânico que sentiam nos adultos. Tasha sentia-o também e agarrava uma criancinha ao colo, apertada em seus braços, ao mesmo tempo tentando manter Zachar ao seu lado. Uma pequena menina, de uns dez verões, finalmente agarrou nele e aconchegou-o contra seu magro corpo, sentindo tanto conforto nele quanto ela o confortava.

Um mosquetão troou, arrancando gritos assustados das crianças, mas era só o princípio. O zunido das cordas dos arcos não podia comparar-se com o ronco das armas russas e o chuveiro de flechas foi respondido por uma saraivada de balas que atravessavam os orifícios dos defensores. No meio do barulho da batalha e do choro das crianças, apareceram os gritos dos feridos quando o impacto das balas atiravam-nos de seus poleiros elevados ao chão atopetado de gente da barabara. Um deles caiu diante de Tasha, a metade de seu rosto destruído; ela olhou apavorada para a cavidade ensanguentada onde antes havia um malar e um olho.

A futilidade de sua luta rapidamente tornou-se óbvia para os guerreiros sobreviventes, que abandonaram sua posição defensiva, arrastando os paus com degraus atrás deles. Sentaram-se no meio dos outros para esperar, defendidos pelas paredes de barro da habitação semi-subterrânea, enquanto balas de chumbo continuavam a atingir as vergas do teto.

A barragem de tiros de mosquetão foi diminuindo e depois parou. No silêncio que se seguiu, Tasha podia sentir em seus ouvidos as batidas do coração. Tensa, ela se esforçava para ouvir algum som acima do choro fraco das crianças e dos gemidos baixos dos feridos. Encostou-se ainda mais de encontro às esteiras de palha que cobriam as paredes de barro procurando proteger as crianças em seus braços. Olhou para seu filho, assegurando-se que ele estava bem aos cuidados da menina.

Com o prolongamento do silêncio, não vindo de fora nenhum som, sua atenção desviou-se para o teto da habitação. A escotilha era a única maneira de sair e o único modo que os cossacos tinham para entrar. Ela ficou observando qualquer sinal de deslocamento de pó no teto de barro que os alertasse da aproximação deles. Nada via. Sua ansiedade crescia com a tensão da espera; não acreditava, como muitos estavam murmurando, que os cossacos se houvessem retirado.

Um leve barulho de arranhado, semelhante ao de um pequeno animal cavando na terra, era tão leve que a princípio Tasha não o notou. Quando ele finalmente penetrou em sua consciência, ela afastou-se alarmada da parede e depois olhou de volta para ela, tentando determinar a direção de onde vinha o som. Quando moveu-se para alertar os outros que os cossacos estavam cavando um buraco no lado da barabara, o barulho cessou. Tasha esperou um pouco, mas não recomeçou. Aliviou a Pressão que fizera sobre a criança e de novo voltou as costas para a parede.

Uma tremenda força empurrou-a pelas costas, jogando-a de bruços. Instintivamente, voltou-se para que seu ombro absorvesse o impacto da queda e protegesse o bebé. Nunca chegou a ouvir a explosão que arrombou a parede e apenas sentiu o choque de seu deslocamento seguido por uma escuridão que a envolveu.

Quando recuperou os sentidos, gritos desvairados foram sua primeira impressão, seguidos pelas expressões de pânico e terror dos aldeões. Tasha teve a consciência de um grande peso que prendia suas pernas quando tentou mudar de posição para ver como estava o bebé. Uma camada de terra cobria a maior parte do rosto dele, entrando em seus olhos e sua boca. Tasha limpou tanto quanto podia da terra enquanto compreendia que de alguma maneira a parede arriara para dentro e era o peso de sua terra que lhe prendia as pernas.

Os cossacos entraram pelo buraco na parede, procurando os guerreiros e ignorando as mulheres e crianças. Torcendo o corpo e engatinhando, ela conseguiu livrar suas pernas da terra e arrastou-se pelos destroços até um canto escuro, agarrando a criança contra seu peito com um dos braços. O pânico reinava entre as pessoas que corriam em todas as direções, tentando escapar à invasão dos cossacos. Tasha lutou para evitar ficar tomada pelo terror que havia no ar enquanto olhava para a confusa massa, procurando localizar seu filho. Ainda estava tonta com a concussão da explosão e sua cabeça rodava.

Tasha viu o corpo imóvel debaixo de uma trava do teto que desabara durante a explosão. Era a menina que estava segurando Zachar e Tasha ficou gelada de medo. Apressadamente, colocou o bebé no chão e puxou um pedaço de esteira sobre ele para escondê-lo; depois arrastou-se sobre a terra e os escombros até o corpo da menina, temendo que seu filho também tivesse sido esmagado embaixo da trava.

Rolou a madeira de cima do corpo inerte da menina; Zachar não estava por baixo. Olhou apavorada em volta e viu um par de pernas gorduchas aparecendo num monte próximo de terra. Tasha gritou pelo menino e lançou-se ao monte de terra, escavando-o com suas mãos e retirando a terra solta.

Ocupada em resgatar seu filho, Tasha não ligava para o movimento ao redor. Subitamente foi jogada com violência para o lado; tentou voltar para o monte de terra, mas Andrei havia tomado seu lugar. Por um instante ela encarou-o, gelada de pânico. Ele viera buscar seu filho, como ela sempre soubera que viria, e iria tomar-lhe Zachar.

Com selvageria, ela se lançou contra ele, batendo-lhe com as mãos e puxando-o, tentando afastá-lo de seu filho, mas ele não prestava mais atenção a ela do que um corvo roubando um ninho presta ao esvoaçar desesperado de uma cambaxirra. Uma parte dela tinha consciência que as mãos de Andrei abriam um túnel em volta do corpo da criança. A terra cedeu quando ele levantou o menino. Tasha suspendeu seu ataque quando viu os lábios azulados do menino e seu rosto sem cor, prova inconfundível de sufocação. Mas o menino não era Zachar e um tremor de alívio correu-lhe pelo corpo.

- Não... - gemeu Andrei, chocado.

Vendo o torturado olhar de dor em sua expressão, Tasha avançou para tirar dele a criança morta e dizer-lhe que não era seu filho. Ele viu o movimento das mãos dela e virou-se em sua direção. Ela percebeu a loucura no olhar dele; ele girou o braço selvagemente e as costas de sua mão atingiram-na em cheio no rosto. A dor explodiu em sua face quando, com a força do tapa, foi atirada no chão de terra. Estonteada, ela ficou ali sentindo o gosto de sangue na boca enquanto negras ondas de inconsciência velavam seus olhos.

Um par de botas passou ao seu lado. Através da névoa que agitava sua visão, Tasha viu Andrei deitar gentilmente a criança morta numa esteira e depois enfiar-se cegamente pelo buraco aberto no barro que formava o lado da bambara. Ele acreditava que o filho deles estava morto; agora ela precisava achar Zachar e desaparecer, pensou Tasha.

Todo um lado de seu rosto continuava a latejar dolorosamente quando se ergueu e andou meio tonta para continuar a procurar seu filho.

Um cossaco barbado assomou na frente dela, com uma espada ensanguentada na mão. Tasha recuou com o brilho assassino que viu nos olhos dele, mas ele agarrou-a pelos ombros e empurrou-a, levando-a para o monte de nativos assustados que estavam sendo empurrados para fora. Como todos os outros, ela caíra numa armadilha.

Quando saiu da barabara, um cossaco orientou-a em direção a um grupo de mulheres e crianças amontoadas do lado de fora. Tasha apressou-se a juntar-se a elas, lançando olhares temerosos à procura de Andrei, mas não o viu em lugar nenhum. Olhou ansiosamente de novo para a barabara, pensando no que teria acontecido com Zachar e notou que os homens estavam sendo agrupados em separado das mulheres e crianças. Tasha lembrou-se da história do massacre em Attu quando Homem Forte foi morto e sentiu um nó no estômago que a fez enjoar.

Exatamente naquele momento, uma velha saiu de dentro da habitação, carregando Zachar em seus braços. A alegria que sentiu por ver que seu filho estava vivo quase a fez correr para pegá-lo, mas receou que Andrei pudesse estar em algum lugar ali por perto observando-a. Era melhor que ele acreditasse que Zachar estava morto. Ela não sentia mais nada daquela compaixão que por um breve momento a tinha influenciado. Depois que a velha juntou-se ao grupo, Tasha colocou-se atrás dela.

De dentro da barabara veio um grito abafado e uma mulher exclamou chorando:

- Eles estão matando nossos feridos!

Em breve o homem que os ilhéus chamavam de Solovey conduziu seu punhado de cossacos assassinos para fora da habitação. Tasha reconheceu-o pela descrição que Empertigado fizera de seu nariz adunco e de seus negros e brilhantes olhos. O líder dos cossacos ignorou as mulheres e caminhou em direção ao cordão de homens que guardavam os guerreiros.

Um por um, Solovey ordenou que os guerreiros fossem separados do grupo e mortos. Alguns eram mortos a espada, outros a bala. Os cossacos pareciam encontrar prazer no massacre. Tasha ficou imobilizada pelo horror da cena, incapaz de afastar os olhos dela, mesmo quando sua sanidade mental gritava por um descanso. Sentia um frio na espinha com os gemidos e gritos cheios de dor das mulheres quando um filho ou um homem amado era selecionado para morrer. O vento soprava o cheiro da morte até Tasha e ela tentava deixar de respirar aquele odor. Estava contente por Empertigado não ter voltado da batalha, não precisando conhecer o horror da espera pela morte.

- Isto está levando muito tempo e não tem nenhuma graça - declarou Solovey a seus homens. - Estamos desperdiçando valiosa pólvora e chumbo nesta escória das ilhas.

- Devemos degolá-los todos com a espada?

- Não. - O líder dos cossacos deu um sorriso. - Tenho uma ideia melhor. Quem quer apostar para ver quantos homens uma única bala de mosquetão pode matar? Eu aposto vinte rublos e digo que são dez.

Tasha desejou ardentemente não poder entender a língua deles, que não soubesse o que estavam dizendo quando fizeram as apostas. Uma dúzia de guerreiros foram arrastados do grupo de homens que diminuía a olhos vistos e amarrados juntos um atrás do outro, formando uma única fila. Começou a notar como os cossacos começaram a ficar distraídos pelo acontecimento quando se chegaram mais para perto a fim de ver melhor, deixando a parte de trás de seu grupo sem ser guardada. Tasha temia o que iria acontecer quando os cossacos voltassem sua atenção para as mulheres e crianças. Poderia não haver outra chance de escapar. com toda pressa, ela pegou Zachar da velha e começou a andar lentamente para a retaguarda do grupo. Cinco passos já a separavam da mulher mais próxima, e no entanto nenhum dos cossacos reparara.

No momento em que ouviu o disparo do mosquetão, ela voltou-se e correu com Zachar montado em sua ilharga. Correu em direção ao pequeno morro, sem saber se poderia atingir seu topo e ultrapassá-lo sem ser vista, caso em que sua fuga teria sucesso. Ouviu vozes que se levantavam atrás dela, mas nenhum chamando atenção para sua escapada; quando chegou ao topo coberto de capim ouviu um cossaco gritar que nove estavam mortos.

Despencou pela rampa abaixo e caiu de joelhos. Estava sem poder respirar e arquejante, seus braços doendo do peso do filho. Olhou em direção às montanhas da ilha, onde havia cavernas nas quais podia esconder-se. Não ousava permanecer tão perto dos cossacos; mais tarde poderia descansar, quando estivesse mais longe, em segurança.

Tasha procurou refúgio do vento frio numa caverna que continha os restos mumificados de uma mulher aleúte. Todas as posses da mulher morta estavam espalhadas pela caverna, os pratos de madeira, facas, cestas e outros utensílios perfeitamente conservados. O próprio corpo mumificado, embrulhado em peles de leões-marinhos e amarrado com tiras trançadas, descansava em cima de um berço feito de madeira sobre uma plataforma. A mumificação dos mortos era um costume praticado pelos aleútes dos grupos de ilhas do oriente, mas o povo de Tasha em Attu e nas ilhas próximas não acreditava em múmias. Assim, ela entrou na caverna sem preocupação.

Era confortável e quente do lado de dentro e ela estava exausta da subida. Os músculos de seu braço tremiam de cansaço quando ela repousou Zachar no chão de pedra. Ele imediatamente engatinhou para investigar os cestos que se encontravam colocados embaixo da plataforma. Por algum tempo ela deixou que ele explorasse a caverna, enquanto ela caminhava até a plataforma. Levantou do berço a trouxa que formava a múmia, seu corpo enrolado numa posição fortemente flexionada, e manuseou-o com respeito e com todo o cuidado, colocando-o de pé na plataforma de pranchas aparelhadas, de forma que pudesse tomar emprestado seu berço para o filho.

Depois que Zachar estava acomodado em sua bacia de couro, Tasha sentou-se para descansar. Mas sempre que fechava os olhos, visões macabras dançavam diante deles.

Ela estava sozinha, longe de sua nativa ilha, sem a segurança de um membro da família pela primeira vez na vida, e sem saber se qualquer um de seus novos amigos na aldeia permaneciam vivos ou não. Contemplou seu filho, subitamente assustada pela responsabilidade que agora era apenas dela.

Naquela noite deu de mamar ao filho enquanto seu próprio estômago roncava de fome. Ela sabia que não poderia manter aquela situação por muito tempo. Ao tomar emprestada a esteira de palha da plataforma da múmia para cobri-la e a Zachar enquanto dormiam, Tasha lamentou que os habitantes de Unalaska não providenciassem um suprimento de comida para seus mortos.

A obtenção de comida era de fundamental importância no dia seguinte. Tasha não podia arriscar-se a retornar para a aldeia enquanto houvesse uma chance de Andrei ainda estar ali. Não longe da caverna, o oceano oferecia um abundante suprimento de comida. com Zachar no berço amarrado às suas costas, ela dirigiu-se para a praia.

Quando ali chegou a maré estava baixa. Parou perto de um monte de pedras que abrigavam um trecho curto de praia de areia e inspecionou a área antes de aventurar-se na água. Um círculo de rochas fechava um trecho da praia. Tasha deixou Zachar ali e foi pegar alguma comida. Cavou para encontrar conchas e pegou algumas algas das águas rasas, usando uma faca encontrada na caverna e juntando a comida num cesto também emprestado.

Um bando de pequenas aves marinhas, que ciscava na praia e que vinha partilhando o local com ela, subitamente alçou voo. O rápido bater de suas asas denotava alarme e fez Tasha voltar-se. Um velho vinha andando trôpego e cambaleante ao longo da areia, seus cabelos brancos como a cabeça de uma águia. Estava nu, as mãos atadas à frente, seus cotovelos e joelhos sangrando de frequentes quedas.

Temendo que ele pudesse estar sendo perseguido pelos cossacos, Tasha disparou para o círculo de rochas onde havia deixado Zachar. O velho tropeçou e caiu, tentando valentemente mais uma vez levantar-se, e depois ficou imóvel. Tasha hesitou, sem saber o que fazer, os ouvidos abertos para o som de uma perseguição, mas tudo o que podia ouvir era o ruído do oceano.

Com toda a cautela, ela caminhou até onde o velho caíra. As costas dele eram uma enorme crosta de sangue seco com um pus esverdeado escorrendo das rachaduras. Aquela visão fez seu estômago vazio contorcer-se de náusea. Engoliu a bile que tentava subir até sua garganta e experimentou tocar um braço parcialmente preso embaixo do corpo do homem. A pele dele estava quente como fogo. Ele gemeu, com o rosto enfiado na areia; quando virou-o de lado, Tasha pôde vê-lo.

- Empertigado! - Ficou de olhos arregalados, sem poder acreditar, e depois correu os dedos pelos cabelos brancos em sua cabeça. Era real; nada despregou-se em sua mão. Aquilo era seu irmão, embora ela não pudesse entender como aquilo havia acontecido. Quando o choque inicial passou, lutou para colocar os braços em volta de seu peito e levantá-lo.

Depois que conseguiu colocá-lo de joelhos, ele pareceu reparar nela, mas não havia qualquer sinal de reconhecimento em seus olhos aquosos e injetados de sangue:

- Ajude-me - pediu ele numa voz rouca.

- Ajudarei - prometeu ela, chorando de mansinho.

De alguma forma ela conseguiu carregá-lo pela montanha acima até a caverna. Então começou a tarefa de limpar suas costas inflamadas. Por sorte, seu irmão desmaiou quando ela começou a limpar as feridas. Em todas as sangrentas consequências de uma batalha ela nunca tinha visto uma ferida como aquela. Ela vomitou à vista da carne viva e purulenta e depois chorou desesperada, até que finalmente conseguiu recobrar o controle de suas emoções. O curandeiro da aldeia tinha sido assassinado pelos cossacos; não havia mais ninguém a quem pudesse apelar - tinha que tratá-lo ela mesma.

Inúmeras vezes banhou-lhe as costas e aplicou pomadas feitas de ervas que colhia. Procurava comida, alimentava Zachar e Empertigado e ia buscar água. Noites sem fim ela chorava de cansaço e medo, enquanto velava junto ao irmão, com seus acessos delirantes.

Uma noite ele parecia relativamente coerente em suas desvairadas divagações. Tasha limpou-lhe o suor do rosto com um lenço molhado e, sem prestar atenção, ouviu-o pedir para que a dor cessasse, um apelo ao qual ela já estava habituada. Então ela achou que ele havia pronunciado o nome de Andrei.

- O que aconteceu? Quem fez isso? - Ela fez as perguntas que não tinham tido resposta desde o dia em que o achara, duvidando que ele as ouvisse ou que as entendesse se ouvia.

- Tolstykh. Ele me bateu. - A dor contorcia suas feições. - O couro... ele tinha dentes... eu não queria falar... - Ele soluçava como um menino.

- Falar o quê? - perguntou Tasha, franzindo a testa.

- Você não pode ouvi-los? - Ele arregalou os olhos cheios de medo.

- Eu não queria que eles morressem. Ele me fez falar...

Gradualmente, tudo veio à tona, embora Tasha tivesse que ligar muitas coisas a outras. Ela ficou estupefata por sua confissão de traição, não somente dos guerreiros como dela própria. No entanto, no decorrer dos últimos dias, tinha sido levada a apreciar a extensão do sofrimento dele. Tasha ficou cheia de piedade e alguma parte dessa piedade guardou para si mesma.

O corpo de Empertigado cicatrizou vagarosamente. Mesmo depois de havêla reconhecido, ele pouco falava. Não podia forçar-se a falar de sua vergonha para ela, e Tasha não podia dizer-lhe que já sabia. Nenhum dos dois mencionava os acontecimentos mais recentes. Ainda sentindo muitas dores, ele passava a maior parte do tempo de bruços, deitado sobre o estômago, olhando para o chão. Nem mesmo as gracinhas de Zachar despertavam seu interesse.

Para Tasha, a gradual recuperação dele facilitou a tarefa de encarregar-se de todas as necessidades do irmão, dando-lhe mais tempo para tentar arranjar comida. Agora era possível deixar Zachar com ele, de forma que podia aventurar-se mais longe em sua busca pelo campo. Mesmo assim, nunca parecia trazer de volta o bastante para satisfazer toda a fome que imperava na caverna.

Nevava, fazendo com que a trilha da montanha se tornasse escorregadia quando ela vencia o caminho para baixo até o prado vizinho, à procura dos esconderijos dos roedores para roubar o que haviam armazenado para o inverno. Uma mulher da aldeia já se encontrava ali, embora Tasha quase não reconhecesse as feições ossudas e cavadas como pertencentes a alguém que conhecia. Aproximou-se dela cheia de hesitação:

- Os cossacos já se foram? - perguntou.

- Solovey vive no acampamento de inverno; o outro barco foi embora - respondeu ela com um aceno de cabeça.

Uma sensação de alívio percorreu o corpo de Tasha: Andrei se fora e ela não mais teria que temer a perda do filho. Era seguro retornar. A perspectiva de dormir numa barabara quente e de apreciar uma refeição de peixe fresco ou de gordura de foca quase fazia sua cabeça sentir-se aliviada.

Como se estivesse escutando seus pensamentos, a mulher acrescentou:

- Há muita fome na aldeia.

- Não sobrou nenhum caçador?

- Alguns ainda estão vivos; os cossacos mataram duzentos. - A expressão da mulher era marcada por um tranquilo desespero. - Agora todos nós estamos morrendo devagar. Antes de abandonarem a aldeia, os cossacos destruíram tudo, as bidarkas, as pranchas, as lanças, os arcos e as flechas. Os homens não têm com que caçar.

Estas notícias deixaram Tasha abalada. Os aldeões retiravam mais do que seu sustento dos mamíferos marítimos que seus caçadores matavam. Faziam os caiaques de suas peles, as armas dos ossos e do marfim de suas presas. Sem os instrumentos de caça, os homens não poderiam rePor o que haviam perdido. Estavam como que aprisionados em terra

Com uma parte tão grande das riquezas do mar fora de seu alcance. Tasha compreendeu que sua pequena família não estaria melhor se retornasse para a aldeia.

Mais tarde, contou a Empertigado sobre seu encontro com a mulher, mas omitiu qualquer menção à destruição dos meios de sobrevivência da aldeia. Ele apenas iria inculpar-se mais de haver orientado os cossacos para aquele local. Em vez disso, ela deu mais ênfase à partida de Andrei da ilha e à ausência de cossacos na aldeia.

- Agora é seguro - disse ela. - Não precisamos mais ficar escondidos nesta caverna.

Mas seu irmão permanecia imóvel, os ombros curvados, a cabeça abaixada.

- Você pega Zachar e vai de volta para a aldeia.

A brancura do cabelo dele contrastava fortemente com a escuridão do fundo da caverna. Aquela era a mudança mais aparente nele, mas Tasha havia notado muitas outras. Havia muito pouco no homem à sua frente que a lembrasse seu irmão. Os ombros pareciam para sempre encurvados, sua postura arriada. Era raro ele levantar a cabeça. Nele não havia mais desafio; seu espírito estava esmagado, seu orgulho quebrado. Às vezes Tasha tinha a sensação de que ela consertara sua casca externa, mas que a coisa que havia dentro dele e que o fazia um homem estava faltando. Ele era como aquela múmia na prateleira: com todos os ossos e a pele intactos, mas com os órgãos vitais removidos. Não precisava que lhe dissessem que ele desejava estar morto... Se lhe dessem uma escolha, seu irmão faria daquela caverna sua tumba. Ela não poderia deixá-lo fazer isso.

- Não desejo voltar para a aldeia. Muitas coisas ruins aconteceram por lá. -Agora que tivera mais tempo para pensar no assunto, Tasha sabia que, para a segurança do seu irmão, era melhor não voltarem para lá. - Nós iremos para a aldeia na parte norte da ilha, onde ficamos antes, tão logo você esteja suficientemente forte para caminhar tanto. Ela colocou uma gamela de madeira diante dele, contendo uma porção das raízes que ela tinha juntado e raspado até ficarem limpas. Ele olhou para o conteúdo com desinteresse e não se movimentou para comer.

- Vá embora e me deixe - disse ele.

Tasha tentou não demonstrar o quanto a resposta dele a desanimava. Em vez disso repreendeu-o:

- O que iria comer? Como viveria?

- Talvez seja melhor morrer...

Embora ela tivesse adivinhado que aquele era seu desejo, ouvir isso acionou algo dentro dela.

- Não! - protestou. Todos aqueles dias e noites cuidando dele, tudo que havia sofrido, fora em vão. Ela merecia algo em retribuição. - Eu preciso de você; ele precisa de você. - O gesto abrangente de sua mão indicava o filho. - Quem irá cuidar de nós? Quem irá ensinar Zachar a caçar? É muito bom para você morrer e não ter mais dor nem fome, mas o que acontecerá a nós? Você é o tio dele! - Bruscamente, Tasha deu-lhe as costas, tremendo com o medo que originara sua raiva.

Por um longo tempo, o único ruído na caverna era o balbuciar de Zachar, mas isto levou Tasha a pegar uma raiz e começar a chupá-la, mesmo que parecesse totalmente sem gosto. Tinha que comer por causa do filho.

- Irei com você -disse afinal Empertigado, num tom de voz despido de qualquer emoção.

Tasha não reagiu. Também sentia-se esgotada.

Durante os dias seguintes, ele fez um esforço para pôr-se de novo de pé e ser útil. Tasha podia ver que ele estava apenas fazendo os movimentos para voltar a viver, mas não ligava para sua falta de força de vontade. Voltou à aldeia, pegou alguns de seus pertences pessoais que ali deixara e conseguiu uma velha parka para o irmão.

A aldeia ao norte recebeu-os bem; mais uma vez eles puderam dormir numa barabara aquecida, com as barrigas cheias. Durante todo o longo inverno, Tasha viu seu filho ficar de novo gorducho e o irmão recobrar mais suas forças. Ele voltou a caçar, sempre sozinho, e mantinha-se isolado, nunca se misturando com os homens com os quais tramara a revolta contra os cossacos. Brincava com Zachar, transformando em jogos os exercícios que desenvolviam os músculos de que ele necessitaria como caçador. Entretanto, Tasha nunca viu seu irmão sorrir; ele nem sequer participava das cantorias, danças e relato de histórias.

Todos na ilha sabiam o que os cossacos tinham feito. Os sobreviventes com parentes em outras aldeias foram acolhidos por suas famílias. Tasha estava certa de que seu irmão deveria ter ouvido sobre o extremo sofrimento ali ocorrido, mas ele nunca falava no assunto. E qualquer que tenha sido o ultraje que aquele barbarismo despertou entre os nativos, ele foi abafado pelo medo de que um protesto muito veemente atraísse de novo o ódio dos cossacos. Algumas das aldeias tinham até feito paz com Solovey.

A estação das longas noites passou e o sol começou a demorar-se mais no céu. Um dia, uma tempestade forçou um caçador de outra aldeia a refugiar-se no acampamento. Naquela noite, enquanto o vento e a chuva campeavam do lado de fora, todos se reuniram em torno do visitante para saber das últimas notícias em outras partes das ilhas.

Enquanto Zachar dormia em seu berço, suspenso de uma viga da parte que servia de dormitório, Tasha ficou sentada perto da luz de uma lâmpada de pedra, costurando as tripas de um leão-marinho para fazer uma Parka impermeável para seu irmão. Empertigado sentava-se ao lado dela, aParando um pedaço de osso para fazer uma haste de tamanho próprio Para um anzol.

Alguém questionou o caçador acerca das condições da aldeia devastada.

- Eles têm pouca comida; muitos enfraqueceram e morreram. Tasha olhou apreensiva para o irmão, mas este não deu sinal de ter ouvido a pergunta ou a resposta. - Os cossacos também sofreram neste inverno: os dentes deles caem e suas bocas sangram. Onze deles morreram: muitos estão fracos, alguns não podem nem ficar de pé.

- Agora seria a ocasião para atacá-los. - Era uma afirmação apresentada tentativamente, uma sugestão meio esperançosa aguardando por alguém que a apoiasse.

Empertigado parou com seu trabalho de faca. Enquanto hesitantes murmúrios corriam pela sala, esperando manifestações de revolta, ele levantou-se e foi para seu cubículo de dormir, sem ser notado por ninguém, exceto por Tasha. Soltou a esteira enrolada e deixou-a cair para isolar-se da área comunal.

Tasha olhou em volta, para assegurar-se de que ninguém estava observando, e depois seguiu atrás dele. Quando afastou a cortina de esteira de palha, viu que ele estava deitado de lado, virado para a parede. Ajoelhou-se a seu lado.

- O que há? - Algo errado?

O silêncio durou tanto que Tasha pensou que ele não tencionava responder-lhe, até que finalmente disse:

- Nunca nos livraremos dos cossacos.

- Por quê? Nossos guerreiros já os derrotaram antes. Cinco navios foram destruídos e os cossacos que estavam a bordo mortos. Por que não pode ser feito de novo? - argumentou ela, tentando instilar-lhe alguma resistência. - Eles ganharam uma única batalha. Isto significa que deveremos desistir da luta?

- Eles são muito fortes para nós.

- Porque têm mosquetões?

- Porque eles têm o poder de atemorizar - respondeu ele, positivo. Tasha recuou, compreendendo que ele estava certo. O medo era a arma mais forte deles; veja-se o que tinham feito a Empertigado.

A ilha tornou-se verde de novo e as focas peludas fêmeas nadaram através dos canais em sua migração anual para um destino ao norte, somente conhecido por elas. E mais seis cossacos atacados pelo escorbuto morreram em Unalaska. Alguns nativos mais arrojados animaram seus companheiros de aldeia a unirem-se num outro levante e encontraram considerável relutância, especialmente da parte daqueles que tinham sofrido as maiores privações. Mas havia outros que escutavam; cada vez que uma dessas conversas começava perto de Empertigado, ele se afastava. Não desejava tomar conhecimento de seus planos, não queria possuir nenhuma informação que lhe pudesse ser extraída por tortura.

Embora houvesse algumas escaramuças isoladas com os cossacos, os nativos não montaram nenhuma genuína ofensiva. Mas a crescente ameaça de uma bastava para que Solovey marchasse com seus cossacos sobre as aldeias. A maior parte dos nativos fugia à sua aproximação sem lutar, depois voltavam para encontrar suas habitações saqueadas, suas peles roubadas, suas bidarkas desmanteladas e suas armas destruídas. com um derramamento de sangue relativamente pequeno, Solovey teve sucesso em esmagar toda resistência.

Tasha contemplava o capim que estava amarelando. Um vento frio do norte açoitava seu rosto e empurrava as nuvens de encontro aos picos das montanhas. Não havia mais frutinhas para apanhar, nem raízes comestíveis para arrancar, nem ovos para serem roubados dos ninhos de pássaros nas penedias. O salmão seco das colheitas do verão se fora.

Tasha olhava para as pernas fininhas de seu filho, agora com quatro verões. A comida escasseava à medida que maior número de aleútes eram forçados a procurá-la na terra estéril, em vez de no mar. As coisas que anteriormente suplementavam sua dieta de peixe e da carne de mamíferos marinhos tinham-se tornado agora seus géneros de primeira necessidade. Estas também tinham desaparecido. Em breve a barriga de Zachar iria inchar.

Ela virou-se para seu irmão e disse:

- Tem razão: os cossacos são mais fortes. Quando terminar o inverno, centenas morrerão de fome; os velhos e os doentes irão primeiro, depois os muito jovens. Fez uma pausa para olhar o filho. - Se quisermos viver, teremos de abandonar a aldeia.

- Para onde iremos? - Eles estavam presos na ilha, sem meios de abandoná-la.

- Devemos ir para o acampamento dos cossacos - afirmou ela.

- Eles têm comida; têm bidarkas e armas para caçar. Viveremos com eles.

- Eles não nos deixarão.

- Deixarão. - Tasha tinha de acreditar naquilo e convencer-se de que sabia como aproximar-se deles. Depois de viver com Andrei, conhecia uma única coisa que os cossacos respeitavam, uma coisa que temiam - o Criador de Todas As Coisas, a quem chamavam de Deus.

Uma vez tomada a decisão, Tasha não perdeu tempo em executá-la. Empertigado parecia ter perdido a capacidade de esforçar-se para fazer qualquer coisa, mas não objetou ao plano. Arrumaram suas posses, pegaram Zachar e se dirigiram para o acampamento dos cossacos.

Quando se aproximaram da cabana, cinco cossacos armados de mosquetão saíram para recebê-los. Tasha reconheceu Solovey entre eles e afogou a crescente inquietude que acompanhava as horrorosas imagens que a visão dele evocava. Não estava preocupada que ele reconhecesse seu irmão. O homem encurvado, de cabelos brancos, que marchava a seu lado, pouca semelhança tinha com o homem que fora Empertigado.

- O que desejam? - perguntou-lhes Solovey.

- Desejamos ser batizados - afirmou Tasha. Ela observou o ar espantado que surgiu nos olhos dele e sua confiança aumentou. - Nós aprendemos o poder de seu Deus. Desejamos ser batizados e que nos seja permitido viver com vocês.

- Você fala muito bem - disse Solovey, continuando a observá-la.

- Meu pai era um cossaco. Meu nome é Tasha; este é meu filho, Zachar. - E indicou o rapaz de olhos azuis nos braços de seu irmão. Não tencionou o batismo anterior de seu filho, uma vez que pensava que não faria mal se fosse rebatizado.

- Quem é esse homem? - perguntou Solovey, apontando para Empertigado.

- Ele é meu irmão; necessitará de um nome cossaco quando também for batizado.

A cerimónia da conversão foi rapidamente arranjada. Todos receberam o sobrenome de Tarakanov, tirado de um dos cossacos presentes. E Empertigado adquiriu o nome cossaco de Pavel Ivanovich Tarakanov.

Permitiram à família recém-convertida que construísse uma pequena barabara ao lado da cabana dos cossacos. Tasha Lukyevena foi encarregada de cozinhar para eles enquanto Pavel Ivanovich concordou em caçar a lontra-do-mar.

 

Outono de 1778

Embora tivesse havido resistências esporádicas da parte de alguns nativos aleútes durante vários anos, as ações punitivas tomadas por Solovey e outros acabaram com as revoltas em massa. Quase metade dos nativos perecera, alguns em batalha, mas a maior parte de fome e doenças. Os cossacos e os aleútes voltaram a conviver nas ilhas; os aleútes caçando os mamíferos marítimos de pêlo, trocando-os por comida e mercadorias, e pagando seus tributos em peles. Ainda havia incidentes de crueldade da parte dos cossacos, mas os nativos tinham tomado conhecimento por meio de outros de sua tribo, que foram levados para a terra dos cossacos do outro lado das águas, que aqueles que tinham cometido tais atos de crueldade haviam sido punidos na ocasião oportuna pelos líderes dos cossacos em suas longínquas aldeias. Aquilo era sua única consolação.

Empertigado, que era chamado de Pavel Tarakanov pelos cossacos, aceitara que as coisas nunca poderiam ser diferentes; aquilo doía-lhe no coração, como também doía a muitos outros.

Quando uma longa onda quebrou na praia, Empertigado terminou seu conserto de um pequeno rasgão em sua bidarka forrada de couro e olhou para o outro lado da quilha de seu barco emborcado, para seu sobrinho Zachar. Observou-o enquanto o rapaz de dezesseis verões continuava a inspecionar sua própria bidarka, que ele mesmo construíra, verificando sua capacidade para enfrentar o mar ao preparar-se para sua primeira caçada de longa duração.

Os primeiros pêlos de homem despontavam em seu rosto. Como os cabelos lisos de sua cabeça, não possuíam a cor negra do corvo; em vez disso eram da cor marrom de terra da tundra. Seus olhos eram azuis olhos ágeis e que avistavam longe, olhos de um caçador. Usava calças de cossaco por debaixo de suaparka de couros de pássaros. Empertigado ainda aderia ao costume antigo, ao costume de seu pai, mas Zachar nada sabia disso. Ele estava acostumado aos cossacos que vinham nos barcos, que ficavam por algum tempo, que iam para a cama com as mulheres aleútes como sua mãe, gerando crianças como seu irmão Mikhail, e que depois um certo dia iam embora, apenas para serem substituídos por mais cossacos em outros navios.

Um grande barco de couro transportando vários cossacos aproximou-se da praia, atraindo a atenção de Empertigado. Tão logo encostou na praia, os homens pularam de dentro dele e apressadamente puxaram o barco para a areia. Empertigado observou a grande agitação deles quando se dirigiram para a cabana de seu líder, e seguiu-os para descobrir a causa de tudo.

- Por que estão tão excitados? - perguntou Zachar tão logo chegou ao seu lado.

- Talvez tenham avistado uma baleia. - Uma baleia forneceria carne para um inverno inteiro; embora a estação já estivesse há muito passada, era possível que uma baleia desgarrada, talvez até morta ou ferida, permanecesse pelas vizinhanças.

Aquele que era chamado de Gerasim Grigorovich Ismailov, líder de todos os cossacos na ilha e comandante do veleiro Sv Pavel, ancorado na baía, saiu de sua cabana. Era uma figura séria e imponente em seu uniforme e casacão, e possuía uma arrogância de navegador, olhando com superioridade qualquer um que não fosse de seu nível.

- Por que razão vocês me incomodaram? - perguntou ele ao desgrenhado e malvestido promyshlenik à sua frente.

- Os dois navios britânicos, os mesmos que foram vistos ao largo da ilha no começo do verão, ancoraram há dois dias numa baía na ponta norte da ilha.

Ismailov enrijeceu-se um pouco com a notícia. Da última vez que dois navios ingleses tinham sido descobertos navegando na área, ele havia mandado uma carta para seus comandantes, entregue por um dos mestiços, e não recebera resposta.

- Qual é o objetivo deles? Descobriu? - Ismailov sabia que os comandantes ingleses deviam ter conhecimento que estas ilhas eram ocupadas pelos russos, e também sabia que os ingleses estavam muito engajados no comércio de peles no continente norte-americano, com importantes operações na área da baía de Hudson.

- De acordo com os informes dos nativos da área, eles estão procedendo a reparos em seus navios e recompondo seu suprimento de água doce de terra. Eles descarregaram alguma carga - ajuntou cauteloso um dos promyshlenik, incerto se as intenções dos ingleses eram tão inocentes Quanto pareciam.

Até aquela época, a riqueza em peles daquela longa cadeia de ilhas era conhecida somente dos russos. Quando os mercadores russos vendiam suas valiosas peles no mercado europeu ou chinês, nunca revelavam onde as haviam obtido. A única rivalidade existente até então era entre eles mesmos. Consequentemente, era importante para Ismailov descobrir a razão pela qual navios ingleses estavam nestas águas. Mas Ismailov não era homem que se assustasse com sombras...

- Teremos que reatar o contato com nossos visitantes estrangeiros - afirmou ele, despachando os promyshleniki e voltando a seu aposento particular, modestamente mobiliado, na maior parte com coisas de sua cabine.

Relanceou o olhar sobre o filho bastardo de dois anos de sua concubina, menino que era o produto do sémen de outro homem e não dele, e depois parou por um momento nela. No que concernia a Ismailov, aquela mulher nativa e sua destilaria privada eram as únicas coisas que tornavam suportáveis aquelas malditas ilhas. Naquele momento, entretanto, havia coisas mais importantes demandando sua atenção.

Desabotoou o pesado casacão e ficou antegozando o toque das mãos que o ajudariam a livrar-se dele. Sua concubina, Tasha, servia-o bem, atendendo a mais do que suas necessidades sexuais, quer fosse preparandolhe comidas gostosas, sabendo fazer o chá no samovar, ou remendando suas roupas. Ela era inteligente, quase civilizada.

- Traga meu papel e as coisas para escrever - instruiu ele; depois encaminhou-se para a mesa de madeira e sentou na cadeira. Após ela ter colocado o tinteiro de estanho e o papel de pergaminho à sua frente, Ismailov pegou a bela pena russa e fez uma pausa antes de mergulhá-la no tinteiro.

- Quero que prepare uma torta de salmão, cozida com massa de centeio. - Presentear gente nova nas cidades com uma iguaria de pão e sal era um velho costume russo, simbolizando o desejo de que os recémchegados nunca passassem privações na vida. Se suas notas não fossem capazes de extrair uma resposta dos capitães ingleses, Ismailov esperava que o presente que as acompanhava o fosse.

Após escrever notas para ambos os capitães dos navios, ele selou-as com cera e pressionou seu anel de sinete para marcá-la com a imagem da águia de duas cabeças, o símbolo do império Romanov. No dia seguinte, despachou um de seus oficiais cossacos para entregar suas mensagens e os presentes de torta de salmão aos ingleses.

Um outro assunto requeria a atenção de Ismailov numa outra parte da ilha de Unalaska. Enquanto ele estava ausente, o mensageiro cossaco retornou com um dos oficiais do navio inglês. Tasha viu o homem de fala estranha várias vezes durante sua curta estada no acampamento. Ninguém podia entender o que ele dizia e tinham de recorrer à linguagem das mãos para se comunicarem. A natureza dele parecia muito diferente da dos cossacos.

O mau tempo manteve o estrangeiro no acampamento um dia a mais e forçou Empertigado e Zachar a atrasarem sua partida para a longa caçada no mar que haviam planejado. Embora Tasha soubesse que seu filho estava impaciente para partir em sua primeira aventura, ela ficara aliviada por seu irmão ter protelado a partida. Confiava em que Empertigado cuidasse dele, mas mesmo assim se preocupava. Zachar estava demonstrando ser um bom caçador, mas sua experiência limitava-se às águas costeiras. Aventurar-se pelo mar aberto seria um teste para sua perícia e conhecimentos. Muitas coisas poderiam acontecer; talvez, mais do que qualquer outra coisa, Tasha reconhecesse que seu filho voltaria um homem.

Então o tempo melhorou, o estrangeiro partiu para voltar a seu navio acompanhado pelo peredovchik e por dois cossacos. Empertigado, no entanto, continuou a protelar a partida, insistindo que esperassem até que o mau tempo tivesse passado para além de sua pretendida rota. Tasha ficou grata por mais alguns dias de alívio mas não teve tempo para gozálos. Quando Ismailov retornou de sua jornada e soube do convite deixado pelos ingleses para visitarem seus navios e trocar informações sobre os mapas da área, um convite que veio acompanhado de várias garrafas de fina bebida, todo mundo, incluindo Tasha, envolveu-se nos preparativos. A chalupa Sv Pavel tinha que ser aprestada para viajar, os conveses esfregados da proa à popa, as velas remendadas, provisões adicionais estocadas a bordo e todos os móveis retornados para a cabine de Ismailov, sem mencionar as tarefas menores, tais como trazer água para a estrutura na praia que abrigava o banho de vapor, apanhar madeira na areia para fazer fogo a fim de aquecê-lo, e cortar capim para acolchoar o chão. Ismailov jamais considerou fazer uma caminhada de meio dia por terra até a baía onde os navios britânicos estavam ancorados; ele era um navegador, o comandante de seu barco, e iria encontrar-se com os ingleses como tal.

No dia em que a chalupa saiu para o lado norte da ilha, Empertigado e Zachar também partiram em sua jornada. Tasha ficou na praia enquanto o pequeno Mikhail corria atrás das gaivotas que esvoaçavam por cima dele. Ela desejava que tivesse verificado a kamleika de Zachar mais uma vez para assegurar-se de que não havia nenhuma falha na vestimenta à prova d'água. Agora era tarde demais. Ficou olhando os dois caiaques parecerem cada vez menores quando se dirigiam para a saída da baía e para o mar aberto fora dela. Em breve ela já não mais podia distinguir seu irmão do filho, mas permaneceu na praia, observando-os, até se perderem de vista.

Há muito tempo que Zachar esperara para embarcar nessa longa viagem, confiante em sua perícia e certo de que estava pronto para ela. Depois de imaginá-la por tanto tempo, a excitação de realmente partir acompanhou-o por uma considerável distância mar adentro. O mar se estendia de horizonte a horizonte, uma infinita ondulação de águas de um cinza escuro. Suas dimensões pareciam tornar-se cada vez maiores. Vagarosamente, uma sensação de solidão começou a crescer dentro dele.

Olhando a vastidão do mar sem caminhos, ele de repente sentiu-se muito pequeno. Compreendeu como sua ilha nativa era pequena, como o oceano era grande e com que facilidade um caçador poderia perder-se.

Lançou um rápido olhar para a bidarka que corria paralela à dele, necessitando assegurar-se de que não estava sozinho. Seu tio, Empertigado, não tinha amarrado o capuz de sua kamleika sobre sua cabeça e seu escorrido cabelo branco era claramente visível debaixo da viseira de madeira. Nada havia naquele rosto musculoso que indicasse a Zachar o que o tio estava pensando ou sentindo. Nunca havia.

- O vento rodou? - Zachar pensava que talvez houvesse mudado de direção, embora não pudesse lembrar-se de que quarto soprava antes, e tais coisas eram detalhes cruciais.

- Sim.

Zachar desejava que seu tio tivesse dito algo mais, apenas pelo conforto de ouvir uma voz humana.

Algum tempo mais tarde, Zachar notou que Empertigado olhava para o sul, onde o céu tinha escurecido e se transformado num negrume assustador. A tempestade que se movia com rapidez dirigia-se diretamente para eles. Ele conhecia o procedimento para enfrentar tempestades em altomar e manobrou sua bidarka ao longo da de seu tio, de forma que pudessem amarrá-las juntas, criando uma embarcação mais flexível de dois cascos, capaz de resistir a uma tempestade que poderia afundar um barco sozinho.

O vento agitou o mar à frente da nuvem de chuva negra e levantou mais as ondas. E de repente - assim pareceu a Zachar - eles foram envolvidos em escuridão. A chuva torrencial martelava no capuz à prova d'água que cobria sua cabeça, com a corda amarrada apertada em volta de seu pescoço para impedir que a água corresse para dentro do barco. O mar jogava com a embarcação dupla em todas as direções, primeiro jogando-os para um lado, depois para o outro. O bramido da tempestade e do mar pareciam dominar Zachar, bloqueando qualquer outro som, incluindo as batidas de seu próprio coração. O casco de sua bidarka tornou-se uma extensão de seu próprio corpo; cada vez que uma onda caía sobre ela, ele era sacudido pela sua força.

De uma certa forma, a passagem do tempo perdeu o sentido. Zachar não tinha ideia se o dia tinha se tornado noite ou se a noite se mudara em dia. Havia apenas a tempestade; tudo o mais parecia irreal e distante

- sua casa, sua mãe, seu irmãozinho, tudo se fora para além de seu alcance. Ele estava aprisionado no coração da tormenta e ela o carregava..- não sabia para onde.

Mesmo depois que a tempestade amainou, ela continuava a rugir em sua cabeça. Seus sentidos estavam amortecidos; não notou que o forte balanço do mar tinha se tornado menos violento ou que as gotas da chuva em seu rosto eram de um leve chuvisco. Uma mão agarrou seu braço e aquela sensação vagarosamente penetrou sua consciência. Sacudindo as gotas de chuva de suas pestanas, Zachar virou-se e deu com o rosto impassível do tio.

- A tempestade passou.

As palavras pareciam vir de longe, mas ele as ouviu e olhou para o chuvisco cinzento e o mar ondulado, compreendendo que era verdade. Sentiu que o cansaço soltava-lhe todos os músculos e drenava sua força.

- Onde estamos? - perguntou, mas Empertigado simplesmente sacudiu a cabeça.

A água rodeava-os por todos os lados, e as nuvens baixas junto com a chuva espessa obscurecia a visibilidade. Enquanto as duas bidarkas flutuavam ainda amarradas, Zachar observava o tio perscrutar o mar, à procura de sinais na ação das ondas, ou na correnteza de marés, ou na textura da água, que pudessem indicar-lhe uma direção.

- Está ouvindo? - disse Empertigado, e Zachar conteve a respiração, esforçando-se para ouvir qualquer que fosse o som que seu tio escutara. A princípio nada detectou, mas gradualmente começou a distinguir, por sobre o ronco do mar, o ruído surdo de ondas quebrando-se de encontro a rochedos. Isso significava uma ilha, ali por perto.

Rapidamente eles desamarraram suas bidarkas e começaram a remar em direção ao som. A chuva cinzenta escondia a costa, mas o som tornou-se cada vez mais alto até que virou um ronco quase ensurdecedor. Zachar franziu a testa, confuso, vagamente alarmado por aquele estranho som que não se parecia com nenhuma arrebentação que já ouvira. Descansou seu remo duplo em cima da bidarka e gritou para o tio:

- Não podem ser ondas quebrando! - Mas Empertigado continuou remando. Zachar seguiu-o, cheio de incerteza.

A chuva transformou-se num nevoeiro fino e revelou uma massa de terra surgindo à frente deles. Gradualmente, os sons que haviam se misturado para compor um gigantesco barulho tornaram-se separados: o rouco grasnar de aves marinhas nas rochas, o potente chocar das ondas contra as pedras e o dominante ronco das focas peludas.

Ao aproximar-se da ilha, Zachar escancarou os olhos sem poder acreditar. A ilha fervilhava de focas: parecia uma enorme massa viva de larvas de uma cor marrom-prateada em perpétuo movimento, balançando-se e ondulando. Deveriam ser milhões, pensou Zachar. O ruído de suas vozes roucas, altas como sinos, era de rachar o tímpano.

À frente dele, Empertigado encostou seu caiaque numa pequena extensão de areia que não fora ocupada por um leão-marinho e Zachar dirigiu-se para o mesmo lugar. Ele quase não podia afastar a vista das centenas de milhares de focas - os enormes e dominadores leõesmarinhos, as fêmeas adultas e os filhotes quase crescidos que rolavam uns sobre os outros numa grande massa fervilhante. Quando ele chegava perto do trecho de areia, algo chocou-se com o lado de sua embarcação; ele olhou para baixo, temendo ter-se arranhado numa rocha submersa, e viu uma lontra-do-mar adulta boiando de barriga para cima, mastigando um ouriço, enquanto dois mais estavam pousados sobre sua barriga. A lontra parecia ignorar totalmente a presença dele; sabendo quanto aquela pele valeria, Zachar agarrou seu arpão.

- Não, não! - gritou Empertigado, correndo para dentro d'água.

Seus gritos e o barulho que fez caindo na água espantaram a lontra e Zachar. O mamífero mergulhou rapidamente e Zachar baixou o arpão, encarando o tio, enquanto uma onda carregava sua bidarka para a praia.

- Por que fez isso?

- Olhe em torno de você. Elas estão por toda parte - disse seu tio, virando-se em seguida e dirigindo-se para a praia.

Meio atrasado, Zachar olhou e viu as cabeças das curiosas lontras, algumas a não mais que dois barcos de distância dele. Elas o observavam, sem demonstrar qualquer medo. Confuso, tanto pelo comportamento do tio como pelo das lontras, virou o nariz da bidarka em direção à areia e desamarrou a corda que prendia o couro que fechava a abertura do barco em torno de sua cintura; depois saiu da bidarka e puxou-a mais para cima da praia.

- Por que veio para a praia? Olhe para a quantidade de peles que podemos apanhar! - Zachar abrangeu com um gesto a multidão de lontras que nadavam nas águas ao redor.

- Você não adivinhou onde nós estamos? - perguntou em voz baixa Empertigado, um olhar quase que de piedade em seus olhos.

- Não - respondeu Zachar com a testa franzida, intrigado pela pergunta.

- Esta é a ilha que os contadores de histórias dizem que foi encontrada há muito tempo pelo filho de um chefe da aldeia. Da mesma forma que nós, ele foi jogado para fora de seu curso por uma tempestade e encontrou esta ilha muito para o norte de sua casa. Aqui é para onde vêm todas as focas peludas para ter seus filhotes e criá-los. Esta ilha é seu campo de criação. - Enquanto Empertigado olhava para aquela massa viva de corpos, Zachar notou um brilho doce nos olhos do tio, um fraco reflexo que ele não se recordava de ter visto antes. - Nenhum homem jamais pôs o pé nesta ilha depois daquele longínquo dia. Somos os primeiros durante todo esse tempo.

- Quantos animais você pensa que há aqui? - Zachar olhava espantado para a multidão, pensando em suas lustrosas peles.

- Milhões. - Empertigado virou-se para a arrebentação das ondas e ficou apreciando as lontras brincando. - Há dezenas de milhares de nossas irmãs, as lontras-do-mar. - Uma delas saiu de dentro d'água para cima de uma rocha próxima e ele caminhou em sua direção, parando à distância de um braço do curioso mamífero enquanto ele, com seu nariz no ar, farejava o cheiro de Empertigado.

Zachar observava espantado, depois movimentou-se para colocar-se ao lado do tio. Mesmo assim a lontra não fugiu para a segurança do mar.

- Elas são tão mansas quanto aquela gaivota que tive quando pequeno - comentou Zachar.

- Eram assim as coisas no tempo de meu pai: a lontra-do-mar não tinha medo de nós. Era nossa irmã e nadava nas águas que ficavam para fora de nossas ilhas. Depois vieram os cossacos... Empertigado terminou a frase num tom desanimado. Virou-se para encarar Zachar com aquele estranho brilho nos olhos. - Olhe bem e lembre-se como era.

Sentindo-se constrangido, Zachar correu os olhos em volta, mas por demais atento a seu tio para ver muito. Empertigado não estava se comportando normalmente.

- Este é o último lugar em que a lontra-do-mar pode viver em paz - disse o tio. Naquele curto espaço de tempo ele pronunciara mais palavras do que Zachar se lembrava de havê-lo escutado falar de uma só vez.

- Os cossacos já caçaram por todas nossas ilhas. Mataram milhares, talvez milhões de lontras-do-mar. É preciso que eles não descubram este lugar... - Fez uma pausa; um segundo mais tarde, moveu os ombros violentamente e gemeu alto como um animal morrendo com a agonia de uma dor... - Eles não devem saber... - gemeu ele e virou-se para observar a colónia de focas, esfuziante de vida. - Não posso deixar que eles saibam! - gritou ele e o agudo gemido em sua voz fez tremer a espinha de Zachar. Sem poder fazer nada e apavorado, ele viu o tio ficar subitamente nervoso e desesperado, cravando as unhas em seu próprio rosto.

- Eles me farão falar. Eles me farão falar - murmurou em seu desespero, e depois ajuntou mais claramente: - Não. De novo, não!

Nada do que dizia fazia qualquer sentido para Zachar. Ele deu um passo hesitante em direção ao tio, mas não sabia o que dizer ou como ajudá-lo. De repente, Empertigado correu para sua bidarka, levantou-a e carregou-a até a arrebentação.

- Para onde está indo? - Por um momento, Zachar não podia acreditar que seu tio tencionasse partir sem ele.

- Eles vão me obrigar a fazer! E não posso dizer isso! - gritou Empertigado, depois pulou para dentro da bidarka e deu uma forte remada, jogando o elegante barco contra a arrebentação.

- Espere! - Zachar correu para seu caiaque e arrastou-o para trazêlo até a arrebentação; mas ele não tinha tanta experiência nem estava tão acostumado a manusear a longa embarcação.

Quando pulou para dentro e começou a remar, já estava a diversos barcos de distância. Viu quando seu tio parou de remar ao chegar a águas profundas. Zachar achou que estava esperando por ele. Então, Empertigado pegou seu arpão. Horrorizado, Zachar assistiu quando ele mergulhou sua afiada ponta nas bordas laterais de couro do barco. Repetidas vezes o braço que segurava a lança levantava-se e abaixava-se enquanto Zachar remava com violentos golpes, tentando alcançar o barco que afundava, antes que ele desaparecesse de suas vistas com o tio ainda dentro dele. De repente, ele caiu na cava de uma onda e desapareceu de vista.

Zachar remou furiosamente em direção ao lugar onde pela última vez tinha visto os dois. Nada. Não havia sinal de seu tio nem da bidarka. Certo de que estava muito próximo ao local, parou de remar. Arfando com o cansaço, ele deixou a bidarka à deriva, mergulhando de vez em Quando uma pá na água para manter sua posição.

- Empertigado! - gritou, sem acreditar que sua voz pudesse ser ouvida.

Então, viu as bolhas d"água chegando à superfície, a um barco de distância para sua direita, uma pequena perturbação na água, mas o suficiente para indicar onde seu tio havia afundado. Ficou olhando para a fiada de bolhas que diminuía cada vez mais, hipnotizado por aquela visão, sem sentir as lágrimas que lhe corriam pelo rosto abaixo.

- Por quê? - suspirou ele, sua voz fraquejando.

Uma lontra brincalhona nadou para perto de sua bidarka, deslizando sem esforço ao cortar as ondas, seu pêlo liso e lustroso. Andou em torno do barco, tão perto dele quanto a primeira havia estado. Zachar voltou sua impotente raiva com a morte de seu tio sobre a criatura. De alguma forma as lontras eram responsáveis por Empertigado ter enlouquecido. Mas, ao pegar seu arpão, Zachar ouviu de novo a voz do tio apelando para ele: "Não! Não!"

E ele não pôde fazê-lo; não pôde matar a lontra. Meio cego pelas lágrimas, virou a proa da bidarka e apontou-a em direção ao cacofônico tumulto do gigantesco viveiro de focas.

- Por quê? - gritou ele, mas não houve resposta no barulho ensurdecedor. com os braços pesados como chumbo, Zachar remou em direção ao pedaço de praia vago e arrastou a bidarka para bem alto na areia. Reuniu um pouco de madeira catada na praia e fez uma pequena fogueira para expulsar o calafrio da morte de seus ossos. Depois de algum tempo, as brasas se apagaram; mesmo assim ele ficou sentado ao lado das cinzas frias. Chegou a noite e com ela uma pesada cerração, tão densa que ele não podia ver nem a bidarka. Aquilo intensificou a sensação de que estava absolutamente sozinho.

Em algum lugar ao sul ficava sua casa. Zachar olhou naquela direção, duvidando se tornaria a vê-la e sabendo que não poderia continuar ali. Se ficasse, enlouqueceria como Empertigado. Pela manhã ele tinha que partir. Tendo tomado essa decisão, Zachar deitou-se ao lado da bidarka e fechou os olhos. Mas seu sono foi assombrado pela visão do tio com seus cabelos brancos cravando repetidamente o arpão nas bordas cobertas de pele de seu barco para afundá-lo.

Após uma ausência de sete dias, Ismailov velejou com sua chalupa, a Sv Pavel, de volta para o ancoradouro na baía. De novo Tasha andou ocupada, desta vez transportando os pertences de sua cabine para o lugar anterior em terra. Sempre conversador, em especial quando ele próprio era o assunto da conversa, Ismailov estava particularmente tagarela naquela tarde, sua língua ainda mais solta por uma garrafa de bebida dos ingleses.

Durante o tempo que vivia com ele, Tasha aprendera que escutá-lo era parte vital do que Ismailov esperava dela. Não importava se ela entendia ou não tudo o que ele dizia. Uma vez ele tentou explicar-lhe que um mestre-navegador não bebia ou conversava com gente comum; ele era por demais importante, mesmo para os oficiais cossacos. Mas estava certo que ele lhe contasse coisas, o que apenas a confundia, embora ela entendesse que, sendo uma mulher, isto de alguma forma fazia diferença para ele.

- Tive uma grande dificuldade para fazer-me entender – declarou Ismailov, depois tomou um gole da bebida num copo de vidro e limpou a umidade que ficou em seu bigode. Era um homem vaidoso; mantinha a barba e os cabelos crespos sempre bem tratados e raramente andava sem uniforme. - Eu não falo inglês e eles não sabiam russo. Ninguém sabia alemão e o francês daquele capitaine Cook era horroroso. Já lhe disse em que missão ridícula o rei Jorge mandou esse Cook? - Tasha fez que sim com a cabeça, mas Ismailov de qualquer maneira contou-lhe de novo. - Ele está procurando uma passagem para noroeste, de forma que os navios ingleses não tenham que singrar aquela longa rota em volta do cabo Horn para ir à China. Bering e Chirikov já provaram que a passagem não existe. Esses ingleses pensam que sabem mais do que um russo acerca de navegação e exploração.

Quando ele fez uma pausa para tomar outro gole da bebida, Tasha lançou um olhar furtivo para a pequena área de dormir que era dividida com esteiras penduradas. Ela podia escutar Mikhail balbuciando por trás dela.

- Consegui obter muitas informações de Cook, mas tomei cuidado com o que disse a ele, embora deva admitir que tive prazer em apontar-lhe que ele mostrara incorretamente que a ilha de Unimak era uma parte da península de terra firme - vangloriou-se e depois ficou olhando para seu copo. - Ele mapeou uma porção da costa do continente para o sul; deverá ser de muita ajuda. - Subitamente Ismailov deu uma gargalhada.

- Deixou que sua tripulação negociasse com alguns nativos fazendo trocas com peles de lontras, mas ninguém parece saber como são valiosas. Talvez eles nunca venham a saber - continuou, divertido. - com suas colónias americanas em revolta, os ingleses são capazes de se esquecer desta fútil viagem de Cook.

Depois de beber a última gota da bebida em seu copo, Ismailov pegou a garrafa e esvaziou nele o resto da bebida. Quando arriou a garrafa, sua mão tocou no pacote de papéis sobre a mesa. Tasha já o notara antes; os sinais que nele havia não tinham nenhuma semelhança com a escrita dos cossacos.

- Despachos de Cook - disse ele. - Eu devo mandá-los para Okhotsk na primavera, de forma que possam ser encaminhados ao Almirantado inglês.

Esqueceu-se das cartas quando Tasha se tornou o objeto da curiosidade dele e sua suspeita de que ela não estivera escutando...

- Onde está Cook? - perguntou ela.

- Continua na baía norte. Tão logo os reparos nos navios estejam completados e seu reprovisionamento a bordo, ele partirá. Planeja passar o inverno em algumas ilhas tropicais que descobriu no Pacífico; as ilhas Sandwich, como as chama. Depois tencionava voltar na próxima primavera e procurar de novo a passagem para noroeste... que não existe...

Ismailov continuou a tagarelar sem parar, falando até muito depois Que o último resto de bebida tinha acabado. Finalmente, cambaleou até seu beliche e Tasha ajudou-o a despir o uniforme. Ele quase nem lhe deu tempo para tirar a própria roupa antes de arrastá-la para a cama com ele.

Muitos cossacos não funcionavam sexualmente depois de beberem muito, mas a bebida nunca parecia afetar a potência de Ismailov, que tinha um certo orgulho disso. Tasha submeteu-se aos desejos dele, que estava bêbado demais para notar que ela não sentia qualquer reação. A cópula era um ato que para ela já não significava muito; era meramente uma outra parte da rotina da vida.

A certa altura da noite, ela foi acordada por um ruído. Ficou escutando, pensando se era Mikhail, mas depois Ismailov rolou na cama e começou a roncar mais forte em seu ouvido. Afastando o braço dele que a prendia, ela escorregou para fora do leito e enrolou um dos cobertores em volta do corpo. Quando cruzava o aposento às escuras para ver se era seu filhinho, a porta abriu-se. Assustada, Tasha parou ao ver a figura escura que cruzava a abertura.

- Zachar - murmurou ela ao reconhecê-lo, e correu a seu encontro; ele, porém, nada falou. Ela tocou-lhe no braço e esforçou-se para distinguir seu rosto nas sombras. - Estou contente de ver você em casa. Mas... por que está chegando tão tarde?

- Estava perdido... - murmurou ele, balançando vagamente a cabeça. Tasha sentiu algum problema em sua voz e soube que algo estava errado. - Quando reconheci uma parte da ilha, eu... eu não parei até chegar aqui.

- Onde está Empertigado?

Quando finalmente levantou a cabeça para ela, seus lábios se moveram mas não saiu nenhum som de sua boca. Tornou a sacudir a cabeça, mas deixou-a cair de novo.

- Ele está morto.

Rapidamente, ela cobriu a boca com a mão para afogar um grito de pesar, de forma a não acordar o filho que dormia. A dór apertou-lhe o peito até que sua garganta também doía, e mesmo respirar a fazia sofrer. Voltou-se, baixando a mão para agarrar a beira do cobertor e aconchegá-lo mais a seu corpo.

- Como? - O que aconteceu - perguntou num sussurro. Aos arrancos, Zachar contou-lhe acerca de terem encontrado a legendária ilha das focas.

- Ele não me deixou matar nenhuma das lontras; continuava dizendo que aquilo era como antes de virem os cossacos. Depois... depois ele ficou louco e começou a dizer coisas estranhas... a dizer que eles o fariam contar...

- Oh, não... - gemeu Tasha.

- Depois, saiu com sua bidarka e levou o arpão. - Um soluço interrompeu sua voz; limpou o rosto com uma das mãos e continuou: Tentei alcançá-lo. Tentei! - Ela podia sentir o olhar dele sobre ela. Por quê? Por que ele fez aquilo?

- Ele estava com medo. - Tasha se sentia muito vazia e sozinha. E uma parte dela estava aliviada porque o tormento de seu irmão finalmente acabara.

- Por quê? - Zachar ainda não compreendia.

Pela primeira vez Tasha contou-lhe a verdade acerca do nascimento dele, como ela e Empertigado o tinham apanhado e fugido de Adak, e como seu irmão fora um homem forte e orgulhoso. Contou-lhe acerca do levante e da parte que Empertigado tomara nele - acerca da chegada de Solovey e Tolstykh, da forma como eles o haviam torturado e praticamente destruído.

- Ele temia que os cossacos descobrissem que ele sabia acerca da localização da ilha das focas e que o torturassem de novo para obter tal informação. Ela virou-se e contemplou o filho nos olhos. - Morreu para guardar este segredo; você também deve guardá-lo. Ninguém sabe onde esteve ou o que viu.

- Eles irão perguntar sobre Empertigado.

- Diga que ele morreu afogado. Ele não será o primeiro caçador que o mar engoliu. - Tasha afastou-se, refazendo seus passos até a cama.

Uma tristeza envolveu-a quando ela voltou a deitar na cama com o homem que ressonava, mas não era a espécie de tristeza que causa lágrimas; era um profundo pesar de que aquilo tivesse que acontecer assim.

 

Verão de 1784

A dureza de sua vida começou a aparecer no rosto de Tasha; a exposição ao vento incessante tinha engrossado sua pele, enrugado a carne flácida debaixo de seus olhos e aprofundado as depressões próximas aos cantos de sua boca. Depois de haver vivido 38 dos "anos dos cossacos", ela não mais atraía a atenção daqueles que vinham a Unalaska. Eles preferiam mulheres mais jovens, da idade da que Zachar havia tomado para ser sua mulher no inverno passado.

Tasha enfiou a agulha através de outra conta azul e examinou sua nova nora, uma mestiça como ela, chamada Katya. Ela tinha apenas dezessete verões, uma boa idade para seu filho de 22 verões. No entanto, Katya não era a companheira que Tasha teria escolhido para Zachar, embora fosse uma jovem trabalhadora e jeitosa com uma agulha. Ela teria escolhido uma moça cuja mente fosse um pouco mais ágil, alguém não tão sossegada e sem graça. Mas com Zachar sempre tão afastado em expedições de caça, talvez fosse melhor que ele não houvesse escolhido uma esposa que os cossacos da aldeia cobiçassem. Engolindo um suspiro, Tasha voltou para seu trabalho de contas.

- Um navio! Um navio! - gritou Mikhail excitado, correndo para elas. Parou ao lado de Tasha e apontou na direção da baía. Embora ele estivesse quase sem poder respirar, as palavras brotavam-lhe da boca entre respirações. - Eu os vi primeiro; Zachar emprestou-me a bidarka para eu sair na baía. Foi quando eu os vi. Venham! - Ele correu de volta em direção à praia, temendo perder algo. - Logo eles mandarão um bote à praia.

Tasha pôs de lado seu trabalho de contas e levantou-se, suas juntas ligeiramente rígidas de estar sentada há muito tempo. Sua nora fez o mesmo e acompanhou-a, enquanto Mikhail corria na frente. A chegada de qualquer navio era motivo de festa para os habitantes da ilha - cossacos, mestiços e aleútes, por igual.

A chegada daqueles navios foi mais importante do que Tasha poderia imaginar.

Um deles era o Trekh Sviatiteli, Os Três Santos, uma embarcação que havia sido desenvolvida nos estaleiros de Okhotsk, na Sibéria. Chamava-se um galeote, embora houvesse pouca semelhança entre ele e o veleiro de mesmo nome do Mediterrâneo. Largo de boca, quase tão desprovido de quilha quanto um shitik, ele tinha uma única vela principal quadrada com uma bujarrona auxiliar e um leme de duas braças de altura. Havia aberturas para compridos e pesados remos que eram operados por debaixo do convés e usados para bordadas ou com mar adverso. Em seu grande porão havia gado doméstico, carneiros, galinhas e madeira, metais e ferramentas de toda espécie. O comandante do navio era o antigo consorte de Tasha, Ismailov - mais velho, mais gordo, com manchas cinzas aparecendo em seu cabelo e sua barba, mas ainda vaidoso, arrogante e amante de mulheres e de bebida.

Os mais importantes passageiros a bordo do navio eram Grigori Ivanovich Shelekhov, um próspero mercador de Irkutsk e sócio desta expedição de colonização, e sua esposa, a nobre Natalia Alexyevna Shelekhova. O par tornou-se rapidamente o centro das atenções quando baixaram a terra.

Grigori ("Grisha") Shelekhov era um homem grande de seus trinta e poucos anos, que não usava barba (de acordo com a moda daquela época na Europa) e que possuía uma presença dominante. Movimentava-se com energia e tranquilidade; entretanto aquela calma superficial não conseguia mascarar sua ambição sem limites e sua incansável energia. A agilidade de seus olhos estreitos, que abrangiam tudo o que se passava em volta, revelavam aqueles traços.

Há alguns anos Shelekhov ouvira falar da exploração de Cook e a subsequente venda de algumas centenas de peles de lontras-do-mar para os chineses em Cantão por dez mil dólares, uma soma que quase fizera explodir um motim entre a tripulação de Cook. Shelekhov também tinha conhecimento dos relatórios escritos pelo capitão inglês antes de sua morte nas mãos de nativos de uma ilha tropical no Pacífico, os quais tinham considerado insignificante a presença dos russos nas Aleutas e no noroeste.

Tão logo o conhecimento da riqueza em peles da região espalhou-se, houve uma imediata incursão de navios ingleses e da recém-independente América do Norte. Os apelos para uma intervenção do governo feitos pelos mercadores russos engajados no comércio de peles, entre os quais estava incluído Shelekhov, foram ignorados por Catarina a Grande. Ela adotou a posição de laissez-faire. Shelekhov sabia muito bem que as pretensões dos russos sobre as novas terras no norte eram fracas, uma vez que eles só haviam estabelecido bases temporárias das quais operavam os promyshleniki. Foi sua esperta e bela esposa quem sugeriu que usassem a liberdade que Catarina dera aos mercadores para estabelecerem uma colonização permanente.

Uma mulher alta, ousada e agressiva, no entanto muito piedosa como seu marido, Natalia era um tipo bonito, com traços que tinham alguma semelhança com os de um tártaro. Possuía boa cabeça para negócios e gostava do poder e da intriga. No passado, Shelekhov a havia deixado frequentemente encarregada de seus escritórios em Irkutsk sempre que viajava a Okhotsk. Muitos davam a entender que ela fizera um mau casamento, desposando alguém abaixo de sua classe, mas os dois constituíam um bom par, cada um alimentando a ambição do outro. Ambos consideravam essa arrojada aventura o primeiro passo de um esquema muito maior.

A despeito de sua considerável riqueza, eles não tinham sido capazes de financiar pessoalmente o enorme custo de fundar um estabelecimento de exploração permanente e tinham escolhido parceiros para levantar os fundos. Adquiriram e armaram três navios - a chalupa Sv Simeon, o galeote Trekh Sviatiteli e o galeote Sv Mikhail, do qual eles foram separados durante uma tempestade e cujo destino ainda lhes era desconhecido. A escala deles no porto de Unalaska foi apenas para fazer reparos nos barcos e reaprovisioná-los antes de continuar mais para leste. Shelekhov transportou o gado para terra por meio de balsas, a fim de que pastasse nos capinzais da ilha até que estivessem prontos para partir.

Tasha não mais tinha que pensar onde se encontrava seu filho mais moço desde que aqueles possantes animais de quatro patas tinham desembarcado na ilha. Mikhail ficara fascinado por eles e sempre dava uma escapada para observá-los. Ele não estava mais interessado em manusear sozinho uma bidarka ou em aperfeiçoar quaisquer de suas habilidades como caçador sob a tutela de Zachar.

No limite da pastagem Tasha parou, mantendo-se à distância dos animais. Vagamente ela se lembrava de Andrei "tentando uma vez explicar-lhe qual era o aspecto de um cavalo; pensava se se parecia de alguma forma com esse animal de chifres que chamavam de vaca. Ficou a observá-la Quando ela esticou para fora sua comprida e grossa língua e lambeu com ela o focinho. Tasha a achava muito feia e mantinha-a sob cuidadosa observação enquanto procurava em volta por seu filho.

- Mikhail! - Ela o viu junto a um dos animais baixos, de cabelos encaracolados, que chamavam de carneiro. - Vem! Está na hora de comer.

Com relutância ele se afastou da criatura e correu para a mãe, o vento soprando sua franja cortada curta na frente de seu rosto.

- Você devia passar a mão no pêlo - disse-lhe ele. - É grosso e fundo; meus dedos enterraram-se todos nele antes que pudesse tocar o couro. - Ele indicou a grossura do pêlo do carneiro. - O homem que toma conta dele diz que seu cabelo é chamado lã; eles o fiam e fazem com ele suas roupas.

Durante todo o caminho de volta até a bambara, Tasha foi regalada com várias informações do que Mikhail observara ou que lhe tinham sido contadas acerca dos estranhos animais. A habitação era construída no estilo dos cossacos, com uma porta lateral. Quando chegaram perto da entrada, Tasha reconheceu Ismailov. com eles estavam o homem de rosto liso e a mulher cossaca alta, e os três aproximavam-se da habitação. Nunca tendo visto de perto uma mulher cossaca, Tasha parou para observar o enorme volume de fazenda que a cobria e que ia até o chão. Quando andava, ela fazia um ruído peculiar. Uma vestimenta com um capuz solto cobria-lhe a cabeça e uma grande porção da parte superior do corpo; suas mãos estavam escondidas dentro de uma bola de pele.

Tornando-se consciente da inspeção dos olhos deles, Tasha avançou para encontrá-los. Olhou para Ismailov e dobrou um joelho, fazendo a cortesia que lhe haviam ensinado há muitos anos e disse - "Capilaine"!

Ele inclinou a cabeça para ela, mas dirigiu suas observações ao casal que o acompanhava.

- Esta é a mãe do homem sobre o qual estava lhes falando: Tasha Tarakanov. Ela é uma mestiça.

A mulher sorriu ao inclinar a cabeça em direção a Tasha e disse:

- Eu sou madame Shelekova.

- Madame... - Tasha fez uma pequena reverência e notou que as sobrancelhas da mulher se ergueram ligeiramente.

- Esse também é seu filho? - Havia como que um toque de fria reserva na voz da mulher quando indicou o rapaz que a observava atrevidamente ao lado de Tasha.

- Sim.

- Viemos para falar com Zachar - interveio Ismailov. - Ele está aqui?

- Sim. - Tasha voltou-se para o filho. - Diga a seu irmão para vir aqui fora.

Mikhail deu alguns passos para trás, depois virou-se e correu para a porta, entrando em disparada na habitação. A porta mal tinha acabado de se fechar quando ele tornou a sair apressado, seguido em passo mais vagaroso por Zachar e uma envergonhada e curiosa Katya.

Depois de haver apresentado Zachar aos Shelekhovs, Ismailovich começou a explicar o objetivo da visita.

- Eu disse a eles que você fala muito bem o russo... Shelekhov interrompeu-o e continuou explicando:

- Dentro de alguns dias viajaremos para leste a fim de localizar um sítio onde iremos construir uma aldeia permanente, um lugar onde as famílias possam viver. Necessitaremos de jovens fortes como você para nos ajudar; homens que possam explicar aos nativos que viemos para viver em paz com eles, para construir casas russas, igrejas e escolas. Ismailov recomendou-o para ser um de nossos intérpretes na expedição.

"Casas russas..." A frase lembrava a Tasha uma outra ocasião, quando Andrei descrevera sua aldeia natal. As casas com tantos quartos, cada um deles para um certo propósito. Parecia parte de um sonho, um sonho que ela quase havia esquecido.

- Fico muito honrado por o capitaine ter falado tão bem de mim, - replicou Zachar, expressando-se fluentemente na língua russa. - Mas se eu fosse com vocês não haveria ninguém para caçar e trazer comida para minha família. Meu irmão ainda é muito pequeno.

- É de homens responsáveis assim como você que andamos à procura - disse Shelekhov, abanando a cabeça em aprovação.

- Posso oferecer uma sugestão, Grigori Ivanovich? - interveio Ismailov.

- Por favor... - disse Shelekhov, convidando-o a prosseguir.

- Ocorre-me que madame Shelekhova irá precisar de uma mulher para ajudá-la. Posso pessoalmente recomendar a mãe de Zachar. Ela sabe como preparar uma porção de pratos que agradam bem ao paladar. Ela é arrumada e limpa, o que não se pode dizer de todas as mulheres nativas. E é uma excelente costureira. Talvez madame Shelekhova aprecie o trabalho de contas na gola de sua parka; não encontrará nenhum mais bonito - declarou Ismailov. - E Tasha fala russo fluentemente, de forma que não haverá dificuldade com a língua.

- Você entendeu o que ele disse? - perguntou madame Shelekhova a Tasha.

- Sim - respondeu Tasha, e não pôde deixar de perguntar: - Irão construir casas com muitos quartos? Um para sentar, um para dormir outro para cozinhar?

- Sim - respondeu Shelekhov e trocou um olhar com sua mulher, ambos sorrindo satisfeitos. - Sim, construiremos.

Todos os quatro membros da família Tarakanov estavam a bordo do Trekh Sviatiteli quando ele seguiu na esteira da chalupa Sv Simeon para fora do porto de Unalaska, rumo a uma grande ilha a leste que os nativos chamavam de Kodiak. Além deles, os Shelekhovs tinham obtido os serviços de dez caçadores aleútes e de um segundo intérprete para sua expedição. Tasha estava de pé na amurada e observava os picos vulcânicos de Unalaska recuando de sua visão, lembrando-se de sua viagem anterior num navio cossaco que a tirara de sua aldeia natal em Attu, e da jornada por mar que ela e seu irmão tinham feito quando fugiram com Zachar para esta ilha. Sentia pouco pesar em partir. Sua lembrança deste lugar sempre seria ofuscada pela dor e o sofrimento que havia experimentado ali.

 

Localizada perto da terra firme de "Aleyeska", a ilha de Kodiak era habitada por uma tribo nativa chamada koniaga, pertencente à cultura innuit dos esquimós. Quando os navios de Shelekhov ancoraram numa espaçosa baía na costa sudeste da ilha, os nativos hostilizaram suas iniciativas de paz. Há alguns anos eles haviam escorraçado um navio russo de suas águas; porém um fortuito eclipse solar, duas decisivas vitórias russas em batalha, e a captura de reféns, em breve subjugaram os nativos que Shelekhov erroneamente chamou de aleútes.

Shelekhov batizou a baía onde construiu seu estabelecimento permanente de Baía dos Três Santos, o nome de seu navio. Embora grande parte da costa fosse íngreme e rochosa, uma língua de terra plana estendia-se baía adentro, com o formato de uma ferradura. O baixio de cascalho oferecia um lugar conveniente para encalhar os navios e terreno plano para construção. Protegido de três lados pela água, o sítio era ideal para seus propósitos. Não cresciam árvores neste lado da ilha, que tinha mais de

150 quilómetros de comprimento e cerca da metade de largura. E os morros cobertos de capim que se elevavam a partir da baía ofereciam pasto para o gado e terra conveniente para a plantação de hortas.

Ospromyshleniki, quase 150 homens, puseram-se rapidamente a trabalhar na construção do estabelecimento. Meia dúzia de cabanas com cumeeiras e telhados no estilo russo foram construídas; além disso, montaram um quartel, uma ferraria, um escritório de contabilidade, estábulos para o gado, um comissariado, uma cordoaria, um armazém para peles, bem como a usual casa de banhos.

Dentro de um ano o estabelecimento russo na baía dos Três Santos es tava solidamente implantado. Foram cultivadas hortas com batatas, nabos e uma variedade de verduras que Shelekhov trouxera da Rússia. Gado e carneiros pastavam no capim novo que cobria os morros, não sem a perda de um certo número nas garras dos enormes ursos pardos que vagavam pela ilha.

Mas Shelekhov não estava satisfeito. Se quisessem reivindicar esta terra por direito de posse, e impedir que os ingleses ou os americanos a ocupassem, os russos teriam que expandir-se. O território que se desenrolava à frente deles era vasto e intocado. Apenas um outro estabelecimento existia em toda a costa oeste do continente norte-americano, o pequeno presídio espanhol de San Francisco, fundado nove anos antes, em 1776. O que os Shelekhovs tinham vindo construir em Kodiak não era um estabelecimento, mas as fundações para um império.

No princípio do verão Shelekhov organizou uma expedição de cerca de cinquenta promyshleniki e vários aleútes, designando Zachar para acompanhá-los como intérprete. Eles levantaram velas da baía dos Três Santos em quatro grandes baidars, acompanhados por mais de cem aleútes em suas bidarkas. Sua missão era explorar e fazer contato com os nativos das ilhas próximas e com a terra firme de Aleyeska, e estabelecer um posto avançado fortificado em Cook's Inlet.

O verão já ia avançado quando voltaram. Todos os Tarakanovs se reuniram em sua cabana de troncos mais uma vez, para ouvir Zachar contar a história de sua viagem. Reuniram-se em torno da luz bruxuleante de uma lâmpada de óleo. Katya com as pernas cruzadas num tapete de esteira de palha que cobria o chão de pranchões, Tasha no chão próximo ao suporte da lâmpada, de forma que pudesse enxergar para fazer os finos pontos necessários para remendar o rasgão no vestido de madame Shelekhova, Zachar na cadeira onde todos podiam vê-lo e Mikhail a seus pés.

- Montanhas elevavam-se acima de nós por todos os lados, lançando seus brancos picos para o céu - começou Zachar, descrevendo a viagem no grande braço de mar que os russos chamavam de Cook's Inlet. - Por todo o lado cachoeiras de água branca despencavam-se pelas encostas a pino das montanhas e caíam no mar, fazendo um ruído semelhante a um longínquo trovão. E havia árvores com troncos cinco vezes mais grossos do que a cintura de um homem, que cresciam até a borda da água. Andei por entre elas; crescem muito juntas, enormes de altas... vinte vezes a altura de um homem... todos os seus galhos se entrelaçando de forma a encobrir o céu como faz este teto.

- Ali é noite todo o tempo? - quis saber Mikhail.

- Há frestas por onde passa a luz - assegurou-lhe Zachar e depois continuou: - Muitos pássaros vivem entre as árvores. Vi corvos e gansos de peito branco, e um passarinho muito pequeno que bate suas asas tão rápido que não se pode ver, e faz um zumbido como se fosse uma abelha.

- E os nativos que vocês encontraram? Como eram eles? - Tasha ouvira dizer que os nativos koniaga que viviam no continente pertenciam a uma raça de guerreiros.

- A maioria deles não gostava dos aleútes - disse Zachar, encolhendo os ombros. - Mas trocamos com eles algumas peles e algumas aldeias nos deram reféns. No estreito do Príncipe William, encontramos chugach e kenaitze. Ali muitas famílias vivem juntas em compridas cabanas feitas de troncos. Eles são primos dos kolosh. - Os kolosh eram uma tribo extremamente belicosa que vivia ao longo da costa para o sul, uma raça feroz, cuja reputação de esperteza e traição se espalhara por quase todas as tribos do noroeste.

Quando Mikhail escutava seu irmão mais velho descrever um encontro com um primo dos perigosos kolosh, um arrepio de excitação percorria sua pele. Ele invejava as emocionantes aventuras de Zachar, os novos lugares que ele tinha visto e a estranha gente que encontrara. Todas as coisas que ele fizera naquele verão e que estava tão ansioso para contar ao irmão como ter ido para a escola e escutar o sr. Shelekhov falar, ou recitar as palavras que havia decorado acerca do Santo Deus, e fazer o sinal-da-cruz certo - subitamente tudo aquilo pareceu desinteressante. Mikhail suspirou.

Transferiu o bebé enrolado numa trouxa para seus braços. Tasha ajeitou-as. Seu irmão tinha feito de tudo e estivera em todos os lugares. Ele pensou que jamais teria nada de interessante para contar-lhe...

O segundo inverno foi duro para a colónia russa. Muitos dos caçadores estacionados nos campos avançados em Kodiak foram acometidos de escorbuto e vários deles morreram, embora os aleútes koniaga ajudassem muitos deles, fornecendo provisões frescas. Na casa de Shelekhov não havia escassez de comida, mas Shelekhov parecia atribulado pelos problemas que o cercavam. Tasha tentou explicar que o inverno e a fome eram a mesma coisa, mas ele insistia que uma quantidade de comida deveria ser estocada no verão para o consumo durante o inverno.

Quaisquer que fossem as dúvidas de Shelekhov acerca de sua aventura, desvaneceram-se logo no início da primavera com a chegada à baía dos Três Santos do há muito tempo perdido galeote Sv Mikhail, navio irmão do Trekh Sviatiteli. Desarvorado pela tempestade que os havia separado, o galeote chegara a Unalaska no ano anterior; ali fora atirado de encontro às pedras, sofrendo novas avarias que o atrasaram ainda mais.

Logo depois da chegada do Sv Mikhail, os Shelekhovs começaram a preparar-se para regressar à Rússia, uma tarefa que envolvia mais do que simplesmente arrumar as malas e transportar seus pertences para o Trekh Sviatiteli. Tinha de haver uma transferência de autoridade, e Shelekhov escolheu o recém-chegado peredovchik Samoilov para assumir o cargo, uma escolha que exigia a familiarização do homem com as operações correntes, os sistemas e os projetos em andamento. Um número incontável de ordens concernentes a tarefas futuras a serem realizadas tinham de ser escritas. Tasha escutou muitas das conversas que os Shelekhovs tiveram a esse respeito, inclusive a menção à exploração de um lugar chamado Califórnia.

- Tasha! - O chamado de madame Shelekhova veio da sala principal.

Antes de atender ao chamado, Tasha verificou rapidamente a água no samovar, que ainda não estava bastante quente para o chá. Então ela foi para a sala principal e parou um passo lá dentro, esperando que madame Shelekhova a notasse. A mulher alta, de cabelos escuros, estava de costas para a porta e de frente para seu marido, sentado à pesada mesa de madeira, com uma porção de papéis espalhados à sua frente e uma pena descansando ao lado de um tinteiro.

- Eu realmente acredito, Grisha, que levando esses nativos de volta conosco para ilustrar o progresso que fizemos, civilizando-os e instruindo-os na Verdadeira Fé, teremos uma chance melhor de persuadir a Tsaritsa a fazer uma exceção em nosso caso e conceder-nos o direito exclusivo de comércio com esta nova terra, embora ela haja abolido todos os monopólios. Tudo o que ela já ouviu anteriormente acerca desta terra foram notícias concernentes à sua riqueza em peles... e a opressão e abuso dos nativos por parte de promyshleniki irresponsáveis. Esta última questão muito a desagradou - comentou madame Shelekhova. - com nossos nativos, porém, poderemos mostrar o objetivo de tudo o que estamos tentando conseguir.

- Nós também temos um excelente argumento nos navios ingleses que velejam por estas águas. Eles estão reivindicando a propriedade de ilhas há muito descobertas pelos promyshleniki. Se eles se apossarem dessas ilhas, da mesma forma como demonstram a intenção de ocuparem a costa americana, toda a Sibéria ficará exposta. - Shelekhov fez uma pausa e finalmente notou Tasha de pé à porta. De imediato assumiu uma atitude amável: - Ah, Tasha. Você está aí. Entre!

O chá ainda não está pronto - disse ela, sem entender o significado dos planos deles ou o que tinham a esperança de realizar.

- Chá?... Ah, sim; tomaremos mais tarde. - Ele abandonou a questão como se não tivesse importância. - Madame Shelekhova e eu gostaríamos de discutir outro assunto com você.

- Como sabe, estamos levando um pequeno grupo de nativos para a Rússia conosco. - Madame Shelekhova encarregou-se da conversação.

- Desejamos que eles vejam a grandeza de nossas cidades e de nossas aldeias, e nosso modo de vida.

- Sei disso. - Tasha ouvira-os falar em ocasiões anteriores. Não era incomum os aleútes serem levados para a Rússia. Muitos haviam sido levados para lá ao longo dos anos e voltado com várias histórias para contar.

- Seu filho Mikhail é um menino muito inteligente - disse Chelekhov, e Tasha sentiu uma pontada de alarme. - Ele aprende as coisas bem depressa. Gostaríamos de levá-lo conosco, para que possa ser educado em nossas escolas.

- Para a Rússia? - Ele é jovem demais - protestou Tasha com um vago pânico. - Ele só tem dez vê... dez anos de idade.

- Esta é a idade em que nossas crianças vão para a escola e aprendem coisas como ler e escrever - explicou madame Shelekhova pacientemente. - Há uma porção de profissões que ele pode aprender: navegação, escrituração, construção de navios... que serão de grande benefício para o estabelecimento quando ele retornar.

- Não. Uma criança não pode ser levada para a Rússia, a senhora disse; ela pertence à mãe! - Aquela tinha sido uma das primeiras regras que os Shelekhovs tinham promulgado durante a instalação de sua colónia em Kodiak. Nunca mais uma mulher teria que temer, como acontecera com Tasha, que um filho lhe fosse tomado por seu pai russo. Assim disseram os Shelekhovs. - Ele não vai para lá para ficar; apenas para ser educado - replicou Shelekhov. - Madame Shelekhova e eu garantimos que ele voltará.

- É apenas temporário, como disse Grisha - ajuntou madame. Visitar a Rússia será uma maravilhosa experiência para Mikhail. Você por certo reconhece isso, Tasha.

Mas Tasha só imaginava que seu filho mais moço ia deixá-la, sem saber quando e se voltaria. E então ouviu um fraco ruído atrás; voltou-se e descobriu Mikhail de pé bem do lado de fora da porta.

- Mikhail! Você deveria estar caçando com Zachar - repreendeu-o.

Com um ar culpado, ele entrou na sala, lançando um rápido olhar aos Shelekhovs. Mas não deu nenhuma explicação de sua presença quando olhou para Tasha.

- Eu quero ir - disse, e seus olhos brilhavam.

- É tão longe... - murmurou ela.

- Eu quero ir para lá - insistiu Mikhail, e depois baixou a cabeça como se arrependido de havê-la ferido.

Tasha levantou a cabeça e de novo encarou os Shelekhovs.

- Quantos anos ele ficará ausente?

- Cinco anos - respondeu madame Shelekhova, sorrindo complacentemente. - É o tempo que levará para Mikhail terminar sua educação.

Numa tarde do princípio do verão seguinte, de pé no longo banco de areia que se encurvava para dentro da baía dos Três Santos, Tasha observava o galeote de velas abertas em direção ao alto-mar. Seus olhos fixavam-se na pequena figurinha em seu convés e seu coração doía.

 

Baía dos Três Santos

Kodiak Verão de 1790

Quando se espalhou pela colónia a notícia de que um navio fora avistado aproximando-se da baía, Tasha abandonou as peles de lontra que limpava e correu para a praia do banco de areia. A mulher de Zachar seguiu-a, um pouco mais lentamente devido ao berço amarrado em suas costas carregando a filha de quatro meses, Larissa. Enquanto uma multidão se agrupava ao seu redor, Tasha aguardava ansiosa que o navio aparecesse, esperando que Mikhail estivesse a bordo.

Poucas mudanças ocorreram na colónia dos Três Santos depois de sua partida; nenhuma nova estrutura fora construída, embora uma grande comunidade de aleútes vivesse agora nas imediações. O ar marinho deixara a marca do tempo nos troncos dos edifícios originais, e o grego Eustrate Delarov assumira o comando, substituindo Samoilov.

Afinal Tasha pôde ver as velas no horizonte contra um céu de um raro azul. Vagarosamente o navio entrou na baía, manobrando na calma bacia formada pela longa e curva ponta de terra. Os canhões de bronze no convés brilhavam à luz do sol. Quando o navio arriou a âncora ao largo, Tasha ansiosamente examinou os homens que se movimentavam no tombadilho, procurando por Mikhail; mas não o viu.

O velho Ismailov, representante oficial do governo em Três Santos, surgiu descendo em direção à praia, vestido com seu uniforme completo, os botões esforçando-se para manter o pano da túnica sem rebentar em volta de sua enorme barriga. Autoritariamente, ele mandou que fosse posto n'água um barco para levá-lo até o navio.

Quando reconheceu Zachar entre os homens que empurravam o barco para dentro d'água Tasha correu para ele.

- Vá com Ismailov e veja se Mikhail está a bordo. - Ela corria ao lado dele, ao mesmo tempo falando rápido: - Se ele não estiver, pergunte se sabem alguma coisa sobre ele. - Zachar fez que sim com a cabeça. Quando a água do mar molhou seus pés, Tasha parou. Ismailov embarcou, moveu-se para a proa e ali permaneceu enquanto os homens remavam em direção ao navio, sempre o arrogante navegador, desejoso de estar na companhia de seus iguais, a despeito dos anos de dissipação exibidos em seu rosto.

Embora duvidasse que Ismailov fosse voltar logo para terra, Tasha esperou até que ele chegasse a bordo com Zachar. Aí seu filho lhe faria um sinal se Mikhail estivesse lá. Mas ele não fez nenhum sinal e, como sempre, seu desapontamento foi enorme. Tasha voltou-se e caminhou para a cabana, sabendo que Zachar iria lá quando retornasse.

Muito mais tarde, ela estava raspando a fétida carne de uma pele de lontra quando viu Zachar andando devagar em direção à cabana. Endireitou-se para sentar sobre os calcanhares, inconscientemente apertando mais na mão o cabo de madeira da faca que usava. A cabeça de Zachar estava abaixada, os ombros caídos, e seus passos pareciam de chumbo. Tasha sentiu o aperto do medo em sua garganta; algo de ruim acontecera. Deixou cair a faca em forma de crescente e ergueu-se, apertando com força as mãos enquanto esperava que se aproximasse.

- O que soube de Mikhail? - perguntou.

- Eles nada sabem. Partiram de Okhotsk no ano passado, mas não são gente de Shelekhov.

- Então o que há de errado? O que há? - Sua testa franziu-se com uma expressão de perplexidade.

Quando Zachar levantou a cabeça, viu a profunda tristeza nos olhos dele.

- Eles as encontraram - falou. - Um homem no navio disse-me que há quatro anos um navegador chamado Pribilof descobriu as ilhas das focas de pêlo.

Tomada de emoção, Tasha voltou-se e ajoelhou-se no solo. Pegou a faca ulu e recomeçou a raspar a pele da lontra. Em seu coração ela chorava. Chorava pela memória de seu irmão e por um tipo de vida que se perdera.

O navio ancorado na baía dos Três Santos era o Slava Rossie, a Glória da Rússia. Cumpria uma expedição científica comandada pelo capitão Joseph Billings, que tinha navegado com Cook nessas águas e agora voltava a explorá-las a serviço da czarina. Um padre da religião ortodoxa acompanhava a expedição, vestido de maneira distintiva com uma batina preta e alto chapéu cónico.

Muitos dos caçadores russos ficaram extremamente excitados quando souberam da presença do padre; vários deles correram até a praia para estarem lá quando o homem de roupa preta descesse à terra. Quando ele pisou na areia, carregando uma rica cruz de ouro, todos se ajoelharam e fizeram o sinal-da-cruz. O padre ofereceu uma prece pelas almas dos promyshleniki e dos pagãos cujos corações ainda não tinham ouvido o evangelho de Cristo.

Durante os dois dias seguintes Zachar pareceu a Tasha inusitadamente quieto; cada vez mais se entregava a silêncios amuados. Ela sabia que a descoberta por Pribilof da ilha das focas tinha sido um golpe para ele; nunca mais voltariam os velhos tempos, nem para ele nem para mais ninguém.

Várias vezes ela observou-o do lado de fora da cabana, olhando para as barracas montadas na praia pelo pessoal do navio, especialmente para aquela onde o homem de Deus chamava os caçadores e marinheiros para orar. Passava uma porção de tempo olhando para Katya e a filha deles, com uma expressão problemática no rosto.

Certa manhã, ele veio andando com passos rápidos em direção à cabana. Sorria e seus olhos estavam claros e brilhantes. Foi direto a Katya e tomou-lhe a mão; o sorriso dele pareceu iluminá-la.

- Falei com o padre - disse. - Ele concordou em batizar devidamente você e nossa filha... e nos casar.

- Casar? - perguntou Katya, intrigada. - O que significa esta palavra?

Zachar pareceu procurar pelas palavras certas.

- Significa que fazendo um Juramento Sagrado perante Deus você promete que serei o único homem com quem viverá toda a sua vida. E prometo que você será a única mulher... E que viveremos juntos para sempre. - Ele estudou-a ansiosamente. - Você compreende?

- Sim. - Mas ela parecia incerta.

Tasha pouco sabia sobre essa coisa russa chamada casamento, mas entendia o que seu filho estava fazendo. Exatamente como ela certa vez compreendera que a sobrevivência para ela e sua pequena família significava viver com os russos, Zachar chegara à mesma conclusão. Ele falava a sua língua, usava a roupa deles e morava em seu tipo de habitações. Agora ele escolhia abraçar suas crenças no Criador que eles chamavam de Deus.

No dia seguinte, eles procuraram o padre. Katya e Larissa foram batizadas oficialmente; depois Zachar e Katya se casaram perante a lei de Deus.

Até onde Tasha podia entender, para os russos viver junto não era a mesma coisa que ser casado. Duas pessoas podiam concordar em viver juntas, mas fazê-lo com a bênção de Deus dava maior significação. A maneira de viver dos russos era diferente em muitos aspectos. Quando observou o Slava Rossie velejando para fora do porto, ficou pensando nas mudanças que encontraria em Mikhail quando ele finalmente voltasse.

Um ano se passou e nenhum navio de suprimentos veio de Shelekhov para trazer provisões e substitutos para os homens que já haviam cumprido seu termo de cinco anos. Fazia três anos desde que o último navio de suprimentos tinha vindo à aldeia dos Três Santos. A despeito de um racionamento cuidadoso, não havia mais chá no depósito e farinha de centeio apenas suficiente para fazer pão nos domingos e dias santos. Ouvia-se consideráveis resmungos entre os homens que Shelekhov esquecera.

Ao regressar de uma pescaria certa manhã, Zachar deu o que havia pescado para sua mãe limpar e arrastou a bidarka para cima da linha da maré. Quando ele a virava para permitir que os costados de couro secassem, notou um baldar nativo com uma vela de lona aproximando-se da praia. A embarcação não lhe era familiar, e ele endireitou-se para estudar seus ocupantes, apertando ligeiramente os olhos. As gaivotas enchiam o ar, bloqueando-lhe parcialmente a visão ao brigarem pelas tripas dos peixes que sua mãe limpava ali perto. O bater de suas asas e seus agudos guinchos criavam um enorme alarido.

Mais de uma dúzia de russos estava no barco de couro, mas nenhum que Zachar reconhecesse; mas ele notou que as kamleikas a prova d'água que usavam tinham as marcas dos aleútes de Unalaska. Quando se aproximavam da praia, Zachar pôde ver seus rostos desfigurados e as barbas desgrenhadas. Todos lhe eram estranhos, não eram caçadores de acampamentos avançados na ilha.

- Quem são eles?

Zachar voltou-se para a mãe, agora ao seu lado, com um cesto de peixe eviscerado num braço, e balançou a cabeça negativamente; outras pessoas do estabelecimento tinham acorrido à praia. Quando o baldar chegou em água mais rasa, vários de seus ocupantes saltaram de bordo para arrastá-lo até a areia.

- Graças a Nossa Santa Mãe, conseguimos! - disse um deles, com a voz entrecortada de emoção.

Aquela declaração pareceu soltar a língua de todos. Eles eram do Trekh Sviatiteli, o galeote que Shelekhov enviara como navio de suprimentos no ano passado. O galeote havia naufragado em Unalaska durante um vendaval, e grande parte de sua carga se perdera. Mais dois baidars carregados com o resto do pessoal do navio deveriam chegar breve.

- Ajudem-nos. Temos um homem doente aqui.

Quando Zachar ajudava a levantar o homem inconsciente, delirando de febre, para fora do barco, alguém avisou:

- Cuidado com ele! Baranov é o novo gerente que Shelekhov mandou... se viver!

Alguém correu na frente para levar as notícias à aldeia, enquanto Zachar e dois promyshleniki carregavam o homem atacado de pneumonia para o estabelecimento. O grego Delarov, o atual comandante, veio ao encontro deles e mandou que Baranov fosse levado para sua cabana. Andando atrás deles, Tasha seguiu-os para dentro da habitação outrora ocupada pelos Shelekhovs. Se esse Baranov era o novo gerente mandado por Shelekhov, ele certamente saberia algo sobre seu filho Mikhail. Era preciso que se recuperasse.

Ninguém objetou quando ela ajudou a remover a parka a prova d'água e as botas - muklusk - do doente. Seu corpo escaldante estava úmido de transpiração; rapidamente, ela o cobriu com peles.

Durante os dias que se seguiram, Tasha tomou conta dele, escutando sua violenta tosse e a difícil respiração, assistindo-o durante seus ataques de delírio e alimentando-o de caldo com uma colher através dos lábios rachados. Muitos na aldeia não esperavam que sobrevivesse, mas Tasha não desanimava em seus esforços para mantê-lo vivo.

Ficava sentada ao lado do beliche, cuidando do homem que era o principal motivo de discussão no acampamento. Fisicamente nada havia de especial acerca de Aleksandr Andreevich Baranov. Baixo de estatura, magro mais rijo, o rosto pálido. Aos 45 anos, tinha a mesma idade que Tasha; a idade colocara traços grisalhos no negro cabelo dela, mas o cabelo de Baranov, cor de palha, com umas tintas vermelhas, afinara-se no alto da cabeça, deixando-o com uma coroa calva. Ele não parecia um líder de homens, certamente não o de musculosos e duros promyshleniki.

Zachar levava para a cabana os comentários feitos acerca de Baranov. Ismailov sentia somente despeito pela escolha de Shelekhov; o homem era um mercador comum, dificilmente da classe de um navegador, como era o caso de Delarov. Ele não tinha experiência nas ilhas Aleutas. Pior do que isso: ele nunca se fizera ao mar antes desta viagem e ficara enjoado a maior parte do tempo. Outros diziam que era velho demais para essa dura vida, pois tinha enjoado viajando no baidar aberto, vivendo com uma dieta de peixe cru e dormindo ao ar livre.

Mas, alegavam os sobreviventes, ele era de uma energia sem limites. Durante o inverno em Unalaska, fizera explorações, aprendera a língua local, aprendera a lidar com uma bidarka e caçara lontras-do-mar. Era um homem cheio de recursos e inteligente.

As opiniões conflitantes pouco impressionavam Tasha, que as ouvia apenas com a esperança de saber de alguma coisa sobre Mikhail. Baranov mexeu-se debaixo das camadas de peles, as pesadas pálpebras de seus olhos movendo-se e abrindo-se. A atenção dela aguçou-se quando ele abriu os olhos e tentou umedecer os lábios ressecados.

- Água! - Sua voz era rouca e fraca.

Tasha pegou o caneco de estanho com água, depois enfiou um braço por debaixo de seus ombros, para levantá-lo ligeiramente, e levou a caneca a seus lábios, inclinando-a para permitir que a água escorresse para a garganta.

- Sabe onde está meu filho? Shelekhov levou-o para a Rússia há seis anos e ele não voltou. Seu nome é Mikhail Tarakanov. Shelekhov lhe falou dele?

Sem forças para responder, Baranov sacudiu a cabeça negativamente e fechou os olhos. Tasha sentou-se para trás na cadeira, suas esperanças de novo desfeitas. Outros haviam voltado num navio de suprimentos anterior, mas onde estava seu filho? Ninguém parecia saber.

Mais de um mês se passou antes que Baranov se sentisse suficientemente bem para levantar-se e movimentar-se pelo estabelecimento que era seu novo domínio. No começo do outono, os dois baidars, transportando o resto da tripulação naufragada, chegaram a Kodiak. Deixando Delarov provisoriamente encarregado, Baranov partiu para explorar a ilha, acompanhado por Zachar e alguns aleútes, e para fazer-se conhecido pelos nativos, que o chamavam de Nanuk - o grande chefe caçador branco.

Quando chegou a primavera, a chalupa que estava encalhada, a Sv Mikhail, foi lançada à água. Delarov e os promyshleniki cujo tempo de alistamento se esgotara, e que não estavam em dívida com a companhia por compras feitas no comissariado, embarcaram no navio e partiram para a Rússia.

Depois que Delarov partiu, Baranov começou a exercer sua autoridade e a impor estrita disciplina. A bandeira russa exibindo a águia de duas cabeças do império Romanov era arriada cada tarde com os homens em posição de sentido e uma salva de canhão. A jogatina foi proibida e a bebida permitida apenas nas horas de folga dos homens, e mesmo assim só kvass, feito principalmente de uvas-do-monte. A prostituição das nativas foi proibida; um homem escolhia uma mulher e ficava com ela. Aos domingos e dias santificados liam-se orações. Mas ele também organizou prazniks - festas -, onde havia cantos e danças nas quais ele tomava parte.

O verão trouxe águas mais calmas que facilitavam a caça das lontras-do-mar. Baranov reuniu uma frota nativa de caça de 600 bidarkas de dois lugares na Baía dos Três Santos, prometendo aos aleútes koniaga uma certa quantidade de ferro para cada pele e assegurando-lhes que um promyshlenik seria designado para cada artel (associação cooperativa) de bidarkas.

Mas o que ele planejava era mais do que uma expedição de caça. Para o sul e a leste de Kodiak, navios ingleses e americanos singravam as águas do arquipélago Alexandre e do estreito do príncipe Guilherme, apossando-se do comércio dos russos. As instruções que ele recebera de Shevkhov foram bem claras: além do posto avançado fortificado de CookVh;let outros mais deveriam ser estabelecidos no estreito do príncipe Guilherme e na costa sudeste. A Tsaritsa não dera a Shelekhov seu monopólio, mas concedera-lhe direitos exclusivos sobre as terras que ele então ocupava, ou que mais tarde pudesse colonizar. Baranov tinha a firme intenção de usar essa expedição de caça para explorar essas áreas e localizar posições para novos postos avançados.

A maciça reunião de caçadores nativos inundou a ponta arenosa na qual situava-se o estabelecimento com as longas e esguias bidarkas. À meialuz de uma noite de verão, as figuras que apareciam entre elas destacavam-se como formas de um marrom escuro. Tasha estava do lado de fora da cabana e observava as tremeluzentes águas da baía. Ela estava ficando velha, pensava; muitas vezes perdia o sono.

Ouviu leves passadas atrás de si e, voltando-se, deparou com Zachar.

- Ouvi quando você saiu da cabana - explicou ele.

- Os verões não são bons para dormir - disse ela, olhando para o céu crepuscular. No ar parado de uma noite sem vento, ela podia ouvir os mugidos agoniados do gado inquieto nas colinas próximas. - Penso que os ursos também não estão com sono...

- Estava pensando em Mikhail - disse Zachar.

- Fico a cismar se jamais o verei de novo. - Tasha não negava; aquela dor estava sempre com ela, aquela sensação de consternação.

- Você não está sozinha - disse Zachar. - Tem Katya, Larissa

e eu.

era seu filho - Sim. - Eles eram sua carne e seu sangue, também. Mas Mikhail era seu mais novo, seu bebé. Como poderia dizer a Zachar, também seu filho - seu primogénito - que Mikhail constituía algo de especial? Não podia. Assim, ela sorriu-lhe fracamente, fazendo-o pensar que ele a consolara.

- Isto é verdade. - O olhar dela afastou-se para a praia superlotada. - com tantos caçadores, vocês trarão muitas peles de lontras nesta estação. Você poderá comprar muito tabaco. - Como um mestiço, Zachar trabalhava para a companhia numa base de participação, como o resto dos promyshleniki, e tinha uma conta própria no comissariado.

- Há muito tabaco para comprar. Todo mundo está usando casca de salgueiro para economizar seu tabaco - disse ele.

- Um dia devo experimentar fumar seu cachimbo a fim de descobrir este prazer que você encontra nele - comentou ela.

- Eu lhe comprarei um - disse Zachar, dando uma risadinha.

Os roucos gritos de um bando de procelárias encheu a noite, quase afogando os gritos mais fracos de mergulhões, tordos e outras aves noturnas.

- Elas estão barulhentas esta noite - disse ela, observando um bando de procelárias varrendo o céu, parecendo uma longa trilha de maçã escura.

Subitamente, ela sentiu o chão tremer sob seus pés. Mas esta era uma terra onde muitas vezes o chão tremia. Esperou que o fraco movimento cessasse e que o chão voltasse a parecer sólido. Em vez disso, o tremor se intensificou, fazendo-a perder o equilíbrio. Zachar agarrou-a e puxou-a para baixo, caindo na areia que tremia antes que eles fossem jogados ao chão.

Em toda a volta podiam ouvir o estrépito e o estouro de coisas caindo, os gritos de pânico daqueles que despertavam de seu sono com o violento tremor de terra. Os troncos de madeira das edificações gemiam ao serem esfregados uns contra os outros devido à movimentação de suas fundações. Tasha ficou agarrada ao chão de areião que vibrava, seu coração disparado com o susto. Escutou o som arrepiante de madeira rachando e olhou ansiosa para a cabana, observando seu tremor e balanço.

- Katya! - gritou Zachar e começou a engatinhar em direção à porta, mas Tasha segurou-o.

- É muito perigoso.

Naquele momento, a porta abriu-se com violência e Katya saiu trôpega pela abertura, agarrando no colo a filha de dois anos, Larissa. Um dos batentes da porta rachou e um número cada vez maior de troncos estouravam e rachavam.

Larissa choramingava sem saber o que estava acontecendo, enquanto Katya tentava afastar-se da cabana, mas a cada passo o chão movia-se violentamente, tirando-lhe o equilíbrio. Afinal caiu, depois escorregou o corpo protetoramente por cima de Larissa, a fim de defendê-la. Andando com dificuldade, Zachar chegou até ela e ajoelhou-se a seu lado.

Por toda a aldeia reinava o caos. Gente tropeçando e andando às tontas, cruzando o chão que tremia, como se estivessem bêbados. Tambores e barricas tombando e rolando, pedaços de madeira e da cobertura caindo dos telhados. Na baía as águas dançavam, formando pequenas cristas brancas, resultantes do tremor no fundo do oceano.

De repente, o tremor diminuiu de intensidade, bem como seu rouco troar. Tinha durado apenas pouco tempo, entretanto parecera interminável a Tasha. Ela ainda não estava certa que tivesse acabado; ficou agarrada ao chão, sentindo seu ligeiro tremor.

Outros também esperavam cuidadosos, antes de experimentarem ficar de pé. Zachar ajudou Tasha a levantar-se; por dentro ela ainda tremia, enquanto cautelosamente cruzava o chão de pedregulho ainda sem confiar em sua solidez.

Katya estava sentada, tentando acalmar a filha que chorava. Larissa não era a única criança assustada que chorava na aldeia; muitas outras faziam-lhe eco.

- Você não está ferida? - perguntou Tasha, levantando-se e examinando Katya enquanto ela sacudia nos braços a criança assustada.

- Não.

Tasha voltou-se para ver a destruição causada pelo terremoto. Nada estava exatamente onde estivera antes; os edifícios achavam-se todos tortos, alguns caídos para um lado, outros torcidos em suas fundações. Coisas soltas, grandes e pequenas, espalhavam-se por toda a volta; as pessoas movimentavam-se pelo meio dos escombros, abrindo caminho cuidadosamente, ainda um pouco tontas..

- Olhem! Olhem! - A exclamação foi seguida de gritos agudos. Tasha virou-se para o lado do mar, subitamente consciente de um surdo rugir que aos poucos cresceu até tornar-se um estrondo se aproximando. Um enorme paredão negro que escondia por completo o horizonte elevava-se e aproximava-se cada vez mais de terra. Água! Era água, uma gigantesca onda que se movimentava em direção à língua de terra com incrível velocidade.

- Corram! - gritou Zachar, agarrando Tasha pela cintura e arrastando-a com ele na corrida. Agudos gritos de terror misturavam-se com o horroroso ronco que crescia cada vez mais. Eles foram apanhados num estouro de gente correndo; Tasha tentou fazer com que suas pernas andassem mais rápido, mas não pôde. Lançou um olhar assustado para trás. A crista da onda, branca de espuma, dobrava-se muito alto acima do banco de areia, cinco ou dez vezes mais alta do que qualquer dos edifícios em seu caminho. Ela podia sentir a ameaça da onda descendo, sentia o cheiro do mar no ar e o gosto de maresia nos lábios. Não havia como fugir daquela onda.

Pequenas gotas começaram a atingi-la e, um instante mais tarde, ela foi engolfada pela onda, cuja força atirou-a contra a areia. Teve a vaga consciência da mão de Zachar segurando seu antebraço, agarrando-a. Depois foi só a sensação da água, apertando-a de encontro à areia. Suspendeu a respiração até que seus pulmões parecia que iam estourar. Mesmo assim, a água continuava a esmagá-la.

Depois, ela sentiu a força da água segurando-a, puxando-a, arrastando-a, tentando derrubá-la. Agarrou-se ao braço de Zachar, segurando-o com um aperto mortal, enquanto a força da onda em seu recuo puxava-a e torcia suas pernas. A força da corrente submarina era por demais potente; ela rolou-a de encontro a Zachar e arrancou a ambos da areia, arrastando-os para trás.

Não lhe restava mais nenhuma resistência; ela não tinha mais ar e nem vontade de resistir àquele mundo de água escura. Então a onda quebrou por cima de sua cabeça e Tasha aspirou instintivamente o ar; seu joelho tocou o fundo de areião e ela lançou-se em direção à praia, esforçando-se com suas pernas e pés para resistir à corrente.

Perdera o contato com Zachar. Queria procurar seu filho, mas necessitava de toda a concentração e energia para não ser de novo arrastada para o mar. De vez em quando arriscava um olhar, mas havia cabeças e corpos demais na água. Meio andando e meio engatinhando, Tasha alcançou água mais rasa e pôde ficar de pé, seus músculos tremendo com o cansaço.

Respirando profundamente, ela virou-se em direção ao mar à procura de seu filho. Uma confusão de gritos e apelos de socorro chegou até ela. Havia tanta gente dentro d'água, alguns flutuando desesperados, outros arrastando-se em direção à praia. Muita gente tentava ajudá-los. O que complicava tudo eram os dejetos - pedaços de telhados, madeiras quebradas, barricas de madeira, caiaques às centenas, milhares de pedaços de outras coisas - tudo turbilhonando e rolando na onda sísmica em recuo.

- Zachar! - gritou ela ao vê-lo, de joelhos, tentando engatinhar aquele último pedaço de distância até a praia, tossindo e afogando-se.

Um momento antes ela não tinha forças para dar mais um passo; agora correu pela praia por dentro d'água até seu filho. Agarrou-lhe o braço e tentou arrastá-lo o resto da distância até o seco, mas ele era pesado demais. Ouviu alguém correndo por dentro d'água não longe dela.

- Ajude-me - gritou Tasha.

Baranov veio pelo mar até ela. Passando um braço de Zachar pelo seu pescoço, andou com ele e meio carregou-o até a areia, onde descansouo no chão. Tasha vinha logo atrás. Água salgada gorgolejou de sua boca quando os músculos do estômago de Zachar se contraíram violentamente, expelindo vómito e mais água. Ele começou a tossir e a respirar. Tasha limpou o muco do canto de sua boca e depois olhou para o filho. Ele estava sentado na praia, dobrado em dois, ainda fazendo força para respirar.

- Viu Katya? - perguntou ele com voz fraca.

- Não.

Tasha olhou para o mar revolto, mas a única coisa que podia ver era o crânio brilhante e pálido de Baranov destacando-se no mar escuro. Ele estava entrando no mar com água pela cintura, tentando alcançar uma mulher que afundava - Katya. Deixando Zachar, Tasha apressou-se a entrar na água. Ela mal podia ouvir os gritos de sua nora por socorro.

Quando Baranov alcançou Katya, ela passou-lhe sua filhinha:

- Pegue minha filha!

Tasha viu a pesada viga de madeira levantada por uma onda numa das extremidades girar por cima de Katya.

- Katya! - ela gritou o aviso, mas de nada adiantou, Katya já havia desaparecido. - Não...! - Tasha recusava-se a acreditar e entrou mais profundamente no mar, enfrentando as ondas.

Baranov encontrou-a e passou Larissa para seu colo; depois afastou-se apressado para auxiliar outras pessoas. Tasha apertou a criança que chorava contra seu peito e ficou olhando para o lugar onde vira pela última vez a mulher de seu filho, sem ligar para as ondas que quebravam contra suas pernas e a corrente que no fundo puxava seus pés.

Depois de algum tempo, os tremores e os soluços de sua neta, que tremia de choque, despertaram Tasha de sua vigília de dor. Devagar, ela olhou para a menininha de cabelos pretos e esfregou seu rosto contra a testa da criança, fechando com força seus olhos. A seguir, levantou a cabeça e voltou de dentro d'água para terra firme, onde Zachar a esperava.

Durante o que restou daquela noite, eles ficaram amontoados juntos, com apenas o calor dos corpos para aquecê-los.

Quando chegou a madrugada, pôde ver o alcance total da devastação. Nenhuma construção ficara de pé; o impacto da onda derrubara a todos e os destroços espalhavam-se por toda a ponta de areia. Algumas mercadorias e suprimentos estavam perdidos ou danificados. A maior parte da frota de bidarkas fora arrebentada ou carregada para o mar. Milagrosamente, poucas vidas foram perdidas. E a chalupa Sv Simeon continuava ancorada no atracadouro, a língua de terra tendo escorado o impacto da onda e poupado o navio.

No estabelecimento, a perda foi tremenda para os russos e para os nativos. Os aleútes koniaga estavam convencidos de que os deuses do mar haviam-se zangado e lamentavam sua sorte. Tasha saiu à procura dos destroços de sua cabana, mas sem empenhar-se muito.

Larissa aproximou-se chorando e perguntando pela mãe.

- Ela morreu afogada - respondeu Tasha, cruamente.

- Mas onde está ela? - A morte era um conceito que estava além da compreensão de uma criança de dois anos.

- Está no mar. - Era onde o irmão de Tasha, Empertigado, havia morrido.

- Não - disse Zachar, corrigindo a resposta. - Ela está no céu. Devemos rezar por ela. - Pegou a mão da criança e a fez se ajoelhar ao lado dele. Inclinou a cabeça e repetiu uma série de frases desconexas que ouvira o padre dizer, depois fez o sinal-da-cruz e ensinou a filha a fazê-lo, segurando sua mão.

Pouco mais tarde naquela manhã, Baranov reuniu a todos e anunciou que a aldeia não seria reconstruída ali. Ele estava mudando o estabelecimento para o lado oriental de Kodiak, onde havia madeira e terras altas. Além disso, estava designando um grupo de homens para viajar imediatamente com Ismailov no Sv Simeon para o lugar escolhido, onde começariam a derrubar madeira para a construção da nova aldeia. Mandou para casa os aleútes koniaga, instruindo-os a se reunirem na nova aldeia dentro de um mês para a caçada. Não importava quais as dificuldades; ele estava determinado a encontrar localização para novos postos avançados, como ordenara Shelekhov.

Sua energia e disposição revitalizaram o acampamento e transformaram a apatia e a inquietação de seus homens em ação e objetivo. Nem mesmo o velho Ismailov discutiu o plano; em vez disso, imediatamente pôs mãos à obra para aprestar o navio para a viagem. Aqueles que não foram designados para seguir com o navegador puseram-se a trabalhar, recuperando tudo o que era possível da cena de destruição.

O novo local era rodeado de florestas que ofereciam um imediato suprimento de materiais de construção. Seu porto natural não se apresentava tão grande quanto a baía dos Três Santos, mas era mais profundo e mais bem protegido. Baranov chamou seu sítio no Kodiak de São Paulo, e nele trabalhou junto com seus homens, manejando um machado. Disposto a não perder a estação de caça do verão, ele contentou-se em ter as paredes em posição, deixando o telhado para mais tarde, ainda no verão, quando voltassem da caçada. Quando os aleútes koniaga chegaram no prazo combinado em cerca de 450 bidarkas, Baranov deixou para trás um pequeno contingente de homens em São Paulo e partiu com os caçadores.

Foi um longo e trabalhoso verão para Tasha. com uma criança para criar, ela não tinha muito tempo para queixar-se. A existência naquela terra era sempre uma luta.

Quando a primeira bidarka da frota foi avistada além das ilhas do porto, Tasha apanhou Larissa e juntou-se ao grupo de caçadores russos e outras mulheres e crianças que esperavam na praia. Zachar viajava na parte traseira de uma bidarka de dois lugares, com um aleúte na frente remando. Havia muitas mãos ansiosas para ajudar a levar os barcos para terra. Quando Zachar foi puxado para cima, Tasha esperava para dar-lhe as boas-vindas, a alegria inundando seu coração pela volta em segurança de seu filho mais velho. A pequena Larissa enrolava-se em suas pernas.

Quando Zachar passou seu mosquetão para Tasha, ela notou a palidez de seu rosto e a vaga expressão de dor nos olhos azuis; seus olhos encheram-se de preocupação. Ele mantinha seu braço esquerdo junto ao corpo e não o moveu quando saltou do barco de couro.

- Está ferido - disse ela.

Ele parou à sua frente e depois pegou o mosquetão que estava em suas mãos.

- Os kolosh atacaram-nos há várias noites, quando estávamos acampados na praia. Uma de suas flechas varou-me o ombro. - E abaixou-se para falar com a filha.

- Vamos - ordenou-lhe Tasha. - Quero olhar esta ferida.

Dentro de seu novo alojamento ainda incompleto, Tasha examinou-lhe o ombro, ficando satisfeita porque a carne em volta do buraco aberto pela flecha não parecia infectada. A localização da ferida era alta, assegurando-a de que apenas carne e músculos tinham sido perfurados e que nenhum dano fora causado a seus pulmões. Encheu a ferida com uma pomada de ervas e cobriu-a com uma atadura; depois ajudou Zachar a vestir sua camisa vermelha.

- O que aconteceu?

- Eles atacaram nosso acampamento pouco antes da madrugada, quando a cerração é mais densa - disse Zachar. - Nossos guardas haviam dormido. Ouvi gritos de guerra e acordei. Os kolosh caíram sobre nós gritando no meio do nevoeiro. Usavam elmos e estranhas e feias máscaras no rosto. Tinham coletes feitos de madeira e carregavam escudos de guerra também de madeira. A não ser que estivessem muito perto de nós quando disparávamos os mosquetões, as balas não atravessavam a madeira. - Ele fez uma pausa e sacudiu a cabeça. - Os aleútes estavam muito amedrontados com os kolosh para lutar. Eles nos teriam matado a todos se alguém não tivesse conseguido colocar o pequeno canhão em posição.

- Morreram muitos? - Tasha pensou como estivera perto de perder outro membro de sua família. Seu irmão morrera; Mikhail desaparecera, talvez para jamais voltar. Não tinha mais ninguém, a não ser Zachar e sua neta Larissa.

- Apenas dois russos e nove dos aleútes.

Um estremecimento percorreu seus ombros quando pensou que Zachar poderia facilmente ter sido um deles. - Os kolosh são muito perigosos. Talvez agora Baranov tenha aprendido a evitar as terras deles. As lontras-do-mar vivem também nas águas dos kolosh; Os navios ingleses e os de Boston comerciam com eles. Baranov não permitirá que este ataque dos kolosh o impeça de voltar lá.

Tasha convenceu-se com este argumento. Os russos nunca permitiram que qualquer coisa prejudicasse seu objetivo de caçar a lontra-do-mar, nem distância nem nativos. Empertigado lutara contra eles em Unalas, muitos russos haviam morrido, mas um número maior viera para tomar-lhes o lugar. Os kolosh também não os impediriam.

Do lado de fora da cabana ouviu-se o grito de "Navio à vista!"

Não era o velho e batido pelas tempestades Sv Simeon que entrava no estreito porto, mas um elegante paquete armado em escuna, portando o nome Orei, A Águia. De novo os habitantes da aldeia precipitaram-se para a praia; Tasha, Zachar e Larissa entre eles. Entre a multidão correu a notícia de que o paquete era um navio de suprimentos de Shelekhov com Tabaco, farinha, reforço de homens, correio, notícias de casa, vodca. tudo estava ali, afinal.

Tasha examinava os rostos dos homens no convés; seu olhar demorou-se numa figura alta e magra, de olhos e cabelos escuros. Hesitantemente, ela tocou no braço de Zachar, sem tirar os olhos do jovem a bordo do navio. Sua respiração ficou suspensa, uma esperança impossível surgindo.

- Mikhail! - murmurou ela. Mas seria seu filho? Poderia ele ter mudado tanto? Ela não sabia; não estava certa. Seus dedos contraíram-se no braço de Zachar. Pareceu-lhe que passou um tempo enorme até o primeiro bote chegar a terra. Finalmente chegou. Quando viu o jovem saltar, não teve mais dúvida em sua mente:

- Mikhail!

Voltando-se, ele a viu. Um sorriso iluminou-lhe o rosto e ele correu até ela. Tasha começou a chorar de felicidade enquanto andava para a frente a fim de abraçar o filho, que a deixara ainda menino e voltava como um homem de dezesseis anos. Seus dedos tremiam quando tocou nos escuros e curtos cabelos que adornavam o queixo do filho. O rosto de Mikhail dissolveu-se em sua visão toldada pelas lágrimas, distorcendo-lhe a imagem apenas o bastante para deixá-la descobrir traços da doçura do menino em suas feições.

- Você voltou! - Ela mal podia acreditar. Quase perdera a esperança de tornar a vê-lo. - Pensava que ainda havia muitos lugares novos para ver e que você continuasse por lá!

Mikhail riu dos temores da mãe, e seu riso tinha o som grave de adulto.

- Tenho muito a lhe contar sobre as coisas que vi. - Seu olhar abrangia Zachar. - E ainda há muitos lugares que verei. Fui para a escola de navegadores e aprendi a comandar navios. - Seu braço Passou em volta dos ombros de Tasha quando se voltou para saudar o irmão mais velho. Então, notou a pequena que estava ao lado de Zachar e agachou-se para olhá-la melhor. - Quem é você? - perguntou, sorrindo Para Larissa, que logo escondeu-se atrás das saias de Tasha. - Minha filha - respondeu Zachar por ela. - Seu nome é Larissa

- disse ele enquanto estudava cuidadosamente Mikhail. Em curtas palavras, Tasha relatou a história do afogamento de sua nora. Mikhail ficou tristonho, mas não por muito tempo; a ocasião era por demais alegre para todos e não podiam deixar a morte lançar sua sombra sobre ela.

Havia muito a contar, muitas coisas a esclarecer, muitos incidentes a relatar. Fatos demais haviam acontecido a cada um deles durante os anos de separação, e passaram a maior parte do dia enchendo esses anos perdidos.

Naquela noite Mikhail e Zachar compareceram ao praznik (festa) que Baranov ofereceu para celebrar a chegada do tão aguardado navio de suprimentos. Assaram carne fresca em fogueiras preparadas na nova praça da aldeia. O enorme tonel de kvass em fermentação foi enchido com baldes de vodca da carga do navio. Todos ganharam uma caneca de bebida e um pacote de tabaco sem casca de salgueiro.

Repetidos brindes foram dedicados à saúde do hóspede de honra da festa, o comandante do Orei. Yakov Egoryevich Shiltz, era como chamavam o corpulento inglês cujo cabelo vermelho e inúmeras tatuagens marcavam-no como um tipo diferente dos russos. James Shields, de profissão um construtor de navios e um tenente na Armada Imperial Russa, sempre respondia aos brindes com suas próprias saudações - assassinando a língua russa ao fazê-lo, o que muito divertia os promyshleniki.

O maremoto na baía dos Três Santos destruíra os poucos instrumentos musicais do estabelecimento, mas dois dos recém-chegados substitutos tinham trazido suas guzlas e o praznik encheu-se de música. Os promyshleniki invadiram as habitações aleútes e levaram as moças para a festa. Derramaram o kvass traçado com vodca para suas pequenas e dançaram com elas, divertindo-se em altos pulos e grande abandono. As dolentes baladas de sua nativa Sibéria foram cantadas por toda a noite, acompanhando as danças.

Mikhail foi dos primeiros a deixar a festa, cambaleando até seu alojamento com o braço em volta de uma pequena aleúte. E Zachar não demorou a segui-lo. Mas a madrugada já rompera quando o último homem se arrastou até sua cama.

Enquanto isso, Baranov lia sua correspondência e uma longa carta nova de Shelekhov, onde reiterava a necessidade de estabelecer novas aldeias, especialmente na costa sudeste. com essa finalidade, Baranov deveria começar a construir navios para atingir tais objetivos.

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SEGUNDA PARTE

 

O Sudeste do Alasca

O Estreito de Sitka Primavera de 1802

O característico cone truncado do monte Edgecurnbe marcava a entrada do estreito de Sitka, seu pico coberto de neve confundindo-se com as pesadas nuvens. As costas da ilha principal eram cobertas de florestas com gigantescos bosques de cedros, pinheiros e abetos, à cuja sombra crescia uma massa quase impenetrável de samambaias e arbustos. Muitas ilhas cobriam suas águas costeiras, aumentando o labirinto de baías, fiordes e estuários. Águias espiralavam vagarosamente pelos céus que compartilhavam com bandos de aves marinhas.

O brigue de casco forrado de cobre Sea Gypsy, procedente de Salem, Massachusetts, aproou para dentro do estreito. Um ano de exposição aos elementos tinha desbotado o amarelo brilhante e o verde escuro de seus costados, mas os enfeites vistosos de sua popa e os baixo-relevos da proa não pareciam afetados pela surra que o brigue levara navegando em volta do cabo Horn. Era um barco pequeno e bem construído, seu tamanho e sua maleabilidade fazendo-o idealmente adaptado para as complicações da costa noroeste. Alguns no comércio marítimo consideravam brigues como o Sea Gypsy o próprio navio de piratas.

Cortinas de couros de boi secos trazidos da costa da Califórnia serviam como uma amurada em seus conveses para proteger a guarnição contra flechas. Na popa era deixada uma abertura e ali se faziam as transações comerciais. Além das armas montadas em reparos giratórios nas amuradas, o Sea Gypsy carregava dez canhões, que atiravam bolas de ferro e que tinham a seu lado mechas e munições para os artilheiros. Sua tripulação era armada com mosquetões e pistolas, alfanjes e lanças de abordagem também disponíveis. Em seus porões havia uma variedade de artigos para o comércio - brilhantes artefatos de cobre, caixas de contas, fardos de roupas e peças de panos grosseiros de lã vermelha e azul; a carga principal consistia no entanto de rum e caixotes de velhos mosquetões, relíquias da Guerra da Independência, que haviam sido comprados barato do recém-formado governo americano.

Aquele era o coração do país dos tlingit. Uma de suas aldeias ficava numa curta península na parte de baixo de uma colina arredondada e agreste logo à sua frente. Suas grandes casas comunais, construídas de maciços troncos, alinhavam-se ao longo da costa, em frente ao mar. Mesmo à distância já se podiam ver as altas colunas heráldicas das casas, com figuras de grotescos animais e aves esculpidas na madeira e pintadas com cores vivas, parecendo refletir a grandeza selvagem do país. Uma cabine de troncos do interior dos Estados Unidos pareceria insignificante e crua ao lado de uma destas enormes estruturas, solidamente construídas.

De sua posição no tombadilho superior, Caleb Stone observava três canoas que se aproximavam do navio. Todas eram construídas de um único tronco de cedro escavado. Os rostos dos guerreiros nas canoas estavam espalhafatosamente pintados de vermelho e preto. O cabelo era puxado em um nó na parte posterior da cabeça, enfeitado com penugens e finalmente adornado com uma pena preta e amarela.

Como espécimes físicos, Caleb estava disposto a concordar que os índios tlingit eram impressionantes. Os homens eram altos, frequentemente atingindo a 1,80m, de pele bronzeada e musculosos. Eram ao mesmo tempo vivos e traiçoeiros. Marchavam por aquelas terras como seus autênticos senhores; e o eram.

Quando as canoas se alinharam com o navio, ele relanceou o olhar pela tripulação, mas não era preciso avisar que mantivessem os olhos abertos para a aproximação de canoas de guerra de uma outra direção, um truque dos insidiosos selvagens que preferiam apossar-se do que desejavam pela força mais do que pelo comércio. A maior parte de sua tripulação era de veteranos no comércio de peles do Noroeste.

Caleb Stone já fizera mais de meia dúzia de viagens até ali, a primeira como taifeiro, com a idade de doze anos, e depois como marinheiro comum, à frente do mastro. Na última viagem embarcara como imediato e assumira o comando quando o capitão morrera no mar; trouxera o navio de volta para seu porto de registro de Salem, abarrotado com um rico carregamento de mercadorias chinesas de Cantão, onde vendera as peles por uma bela soma. Agora, com 27 anos, ele viajava como comandante do veleiro.

Era um homem alto e esguio, com as bochechas queimadas de sol de um marinheiro e a pele da cor de canela. Compridas suíças enfatizavam seu rosto magro e refletiam a cor castanha do cabelo. Seus olhos cinzentos eram meio escondidos pela ligeira queda das pálpebras superiores, mas sempre demonstravam uma alerta vigilância.

- Eles estão levando um tempo dos diabos inspecionando o feitio de nossa bujarrona - observou o imediato, Asa Hicks, numa voz seca, cheia de suspeita. Caleb não fez nenhum comentário.

- Homens de Boston! - gritou para eles um dos guerreiros com a cara pintada de vermelhão e preto, usando o termo que aplicavam a todos os americanos, devido ao grande número de navios que trafegavam em suas aguas e que tinham Boston como porto de registro. Pelo mesmo motivo, eles chamavam os ingleses de "homens do rei Jorge".

- Venham negociar! - E com um gesto do braço ele sinalizou-lhes para entrarem na baía crivada de ilhas a estibordo do brigue.

Sacudindo a cabeça, Caleb gritou para os selvagens, dizendo-lhes que voltariam outra vez para comerciar com eles. As canoas continuaram a acompanhar o navio e o convite foi repetido várias vezes, mas Caleb ignorou-o.

Durante sua estada no Havaí para reaprovisionamento, soubera, através de capitães de navios em regresso, que os russos haviam construído um baluarte em Sitka no ano anterior, como um esforço para estender suas reivindicações territoriais sobre esta parte da costa, excluindo dela

udvius cauduguiius. Era um lugar que os russos chamavam de baluarte São Miguel seu primeiro porto de escala para informarse do vulto da ameaça que os russos representavam.

A umas seis milhas da entrada do estreito, o Sea Gypsy deparou com o baluarte, estabelecido num trecho de praia exposto. A estacada da fortaleza fora construída de pranchas de madeira de sessenta centímetros de espessura, cortadas da floresta que a rodeava, e seu andar superior estendia-se sessenta centímetros por sobre o inferior, com torres de vigia nos dois cantos. Para além da estacada viam-se os tetos de outros edifícios que circundavam o estabelecimento. Uma bandeira russa adejava alegremente ao vento.

Tão logo o navio lançou âncora, Caleb ordenou que o escaler fosse arriado. Um contingente de russos esperava por sua chegada na praia. Ele abotoou a japona, deixando a gola virada para cima contra o fresco vento, depois passou a perna pela amurada e embarcou no escaler. Quando os marinheiros arvoraram os remos, Caleb examinou o grupo de russos que o aguardavam.

Caleb reconheceu facilmente o moço de turbante pelas descrições dos capitães que o haviam conhecido; era o criado bengalês do gerente russo Baranov que falava inglês. Baranov era um homem baixote e troncudo, que usava uma absurda cabeleira negra presa na cabeça por um lenço colorido. Haviam-lhe dito que Baranov usava aquilo como uma tentativa para andar na moda, mas Caleb achava que a história era absurda demais para ser verdadeira. Pensava agora acerca das outras histórias que ouvira a respeito das prodigiosas quantidades de bebida que Baranov podia ingerir numa única sentada. Examinou o resto dos homens de pé junto ao gerente russo, reparando apenas em um, um homem de olhos azuis com cabelos castanho-escuros.

Zachar observou o encontro entre Baranov e o capitão de Boston e escutou quando o bengalês chamado Richard identificou o capitão Stone do navio Sea Gypsy e transmitiu o pedido de permissão para enviar seus homens a terra para refazerem o suprimento de água fresca.

Há dois anos Zachar deixara sua jovem filha Larissa aos cuidados da mãe e do irmão, e viajara para a ilha de Kodiak como um dos membros de força de colonização escolhida por Baranov para estabelecer uma colónia fortificada na costa sudeste da terra firme - no coração do país hostil dos kolosh. Desde que eles haviam construído o baluarte no estreito, muitos navios bostonianos e ingleses haviam-no visitado. Zachar aprendera muitas de suas palavras com os marinheiros que vinham à terra, mas não o bastante para entreter uma conversação.

Como era usual, Baranov concedeu a permissão e convidou o homem de Boston para entrar no interior da estacada. O capitão Stone aceitou com a mesma cautela e curiosidade que Zachar vira outros demonstrarem. Zachar marchou atrás do gerente da companhia quando ele escoltou o visitante para o interior da fortificação.

Dentro da alta estacada, guardas andavam pelos parapeitos onde estavam montados os canhões, suas bocas apontadas para a escura vegetação que ficava nos estábulos de gado e um quartel de dois andares completavam a praça central do estabelecimento.

Na praça, a atenção de Zachar voltou-se para apenas uma das mulheres kolosh. Ela era alta, com o cabelo negro e brilhante, e braceletes de cobre em torno dos tornozelos nus. A vestimenta de longa saia e mangas que ela usava era feita de macias peles curtidas costuradas nos lados, ressaltando suas ancas arredondadas. Na frente usava uma espécie de avental feito do mesmo material.

Zachar sabia que não se podia confiar em nenhuma dessas kolosh - ou tlingit como se chamavam - não importa quão desejosas estivessem de ir para a cama por um certo preço. Mas no que concernia à moça chamada Filha do Corvo, Zachar abandonava todo o sentido de cautela. Sempre que a via, ele a desejava, sem ligar para o preço que deveria pagar. Naquele dia não foi diferente.

Deixando a escolta de Baranov, ele atravessou a praça em diagonal. Quando o viu aproximar-se, ela empinou o queixo, certa de seu interesse nela. Seu longo e negro cabelo estava partido no meio e caía abaixo de seus ombros; seus olhos pareciam atrair o olhar dele até seu negro centro como se ele estivesse, de certa forma, sendo absorvido por eles.

Parou à frente dela, sentindo a língua grossa e a garganta apertada.

- Há muito tempo que não vem à aldeia, Corvo. - Zachar nunca empregava o nome completo da moça.

- Zachar sentiu falta de Corvo? - Os olhos dela pareciam ficar mais escuros de satisfação ao sorrir para ele, seus lábios cheios e macios, o lábio inferior não tendo sido desfigurado pelo batoque em forma de colher que muitas das mulheres kolosh mais velhas usavam.

- Sim - admitiu. Ele tinha coabitado com ela durante apenas sete noites, mas parecia-lhe muito mais tempo. - Esta noite você vem para minha cama.

Ela inclinou a cabeça de lado, estudando-o com um olhar esperto e conhecedor.

- Corvo quer um espelho.

Espantado com o pedido, Zachar ficou momentaneamente mudo. Em geral o preço da companhia dela era um colar de contas azuis. Um espelho era bem mais caro. Ele já estava endividado no comissariado da companhia mais do que seria capaz de ganhar nesta estação.

- Dois colares de contas - ofereceu ele hesitante, relutando em barganhar com ela.

- Não. - Seu olhar tornou-se frio e ela virou-se de lado.

Zachar agarrou-lhe o braço antes que ela pudesse afastar-se, arrependido de sua tentativa de negociar e compreendendo que somente conseguira ofendê-la.

- Um espelho - concordou ele.

- Zachar deseja Corvo: um espelho e as contas - propôs ela, olhando-o altaneira.

A lógica lutava com seu desejo, insistindo em que ele deveria rejeitar o preço dela e deixá-la ir embora. Se pagasse agora, da próxima vez ela exigiria mais. Ele fitou demoradamente aquele rosto, o nariz reto e o rosa natural das faces. Concordou lentamente, zangado com sua própria fraqueza.

- Um espelho e as contas - ofereceu, depois tentou recuperar seu orgulho. - Se Corvo não fizer Zachar feliz esta noite, nada de contas.

Os lábios da moça se abriram num sorriso experiente, que zombava dele por questionar sua habilidade para satisfazê-lo.

- Corvo faz Zachar feliz - declarou ela e afastou-se. Ele observou-a partir sentindo uma mistura de desprezo por si mesmo e de expectativa.

Nos dez anos desde a morte de sua mulher, Katya, Zachar nunca tomara outra mulher para viver com ele permanentemente. Durante uma grande parte deste tempo, sua mãe assumira muitos dos deveres de uma esposa, fazendo todas as roupas dele, remendando seu barco de couro, preparando sua comida e cuidando da filha, Larissa, ensinando-lhe as coisas que uma mulher deveria saber. Suas necessidades sexuais, quando lhe surgiam, eram facilmente satisfeitas por moças aleútes de alguma aldeia vizinha.

E até conhecer Corvo, nenhuma mulher o atraíra com exclusividade, nem mesmo sua falecida esposa. Aquilo era novo e inquietante para ele. Às vezes Zachar desejava ter ficado lá no Kodiak, que a volta de Mikhail não o tivesse liberado da responsabilidade por sua família. No entanto sabia que mesmo antes da volta de Mikhail ele já virtualmente abandonara Larissa aos cuidados de sua mãe. Ele era um rude caçador, sem educação; nada havia que pudesse ensinar à filha. Mikhail, com tudo o que aprendera enquanto esteve na Rússia, podia dar-lhe mais do que Zachar jamais poderia. Agora que seu irmão estava no Kodiak, podia cuidar da mãe que envelhecia.

Zachar vivia se repetindo que não tinha mais razões para voltar. Sua família não precisava dele. Na verdade, porém, o pensamento de jamais rever Corvo enchia-o com uma espécie de pânico.

A lanterna a óleo balançava com o movimento suave do brigue ancorado na baía. A mesa de mogno lavrado brilhava, sua superfície limpa dos pratos e talheres; apenas um par de copos de conhaque e uma garrafa permaneciam. Caleb recostou-se para trás em sua cadeira e observou Baranov aspirar o cigarro sendo aceso por seu criado e constante companheiro, o jovem bengalês chamado Richard.

Depois do encontro com Baranov à tarde, Caleb convidara o russo para jantar a bordo de seu navio. Dawson, seu taifeiro, inclinou-se com uma ligeira curvatura para a cadeira de Caleb e estendeu o braço para oferecer-lhe charutos para escolher, tentando ser tão cerimonioso quanto o bengalês treinado na Inglaterra. Caleb divertia-se com a rivalidade que seu taifeiro obviamente sentia com relação a seu correspondente russo. Afastou com um gesto da mão a caixa de charutos; Dawson empertigou-se, silenciosamente, fechou a tampa da caixa, depois colocou-a na mesinha lateral de mogno e voltou a tomar sua posição atrás da cadeira de Kaleb.

Após acender o charuto, Baranov afastou o charuto da boca e disse qualquer coisa. Richard traduziu cumprimentos pela comida e pela excelente qualidade do conhaque como se fosse ele mesmo quem estivesse falando, em vez de inserir explicações tais como "ele disse" ou "ele deseja saber":

- Estou curioso em saber que espécie de mercadorias está carregando, capitão - concluiu ele após terminar os cumprimentos.

Caleb sabia que a conversa eventualmente chegaria aos artigos que trazia no porão.

- O de costume - respondeu Caleb, olhando para Baranov enquanto falava; ele suspeitava que o russo entendia inglês mais do que aparentava. - Casacos de pano vermelho, botões, cobertores, cobre, casacões, talhadeiras de ferro.

Enquanto Richard traduzia sua resposta, Caleb pegou seu copo de conhaque e agitou seu conteúdo, girando-o; depois levou o copo à boca, enfrentando o olhar vivo de Baranov enquanto bebia. Caleb omitira deliberadamente qualquer menção aos mosquetões e ao rum.

- E que tal armas e munição?

Sorrindo, Caleb baixou o copo e ficou contemplando a bebida cor de âmbar; depois admitiu, levantando os olhos:

- Carrego isso também, e rum da Nova Inglaterra.

O duro sermão que ele recebeu de Baranov quase não precisou de tradução.

- Trocar armas de fogo e bebidas com os selvagens é proibido no território russo da América. É imprudente armá-los com armas que podem ser usadas contra nós. Deve desistir dessa prática imediatamente.

- Viajei mil e quinhentas milhas para comerciar com os tlingits... ou os kolosh, como vocês os chamam. Eu quero peles de lontra e eles querem armas. Tenho as armas e eles têm as peles. Se este é seu preço pelas peles, isto é o que pagarei. Sou um comerciante.

- Devo deixar bem claro que protesto fortemente. Armas não devem ser negociadas com os nativos. Na verdade, deve compreender que é para a segurança de todos os que vêm a nossas costas.

- Posso fazer uma sugestão, sr. Baranov? - perguntou Caleb com suavidade, e recebeu um sinal positivo da cabeça coberta com peruca do russo antes que Richard interpretasse a pergunta. - Uma vez que está reivindicando toda a costa Noroeste como território russo, isto significa que os nativos estão sob sua jurisdição. Por que simplesmente não os proíbe de negociar conosco em troca de armas?

Nos olhos de Baranov brilhou o mais leve sinal de admiração quando Richard acabou de traduzir a contraproposta de Caleb. Ambos sabiam que tais regras não podiam ser reforçadas, quer no que se referia aos nativos mercantes americanos ou ingleses, quer quanto aos timgils. Mas Baranov permaneceu irredutível em seu protesto contra a venda de armas de fogo e bebidas para a população nativa.

Os russos comerciavam muito pouco com os tlingits, recusando-se a oferecer-lhes a única mercadoria mais solicitada pelos nativos, e dependiam fortemente dos caçadores aleútes que eles haviam escravizado para caçar a lontra-do-mar nestas águas. Baranov confirmara que os russos não competiriam na venda de mosquetões, o que significava que o campo permanecia inteiramente aberto. E Baranov não tinha nem o poder naval nem gente para impedi-lo. Podia-se fazer fortunas nesse comércio de peles e Caleb candidatava-se a isso. com sua importante participação, como comandante do navio e "supercargo" (supervisor da venda da carga), nos lucros desta viagem, ele planejava comprar seu próprio navio. Em sua próxima viagem ganharia ainda mais.

Quando Caleb fez um movimento para pegar a garrafa de conhaque, Dawson pulou rápido para apanhá-la e encher ambos os copos, lançando um olhar arrogante para o criado bengalês. Agora que Baranov tinha estabelecido sua posição quanto às armas, ele deixou o assunto de lado e expôs o interesse de um homem há longo tempo isolado do mundo exterior por notícias dele.

Caleb descontraiu-se e contou a Baranov o que sabia acerca das guerras de Napoleão na Europa, que haviam reduzido o número de navios ingleses engajados no comércio do Noroeste e da China neste ano. Baranov queria saber acerca do rei Kamehameha I das ilhas Havaí e sobre o pequeno presídio espanhol de San Francisco, a duas mil milhas de distância, o estabelecimento mais próximo do baluarte russo. Caleb não podia dizer muito sobre este último, pois os espanhóis continuavam a manter seu porto fechado a navios estrangeiros, mas falou sobre o monarca havaiano. E, também, sobre a última notícia que ouvira: que o czar Paulo ainda estava governando, sucedendo a sua mãe, Catarina a Grande, no trono da Rússia.

Os dois homens ficaram conversando e bebendo, trocando histórias e informações. O que Caleb ouvira acerca da quantidade de bebida que Baranov podia ingerir era tudo verdade. Quando o endiabrado russo finalmente partiu para terra, sua peruca negra estava torta na cabeça mas ele caminhava mais ou menos sem a ajuda de seu criado. Dawson, por outro lado, teve de carregar Caleb para seu beliche.

Na orla da floresta, Corvo parou, ainda escondida em suas escuras sombras. Podia ver Zachar de pé ao lado do portão da paliçada esperando por ela. Contou o número de sentinelas nas guaritas; sempre o mesmo. A risada do chefe russo chamado Nanuk podia ser ouvida ressoando no navio de Boston. Ela estava certa que havia mosquetões e pólvora a bordo do navio, talvez até algumas das armas novas munidas de cartuchos.

 

Outros clãs ao longo da costa estavam zangados com o klan dela em Sitka por haver deixado os russos construírem sua aldeia na ilha em troca de algumas contas, bronze e garrafas. Pressionavam o klan de Sitka a expulsá-los. O clã dela já havia adquirido muitas armas, mas ainda precisava de mais. E os russos estavam sempre em guarda, embora seu povo pretendesse o consentimento dela, mas reconheceu o tom zombeteiro e achou que estava sendo provocado. Corvo emergiu do seio da floresta e aproximou-se do portão corn deliberada lentidão, consciente de que os olhos dele a observavam. Sabia que isto o tornaria impaciente por ela. Quando se aproximou o bastante para distinguir-lhe o rosto no crepúsculo da primavera, percebeu o ar esfomeado nos olhos dele, denunciando seu grande desejo por ela. Estava satisfeita com o grande poder que tinha sobre ele. Sorriu ao lembrar-se de quanto ele estava disposto a pagar por ela.

Os altos muros de troncos que circundavam a aldeia russa lançavam uma longa sombra. Corvo caminhou até o quadrado de luz crepuscular que entrava pela abertura do portão e parou quando estava toda exposta à luz, permitindo que Zachar a visse.

- Vim como Zachar queria - disse finalmente.

O ar da noite estava fresco e úmido, mas ela podia ver gotas de suor brilhando em seu lábio superior por debaixo de seu fino bigode preto. Quando ele pegou seu braço, Corvo sentiu o fraco temor que sacudia sua mão. Apressadamente ele a guiou para dentro dos muros, direto para o alto quartel. Durante todo o trajeto ela estava olhando em volta para observar a atividade da aldeia.

Dentro do quartel ele guiou-a passando pelos quartos ocupados pelos russos que haviam trazido com eles suas gorduchas esposas aleútes, comedoras de peixes. Zachar entrou no pequeno quarto que lhe pertencia e puxou-a para dentro; agarrou-a nos braços e apertou seus quentes e úmidos lábios contra a boca de Corvo.

Ela ergueu as mãos e empurrou-o firmemente para trás.

- Meu espelho e minhas contas.

Ele olhou-a meio zangado, depois afastou-se e foi a um canto do quarto. Quando voltou, trazia o vidro liso que mostrava o reflexo dela e dois colares de contas azuis. Raven pegou-os das mãos dele, examinouos brevemente e depois os colocou no chão ao lado da parede. Desamarrou seu avental e colocou-o sobre suas novas possessões; depois despiu seu vestido de couro de veado e voltou-se para ficar de frente a Zachar, somente com os braceletes de cobre tilintando em volta de seus tornozelos nus.

- Agora Raven fará Zachar feliz - murmurou ela com a voz rouca e caminhou muito junto a ele dirigindo-se para a cama.

- Guarneçam o molinete! - berrou Hicks repetindo a ordem, e Caico quase não pôde suprimir um arrepio de dor. Podia jurar que seu imediato sabia que ele estava com uma ressaca e estava deliberadamente com seus berros agravando sua condição. Que diabo! Ele fizera o mesmo quando era imediato - e se deliciara ao fazê-lo!

A água escorreu por seu pescoço; Caleh puxou a gola de seu "sudoeste" apertando-a contra o pescoço, e levantou os ombros tentando proteger as orelhas.

- Iça! Ferro para cima! - gritou Hicks para os homens que guarneciam o molinete do ferro, preparando-se para levantá-lo. - Iça e prende!

Dizem os homens do mar que um canto é tão bom quanto dez homens. Caleb encolheu-se com o alto e disposto canto que a tripulação entoava enquanto se aplicava com toda a força a virar a roda do molinete. A toda aquela algazarra ainda vinha juntar-se o barulho da corrente da âncora ao ser içada.

Cerca de vinte minutos mais tarde, depois de prender a âncora, de levantar as velas e firmar as vergas, o Sea Gypsy singrava o mar. Caleb olhou para trás, para o forte russo de São Miguel, meio escondido pelas baixas nuvens e a cortina cinzenta da chuva. Os russos podiam ficar com aquele miserável lugar, ele pouco se importava. Seu único interesse estava em suas peles.

O vento estava fresco e firme. O brigue deslizava pelo canal com todos os panos ao vento. Caleb observava a escura costa, como seus enormes pinheiros e cedros e a impenetrável vegetação inferior que quase chegava à borda d'água.

À frente dele ficavam as águas abertas do estreito e pela popa a boreste o morro que comandava uma vista de toda a área. A longa fiada de casas com as frentes construídas com totens marcavam o local de uma aldeia, as colunas pintadas de cores vivas escurecidas pela chuva. A fumaça de lenha que saía de suas maciças casas espalhava-se pelo meio da chuva fina como uma cerração.

com ressaca ou sem ressaca, estava na hora de começar a fazer negócios. Caleb ordenou a manobra de velas apropriada e o Sea Gypsy veio ancorar bem longe da praia da aldeia, pronto para levantar ferro e fazer-se ao mar com curto aviso em caso de qualquer problema com os nativos.

A tripulação movimentou-se para fazer o brigue parecer tanto uma nave de comércio quanto um bastião de defesa, verificando com redobrado cuidado os cabos que amarravam os escudos de couro em posição e fechando a parte da frente do navio com uma rede de velas. Os canhões foram movidos para uma posição avante do tombadilho e seus canos apontados para varrer a parte posterior do convés. Um par de bacamartes com bases rotativas assentava-se no alto convés da popa. As mercadorias de comércio estavam espalhadas no convés a meia-nau, em exposição.

Ao longo da praia havia um grande aumento de atividade.

- Fiquem de olho vivo, rapazes! - Hicks alertou a guarnição.

- Dois homens lá em cima - disse Caleb ao imediato. Todas as ordens para a tripulação eram transmitidas através dele.

- Sim, senhor - atendeu Hicks e mandou dois homens armados para cima do mastro principal.

Três canoas de índios aproximaram-se do brigue. Caleb notou que havia duas mulheres tlingit com os guerreiros. Em sua experiência ele notara que toda vez que uma mulher nativa estava presente durante uma negociação, nenhuma venda se efetivava antes que ela desse sua aprovação. Invariavelmente elas eram duras de negociar.

Quando as canoas estavam ao longo do costado do brigue, Caleb pediu que apenas um dos guerreiros viesse a bordo de forma que ele pudesse explicar as regras do jogo antes que as negociações começassem. Um guerreiro alto e musculoso subiu para bordo, seu rosto limpo de cabelos e pintado de preto. Um cobertor de lã marrom estava colocado sobre seus ombros de forma que seus braços ficavam livres. Ele encarou Caleb com o arrogante desdém de alguém que está tratando com um inferior.

Caleb chamou a atenção do tlingit para o armamento do navio, seus canhões e bacamartes carregados com cartuchos de grenalha e os dois marinheiros armados em seu alto poleiro com uma visão ampla do tombadilho; depois indicou que havia muito mais homens atrás da cortina de lona. Finalmente, disse ao guerreiro que de cada vez só seria permitida a presença a bordo de três de seu povo e alertou que se qualquer um desses três se aventurasse a mais de dez passos da amurada ele seria alvejado, e que um tal ato não deveria ser olhado como uma ruptura da paz...

O guerreiro acenou com a cabeça que havia entendido e voltou a sua canoa para informar aos outros das regras do homem de Boston. Pouco tempo depois o guerreiro retornou acompanhado por um outro e por uma índia. A mulher tlingit era mais velha embora seu cabelo engraxado não mostrasse fios grisalhos. Os guerreiros tratavam-na com deferência, mas Caleb teve de conter sua repugnância ao ver o beiço inferior dela protuberante; um disco de madeira com a forma de uma colher, mais ou menos do tamanho de uma caixa de rapé, estava inserido na pele cortada e prolongava seu beiço. O peso dela puxava-lhe o beiço para baixo, expondo-lhe os dentes e as gengivas. Na opinião de Caleb, Bico de Pato

- como ele a apelidou - era uma visão revoltante que pouco fazia para aliviar sua ressaca.

Os guerreiros apresentaram suas peles para inspeção: um sortimento de peles de lontra inteiras e pedaços cortados de uma peça. Caleb examinou-as, estimando seu valor, enquanto os tlingits olhavam para as mercadorias dele. Afinal começou a barganha.

Negociar com os tlingits era um procedimento longo e às vezes fútil, conforme Caleb já descobrira. Eles discutiam interminavelmente sobre o preço para suas peles, esgotando a paciência de um mercador, e espertamente aproveitavam a presença de outros navios mercantes na área para elevar o preço. Se não lhes oferecessem o que desejavam por suas peles, eles simplesmente as juntavam e iam embora, não importava quantas horas tivessem sido desperdiçadas barganhando.

Mas Caleb também aprendera que os tlingits formavam uma sociedade altamente materialista. A posição de um homem em sua aldeia era determinada pela quantidade de suas posses. Como no mundo dos brancos, havia os ricos e os pobres, com alguns pelo meio. Consequentemente, como um mercador, Caleb podia contar com a ganância deles.

À medida que a negociação continuava, ele sentia que um progresso definitivo estava sendo atingido. Então "Bico de Pato", a índia velha, disse algo aos dois guerreiros. Desceu um silêncio do qual Caleb não gostou.

- Homem de Boston paga um mosquetão e dois quilos de pólvora por uma pele de lontra. - O guerreiro de cara preta repetiu a última oferta de Caleb e depois apontou para alguma coisa atrás dele. - Arma grande custa quantos mosquetões?

Franzindo a testa, Caleb voltou-se olhando por sobre o ombro e compreendeu que "arma grande" referia-se ao canhão. Por que cargas d'água quereriam estes demónios um canhão? - ficou ele a cismar. Depois, cuidadosamente, evitou formular uma resposta. Voltou-se de novo devagar para eles e disse, encolhendo os ombros:

- Muitos mosquetões; muitos mais do que vocês têm de peles...

- Quantos? - perguntou o "cara preta" empertigando-se indignado.

- Quarenta peles de lontra. - Caleb fez uma pausa deliberada. Peles inteiras, nada de pedaços, e o pêlo deve ser espesso e macio. - Se as peles de lontra mantivessem seu preço em Cantão, na China, isto significava mais de três mil dólares por um canhãozinho. Definitivamente um bom negócio.

Homem de Boston espera. Nós volta com peles - anunciou o tlingit.

A comissão de negociadores deixou o navio e voltou à aldeia em suas canoas. Caleb assoprou nas mãos para aquecê-las e voltou-se para o imediato, dizendo:

- Mande o cozinheiro fazer um pouco de café. Sim, senhor.

Hicks voltou depois de algum tempo com uma caneca fumegante. - ? senhor vai realmente deixar que esses filhos do tinhoso fiquem com um de nossos canhões, capitão?

- Sim - disse Caleb, agarrando com as duas mãos a caneca quente. Canhão ou mosquetão, ele não via diferença. Não o preocupava mais o que os tlingits fariam com o canhão do que o que fariam com os mosquetões. De qualquer forma ele duvidava que os índios soubessem como carregar ou disparar o canhão, isto sem falar em apontá-lo para qualquer coisa.

Um pouco mais tarde, os tlingits voltaram para o navio trazendo com eles um amarrado de peles de qualidade consideravelmente superior à daquelas que eles haviam oferecido antes. Satisfeito, Caleb concluiu a negociação e o pequeno canhão foi içado por sobre a borda e arriado numa das canoas deles.

A chuva miúda se transformara numa bruma úmida que obscurecia a costa coberta de mato. Caleb observou do tombadilho quando a canoa levando o canhão encalhou; os gritos jubilosos e a cantoria dos habitantes da aldeia ecoaram através de todo o estreito.

 

Umas poucas nuvens iluminadas pelo sol vagavam preguiçosamente por um céu azul; as águas da baía refletiam e tornavam mais escuro o azul do céu, dando-lhe uma cor de anil. As ilhas ao longo do estreito eram do verde luxuriante do verão. Perto da praia de seixos, Zachar parou com seu trabalho e limpou o suor de sua testa enquanto olhava para a quilha ainda não terminada da chalupa.

A quietude em torno dele parecia aumentar. Zachar olhou para os troncos batidos pelas intempéries do alto forte e observou nele pouco movimento. Dava a impressão de estar deserto, agora que quase todos os duzentos aleútes haviam partido para começar a caçada de verão às lontras.

Encalorado e sedento, ele cruzou o chão de terra batida e dura até onde se encontrava o balde d'água e tirou uma concha para beber. Depois de beber a metade, despejou o resto em sua nuca, deixando a água escorrer por dentro de sua camisa de musselina e refrescar seu corpo. Um tamo refrescado devolveu a concha ao balde, pendurando-a do lado de fora do depósito de madeira. A seguir flexionou os músculos cansados de suas costas e seus ombros.

Foi então que a viu; ela não fazia nenhum ruído a não ser o leve tilintar das argolas de cobre em volta de seus tornozelos ao caminhar pela praia na direção dele. Tudo dentro dele pareceu parar por um instante; depois, todos seus sentidos começaram a despertar ao mesmo tempo; podia até sentir as batidas do coração.

Quando Corvo parou à sua frente, ela manteve seu queixo na posição horizontal e casualmente levantou os olhos para encará-lo.

- Zachar está ocupado?

- Não; estava descansando um pouco. - Olhou para o forte, mas não havia ninguém para vê-lo vagabundando. Um assomo de energia surgiu nele expulsando a fadiga. - Eu estava desejando ver você. - Embora a visse frequentemente nestas últimas semanas, ele nunca achava bastante.

- Zachar é como um jovem guerreiro, sempre pronto para a ação, disse ela, olhando com malícia para o meio das pernas dele.

Ele riu-se; era exatamente como ele se sentia quando estava perto dela. De modo familiar, passou o braço em torno dela e disse:

- Vem. Vamos sentar-nos na sombra - e guiou-a para a sombra projetada pelo casco da chalupa.

Quando se sentaram, Corvo voltou-se de lado para ficar em frente a ele e encostou um ombro contra o madeirame da quilha; ficou sentada muito perto dele, tão perto que Zachar sentia a ligeira pressão de um seio arredondado contra seu braço. Sua respiração acelerou-se quando recordou o corpo nu da moça contra o seu, os movimentos suaves e seu fogo, os desejos inebriantes.

- A aldeia de Zachar está quieta. Todos os comedores de peixes foram caçar lontras?

- Sim. - Ele acariciou a parte superior do braço dela, sua carne de firme musculação descoberta pela larga manga de seu vestido de couro de veado que caía um pouco abaixo de seu ombro.

- Zachar vai caçar?

- Você sentiria falta de mim se eu fosse?

- Sim; Zachar me dá muitas coisas bonitas. - Os colares de contas, os braceletes de cobre e as argolas de prata em suas orelhas, tudo era presente dele.

Presentes! Aquilo era tudo o que ele significava para Corvo. Zachar o sabia e realmente não havia esperado que ela dissesse outra coisa. Entretanto, doía ouvi-lo; sua mão automaticamente deixou de acariciá-la.

- Zachar vai embora? - perguntou ela, observando-o atenta.

O olhar curioso de Corvo acordou-o para o fato de que ele estivera a encará-la.

- Não - respondeu com um sorriso vago. - Neste verão não vou caçar. vou ficar aqui no estabelecimento com os outros. - Descansou a cabeça de encontro à quilha inacabada e cruzou os braços por cima dos joelhos levantados, ficando a olhar indiferentemente para as nuvens que corriam vagarosas.

- Zachar parece triste. Corvo fez você infeliz? - Ela encostou-se mais nele e de leve passou a mão pelo volume no meio de suas pernas, seu pênis endurecido pulou de encontro à mão dela.

Zachar agarrou-a e cobriu-a com a dele para apertá-la contra seus órgãos genitais que doeram. Virou-se para encará-la, seu olhar cheio de desejo.

- Se você quer me fazer feliz, Corvo, venha viver comigo. Quero que seja minha mulher. - Agora que expressara os pensamentos meio formados que durante tanto tempo, tinham girado por sua cabeça, Zachar sabia que era aquilo que ele queria. - Qual é o costume de seu povo? Eu levo presentes para seus pais?

Ela retirou a mão da dele e afastou-se ligeiramente.

- Nanuk ficará zangado quando voltar em seu navio.

- Baranov... Nanuk não voltará por muito tempo, não antes do próximo verão. Ele foi para Kodiak. E ele não se importaria se você fosse minha mulher.

Corvo sabia que seu pai e os outros chefes do clã ficariam interessados em saber que Nanuk não voltaria tão cedo. Ele era bravo e intimorato; não tinham o menor desejo de enfrentá-lo numa batalha.

Nem por um momento considerou ela seriamente a oferta de Zachar. Se ela se tornasse sua mulher, ele não mais lhe daria presentes; seria dever dela ir para a cama com ele. Vivendo com ele, ela perderia prestígio em sua tribo; nada tinha a ganhar ao aceitá-lo.

Mais importante do que isso, porém, era o fato que Corvo conhecia os planos de seu povo. Antes do fim do verão a aldeia dos russos seria destruída. Outros clãs estavam se juntando ao klan dela para atacá-la; uma quantidade suficiente de armas de fogo e pólvora, obtida no comércio com os homens de Boston, estava escondida em suas casas. Eles aguardavam apenas o momento de atacar quando os russos estivessem desatentos. Ela e outras mulheres tlingit que tinham permissão de livre entrada no forte para se acasalarem com os russos informavam tudo o que viam e ouviam de interessante.

Ela olhou para aquele estúpido mestiço, que a devorava com olhos famintos, e sentiu um divertido desprezo. Em breve ele estaria morto e sua cabeça espetada na ponta de um pau enfiado no chão.

- Corvo não pode ser mulher de Zachar - informou-o ela com frieza. - Corvo virá visitar Zachar como fazia antes.

Ele assentiu com a cabeça e evitou o olhar dela, mas ela observou o amargor em torno de sua boca, sinal de que alguma quente paixão estava sendo contida. Vagarosamente levantou-se.

- Zachar não quer ficar com Corvo. Ela não vai ficar. - Ela ouviu o arrastar de suas botas no duro chão quando ele se pôs de pé.

- Não se vá. - Os dedos dele fecharam-se em torno de seu braço para impedi-la.

Corvo olhou para ele com insolência.

- Corvo não gosta do modo como Zachar está hoje. - Ela volta quando Zachar está feliz.

Houve um momento em que ela pensou que ele iria discutir; depois toda a agressividade dele esvaneceu-se.

- Nós vamos fazer uma festa dentro de dois dias para celebrar um Dia Santo - disse ele, soltando-lhe o braço. - Ninguém vai trabalhar naquele dia. Nós vamos ter um praznik (festa) e haverá danças e cantos. Você virá, Corvo?

Ela sorriu ligeiramente à pergunta dele.

Isto será em dois dias? - repetiu ela.

- Sim.

- Será uma ocasião alegre - disse ela - e ele anuiu com a cabeça.

- Corvo então talvez venha.

À medida que se afastava dele, Corvo esforçava-se por manter um andar vagaroso; no momento em que chegou ao abrigo da floresta acelerou seus passos para apressar-se a chegar ao acampamento de verão de seu clã e relatar o que ouvira, certa de que suas notícias encheriam o acampamento de excitação. Que dia melhor para atacar a aldeia dos russos do que o dia da festa deles?

Andando preguiçosamente, Zachar deixava o balde vazio bater de encontro a sua perna ao cruzar a praça, dirigindo-se para o portão aberto a caminho dos estábulos das vacas do outro lado do riacho. As portas e as janelas do quartel estavam abertas, suas barricadas levantadas. Do lado de dentro vinham os risos estridentes de algumas mulheres aleútes preparando-se para as celebrações do dia. Zachar podia ver alguns dos berços dos bebés pendurados ao longo da parede do quarto ensolarado. Pelo lado da cozinha meia dúzia de promyshleniki, encostados em seus mosquetões, riam e conversavam em altas vozes.

Quando se aproximou do portão, Zachar acenou para o guarda que estava no parapeito do segundo andar. Um machucado impedia temporariamente o russo de qualquer tarefa árdua e propiciava-lhe o serviço fácil de sentinela. Ele levantou a mão em resposta ao aceno de Zachar e a fumaça saía do cachimbo que ele tinha na mão. Seu mosquetão estava em cima de suas pernas. Quando saiu da estacada, Zachar viu de relance um baldar com três promyshleniki a bordo antes que ela desaparecesse por trás de uma das pequenas ilhas que ficavam no canal. Os três formavam a metade de uma partida de caça que fora mandada para trazer carne fresca de foca e gansos selvagens para a festa.

Zachar cumprimentou com a cabeça outro de seus companheiros, que vadeava na água rasa da enseada para colocar redes de pesca, e continuou em direção aos estábulos. Havia uma indolência naquele dia inundado de sol que se refletia em seu modo relaxado e feliz e no daqueles em volta dele. Todo mundo estava desfrutando de um bem ganho dia de descanso. Passou por uma mulher aleúte ocupada em colher frutinhas do mato. À frente dele, um bezerro novinho, preto e branco, cabriolava no cercado do gado e depois fugiu para o lado de sua mãe à aproximação de Zachar. As batidas na madeira do bico de um pica-pau em algum lugar no interior do mato subitamente cessaram.

O gado malhado não lhe deu importância quando ele parou ao lado da cerca de madeira que fechava o terreiro. À distância, ele ouviu um grito seguido Imediatamente pelo ressoar de uma batida no anel de ferro do estabelecimento soando um alarme. Fazendo meia-volta, Zachar deixou cair o balde vazio e disparou em direção ao forte. O pipocar do fogo dos mosquetões quebrou o silêncio.

Zachar freou sua corrida e parou à vista dos kolosh fervilhando em volta da estacada do quartel, horrorosos em suas grotescas máscaras de animais, com olhos brilhantes, bicos aduncos e compridas presas. Eles já estavam subindo nos parapeitos e enfiando os mosquetões nas aberturas das janelas antes que pudessem ser arriadas as barricadas. Um número maior de kolosh saíam do mato carregando tochas de piche em fogo que eles jogavam para cima do teto do segundo andar. Quando Zachar deu uns passos em direção à praia e aos barcos de couro ali parados, canoas de guerra com mais guerreiros kolosh mascarados de demónios aproximavam-se da clareira.

Desarmado, sem nenhuma chance de alcançar o forte agora cercado, nem de escapar por água, Zachar voltou-se e correu de novo em direção aos estábulos. Gritos de guerra como de animais rasgavam o ar, entremeados com os gritos e exclamações que vinham do interior da estacada. Um fogo de mosquetões esporádico assinalava uma valente resistência.

A mulher aleúte saiu do bosque de frutinhas com uma pequena criança nos braços, sua expressão cheia de terror e confusão.

- KolosM - gritou-lhe Zachar. - Corra! Esconda-se no mato!

Ela deu um grito para alguma coisa que estava atrás dele e depois correu para dentro do matagal. Zachar olhou para trás e viu quatro kolosh brandindo suas lanças em sua perseguição. Evitando o mato por onde a mulher tinha entrado, ele disparou para a densa vegetação na borda da floresta, distendendo todos os músculos num esforço para chegar lá antes daqueles pés que batiam no chão atrás dele. Seu coração parecia que ia estourar.

Deu um mergulho na densa vegetação rasteira, abrindo caminho desesperadamente com as mãos através dos espinheiros e das grossas samambaias, andando de gatinhas. Seus perseguidores entraram no mato atrás dele. Zachar procurou desesperado um lugar para se esconder e então viu as raízes torcidas e projetando-se fora da terra de um grande pinheiro há muito caído. Rapidamente enfiou-se de quatro no maciço tronco, oco e escuro, um pouco acima do chão da floresta, levantado que estava pelas raízes. Teve de achatar-se de encontro ao chão para caber dentro dele.

Imobilizou-se ao ver-se em segurança dentro do tronco, e começou a engolir em seco para controlar a respiração alta e ofegante. Podia ouvir o barulho no mato quando os kolosh procuravam por ele. Estavam perto, muito perto; parou de respirar e a seguir ouviu o estrondo de um tiro de canhão no forte.

O barulho de gente andando pelo mato diminuiu e finalmente desapareceu por completo. Mesmo assim, Zachar ainda esperou algum tempo para emergir de dentro do tronco oco. Várias vezes ele ouviu o canhão disparar. Movimentando-se em silêncio, andou por dentro do mato até a orla da floresta próxima ao reduto fortificado e, cautelosamente, olhou para ver se o ataque havia sido rechaçado.

Uma fumaça escura saía de todos os edifícios, línguas amarelas de fogo pulavam e dançavam nos telhados. Enquanto Zachar observava, três promyshleniki pularam do segundo andar em fogo. Um deles, o sentinela que estava machucado, ficou empalado numa lança de um kolosh. O segundo foi rapidamente cercado e sua garganta aberta por uma lança. O último promyslenik conseguiu aterrar livre, correu para a floresta, mas, perseguido pelos kolosh, tropeçou e caiu. Lançaram-se sobre ele antes que se pudesse levantar e cortaram-lhe a cabeça.

Umas vinte mulheres aleútes agarrando suas crianças aos gritos fugiram do quartel em chamas diretamente para os braços dos kolosh. Os bebés foram-lhe arrebatados, seguros pelos pés e tiveram as cabeças esmagadas de encontro ao duro chão; depois seus corpos foram jogados no mar. Um guerreiro kolosh deu um grito e apontou para o mato onde Zachar estava se escondendo. Havia sido visto.

Rápido, Zachar meteu-se dentro da floresta e mais uma vez iludiu seus perseguidores. Por acidente encontrou a mulher aleúte com a criança que ele mandara à floresta para esconder-se; fugindo juntos embrenharam-se na floresta, subindo pela montanha que se elevava atrás do reduto.

Depois de sair do estreito de Sitka, o Sea Gypsy navegara para as ilhas que ficavam para o norte do estreito, onde ancorava perto da costa, próximo às aldeias, fazia negócios e depois enfunava de novo as velas. A rota fortuita do brigue acabou trazendo-o de volta ao estreito.

Caleb resolveu aportar no reduto São Miguel, refazer o suprimento de água doce e informar-se sobre que navios rivais andavam operando na área. Como capitão, ele nunca confraternizava com seus oficiais ou com a tripulação. Na verdade, Caleb estava cansado da companhia deles e ansiava por uma outra noite bebendo com aquele esperto patife russo Baranov.

A perspectiva o deixou de bom humor. Um meio sorriso aflorou ao seu rosto quando olhou a hoeste pela proa, esperando pela primeira visão da bandeira russa tremulando no mastro do forte. O sol estava quente às suas costas e o vento firme.

- Capitão, estão acenando para nós da costa. - O imediato, Hicks, passou-lhe a luneta. - A três graus da proa para boreste, ali pela boca daquele riacho. Parece um homem branco.

Caleb levou a luneta ao olho e focalizou a figura que acenava. As roupas do homem estavam em farrapos mas ele parecia branco, não um índio vestido com roupas de homem branco. Provavelmente um desertor de algum navio, pensou Caleb e baixou a luneta.

- Encoste e arrie um bote, mas mande os homens bem armados; Pode ser uma armadilha.

- Sim, senhor. - E Hicks começou a berrar ordens para a triPulação.

O escaler foi a terra e voltou pouco tempo depois com o homem a bordo. Quando se aproximou do brigue, um marinheiro gritou:

- É um daqueles russos!

O homem estava perto dos quarenta anos, avaliou Caleb, alto e de corpo mais esguio que a maioria dos russos que ele já vira. Os cabelos eram negros, mas tinha olhos azuis. A camisa e as calças estavam em frangalhos, e em sua carne viam-se arranhões, tanto recentes como antigos, indicando que vivera no mato por vários dias. O cozinheiro de bordo, o Velho Sueco, trouxe-lhe uma caneca de café e um pedaço de bolacha dura. O homem mordeu esfomeado a bolacha, evidenciando que há muitos dias não comia.

- Ele estava balbuciando alguma coisa a respeito de uma mulher - disse um dos tripulantes.

- Mulher - repetiu o russo, encarando Caleb intensamente. - Uma mulher! - Apontou para a costa e depois gesticulou como alguém que embala uma criança, para indicar a existência de um bebé.

- Parece que há uma mulher e uma criança escondidas ali em algum lugar, Hicks - disse Caleb. - Mande o escaler de novo e veja se os homens podem encontrá-las. - Depois virou-se para o russo: - Você é do baluarte São Miguel? - O russo franziu a testa, revelando que não havia entendido. - Como diabo eles o chamam? - murmurou Caleb para si mesmo. - Mikhailovsk?

- Kolosh - disse o homem com ar sério e depois, através de uma série de gestos e pantomimas, deu a entender a Caleb que o forte havia sido atacado pelos tlingits há alguns dias. Ele ficara escondido no mato desde então; não estava seguro se havia outros sobreviventes.

Os homens no escaler localizaram a mulher aleúte e a criancinha escondidas nas pedras perto do mar e as trouxeram de volta para o navio. A mulher estava apavorada e morta de fome. Caleb mandou os três para a cozinha a fim de comerem e prosseguiu em seu curso em direção ao forte russo.

Tudo o que restava do lugar eram ruínas escurecidas pelo fogo. Caleb conseguiu entender pelo sobrevivente que Baranov tinha partido há mais de um mês, voltando para seu quartel-general em Kodiak. Uma força de uns trinta russos permanecera no forte; com eles haviam ficado vinte de suas mulheres índias. Caleb ordenou que o Sea Gypsy fundeasse ao largo da costa.

- Vela à vista! - gritou alguém da guarnição, trepado no mastro. Um navio de vinte bocas de fogo, desfraldando a bandeira inglesa,

apareceu. Caleb leu o nome pintado na proa do barco: Unicom; e reconheceu-o como veterano do Noroeste, comandado pelo famoso capitão Henry Barber, reputado como um dos mais brutais e desonestos mercadores de toda a costa do Noroeste. Muitos alegavam que seus atos injustificados, de vez em quando roubando e às vezes matando os tlingits que vinham a bordo negociar, eram responsáveis pela atitude hostil desses índios.

De sua posição no tombadilho superior, Caleb podia ouvir o capitão inglês praguejando indignado com a visão do forte queimado, amaldiçoando os "filhos das putas assassinos" que haviam cometido tal crime.

Naquela tarde, Caleb reuniu um grupo fortemente armado e foi à terra. O sobrevivente, que se identificara como Zachar TaraKanov, acompanhou-o, suas roupas rasgadas substituídas por calças apertadas na cintura e uma enorme camisa enxadrezada do estoque do navio.

Uma cena desoladora os aguardava. Ao longo da praia jaziam os corpos inchados dos bebés jogados ali pela maré; mais para trás, cabeças de russos empaladas em estacas de madeira secavam ao sol, suas barbas escuras manchadas de sangue seco, as bocas abertas com os dentes à mostra e os olhos arregalados. Enormes corvos negros pulavam em cima dos corpos decapitados e nus que jaziam apodrecendo no solo. Todos os esforços para assustar as aves dos corpos em decomposição foram frustrados; os corvos batiam suas grandes asas, irritados, emitiam seu rouco crocitar e depois pulavam alguns passos para cima de outro corpo. O fedor era insuportável.

A pesada paliçada do forte estava reduzida a cinzas carbonizadas. Tudo o que restava era o cano meio fundido de um canhão. Conhecendo a cobiça dos tlingits Caleb suspeitava que eles haviam pilhado completamente os depósitos antes que as chamas tivessem devorado os edifícios. Mandou que a tripulação enterrasse os corpos onde eles se encontravam.

Zachar contemplava os corvos, tão brilhantes e negros à luz do sol. A ave era uma deidade dos kolosh, olhada como o Criador. Cem vezes durante os oito dias que passara se escondendo dos kolosh, ele pensara enraivecido sobre a oportunidade do ataque: todo mundo estava desprevenido, distraído pela perspectiva de um praznik.

Mas ele havia contado a Corvo. Zachar afastou-se da carnificina, incapaz de olhar para seus camaradas mortos. Ele os havia traído, da mesma forma como ela o traíra. A raiva apossou-se dele, raiva e dor. Caminhou de volta à praia e sentou-se no barco com as costas viradas para o local do massacre, os punhos cerrados.

Um terceiro navio chegou ao local, o Alert, de Boston, comandado pelo capitão John Ebbets. Quando soube do desastre, ele convocou uma reunião com o capitão Barber, do Unicorn, e Caleb, do Sea Gypsy.

Naquela noite os três capitães sentaram-se à mesa de Ebbets em sua cabine no Alert e discutiram a situação. Enquanto Caleb ouvia a retórica de vingança aprovada por seus companheiros inglês e americano, desejava ardentemente um drinque. Infelizmente, Ebbets não bebia os "espíritos do diabo"; uma beberagem particularmente ácida de café preto foi a única bebida oferecida. Caleb não ficou mais interessado nela do que no rumo que a conversa tomava.

- Insisto que devemos nos manter unidos - declarou Ebbets e fez um gesto com a mão em direção a Caleb. - Agora, de acordo com o russo que você pegou, havia trinta homens estacionados no forte; no entanto, seus homens enterraram apenas vinte e três corpos; sabemos que o homem que você pegou sobreviveu, mas isto deixa seis homens faltando, mais as mulheres.

- Que eram aleútes e mestiças - comentou Caleb. . - De qualquer maneira - continuou Ebbets -, é inteiramente possível Que tenham sido feitos prisioneiros. Nós não podemos deixar que esses selvagens acreditem que nós permitimos tais atrocidades. Proponho que tomemos uma posição em conjunto e solicitemos que eles nos entreguem todos os sobreviventes.

- E se eles recusarem ficarei encantado em mandar esses demónios direto para o maldito inferno - afirmou o capitão inglês.

- Quando os tlingits vierem negociar conosco sugiro que peguemos vários deles como reféns, de preferência o chefe ou qualquer outro importante membro da tribo, e que nos recusemos a libertá-lo até que os sobreviventes nos tenham sido entregues.

- Se eles recusarem, tudo o que temos a fazer é enforcar um ou dois filhos das putas na verga do mastro principal. De qualquer forma, deveríamos fazê-lo... - disse Barber, animado por esse pensamento.

- O senhor falou muito pouco sobre esse assunto, capitão Stone

- observou Ebbets. - O que pensa a respeito?

- Acho que não temos nada com isso - disse Caleb, baixando a mão que mantivera pensativamente contra a boca.

- O senhor não pode estar falando sério! - protestou Ebbets, franzindo a testa.

- Essa não! - exclamou Barber.

- Conforme considero o assunto, nós enterramos russos, não ingleses ou americanos. Isto faz com que seja negócio deles, não meu afirmou Caleb. - Ao contrário de vocês, não me considero o guarda de meu irmão...

- Se uma ação punitiva não for tomada agora, esses aborígines sedentos de sangue da próxima vez vão se virar contra nós - disse o capitão Barber, batendo com o punho cerrado na mesa. - Eu negocio nestas águas...

- Estou de pleno acordo - interrompeu-o Caleb. - Faço negócios com esses índios e não pretendo comprometer meu comércio com eles por causa disso. Não temos a menor ideia do que provocou este ataque. Pelo que sei, os russos podem ter colhido o que semearam...

- Então o senhor não concorda conosco? - disse o capitão de Boston, encarando Caleb friamente, carrancudo.

- Não - Caleb afastou a cadeira da mesa e levantou-se. - Façam o que quiserem, mas não contem comigo. O Sea Gypsy levanta velas pela manhã.

- E os sobreviventes que o senhor tem a bordo? - Quais são os seus planos sobre eles? - espicaçou-o Ebbets. - Pretende entregá-los aos selvagens, para que possam terminar o que começaram?

Percebendo que o capitão americano tentava irritá-lo para fazê-lo concordar com seus planos, Caleb ignorou a insultuosa pergunta e enterrou mais na testa a pala de seu boné.

- com sua permissão, cavalheiros, vou voltar para meu navio.

- vou direto para o Kodiak quando sair daqui, capitão Stone - disse Barber. - Terei muito prazer em devolver seus sobreviventes aos russos em seu estabelecimento ali.

Caleb fez uma pausa; eles constituíam um excesso de carga para ele.

- Mandarei transferi-los para o Unicorn. com sua licença, cavalheiros! - Cumprimentou com ligeira curvatura numa fingida polidez e depois abandonou o navio, dirigindo-se para o seu.

Uma vez a bordo do Sea Gypsy, Caleb ordenou a transferência dos passageiros e depois retirou-se para sua cabine a fim de tomar seu drinque há muito esperado. Desabotoando a jaqueta com uma das mãos, serviu-se de uma dose de rum com a outra, e então sentou-se numa cadeira. Depois que o primeiro gole de rum queimou-lhe de modo agradável a garganta, ficou observando preguiçosamente o balanço da lâmpada de latão sobre sua cabeça. Estava convencido de que a ação retaliatória planejada por seus colegas era um erro, sendo mais provável que inflamasse as paixões dos tlingits contra eles do que servisse de lição aos selvagens. Não via nenhum sentido em envolver-se em algo que não lhe dizia respeito diretamente. A destruição do forte eliminava os russos da área. No que lhe interessava, isso significava que ele teria de competir com um rival a menos.

Uma batida soou à porta da cabine.

- Entre!

Caleb levantou-se e estendeu a mão para alcançar a garrafa de rum e encher seu copo. A porta abriu-se e o imediato passou a perna por cima da soleira elevada; depois parou do lado de dentro, mantendo a porta aberta.

- O que é, Hicks? - perguntou Caleb, impaciente.

- É o russo TarakanoV, senhor. - com um aceno de cabeça para trás, Hicks indicou que o homem estava esperando do lado de fora da porta. - Ele deseja vê-lo.

Mas o russo não aguardou permissão para entrar e deu um passo para dentro da cabine. Caleb franziu o sobrolho com aquela intromissão e depois perguntou ao imediato:

- Você explicou a ele que o navio inglês vai levá-lo junto com a mulher aleúte para o Kodiak?

- Sim, senhor - confirmou Hicks, suas fartas suíças roçando a gola de sua jaqueta.

O russo cumprimentou Caleb com a cabeça e a seguir, pedindo sua atenção, começou a falar em sua própria língua, acompanhando as palavras com gestos. Indicou a japona de lã de marinheiro e as calças que ele usava, depois esfregou o estômago com a mão, indicando sua gratidão pela roupa e a comida que Caleb lhe dera e depois estendeu-lhe a mão.

Caleb encarou-o por um momento, depois arriou a garrafa de rum e levantou-se para apertar a mão do russo. Tomou consciência do forte aperto dos dedos do russo enquanto lhe estudava o rosto, notando os vivos olhos azuis e as feições angulares. Exceto pelos arranhões em seus salientes malares, poucas provas havia de sua provação.

- Adeus, kapitan. - Essa última frase Zachar pronunciou com pesado sotaque inglês.

- Adeus. E que Deus lhe dê bons ventos - replicou Caleb e observou-o ao afastar-se. Quando Hicks fechou a porta atrás dele, Caleb pegou de novo a garrafa e despejou mais rum em seu copo. Ele havia apanhado o russo e o colocara num navio no rumo de casa; aquele fora o fim de seu dia, quer ele fosse cristão ou não.

 

 

                                                         CONTINUA

 

 

Os salmões estavam de novo correndo, respondendo ao velho chamamento para a reprodução que os trazia das profundidades do oceano para as baías, rios e regatos das ilhas e costas do Noroeste. Incessantemente, eles apareciam, uma horda prateada, fazendo fervilhar as plácidas águas da baía onde estava fundeado o Sea Gypsy. Em alguns lugares, suas grandes espinhas dorsais cortavam a superfície enquanto que em outros eles corriam mais profundo, deixando ver como um relâmpago o branco de prata de sua barriga e de seus flancos, sua cor ainda não tendo mudado para o rosa distintivo que aparecia na desova.

Águias carecas, dezenas delas, circulavam pelo céu ou ficavam pousadas nas árvores ao longo das correntes onde ocorria a desova, enquanto os ursos-pardos, corpulentos e de ombros encurvados, andavam por dentro dos rios e dos regatos, jogando com poderosas patadas peixes de quinze a vinte quilos para cima dos barrancos, ou tirando-os da água com suas aguçadas presas. De seu acampamento de verão em um rio de salmões, os tlingits colocavam suas armadilhas para pegá-los e recolher seu suprimento de comida para o inverno.

 

 

 

 

Caleb observou quando duas canoas de tronco de cedro partiram da praia em direção a seu navio, cortando os últimos cardumes de salmões. Tudo estava pronto no tombadilho para começar a troca de mercadorias: as cortinas de couro em posição, os homens armados, o canhão carregado e posicionado.

De novo Caleb seguiu o procedimento de rotina quando as canoas emparelharam com o navio. Apenas um nativo foi permitido a bordo; as regras foram explicadas e o número limitado a três de cada vez. com a aceitação de suas condições, foi permitido ao primeiro grupo subir a bordo.

O terceiro selvagem a pular a amurada era uma jovem índia; quando ela jogou suas pernas por sobre a amurada, os olhos dele foram atraídos pelas brilhantes e largas argolas de cobre em volta de seus tornozelos. Quando andava, elas batiam uma nas outras com uma leve melodia. Continuando a examiná-la, seus olhos deram com as curvas arredondadas dos empinados seios. A pele lisa não era mais escura do que a de uma mulher italiana ou espanhola; seu cabelo era longo e escorrido, negro e brilhante como ônix polido. Argolas de prata furavam suas orelhas mas não havia botoques deformando os lábios macios e carnudos.

Atrevidamente, ela correspondeu ao olhar dele. Caleb duvidava que ela tivesse muito mais do que dezesseis anos e seu interesse foi despertado por sua selvagem beleza. Já fazia muito tempo desde que...

 

 

                                                                 

 

 

                                                   

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