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Os salmões estavam de novo correndo, respondendo ao velho chamamento para a reprodução que os trazia das profundidades do oceano para as baías, rios e regatos das ilhas e costas do Noroeste. Incessantemente, eles apareciam, uma horda prateada, fazendo fervilhar as plácidas águas da baía onde estava fundeado o Sea Gypsy. Em alguns lugares, suas grandes espinhas dorsais cortavam a superfície enquanto que em outros eles corriam mais profundo, deixando ver como um relâmpago o branco de prata de sua barriga e de seus flancos, sua cor ainda não tendo mudado para o rosa distintivo que aparecia na desova.
Águias carecas, dezenas delas, circulavam pelo céu ou ficavam pousadas nas árvores ao longo das correntes onde ocorria a desova, enquanto os ursos-pardos, corpulentos e de ombros encurvados, andavam por dentro dos rios e dos regatos, jogando com poderosas patadas peixes de quinze a vinte quilos para cima dos barrancos, ou tirando-os da água com suas aguçadas presas. De seu acampamento de verão em um rio de salmões, os tlingits colocavam suas armadilhas para pegá-los e recolher seu suprimento de comida para o inverno.
Caleb observou quando duas canoas de tronco de cedro partiram da praia em direção a seu navio, cortando os últimos cardumes de salmões. Tudo estava pronto no tombadilho para começar a troca de mercadorias: as cortinas de couro em posição, os homens armados, o canhão carregado e posicionado.
De novo Caleb seguiu o procedimento de rotina quando as canoas emparelharam com o navio. Apenas um nativo foi permitido a bordo; as regras foram explicadas e o número limitado a três de cada vez. com a aceitação de suas condições, foi permitido ao primeiro grupo subir a bordo.
O terceiro selvagem a pular a amurada era uma jovem índia; quando ela jogou suas pernas por sobre a amurada, os olhos dele foram atraídos pelas brilhantes e largas argolas de cobre em volta de seus tornozelos. Quando andava, elas batiam uma nas outras com uma leve melodia. Continuando a examiná-la, seus olhos deram com as curvas arredondadas dos empinados seios. A pele lisa não era mais escura do que a de uma mulher italiana ou espanhola; seu cabelo era longo e escorrido, negro e brilhante como ônix polido. Argolas de prata furavam suas orelhas mas não havia botoques deformando os lábios macios e carnudos.
Atrevidamente, ela correspondeu ao olhar dele. Caleb duvidava que ela tivesse muito mais do que dezesseis anos e seu interesse foi despertado por sua selvagem beleza. Já fazia muito tempo desde que aquela wahine havaiana o havia entretido. Ou talvez fosse simplesmente a necessidade de um homem isolado que orientava seus pensamentos, como a agulha de uma bússola, em direção a uma mulher. E como capitão, ele tinha passado muitas horas solitário - comendo sozinho, bebendo sozinho, andando sozinho pelo tombadilho, dormindo sozinho.
- Quanto o homem de Boston paga pelas peles? - A pergunta do chefe interrompeu bruscamente os pensamentos de Caleb, trazendo-o de volta ao negócio em progresso.
Ele voltou-se para examinar o fardo de peles que o índio oferecia à sua inspeção. Quase imediatamente, ele sentiu algo diferente nas peles, mas levou algum tempo para descobrir o que era: aquelas peles tinham sido limpas e preparadas por uma aleúte; não eram o trabalho de uma tlingit. As peles eram obviamente parte do saque do forte russo.
Ele ofereceu um preço e a discussão começou. Durante todo o tempo em que barganhava com o chefe bigodudo, Caleb tinha a consciência que a índia o observava. O chefe queria uma peça de chita colorida que a moça admirara ligeiramente. Caleb especulou se ela era a filha ou a mulher do chefe.
- Dois comprimentos de pano por uma pele, não mais - declarou Caleb, resoluto.
O chefe começou a reunir suas peles, mas a moça tocou-lhe o braço, disse-lhe algo na língua deles, e depois encarou Caleb.
- O homem de Boston tem mulher? - Era quase um desafio.
- Não. - Embora ele soubesse que alguns capitães de navios mercantes traziam suas esposas e família com eles em suas viagens, a pergunta meio que o surpreendeu.
- Há quanto tempo homem de Boston não tem mulher? - perguntou ela.
- Há muito tempo - admitiu ele, olhando-a mais firmemente.
- Homem de Boston gostaria de ter Corvo?
O nome caía-lhe bem, desde o brilhante negrume de seu cabelo até a viva esperteza de seus olhos. Caleb recuou um pouco a cabeça e estudou-a pensativamente, interessado na proposição dela a despeito da relutância do seu born senso.
- Quanto?
A peça de fazenda - e ela indicou a peça de chita. Caleb começou a sacudir a cabeça numa negativa, mas ela continuou: - Por Corvo.
Ele lançou um olhar aos dois guerreiros com ela, mas não detetou uma sombra de objeção na expressão de qualquer deles. - De acordo - disse ele.
- Corvo volta esta noite - disse ela e moveu-se em direção à peça de chita, mas Caleb foi mais rápido.
- Não! - disse ele e colocou a mão em cima da peça, que estava de pé. - O pano fica aqui até Corvo voltar. - Caleb sabia muito bem que se a peça de chita saísse do navio ele nunca mais veria Corvo.
- Homem de Boston tem peles e fazenda. Talvez ele vá embora e não espere por Corvo - disse ela.
Nem por um instante ele subestimou a esperteza dela. Um orgulho que era quase arrogância se estampava em seu rosto. Ela não poderia ser chamada de bonita a despeito da forte sensualidade daqueles lábios, julgava Caleb. Beleza implicava doçura e não havia nenhuma naquela mulher. Ela era impressionante, sim, mas possuía também uma qualidade que desafiava um homem, que trazia à tona seu instinto para dominá-la e para ser o patrão mais do que o escravo que ela desejava fazer dele.
- Traga as peles quando voltar - disse Caleb.
Depois que o grupo de negociantes abandonou o navio, Caleb permaneceu no tombadilho. Subitamente ficou divertido por todas as coisas que havia imaginado a respeito dela, o enigma que dela tentara fazer. Ele havia ficado sozinho por tempo demais...
Caleb contemplou a selvagem grandeza daquela terra. As montanhas subiam abruptamente do mar, em alguns lugares formando escarpas a pino. Florestas formadas por densas chuvas que nunca haviam conhecido as devastações do fogo, cobriam as encostas como um manto de lã de um profundo verde-esmeralda. Acima da linha das árvores, as montanhas elevavam-se formando vales escarpados e agudos picos, alguns ainda mostrando os restos das neves do inverno. O mar castigava toda aquela enorme cadeia de ilhas, com suas vagas estourando nas costas rochosas e ressoando nos magníficos penhascos.
Sim, pensou Caleb, aquela terra podia fazer coisas para um homem, inclusive encher sua cabeça com loucas fantasias - como tornar uma enigmática princesa índia uma selvagem jeitosa. Afastou os olhos da paisagem, sacudindo pensativo a cabeça.
- Dobre o pessoal de serviço esta noite - disse a Hicks e depois desceu para a cabine. Ele não sabia se ela viria ou não, mas dera permissão para uma canoa aproximar-se à noite e desejava que seu navio estivesse alerta para qualquer problema.
Logo depois das oito badaladas do sino, um grito veio do vigia da proa: "Pessoal de serviço, alerta!" Na cabine, Caleb pegou a pistola e enfiou-a na faixa que lhe rodeava a cintura. Quando andou em direção à porta, ouviu uma pequena batida; Caleb abriu-a. O primeiro-piloto estava do lado de fora.
- Duas canoas se aproximando, senhor.
Caleb mandou que ele subisse ao convés e seguiu-o pela estreita passagem até a escada. No tombadilho, a tripulação estava procurando suas posições de defesa. Caleb subiu até o convés alto e olhou por sobre as águas iluminadas pelo luar na direção do acampamento tlingit. Duas canoas deslizavam silenciosas em direção ao navio, suas silhuetas escuras com lampejos brancos dos desenhos pintados nas altas proas. Todas as luzes no tombadilho estavam apagadas, exceto uma na bitácula.
Quando as canoas fizeram a curva e ficaram paralelas ao navio a estibordo, Caleb falou em voz baixa:
- Prestem atenção a bombordo, rapazes!
Um vulto envolvido numa manta ficou de pé numa das canoas e falou:
- Homem de Boston! - Era uma voz grave, mas o som se transmitia bem sobre a água.
- Sim - respondeu Caleb numa voz normal.
- Corvo veio.
Ele duvidara se ela viria, suspeitando que a oferta tinha sido apenas uma tentativa de extrair-lhe a peça de fazenda.
- Suba a bordo.
A tensão no ar era palpável quando uma das canoas encostou no veleiro. Mas era uma tensão de uma espécie diferente a que se apossou da tripulação quando a canoa afastou-se e Raven ficou no convés embrulhada em seu cobertor azul e branco.
Caleb sabia o que seus homens estavam pensando e sentindo. Ele vivera por debaixo do convés e sabia como essas viagens de três anos pareciam longas e conhecia os desejos que podiam castigar os homens privados de companhia feminina por longos espaços de tempo, com apenas as nádegas brancas do marujo no beliche do lado para satisfazê-los. Raro era o marinheiro que não se havia dobrado a tais desejos - de um lado ou do outro - incluindo ele mesmo.
Caleb não perdeu tempo em levar a jovem para sua cabine sob o convés. Quando fechou a porta, observou que ela inspecionava o alojamento. Seus olhos não haviam parado um momento desde que subira a bordo; moviam-se para todo lado, examinando tudo. Ele removeu a pistola do cinturão de suas calças e colocou-a em sua caixa no aparador. Ela voltou-se com o ruído e observou quando ele fechava a tampa da caixa.
Caleb ergueu-se sem fazer nenhum movimento na direção dela, enquanto ela o olhava com o olhar confiante e atrevido. A peça de chita estava encostada num canto da cabine; ela olhou para o pano e depois voltou-se para ele. Levantando os braços com um gesto natural, ela removeu o cobertor de seus ombros. Por baixo ela usava um traje de um branco cremoso de couro de veado, e seu negro cabelo caía até o peito.
- Homem de Boston gosta de Corvo?
- O nome é Caleb - disse ele e chegou-se a ela.
Caleb - repetiu ela e não levantou o queixo quando ele parou diante dela, sustentando no entanto seu olhar com uma atitude que superava todas as astúcias que ele jamais encontrara numa mulher branca. Não opôs resistência quando ele a tomou nos braços; automaticamente, inclinou a cabeça para trás num gesto milenar, convidando a um beijo. Caleb aceitou a oferta, cobrindo-lhe a boca com a sua e sentindo os movimentos da língua de Corvo, ao mesmo tempo em que ela apertava seu corpo de encontro ao dele.
Caleb levantou a cabeça, sentindo o pulsar de uma veia em seu pescoço, e admirou seu rosto voltado para cima. Os lábios dela estavam fechados e confiantes enquanto o observava com os olhos semicerrados. Ela não demonstrava nenhum artifício de inocência ou reticência, nem qualquer afetada timidez frequentemente encontrada nas prostitutas de Boston.
Dando um passo para trás, ele retirou o cobertor, que já estava solto nos cotovelos dela, e guiou-a para seu beliche. Caleb livrou-se de sua jaqueta e começou a desabotoar a camisa. Sem que ele lhe pedisse, ela retirou seu vestido de couro de veado pela cabeça e Caleb ficou observando seu corpo gradualmente revelado: as longas e musculosas pernas e coxas, o púbis coberto de cabelos negros e crespos, os quadris firmemente arredondados e os seios túrgidos. Nua, ela subiu para o beliche coberto com uma manta e esticou-se como uma gata preguiçosa esperando por ele.
Quando Caleb removeu o resto de suas roupas, a atenção dela, sem qualquer pudor, fixou-se em seu membro ereto; seu audacioso interesse excitou-o ainda mais. Deitou-se ao lado dela e deixou sua mão deslizar sobre aquele corpo, apreciando o suave calor da pele e a firmeza dos seios redondos. Ela se arqueava sob a carícia das mãos dele, respondendo a seu toque. Caleb beijou-lhe os lábios, depois os seios, saboreando os duros mamilos enquanto ela acariciava seu membro, o aperto de sua mão arrancando-lhe um gemido da garganta. Completamente excitado, ele mudou de posição e tentou inserir um joelho entre as pernas de Corvo, de forma a poder trepá-la.
Ela o impediu, erguendo um dos joelhos.
- Não - disse com firmeza. - Não da maneira do homem branco. À moda dos índios.
Desembaraçando suas pernas das dele, ela virou-se de barriga para baixo, encolheu os joelhos por baixo de si e ofereceu-se a ele com as nádegas levantadas. Por um instante, ele só podia ver os seios balançando e suas redondas nádegas. Depois, uma onda de tesão apoderou-se dele, colocou-se em posição ajoelhado atrás dela e, segurando-a pelos quadris, empurrou o membro para dentro. Balançou-se num ritmo primitivo, entrando e saindo dela, até que a cadência do movimento chegou a um paroxismo final de orgasmo, que lançou para dentro dela seu sémen.
Exausto, ele arriou no beliche. Sentiu que ela se movimentava e voltou-se para olhá-la. O lábio superior de Corvo estava coberto de transpiração e seus olhos semicerrados o estudavam com um ar satisfeito, revelando que ela sabia que o havia esgotado.
- Caleb está feliz? - Era uma voz como de um gato ronronando. De novo ele sentiu-se inexplicavelmente desafiado por ela; talvez fosse a energia que sentia que ainda lhe restava.
- Não!
Ele enfiou os dedos na cortina negra dos cabelos dela e puxou-a para si, beijando-a e beliscando com força os mamilos eretos. Não demorou muito para seu membro enrijecer de novo. Desta vez ele deitou-a de costas e colocou-se por cima dela.
- Agora à moda de homem branco- disse ele, penetrando a úmida vagina.
Mas desta vez ele movimentou-se devagar, tirando o membro quase completamente para fora, antes de tornar a empurrá-lo para dentro, resistindo ao convidativo arqueamento de seus quadris para mantê-lo dentro dela. Observou a excitação dela crescer, a pressão voluptuosa aumentando até que começou a gemer debaixo dele, seus dedos cravavam-se nele e arranhando-lhe os ombros e as costas. Somente então deixou que Corvo o puxasse para baixo, roçando o púbis contra o dela, como a mulher desejava. Segundos após ela enrijecer-se debaixo dele, com ligeiros tremores, Caleb gozou.
Desta vez, ao se afastar, Caleb teve a satisfação de ver que ela respirava tão ofegante quanto ele. Os olhos dela estavam fechados. Ele se sentia como se tivesse ganho alguma coisa, mas ignorava o que era. Deu uma risadinha para a fantasia de seus pensamentos e fechou os olhos, sentindo-se pela primeira vez totalmente relaxado em muitos meses.
Algo acordou-o - um fraco som que não eram os estalos e grunhidos normais do navio. Ficou quieto, aguardando que o ruído voltasse. Então ouviu o suave e melodioso tinir de metal - os anéis de cobre que Corvo usava em volta dos tornozelos. Ela não estava a seu lado na cama; Caleb podia senti-lo mesmo sem olhar.
Ela se movia com cuidado em algum lugar na cabine, quase silenciosamente, apenas o tinir dos anéis denunciando-a. Agora Caleb estava bem desperto, a suspeita aguçando seus sentidos. Duvidava que ela estivesse com cuidado para não acordá-lo; seus movimentos furtivos eram motivados por qualquer outra coisa.
Seguiu-se um longo silêncio; depois uma tábua rangeu no corredor e Caleb percebeu que ela saíra da cabine. Movendo-se rapidamente, pulou do beliche e vestiu as calças. Enquanto fazia isso, corria o olhar pela cabine envolta em sombras. A manta de Corvo se fora, bem como a peça de fazenda. A tampa da caixa de sua pistola estava aberta; examinou-a com a mão: a pistola também se fora. Não perdeu tempo verificando o que mais ela havia roubado, mas saiu da cabine tão silenciosamente como ela o fizera, apenas evitando a tábua que rangia.
Um baixo pio de coruja soou por cima de sua cabeça. Seria mesmo uma coruja? Cautelosamente, Caleb emergiu da escotilha. Um nevoeiro espesso e cinzento envolvia o navio, passando pela mastreação e obscurecendo o tombadilho elevado. Não podia ver nenhum dos marinheiros que supostamente deveriam estar de serviço. Jurou que os crucificaria amarrados aos mastros, se estivessem dormindo.
No momento ele estava mais preocupado em localizar Corvo. Sabia Que ela não tentaria nadar até a praia, não com aquela peça de pano e sua Pistola para afundá-la. Tornou a ouvir o pio meio abafado de uma coruja; ou seria de um corvo? Ele deu uma olhada pelo convés principal e notou uma forma bem abaixada de encontro à amurada. O grito rouco de Uma outra ave noturna quebrou a misteriosa quietude do nevoeiro.
Caleb avançou pelo convés, certo de que era a rapariga índia ao lado da amurada, mas desviou-se dela andando em direção ao bacamarte, o nevoeiro condensava-se nas enxárcias e caía em gotas esparsas. A princípio Caleb não distinguiu seu gotejar, e a batida da água contra o costado do brigue, do som fraco de remos mergulhando n'água. O som vinha de várias direções; ele girou o bacamarte, apontando sua boca para o som mais próximo, e disparou ao mesmo tempo que gritava:
- Todo mundo para o convés!
Girando para o outro lado, viu Corvo levantando-se de seu esconderijo. Gritos selvagens vinham da água, acompanhados pelo barulhento correr da guarnição. Caleb pulou para o segundo bacamarte que estava montado numa base giratória sobre a amurada. A meio caminho notou Corvo com o braço estendido à sua frente, apontando para ele, com sua pistola na mão. Ele passou a mão num chuço de abordagem e jogou-o de encontro a seus braços estendidos. A arma bateu-lhe no antebraço exatamente quando a pistola disparava, e a bala passou zunindo perto de seu ouvido.
Caleb atracou-se com ela e arrancou-lhe a pistola das mãos. De algum lugar a bombordo um canhão troou, seguido de perto pelo barulho de uma canoa virada. Corvo gritou algo em sua língua nativa. Caleb agarrou-a e aplicou-lhe uma gravata, para evitar que ela desse mais avisos. Ela cravou as unhas em seu braço nu, esperneando como um gato selvagem.
Em breve não se ouvia mais nenhum som a não ser as gotas de condensação do nevoeiro caindo e a água lambendo o casco do navio. Corvo parou de lutar com ele, mas seu corpo permanecia tenso, pronto a recomeçar a luta se ele lhe desse uma chance. Hicks aproximou-se, perscrutando cuidadosamente a névoa que se movia em redemoinhos.
- O que o senhor acha, capitão?
- Eles não tentarão de novo, não imediatamente - opinou Caleb.
- Fique com a tripulação alerta por causa das dúvidas. - Relanceou um olhar para sua prisioneira de cabelos negros. - Mande alguém à minha cabine com um jogo de correntes e algemas.
- Sim, senhor.
Retirando o braço que lhe apertava a garganta, Caleb pegou um de seus pulsos e torceu-o alto em suas costas; depois marchou com ela para a cabine. Empurrou-a para dentro e fechou a porta. Ela caiu de encontro à mesa e rapidamente virou-se para ele, espremendo-se de encontro à mesa como um animal encurralado. Os olhos dela brilhavam, o ódio aparente em seu negrume.
Caleb levantou a pistola que ela lhe havia roubado, com o cano apontado para cima.
- Acho que você teria gostado de estourar-me a cabeça com isso, não? - E voltou a pistola para dentro da caixa.
Naquele breve segundo ela lançou-se sobre ele. com o canto de um dos olhos, Caleb percebeu o brilho de uma lâmina metálica e esquivou-se do golpe descendente, lembrando-se tarde demais que havia uma faca em cima da mesa. Sua ponta afiada pegou a parte carnuda de seu braço cortando-lhe a pele. Blasfemando, ele agarrou-lhe o pulso e torceu-o, forçando-a a deixar cair a arma.
Quando Corvo bateu no chão ele teve um momento de relaxamento. Imediatamente as mãos dela estavam em seu rosto, tentando arrancar-lhe os olhos e arranhando suas faces com as unhas, fazendo brotar sangue. No momento em que Caleb as agarrou e puxou para baixo, ela começou a morder-lhe as mãos.
Sua maldita diabinha! - O sangue escorria dos arranhões em seu rosto e do corte no braço. Ele apanhou um punhado de seu longo cabelo negro, puxou-o pelas raízes, levando a cabeça dela para trás e fazendo-a ajoelhar-se. Uma batida soou na porta da cabine.
- Entre! - respondeu ele, ríspido. O ruído de correntes acompanhou o som da porta ao abrir-se.
- O senhor está sangrando, capitão! - O segundo-piloto encarouo espantado por um momento.
- Sim - disse Caleb. - Ponha essa gata a ferros. E cuidado com as garras dela... - Depois de uma breve luta, ela foi manietada e amarrada com a corrente num pontalete. Caleb apertou um lenço azul de en contro ao corte da faca. - Onde se meteu Dawson?
- vou procurá-lo para o senhor, capitão - disse o segundo-piloto e saiu apressado da cabine.
Deixado sozinho, Caleb dirigiu-se para a garrafa de rum e serviu-se de uma dose. Enquanto bebia, ouviu o barulho das correntes e olhou para a rapariga índia acocorada ao lado do poste. Sua garganta ardia com o álcool e aquela sensação aumentava sua ira, em vez de acalmá-la. Sua raiva era parcialmente dirigida a ela e parcialmente a si próprio, por ter quase sido enganado por ela.
O longo cabelo negro de Corvo espalhava-se por seus ombros e seu peito, cobrindo completamente a parte superior do vestido de couro de veado branco. Caleb puxou com a perna uma cadeira da mesa e sentou-se em frente a ela.
- Eu estava errado a seu respeito, Corvo. - Quando ouviu-o mencionar seu nome, ela levantou a cabeça e sua expressão revelava insolência e ódio. - Você não é uma gata selvagem; você é mais mortífera; você é como uma aranha viúva-negra, que mata o macho depois de haverem acasalado.
- Homem de Boston está errado. Minha gente veio buscar Corvo, levá-la para aldeia.
Foi por isso que tentou me acertar com minha própria pistola? Homem de Boston atirou no meu povo. Corvo atirou no homem de Boston para parar ele.
- Essa é uma boa história... - comentou Caleb secamente. - Por que eu não acredito em você?
DeWson o taifeiro, entrou apressado na cabine, carregado com um molho de ataduras e remédios, e pareceu desapontado pelas pequenas feridas de Caleb, mas pôs-se prontamente a tratar delas.
Quando o sol nascente dissipou o nevoeiro, uma dúzia de canoas partiu da praia, levando enfeitados guerreiros. Ao observar sua aproximação, Caleb ordenou que a moça índia fosse trazida de sua cabine e colocou-a no tombadilho superior, onde ela podia facilmente ser vista. Quando a divisaram os tlingits pararam suas canoas.
Um deles ficou de pé e Caleb reconheceu-o como um dos participantes da sessão de trocas do dia anterior.
- Viemos buscar Corvo.
- Corvo fica - disse Caleb, levantando a voz de forma que todos pudessem ouvi-lo. - Ela é minha refém. - O murmúrio zangado dos guerreiros rapidamente transformou-se em clamor de protesto. - A noite passada - gritou Caleb, elevando a voz acima do clamor - vocês tentaram atacar meu navio. Eu pensava que os tlingits eram meus amigos. Sempre negociei corretamente com vocês. Ontem concordei em vender-lhe uma peça de fazenda pelo preço de vinte peles de lontra e a companhia desta mulher por uma noite. - Fez um sinal a Hicks para exibir a chita. Aqui está o pano. Para vocês verem que honro minha troca, uma canoa pode aproximar-se do navio.
Hicks esperou até que ela estivesse emparelhada com o veleiro e depois atirou a peça de fazenda nos braços estendidos dos tlingits. Quando se apossaram do tecido, os guerreiros remaram de volta para juntar-se ao semicírculo de canoas.
- Enquanto meu navio estiver nas águas de vocês, ficarei com esta mulher - declarou Caleb. - vou tratá-la bem. E, quando eu me for, a entregarei a vocês. Se alguém de sua gente voltar a atacar meu navio, eu a matarei.
Novos murmúrios vieram do lado dos índios, mas em breve eles começaram a virar as canoas e a remar de volta para a praia. Caleb esperou até que tivessem chegado à praia de seu acampamento de verão, então agarrou Corvo pelo antebraço e empurrou-a para a amurada do castelo da proa, de forma a ficar diante de toda a tripulação.
- Agora, marujos, dêem uma boa olhada nela - ordenou Caleb e esperou até que a guarnição se reunisse no convés principal.
Muitas vezes eles a tinham visto de relance, mas agora Caleb os convidava a examiná-la bem. Estavam sem mulher há tanto tempo quanto ele.
- Quando ela estiver no convés, vocês não devem dirigir-lhe a palavra. Se ela falar com vocês não respondam, não importa o que prometa. Se ela se aproximar da amurada atirem. - Ele sentiu certa resistência deles a tal ordem. - Estão me ouvindo, rapazes?
Relutantemente, eles murmuraram um coro de "Sim, senhor!"
- Se dão valor a suas vidas, não confiem nela - continuou Caleb, examinando-os. - Ela preferiria ver suas cabeças secando nos postes como aqueles russos do que olhar para vocês. Nunca se esqueçam disso. - Fez uma pausa para deixar que o aviso penetrasse em suas mentes e depois deu uma ordem ao imediato: - Subam nos mastros e soltem as velas.
O sol poente primeiro pintou de dourado as nuvens que corriam, depois de um rosa forte, colorindo as velas de lona do Sea Gypsy. Todos os homens estavam no convés durante o turno da tarde, uma hora de folga quando o trabalho do dia terminava. A guarnição sentava-se no guincho ou espalhava-se pelo castelo da proa, fumando e contando casos. Dawson estava na copa, tomando uma caneca de café com o Velho Sueco, o cozinheiro. Hicks andava pelo convés de sotavento, fumando seu cachimbo, enquanto o primeiro-piloto debruçava-se na amurada gasta pelas intempéries.
Caleb mantinha-se afastado, de pé no convés do lado do vento que soprava o gostoso cheiro dos pinheiros das ilhas. No porão do brigue havia uma rica carga de peles, na maior parte de lontras. O único mercado para elas era a China. Enquanto contemplava a selvagem natureza ao redor, com os olhos da mente ele via os grandes armazéns de vários andares e as largas ruas do porto chinês de Cantão, construído nas barrancas do rio Pérola. O próprio rio era uma exótica cidade flutuante de sampanas, botes de flores, casas de chá flutuantes e barcos de mandarins. com cerca de duas mil peles de lontra para vender no fim desta viagem, ele deveria fazer uma boa soma para reinvestir em sedas, tintas nanquim, chá e crepes-da-china, a despeito dos impostos, comissões e subornos que seria obrigado a pagar. Poderia até aumentar essa soma contrabandeando algumas de suas peles para Macau ou para a baía de Dirty Butter.
Soaram oito badaladas e seu som despertou-o de seus pensamentos. Tão logo foi trocado o turno pelo da noite, Caleb desceu para sua cabine. Sua mão tocava a maçaneta da porta quando ouviu no mesmo instante Dawson praguejando no lado de dentro.
- Sua filhinha da puta, me dê isso ou desço este couro em suas costas. Caleb entrou na cabine. Seu magro e jovem taifeiro segurava um
couro de afiar navalha de barba em sua mão levantada. Quando Dawson viu o capitão, parou em seu avanço sobre Raven que se voltara para encarar a ambos. Ela mantinha as mãos atrás das costas, escondendo qualquer que fosse o objeto que elas seguravam. Parecia uma pantera acuada prestes a pular.
Nem correntes nem algemas impediam seus movimentos. Depois dos dois primeiros dias, Caleb fizera removê-las e meramente a mantinha confinada em seu alojamento, permitindo apenas que ela subisse ao convés durante as primeiras horas da manhã - nunca durante a noite, quando sua tripulação tinha que encarar o vazio de seus leitos.
- Qual é o problema, Dawson?
- Quando fui recolher os talheres havia uma peça faltando. Essa Putinha ladra roubou uma das facas.
- Entregue-a, Corvo. - Caleb estendeu a mão para ela, com a Palma para cima. Após longa hesitação, ela tirou os braços das costas. A luz do lampião de bronze refletiu-se na lâmina de metal de uma faca que trazia na mão direita. Sem esperar para ver se ela tencionava entregá-la, agarrou-lhe o pulso e torceu a faca dos dedos dela, que não apresentaram resistência; depois passou-a para Dawson.
Este ficou desapontado pela falta de resistência de Corvo.
- O senhor devia mandar chicoteá-la por ter roubado, capitão. Caleb tinha certeza de que o taifeiro se apresentaria como voluntário para usar a chibata.
- Se eu fizesse isso, teria que punir você também, Dawson, por ter deixado a faca ao alcance dela.
Dawson ficou vermelho e logo baixou a cabeça, envergonhado.
- Sim, senhor - murmurou ele e depois lançou um olhar de ódio para a mulher. - Há mais alguma coisa que o senhor queira esta noite? - perguntou ele, formal.
A atenção de Caleb voltou-se para a rapariga tlingit. As lembranças de Cantão estavam frescas em sua mente, especialmente as mulheres orientais de olhos oblíquos, em suas brilhantes roupas de seda bordadas com fios de prata e de couro.
- Procure entre a mercadoria e arranje alguma coisa para ela vestir. Estou cansado de vê-la nessa peça de couro de veado.
- Não importa o que ela vista, será sempre uma pagã selvagem comentou Dawson.
- Isto foi uma ordem, Dawson!
O taifeiro botou o rabo entre as pernas sob o olhar irritado de Caleb e murmurou:
- Sim, senhor, eu só estava...
- Se não gosta mais deste serviço, Dawson, terei prazer em rebaixá-lo a marinheiro comum e mandá-lo para a proa junto com os outros - ameaçou Caleb.
As lágrimas ameaçavam cair das pontas das longas pestanas de Dawson, quando respondeu, muito sério:
- Gosto muito de meu serviço, senhor!
- Então faça o que lhe está sendo mandado.
- Sim, senhor. - Desta vez Dawson tomou muito cuidado em não olhar para Corvo quando voltou-se e saiu da cabine.
Com o canto dos olhos Caleb viu-o sair, enquanto continuava de frente para Corvo. Quando o trinco da porta se fechou, permitiu que toda a sua atenção se concentrasse nela e em sua mão esquerda ligeiramente fechada.
- O que mais você tirou, Corvo?
Os lábios da índia apertaram-se numa linha fina zangada. Um segundo mais tarde, jogou dois botões no rosto dele, arrancados de uma camisa sua, e que Caleb deixara para Dawson repregar. Ele desviou-se de um, mas o outro bateu-lhe no rosto. Ela deu-lhe as costas e cruzou com firmeza os braços à frente do busto.
- Caleb tem os olhos vivos. - Era uma condenação mais do que um cumprimento.
Ele deu um risinho e encostou-se atrás dela, enfiando os braços ao longo de seus braços, por dentro de suas largas mangas, até alcançar os ombros.
- Se eu não tivesse os olhos vivos, você teria enterrado uma faca em minhas costas há muito tempo, Corvo. - A falta de reação da parte dela era uma rejeição às suas carícias e ele sorriu sem graça. Pressionou-a para voltar-se para ele, mas Corvo encolheu os ombros com um gesto zangado e livrou-se dele.
Não, eu não quero Caleb.
Uma parte dele reconheceu o quanto o vocabulário de Corvo em inglês havia melhorado durante os dez últimos dias, mas isto para ele não tinha a menor importância. A recusa importava ainda menos.
- Isto é o que você sempre diz - zombou ele, e puxou-a para seus braços, ignorando a rigidez de Corvo, como sempre fazia.
Beijou-a com brutalidade, forçando-a a abrir os lábios. Sem qualquer aviso ela mordeu-o, enterrando os dentes em seu lábio inferior. Praguejando, ele afastou-se, lambendo o corte com a língua e sentindo o gosto de sangue na boca, o sangue dele próprio.
- Sua cadela! - rosnou Caleb quando ela olhou de novo para ele, sem demonstrar medo. Ele sorriu. Qualquer contato com ela envolvia um elemento de perigo. - Eu gosto quando você luta comigo. Você gosta também, não?
A luta inicial sempre parecia excitar plenamente sua paixão. Ele não tinha o desejo de acabar com seu espírito selvagem, apenas de dobrá-lo a sua vontade.
- Eu gostaria de ir lá fora.
- Estou certo que gostaria, mas vai ter que esperar até amanhã de manhã - disse ele, comprimindo um lenço contra o lábio inchado que doía.
- Seu escravo está chegando - disse ela olhando para a porta. O aviso foi seguido de uma leve batida à porta.
- Entre!
Dawson entrou na cabine trazendo uma baniana indiana alegremente colorida.
- Isto foi tudo o que pude achar que julguei ser do seu interesse, senhor - informou ele.
Caleb franziu a testa, notando os sinais de uso nas mangas de punhos desfiados.
- Onde você encontrou isso? - Ao que ele sabia, nada de parecido estava incluído nas mercadorias de troca ou no armário de roupas usadas.
- É minha, senhor. Ou, mais corretamente, de meu pai. Não tenho nenhuma utilidade para ela. Quando ele me expulsou de casa, eu a levei comigo porque sabia que era sua vestimenta favorita. É própria para uma selvagem vestir - declarou ele.
- Muito bem - disse Caleb. Ele pegou a comprida túnica e virou-se para Corvo. - Quero que você vista isso; tire essa roupa de couro.
- É minha? - Os olhos dela brilhavam quando tocou o tecido de veludo.
- Sim.
Imediatamente ela agarrou a barra de sua saia e começou a puxá-la a fim de tirá-la pela cabeça. A expressão de Dawson foi de desgosto, e ao mesmo tempo ele se virou para não ver o corpo nu de Corvo.
- Mais alguma coisa, senhor?
Caleb fez um sinal de cabeça dispensando-o, enquanto abria a baniana para que Corvo pudesse enfiar os braços na peça de vestuário, semelhante a um quimono. Sua frente era fechada por botões, apertando-o na cintura e deixando o resto folgado numa comprida saia que chegava ao chão. Ela se deliciava com a textura do veludo, acariciando-o com suas mãos. com a longa cascata de seus cabelos caindo lhe pelas costas, ela quase parecia uma mulher nativa da índia, onde aquele estilo de roupa há muito se originara; parecia infinitamente mais civilizada, mas Caleb não estava certo se gostava dela assim.
- Está satisfeita? - Ele nem precisava perguntar; as mãos dela continuavam a apalpar a vestimenta voluptuosamente.
- Nenhum homem nunca me deu um presente como esse. Nem mesmo Zachar. - Ignorando a presença dele, Corvo voltou-se para contemplar sua imagem no pequeno espelho afixado na antepara da cabina.
- Zachar Tarakanov.
O olhar da jovem encontrou o reflexo do dele no espelho. Por um instante ela ficou imóvel, impulsionada com a precisão da adivinhação; depois voltou-se para encará-lo, sua expressão cheia de sensual promessa.
- vou mostrar a Caleb como o presente dele me alegrou. Quando ela se aproximou, ele pegou-a pelos braços e a manteve afastada.
- Você sabe que ele está vivo? Ele não foi morto com os outros russos no forte.
- Eu sabia disso.
A indiferença de Corvo era legítima, ele compreendeu, suspeitando que sua reação não teria sido diferente se Zachar tivesse sido morto no massacre. com as visões daquelas cabeças apodrecendo cruzando sua mente, ele odioua profundamente. Se a cabeça dele próprio estivesse entre aquelas, Corvo também não ligaria, pensou ele consigo; depois jogou sua cabeça para trás e deu uma risada. Se as situações fossem invertidas, ele duvidava que também sentisse qualquer remorso. Agarrou-a pelos braços e levou-a para a cama.
Ao final de mais uma semana, Caleb achou melhor mover-se mais para o sul ao longo da costa. Quando parara nas duas últimas aldeias, ambas haviam previamente comerciado com um outro navio de Boston na área, e as poucas peles que eles haviam deixado não valiam o tempo perdido. Colocou Corvo em terra na praia de uma aldeia de seu clã, como prometera. A baniana de vivas cores que ela vestia destacava-se alegremente contra a areia da praia. Do tombadilho superior, Caleb observou quando os nativos amontoaram-se em torno dela, sua roupa causando uma considerável comoção. Em breve Corvo foi engolida pela multidão e ele a perdeu de vista. Não sentia nenhum pesar. Mulheres sul-americanas, havaianas, orientais, africanas, agora uma índia. Ele as havia levado a todas para a cama e abandonado. Não era provável que se recordasse também dessa - ou que a visse de novo - ou que a reconhecesse se a visse.
O escaler voltava para o brigue. Quando Caleb voltou-se da amurada notou Dawson de pé no convés, observando-o. Mulheres apareciam e saíam de sua vida, mas Dawson estava sempre ali, parecia-lhe. Caleb fez uma pausa, admirando-se daquele pensamento. Mas decorreriam mais dois anos até que ele visse o cais de Boston outra vez. Dois anos de poucos confortos e pouca recreação. E Dawson conhecia seus gostos... em tudo.
Quando o escaler estava novamente em seu local entre o mastro principal e o da mezena, Caleb deu ordem para soltar as velas superiores. Observou os homens quando eles trepavam pela mastreação acima, como macacos. Tão logo as velas estavam livres, um homem ficou em cada uma delas para verificar os cabos e abrir as velas, enquanto os demais desciam para guarnecer os panos, cantando alegremente durante sua faina.
Dentro de alguns minutos, o Sea Gypsy singrava o mar, seus mastros gemendo, a proa enfrentando as ondas. Andou pela costa do Noroeste alguns meses, depois cortou o Pacífico até Cantão, atravessando o temido estreito de Sunda, rodeou o cabo da Boa Esperança e depois cruzou o Atlântico até Boston, seu porto de origem.
Sitka Setembro de 1804
Depois de passar os últimos dois anos com sua família no Kodiak, Zachar pisou de novo na praia onde existira o baluarte de São Miguel, mas não podia ver nenhum vestígio deste em parte alguma. Não havia nem marcas para identificar os túmulos dos mortos, e agora centenas de barracas recém-montadas espalhavam-se por toda a clareira. Mais de trezentas bidarkas alinhavam-se na praia. O ar não mais cheirava a morte e a madeiras queimadas, mas a fumaça de lenha e comida sendo preparada. Guardas postavam-se ao longo de toda a praia e próximos a quase todos Os tocos de árvores que marcavam o limite da negra floresta onde ele certa vez se refugiara.
Um bote descarregou na praia mais homens dos navios que haviam escoltado a frota de bidarkas até aquele lugar. O Yermack, o Alexandre, o otislav e o Ekatrina, este último no qual Mikhail havia viajado, estavam todos ali, lanternas iluminadas em seus mastaréus do joanete a fim de sinalizar o caminho para os que se perdessem da frota de bidarkas. Mas todos os navios eram dominados pela imponente fragata de 450 toneladas, Nova, da Imperial Armada russa.
Ignorando o crepitar das chamas nas fogueiras, as batidas das estacas das barracas e o vozerio, tanto russo quanto aleúte, Zachar pensava em Corvo e na última vez que a tinha visto, aqui nesta praia. Cismava se um dia saberia se ela o havia traído de propósito ou contado inocentemente a seu clã acerca de seus planos para o dia de festa. Enquanto tais dúvidas persistiam, ele não podia levar-se a odiá-la. A culpa pela morte de seus camaradas era dele; não podia culpá-la por aquilo.
O ruído de pisadas no areião não foi ouvido por ele até que alguém o segurou com firmeza no ombro. Assustado, ele virou-se.
- Zachar! - Ele reconheceu a voz familiar e o rosto meio nas sombras de seu irmão Mikhail. - Não esperava que fosse tão fácil encontrá-lo.
Durante a viagem do Kodiak eles não haviam tido nenhum contato. Zachar o vira pela última vez na cabana, despedindo-se da mãe e da encantadora estranha que era sua filha de quatorze anos, Larissa. Naquela ocasião, como agora, ele tivera a consciência da diferença entre suas posições - Mikhail era o navegador, com suas roupas de marinheiro e seu rosto escanhoado, e ele o caçador, com suaparka coberta por uma kamleiba e sua barba agreste.
- Como foi a viagem de vocês? - perguntou Zachar.
- Sem incidentes - respondeu Mikhail, olhando em volta. - Esta terra é exatamente como você me descreveu. Mesmo sem as cartas para guiar-me, creio que teria encontrado esta baía. - Ele examinou o acampamento cheio de homens que cuidavam das fogueiras, levantavam barracas, montavam guarda e penduravam roupas molhadas para secar. Pode ter-lhe custado dois anos, mas Baranov reuniu um respeitável exército.
- Sim. - A retomada de Sitka se tornara uma obsessão de seu líder, que fora recentemente nomeado governador da América russa. Zachar não partilhava de sua sede de vingança, em parte devido a seu próprio sentimento de culpa. A luz de uma fogueira do acampamento iluminava uma figura magra que Zachar reconheceu como Baranov. com ele estava um homem usando uniforme e as insígnias douradas de um oficial.
- Quem é aquele com Baranov? - perguntou Zachar.
- O capitão Lisianski, do Neva. A fragata estava aqui quando chegamos. - Chegara ao Kodiak a notícia de que dois navios de guerra construídos na Inglaterra haviam partido de São Petersburgo no ano anterior, desfraldando as águas russas numa missão de amizade ao redor do mundo até o Japão. A missão era chefiada por sua excelência o camareiro imperial Nikolai Rezanov, o qual havia-se casado com a filha mais nova de Shelekhov, redigira a carta da companhia e obtivera do czar um monopólio comercial para a Companhia da América Russa. Ninguém, nem mesmo Baranov, acreditava que os navios da Marinha iriam parar em sua colónia, e eles certamente não esperavam nenhuma assistência deles.
- Ouvi dizer que quando este alto camareiro foi informado acerca do massacre aqui em Mikhailovosk pelo rei do Havaí, ele ordenou ao Neva que viesse em auxílio de Baranov, enquanto ele continuava até o Japão.
O enorme navio de três mastros no porto tornava ainda menores os rústicos veleiros ali ancorados, os quais haviam sido construídos nos estaleiros da colónia em Yakutat, no lado de terra firme do Alasca. - A fragata faz nossas chalupas parecerem barquinhos de pesca.
- Sim. - Mas Zachar pouco se interessava pela fragata. No dia seguinte as forças combinadas iriam enfrentar os kolosh e ele tinha sentimentos conflitantes acerca disso. Não notou o silêncio de seu irmão ou o modo como Mikhail o estudava.
- Eu não havia imaginado como seria doloroso para você voltar para este lugar - observou Mikhail. - Tantos de seus amigos foram aqui assassinados; foi um milagre você ter escapado.
- Sim. - O sacerdote russo, padre Herman, que dirigia a escola no Kodiak que sua filha Larissa frequentava, dizia que fora a vontade de Deus que ele sobrevivesse. Mas Zachar muitas vezes cismava a respeito disso. Tinha sido a mão de Deus que o protegera, ou a de Corvo? Teria sido pura coincidência que os kolosh tivessem atacado o forte quando ele estava fora dele, que teriam esperado, por insistência de Corvo, até que ele houvesse saído? Devia sua vida a ela - ou a Deus? Mas ele não podia contar a seu irmão nenhuma das questões que o atormentavam sem admitir sua traição.
- Ouvi dizer que Baranov planeja assaltar a aldeia principal amanhã, aquela que fica ao lado do morro.
- Ele vai primeiro parlamentar uma paz com eles - informou-lhe Mikhail.
- Eles nunca aceitarão seus termos. Ele quer que todos os kolosh abandonem a ilha de Sitka. Eles não o farão. - As simpatias de Zachar não estavam com os kolosh, mas sua preocupação por Corvo sempre perturbava seu pensamento.
Em algum lugar no grande acampamento um arco tocou as cordas de uma guzla e vozes esparsas começaram a cantar a canção que Baranov havia composto naquele verão intitulada "O Espírito dos Caçadores Russos". Outras vozes se juntaram às primeiras e Zachar ficou a escutar o crescente coro.
"Nestas longínquas plagas, a vontade de nossos caçadores Uma nova Moscou ergueu, com seu espírito de mercadores; no meio desta fria desolação novas riquezas encontraram Para a Pátria e o czar!
Na velha Moscou pelas torres de Sakharov adornadas,
Pela manhã ouve-se o troar dos canhões e à tarde dos sinos as badaladas.
Mas muito distante dali fica esta glória de Ivan o Grande Aqui nada temos senão nossa própria bravura!
Pai Todo-Poderoso! Tua ajuda imploramos Para as armas moscovitas que aqui plantamos. Que possamos com amizade e paz viver Nestas terras, para sempre!"
Quando a última nota soou, um silêncio pairou sobre o acampamento. Trocando algumas poucas palavras, Mikhail e Zachar se separaram. Mikhail estava preocupado; ultimamente seu irmão parecia preferir ficar sozinho. Ele se tornara assim desde que o capitão inglês chegara ao Kodiak com os sobreviventes do massacre e forçara Baranov a pagar um resgate por seu retorno. Zachar fizera um relato completo de tudo o que acontecera em Sitka, mas jamais voltara a tocar no assunto.
A princípio Mikhail fora levado a atribuir a esquisitice de seu irmão à tremenda experiência por que passara; agora estava menos certo de ser essa a razão. Seu irmão parecia relutante em combater. Mikhail começava a cismar se seu irmão seria um covarde.
Uma longa linha de cabanas de troncos enfileirava-se na praia, para cima da linha da maré. Aberturas baixas eram cortadas em suas empenas, que davam para o mar. Estas portas eram flanqueadas por pilares entalhados com figuras heráldicas que identificavam os clãs. Pranchas cortadas de abetos serviam de moldura para as paredes, e tábuas cortadas de troncos formavam os telhados inclinados dos edifícios; estes mediam nove metros de largura por doze de comprimento. Casinhas funerárias, miniaturas das habitações, eram colocadas em cima de postes e continham as cinzas dos mortos.
Corvo estava de pé na plataforma de tábuas do lado de fora da porta de entrada da casa de seu clã, não longe dos degraus que iam até o chão. A notícia da volta de Nanuk se espalhara rápido pela aldeia. Diariamente ela e seu povo tinham visto as canoas dos aleútes rebocarem o alto navio com seus grandes canhões até a costa de sua aldeia. Agora sua atenção concentrava-se numa canoa na qual vinham o chefe da aldeia, o irmão dela e seu marido, Corre-como-um-lobo. O chefe tinha ido ao navio para pedir que Nanuk explicasse sua ação.
Quando a canoa afastou-se do navio para retornar à aldeia, um canhão troou, vomitando uma nuvem de fumaça. Corvo encolheu-se com o estrondo e viu a água levantar-se muito à frente da proa da canoa. Diversas crianças na aldeia começaram a chorar, embora nenhum sinal de alarme viesse do pequeno a seus pés, que tentava trepar-lhe pelas pernas. Corvo abaixou-se rápido e pegou seu filhinho, pronta a correr para um lugar seguro, mas o canhão do navio não disparou de novo.
Satisfeita por não haver nenhum perigo iminente, Corvo ficou mais tranquila e olhou para o filho de um ano e meio. Sorriu orgulhosa com a ausência de qualquer medo na expressão de Lobo Cinzento quando ele olhava com os olhos abertos de curiosidade na direção de onde proviera aquele grande barulho. O cabelo dele era negro e escorrido, sua textura macia como de seda, e a pele trigueira com as bochechas rosadas. Mas seus olhos tinham o centro escuro rodeado por uma cor que não era nem cinza nem azul, mas uma combinação de ambas.
O menino Lobo Cinzento apontou para a praia e deu início a uma algaravia excitada. A canoa havia encalhado. Corvo aguardou impaciente até que seu marido se dirigisse para a casa comunal do clã onde viviam.
Ele passou por ela sem dizer uma palavra e abaixou-se sob a porta para entrar na habitação. Rapidamente, ela o seguiu para dentro da casa.
O interior era construído em três níveis, descendo até um piso central com uma lareira de terra. Corre-como-um-lobo voltou-se e caminhou pelo nível superior dividido em quartos de dormir e áreas de depósito. Corvo alcançou-o antes que ele chegasse ao poste do canto com sua talha totêmica.- O que aconteceu? - perguntou ela.
- Nanuk exigiu reféns antes que falasse conosco e recusou-se a darnos reféns em troca. Disse que não confiava em nosso povo.
Corvo enrijeceu-se com o insulto. Sabia que era inútil perguntar ao marido o que ele pensava que o chefe iria fazer. Ele poderia ter as pernas de um lobo, mas em sua opinião possuía a cabeça de uma tartaruga. Havia ocasiões em que duvidava se ele compreendia que não era o pai de seu filho. Impacientemente, afastou-se dele no momento em que o irmão dela, Coração de Cedro, entrou abaixado pela abertura. Ela se dirigiu a ele com presteza:
- O chefe pensa que Nanuk vai atacar a aldeia?
- Em breve chegará a noite - respondeu o irmão. - Nanuk esperará até que o sol surja de novo. O chefe está convocando um conselho do clã. Penso que ele vai aconselhar que todo mundo abandone a aldeia quando escurecer e vá para o forte perto do rio.
- Nem mesmo o canhão do navio grande pode atirar tão longe disse Corvo com um sorriso.
- Não. - Seu olhar afetuoso demonstrava aprovação tanto pela rapidez do raciocínio de Corvo quanto pela lembrança daquele detalhe estratégico.
- Nanuk ainda tem muitos homens e muitos canhões.
- Nós vamos enviar mensageiros para os outros clãs a fim de pedir mais armas e mais guerreiros com os quais destruir os russos. Em três dias, talvez quatro, eles virão.
Aconteceu o que seu irmão previra. Sob a coberta da escuridão da noite eles escaparam da aldeia exposta aos canhões dos navios russos e foram para o local fortificado perto da boca do rio, mais ao fundo da baía. Construído num pequeno morro, ele era rodeado por uma paliçada com a espessura de dois troncos e cerca de dois metros de altura, com uma galharia empilhada em sua volta. No lado mais longo, que ficava de frente para a baía, havia dois embasamentos para o pequeno canhão Que eles haviam obtido do homem de Boston. Dois portões localizavam-se do lado do forte que dava para a floresta, e quatorze habitações constituíam abrigos dentro da área fortificada.
Ao meio-dia Corvo viu um explorador incumbido de observar os movimentos dos russos entrar na fortificação. Ele não teria voltado se não houvesse algo a relatar.
- Nanuk está vindo?
- Não. Nanuk e seus homens desembarcaram na aldeia e subiram o morro que fica atrás dela - respondeu ele, sacudindo a cabeça e com a respiração ofegante. - Amarraram um de seus panos vermelhos com a figura da águia de duas cabeças num mastro e fincaram-no no chão. Agora estão arrastando canhões e madeira morro acima.
Naquela tarde o irmão dela acrescentou uma decoração de guerra de tinta vermelha sobre o preto que sempre cobria seu rosto para protegê-lo de insetos, do brilho do sol refletido na água durante o verão e da neve no inverno. Vestiu seu colete com armadura de madeira e seu escudo, depois juntou-se a uma escolta de cerca de sessenta guerreiros que acompanhavam o chefe. Eles deixaram o forte para procurar de novo Nanuk e descobrir suas intenções.
Quando chegaram à aldeia, Coração de Cedro observou o pano com a águia flutuando no mastro em cima do morro. Uma paliçada de madeira já estava completada e os canhões apontavam seus compridos canos para o bando de guerreiros. Quando pararam fora do alcance do fogo dos mosquetões russos, o chefe pediu que Nanuk viesse falar com ele.
Um punhado de homens acompanhou Nanuk morro abaixo. O esperto líder dos russos não mudara muito desde que Coração de Cedro o vira pela última vez. Ainda não crescia cabelo no topo de sua cabeça e a pálida franja que rodeava a calva brilhante não parecia mais clara. A expressão dele era dura e intransigente ao encarar o chefe.
- Nanuk quer dizer o que significam os canhões colocados por cima de nossa aldeia? - perguntou o chefe.
A resposta veio por meio de um intérprete:
- Os kolosh queimaram a aldeia de Nanuk e ele vai construir uma nova neste lugar. Ele diz que vocês devem trazer-lhe todos os aleútes que mantêm como escravos, e todos os kolosh devem abandonar a ilha de Sitka e nunca mais voltar, a não ser que Nanuk queira vê-los.
Zangado, Coração de Cedro deu um passo à frente.
- Desde que os primeiros kolosh vieram para cá, esta ilha tem sido a casa do clã de Sitka. Nossos espíritos vivem aqui. Não iremos embora.
- Quando os russos vieram, pedimos para viver em paz com os kolosh. Construímos nossa aldeia num pequeno trato de terra que o klan de Sitka nos vendeu. Não levantamos as mãos contra vocês. Sempre negociamos com correção. Mas vocês fizeram guerra contra nós e não confio mais nos kolosh. Em consequência, digo que devem abandonar sua fortificação no rio e deixar a ilha. Se recusarem, nossos canhões os despedaçarão e jogarão no mar. Dê-me sua resposta quando o sol se levantar.
O chefe hesitou. Coração de Cedro sabia que o socorro não podia chegar dos outros clãs pela manhã e adivinhava que o chefe também estava pensando isso.
- Entregaremos nossos escravos aleútes e deixaremos que construam sua nova aldeia. Não guerrearemos contra vocês. Concordaremos com isto e nada mais - afirmou o chefe.
- Saiam ou eu os expulsarei da ilha - disse Nanuk, recusando a oferta do chefe.
O chefe arregalou os olhos para o baixo e mirrado líder; depois fez uma rápida meia-volta e caminhou entre sua escolta de guerreiros, que rapidamente se abriu para deixá-lo passar. Cerraram fileiras atrás dele e seguiram-no para dentro da densa floresta.
No dia seguinte, o comando do Ekatrina foi entregue ao tenente de cossacos Arbusov. Vários canhões da fragata da Marinha foram montados nos conveses do Ekatrina. Sob as ordens do cossaco, Mikhail levou o navio mais para o fundo da baía e ancorou-o próximo ao recinto fortificado dos kolosh. Os três outros navios construídos na colónia seguiram-no para formar uma linha, mas a fragata Neva permaneceu no local da aldeia.
Nenhum kolosh se mostrava, mas Mikhail sabia que eles estavam por lá. Durante toda a noite passada um canto soturno viera do recinto fortificado, o gemido ondulante daquela cantoria irritando seus nervos - e os de todo o mundo - e privando-o do sono.
A cantoria continuara até as primeiras horas da manhã e só terminara há bem pouco, quando o sol já ia alto. Agora o silêncio estava cheio de uma tensão proveniente das fileiras de homens reunidos no convés, de uma espécie de vigília de batalha que endurecia suas feições.
- Fogo!
Um segundo mais tarde, o ar vibrou com o trovejar dos canhões e o convés tremeu sob os pés de Mikhail. Quando os homens apressavam-se a recolocar os canhões em posição e recarregá-los, Mikhail observou que a maior parte dos projéteis caíram antes da paliçada que circundava a fortificação dos kolosh. Alguns a atingiram, mas já quase sem força, causando poucos danos.
De ponta a ponta da linha de navios o canhoneio continuava. O ensurdecedor barulho dos canhões atacava seus ouvidos e o acre cheiro da fumaça da pólvora queimava-lhe as narinas. Mikhail podia ver que o reduto continuava intacto. Baranov mandou cessar o fogo e a fútil barragem, que só servira para desperdiçar valiosa munição. A seguir, aproximou-se de Mikhail.
- É possível manobrar o navio para mais perto da costa, Tarakanov? - perguntou ele, demonstrando sua frustração.
- Não, senhor.
Quando Baranov voltou-se para conferenciar com Arbusov, Mikhail estava suficientemente perto deles para ouvir seus planos. Nenhum tiro em resposta veio do reduto kolosh. Encorajado por esta falta de resistência dos kolosh, o oficial cossaco recomendou a Baranov que o forte nativo fosse invadido por terra, já que os canhões dos navios não tinham sido capazes de arrasá-los. Foi tomada a decisão de transportar algumas das peças de campanha mais leves para terra e assaltar o morro pelos dois lados. Baranov chefiaria um grupo de 150 homens e Arbusov comandaria o outro. Quando os escaleres estavam arriados pela borda, Mikhail Percebeu seu irmão de pé junto a um dos grupos de desembarque de Baranov. Ele não falara com Zachar desde aquela primeira noite. Mikhail hesitou um pouco e depois abriu caminho por entre os homens pesadamente armados até o lado de seu irmão. Zachar não reparou nele, toda a sua atenção concentrada na paliçada de madeira do forte dos nativos. Ele parecia preocupado; ou seria medo?
- Zachar! - Viu o irmão virar-se com um gesto sobressaltado e depois evitar rapidamente o seu olhar. - Desejo-lhe boa sorte!
- Obrigado - respondeu ele, inclinando a cabeça com ar sério. Diante dele, os homens começaram a transpor a amurada pulando para os barcos que esperavam a fim de levá-los a terra. Zachar moveu-se para a frente, aguardando sua vez.
- Hoje à noite você poderá dar-me um relato completo do que aconteceu. - Mikhail fez uma tentativa para recordar a Zachar seus dias de infância, quando ele escutava cheio de inveja as histórias do irmão mais velho sobre suas aventuras.
Um sorriso aflorou aos cantos da boca de Zachar quando ele olhou para trás, para Mikhail. Um momento mais tarde, ele estava pulando por sobre o corrimão e descendo pelos cabos até o bote.
Enquanto ele ajudava a remar o pesado barco em direção à praia, Zachar observava a densa vegetação rasteira em volta da paliçada. Não importa o quanto tentasse, era incapaz de esquecer que Corvo estava escondida em algum lugar atrás daquelas muralhas. Olhou para o pequeno canhão no barco, sabendo quão indistintamente as balas escolhiam suas vítimas.
Os botes chegaram à praia sem incidentes. Quando a força, na maior parte composta de aleútes, desembarcou, não se ouvia um som ou se via um movimento no forte nativo. Baranov reuniu seus homens na praia e preparou-se para avançar em coordenação com o ataque de Arbusov. Mas o espaço entre a estreita faixa de praia de seixos e o reduto dos kolosh no morro estava coberto com uma densa macega de vegetação rasteira e altas plantas de frutas silvestres. Eles mergulharam na fechada vegetação rasteira mas a progressão era difícil e vagarosa e eles tinham que esforçar-se para arrastar o pequeno canhão através do terreno escorregadio. Quase que imediatamente perderam de vista o grupo de Arbusov.
Já passado o meio da tarde, eles se encontravam na metade da rampa do morro. Zachar apoiou o ombro contra uma das rodas do canhão e lançou todo seu peso contra ela, esforçando-se para empurrá-lo mais um centímetro para cima, mas o chão escorregadio dava-lhe pouco apoio. Parecia-lhe necessário usar toda a sua força para evitar que o canhão escorregasse para baixo. Os outros que o rodeavam tinham o mesmo problema. Zachar lançou um rápido olhar para os troncos da paliçada. Quanto mais perto chegavam da fortificação, mais enervante se tornava o silêncio. Inclinando a cabeça, Zachar redobrou seus esforços para mover o canhão.
Subitamente, os gritos selvagens dos kolosh cortaram o ar, seguidos de pronto por uma barragem de fogo de mosquetões proveniente da paliçada. Uma chuva de chumbo caiu sobre eles, vindo de cima. Zachar abaixou-se atrás do canhão e tentou levantar o mosquetão, mas por todo o seu redor os aleútes começavam a correr, abandonando mais do que duas dúzias de russos do grupo de Baranov. Imediatamente, guerreiros kolosh pintados começaram a aparecer por cima do parapeito, uivando e soltando gritos de guerra. Zachar atirou sem incomodar-se de escolher um alvo, seu número era grande demais.
- Retirada! - gritou Baranov.
Zachar juntou-se à louca corrida pela encosta coberta de mato abaixo, puxando o canhão que rolava e chocalhava atrás dele. Viu quando Baranov caiu e agarrou-o pelo braço, arrastando-o com ele. O ar ficou cheio de chumbo voando quando os canhões do navio abriram uma fuzilaria de cobertura, forçando afinal os kolosh a recuarem para dentro de seu forte.
Novamente seguros a bordo dos navios, avaliaram os danos do ataque rechaçado: o total subia a dez mortos e 28 feridos. Baranov estava entre os últimos, tendo sofrido uma ferida no braço. Reconhecendo sua incapacidade, ele passou o comando ao capitão Lisianski. No dia seguinte, a fragata Neva foi rebocada até emparelhar-se com os navios pequenos e começou um bombardeio incessante contra a fortificação inimiga. Por toda a manhã e tarde a floresta e a baía reverberaram com o incessante troar dos canhões.
Duas vezes os kolosh acenaram do parapeito com uma bandeira branca. Na primeira vez um mensageiro da fortificação prometeu fornecer reféns a Nanuk se ele permitisse que os kolosh permanecessem na ilha Sitka. Baranov recusou, insistindo que os kolosh deveriam partir. Na segunda ocasião, o mensageiro prometeu que os kolosh partiriam no dia seguinte com a maré alta e o sítio foi levantado.
A maré alta chegou no dia seguinte e se foi e nada aconteceu. Lisianski mandou construir uma balsa de troncos e montou vários de seus, grandes canhões sobre ela. A uma distância mais curta, os canhões começaram a martelar de novo o forte do inimigo, finalmente infligindo graves danos à muralha de troncos. Ao escurecer, um homem velho apareceu na praia, agitando uma bandeira branca. Desta vez ele prometeu que os kolosh partiriam. A bateria cessou fogo.
Incapaz de dormir naquela noite, Zachar ficou andando pelo convés do Ekatrina, seu olhar continuamente atraído para a massa escura da fortaleza. Quando ele estava no Kodiak, a distância fizera as coisas fáceis para ele, mas agora, estar tão próximo de Corvo e não poder vê-la era doloroso. Ele queria acreditar que ela gostara dele, que não errara em confiar nela.
Da fortaleza dos kolosh veio um canto plangente. Zachar parou para escutar a triste melodia. A forte batida de um tambor marcava seu ritmo de canto fúnebre. Outras vozes se juntaram às primeiras, aumentando o coro num crescendo e depois caindo quase num silêncio total, para outra voz repetir a mesma sequência. Zachar não podia entender as palavras, mas a tristeza que as vozes continham não necessitava de tradução. Aquele som gelava-lhe a pele.
horas Durante toda a noite o lúgubre canto continuou sem uma pausa. Uma hora antes da madrugada, finalmente cessou. O silêncio sepulcral que se seguiu era quase pior. Zachar esperou pelo nascer do sol, mas a madrugada cor-de-rosa revelou apenas aves de rapina planando em vagarosos círculos sobre a fortificação.
Quando tentaram chamar o forte não houve resposta. Zachar apresentou-se como voluntário para ir à terra com um grupo armado que estava sendo mandado para investigar. Quando chegaram à praia, tudo parecia mortalmente parado. Aproximaram-se cuidadosamente do reduto, andando em volta dele pela floresta. As portas estavam abertas; dentro não se ouvia nenhum som, não havia nenhum movimento.
Com seu mosquetão na mão e o dedo pronto no gatilho, Zachar entrou no reduto fortificado com os outros. Cautelosos, eles se espalharam em leque, mas o lugar parecia deserto exceto pelo bando de abutres que esvoaçavam por perto de uma pilha no centro do conjunto. Zachar aproximou-se do monte de estranho aspecto. Quando se aproximou, viu que era uma pilha de corpos mortos e apressou seus passos até correr nos últimos metros.
A rigidez da morte já se apossara de muitos corpos quando Zachar se meteu no meio deles, aflito à procura de Corvo, temeroso de encontrála entre os mortos. Mas havia apenas uma mulher adulta na pilha de cadáveres, uma mulher velha, quase sem dentes. A maioria dos corpos eram de guerreiros, apresentando feridas de batalhas. O resto consistia de crianças muito pequenas ou de homens muito velhos. Zachar caiu de joelhos aliviado, certo de que Corvo estava viva - em algum lugar.
Sitka Agosto de 1805
No local da antiga aldeia dos kolosh situava-se o novo estabelecimento russo chamado Novo Arkhangelsk (Novo Arcanjo). Era um bastião, equipado com doze canhões, que coroava o largo morro e dominava o porto lá embaixo. Uma escadaria conduzia ao povoado principal, onde no passado situavam-se as habitações de troncos dos kolosh e onde as casinhas funerárias totêmicas se alinhavam com a praia. Agora havia oito edifícios: um alojamento rústico, um comissariado, um depósito, algumas cabanas e um estábulo para o gado, que consistia de vacas malhadas de preto e branco, alguns porcos da partida que o rei Kamehameha enviara no inverno passado e duas cabras de um navio de Boston. Uma estacada protegia o lado de terra do estabelecimento e incluía mais de uma dúzia de canteiros de verduras dentro de suas paredes.
A fragata Neva estava outra vez fundeada no porto, após haver passado o inverno no Kodiak. No seu costado estava o brigue Maria no qual o alto camareiro Nikolai Rezanov chegara recentemente, o navio tendo sido guiado para seu ancoradouro seguro na baía por Mikhail, agora estacionado em Novo Arcângelo e destacado para a inglória função de prático do porto.
Quando Mikhail saiu da pequena cabana no topo do morro, ele viu Zachar, que dava guarda na muralha do bastião. Atravessou o chão enlameado e saturado de chuva até o embasamento do canhão, onde seu irmão montava guarda com os olhos perdidos em direção ao mar. Ao som dos passos de Mikhail, voltou-se e depois olhou para a carta que ele tinha na mão.
- O Maria trouxe correio do Kodiak. Uma carta de sua filha Larissa. Zachar olhou para o pedaço de pergaminho dobrado mas não fez
menção de pegá-lo. Ao contrário de Mikhail e de sua filha, ele não sabia ler nem escrever.
- O que diz ela? Como está nossa mãe?
- Ela está bem de saúde. - Mikhail leu em voz alta a curta carta de Larissa, na qual ela contava a instrução continuada que vinha recebendo do padre Herman e da ajuda que dava a Tasha na casa de Ivan Banner e sua esposa russa, o homem que o chefe Baranov tinha encarregado do estabelecimento no Kodiak. O último parágrafo da carta ocupava-se da visita do alto camareiro ao Kodiak, e do edifício vazio que ele enchera com centenas de livros, mapas, belos modelos de navios e estranhos instrumentos. "Espero que você e tio Mikhail estejam passando bem e que em breve possamos estar juntos de novo." A carta estava assinada:
"Sua fiel filha, Larissa."
Mikhail não fez nenhum comentário sobre o último desejo expresso na carta. Num futuro previsível, não era provável que a companhia mandasse ele próprio ou Zachar de volta para o Kodiak e por enquanto ainda não era seguro para sua mãe e sua sobrinha serem trazidas aqui para Novo Arcanjo, cercada como estava pelos hostis kolosh, sempre sob a ameaça de um ataque.
Quando havia voltado para a América russa como um navegador trei nado, Mikhail pensara que sua profissão o capacitaria a visitar muitas plagas distantes. Em vez disso, fora nomeado prático do porto e raramente se aventurava fora das águas desta baía. Aquilo era uma contínua fonte de frustração para ele, especialmente, quando havia cartas para lembrá-lo de sua estática vida. Ele entregou a carta a Zachar e observou quando seu irmão a dobrava, enfiava em seu bolso e depois olhava para o alojamento.
- Ouvi dizer que Baranov pediu demissão a sua excelência - disse Zachar, repetindo o boato.
- Não creio que o alto camareiro tenha aceitado - disse Mikhail com um ligeiro sorriso. - A grande coleção de livros e gravuras que Larissa mencionou na carta... aquelas que Rezanov deixou no Kodiak... fala-se que Baranov disse a ele que desejava que sua excelência tivesse trazido algo para encher nossas barrigas em vez de nossas cabeças.
Zachar deu um risinho, embora a escassez de alimentos não fosse motivo de riso. Os cães do acampamento começaram a latir próximo à base do morro e depois correram em matilha até a praia. Virando a cabeça, Zachar viu uma dúzia de canoas kolosh abrindo caminho pelo amontoado de ilhas em direção ao estabelecimento. Nas canoas havia tanto homens quanto mulheres e o vento trazia até eles trechos dos cantos que entoavam.
Antes de chegarem à praia, pararam suas canoas. Um dos guerreiros - Zachar suspeitava que o homem fosse um chefe - ficou de pé e começou a falar. Zachar conseguiu entender a maior parte do que ele dizia.
- Vocês eram nossos inimigos - falou ele. - Nós ferimos vocês. Nós éramos seus inimigos; vocês nos feriram. Nós queremos ser bons amigos. Nós queremos esquecer o passado. Nós não queremos mais feri-los. Também não nos causem nenhum dano. Sejam nossos bons amigos.
A mesma mensagem foi repetida muitas vezes com diferentes fraseados. Diversos chefes de vários clãs já tinham vindo fazer as pazes com Baranov e renovar uma amistosa relação de comércio.
- Direi a Baranov que ele está recebendo visitas - propôs Mikhail. Zachar esperou fora da cabana enquanto Mikhail chamava seu chefe.
Baranov saiu com sua peruca negra amarrada na cabeça com um lenço. A dura vida, seus avançados anos e o clima úmido, tudo estava começando a marcá-lo. Seus dedos achavam-se encurvados e duros de artrite, e ele capengava devido ao mesmo problema, andando com auxílio de uma bengala. Seus olhos, entretanto, permaneciam brilhantes e sua mente alerta, negando seus quase sessenta anos de idade.
Juntos, Zachar e Mikhail escoltaram-no escadaria abaixo até a tenda que havia sido erguida na praia com o propósito de abrigar os arautos de paz dos kolosh. Quando eles lá chegaram, os intérpretes nativos já haviam introduzido os kolosh na barraca, a fim de aguardarem sua audiência com Nanuk. Zachar entrou na frente de Baranov.
Seu olhar foi atraído por uma mulher kolosh vestida com uma roupa brilhante de tiras. Algo dentro dele pareceu congelar-se quando fixou-se em seu rosto. Era Corvo. A incredulidade deixou-o estático até que sentiu a bengala de Baranov cutucá-lo, apressando-o para sair do caminho. Quando deu um passo para o lado, notou o menino junto a ela. Parecia ter uns três anos de idade e seus olhos... seus olhos eram de um matiz azul claro! Zachar ficou a olhar para a criança que decididamente não era de puro sangue kolosh. Tinha a idade certa para ser seu filho. Seria? O olhar dele voltou-se para Corvo.
Se havia qualquer diferença, ela parecia mais bela para ele. Seus olhos eram tão escuros quanto ele os recordava e ainda brilhavam com um fogo interior. Ela estudou-o com aquela atenção, aquela curiosidade que sempre demonstrava. Zachar sentiu o familiar assomo de intenso prazer que ele sempre experimentava diante dela. Quaisquer dúvidas que ele tivera a respeito de Corvo não mais pareciam ter importância. Ela estava ali e ele ainda a queria. Nada mais importava.
Sorriu para ela e viu seus olhos escurecerem e seus lábios curvarem-se ligeiramente em resposta. Os anos pareceram fugir dele. Inconscientemente, se empertigou, lançou os ombros para trás e estofou o peito. Por dentro estava todo alerta e excitado, cheio de uma felicidade intensa e doce que ele jamais esperara de novo conhecer.
As formalidades da cerimónia foram longas, pois Baranov e o chefe do clã fizeram vários e compridos discursos, professando seus votos de amizade e paz. Finalmente, Baranov mandou que a refeição fosse trazida. A comida veio acompanhada por um jarro de conhaque, que foi bebido numa rodada de brindes. Zachar nada provou; a alegria de descansar seus olhos em Corvo era alimento suficiente para ele, e beber a visão dela já o intoxicava.
Depois de uma agonia de espera, os kolosh começaram a dançar em comemoração e Zachar teve oportunidade de procurar Corvo. Quando se sentou no chão ao lado dela, sua língua subitamente recusou-se a funcionar. Nenhuma das coisas que planejara dizer-lhe vinha-lhe à mente. Tudo o que desejava era tocá-la e senti-la em seus braços de novo. Corvo observava-o enquanto entoava o canto cuja música muitos de sua gente dançavam, pulando com leveza no ar. O menino olhava em volta e encarou Zachar com curiosidade.
- Este é seu filho? - perguntou. "É meu?" ele quis acrescentar mas não pôde.
Ela fez que sim com a cabeça e parou de cantar:
- O nome dele é Lobo Cinzento.
- É um menino muito bonito. - Zachar notava certa semelhança com ele nos traços do menino, especialmente nos olhos de cor clara. Que idade ele tem?
- Ele nasceu há dois invernos, na época em que a ursa dá cria. Pelo modo de contar o tempo dos kolosh, Zachar estimou que fora aproximadamente no mês de fevereiro. O menino era sem dúvida alguma seu filho. Seu filho! Aquele conhecimento parecia inchá-lo por dentro, enchendo-o de um irresistível orgulho e alegria.
A dança tribal estava alcançando um clímax, os cantores elevando suas vozes num crescendo e os rodopiantes bailarinos dando agudos gritos. Zachar ficou irritado com aquele tumulto que se intrometia em seu encontro com Corvo.
Chegou-se mais perto dela para se fazer ouvir acima da barulheira.
- Quer ir lá fora comigo?
Ela hesitou momentaneamente, depois olhou-o no rosto.
- Você vai; eu irei logo.
Por Um momento Zachar não entendeu a resposta, mas bastava que ela Tivesse concordado em vê-lo a sós. Ansioso para estar sozinho com ela, ergueu-se e foi Para o lado aberto da barraca, colando-se às laterais da lona num esforço para sair sem ser percebido.
Do lado de fora o crepúsculo tingia de roxo as nuvens e as distantes encostas do monte Edgecumbe. A brisa com um sabor de sal que soprava da água era fresca e mantinha as nuvens de borrachudos e outros mosquitos confinados aos pantanais cobertos de musgo da floresta úmida. Zachar afastou-se da barraca em direção às altas proas das canoas encalhadas ao longo da praia.
Todos os seus sentidos estavam aguçados com a expectativa do encontro. Quando ouviu o som de passos atrás de si, girou rapidamente, surpreendido e contente por Corvo havê-lo seguido tão depressa. Mas era Mikhail e não Corvo, e Zachar lutou para esconder seu desapontamento.
- Alguma coisa errada? - perguntou Mikhail, franzindo o cenho.
- Não, nada! - respondeu Zachar. rindo-se porque as coisas não andavam tão bem há tanto tempo, não desde a última vez que vira Corvo.
As rugas que se haviam formado na testa de seu irmão aprofundaram-se.
- Por que você saiu da tenda? Foi algo que aquela mulher kolosh lhe disse? Parecia conhecê-la.
- Conheço, de fato. - Naquele momento Zachar viu Corvo deslizar pela abertura da barraca levando o filho pela mão. Acenando com a cabeça, ele dirigiu a atenção de Mikhail para a mulher: Ela vem aqui encontrar-se comigo. Você notou o menino? É meu filho.
- Seu o quê?
Mas Zachar não ouviu sua incrédula resposta quando deu um passo a frente para encontrar-se com Corvo. Desta vez parecia a coisa mais natural que ele a pegasse em seus braços e a beijasse, para sentir a maciez daqueles lábios sob os seus e o corpo flexível ceder a seu abraço. Uma emoção ternamente poderosa cresceu no seu íntimo e ele tremia quando finalmente levantou-lhe a cabeça e fitou-a no rosto. Ele achava que a havia amado antes, mas aquilo não se comparava com a adoração apaixonada que ele agora sentia. Era uma coisa que tudo consumia e tudo fazia esquecer.
O olhar escuro de Corvo dirigiu-se para um ponto atrás dele, lembrando-o da presença de Mikhail. Ele virou-se enquanto mantinha um braço em torno da mulher.
- Quero que conheça meu irmão mais moço, Mikhail Tarakanov. Esta é Corvo.
Abaixando-se, ele pegou o menino e o pôs no colo.
Sorriu para a criança, que parecia fascinada ao olhá-lo assim de perto.
- E este pequenino é Lobo Cinzento.
Mikhail tinha a nítida impressão de estar olhando para um retrato de família: o menino com os olhos do pai empoleirado em seu braço e o marido olhando com ar de adoração para a mãe de seu filho. Apenas uma imagem não lhe parecia correta: a mulher olhava para ele em vez de para Zachar.
- Eu pensava que nunca mais a veria - disse Zachar. - Agora nunca mais a deixarei afastar-se de minhas vistas.
Uma quietude parecia espalhar-se pela ilha. Mikhail levou algum tempo para entender que a dança dentro da barraca havia cessado. Quando sua atenção voltou-se para as lonas da tenda, um guerreiro kolosh ficou parado na abertura, olhando para as sombras que aumentavam como se a procura de alguém. Quando sua cabeça parou de girar, ela apontava na direção deles.
Lembrando-se das últimas palavras de Zachar, Mikhail disse:
- Acho que ele é capaz de ter algo a dizer sobre isso. - E fez um sinal com a cabeça, indicando o guerreiro que andava em sua direção.
Corvo enrijeceu ao reconhecer Sapo da Floresta. Uma expressão de ódio estampou-se no rosto dela e depois sentiu crescer ligeiramente a pressão do braço de Zachar que a abraçava.
- Quem é ele?
- Ele é Sapo da Floresta, irmão de meu falecido marido. Ele tomou-me como sua segunda esposa.
Durante o sítio russo da fortificação, Corre-como-um-lobo fora atingido nas pernas por estilhaços. Aleijado devido às feridas, ele tinha sido morto ritualmente pelo xamã, de forma que não viesse a atrasar o clã durante sua fuga. De acordo com o costume de seu povo, o irmão dele era obrigado a tomá-la como esposa, embora ele já tivesse uma. Apesar de haver tentado de todas as formas, Corvo não tinha sido capaz de usurpar a posição da primeira esposa dele como a favorita. O fato de preferir aquela mulher de nariz chato em vez dela provava a Corvo que ele era ainda mais estúpido que seu irmão. E o fato de pensar que podia mandar nela como numa escrava aumentou seu desprezo por ele.
Ele parou diante de Corvo, seu rosto pintado de preto brilhando na meia-luz do crepúsculo. Os círculos pintados de vermelho que lhe rodeavam os olhos faziam-no parecer ainda mais ameaçador ao encará-la, zangado porque ela não lhe pedira permissão e por ter-lhe sido infiel, envergonhando-o diante dos russos.
- Volte para a tenda - ordenou ele em sua língua.
- Vá você para a tenda - retrucou ela. Corvo podia sentir o cabo da faca na cintura de Zachar e moveu-se ligeiramente, para colocá-la em posição mais fácil de ser alcançada.
- Você vai fazer o que eu digo! - Enfurecido por sua recusa, ele agarrou-a pelo braço para forçá-la a obedecer.
Corvo porém escapou das mãos dele e tirou a faca de Zachar de sua bainha e brandiu a lâmina diante do marido que parecia um sapo.
- vou ficar com Zachar. - Desta vez ela falou em russo.
Após recuar um pouco com a surpresa, ele deu um passo ameaçador à frente, xingando-a em altos brados. Mas Zachar interveio, como ela sabia que faria; sacando a pistola e apontando-a para ele, exclamou:
- Não se meta com ela!
Zachar! Em nome de Deus, o que pensa que está fazendo? - O homem que Zachar havia chamado de irmão pôs uma mão no seu braço a contê-lo. - Eles vieram em paz para tratar com Baranov.
Não desejo mais viver com você - disse Corvo numa voz cheia de desdém. - Tenho vergonha de ser chamada esposa de alguém que não é mais do que um sapo dentro d'água.
- Não desejo que você seja minha esposa.
- Então não sou mais sua mulher e você não é mais meu marido.
- Ela abaixou a faca, satisfeita por ter provocado aquela declaração por parte dele. Os presentes que haviam sido trocados por ocasião do casamento não teriam que ser devolvidos, já que o desejo de se separarem fora mútuo.
O kolosh apertou seus lábios irritado, compreendendo que havia sido enganado por ela, que o forçara a declarar aquilo. Depois olhou para Zachar com os olhos apertados e perguntou-lhe em russo:
- Você quer esta mulher?
- Sim.
- Então me dê duas talhadeiras e um cobertor. Ela é sua para sempre.
- Não! - protestou Corvo, enraivecida. - Ele concorda que o casamento não existe mais. Não precisa lhe dar nada.
- Pagarei o que ele pede.
- Não. - E ela virou-se para o ex-marido e gritou-lhe acusações e insultos; em breve ele também estava gritando em resposta, chamando-a de feiticeira e de outras coisas igualmente vis.
Dentro de minutos, suas altas vozes chamaram a atenção dos que estavam dentro da tenda. Zachar ficou atrapalhado quando viu Baranov sair. Todos os seus esforços para acabar com aquela discussão resultaram inúteis. Nenhum dos dois permitira que dissesse mais que uma só palavra.
- O que está havendo por aqui? - Mas nem essa primeira pergunta de Baranov conseguiu impor silêncio. Ele pegou a pistola da mão de Zachar e deu um tiro para o ar, o que teve o desejado efeito. - O que significa tudo isto?
Zachar expôs-lhe o caso e depois Corvo tentou dar sua versão, no que foi impedida por seu marido guerreiro. Baranov levantou a pistola mais uma vez, pedindo silêncio; depois olhou para Zachar e perguntou:
- Você quer esta mulher?
- Eu a quero. Este é meu filho. - Ele agarrou a criança com mais força junto a si, certo da compreensão de Baranov. Afinal de contas, o lider tinha dois filhos com a mulher índia com quem vivia, e que adorava. - Estou disposto a pagar o preço que ele pede por ela, embora Corvo alegue que ele não tem direito.
- Cumprimento a senhora por proteger tão enfaticamente seus interesses - disse Baranov, fazendo uma ligeira mesura em direção a Corvo.
- No entanto, em nome da paz e da boa vontade, o preço será pago- Enquanto o intérprete traduzia sua resposta para os kolosh que estavam em volta, Baranov murmurou para Zachar: - As mercadorias serão debitadas em sua conta na companhia e o preço deduzido de seus vencimentos.
Nem mesmo Corvo teve o topete de discutir a decisão e o assunto assim ficou decidido. Sapo da Floresta recebeu duas talhadeiras e um cobertor e Corvo tornou-se mulher de Zachar.
Mais tarde naquela semana, Baranov presidiu a uma simples cerimónia de batismo e o filho de Zachar recebeu o nome de Vasili Zacharevich Tarakanov, mas ninguém jamais chamou o rapaz por aquele nome; em vez disso chamavam-no de Lobo. Menino excepcionalmente esperto, depois de um mês em Novo Arcanjo seu vocabulário já estava bastante misturado com palavras russas.
Em outubro começou a chover, uma chuva que não acabava mais, achava Mikhail enquanto andava pelo chão encharcado em direção à cabana de seu irmão. O tempo frio raramente era um problema nesta região do estreito de Sitka, mas as chuvas torrenciais e pesados nevoeiros eram uma constante fonte de desconforto.
Mikhail voltou seu olhar conhecedor para oeste, a fim de avaliar o tempo. Pesadas nuvens escondiam completamente a ilha do monte Edgecumbe e obscureciam as outras ilhas da baía. A fragata Neva não mais aparecia no porto. Uma quinzena depois que chegara o alto camareiro, ela levantara ferro, com um carregamento de peles valendo 450 mil rublos destinado a Cantão, e o Elizaveta, um dos navios menores da companhia, tinha sido enviado ao Kodiak para suprimentos.
A pesada chuva fizera parar o trabalho no casco de um novo navio que o alto camareiro Rezanov determinara que fosse construído e batizado o Avoss, (o Talvez). Insultado pelo tratamento que lhe dera o Micado durante sua missão de embaixador ao Japão, Rezanov tencionava mandar uma força naval ali a fim de punir aquela nação insular. O A voss seria parte da flotilha. Ele também ordenou a Baranov que preparasse alojamento no porto da ilha para o que ele chamava de "imigrantes compulsórios", que seriam trazidos do Japão ao término de sua expedição militar. Agora todo o mundo se referia à ilha como Japonski.
Mikhail não partilhava do entusiasmo do alto camareiro pelo plano; ninguém o fazia. A Companhia da América Russa não tinha navios suficientes para manter seus estabelecimentos aprovisionados com suprimentos para patrulhar seus territórios, a fim de impedir que navios estrangeiros comerciassem em suas águas e para escoltar expedições de caça à lontra-do-mar. Tentar montar uma ofensiva era absurdo. Entretanto, não importa quão razoável Rezanov fosse em outros assuntos, tais como a instalação de cuidados médicos, escolas para os nativos e a criação de um fundo de pensão para os velhos e os incapacitados, não se podia fazê-lo desistir de sua planejada campanha japonesa. Não importa quanto eles
Pudessem discordar, a palavra do plenipotenciário de 42 anos era obedecida.
Chegando à cabana de seu irmão, Mikhail parou de lado de fora e bateu na porta. Antigamente ele apenas entraria, mas a presença de Corvo mudara tal hábito. Duas vezes ele havia entrado sem se anunciar e deparado com uma cena íntima; agora ele batia antes.
Nenhum som veio do lado de dentro; tudo o que ele podia ouvir era o martelar da chuva no telhado. Esperou, encolhendo os ombros contra a pancada d'água e depois bateu de novo. Mas não houve resposta. Voltando-se, ele correu os olhos pelos outros edifícios do conjunto, não lhe agradando a ideia de ter que patinhar na lama debaixo da chuva para achar Zachar. Rezanov, que assumira o comando efetivo, convocara outro conselho dos navegadores e caçadores-chefes bem como Baranov e seu imediato, Ivan Kuskov. Ele e Zachar tinham que estar na cabine de Rezanov dentro de uma hora. Era mais provável que ele encontrasse Zachar no comissariado comprando mais quinquilharias para Corvo.
Ouvindo o chapinhar de passos na lama em volta da cabana, voltou-se quando Corvo dobrava a esquina da casa carregando uma braçada de lenha. Estava abrigada por um cobertor colocado por cima da cabeça. Embora andasse rápido, o aspecto dela não era de uma mulher correndo perseguida pela chuva; tinha uma atitude de muito maior dignidade. Mais de uma vez Mikhail ficara impressionado pelo orgulho dela, que às vezes chegava a parecer insolência.
Quando o notou esperando-a na porta, Corvo teve uma pequena hesitação.
- Você está todo molhado - disse ela e conseguiu fazê-lo sentir-se tolo por ter ficado do lado de fora na chuva quando poderia ter entrado na cabana, onde estava seco.
- Eu estava procurando Zachar.
- Ele voltará em breve - disse Corvo, passando por ele e empurrando a porta da cabana.
Somente com certo atraso ele notou com que dificuldade ela conseguira abrir a porta, atrapalhada com a braçada de lenha; seguiu-a para dentro de casa e fechou a porta para ela antes de voltar-se. O cobertor caíra de sua cabeça, revelando o brilhante cabelo que lhe emoldurava o rosto. De propósito, ele evitou encará-la.
- Deixe-me pegar essa lenha.
Quando chegou-se a ela para agarrar a lenha, seu braço roçou o busto dela. Teve um repelão, quase deixando cair as achas de lenha, como se aquele contato o houvesse queimado. O sorriso que ela tinha nos lábios era de divertimento. Eram seus polpudos lábios que alteravam todo o efeito da estrutura óssea de seu rosto e criavam uma imagem de atraente beleza
- isto e a profundeza negra de seus olhos. Sentiu uma sensação de pressão em seu baixo-ventre e rapidamente virou-se para levar as achas de lenha para a caixa que ficava ao lado da lareira.
- Faz muito tempo que você não está com uma mulher. - A proximidade de sua voz revelou a Mikhail que ela o havia seguido.
Todos seus sentidos pareceram demandar sua atenção ao mesmo tempo, tornando-o consciente do cheiro de fumaça de madeira permeando o ar úmido, as batidas de uma goteira caindo do telhado e a cama Que ficava no fundo da cabana de um só cómodo.
- Há falta de mulheres aqui. - O que mais Mikhail desejava era culpar sua reação em seu recente e forçado celibato, ao mesmo tempo que reconhecia que ela possuía a espécie de aparência que virava os pensamentos de um homem para o sexo. Ele despejou as achas de lenha na caixa, para que o barulho de sua queda enchesse o silêncio, e depois Deslocou-se para ficar em frente às chamas da lareira. - Você está esperando Zachar logo?
- Sim - respondeu ela, removendo o cobertor e colocando-o por cima da caixa de madeira para secar.
Você deseja uma mulher para ir para a cama. Por que não me convida? - Ela postou-se ao lado dele, encarando-o, quase escarnecendo.
- Ou você me acha feia?
- Não. - A resposta veio rápida. - Você pertence a Zachar. Mas você é irmão dele. Para meu povo, é aceitável que uma mulher tenha dois maridos se eles forem irmãos.
Os russos não consideram essa prática pagã aceitável - disse Mikhail, rindo meio sem graça.
- Por quê? Uma mulher precisa de filhos. Zachar está velho demais. Hoje em dia, na maior parte das vezes, o membro dele fica mole em minha mão. Você ainda é forte; poderia dar-me muitos filhos.
Tais observações encheram-no de calor; ficou olhando para as chamas amarelas do fogo, lá por dentro amaldiçoando-a por excitá-lo de tal forma.
- Zachar não é velho demais - ponderou ele. - Baranov é uns quinze anos mais velho que meu irmão e tem um filho de três anos.
- Ele é Nanuk - disse ela como se isso explicasse tudo. - Você não gostaria de ir para a cama comigo?
Mikhail deu meia-volta, irritado, mas não teve chance de falar, pois a porta abriu-se e Zachar entrou apressado, o som de seu riso misturando-se com os gritinhos agudos do filho. De repente, Mikhail não soube como teria respondido à pergunta de Corvo. Perturbado pela sensação de culpa que se seguiu à sua incerteza, ele sentiu-se sem jeito frente a seu irmão.
- Não sabia que estava aqui, Mikhail - disse Zachar, sorrindo ao arriar no chão o seu filho Lobo. O garoto sacudiu vigorosamente a cabeça molhada e agitou-se como um cachorro, espalhando respingos em todas as direções.
- Acabei de chegar aqui. - A necessidade de deixar claro que ele não estivera só com Corvo muito tempo só serviu para aumentar sua sensação de culpa. Ele não havia traído seu irmão, mas tivera vontade. Rezanov convocou outra reunião.
Meio inconscientemente, Mikhail afastou-se da lareira - e de Corvo - e dirigiu-se para a porta.
Espere - disse Zachar. - vou com você.
Eu também vou - disse o menino, correndo para o lado de Zachar quando percebeu que ele ia sair. - Não - disse Zachar e deu-lhe um ligeiro empurrão na direção
de sua mãe- Voltarei mais tarde. Havia Um sorriso contente em seu rosto quando ele seguiu Mikhail para
fora; dePois parou para virar sua gola, a fim de proteger-se da chuva.
- Ele é um bom menino - observou ele a Mikhail. - Acho que está ficando agarrado a mim.
- Sim. - Mikhail não podia lembrar-se de jamais ter visto seu irmão tão contente, quase estourando de orgulho de sua família recémencontrada. Eles eram por demais novos e cheios de encantos para Zachar encontrar quaisquer defeitos, pensou Mikhail.
Com as cabeças abaixadas contra a chuva que desabava, eles cortaram o pátio do conjunto em direção às escadas que levavam ao bastião em cima do largo topo aplainado do morro.
- Sobre o que é esta reunião? Disseram-lhe? - perguntou Zachar.
- Não.
Caminharam alguns passos em silêncio e depois Zachar falou:
- Gosto deste Rezanov. Ele é um homem inteligente. Sei que muitos dopromyshleniki lá nas ilhas das focas... as Pribilofs... ficaram descontentes com sua ordem de não matarem mais focas neste ano, mas aquilo tem de ser parado ou então não haverá mais nenhum animal onde antigamente havia milhões de focas por cima das rochas, como abelhas numa colmeia.
- Já esteve lá? - perguntou Mikhail, franzindo a testa.
- Uma vez, há muito tempo - admitiu Zachar quando começou a subir as escadas. - Ouvi dizer que as incursões dos barcos de Boston mataram mais de um milhão de focas somente este ano.
- Perdemos uma porção de peles para eles e os kolosh obtêm deles muitas armas de fogo. Às vezes fico pensando que os kolosh estão mais bem armados do que nós. Pelo menos Rezanov concorda com Baranov: devemos negociar com os ingleses e os homens de Boston por suprimentos. Não podemos depender dos navios da companhia que vêm de Okhotsk. Veja nossa situação agora. Nossa ração de trigo baixou para meio quilo mensal por homem e o inverno está chegando. - Quando subiram o último degrau, Zachar acenou com a cabeça uma confirmação de sua angustiante situação.
- O Elizaveta deve voltar do Kodiak em breve com alguns suprimentos.
Nikolai Petrovich Rezanov era um homem alto e elegante, de 42 anos. De rosto barbeado e vestido com um de seus menos enfeitados uniformes, ele tinha uma postura ereta, chamando naturalmente a atenção dos homens que se amontoavam em sua pequena cabine. Seus finos lábios estavam apertados enquanto os olhos azuis os examinavam, parecendo alguém muito preocupado.
Mikhail olhou para Baranov, que estava sem peruca, sua calva rodeada de cabelos cor de palha. Todos aqueles anos contemplando horizontes longínquos tinham gravado linhas no rosto do velho russo, dando-lhe uma expressão de perpétua zombaria. Mas a expressão de seus olhos era de tristeza e resignação. Mikhail imaginou que as notícias não seriam boas. A qualquer minuto ele esperava ver Baranov levantar as mãos e exclamar sua usual conclusão: "Está nas mãos de Deus."
Rezanov falou, sem fazer rodeios com as palavras que empregava.
Recebemos notícias, ainda não confirmadas, de que o Elizaveta perdeu-se no mar em uma tempestade. Não haverá suprimentos no Kodiak. Além disso, a flotilha nativa de caçadores afundou num temporal com a perda de duzentos homens, e a maior presa de peles da estação. por toda a volta de Mikhail, mãos se levantaram em gestos resignados porém havia mais. - Uma mensagem foi também recebida, contendo uma informação não confirmada de que o estabelecimento de presos de Yakutat fora destruído pelos kolosh. - O posto avançado de agricultura e estaleiros instalado na terra firme do Alasca tinha sido uma experiência que seguia o modelo de Botany Bay, na Austrália, colonizada pelos ingleses. Os kolosh atacaram também outros redutos para o norte mas foram rechaçados. No entanto, creio que podemos contar com um aumento de hostilidades em nossa área.
Alguns murmuravam pesarosos pela morte de homens que conheciam, mas Rezanov desencorajou qualquer discussão das notícias. Fez um sinal a seu criado para trazer as cartas e os livros para a mesa e depois abriu-os, para que todos pudessem estudá-los. Eram os registros do explorador George Vancouver.
Enquanto ouvia Rezanov expor seus planos para a futura expansão dos territórios da Companhia da América Russa, Mikhail tinha a nítida sensação de que os dois desastres recentes só tornaram o alto camareiro mais disposto a prosseguir com seus planos. Rezanov recomendava energicamente que a companhia abandonasse sua prática de depender somente do comércio de peles e se engajasse nos negócios do comércio em geral. A paixão de Mikhail por lugares distantes foi despertada pela lista de exóticos portos estrangeiros quando ele falava acerca de estabelecer cônsules em nome da companhia na Birmânia e nas Filipinas, construindo mais estabelecimentos primeiro ao longo do rio Colúmbia e depois na Califórnia e no Havaí. Em breve, disse ele, a paz de Amiens seria rompida e a Europa iria à guerra contra o beligerante corso Napoleão. Isto deixaria a companhia livre para solidificar suas possessões no Alasca e expandirse para novos territórios.
- Olhem para o mapa - disse e espetou o dedo na carta sobre a mesa. - Quem controlar o Alasca pode comandar o Pacífico.
Uma gota d'água caiu no rosto de Mikhail e quebrou o encantamento
criado pelos grandiosos sonhos de um império de Rezanov. A realidade em
ka eram goteiras nos telhados, a ameaça dos kolosh e parcos suprimentos.
A chegada da escuna ianque Juno forneceu uma solução temporária para o Problema das provisões. Rezanov comprou o navio e sua carga, que consistia de grande quantidade de artigos de comércio, incluindo peças
de estanho, cerâmica, utensílios, talheres, musselina e uma variedade de comPlementos. Mais importante que isso, o navio tinha quase dezenove barricas de porco salgado, duas toneladas de arroz, onze barricas de farinha de trigo e outros alimentos, o bastante Para durar várias semanas.
Por algum tempo tiveram bastante o que comer e havia música no estabelecimento, fornecida por um dueto de clarinete e violino, a qual era executada por um marinheiro ianque que se alistara com a companhia e pelo próprio alto camareiro. No entanto, uma combinação de chuvas excepcionalmente pesadas e de espessos nevoeiros durante os últimos meses do ano, e a constante ameaça dos kotosh, impediram os russos de suplementarem sua disponibilidade de alimentos com caça fresca e peixe. Era proibido deixar o forte e eles foram forçados a começar a comer o suprimento de comida dos aleútes, de óleo e peixe seco.
A Juno foi despachada para o Kodiak a fim de obter quaisquer provisões que a aldeia russa pudesse dispor, mas tudo o que trouxe de volta foi mais óleo de baleia e peixe seco. No mês de fevereiro o escorbuto grassava em Sitka. Dos quase duzentos russos no reduto, oito morreram e sessenta estavam completamente inutilizados pela debilitante doença.
A situação era calamitosa. Uma viagem por mar para o Havaí no inverno estava fora de cogitação; cruzar o Pacífico assolado por tempestades era por demais demorado e perigoso. Em outra reunião, Rezanov propôs levar a escuna descendo a costa e explorando a boca do rio Colúmbia para um futuro local de estabelecimento, obtendo caça fresca e peixe, e negociando por alimentos no pequeno presídio espanhol de Los Farallones, no porto de San Francisco. Embora os portos espanhóis ao longo da costa da Califórnia fossem fechados a navios estrangeiros, ele tencionava conseguir entrada apresentando suas credenciais de embaixador russo para o mundo. Uma tripulação mínima de vinte homens era necessária para guarnecer a Juno, mas a condição de fraqueza dos homens do estabelecimento tornava obrigatório que ele levasse uma guarnição completa de trinta homens para o caso de doença.
Mikhail imediatamente apresentou-se como voluntário para ir na viagem, mas Baranov bateu com o punho na mesa em protesto.
- Você não pode enfraquecer esta guarnição tirando todos os homens capazes! Os kolosh são um constante perigo. Devemos ter condições de defesa caso eles nos ataquem!
Após uma considerável discussão, chegou-se a um acordo: Rezanov concordou que parte de sua tripulação seria composta de homens que mostrassem os primeiros sinais do escorbuto. A petição de Mikhail para incorporar-se à guarnição foi recusada. Seu desapontamento logo transformou-se em ressentimento, quando Zachar foi escolhido para ir.
- Por que levam meu irmão e não eu? - protestou. - Ele é mais velho e tem família. Sou um navegador experimentado; posso ser mais útil para vocês do que ele, que é um caçador.
- Há outros homens com famílias que irão. E teremos necessidade de um caçador experimentado antes de chegarmos ao porto espanhol - assegurou-lhe Rezanov severamente, deixando claro que não toleraria mais questões sobre sua decisão.
Tremendo de raiva, Mikhail ficou silencioso e ouviu pouco do restante dos entendimentos. Por dentro fervia de raiva. Ele era o navegador, aquele que ansiava por conhecer novos lugares; no entanto sempre parecia que era seu irmão mais velho quem se aventurava primeiro em terrritórios desconhecidos, seu irmão que não tinha vontade de ir. Tudo
que ele já percorrera foram as velhas rotas: de Sitka ao Kodiak, às Pribilofs, a Unalaska ou aos redutos em terra firme e de volta. Agora ele estava enterrado aqui, servindo seu tempo de alistamento na companhia como prático do porto.
Quando a reunião terminou, Mikahil se retirou sem falar com o irmão. Seu ressentimento e desapontamento eram por demais agudos; no momento estava tão zangado que até culpava Zachar por ter sido escolhido em seu lugar.
O tempo era crítico e nenhum foi desperdiçado no preparo da escuna para a viagem. Pouca quantidade de comida podia ser fornecida pelo magro suprimento do estabelecimento se aqueles que permaneciam em Sitka quisessem sobreviver até que a Juno voltasse. O porão do navio, no entanto, foi abarrotado com mercadorias de troca: roupas, belas fazendas inglesas, artefatos de couro e sapatos, ferramentas desde machados até verrumas, mais fardos de panos dourados, mosquetões adornados e outras coisas originalmente destinadas a presentes para o Micado no Japão.
Mikhail evitava a área do porto enquanto prosseguiam os preparativos, tomando parte neles de má vontade, somente quando não tinha escolha. O amargo conhecimento que amanhã a Juno levantaria ferro e se lançaria ao mar sem ele roía-o por dentro quando entrou em seu alojamento particular no quartel da companhia, onde tinha permanecido encerrado a maior parte do tempo. Caminhou direto para o beliche e puxou uma garrafa de kvass debaixo dele, uma das duas que havia guardado secretamente como proteção contra o escorbuto. Mas não foi por motivos medicinais que ele encheu uma caneca de estanho até a borda com a bebida fermentada em casa e depois bebeu a metade. Levou tanto a caneca quanto a garrafa para a mesa e sentou-se na cadeira toscamente acabada. Em Sitka só tinham machados e talhadeiras para lavrar os troncos e transformá-los em tábuas.
Ficou olhando desanimado para sua caneca, cansado de tolerar as nuvens e o frio e lembrando-se das histórias que ouvira acerca da Califórnia e de seu sol brilhante, que ele nunca veria. Temia o dia em que Zachar voltasse e ele tivesse que escutar todas suas histórias acerca do lugar que deveria ter visitado. Engoliu o resto da bebida e encheu de novo a caneca.
- Mikhail!
Teve um sobressalto ao ouvir o som da voz do irmão, só agora compreendendo que o ruído que ouvira antes fora o trinco da porta sendo aberta.
- Sim, o que é? - perguntou tenso, sem voltar-se.
- Preciso falar com você.
- Sem dúvida veio para se despedir. - Ele esperava esta visita e para encobrir sua irritação, sabendo-a infantil. Mikhail levantou-se e voltou-se para encarar o irmão, reunindo todo o seu orgulho de forma que Zachar não percebesse o quanto ele o invejava. Corvo e o filho deles, Lobo, estavam ao lado de Zachar. Aqueles perturbadores olhos negros encaravam-no com audácia e Mikhail logo sentiu-se desajeitado.
Desde que ela lançara aquela provocação inicial, ele fizera o possível para ficar por longe dela e quase sempre conseguira. No entanto, como todas as mulheres, ela possuía uma maneira de tornar claro, sempre que o via, que receberia bem as atenções dele. Muitas vezes ele cismava se seu irmão o notava.
- É verdade; eu não queria partir sem lhe dizer adeus. Mas há algo mais que gostaria que fizesse por mim enquanto estou ausente. - Zachar pousou a mão em cima da cabeça do menino. Mikhail ficou tenso. - Não gosto da ideia de Lobo e Corvo ficarem sozinhos em nossa cabana.
- O que quer dizer? - Ele dirigiu o olhar para Corvo, pensando se ela teria posto aquela ideia na cabeça de Zachar.
- Eu gostaria que ficasse lá e cuidasse deles enquanto estou fora.
- Não posso. - Mikhail ficou chocado com a energia de seu protesto.
- Você é meu irmão. Não tenho ninguém mais a quem pedir. Zachar parecia ferido e confuso pela recusa dele. - Sei que tentou tomar meu lugar, de forma que eu não tivesse que deixá-los.
- Acho que não sabe o que está pedindo - declarou Mikhail, sério.
O franzido da testa de Zachar acentuou-se e ele explicou:
- Estou pedindo que eles recebam sua cota de alimentos, que tenham lenha para seu fogo, que tenham alguém para protegê-los se os kolosh atacarem; isto é demais para pedir por minha família?
- Não. - Mikhail não podia dizer-lhe o que realmente pensava.
- Então ficará com eles?
Parecia uma ironia extrema. Zachar estava fazendo a viagem pela qual Mikhail ansiava e deixava-o para tomar conta da mulher, que ele, embora relutantemente, desejava.
- Sim, ficarei com eles - concordou Mikhail.
A Juno saiu com a maré no dia seguinte e Mikhail levou suas coisas para a cabana de Zachar. com o número de homens saudáveis reduzido, ele arranjou para dar guarda no primeiro turno da noite. Quando voltava para a cabana no fim do turno, Corvo já estava no beliche dormindo. Ele fez para si um leito no chão em frente à lareira, mas dormia pouco, passando a maior parte da noite observando as línguas de fogo que lambiam as achas de lenha vermelhas e esbranquiçadas, escutando os sons que Corvo fazia quando se virava na cama, dormindo.
As horas do dia, quando não estava trabalhando em algum serviço no estabelecimento, ele passava com Lobo. Duas vezes durante a semana, matou duas águias que tolamente planaram sobre a guarnição. Sua carne forneceu uma bem recebida mudança em sua monótona dieta de peixe seco e gordura.
Corvo colocou um prato na mesa em frente a ele. Nem o aspecto nem o cheiro do peixe e do óleo despertavam-lhe mais o apetite, mas Mikhail sabia que tinha de comê-lo. Não havia mais nada e suas calças já estavam começando a ficar frouxas na cintura. Ele pegou a caneca de kvass e colocou-a na mesa, para ajudá-lo a engolir a comida, mas não adiantou muito. Em vez disso, ficou fascinado pela voracidade com que Lobo devorava sua comida.
- Você come como um lobo, fazendo jus a seu nome - disse ele, sorrindo, e depois puxou seu prato em direção ao menino. - Pode ficar também com o resto do meu.
- Você não está com fome esta noite - disse Corvo.
Ele olhou para ela, algo que geralmente evitava. A luz amarela da lâmpada a óleo brincava no rosto dela, sombreando os olhos profundos e acentuando as salientes maçãs de seu rosto. Notou a nova esbeltez dela, que denotava perda de peso. A única coisa que não lhe parecia mais magra eram os lábios, que permaneciam luxuriantemente cheios.
Meio zangado, Mikhail pegou a garrafa de kvass e colocou mais bebida em sua caneca. Naquele momento, Lobo atacava o prato que Mikhail lhe dera.
- Acho que não tenho apetite para comer isso - disse Mikhail.
- Deseja alguma outra coisa?
O tom da voz, combinado com o modo como fez a pergunta, fizeram-no enrijecer; ambos significavam muitas coisas para ele, todas excitantes. Mikhail não estava certo se fora intencional ou não. Ela jamais fizera um movimento suspeito em direção a ele desde que ali estava. Mas também não tivera a oportunidade.
- Não - respondeu ele e levantou-se, levando a bebida com ele até o fogão.
- Você tem que dar guarda esta noite?
- Não. - Uma rotação dos serviços colocara-o no turno do dia.
- Mikhail deve estar cansado de tantas noites. Você deveria dormir no beliche.
- Não.
- Creio que esta é a única palavra que você sabe. - Seu riso leve zombava dele. Mikhail voltou-se e viu que não podia enfrentar seu olhar provocador. - Penso que Mikhail tem medo de dizer qualquer outra coisa.
- Gostaria que meu irmão estivesse aqui, para que visse quem realmente você é. - Ele tremia com a violência de sua emoção, odiando-a e desejando-a com igual fúria.
- Mas Zachar não está.
- Eu deveria ter dito a ele por que não queria ficar aqui. É porque você queria que acontecesse.
- Não!
Corvo respondeu à vigorosa negativa com um encolher de ombros. Virou-se de volta à mesa a fim de acabar sua refeição. Um pedaço de madeira que queimava no forno crepitou, seu estalido soando alto no silêncio. Ele ficou olhando para as brasas vermelhas, atormentado pela acusação dela e frustrado pela suspeita de que fosse verdadeira. Talvez ele se houvesse mantido em silêncio porque desejava que alguma coisa acontecesse. Bebeu para matar as dúvidas que ela levantara.
A uma certa hora da noite Mikhail sonhou com ela. Corvo estava diante dele, a luz amarelada se esbatendo em seu corpo nu, revelando os seios empinados, o estômago chato e os pêlos púbicos, encaracolados e negros. Aquela visão dourada caiu no chão ao seu lado e fundiu-se contra seu corpo, engolfando-o numa onda de calor. Ele ficou olhando-a no rosto, os negros olhos fechados, a cabeça agitando-se de um lado para o outro, os grossos lábios abertos e emitindo fracos gemidos. Os quadris moviam-se com o que parecia uma energia inesgotável, enterrando seu membro na cavidade úmida, depois retirando-o para de novo enfiar-se, enquanto pairava sobre ela. Tudo parecia girar junto com ele numa espiral que subia cada vez mais até uma brilhante e gloriosa explosão.
Quando Mikhail acordou na manhã seguinte, sua cabeça latejava, como era de se esperar. Virou-se e sentiu um corpo ao lado. Corvo estava aconchegada debaixo do cobertor. O sonho não fora de modo algum um sonho.
- Não...! - gritou ele.
Ela abriu os olhos devagar e olhou-o, flexionando ligeiramente os ombros e espreguiçando-se. Seus lábios cheios curvaram-se num sorriso de satisfação.
- É o que você queria - murmurou.
Ele sabia que era verdade. E também sabia que devia ir embora, sair por aquela porta e não voltar mais. Se ficasse, apenas insistiria no pecado de traição que cometera copulando com a mulher de seu irmão. Mas... e se o irmão jamais voltasse da viagem? Mesmo que voltasse, que tal se os suprimentos se houvessem esgotado naquele intervalo e todo mundo morresse? E se os kolosh atacassem e matassem a todos? Por que deveria privar-se da companhia que Corvo, tão prazerosamente, queria dar-lhe?
E Mikhail ficou.
Nos meses seguintes, outras covas foram abertas no estabelecimento, quando o escorbuto produziu novas vítimas e enfraqueceu muita gente. Â colheita da morte teria sido maior se não fosse um grande cardume de arenques que entrou no estreito, dando novas energias a todos.
Em junho, o canhão do reduto trovejou em saudação à Juno que, de retorno, era rebocada para o porto de Sitka. Seus porões estavam carregados com lOOfanegas* de trigo, quase 120 de aveia, 14 de ervilhas e feijão, bem como farinha, carne salgada, sebo e sal.
Quando Zachar saltou do escaler da escuna, seu jovem filho correu para recebê-lo com suas pernas fininhas. Comparado com o corpo de
*Medida de volume igual a 55,5 litros. (N. do T.)
Lobo, que era só ossos, Zachar sentia-se exageradamente gordo. Lágrimas vieram-lhe aos olhos quando viu o rosto do menino, esquálido por falta de comida. Arriando o saco que trazia ao ombro, ele agachou-se e abraçou com força o menino e depois olhou por sobre ele para sua mulher.
Corvo não fez nenhum movimento para aproximar-se enquanto permanecia ao lado de Mikhail. O braço do irmão estava passado pelo ombro dela, silenciosamente denotando sua posse. Zachar compreendeu. Em seu coração ele sabia o que havia ocorrido entre o irmão e Corvo durante sua ausência. Sentiu um aperto na garganta; inclinou a cabeça e piscou rapidamente para limpar os olhos das lágrimas que os queimavam.
Para disfarçar, abriu o saco e tirou um presente que trouxera para Lobo. Os californianos tinham-se mostrado prontos a trocar seus alimentos e mercadorias artesanais por qualquer coisa feita no estrangeiro. O saco estava cheio de coisas que ele adquirira. Após dar a Lobo seu presente, Zachar puxou um xale de renda magnificamente bordado e um belo pente de tartaruga para cabelo, presentes para Corvo.
Com o canto dos olhos ele a viu afastar-se de Mikhail e chegar-se para o seu lado. com tristeza, Zachar compreendeu que Corvo não mudara: sua lealdade e companhia ainda podiam ser compradas. Quando ela se movimentou, Mikhail afastou-se vagarosamente. Em seu coração Zachar não conseguia zangar-se: ele sentia dor demais - por ele mesmo e por seu irmão.
Sitka Fim da Primavera de 1808
Os canos dos canhões em cima do penhasco fortificado vomitavam fogo; sua saudação ao navio americano que entrava no porto russo trovejava por sobre a cidade bem desenvolvida que ficava lá embaixo. Mas Zachar não estava interessado no recém-chegado. Nos últimos dois anos um crescente número de navios estrangeiros tinha chegado a Sitka, tornando-o o segundo porto de escala no Pacífico, perdendo apenas para as ilhas Sandwich.
Parando por um momento na calçada de tábuas que ladeava a rua dos dois lados, Zachar apertou os olhos para distinguir as figuras indefinidas em volta dele. Os olhos já lhe estavam falhando, danificados após tantos anos de encarar o brilho do sol na água e na neve. Uma coisa aterradora para um caçador. Nenhuma das sombras parecia-se com Corvo e ele apressou-se, passando pela padaria com seus aromas de leveduras. Tocou com a mão o colorido xale de seda em seu bolso, inconscientemente se reassegurando de sua presença. Enquanto desse a Corvo coisas bonitas, sabia que ela ficaria com ele; se um dia parasse de fazê-lo, ela iria embora.
Ao aproximar-se da fileira de cabanas alegradas pelas flores da primavera que cresciam em torno delas, duas figuras emergiram da segunda construção, a cabana que pertencia a seu irmão. Ambas as mulheres usavam folgadas sarafans por cima de suas blusas de musselina de mangas compridas. Apenas um punhado de mulheres em Novo Arcanjo vestiam-se à moda russa, além da esposa nativa de Baranov, Anna Grigoryevna, que recentemente recebera o título nobiliárquico de princesa de Kenai por um ucasse imperial. O nascimento da filha mestiça de Baranov, Irina, junto com o de seu irmão, foi legitimado pelo mesmo ucasse.
Zachar hesitou, olhando em volta das outras cabanas sem avistar Corvo, depois caminhou relutante até sua mãe, Tasha, e sua filha, Larissa. Elas haviam chegado há um mês do Kodiak; fora ideia de Mikhail trazê-las para viver ali. Sua mãe estava ficando muito velha para fazer o serviço pesado na casa dos Banner. Zachar foi forçado a concordar que era tempo dela levar uma vida menos árdua, mas havia observado a Mikhail prontamente que sua pequena cabana de caçador não podia oferecer nem o conforto nem a privacidade que as duas mereciam. Ele evitara cuidadosamente mencionar que seria estranho ter Corvo e Lobo vivendo também ali. Em vez disso, ele sugerira a Mikhail que Larissa e sua mãe vivessem com ele, já que, como navegador, sua posição mais elevada significava uma cabana maior e mais bem mobiliada. Mikhail concordara que sua habitação era mais conveniente e que sua posição daria a elas melhor situação na comunidade do que a de um mero caçador. Mas ambos sabiam que Corvo era a razão por trás dos arranjos de alojamento.
- Onde vão vocês nesta bela manhã? - Zachar forçou um tom de sinceridade em seu cumprimento.
- Estamos indo para o porto ver o navio que chegou - disse Larissa, radiante de excitação.
Zachar fixou os olhos naquela estranha que era sua filha. Aos dezoito anos ela estava em plena floração como mulher. De belas feições, com olhos negros de longas pestanas e cabelo preto e liso, ela despertava muita atenção entre os homens de Novo Arcanjo, acostumados como estavam a mulheres menos refinadas - tanto em modos como em aparência - kolosh e aleútes. Mas poucos russos lhe dirigiam galanteios, seu confiante ar de virginal inocência fazendo-os hesitar.
Tal hesitação não era inteiramente compartilhada pelos quase vinte ianques que trabalhavam para a companhia no estaleiro em Sitka. Embora ela raramente se aventurasse na rua sem a avó, os americanos tiravam vantagem de qualquer oportunidade para falar com ela, deliciando-se com sua pronúncia inglesa e seu belo sorriso.
Você sabe de que país é o navio? É um navio inglês?
- Ianque, acho - replicou Zachar.
- Sei que está acostumado à chegada de navios aqui, papai - disse Larissa -, mas acho isso tudo muito divertido.
Sei que acha. - A atenção dele começou a desviar-se para as outras cabanas, com Corvo ainda dominante em sua mente, quando um acesso de tosse sacudiu o corpo fraco de sua mãe.
Ele não gostava do som daquela tosse nem das manchas de sangue no catarro que ela rapidamente limpou. Ela não tinha uma boa aparência quando chegara, mas havia atribuído sua fraqueza ao enjoo sofrido durante a viagem ao Kodiak. Como Sitka ainda não dispunha de um médico, Zachar não podia contradizer sua alegação. Um mês de boa comida e repouso haviam trazido alguma cor às suas faces, mas ela continuava muito magra.
- Como está passando? - Sentia-se culpado de não ter despendido mais tempo com ela desde que viera a Sitka, especialmente à luz de sua recente decisão; mas ele não se sentia mais à vontade na cabana do irmão, sabendo o que sabia acerca da ligação passada de Mikhail com Corvo.
- Muito melhor. O sol está gostoso hoje, não? - Mas o brilho do sol não emprestava nenhuma vida a seu fosco e grosseiro cabelo grisalho. Ela não era mais ereta e alta; seus ombros estavam encurvados de tanto tossir; a energia desaparecera de seu rosto, substituída por uma aura de fragilidade.
- Você está ocupado, papai? Seria maravilhoso se pudesse andar até o porto conosco - sugeriu Larissa, esperançosa.
Zachar hesitou e lançou um olhar ansioso pela fileira de cabanas.
- Ela não está por aí. - disse Tasha. Ele ficou sem jeito pelo modo como ela instintivamente soubera o que se passava em sua cabeça, e especulou o que mais sabia ou adivinhava acerca de suas relações com Corvo.
- Eu a vi passar por aqui ainda há pouco.
Ela inclinou a cabeça para indicar o caminho tomado por Corvo em direção aos edifícios principais que marginavam o porto. Ele deveria têla visto, a não ser que ela se escondesse para evitá-lo, uma possibilidade ainda mais perturbadora.
Em vez de comentar sobre a observação dela, Zachar voltou-se para elas e disse:
- Vamos?
Andaram em direção ao porto. Zachar continuava a forçar a vista para localizar Corvo, mas não a viu em nenhuma das ruas ou calçadas. Quando passaram pelo estaleiro, houve interrupções no rítmico guincho das serras de fita que desdobravam os troncos em tábuas e nas batidas dos malhos ferindo as bigornas. Mais de um homem interrompeu sua tarefa a fim de olhar encantado para Larissa.
Quando chegaram à beira-mar, Zachar examinou antes a pequena multidão que se deslocara para o porto, depois olhou sem grande interesse para o brigue desarvorado na baía, com o mastro de vante quebrado. Saber que seu irmão Mikhail fora designado para pilotar os navios que chegavam até o porto pouco servia de consolo. Significava que Corvo podia estar com outro qualquer...
- O nome do navio é Sea Gypsy, babushka - disse Larissa à avó. O nome do navio trouxe algo de volta à memória de Zachar, mas ele não tentou recordar-se do motivo, descartando-o como apenas outro navio que previamente visitara Sitka. Ele estava por demais preocupado com seus problemas pessoais. Distraído, ficou olhando para o brigue, sua fraca visão tornando indistintas suas linhas. Em breve estaria viajando num veleiro não muito diferente daquele; sabia que não tinha outra escolha.
- O navio lhe interessa - observou Tasha.
- Não, eu... - Zachar interrompeu sua pronta negativa, decidindo que não mais podia ocultar seus planos da mãe. De qualquer forma, em breve ela tomaria conhecimento deles. - Fui designado para um outro posto; partirei dentro de um mês.
Ela afastou os olhos e piscou com as lágrimas que brotavam.
- Eu tinha a esperança de ter meus filhos perto de mim quando ficasse velha. Mas está nas mãos de Deus... - declarou ela, aceitando a filosofia russa. - Para onde você irá?
Ele temia contar-lhe.
- Meus olhos estão me faltando, mas tudo que sei é caçar e conhecer peles. - Após ter sido um caçador por toda a vida, a perspectiva de ser reduzido a trabalhos braçais, tais como trabalhar na confecção de cabos ou como calafate, era uma ferida em seu orgulho. Pior que isso, não ganharia bastante para manter Corvo contente. - Há um lugar onde um caçador não precisa de olhos penetrantes. - Ele lançou um olhar para Larissa, mas ela estava absorta no veleiro ancorado na baía protegida. Quando olhou para a mãe, o começo de uma desilusão já começara a se formar em sua expressão, indicando que ela já adivinhara para onde ele estava indo.
- Não, Zachar... não!
- Estou indo para as Pribilofs. - Ele se decidira. A companhia declarara uma moratória de dois anos na matança de focas, dando-lhes uma oportunidade de procriar e aumentar seu número.
Tasha respirou profundamente, provocando outro acesso de tosse. Quando terminou, mal tinha forças para manter-se de pé. Zachar levoua para uma grande pedra na praia, onde ela poderia sentar-se e descansar.
- Não vá para lá - disse ela, segurando-lhe a mão.
- Devo ir - respondeu ele sem poder olhar para seus olhos assustados. Ele não desejava lembrar-se do tio Empertigado e sua loucura.
Enquanto os homens remavam o escaler em direção à praia, Caleb Stone estudava o formidável bastião sobre o penhasco. Seus canhões comandavam o porto e a floresta e protegiam um edifício de dois andares que era coroado pela torre do farol.
Vocês construíram um verdadeiro kremlin no Pacífico - observou Caleb para o piloto que conduzira seu navio até o porto. Embora lhe tivessem dito que os russos haviam reconstruído seu estabelecimento, nada o preparara para aquilo.
Agora é o quartel-general da companhia - replicou Mikhail Tarakanov em seu inglês vacilante.
Numa rápida olhada, Caleb notou a bandeira azul e branca flutuando orgulhosa em cima do bastião, depois o estaleiro e o grande casco de um navio de três mastros quase completo. Ele tinha esperança de obter alguma ajuda para reparar os danos sofridos por seu navio durante uma tempestade. Era óbvio que Sitka possuía as facilidades para isso.
- Tinham-me dito que Baranov se aposentara - disse ele, notando o esguio velho com sua peruca preta, esperando na praia para dar boasvindas a Caleb.
- O alto-camareiro Rezanov morreu quando atravessava a Sibéria durante o inverno. Os diretores pediram a Baranov para ficar. Há muita confusão em São Petersburgo, devido à morte de Rezanov e à guerra na Europa.
- Entendo.
Quando o escaler encalhou na praia, Caleb saltou para saudar Baranov. O governador russo tentou algumas palavras de boas-vindas em seu inglês atrapalhado e depois disso confiou no intérprete, um ianque a serviço da companhia, de mais ou menos 25 anos, chamado Abram Jones. Pelo teor educado da voz de Jones, Caleb suspeitou que o homem se sentiria mais confortável numa casaca apertada, chapéu alto de seda e luvas de pelica de um estudante de Cambridge. Ele viajara uma vez num navio que tinha um supervisor da carga de Cambridge; desde então jamais apreciara aquela espécie de universitários. Parecia que o antigo intérprete de Baranov, o bengalês Richard, se demitira há dois anos, com a permissão de Baranov para voltar a sua pátria.
Após aceitar o convite de Baranov para ir a seu escritório, Caleb voltou-se a fim de se despedir do prático, pretendendo que aquilo não passasse de um gesto convencional. Mas então viu uma jovem, pouco mais que uma menina, de pé ao lado de Tarakanov. Parecia tão amável e inocente, e possuía tamanha gentileza, que ficava deslocada naquele país selvagem. Embora ela retribuísse seu olhar, não o fazia com petulância; nem aquelas pestanas incrivelmente longas baixavam-se com um ar de recatado flerte.
Com dificuldade, Caleb conseguiu afastar seu olhar dela e dirigi-lo interrogativamente ao prático.
- Gostaria de agradecer por seus serviços esta manhã, mas acho que me sinto mais inclinado a pedir-lhe uma apresentação.
- Minha sobrinha, Larissa Tarakanov - disse Mikhail, após momentânea hesitação.
- Capitão Caleb Stone, do Sea Gypsy, procedente de Salem. - Ele Pegou a mãozinha da jovem e inclinou-se sobre ela, levando-a a seus lábios e apertando-a contra eles por um longo momento, enquanto ela fazia uma graciosa mesura.
- É um prazer conhecê-lo, capitão. - Embora evidentemente se tratasse de uma resposta formal, algo que ela havia aprendido como rotina, seu inglês de um sotaque delicioso mais do que compensou as palavras artificiais.
- O prazer é todo meu, asseguro-lhe - respondeu Caleb, empertigando-se, desejando que pudesse mandar Baranov para o inferno. Mas o dever vinha em primeiro lugar. - Talvez nos encontremos de novo.
Enquanto acompanhava Baranov até os degraus que levavam à fortaleza construída no tipo do penhasco, seus pensamentos permaneciam com a jovem Larissa, tão diferente das mulheres índias e das mestiças que usualmente juntavam-se aos caçadores russos. Distraído por seus pensamentos, não notou a mulher kolosh de cabelos de corvo, que o encarou intensamente quando passou por ela.
Se foi uma surpresa encontrar em Sitka uma mulher bonita e bem-educada como Larissa, maior surpresa para Caleb ainda foi a residência do governador, situada a milhares de quilómetros da civilização. Construído de enormes peças de madeira lavrada, o edifício de dois andares era tanto uma residência, com acomodações na parte superior, quanto um centro de administração para a Companhia da América Russa, com um escritório que dava vista para o estreito de Sitka. Além das cozinhas e das salas de recepção, havia um enorme salão de banquetes completo, com uma imponente lareira de pedra e um estrado para músicos num dos cantos.
A coisa mais inesperada de tudo era uma biblioteca. Além de uma coleção de boas pinturas, ela continha 1.200 volumes. Os livros, alguns ricamente encadernados, cobriam assuntos tais como teologia, história, astronomia, navegação, matemática e metalurgia, bem como alguns trabalhos literários. A metade dos livros era em russo; o restante em francês, alemão, latim, espanhol e italiano. Uma interessante variedade de modelos de navios partilhava o espaço das prateleiras com os muitos livros; cartas colocadas em molduras estavam penduradas nas paredes junto com as pinturas. A biblioteca também ostentava um piano, trazido de um navio contornando o cabo Horn.
Caleb estava muito impressionado com o progresso da Companhia da América Russa em tão curto período de tempo. Embora tivesse aportado em Sitka para reparos, ele pediu a Baranov permissão para comerciar na área. Na realidade, Baranov não poderia impedi-lo de negociar, e Caleb o sabia, mas se o fizesse sem licença perderia quaisquer favores especiais do russo, tais como empreitar seus caçadores aleútes numa base de participação, para caçar a lontra-do-mar ao largo da costa da Califórnia, um empreendimento altamente lucrativo.
Dois dias se passaram antes que Caleb pudesse completar os termos para os reparos em seu navio, negociasse um preço justo para sua carga que Baranov queria comprar e obtivesse permissão para comerciar no território russo. Durante esse tempo, Baranov o manteve constantemente entretido, apresentando-o ao duvidoso prazer de um banho de vapor russo e constantemente saturando-o com bebida.
Quando afinal seus negócios foram concluídos, Caleb saiu da área do porto e começou a passear pela parte principal da cidade que se estendia desde a base do penhasco. Baranov dissera-lhe que a população combinada de russos, ianques, aleútes e mestiços era de cerca de mil pessoas. Caleb acreditou, depois de passar pelo comissariado, padaria, depósitos, quartéis e cozinhas. Uma alta paliçada cercava a cidade, interrompida apenas por imponentes portões. A disciplina militar era evidente em toda a parte; a guarda era mudada regularmente e todos faziam caprichadas continências.
Quando atingiu a zona residencial, notou o arranjo regular de canteiros de hortaliças, as plantinhas novas brotando nas longas horas do dia em fins da primavera. Diante de quase todas as cabanas desabrochavam flores, suas vivas cores destacando-se do verde luxuriante da terra.
Seus passos tornaram-se mais vagarosos quando viu a moça trabalhando no jardim. Ele sabia que mais cedo ou mais tarde a encontraria. Por algum tempo Caleb apenas observou-a; ela usava um vestido russo semelhante àquele que trajava quando a encontrou pela primeira vez. Agora, no entanto, as compridas mangas estavam enroladas algumas voltas e o volumoso tecido da saia solta era preso com um cinto, dando a ele uma ideia mais clara de seu corpo.
Inclinando-se, ele abaixou-se, cortou a haste de uma grande margarida amarela e depois dirigiu-se pelo terreno cheio de flores até o jardim, indiferente às plantas que pisoteava em sua marcha. Ela só o notou quando ele,estava a apenas alguns passos. Depois do primeiro sobressalto de surpresa, ela pareceu contente em vê-lo; com presteza, alisou os lados de sua cabeleira escura, presa na nuca com um coque.
- Está muito bonita, srta. Tarakanov - disse ele. - Só há uma coisa errada.
Ele mostrou a margarida em sua mão quando se aproximou da jovem e enfiou a haste atrás de sua orelha esquerda. De certa forma, ele sabia que ela não se encolheria com o toque de sua mão. Ela parecia tão pura como todas as pudicas donzelas lá de sua terra em Boston; entretanto, constatava que não era do tipo de dar risadinhas ou fingir um desmaio. Quando retirou a mão, ela ergueu a dela para tocar as macias pétalas.
- Acabei de roubar isto para você - disse Caleb, sorrindo. - As moças do Havaí usam flores no cabelo dessa forma. E elas também as tecem em colares.
- Por quê?
- É um costume. Se usam uma flor de seu lado esquerdo, são casadas; se usam do lado direito, significa que não o são. Ou talvez seja ao contrário... Eu sempre me confundo. - Observou quando os lábios dela se curvaram num sorriso e ficou encantado com a forma que assumiram.
- Algum dia eu gostaria de ver esse lugar, Havaí. Outros ianques me disseram que lá sempre é muito quente. É verdade?
- É.
- Deve ser como a Califórnia - opinou ela. - As mulheres do Havaí são tão bonitas como as da Califórnia?
Caleb imaginou se a pergunta seria uma tentativa de extrair-lhe outro cumprimento, mas a curiosidade dela parecia genuína.
- Eu não saberia dizer; nunca encontrei nenhuma mulher da Califórnia. - Os portos espanhóis ao longo da costa sul continuavam fechados a todos os navios estrangeiros. - Quem lhe contou isso?
- Meu pai. Ele viajou no navio do alto camareiro até a vila de San Francisco. Ele me falou acerca da bela senhora da Califórnia que o alto camareiro deveria desposar.
- Ali não são permitidos navios estrangeiros. Como obteve ele permissão para aportar? - perguntou Caleb, franzindo a testa.
O olhar perplexo da moça revelou-lhe que ela não sabia que a entrada naquele porto era proibida; levantando ligeiramente os ombros, ela disse:
- Ele era o alto camareiro.
O título nada significava para ele, embora o russo talvez fosse um homem importante. Por um minuto, Caleb ficou pensando se a Califórnia teria sido aberta ao comércio estrangeiro, oferecendo um outro mercado para seu negócio; mas, aparentemente, a visita dos russos a San Francisco fora uma exceção - a não ser que um tratado exclusivo de comércio tivesse sido fechado. Esses malditos russos são caladões, pensou Caleb, e lembrou-se da forma como Baranov lhe havia extraído informações sobre a costa para o sul, perguntando-lhe sobre a Califórnia e a área de Nova Albion, na embocadura do rio Colúmbia.
- Os navios russos vão muitas vezes para a Califórnia?
- Isto eu não sei - disse ela, sacudindo a cabeça. - Só ouvi falar nesse. Não é como você disse, que os navios não são permitidos ali?
- Sim, é - respondeu Caleb com um sorriso, contente por descobrir que ela não era estúpida.
De repente, ela ficou muito alerta e olhou em direção à cabana. Quando Caleb voltou-se para localizar a causa do sobressalto, ouviu um ruído abafado e irritante vindo de dentro da habitação - um som que vagamente lhe lembrava alguém serrando madeira.
- É a babushka; ela não está bem. - Olhou para ele com ar de quem pede desculpas e depois correu em direção à cabana, a longa e volumosa saia do vestido embaraçando-se em volta das pernas.
O som que ele ouvira era de tosse, compreendeu Caleb. Hesitou um momento e depois seguiu Larissa até a cabana, mais por curiosidade e relutância por ter seu encontro terminado tão abruptamente do que por um desejo de ajudar. A porta ficara aberta e Caleb entrou. Larissa estava sentada numa cama num canto do aposento próximo à lareira, amparando uma velha mulher cujo corpo arquejava com uma tosse irritante.
Com certa curiosidade, ele inspecionou o interior da confortável cabana. As poucas peças que mobiliavam o cómodo pareciam de madeira lavrada; no entanto havia toques na mobília que disfarçavam sua rusticidade. Uma coberta de musselina artisticamente bordada com coloridas flores cobria a mesa sobre a qual havia um samovar meio amassado. Uma outra colcha bordada estava por cima de uma mala de navio, velha e arranhada. Figuras entalhadas de marfim, das mais bonitas que Caleb já vira, ocupavam pequenos nichos no quarto. Uma variedade de cestas de vime, grandes e pequenas, desempenhavam funções de utilidade, com complicados motivos nativos desenhados em brilhantes cores. Seus olhos de mercador notaram que os utensílios e os talheres eram de procedência europeia ou americana. Em resumo, a impressão que recolheu era de um conforto caseiro, uma mistura de coisas primitivas e civilizadas.
Quando a tosse cedeu, Caleb voltou sua atenção para Larissa e a senhora. Notou as manchas vermelhas no trapo que Larissa tomou das mãos magras da velha; escarrar sangue era um sinal de tuberculose. Sabendo que a idosa mulher iria aos poucos se extinguir, ele olhou-a com uma desinteressada espécie de piedade. Larissa começou a arriá-la na enxerga, de forma que ela pudesse descansar.
- Seria melhor se ela pudesse sentar-se um pouco - disse Caleb. Não ligando para o olhar espantado da moça, ele se dirigiu à cama.
Não havia travesseiros, de forma que Caleb reuniu os casacões de pele que estavam amontoados no pé da cama, notando distraído o trabalho de agulha de seus forros. Usou os casacões dobrados para levantar a velha mulher até uma posição meio reclinada. Embora ela fosse uma mulher alta, seu corpo parecia quase sem peso quando ele delicadamente abaixou seus ombros, deitando-a nas almofadas formadas pelas peles. A despeito da exaustão estampada no rosto, seus olhos escuros o examinaram; quando ele se levantou, ela disse algo em russo para Larissa.
- Babushka... vovó agradece-lhe por sua bondade.
- Não há de quê. - Caleb fez uma meia reverência, depois levantou-se e continuou a examinar a tez da velha mulher que parecia um pergaminho. - Há quanto tempo ela está doente?
- A tosse piorou de dois anos para cá. Ela trabalha, apesar de sentir-se cansada. - com a mão indicou uma tigela de frutinhas do mato meio amassadas em cima de uma cadeira de madeira. - Eu faço ela descansar. Em breve ela vai sentir-se melhor. - Caleb duvidava que o simples repouso fosse curar a doença da velha, mas absteve-se de opinar.
Depois de haver trocado mais algumas palavras com a avó em russo, Larissa virou-se para ele e disse:
- A avó está convidando você para tomar chá conosco.
- Eu gostaria muito - disse Caleb, sorrindo.
Enquanto a água fervia no samovar, eles conversaram. Caleb deixou que Larissa falasse à vontade, animando-a com perguntas, quando necessário. Ele gostava de ouvir a cadência musical de sua voz e o encantador sotaque de seu inglês.
Quando o chá estava pronto para servir, ele conseguira saber que a avó dela a criara depois que sua mãe morrera durante um maremoto no Kodiak, que frequentara uma escola no Kodiak dirigida por um padre russo chamado Herman e que a esposa do gerente da companhia no Koaiak havia-lhe ensinado as artes femininas de cozinhar, costurar e cuidar a casa- Aquilo explicava muito do refinamento - o ar de inocência de uma educação de convento e o alto caráter moral que ele percebia na moça.
- E seu pai? Ele está vivo? - Caleb tinha notado o suporte de cachimbos lavrado colocado ao lado da cadeira; no entanto, ela não havia mencionado nenhum outro homem a não ser seu tio - o prático do porto que trouxera seu navio do ancoradouro.
- Sim; ele vive aqui em Sitka, mas é um caçador e passa a maior parte do tempo fora. É por isso que babushka e eu vivemos com tio Mikhail. - Ela ressentia-se por Zachar, obviamente, não desejar que ela vivesse ao seu lado. Sempre tinha sido assim, e por toda a vida ela desejara aproximar-se dele, no entanto vivera mais com o tio do que jamais convivera com o pai.
Quando chegara a Novo Arcanjo, ela esperara que as coisas fossem diferentes, mas nada havia mudado. Desde o princípio ela sentira um afastamento entre seu pai e o tio, desconfiando que seu tio Mikhail desaprovava o fato de seu pai viver em pecado com aquela mulher kolosh. Ela sabia que aquilo estava errado, mas mesmo assim o amava. E se às vezes lhe doía a afeição que ele dedicava a seu filho, Lobo, ela o perdoava. Mas não conhecia Caleb Stone o bastante para confiar-lhe nada disso, de forma que falou de outras coisas, desviando a conversa para outro assunto.
Um aroma de mistura de chá da China invadiu o ambiente, trazendo pensamentos de Boston à memória de Caleb. Apenas por um minuto ele permitiu-se imaginar Larissa bebericando chá no salão de uma casa no Tontine Crescent e pensou na sensação que ela criaria. Mesmo naquelas roupas de camponesa ela transmitia uma beleza e uma dignidade com que poucas das senhoras supostamente aristocráticas que conhecia poderiam competir. com uma esposa como ela para ornamentar a mansão que tencionava um dia construir em Beacon Hill... Caleb riu-se ao perceber que estava pensando em casamento.
- Por que está rindo? - perguntou Larissa, formalizando-se inconscientemente. - Será que usei uma palavra errada?
- Não; eu estava rindo de outra coisa inteiramente diversa. Não tinha nada a ver com o que você disse ou fez.
Ela estudou-o por alguns segundos antes de aceitar sua explicação. A comprida saia fez um ruge-ruge quando ela caminhou para a mesa coberta com uma toalha. A chaleira estava em cima do samovar, mantendo-se quente pelo vapor que subia; quando ela estendeu o braço para segurála, Caleb reparou nos longos raios de sol que entravam pela janela.
- Mais chá? - perguntou ela.
- Não. Acho que me esqueci do tempo. - Caleb levantou-se e moveu-se para depositar a xícara vazia na mesa. Isto o fez aproximar-se dela. - Não pretendia ficar até tão tarde. Creio que posso culpar sua encantadora companhia por isso.
- Também tive muito prazer. - Ela não tentava esconder o desprazer que sentia pela partida dele.
- Posso ter sua permissão para voltar?
- Sim, isto me daria prazer. - Seu rápido sorriso assumiu uma qualidade pensativa que Caleb achou cativante, embora triste.
- Alguma coisa errada? - perguntou.
Fico triste porque só levará uma semana para fazer os reparos em seu navio.
A candura da jovem encantou-o; ela ficara interessada nele o bastante para perguntar acerca do tempo que levariam os reparos a serem feitos em seu navio, porque ele certamente não lhe dissera.
Talvez eu possa arranjar para levar mais tempo... - disse ele
piscando-lhe o olho, ao que ela sorriu.
Ela ficou na porta enquanto Caleb se afastava da cabana. Quando dobrou a esquina da rua para dirigir-se ao porto, observou que ela tirava a flor dos cabelos e aspirava sua doce fragrância. Quando estugou o passo em direção ao porto, seu andar gingado de marinheiro tornou-se um passo orgulhoso.
Larissa esperou até que ele tivesse desaparecido; depois fechou vagarosamente a porta e recostou-se contra ela. Fechando os olhos, levou a margarida amarela ao peito e a manteve ali. O elegante e bem barbeado capitão ianque, Caleb Stone, era o homem mais excitante que já encontrara. Certamente no Kodiak não havia ninguém que se comparasse a ele. Os outros sempre a devoravam com aquele olhar faminto, especialmente alguns dos ianques. Ela não era tão ingénua que ignorasse o significado daqueles olhares. Mas nenhum jamais produzira aquela quente sensação no seu íntimo. E ele havia pedido para voltar... Ela cobriu a boca com a mão, tentando abafar o riso que lhe saía da garganta. Entrou dançando no quarto, apertando os braços com força contra o peito, sentindo que estourava por dentro.
- Ele já se foi?
- Babushka! - De repente, consciente do que fazia, ela parou com sua alegre dança. - Pensava que a senhora estava dormindo. - Rapidamente virou-se para o samovar. - Ainda há chá; quer que lhe sirva uma xícara?
- Sim. - Tasha esperou até que Larissa trouxesse a xícara de chá para o leito e se sentasse ao lado dela. - Não se deixe apaixonar por ele, minha pequena. Em breve ele partirá; todos eles partem...
- Eu sei - disse Larissa, evitando o olhar preocupado de sua avó. Ela não queria perturbá-la, argumentando que sabia que aquilo não iria acontecer a sua neta.
Caleb jantou de novo com Baranov na residência do governador. Foi uma suntuosa festa: ganso selvagem assado, caça, linguado, pão russo, picles, bolos, e a famosa terrina de ponche temperado, colocada no centro da
comprida mesa de banquete... Mas Caleb tinha dificuldade em concentrarse na companhia do velho russo. Contrariando as objeções de Baranov, ele retirou-se cedo e despediu-se do governador da América russa, que havia vestido para a ocasião com um fraque de seda negra, sapatos com fivelas de prata e uma peruca negra de cerimónia que não lhe assentava muito melhor do que a antiga.
Ocorreu-lhe que Larissa provavelmente já fora dormir há várias horas. Ele deu um suspiro e começou a descer os degraus de pedra.
Um contrato como este seria um bom golpe para qualquer comerciante; com ele, Caleb poderia comprar uma frota de navios. Baranov poderia até olhar favoravelmente para um homem que se casara com uma mulher russa.
A ideia agradava a Caleb, ainda mais porque fornecia uma justificativa para a forte atração que já sentia por Larissa. Não era o bastante ter uma esposa bela e excitante; um homem deveria escolher também com sabedoria. Ele assobiava uma canção quando se dirigia para o trecho de praia onde a guarnição postava-se ao lado de seu escaler.
- Homem de Boston - uma voz baixa sussurrou para ele. - Caleb Stone!
Ele parou e perscrutou o nevoeiro em remoinho. Um vulto apareceu - uma mulher tlingit, vestida com uma roupa estranha e desbotada que lhe parecia vagamente familiar.
- O que deseja? - Ele não estava disposto a ser procurado por alguma prostituta nativa.
Em vez de responder, ela aproximou-se dele. Caleb franziu a testa, sabendo que tinha visto antes aqueles olhos muito escuros em algum lugar, mas era incapaz de identificá-la. Um menino de cinco ou seis anos encostava-se bem apertado contra ela, quase cansado demais para ficar de pé.
- Não se lembra de Corvo? - murmurou ela.
O nome finalmente excitou-lhe a memória; sorriu sem graça e esfregou seu braço esquerdo.
- Ainda carrego uma cicatriz de sua faca - disse.
- É isso tudo o que se lembra?
- Não. - Mas ele não tinha o menor desejo de renovar seu antigo relacionamento. - É por isso que desejava me ver?
- Talvez - disse ela, encolhendo os ombros. - Talvez eu pensasse que você desejaria ver seu filho.
- Meu... o quê?
Ela voltou o queixo do garoto para cima, de forma que ele pudesse ver-lhe a cara sonolenta.
- Olhe para os olhos do menino. São como os seus.
- Isso nada prova. Só porque seu bastardo tem olhos azuis não quer dizer que sou seu pai - zombou Caleb.
- Talvez aquela mulher Larissa acredite que é. Eu o vi hoje com ela, pondo-lhe flores no cabelo. Seu filho está crescendo; ele precisa de comida, de roupas. Caleb tem muitas coisas em seu navio para sustentar seu filho por muito tempo.
- Está tentando me chantagear? - Ele deu um passo ameaçador em direção a ela.
Um súbito grito em russo distraiu Caleb. Um homem emergiu do nevoeiro; movendo-se rapidamente, plantou-se entre Caleb e Corvo.
Um ar chocado escancarou os olhos do russo. Caleb viu a cor azul deles e instantaneamente reconheceu o homem como o sobrevivente do massacre, que ele recolhera naquele mesmo verão. Chamava-se Zachar Tarakanov. Ele se lembrava de tudo claramente agora - até que Corvo admitira que tinha sido a mulher do russo.
- Você? - a voz do homem fraquejava.
- É mentira, Zachar. Sim, eu me lembro de você - disse Caleb, adivinhando que o homem acreditava que o menino era seu filho. - Ela provavelmente já tentou esse truque com meia dúzia de homens. Se há alguém que pode ser o pai do menino é você.
Zachar encarava-o, seus olhos sombreados de dúvida. Por fim, virou-se e pegou o menino nos braços, agarrando-o com força. Murmurou algo para Corvo, a seguir pegou-a e empurrou-a em direção à aldeia, após ela ter-se negado a mover-se voluntariamente. O nevoeiro em breve os envolveu. Quando sua raiva diminuiu, Caleb sentiu o primeiro choque de preocupação de que Corvo pudesse levar avante sua ameaça de falar a Larissa. Larissa! O último nome dela era Tarakanov também; e ele começou a pensar se ela seria aparentada com Zachar.
Chegando à cabana, Zachar deitou o menino na cama. Lobo dormiu mal. Zachar ajeitou o cobertor em volta dele. Por um longo tempo ficou ao lado da cama, olhando para o menino que viera a amar tão profundamente.
- Lobo é meu filho? - Ele mal pôde pronunciar as palavras. Em sua mente a atormentadora pergunta ecoava e reecoava. Voltou-se para encarar Corvo, torturado pela dúvida. O ódio que sentia por ela fazia-o vibrar; consumia-o como o amor que outrora sentira. - Sou eu o pai dele? - perguntou com a voz rouca.
Ela voltou as costas para ele; Zachar atravessou o quarto num repente, agarrou-a pelos ombros e virou-a para ele. Ela não ofereceu resistência quando ele a sacudiu violentamente.
- Responda-me!
Ela não emitiu nenhum som. O peito dele doía tanto como se uma mão invisível o estivesse apertando; cada respiração era um meio suspiro de dor. Ele parou, embora inconscientemente continuasse a enterrar os dedos em suas carnes. A cabeça de Corvo estava voltada para trás, expondo-lhe a garganta. Ele sentia o desejo de estrangulá-la para arrancar-lhe uma resposta. O ar de desprezo no rosto de Corvo zombava dele e desafiava-o a tentar.
O silêncio da mulher derrotou-o. Zachar largou-a enquanto seu lábio inferior tremia e lágrimas assomavam-lhe aos olhos. Sentia-se impotente, despido de orgulho e de honra.
- Você é um estúpido. Eu poderia ter conseguido muitas coisas daquele homem de Boston - disse ela, zombeteira.
- Por quê? Lobo é filho dele?
- Se eu disser que não, você acreditará que é verdade?
Ele encarou-a enquanto a cruel compreensão atingiu-o. Não importa que resposta ela lhe desse, a dúvida sempre permaneceria. Ele não mais poderia acreditar nela. Lobo poderia ser seu filho, mas ele nunca o saberia com certeza, porque não podia aceitar a palavra dela por isto e ninguém mais poderia dar-lhe a resposta.
- O ianque negou ser o pai dele. Ele não lhe pagaria coisa alguma - retaliou Zachar, tentando destruir-lhe a confiança.
- Ele está de olho na filha de sua falecida mulher.
- Larissa?
- Eu poderia ter ganho muitas coisas bonitas, bonitas como esta roupa que ele um dia me deu. - E ela passou a mão por sobre o gasto e desbotado tecido, sujo e estragado pelo uso.
- Ele lhe deu isso? - Zachar olhava para a maldita prova de que ela estivera com o ianque naquele verão do massacre. Num acesso de raiva arrancou-o dela, os fios apodrecidos rasgando facilmente, e jogou-o sobre as toras de madeira em brasa na lareira, indiferente aos arranhões de suas unhas quando ela tentava impedi-lo.
A fumaça subiu mais espessa em volta do vestido rasgado; um momento mais tarde, as chamas o lamberam para escurecer de vez o tecido de listras brilhantes. O súbito clarão das chamas iluminou o corpo agora nu de Corvo, mas a visão dele não mais excitava sua luxúria.
- Eu posso conseguir outro; posso arranjar muitos outros - disse ela em tom de desafio. - Caleb os dará para mim ou contarei a ela.
Desta vez ele agarrou-a pelo pescoço.
- Não, você não fará isso! De agora em diante você se satisfará com o que eu lhe der, porque se eu um dia souber que tentou ganhar presentes de um outro homem... ou se eu ouvir que você espalhou essa mentira acerca de meu filho para qualquer membro de minha família ou meus amigos... eu a matarei!
Ele jogou-a para longe. Corvo caiu de lado, chocando-se com a lareira e batendo com sua face de encontro a uma pedra saliente. Por um momento, todo o quarto ficou escuro à sua frente. Levou a mão de encontro à bochecha e sentiu o sangue quente correndo da ferida. Ódio e desprezo cresceram dentro de si quando viu o estúpido russo se dirigindo para a cama.
Larissa e Caleb passeavam ao longo do caminho da praia que era tantas vezes frequentado por Baranov. Andavam bem juntos, os braços ocasionalmente se tocando e a roda de sua longa saia batendo contra a perna dele. Um cheiro de chuva andava no ar. Já podiam ver seus lençóis cinzentos caindo nas encostas do monte Edgecumbe.
- Acho que devíamos ir mais depressa - sugeriu Caleb, relutante. Aquelas nuvens logo vão virar água sobre nossas cabeças.
- É mesmo - concordou ela, mas andou mais devagar.
Caleb observou-a quando afastou o lenço de lã que lhe cobria a cabeça, mostrando o rosto. Sorriu para ele, seus negros olhos brilhando. Ela lhe parecia tão bonita!
Tinha sido um bom choque quando ele soube, no início da semana, que Zachar Tarakanov era o pai dela, mas ficara tranquilizado pelo fato de que ela possuía muito pouco contato com ele. Conhecendo Corvo como a conhecia, Caleb ficou satisfeito por Zachar manter as duas separadas; isso diminuía as chances de Corvo causar problemas.
Na última semana Caleb despendera cada minuto disponível cortejando-a mais ardentemente do que jamais cortejara qualquer mulher em sua vida. Larissa exibia uma rara combinação de serenidade e vitalidade que era como um vinho capitoso para ele; ela o acalmava e excitava ao mesmo tempo. A cada dia que passava, Caleb ficava mais convencido de que ela lhe convinha, tanto sob o ponto de vista prático quanto sob o de sua paixão por ela.
- Em breve os reparos de seu navio estarão acabados. - O pesar na voz dela era evidente.
- Quase já não há mais nada a ser consertado... - admitiu ele. Três dias, no máximo. Talvez quatro.
- Então você partirá para negociar com os kolosh por suas peles. Ela mantinha a cabeça abaixada enquanto dava mais dois passos. vou sentir falta de você.
Caleb parou; ela também parou e olhou-o cheia de ansiedade.
- Larissa! Eu nunca compreendi como minha vida era solitária até Que passei a última semana com você. - E, depois de hesitar um momento: - Estou falando cedo demais?
- Não - disse ela pressurosa, inconscientemente aproximando-se dele.
Nenhuma vez ele tentara mais do que um beijo demorado em sua mão. Agora beijou-a nos lábios; sentiu-os tremer de inocência e de incerteza. Mas a hesitação foi passageira e logo ela correspondeu-lhe com uma pressão quente e ansiosa. Ele esqueceu sua restrição e beijou-a com força, apertando-a com energia em seus braços.
Ela inclinou-se para trás, afastando-o com as mãos contra seu peito.
Caleb soltou-a imediatamente, zangado consigo mesmo por tê-la assustado com sua paixão. Uma pancada de chuva caiu sobre eles antes que Caleb tivesse a oportunidade de desculpar-se e pedir-lhe perdão. Ela virou-se e começou a correr em direção ao estabelecimento.
- Larissa, espere! - gritou Caleb, correndo atrás dela.
A chuva apertou; a blusa de musselina por baixo de seu sarafan já estava ensopada quando Caleb colocou seu casaco sobre a cabeça e os ombros dela. Juntos, correram até a cabana.
Quando lá chegaram, Larissa pegou o trinco.
- Espere, Larissa! - A chuva corria pelo rosto dele e colava sua camisa contra a pele. Ela parou sem afastar-se da porta. A avó estava lá dentro, talvez também seu tio. Ele não podia dizer-lhe as coisas que desejava diante deles. De repente, ela tirou o casaco de Caleb e entregouo nas mãos dele. - Não tive a intenção... - prosseguiu ele.
Os dedos da moça tocaram-lhe os lábios, para fazê-lo calar. Da mesma forma rápida, ela ficou nas pontas dos pés e beijou-o, dando uma prova de sua própria paixão. Esse ato espantou-o; quando tentou agarrá-la, tudo o que sua mão tocou foi a fazenda escorregadia de sua saia molhada, enquanto ela escapava para dentro da cabana.
Caleb ficou olhando para a porta por um momento, depois abriu um largo sorriso e seu ânimo subitamente subiu ao céu. Afinal de contas, ele não a havia assustado, compreendeu e afastou-se da cabana, rindo sozinho, indiferente à chuva torrencial e à roupa molhada.
- Ela não servirá para você. Ela não o agradará da forma que eu agradava. - A voz de Corvo apanhou-o a meio do caminho.
O riso morreu em sua garganta quando Caleb voltou-se em direção ao vulto embrulhado num cobertor, encolhido no apertado espaço entre dois edifícios. Após um rápido olhar para a cabana, a fim de assegurarse de que não estava sendo observado, ele desceu da calçada de tábuas para a passagem aberta.
- O que faz aqui?
Corvo levantou o cobertor que lhe servia de abrigo e virou o rosto para mostrar sua face esquerda. Uma mancha arroxeada alastrava-se da feia cicatriz vermelha do corte em seu rosto.
- Zachar fez isso.
- Você mereceu; eu teria feito ainda mais.
- Sim. - Ela voltou-se, mostrando-lhe o lado perfeito do rosto, seus negros olhos brilhando, os lábios curvando-se num meio sorriso. Você é o único homem que lutou comigo e me venceu. Você me fez chorar de dor e de prazer. - Ela encostou-se nele, seu rosto moreno brilhando com a água da chuva. - Sei que seu navio estará terminado em dois dias. Leve-me com você.
- Não.
- Somos iguais, Caleb. Você deseja comerciar com peles; eu lhe mostrarei as aldeias que têm mais peles.
- Que aldeias?
- Elas só comerciam com armas de fogo. Você as tem?
Sim. - Caleb não tinha a menor intenção de respeitar o édito
de Baranov contra vender armas aos nativos. - Onde ficam as aldeias? vou lhe mostrar.
- Não preciso de um guia.
Posso negociar para você. Conseguir-lhe muitas peles por um mosquetão - explicou ela e depois rapidamente adotou outra tática, ao ver que a primeira não estava tendo sucesso. - Zachar estará partindo em breve para uma certa ilha muito ao norte. Ele deseja que eu vá com ele, mas não tenho nenhum desejo de abandonar a terra de meu povo. vou com você; você me tira daqui.
Não - disse Caleb, sacudindo a cabeça. - Se deseja abandonar
Zachar, volte para seu povo. Ou quem sabe se eles não querem gente de sua espécie?
- Talvez eu fale com Larissa... - disse ela, com uma expressão fria.
- Aquele menino não é meu, mas se abrir sua boca para ela, direi ao primeiro xamã que encontrar que é uma feiticeira e que é você quem está impedindo seu povo de recuperar esta terra dos russos. - Ele observou seu rosto empalidecer e notou o medo surgindo em seus olhos.
Uma vez ele vira um curandeiro expor uma bruxa à tribo. Ela só confessara sua culpa após ser mantida debaixo d'água, até ele quase afogá-la, deitando-a depois, nua, num leito de brasas. A tribo por fim a enforcara.
O silêncio de Corvo garantiu a Caleb que ela não levaria avante a ameaça. Deixou-a e voltou para a calçada. Não havia ninguém na rua quando emergiu entre os dois edifícios e dirigiu-se ao porto.
O chefe do estaleiro disse a Caleb que os reparos estariam terminados pela manhã, um dia antes do que originalmente pensara e exatamente o que Corvo previra. Ele ficou por um momento pensando como ela teria sabido, antes de descartar o assunto como sem importância.
Na melhor das hipóteses, poderia esticar mais um dia. Depois de quase duas semanas no porto, a novidade do lugar já se desgastara para sua tripulação, que se impacientava. Era a estação de fazer negócios e outros navios mercantes estavam se adiantando sobre eles, que ainda não tinham uma só pele nos porões. Teria problemas com a tripulação se tentasse demorar-se mais. Na verdade, não deveria dar-se ao luxo de perder uma parte maior da estação, não nessa primeira viagem como comandante e dono do brigue.
Resoluto, ele desembarcou e começou a cruzar a rua. Tudo reluzia naquela manhã inundada de sol. A claridade do ar lavado pela chuva dava um Brilho de jóias às águas cor de safira da baía e às florestas cor de esmeralda das ilhas. Até os edifícios de madeira da aldeia tinham um reflexo polido.
A aldeia russa fervilhava de atividade; parecia que todo mundo andava pela luz do sol depois da chuva havê-los confinado na véspera. A velha Tasha Tarakanova estava sentada numa cadeira no jardim de sua cabana de troncos, deixando que a luz do sol esquentasse seus frágeis ossos. Caleb percebeu a maneira como ela o observava; suspeitava que a velha o desaprovava, embora nada expressasse por gestos ou palavras. E era da aprovação dela que ele necessitava. Há muito sabia que ela desempenhava o papel mais significativo na vida de Larissa, seu pai sendo de menor importância. No pouco tempo disponível, fizera o possível para ganhar as boas graças da velha, mas não estava certo se tivera sucesso.
Caleb viu Larissa capinando os canteiros da horta, tarefa que lhe proporcionava da companhia um rublo por dia. O alegre lenço de seda que lhe cobria a cabeça estava amarrado na nuca e um cinto prendia na cintura seu folgado sarafan. Ela ergueu os olhos como se o estivesse esperando e deixou cair a enxada para correr ao seu encontro.
- Tinha esperança de que viesse - disse com os olhos brilhantes.
- Você sabia que eu viria - brincou Caleb.
O sorriso de Larissa alargou-se; fez um pequeno movimento em direção a ele e depois hesitou. Olhou para trás, como se de súbito recordasse a avó. Pegou-o pelo braço e conduziu-o pelo caminho da entrada até a velha.
- bom dia, babushka. - Desde o princípio ele tomara a liberdade de chamá-la pelo nome russo de avó, esperando com isso tornar-se agradável a ela. - A senhora parece estar apreciando este belo tempo; o sol lhe fará bem.
Larissa começou a traduzir antes que ele acabasse de falar, e depois fez o mesmo quando sua avó respondeu:
- Ela cumprimenta você e concorda que está uma bela manhã. Tirando o macio pacote de sob o braço, Caleb apresentou-o à velha senhora:
- Isto é para você, babushka - disse e colocou-o em seu colo. Cada vez que visitava a cabana trazia um pequeno presente: um pouco de chá ou açúcar e uma vez algum tabaco para o tio de Larissa, Mikhail. Desta vez a ocasião era mais importante e ele havia aumentado proporcionalmente o valor do presente. O pacote continha vários metros de belo tecido inglês. Esperou que o desembrulhasse, mas ela não se movimentou para fazê-lo.
- Diga-lhe para que o abra.
Larissa transmitiu a mensagem. A velha ergueu a cabeça para encarálo, firmando o olhar. Quando começou a falar, Larissa traduziu com uma frase ou duas de atraso.
- Ela lhe agradece, mas não sabe por que lhe traz presentes. Ela quer saber... Babushka! - E as faces de Larissa enrubesceram.
- O que disse ela? - perguntou Caleb, franzindo a testa. Obviamente embaraçada, Larissa hesitou em responder.
- Nas ilhas Aleutas... onde nasceu minha avó... quando um homem deseja... levar uma mulher para sua casa, ele oferece... presentes para os pais dela. Se os presentes forem aceitos, vai viver com ele. Esse é o costume.
- E ela pensa que estou tentando comprar você.
- Fui batizada na Santa Fé - disse ela, erguendo o olhar para examinar a expressão dele. - Viver com um homem sem a bênção de Deus seria um pecado.
- Diga à sua avó que é verdade, que a amo e que desejo que seja minha esposa, mas que lhe trago presentes apenas por admiração e respeito - disse ele. - É também verdade que vim hoje pedir a permissão de sua família para me casar com você. Se houvesse um padre em Sitka eu pediria a ele que nos abençoasse com o sacramento matrimonial, mas não há nenhum. Pergunte à sua avó o que devo fazer.
A expressão maravilhada que se irradiava de seu rosto não deixava dúvida de que ela aceitava o pedido. Seus lábios abriram-se sem proferir uma palavra. Voltando-se, ela ajoelhou-se ao lado da cadeira da avó. Uma torrente de palavras em russo escapou de sua boca, cheias de animação e de esperança.
À medida que Tasha ouvia a neta, um frio desagradável invadia seu corpo; subitamente, sentiu-se muito velha e cansada.
- Você partiria com ele para esse lugar chamado Boston? Lembrava-se vagamente do dia em que partira da baía do Massacre em Attu, com Andrei Tolstykh, para nunca mais ver sua mãe, Cisne do Inverno, seu tio, Barbudo e Mulher Tecedeira. Seu olhar derramou-se sobre a escura massa verde de pinheiros e cedros que se alteavam atrás dos muros da paliçada, crescendo juntos como se fossem uma touceira de capim. Como sentia falta de sua ilha nua de árvores e do vento que ali soprava constantemente!
- Caleb diz que voltaremos muitas vezes. - A voz de Larissa acordou Tasha de seus pensamentos embrulhados na névoa do tempo. - Aqui é que ele tem seu comércio de peles; diz que talvez venha também a construir uma cabana aqui. Quando voltarmos, será onde viveremos.
- Voltar... - A frase lembrava a Tasha que Andrei também prometera à mãe que a traria de volta para Attu. Ela acreditara. Não poderia saber que os russos alterariam para sempre seu modo de vida. Agora vinham os ianques... Tasha enrolou o xale de lã em volta do peito, sentindo muito frio.
- Babushka! Eu o amo. Ele parte em breve.
- E você iria com ele? - perguntou Tasha, encarando a neta.
- Não é que eu queira deixá-la, babushka, mas eu o amo.
Preciso pensar - disse Tasha, balançando com ar cansado a cabeça.
- Babushka! - implorou Larissa.
- Diga a ele que vou falar com meus filhos. - Levantou-se da cadeira e caminhou devagar para a cabana, os passos tão pesados quanto seu coração.
Uma lágrima escorreu pela face de Larissa ao observar a avó se afastando. Sentia-se dividida: cega de felicidade, não considerara a dor da Partida até vê-la nos olhos da avó.
Sentiu a quente pressão das mãos de Caleb em seus ombros e voltou-se para explicar-lhe:
- Ela deseja falar com meu pai e meu tio. Caleb, ela está tão velha...
- E você é tão jovem! Não é como se você fosse toda a família que ela tem. Ela não ficará sozinha; tem seus filhos. Se isto a preocupa, tomarei providências para que alguém cuide dela.
- Eu gostaria... - Mas ela estava confusa, não sabia o que queria.
- Vamos dar uma volta - insistiu ele. Mas ela sentia-se puxada noutra direção.
- Talvez eu devesse ficar com ela.
- Larissa, nós temos tão pouco tempo!
Convencida pelo apelo, ela deixou-se conduzir para longe da cabana.
Caleb parou junto à grande pedra de topo achatado que ficava na curva da praia, agarrou Larissa em seus braços e beijou-a com ardor mais contido. Quando ergueu a cabeça, continuou a segurá-la em seus braços, consciente do ritmo apressado da respiração da mulher.
- Não posso suportar o pensamento de ter que deixá-la, Larissa murmurou ele, a boca colada à macia pele de sua testa. - Você me ama, não?
- com todo meu coração - murmurou ela ardentemente.
- O que faremos se sua família recusar? - Ele queria que aquela aliança cimentasse suas relações comerciais com a América russa, não que criasse nelas uma brecha.
- Não sei.
- De alguma forma, você deve convencê-los a consentirem. Prometo-lhe que providenciarei para que sua avó viva com todo o conforto pelo resto de sua vida.
- Eu...
- Capitão! Graças a São Patrício que o encontrei. - Seu primeiropiloto, O"Shaughnessy, correu em direção a eles, respirando com dificuldade, as bochechas tão vermelhas quanto o cabelo cor de fogo. Caleb imediatamente afastou-se de Larissa, colocando uma respeitosa distância entre os dois. - com sua licença, senhorita. - com atraso, o irlandês tirou o chapéu para ela antes de continuar: - Procurei toda a aldeia dos russos de ponta a ponta pelo senhor, capitão.
- O que deseja?
- Quem deseja falar com o senhor é o imediato, capitão. Mandou-me procurá-lo com toda a urgência.
- É o governador russo, Baranov. Ele apareceu lá e invadiu o Sea Gypsy sem dizer "água vai!". Quando Hicks interpelou-o, ele pediu para ver o manifesto de carga.
- Hicks recusou, não?
- Baranov trouxe seus soldados. Era mostrar-lhe o manifesto ou lutar. com a metade da tripulação em terra, não seria lá muito uma luta..- Ele mandou-me buscar o manifesto e depois ordenou-me que o encontrasse, senhor.
Caleb praguejou em voz baixa.
- Ele vai ver aqueles malditos mosquetões e a munição listados.
- Sim, senhor. E eu disse a Hicks que será um deus-nos-acuda quando ele vir as armas no manifesto.
- Vamos! - Caleb pegou Larissa pelo braço.
O que há de errado?
Não tenho tempo para explicar. Preciso retornar ao meu navio sentiu que lhe dera poucas explicações e acrescentou: - Não é nada para você se preocupar.
Quando chegaram à área do porto, Caleb aceitou de bom grado a certeza de que não precisava escoltá-la até a cabana e embarcou no bote que o esperava para levá-lo ao Sea Gipsy. Estudou o amontoado de homens no convés do brigue, reconhecendo Baranov entre eles. Sabia que Baranov estaria zangado; sua esperança por uma aliança de comércio, ou pelo menos por condições favoráveis de comércio, estava arriscada.
Ao subir a bordo, Caleb assumiu um ar de camaradagem.
- Esta é uma visita inesperada. Aleksandr Andreevich. O senhor quase não me deu uma oportunidade de retribuir sua generosa hospitalidade. - Ele não deu chance a Baranov de responder, sabendo perfeitamente que o russo compreendia mais inglês do que aparentava. - Espero que meus oficiais o tenham tratado bem em minha ausência. Vamos lá para baixo tomar um drinque, longe de todo este barulho. - Fez um gesto de mão indicando os carpinteiros, que estavam mais interessados em testemunhar a briga deles do que em acabar os reparos do navio. - Tenho uma garrafa de excelente conhaque que estou guardando para uma ocasião especial como esta.
- O governador não está aqui numa visita social - declarou o intérprete de Baranov.
Caleb fingiu surpresa e depois sorriu:
- Ah! O governador foi informado de que venho visitando regularmente uma das jovens donzelas russas, Larissa Tarakanov, e decidiu interceder para assegurar-se de que minhas intenções são honradas. Asseguro-lhe: minhas intenções são mais do que honradas, estou totalmente apaixonado pela senhora em questão. Em verdade, tencionava vêlo na esperança de alistar seu apoio ao meu nome, a fim de convencer a avó da moça a dar-nos permissão para casar.
Nada do que disse pareceu ter causado qualquer impressão no governador russo. Sua expressão permanecia alheia ao que dissera e a cara amarrada. Quando falou por intermédio do intérprete não foi em resposta a declaração pessoal de Caleb.
- Chegou ao conhecimento do governador que cento e trinta mosquetões estão listados em seu manifesto de carga.
- Isto é correto - concordou Caleb.
- Por que esta informação foi deliberadamente escondida do governador?
- Não foi. com todo respeito devido ao governador, não me foi Perguntado se eu carregava quaisquer armas de fogo.
- O senhor sabe que a venda de armas de fogo para os kolosh é Proibida na América russa.
- Sei.
- E o senhor viu o que pode acontecer quando os kolosh têm tais armas em seu poder. O senhor testemunhou o resultado do massacre no reduto São Miguel e mesmo assim traz armas para comerciar!
- Devo confessar que não considerava que isso fosse problema meu até muito recentemente - disse Caleb, escolhendo as palavras com muito cuidado. - Agora, com a família de minha futura esposa vivendo aqui em Sitka, fiquei naturalmente mais preocupado com a segurança dos que aqui vivem. Se o governador estivesse interessado em comprar as armas e a munição para suplementar as armas em seu arsenal, eu teria muito prazer em vendê-las para a companhia.
O intérprete, que nascera na América, hesitou em traduzir a resposta de Baranov.
- O governador... dá-lhe instruções para que mande sua tripulação descarregar a mercadoria ilegal de seus porões. Dentro em pouco haverá barcos ao costado de seu navio para levá-la para terra.
- E em que termos? - perguntou Caleb, cauteloso.
- Capitão Stone, o governador está confiscando seu armamento.
- E com que autoridade? - perguntou Caleb, empertigando-se.
- Ele está apreendendo sua carga ilegal baseado em que o senhor cometeu um ato inamistoso para com o governo russo. Eu não protestaria muito energicamente se fosse o senhor, capitão Stone - alertou o intérprete. - Penso que ele acreditou em parte de sua história acerca de haver perdido o coração por aqui, mas se discutir com ele, o governador é capaz de tomar seu navio. O senhor sabe o quanto ele se opõe à venda de armas para os índios.
- Tal ocupação do navio seria ilegal - insistiu Caleb, apertando os maxilares para controlar a ira.
- Ilegal ou não, o senhor pouco ou nada poderia fazer a respeito. Washington fica muito longe daqui. Se ele toma seu navio e o põe a ferros, levariamuito tempo para que seus compatriotas pudessem fazer algo.
Por fim, Caleb teve de concordar que sua posição era insustentável. Fez um cumprimento formal a Baranov e declarou:
- Diga ao governador que estou encantado em doar as armas para a defesa de Sitka. Minha tripulação as colocará no convés dentro de uma hora.
- Os reparos de seu navio estarão terminados antes do cair da noite. Sugiro que o senhor parta com a primeira maré de amanhã. O senhor não é mais bem-vindo neste porto.
Toda a verborragia conciliatória dele tinha ido por água abaixo, compreendeu Caleb. Sua mercadoria de maior valor comercial estava para ser confiscada sem qualquer compensação e seu navio expulso do porto. Uma vez que ele tinha fracassado em sair dessa pela conversa, iria tomar uma nova atitude e lutar. Não agora, entretanto. Dos oito homens da tripulação a bordo ele contava apenas com três que estavam armados. com Baranov havia quinze soldados e, sem dúvida, os carpinteiros do estaleiro se aliariam a ele numa luta. Inconscientemente, ele cerrou os punhos, roído de raiva e certo de que precisava ganhar tempo. Quando Baranov mandasse seus soldados de volta para descarregar as armas, ele teria sua iquipagem armada e esperando por eles.
O que quer que o senhor esteja pensando, capitão - o intérprete de Baranov olhou-o com uma mistura de compreensão e suspeita -, desejo lembrar-lhe de que há vinte canhões apontados para este navio. Se tentar resistir ou levantar ferro e escapar, seu navio será varrido de sobre a água.
Caleb estava aprisionado como um peixe na rede. Controlou a raiva, totalmente consciente de sua impotência.
Com sua tolerância, poderia eu perguntar se me é permitido sair do navio? De uma forma ou de outra, tenciono ver a srta. Tarakanov antes de partir.
Baranov, com um rápido aceno de cabeça, deu sua permissão, sem esperar que todo o pedido lhe fosse traduzido. Larissa era sua última chance e Caleb pretendia usá-la. Quando Baranov desembarcou com o intérprete, o contingente de soldados russos recebeu ordem de permanecer a bordo para certificar-se de que todas as armas e munição não necessárias para a defesa do Sea Gypsy fossem removidas do porão de carga pela tripulação. Minutos após a partida de Baranov, Caleb pulou para o escaler amarrado ao costado.
- Como pôde Baranov fazer isso? Não é justo! - protestou Larissa. Agora ela entendia por que Caleb insistira que toda sua família estivesse presente antes que ele explicasse o que andara errado, de forma que ele pudesse encará-los e limpar seu nome com respeito a ela.
- Nada do que eu disse fez qualquer diferença para ele. - Quando ele se virou para o lado da janela, Larissa notou seus ombros arriados, que denotavam mais claramente que suas palavras o desespero e a frustração que sentia.
Falando em russo, ela apelou para seu pai.
- Deveremos ir a Baranov e fazê-lo entender que Caleb não ia vender essas armas para os kolosh.
- Por que motivo ele nos escutaria? - argumentou Zachar com calma.
- Porque ele nos conhece. Babushka, a senhora precisa falar com ele. Ela ajoelhou-se ao lado da cadeira da avó. - Ele a ouvirá. Não podemos deixá-lo mandar Caleb embora.
- Ele tomou sua decisão, minha filha. Aleksandr Andreevich é um homem teimoso. Ele não mudará sua ordem porque uma velha mulher
pediu - disse ela e depois cobriu a boca para conter a tosse.
- Se ele partir, babushka, irei com ele. - Não...
- AndeiPensando sobre isto mesmo antes do que aconteceu. se ele me pedisse para acompanhá-lo, eu iria. - Ela pegou na mão da avó e apertou-a contra o rosto. - Não tenho nenhum desejo de feri-la, mas eu o amo.
- Seria um erro, Larissa - disse seu tio Mikhail, franzindo o rosto em tom de reprovação.
- Por quê? - Ela ficou de pé. - Explique a ele, papai, como a gente se sente quando gosta tanto de alguém que a vida não tem sentido sem essa pessoa. O senhor não iria para as Pribilofs sem Corvo. É a mesma coisa comigo; quero estar com ele. Lembro-me da história que me contou acerca do alto camareiro e da bela senhora da Califórnia; o quanto eles se amavam. Mas ela ouviu a família e ficou quando ele partiu para obter permissão do czar para se casarem. Ele morreu. Ela ainda espera que ele volte, quando poderia tê-lo acompanhado. Eu irei com Caleb.
- E os ensinamentos do padre Herman? Você estaria cometendo um grave pecado - seu tio tornou a se opor à sua decisão enquanto o pai permanecia calado.
- Papai não é casado com Corvo. - Ela suspeitava que o silêncio do pai significava apoio e tentava forçá-lo a falar em seu favor.
Zachar, no entanto, pouco podia dizer, solicitado como estava em duas direções. Uma parte dele se opunha à ideia de sua filha casar-se com o homem que poderia ser o verdadeiro pai de Lobo; entretanto, ele também sabia que se Caleb Stone se casasse com Larissa era improvável que ele um dia reivindicasse Lobo como seu filho. Mas Zachar não podia convencer-se a endossar a ideia de ir a Baranov e apelar-lhe para alterar sua decisão de mandar embora o homem de Boston. Ele queria que Caleb se fosse, para nunca mais voltar; se aquilo significasse também perder sua filha, muito bem. Era melhor perder sua filha que seu filho.
- Corvo não foi batizada; você foi - replicou Mikhail com energia.
- É possível que possamos casar-nos - afirmou Larissa, consciente de que aquela era sua última esperança de ganhar o apoio da família para a causa de Caleb.
- Como? - perguntou o pai, hesitante. - Não há um padre.
- Caleb diz que Baranov pode realizar a cerimónia. Ele é o governador; sua palavra é a lei. É ele quem batiza os bebés e lê as orações nos dias santos.
Ela observou o olhar inquisitivo que Mikhail dirigiu a sua avó. Sabia o quanto era importante para a avó a opinião do filho mais jovem, seu favorito. Se Mikhail duvidasse, ela duvidaria. Encorajada, Larissa imediatamente pressionou sua ligeira vantagem.
- Por favor, babushka, fale com Baranov. Se ele não consentir em nada mais, consiga que ele realize o rito matrimonial.
Larissa prendeu a respiração pelo que pareceu-lhe uma eternidade. Depois, a avó passou os dedos por seus cabelos grisalhos.
- Onde está meu lenço de cabeça? Aleksandr Andreevich prefere que a cabeça de uma mulher se apresente coberta à moda russa.
- Está aqui, babushka. - Rindo e chorando silenciosamente, Larissa pegou o lenço de seda da mesa atrás da avó e deu-o a ela; depois, cheia de alegria, cruzou o aposento até o lado de Caleb.
- Nós vamos ver Baranov. Todos nós.
O sobrinho e secretário de Baranov introduziu-os no escritório que dominava o estreito de Sitka e tinha uma vista ao longe para o Pacífico. Pegando a bengala, Baranov levantou-se de sua cadeira e rodeou sua ampla mesa para recebê-los.
Ele ignorou ostensivamente Caleb, mas foi muito solícito com sua avó notou Larissa, certificando-se de que ela ficasse confortavelmente instalada numa cadeira que recebia os quentes raios do sol. Embora Mikhail a houvesse carregado pela longa escadaria acima, o cansaço da caminhada deixara Tasha ofegante e incomodada por uma persistente tosse.
Ambos estamos ficando velhos, Tasha Tarakanova. – Baranov deixou-se cair numa cadeira que o sobrinho lhe apresentou e depois despediu-o com um gesto de mão. - A idade torceu meus dedos como as raízes nodosas de uma árvore caída e faz minhas juntas doerem. Para você a idade deu uma tosse aborrecida, para lembrar-lhe de como pode ser preciosa a respiração. Em dias como este a gente sente como é triste ficar velho e cansado.
- Talvez a idade incomode seus olhos, Aleksandr Andreevich. Tasha chamou a atenção para um par de óculos de lentes quadradas que estava sobre a mesa. - Talvez não possa ver tão bem como antigamente e engane-se em seu julgamento.
- Estamos discutindo minha visão das coisas ou minha percepção delas?
- Minha neta acredita que você foi duro demais com o capitão Stone, que talvez você só tenha visto as armas e nada mais.
- Isto é interessante - disse Baranov, reclinando-se em sua cadeira.
- A família Tarakanov vem implorar clemência para o capitão ianque. No entanto, Zachar, foi por meio da mulher kolosh que vive com você que eu soube das traiçoeiras intenções dele.
- Corvo. - Larissa virou-se para seu pai, mas a expressão dele era um reflexo do seu próprio olhar espantado e descrente.
- Ela veio a mim esta manhã e contou-me que seu bom capitão pedira-lhe para dizer a seu povo que ele tinha armas e munições para vender. Ela receava que haveria mais lutas se isto acontecesse.
- O que ele está dizendo? - perguntou Caleb em inglês. Depois que Larissa lhe disse, ele pulou de pé. - Isto é uma mentira!
- A carga do Sea Gypsy - disse Baranov, encolhendo os ombros
- incluía grande quantidade de armas. Ela sabia disso.
- Ela poderia ter sabido disso por qualquer dos marinheiros do navio - insistiu Larissa. - Caleb... - o capitão Stone... não fazia segredo.
- Uma mulher dá-se ao luxo de acreditar cegamente no que seu coração lhe diz, mas, na minha posição, devo considerar os fatos e julgar de acordo com eles. Minha opinião não mudou e minhas ordens permanecem.
Nem oS apelos de Larissa conseguiram dissuadi-lo. A avó colocou a mão em seu braço para silenciá-la. Caleb voltou a sentar-se em sua cadeira depois de ter ido até a janela, olhar a vista do porto.
- Nós nos conhecemos há muitos anos, Aleksandr Andreevich disse Tasha. - Quando chegou pela primeira vez no Kodiak estava com febre e cuidei de você. Meus filhos lutaram a seu lado. Minha nora entregou a filha pequenina em seus braços antes de afogar-se na onda do maremoto. Aquela criança era Larissa. Ela tem um forte sentimento por este capitão ianque e me disse que vai embora com ele. Só pedem que você os case.
- Pergunte ao capitão se ainda deseja isso, agora que sabe que minhas ordens são imutáveis - instruiu Baranov a Larissa.
Ela traduziu o russo de Baranov para o inglês e o inglês de Caleb para o russo.
- O capitão diz que não falou em vão quando afirmou que queria casar comigo. Diz que se sente honrado em ter-me como sua esposa. Da mesma forma como se submeteu antes a sua autoridade, ele agora se inclina perante ela. Ele honrará os votos que faremos - afirmou ela, cheia de orgulho.
- E você, filha? - perguntou ele, encarando-a.
- Quero ser sua esposa.
- Chegaria a se casar com ele, sabendo que minhas ordens se aplicariam também a você da mesma forma, que não será bem-vinda a Sitka e que talvez não veja de novo sua família?
- Sim, eu me casaria - respondeu ela, sentindo as lágrimas nos olhos.
Eles se casaram no escritório ao lado das janelas com vista para a baía. A cerimónia foi realizada em russo e Caleb nada entendeu, dando as respostas que Larissa lhe soprava. Durante as orações, seu olhar atravessou a janela em direção aos altos mastros nus de seu navio.
Corvo. Ele deveria ter sabido que Baranov não viria inspecionar o manifesto por mera especulação. Ficara tão preocupado com as mentiras que Corvo poderia dizer a Larissa que não havia considerado os danos que ela poderia causar-lhe junto a Baranov.
Houve uma pausa no palavreado russo. Caleb olhou para Larissa a fim de ver se havia mais alguma coisa que deveria dizer. Ela olhou-o com solenidade e disse:
- Acabou. Estamos casados.
Ele procurou esquecer-se de suas preocupações e sorriu para ela. Ela era uma bonita noiva, mesmo que não pudesse ter vestido tudo o que desejara para seu casamento. Ela lutara por ele, mas simplesmente não havia nenhum antídoto para o veneno que Corvo armara contra seus planos. - Você e sua noiva devem partir com a maré de amanhã - disse Baranov em seu inglês de pesado sotaque e caminhou para a mesa, apoiando-se pesadamente na bengala.
- Um momento, Baranov. - Zangado porque o russo não cedera e lhes permitira mais um dia extra, Caleb cruzou o aposento. Meteu a mão no bolso e tirou uma bolsa de couro; segurou-a por um momento e depois jogou-a no diário aberto em cima da mesa de Baranov. – São quinhentos dólares em ouro. É tudo para madame Tarakanova; cuide para que não lhe falte nada. - Um nobre gesto, capitão.
- Ela agora faz parte de minha família. Creio que faz mau juízo de mim - disse Caleb asperamente.
julgo pelo que me disseram... Mas é melhor, segundo sinto, que seus mosquetões estejam em meu arsenal. - E Baranov levantou-se sem sequer apanhar a bolsa de moedas.
Tinha sido um plano desesperado para aparecer bem aos olhos de Baranov; seu fracasso tornava os planos anteriores muito mais intoleráveis. Maldita Corvo e maldito Baranov!, pensava Caleb quando saiu da residência do governador com seus novos parentes.
Ao pé da escadaria, Caleb sugeriu a Larissa que acompanhasse sua avó de volta à cabana e empacotasse suas coisas, explicando-lhe que ele precisava voltar ao navio. Prometeu que mandaria dois dos homens de sua tripulação para a cabana a fim de carregar as coisas dela para o navio.
Quando Zachar parou ao pé da escadaria, Caleb lembrou-se de que o pai de Larissa pouco havia falado durante a conversa.
- Você sabia que Corvo procurou Baranov? Ou talvez tenha sido ideia sua, de forma a afastar-me daqui caso eu começasse a acreditar na mentira dela de que aquele menino é meu filho?
- Eu nada sabia disso. - Parecia um homem derrotado, como se ele e não Caleb tivesse perdido tanto naquele dia. - Ela não me diz mais nada do que faz.
Não importando quanto Caleb quisesse um bode expiatório, ele acreditou no que Zachar disse.
- Eu gostaria de poder pôr as mãos em cima dela - ajuntou.
- Você poderia ter dito a Baranov como ela tentou fazê-lo dar presentes a ela por causa do menino. Isto teria explicado porque ela forjara uma mentira para prejudicá-lo. Fico-lhe grato por ter-se mantido calado.
Caleb quase riu. Ele não ficara calado para poupar a Zachar qualquer vergonha ou humilhação, como parecia pensar o russo. A não ser que negasse frontalmente jamais ter conhecido Corvo no passado, ele teria de preparar uma porção de explicações e justificativas. Seu passado não resistia muito bem a uma rigorosa inspeção... Teria sido duas vezes mais difícil para ele convencer Baranov - ou talvez mesmo Larissa e sua avó - que ele tinha virado uma nova folha no livro de sua vida.
- Nada haveria a ganhar espalhando as mentiras dela. Mais pessoas seriam simplesmente atingidas, incluindo Larissa - afirmou ele, cheio de razão.
- Larissa lhe disse que vou partir em breve? - Não.
- Vou Para as Pribilofs, as ilhas das focas de pêlo - disse Zachar, Perturbado e ao mesmo tempo também hesitante. - Duas vezes me aJudou, capitão Stone. Resgatou-me depois do massacre e não disse que Lobo talvez não seja meu filho. Não é justo que eu lhe peça Para fazer ainda mais quando não fui capaz de ajudá-lo.
- De que está falando?
- Uma quantidade muito grande de focas morreu nas Pribilofs nestes últimos anos, especialmente filhotes, cujas peles perdem sua cor negra e transformam-se numa pele macia de cor cinza-prateada em setembro; e também fêmeas amamentando. Não se prestava nenhuma atenção à idade, sexo ou qualidade da pele. Às vezes milhares de machos eram trucidados e deixados apodrecer com suas peles intactas, e apenas seus órgãos sexuais eram recolhidos para secar e se transformarem num pó. Esse pó alcança um alto preço na China. No ano passado a companhia ordenou que se parasse a matança para dar aos rebanhos uma oportunidade de refazerem seu número.
- E...? - Caleb ergueu as sobrancelhas, sem estar certo exatamente do que Zachar estava sugerindo.
- Desde que não existe mais morticínio, a maior parte dos aleútes e suas famílias foram mandados de volta para casa em Unalaska. Apenas uns poucos de nós ficarão lá para guarnecer as colónias de animais e cuidar dos edifícios da companhia.
- Entendo - murmurou Caleb.
- Corvo não deseja ir comigo para as Pribilofs. Prefere voltar para seu povo.
- Terá sorte em livrar-se dela. Ela só cria problemas.
- Acho que não me entendeu - disse Zachar, sacudindo a cabeça com tristeza. - Se ela partir, vai levar meu filho. Certa ocasião eu pensava que não podia viver sem Corvo; agora sei que não posso viver sem meu filho.
- Fique com ele. Como poderá ela impedi-lo? - Para Caleb a coisa parecia muito simples.
- Baranov me impedirá. É a lei aqui: uma criança pertence à mãe. Não há nada que eu possa fazer. Se pudesse dar presentes a Corvo poderia ficar com meu filho, mas já devo à companhia mais do que posso pagar.
- Quanto seria necessário... Quanto você teria que dar a Corvo para persuadi-la a abandonar seu filho? - Considerando o valor da informação que Zachar tão generosamente lhe dera, ele estava disposto a colaborar com alguns metros de fazenda e algumas chaleiras de cobre ou outras quinquilharias. - Venha a bordo do Sea Gypsy comigo e olhe a mercadoria que tenho.
- Você faria isso?
- Somos agora da mesma família - disse Caleb, passando um braço pelos ombros do homem mais velho e caminhando para o escaler com ele.
Larissa arrebanhou as saias mais firmemente com uma das mãos, deixando a outra livre para segurar a xícara de café fumegante quando se dirigiu à popa do navio. Fez um ligeiro aceno com a cabeça para o marinheiro ao lado do bebedouro do navio, apreciando com vagar uma concha de água fresca.
Toda a tripulação estava ativa naquela bela manhã em princípios de julho. Alguns ocupavam-se da mastreação, remendando as peças gastas pelo atrito, outros tecendo gaxetas ou raspando calafeto. O carpinteiro do navio desdobrava-se em sua mesa de trabalho.
Larissa tivera pouco mais de dois meses para se ajustar às visões e ruídos de seu novo domínio. Quando subiu para o convés superior seu olhar dirigiu-se automaticamente para o marido. Essa palavra por si só enchia-a de um sentimento de orgulho - e também de um anseio em desempenhar um papel maior na vida dele do que até então lhe fora permitido.
O velho mestre de velas levantou os olhos do pano que costurava quando Larissa passou por ele, mas não a cumprimentou. Da mesma maneira comportou-se o timoneiro, encostado preguiçosamente na roda do leme. Ninguém falava, nem com ela nem com qualquer outra pessoa, quando Caleb estava no convés. Neste último mês, Larissa notara que todo mundo passava ao largo dele. Sorriu ao pensar nesta última frase, satisfeita por estar assimilando com rapidez o vernáculo dos marujos.
No princípio tinha soado como uma língua inteiramente nova. Agora sabia a diferença entre "cutelo do sobrejoanete" e "joanete", "arriar a vela" e "rizar", "adriças" e "colhedores". Agora mesmo o Sea Gypsy estava a "toda a vela", suas varredouras projetando-se além da borda do navio em ambos os lados, o velame subindo como uma pirâmide até os cutelos e joanetes.
Caleb estava de pé com as pernas abertas, escorado contra o balanço do convés, sua testa marcada com aquela carranca de preocupação que ele ultimamente ostentava tão amiúde. Nem tudo correra tão mansamente desde que haviam deixado Sitka, embora seu casamento nada tivesse com isso. O comércio andara fraco ao longo da costa. A despeito de todo o tempo que Caleb gastara barganhando com os kolosh, ele só tinha umas cinquenta peles para mostrar. Agora fazia o brigue correr com o vento em direção ao norte, arriscando cada centímetro de pano que ele podia usar em tempo bom ou ruim.
- Café? - disse ela, oferecendo-lhe a caneca. distraído, e preocupado, ele pegou a caneca, resmungando qualquer coisa com ar ausente, enquanto sua atenção se voltava para as nuvens e o horizonte, verificando alguma mudança no tempo. A fresca brisa trazia uma ameaça. Agarrando as pontas de seu xale, Larissa cruzou-as diante do peito.
- Chegaremos lá em breve? - perguntou em voz baixa.
- Sim - respondeu Caleb e depois olhou-a atentamente. Ele havia mantido seu destino secreto, embora ela tivesse adivinhado - e suspeitava que a tripulação também o tivesse -, pois seus resmungos iniciais haviam cessado.
- O tempo continua bom - observou ela.
- Sim. - Um profundo suspiro acompanhou sua resposta quando ele voltou-se e olhou para as nuvens altas e momentaneamente dispersas.
- Não vai continuar assim - assegurou-lhe Larissa. O vento irá mudar; um pesado nevoeiro vai cair. Arriar os botes será difícil se os ventos e as correntes forem fortes.
- De que está falando? - A voz dele era cautelosa.
- As Pribilofs. - Ela encarou-o calmamente. - Sei que você planeja atacar as colónias de focas ali.
- Como... - Ele interrompeu a pergunta, meio zangado e meio sentindo-se culpado.
- Você deixou a carta na mesa. Antes eu já havia notado focas alimentando-se na água. Elas não viajam a grandes distâncias de suas ilhas nesta época do ano. - Ela sorriu com gentileza ao ver a expressão fechada de Caleb. - Você não pode esconder as coisas de mim, meu marido.
- Larissa, não posso passar dois anos nesta costa a fim de acumular bastantes peles para ir a Cantão da forma como alguns mercantes fazem. Tenho de obter algum lucro nesta viagem, um grande lucro.
- Você não tem nada que me explicar. Eu lhe jurei obediência. Ela não iria permitir-se julgar os atos dele.
Durante o tempo que passavam sozinhos na cabine do capitão, Caleb frequentemente falara acerca de seus sonhos e futuros planos e ela viera a compreender o objetivo da ambição dele. Uma vez, depois de uma semana particularmente frustrada de comércio, Caleb bebera demais depois do jantar e lhe contara acerca de suas arruinadas esperanças de uma aliança de comércio com Baranov e a Companhia da América Russa. Ela então teve uma visão rápida do amargo desapontamento que o corroía. Embora não houvesse dúvida em sua mente de que a necessidade de sucesso era o principal motivo de Caleb em fazer a caçada nas Pribilofs, ela suspeitava que esse ato fosse também uma vingança, um meio de se desforrar de Baranov por havê-lo expulsado de Sitka.
- Seu pai, Zachar, sugeriu-me isso - declarou Caleb.
Ela nunca teria adivinhado. De alguma forma, não parecia direito que ele estivesse envolvido naquilo.
- Ele vai estar na ilha - disse ela.
- Sim.
Sua garganta estava meio apertada e ela tossiu para livrar-se daquela pequena irritação. Notou o olhar preocupado de Caleb e apressou-se a dizer que não era nada.
- O vento está fresquinho; talvez seja melhor que você desça antes de ficar resfriada.
Larissa não discutiu a sugestão, pois estava se sentindo um pouco cansada; de acordo com Caleb, o ar marinho causava isso a uma pessoa.
Mais tarde, naquele dia, uma pesada cerração escureceu o mar. Uma multidão de aves marinhas apareceu sobrevoando as águas, enchendo os ares com seus isolados guinchos. Em breve podia-se ouvir à distância um ruído surdo proveniente das colónias na ilha escondida pelo manto do nevoeiro. O brigue manteve um curso firme de encontro à neblina. Gradualmente, Caleb foi capaz de distinguir o embate das ondas contra os rochedos dos altos bramidos das focas.
Enquanto o prolongado dia do verão do norte mantinha afastada a escuridão, eles entraram e ancoraram ao largo da costa num lugar que Caleb julgava ser aproximadamente o lado da ilha oposto ao acampamento russo que Zachar indicara em suas cartas. Informou à tripulação que eles tinham quatro horas de sono, exceto o pessoal de quarto com o navio ancorado e que isto seria o último descanso que teriam em 48 horas.
As primeiras cores peroladas da manhã surgiram no céu. Apenas quatro marujos experimentados foram deixados a bordo do Sea Gypsy com Larissa. O resto, incluindo os "inativos" - o taifeiro, o mestre de velas, o carpinteiro e o cozinheiro - todos foram empilhados nos botes e remaram para a praia. Embora muitos tivessem pistolas enfiadas nos cinturões, todos estavam armados de porretes, cunhos de marcação e afiadas facas.
Desembarcaram numa praia de pedras no meio de um harém de focas. Os homens saíram apressados de seus botes, quase sem esperar que encalhassem na praia e atacaram a massa de focas fêmeas de uns cinquenta quilos com filhotes negros. Brandiam os porretes, atordoando muitos dos mamíferos de crânios pouco espessos e matando outros. A orgia de matança continuou sem interrupção de um harém de fêmeas para o próximo. A reação dos pesados machos de trezentos quilos de cada harém - os agressivos "donos das praias" - era inútil, usualmente interrompida por um tiro na cabeça; com alguns, os marinheiros simplesmente furavam e arrancavam os olhos, divertindo-se com seus cegos avanços e frustrados roncos. Na primeira hora foram mortas mais de cem focas.
Muitos animais, no entanto, corriam para o mar e escapavam. Caleb mandou parar com o caótico morticínio e dividiu os homens em gruPOS, atribuindo a cada um uma tarefa de forma a criar uma operação de matança mais eficiente. A maior parte deles foi designada para esfolar as focas já mortas ou inconscientes, com instruções de não perder tempo com qualquer uma que tivesse a pele ferida ou danificada, mas para remover o osso do pênis e os órgãos sexuais de todos os machos. Mandou que os demais se ocupassem de matar os animais, ordenando-lhes que se Concentrassem nos machos jovens.
A matança e a castração continuaram sem interrupção por toda a tarde. Durante a noite eles esfolaram, rasparam e salgaram. Ao raiar do dia, Caleb destacou uma turma para
comeÇar o transporte das peles para o Sea Gypsy. Uma refeição matutina de carne salgada e biscoitos de marinheiros foi distribuída entre a tripulação com uma caneca de café adoçado com melado e traçado com rum. Caleb comia o que eles comiam, trabalhava como eles trabalhavam, dando uma mão onde houvesse necessidade e movimentando-se constantemente para um lado e para o outro entre as várias operações. À medida que se empilhavam as peles, ele apressava mais os homens, ignorando sua fadiga e a deles.
Suas roupas estavam cobertas de sangue e de gordura, endurecidas pelo suor. Uma sombra de barba escurecia-lhe as feições. O fedor das carcaças espalhadas e amontoadas ao longo da praia rodeava-os, mas ele estava indiferente a tudo, exceto encher seus porões com as grossas e brilhantes peles.
A matança era surpreendentemente fácil. Ele já estava considerando a possibilidade de deixar seus homens descansarem por turnos e estender a operação por mais 24 horas. Por que partir com cinco mil peles quando ele poderia levar dez ou vinte mil? Na ilha havia mais de um milhão de focas; por que deixar os russos ficarem com todas elas?
Zachar marchava agarrando as pernas do garoto montado em seu pescoço. De vez em quando levantava a mão para que Lobo pudesse pegar um pouco mais de morangos silvestres do punhado que ele tinha na mão. O capim da tundra chegava-lhe aos joelhos, mas ele passava através da luxuriante vegetação sem dificuldade. A ilha estava toda enfeitada de flores silvestres, tremoços azuis e gencianas brancas.
Um nevoeiro corria por sobre a ilha despida de árvores, aqui e ali obscurecendo um morro ou cobrindo um grotão quando ele se dirigia para a praia com o filho. O pandemônio tornou-se mais alto com a gritaria das aves marinhas - pequenas gaivotas de pernas vermelhas, papagaios-do-mar com suas cristas, alcatordas de cara vermelha e gaivotas aos milhares - o estrondo das ondas contra a costa rochosa e o ensurdecedor barulho das massas de focas peludas.
Zachar queria que seu filho visse aquele espantoso espetáculo da fervilhante massa de focas, para recordá-lo para sempre. Era por isso que repetidamente faziam a longa caminhada para aquele lugar afastado do acampamento, onde não seriam perturbados pelos outros. Desejara contar a Lobo como fora quando ele pela primeira vez o vira, explicar-lhe que o número de animais tinha sido reduzido de noventa por cento durante o período de sua vida. Ele desejava poder contar-lhe acerca de Empertigado.
Rapidamente espantou a melancolia que tentava envolvê-lo e estugou o passo. Não era bom olhar para o passado; hoje trazia o filho consigo. Lobo inclinou-se sobre seu ombro esquerdo, rindo quando tentava agarrar os morangos na mão de Zachar.
- Mais, papai.
- Restam apenas alguns - disse Zachar, abrindo a mão.
- vou comer todos. - com as duas mãos, Lobo pegou os morangos da mão do pai e enfiou-os na boca até que suas bochechas incharam e depois mastigou-os, apreciando sua doçura.
- Você tem as bochechas gordas de um porquinho - brincou Zachar e agarrou os tornozelos do menino para mantê-lo mais seguramente em posição quando chegaram no terreno pedregoso da praia.
- Focas - disse Lobo, cuspindo sumo de morangos de sua boca cheia. Apontou para uma área à sua frente, coberta de rochedos e repleta de focas.
De dentro do nevoeiro surgiu uma meia dúzia de focas, andando para frente com auxílio de suas nadadeiras naquele seu estranho e desajeitado modo. Zachar pressentiu seu pânico e parou, meio na expectativa de ver um grande macho correndo atrás delas, mas não apareceu nenhum. Os jovens machos ainda não acasalados precipitaram-se para a tundra em óbvia confusão, pois o mar era seu refúgio natural.
Alertado por sua demonstração de pavor, Zachar ouviu os assobios e altos gritos, sons, ele percebeu, que não eram de nenhum animal marinho ou ave da ilha. Pegando o menino, ele o retirou de seus ombros e colocou-o montado em sua ilharga; depois caminhou rapidamente para os rochedos onde a terra descia íngreme para a praia.
Subitamente, sentiu o mau cheiro. Quando respirou o fedor de sangue, Zachar sabia o que iria encontrar na praia. Carcaças de focas, empilhadas duas, até quatro, umas sobre as outras, enchiam as pedras lavadas pelas ondas ao longo de toda a praia. O nevoeiro obscurecia o fim da praia.
- Empertigado! - gemeu ele, sentindo uma dor por dentro.
Era o lugar onde haviam chegado à praia; aqui aquela lontra mansinha tinha-os cheirado, cheia de curiosidade. Mais nenhuma lontra vivia nessas águas; todas tinham sido mortas ou afastaram-se dali devido à carnificina. Agora aqueles montes de carcaças de focas de pêlo - machos, fêmeas e filhotes - jaziam sem vida, grotescas pilhas de gordura ensanguentada.
Então ele ouviu os gritos, as vozes dos ianques. Voltou-se e olhou para o lado superior da praia. Dois botes, carregados de peles até acima das bordas, furavam a rebentação. Na praia havia mais homens, com seus rostos, mãos e roupas escurecidas pelo sangue, alguns ocupados dando cortes para esfolarem os animais, outros puxando as cordas presas às peles para arrancá-las.
Um promyshlenik no posto avançado russo da ilha descrevera o processo para Zachar, gabando-se do número de animais que podiam ser mortos e processados. As imagens não lhe haviam causado repulsa. Ele era um caçador... mas esta carnificina não era uma caçada!
Não muito longe dele, três homens com porretes entraram n'água no meio de uma porção de machos jovens, misturando-se com eles na confusão. Observou quando batiam nos animais com os pedaços de paus, derrubando os mais próximos enquanto os outros fugiam, apavorados.
Um macho mais valente tentou atacá-los, lançando-se contra eles tão ferozmente como qualquer macho dono de praia adulto, mas uma pancada
na cabeça acabou com sua valente defesa.
- Fique aQui - disse Zachar, arriando Lobo no chão junto a uma grande pedra.
Tremendo de raiva, ele dirigiu-se rapidamente na direção dos invasores ianques, com o único pensamento na cabeça de sustar sua ação.
- Olhem o que estão fazendo por aqui! - gritou. Subitamente, um vulto saiu de trás de um rochedo e apontou-lhe uma
pistola. Zachar parou. O ianque estava a apenas cinco passos dele, perto o bastante para Zachar distinguir suas feições, a despeito da fraqueza de sua vista. Os olhos do homem tinham um brilho selvagem e vidrado como se estivesse possuído de uma loucura assassina. Suas magras faces estavam cobertas por uma barba crescida que escurecia as profundas olheiras. Zachar ficou esperando pelo clarão da explosão da pólvora e o impacto da bala. Em vez disso, o cano da pistola apontou para o chão.
- Zachar! - O homem deu um passo mais para perto, sua boca curvando-se num sorriso.
- Caleb Stone! - O choque anulou tudo o que Zachar vinha sentindo. - Você!
- Espero que não estivesse esperando outra pessoa. Estonteado, Zachar lançou o olhar pela sangrenta cena e exclamou:
- Como pôde fazer isso?
- Você parece surpreso. Sabia disso quando me disse que as Pribilofs estavam praticamente desguarnecidas.
- Eu lhe disse? - E a conversação voltou-lhe à lembrança. - Eu lhe disse... - Gemendo, ele voltou-se e moveu-se cambaleante e às cegas para dentro do nevoeiro. Lágrimas corriam-lhe dos olhos. - Não para isso, não!
- Zachar! - Caleb apertou instintivamente o cabo da pistola e franziu a testa quando voltou o olhar para trás, em direção a seus tripulantes ocupados na matança das focas. Hesitou entre mandá-los abandonar a operação e voltar para o navio e perseguir Zachar. O homem estava louco!
Com o canto dos olhos percebeu um movimento; virando-se, viu o jovem Lobo avançando pelo meio do alto capim da tundra na direção que Zachar tomara, suas curtas pernas dando passos altos a fim de evitar que se prendessem na vegetação. Caleb hesitou um momento e depois seguiu-os.
Em vez de fugir para o interior da ilha, Zachar tomara uma trilha irregular que corria paralela à praia. Farrapos de nevoeiro escondiam-no às vezes de sua visão. Caleb gritou-lhe de novo, mas sabia que não podia ser ouvido acima dos berros das focas. Quando Zachar virou-se como bêbado em direção aos rochedos, Caleb notou que uma grande pedra parecia mover-se. Compreendeu então que era um grande macho dono de um harém, um que os homens haviam cegado; enraivecido até o ponto de atacar qualquer som que escutasse, lançou-se sobre Zachar com surpreendente velocidade.
Caleb gritou-lhe um inútil aviso quando o enorme macho investiu sobre Zachar, atirando-o no chão. Caleb tentou correr mais depressa, mas suas pernas sentiam-se estranhamente pesadas e não atendiam a seu comando. O macho caiu sobre Zachar, agarrando seu corpo com os enormes caninos e sacudindo-o ferozmente como faria com qualquer outro macho que invadisse o território. Zachar não ofereceu nenhuma resistência.
O menino parou e começou a pegar pedras e atirá-las no animal, tentando afastá-lo do corpo. Sua pontaria era ruim e as pedras pequenas que atingiram o alvo ricochetearam na espessa camada de pele e gordura, sem efeito maior do que uma gota de chuva.
A cinco metros do macho, Caleb parou e mirou a pistola no animal. Subitamente, o menino atravessou sua linha de fogo armado com um pedaço de pau que achara na praia.
- Afaste-se daí! - gritou-lhe Caleb.
O possante animal virou a pequena cabeça na direção de onde vinha o som da voz de Caleb, com dois buracos abertos e sangrentos que haviam sido seus olhos. Quando o garoto recuou, Caleb deu um passo à frente e agarrou-o pela nuca, puxando-o para trás. O macho, aos berros, fez um rápido movimento em direção a eles. Caleb apontou com rapidez e atirou. O animal caiu com um baque surdo.
O menino passou rápido por ele em direção ao corpo imóvel de Zachar e ajoelhou-se a seu lado. Caleb andou devagar na direção deles e ali agachou-se também. O ombro esquerdo de Zachar estava estraçalhado e o sangue escorria do enorme corte. Caleb notou que a rocha perto da cabeça de Zachar estava manchada de sangue e concluiu que Zachar ficara desacordado pela pancada quando caiu. Tentou ver se o homem tinha alguma pulsação na artéria do pescoço, mas não sentiu nada. Sangue quente e pegajoso sujava seus dedos quando ele retirou a mão e ele tentou limpá-lo com o capim umedecido pelo nevoeiro.
O menino colocou a mão sobre a cabeça grisalha do pai como se estivesse tentando acordá-lo. Disse algo em russo que Caleb não entendeu mas que parecia uma tentativa para acordá-lo.
Caleb pegou-o gentilmente pelos ombros e afastou-o do corpo.
- Está morto, filho.
O menino olhou-o espantado e depois, com súbito arranco, livrou-se dele e correu, desaparecendo quase instantaneamente no meio do espesso nevoeiro.
Depois de uma tentativa para localizar o garoto, Caleb desistiu da procura. Estava na hora de abandonar a ilha. Já estava ali um dia e meio alem do que planejara originalmente.
Mikhail escutava o abafado repique dos sinos da igreja anunciando o casamento da filha mestiça de Baranov, Irina, com o tenente Semyon Ivanovich Yanovskii, o homem que fora nomeado sucessor de Baranov como governador da América russa. Procurou concentrar-se no ritmo do bimbalhar dos sinos, tentando usá-lo para bloquear o som do rápido e laborioso respirar da idosa mulher que estava no leito - sua mãe, Tasha. Mas de nada adiantava; nada podia mascarar as desesperadas tentativas que ela fazia para aspirar o ar para dentro de seus congestionados pulmões.
Ele inclinou-se para a frente na cadeira posicionada ao lado do leito e olhou sem esperanças para ela. Tasha tinha-se tornado tão magra e fraca que era difícil distinguir o contorno de seu corpo debaixo da camada de cobertores que a abrigavam. A tuberculose devastara seu corpo que agora ficara vulnerável à pneumonia que a atacara.
Seu rosto parecia escavado e oco, a pele de uma cor cinzenta doentia; mantinha os olhos fechados. Mikhail desejava acreditar que ela estava dormindo, descansando pacificamente, mas aqueles rápidos haustos em busca de ar revelavam sua luta pela vida. Ele se lembrava do quanto ela desejara assistir ao casamento da filha de seu velho amigo Baranov e ver os vasos eucarísticos de prata espanhola que, como aprendiz de prateiro, seu neto Lobo tinha ajudado a modelar. Em vez disso, estava em seu leito de morte enquanto os sinos da igreja repicavam.
Alguém tocou-lhe o ombro e Mikhail, olhando para cima, deparou com um par de olhos tão azuis quanto haviam sido os de seu irmão Zachar. Eles pertenciam entretanto a um robusto jovem de quinze anos que tinha os cabelos negros de Corvo e suas feições ossudas.
- O chá está quente - disse Lobo. - Eu fico com babushka se o senhor quiser tomar um pouco.
Mikhail fez que sim com a cabeça e pôs-se de pé, contente em trans ferir a outro sua vigília, a despeito da sensação de culpa que isto acarretava. Quando Lobo tomou seu lugar na cadeira ao lado do leito, dirigiu-se até o samovar e encheu meia xícara com chá; depois derramou nela um pouco de rum para enchê-la até um centímetro da borda. Tomou um gol£ da quente e potente bebida e depois olhou para o jovem.
Sua atenção, porém, dirigiu-se para Lobo - Lobo e a lembrança daquela noite chuvosa há quase dez anos, quando ele, como prático, guiara o navio do correio do Kodiak até o porto, o navio que trouxera a notícia da morte de Zachar. Ele não teve outra coisa a fazer senão levar o menino para a cabana de sua mãe.
Quando deu a notícia a Tasha acerca de Zachar, ela não pareceu surpresa, apenas emocionalmente esgotada.
Acho que sabia que ele não voltaria das ilhas das focas - disse ela. - Pedi-lhe para não ir, mas ele falou que estava nas mãos de Deus.
Depois, disfarçando sua amarga frustração tão bem quanto podia, Mikhail puxou o menino das sombras onde estivera escondido como um animal assustado e cauteloso e disse, quase afogado pelas palavras:
" Zachar deixou alguém aos nossos cuidados. - E, empurrando o menino em direção à avó, acrescentou: - Vá para sua babushka.
Após algumas tentativas, ela convenceu-o a sentar-se em seu colo. Seus longos e finos dedos acariciaram-lhe os negros cabelos emplastrados pela chuva e que brilhavam à luz da lâmpada.
Nós nos daremos bem, eu e você. Eu gostaria apenas de ser um pouco mais moça para poder viver e vê-lo crescer.
- Você tem muitos anos pela frente, babushka - disse Mikhail, lembrando-se de haver protestado contra tal afirmação.
Depois ela começara a tossir com a tuberculose que agora devastara tão completamente suas forças. Ele a tinha levado para a cama, insistindo em que descansasse.
Naquela noite ele também bebera chá pesadamente traçado com rum. Tentara afogar seu zangado ressentimento por responsabilizar-se sozinho pela guarda de sua doente e envelhecida mãe e de seu jovem sobrinho. Zachar estava morto; ele nunca mais voltaria para partilhar com ele de qualquer parte daquela carga. Larissa se fora, banida para sempre de Sitka com seu capitão de Boston. Ele, Mikhail, era o único que restava.
Ele se exasperara contra a injustiça de tudo naquela noite, sabendo que significava que não podia participar de nenhuma das três expedições que Baranov estava enviando naquele outono para localizar posições para futuros estabelecimentos: uma para o Havaí, outra para a Califórnia e uma para a foz do rio Colúmbia, na Nova Albion; esta última, a despeito de uma informação trazida por Rezanov dois anos antes, de que uma expedição comandada por dois homens chamados Lewis e Clark estava no Colúmbia. Seus sonhos de viajar para plagas distantes morreram naquela noite, enterrados para sempre pelos encargos familiares - uma carga que repousava apenas em seus ombros.
Durante dez longos anos havia escutado as histórias contadas por pessoas que tinham estado nos lugares que ele sonhara ver, e ouvira os relatórios trazidos de volta dos estabelecimentos fundados na ilha de Kauai, no Havaí, e em Forte Ross, no norte da Califórnia. Por dez longos anos ressentia-se da resPonsabilidade que o acorrentava em Sitka como se tivesse uma âncora presa no pescoço. E por dez longos anos vivera com a culpa de tal ressentimento.
Amava a mãe. Amava-a verdadeiramente, o que o fazia tanto mais forçado a ponto de olhar para a própria morte como um meio de fuga. No entanto ele se lembrava, enquanto a segurava, que muitas vezes aquela mão o havia acariciado com afeição. O amor que seu pai lhe havia demonstrado era uma vaga memória, mantida viva pelas histórias que sua babushka lhe contava acerca de Zachar.
Nestas poucas últimas semanas, entretanto, ela havia falado mais e mais frequentemente acerca da ilha aleúte de Attu, onde havia nascido, desejando que pudesse ir até lá antes de morrer. Quando seus pensamentos recuavam ao passado e a sua meninice naquela longínqua ilha, ela se lembrava com detalhes dos cestos que Mulher Tecedeira fazia, de sua mãe costurando as belas parkas de couros de pássaros; seu tio, Barbudo, sentado no lado de sotavento da bambara observando o mar, as danças festivas, as horas de contar histórias. Era como se ela pudesse ver mais claramente os dias passados do que as sombras do amanhã.
Ele agarrou com força a mão dela, não desejando que a morte a roubasse dele como tinha feito com seu pai. A brancura da mão dela lembrava-o da cerração naquele dia na ilha das focas. A imagem borrada do homem de olhar selvagem e roupas fedorentas, com a pistola na mão, apresentou-se ante os olhos de sua mente junto com aquela voz de ianque que dizia: "Ele está morto, filho."
No rastro daquela memória vinha outra. Ele tinha sete ou oito anos quando sua mãe viera buscá-lo. Babushka discutira com ela, recusando-se a deixá-la partir com ele, e Corvo declarara: "Eu nunca disse que Zachar era o pai dele. Ele é que dizia."
Afinal ele fora com sua mãe, às vezes vivendo nas casas de troncos de seu povo, às vezes em Sitka, onde a cabana de babushka tornou-se um refúgio para sua confusão. Muitas vezes perguntara à mãe se Zachar era seu pai; usualmente não recebia resposta. Uma vez quando estava bêbada com a água de fogo ianque, ela dissera que o pai dele era o homem de Boston, Caleb. Em toda a sua vida ele só ouvira falar de um só homem com aquele nome.
Há três anos, quando tinha doze, sua mãe contraíra sífilis, a grande varíola dos homens brancos, e nenhum russo ou ianque lhe dava presentes para levá-la para a cama. Mikhail a tratara com mercúrio e a curara, mas mesmo assim os homens a evitavam. Mikhail o ajudara e arranjara para ele aprender o ofício de ferreiro porque ele era o filho de Zachar.
Babushka pensava nele como o filho de Zachar. Corvo mentia muitas vezes, mas ele nunca vira sua babushka mentir. Vagarosamente, ao longo dos anos, ele viera a pensar dele mesmo como filho de Zachar, como a avó, e afastou as dúvidas que Corvo despertara em sua mente.
Subitamente, o ritmo da respiração de Tasha alterou-se, diminuindo de sua rápida e agoniada cadência para uma mais calma. Parecia tão em paz que Lobo voltou-se animado para Mikhail, certo de que seu tio Mikhail estava errado, que a babushka não iria morrer, não naquele dia.
- Ela está melhor. - Ele falou rápido e com suavidade, dirigindo a atenção de seu tio para sua querida babushka. - Veja como está descansada.
Mikhail hesitou e depois foi até o leito. Quando ele estava de pé ao lado da cadeira de Lobo, Tasha aspirou profundamente e depois soltou num longo suspiro. Depois só houve silêncio. Calma e tranquilamente, ela morrera.
Lobo olhou para seu corpo inerte sem poder acreditar, mentalmente se esforçando, tentando fazer com que ela de novo respirasse. Ela o deixara como seu pai o havia deixado. A raiva e a dor queimavam-no por dentro e ele cerrou seus maxilares com tanta força que os dentes lhe doeram.
Sem querer, vieram-lhe aos lábios as palavras que ouvira-a uma vez dizer: "Eles sempre se vão..."
A raiva de que estava possuído desapareceu. Ajoelhou-se ao lado da cama, fez o sinal-da-cruz e tentou rezar. Ouviu quando Mikhail virou-se e dirigiu-se para a mesa. Ali ele caiu em cima de uma cadeira e enterrou a cabeça nos braços para afogar o som dos suspiros que lhe estremeciam o corpo.
Um jovem de 25 anos, vestido com o uniforme de um imediato ianque, andava pela rua observando tudo o que se passava ao redor com um interesse que era mais do que curiosidade. O barulho das serras e dos martelos dos carpinteiros que construíam a nova mansão de três andares no penhasco que dominava a baía formava um ruído de fundo contínuo. Da ferraria vinha o som do malho batendo no ferro, onde relhas de arado e enxadas eram forjadas, destinadas ao estabelecimento russo em Fort Koss, próximo a Bodega Bay, na Califórnia.
A Igreja Ortodoxa Russa ficava no lado sul da rua. Há vinte anos Baranov ordenara que um velho navio fosse puxado para terra e remodelado para transformar-se numa igreja, a primeira a ser erigida em Novo Arcanjo. O marinheiro parou do lado oposto da praça e observou a torre coroada por uma característica cruz grega, com a barra inferior torta. Depois continuou a subir a rua. Quando ele passava pela oficina de um praieiro, seu olhar foi atraído por um Cartaz sobre a porta. Parou e voltou para lê-lo, franzindo a testa à língua russa, que tinha dificuldade em decifrar. Afinal, sua expressão clareou-se e depois de um momento de hesitação entrou na loja.
Sentado em sua mesa de trabalho ao lado da janela, Lobo Tarakanov lançou-lhe um olhar quando o homem entrou na loja. O cabelo grosso e negro e a pele de um bronzeado leve indicavam sua ascendência índia mas os olhos de um cinza azulado e as feições eslavas revelavam a mistura de sangue russo. Ele pôs de lado o bracelete de prata e a ferramenta com que estava trabalhando; depois endireitou o corpo sentado no banquinho, distraidamente limpando as mãos na frente do avental de couro. Um ligeiro franzido cruzou-lhe a testa quando olhou com curiosidade para o marinheiro. Os cabelos escuros do homem, seus olhos azuis e o formato do rosto lhe eram vagamente familiares.
- Estou procurando por Tasha ou Mikhail Tarakanov. O letreiro da loja diz que seu nome é Tarakanov. Poder me dizer onde posso encontrá-los? - perguntou o homem em mau russo.
Lobo encarou-o atentamente e respondeu em inglês:
- O senhor é ianque?
- Sim. - O homem parecia aliviado por Lobo falar sua língua.
- Mikhail Tarakanov vive na Califórnia, em nosso estabelecimento. Tasha Tarakanova morreu há uns vinte anos; está enterrada no cemitério daqui. - Lobo hesitou um momento, ainda tentando descobrir a razão pela qual o marinheiro ianque parecia-lhe tão familiar. - Sou o neto dela: Lobo Tarakanov.
- Eu sou Matthew Edmund Stone, de New Bedford, Massachusetts, filho da neta dela, Larissa.
- Estava achando que você me parecia familiar. Agora vejo... disse Lobo, piscando os olhos, surpreso. Abruptamente ele se calou; era quase como se estivesse se mirando num espelho. - Você é o filho de Caleb Stone.
- Sim.
Um arrepio de frio correu pelas veias de Lobo. Por um momento ficou olhando para a mão que lhe era estendida em cumprimento. O nome evocava dolorosas lembranças e uma questão remota em sua mente. Forçou-se a apertar a mão do homem, cerca de oito anos mais moço que ele.
- Sou o filho de Zachar Tarakanov - afirmou Lobo. - Minha mãe é a mulher kolosh chamada Corvo. Ela vive em Ranche - disse ele, referindo-se à aldeia índia construída à sombra da paliçada de troncos da cidade, mas o nome de sua mãe pareceu não ter nenhum significado para o homem. - Eu era apenas um menino quando sua mãe deixou Novo Arcanjo. Infelizmente, não tenho lembrança dela e há muitos anos que não recebemos nenhuma comunicação. Espero que esteja bem.
- Ela morreu há cerca de quinze anos, de tuberculose.
- Lamento saber. - Ele queria perguntar acerca de Caleb Stone, mas as palavras não lhe vinham à boca. - Seu navio chegou recentemente a Sitka?
- Sim; é o baleeiro North Star.
Lobo lançou um olhar agudo ao marinheiro. "Navios do inferno" como chamavam os baleeiros, comandados por notórios e brutais homens e com tripulação de assassinos e ladrões. Cismou se isso explicava o olhar de aço nos olhos do homem e a dureza de sua boca. ? Você não segue seu pai na carreira de mercador?
Sigo meu pai. Ele é o capitão do North Star. Ele passou a dedicar-se à caça da baleia depois do fim da guerra de 1812 com a Inglaterra. - Mas Matthew Stone não explicou que o embargo inglês e o bloqueio tinham prejudicado severamente o comércio ianque no Pacífico, ou que seu pai não obtivera os recursos para se recuperar e virtualmente perdera tudo o que tinha. - Há um lucro considerável na caça às baleias. Dizem alguns que o espermacete vai voltar a custar um dólar o galão. Trabalhando com participação, um homem pode ganhar um bom dinheiro. Esta é em parte a razão pela qual aportamos aqui em Sitka; alguns membros de nossa tripulação abandonaram o navio no Havaí. Estamos com falta de gente e dizem que os aleútes são bons com um arpão. Pensamos que seria possível fazermos um contrato com a companhia para usar seus serviços, da forma que os navios costumavam fazer nos velhos tempos, caçando lontras-do-mar ao longo da costa da Califórnia.
- Vocês não tiveram nenhum sucesso - adivinhou Lobo e balançou a cabeça, compreendendo quando Matthew sacudiu negativamente a dele. - Os aleútes preferem seu velho modo de caçar baleias: arpoam-nas e depois esperam que as baleias mortas venham a dar à praia. A companhia tentou caçar baleias há alguns anos, mas a experiência não teve sucesso.
- Assim nos disseram - disse Matthew, enfiando as mãos nos bolsos de sua japona.
Lobo limpou nervosamente a garganta e depois perguntou:
- O seu pai também está na cidade?
- Não; ele está no barco. Ele... não está passando bem.
- Temos um médico aqui em Arcanjo, bem como uma farmácia. Eu poderia arranjar facilmente para...
- Não é necessário - interrompeu-o Matthew Stone. - É uma espécie de febre que ele apanhou nos trópicos; passará dentro de alguns dias. Não vamos ficar no porto muito tempo: por causa de minha mãe, achei que deveria encontrar alguém de sua família.
Talvez pudesse vir a nossa casa esta noite para jantar e conhecer minha mulher, Marya, e nossos três filhos.
- Não... eu não posso. - Ele disfarçou a rapidez de sua resposta, mas não procurou uma desculpa. - Foi um prazer conhecê-lo... Lobo, mas tenho que voltar ao North Star.
Na verdade, Lobo ficara aliviado que seu convite para jantar tivesse sido recusado.
Espero que a febre de seu pai passe rapidamente.
Obrigado. - Ele cumprimentou-o com a cabeça e depois saiu.
Lobo dirigiu-se de volta à mesa de trabalho, pegou no bracelete Pretendendo examinar em detalhes o desenho em forma de totem que estava gravando em sua superfície. Pegou o pano de polir e começou a esfregá-lo no brilhante metal, que refletiu a luz do sol que penetrava pela janela. Mas sua mente não estava no trabalho à sua frente; em vez disso, estava mergulhada no passado.
Por tanto tempo pensara em si mesmo como o filho de Zachar, que deixara morrerem as dúvidas acerca de sua filiação. Pensara que elas tinham morrido até hoje, quando o filho de Caleb Stone entrara em sua oficina, tão parecido com ele como se fosse seu irmão.
Muito tempo depois de Matthew Stone deixar a oficina, Lobo ficou sentado em seu tamborete, esfregando o bracelete de prata, cismando e dizendo a si mesmo que aquilo não tinha importância. Por fim, arriou o bracelete na mesa, despiu o avental, pegou o chapéu e o casaco e saiu da loja.
A paliçada de troncos, que separava a cidade de Novo Arcanjo do acampamento adjacente dos kolosh conhecido como Ranche, estava muito reforçada e seu portão munido de ponte levadiça fortemente guardado. Ninguém parou Lobo quando ele passou pelo portão. Os guardas estavam acostumados às visitas regulares que ele fazia à mãe; o dever deles não era manter os russos fora do acampamento, mas sim restringir o número de kolosh que vinham à cidade. Os cães do acampamento corriam ao lado dele, latindo e balançando as caudas.
Perdido em seus pensamentos, ele não lhes prestou atenção e não parou até que se viu dentro da habitação de troncos da família de sua mãe. Ali ele fez uma pausa para ajustar seus olhos ao ambiente, o qual era iluminado pela luz que se infiltrava pelo buraco da chaminé no teto. O ar parado fedia a óleo de peixe, cheiro de corpos humanos e a fumaça da fogueira que ficava no centro e que nunca era apagada. Estavam preparando a comida, como eles pareciam que sempre estavam, pois se alimentavam várias vezes ao dia.
Ninguém falou com ele; não era costume dos kolosh se cumprimentarem. Também Lobo não era bem recebido, como ele sabia; escolhera viver como os russos, uma forma de vida que o povo de sua mãe continuava a rejeitar.
Quando viu que ela não estava entre as mulheres que preparavam comida, andou até o canto onde ficava a enxerga em que ela dormia. Os kolosh desprezavam o uso de móveis de forma que não havia cadeiras ou camas. Sua mãe jazia num colchão no solo, coberta por uma manta.
Os anos não haviam sido clementes com ela; tornara seu grosso cabelo grisalho e afundara suas faces e olhos. A fina cintura havia desaparecido sob o acúmulo de gordura e os seios estavam caídos. Quando se agachou, sentando-se nos calcanhares ao lado dela, Lobo notou as gotas de suor em sua pele febril.
- Por que não me mandou dizer que estava doente?
- Estou com calor - disse ela, como se a negar qualquer doença e afastou do corpo o cobertor.
Profundas marcas vermelhas espalhavam-se pela parte interior de seu antebraço. Lobo pegou em seu pulso para examinar as feridas mais de perto.
- Existem mais dessas marcas vermelhas em sua pele? - perguntou ele com ar preocupado.
Ela fez que sim com a cabeça e voltou-se para o outro lado. Ele ficou de pé e, olhando para baixo para sua mãe, disse: _ vou buscar o médico.
Depois que o médico alemão examinou Corvo, informou a Lobo que ela sofria de uma recaída de sífilis; ela havia contraído varíola. A doença fora localizada nas aldeias ao sul de Sitka, na região de Tongass. O diagnóstico da doença de Corvo significava que a varíola havia-se espalhado; a temível epidemia atingira Sitka.
A família Tarakanov foi das primeiras a ser inoculada com o soro antivariólico do suprimento da farmácia local. A vacinação foi determinada para todos no estabelecimento de Novo Arcanjo.
A vasta maioria dos kolosh no acampamento Ranche e nas aldeias das ilhas vizinhas recusaram-se, porém, a receber o remédio do homem branco, e a peste espalhou-se rapidamente. A despeito da repetida insistência de Lobo, sua mãe não permitia que o doutor a tratasse. O médico negou o pedido de Lobo para removê-la até sua cabana, onde ele cuidaria dela, pois insistia em isolar as vítimas da varíola.
Lobo estava sentado de pernas cruzadas no chão de madeira e colocava água na boca de Corvo com uma colher. Sem jamais ficar parado, o xamã pulava selvagemente em torno dela, cantando encantações aos espíritos. Abaixando-se, ele sacudia sua cabaça cheia de pedras por sobre o corpo de Corvo e torcia seu rosto pintado em horrorosos esgares, colocando a língua para fora e assobiando alto.
Mas seus poderes não podiam banir o cheiro da morte que pairava no ar. Irritado pela futilidade dos esforços de ambos, Lobo jogou fora a colher de cabo entalhado e depois juntou com força as mãos, tentando conter a raiva que sentia. Olhou fixamente as feições quase irreconhecíveis de Corvo, com as pústulas da varíola cobrindo-lhe cada centímetro quadrado do rosto. Compreendeu que ela iria morrer e que ele jamais saberia da verdade acerca de seu pai.
Um ódio violento e arrasador tomou conta dele. Agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a violentamente, determinado a acordá-la do estupor da peste.
- Diga-me, feiticeira! - Sua voz era rouca e enraivecida. - Diga-me ao morrer o nome de meu pai! - As pálpebras dela se moveram. Sou o filho de Caleb Stone ou de Zachar Tarakanov?
Algo como um cacareJo veio da garganta de Corvo, seus olhos abriram numa estreita fresta e sua velha insolência refletiu-se neles; dePois, o pesar os fez perder o brilho.
Ela sussurrou: Caleb Stone. A resposta tirou dele toda a raiva- Lobo voltou a sentar-se, estranhamente sem qualquer emoção. O xamã dançava com renovado vigor aumentando de cadência com o bater dos tambores e o chocalhar de sua cabaça.
Durante a noite, Corvo morreu.
Naquela mesma noite, o baleeiro North Star violou a quarentena e escapou do porto sob a coberta do nevoeiro. Mais tarde, correu a informação de que um navio ianque atacara uma aldeia ao longo da costa norte, capturando quatro guerreiros kolosh; pouco tempo depois, a varíola grassou na aldeia.
Suprimentos da vacina contra a varíola foram despachados às pressas de Sitka para todas as estações russas, desde o estreito de Cook e as Aleutas, até a baía de Bristol e o estreito de Norton e o Yukon, num esforço para impedir que a doença atingisse os tlingits no norte, os athabascans no interior, os aleútes nas ilhas e os esquimós na costa do Ártico. Somente os aleútes se submeteram à vacinação ordenada pela companhia. Como os tlingits, as outras tribos resistiram à ciência do homem branco.
Lobo testemunhou a cremação de muitos membros do clã de sua mãe. Quando a tribo kolosh afinal convenceu-se do valor da vacina, metade de sua população adulta estava morta.
O repique dos sinos de bronze, fundidos na Rússia e presenteados pela Igreja Ortodoxa de Moscou, soava continuamente da torre da catedral de São Miguel, localizada quase em frente ao sítio da igreja original. Seus claros sons assinalavam o fim das estritas restrições da Quaresma e o começo das festivas celebrações da Páscoa. No topo da agulha de cobre com o feitio de uma chama, em cima da torre do campanário, a cruz ortodoxa brilhava dourada à luz do sol.
No interior da catedral, decorada de branco e dourado, construída com o formato de uma cruz, perfumadas nuvens de incenso subiam para a abóbada arredondada do transepto. Lobo Tarakanov estava de pé no meio da congregação, uma gravata de seda preta em volta do pescoço de sua camisa de linho, sua sobrecasaca preta desabotoada. Aos 61 anos, ele tinha um porte digno e elegante, alto e ereto, e seu farto cabelo tinha a cor de prata oxidada. Os olhos de um azul acinzentado não haviam perdido o brilho, sua agudeza permitindo-lhe ainda inspecionar o trabalho repoussé (relevo batido a martelo) dos doze ícones prateados que ornamentavam os Passos da Via Sacra. Como sempre, ele olhava com orgulho os vasos eucarísticos de prata que muito tempo atrás ajudara a modelar.
Naquele dia santo da Ressurreição de Cristo, o padre apareceu com paramentos da Páscoa feitos com o tecido de prata, em vez das vestes de tecido dourado, doado à igreja por Baranov e bordado a contas pelos eliútes num intrincado mosaico de pintura. Enquanto o padre lia o ofício da Páscoa, um grupo de meninos cantava o coro a capela, suas jovens e melódicas vozes misturando-se docemente. A atenção de Lobo voltou-se para o coro.
Uma cotovelada leve tocou-lhe as costelas. O gentil lembrete para dirigir sua atenção de volta ao serviço provinha de sua esposa Marya. Em vez disso, serviu para dirigir-lhe os pensamentos para a própria família: sua bela filha, Anastasia, tão bem casada com um tenente da Marinha Imperial, Nikolai Ivanovich Politoffski; seu segundo filho, Stanislav, artesão de cobre, e sua mulher, Dominika, uma mestiça de sangue kolosh, e seu filho de quinze anos, Dimitri, cujos olhos negros muitas vezes faziam Lobo lembrar-se de Corvo; e seu filho mais velho, Lev, um engenheiro de minas, com sua esposa de cabelos louros, Aila, filha de um capitão militar finlandês, e suas duas filhas, Nadia, de treze anos, aluna da escola de meninas fundada por Lady Etolin, com muito jeito de uma jovem mulherzinha em seu vestido de musselina e suas calças compridas bufantes usadas sob as saias, com fitas de seda nos cabelos, e Eva, a pequenina de quatro anos, tão simples e séria.
Sim, podia orgulhar-se de sua família, concluiu Lobo; e por um pouco de tempo ele prestou atenção à liturgia. Depois, suas pernas começaram a doer de ficar em pé tanto tempo. Mudou a perna de apoio para aliviar o esforço, pensando se os luteranos, em sua igreja do outro lado da rua, não tinham uma melhor ideia usando longos bancos onde as pessoas podiam sentar-se. Sorriu, sabendo que não ousaria sugerir isso à esposa.
Finalmente, chegou a hora de desfilarem, um a um, pela frente do padre e beijar a cruz enfeitada de gemas que ele tinha na mão. Do lado de fora da igreja, o clangor dos sinos enchia o ar, competindo com o ressoante órgão da Igreja Luterana.
Passados os sombrios dias da Quaresma e acabadas as obrigações religiosas, o dia tomava um aspecto festivo. Tudo eram risos e alegria. Presentes individuais de ovos de Páscoa, cozidos bem duros e pintados, ou - no caso do praieiro Lobo Tarakanov - dourados, eram presenteados aos amigos.
Em toda a parte ouvia-se a saudação "Cristo ressuscitou!", que era respondida: "Na verdade, ressuscitou!" E cada saudação era seguida por um beijo ou dois. Era um rodopiar louco e alegre, com pouco tempo para respirar entre dois beijos.
A família Tarakanov inteira reuniu-se para uma festa de Páscoa- Comeram e beberam até que não restasse mais nada. Os homens retiraram-se para a varanda. as CrIanças foram mandadas para brincar lá fora e as mulheres fizeram o que sempre fazem quando separadas dos homens. Ignorando os primos que brincavam na rua, a maioria dos quais rapazes, Nadia pegou o ovo pintado de seu colo e virou-se para a irmãzinha, dizendo:
- Junte suas mãos e deixarei você segurá-lo.
Cônscia do grande privilégio que lhe era concedido, Eva juntou as mãos em seu colo, com as palmas para cima, e esperou enquanto Nadia colocava o ovo alegremente decorado no pequeno nicho formado por suas mãos.
- É muito bonito! - declarou Eva solenemente.
- Não deixe cair - avisou-a Nadia. - Quebra em mil pedaços se cair, e eu nunca a perdoarei.
- Eu seguro com força - prometeu a pequena.
- Nadia! - O jovem Dimitri veio correndo até a escada, seu negro cabelo cortado curto caindo sobre a testa. - Venha jogar cabra-cega conosco!
- Eu poderia sujar minha roupa - respondeu Nadia, sacudindo a cabeça. - Além disso, tenho que cuidar de Eva. - Fez uma ligeira careta, cansada de sempre ter sua irmãzinha menor como uma sombra.
- O que você vai fazer? Só ficar sentada aí? - provocou ele.
- Talvez... - disse Nadia, encolhendo os ombros, disposta desta vez a não deixá-lo começar uma discussão da forma como sempre fazia.
Ele ficou sério ao olhar rapidamente para os primos em algazarra na rua e declarou, com súbito desdém:
- É brincadeira para crianças.
Nadia sentiu um resquício de simpatia, algo que ele raramente despertava nela, mas estava aprisionada na mesma armadilha: velha demais para brincar com as crianças e jovem demais para ser aceita pelos adultos em suas conversas.
- Sobre o que você acha que os homens conversam? - perguntou ela.
- Não sei - disse ele, encolhendo os ombros indiferente; depois um brilho escuro apareceu em seus olhos. - Vamos escutar e descobrir!
- E deslizou escondido pelo lado da casa, colocando-se próximo ao peitoril da janela.
- Dimitri Stanislavich, você...
- Psiu! Eles podem ouvi-la - disse ele, arregalando os olhos; depois fez-lhe um sinal para que se aproximasse. - Vem cá!
Ela hesitou, mas sua própria curiosidade fora despertada.
- Você fica aqui - falou Nadia em voz baixa mas firme para sua irmãzinha, e depois chegou-se até a janela, ao lado do primo.
Instalado com todo conforto numa poltrona elegantemente trabalhada, Lobo fumava seu cachimbo, apreciando o sabor e o aroma do tabaco, encontrando nele um renovado prazer após a longa abstinência da Quaresma. Fazendo um esforço, concentrou sua atenção no homem atarracado, de peito largo que agora falava: seu filho mais velho, Lev.
- De acordo com as informações que chegaram no último navio da Califórnia - dizia Lev -, o povo ali ainda acredita que quando essa luta interna na América acabar e os exércitos da União vencerem, a venda da América russa para os Estados Unidos se efetivará.
Embora a colónia russa de Fort Ross, na Califórnia, tivesse sido abandonada e suas terras e propriedades vendidas para um homem chamado John Sutter em 1841, foi mantido um certo comércio com a costa sul.
um mercado lucrativo para a Companhia da América Russa. Uma mercadoria tinha uma demanda constante. - Há três anos que eles vêm falando de uma venda. É apenas conversa fiada. - O genro de Lobo, o tenente da Marinha Nikolai Politoffski, escarneceu. - O czar nunca venderá esta terra para a América. É impensável! Nunca em sua história a Rússia cedeu voluntariamente um centímetro da terra que ocupa.
- Explique então por que o czar não renovou a patente desta companhia, que lhe dá direitos exclusivos sobre o território - desafiou-o Lev.
- Há três anos que operamos com poderes temporários. Há três anos, o mesmo tempo que duram estas discussões de venda. Você acha que isto é coincidência?
- Sim - replicou rápido Nikolai, ficando empertigado de pé, a própria imagem do oficial, embora a túnica de seu uniforme de gala estivesse desabotoada. - A terra faz sempre parte da glória do czar! Quanto mais longe de São Petersburgo, mais gloriosa!
- Talvez... - começou Stanislav calmamente, levantando-se do sofá de pêlo de cavalo. - Talvez estejamos longe demais de São Petersburgo. Talvez a guerra da Criméia tenha mostrado ao czar que a Marinha dele não pode nos defender. A Marinha nada pode fazer para proteger as Aleutas e as costas do Ártico da frota ianque de baleeiros. Eles descem a terra a todo momento para transformar a gordura de baleia em óleo e espalhar doenças e corrupção entre os nativos. Obrigam os aleútes a trabalharem em seus navios e levam as mulheres aleútes e innuits para cometerem suas bandalheiras. Se a Marinha não pode conter baleeiros desarmados, como poderia ela nos defender se formos atacados por exércitos estrangeiros?
- A Inglaterra não ousaria invadir. É verdade que ela ocupa o Canadá em nossas fronteiras, mas não tentaria ampliá-las, o que significaria guerra com os Estados Unidos - disse Nikolai, reagindo fortemente a este ataque à Marinha Imperial. - A América é nossa aliada. Vejam como ela nos ajudou, fornecendo armas e munições durante a guerra da Criméia. Agora mesmo toda nossa frota do Pacífico está no porto de San Francisco e a frota do Atlântico ancorada em Nova York.
- Eu não estava pensando na Inglaterra - replicou Stanislav -, mas na América e em sua crença no "Destino Manifesto". Vejam o que aconteceu na Califórnia quando descobriram ouro. Os espanhóis não puderam manter os americanos fora; eles invadiram a terra como um enxame de abelhas à procura de mel. E você, Lev - ele estendeu o braço na direção do irmão -, você já informou ter encontrado indicação de ouro.
- Essa palavra não deveria ser pronunciada - afirmou Nikolai, exibindo a arrogante e patronal atitude tão típica dos oficiais da Marinha imperial. Por ter se casado tão bem, às vezes ele se cansava dos ares superiores do tenente. - Se há neste país indicação da riqueza mineral que você alega, Lev Vasilivich, ela deveria ser explorada pela companhia. Se nossos portos fossem fechados para todos os navios que não os russos, como a Marinha já recomendou, a América não saberia de nossas descobertas. Não mantivemos a riqueza desta terra em peles um segredo para o mundo durante cinquenta anos? Até cartas marítimas destas águas, publicadas pela Academia Naval Imperial, continham erros propositais. Foi uma pena que a Marinha não estivesse aqui quando o capitão inglês Cook aventurou-se nestas águas. Nós não teríamos permitido que ele entrasse em contato com os nativos e assim teríamos impedido que negociasse com as peles. Estes seus supostos recursos minerais podem ser protegidos.
- É possível que o czar não tenha concedido uma nova patente à companhia porque pretenda declarar esta terra uma província da Rússia e colocá-la sob sua soberania - sugeriu Lev. - Isto deveria ser feito, de forma que não mais ficássemos subordinados aos ditames da companhia, forçados a comprar mercadorias e provisões aos preços da companhia. - Tal opinião era partilhada por muitos daqueles que haviam nascido na colónia e educados na Academia Colonial de Sitka, formando-se como navegadores, gravadores, contadores e topógrafos, obrigados a entrar para os serviços da companhia por dez ou quinze anos, com um salário insatisfatório.
- Então, se este é o plano do czar, por que ele demora? - argumentou seu irmão Stanislav, sacudindo a cabeça. - Não, ele planeja vender esta terra à América. Está esperando por uma vitória da União. Acho que devemos nos preocupar com o que acontecerá conosco quando isto acontecer. Quando eles tomarem posse, iremos ficar ou seremos mandados para a Rússia? Uma vez que juramos fidelidade ao czar, talvez não tenhamos outra escolha senão ir para a Rússia. Para você está bem, Nikolai Ivanovich. Lá é onde você nasceu e foi criado.
- Sim - concordou prontamente Lev. - Mas e nós? Esta terra é a nossa pátria, não conhecemos nenhuma outra. Nosso pai viveu todos seus sessenta anos neste lugar. Teremos que ser desarraigados daqui? Como iremos viver? Onde iríamos trabalhar? Esta é a única maneira de viver que conhecemos.
- E se ficarmos, não será pior para nós? - aventurou Stanislav, apreensivo acerca da mancha de sangue índio em seus ancestrais, especialmente quanto a sua esposa e seu pai, Lobo, que eram ambos meio kolosh. - Nós todos vimos ou ouvimos falar de como os americanos tratam aqueles de uma outra raça.
No pesado silêncio que se seguiu, Lobo deteve-se estudando o fornilho trabalhado de seu cachimbo e as cinzas mortas dentro dele. Essa incerteza acerca do futuro tinha perturbado toda a colónia nos últimos três anos. Ninguém ousava fazer planos ou começar um novo negócio. À medida que a discussão se prolongava, Nadia se cansou e abandonou seu posto de escuta sob a janela da varanda. Relutantemente, Dimitri seguiu-a.
- É sobre isto que todo mundo fala hoje em dia - queixou-se ela.
- Eu desejaria que os exércitos unionistas na América vencessem a guerra para acabar com toda essa confusão.
- Você deseja que os americanos governem aqui? - Uma ruga cruzava a testa de Dimitri.
- Você quer? - Nadia não gostava de discussões. Ela descobrira muito cedo em sua vida que a maneira mais suave de evitá-las era nunca discordar. Se para isso fosse preciso fingir algo, ela o fazia, para evitar aborrecimentos.
- Os americanos são ricos - disse Dimitri, encolhendo os ombros.
- Sim - respondeu Nadia. Ela também ouvira as histórias que em San Francisco havia casas mais opulentas e grandiosas que o castelo de Baranov, como era conhecida a residência do governador em Sitka. Retornando ao alpendre, ela sentou-se no degrau próximo à sua irmãzinha.
- Eu agora quero o ovo de volta.
Mas Eva ficara sentada tanto tempo naquela única posição, com o precioso ovo acomodado nas mãos, temendo mover um único dedo, que seus braços e suas mãos tinham enrijecido, ficado quase dormentes. Ansiosa para livrar-se de sua carga, ela tentou passá-la rápido demais e deixou o ovo cair. A frágil casca quebrou-se, deixando em estilhaços o complicado desenho.
- Como pôde fazer isso? - Horrorizada, Nadia abaixou-se para pegar seu ovo enfeitado. - Eu disse para você tomar cuidado! Veja o que fez! Eu nunca deveria ter deixado você segurá-lo. Você vive estragando minhas coisas! Vou contar a papai. Você vai se arrepender!
Lágrimas assomaram aos olhos de Eva. Quando Nadia começou a subir as escadas, carregando com cuidado seu ovo de Páscoa, Eva enfiou-se para dentro de casa na frente dela; correu direto para a sala de estar e buscou refúgio no colo de seu avô, Lobo.
- Eu não deixei cair de propósito - disse, soluçando. - Não fiz de propósito.
Nadia seguiu para dentro do aposento e foi procurar o pai.
- Veja, papai - disse com o queixo tremendo. - Veja o que ela fez. Eu a odeio!
- Ora, ora - admoestou-a gentilmente o pai.
- Deixe-me vê-lo. Lobo fez um sinal a Nadia para trazer-lhe o ovo. Ela encaminhou-se até a cadeira dele recusando-se a olhar para Eva, qUe se aninhava na curva protetora do braço do avô. Depois de examinar o ovo, ele sorriu, confiante. - Parece pior do que é. Dê-me esse ovo; creio que posso consertá-lo de forma que você nunca verá uma só rachadura!
- Eu não sou mais uma menininha, vovô - disse Nadia, empertigada. - O senhor vai fazer um novo ovo parecido com este e pretender que é o mesmo. Mas não será, nunca será o mesmo! - Ela virou-se com um rodar de saias e, num repente, desapareceu da sala.
Ainda era o início da tarde quando Lobo fechou a porta de sua oficina e subiu a rua. Agora raramente ele trabalhava o dia inteiro em sua oficina; preferia passar as horas da tarde com sua família ou visitando amigos, ou simplesmente ficando sozinho.
O sol da tarde brilhava, mas o ar estava fresco. O outono tinha pouco impacto visual nas florestas sempre verdes de pinheiros e cicuta que cobriam as encostas das montanhas e as ilhas. A neve coroava os picos das Irmãs e de Verstovia e esbranquecia o topo em forma de cratera do monte Edgecumbe. Pássaros selvagens em sua rota migratória para o sul passavam em bandos pelo céu.
Lobo observava aqueles gansos voando numa perfeita formação em "Vi" enquanto caminhava ao longo da calçada de tábuas quase deserta. Cedo naquele dia, as baterias da cidade tinham troado numa saudação ao navio russo que entrara no porto. Sua chegada atraíra muita gente da cidade para o cais. Alguns tinham amigos e membros da família entre a tripulação, outros esperavam a mala do correio e muitos simplesmente sentiam curiosidade.
A quietude da rua agora era uma agradável mudança de sua usual atividade. Muitas vezes ele sentia a pressão populacional das 2.500 pessoas na península em que ficava a cidade. Estava sempre a espalhar-se, a crescer. Quatro catres na sala traseira da farmácia tinham-se transformado num hospital de quarenta leitos. Havia uma biblioteca pública, uma cancha de boliche, quatro escolas secundárias, uma academia e dois institutos científicos, um para o estudo de zoologia e outro para os fenómenos do magnetismo terrestre e astronomia. Além disso, o terceiro andar da residência do governador fora convertido num teatro para a apresentação de peças em russo e em francês.
Quando se aproximava da pequena casa de chá no jardim público da cidade, Lobo avistou um russo de cerrada barba com as vestes pouco familiares de um promyshlenik. Aquilo lembrou-o dos dias em que esses rudes caçadores de peles, tais como seu pai, Zachar, dominavam a cena da cidade. Lontra, foca, raposa e outras espécies de pelagens valiosas ainda eram caçadas pelos aleútes sob a supervisão dos russos, mas não nos números de antes. Num esforço para conservar os recursos de peles da América russa, uma política estabelecida há vários anos, sob o governo do barão Ferdinand von Wrangel, restringira a caça numa certa região a um ano, a fim de permitir que os animais selvagens se reproduzissem sem serem molestados. As peles continuavam a ser o sustentáculo dos negócios da Companhia da América Russa, mas não eram mais o único empreendimento no qual ela se engajava. Os tempos mudaram, e Lobo testemunhara muitas das mudanças. Parou do lado de fora da casa de chá, estudando-a por um momento, depois entrou. Sentou-se sozinho, consciente de seu estranho modo contemplativo. Atribuía-o à inquieta atitude da colónia, nessa questão sem resposta acerca do futuro. Quanto a ele, aquilo não o preocupava muito. Tinha 61 anos; já vivera sua vida.
A noite passada, seu filho mais velho, Lev, tinha-o visitado; no entanto conversaram pouco. Lobo sentia a frustração e o desapontamento de seu filho. Há apenas alguns anos ele ficara excitado acerca dos planos da companhia para começar a explorar a riqueza mineral da América russa, plano que ela havia levado avante indicando um engenheiro de minas finlandês, Ivan Furguhelm, como seu novo gerente. Depois, o contrato da Companhia não foi renovado e apareceu a notícia das negociações para a venda da terra aos Estados Unidos. Tudo caiu num marasmo; os planos foram engavetados e virtualmente esquecidos.
Quando Lobo estava trabalhando em sua oficina esta manhã, ele tentara imaginar como se sentiria se fosse privado de prata, seu meio de trabalho, se tivesse de contentar-se com algo que não possuísse as propriedades da prata, sua textura ou seu brilho. Sua arte era dar forma e trabalhar esse metal, fazê-lo sair vivo de suas mãos. Compreendia a perda e a frustração que seu filho deveria sentir ao ter uma habilitação e nenhuma aplicação para ela.
À distância, ele escutou os gritos excitados provenientes da praça da cidade, e aqueles sons despertaram sua curiosidade. Para onde quer que olhasse via pessoas correndo, rindo-se e falando umas com as outras. Lobo saiu da casa de chá quando a excitação chegou ao jardim público. Não ouviu o suficiente de qualquer das conversas para descobrir algo além do fato de que o navio trouxera novidades. Então viu seu filho, Lev, todo sorrisos, caminhando ligeiro em sua direção.
- O que aconteceu?
- Ainda não soube? O príncipe Dimitri Maksutov voltou de São Petersburgo. Ele foi nomeado o novo governador. – O sorriso de Lev tornou-se mais amplo. - E ele traz a notícia que o irmão do czar, o grão-duque Constantino, assinou um compromisso concedendo à companhia um contrato de mais vinte anos. Haverá uma grande festa! E o rum correrá, à custa da companhia! E cantaremos a canção de Baranov - prometeu Lobo. A voz mais forte de Lev em breve ligou-se à dele e juntos cantaram: "A vontade de nossos caçadores, seu espírito comercial / Nestas longínquas plagas uma nova Moscou construíram. / Na desolação e nas dificuldades encontrando novas riquezas para a pátria e o czar..."
Antes que acabassem, um coro de vozes juntou-se a eles cantando o hino patriótico de sua terra. Na conclusão daquela demonstração improvisada houve um silêncio pungente. Lobo era o único presente que podia lembrar-se do homem que escrevera a canção, o homem considerado por muitos como o pai de sua pátria. Ele tinha dezesseis anos quando Baranov partiu. com os olhos da mente podia ver o homem baixinho e careca de pé no convés do navio, velho, cansado e triste, olhando pela última vez a cidade que construíra. Baranov morrera no mar, próximo a Batávia.
- Nunca acreditei por um só minuto que o czar fosse vender a América russa - declarou alguém.
- Nem eu - insistiu um outro.
Subitamente, todos alegavam que jamais haviam acreditado nos rumores. Era impensável. Os risos e os gritos ressurgiram quando todo mundo espalhou-se para contar as novas. De braços dados, Lobo e Lev seguiram para casa, a fim de comunicarem as boas novas à família.
A meio caminho da casa de Lev encontraram Nadia. Ela parou diante deles.
- Já ouviram? - perguntou ela com a respiração ofegante, seus negros olhos brilhando de excitação.
- Ouviram o quê? - perguntou Lev de brincadeira, contendo seu sorriso.
- O príncipe Maksutov regressou.
- Ele voltou? - disse Lev, piscando o olho para Lobo.
- Sim, e tem uma nova esposa. O nome dela é Maria, princesa Maria Maksutova. É a filha do governador-geral de Irkutsk. - E Nadia continuou, falando apressada: - Ela é jovem, quase da minha idade e... Lev começou a rir e ela parou no meio do que dizia; depois, rapidamente, veio em defesa de sua informação: - Ela tem dezenove anos e dezenove é muito perto de treze...
- É essa a notícia que você tem? - perguntou Lobo, esforçando-se para não rir-se dela.
- Sim, mas o fato é que a vi - apressou-se Nadia a explicar. Ela é bonita e tem o mais belo dos sorrisos. O senhor acha que eles vão dar um baile no castelo para ela? Pensa que tia Anastasia será convidada? O senhor acha que ela poderia me levar? Eu adoraria ir. Mamãe provavelmente dirá que sou muito jovem. Papai, o senhor deve falar com ela. Imagine só: encontrar um príncipe e uma princesa de verdade!
- Veremos - prometeu Lev.
Vovô, por que o príncipe Maksutov deseja que todo o mundo vá ao morro do Castelo? - A pequena Eva, de sete anos, olhava para a crescente massa de povo ao redor, todos se dirigindo para a pequena multidão que já se reunira ao pé da escadaria. A cruz de prata em estilo erego dançava pendurada na ponta de uma corrente em torno de seu pescoço, enquanto ela pulava ao lado do avô, Lobo, inconscientemente fazendo um largo arco com sua mão.
- Imagino que ele tenha algo importante a nos dizer.
- Mas o que poderia ser? O senhor pensa que o czar morreu? Ou que talvez os kolosh vão nos atacar? Será que estão agora escondidos na floresta, todos pintados e usando suas ferozes máscaras? O senhor acha que os parentes de tia Dominika nos matariam? Os seus seriam capazes?
- Sua imaginação trabalha demais! - admoestou-a ele gentilmente.
- Se os kolosh nos atacassem, o príncipe mandaria os soldados para os muros da estacada, mas você pode ver que eles também estão aqui.
- Eva, você é uma grande tagarela! - disse Nadia, arregaçando cuidadosamente as saias de crinolina para evitar que a franja se arrastasse na rua enlameada. - Espero que o príncipe tenha algumas maravilhosas novidades para nós e a intenção de declarar um feriado. Não sei se haverá um baile hoje à noite... - Ela desejava ardentemente que sim. Gostava tanto de dançar! Olhando para trás, observou o comportamento impróprio da irmã mais nova.
- Pare de pular como uma rã, Eva! E não fique puxando assim o braço de seu avô; ele não é a alavanca de uma bomba d'água.
Seu entusiasmo acalmado pela crítica da irmã, Eva parou de andar aos pulos e começou a caminhar comportada ao lado do avô. Às vezes Parecia-lhe que não fazia nada direito. Sentiu a segurança do aperto da mão do avô e sorriu para ele, agradecida. Ele nunca parecia importar-se se ela falava demais ou de como parecia simplória. Ele a amava de qualquer maneira.
A família Tarakanov estava reunida num grupo na base das escadas do morro do Castelo. Apenas a esposa de Lobo, Marya, estava ausente. A doença a mantinha acamada e uma mulher aleúte cuidava dela. A todos que Os rodeavam os Tarakanov especulavam sobre as possíveis causas desta convocação do príncipe Maksutov. Acontecia uma coisa muito incomum. Apenas um grupo privilegiado dentro da comPanhia, composto principalmente pelos funcionários ou gerentes, as mulheres e famílias, era convidado para os bailes, representações teatrais ou festas oferecidas por seu governador titular. A família Tarakanov estava nos limites desse grupo; o casamento de Anastasia com um oficial naval abrira-lhe as portas para tais festividades. As ligações da família, associadas com a natural beleza de Nadia e seu comportamento aristocrático, ocasionalmente permitiam que ela fosse incluída nesse círculo encantado.
Soldados em uniformes escuros com guarnições vermelhas assumiram a posição de sentido no topo da escadaria do kremlin. Um silêncio apossou-se da multidão curiosa embaixo quando o príncipe Maksutov apareceu em uniforme de gala completo. As medalhas que havia ganho por atos de bravura na guerra da Criméia estavam pregadas em seu peito para todos verem. Uma barba em estilo bizantino lhe moldava o maxilar e o queixo, dando a seu rosto um aspecto alongado. Ele desceu os degraus até um ponto intermediário e depois encarou sério a multidão.
- Tenho o desagradável dever de informar-lhe que recebi comunicação oficial de São Petersburgo, dizendo que a América russa foi vendida para os Estados Unidos.
Atordoado pelo anúncio totalmente inesperado, Lobo virou-se para os filhos e viu o mesmo choque em seus rostos. Um murmúrio de desânimo correu pela assistência, seguido de um protesto.
- E o compromisso de assinar um novo contrato com a companhia?
- gritou alguém.
Quando o príncipe deixou de responder e de oferecer uma explicação, Lobo compreendeu que o czar tinha-lhes faltado com a palavra. Não poderia haver outra interpretação. Ele podia entender a amargura estampada no rosto do príncipe Maksutov.
- Eles deverão tomar posse em outubro deste ano - continuou o príncipe. - De acordo com os termos da venda, aqueles que desejarem permanecer no território cedido têm a liberdade de fazê-lo, com exceção do pessoal naval, que deverá retornar à Rússia. Se decidirem ficar, o tratado de cessão prevê que os habitantes do território cedido, com exceção das tribos nativas não civilizadas, terão acesso ao gozo de todos os direitos, privilégios e imunidades de cidadãos dos Estados Unidos, e serão mantidos e protegidos no livre gozo de sua liberdade, propriedade e religião.
- Esta última parte ele leu de um papel que tinha na mão.
Não havia restrição de raça. Apenas aos não civilizados era negada a cidadania, compreendeu Lobo, aliviado por saber que ele não seria forçado, com a idade que tinha, a abandonar a terra onde nascera. Ninguém da família precisava temer por sua ascendência mista russa e nativa. Então, ele notou a apreensão na fisionomia de sua filha e sentiu a primeira punhalada da separação; como esposa de um oficial naval russo, ela teria que partir com o marido.
- Se, dentro de um período de três anos, aqueles que tenham escolhido permanecer mudarem de ideia, desejando voltar para a Rússia, o governo fornecerá transporte para eles e suas famílias. Para aqueles que ficam, será concedido título de propriedade de sua casa e das terras ora ocupadas. A companhia também cederá as várias oficinas, usinas e equipamentos, de forma que possam continuar com seu comércio ou profissão. Espera-se que os homens em San Francisco interessados em peles obtenham uma franquia de seu governo, de forma que aqueles que vivem das peles continuarão empregados.
O príncipe Maksurov explicou demoradamente as cláusulas do tratado de cessão assinados em Washington, e as opções que lhes eram oferecidas. Ao concluir sua exposição, a multidão custou a dispersar-se, inconscientemente procurando permanecer unida. Uma parte tão grande de suas vidas tinha sido controlada pela companhia que essa liberdade de escolha era novidade para eles. Não havia ninguém para dizer-lhes o que deveriam fazer.
- Talvez não seja tão ruim como temíamos - aventurou Stanislav, olhando para seu pai, Lobo, à espera de uma opinião.
- Eles não podem alegar que não somos civilizados. - Sua esposa mestiça, Dominika, olhou ansiosa para seu filho crescido, Dimitri, recémformado pela escola de navegadores.
- Não é uma decisão que devemos tomar às pressas - disse Lev, cofiando pensativamente seu bigode. - Teremos oportunidade de ver como serão as coisas ao sermos governados pelos americanos. Minha opinião é que devemos esperar. O que diz o senhor, pai?
Mas Lobo estava observando sua filha, que se voltava silenciosamente para sair, o braço passado pelo do marido e a cabeça baixa. Para eles nada havia a decidir, nenhuma alternativa a considerar.
- Para onde vai a senhora? - perguntou Nadia, correndo rápida para o lado da tia.
Anastasia era sua tia favorita, aquela que a havia introduzido nas festas e nos bailes.
- Há muita coisa a fazer. Três meses não será tanto tempo quanto parece. - Embora parecesse calma e sem perder a compostura, os olhos de Anastasia pareciam úmidos. A perspectiva de ouvir sua família discutir se ficariam ou não quando ela devia partir, era doloroso demais no momento, de forma que agarrou-se a uma desculpa. - Tudo precisa ser embalado, e tenho que decidir que coisas da casa levar e o que fazer com o resto.
- Mas... - O protesto morreu nos lábios de Nadia quando olhou Para o tio, a visão de seu uniforme lembrando-lhe a ordem do príncipe de que todo o pessoal naval deveria retornar à Rússia. Por um instante de desânimo, ela ficou pensando como poderia obter convites para os bailes se Anastasia não estivesse mais ali; e depois se os americanos realizavam tais festas de gala. - Eu não quero ficar; também quero ir.
- Esta é uma decisão que cabe a seu pai - afirmou Nikolai, e com firmeza retirou-se com sua esposa, passando por Nadia.
- Não vamos ficar, vamos, papai? - Nadia voltou-se a fim de apelar ao pai.
- Ainda não decidi o que faremos. - Em sua resposta havia um tom áspero; ele ainda não havia decidido o que seria melhor.
- Mas somos russos, papai - raciocinou Nadia. - Como poderemos ficar quando os americanos vierem? Seria deslealdade.
- O czar nos traiu - argumentou seu primo Dimitri. - Por que o compromisso de conceder um novo contrato à companhia não foi honrado? Por que esta terra foi vendida tão secretamente? O czar não se importa com o que acontece conosco. Creio que não lhe devemos lealdade nenhuma!
- Vovô! - disse Eva, puxando a mão de Lobo. - O que o senhor vai fazer?
- Devo ir contar a Marya o que nos foi dito - avisou ele, sacudindo a cabeça.
Sabia que Marya sentiria o mesmo que ele e que preferiria viver o resto de suas vidas na única terra que eles conheciam como sua pátria. No entanto, temia contar-lhe que sua única filha teria de partir com o marido.
Emergindo da mansão do governador, Ryan Colby andou até o alto dos degraus da varanda; depois parou e tirou um comprido charuto do bolso interno do casaco. Usando a pequena faca que guardava no bolso do colete de brocado, ele cortou com perícia a ponta fechada do charuto. Sem pressa, repôs a faquinha no bolso e colocou uma das pontas do charuto na boca; depois procurou em outro bolso um fósforo, durante todo o tempo estudando negligentemente as fortificações acasteladas na penedia e o cenário do porto, atrás das baterias.
Além das duas canhoneiras americanas ancoradas no porto, também estava fundeado na baía o John L. Stevens. Soldados americanos do Nono de Infantaria e do Segundo de Artilharia matavam o tempo no convés. A permissão para desembarcar tinha sido recusada pelos russos até que o território fosse formalmente entregue aos Estados Unidos, um acontecimento que aguardava a chegada do representante oficial do governo daquele país, general Lovell Rousseau, que estava a caminho de Sitka no U.S.S. Ossipee.
Ryan Colby esfregou a cabeça do fósforo no cós das calças e protegeu a chama com a mão perto da ponta do charuto. Suas mãos e dedos eram escrupulosamente limpos e livres de calos. A luz do sol mostrava reflexos de cobre em seus bigodes e cabelos de um castanho claro ambos penteados com capricho. Seu rosto raramente revelava o que ele estava pensando a não ser o que desejasse. Durante a maior parte de seus 25 anos vivera graças à rapidez de seus expedientes e de suas mãos, em especial nos campos de mineração da Califórnia e recentemente na Barbary Coast de San Francisco. Essa experiência era responsável pelo cinismo que estava de forma permanente marcado em seu rosto anguloso e que fazia seus olhos cor de mel parecerem velhos.
Quando apagou a chama do fósforo, a porta atrás dele abriu-se. Voltou-se ligeiramente, removendo devagar o charuto da boca e estudando o homem de cabelos cor de areia que vinha em sua direção. Ele esboçou um sorriso torto, comentando sucintamente com o jovem advogado sobre o negócio que haviam perdido.
- Eu poderia ter economizado todo aquele palavrório - declarou Gabe Blackwood, parando ao lado de Ryan. Abotoou o casaco de seu terno de lã marrom, mas isto não o melhorou muito. - O príncipe não estava nem interessado em escutar a proposta que fui autorizado a fazer-lhe. Acho que ele já estava decidido a vender o estoque de mercadorias da companhia a Hutchinson.
Ryan encolheu os ombros como que menosprezando a perda, já bastante acostumado a ver a sorte às vezes pousar nos ombros de outrem sem que isto o perturbasse.
- E Hutchinson comprou-o por uma ninharia; apenas 65 mil dólares.
- Como sabe disso? - perguntou Gabe Blackwood, franzindo o cenho.
- Eu sei. Não importa como. Ele pode vendê-lo na Califórnia e obter um quarto de milhão de dólares de lucro. Claro que aquele comerciante espertalhão da Nova Inglaterra convenceu Maksutov de que a maior parte do estoque ficará aqui. - Pessoalmente Ryan admirava o golpe.
- É óbvio que Maksutov não tratava das negociações quando os russos conseguiram que o Congresso pagasse sete milhões e duzentos mil dólares pelo território do Alasca. - O advogado colocou seu chapéu-coco e começou a descer as escadas. Ryan acompanhou-o.
Os dois haviam-se conhecido a bordo do navio, a caminho do território recém-comprado. A princípio, Ryan se divertira com o advogado idealista que tinha aproximadamente a sua idade. A própria vida deixara-o com poucas ilusões. Inúmeras vezes durante a viagem ele se maravilhara com a ingenuidade de Blackwood, sempre pronto a acreditar no melhor e certo de que o direito sempre prevaleceria. O homem era inteligente, mas não tinha uma gota de bom senso. Em algumas coisas ele era tão cego como a figura daquela mulher segurando a balança... Mesmo assim, Ryan gostava dele, embora sentisse pena.
- O que vai fazer agora? - perguntou Blackwood, olhando-o com curiosidade enquanto desciam as escadarias da fortaleza para a cidade. Voltar para a Califórnia?
- Eu? De jeito nenhum! Se o Alasca é um iceberg, como dizem alguns jornais, então o dinheiro que Hutchinson acaba de ganhar é apenas a ponta dele. Pretendo obter minha parte dos lucros e depois cair fora daqui - concluiu Ryan, enfiando o charuto na boca e prendendo-o entre os dentes.
- Você quer dizer que vai montar um negócio por aqui? Que espécie de negócio?
- Olhe para essa cidade - Ryan fez um amplo gesto com o charuto, abrangendo os edifícios e ruas que se espalhavam diante deles. - Mostre-me onde um homem pode ir matar sua sede. Tudo o que você vê são igrejas, uma ferraria, padaria, alfaiate, escolas, mas não há um único bar ou casa de jogo. Esta cidade poderia utilizar alguns...
- Mas... - Blackwood franziu a testa para Ryan - as leis do território proíbem o tráfico de bebidas alcoólicas. É ilegal importá-las.
- Ainda não está subordinado às leis territoriais - disse Ryan, rindo e sacudindo a cabeça. - Legais ou não, surgirão bares. E pretendo ter um, talvez mais. Não vim para cá tão cedo só para comprar o estoque russo de casacos de pêlo de carneiro, utensílios e mercadorias. No que me concerne, Hutchinson pode ficar com eles. Eu queria comprar os barris de rum e os tonéis de vinho da companhia, seu suprimento de açúcar e de melaço, junto com os cereais para destilar minha própria bebida. Se puder, vou comprá-los de Hutchinson; caso contrário, mandarei buscar fora.
- Mas isto é contra a lei...
- E quem é que vai me prender, Gabe? - zombou Ryan. - O Exército tomará conta disso depois da posse, pelo menos no começo. Aponte-me um soldado que não goste de sua bebida. O Exército não irá fechar um bar. Mas vou lhe dizer uma coisa: se eu for preso, mandarei buscá-lo na Califórnia para defender-me.
- Não estarei lá - replicou Blackwood calmamente, parecendo retraído e meio ofendido pelo modo como Ryan zombava dele. - Ficarei aqui e vou abrir uma banca de advogado.
- Não me diga! - exclamou Ryan, que nunca o imaginara como sendo do tipo pioneiro.
- Você viu como estavam as coisas em San Francisco antes de partirmos. Todo mundo estava falando sobre o Alasca e as oportunidades que oferece. É a mesma coisa em Seattle e Portland, segundo ouvi. As pessoas virão para cá. Algum dia o Alasca será um estado e vou fazer minha parte para que isto aconteça.
Ryan já ouvira muitas bravatas durante sua vida, mas a determinação na voz de Blackwood e o brilho visionário em seus olhos o surpreenderam.
- Talvez você seja até o primeiro governador - murmurou.
- Talvez eu seja... - disse ele na defensiva, olhando firmemente para Ryan a fim de ver se estava de novo zombando dele.
Embora motivado por idealismo, o homem tinha ambições políticas, compreendeu Ryan. E ele também sabia que a pele de mais de um homem havia sido salva por amigos influentes... Blackwood poderia ser mais útil para ele do que a princípio pensara.
- Se você vai abrir um escritório, precisamos encontrar um local. A localização é importante em qualquer negócio ou profissão. Vamos dar uma volta pela cidade. - E Ryan conduziu-o para a única rua de comércio de Sitka. - Já escolhi o local que desejo para meu bar. vou contar-lhe uma coisa - Ele deu uma sacudidela na mão que sustentava o charuto, apoiada no ombro de Blackwood, batendo a cinza. - Serei seu primeiro cliente e você ficará encarregado de todos os aspectos legais das terras que desejo comprar.
- Ficarei contente com isso. - O súbito sorriso de Gabe era quase infantil.
- Você é um homem honesto, Gabe Blackwood - disse Ryan, mas sem acreditar nem por um minuto que ele fosse continuar assim. Também não se deteve nesse pensamento, sua atenção voltando-se para avaliar a cidade e seus vários potenciais para rápidos lucros. Decidiu que, se tivesse qualquer dinheiro sobrando, compraria alguma terra para especulação. Se Blackwood estivesse certo e houvesse um grande influxo de americanos seguindo-se à transferência, o valor da terra iria subir.
Ryan deu uma última baforada no charuto e depois jogou a ponta acesa na rua. Sua atenção foi atraída pela pequena loja pela qual acabavam de passar, metida no meio de dois grandes edifícios de frente para a calçada, mas no centro de tudo.
- O que acha desta loja? - Fez um sinal ao advogado para voltar e dar uma olhada. Embora não pudesse ver ninguém dentro, ele experimentou a porta de qualquer forma, que rangeu nas dobradiças. Mas estava trancada. Bateu, sem prestar atenção às palavras em russo que escutava, vindas da rua.
- Ryan - Gabe Blackwood tocou-lhe no braço, chamando sua atenção para a moça e a menina que os encaravam da calçada. - Você entende russo? Acho que estão falando conosco.
- Nyet! - Aquilo era o limite do vocabulário de Ryan em russo. Mas Gabe não o ouviu, enquanto olhava embevecido para a jovem russa envolvida numa pelerine. Seu cabelo tinha um tom castanho-dourado, repartido no meio e afastado de seu rosto, modelando as feições perfeitas. Para Gabe, tudo nela era perfeito, da curva gentil dos lábios até o delicado corado das faces e a doçura líquida de seus olhos castanhos. Desejava ardentemente ter à mão o dicionário russo que comprara na livraria em San Francisco, mas ele ficara em sua mala.
- Os senhores são americanos? - A voz da moça surpreendeu-o, com seu inglês com forte sotaque mas ainda assim inteligível.
- A senhorita fala inglês? - titubeou ele, espantado.
- Falo inglês, alemão e francês - afirmou a moça, com ligeiro sorriso.
- E é encantadora! - murmurou ele e depois compreendeu o que dissera. No mesmo instante tomou consciência de sua falta de maneiras e tirou o chapéu da cabeça, simultaneamente inclinando-se para ela. - Desculpe. Eu não pretendia ser grosseiro. Permita que me apresente. Sou Gabriel Blackwood, advogado. Tenho planos de estabelecer uma banca de advogado aqui. Este é meu amigo, Ryan Colby. - Quase nem prestou atenÇão quando seu companheiro cumprimentou-a.
- Meu nome é Nadia Levyena Tarakanova. - A reverência que ela fez foi natural e graciosa, confirmando a suspeita de que provinha de alguma família de certa posição na comunidade russa. - Esta é minha irmãzinha, Eva. E esta é a loja de meu avô, que está fechada.
- Está fechada permanentemente? - perguntou Ryan. - O que quero dizer é: ele tenciona sair de Sitka depois que os americanos tomarem posse?
- Não.
- A senhorita estará partindo? - Gabe sabia que algumas famílias russas tinham preferido voltar a sua terra natal.
- Meu pai escolheu ficar por algum tempo.
Embora não fosse o desejo dela ficar, pensou Gabe, sorrindo.
- Fico contente com isso - disse ele, admirando-a numa adoração patente. Uma ameaça de sorriso em retribuição aflorou aos lábios dela; ele achou que sua expressão era deliciosamente recatada.
- Gostaríamos de ver o interior da loja - afirmou Ryan. - É possível conseguir que seu avô nos mostre?
- Meu avô está de luto pela morte de minha avó. Não disse quando tenciona abrir a loja.
- Lamento saber da morte de sua avó - Gabe apressou-se a oferecer condolências. - Por favor, transmita nossos pêsames à família, srta. Tarakanova.
- É bondade sua.
- De forma alguma. Nestas circunstâncias esta não pareceria a ocasião própria para falar com seu avô, mas a senhorita poderia dizer-lhe que eu teria interesse em comprar a loja se ele desejar vendê-la? - Aquilo lhe dava a desculpa perfeita para conhecer a família Tarakanova, e a bela Nadia. - Talvez eu possa tomar a liberdade de procurá-lo na semana que vem. Ele fala inglês tão bem como a senhorita?
- Ele fala um pouco de inglês.
- Talvez a senhorita ou seu pai pudessem estar presentes, caso eu tenha qualquer dificuldade em tornar minha oferta compreendida.
- Talvez.
- Como posso entrar em contato com a senhorita? Onde mora? Eu poderia passar por sua casa. - Gabe não estava querendo deixá-la partir sem saber onde poder encontrá-la.
Ela hesitou, como uma dama deveria fazer, e depois deu-lhe o endereço de sua residência.
- Está comprando este terreno? - A irmã de Nadia virou de lado sua cabecinha e estudou-o, franzindo a testa pensativamente.
- Talvez. - Era difícil acreditar que aquela criança feiosa fosse a irmã de Nadia. O castanho lavado de seu cabelo não possuía nada daquele brilho dourado do de Nadia; seu nariz era reto e a boca larga demais. Por que pergunta?
- O senhor é americano. E todo mundo aqui está triste porque os americanos estão comprando esta terra. Os kolosh dizem que a terra pertence a eles - declarou ela com um ar de importância.
- Os kolosh? - perguntou Gabe, intrigado.
- Creio que ela está se referindo aos índios - disse Ryan.
- Você quer dizer os selvagens que vivem fora da paliçada, naqueles nojentos casebres? - Ele havia notado o Ranche do lado de fora dos portões e a pequena área do mercado onde os índios vendiam peixe e caça, bem como algumas peças de madeira lavrada.
- Eles dizem que os americanos deveriam ter pago a eles, não aos russos - disse Eva.
- O Exército deveria levá-los para uma reserva, a eles e a seus mestiços - A voz de Gabe tremia com uma nota de ódio profundamente arraigado dentro dele, ódio que nascera com a morte de seus pais missionários. Tinha apenas seis anos de idade quando os pais o deixaram aos cuidados de uma tia em San Francisco e foram viver entre os sujos selvagens para salvar suas almas pagãs. Gabe ainda guardava as cartas dos pais, que falavam de seu amor pelos irmãos vermelhos - os mesmos que se rebelaram e os mataram, liderados por um mestiço em quem confiavam e a quem chamavam de filho.
- Mestiço? O que quer dizer esta palavra? - perguntou Nadia cautelosamente.
- Alguém que é parte índio e parte branco.
- Ah, sim! Nós os chamamos creole. Muitos vivem aqui, vão para nossas escolas e trabalham para a companhia.
- Entendo. - Gabe tinha sua própria opinião, mas não achava que fosse um tópico conveniente para discussão.
A irmã de Nadia começou a dizer qualquer coisa, mas ela rapidamente a fez calar-se.
- Perdoem Eva. Ela pensa que todo mundo quer falar com ela também.
- Compreendo - disse Gabe, sorrindo.
- Devemos partir agora. Foi um prazer conhecê-lo, Sr. Blackwood e sr... - ela hesitou quanto ao nome de Ryan.
- Colby - disse ele, cumprimentando-a.
- Sr. Colby. - Ela lançou outro olhar a Gabe e depois afastou-se deles, conduzindo a irmã.
Gabe virou-se para vê-la afastar-se, notando o ligeiro balanço das borlas que pendiam do capuz de sua pelerine.
- Você não perdeu tempo demonstrando seu interesse - observou secamente Ryan.
Virando-se, Gabe encarou-o e replicou:
- Você não é o único que sabe o que quer. Lembra-se de quando disse que eu poderia me tornar o governador do estado do Alasca algum dia? Bem, acho que você acaba de encontrar a mulher que será a esposa do governador... - Quanto mais ele pensava a respeito, mais plausível lhe parecia. - Seria apropriado: um casamento entre o velho Alasca e o novo!
A família Tarakanov caminhava pelas ruas de Novo Arcanjo, numa procissão silenciosa conduzida pelo patriarca, Lobo. A recente morte da esposa o havia envelhecido, tirando-lhe a agilidade do andar e o brilho dos olhos. No entanto a morte era parte da vida e a vida parte da morte, e ele sabia que devia continuar.
A despeito das solicitações da família para que permanecessem em casa, Lobo insistira em que comparecessem à cerimónia de transferência da propriedade. O navio, conduzindo os membros das comissões russa e americana que deveriam oficiar na cerimónia, tinha chegado ao porto naquela mesma manhã. Por intermédio do marido de sua filha, Nikolai Polotoffski, eles souberam que a transferência deveria realizar-se às três horas da tarde, no pátio de parada sobre o penhasco.
Lobo acreditava que sua família deveria estar presente quando o novo regime tomasse posse. Afinal de contas, como tencionavam permanecer e viver sob o domínio dos Estados Unidos; então, por uma questão de respeito, deveriam estar presentes por ocasião da transferência. Mas sua opinião não era partilhada pela maioria do pessoal da cidade, que preferia não testemunhá-la.
No entanto, a cidade que os americanos persistiam em chamar de Sitka estava sentindo as angústias de sua chegada. Maiores mudanças iriam ocorrer tão logo o príncipe Maksutov completasse o processo de entregar os títulos de propriedade das casas, terras e oficinas a seus vários ocupantes e comerciantes. Até Lobo havia concordado em vender sua loja para o jovem americano de Nadia.
Ao pé da escadaria que conduzia ao kremlin, Lobo fez uma parada e olhou para trás a fim de certificar-se de que toda a família estava com ele. Apenas a mulher de seu filho, Dominika, estava ausente. Ela ficara em casa temendo que suas feições, fortemente índias, despertassem o preconceito dos americanos. Mas Stanislav viera, com o filho Dimitri.
Poças d'água espalhavam-se pelo pátio de paradas em frente à residência do governador, mas não chovia. De vez em quando o sol rompia através das pesadas nuvens brancas para aquecer a fria tarde. A bandeira imperial da Rússia czarista flutuava no topo do mastro de trinta metros, situado no meio do pátio de paradas. De vez em quando a brisa ligeira drapejava o emblema das duas águias, abrindo-o por inteiro.
O porto estava cheio de embarcações porque os kolosh, a quem não permitiram entrar-na cidade naquela tarde, posicionaram suas canoas entre os navios russos e os barcos de guerra americanos ali ancorados, de forma a poderem observar as cerimónias, curiosos acerca do acontecimento ao qual os homens brancos atribuíam tanta importância. Os kolosh tinham sentimentos mistos acerca da vinda dos americanos. Sua experiência com os caçadores de baleias americanos, que atacavam as aldeias, capturavam os homens e levavam suas mulheres, fazia-os cautelosos. No entanto eles também sabiam que os americanos vendiam bebidas, coisa que os russos sempre lhes haviam negado.
De pé ao lado de tia Anastasia, Nadia segurava com força sua mão enluvada. Ela estava emocionalmente confusa, esforçando-se para agarrar-se ao passado com suas festas e seus bailes, e tentando ao mesmo tempo antecipar-se ao futuro com a segurança da lisonjeira atenção de Gabe Blackwood. Ele estava junto com um pequeno grupo de americanos, principalmente comerciantes de San Francisco. Desde que o havia conhecido, Nadia não se sentia tão ansiosa por partir logo que os americanos tomassem posse.
Ela sentiu um estremecimento de excitação quando ele sorriu e cumprimentou-a com a cabeça. Ninguém jamais a fizera sentir-se tão bela ou importante. Às vezes, quando ele a olhava de uma certa forma, ela sentia um calor dentro de si. Desejava vê-lo mais, porém não queria parecer desleal para com a tia.
A batida compassada dos tambores assinalou o início da cerimónia. Logo Nadia pôde ouvir o ressoar das botas subindo os degraus da fortaleza, quando os soldados russos do regimento siberiano estacionado na guarnição, junto com os oitenta soldados e oficiais da Marinha Imperial galgavam a escadaria. Eles eram comandados pelo comissário russo, o capitão Alexei Peshchurov, que representava oficialmente o czar.
Quando os soldados, em seus uniformes engalanados de vermelho e seus lustrosos bonés, se alinharam em frente ao mastro da bandeira e ficaram solenemente na posição de sentido, Nadia olhou para o governador da América russa. Naquele dia o príncipe Maksutov era estritamente um espectador. Tinha a expressão impassível, mas sua jovem esposa, a princesa Maria, parecia à beira das lágrimas. Olhando para a bela princesa, que fora responsável pela alegria e os risos, pela música e os bailes que haviam dominado a cena social nos últimos três anos, Nadia também tinha vontade de chorar.
À distância, chegou o rufar de mais tambores. Os soldados americanos haviam desembarcado e seu som tornou-se cada vez mais forte à medida que se aproximavam do morro. Na cabeça da coluna que galgava o cimo da colina, marchavam dois generais, com suas pesadas dragonas de ouro nos ombros, faixas douradas cruzando o peito e as polidas espadas pendendo dos flancos. A brisa ligeira fazia esvoaçar os penachos de negras plumas que coroavam seus chapéus de feitio napoleônico.
Atrás de Nadia, Dimitri inclinou-se para soprar-lhe ao ouvido:
- O mais próximo de nós é o general Lovell Rousseau, que é o correspondente a Peshchurov; aquele com barba é o general-de-brigada Davis, que irá comandar as tropas americanas. Antes de ser mandado para cá, ele estava combatendo índios no Oeste americano.
- Como sabe disso? - perguntou ela, voltando-se ligeiramente para trás, desejando que ele não ouvesse pronunciado a palavra índio. Desde Que conhecera Gabe Blackwood, ela não desejava se lembrar que qualquer coisa que não fosse o sangue russo corria em suas veias.
- Conversei com o prático que trouxe os navios americanos para o porto.
A luz do sol infiltrou-se através das nuvens e fez brilhar as pontas douradas dos capacetes usados pelos soldados americanos enquanto marchavam pelo pátio de parada e se alinhavam em posição de sentido diante do mastro da bandeira. Nadia observou curiosa os estranhos uniformes de túnicas azuis com calças de um azul mais claro, e os compridos rifles que carregavam. Sua atenção desviou-se para a colorida guarda russa que marchava para a base do mastro. De acordo com seu tio, a cerimónia seria simples: descia a bandeira russa e subia a americana, cada uma delas acompanhada pelas salvas das baterias da fortaleza e dos canhões dos navios americanos no porto.
Quando um dos soldados soltou os cabos para arriar a bandeira imperial, uma súbita rajada de vento enrolou-a em torno do mastro. O soldado tentou soltá-la, mas ela enrodilhou-se ainda mais em volta do mastro e ficou embaraçada nas cordas. Um outro soldado veio em sua ajuda, mas a bandeira resistiu a seus esforços e continuou presa ao mastro. com a inesperada demora cresceu a tensão; conselhos começaram a vir de todos os lados, mas nada funcionava.
- A bandeira não quer descer, não é, vovô? - observou a pequena Eva em voz alta. Nadia tinha a mesma impressão. A resistência da bandeira a todas as tentativas de arriá-la parecia simbólica, como se quisesse continuar a reinar sobre aquela terra. Lágrimas afloraram-lhe aos olhos; a seu lado Anastasia chorava suavemente.
Após uma demora irritante mandaram um soldado subir ao topo do mastro para soltar a bandeira. com o último sopro da brisa a bandeira russa veio flutuando até o chão; no momento em que ela caiu nas baionetas dos soldados russos, a princesa Maria desmaiou.
Quando a bandeira foi recuperada, o capitão Peshchurov fez uma breve declaração em nome do governo russo, transferindo o território para os Estados Unidos da América. Foi dada a ordem para apresentar armas, e a salva dos canhões das baterias russas e dos navios de guerra americanos começou, seus estrondos fazendo tudo vibrar.
Logo após, o general Rousseau aceitou a entrega do território e a bandeira americana foi içada ao topo do mastro, onde ela ficou caída e sem vida. com a primeira saudação de um canhão russo a bandeira pareceu estremecer. Quando ouviu-se a salva do segundo canhão e seu eco de encontro às montanhas, a bandeira abriu suas listras vermelhas e brancas e o campo azul de estrelas.
Tia Anastasia baixou a cabeça e cobriu com as mãos o rosto manchado de lágrimas. Nadia passou o braço em torno de seus ombros para consolála, também chorando suavemente. As saudações dos americanos que se elevavam para o ar pareciam impiedosas e cruéis. Quando seu último hurra cheio de júbilo morreu, o novo comandante militar no território que os americanos chamavam de Alasca, deu um passo à frente para fazer um anúncio:
- Sou o general-de-brigada Jefferson C. Davis. Sou o comandante supremo desta guarnição e deste território. Alojamentos para mim e para minha esposa devem ser imediatamente postos à nossa disposição na antiga residência do governador. Os quartéis devem ser evacuados e entregues para imediata ocupação pelas tropas do Exército americano. Todos os edifícios são agora propriedades do governo dos Estados Unidos.
- Não - murmurou Anastasia, apertando a mão de Nadia. - O navio que vai nos levar para a Rússia só partirá dentro de um mês. As minhas coisas não estão ainda embaladas; eles não podem nos expulsar de nossa casa. Para onde iremos? - Em pânico ela voltou-se para o pai: - Papai, o que vamos fazer?
- Você e Nikolai mudam-se para minha casa. Há espaço demais em minha casa vazia para seus pertences - assegurou-lhe Lobo, mas as ordens do general tornaram claro para todo mundo que não haveria uma transição gradual de autoridade. Os americanos haviam agora tomado posse e os russos estavam literalmente jogados no meio da rua.
Dentro de um mês o aspecto de Sitka tinha-se modificado drasticamente. As rondas e guardas não eram mais executadas pelo regimento siberiano; agora as sentinelas que patrulhavam a paliçada e davam guarda na fortaleza usavam os uniformes azuis do Exército dos Estados Unidos. Os russos nunca haviam-se importado em dar nomes às ruas, mas os americanos rapidamente remediaram isso. A rua principal tornou-se Lincoln Street e as duas ruas que a cruzavam chamaram-se Rússia e América.
Em todo o lugar havia acúmulo de gente, pois a cidade primeiro teve que absorver as famílias russas dos estabelecimentos afastados na terra firme e nas ilhas Aleutas; depois teve que arranjar espaço para os soldados e marinheiros russos da guarnição ocupada pelo Exército americano, a maior parte dos quais esperava partir em navios que se destinavam à Rússia. A aglomeração complicou-se ainda mais com a chegada de centenas de colonizadores americanos que enchiam as ruas. Marcos de terras espalhavam-se pela cidade e estendiam seus antigos limites por quilómetros, assinalando propriedades rurais. Casebres improvisados eram erigidos e depois vendidos para os recém-chegados a preços exorbitantes.
Os dois membros da comissão, o americano Rousseau e o russo Peshchurov, haviam ficado em Sitka por uma semana, trabalhando juntos para outorgar títulos de propriedade e terras, oficinas e casas para os indivíduos russos. com exceção das casas, a maior parte das propriedades mudara de mãos quase da noite para o dia, continuando a ser compradas e vendidas a preço cada vez mais alto.
Certa manhã, já próximo ao meio-dia, num triste e cinzento dia em meados de novembro, Ryan Colby andava pela calçada, as mãos enfiadas nos bolsos de redingote de fazenda preta, o charuto em sua boca preso num ângulo elegante. As ruas e as calçadas estavam cheias de gente apressada, mas ele não se importava com as batidas ocasionais em seu cotovelo.
O contínuo alarido das vozes - russas, americanas e uma ou duas que não reconhecia - era para ele um som tão agradável quanto o tilintar das moedas em sua caixa. Como as batidas de martelos e o ruído das serras no fundo e a quase constante atividade no cais, tudo o que aquilo significava eram negócios e lucros para ele, tanto no seu bar quanto nas vendas de terrenos.
Tirando o charuto da boca, ele deu uma cotovelada no companheiro:
- Olhe para isso, Gabe. - Ele fez um gesto abrangendo a massa de povo e as carroças andando para cima e para baixo pela rua. - É uma cidade em expansão, e isto é apenas o começo. Temos comerciantes, proprietários rurais, donos de navios, garimpeiros, cozinheiros, padeiros, alguns grileiros, corretores de imóveis, promotores de negócios, especuladores, jogadores e prostitutas. - Uma nova tabuleta estava sendo erguida num edifício do outro lado da rua; tabuletas de negócios estavam sempre sendo trocadas por outras, pois os negócios costumavam mudar de mãos duas vezes por semana. Aquela chamou a atenção de Ryan e ele parou para contemplá-la:
- Agora vamos ter uma barbearia. Eu lhe digo, Gabe, esta cidade está explodindo!
- É exatamente por isso que é necessário estabelecer posturas municipais, fixar alguns códigos, eleger um prefeito e um conselho municipal, de forma que se possa regular uma parte deste crescimento. Concedo que não temos ainda a autoridade legal para fazer isso e não podemos legalmente transferir os títulos de propriedade das várias terras que vendemos, não até que o Congresso vote a lei que nos conceda a condição de território, e subordinando-nos a um governo territorial. - Gabe estava inteiramente envolvido com tal organização, e Ryan eximira-se totalmente disso. Ele e a lei nunca tinham-se dado bem...
- Você está dizendo que as posturas municipais não são válidas e que seus regulamentos não têm força de lei? - disse Ryan, recomeçando a andar.
- Tecnicamente o que você diz está certo. Estamos sob um regime militar, o que significa que o general Davis é a única autoridade. Mas é apenas uma questão de tempo até que o Congresso faça do Alasca um território. Agora mesmo eles continuam discutindo sobre a lei orçamentaria que autoriza o pagamento de mais de sete milhões de dólares à Rússia. Nossa situação é apenas provisória. - O otimismo do advogado era irredutível.
- Até o general Davis já concordou sobre a formação de um conselho municipal e um prefeito, dando-lhes autoridade em assuntos da cidade.
- O general provavelmente ficou contente de se livrar de problemas tais como colocar areia nas calçadas neste inverno - sugeriu Ryan secamente, e depois parou diante da porta do restaurante recém-construído.
- Ainda não tomei meu desjejum. O negócio do bar não me permite ser um madrugador como você. Vamos entrar e tomar uma xícara de café.
- Eu... - Hesitando, Gabe olhou para a rua como se tivesse algum outro lugar para ir. - Sua expressão de repente iluminou-se. - Aquela não é... com licença, Ryan. - E afastou-se, abrindo rapidamente caminho por entre os pedestres.
Ryan quase não precisou pensar muito para saber quem ele avistara. Não havia dúvida, pensou, quando olhou rua acima e viu Nadia Tarakanova, acompanhada pelo avô e pela irmã menor.
- Srta. Tarakanova - disse Gabe, parando diante deles e bloqueando seu caminho ao mesmo tempo em que tirava o chapéu, indiferente à brisa fria que revolvia seu cabelo cor de areia. Ele teria pegado e beijado a mão de Nadia, mas o cesto de mercado vazio que ela carregava tornaria desajeitada tal cortesia. - Que deliciosa surpresa vê-la na cidade nesta manhã. E ao senhor também, sr. Tarakanov. - Meio atrasado, ele cumprimentou o avô. Desculpe-me se acho difícil tirar os olhos de sua neta. Jamais conheci mulher tão encantadora; vê-la é como alimento para um homem esfomeado. Gabe estava tão cativado pela integral beleza do rosto de faces rosadas de Nadia, emoldurado por um capuz forrado de pele, que não notou a agitação da moça.
- Estou muito contente em vê-lo, sr. Blackwood. - Ele sentiu a ansiedade na voz dela. - Estamos vindo do mercado; tentamos comprar carne fresca, mas os kolosh... os tlingits como os senhores os chamam... recusaram-se a aceitar nosso dinheiro.
- Seu dinheiro... - Gabe hesitou, procurando uma forma delicada de formular sua pergunta. - Trata-se do papel-moeda em pergaminho que a Companhia da América Russa usava antigamente como dinheiro?
- Sim.
- Lamento, mas poucos comerciantes ainda estão aceitando-o em pagamento de mercadorias, e mesmo assim com um grande desconto. - Ele ficou penalizado ao vê-la tão chocada.
- Mas não tenho outra moeda. O que devo fazer?
- Agora você está se deixando perturbar por uma ninharia. É realmente um pequeno problema, apenas uma questão de trocar aquele antigo dinheiro por moedas americanas. - Gabe deu uma olhada para trás e ficou aliviado ao ver Ryan ainda parado junto à porta do restaurante. Se tivesse dinheiro, ele trocaria o dela ali mesmo com muito prazer, mas achava que seu amigo poderia ajudá-la. - O sr. Colby talvez possa ajudá-la. Vamos tomar chá e conversar com ele.
Ela falou com o avô em russo. Embora Gabe houvesse aprendido algumas palavras russas, sua percepção daquela língua ainda era lamentavelmente inadequada. O avô inclinou a cabeça, parecendo concordar com a sugestão de Gabe.
- Iremos tomar chá com o senhor e falar com o sr. Colby - concordou ela.
- Ótimo!
Gabe encaminhou-os para a entrada do restaurante onde se encontrava Ryan. Após uma troca de cumprimentos, eles entraram. O movimentado restaurante fervilhava com ruído de pratos, encomenda de comida gritada para lá e para cá entre os garçons e os cozinheiros e o vozerio constante das conversas. Gabe guiou Nadia para a ponta desocupada de uma comprida mesa e esperou até que ela se sentasse no banco com suas longas saias convenientemente arrumadas, sentando-se depois ao lado dela. Ryan e o avô sentaram-se em frente, com a pequena Eva entre eles.
Gabe explicou o problema dos Tarakanov a Ryan. Embora soubesse tão bem como Ryan que o dinheiro da companhia tinha tão pouco valor quanto o dinheiro dos confederados, ele silenciosamente apelou ao amigo para ser generoso, como um favor pessoal. Ryan atendeu-o, trocando as duas notas de pergaminho por um valor consideravelmente maior ao que valiam.
- Não lhe disse que não era motivo para preocupar-se? - Gabe observou enquanto Nadia retirava da cabeça o capuz forrado de pele de raposa negra. Cada movimento dela, cada gesto seu, era para ele uma coisa graciosa.
- Nunca poderei agradecer-lhe bastante por isso.
- Perdoe-me por falar tão audaciosamente, srta. Tarakanova Gabe falava com toda a volubilidade de um cisne apaixonado e Ryan baixou a cabeça, escondendo o sorriso que lhe encurvava os cantos da boca -, mas a senhorita me lembra uma princesa russa.
- Sei tudo acerca de princesas - interveio a pequena Eva com sua voz fina. - Já tivemos mais do que a princesa Maria. Anna, a mulher kenai que foi a mãe dos filhos de Baranov, foi feita uma princesa russa.
- Você quer dizer que ela foi uma princesa índia - corrigiu-a Ryan, tolerantemente correspondendo à tentativa da criança de tomar parte na conversa dos adultos.
- Não - respondeu ela, sacudindo a cabeça em violenta negativa.
- O czar a transformou numa verdadeira princesa russa. O nome dela era Anna. Vovô me contou, não é verdade, vovô?
- Sim. Ela viveu até idade avançada - confirmou Lobo Tarakanov.
- O senhor quer dizer que os russos deram de fato um título nobiliárquico a uma índia? - perguntou Gabe, parecendo cético.
- Sim. Tem sido o costume dos czares conferir títulos e privilégios de nobreza a certas pessoas de uma raça conquistada - replicou Nadia, mas Ryan notou como ela parecia pouco à vontade com o assunto em discussão.
- Fazer de uma selvagem comum uma princesa é levar o costume um pouco longe demais, diria eu - afirmou Gabe. - Mas isto mostra como são insignificantes os títulos e a incompetência de uma monarquia. Numa democracia a pessoa adquire importância com base em suas habilidades ou em sua inteligência, não pelos caprichos de um rei qualquer.
- A filha da princesa Anna e de Baranov casou-se com um homem que se tornou um dos governadores da América russa. - Os comentários críticos de Gabe não impressionaram Eva, mas o assunto granjeara-lhe a atenção dos adultos e ela tencionava explorá-la.
- Um de seus governadores foi casado com uma mestiça? - perguntou Gabe, franzindo a testa e sacudindo a cabeça. - Suponho que naqueles tempos havia uma escassez de mulheres decentes por aqui, exatamente como acontece nas fronteiras da civilização em sua maior parte.
- O avô tem contado muitas histórias a Eva acerca dos tempos primitivos - ajuntou Nadia, quase como que uma desculpa. - Ela passa muitas tardes com ele, agora que a escola está fechada. Tenho tentado passar também um tempo com ela e ensinar-lhe as coisas que aprendi na escola. É difícil sem os livros de história e geografia, mas ela faz progressos com trabalhos de agulha e línguas.
- Bem, não precisará preocupar-se por muito mais tempo com a educação dela, srta. Tarakanova. A escola em breve será aberta. Temos agora uma comissão escolar e estamos cuidando de contratar uma professora assegurou-lhe Gabe. - Em breve verá uma nova Sitka, uma Sitka americana.
- Eu já vi uma nova Sitka... - comentou secamente Lobo Tarakanov.
- Algo em sua voz me diz que o senhor não dá muita importância a mudanças por aqui - disse Ryan, estudando cuidadosamente o velho.
Lobo Tarakanov encolheu os ombros e explicou:
- Talvez as mudanças estejam vindo depressa demais para nós. Sempre houve um ritmo em nossa vida; a cada dia sabíamos o que esperar. Agora tudo é diferente; nossa marcha era vagarosa, mas todos vocês americanos se apressam, se apressam por toda a parte. Isto nos confunde.
- Os senhores estão acostumados a uma ordem autocrática, onde quase todas as facetas de suas vidas eram controladas por alguma autoridade. Vai levar tempo para se ajustarem - disse Gabe. - Mas em breve o senhor verá o quanto funciona melhor a forma democrática. O senhor agora tem sua personalidade, ninguém lhe diz o que fazer.
- É isso mesmo. Antigamente tínhamos que comprar todas nossas mercadorias da companhia aos preços que eles impunham, mas eles nos davam todo o peixe que podíamos comer. Antigamente tínhamos escolas para nossos filhos, tínhamos médico e um hospital. Tínhamos que trabalhar todos os dias, exceto nos domingos e dias santificados.
- Vocês têm tudo isso agora - disse Gabe, olhando interrogativamente para o velho.
- Ah, mas agora isto é a América e temos que pagar por tudo. Mas vocês não aceitam nosso dinheiro e nós não temos trabalho.
- Bem exposto, sr. Tarakanov - riu-se Ryan. - Mas o modo americano de fazer as coisas é chamado o sistema da livre empresa. Todo mundo tem a liberdade de ganhar o que puder... e gastar quanto quiser, e trabalhar quanto tiver que trabalhar. Você não pode ficar parado e esperar que os outros lhe passem o prato. Precisa ir lá e agarrá-lo você mesmo. E é assim que se fica rico.
- Há muito mais na democracia do que meramente o ganho comercial - apressou-se Gabe a acrescentar. - É uma forma muito civilizada que protege os direitos do indivíduo. Nós temos a oportunidade aqui no Alasca de melhorar as condições sociais e económicas de todas as pessoas. Algum dia o território vai tornar-se um dos estados da república. É uma terra nova. Seu próprio nome, Alasca, quer dizer "terra grande". Ora, nós poderemos fazer este o maior estado dos Estados Unidos da América!
- E, sr. Tarakanov, este homem espera ser governador do grande estado do Alasca algum dia! - Ryan indicou Gabe com um gesto. - Digo isso caso o senhor não tenha entendido pelo discurso que ele acaba de fazer.
- Isso é possível? - perguntou Nadia, admirada, encarando Gabe com novo interesse.
- É possível. Na América um homem pode chegar a qualquer posto no governo. Eu poderia até ser eleito presidente... Tenho alguns amigos em Washington. - Gabe fez um gesto modesto, encolhendo os ombros. - Talvez dentro de alguns anos eu possa mesmo ser nomeado governador do território.
- Acho que o senhor daria um maravilhoso governador, sr. Blackwood. Espero estar por aqui no dia em que isto acontecer - murmurou Nadia.
- Eu também espero.
- Nessa ocasião o senhor já terá se esquecido de mim - disse ela, baixando recatadamente os olhos sob o ardente olhar dele.
- Não. Nunca me esquecerei de minha princesa russa. O meu mais profundo desejo é que a senhorita esteja ali a meu lado. - Isto era o mais perto que Gabe chegara de declarar-se abertamente, desde que a conhecera.
Consciente que o interesse de Gabe concentrava-se apenas na jovem a seu lado, Ryan engajou-se numa conversação com Lobo, fazendo-lhe perguntas acerca dos velhos tempos. Fingia interesse, concordando com a cabeça e lançando um "É verdade?", ou um "Não diga!" de vez em quando, mas seguindo muito pouco das longas divagações do velho. O inglês dele, com um pesado sotaque russo, era por demais enrolado para poder ser facilmente entendido.
Quando o desjejum de Ryan foi colocado na mesa à sua frente, os Tarakanovs já haviam terminado seu chá.
- Nadia Levyena, sei que não deseja privar seu jovem amigo de sua companhia, mas sua mãe ficará preocupada por estarmos ausentes há tanto tempo, e já aborreci bastante o sr. Colby com minha conversa, - anunciou o avô. - E ainda temos que ir ao mercado.
- Vovô está certo. Está na hora de irmos - admitiu Nadia com relutância, levantando-se do banco e afastando-se da mesa. Enquanto Ryan ficava polidamente de pé, Gabe levantou-se com presteza. Nadia virou-se para ele com seu cesto de compras no braço. - Agradeço-lhe pelo chá.
- Seu sorriso é todo o agradecimento de que necessito - insistiu ele.
- com sua permissão, gostaria de visitá-la esta noite.
- Sua companhia será bem recebida. - Ela inclinou a cabeça numa graciosa mesura, mas a digna resposta não podia mascarar o rápido brilho de prazer que se estampou em seu rosto.
Depois que os Tarakanovs se despediram, Ryan sentou-se para comer sua pilha de panquecas de garimpeiro cobertas de melaço, mas Gabe demorou um pouco em voltar para seu assento no banco. Quando o garçom barbado e vestindo um avental passou por eles com o pote de café, Ryan estendeu-lhe sua caneca de estanho para uma nova porção.
- O senhor não é Colby, dono do bar Double Eagle, nesta rua? perguntou o homem.
- Eu mesmo - confirmou Ryan.
- Sou mineiro de profissão. Tinha algumas concessões ao longo do rio American. Como um profissional pode aceitar minha palavra: esta é uma terra de ouro. Logo que começar o degelo, planejo meter-me por estas montanhas e descobrir exatamente onde ele está escondido. Estou apenas matando o tempo aqui nesta casa de pasto durante o inverno, enquanto junto meu equipamento. Não é, quero que compreenda, que eu seja ambicioso. Se pudesse encontrar um parceiro que me apoiasse, seria bastante generoso dando-lhe uma participação na mina, especialmente se ele fosse alguém como o senhor, sr. Colby.
- Não desperdiço meu dinheiro sustentando garimpeiros. - Embora fosse um jogador, Ryan considerava que as probabilidades eram muito remotas.
- Sou um mineiro experimentado - protestou o homem num tom indignado.
- Não estou interessado. - Ryan descansou a caneca na mesa e pegou seu garfo, desviando sua atenção para o prato de panquecas.
- Quando eu acertar com minha mina o senhor vai se lembrar deste dia e arrepender-se da oportunidade que perdeu - disse o garimpeirogarçom ao afastar-se da mesa.
- Todo mundo aqui anda atrás de acertar com uma mina de ouro declarou Gabe com um sacudir de cabeça.
- Você dá a impressão de que isto é um crime, advogado - disse Ryan, enfiando uma garfada de panqueca na boca.
- Todo mundo está procurando para ver o que pode ganhar deste território. Ninguém parece entender as oportunidades que temos de construir qualquer coisa aqui. Existem outras coisas na vida além do lucro... Ele continuava sentado diante de sua caneca de café, um ar de preocupação perturbando-lhe o rosto.
- Certamente ninguém poderá acusá-lo de ser um rábula, mas estou começando a pensar se não será um tolo.
- Por que diria uma coisa dessas? - perguntou Gabe.
- Quantas ofertas já teve para comprarem aquele seu escritório na Lincoln Street?
- Algumas.
- E cada uma mais alta do que a última.
- Sim, mas tenho meu escritório ali e durmo no quarto de trás. Foi você quem me aconselhou a comprá-lo, dizendo que era uma localização ideal.
- Porque os imóveis de frente para a rua principal da cidade estavam destinados a crescer de valor. E os preços subiram às nuvens. Mas é melhor pensar em passá-lo adiante antes que eles caiam.
- Não comprei com a intenção de vender.
- Então você é um tolo... - disse Ryan com uma careta de desgosto.
- Por que me faz um tolo o fato de planejar ficar com ele? desafiou-o Gabe.
- Neste momento este lugar está estourando, mas não vai durar disse Ryan, inclinando-se para a frente na mesa. - Uma coisa ou duas vão acontecer: ou tudo vai nivelar-se ou vai despencar. Por que arriscar a chance? Faça seu dinheiro enquanto pode.
- Suponho que é o que você está fazendo. - Gabe Blackwood lutava para conter sua raiva.
- Você está danado de certo. vou fazer minha fortuna e seguir para longe daqui. Se deseja ficar, o problema é seu. Mas aceite meu conselho e faça algum dinheiro enquanto tem oportunidade. Você ainda poderá fazer suas boas ações, como ajudar aqueles invasores de terras e não lhes cobrar nada.
- Eles não eram invasores. Eram proprietários rurais. O que esta cidade necessita é de menos gente cujo único interesse é enriquecer ligeiro, e mais gente temente a Deus, como os Johnsons e os Tarakanovs.
- Os Tarakanovs? - Ryan levantou o sobrolho numa vaga surpresa.
- Sim, os Tarakanovs. - Gabe eriçou-se com a inferência, sua pele clara avermelhando-se de raiva. - Suponho que você pensa que o avô de Nadia também é um tolo, simplesmente porque ele não endossa seu modo particular de mercantilismo agressivo.
- De forma alguma - disse Ryan, espetando com o garfo outro pedaço de panqueca.
- Bem, eu diria que não. Basta você olhar para o velho Tarakanov para ver que ele provém de uma boa e importante família. Aqueles orgulhosos traços eslavos dele dizem tudo.
Ryan interrompeu-se no ato de levantar o garfo, parando-o a meio caminho de sua boca. Ocorreu-lhe corrigir o conceito obviamente errado de Gabe quanto às origens de Lobo Tarakanov. Os olhos azuis poderiam ser russos, mas as feições eram inquestionavelmente de um mestiço. Levou o garfo cheio até a boca e resolveu ficar calado, decidindo que, se Gabe desejava acreditar que os Tarakanovs eram russos puros, isto era lá com ele. Antes tentara ajudá-lo, mas era evidente que Gabe não apreciava ajuda. E ele nada tinha a ganhar corrigindo-o naquele ponto.
Mas ele estava levemente divertido por ver quanto o interesse de Blackwood por aquela moça Nadia tinha-o cegado, até o extremo em que ele via o que desejava ver e nada mais. O homem era um sonhador e Ryan ficou cismando se isso não seria pior do que ser um tolo. A realidade tinha formas de espatifar os sonhos.
Nadia inclinou-se diante do espelho, virando o rosto para um lado e para o outro, procurando imperfeições com auxílio da alta chama da lâmpada. Endireitando-se um pouco, ela lambeu as pontas dos dedos e alisou os lados dos cabelos castanhos-dourados, achatando-os ainda mais de encontro à cabeça.
Mas ela ainda não estava satisfeita com a aparência. Desejava tanto parecer bonita para Gabe Blackwood quando ele viesse! Apenas pensar nele fazia-a experimentar um ligeiro acesso de excitação que lhe acelerava o pulso.
Passara toda a tarde pensando na observação dele de que talvez algum dia se tornasse o governador ali e tentando imaginar-se como sua esposa, presidindo jantares e festas como vira a princesa Maria fazer. A perspectiva a entusiasmava. E ele a havia chamado de princesa, lembrava-se, e dissera que a queria a seu lado.
Sentindo-se tremendamente ousada, ela pegou a pequena caixa de madeira que mantinha escondida na segunda gaveta e removeu dela a bolsa fechada com um cordão que havia dentro. Na bolsa havia um quadrado de lã saturado de branco de chumbo e giz. Cuidadosamente, Nadia empoou seu rosto com o "papel espanhol", usando-o discretamente para que não aparecesse muito.
- O que está fazendo?
Nadia deu um pulo, sentindo-se culpada, seu coração parecendo querer pular pela boca quando abaixou a mão, tentando esconder o pedaço de lã esbranquiçado que deixou um fraco vestígio de pó no ar. Parte de seu pânico desapareceu quando viu que era somente sua irmãzinha.
- Você não devia espiar as pessoas, Eva. Deu-me um susto. - Apressadamente, tentou enfiar o "papel espanhol" para dentro da bolsa.
- Que é isso que você tem aí? - Eva espiou em volta de Nadia, antes que ela pudesse devolver o papel à bolsa. A pequena exclamou em voz alta: - Você empoou seu rosto. Mamãe disse que apenas as mulheres àtoa pintam seus rostos...
- Isso é bobagem. Tia Anastasia pinta seu rosto e ela não é mulher à-toa. - Quando Nadia apertou o cordão que fechava a bolsa, uma nuvenzinha branca saiu dela.
- Foi ela quem a deu para você? - perguntou Eva, os olhos arregalados.
- Se você quer saber, foi. - Nadia colocou a bolsa na caixa e depois hesitou um pouco, antes de devolvê-la a seu esconderijo na gaveta. Não diga uma palavra acerca disso à mamãe. Ela não entenderia.
- Posso usar um pouco?
- Quando você for mais velha poderá. - Escondeu a bolsa num canto da gaveta, depois hesitou e voltou-se para a irmã. - Quando o sr. Blackwood vier hoje à noite, não quero que você diga nenhuma palavra a ele acerca dos kolosh ou de qualquer dos outros índios. Ele não está interessado em suas tolas histórias.
- Por quê?
- Porque ele não gosta de índios. - Ela estudou sua imagem no espelho e ajustou o xale em seus ombros.
- Ele não gosta de você?
- Naturalmente que gosta.
- Mas você tem sangue de índio, como eu.
Nadia virou-se rapidamente do espelho e agarrou a irmã pelos ombros, dobrando-se na cintura para encará-la bem nos olhos.
- Eu sou russa. E você também.
- Mas vovô disse... - redarguiu a pequena, encolhendo-se.
- Não me importa o que o vovô tenha dito - declarou Nadia, zangada. - Ele é velho e não sabe do que está falando, índios são aqueles nativos que vivem no Ranche. Eles não acreditam em Deus e não sabem ler nem escrever. Suas casas não têm móveis. Eles não têm camas; dormem no chão como animais. Nós não somos índios e nunca mais diga isso!
- Desculpe-me. - Eva abaixou contritamente a cabeça.
- Nadia? - Quando sua mãe apareceu na porta do quarto, ela soltou Eva e se endireitou rapidamente. - O sr. Blackwood chegou; acho que ele quer ver você.
Por um momento ela encarou o sorriso levemente provocador de sua mãe, consciente do nervosismo que sentia no estômago. Voltou-se para o espelho para uma última inspeção.
- Pareço bem? - perguntou à mãe.
- Estou certa de que o sr. Blackwood achará que você está bonita. Vamos! Ele está esperando.
Quando sua mãe afastou-se da porta, Nadia disse para a irmã mais moça:
- Lembre-se do que eu lhe disse! - Depois apressou-se em seguir a mãe, mordendo furiosamente os lábios para fazê-los ficarem vermelhos.
Um vento de março rondava a casa de estrutura de madeira, procurando uma fresta em seus encaixes e uivando de frustração. Uma cobertura de pesadas nuvens criava um falso crepúsculo, necessitando que usassem as lâmpadas a óleo. Sua chama amarelada lançava uma luz ambarina nos caixilhos das janelas.
Na lareira da sala de estar o fogo aceso irradiava calor para o cómodo. De sua cadeira colocada perto da lareira, Lobo observava os filhos e suas famílias, todos reunidos neste único aposento, alguns sentados, outros de pé, os mais jovens sentados no colo ou no chão. Apenas sua filha Anastasia estava faltando. Ela havia embarcado com seu marido em dezembro último num navio com destino à Rússia.
Aquela quase esquecida necessidade de pertencer a alguma coisa surgiu subitamente com força dentro dele. Ele era um Tarakanov; pertencia à família, sua força vinha do número dos seus. Uma voz vinda do passado ecoou em sua mente: "Eles sempre partem..." E ele murmurou as palavras que a velha Tasha sussurrara há tanto tempo.
- O que o senhor disse, papai? - A voz de Stanislav dissolveu a pungente recordação.
- Nada... - Sacudiu a cabeça para afastar a melancolia e levantou-se. - Suas notícias me entristecem, Stanislav Vasilivich.
- Não é uma decisão que tenha tomado sem tristeza. Não me enche de alegria pegar minha família e sair daqui. Mas também não quero ficar - afirmou seu filho. - Não há ordem sob os americanos. Por duas vezes minha mulher foi abordada na rua por soldados americanos bêbados. Alguma coisa foi feita a respeito? Nada. Quando os soldados estão de folga, eles bebem e ninguém os controla. De nada adianta queixar-se ao general. Ele os repreende, mas não toma providências a fim de parar com a desordem. A venda de bebida não é ilegal, diz ele; é apenas ilegal importá-la. Não há mais segurança para nossas mulheres andarem sozinhas na rua.
- Você já se decidiu - disse Lobo, suspirando fundo. - No entanto, nunca me falou uma palavra a esse respeito.
- O senhor disse muitas vezes que aqui é onde ficará - lembrou-lhe o filho.
Lobo olhou para os dois filhos. Ambos estavam calados, as cabeças abaixadas.
- Lev, você sabia sobre isso?
Após momentânea pausa, Lev acenou com a cabeça confirmando, enquanto Stanislav mantinha os olhos fixos em suas mãos cruzadas. Antigamente nenhuma decisão concernente à família teria sido tomada sem consultá-lo, mas Lobo compreendia que a vinda dos americanos com suas ideias de liberdade individual tinham mudado até isso.
- Papai - disse Stanislav, flexionando os dedos a fim de apertar mais suas mãos. - Nós dissemos que iríamos esperar e ver como seriam as coisas sob os americanos. Mas um homem não pode viver aqui e sustentar sua família. Os preços que os americanos cobram por tudo são altos. Os trabalhadores em minha oficina, mesmo os aleútes, exigem que eu lhes pague cinco dólares por dia em ouro ianque. É demais. Não posso pagar isso e alimentar minha família. Preciso pensar nela. - Ele lutava para obter a compreensão de Lobo. - O senhor sabe o que se passa com minha mulher, o modo como os americanos a tratam, os nomes que a chamam.
Este golpe, porém, era quase mais do que Lobo podia absorver. Parecia restar muito pouco para ele dizer. Procurou o cachimbo em seu bolso, buscando seu conforto e tentando encobrir seu próprio espanto, mas sua mão estava tremendo.
- Então você vai embora... - murmurou o velho.
- Sim. Na semana que vem há um navio que parte para a Rússia. Para Lobo era uma dor saber que essa era uma decisão que Stanislav
vinha acalentando desde que sua irmã partira, em dezembro, no entanto ele não sabia que seu filho estava tão insatisfeito.
- E você, Lev? - Lobo olhou para o filho mais velho. - Também irá me abandonar?
Um grito de protesto veio de Nadia, ao cair de joelhos junto à cadeira de seu pai.
- Papai, o senhor não pode pensar em fazer isso! - Eu quero ficar! Quase no mesmo momento, a pequena Eva, de oito anos, lançou-se no colo de Lobo, agarrando-se a ele e chorando:
- Eu não quero deixar o senhor!
A emoção afogava a garganta de Lobo quando afagou a cabecinha castanha comprimida de encontro a seu peito.
- Eu não quero que você vá, minha gatinha.
- Nada receiem - assegurou Lev a todos. - Nós não vamos partir; ficaremos aqui.
- Eu também ficarei - assegurou o filho de Stanislav, Dimitri. As lágrimas subiram-lhe aos olhos e Lobo assoou-se meio inconsciente, imcapaz de falar, temendo que a voz lhe falhasse. Simplesmente balançou a cabeça. Quando uma batida na porta da frente distraiu a atenção de sua família, Lobo aproveitou para limpar a umidade de seus olhos.
A porta da frente abriu-se e uma lufada de vento invadiu a sala. Gabe Blackwood rapidamente enfiou-se pela abertura da porta e ficou ao lado dela, batendo as botas para sacudir a neve. Seu nariz e suas faces estavam vermelhas de frio.
- Alo, todo mundo! - disse ele, tirando o gorro de pele da cabeça com seu cabelo cor de areia, sorrindo largamente para todos.
Recuperando-se de sua surpresa, Nadia ficou de pé e adiantou-se para cumprimentá-lo. Mas sua recepção não era tão quente como deveria. Ela estava por demais consciente dos outros membros da família na sala e das razões pelas quais todos se haviam reunido.
- Perdoe-me se estou me intrometendo. Posso vir noutra ocasião.
- sugeriu Gabe, num tom incerto.
Antes de responder, Nadia olhou para o avô, esperando que ele convidasse Gabe a ficar; ele fez que sim com a cabeça, dando permissão ao jovem.
- Por favor, entre sr. Blackwood.
Quando Gabe começou a desabotoar seu casacão forrado de pêlo de carneiro, Lobo Tarakanov disse:
- O sr. Blackwood deve estar gelado depois da caminhada que deu. Leve-o para a cozinha e dê-lhe uma xícara de chá.
- Eu apreciaria isso, sr. Tarakanov. Muito obrigado.
Embora Nadia notasse a rapidez com que Gabe aproveitou a oportunidade de ficar sozinho com ela, estava por demais perturbada pela recente discussão para sentir-se satisfeita. Ela notara um ar de arrependimento na voz de Lev quando ele concordara em permanecer em Sitka. Suspeitara que ele decidira ficar não porque fosse seu desejo, mas por sentir que era seu dever ficar e cuidar do pai.
Na cozinha, ela ocupou-se enchendo o samovar com água e acendendo-o. Quando tirou o bule de chá da prateleira do armário, sua mão demorou-se na porta de cedro. O tio Stanislav tinha feito esses móveis para seu avô.
- Você está preocupada com alguma coisa, não?
Nadia voltou-se um pouco para ele, sorrindo rapidamente para esconder-lhe sua preocupação.
- Não. É que o avô não tem açúcar para adoçar seu chá; ele usa apenas mel - disse ela, pegando o pote de mel do armário.
- Alguma coisa está errada. Eu o senti quando cheguei. Sua família parecia tão solene. Receberam alguma má notícia?
- Sim - disse ela primeiro; depois acrescentou: - Não. - Finalmente, contou-lhe tudo enquanto mantinha os olhos no pote de mel que colocara no balcão. - Meu tio resolveu partir de Sitka. Está levando a família para a Rússia. Dizem que por aqui há desordem demais para eles.
- Mas as coisas irão melhorar. Esta situação é apenas provisória. Os soldados do forte têm sido indisciplinados, admito, com suas bebedeiras e badernas, mas isso não irá continuar. Eles estão julgando todos os americanos pelo comportamento de alguns?
- Não sei.
Ele a fez voltar-se para encará-lo, suas mãos ainda frias do gelo do lado de fora; a expressão séria dele fez com que ela prestasse atenção.
- Não posso negar que há elementos desagradáveis aqui em Sitka, mas tudo isso mudará tão logo o Congresso conceda ao Alasca a condição de território. Não haverá mais governo militar; teremos um governo territorial e os soldados irão embora. Tão logo isso aconteça, teremos um sistema de corte de justiça que poderá punir os malfeitores. Presentemente, os elementos criminosos, pelo menos aqueles de pior reputação, sabem que nós não podemos fazer respeitar nossas posturas, de forma que eles as desprezam, mas isto não acontecerá por muito tempo. Esta será uma cidade decente, respeitadora da lei, onde um homem poderá criar sua família e sentir-se seguro acerca do futuro.
Nadia mal escutava a oratória dele. Estudava seu rosto, a inteligência refletida em sua alta testa e a energia de seus malares salientes, suas linhas reforçadas pelas compridas costeletas que ele usava. A fraqueza do queixo dele era uma falha mínima a seus olhos. No entanto, enquanto o olhava, Nadia só podia recear que jamais tornasse a vê-lo, se seu pai decidisse também partir.
- Papai diz que vai ficar por aqui, mas sei que ele só o faz por causa de meu avô. Ele se sente infeliz aqui; vovô está velho. Preocupa-me que, se ele morrer, papai sinta que não tem mais razão para ficar. Se isto acontecer, Gabe, não sei o que faria. Não quero ir embora. - Embora ela tivesse reunido suficiente arrojo para dirigir-se a ele com familiaridade, não o tinha bastante para declarar que era a ele que ela não desejava deixar.
- Você não pode ir embora. Ele parecia aturdido pela sugestão da moça. Seus dedos se enterraram nos ombros de Nadia, como se para impedir que ela se movimentasse.
- Se meus pais partirem não tenho escolha. Não posso ficar aqui sozinha. - A possibilidade da jovem separar-se dele era tão dolorosa para ela que parecia iminente mais do que uma mera conjectura. - Sentirei falta de você.
- Não. Não vou deixar que isso aconteça. - Contagiado pelos temores dela, Gabe a puxou para seus braços e manteve-a apertada, pressionando os lábios contra seus cabelos. - Não a deixarei partir, Nadia murmurou ele. - Você é minha princesa.
O ardente tom da voz dele emocionou-a. No entanto havia também uma pungência naquele momento, porque ela cismava se aquele primeiro abraço poderia ser seu último. Ela fechou os olhos para guardar na lembrança a sensação dos braços dele rodeando-a, o cheiro de seu paletó de lã axadrezado e a áspera textura dele de encontro a seu rosto, de forma que pudesse lembrar-se de tudo numa época futura.
- Desejava que houvesse algo que você pudesse fazer, algo que pudesse dizer a papai, de forma que essa coisa horrível não acontecesse - declarou ela.
- Há, sim. - Ele parecia tão positivo que Nadia levantou a cabeça Para encará-lo.
- O quê?
- Posso pedir-lhe permissão para casar com você. Isto é... se você deseja tornar-se minha mulher. - Os dedos dele tocaram-lhe o rosto numa suave carícia enquanto olhava para ela cheio de adoração.
Os lábios dela se abriram, mas nenhum som saiu. Ela estava tão incrédula que não podia expressar sua alegria.
- É o que desejo desde o primeiro dia em que nos encontramos, em frente à oficina de seu avô.
- Eu também, mais do que qualquer outra coisa no mundo.
- Duvido se sabe o quanto acaba de me fazer feliz - murmurou ele com a voz embargada, prendendo seu rosto com as mãos em concha. Eu a amo, Nadia, minha princesa!
- E eu amo você.
Quando ele a beijou, Nadia ficou certa de que devia estar morrendo e aproximando-se do céu que os padres descreviam. Certamente não poderia haver nada que se igualasse àquela felicidade que experimentava. Seus lábios ficaram colados aos de Gabe por um instante mais, até ele soltá-la.
- Nosso casamento será um exemplo para todo o mundo no Alasca,
- declarou Gabe. - A união entre o velho e o novo. Você e eu mostraremos aos russos e aos americanos como podemos viver juntos e trabalhar para construir uma terra melhor.
- Sim. - Ela não entendeu a metade do que ele disse, mas pareceu-lhe importante. Tudo o que ele dizia sempre soava tão importante e cheio de significação. Estava convencida de que era por isso que ele algum dia seria governador. E ela seria sua esposa. Só esse pensamento bastava para suspender-lhe a respiração. E, para satisfazê-la, quanto mais cedo acontecesse, melhor. - Estou tão feliz que quase temo que algo ocorra para arruinar minha felicidade. Gabe, quando você vai pedir permissão a meu pai?
- Quiria falar com ele imediatamente, mas, pelo que você me contou, não creio que esta seja a ocasião para falar com ele a nosso respeito.
- Soltando-a, ele recuou um passo, colocando uma discreta distância entre eles. Nadia ficava orgulhosa por ele ser tão cavalheiro, sempre tão respeitador da sua reputação. Agradava-a o fato dele não procurar tirar vantagem com ela e comportar-se de uma maneira que pudesse comprometê-la. - Virei à sua casa mais tarde esta noite, quando puder falar com seu pai em particular.
- Ele dará seu consentimento. Sei que dará - declarou ela. Quando preparava o bule de chá, Nadia lembrou-se de que em breve estaria fazendo muitas coisas semelhantes a esta em sua própria casa, como esposa dele.
Uma chuva de abril açoitava as janelas quando Nadia, engalanada com o tradicional enfeite de cabeça e seu vestido de noiva bordado, ajoelhou-se aos pés do pai e pediu-lhe perdão por todos os seus pecados. Lobo permanecia de um lado, observando o ritual que sempre acontecia na casa da noiva antes da cerimónia religiosa do casamento na igreja. Pesava-lhe no coração que tão poucos membros da família estivessem presentes para testemunhá-lo.
Quando Lev deu à filha um pedaço de pão e um grão de sal, Eva puxou o avô pelo braço e ele curvou-se para ouvir seu curioso sussurro:
- Por que papai fez isso?
- Para que Nadia saiba que ele nunca deixará que ela passe fome, embora não viva mais na casa dele.
O futuro marido, Gabe Blackwood, estava ajoelhado ao lado de Nadia. Ela cerimoniosamente presenteou-o com um pequeno chicote de cabelo trançado.
- Ela o fez com seus próprios cabelos - informou Eva a Lobo.
- Cortou um cacho ontem à noite e vi quando ela o trançou. Por que ela está dando para ele? Ele vai bater nela com o chicotinho?
Lobo pacientemente sacudiu a cabeça e murmurou:
- É um sinal da submissão dela à autoridade dele. Agora, silêncio - advertiu-a ele e inclinou a cabeça quando Lev começou a ler as orações convencionais.
Essas orações concluíram a cerimónia tradicional na casa dos pais da noiva. Chegara a hora de fazer a longa caminhada até a catedral de São Miguel. O noivo ajudou Nadia a vestir sua comprida pelerine, de forma que seu vestido de noiva fosse protegido da chuva que continuava caindo. Cada um deles levava um guarda-chuva ao saírem de casa.
O resto da família seguiu-os. Lev Tarakanov não fechou a porta quando saíram, deixando-a simbolicamente aberta como um sinal para a filha de que sua casa estaria sempre aberta para ela, se o marido um dia a maltratasse.
A meio caminho, Eva notou que a porta da frente ainda estava aberta; largou a mão do avô e correu de volta para casa. Tão logo fechou a porta, correu de volta para o lado do avô e mais uma vez pegou na mão dele.
- Papai esqueceu de fechar a porta e estava chovendo dentro de casa. Ele não vai ficar contente por eu ter notado? - disse ela sorrindo para Lobo, orgulhosa de seu feito.
Ele começou a explicar a razão pela qual a porta tinha sido deixada aberta e depois hesitou. A batida da chuva em seu guarda-chuva parecia confirmar-lhe o acerto da sua ação; e a porta aberta, afinal de contas, era só um símbolo.
- Vamos! - sorriu ele para sua bem-intencionada neta. - Devemos nos apressar para alcançar seus pais e Dimitri ou chegaremos tarde para o casamento.
Da janela de seu bar, Ryan viu a procissão encaminhando-se em direção à igreja. Ele não fora convidado para a cerimónia, o que não o havia surpreendido. Ele e o idealista Gabe Blackwood tinham-se afastado já há alguns meses.
Ryan ficara cansado dos contínuos sermões do correto e empertigado advogado com relação à influência corruptora de seu bar na progressista cidade de Sitka. Blackwood o culpava pela embriaguez nas ruas. Mais de uma vez Blackwood o acusara de infringir a lei, trazendo ilegalmente bebida para a cidade e insistia que, para o bem da comunidade, Ryan deveria parar, assim criando um exemplo para outros donos de bares seguirem.
Ryan se rira de tais ideias idealistas.
- Na verdade, os outros se alegrariam se eu fechasse meu bar, e em particular dariam uma boa risada pela minha estupidez - dissera-lhe Ryan. - Se eu não vender bebida, alguém venderá. Você pode fazer todas as leis que desejar, mas o homem sempre procurará a bebida. Em vez de falar comigo vá procurar o general Davis. Ele é a única autoridade por aqui. E enquanto estiver por lá, pergunte a ele se aquela última caixa de uísque do Tennessee que lhe mandei estava boa...
- Você e os de sua espécie estão destruindo esta cidade. Estão fazendo com que as pessoas decentes vão embora.
- Como os russos, suponho eu. Você é um tolo, Gabe - declarara Ryan, desgostoso. - O general e seus soldados sabem muito bem o que há nos caixotes que são enviados para os bares desta cidade e fingem que não vêem. Esta é uma cidade militar, e todo soldado tem que ter seu rum. Culpe o Congresso ou culpe Davis pelo que está acontecendo na cidade, mas não me condene por estar ganhando um dinheirinho suprindo o que está sendo pedido.
- Mas é contra a lei - protestou Gabe.
- Então arranje alguém que faça cumprir a lei. Você é tolo se pensa que vou jogar fora uma fortuna obedecendo a lei voluntariamente.
Nesta altura Gabe perdera as estribeiras e o atacara, lançando-se contra Ryan como um touro enfurecido. Ryan esfregou o queixo lembrando-se daquele último soco que Gabe lhe dera antes que Lyle, o encarregado do bar, o segurasse. Não restava dúvida de que o advogado tinha uma faceta violenta.
Aquele incidente pusera fim às suas relações de amizade, mas Ryan já o previra. Desde o primeiro influxo dos novos colonizadores, Gabe começara a cultivar relações, os mais respeitáveis mercadores e proprietários de terras entre elas. Às vezes ele até parecia contrafeito de ser visto na companhia de Ryan, obviamente acreditando que Ryan não era a espécie de pessoa certa para um homem com ambições políticas.
Ryan sorria para si mesmo. Era o dinheiro que comprava os votos. Toda a boa vontade de Gabe Blackwood e seus ideais altissonantes de nada valiam sem dinheiro.
- Algum sinal de que essa chuva vai passar? - O encarregado do bar, Lyle Saunders, andou para o lado da janela onde Ryan se encontrava, e cruzou os braços em sua frente, descansando-os em seu saliente estômago. Ele usava cabelo negro esticado com gordura e repartido ao meio. Enormes suíças tornavam ainda maiores as bochechas de seu rosto gordo.
- Não parece - comentou Ryan.
- Lá vai Blackwood e sua esposa - observou Lyle e a seguir perguntou: - Você já esteve num desses casamentos ortodoxos?
- Nunca.
- São a coisa mais demorada do mundo. Aqueles sacristãos, ou como quer que eles os chamem, vão ter um bocado de cera de velas em suas roupas antes que a Marcha das Três Coroas termine... - Ficou observando-os por um minuto e depois apontou seu gordo dedo para a comitiva da família que desfilava. - Está vendo aquele moço? Se você ainda está procurando por alguém que conheça esses mares, ele poderá ser o homem para você. Nasceu e foi criado aqui. E tem treinamento como navegador, segundo ouvi dizer. E também fala aquela língua atrapalhada dos índios.
Ryan estudou com mais cuidado o mais jovem dos Tarakanov, que caminhava na frente do velho e da menininha. Se não se enganava, o nome dele era Dimitri.
- Obrigado, Lyle - disse ele. - vou lembrar-me dele.
Pés de alguém correndo ressoaram na calçada de tábuas do lado de fora do bar. Dois soldados passaram correndo pela janela, seus ombros encolhidos para proteger-se da chuva. O encarregado do bar deu uma última olhada na procissão do casamento e depois afastou-se da janela sacudindo a cabeça, murmurando para si mesmo:
- Nunca pensei que Blackwood se casasse com uma mestiça...
Ryan duvidava que Gabe soubesse que Nadia era em parte índia. Blackwood tinha uma tendência de aceitar as coisas como elas pareciam e raramente olhava para ver o que estava por debaixo. Mais cedo ou mais tarde, ele tomaria conhecimento dos fatos. Embora Ryan não fosse tão longe a ponto de afirmar que a ascendência mista dos Tarakanov fosse de conhecimento comum em Sitka, havia bastante gente que sabia ou suspeitava. Talvez alguém devesse ter dito a Gabe, mas, no que concernia a Ryan, era um caso de "o comprador que descubra a qualidade da mercadoria"...
Os dois soldados, que estavam de folga, entraram no bar. Fizeram barulho que nem uma tropa ao baterem com os pés para livrarem as botas da lama. Ryan voltou-se para eles reconhecendo dois de seus fregueses mais regulares, os soldados Kelly e Wheeler. Eles tiraram seus quepes, sacudiram-nos para tirar a água da chuva e depois enxugaram a umidade de seus rostos.
Wheeler, o mais baixo e mais robusto dos dois, com uma cabeleira despenteada da cor de palha, fez um sinal com a cabeça por sobre o ombro em direção à rua e perguntou:
- Ei, Lyle! Onde é que vai toda essa gente com roupa de domingo? É uma festa ou está havendo alguma coisa que ninguém achou conveniente contar para nós?
- É um casamento.
- Não diga! - exclamaram Wheeler e seu amigo Kelly, empoleirando-se no bar. - Sirva-nos um pouco daquele seu veneno. Wheeler bateu com o dinheiro em cima do balcão e depois debruçou-se sobre ele. - Quem está se amarrando?
- Aquele advogado, Blackwood - disse Lyle, colocando dois pequenos copos no balcão e depois tirando a rolha de uma garrafa de uísque para enchê-los.
- Não é aquele que andava dando em cima da pequena russa? Sem esperar uma confirmação, Wheeler virou-se para seu camarada e levantou o copo numa saudação. - Sem a menor dúvida, eu o invejo quando ele destampá-la esta noite. Você conhece ela, Kelly? É aquela que tem o cabelo como ouro queimado, escuro e brilhante que é uma beleza!
- O único ouro que me interessa é aquele que está escondido naquelas montanhas - declarou Kelly em voz irritada e depois engoliu de um gole o uísque barato. - Ficarei contente quando a primavera chegar por aqui e este tempo limpar, de forma que eu possa começar a caçar um pouco daquela coisa brilhante e amarela...
- Bolas! O tempo nunca vai ficar melhor neste lugar miserável queixou-se Wheeler, amargo. - Como é que fomos nos meter neste cu de mundo no topo da terra? Não há merda nenhuma para um homem fazer na porra desta cidade, exceto beber e meter-se com as putas.
- Envergonhe-se do que está dizendo, Nate Wheeler. - Molly Grandona veio saindo do quarto nos fundos do bar, as mãos apoiadas na cintura fortemente apertada num corpete, para dar mais ênfase ao exagerado gingar de seus quadris. - Você sempre jurou para mim que esses eram seus dois passatempos favoritos. Agora descubro que andava mentindo.
A cada passo que dava, sua saia abria-se para permitir uma ligeira visão de suas botinhas curtas e meias de malha negra. Seu cabelo escurecido artificialmente era uma massa de anéis empilhados em cima da cabeça e presos com um vistoso pente espanhol. O escuro de seus olhos fortemente pintados de negro contrastava com a máscara branca do rosto, espessamente coberto com camadas de um pó tóxico que já havia marcado suas faces. O ruge em suas bochechas dava-lhe um ar quase vulgar.
Mas a atenção de Wheeler não estava focalizada em seu rosto ou em suas pernas; ele olhava para a montanha de carne que ameaçava derramarse de seu audacioso decote.
- Eu não disse que eram meus passatempos favoritos, Molly. Apenas disse que não havia outra escolha...
- Concordo com você, Nate, que ficar sóbrio nesta cidade não é lá uma grande coisa. - Ela descansou o antebraço no balcão, depois apoiou seu peso nele, ajeitando o corpo de forma a dar ao soldado uma visão ainda melhor de sua comissão de frente. - Você vai ficar aí de olhos esbugalhados, Nate, ou vai pagar uma bebida para uma dama sedenta?
- Dê-nos uma garrafa e outro copo. - Wheeler meteu a mão no bolso, colocou mais dinheiro em cima do balcão e depois cutucou seu companheiro. - Vamos, Kelly. Vamos sentar numa mesa.
Quase de uma forma relutante, Dan Kelly afastou-se do bar e seguiu Wheeler, quando este pegou a garrafa e o copo e dirigiu-se para uma das mesas. Em vez de puxar uma cadeira e sentar-se perto da pequena do bar, cercando-a pelo outro lado, Kelly escolheu uma cadeira do lado oposto da mesa e deixou cair nela o corpo.
- O que há com seu amigo, Nate? - Molly Grandona estudava com curiosidade o alto e magro soldado.
- Não dê bola para ele. Ele sempre fica um bocado sentado matutando sobre aquela mina de ouro que ele ainda não encontrou. Depois de colocar alguns drinques na barriga ele se anima um pouco. - Wheeler serviu-a de uma dose, depois virou-se em sua cadeira, passou um braço pelos ombros dela, deixando a mão ficar bastante caída. - Agora você e eu podemos conversar.
- Veja lá para onde é que essa sua mão boba está indo... - avisou ela - Você sabe quais são as regras. Ninguém vai me bolinar de graça.
- Ora, Molly... - protestou ele.
- Negócio é negócio - lembrou-lhe ela. - Se você não gosta assim, pegue sua garrafa e vá embebedar alguma índia lá do Ranche. Então poderá obter tudo o que quer de graça, incluindo uma carga de doenças...
- Você é uma mulher muito dura, Molly.
- Essa não, Nate! Você sabe que sou uma mulher macia. Quantas vezes neste inverno passado você mergulhou na minha maciez? provocou-o ela.
Ryan já vira Molly Grandona, trabalhar por vezes demais para ficar interessado em vê-la pegar outro freguês, e andou até o bar.
- Estarei no escritório lá atrás se precisar de mim, Lyle.
Depois de seu casamento, os Blackwoods montaram casa numa cabana modestamente mobiliada, em sua maior parte com móveis de segunda mão. Nadia esforçou-se para criar um ambiente atrativo para seu amado esposo.
Sua agulha estava sempre ocupada, inventando toalhinhas para cobrir as superfícies desgastadas das mesas e bordando capas para esconder os braços e as costas puídas do sofá e das cadeiras. Mas a cada vez que ela corria os olhos pelos aposentos, via tantas coisas mais que precisavam ser feitas - novas cortinas para as janelas, bordados emoldurados para as paredes, tapetes para os pisos - a lista parecia infindável.
Ouvindo o arranhar da pena no papel, Nadia levantou os olhos do bordado que tinha no colo. Gabe estava sentado na mesa que usava para escrever, encurvado sobre uma carta em elaboração, parecendo um estudo sobre concentração. Mesmo que lhe levasse a vida inteira para transformar a casa em uma da qual sentisse orgulho, ela de bom grado o faria Por ele.
Gabe fez uma pausa em sua escrita e correu os dedos pelo cabelo, depois esfregou os olhos num gesto de cansaço. Silenciosamente, Nadia descansou seu trabalho de agulha e cruzou a sala, caminhando com leveza na ponta dos pés, de forma que o salto de seus sapatos batendo no assoalho de madeira não o perturbasse. Na cozinha ela preparou um bule de chá e colocou-o junto com duas xícaras e um pote de mel na bandeja de prata que fora um presente de casamento de seu avô.
Levou a bandeja para a sala de estar e colocou-a na mesa onde ele estava trabalhando. Gabe levantou os olhos com um ar preocupado. Havia algo de tão infantil acerca daquela expressão dele que, mesmo depois de duas semanas de casados, ela ainda sentia vontade de estender a mão e alisar aquelas rugas da testa dele.
- Achei que você gostaria de um pouco de chá - falou ela.
- Adoraria. - Ele deu um suspiro e endireitou-se na cadeira, arqueando as costas e flexionando os músculos enrijecidos dos ombros.
Depois de encher a xícara dele, Nadia acrescentou a quantidade de mel de que ele gostava, depois levou a xícara em volta da mesa para colocála diante dele. Gabe enlaçou-a pela cintura e puxou-a para si.
- O que você está escrevendo? - perguntou ela, olhando com curiosidade para o papel que estava quase coberto com sua caprichosa caligrafia.
- Uma carta para o Congresso, apressando-os para dar-nos o direito de formar um governo civil. Eles precisam ser informados da presente situação e do potencial para um sólido crescimento e desenvolvimento por aqui. Não podemos continuar sem lei; eles precisam aprovar uma legislação para terminar com esta intolerável situação - declarou ele.
- Você os convencerá - disse ela, apertando a mão em seu ombro, num gesto tanto de afeição como de fé.
- Que belo marido que eu sou... - disse ele com um sorriso que tinha um vestígio de aborrecimento. - Quase não lhe disse duas palavras toda a noite. Em breve você me acusará de estar negligenciando.
- Nunca. - Ela corou quando ele deslizou sua mão mais para cima em sua cintura, aproximando-a de seu busto, e levantou a mão dela para beijar-lhe a palma. com gentileza, ela livrou-se do abraço e foi até a bandeja para servir-se de uma xícara de chá. Ainda não se sentia à vontade com as intimidades do leito nupcial; gostava dos beijos dele, mas o resto lhe parecia um pouco bruto. - Eu lhe disse que meu primo Dimitri encontrou trabalho?
- Isto é uma bela novidade. Onde ele está trabalhando?
- O sr. Colby empregou-o...
- Colby? Aquele tratante?
Chocada pela súbita ira dele, Nadia demonstrou sua surpresa gaguejando:
- Eu... eu pensei que ele fosse seu amigo...
- Ele? Nunca! Gabe empurrou a cadeira para trás com grande violência e começou a andar pela sala, gesticulando excitadamente enquanto falava: - Aquele bar dele e os outros são responsáveis pela metade do mal que existe nesta cidade! São casas de pecado e de corrupção e não se devia permitir que funcionassem! - Ele parou em frente a ela, confrontando-se com sua raiva. - O que levou seu primo a ir trabalhar em tal lugar? Ele estará violando a lei. Aqui estou eu lutando para fazer desta cidade um lugar decente para viver e alguém de sua família faz uma tolice como esta! O que a gente vai pensar disso?
- Dimitri não vai trabalhar no bar - disse Nadia, encolhendo-se ligeiramente em frente a ele. - Ele é um navegador - explicou, hesitante. - O sr. Colby contratou-o para comandar o navio dele.
- Seu navio? Que navio? - Ele recuou, saindo de perto dela. O que Colby vai fazer com um navio?
Sentindo que a raiva dele tinha amainado, ela apressou-se a assegurar-lhe que seu primo não iria cometer nenhum crime.
- Dimitri disse que o sr. Colby comprou uma das chalupas da companhia de forma a poder começar a comerciar com as aldeias kolosh da área, comprando peles. Isto é o que Dimitri vai fazer; ele é um navegador treinado, conhece estas águas e a localização das diversas aldeias kolosh. Tem prática de comércio e pode falar muito bem a língua dos índios.
- Esses selvagens! - Gabe expeliu sua condenação por entre dentes cerrados e depois apertou os lábios com tanta força que eles pareciam tremer. - Nenhum homem deveria aproximar-se deles e de seus ídolos de madeira entalhada!
- Seus totens não são ídolos para adoração. Eles representam histórias e lendas de seus clãs.
- Como sabe disso? - inquiriu ele.
- Foi o que me disseram - respondeu ela, insegura.
- O que quer que sejam, são objetos pagãos e deveriam ser queimados. Nenhuma pessoa decente deveria associar-se a eles, quer seja para negociar com peles ou qualquer outra coisa. Se o Exército tivesse juízo, limparia aquele chiqueiro que chamam de Ranche, com suas doenças e bebedeiras, e embarcaria todos esses índios sujos para alguma ilha remota.
- Terminada sua diatribe, ele voltou para a mesa e continuou a escrever furiosamente.
A mão de Nadia tremia um pouco quando levou a xícara aos lábios. Mas o chá estava frio. Descansou a xícara no pires, desejando ardentemente que nunca tivesse trazido à baila o assunto dos kolosh. De agora em diante, ela deveria lembrar-se dos escrúpulos de Gabe e evitar qualquer menção aos índios. Era sua culpa total que ele tivesse ficado tão zangado; deveria ter pensado melhor.
Um ano e meio mais tarde, a bandeira das listras e estrelas tremulava sobre os cidadãos de Sitka que se haviam reunido no campo de parada em frente ao castelo de Baranov, agora a residência do comandante militar do Alasca. Ryan Colby estava à margem da multidão, com um dedo enfiado no bolsinho do relógio de seu colete de brocado. Mastigando seu costumeiro charuto, ele estudava o orador magro, de ombros arqueados de pé nos degraus da varanda.
Pouco havia sobre o velho homem para chamar tal atenção. A roupa dele parecia amassada; os cachos ondulados de seu cabelo grisalho tinham um aspecto desordenado. Sua larga testa e espessas sobrancelhas ressaltavam o nariz adunco e o pequeno queixo. Entretanto, aquele homem era o antigo ministro de Exterior, William H. Seward, o homem responsável pela compra do Alasca à Rússia.
- O sr. Sumner, em seu elaborado e magnífico discurso - continuou Seward numa voz naturalmente rouca, referindo-se ao senador de Massachussetts que fora o paladino da compra do Alasca -, embora falasse apenas baseado em relatos históricos, não exagerou... nenhum homem poderia exagerar... quanto aos tesouros marinhos deste território. Além da baleia, que em todos os lugares e a todo tempo é vista fazendo seus poderosos exercícios, a lontra-do-mar, a foca de pêlo, e o leãomarinho, encontrados nestas águas que banham as ilhas ocidentais, essas mesmas águas bem como os mares do arquipélago de leste, estão repletas de salmão, de bacalhau e de outros peixes adaptáveis ao sustento da vida de homens e animais. Na realidade, o que vi por aqui, quase me converteu à teoria de alguns naturalistas, de que as águas do globo são repletas de alimentos para o sustento da vida animal em quantidades que superam a produção de alimentos na terra.
Seward estava de forma indireta defendendo a compra da terra que havia sido sarcasticamente referida como a "Loucura de Seward", "Walrus-sia" (Rússia dos leões-marinhos), e "Geladeira de Seward" na capital do país. A atenção de Ryan desviou-se para o grupo seleto de gente da cidade, atentamente de pé a um lado da varanda. Todos menos um eram membros do governo efetivo da cidade, composto do prefeito, que era também o coletor de impostos do governo, e dos conselheiros. Ryan especulava como Gabe Blackwood conseguira fazer-se incluir, e depois supôs que deveria ter sido a campanha de cartas que ele fizera junto ao Congresso, advogando alguma forma de governo civil para substituir o presente governo militar no Alasca.
Um homem de cabelos negros, usando o boné pontudo e a japona de um homem do mar, estava andando em volta da multidão, parando aqui e ali para esticar o pescoço e examinar os espectadores como se procurasse alguém. Reconhecendo o comandante de sua rápida chalupa, Ryan saiu do meio do povo e fez um sinal para Dimitri Tarakanov. Quando o jovem aproximou-se, Ryan ficou mais uma vez impressionado pela expressão dura e experiente daqueles olhos negros que enganavam sobre a relativa juventude de seus vinte anos. Em seu primeiro encontro, na primavera anterior, Ryan concluíra que o que faltava a Dimitri em experiência era compensado por sua viva inteligência e desprezo pelo perigo. Não se havia arrependido de sua escolha.
- Lyle disse que você estava aqui - falou Dimitri a meia voz.
- Algum problema?
Um sorriso ergueu as pontas do espetado bigode de Dimitri.
- Nada. As peles estão em seu barracão e o uísque está armazenado na ilha. Tão logo escurecer, nós traremos para cá.
- Ótimo.
Ryan enfiou o charuto na boca e ficou baforando pensativamente. Aprendera muito rápido que não havia mais lucro considerável no comércio de peles, mas que ainda apresentava uma fachada perfeita para sua atividade no comércio ilegal de bebidas. Embora o Exército desse uma cobertura tácita ao tráfico de bebidas, de vez em quando eles confiscavam um embarque à sua chegada. Ryan considerou que o contrabando era a opção perfeita para evitar uma possível interrupção de seu suprimento.
- O que está havendo por aqui? - perguntou Dimitri, indicando o orador com um sinal de cabeça.
- O bom povo de Sitka está alimentando esperanças de que Seward possa fazer alguma coisa por ele no Congresso - respondeu secamente Ryan.
Esperança era uma palavra suave para descrever o desespero que ele sentia dominar a multidão. A maioria das pessoas ficara desanimada, duvidando que seus apelos um dia fossem ouvidos pelo governo em Washington. Ò Alasca era considerado um distrito alfandegário. Não havia lei, não havia transferência legal de títulos de propriedade, não havia tribunais para julgar e punir legalmente os criminosos, não havia coleta de impostos legais, exceto as taxas alfandegárias, e não havia direito de voto.
Um ano após a compra do território, mais de setenta navios haviam entrado no porto e partido com seus porões cheios com quase todo o metal, equipamentos, peles e estoques de material que os russos tinham em Sitka. Os navios que não carregaram tais suprimentos levaram passageiros russos. A cidade já havia sido pilhada de tudo de valor, mas a maioria das pessoas não entendera isso.
A explosão de progresso já terminara para a maioria das pessoas: especuladores e promotores de negócios que não mais podiam comprar e vender terras para as quais não podiam obter nem fornecer um título de propriedade válido; mercadores e comerciantes ou profissionais como barbeiros, alfaiates e pais de família que não podiam tolerar a falta de lei e a desordem. Mas era uma situação que vinha a calhar para os donos de bares, jogadores e prostitutas.
Sitka era literalmente uma cidade militar. Novos efetivos tinham sido trazidos para lá, aumentando o número de soldados no Alasca para quinhentos, todos menos uns poucos estacionados em Sitka. Seus quartéis ficavam no coração da cidade, e quando os soldados saíam dos quartéis para beber, o que faziam muitas vezes, eles tomavam conta das ruas e aterrorizavam a população.
Para Ryan os soldados eram a principal fonte de negócio - os soldados e os índios, tanto os tlingits no Ranche, quanto os das aldeias próximas às quais ele trocava bebida por peles. Mas isto não significava que não tivesse concorrentes, e não apenas dos outros bares na cidade.
Alguns dos soldados mais empreendedores haviam começado a destilar sua bebida. Supunha-se que tudo começara numa aldeia dos tlingits chamada Hoochinoo, onde um soldado mostrara aos índios como pegar a simples infusão que eles faziam de cascas e frutinhas silvestres, ajuntar melaço e levedura e destilar a mistura. Desde essa ocasião, o processo fora ligeiramente refinado, mas o melaço permanecia o ingrediente principal, com adições de farinha de trigo, maçãs secas ou arroz, pó de levedura e bastante água para fazer uma infusão leve. Deixava-se que a mistura fermentasse até um conteúdo alcoólico elevado, a qual depois era destilada. O produto final chamava-se hoochinoo e era um potente rurji, capaz de estourar a cabeça de qualquer pessoa que tivesse um gosto tão ruim quanto seu cheiro.
No Ranche, o hoochinoo era vendido a dez centavos o copo. Ryan tinha seu próprio alambique para fazer a bebida, que às vezes usava para "batizar" seu uísque e aumentar o volume; ou então a vendia quando o estoque de uísque se esgotava, como às vezes acontecia no inverno.
- vou precisar de você para transportar alguns barriletes de melaço para mim lá na destilaria - disse ele a Dimitri.
Dimitri fez que sim com a cabeça, seu olhar dirigido para alguém no meio da multidão.
- Meu avô acaba de me ver. Preciso ir falar com ele.
- Vejo você lá no bar pouco depois da meia-noite - disse Ryan. Dimitri tornou a fazer um sinal afirmativo com a cabeça, enquanto se afastava para juntar-se à família.
Concluídos os discursos, o povo juntou-se em volta do antigo ministro do Exterior, suas vozes clamando por ordem e justiça, e ilustrando os muitos problemas que tinham de encarar, porque não havia jurisdição naquela terra. Nadia Blackwood ficou à parte com sua família, observando o marido, que estava no centro de tudo, junto ao sr. Seward.
- Não temos mais nada a aprender por aqui - afirmou seu pai, Lev Tarakanov. - Creio que está na hora de irmos para casa.
- Ele diz isso porque o estômago dele está batendo horas... - provocou sua esposa mestiça finlandesa, Aila.
- Eu também preciso preparar um jantar para meu marido - replicou Nadia, consciente de seu dever.
- Dimitri e eu a acompanharemos até sua casa, se não deseja esperar por seu marido - ofereceu-se o avô. - Tenho a impressão de que ele não está querendo sair daqui cedo.
- Não. Estou certa que ele gostaria de passar tanto tempo quanto possível com o sr. Seward. - Nadia sabia que não havia nada que ela pudesse contribuir para a discussão dele com o estadista americano, e a perspectiva de esperar ali até que ele terminasse não lhe agradava. A ideia de ter uma refeição pronta para ele quando chegasse em casa soava-lhe muito melhor. - Desculpem-me enquanto digo a ele que vocês estão me levando para casa. Não quero que ele se preocupe comigo.
- Esperaremos por você - prometeu-lhe o avô.
Com dificuldade ela conseguiu varar o povaréu e chegar ao lado do marido. Ele estava falando com o político. Esta era a primeira vez, desde que o famoso sr. Seward chegara, que Nadia se aproximava dele. Parecia a ela que seu rosto tinha semelhança com um papagaio muito esperto. Ela ficou parada ao lado de Gabe, hesitando em interrompê-lo enquanto ele falava.
- ...são intoleráveis. O Congresso comprou e pagou pelo Alasca. Não pode negligenciar por mais tempo nossas necessidades simplesmente porque estamos por aqui, isolados. Esta terra é maior do que o Texas. O senhor viu suas riquezas. Deve-se fazer entender junto ao Congresso que eles não podem nos abandonar aqui, sozinhos e esquecidos.
- Concordo inteiramente com o senhor, sr... - Seward hesitou quanto ao nome dele.
- Blackwood, Gabriel Blackwood - lembrou-lhe ele com presteza.
- Sr. Blackwood. Quando voltar, tenciono falar com meus amigos no Congresso, mas o senhor entende que disponho de muito poucos. Não sou exatamente uma figura popular em Washington. Algum dia, entretanto, o Congresso reconhecerá a sabedoria desta compra e aplaudirá minha visão. - Ele usava o charuto que tinha na mão para enfatizar seus comentários, e então notou Nadia parada ao lado de Gabe. - Creio que uma bela jovem senhora está tentando chamar sua atenção.
- Não desejo interromper - disse Nadia rapidamente, quando Gabe olhou para ela, surpreendido. - Apenas desejo que saiba que meu avô está me acompanhando até em casa.
- Sr. Seward, posso ter o privilégio de apresentar-lhe minha muito querida princesa russa? - Ele colocou a mão sob o cotovelo de Nadia e puxou-a para a frente. - Minha esposa, sra. Nadia Blackwood, filha de uma família muito antiga aqui de Sitka. O ilustre sr. William H. Seward, um dos mais destacados estadistas americanos.
- É um privilégio, senhor. - Nadia estendeu-lhe a mão e fez-lhe uma cortesia enquanto ele se inclinava galantemente sobre a mão dela.
- O prazer é todo meu - retrucou Seward e depois, virando-se para Gabe, disse: - Posso dizer-lhe que o senhor é um homem de sorte por ter uma esposa tão bonita?
- Sei disso - disse Gabe, sorrindo para ela.
- Peço que me desculpem. Estou certa que há muitas coisas importantes que desejam discutir. - Ela recuou, dizendo baixinho para o marido: - vou esperá-lo em casa.
- Logo estarei lá.
Mas não foi logo, e a deliciosa refeição que ela se esforçara para preparar-lhe estava fria quando Gabe finalmente chegou em casa. Ele nem pareceu notá-lo. Estava cheio de entusiasmo por seu encontro com Seward, as longas discussões que travaram e o apoio prometido.
A visita de Seward, no princípio de agosto, despertou esperanças, mas não o suficiente para estimular a declinante economia da cidade. Setembro chegou com suas deprimentes chuvas, e cada vez maior número de Pessoas falava em juntar o que tinha e partir.
Eva, com seus nove anos, estava acordada em sua cama, escutando as vozes de seus pais no quarto ao lado. A parede divisória entre os quartos abafava os sons, impedindo-a de captar cada palavra, mas ela ouvira um número suficiente de conversas semelhantes para capacitá-la a preencher a maior parte do que não entendia. Era sempre a mesma coisa: seu pai desesperando-se porque tomara a decisão errada ao ficar em Sitka, e sua mãe fazendo o possível para assegurar-lhe que a situação ia melhorar. Mas ela não parecia mais tão convincente.
Eva não podia entender como seu pai podia sequer pensar em deixar o avô aqui completamente sozinho, mas seu pai continuava dizendo que sua primeira consideração deveria ter sido o que era melhor para sua própria família e discorrendo como ele teria sido capaz de encontrar trabalho nas minas de ouro da Colúmbia Britânica. Eva desejava que algum dos dois perguntasse como ela se sentia; mas ninguém prestava atenção ao que ela falava, exceto o avô. Suspeitava que as coisas seriam diferentes se ela fosse bonita como sua irmã mais velha. O avô insistia em que ela estava ficando mais bonita a cada dia que passava, mas ela se olhava sem parar no espelho e sabia que não era verdade.
Puxou o cobertor sobre a cabeça a fim de tampar os ouvidos e isolar as vozes baixas no outro quarto. Quando isto não deu resultado, Eva tentou concentrar-se em outros sons mas as fracas batidas da chuva no telhado era uma pobre distração. Da rua vieram grosseiras risadas e altas vozes. Provavelmente soldados americanos da guarnição, pensou Eva. Ela não gostava deles; não eram boa gente. Estavam sempre bebendo e brigando, falando coisas ruins e zombando das pessoas.
Suas barulhentas vozes tornaram-se mais altas até que Eva ficou certa que estavam bem em frente à casa. Subitamente, houve uma forte batida na porta da frente; Eva teve um sobressalto, ficou gelada e agarrou-se ao cobertor. Por um instante, fez-se silêncio na casa, quando a conversa no quarto ao lado cessou.
As batidas se repetiram, seguidas por uma voz arrastada, gritando:
- Não tem ninguém em casa? Ei! Deixem-nos entrar! Não sabem que aqui fora está chovendo?
Um segundo mais tarde, alguém forçou a porta. Eva ouviu-a bater contra a tranca e sentou-se na cama, puxando os cobertores.
- Ela está trancada! - queixou-se um dos soldados.
- Isto não é nada amável...
- Alguém precisa ensinar alguns bons modos a esta raça.
A pancada na porta que se seguiu pareceu sacudir a casa toda com sua força. Ela pôde ouvir as passadas do pai quando ele saiu do quarto e passou pela sua porta. Jogando fora o cobertor, Eva pulou da cama e foi depressa até a porta, os pés descalços. Parecia-lhe que aqueles soldados queriam arrombar a porta; ficou assustada, mas não tanto que não desejasse ver o que estava acontecendo.
No momento em que saiu do quarto, ouviu-se a madeira estilhaçando com outro pesado golpe na porta. O pai gritou para que fossem embora. Eva moveu-se rápida e silenciosamente até que pôde ver a porta da frente. Seu pai estava em frente a ela com uma haste de ferro na mão. Quando a porta foi sacudida por um novo golpe para arrombá-la, ela escutou a madeira rachando e viu a emenda exposta na madeira amarela e branca da espessa tábua da tranca que mantinha a porta fechada.
Quando os soldados tornaram a forçá-la, a pesada madeira quebrou a porta abriu-se com um estrondo. Três soldados entraram pela abertura, cambaleando para recuperarem o equilíbrio. Tinham as roupas molhadas e respingadas de lama. Suas escuras barbas estavam emaranhadas e desalinhadas, da mesma forma que os cabelos que apareciam sob os quepes. Quando Eva observou seus olhos avermelhados, achou-os parecidos com animais enlouquecidos e correu para junto do pai, procurando proteção.
- Eva, não! - Seu pai olhou para ela alarmado, e Eva escondeu-se atrás dele.
- Ei! Olhem a garota em sua camisola cor-de-rosa. Como é feia! apontou um deles.
- Ei, garotinha! Você tem uma irmãzinha mais velha e bonita escondendo-se por aí em algum lugar?
- Não amolem! - disse o pai, ameaçando-os com a barra de ferro.
- Escutem só! - disse o primeiro soldado, mostrando os dentes amarelos num sorriso zombeteiro.
- Sim! Ele fala como se pensasse que nós não prestamos para gente como eles...
- Saiam já da minha casa! - ordenou o pai, enquanto Eva se escondia atrás dele.
- O mínimo que você pode fazer é oferecer-nos algo para beber antes de nos mandar sair para o frio e a chuva. Ele não é muito hospitaleiro, não é, Nate?
- Sim. Onde está a bebida? - perguntou Nate, girando a cabeça bêbada de um lado para o outro, inspecionando a casa. - Sei que você tem alguma por aí. Ainda não conheci nenhuma raça que não gostasse de sua água de fogo. - Deu um passo para dentro de casa e o pai de Eva moveu-se para barrar seu caminho. - Seu moço, saia de minha frente antes que eu me aborreça!
- Lev? - a mãe chamou-o do quarto dos fundos.
- Ouviram isso? Há uma mulher na casa! - O soldado chamado Nate esfregou as mãos, satisfeito. - Eu sabia. Eu sabia. Eu digo a vocês, rapazes, que posso farejá-las.
- Vão embora agora e deixem-nos em paz - ordenou o pai. - Não são bem-vindos aqui. Vão embora!
- Ele está muito ansioso para nos enxotar - observou o primeiro soldado, o que tinha os dentes amarelos.
- Sim. Se gosta tanto da chuva lá fora, por que não vai ele? - sugeriu o outro.
O primeiro agarrou o pai; antes que pudesse defender-se com a barra de ferro, os outros dois pularam sobre ele e jogaram-no para fora da casa.
- Papai! - gritou Eva e correu em direção à porta.
Um soldado fez menção de agarrá-la, mas não conseguiu. Ela correu para a chuva, chegando até o pai, que vagarosamente se levantava da estrada lamacenta, mantendo uma das mãos de encontro às costelas.
- Eles o machucaram, papai?
Quando o pai sacudiu a cabeça, ela ouviu a voz da mãe ansiosamente gritando por ele. Quase no mesmo instante, Eva ouviu Nate dizer:
- Olhem aqui! Temos uma índia de cabelos louros!
Um olhar desvairado e cheio de pânico estampou-se no rosto do pai.
- Eva, corra até a casa de seu avô. - Ele não pareceu notar que ela estava de camisola e descalça, ou que a chuva já a encharcava.
- Mas...
- Vá! - Ele empurrou-a, zangado, afastando-a dele. - Vá depressa, por causa de sua mãe.
A mãe deu um grito. Lev lançou-se de volta para dentro de casa, deixando Eva sozinha na escuridão e na chuva. Ela ficou olhando para a porta aberta por onde o pai havia desaparecido, ouvindo os gritos excitados e as risadas dos soldados, os brados de sua mãe e os zangados protestos do pai. Algo horrível ia acontecer, ela sabia. Estava aterrorizada; nunca em toda sua vida estivera nesse estado.
Começou a correr em direção à casa do avô, mas parecia incapaz de fazer as pernas se moverem mais depressa. A terra enlameada prendialhe os pés, retardando seu progresso, e a longa e molhada camisola embaraçava-se em suas pernas, fazendo-a tropeçar.
Nenhuma luz se via em qualquer das casas ao longo da rua; elas se erguiam escuras e altas de ambos os lados, figuras silenciosas e inamistosas na chuva. Para Eva, era como se estivesse no meio de um pesadelo, onde corria e corria e nunca chegava ao destino.
No escuro, quase ultrapassou a casa do avô, mas reconheceu-a no último momento e subiu pelo caminho que conduzia a ela. Tropeçou nos degraus da porta da frente, seus pés nus amortecidos pelo frio úmido e penetrante. Atirou-se de encontro à porta, batendo com seus pequenos punhos e soluçando por seu avô. Seus próprios gritos tornavam-na surda a quaisquer ruídos provenientes da casa.
Quando parecia não ter mais forças nos braços, a porta abriu-se e o avô surgiu, com uma vela acesa na mão e um par de calças sobre as ceroulas de flanela vermelha, os suspensórios caídos.
- Pequena, o que está fazendo a esta hora? - perguntou ele, franzindo a testa.
Ela tremia descontroladamente e seus dentes batiam, numa combinação de medo e do úmido frio. Por longo tempo não pôde responder-lhe. Ele começou a puxá-la para dentro de casa, tirando-a do frio e da chuva, mas Eva livrou-se das mãos do avô.
- Não. É mamãe. - Ela tentava falar entre os soluços que a acometiam. - Os soldados... Eles arrombaram a porta. O pai... mandou buscar o senhor. Precisa ajudá-lo... Estou com medo, vovô. Estou com tanto medo... - Ela não podia mais conter o pranto e começou a chorar, balbuciando o que ainda tinha a dizer. - O que os soldados vão fazer a eles, vovô? O que vão fazer?
- Chorar não irá ajudá-los, Eva Levyena. - Ele abaixou-se, enfiando os braços pelos suspensórios e alçando-os para seus ombros, ao mesmo tempo em que mudava a vela de uma mão para a outra. - Você precisa ser valente, compreende? Você deve ir até a casa de sua irmã e contar-lhe o que aconteceu. Diga-lhe também que fui para sua casa. Poderá fazer isto? - Eva fez que sim com a cabeça, seu corpo ainda tremendo descontrolado. - Então vá, enquanto pego meu mosquetão. E seja rápida como o vento.
A irmã vivia a apenas três casas de distância. Eva virou-se e pulou da varanda. A princípio suas pernas entorpecidas não funcionavam adequadamente, e ela iniciou uma corrida cambaleante. Atravessou os jardins fronteiros das duas casas intermediárias; perdeu o equilíbrio num trecho de lama mole escorregadia, e caiu de rosto no chão no meio do barro molhado, mas conseguiu reerguer-se, motivada pela recomendação do pai para que se apressasse, a qual tinha sido reforçada pelo avô.
Uma luz moveu-se dentro da casa da irmã, seu reflexo passando de uma janela para outra. Eva bateu frenética na porta da frente. Quase na mesma hora ouviu uma voz de homem perguntando:
- Quem está aí?
- Sou eu. Deixe-me entrar. Preciso ver Nadia! - Então, ela olhou para trás, para a rua escurecida pela chuva. No escuro mal pôde ver o vulto de um homem correndo apressado na direção da sua casa. Estava certa de que era o avô.
A tranca da porta rangeu alto quando foi retirada. Um segundo mais tarde abriu-se e o marido de sua irmã ficou olhando espantado para ela, duvidoso em reconhecê-la. Eva notou que ele ainda estava vestido com suas roupas de rua. Depois, seu olhar desviou-se dele para a chama amarela de uma lâmpada a óleo que a irmã segurava, seu rosto iluminado pela luz que se espalhava.
- Nadia! - gritou ela e desviou-se de Gabe Blackwood, correndo para a irmã, sem ligar para a trilha de lama que deixava ou a água que escorria.
- Eva! Olhe só para você! - exclamou espantada a irmã. - O que deu em sua cabeça para sair num tempo destes sem vestir-se direito? Olhe só! Você está encharcada até os ossos e parece um moleque enlameado sem casa! Vamos tirar estas roupas molhadas. O que a mamãe estava pensando quando a deixou sair de casa assim?
- Espere... - protestou Eva. - É mamãe...
- O que há de errado? Ela adoeceu?
Enquanto teve a oportunidade Eva desembuchou toda a história, as palavras tropeçando umas nas outras em sua pressa de dizer tudo antes Que Nadia a interrompesse de novo. Seu pavor aumentou quando viu o olhar de horror e desespero que se espalhou pela fisionomia da irmã.
- Gabe, você precisa fazer algo! - gritou ela.
As mandíbulas dele estavam ferozmente cerradas quando pegou seu chapéu e casaco dos cabides na parede e dirigiu-se para a porta da frente.
- vou até a casa do prefeito; se for preciso, arranco-o da cama.
- Fez uma parada no limiar da porta, vestindo o casaco. - Passe a tranca na porta quando eu sair.
- Vá depressa, Gabe! - Tão logo Nadia trancou a porta atrás de si, voltou-se para Eva, que estava com tanto frio que não podia parar de tremer. - Vamos para a cozinha.
Uma hora mais tarde, Nadia havia reacendido o fogo, no fogão de ferro, tirado as roupas molhadas e enlameadas de Eva, tomando cuidado para não sujar sua própria roupa. Limpou o barro do chão, enrolou a menina num cobertor e sentou-a numa cadeira diante do fogão. Durante todo esse tempo Nadia a cobrira de perguntas, fazendo Eva repetir tudo o que havia acontecido, as coisas que os soldados haviam dito e a reação de seus pais.
Embora o calor desfizesse o torpor de seus membros, Eva não conseguia animar-se. Estava por demais consciente da agitação que sua irmã não podia esconder por completo, o modo como ela se sobressaltava a qualquer ruído e continuava a olhar apreensiva para a porta da frente, como se ansiosa para que o marido retornasse. Nadia encheu uma xícara de chá, adoçou-o bastante com mel e entregou a Eva.
- Beba - apressou-a ela, mas sua tentativa de um sorriso animado pareceu muito fraca. - Você precisa se aquecer por dentro e por fora.
- Por que Gabe ainda não voltou? Já faz muito tempo que ele saiu.
- Eva sentia-se outra vez amedrontada. - O que você acha que aconteceu?
- Não sei - retorquiu a irmã bruscamente, seus próprios nervos estourando com a agonia da espera.
- Vovô sabe que estou aqui. Por que não vem me buscar?
- Beba seu chá e fique calada. - Nadia tomou um gole pequeno do chá de que se havia servido, mas Eva notou o ligeiro tremor de sua mão quando levou a xícara aos lábios.
- Algo de ruim aconteceu. Eu sei... - declarou Eva. - Talvez papai e mamãe estejam feridos. Talvez precisem de nós. Você não acha que devíamos procurá-los?
- Não, não acho. Gabe disse para ficarmos aqui até ele retornar, e é exatamente o que vamos fazer. Além disso, lá fora ainda está chovendo; seria tolice sairmos agora, quando você mal acabou de se secar.
Ferida pela curta admoestação, Eva baixou a cabeça. Às vezes parecia-lhe que nunca dizia ou fazia algo certo.
- Desculpe-me. É que eu estou... amedrontada.
- Não há razão para ter medo. Tudo vai dar certo - insistiu Nadia. - Você precisa impedir que sua imaginação a domine. Se algo de horrível tivesse acontecido, alguém já teria vindo aqui nos contar. Como isso não aconteceu, os homens devem estar lidando com qualquer dificuldade surgida.
A súbita batida na porta da frente apanhou-as desprevenidas. Eva quase pulou da cadeira, mas o cobertor enrolado ao seu redor restringiulhe qualquer movimento e a fez derramar a maior parte do chá.
Após uma sensação inicial de alarme, Nadia descansou sua xícara na mesa e alisou a frente de seu vestido numa tentativa de recuperar a calma.
Fique aqui, Eva.
Mas se... - disse a pequena, mas não adiantou nada, pois sua irmã já deixara a cozinha. Tensa, Eva ficou escutando o ruge-ruge de suas longas saias e o suave e uniforme pisar dos sapatos. Ouviu a pergunta de sua irmã e a resposta abafada de um homem; depois veio o barulho da tranca escorregando de seu suporte. Um par de botas entrou na casa com suas fortes batidas.
Certa de que sua irmã não deixaria entrar ninguém a não ser seu marido, Eva conseguiu sair da cadeira e arrumou em volta do corpo o cobertor para ir até a sala de estar. Precisava saber como estavam seus pais.
- ... o prefeito e eu chegamos lá, era muito tarde. - Gabe livrou-se de seu casaco molhado e pendurou-o no cabide da parede, junto com seu chapéu, durante todo o tempo falando em tom baixo. - Encontramos seu avô deitado no chão, inconsciente; um dos soldados tinha-o atingido na nuca. Ele sente a cabeça doendo, mas parece que é só isso. Ele tentou assustar os soldados com aquele velho mosquetão, mas a pólvora estava úmida e a arma não disparou.
- E o que houve com papai e...
Enquanto Eva os observava a alguns passos de distância, Gabe segurou Nadia pelos ombros e manteve-a em frente a ele.
- Seu pai é um homem muito valente. Ele deve ter lutado muito, mas foi superado em número. Aqueles... soldados deram-lhe uma tremenda surra. Nada de sério, no entanto; os únicos danos que sofreu foram alguns cortes e algumas severas lesões, talvez umas duas costelas quebradas.
- E mamãe? Eles a molestaram? - Nadia agarrava-se nas lapelas de seu colete.
- Lamento muito... - Gabe hesitou por longo momento e por fim murmurou, sacudindo fracamente a cabeça: - Receio que eles a tenham violentado...
- Oh, não! - Nadia afastou-se dele, cobrindo a boca com a mão.
- Juro que eles pagarão por praticarem um ato tão miserável - A voz tremia de raiva.
- Preciso ir vê-la - disse Nadia, começando a virar-se.
- Não. - Gabe sustou-lhe o movimento. - Ela não quer você lá.
- Mas devo... - protestou Nadia. - Ela precisa de mim.
- Quando mencionei que a levaria para ficar com ela, sua mãe quase ficou histérica. Ela não deseja ver você... não agora, pelo menos... explicou ele, relutante. - No momento, seu pai é a única pessoa que ela quer ao lado.
- Pobre mamãe! - murmurou ela, e Eva percebeu um soluço na voz da irmã. - Espero que tenha acorrentado aqueles homens vis. você fez isso, não fez?
- Nadia, você sabe que o prefeito não tem autoridade sobre os militares. Ele não teve outra escolha senão entregá-los ao sargento da guarda.
Mas irei ver pessoalmente o general Davis de manhã e pedir-lhe que aqueles homens sejam submetidos a uma corte marcial e aprisionados por seus crimes. Prometo-lhe que serão levados à justiça!
- Odeio aquele homem! Odeio aqueles soldados! - Ela apertou os punhos de encontro à testa. - Só sei que deveria estar com mamãe.
- Acredite-me: é melhor que fique aqui. Sua irmãzinha vai precisar de você. Acho que será melhor você explicar-lhe o que aconteceu. Onde está ela? Você a colocou na cama?
- Não. Ela... - Nadia voltou-se e viu-a de pé, sua silhueta destacando-se na comprida mancha de luz da cozinha. - Eva, eu lhe disse para esperar.
- Mas eu queria ouvir. - Ela respirou forte, reunindo sua coragem. - O que significa violentada? É alguma coisa de muito ruim? Minha mãe vai morrer?
- Não! Ela não vai morrer - ajuntou Nadia mais calmamente. Significa apenas que ela foi machucada, mas ficará boa.
- O que eles fizeram com ela? - perguntou Eva, franzindo a testa.
- Eles... a machucaram.
- Você quer dizer que bateram nela como fizeram com papai?
- Qualquer coisa parecida com isso, sim - concordou Nadia. Aquela foi a única explicação que deram a Eva. Minutos depois, eles
a enrolaram nas cobertas no quarto de hóspedes, insistindo para que dormisse.
A luz do sol da manhã filtrava-se através das camadas de nevoeiro que se afinavam, dando um brilho iridescente à neblina que passava por fora da janela do escritório do comandante militar, no castelo Baranov. Gabe passou apressado pelo ordenança que abriu a porta para ele e marchou com passos bruscos até a enorme mesa do general, que, como a maior parte do mobiliário da casa, era remanescente da administração russa; como tudo o mais, demonstrava sinais de negligência.
A cadeira rangeu quando o general recolheu seus pés calçados de botas de cima da mesa e sentou-se direito. Mas não incomodou-se em levantar-se quando Gabe parou diante dele; nem fez nenhuma tentativa de abotoar o uniforme. A despeito do tamanho de seu bigode, que parecia uma vassoura, havia algo semelhante a Lincoln em seu rosto estreito e esquálido. Mas pelo modo como o general fechara os olhos às bebedeiras, badernas e roubalheiras de seus homens no passado, Gabe sabia que a semelhança com o presidente morto era meramente física.
- Soube que há um assunto urgente que deseja discutir comigo, sr. Blackwood - declarou o general, e depois deu um pesado suspiro, como se sua tolerância estivesse sendo posta à prova.
- De fato, senhor - disse Gabe e foi direto ao objetivo de sua visita - Na noite passada três de seus soldados invadiram a casa da família Tarakanov, atacaram selvagemente o sr. Tarakanov e violentaram sua esposa.
- O incidente me foi comunicado.
- Não foi um incidente, general - retorquiu Gabe. - Foi um atentado criminoso.
- Os soldados em questão se encontram presentemente na prisão, até passar a bebedeira da noite de ontem. Quando estiverem sóbrios, medidas disciplinares apropriadas serão tomadas. Isso é tudo, sr. Blackwood?
O general tornou claro que não desejava continuar a discutir com um civil um assunto militar.
- Sou eu que coloco a pergunta para o senhor, general Davis: isso é tudo? - desafiou-o Gabe. - A punição deles vai se limitar a. alguns dias no xadrez? Esta, senhor, não é a primeira vez que tal "incidente" ocorre. Anteriormente seus homens já invadiram lares e molestaram os ocupantes. As vítimas anteriores foram sempre de origem índia, mas desta vez eles exageraram. Atacaram a casa de uma família decente e exijo que sejam punidos por seu execrável crime.
- O senhor exige! - O general ergueu-se e descansou todo o seu peso nos dedos apoiados sobre a mesa. - Não dou a mínima importância às suas exigências. Sou o comandante aqui. Cabe a mim determinar a punição que lhes será imposta, se houver alguma...
- Então devo dizer-lhe, julgando pelo comportamento ilegal e desordeiro de seus soldados, que o senhor não tem condições para comandar!
O general empertigou-se, endireitando seus ombros, enquanto estudava atentamente Gabe.
- Blackwood... Ah, sim, lembro-me agora. O senhor casou-se com uma daquelas mestiças russas, não foi? Diga-me uma coisa: as assim chamadas vítimas da noite passada eram membros da família de sua esposa?
- Acontece que eles eram seus pais - respondeu Gabe, enrijecendo-se com a vil acusação. - Mas eles são russos, uma das poucas famílias que escolheram ficar aqui.
- Eles podem ser meio-russos, talvez mais, mas têm sangue índio. Aleúte, tlingit ou esquimó, não importa qual, realmente.
- Isso é mentira! - Um músculo pulava nas mandíbulas fortemente cerradas de Gabe.
- Será? Tenho uma listagem completa de todas as famílias que viviam aqui quando os Estados Unidos efetuaram a ocupação. Verifiqueia esta manhã e os Tarakanov constam do lado mestiço da lista - afirmou o general enfaticamente.
Algo pareceu explodir dentro da cabeça de Gabe. De uma forma vaga ele podia ouvir o general gritando; a próxima coisa de que tomou consciência foi de seus dedos enterrados na espessa barba, procurando a garganta do homem e três soldados lutando para separá-lo do general. Sentia-se tonto, como se tomado por alguma espécie de choque.
- Joguem-no na rua! - gritou o general com a voz rouca. Joguem-no lá fora, antes que eu me esqueça que é um civil!
Os soldados escoltaram-no por toda a escadaria abaixo, levando-o com brutalidade, até que o soltaram com um último empurrão. Gabe afastou-se cambaleando, sua mente ainda chocada pelas horríveis mentiras do general. Aquilo não podia ser verdade! Ele não podia ter-se casado com uma mestiça... não ele! Ele odiava os índios; esses carniceiros selvagens tinham assassinado seus pais.
Como um cego ele subiu a rua, sem saber onde estava ou para onde ia. Estava confuso e cheio de raiva, seus pensamentos girando tão loucamente, tão caoticamente que ele não podia coordená-los. Precisava clarear sua mente e de alguma forma deslindar aquela confusão.
Avistou um bar e tentou abrir suas portas fechadas, mas elas estavam trancadas. Primeiro ele bateu, depois esmurrou-as com força. Finalmente ouviu uma voz do outro lado dizendo: "Ainda não abrimos!"
- Abra esta porta! - Gabe não ligava se já estavam abertos para atender a fregueses ou não; queria um drinque.
Depois do alto estalido de um fecho abriu-se uma fresta na porta.
- Oh, é o senhor, sr. Blackwood. Desculpe, mas... - O gerente do bar, com suas suíças completas, não teve chance de acabar sua frase, pois Gabe escancarou a porta e abriu caminho salão adentro.
Todas as cadeiras estavam de pernas para o ar em cima das mesas, e o salão tinha o cheiro acre de uísque barato e fumo. Gabe passou pelas mesas e dirigiu-se direto para o balcão do bar.
- Que barulheira é essa, Lyle? - Ryan Colby saiu do quarto dos fundos vestido num comprido robe de veludo azul-marinho, forrado de seda creme, a qual se estendia pela gola e punhos.
- É Blackwood. Ele entrou à força. Eu disse a ele que estávamos fechados - explicou o gerente do bar.
- Quero um drinque - pediu Gabe, encostado no bar.
- Prepare um café, Lyle - disse Ryan, caminhando para trás do bar.
- Se eu quisesse café teria ido a um restaurante - retorquiu Gabe. - Isto é um bar e quero uísque.
- Uísque nós temos... - disse Ryan, sorrindo enquanto tirava a rolha de uma garrafa da prateleira e enchia uma medida de uísque num copo. - Mas você não se incomoda se eu beber café, não? Para mim ainda é um pouco cedo para uísque.
- Deixe a garrafa aí - ordenou Gabe quando Ryan começou a levála de volta para a prateleira.
- Tem certeza? - Ryan arqueou o sobrolho. O Gabe Blackwood que ele conhecia raramente bebia.
- Posso pagar por ela. - Gabe meteu a mão no bolso e jogou o dinheiro sobre o balcão.
Ryan deixou a garrafa de uísque onde a havia colocado e afastou-se um pouco para o lado do balcão, a fim de acender um charuto. Ele já vira antes aquele olhar meio alucinado em fregueses, prontos para arranjarem uma desculpa e iniciar uma briga. Susteve a chama do fósforo em frente à ponta do charuto e sugou-o até acendê-lo, estudando o advogado por entre a fumaça que subia do charuto. Não tinha dúvida de sua atitude beligerante.
- Para que está olhando?
Para nada. - Ryan apagou o fósforo.
O que quer dizer com isso?
Não quero dizer nada. - Ryan não pretendia dar a Blackwood
a desculpa que ele estava procurando. Não era um daqueles homens que dava um dedo por uma briga. Mesmo assim, a curiosidade impedia-o de retirar-se e deixar Blackwood curtir sozinho seu mau humor.
Ryan sentou-se e começou a jogar cartas, levantando os olhos de vez em quando para seu isolado freguês. Blackwood continuava debruçado sobre o bar, engolindo o uísque em tragos longos e depois reenchendo o copo.
- Eu devia tê-lo desafiado - murmurou ele e engoliu outro gole.
- É o que deveria ter feito...
- Não escutei direito. - Ryan fingiu que não tinha ouvido.
- Eu disse que deveria ter desafiado aquele filho de uma puta. Assim o impediria de continuar a espalhar suas mentiras.
- Que filho da puta é esse?
- Aquele generalzinho corrupto que ocupa o castelo de Baranov. O calhorda não tem competência para comandar, e eu lhe disse isso na cara. - Ele fechou a mão com força em volta do pequeno copo de uísque, num gesto de quem está enforcando alguém. - Foi uma maldita mentira.
- O que foi uma mentira?
- Nada que seja de sua conta - rosnou Gabe.
Ryan encolheu os ombros, enfiou o charuto de volta na boca e voltou para seu jogo de cartas. O uísque estava soltando a língua de Blackwood; o uso de palavrões por um homem que normalmente cuidava da linguagem que empregava, era sempre o primeiro sinal. Mais cedo ou mais tarde ele confessaria o que o estava aborrecendo. Ryan nem precisaria perguntar.
- Não posso deixá-lo escapar ileso - murmurou Blackwood para si mesmo e depois endireitou-se: - Colby, você tem uma pistola que eu Possa usar?
- Para quê?
- Para atirar no filho da puta. Não posso permitir que ele saia por aí dizendo aquelas coisas acerca de minha mulher. Minha bela princesa russa! Qualquer pessoa que já a tenha visto sabe que ela não tem nenhum sangue índio. Você pode dizer isso, não pode, Colby?
O Que você mandar - Ryan fingiu estar estudando as cartas esPalhadas no balcão, afinal entendendo do que se tratava.
- Não, droga! - gritou Blackwood, dando um soco no tampo do bar. - Quero ouvir o que você tem a dizer!
- Eu digo - respondeu Ryan, após uma pausa. - Não tenho nada com isso, de uma forma ou de outra.
- Isso não é resposta! - Gabe afastou-se do balcão e movimentou-se até Ryan. O ligeiro cambalear de seus passos após apenas três drinques demonstrava sua baixa resistência ao álcool.
- É a melhor que eu posso oferecer - disse Ryan, colocando um nove preto em cima de um dez vermelho.
Com um gesto rápido da mão, Blackwood varreu as cartas de cima do bar e espalhou-as pelo chão coberto de serragem. - Quero a verdade, porra! Você pensa que minha esposa é índia?
- A verdade? - Ryan deixou escapar uma risada seca, despida de qualquer humor. - Acho que é, mas não sei se é verdade. Não sou a pessoa que você deveria estar questionando. Sua esposa é a única que pode dizer-lhe a verdade. Antes que tome emprestado uma arma e mate alguém, por que não pergunta a ela?
Blackwood ficou a balançar-se ligeiramente enquanto estudava a sugestão; depois fez que sim com a cabeça, devagar.
- Acho que farei isso. - Afastou-se do bar e jogou-se através do salão em direção à porta.
Quando ela foi batida após Blackwood sair, Lyle emergiu do fundo do salão dizendo que o café estava pronto.
Ryan pegou a caneca do gerente e lançou uma última olhada à porta. Blackwood era um rematado tolo... O dinheiro era a única coisa com que um homem deveria sonhar. Ryan nunca soubera de um caso em que o dinheiro houvesse desapontado um homem.
Saindo do bar, Gabe começou a subir a rua. Ryan estava certo; a coisa a fazer era confrontar Nadia. Ela deveria ser capaz de dar-lhe uma resposta para esclarecer toda essa sujeira. Ryan - e provavelmente todo mundo - pensava que ele se casara com uma mestiça.
Mas nunca teria cometido tal espécie de erro. O assassinato de seus pais o ensinara a jamais confiar num índio - qualquer espécie de índio, de sangue puro ou não. O couro cabeludo de sua mãe havia sido pendurado no cinto do mestiço que seus pais amaram e adotaram como filho.
Seu ódio aos índios abrangia mais do que a morte dos pais nas mãos deles. Ele os odiava porque os pais preferiram deixá-lo para viver entre os índios, porque eles o haviam deixado - sua própria carne e seu próprio sangue - para dar seu amor a alguns selvagens meio-brancos. Os índios haviam roubado muita coisa dele.
Andava pela rua em passo apressado, levado pela raiva, e tropeçou numa tábua solta, caindo na calçada de madeira. Um grunhido veio da rua enlameada quando um porco levantou-se e correu para longe, espadanando na lama em sua corrida. Abalado pela súbita queda, Blackwood ficou deitado por um minuto, tentando recuperar os sentidos abalados.
Ao esforçar-se para ficar de pé, uma tábua podre cedeu sobre seu peso, quase atirando-o de novo ao chão. Recuperando o equilíbrio, ergueu-se, amaldiçoando as condições da calçada.
Meses atrás as pessoas tinham deixado de pagar as taxas cobradas para a manutenção de coisas tais como as calçadas. Todo mundo sabia que a cidade não tinha poder legal para coletar impostos. Impostos não podiam ser cobrados a menos que o povo os votasse, e eles não tinham o direito legal de votar naquela terra. O governo da cidade, o plano da cidade, os títulos de propriedades, as hipotecas - nada era legal.
Sinais de negligência e falta de reparos apareciam por toda parte, em especial nos edifícios mais novos e precariamente construídos, que tinham sido feitos às pressas para tirar vantagem da explosão inicial de progresso. As portas e janelas de alguns desses edifícios estavam fechadas com tábuas, mas viam-se grosseiras inscrições, dizendo: FECHADO ou NEGÓCIO FALIDO. Uma delas dizia: CALIFÓRNIA, LÁ vou EU! Por toda parte havia lixo, caixotes arrebentados, aduelas de barris, aros enferrujados de barricas e papel molhado. Havia mais suínos chafurdando na lama das ruas do que pessoas andando por elas.
Essa cidade suja e arruinada destinava-se algum dia ser a capital do Alasca. E ele queria ser governador dessa pocilga... Quando tal ideia surgiu-lhe na cabeça, Gabe começou a rir. O riso o tomou e o dominou, cada vez mais forte, até que viu-se forçado a encostar-se num edifício para apoiar-se. Lágrimas corriam-lhe pela face; ele nunca soube quando deixou de rir e começou a chorar.
Após cessarem os soluços, ele ficou um longo tempo contemplando desanimado a cidade; depois desencostou-se do edifício e andou até a beirada da calçada.
- Por quê? - exclamou. - Poderíamos ter sido alguma coisa! Alguém puxou a manga de seu casaco. Gabe voltou a cabeça para ver quem era. Uma índia do Ranche embrulhada num cobertor andava ao lado dele, seus olhos escuros observando-o avidamente:
- Senhor, compre! - Ela levantou uma quinquilharia qualquer para ele ver. - Vendo barato!
- Afaste-se de mim! - Ele deu um safanão para livrar seu braço. Mas a mulher índia insistia, empurrando a quinquilharia bem perto de seu rosto.
- Vendo muito barato.
- Já lhe disse para ir para o inferno, bem longe de mim! - Irado, ele a empurrou para o meio da lama na rua.
Ela escorregou e caiu, escorando a queda com o braço estendido, mas Perdeu o objeto de madeira esculpida no meio da lama. Nervosamente Pôs-se a procurá-lo, enterrando as mãos no barro cor de chocolate e remexendo-as numa tentativa desesperada de localizá-lo. Gabe observava com um ar de desprezo.
Quando ela encontrou o objeto, apertou-o contra o peito e olhou de novo para ele. Gabe ficou encarando o rosto arredondado. Sua mulher tinha os malares como os da índia. "Oh, meu Deus!", gemeu ele e afastou o olhar, tentando negar o fato em sua mente. Depois, cerrou violentamente as mandíbulas e rangeu os dentes. A raiva de haver sido traído e o ódio sacudiram-no.
Com seu casacão pendurado no cabide da parede, Nadia afastou-se da porta da frente e com vagar desatou o chapéu. Tirou-o da cabeça e automaticamente alisou os cabelos na parte posterior da cabeça, voltando-os a seu próprio lugar.
Gabe avisara-a para que não fosse à casa dos pais enquanto não voltasse da visita ao general, mas Eva estava tão ansiosa a respeito deles que tinha ido, de qualquer forma. Estava também preocupada e atormentada pela culpa, certa de que, não importa o que Gabe lhe dissera, que deveria ter ido ver sua mãe à noite passada.
Mas Gabe estava certo. Sua mãe não desejara vê-la. Ainda podia se lembrar do olhar de horror no rosto da mãe quando ela entrara no quarto. Imediatamente ela virara o rosto para a parede e colocara uma mão trémula na boca. Não respondera ao que Nadia lhe dissera; ficara apenas ali na cama, encolhida de terror e de vergonha.
Prudentemente, não havia levado Eva consigo ao quarto para ver a mãe. Desejava que não tivesse levado sua pequena irmã à casa do pai, de qualquer forma, mas ninguém a avisara que o pai se achava com tão mau aspecto. Seu rosto estava machucado e inchado, o lábio cortado e os olhos sombreados de preto. A princípio ela nem o reconheceu; a coitada da Eva tinha ficado com os olhos arregalados, sem dizer uma palavra.
Ele parecia tão desanimado e perdido; os soldados haviam maltratado mais do que seu corpo. Na noite passada a mãe o fizera prometer que não revelaria a ninguém o que lhe acontecera, explicara a Nadia. Ele dera sua palavra e fizera-as jurar o mesmo compromisso de segredo. Nenhum de seus vizinhos ou amigos deveria saber. Se algum deles tivesse ouvido a barulheira, a única coisa que deveriam admitir era que os soldados haviam invadido a casa e a saqueado a procura de bebida. Nadia fizera o possível para arrumar as coisas da casa enquanto por lá esteve.
Seu pai tinha sido tão inflexível acerca de que ninguém soubesse de toda a verdade que Nadia não pudera dizer-lhe que Gabe fora ver o general americano. Ela não quis aumentar-lhe a angústia.
Sua pobre irmãzinha estava confusa com tudo aquilo. Nadia simplesmente não pudera explicar-lhe, em termos que Eva pudesse entender, a terrível degradação que sua mãe sofrera nas mãos daqueles soldados. Como poderia alguém explicar uma coisa tão vil a uma inocente criança de nove anos? Era algo que não podia sequer discutir com o marido. Ela podia compreender o profundo temor de sua mãe que vizinhos e amigos viessem a saber do estupro. Se tivesse acontecido com ela, em vez de com sua mãe, sabia que não poderia suportar que outras pessoas a olhassem e soubessem o que sofrera nas mãos dos soldados. Ela morreria de vergonha.
Ficou aliviada por seu avô ter levado Eva para sua casa; simplesmente não saberia como lidar com todas as estranhas perguntas da irmã. Quanto mais pensava acerca do voto de silêncio que assumira, tanto mais pensava que seria melhor se todo o mundo fingisse que nada havia acontecido. Certamente, quando ela o explicasse a Gabe, ele veria que aquilo fazia sentido. Por que trazer um embaraço desnecessário para sua família?
Reconheceu o som familiar dos passos de Gabe quando ele galgava os degraus da escada que levava à casa.
Gabe, estou tão contente que você esteja em casa. – Avançou para recebê-lo quando ele entrou e então notou o ar estranho em seu rosto.
Você está contente? - exclamou ele e fechou a porta com um
pontapé.
Ele parecia cambalear um pouco, mas Nadia não podia estar certa disso.
- Deixe-me ajudá-lo a tirar seu casacão, para podermos sentar-nos e conversar. - Mas ele não se moveu. Em vez disso, encarava-a como se nunca a tivesse visto antes. Nadia começou a ficar incomodada. - Alguma coisa está errada? - Ela passou a mão em seu rosto, cismando se o teria manchado ao arrumar-se.
- O que poderia estar errado? - perguntou ele em tom de desafio.
- Não sei. Você está olhando para mim de modo tão estranho...
- disse ela, rindo nervosamente.
- Estou?
Incapaz de entender seu estranho comportamento, Nadia virou-se para entrar no quarto, torcendo os dedos das mãos entrelaçadas.
- O que o general lhe disse?
- O general me disse muito, minha pequena princesa. - A voz dele soava tão dura e sarcástica que Nadia voltou-se para olhá-lo. Sentiu-se amedrontada sem saber a causa. - De fato, foi esta a pergunta que ele levantou: você é uma princesa russa ou uma princesa índia? - indagou ele, aproximando o rosto do dela.
Ela recuou assustada ante seu olhar raivoso. Curvou-se devido à dolorosa pressão que ele fazia em seu antebraço.
- Por que pergunta uma coisa destas, Gabe? - murmurou ela, desajeitada, dando um gemido de dor quando ele torceu-lhe o antebraço.
- Sua maldita! Responda-me!
- Está me machucando - choramingou Nadia enquanto a pressão aumentava, tornando mais intensa a dor em seu braço.
- Você tem sangue índio?
Ela sentia como se seu braço fosse quebrar a qualquer momento.
- Sim - respondeu e depois gritou, quando ele torceu mais.
- Quanto?
Minha... bisavó era de meio-sangue aleúte - admitiu ela. - E meu avô é meio kolosh. - Ela não teve oportunidade de dizer-lhe que os ancestrais de sua mãe também eram misturados, metade finlandeses e metade russos, aleútes e kolosh.
- Sua cadela! - disse ele e esbofeteou-a.
A força da bofetada jogou-a ao chão, por um instante tonteando-a. Ela estava consciente da dor no braço pela torcedura que ele lhe havia imposto. Todo um lado de seu rosto parecia em fogo. Começou a levantarse apoiando-se num braço e, cuidadosamente, tocou o rosto e o queixo, sentindo o gosto do sangue no corte em sua boca.
- Você mentiu para mim! - berrou ele.
- Eu não menti! - Ela apressou-se a ficar de pé, ansiosa por acalmar seu acesso de raiva. - Juro que não menti, Gabe.
- Toda a maldita cidade sabia que peguei uma mestiça para esposa, todos menos eu! Você se esqueceu de me dar essa pequena informação.
- Você nunca perguntou.
Ele esbofeteou-a outra vez, batendo no mesmo lugar de antes e causando novas explosões de dor em sua cabeça.
- Eu deveria ter esperado uma resposta como esta de sua parte zombou ele. - Mesmo que tivesse perguntado, você teria mentido. Enganou-me para que eu casasse com você.
- Juro que não o fiz. - Ela encolheu-se, temerosa, resguardando sua latejante cabeça com a mão. - Eu amo você. Queria ser sua esposa e ajudá-lo a realizar todos seus planos e seus sonhos.
- Você os arruinou! Você destruiu todas as oportunidades que eu tinha! Você não enxerga, sua estúpida vagabunda! Eles nunca me nomearão governador quando o Alasca se tornar território! Terei sorte se me derem o lugar de agente dos correios... não um homem que tem uma mu lher mestiça! - Quando ele avançou para ela, enraivecido, Nadia começou a recuar, pressentindo a explosão, mas ele a seguiu, gritando cada vez mais alto a cada passo que dava. - Estou liquidado! Você arruinou tudo para mim! E me fez o palhaço de toda esta fedorenta cidade! Eu deveria parecer um louco desfilando pelas ruas da cidade de braço com você... Como é que pude ser tão cego? E todo este tempo...
- Gabe, por favor!
- Cale a boca! - Ele bateu nela e continuou batendo... Nadia tentou correr, mas isso pareceu irritá-lo ainda mais. Agarroua pelos cabelos e puxou-lhe a cabeça para trás. Ela levantou os braços, tentando desviar os golpes sobre seu rosto e cabeça, enquanto ele a socava impiedosamente. Quando ela conseguiu outra vez livrar-se dele, Gabe perseguiu-a por toda a casa, derrubando os móveis e jogando pratos e vasos no chão, finalmente encurralando-a num canto de onde ela não podia fugir. Nadia arriou no chão e enrolou-se fazendo de seu corpo uma bola; e ele a chutava e batia, até que ela se tornou insensível à dor. Continuou a soluçar e pedir-lhe que parasse, certa de que ele tencionava matá-la.
Ela nem teve consciência de quando ele parou até que ouviu a batida da porta da frente e compreendeu que estava sozinha. Durante muito tempo ficou acocorada naquele canto, chorando mansamente, machucada e dolorida da cabeça aos pés.
Quando chegou a noite, Nadia ficou petrificada ao pensar no que ele poderia fazer a ela quando voltasse para casa. Trancou-se e bloqueou a porta de seu quarto de dormir, depois sentou-se para esperar por ele, todos os músculos e ossos de seu corpo latejando de dor.
Mas Gabe não voltou naquela noite, nem no dia seguinte, nem no outro. Gradualmente, Nadia ficou menos assustada, temendo que ele pudesse voltar e ainda com mais receio de que ele não mais voltasse. No quinto dia, o escasso suprimento de comida na casa estava esgotado. Ela deixou que mais um dia se passasse, dizendo a si mesma que Gabe tinha de voltar. Suas roupas ainda estavam lá, e muitos de seus papéis e livros, passou mais um dia sem comer, certa de que alguém da família iria passar por lá a fim de descobrir por que ela não tinha ido à igreja ou visitado seus pais. Ninguém veio.
Finalmente, ela admitiu que não poderia mais esperar. A maior parte das equimoses em seu rosto haviam se descolorido e eram facilmente escondidas por uma camada de pó. Embora dois ou três ferimentos maiores fossem ainda visíveis, seu colorido violeta era disfarçado pela aplicação de "papéis espanhóis". Seu casaco, luvas e saia longa esconderiam o resto.
A caminhada até a cidade pareceu excepcionalmente longa e cansativa. Escolhendo com cuidado seu caminho por entre as tábuas apodrecidas da calçada, Nadia aproximou-se do escritório de Gabe com grande apreensão. Do lado de fora da porta hesitou e quase foi embora. Não podia deixar de lembrar-se que aquele era o mesmo lugar em que pela primeira vez o havia encontrado. Reunindo toda a sua coragem, abriu a porta e entrou.
À primeira vista o escritório estava deserto. Parecia que seu pior receio se realizara e que ele de fato partira. Hesitantemente ela chamou por ele: "Gabe!" Não teve resposta. Então ouviu um barulho seguido por um palavrão que veio do quarto de trás. Nadia encolheu-se com o ódio que sentia naquela voz, mas era muito tarde para fugir quando Gabe apareceu na moldura da porta.
Sua aparência desleixada chocou-a. Seu rosto estava ensombreado com a barba por fazer há muitos dias. Os espaços escuros sob seus olhos davam-lhe um aspecto abatido. Sua roupa estava muito amassada e suja e grande parte do cabelo cor de areia achava-se eriçado. Ele tinha o semblante pálido e esgotado de um homem que tivesse passado por um terrível sofrimento.
- O que você está fazendo aqui? - A raiva e o amargor não tinham desaparecido de sua voz; entretanto Nadia sentia nela também dor.
- Tenho estado preocupada com você - replicou ela, hesitante.
- Bem, não precisa ficar - respondeu ele, ríspido. - Não quero nenhuma índia preocupando-se comigo... Você destruiu tudo entre nós. Vá embora!
- Eu deveria ter dito a você; agora percebo. Não deveria ter escondido o fato, mas era mais fácil fingir que você já sabia, por isso fiquei calada. E foi errado. Foi apenas porque eu o amava muito e temia tanto perdê-lo. Não o culpo por ter ficado zangado; você tinha todo o direito a isso. Eu mereci tudo e até mais. Por favor dê-me uma oportunidade de compensar junto a você todo o mal que lhe causei - implorou ela.
Deixe-me mostrar-lhe como estou arrependida. Por favor, Gabe, quero que volte para casa!
- Para quem? Para você? - Seu lábio curvou-se num ricto de zombaria.
- É sua casa. - No íntimo, Nadia sabia que havia destruído todo o amor que ele tivera por ela. Ela nunca seria a razão para ele voltar. Sua única esperança era apelar para seu senso de propriedade. Se ele voltasse, talvez depois de algum tempo, mostrando-lhe uma completa devoção, ela pudesse ser capaz de ganhar seu respeito e parte da afeição que uma vez ela recebera dele.
- Saia! Saia de minha vista! - Ele deu um passo ameaçador em sua direção.
Instintivamente, Nadia recuou até sentir a porta em suas costas.
- Farei tudo o que você quiser - murmurou ela, abaixando a cabeça e piscando os olhos rapidamente com as quentes lágrimas que os enchiam.
Saiu do escritório e andou pela rua, mantendo sua cabeça abaixada de forma que as pessoas não pudessem ver seu rosto por debaixo da aba do chapéu. Sentia-se fraca e respirou profundamente para superar a sensação de fraqueza. Agora que Gabe não mais a queria, só havia um lugar para onde ela podia ir. Nadia dirigiu-se para a casa de seus pais.
Quando sentiu que a porta da frente estava fechada, ela teve de conter as lágrimas. Bateu com força e esperou; depois tentou de novo. Na terceira vez, finalmente ouviu passos se aproximando da porta. Sua irmã mais nova abriu-a.
- Você deveria estar na escola. - Nadia teria preferido que Eva não estivesse presente quando ela falasse com seu pai.
- Papai quis que eu ficasse em casa e tomasse conta de mamãe. Eva torceu um pouco o rosto para o lado e encarou-a atentamente: O que aconteceu com seu rosto?
Nadia hesitou um momento, mas não podia levar-se a admitir para Eva que o marido lhe havia batido.
- Eu caí - disse, passando por ela e entrando na casa. - Onde está papai?
- Na sala de estar.
Tornou a fraquejar. Não seria fácil admitir para o pai que seu casamento fracassara - e que a culpa era dela. Tocou com a mão um dos machucados mais doloridos no rosto fortemente empoado, sabendo como ele ficaria zangado ao ver como Gabe a espancara, e sabendo que deveria convencê-lo de que o castigo fora merecido.
Eva seguiu-a até a sala de estar. Lev estava arriado numa poltrona ao lado da lareira, observando com olhar vago uma tora que queimava. A maior parte da inchação se fora de seu rosto e as marcas dos golpes tinham mudado de cor. Nadia parou, esperando que ele reparasse em sua presença, mas ele parecia ignorar completamente a existência dela.
- Quando não está com mamãe, ele sempre se senta aí desse modo - disse-lhe Eva.
- Por que você não vai ver como está a mãe? Quero falar com ele em particular. - Não havia necessidade de baixar a voz; o pai parecia totalmente ignorante da sua presença.
- Ela não gosta que eu entre no quarto; não deseja que olhe para ela. Por que ela está assim, Nadia?
Não me pergunte, Eva, por favor - pediu ela, sentindo-se próxima a um ponto de colapso. A única coisa que a mantinha firme era sua nervosa concentração.
Todo mundo diz isso... - murmurou a irmã pequena, arrastando os pés quando saía da sala.
Devagar, Nadia cruzou o cómodo até perto da cadeira do pai. Ficou ali ao lado por alguns segundos, mas o olhar vago do
velho nunca se afastava do fogo, agora quase morto, até que ela disse: "Alo, papai!"
Ele teve uma vaga agitação, como se estivesse chegando de uma longa distância. Olhou para ela, mas sua expressão não denotava reconhecimento. Ela caiu de joelhos ao lado da cadeira e agarrou seu braço, sentindo-se por um minuto como se tivesse voltado a ser criança.
- Nadia! - Ele acariciou suavemente seu rosto, correndo os dedos sobre um machucado violáceo. - Minha pequena!
- Eu tinha que vir, papai!
Subitamente, ele arriou o corpo e afundou a cabeça nas mãos, todo o seu corpo agitado por soluços.
- O que fiz eu? - murmurou seguidas vezes. A princípio Nadia pensou que ele estava se referindo à tragédia dela. - Tudo foi minha culpa!
- Não, não foi, papai! - Ela não podia deixar que ele se culpasse pelo fracasso do casamento ou pela surra que ela havia levado. Ele não imaginaria que Gabe fosse capaz de tal coisa.
- Sim, foi minha culpa. - Ele levantou a cabeça, as lágrimas escorregando-lhe pelo rosto, e juntou com força as mãos. - Nós não deveríamos ter ficado aqui. Deveríamos ter partido com os outros. Nada disso teria acontecido. Sua mãe não teria... - Ele desmanchou-se em lágrimas, soluçando alto.
Atordoada, Nadia compreendeu que ele não tinha visto como ela estava machucada. Ele estava por demais assoberbado com seu próprio pesar e sua culpa.
- Não chore, papai - pediu ela.
Ele fez um grande esforço para controlar-se, aspirando profundamente e limpando as lágrimas do rosto. Inclinando-se para a frente, descansou os cotovelos nos joelhos e baixou a cabeça, juntando as mãos numa atitude de quem está rezando.
- Sei que você deseja confortar-me, mas minha consciência não me concede paz. - Ele fechou os olhos apertando-os fortemente. - A primeira responsabilidade de um homem é para com a família, sua esposa e seus filhos. Mas coloquei o dever para com meu pai à frente disso. Arrisquei a sorte de todos vocês, deixando-os neste lugar, e olhe o que aconteceu... Sua mãe nunca o declarou, mas sei que ela desejava partir daqui Agora... - e ele tornou a engasgar-se.
Vendo como ele estava tão torturado de culpa, Nadia não poderia acrescentar nada mais. Sua dor seria ainda maior se lhe dissesse o que lhe acontecera com Gabe.
Papai, o senhor não deve inculpar-se assim. Estou certa de que mamãe não o culpa pelo que aconteceu.
- Você a viu hoje?
- Ainda não - admitiu ela.
Ele sacudia a cabeça de uma forma que denotava um desespero total.
- Não sei o que fazer. Eu tentei. Pedi ao padre Herman que viesse vê-la, mas ela não quis rezar com ele. Ela nem quis beijar a cruz. Eu nem posso trabalhar. Ela fica apavorada quando saio de casa. Eu...
- Papai - Eva surgiu na moldura da porta. - Eu levei a sopa para a mamãe, mas ela não quer comer.
- Ela precisa comer. - Quando seu pai começou a levantar-se da cadeira, Nadia impediu que ele se movesse, segurando seu braço.
- vou falar com ela. - Levantou-se, lutando contra sua própria fraqueza, resultante da falta de comida.
Ele demonstrou uma mistura de gratidão e apreensão quando ela recuou de sua cadeira, voltou-se e saiu do quarto. Nadia sentiu o cheiro da canja de frango antes de alcançar o quarto de seus pais e seu estômago contraiu-se num espasmo de fome.
Quando entrou no quarto, ela olhou primeiro para o prato de suculenta canja colocada na mesa ao lado do leito. Teve consciência da saliva que se acumulava em sua boca e, inconscientemente, umedeceu os lábios enquanto os mantinha fechados. Fazendo um esforço, afastou os olhos da sopa de sua mãe.
Um choque percorreu-lhe a espinha quando viu a drástica mudança em sua mãe. Os olhos dela pareciam estar no fundo de um poço escuro pela falta de sono. Seu cabelo grisalho e amarelado, que ela sempre usava caprichosamente torcido num coque em cima da cabeça, agora estava despenteado e em total desalinho. Suas mãos, outrora fortes e cheias de destreza, agora tremiam de forma acentuada quando nervosamente agarrou as cobertas da cama como se desejasse puxá-las mais para cima de seu rosto.
- Mamãe? - Para Nadia ela parecia uma mulher louca.
O pavor estampava-se em seus olhos; neles se destacava a parte branca, formando anéis em torno das pupilas quando Aila Tarakanova olhou para ela.
- Onde está Lev? - murmurou ela e logo entrou em pânico. Onde está Lev Vasilivich? - Lev!
- Papai está descansando - Nadia tentou explicar, mas não pôde fazer-se ouvir acima dos gritos nervosos da mãe. A despeito das tentativas de Nadia para contê-la, ela pulou da cama, agarrando-se nos móveis e gritando. Nadia estava por demais machucada e fraca para impedi-la quando ela correu para a porta.
Naquele momento, a porta abriu-se e a mãe precipitou-se diretamente nos braços do pai. Ele a segurou, acalmando-a suavemente enquanto Nadia ficava imóvel a seu lado, sem nada poder fazer. Ele levou-a de volta para o leito e ajeitou-a sob as cobertas, como se faz com uma criança.
- Desculpe-me, papai - murmurou Nadia, sem jeito. - Não pude contê-la.
- Está tudo bem. - Mas ele parecia desfigurado e abatido quando se sentou à beira do leito e pegou a tigela de sopa. Começou a alimentar a esposa com uma colher, agitando o delicioso aroma da sopa.
por favor, pai, deixe-me fazer isso - ofereceu-se Nadia prontamente. - O senhor deve repousar.
Ele hesitou, depois descansou o prato, e bateu afetuosamente na mão da mãe. - Nadia vai ficar com você, Aila, mas estarei no quarto ao lado. Não a deixarei, prometo.
Embora ficasse agitada pela partida dele, a mãe pareceu aceitar que Lev se encontrava por perto. Nadia removeu seu casacão e colocou-o ao pé do leito; depois assumiu o lugar do pai no lado da cama. Sua mão tremia ligeiramente quando ela pegou a tigela de sopa e inalou o cheiro que lhe dava água na boca. Serviu a primeira colherada à mãe, mas quando quis servir-lhe outra, ela virou a cabeça, recusando.
- Está quente demais? - Nadia tencionava tomar apenas um golinho da sopa na colher para testar sua temperatura, mas ela estava tão gostosa que ela tomou a colher toda. - Não está quente demais, mamãe. Está no ponto certo. Aqui: tome outra colher. - Mas a mãe mantinha a cabeça virada. - Por favor, mamãe! Vamos tomar a sopa juntas. Você toma uma colher, eu tomo outra. - Nadia tentava convencê-la.
Quando a mãe recusou mais uma vez a colher, Nadia levou o caldo à boca. Nada jamais tivera um gosto tão bom para ela antes; não teve que fingir ao estalar os lábios nem os ruídos de apreciação que fez.
- Está tão bom, mamãe. Prove um pouquinho. - Ela tentou forçar uma colher na boca da mãe, mas ela comprimiu os lábios. Uma parte do precioso caldo escorreu-lhe pelo queixo. Nadia engoliu também aquela colher de caldo.
Antes que ela se desse conta, havia consumido todo o caldo menos umas duas colheres. Afastou o vago sentimento de culpa que sentiu, dizendo a si miesma que sua mãe não teria tomado a sopa. Há três dias aquela era a primeira comida que ela punha em seu estômago.
- Deixe-me escovar seus cabelos, mãe - ofereceu-se Nadia. Fazer o cabelo da mãe era uma tarefa obviamente além da capacidade de seu pai ou da irmã, do contrário nunca teriam deixado que ficasse naquele estado. - Uma pessoa sempre se sente melhor quando está mais arrumada. - Mas no momento em que Nadia tentou tocar no cabelo da mãe, esta encolheu-se e procurou refúgio na cama. - Eu não vou machucar você, mamãe. Apenas quero arrumar seu cabelo.
- Não. - A mãe deu um suspiro e recomeçou a gritar; depois apertou as mãos contra a cabeça, como se para proteger-se.
Nadia tentou acalmá-la, mas nada do que dizia fez diferença. Quando o pai entrou de novo correndo no quarto, ela virou-se para ele cheia de confusão e desculpou-se:
- Eu apenas quis escovar-lhe o cabelo...
Ele levou alguns minutos para acalmar a mulher antes que pudesse explicar a Nadia:
Ela não deixa que ninguém toque em seus cabelos. Eu acho... que eles ficaram fascinados pela sua cor clara. Há três dias eu a surpreendi querendo cortar todo o cabelo com uma tesoura. Tivemos que tirar todas as coisas afiadas de perto dela.
Nadia ficou olhando espantada para a mãe deitada na cama e agarrando a Bíblia sagrada que seu pai finalmente lhe dera para aquietar seus soluços e seu choro.
- Ela não deverá mais ser perturbada. Creio que será melhor se você sair agora - disse ele. - Poderá visitá-la num outro dia; talvez então ela esteja melhor.
Ele sentou-se na beira da cama e ficou acariciando o braço de Aila, falando com ela num tom baixo e calmante. Nadia tinha vontade de gritar-lhe para que olhasse para ela - a fim de ver as equimoses debaixo do pó-de-arroz, ouvi-la confessar que seu marido não mais a queria mas ele a ignorava. Movimentando-se com dificuldade, ela apanhou seu casacão, suas luvas e seu chapéu do pé do leito e saiu do quarto.
Não havia nenhum lugar para onde ir a não ser de volta para a própria casa. Notou a fria umidade da casa quando entrou e descobriu que o fogo na lareira havia-se apagado. Quando conseguiu que a lenha tornasse a arder, Nadia sentou-se na cadeira de balanço ao lado do fogo onde ela havia tantas vezes se sentado e observado Gabe enquanto ela trabalhava na mesa.
A solidão apoderou-se dela. Apertou os braços com força em torno da cintura, subitamente muito assustada por ter de ficar sozinha para o resto da vida. Ela não se importava de quanto Gabe pudesse maltratá-la, desde que ele voltasse. Afinal de contas, ela causara tudo isso por não contar-lhe a verdade. Embora ela não tivesse se proposto deliberadamente a enganá-lo, ela o fizera. Como poderia culpá-lo por haver reagido da forma como reagira?
A porta abriu-se e Gabe entrou. Um alívio apossou-se dela. Agarrou os braços da cadeira, com medo de mover-se, receando falar caso ele não tivesse vindo para ficar.
- O que está fazendo aqui? - perguntou ele, com os olhos arregalados para ela.
- Para onde poderia ir? - Ela não podia admitir que a casa de seu pai estivesse fechada para ela. - Sou sua esposa; aqui é meu lugar.
Por um longo momento ele não disse nada. Ela prendeu a respiração, temendo que ele pudesse voltar-se e sair. Em vez disso, ele fechou a porta com um pontapé. Ela teve um sobressalto com o alto estrondo da porta.
- Arrume alguma coisa para eu comer.
- Não temos comida; se tivéssemos, eu de bom grado lhe faria uma refeição.
Ele hesitou; depois vasculhou no bolso e atirou-lhe algumas moedas.
- Vá comprar algo e depressa... antes que eu venda você para algum soldado...
O bar Double Eagle estava repleto de soldados de túnicas azuis da guarnição da cidade, com suas vozes roucas afogando a musiquinha de um piano. A fumaça cobria o salão em camadas, criando uma névoa cinzaazulada; escarradeiras espalhavam-se pelo chão, de vez em quando acertadas por um jato de tabaco amarelado cuspido em sua direção.
Dan Kelly estava de costas para o bar, um dos cotovelos apoiado no balcão para sustentar parte de seu peso, enquanto olhava taciturno para as janelas da frente do salão. O gelo fechava quase todas as vidraças exceto seu centro, e o calor da sala formava um vapor sobre os vidros, bloqueando a vista dos flocos de neve que esvoaçavam do lado de fora. O inverno chegara, escondendo as montanhas com um cobertor de neve e nelas aquela ilusória descoberta de um depósito de ouro por mais uma estação.
- Kelly! - A mão bateu-lhe no ombro e deslizou para as costas, num gesto de cumprimento.
A pancada deslocou o braço dele de sua posição e quase derramou a cerveja pela borda da caneca. Kelly rapidamente reequilibrou-a. A cerveja andava quase sempre escassa, já que toda ela era embarcada para Sitka dos Estados Unidos.
- Que diabo está fazendo aí de pé e sozinho? Você tem um aspecto digno de piedade! Por que não vem comemorar conosco? - Nate Wheeler aproximou-se cambaleante, procurando pôr em foco seus olhos vidrados pelo álcool. - Eu lhe pago uma cerveja. Eu, Gus e Corky andamos no serviço da merda há mais de dois meses, tudo porque nos divertimos com uma mestiça de cabelos amarelos. E vamos tomar um porre esta noite, não vamos, rapazes?
Kelly olhou para os dois paspalhões atrás de Wheeler quando eles concordaram em coro. Ele tornou a encostar-se no bar e disse:
- Uma outra vez...
Mas Wheeler não aceitou a recusa e chamou o homem do bar:
- Ei, mais uma cerveja aqui para o meu amigo. - E bateu com o dinheiro no bar para pagar a bebida, ao mesmo tempo empurrando outro soldado para o lado a fim de ficar perto de Kelly. - Há séculos que não via você. Seria capaz de perguntar por onde tem andado, mas acho Que já sei... - Ele deu um risinho e olhou para seus dois camaradas. Vocês já viram um homem com uma aparência tão triste numa noite de sábado? Aposto que ele ainda não achou aquele veio de ouro pelo qual vem procurando.
- Ainda não - admitiu Kelly. - Mas ele está lá...
Após mais de dois anos batendo pernas sobre o terreno selvagem, Debaixo de um sol escaldante ou de chuvas de encharcar, bateando as correntezas das montanhas ou arrancando com o martelo de mineiro as amostras de minério de encostas escarpadas, ele havia achado vestígios de ouro suficientes para convencê-lo de que por ali, em alguma parte, existia um grande veio.
- O que anda ele procurando? Ouro? - O soldado chamado Corky esparramou-se no ombro de Wheeler. - Porra, eu sei onde há uma porção de ouro. E prata também. Aos montes...
- Onde? - desafiou-o Kelly com ar de desprezo. O homem começou a rir e aproximou-se para comunicar-lhe seu segredo.
- Está por aqui mesmo. Tem estado por baixo de seu nariz todo esse tempo. - Ele continuou com seu alegre risinho. - Aposto que estamos a menos de cem metros dele.
- Sim, provavelmente está no cofre de alguém - zombou Kelly; depois tomou um gole de sua cerveja e limpou a espuma do lábio superior.
- Não, não está. Está bem do lado de fora.
- E então por que você ainda não o pegou? - disse Wheeler, zombando.
- Porque é mais do que um homem pode carregar.
- Conversa fiada - retorquiu Kelly.
- Olhe aqui, eu posso prová-lo!
Irrequieta, Aila Tarakanova virava a cabeça de um lado para o outro no travesseiro, gemendo mansamente sob o peso quente e asfixiante que a comprimia contra o colchão de penas. Numa nervosa tentativa para livrar-se, tirou um braço de baixo das cobertas. Depois, sentiu a súbita corrente de ar em sua pele e acordou suando frio, sua cabeça cheia com o pesadelo do estupro e os ecos de seus gritos. Enfiou um dos punhos na boca para silenciar os gritos antes que de novo se apossassem dela, sem saber que não havia emitido nenhum som mais alto do que um gemido.
Ficou imóvel, lançando olhares assustados pelo quarto escuro, escutando o menor dos sons, consciente de que sua camisola de dormir estava enrolada em cima de sua cintura, mas sem puxá-la para baixo, receando que eles pulassem sobre ela das sombras. Tudo o que podia ouvir era o barulho de sua própria respiração. Ficou em dúvida se já se tinham ido. Lágrimas começaram a rolar por seu rosto enquanto agarrava a Bíblia contra o peito.
Sua mente distorcida pelo terror não era mais capaz de separar o pesadelo da realidade. O medo voltava para prendê-la em suas garras geladas. Choramingando e chamando pelo marido, ela escorregou por fim.
Foi encontrá-lo deitado imóvel no sofá, da mesma forma como o haviam deixado aquela noite. Subitamente, ouviu um ruído do lado de fora e voltou-se rápido para encarar a porta da frente, entrando em pânico com o pensamento de que estavam voltando.
Aterrorizada, voltou-se e correu, fugindo de casa pela porta dos fundos, correndo para a noite manchada de neve, sem sequer notá-la sob seus pés nus. Certa de que estava sendo perseguida, procurou um lugar para esconder-se. Casas não eram seguras; eles haviam arrombado a deles. Para onde ir?, pensou, soluçando aos arrancos, agarrando a Bíblia, apertando-a contra o peito.
Então viu as torres da catedral silhuetadas contra o farol situado em cima do castelo Baranov. Estaria segura na casa de Deus. Correu em direção à catedral, escorregando e deslizando na rua coberta de lama gelada.
Seus pulmões pareciam que iam estourar e o coração batia tão alto que ela não podia ouvir nada mais quando atingiu os degraus da catedral. Tropeçando e engatinhando, chegou ao topo sem soltar a Bíblia. Suas forças mal foram suficientes para abrir com dificuldade um dos lados da pesada porta dupla; ela o conseguiu e entrou cambaleando no santuário da igreja.
A chama de uma vela bruxuleava perto do altar. Dirigiu-se para ela, lágrimas de alivio perturbando sua visão, os pés nus não fazendo qualquer ruído. Então, notou uma figura embuçada ao lado do altar e parou abruptamente, pensando tratar-se de um padre. Uma irresistível sensação de vergonha apossou-se dela com o temor abjeto de encarar um homem da igreja. Até então ele não a havia notado. Ela lançou um rápido olhar para a pequena capela adjacente e depois começou a andar devagarinho na direção dela.
Subitamente, de seu lado direito veio um murmúrio rouco em inglês.
- Muito bem, qual foi o idiota de vocês que deixou de verificar se a porta estava bem fechada? Corky, você foi o último a entrar. Vá fechá-la antes que alguém do lado de fora perceba.
- Quem é que vai perceber? - A resposta sussurrada veio da figura embuçada ao lado do altar. - Nunca ouvi falar de alguém vir à igreja no meio da noite para rezar. Ei, Kelly, venha cá e dê uma olhada nesses cálices ou seja lá como os chamem. Aposto que são de prata maciça! Eu não lhe disse que esses troços estavam sobrando por aqui?
Uma outra figura moveu-se na escuridão sombria da igreja. Aila notou um quarto vulto. Havia quatro homens, quatro americanos. Nenhum deles usava batina de padre; trajavam casacões azuis do Exército. Eram soldados, compreendeu e deu um gritinho de susto.
- O que foi isso? - que temporariamente a haviam paralisado. Não, pensou ela, eles não iriam fazer aquilo com ela de novo, não dentro da igreja! Virou-se e correu para a porta da frente, que sem querer havia deixado entreaberta.
- Parem-na! - exclamou um deles.
Aila gritou quando ouviu o pesado ruído de passadas em sua perseguição.
- Esqueçam-se dela! Vamos pegar as coisas e dar o fora daqui! gritou um outro.
Mas o barulho de passos a persegui-la não cessou.
- Ei, dona! Espere! - ouviu uma voz rouca e falando num tom mais baixo. - A senhora não pode sair lá para fora!
Dan Kelly vira o puro olhar de terror no rosto de Aila quando se atirou pela porta aberta. Ele já tinha visto um tal medo irracional antes no rosto de uma mulher de um colonizador, quando alguns índios haviam assassinado e mutilado seu marido e depois se divertido com ela. Correu atrás da mulher.
No topo da escadaria da igreja, parou e olhou pela rua abaixo, esperando vê-la correr pelo meio da rua principal, gritando um alarme para os soldados nos bares, quartéis e guaritas de sentinelas mais adiante. A rua estava vazia exceto por um punhado de soldados bêbados e duas prostitutas tlingit do Ranche. Ninguém prestava qualquer atenção à igreja. Aquele único grito da velha não chamara atenção. Nesta cidade, à noite, mulheres sempre gritavam, às vezes tendo razão para gritar, outras não.
No canto de sua visão percebeu um movimento. Voltando-se, Kelly viu uma figura como um fantasma deslizando colada aos edifícios ao longo da rua que ficava à sua esquerda. Correu pelos degraus abaixo, procurando segui-la, enquanto murmurava consigo mesmo: "Para onde diabos está ela indo? Não há nada para esse lado a não ser o mar."
Quando os edifícios começaram a rarear, por um breve espaço de tempo ele a perdeu de vista, sua longa vestimenta branca e a palidez do cabelo revolto desaparecendo no fundo do chão coberto de neve. Mas ela deixara pegadas na neve recém-caída. Kelly seguiu-as, dando longas passadas, bufando ligeiramente com o cortante frio que lhe queimava os pulmões.
Quando examinava a área à sua frente, a mulher pareceu materializar-se diante de seus olhos. Levou um segundo para compreender que as águas escuras do estreito faziam destacar sua pálida figura. A presença daquela massa d'água fez com que ela parasse em sua desabalada fuga. Fez uma pausa, parecendo hesitar enquanto olhava angustiada, primeiro para a esquerda depois para a direita. Considerando todas as chances que ela havia desprezado para procurar a segurança de outras pessoas, Kelly duvidava que ela dobrasse à direita. A parte principal da cidade ficava naquela direção. Andando mais devagar, desviou-se para a esquerda, cortando-lhe aquela via de escape. Ela pareceu entrar em pânico ao ver quão perto dela ele estava.
- Não corra, dona! - dirigiu-se a ela com doçura, tentando acalmar seu pavor. As bordas de sua camisola ostentavam uma crosta de neve.
Quando ela recuou à medida que ele se aproximava, Kelly ficou a pensar como podia ela continuar andando naquela neve que subia acima dos tornozelos sem sapatos. No entanto ela parecia imune ao frio; nem sequer tremia, embora seus braços estivessem cruzados diante dela como se protegendo algo.
- Não tenha medo, dona. Não vou lhe fazer mal. Não fique assustada.
Ele falava-lhe em voz baixa, na esperança de que, se ela não entendesse inglês, pelo menos o tom de sua voz lhe causasse impressão; mas ela continuava a recuar com cada passo que ele dava em sua direção, retirando-se cada vez mais para perto da borda d'água, sempre movendo vagarosamente a cabeça de um lado para o outro, como se numa silenciosa negativa.
Quando a mulher alcançou a praia na qual se formara gelo, ela parou. Kelly relaxou e sorriu um pouco, confiante em que ela iria escutá-lo, agora que não poderia mais recuar. Estendeu a mão na direção dela, continuando a falar num tom baixo e tranquilizador, repetindo sempre as mesmas frases.
- Está tudo bem, dona! Não fique assustada. Não vou machucá-la! Sem qualquer aviso, ela voltou-se e correu para dentro d'água. Kelly
gritou e começou a persegui-la; depois parou, pensando que ela faria algo se ele não a perseguisse. Mas ela entrou na água cada vez mais funda, sua fuga impedida apenas pela crescente profundidade e o peso de sua roupa molhada. De repente, escorregou e afundou. Kelly deu um pulo para pegá-la, mas ela voltou à superfície debatendo-se para fugir dele.
A água que corria por cima do cano de suas botas parecia gelo líquido. Um homem não duraria três minutos em água tão fria, pensou Kelly e parou. A velha louca estava a uns dez metros dele, uma mancha pálida na água escura. No estado de pânico em que se encontrava, ela lutaria com ele mesmo que conseguisse alcançá-la. Havia uma boa probabilidade de ambos morrerem.
Sentindo uma dor na boca do estômago, Kelly vagarosamente recuou para a praia. Podia ouvir os sons em pânico da respiração dela, mas entretanto a mulher não gritava por socorro. Mal podia vê-la. Seus pés estavam dormentes, meras coisas presas às suas pernas. Ele pensou se ela estaria também perdendo a sensação dos membros.
A mancha branca que estava observando no negro mar subitamente desapareceu. Não se ouvia mais nenhum som a não ser o tranquilo lamber das pequenas ondas na praia e os distantes ruídos noturnos da cidade. Kelly virou-se e caminhou vagarosamente em direção ao quartel. Evitou Passar pela igreja onde os outros tinham ficado, a fim de saqueá-la. Ele não sabia onde eles estavam agora - e nem queria saber.
O corpo de Aila Tarakanova deu à praia no dia seguinte. Foi encontrado Por seu desesperado marido, que havia começado a procurá-la antes de romper a madrugada, quando descobriu que ela não estava em casa. O Povo da cidade prestou pouca atenção à sua morte. Estavam todos excitados por causa do roubo da catedral de São Miguel. O roubo fora descoberto cedo e os culpados tinham deixado uma clara pista na neve fresca, o que levou à sua prisão e à recuperação das coisas roubadas.
Como ainda não havia lei civil para processar os culpados, o único recurso foi apelar para o general Davis. O general-comandante concluiu que desta feita os soldados tinham ido um pouco longe demais. Como punição por seu crime, ele determinou que os soldados Nathan Wheeler, Wiliam "Corky" Travers e August "Gus" Miles fossem expulsos do serviço e mandados de volta para os Estados Unidos no primeiro transporte de tropas do Exército disponível.
Kelly foi um dos guardas destacados para escoltar os três homens, agora vestidos com roupas paisanas que lhes caíam mal, ao irem para bordo do navio que os levaria para casa. Nenhum dos três o implicara no roubo no qual ele não havia tomado parte ativa, exceto por ter entrado na catedral com eles.
As fisionomias deles eram um só sorriso. Tinham sido chutados do Exército, sem dúvida, mas também haviam sido chutados daquele lugar chamado Alasca, onde o diabo perdera as botas. Os sortudos filhos da puta estavam indo para casa. A maior parte dos outros soldados olhavam-nos com inveja, menos Kelly.
Ele sentia-se confuso e culpado. Uma mulher morrera naquela noite, a mesma mulher, segundo se verificara, que seus camaradas tinham recentemente molestado e por isso passado um tempo no xadrez. Isso explicava o motivo pelo qual ela ficara tão aterrorizada naquela noite. Num certo sentido, eles a haviam matado. No entanto, ele também desempenhara um papel na morte dela. Embora soubesse que ela fora uma mulher velha, mais uma dessas mestiças russas, mesmo isso não aplacou lá muito sua consciência culpada.
Relanceou o olhar pela cadeia de montanhas cobertas de neve que se elevava dramaticamente das praias da ilha. A visão delas despertoulhe sonhos de ouro. Kelly não desejava sair desse país até que o houvesse encontrado: talvez na próxima primavera ele fosse dar uma olhadela em volta da área de Silver Bay.
O inverno mal começara e ele já antevia a chegada da primavera e os novos afloramentos de rocha que o degelo criaria. O ouro era sempre um assunto que afastava sua mente das dificuldades.
Numa tarde de janeiro tipicamente amena, o sol já estava baixo para o oeste, seus suaves raios pintando de rosa o pico do monte Edgecumbe e dando uma aparência de madrepérola às rasgadas camadas de névoa que cobriam as águas do estreito de Sitka. Eva agarrava com ambas as mãos a bolsa que continha seus livros escolares e a Bíblia de sua mãe. Ela sempre a carregava, embora a água do mar tivesse borrado a tinta e grudado as páginas. Fora a coisa de propriedade de sua mãe que ela mais apreciava, especialmente durante estes últimos anos. Agora era de Eva.
Um grupo de soldados desocupados estava reunido numa esquina à sua frente. Ela começou a andar devagar, na esperança que eles se movimentassem antes que ela chegasse lá, mas isso não aconteceu. Era um grupo mal vestido e relaxado, sujo e fedorento. Eva mantinha o olhar firmemente preso ao chão à sua frente ao aproximar-se deles. Tremia por dentro de raiva nascida do medo e do ódio.
- Está usando saias. Aposto que é uma pequena.
- Mas é tão feia como uma franga-d"água, não é?
As lágrimas pressionavam o fundo de seus olhos. Tinha vontade de gritar-lhes e devolver suas observações insultuosas; mas tão violentamente quanto os odiava, também os temia. Desandou a correr e o som horrível de suas risadas zombeteiras deu ainda mais impulso à fuga. Ela não diminuiu a corrida até que chegou perto de casa; não podia, porém, encarar o pensamento de entrar. Odiava-a. Desde que sua mãe se afogara, parecia-lhe que a morte vivia na casa. Seu pai apenas sentava-se por ali, aguardando a morte.
Embora não tivesse nem dez anos, tentara assumir o papel de mulher da casa - cozinhando, limpando e cuidando do pai. Mas as refeições, que ela tão diligentemente se esforçava para preparar, em geral seu pai nem tocava. Mesmo nas ocasiões em que ele mudava uma camisa limpa, que eram raras, nunca notava com quanto cuidado ela a tinha passado a ferro. Nada mais para ele tinha importância, nem ela.
Eva não desejava ir para casa. Sabia que não deveria sentir-se assim, mas sentia-se. Embora o avô sempre a escutasse com simpatia, Eva não estava disposta a ouvir mais suas afirmações que seu pai em tempo superaria seu pesar. Ninguém parecia compreender que ela sentia falta de sua mãe também - ninguém, a não ser sua irmã. Ela se lembrava como Nadia a havia abraçado e chorado na última vez em que fora até a casa dela. Tinha sido há duas semanas, antes de Nadia ter quebrado o braço ao escorregar num pedaço de gelo. Eva decidiu-se a visitar a irmã e certificar-se de que ela estava bem.
Encontrando a porta da frente da casa da irmã destrancada, Eva entrou sem bater. Quase imediatamente ouviu a aproximação de passos vindos da cozinha. Um instante depois, Nadia apareceu com seu braço direito numa tipóia, trazendo no rosto uma expressão tensa e ansiosa.
- Eva! - Ela soava aliviada quando nervosamente limpou sua mão direita na frente do avental. - Pensei que Gabe talvez tivesse vindo para casa cedo. O que traz você aqui? Acaba de sair da escola? - Olhou apreensivamente para a porta e depois para Eva. - Porque nós não vamos até a cozinha? Eu estava justamente começando a preparar um pouco de kulich. Pensei em fazer uma surpresa para Gabe.
Começou a andar para a cozinha sem esperar para ver se Eva a seguia. Depois daquela barragem inicial de perguntas, Eva não sabia qual responder primeiro. Enquanto andava devagar até a cozinha nem tinha certeza de que Nadia desejasse ouvir suas respostas.
- Não senti vontade de ir para casa, por isso pensei em passar por aqui para ver você. - Ela descansou sua pasta de livros na mesa onde Nadia colocara todos os ingredientes para fazer o pão de festas russo, o kulich.
- Como vai papai? - perguntou Nadia, ajuntando um pouco de farinha à mistura de manteiga, ovos e açúcar, perfumada com noz-moscada e baunilha na grande vasilha de louça; depois pegou uma colher e começou a mexê-la, tentando com dificuldade manter a tigela firme com sua mão esquerda.
- O mesmo de sempre - respondeu Eva, deixando-se cair numa cadeira. - Fica apenas sentado naquela cadeira dele e quase nunca fala.
- A morte de mamãe afetou-o muito. - Depois de tornar a mistura mais espessa com a farinha de trigo, ela ajuntou uma xícara cheia de passas e uma de nozes. - Eu sabia que ele iria sentir muito.
Eva ficou olhando para a colher de madeira na mão da irmã, observando o movimento circular com que Nadia tentava juntar os ingredientes.
- Eu o odeio!
A exclamação teve o desejado efeito, pois sua irmã finalmente tomou conhecimento dela e deixou o cabo da colher repousar no lado da tigela.
- Eva! Como pode você dizer isso?
- Foi por culpa dele que mamãe morreu. Ele próprio diz isso. Ele não deveria ter deixado aqueles soldados machucarem-na. Ele deveria ter ficado no quarto com ela, não a deixado sozinha. Mamãe não teria ficado apavorada e corrido para fora da casa se ele estivesse com ela.
- Isto não é justo, Eva. Ele fez por ela tudo o que pôde. Ele não podia ficar sentado ao lado dela o tempo todo; também necessitava de descanso.
- Ele poderia ter me pedido para ficar com ela se quisesse dormir.
- Você sabe que ela só queria papai ao lado. - Nadia pegou a colher e recomeçou a mexer a mistura. - O que aconteceu com a mamãe não foi culpa dele, e não quero ouvir você dizer tal coisa nunca mais.
- Depois que os americanos chegaram, a gente devia ter partido com tio Stanislav, como disse o papai. - Ela enfiou o dedo na gostosa massa do pão quando Nadia fez uma pausa para ajuntar mais trigo à mistura e depois lambeu vagarosamente o dedo.
- Talvez devêssemos ter partido...
A inesperada concordância de Nadia pegou Eva de surpresa. Antes sua irmã sempre tinha negado tal sugestão, com a explicação de que ela nunca se teria casado com Gabe se tivessem partido.
- Mas nós não fomos com tio Stanislav e tia Anastasia, de modo que não adianta falarmos sobre isto. - O tom com que sua irmã se expressava parecia pouco natural e fraco. - Você deveria ter idade suficiente para entender que o passado não pode ser mudado. Se pudesse, haveria uma porção de coisas que faríamos de forma diferente.
- O que você mudaria? - Eva sempre pensara que sua bela irmã mais velha tinha tudo. Todo mundo sempre gostara mais dela, com a possível exceção do avô. De outra forma ela sempre fora a filha favorita, a sobrinha favorita, a prima favorita - a favorita em tudo... Tinha ido aos bailes e aos concertos realizados na mansão do governador quando a princesa Maria ali recebia. Havia-se casado com um elegante e importante americano. Ninguém jamais rira de Nadia, ninguém fizera pouco de sua aparência ou a chamara de nomes feios. Ela nunca sofrera a agonia de ninguém gostar dela como acontecia com Eva. Nadia hesitou antes de dar uma resposta.
- Eu mudaria o que aconteceu na noite em que os soldados arrombaram a casa. Teria feito que papai os obrigasse a sair.
Eva pensou nisso um pouco e depois, acenando com a cabeça vagarosamente, disse:
Foi então que tudo começou a dar errado. Nada continuou sendo a mesma coisa depois daquela noite, não é?
- Não. Nada.
- Eu os odeio! - declarou Eva com toda veemência.
- Quem?
- Os soldados. - Ela os odiava pelo que haviam feito a seus pais e pelo modo como fizeram-na sentir com suas ofensivas piadas. Ela odiava todos os soldados. - Alguém deveria fazê-los pagar pelo seu crime. E Gabe? Ele não pode fazer com que eles sejam punidos?
- Não há... não há nada que ele possa fazer. - Nadia juntou o resto da farinha e tentou fazer com que ela se incorporasse à massa.
- Ele poderia ter tentado, não? Poderia ter falado com o general e...
- Não! - A sugestão obviamente perturbou-a, embora ela tentasse escondê-lo. - Eu já lhe disse que não há nada que ele possa fazer. Por favor, não vamos falar mais nisso. E você não vá sugerir isso a ele!
- Como poderia eu? - murmurou Eva. - Eu quase não o vejo mais. Como se explica que ele estava tão ocupado que não pôde vir ao funeral de mamãe?
- Porque ele tinha coisas importantes a fazer. - Mas ela não disse que coisas eram essas.
Por alguma razão Eva não achou que aquela desculpa fosse convincente e acrescentou:
- Ele nunca aparece lá em casa para ver papai.
- Ele tem estado muito ocupado. - A despeito das tentativas de Nadia para segurar firme a tigela enquanto juntava a farinha de trigo à massa, ela sempre se mexia. Eva observou o ricto de dor que se estampou no rosto da irmã quando um súbito movimento lateral da tigela forçou seu braço machucado.
- Você gostaria que eu fizesse isso para você? - ofereceu-se Eva.
- Sim, obrigada. - Nadia, de boa vontade, entregou a tigela de massa de pão e afastou-se da mesa, segurando com cuidado seu braço na tipóia como se ele a estivesse machucando. - É surpreendente como é difícil fazer as coisas mais simples quando você só tem um braço bom.
- Deve doer. - Eva abandonou a colher e começou a misturar a farinha na massa com os dedos.
Às vezes dói - respondeu Nadia -, mas está ficando melhor, seu sorriso parecia forçado. - Você tem de levar um pouco do kulich Para casa, para o papai.
- Ele não vai comê-lo - replicou Eva, sombria. - Ele quase não come nada, não importa o que eu faça para ele.
- Isso mudará com o tempo; o apetite dele voltará.
- Não, não voltará. Ele não liga mais para coisa nenhuma. Se eu hoje à noite não fosse para casa, ele nem notaria minha falta.
- Você não está acreditando nisso de verdade, está?
- Sim. Mamãe não me desejava no quarto dela. Agora papai nem liga se estou em casa ou não.
- Ele liga sim. Ele pode não demonstrá-lo, mas isto é porque ele agora sente tanta falta de mamãe. Mas... se ele soubesse... que está magoando você... ele faria algo a esse respeito. Estou certa que faria. Sei que o faria... se soubesse.
- Você está chorando, Nadia? - Eva pensou ver lágrimas nos olhos da irmã.
- Meu braço dói um pouco, é só isso. - Ela voltou-se de forma que Eva não pudesse ver seu rosto.
Da sala da frente veio o som de uma porta se abrindo e os pesados passos de um homem entrando. Eva franziu o rosto ao notar o visível início de um alarme no rosto de Nadia. Ela parecia tão apavorada que por um instante Eva pensou que talvez alguns soldados estivessem entrando. Mas sua irmã virou-se e ocupou-se rapidamente com o serviço na mesa.
- vou acabar isso - disse e afastou a tigela dos dedos de Eva sujos de farinha. É melhor você ir para casa antes que papai comece a pensar onde você está e a preocupar-se.
- Mas quem foi que entrou? - Eva entendia por que ela subitamente estava sendo mandada embora. - Não foi Gabe?
- Sim. - Ela baixou a voz até um sussurro e pediu, apressada: Por favor, faça o que estou pedindo e vá embora. E não se esqueça de seus livros da escola.
- Mas... - ponderou Eva, confusa.
- Mulher! Onde diabos está você?
Surpreendida pelo tom zangado da voz que fazia a pergunta, Eva virou-se para a porta de comunicação exatamente quando o marido de sua irmã apareceu no umbral. A expressão dele era dura e inamistosa, seus olhos pequenos pontos negros. Seu sorriso, aquele sorriso convidativo de seus olhos, desaparecera.
- O que ela está fazendo aqui? - perguntou Gabe, olhando irado para Eva.
- Ela parou aqui ao voltar do colégio - explicou Nadia com ansiedade. - Já estava saindo.
- Será que interrompi alguma coisa? - O olhar dele endureceu-se, cheio de suspeitas, correndo de uma para a outra. - Aposto que você não me esperava tão cedo.
- Eu não estava certa de que horas você chegaria. - A irmã procurava parecer muito calma e despreocupada, mas Eva sentia um ligeiro tremor na voz dela. Eva moveu-se cautelosamente em direção à mesa, procurando chegar perto de sua pasta de livros. - Sei o quanto você gosta de kulish. Pensei em cozinhar um pouco para você, a fim de surpreendê-lo.
- Agora estou enxergando. - O olhar dele caiu sobre as latas de farinha de trigo e de açúcar em cima da mesa. - Você está fazendo uma surpresa para mim. Imagino que se chegasse em casa mais tarde nãe teria sobrado nada para mim... ou se não teria dado tudo para essa sua família meio mestiça. Isto é o que está acontecendo, não é? Você andaescamoteando comida para eles nas minhas costas. Por este motivo é que nunca temos nenhum açúcar, farinha de trigo ou qualquer outra coisa para comer nesta casa, não é?
- Não. Eu estava fazendo isto para você, Gabe.
- Mentirosa! - com um desabrido movimento do braço ele varreu tudo de cima da mesa. Eva deu um pulo com o barulhão que tigelas, latas, xícaras e panelas fizeram ao cair no chão, espalhando seu conteúdo no meio de uma nuvem de farinha de trigo. Escutou o grito meio abafado de alarme de sua irmã e voltou-se, seus olhos se arregalando quando o viu pular sobre Nadia e pegá-la pelo pulso do braço quebrado.
- Não me bata, Gabe! Por favor, Gabe, não me bata! - gemeu a irmã, soluçando.
Ele deu-lhe uma bofetada e depois a fez chegar mais perto dele com um arranco em seu pulso.
- Não minta para mim, sua cadela!
- Não machuque minha irmã! - disse Eva, lançando-se a ele, tentando puxar-lhe a mão que agarrava o braço machucado de Nadia. Solte-a!
Ela não chegou a ver o golpe desfechado pelas costas da mão dele. A dor explodiu em sua cabeça quando a força do tapa jogou-a para trás. Ela caiu, batendo com a cabeça na parede da cozinha, junto ao chão. Por um momento ficou atordoada demais para mover-se.
- Eva! - Como que à distância, ouviu a irmã chamando-a, antes que aquele grito de alarme fosse afogado por um forte gemido. Gradualmente, a dor começou a concentrar-se num dos lados de sua cabeça enquanto o resto do corpo era tomado de uma sensação de torpor.
- Meu braço! - gemeu Nadia.
- Eu o quebro de novo se você não me disser a verdade. -A resposta ameaçadora de Gabe penetrou vagarosamente a consciência de Eva e ela tentou sentar-se. - Você ia dar aquele kulich para ela, não era?
- Eu ia mandar um pedaço para casa... para papai. - A resposta estrangulada pela dor acabou num gemido. - Só um pedaço, Gabe...
- Aposto que era somente um...
Eva ouviu o barulho de outra bofetada e levantou os olhos quando a força do golpe jogou a irmã no chão; tendo caído sobre o braço quebrado, ela deu um grito lancinante. Eva quis ir ter com ela, mas Gabe estava de pé ao lado de Nadia. Ela temeu o que ele poderia fazer com ela se tentasse interpor-se entre os dois de novo. A forte dor que sentia na cabeça não se abatera desde que fora jogada contra a parede.
Nadia continuava caída no chão, protegendo o braço com o corpo que era sacudido por soluços, mas sem fazer qualquer barulho. Eva tinha vontade de chorar, mas estava temerosa de chamar atenção para si, receando incorrer na raiva dele.
- Eu lhe avisei para que não me mentisse de novo. Talvez agora tenha aprendido. - Ele voltou-se para sair do quarto, pisando na farinha de trigo e no açúcar e esmagando os cacos da tigela de louça. Encolhida de encontro à parede, Eva não se moveu até que ouviu a batida violenta da porta da frente. Quando tentou ficar de pé, sentiu-se tonta e com cuidado tocou o lado de sua cabeça que latejava, seus dedos encontrando um galo do tamanho de um ovo de ganso.
Tão logo passou a tonteira, ela atravessou a sujeira espalhada pelo chão, foi para o lado da irmã e, com todo cuidado, ajudou-a a sentar-se, encostando-a na parede. O rosto de Nadia parecia branco como um fantasma, exceto por uma parte inchada e de um vermelho-arroxeado do lado da mandíbula, onde Gabe a havia atingido. Eva olhou-a preocupada, reparando no modo como ela suportava a tipóia na qual se apoiava o braço quebrado.
- É melhor eu chamar o vovô.
- Não! -A voz fraca de Nadia chamou-a de volta quando Eva começou a levantar-se para sair. - Você não deve... dizer a ninguém.
- Mas você está machucada.
- vou ficar boa. - Vagarosamente, ela abriu os olhos e estendeu a mão para pegar a de Eva, apertando-a com força. Eva chorou ao ver a dor estampada no rosto afilado de Nadia, e as lágrimas rolaram-lhe rosto abaixo porque não sabia o que fazer.
- Ele bateu em você... - Era difícil para ela compreender aquilo, embora o tivesse visto.
- Foi minha culpa. Eu não deveria ter mentido para ele. Eu... Eva, é melhor você ir. Ele poderá voltar.
- Venha comigo. Não quero que ele a machuque outra vez.
- Eu não posso ir. Papai... - De novo faltou-lhe a voz. - Esta é a minha casa. Ele é meu marido.
- Mas ele bateu em você... - Eva lembrou-se então de outras vezes em que havia notado manchas de machucados na irmã. Olhando para a tipóia, os incidentes afinal se ligaram. - Você não caiu no gelo; ele quebrou seu braço, não foi?
- Sim - admitiu Nadia, baixando a cabeça. - Eu o deixei enraivecido. - Eva não podia imaginar sua irmã fazendo qualquer coisa que merecesse uma punição tão terrível. Meio às cegas, começou a andar em direção à porta por onde Gabe havia desaparecido. Começou a lembrarse da forma como os soldados tinham molestado sua mãe e as cruéis observações que faziam sobre ela. Agora Nadia fora agredida pelo marido. Ela tremia de raiva e confusão, imaginando por que os homens faziam coisas tão terríveis.
Um ano depois da morte por afogamento de sua mulher, Lev Tarakanov falecia. Alguns diziam que morrera com o coração partido; sua jovem filha Eva, porém olhava sua morte como um ato de abandono e o odiava por isso. Ela necessitara dele. Sua irmã maltratada pelo marido necessitara dele; ele, porém, as havia abandonado e ela nunca seria capaz de perdoá-lo por isso. Seu avô e sua irmã choraram no funeral, mas ela não derramou uma só lágrima.
Os credores apossaram-se da casa e de tudo que havia no interior e venderam para saldar as dívidas de seu pai. Nem ela nem a irmã receberam qualquer coisa. Até Gabe Blackwood ficou revoltado com aquilo, mas não houve recurso. Teoricamente, o confisco e a venda da propriedade eram ilegais; entretanto, como o Alasca não tinha lei civil, não havia forma legal para a execução de testamentos ou da herança de propriedades. Sem dinheiro, Eva foi viver com o avô, levando com ela apenas as poucas peças de roupa que possuía e a Bíblia de sua mãe.
A vida continuou quase como antes. Ainda havia poucas noites em que Eva não fosse perturbada em seu sono pelos distúrbios dos soldados bêbados da guarnição. O avô parecia necessitar de pouco sono e passava a maior parte das noites sentado com seu velho mosquetão cruzado em cima das pernas.
Os anos de 1871 e 1872 trouxeram poucas mudanças, exceto que a ligeira corrente de mercadores e profissionais abandonando Sitka tornou-se um fluxo constante de famílias desiludidas e desesperadas. Alguns garimpeiros chegaram para tomar seu lugar, atraídos para a ilha Baranov pela descoberta de veios de quartzo aurífero na área de Silver Bay. Mas os escassos mineiros não podiam salvar a economia que afundava; depois de reduzir o minério de ouro num pilão, eles em geral só obtinham ouro suficiente para mantê-los vivos.
Numerosas propriedades minerais foram marcadas com estacas, mas sem leis nenhuma concessão legal podia ser registrada. Todo o ouro encontrado estava em rocha dura, o que requeria uma boa quantidade de capital para minerá-lo e um moinho para separar o ouro da ganga por trituração. Investidores eram escassos, tanto por causa da ausência de qualquer direito legal a uma mina quanto devido ao custo de extrair ouro de uma área quase inacessível, onde a maioria de todos os equipamentos e suprimentos tinham que ser trazidos de fora.
Atraídos, porém, por ricas amostras de quartzo portador de ouro que aviam achado, os faiscadores pesquisavam as montanhas sempre à procura daquele fugidio veio de ouro puro que pudesse abrir as palmas das mãos dos cautelosos investidores. Sitka era o lugar onde eles iam obter suprimentos e desabafar a pressão acumulada depois de semanas, às Vezes meses, sozinhos nas montanhas.
Era virtualmente impossível para Eva pisar fora da porta da casa de seu avô sem ver um bêbado cambaleando pela rua, quer fosse um soldado, um kolosh ou um mineiro. Aventurar-se para além da soleira da porta significava invariavelmente sujeitar-se aos assobios provocadores e piadas insultuosas. Quando a escola fechou suas portas na primavera de 1873, por causa da falta de fundos para pagar o professor, Eva ficou contente, porque isto significava que não tinha mais que enfrentar diariamente aquele desafio verbal de desaforos. Já então a raiva que sentia dos soldados se expandira para incluir todos os homens, exceto seu velho avô e o padre da igreja.
Quando atingiu a puberdade, aprendeu o significado da palavra "fornicação". Exposta como estava a soldados, mineiros e prostitutas que frequentavam os bares, ela veio gradualmente a compreender o que os soldados haviam feito com sua mãe. Eva não podia imaginar nada pior; somente pensar naquilo enchia-a de nojo e fazia aumentar seu ódio pelos homens.
Ficava contente por não ter os cabelos louros de sua mãe, que tanto haviam fascinado os soldados. Sua irmã mais velha, Nadia, os tinha, e pudera ver as marcas que recebera do marido. Ficava contente de ter seu rosto todo marcado de espinhas, de sua boca ser grande demais, de possuir lábios grossos e olhos muito juntos. Ficava satisfeita por chamarem-na de "cara de sapo" e de a deixarem sozinha. Ser bonita era uma maldição, e ela ficava satisfeita de não ter sido marcada pela beleza.
Numa noite de primavera, Eva ficou acordada na cama, observando as "luzes do norte" executando seu mágico balé no céu do lado de fora de sua janela. As brilhantes luzes azuis e verdes da aurora boreal lembravam-lhe o vestido de baile de brocado de cetim de Nadia, um vestido que seu marido reduzira a farrapos durante uma recente briga. Quando observava as ondas movediças das luzes cor de turquesa, elas se transformavam no material do brocado sendo violentamente rasgado em tiras de farrapos. Afastou os olhos daquela visão e dirigiu-os para a escuridão de seu quarto, preferindo seu vazio negrume àquela selvagem beleza do lado de fora.
Quando escutou o fraco arrastar de passos na varanda de trás da casa, ela sentiu-se enrijecer. O avô dela estava dentro de casa; ela o ouvira movimentando-se pela sala de estar há apenas alguns momentos. Soldados! Tinha que ser, concluiu ela. Porém ninguém mais andaria às escondidas por trás da casa. Sabendo que o ouvido do avô não era tão bom como outrora, ela escorregou para fora do leito, pegou o robe que estava ao pé da cama e correu para alertá-lo.
- Vovô! - Chamando-o com suavidade, dirigiu-se para a cadeira onde ele estava sentado, dormitando. Sacudiu-o com delicadeza pelo ombro a fim de acordá-lo. Assustado, ele deu um pequeno ronco e ficou logo alerta.
- O que é?
- Ouvi qualquer coisa atrás da casa - sussurrou ela. - Acho que há alguém lá atrás.
Naquele exato momento, ambos ouviram um ruído na porta. O avô levantou-se da cadeira segurando o comprido mosquetão e andou em direção à porta da cozinha.
- Quem está aí? - perguntou rispidamente em inglês. - Fale, ou atiro.
- Sou eu - a resposta veio em russo. - Dimitri Stanislavich. Abra a porta.
Eva passou correndo pelo avô e tirou a tranca para abri-la, tremendo com o susto que seu primo lhe havia causado, e também zangada.
- Por que vem às escondidas no meio da noite? - Não importava que aquela fosse a hora na qual ele usualmente chegava ou que fazia vários meses que eles não o viam. - Pensamos que fossem soldados tentando arrombar a casa. Vovô poderia ter atirado em você. Foi uma coisa estúpida o que você fez, Dimitri Stanilavich, chegar aqui no meio da noite. Ele deveria ter atirado em você somente para dar-lhe uma lição.
- É assim que um homem é recebido de volta em casa por sua família?
- Como poderíamos saber que era você? - Ela sentiu o cheiro de bebida em sua respiração e afastou-se dele.
O avô riscou um fósforo e acendeu um lampião a óleo. A luz espalhou-se pelo cómodo até atingir o primo em suas roupas de marinheiro quando ele fechou a porta e entrou na casa.
- Ninguém nos disse que seu navio estava no porto, de forma que eu não estava esperando você - disse o avô e depois, apontando em direção à mesa, ajuntou: - Sente-se.
- Esqueci de mandar uma mensagem. - Quando Dimitri cambaleou até uma cadeira, notou o velho mosquetão encostado na parede. Se o senhor tivesse atirado com aquela coisa, não sei qual de nós dois teria sido mais severamente machucado. Deixe que eu lhe arranje um outro rifle, avô.
- Aquele ali eu sei como usar; para mim serve. - Apoiando-se com as mãos na mesa, ele arriou numa cadeira, traindo a fraqueza da idade naquele movimento cheio de vagar e cuidado. - Deveríamos beber um petnatchit copla para celebrar sua volta de uma feliz viagem. Eva Levyana, traga-nos os copos e a garrafa de vodca do aparador.
Se o avô lhe tivesse perguntado, ela poderia dizer-lhe que o primo já havia comemorado sua volta. Mas as costumeiras "quinze gotas", que usualmente significavam meio cálice, era um gesto russo de boas-vindas e hospitalidade, em geral estendido a todas as pessoas que entravam na casa. Assim ela foi buscar a vodca e os copos do aparador e trouxe-os para o avô.
Ela reparou na forma como sua mão tremia quando ele serviu uma generosa porção de bebida em cada cálice e compreendeu que a chegada de Dimitri deixara-o emocionado. Eva sempre vira o avô como um forte e corajoso protetor, que nada temia; mas agora, ao observá-lo, compreendia que ele era um velho fraco. Ao lado dele, seu primo Dimitri parecia incrivelmente forte e cheio de vida.
Dimitri também pareceu notar a fragilidade do avô e disse:
- O senhor parece cansado, vovô. Há muito deveria estar na cama, dormindo a sono solto.
- Não é prudente dormir profundamente. - Ele lançou um olhar para Eva e depois levantou o cálice para tomar outro gole de vodca. Agora que você está de volta, talvez eu possa descansar com mais facilidade - disse ele a Dimitri, e depois tomou o resto da vódca.
Desde que se mudara para a casa do avô, depois da morte do pai, que ele não se deitava à noite. Eva nunca o havia questionado, porque aquilo fazia-a sentir-se segura e protegida, sabendo que ele estava de guarda. Subitamente, compreendeu que seu avô não ficava acordado devido a preocupação com sua própria segurança. Ele o fazia para protegê-la. Eva realmente nunca havia percebido a ação dele sob esse ângulo; agora, que o fizera, sentia-se mal com aquilo. Compreendia que, embora seu avô fosse velho e cansado, ele estava disposto a sacrificar seu repouso, talvez até sua vida, para a segurança e o bem-estar da neta. Ele o fazia por ela.
Antes de morrer, seu pai ficara acordado muitas noites, mas a falta de sono fora causada por sentimentos de culpa e remorso pela morte da esposa, não por qualquer desejo de protegê-la de algum mal. Pelo seu exemplo, o avô lhe mostrara o verdadeiro significado da responsabilidade e devoção familiar. Mais claramente do que antes, ela via o quanto seu pai fora egoísta. Ela moveu-se e ficou de pé atrás da cadeira do avô, profundamente comovida pelo sacrifício dele.
- É melhor o senhor descansar enquanto pode - disse Dimitri em resposta ao comentário do avô -, porque não vou ficar aqui muito tempo.
- Você vai partir de novo?
Eva sentiu a nota de pesar na pergunta do avô, o que no entanto não pareceu causar qualquer impressão em Dimitri ao balançar a cabeça afirmativamente e depois explicar:
- Colby está fechando seu bar aqui e mudando-se para o forte Wrangell, no rio Stikine. Será dali que estarei viajando de agora em diante.
O anúncio foi feito com tanta indiferença que por um instante Eva não podia realmente acreditar que ele queria dizer que estava partindo. Então notou os ombros caídos de seu velho avô e compreendeu que era mesmo verdade.
- Então você não irá mais voltar. - Toda vez que o avô falava com aquela voz despida de emoção, era sinal de disfarce por algo que o afetava profundamente. Eva compreendeu então o quanto ele contara com Dimitri, embora seu primo estivesse ausente a maior parte do tempo.
- Poderei trazer para cá um embarque de bebida de vez em quando disse Dimitri, encolhendo os ombros.
Eva agarrou com força as costas da cadeira, seus dedos apertando fortemente a madeira.
- Como pode simplesmente ir se embora e deixar-nos aqui sozinhos? Não se importa com o que possa acontecer conosco?
- Ora, Eva! - O avô tentou acalmá-la. - Dimitri é um navegador; é nisto que ele ganha a vida.
- Ele ganha a vida contrabandeando bebida para os americanos e caçando ilegalmente lontras e focas. Ele nem mais negocia sequer com os kolosh. - Todo o mundo pensava que ela era pequena demais para saber o que estava acontecendo, mas Eva sabia.
- Isto é assunto dele, não nosso... - reprovou-a gentilmente o avô. Ele trabalha há tanto tempo para aquele tal de Colby que já se tornou como os americanos. - Eva estava zangada e se recusava a calar a boca. - Ele só pensa em ganhar dinheiro e não liga para o que acontecer com sua família. Vovô está ficando velho, Dimitri, ele precisa de você aqui.
Quando ela segurou no ombro do avô, ele levantou a mão e bateu carinhosamente na dela.
- Nós nos arranjaremos, da mesma forma que temos feito quando Dimitri está fora. E não estamos sozinhos. Sua irmã Nadia está aqui. E, sorrindo suavemente para Dimitri, concluiu: - Não ligue para ela.
Entretanto, ela pôde ver que Dimitri preferia acreditar no que o avô dissera. Ele o fez porque era egoísta, e acreditar no avô permitia-lhe fazer o que desejava. Na realidade, porém, estava abandonando-os, da mesma forma como fizera seu pai. E quanto a Nadia, todo o auxílio que ela podia dar-lhe, era a mesma coisa como se estivessem sozinhos; Eva, no entanto, parecia ser a única pessoa a entender isso.
- Já é tarde, Eva - disse Lobo, apertando-lhe afetuosamente a mão. - Você precisa ir dormir.
- E o senhor, vovô?
- Dimitri e eu ainda não terminamos nossos drinques. Relutantemente, ela os deixou.
O vidro de uma garrafa de uísque quebrada brilhava na rua à luz do sol de meio-dia quando Gabe Blackwood saiu de seu escritório. Ele fez uma parada e distraidamente lambeu os lábios, sentindo o gosto do uísque que estivera naquela garrafa. Relanceou os olhos para dentro de seu escritório quase vazio. Não restava quase nada de valor para vender. Ele tinha posto seus livros de direito no prego no mês passado. Numa terra sem lei, não tinham nenhum valor para ele. Não podia sequer vender o prédio; não havia compradores.
Da rua quase deserta vinha o barulho de marteladas. Era um som agora raro numa cidade que certa vez se orgulhava de uma população de quase duas mil pessoas e agora não contava com mais de quatrocentos habitantes, excluindo os índios, que Gabe nunca computava. Ele hesitou, depois fechou a porta do escritório e saiu andando a esmo pela calçada de tábuas, para ver o que estava acontecendo.
Um grupo de trabalhadores estava diante do Águia Dupla. Gabe parou surpreso ao ver que estavam arriando o grande cartaz para o chão. Ouvira boatos de que Ryan Colby estava abandonando Sitka, mas não lhes dera importância; obviamente tinha-se enganado. Observou que Ryan se encontrava ao lado da porta, usando sua costumeira sobrecasaca preta e colete de brocado, mordendo um comprido charuto.
- Então você está mesmo indo embora? - perguntou-lhe Gabe.
- Sim. - Seus lábios se moveram para formar a resposta, mas o charuto continuou preso entre os dentes.
- Sempre ouvi dizer que os ratos são os primeiros a abandonar um navio que está afundando. - Havia muitas coisas sobre Ryan Colby que Gabe viera a detestar intensamente, a menor delas não sendo o fato de que Colby sabia desde o princípio que ele se casara com uma mestiça.
Ryan deu uma risadinha, depois removeu o charuto da boca, sua atenção nunca se desviando dos operários que cuidadosamente arriavam a tabuleta.
- Prefiro ser o rato do que o nobre louco que afunda com ele.
- O que o faz pensar que está afundando? - retorquiu Gabe.
- Dê uma olhada em volta. O que vê você? Uma porção de edifícios com as aberturas fechadas com tábuas ou vazios. Você certamente notou...
- O Exército em sua maioria ainda está aqui. Os soldados são seus melhores fregueses. Então por que se importaria se umas poucas pessoas decentes abandonam a cidade?
- Umas poucas? Tem sido muito mais do que isso. - A folha de pagamento dos militares da guarnição não era suficiente para sustentar a economia da cidade. - Há três anos esta cidade tinha trinta e quatro prostitutas; aposto que hoje tem menos que dezoito. A cidade está morrendo.
- Talvez estejamos apenas nos livrando do lixo.
A boca de Ryan se retorceu num ângulo zombeteiro enquanto estudava Gabe pensativamente.
- Quando foi a última reunião de seu conselho de cidadãos, em sua tentativa de um governo provisório? - Gabe apertou fortemente os lábios, sem responder. - Já que parece ter esquecido, não tem havido uma reunião desde fevereiro. Qual seria o propósito de uma reunião? Ninguém está pagando suas taxas. A cidade está quebrada. A escola está fechada. Por aqui tudo acabou, exceto as reclamações, e mesmo isto está se transformando num choramingar.
Um dos lados do cartaz bateu com força no chão quando um dos operários deu corda demais. Como ele era mais pesado na parte de cima, devido à enorme réplica de uma moeda de ouro de vinte dólares, o cartaz inclinou-se perigosamente para a frente, forçando os cabos que mantinham o outro lado na posição vertical.
- Cuidado com este cartaz! - gritou Ryan energicamente.
- O que está planejando fazer com ele? - perguntou Gabe, olhando para a carroça vazia que esperava na rua.
- vou levá-lo comigo e erguê-lo diante de meu novo bar em Wrangell.
- Wrangell? - Gabe ficou surpreendido pela resposta; ele esperava ouvir Ryan dizer que estava se dirigindo para San Francisco. - Aquilo é apenas um outro posto militar, sem diferença de Sitka.
- Não é diferente no verão, mas, quando chega o outono, enche-se com mineiros de Dease Lake e das Cassiars, na Colúmbia Britânica. Eles não podem trabalhar em suas concessões no inverno, e assim a maioria deles passam-no... e gastam seu ouro... em Wrangell. A cidade está prestes a estourar de progresso.
Você sempre vai para onde o dinheiro é fácil, não é, Colby? Só está interessado em quanto dinheiro pode fazer numa cidade, não no que pode construir ali. - Era pura e simples ambição e Gabe desprezava-o por isso.
Vim para ganhar dinheiro. - O sorriso de Ryan era frio em seus lábios finos. - É isto o que estou fazendo. E quanto a você, Gabe? Você é um advogado numa terra que não tem leis. Por que diabo fica por aqui?
Gabe olhou para a sobrecasaca de Ryan, cortada sob medida, o fino linho de sua camisa e o custoso charuto que ele tinha na mão. Suas próprias roupas eram ordinárias e gastas. O dinheiro tilintava no bolso de Ryan, mas Gabe não tinha duas moedas para esfregar uma na outra. Não possuía dinheiro bastante para pagar uma passagem de volta para os Estados Unidos; só lhe restava o suficiente para seu sustento. Que inferno! Nem sequer tinha dinheiro para tomar um drinque, de que muito necessitava. Mas era por demais orgulhoso para admitir que, como a cidade, ele também fracassara.
- Não vai ser sempre assim. Mais cedo ou mais tarde o governo terá que dar ao Alasca o direito de governar-se. - Ele voltou à sua velha resposta padronizada, mas já a empregara tantas vezes que agora ela soava vazia a seus próprios ouvidos.
- Vai se passar muito tempo até que isso aconteça - comentou Ryan enquanto observava os trabalhadores carregando o cartaz na carroça. Agora que a Companhia Comercial do Alasca recebeu o monopólio de caçar na estação as focas das Pribilofs, eles formaram um poderoso grupo de pressão em Washington. Eles não estão dispostos a permitir a formação de qualquer governo local que poderia taxar o dinheiro que estão ganhando com as peles. Farão o possível para matar no nascedouro qualquer medida para criar um governo local.
Gabe sabia que era verdade. O Alasca estava isolado. Poucos americanos tinham ideia do que era este vasto território. E os homens do dinheiro protegiam seus lucros perpetuando a imagem do Alasca como um enorme iceberg, incapaz de poder sustentar uma população branca permanente. As pessoas escutavam os que assim falavam; ele amaldiçoava sua estupidez e a surdez que impedia que eles ouvissem as pequenas vozes, como a dele, gritando a verdade.
As coisas nunca mudavam, compreendia ele amargamente. Certa ocasião, ele pensara que no Alasca as coisas pudessem ser diferentes. A terra era nova e cheia de frescor, o lugar perfeito para se construir uma demo cracia melhor. Mas ele nunca havia considerado que aqueles que estavam do lado de fora não iriam deixar que isso acontecesse. Eram eles que tinham o dinheiro, o poder e a influência.
Tão logo o pesado cartaz foi amarrado na plataforma da carroça, o carroceiro estalou a língua para a parelha de cavalos e fez estalar o chicote por sobre seus lombos. Quando a carroça chegou aos dois homens, Ryan fez sinal para que parasse.
- vou com você até o cais. - Ryan caminhou até a carroça e subiu para o assento ao lado do carroceiro. Depois voltou o olhar para Gabe e disse: - Você deveria ter ouvido meu conselho, Blackwood. Tentei dizer-lhe para ganhar seu dinheiro enquanto tinha oportunidade. Agora terá sorte se conseguir espremer um dólar desta cidade... a não ser que encontre ouro - ajuntou ele com um risinho enquanto enfiava o fino charuto na boca mais uma vez e fazia sinal ao carroceiro para seguir.
- Upa, upa! Eia! - gritou o homem, batendo com as rédeas no lombo dos animais.
A carroça passou barulhenta por Gabe, suas correntes se arrastando pelo chão, os cascos ferrados dos cavalos fazendo "clope-clope" - e a tirada final de Ryan ecoando em seus ouvidos, trazendo-lhe à memória tudo o que havia perdido. Mesmo que fosse capaz de praticar sua profissão aqui no Alasca algum dia, nunca poderia realizar nenhum de seus sonhos. Nadia, com seu sangue índio, havia arruinado tudo. Ninguém jamais indicaria um marido de índia como governador do território. Ela o destruíra com suas mentiras e seus truques, ele perdera em todos os lados.
Tivera muitas oportunidades de fazer dinheiro, poderia ser tão rico como Colby, talvez até mais rico, mas não havia tirado vantagem. Agora estava quebrado, preso como numa ratoeira nesta fedorenta cidade e algemado a uma mulher que não podia suportar. Ele fora um tolo.
De uma forma ou de outra, ele jurou que iria arranjar o dinheiro para sair daquele lugar e afastar-se dela.
Através dos vidros sujos da janela da sala de estar, Nadia observava o marido aproximar-se. Nervosamente, umedeceu os lábios secos, mas naquele dia estava mais excitada do que nervosa com seu retorno para casa. Ele cambaleava ligeiramente ao subir o caminho que conduzia à casa, um sinal certo de que andara bebendo; considerando, no entanto, o quanto ele havia trabalhado nestes últimos anos, experimentando qualquer empreendimento que garantisse a comida em mesa, ela compreendia seus encontros com a garrafa.
Os homens bebiam; sempre tinham bebido, sempre beberiam. Se Gabe bebia mais agora do que durante os primeiros anos de seu casamento, Nadia acreditava que era porque Gabe tinha mais razões para isso. Durante aqueles anos houvera desapontamento demais; nada dera certo para ele. Tentara procurar ouro, mas tudo o que encontrara fora "ouro dos
tolos", a pirita. Convencera vários mineiros a ceder-lhe uma participação em suas concessões, em pagamento de seus serviços para proteger seus títulos de propriedade, tão logo o governo americano baixasse providências para o registro legal das concessões. Embora isto não acontecesse, ele tentara reunir um grupo de investidores para desenvolver as concessões, sem sucesso. E quando tentara vender sua participação, ninguém quis comprá-la.
Depois disso ele se desiludira, ficara quase desesperado. Durante um inverno tentara jogar, passando a maior parte das noites nas mesas de jogo de um bar da rua Lincoln. Durante certo tempo ganhara, mas sua sorte rapidamente mudou. Antes que terminasse o inverno, havia vendido todas as suas posses de algum valor, desde a bandeja de prata que seu avô lhe dera de presente de casamento até a modesta coleção de pequenos ovos de Páscoa dourados, tudo num esforço para recuperar suas perdas. Mas isto também foi em vão.
No último ano tentara trocar mercadorias com os kolosh por peles, convencido de que, com seu intelecto superior, faria um lucro vultoso trocando mercadorias baratas por valiosas peles. Mas foi ele quem saiu tapeado nas barganhas, trocando grandes quantidades de mercadorias por peles que acreditava serem de lontras e raposas, apenas para descobrir mais tarde que não passavam de couros de animais menos valiosos, tingidos e esticados para parecerem, aos olhos de uma pessoa inexperiente, com as peles desejadas.
Invariavelmente, vingava-se de suas frustrações em Nadia, culpando-a por seus muitos fracassos e procurando consolo numa garrafa de rum barato ou numa botija ainda mais barata de koochinoo. Uma tão grande parte de seus esforços tinha sido inútil, que não era de admirar que ele se tornasse irritado e amargo. Nadia compreendia por que ele se voltava contra ela e considerava as equimoses que recebia de suas pancadas como uma forma de compartilhar do sofrimento dele.
A situação em nada melhorava pelo contínuo declínio de Sitka. As pessoas abandonavam-na às dezenas, transformando a cidade outrora florescente numa aldeia fantasma. Menos de duas dúzias de famílias permaneciam numa comunidade onde certa ocasião tinham vivido centenas. O Exército continuava lá, mas corria o boato de que em breve os militares também se retirariam. Ninguém estava seguro das mudanças que isso iria provocar. Estranhamente, Gabe não parecia ligar quanto ao que viesse a acontecer.
Os nervos de Nadia ficaram tensos quando a porta se abriu e Gabe cruzou seu limiar. Apertou uma mão confiante sobre seu estômago, sentindo a pequena e quase imperceptível saliência, convencida de que suas novidades iriam animá-lo. Não podia conceber que um homem não se enchesse de alegria ao saber que estava para ser pai pela primeira vez. Há muito tempo desejava um bebé, certa de que um filho poderia cicatrizar o rompimento entre eles. Agora mal podia conter sua felicidade. Gabe percebeu o ligeiro sorriso nos lábios dela e perguntou:
- O que há de tão divertido?
- Nada. - Rapidamente ela baixou os olhos, pegou o chapéu e o casaco que ele jogou para ela e foi pendurá-los.
- Onde está a botija de hooch que eu tinha a noite passada?
- Na cozinha. Você me disse para deixá-la ali.
- Eu sei o que lhe disse. - Seguiu-a até a cozinha e viu a botija em cima da mesa onde a havia deixado. Antes mesmo que ele pudesse pedi-lo, ela colocou um copo limpo sobre a mesa.
- Gabe, tenho algo para lhe contar - disse ela quando ele pegou a bebida. - Tenho boas notícias a dar.
Gabe manifestou seus descréditos com um resmungo. Ela não fora para ele senão um veneno, desde o princípio. Tudo começara a andar mal no dia em que se casara com ela. Tirou a rolha da botija e encheu o copo com a potente bebida.
- Nós vamos ganhar um filho, Gabe.
O anúncio pareceu reverberar dentro de sua cabeça como um disparo de arma de fogo. Ficou olhando para ela, apalermado. Ela ia ganhar uma criança! Um filho dele! Revoltou-se com o pensamento de um descendente seu possuir sangue índio nas veias, e com a perspectiva de ter um filho índio que poderia crescer e algum dia vir a destruí-lo.
- Sei que você está surpreso. Eu também fiquei. - Ela sorriu, trémula. - Depois de todo esse tempo finalmente aconteceu. Minha única esperança é que você esteja tão contente quanto eu.
- Livre-se dele! - disse Gabe, batendo com força com a garrafa de bebida em cima da mesa.
- O quê?
- Você me ouviu: livre-se dele! - Gabe pegou a botija e serviu-se de outra dose da bebida. - Arranje um daqueles curandeiros do Ranche para lhe dar uma poção para beber. Não me importa o que você faça. Apenas livre-se dele; não quero uma criança que tenha sangue índio.
- Não! - com um gesto de proteção ela cobriu a barriga com as mãos, uma expressão de horror em seu rosto estampado.
- Sua danada! Faça o que estou mandando! - Enfurecido pela recusa, ele jogou-lhe o copo de bebida na cara. Ela esquivou-se e o copo espatifou-se de encontro à parede, espalhando vidro e bebida em todas as direções.
- Não! Não! Eu não farei isso!
- Então, por Deus, a arrancarei de você! - Dando um longo passo, ele chegou a uma distância em que podia bater-lhe. Ela tentou evitar a virada de seu braço para atingi-la com as costas da mão, mas Gabe conseguiu acertar-lhe uma bofetada de raspão. Ele pusera toda sua força no golpe e o impacto mandou-a cambaleando de encontro ao fogão.
Ele agarrou-a pelo braço de forma a poder virá-la e bater-lhe de novo.
Mas quando a puxou teve a rápida visão de uma grande frigideira de ferro na mão dela. A primeira coisa que sentiu foi a dor explodindo no lado de seu rosto e de sua cabeça. Cambaleou com a cabeça zunindo e manchas brancas apareceram diante de seus olhos. Enquanto tentava recuperar-se da tontura do golpe, viu Nadia sair disparada pela porta dos fundos e Correu meio tonto atrás dela.
Com um movimento ritmado da enxada, Eva capinava por entre os canteiros na horta atrás da casa de seu avô. Seu rosto estava escondido pela longa aba de palha de seu chapéu. Poucos pensamentos cruzavam-lhe a cabeça quando ela trabalhava na terra. Na horta ela esquecia todos os seus cuidados e aborrecimentos, e todo o profundo rancor que ela havia acumulado em sua vida relativamente jovem.
Em algum lugar lá embaixo na rua uma porta bateu; ela a escutou bater pela segunda vez. O barulho foi quase imediatamente seguido por um grito de socorro, um grito de mulher. Eva endireitou o corpo, franzindo a testa quando voltou-se para olhar em direção à casa de sua irmã; tinha parecido a voz de Nadia. Ficou pensando se Gabe não estava outra vez batendo nela e inconscientemente apertou a mão em torno do cabo de madeira da enxada.
A princípio ela não viu a mulher correndo pelos fundos das casas abandonadas entre as duas, sua visão obstruída pelas longas abas de palha de seu chapéu formavam uma espécie de túnel. A seguir, Nadia apareceu em seu campo de visão, lançando um olhar amedrontado para trás. Eva girou ligeiramente a cabeça e viu que Gabe Blackwood perseguia sua irmã. Nunca antes vira sua irmã correr dele. Mas Nadia nunca ficara grávida antes, lembrou-se Eva, e deixou cair a enxada para correr em socorro da irmã.
- Ajude-me, Eva! - gritou ela. - Ele quer matar meu bebé! Percebendo quão rapidamente Gabe se aproximava, Eva agarrou a irmã pelo braço e empurrou-a em direção à porta dos fundos da casa.
- Rápido! Entre, em casa!
Ela seguiu nos calcanhares de Nadia. Quando passava pela abertura da porta, ouviu o bater das botas dele no primeiro degrau da escada. Nadia não parou ao entrar, mas continuou correndo, atravessou a cozinha e dirigiu-se para a frente da casa. Eva virou-se para fechar e trancar a casa, mas não conseguiu fazê-lo a tempo. Gabe empurrava-a pelo lado de fora enquanto Eva se esforçava, lançando todo seu peso de encontro à porta, para impedi-lo de abri-la.
- Vovô! - gritou ela.
Um súbito e forte empurrão de Gabe foi mais do que Eva podia resistir. A porta abriu-se de um arranco, sua força quase atirando-a de costas. Atrás dela, Nadia gritava enquanto Gabe avançava violentamente para dentro da casa, um lado de seu rosto todo inchado e vermelho. Eva colocou-se depressa no caminho dele.
- Não! Deixe-a em paz! - Quando ela tentou barrá-lo, ele empurrou-a para um lado tão facilmente quanto havia forçado a porta.
Passou por ela às pressas em direção à sala de estar à procura de Nadia. Eva correu atrás dele, chegando à porta no momento em que ele agarrava Nadia. Ela gritava de medo e lutava para livrar-se das mãos dele. Tudo acontecia rápido demais para seu velho avô, que apenas agora estava procurando levantar-se de sua cadeira.
- Ei, o que é isso? - perguntou ele.
Mas Gabe não tomou conhecimento dele enquanto esbofeteava Nadia.
- Você nunca fugirá de mim de novo! - rosnou ele e levantou a mão para tornar a golpeá-la.
Eva notou o sangue correndo do canto da boca da irmã.
- Não! - gritou ela, mas seus pés pareciam grudados no chão. O avô agarrou Gabe por trás. com sua altura e seu peso, não era fácil para Gabe livrar-se dele. Gabe foi forçado a largar Nadia e voltar-se para enfrentar esta nova oposição.
- Fique fora disso, velho! - ameaçou ele quando Lobo agarrou-se com ele, lutando valentemente para enfrentar a força de Gabe.
- Você não vai bater na minha neta enquanto ela estiver nesta casa! - gritou ele, seu rosto ficando vermelho com o esforço da luta.
- Maldição! Eu faço o que bem me agradar!
Subitamente, a boca do avô abriu-se num espasmo de dor e de choque. Levou as mãos ao peito e seus olhos azuis voltaram-se para Eva como que num arregalo de apelo. Ela não entendeu o que havia de errado. Não havia visto Gabe bater nele. As pernas do velho pareceram ceder quando ele vagarosamente desabou no chão. Gabe estava parado ao lado dele, sua expressão registrando também surpresa.
- Vovô! - Vê-lo deitado imóvel no chão pareceu interromper a paralisia que a dominava. Eva correu para onde ele estava, soltando impacientemente as fitas de seu chapéu e gritando: - Vovô! O que aconteceu?
- Ela tocou-o, mas ele não se moveu.
Nadia aproximou-se dela e Eva teve a vaga consciência de que o colapso do velho tinha contido o ataque de Gabe.
- Que aconteceu? - perguntou Nadia.
- Não sei. - Eva olhava espantada para o avô, incapaz de ver qualquer marca nele, embora seus lábios estivessem adquirindo uma estranha cor azul.
Nadia colocou a mão em frente ao nariz e boca do avô e disse:
- Não está respirando. - Apressada procurou pelo pulso dele em seu pescoço e depois voltou seu olhar para Eva. - Acho que ele morreu.
- Não...! - Eva encostou o ouvido no peito dele, procurando aflita o menor som, mas Gabe escolheu aquele momento para afastar-se do corpo, e o barulho de suas pesadas botas abafaram qualquer som. Depois, ele parou e de novo espalhou-se um silêncio na sala. Eva, entretanto, não podia sentir nenhuma batida do coração. A dor estrangulou-lhe a garganta; levantou-se e encarou a irmã com as lágrimas enchendo-lhe os olhos.
- Ele está morto? - perguntou Gabe.
Espicaçada pela indiferença da voz dele, Eva arregalou os olhos para Gabe no meio de suas lágrimas e disse:
Você o matou!
Sua rouca acusação pareceu reverberar por toda a sala.
O único homem que havia sido bom para ela, que nunca se importara se ela era feia, mas que a amava de qualquer maneira, o único homem que tanto se sacrificara por ela, estava morto. Não haveria outros como ele. Um ódio por todos os homens estava agora firmemente encravado em sua alma.
Com um encolher de ombros, Gabe Blackwood afastou a possibilidade que fosse inculpado pela morte de Lobo Tarakanov.
Não toquei nele. Ele era um velho. Seu coração deve ter falhado.
Na mão dele tinha um ovo de prata que tirara de um armário junto à parede, cuja porta estava escancarada. Ele olhou para os outros ovos dourados que apareciam no armário. - Esses pertenciam a seu avô?
- Sim; ele os fazia. - Eva pôs-se de pé, zangada, ressentida por ele tocar nas posses de seu avô.
- É verdade. Ele era um prateiro - disse Gabe e relanceou os olhos pensativamente pelo quarto, notando o ícone de prata da Santa Virgem, os castiçais de prata em cima do aparador, e o brilhante samovar de prata numa mesinha. Eram uns poucos dos incontáveis artigos que as mãos de Lobo tinham trabalhado para seu prazer pessoal e que nunca oferecera para venda em sua loja, coisas que Eva mantivera fielmente polidas e brilhantes como uma forma de demonstrar seu amor e sua devoção a seu avô. - Meu Deus! Nesta sala há uma fortuna!
Seu medo ficou esquecido quando Eva cruzou a sala e tentou agarrar o ovo na mão dele; Gabe porém puxou a mão para trás, antes que ela pudesse agarrá-lo.
- Isso não lhe pertence. Ponha-o de volta no lugar - ordenou ela.
- Não seja boba. Temos que tirar tudo o que for de valor desta casa antes que alguém descubra que seu avô morreu - retrucou ele, impaciente.
- Você sabe o que aconteceu quando seu pai morreu; seus credores levaram tudo que lhe pertencia e deixaram vocês sem nada. Querem que isto aconteça de novo?
Hesitante, Eva voltou-se para olhar todas as coisas que tanto haviam significado para ele.
- Vovô teria gostado que essas coisas ficassem para mim e para Nadia - murmurou ela.
- Se as deixarem aqui não vai ter nenhuma importância o que ele desejava, porque não há lei que diga que vocês ficam com elas - lembrouas Gabe. - A não ser que as tiremos daqui agora, alguém irá pegá-las.
Ele começou a tirar os ovos dourados do armário e a enfiá-los nos bolsos. - Não fiquem aí paradas feito bobas! Mexam-se!
- Mas... e o avô? - Eva não podia argumentar contra a lógica de Gabe. No entanto, aquilo que ele sugeria parecia tão grosseiro e cheio de cobiça, especialmente quando o corpo de seu avô ainda estava quente. ela olhou para sua forma sem vida, notando que a irmã estava ajoelhada ao lado dele, seu rosto lavado de lágrimas.
- Ele está morto - disse Gabe friamente. - Nada mais há que se possa fazer por ele agora. - Ele deu as costas ao armário envidraçado, as prateleiras agora vazias, enquanto seus bolsos estavam recheados com os ovos prateados. Seus olhos voltaram-se para o ícone emoldurado. Precisamos de algo onde pôr todas estas coisas. Peguem alguns sacos ou as fronhas dos travesseiros. Não podemos perder tempo! Apressem-se!
Para Eva cada coisa tinha um significado especial ou uma preciosa lembrança ligada a ela. Não podia suportar a ideia de qualquer uma delas cair na mão de estranhos cujo único interesse seria em seu valor monetário. Essa possibilidade, mais do que a insistência de Gabe levaram-na a cruzar a sala em direção a Nadia.
- Vamos, Nadia. - Evitou olhar para o avô quando tomou Nadia pelos ombros e animou-a a ficar de pé. - Você tem que nos ajudar a juntar todas as coisas.
Relutante, Nadia deixou-se levar até a cozinha. Esvaziaram os sacos de farinha de trigo e de batatas e levaram-nos para Gabe na sala. Ali então os três, trabalhando separadamente, vasculharam cada quarto da casa, recolhendo tudo o que fosse de valor, e algumas coisas de importância sentimental, dentro dos sacos de pano. Quando acabaram, juntaram todas as coisas e encheram dois sacos.
Gabe jogou um em cima do ombro e levantou o outro em sua mão.
- Vocês ficam aqui. vou sair pela porta de trás e guardar tudo isto em minha casa. Depois vou até a cidade e chamo o agente funerário Simms para preparar seu avô para o velório. - E deu um passo em direção à cozinha.
- Dê uma parada em São Miguel e peça ao padre para vir aqui pediu Eva.
- Assim farei. - E, dando uma parada na porta da cozinha, acrescentou: - Não estou certo de quanto tempo levarei para fazer tudo isso. Não se preocupem se eu não voltar logo.
O som da porta fechando-se atrás dele pareceu assinalar o fim de um outro capítulo na vida de Eva. Ela virou-se para onde jazia seu avô e deu com seus olhos azuis já sem vida. Tinha havido uma tal comoção, tudo acontecendo tão rápido, que ela não tivera tempo de pensar, só de reagir. Agora o impacto total da morte dele e de tudo que significava para seu futuro finalmente desceu sobre ela.
Caiu de joelhos ao lado do corpo e chorou mansamente, enquanto com delicadeza fechava-lhe os olhos. Ela não mais passaria as noites naquela sala escutando as histórias de seus velhos dias. Nunca mais o ouviria falar sobre Zachar, Corvo e a velha Tasha - sobre Larissa e Caleb Stone, ou sobre Baranov e sua filha meio-mestiça Anna, e sobre o camareiro Rezanov. Ela não mais iria viver nesta casa que fora tão cheia de calor e amor, e que tinha sido para ela mais um lar do que a casa de seus pais.
- Você acha que nós deveríamos vesti-lo com sua melhor roupa? - sugeriu Nadia.
Eva concordou, decidindo que era melhor fazer algo do que ficar pensando no que iria acontecer com ela. Juntas, elas o vestiram com a roupa que ele sempre usava para ir à igreja e colocaram-no esticado no chão, com as mãos cruzadas sobre o peito. Depois disso, nada mais havia a fazer a não ser esperar pela volta de Gabe.
O tempo passava-se vagarosamente e Eva ficou a maior parte em silêncio, sem querer compartilhar de seu profundo sentimento de pesar. Ela perdera muito mais do que sua irmã. Quando olhou distraída para Nadia notou o modo como a irmã segurava a barriga, como se pegando e consolando a criança dentro dela. Aquela visão levou Eva a pensar sobre a sequência de eventos e a ameaça de violência de Gabe, que tinha precipitado o falecimento do avô. Gabe era culpado pela morte do avô tão certamente como se o tivesse matado com as próprias mãos. Ela sentiu o ódio renascer dentro dela.
- Onde está ele? - Ela levantou-se impaciente da cadeira, repentinamente consciente da escuridão que invadia a casa à medida que o crepúsculo roubava o céu de sua luz. - Agora ele já deveria estar de volta.
- Talvez ele não tenha sido capaz de encontrar o agente funerário.
- Sim, mas a esta hora já estaria de volta em casa para jantar. - Eva acendeu o lampião a óleo e pôs a chaminé de vidro de volta no lugar; depois ajustou a torcida, de forma que a fumaça da chama não depositasse fuligem na chaminé de vidro.
Algo na ausência de Gabe não parecia certo. Considerando todo o mal que ele havia causado, ela pensava por que havia deixado que fosse ele a pessoa a notificar Simms, o ferreiro da cidade, que servia também como agente funerário. Gabe não gostava de seu avô... e nem dela. Ele desprezava qualquer coisa de origem índia. Então por que ficara tão ansioso em ajudar?, cismou ela.
- E se ele ainda estiver em sua casa? - disse ela a Nadia. - E se ele ainda nem saiu dali?
- Ele não faria uma coisa dessas, a não ser... - A irmã fez uma pausa, franzindo a testa pensativamente.
- A não ser o quê?
- A não ser que ele estivesse bebendo. - Ela mordeu o lado de dentro do lábio inferior. - Ainda havia alguma bebida na botija que estava em cima da mesa da cozinha.
- Vamos! Vamos dar um pulo até lá. - Eva pegou seu xale de um cabide na parede e enrolou-o em volta dos ombros.
Mas a casa estava escura e silenciosa quando entraram pela porta de trás. Enquanto Eva esperava para Nadia acender a lâmpada da cozinha, ela pisou num pedaço de vidro que esmagou sob a dura sola de seu sapato. Quando a chama da torcida da lâmpada espalhou sua luz, Eva notou mais cacos de vidro quebrado no chão.
- Gabe jogou-o em cima de mim... - explicou Nadia, meio inconsciente. - Ele tinha estado bebendo. Eu não deveria ter contado a ele quando ele estava bebendo...
A irmã sempre parecia encontrar alguma desculpa para o comportamento violento do marido, mas Eva desta vez não fez nenhum comentário. Meramente olhou para a frigideira de ferro no chão e depois para a mesa vazia.
- A bebida desapareceu.
- Talvez ele tenha caído no sono no outro quarto... - Nadia pegou o lampião e, mantendo-o à sua frente, encaminhou-se para o quarto, seguida por Eva.
Mas Gabe não estava no quarto da frente nem havia qualquer indício de ter estado. Nadia foi até o quarto de dormir, mas parou de repente no limiar da porta, boquiaberta. Eva aproximou-se dela, a fim de poder ver o quarto.
Parecia ter sido saqueado. A tampa de um velho baú estava aberta, seu conteúdo espalhado pelos lados e por sobre o leito. Todas as gavetas do camiseiro se achavam abertas e parecia que alguém as havia remexido.
- Quem poderia ter feito isso? - murmurou Nadia.
Eva notou a botija colocada em cima do camiseiro e apontou-a.
- Gabe esteve aqui. É melhor verificar o que está faltando.
Nadia entrou no quarto, desviando-se das pilhas de roupas espalhadas pelo chão e colocou o lampião no camiseiro; depois começou a separar as coisas espalhadas. De repente, parou como se houvesse compreendido algo.
- O que foi? - Eva observava-a atentamente.
Nadia, porém, olhou primeiro em baixo da cama; uma expressão perdida e espantada estampava-se em seu rosto quando se levantou. As roupas de Gabe desapareceram... e sua bolsa de viagem está faltando...
- Ele foi embora - disse Eva. - As coisas do vovô... onde as terá escondido? Depressa... precisamos procurar.
Mas mesmo antes de terminarem a procura em toda a casa, ela sabia que não as encontrariam. Ele as havia roubado. Tudo se fora. Ela deveria ter sabido que não poderia confiar nele. Eva agora vira isso, agora que era tarde demais.
Ainda havia uma chance de que ele não tivesse abandonado a cidade, uma oportunidade para ela recuperar as coisas do avô. De qualquer forma, era certo que ele não havia notificado o agente funerário nem o padre Stephan. Sem parar para dizer a Nadia onde estava indo, Eva saiu de casa e apressou-se a ir até a cidade.
A sorte, porém, estava contra ela. O proprietário do posto comercial informou-a que Gabe havia partido no barco do correio, e comentou como ele estava ansioso para que o barco zarpasse. "Nem disse quando voltaria", lembrava-se o homem.
Eva sabia a resposta para aquilo: nunca! Mas não estava disposta a revelar aquilo, não para um homem. Se soubesse que Nadia e ela haviam sido abandonadas, ele tentaria tirar alguma vantagem delas de qualquer forma.
Antes de voltar para casa, procurou o padre e parou na casa do sr. Simms para contar-lhe acerca do avô e combinar o funeral.
Enterraram-no um dia mais tarde no cemitério ao lado do túmulo de sua mulher. Naquela noite, Eva reuniu seus magros pertences da casa de seu avô e mudou-se para a casa de Nadia.
Em junho, o Exército retirou-se de Sitka e do Alasca, os soldados tendo sido chamados de volta aos Estados Unidos para ajudarem a sufocar o levante de um bando de índios nez-percé liderados pelo chefe Joseph. Eva ficou contente ao ver pelas costas o último dos soldados de túnicas azuis. Ela não mais teria que tolerar sua linguagem suja e suas piadas insultuosas.
O governo militar acabara e o coletor da alfândega ficou encarregado do território. Para proteger sua área de 1.512.912 km2 ele tinha duas caixas de rifles e duas caixas de munição, que haviam sido despachadas para ele por engano. O fim da presença militar em Sitka fez com que muitas das pessoas da cidade passassem a temer um ataque dos índios e dos mestiços que viviam no Ranche e que agora bebiam e faziam badernas sem controle. Eva carregou o mosquetão do avô e manteve-o encostado na parede ao lado de sua cama. Ela não precisava de ninguém para protegê-la e a Nadia. Ela o faria sozinha.
Quando terminou o verão e veio o outono, Nadia ficou mais pesada com a criança. Mais e mais da responsabilidade pela casa caiu sobre Eva. com o dinheiro que ganhava limpando a igreja uma vez por semana, ela conseguia colocar comida na mesa, mas tinha que cortar e carregar lenha da floresta. O trabalho pesado era muito, mas Eva nunca se queixava.
Pouco após o início do ano novo, Nadia entrou em trabalho de parto. A água fervia na chaleira em cima do fogão e uma faca limpa estava ao lado da cabeceira da cama para cortar o cordão umbilical. Eva sentou-se ao lado da irmã, limpava o suor de seu rosto com um pano úmido entre as contrações, dava sua mão a Nadia para apertar quando elas vinham, e fechava os ouvidos aos gritos agonizantes.
Depois de dois dias de trabalho de parto, Nadia estava num estado de exaustão, e no entanto o bebé ainda não vinha. Ninguém jamais dissera a Eva que uma mulher podia sofrer tanto para dar à luz uma criança. Sua única experiência do processo de nascimento fora observar pequenos porquinhos nascendo e os pintinhos quebrando a casca dos ovos para livrar-se dela. Ela concluiu que Nadia certamente não sabia que seria assim. Ela não podia imaginar nenhuma mulher experimentando aquela tortura conscientemente.
À medida que as horas se passavam, ela começou a temer que algo estivesse errado. Sua irmã não poderia suportar muito mais aquele sofrimento. Custava-lhe deixá-la, mas tinha de encontrar alguém para ajudála, ou sua irmã certamente morreria. Não havia um médico em Sitka, mas Eva lembrava-se de que a sra. Karotski dera à luz sete crianças e estivera presente durante o parto de várias mulheres grávidas na cidade.
- Parece que o neném está vindo de costas - declarou a mulher quando Eva lhe contou acerca das dificuldades de Nadia. Perdeu pouco tempo para pegar seu chapéu e seu casaco, e depois acompanhar Eva de volta a casa.
Com a assistência da sra. Karotski, Eva teve sua primeira lição de um parto de nádegas. Dentro de poucas horas, tinha nas mãos um bebé vermelho e berrando, uma menina. O cabelo molhado do bebé era tão claro que parecia ser careca. Era por certo a coisa mais feia que Eva já vira - e ela adorou-a. com grande relutância, entregou-o a Nadia, para que o bebé pudesse mamar.
Enquanto observava a pequena criança sugando o seio da mãe, ela se sentia maravilhada com o milagre do nascimento. Então notou como sua irmã estava exausta, a palidez espectral de seu rosto, e os cachos despenteados e sem brilho de seu desarrumado cabelo castanho-dourado. .O fraco sorriso que Nadia brevemente dirigiu à filha recém-nascida pareceu exigir dela um grande esforço. Eva encolhia-se intimamente com a lembrança de toda a dor que a irmã tivera de suportar durante aquelas infindáveis horas do trabalho de parto. Ainda podia escutar os ecos de seus horríveis gritos.
- Vamos deixá-la agora descansar. - A gorda sra. Karotski tocoulhe no braço para afastá-la do leito onde estavam mãe e filha. - Traga aquela bacia.
A parteira indicou-lhe a bacia de trapos ensanguentados que continha a placenta. Em suas próprias mãos ela carregava outra bacia de água colorida de rosa, que havia sido usada para lavar a mãe e o bebé. Uma toalha cobria-lhe os ombros e descia-lhe pela frente de seu enorme colo. Eva hesitou um momento, depois pegou a vasilha, fazendo imediatamente um esforço inconsciente para fechar suas narinas e respirar de leve, de forma a não ter de inalar o cheiro peculiar da placenta recém-expelida. Tentou esconder o enjoo que sentia ao seguir a sra. Karotski para fora do quarto.
- Foi uma bela menina que sua irmã ganhou.
- Nadia vai passar bem?
- Tenho certeza que sim. Ela teve que enfrentar umas horas difíceis, mas irá recuperar sua energia.
- Eu não sabia que as mulheres sofriam tantas dores para ter um bebé - murmurou Eva.
- Sempre é necessário algum sofrimento para trazer uma nova vida ao mundo. Foi bom que o marido de sua irmã não estivesse aqui. Ele não o teria suportado. Um homem não pode tolerar muita dor. - A boca da parteira torceu-se num sorriso peculiar. - Se dependesse dos homens, não nasceria bebé nenhum. Eles desfrutam do prazer de gerá-los e não participam de nada do sofrimento de fazê-los nascer.
Num claro e tempestuoso domingo de fevereiro, Eva e Nadia saíam da catedral de São Miguel. Gemidos abafados eram emitidos pela criança enrolada nos braços de Nadia. Ela fez uma parada no topo da escadaria e levantou um canto do cobertor para dar uma espiada na filha recémbatizada, Marisha Gavrilyevna Blackwood. Eva objetara quanto ao uso da versão russificada do nome de Gabe, mas Nadia insistira em que a tradição fosse seguida e que o nome do meio de sua filha fosse o dele.
Todo mundo na pequena comunidade de Sitka estava ciente da prolongada ausência de Gabe. A quantidade de gente que ali vivia agora era pequena demais para que aquilo fosse um segredo. Através do encarregado do correio, sabiam que não haviam chegado notícias dele. Muita gente especulava que ele talvez tivesse morrido e Eva encorajava tais rumores.
Gostaria que Gabe estivesse aqui, para que pudesse ver nossa bonita filha - murmurou Nadia.
- Fique contente por ter se livrado dele - retrucou Eva, irritada por sua irmã ser tão estúpida de desejá-lo de volta depois de tudo o que ele lhe fizera.
Examinando a cidade dos degraus da catedral, ela via a decadência e a ruína dos edifícios abandonados, o vazio e o relaxamento de uma cidade deserta. Tinha idade suficiente para lembrar-se de como ela fora. Os homens a haviam construído e eles próprios a destruíram. Ao fim de tudo com sua ambição, eles sempre destruíam. Quando começou a descer a escadaria, Eva decidiu que sua pequena sobrinha iria saber da verdade acerca dos homens.
O velho farol em cima do castelo no penhasco certa vez guiara muitos navios para o porto conhecido originalmente como Novo Arcanjo. Agora ele se agitava loucamente, batido pelo vento.
Uma vez que se esperava que o vapor ficasse atracado durante várias horas, desembarcando sua carga e se abastecendo de combustível, Justin Sinclair aproveitou a oportunidade para dar uma olhada na velha cidade russa e esticar um pouco as pernas. Deus sabia que ele tivera pouca oportunidade de ver muitas coisas em seus 22 anos. Que paisagens poderia um homem desfrutar do tombadilho de um navio pesqueiro? Ele jurava que quando a sorte lhe sorrisse nos campos auríferos do Klondike, passaria a comer unicamente carne. Nunca mais queria sentir o cheiro de um peixe. Odiava peixe e odiava o mar. Seu pai gostava de ambos, mas ele não estava disposto a passar o resto de sua vida fedendo a peixe.
Outros passageiros de bordo do vapor haviam desembarcado antes dele, obviamente compartilhado das mesmas intenções. Um grupo de índios, na maioria mulheres, amontoavam-se em torno deles, tentando vender suas mercadorias que iam desde miniaturas de totens esculpidos na madeira até braceletes de prata e cobertores. Justin Sinclair abriu caminho com seus ombros através da turba, sacudindo firmemente a cabeça e recusando qualquer objeto exposto.
Livre da multidão, parou para dar uma olhada em volta e orientar-se. Uma montanha com o perfil de um perfeito cone elevava-se à distância. A neve ainda bordava o pico em forma de cratera de extinto vulcão, fazendo com que ela se destacasse mais claramente contra o céu azul enfeitado de nuvens.
- Poderia me dizer para onde está indo aquele navio? - A pergunta foi feita por uma mulher, sua voz com um acento estranho.
Justin recordava-se vagamente de ter visto uma mulher de pé à margem da multidão que acorrera ao cais. Ele reparara nela principalmente porque lhe havia parecido tão desmazelada, com um vestido ordinário, um xale de lã escura em volta dos ombros e um lenço escuro amarrado embaixo do queixo, cobrindo completamente o cabelo. Mas a voz da mulher agora parecia jovem. Justin virou-se com curiosidade, surpreso ao descobrir que a voz pertencia à mulher que ele havia notado mais cedo.
- Está de viagem para Mooresville.
- Ouviu falar que descobriram ouro no outro lado do passo Branco, na região canadense do Klondike? - De novo a voz traía um vigor juvenil.
- Sim, eu sei. - Justin deu uma nova olhada para ela, mas era difícil ver seu rosto.
O lenço que cobria sua cabeça estava puxado para a frente, obscurecendo-lhe os olhos, enquanto ela olhava para o navio amarrado na doca. Então ela virou a cabeça e olhou para ele. Ele ficou espantado com seu rosto. Sua cútis era lisa e brilhava como o interior de uma concha e seus olhos eram como enormes pepitas de negro carvão.
- É para lá que você vai? - perguntou ela.
- Sim. - Ele ficaria olhando para ela por muito mais tempo, mas ela tornou a afastar-se e virou-se para olhar o vapor.
- Eu gostaria de ir com ele. - Ela falou com tanta suavidade que Justin viu que não tinha a intenção de que ele a escutasse, por isso fingiu não ter ouvido.
- Você vive aqui?
- Sim - respondeu ela e puxou seu xale ainda mais apertado em torno dos ombros, parecendo encolher-se para dentro de si mesma.
- Tenho algumas horas a passar enquanto o vapor não parte. Pensei em dar uma volta pela cidade. Um dos marinheiros do navio me disse que isto costumava ser a velha capital russa do Alasca antes de nós o comprarmos. Talvez você pudesse mostrar-me a cidade.
- Não há muito para ver. - O modo como ela encolheu os ombros parecia expressar seu desagrado. - Alguns velhos edifícios caindo aos pedaços, uma igreja e um cemitério. E quase mais nada.
Quando dirigiu a vista para a cidade, ele notou a torre em agulha pintada de verde de uma igreja, no cimo da qual havia uma cruz de formato peculiar.
- Nunca vi uma cruz assim. Que espécie de igreja é esta?
- Esta é a catedral de São Miguel. É da fé ortodoxa russa.
- Por que a cruz tem aquela barra inclinada embaixo?
- Quando Jesus Cristo foi colocado na cruz, Seus pés se apoiaram na barra inferior. No momento de Sua morte Seu peso inclinou-a para um lado. - Seus negros olhos brilhavam como obsidiana. - Você deveria entrar na igreja. A ornamentação toda dourada e os ícones prateados são muito bonitos.
Justin notou que a sugestão não era oferecida com qualquer fervor religioso.
- Por que você não me mostra o interior da igreja?
- Não. Eu não poderia ir lá com você -disse ela, sacudindo a cabeça e de novo afastando-se dele.
- Por quê? - A curiosidade dele foi despertada por aquela estranha jovem. Tinha um rosto tão extraordinário que ele ficava admirado por que ela se vestia de modo tão sem graça.
- Minha tia poderia ver-me com você.
- Naturalmente ela não aprovaria você ser vista com um homem estranho - concordou ele. - Poderemos corrigir esta situação: meu nome é Justin Sinclair, originário de Seattle. E você é...?
Um brilho maroto dançou nos olhos dela ao apresentar-se:
- Marisha Gavrilyevna Blackwood. E receio que não entenda meu nome.
- Marisha Gavrilyevna. Você é russa? - Ele ficou pensando se esta era a origem do fraco sotaque que lhe dava à fala seu acento característico.
- Russa, americana, índia... eu sou um pouco de cada coisa. Ele ficou admirado pela franca admissão de sua ascendência mista, embora aquilo certamente tornasse a situação mais fácil para ele. Pelo menos sabia com que espécie de mulher estava tratando.
- Foi um prazer encontrá-lo, sr. Sinclair, mas devo ir. Quando ela deu um passo, afastando-se, ele segurou-a pelo braço, sentindo a grosseira textura do xale de lã.
- Por quê? Nós não somos mais estranhos. Eu sou Justin e você é Marisha. Como poderia sua tia fazer qualquer objeção agora?
- Minha tia faz objeção a todos os homens. Ela diz que não se pode confiar neles, que só trazem dor. Meu pai abandonou minha mãe antes de eu nascer e roubou tudo que minha família tinha. Ela insiste que todos os homens são talhados da mesma madeira.
- O que aconteceu com sua mãe?
- Ela morreu quando eu tinha onze anos.
- Que idade você tem? -Era impossível adivinhar a idade dela; tudo o que podia ver era seu rosto.
- Dezenove. Já sou uma solteirona... como minha tia é. - Um traço de amargura cruzou seu rosto, endurecendo a expressão de seus lábios.
- Nesta cidade não há muitos homens solteiros e ela conseguiu espantar os poucos que se aproximaram de mim.
- Onde está ela agora?
- Na igreja de São Miguel, fazendo a limpeza: Eu deveria estar trabalhando no jardim, mas dei uma escapada para vir até aqui. - Os cantos de seus lábios torceram-se num sorriso ao fazer tal confissão sem qualquer traço de remorso. - Ela ficará furiosa quando descobrir.
- Você vem sempre aqui?
- Não. Eu apenas queria ver o navio e descobrir para onde ele estava indo. - O olhar dela para o vapor tinha um ar emocionado.
- Como não estou fazendo nada e sua tia já vai ficar zangada com você, por que não me leva para o lugar onde você costuma ir quando escapa de sua tia?
Ela estudou-o por um momento, como se avaliando o grau de risco. Justin não duvidava por um instante que essa tia de Marisha a mantivera a sete chaves, mas a moça, evidentemente, tinha um espírito rebelde.
- Por aqui - disse ela e saiu andando.
Num passo estugado, ela contornou os limites da cidade e conduziuo ao longo da costa do lado sul do estreito pontilhado de pequenas ilhas.
Na maior parte do tempo ela mantinha a cabeça abaixada, evitando contato visual com qualquer pessoa que estivesse observando. Apenas duas vezes ele notou-a relancear o olhar em volta, para verificar se estavam sendo observados. Chegaram aos arredores da cidade, perto da floresta, quando finalmente ela diminuiu a marcha.
- Esta trilha é chamada o Caminho do Governador - disse ela.
- Dizem que Baranov costumava caminhar por aqui.
- Quem foi Baranov?
- Aleksandr Andreevich Baranov foi o primeiro governador russo do Alasca. Na verdade foi ele quem construiu Sitka. Naquele penhasco por onde passamos havia uma grande e velha mansão. Era conhecida como o castelo de Baranov, mas pegou fogo há três anos. Você viu aquele grande rochedo na praia bem diante de nós? Durante seus últimos dias aqui dizem que ele passava horas sentado ali contemplando o Pacífico. Adivinhe como se chama o rochedo...
- Rochedo de Baranov?
- Sim. - Ela riu e correu na frente dele até o rochedo. Chegando lá, parou para encostar-se contra a pedra e ficou olhando para o mar. Por mais que olhasse para ela, o pesado xale e o volumoso material de seu vestido tornavam impossível para Justin dizer se ela era gordinha ou se eram as roupas que a faziam parecer assim.
Ao aproximar-se do rochedo, os pedregulhos da praia, esmagados debaixo de seus pés, ressoavam. Embora ela não se virasse, um ligeiro movimento de sua cabeça indicava que estava consciente de sua presença, embora continuasse a olhar para a vastidão das águas pontilhadas de ilhas.
- Na primavera, quando o arenque entra nas baías e nas enseadas para desovar, os índios tlingits esperam até que a maré baixe e depois espalham galhos de cicuta nas praias que aparecem com a maré baixa, e os prendem na areia. Os arenques depositam seus ovos nos galhos. Você deveria ver! - murmurou ela. - Os galhos parecem ficar cobertos de milhares de pérolas.
- Deve ser muito interessante. - Mas peixe era o último assunto que podia interessá-lo...
- É. - Ela deu um suspiro e afastou-se da rocha. Quando virou-se para ele, levantou o braço e começou a puxar o nó do lenço em sua garganta.
- Odeio esta babushka. Faz-me sentir como se eu fosse uma babushka.
- O que é uma babushka?
- É um lenço que as velhas russas usam, de forma que a palavra significa tanto "lenço" quanto "mulher velha". Também é a palavra para avó, o que é provável que eu nunca venha a ser. - O nó a princípio desafiou seus esforços para soltá-lo; usando as duas mãos, ela finalmente conseguiu soltar as pontas e tirar o lenço da cabeça.
- Deus seja louvado! - exclamou ele, surpreendido.
O cabelo dela era de um amarelo de ouro que brilhava à luz do sol; não tinha um matiz de bronze nem era manchado com partes mais escuras, mas era puro e magnífico. O contraste entre seus olhos e sobrancelhas escuras e seu cabelo louro dourado era chocante e dramático. A sensação de choque custou a abandoná-lo, embora ele notasse quanto ela parecia divertida com a reação dele.
- Você é muito bonita - murmurou ele, sem poder conter-se. Ela sorriu com um ar estranho e afastou-se da rocha, distraidamente girando o xale em sua mão.
- A beleza é uma maldição. Isto é o que diz minha tia Eva. - A despeito de sua tentativa de parecer dar pouca importância ao que dissera, Justin notou certa amargura escondida em seu tom. - Uma moça não deve preocupar-se com sua aparência; deve vestir-se com simplicidade. Desejar parecer bonita é ser vaidosa, e a vaidade é um pecado. Essas são as únicas espécies de roupas que possuo, mas algum dia ainda terei belos vestidos para usar. Algum dia... - repetiu ela, levantando o queixo com determinação.
- Não concordo com o que diz a sua tia; ela está errada. Ninguém que tenha um cabelo como o seu deveria escondê-lo. Minha mãe sempre dizia que o cabelo de uma mulher é sua coroa de glória.
Marisha passou a mão pelo cabelo, alisando-o até o nó dourado em sua nuca.
- Sua coroa de glória... Gosto disso - murmurou ela, pensativa, e depois pareceu afastar o pensamento. - Vamos caminhar por aqui. Há alguma coisa que quero mostrar-lhe. - Ela seguiu uma trilha paralela à praia por um certo espaço, e que depois conduzia até os bosques. Justin estava por demais intrigado com ela para perceber aonde estavam indo.
Enormes árvores elevavam-se em torno deles, seus galhos superpostos impedindo a passagem de toda luz direta do sol. A umidade fazia o ar parecer pesado quando caminhavam pela trilha por dentro da floresta, suas passadas quase não fazendo barulho algum, amortecidas pelo solo macio, coberto de folhas mortas.
- Você já viu ouro? Ouro de verdade, quero dizer? - Ela não esperou pela resposta. - Uma vez eu vi. Kelly Calças Azuis é um velho faiscador de ouro daqui. Foi soldado no Exército, mas mesmo depois que deixou o serviço, ele ainda usava as calças azuis de seu uniforme; daí seu apelido. Uma vez ele me mostrou um pedaço de minério que tinha finas tirinhas de ouro dentro dele.
- Eles acharam ouro por aqui?
- Algum - disse ela, fazendo que sim com a cabeça. - Há algumas minas em Silver Bay e um moinho de ouro, mas acho que eles nunca encontraram grandes quantidades de ouro por lá. - Ela andou mais alguns passos em silêncio. - Eu gostaria de achar algum ouro.
- Ele existe lá no Klondike. Só que lá o ouro está no meio do cascalho... ouro espalhado. Tudo o que um homem tem de fazer é bateá-lo nas correntezas. Você não precisa cavar túneis ou ter uma porção de máquinas para moê-lo e liberá-lo da rocha. Apenas põe-se algum cascalho na bateia e apanha-se as pepitas. É tão fácil que até uma criança pode fazê-lo.
- Ou uma mulher... - murmurou ela como se para si mesma. Através de uma brecha nas árvores bem na frente deles, Justin viu o brilho da luz do sol refletindo numa superfície de água. Os enormes pinheiros rareavam quando o terreno caía em direção da borda da água, na ponta de terra ocupada por um emaranhado de macega alta e touceiras. A margem da água estava coberta de enormes toras de madeira carregadas pela torrente, algumas quase da altura de um homem. Quando contornaram a ponta de terra, Justin viu a desembocadura de um rio.
- Este é o rio dos índios - informou Marisha Blackwood. - O nome russo era Kolosh Rieka. Está vendo aquela ponta de terra lá atrás na floresta? - Ela apontou-a para ele. - Os kolosh, ou índios tlingits, como todo o mundo os chama hoje, tinham ali um grande forte. Este é o sítio da grande batalha entre os russos e os tlingits. Os navios russos ancoraram nesta baía para bombardear o forte com seus canhões. Meu trisavô, Zachar, era casado com uma mulher tlingit. O povo dela havia atacado o primeiro forte que os russos construíram na ilha Baranof e mataram todos, exceto alguns que conseguiram fugir. Meu trisavô foi um deles. Ele estava em um dos navios nesta baía quando os russos vieram para retomar a ilha. Ele não sabia, mas minha trisavó, a mulher dele, estava no forte com seu jovem filhinho. Eles fugiram para a floresta antes que os russos invadissem o forte. Passaram-se vários anos até que ela e meu trisavô se reunissem. - Ela virou-se, olhou para o rosto dele e depois voltou a olhar para a água. - Acho interessante saber que se o filho dela tivesse morrido naquele dia, meu bisavô, eu não estaria aqui para contar-lhe esta história...
- Você é a última de sua família?
- Não. Tenho um primo, Dimitri. Ele é pescador lá em Wrangell. De acordo com as coisas que minha tia me contou, acho que ele faz também um pouco de contrabando. - Seu ligeiro sorriso parecia indicar que ela aprovava suas atividades ilícitas, não importa o que pensasse sua tia.
- A maior parte de meus tios e minhas tias deixaram o Alasca depois que os americanos o ocuparam. Ninguém mais ouviu falar deles há anos. Creio que nos dias dos russos, Sitka era uma grande cidade. Quando eu era menina, minha mãe costumava contar-me dos elegantes bailes de traje a rigor que havia no castelo. E havia concertos e peças de teatro... - fazendo uma pausa, ela torceu sua boca num gesto zombeteiro. - Minha tia diz que no minuto que a bandeira americana foi içada no Alasca, tudo aqui piorou.
- Parece que ela não faz boa opinião dos americanos.
- Realmente não. Há alguns anos alguém sugeriu que ela deveria requerer os papéis de cidadania. Pensei que ela ia explodir... Ela ainda se considera russa. Não creio que ela goste que eu tenha nascido americana.
- E uma americana muito bonita. - Ele ainda estava maravilhado com ela e suspeitava que o traço de sangue índio em sua ascendência era responsável pelos olhos incrivelmente escuros e pelos seus malares bem definidos - talvez até pela audácia que sentia nela.
- Agora você está tentando adular-me - respondeu ela, lançando-lhe um olhar acusador e depois virando-se bruscamente. - Eu não deveria ter feito isso...
- Feito o quê? - perguntou Justin, franzindo o cenho.
- Uma moça não deve encarar um rapaz nos olhos. Minha tia diz que isso é imprudente. - Ela virou a cabeça na direção dele. - É mesmo?
- Não sei. - Ele ficou ligeiramente acanhado; aquilo era algo sobre o qual ele nunca havia realmente pensado. - Alguns podem considerá-lo audacioso.
- Não entendo como você pode conversar com alguém sem olhá-lo nos olhos de vez em quando - declarou ela, sorrindo, e depois completou: - Naturalmente que minha tia não quer que eu fale com homens.
- Fico contente por você não fazer tudo o que sua tia diz.
- Sei que ela tem suas razões por sentir-se assim. Ela contou-me algumas das coisas que aconteceram. Mas às vezes penso que ela tem ciúmes por ser tão feia que nenhum homem falaria com ela. Ela não me deixa nem plantar flores no jardim; verduras é tudo o que nós temos. "Você não pode comer flores. Então por que gastar tempo e ocupar espaço plantando-as?" diz ela. Algum dia terei um jardim e não plantarei nada a não ser flores. Estou tão cansada de tudo ser tão feio e sem graça e de nunca poder falar com ninguém. Odeio tudo!
- É assim que me sinto sobre pescar - disse Justin. - Desde os onze anos de idade que trabalhava no barco de pesca de meu pai. Fiquei enjoado do cheiro e da sujeira, de minhas roupas ficarem tão duras e cobertas com o sal do mar que poderiam até andar sozinhas; farto de trabalhar na pescaria até cair morto de cansado, depois descarregar o pescado no frigorífico-e voltar ao mar para outra pesca.
- E você desertou, apenas desapareceu, assim? - ela estalou os dedos.
- Sim. Aconteceu que eu estava na beira do cais quando o Portland atracou em Seattle. Vi quando eles desembarcaram o carregamento de ouro do Klondike, uma tonelada de ouro, valendo setecentos mil dólares! E então compreendi que desejava ganhar algum. Ali mesmo, sem hesitar, comprei passagem no primeiro navio que pude a fim de viajar para o norte. No momento em que tomei a decisão, eu a cumpri. Não havia mais nada a pensar. Eu desejava partir, então parti!
- Também quero partir - declarou ela. - Você quer me levar para o Klondike com você para eu poder batear ouro? Juro que faço tudo que me disser, se apenas me deixar ir com você.
Justin, no primeiro momento, ficou aturdido.
- Bem, gostaria que você fosse junto comigo, mas tem de pagar sua passagem. Tenho comigo algum dinheiro, mas este é para comprar suprimentos para a travessia do passo até chegar a Dawson City. A trilha é dura. - Ele duvidava que aquilo fosse algo que uma mulher pudesse enfrentar ou mesmo que ele desejasse a sobrecarga de uma mulher, não importava quão bonita ela fosse.
- Sou forte, não serei um empecilho para você - disse ela como se estivesse lendo o pensamento dele. Tenho algum dinheiro guardado. Andei pensando em pegar o navio-correio para Juneau e ver se posso arranjar um emprego lá. Mas ouvi dizer que, se a pessoa não trabalha para a Treadwell Mining Company não encontra por lá muitos empregos. Se tudo o que você tem que fazer no Klondike é apanhar pepitas na bateia então não tenho muito que me incomodar acerca de um emprego. - Ela fez uma pausa, mas ele podia ver que a cabeça da moça ainda estava funcionando; sua tensão era quase palpável. - Quanto você pensa que custaria uma passagem em seu navio?
- Não sei.
- Eu não precisaria de um lugar para dormir. Posso levar um cobertor e dormir numa cadeira ou em algum canto. E posso trazer de casa algum pão e comida, de forma que não tenha que pagar por nenhuma refeição. Do que mais necessitaria?
- Você iria precisar de algumas roupas quentes e de um casacão. O Klondike é frio no inverno. - Uma parte dele estava excitada pela possibilidade de Marisha Blackwood acompanhá-lo, embora soubesse que aquele não era lugar para uma mulher.
- Uns sapatos pesados também. Quanto tempo antes do navio zarpar?
Colocando a mão diante dos olhos, Justin tentou avaliar o ângulo do sol no céu e arriscou:
- Um pouco mais que uma hora.
- Tenho de ir em casa e arrumar minhas coisas. - Apressada, ela começou a amarrar o lenço sobre os cabelos, enquanto um sorriso brotava-lhe nos lábios:
- Apenas não irá mais ser minha casa. Você esperará por mim no cais?
- Certamente.
- Andarei tão rápido quanto puder - prometeu ela, e saiu disparada pela trilha de volta por dentro da mata, sua longa saia esvoaçando.
Justin, ao pé da escada do portaló, observava as ruas quase desertas da cidade. Atrás dele o apito do vapor soou seu último sinal para o embarque. Em lugar algum se via a moça. Ele sentiu-se um pouco desapontado, embora convencido que assim seria melhor. De acordo com todas as histórias que ele ouvira contar, a vida no Klondike era muito dura. Não fazia sentido agravar os problemas levando uma mulher. Talvez também ela tivesse tomado uma segunda resolução. Ou a tia dela talvez a tivesse apanhado. Não se podia dizer...
- Espere!
Ele ouviu o grito à distância e virou-se, dando uma parada no meio da escada. Viu-a correndo ao longo da rua em direção ao cais, seus braços carregados com vários grandes pacotes.
- Vamos andando, companheiro. Nós estamos zarpando. - Um marinheiro que estava perto das amarras no cais fez um gesto impaciente com a mão para Justin acabar de subir a escada.
- Não largue as amarras ainda. Há um outro passageiro vindo aí.
- Justin correu para baixo da escada a fim de encontrá-la e rapidamente aliviou-a de dois enormes pacotes.
- Eu pensava que não iria alcançá-lo. - Ela respirava com dificuldade e seu rosto adquirira um tom cor-de-rosa com o esforço da corrida, mas o sorriso em seu rosto era largo e alegre.
- Você quase não alcança. Vamos! Vamos subir a bordo antes que partam sem nós. - Ele fez um sinal para ela seguir na frente dele escada acima.
- Eu não paguei minha passagem.
- Eles pegam seu dinheiro a bordo do navio.
Quando o navio singrava as águas da baía para fora do porto, Marisha estava de pé no convés da popa e olhava para as docas, relembrando as incontáveis vezes em que ela ficara no velho cais e observara outros navios deixando o porto, desejando estar a bordo deles. Sair de Sitka era quase a única coisa sobre a qual sonhava nestes poucos últimos anos.
Era pouco mais do que uma cidade fantasma. Às vezes, quando caminhava ao longo das ruas, ela se sentia da mesma forma que os edifícios vazios ao seu redor - todos fechados com tábuas ou com as janelas cerradas, sozinhos e esquecidos enquanto o mundo por eles passava. Por tanto tempo ela ansiava por escapar às restrições impostas pela tia, restrições que pareciam ter apenas um único propósito, e este era o de negar-lhe qualquer prazer por menor que fosse, quer fosse um vestido bonito, uma simples flor ou a companhia de uma amiga.
Marisha ficou olhando para a espira pintada de verde da torre da catedral de São Miguel, onde sua tia Eva trabalhava, e ficou a pensar se ela ouvira o apito do vapor anunciando a partida. Duvidava.
No último minuto, escrevera uma nota para a tia e deixara-a na mesa da sala, dizendo-lhe que ela estava partindo, mas cuidadosamente omitindo seu destino. Não que esperasse que tia Eva viesse atrás dela; não o esperava. E sabia que a tia não entenderia suas razões para partir. Não importava, entretanto, o quanto ela odiasse a opressão de sua tia; ela não sentia em seu coração ódio pela mulher propriamente dita. Por causa disso, Marisha não tinha sido capaz de fugir sem deixar-lhe uma nota.
Agora estava indo mesmo. Após sonhar com isso por tanto tempo, deixava de verdade aquela feia e desolada cidade com suas constantes chuvas, aquela insípida e monótona existência, a vida acanhada e solitária, sem risos e sem beleza. E teria tudo que sempre desejara - brilhantes vestidos de cetim, bonitos enfeites e belas flores. Estava tão excitada que tinha vontade de gritar.
- Está sentindo algum arrependimento? - A voz de Justin interrompeu seus devaneios.
Marisha voltou-se, encarou de frente e abertamente Justin Sinclair, livre agora das estritas regras de sua tia. O chapéu de Justin estava puxado para trás da cabeça, revelando os cachos escuros e enrolados de seu cabelo. Ela gostava do rosto dele, a força de seu maciço queixo e o modo como seus olhos cor de mel se enrugavam nos cantos quando ele sorria – como fazia neste momento. A exposição constante aos elementos bronzeara seu rosto e queimara grande parte da maciez de sua juventude, mas resquícios disso permaneciam na lisura de suas faces e na doçura de seus lábios.
Ela tivera bem pouco contato com homens, especialmente com aqueles de idade próxima à sua. A tia cuidara disso, quase nunca deixando-a longe de suas vistas quando havia homens por perto. Mas a tia não pudera vigiá-la a cada minuto, e nas raras ocasiões em que Marisha tivera a vantagem da oportunidade de falar com um homem, jamais entendera por que todo aquele cuidado. Os homens eram seres humanos, não muito diferentes dela própria.
Enquanto estudava Justin Sinclair, Marisha pensava quanto tempo mais ela teria permanecido em Sitka se não houvesse falado com ele naquele dia. O que a fizera hesitar até agora fora não saber para onde iria ou o que faria depois de lá chegar. Mas ele respondera as duas coisas para ela: o Klondike e a prospecção de ouro. No fundo de sua mente, ela sempre soubera que fugir não bastava, tinha de correr para alguma coisa se ela um dia viesse a realizar seus sonhos.
Também compreendia que ela e Justin eram muito parecidos. Ambos estavam descontentes com sua vida anterior, ambos desejavam mais do que ela poderia dar-lhes, ambos deixavam a família para trás e ambos tinham embarcado numa aventura para o desconhecido a fim de achar seu pote de ouro.
- Nenhum arrependimento - declarou ela sem qualquer sombra de dúvida. - Este é o dia mais feliz de minha vida. - Impulsivamente, beijou-o no rosto. - Obrigada!
Mas quando recuou, as mãos dele prenderam-na. O lenço estava solto em seu pescoço, deixando que os cabelos voassem livremente com o vento do mar. Marisha olhou-o com curiosidade, observando a seriedade de sua expressão. Então, ele baixou a cabeça e beijou-a levemente nos lábios.
Ela nada disse quando ele a soltou e ficou olhando na direção da popa do navio. Mas estava consciente da presença dele a seu lado. Ela nunca fora beijada por um homem. Não tinha achado a experiência tão revoltante quanto a tia dissera que seria. Realmente o beijo tinha sido muito agradável. Os lábios dela ainda vibravam com a quente sensação de sua boca sobre eles.
À medida que o vapor navegava pelo canal Lynn acima, as escarpadas montanhas costeiras pareciam aproximar-se ainda mais e tornar-se mais recortadas e inóspitas, como venerandas sentinelas observando a passagem de intrusos lá por baixo. Aqui e ali geleiras azuladas aninhavam-se nos desfiladeiros e abismos; às vezes uma massa gigantesca de gelo chegava até embaixo, debruçando-se sobre as águas profundas do canal.
- Ali está ele - apontou Justin para um comprido e estreito vale que começava a aparecer pela proa a boreste.
Marisha esticou o pescoço para poder avistar o acampamento que fora construído no delta pedregoso na boca do rio por um antigo capitão de navio fluvial, mercador e garimpeiro, chamado William Moore, e que recebera o nome de Mooresville em sua homenagem. Ela podia ver o cais e a longa fileira de edifícios que corriam paralelos ao curso d'água responsável pela escavação do estreito canyon, entre as montanhas.
- Estou vendo. - Parecia maior do que ela esperava e seu entusiasmo cresceu proporcionalmente. Nunca estivera fora de Sitka em sua vida e aqui estava em um novo lugar, com nova gente. Deixara a antiga vida definitivamente para trás, e a vida nova estava apenas começando.
- A trilha para o Klondike sobe exatamente por aquele canyon até o passo Branco - disse Justin, apontando-a para ela. - É mais longa do que o caminho pelo passo de Chilkoot, mas disseram-me que não é tão íngreme nem tão traiçoeira.
Além daqueles picos nevados ficava o Canadá e o Klondike - pepitas de ouro e tudo o que elas podiam comprar-lhe. Ela tirou da cabeça o lenço de lã e contemplou um momento seus escuros e grosseiros fios, recordando-se de todo o tempo em que eles haviam coberto sua cabeça e arranhado sua pele. Ela o odiava e a vida sem graça que representava. Atirou-o n'água pela borda do navio. Sentiu como se estivesse se livrando de todas as estritas convenções com as quais havia sido criada. Ao observálo flutuando nas escuras águas sentiu-se livre.
- Por que você jogou aquilo fora? - protestou Justin. - Você vai precisar dele para manter a cabeça aquecida.
- Não, não vou. Nunca mais! - respondeu ela, rindo. Embrulhado dentro de seu fardo de roupas havia um velho casacão com capuz de sua mãe, forrado de pele de raposa negra. A pele em alguns lugares já estava gasta, mas o casacão ainda lhe forneceria todo o calor de que ela precisaria.
- Em breve estaremos atracando - disse Justin, afastando-se da amurada. - Vamos juntar nossas coisas de forma que estejamos prontos para deixar o vapor tão logo eles baixem a escada.
Os outros passageiros do navio pareciam ter a mesma ideia. Quando os cabos de amarração foram lançados para prender o vapor ao cais, Marisha foi empurrada por aqueles à sua retaguarda, que tentavam furar a fila.
De pé do outro lado de Justin estava um cavalheiro de aspecto elegante, vestido com um terno escuro de lã e um chapéu tipo Homburg colocado reto na cabeça, seu bigode de longas guias cuidadosamente encerado. A mala dele lembrava a Marisha aquelas que os caixeirosviajantes usavam para carregar suas amostras. Parecia indiferente aos emPurrões, mas Marisha notou que ele nunca se deslocava nem um centímetro. Quando o olhar dele virou-se para seu lado, ela começou a desviar a vista e logo lembrou-se de que não era necessário. Ele fez um sinal com a cabeça e sorriu para ela. Marisha correspondeu.
- Desculpem-me - disse ele, transferindo sua atenção para Justin -, mas vocês têm o aspecto de cheechakos... como chamam os recémchegados ao Alasca. Eu já estive aqui antes - disse e bateu na mala. Coletes para senhoras. Gostariam que eu lhes desse um conselho?
- Pois não.
- Antes de fazerem qualquer outra coisa, consigam um quarto para a noite. De outra forma se arriscarão a dormir ao relento. Há poucos leitos na cidade e eles rapidamente serão alugados.
- Obrigado, vou me lembrar disso. - Justin hesitou apenas um momento antes de responder com um sorriso.
Ele, porém, não corrigiu a hipótese errónea do homem de que eles eram casados. Marisha achou o engano divertido e quase riu maliciosamente ao imaginar a reação da tia, mas depois tentou ser mais benevolente com ela. A tia não podia evitar ser da forma que era, mas Marisha estava decidida a não imitá-la.
Quando baixaram a escada, Justin e Marisha foram arrastados pela pressão das pessoas ansiosas em deixar o navio e aproximar-se mais um pouco dos campos auríferos do Klondike. A corrente humana levou-os até a rua principal da cidade. Uma tabuleta num dos muitos edifícios com falsos frontispícios que alinhavam-se de ambos os lados da rua, dizia que o nome da cidade era "Skagway".
- Skagway? - Justin também o viu.
- É uma palavra tlingit que significa um lugar ventoso - Marisha disse. E com o longo vale do rio aluando como um canal para o vento, era por certo o nome apropriado.
Um homem gordo vestido com um avental que lhe cobria toda a frente do corpo juntou mais algumas pás à barrica que estava em frente à loja que trazia a tabuleta. Justin dirigiu-se a ele e perguntou:
- Como é que a tabuleta diz Skagway? Pensava que este lugar fosse Mooresville.
- Era... até o dia primeiro de agosto. Alguns homens que desembarcaram do Queen, liderados por um camarada chamado Frank Reid, decidiram que o capitão Moore não tinha nenhum direito de apossar-se deste vale, de forma que fizeram novo levantamento topográfico, projetaram esta cidade e venderam os lotes. O capitão os está acionando, mas, por enquanto, os senhores estão em Skagway.
A Marisha parecia que o homem havia sido espoliado de sua terra. Agora pelo menos eles tinham leis no Alasca. Nem sempre fora assim. Ela se lembrava de sua tia contar-lhe como os credores haviam tirado tudo o que seus pais possuíam e ela nada recebera, simplesmente porque não existia lei pela qual os bens de uma pessoa pudessem passar para seus herdeiros. Mas isso tudo havia mudado quando Marisha ainda era criança, em 1884, quando o Congresso votou uma resolução que provia um sistema judicial no Alasca, colocando-o parcialmente sob as leis do estado de Oregon. Ainda não havia previsão para um governo civil; o Alasca ainda não era um território, meramente um distrito, realmente um enorme distrito...
Uma carroça puxada por parelhas de cavalos veio trotando em direção a ela. Marisha rapidamente pulou fora de seu alcance e depois apressou-se para emparelhar-se com Justin, quando este começou a subir a rua. Depois da relativa quietude de Sitka, Skagway era uma babel. Carros puxados por cavalos, gente e animais de carga enchiam a ativa rua. Marisha podia sentir a febre da cidade - a febre contagiosa do ouro que se espalhava por toda parte e afetava todo mundo.
Por toda a rua homens apregoavam mercadorias especialmente destinadas aos garimpeiros de ouro que se dirigiam para o Klondike. Havia de tudo, desde roupas e ferramentas até moderno equipamento de prospecção. Várias vezes Marisha parou para escutar com os olhos arregalados a propaganda das extravagantes promessas dos vendedores.
Numa esquina de rua, um homem com uma roupa xadrez desafiava o punhado de gente reunida em volta dele.
- Experimentem sua sorte. A mão é mais rápida do que a vista? Tudo o que vocês têm a fazer é descobrir qual destas três conchas tem uma pequena ervilha embaixo dela. É isso mesmo. Chegue-se aqui, jovem. Posso ver que você tem olhos vivos. Quanto quer apostar? Um dólar e meio, um dólar? Um dólar, está bem. Qual é a concha que você acha?
Marisha não achava que o jovem magricela com uma penugem de barba e a camisa de xadrez escuro fosse da idade dela. Ele apontou para a casca do meio e lá estava a ervilha. O homem convidou-o para tentar de novo a sorte. Marisha ficou olhando enquanto o camarada continuava a jogar e a ganhar. Finalmente, ele afastou-se com dez dólares retinindo no bolso.
Todas as vezes ela soubera qual a concha que escondia a ervilha. Parecia tão fácil que Marisha tirou do bolso o lenço onde havia amarrado as poucas moedas que lhe haviam restado. Antes que pudesse dar um passo à frente para responder ao apelo do homem - "Quem vai ser o próximo a tentar a sorte?" - alguém pousou a mão em seu braço.
Ela voltou-se, os lábios formulando a primeira palavra de protesto a Justin, mas não era ele. Encarou um estranho vestido com uma discreta sobrecasaca preta, camisa branca e um chapéu preto de abas retas. Parecia um pregador. Ela já ouvira falar sobre os pecados do jogo, mas aquilo era um jogo de perícia e de olho vivo, não jogo de azar.
O estranho inclinou a cabeça ligeiramente na direção dela e murmurou numa voz baixa o suficiente para que ninguém pudesse ouvir:
- Isso é apenas um truque para tirar seu dinheiro. Espantada pela alegação dele, ela não resistiu à firme pressão sobre seu braço quando ele a afastou do grupo de homens reunidos em volta do jogo das conchinhas.
- Mas eu vi aquele rapaz ganhar...
- Você não irá ver mais ninguém ganhar durante algum tempo disse-lhe o homem. - Aquele rapaz era como uma isca viva no anzol que atrai o peixe para mordê-la. Se olhar para a frente da loja verá que ele está passando o suposto lucro para o parceiro do homem das conchas; talvez ele ganhe uns cinquenta centavos por seu trabalho. Ele é o que se chama nesse negócio de um "farol".
E, sem dúvida, quando Marisha olhou para a loja que o estranho havia indicado, viu algo sendo furtivamente passado entre o rapaz e um outro homem. Depois, o rapaz jogou para o ar uma moeda, abrindo um sorriso quando de novo a apanhou, e lá se foi pela rua abaixo. Ela voltou a olhar para o jogo que continuava e ouviu alguém resmungando. "
- Você precisa observar com mais cuidado. Vamos, tente de novo! - dizia o homem das conchinhas, incentivando o perdedor.
Ela voltou-se para o estranho, meio convencida da verdade de sua alegação e perguntou-lhe:
- Se o jogo é roubado, por que o senhor não diz para os outros? O sorriso dele destacava as profundas rugas do rosto marcado e iluminava seus olhos azuis.
- Todos os outros são homens. Se eles são bastante tolos para serem enganados, isto é problema deles. Mas não gosto de ver uma bela moça de cabelos dourados ter seu dinheirinho roubado.
Marisha ficou ligeiramente arrepiada com seu cumprimento. Ela ainda não estava acostumada a ouvir palavras de elogio à sua beleza, em vez das condenações que recebia da tia. E dava-lhe prazer.
- Obrigada, sr...
- Cole. Diácono Cole. - Ele tocou na aba de seu chapéu e inclinou ligeiramente a cabeça.
- Sr. Cole. - Ela sorriu e mudou a posição de um dos fardos de seus pertences para uma posição mais cómoda em seus braços.
- Acabou de chegar no vapor?
- Sim. Nós estamos a caminho do Klondike para achar ouro.
- A cor de seus cabelos é provavelmente o mais perto que você chegará do ouro, mas sei que não vai acreditar. Aceite meu conselho e mantenha-se afastada de jogos de conchinhas ou de dedais e do jogo do monte de três cartas. - Seu sorriso tornou-se mais pronunciado quando ele de novo tocou na aba do chapéu. - born dia para a senhorita.
- bom dia - murmurou ela e ficou a observá-lo quando se afastava, alto e de aspecto elegante em sua sobrecasaca negra de pregador. Ela afinal descartou sua desencorajadora predição e virou-se para procurar Justin exatamente quando ele saía do semicírculo de observadores do jogo de conchas. Ele localizou-a quase na mesma hora e fez-lhe sinal para juntar-se a ele.
- Vamos! - disse com ar aborrecido. - Temos de encontrar algum lugar para passar a noite.
Quando Marisha começou a acompanhá-lo, notou sua expressão meio desanimada e perguntou:
- O que houve? Alguma coisa errada?
- Não - respondeu ele, brusco. Depois, meio contrafeito, admitiu: - Sim; perdi cinco dólares ali.
- Eu estava conversando com um pregador... - Quando Marisha parou para mostrá-lo a Justin, ela o viu entrando no bar Pack Train. Ela nunca antes ouvira falar de um pregador entrando num bar; ficou tão espantada pelo que viu que esqueceu-se de acabar a frase.
- Gostaria de ter falado com ele - resmungou Justin. - Ainda teria meus cinco dólares...
Quando ela ainda estava tentando descobrir que espécie de pregadores frequentavam bares, notou duas mulheres que estavam paradas perto das portas do local. Ela conhecia o tipo de mulheres que iam aos bares. Estas, porém, não pareciam as gorduchas e desmazeladas mulheres que ela vira do lado de fora dos bares em Sitka, Seus lábios eram pintados de um vermelho escarlate, suas faces coloridas de ruge e seus olhos fortemente sombreados com kohl. Uma delas tinha o cabelo escuro como fuligem, a outra o tinha de uma cor de cenoura clara, mas ambas usavam os cabelos penteados em cima da cabeça numa massa de pequenos cachos. Suas cinturas eram bem apertadas por corpetes o que fazia seus bustos parecerem anormalmente grandes. Mas foram as brilhantes cores de suas saias de cetim que atraíram os olhos de Marisha - cores vermelhas e verdes, brilhantes como pedras preciosas. Depois que ela ficasse rica todos os seus vestidos seriam brilhantes como os delas; nada mais de sombrios e escuros marrons e azuis.
Uma das mulheres à porta do bar fumava um charuto. Marisha jamais vira antes uma mulher fumar. Pensava que era uma coisa que só os homens faziam. Quanto mais pensava acerca disso, mais achava que gostaria de tentar alguma vez e ver como era.
Sua tia certamente nunca o aprovaria; mas a tia também considerava as mulheres dos bares más e pecadoras. Mas que sabia sua tia a respeito? Ela era uma solteirona. Nunca amara um homem em sua vida, jamais permitira que um homem sequer a tocasse; não poderia saber como era. Toda aquela onda que fizera acerca de como era horrível beijar não era de forma alguma verdade. Marisha estava quase chegando ao ponto de acreditar exatamente no oposto de tudo que a tia lhe contara.
Fascinada pelo que via e ouvia nesta progressista e ativa cidade, Marisha nem ligou para o fato de precisar seguir Justin por quase a metade de Skagway à procura de pousada. Até agora todos os lugares estavam lotados. Do lado de fora do último deles Marisha arriou sua pesada trouxa no chão e ficou esperando enquanto Justin entrou.
Dentro de alguns minutos, ele apareceu na porta, fazendo-lhe sinal para entrar.
- Eles têm leitos para alugar? - disse Marisha, carregando suas incómodas trouxas para dentro da pequena hospedaria.
- Sim - disse Justin. - Seu quarto é no fim deste corredor. Ele conduziu-a ao longo do estreito corredor e parou em frente a uma das portas. Arriou seu amarrado no chão, depois abriu a porta e afastou-se para deixá-la entrar.
O quarto era pequeno; a cama ocupava quase todo o lugar, deixando muito pouco espaço para movimentar-se. Um lavatório com uma bacia e um jarro ficavam num canto do quarto. Além disso, o quarto era despido de quaisquer adornos, exatamente como fora seu velho quarto em casa. Hesitante, ela virou-se para Justin e tentou achar alguma coisa boa para dizer.
- É... é limpo.
- Sim - disse ele e entregou-lhe a chave.
- Aonde vai ficar você?
- Este era o último quarto que eles tinham - replicou Justin. vou encontrar um lugar para dormir fora daqui. É melhor ir logo me acostumando; haverá muitas dormidas ao relento quando estivermos na trilha.
- Quase me esqueci... - disse ela, puxando seu lenço com o dinheiro e começando a desamarrar seus nós. - Quanto foi o quarto?
Meio desajeitado, ele começou a balançar o corpo numa perna e na outra, e afinal disse:
- Sei que você disse que pagaria suas despesas, mas eu não me sinto bem aceitando dinheiro de uma mulher.
- Não posso ficar aqui. Já que pagou pelo quarto, você dorme aqui e eu vou lá para fora. - Pegou nas trouxas que havia colocado sobre a cama.
- Não posso deixá-la fazer isso - disse Justin, ficando de pé na porta e bloqueando-a de forma que ela não pudesse passar. - Não fica bem para uma mulher dormir assim na rua.
- É como você disse: se terei de fazer isso muitas vezes na trilha, é melhor que vá logo me acostumando.
- Faça de conta que este quarto é um presente e apenas o aceite. Em vez de comprar-lhe doces ou qualquer bobagem, comprei-lhe um lugar para dormir. Pare de discutir e fique um pouco agradecida...
- Estou grata. É que o dinheiro...
- Esqueça-se. Depois do que eu perdi esta tarde, terei de arranjar emprego de qualquer maneira. Preciso de mais dinheiro a fim de comprar os suprimentos e o equipamento necessários para a viagem. O preço do quarto não vai modificar isto.
Marisha podia sentir que ele se impacientava com ela, mas a despeito do que ele dissera, ainda não lhe parecia justo que fosse dormir debaixo das cobertas e no quente, enquanto ele dormia lá fora na noite úmida.
- A cama é bastante larga para duas pessoas - disse ela e logo notou o olhar chocado dele.
- Marisha, está dizendo para eu dormir com você? Sabe o que está sugerindo?
Por um breve momento ela não entendeu o que ele queria dizer..Então ocorreu-lhe que uma cama era um lugar onde as pessoas faziam mais do que dormir; era onde um homem e uma mulher se acasalavam. Ficou olhando para o leito, pensando no ato que sua tia tanto desprezava o ato para o qual Deus havia criado o homem e a mulher como capazes de executá-lo. Ela não confiava na palavra da tia sobre qualquer coisa. Desejava descobrir as coisas por si mesma, experimentar de tudo e decidir sobre o que era bom e o que era mau.
- Sei do que estou falando - disse ela encarando Justin sobriamente. - Quero que você fique aqui comigo esta noite.
- Marisha, eu não lhe prometi nada - ponderou ele, hesitante.
- Sei disso.
Estou a caminho do Klondike, tão logo possa arranjar o resto do dinheiro de que necessito.
- Eu sei. É para lá que também vou, para encontrar ouro. - Ela abriu o pacote no qual tinha guardado a comida que tirara de casa. Se você está com fome, posso oferecer-lhe uma refeição fria. Não é muita coisa: apenas um pouco de salmão seco, pão e queijo feito em casa.
- O pão e o queijo caem bem. - Justin arrastou seu pesado fardo para dentro do quarto e fechou a porta.
Mais tarde naquela noite quando a torcida estava acabando de queimar e a chama bruxuleava, lançando uma fraca luz que deixava o leito na penumbra, Marisha viu-se nos braços de Justin. Ela estava sentindo que o modo como ele a beijava e acariciava tinha acalmado muito sua ansiedade. Mesmo assim, não importava quanto ela estava gostando da forma que ele a fazia sentir-se, não sabia o que estava para acontecer.
Desejava que tivesse havido alguém a quem ela pudesse ter perguntado antes de ir"para a cama com um homem, alguém que pudesse ter-lhe explicado as coisas.
Seu conhecimento do ato sexual limitava-se ao nível mais rudimentar, obtido ao ver os animais copulando. Ela jamais vira o órgão de um homem, nem mesmo o de um menino. Podia apenas imaginar que ele se salientava do corpo, da mesma forma que num cão ou num touro. Ressentia-se de sua ignorância e quase queria jogar para o lado o pesado acolchoado para poder vê-lo, mas seria por demais ousado mesmo para ela tentar.
Durante os desajeitados e agitados momentos depois que ele trepou em cima dela, Marisha não sabia o que fazer. Podia sentir qualquer coisa dura procurando sua abertura e depois quando Justin a achou e empurrou aquilo para dentro dela; mas do lado de dentro havia uma resistência. Doía. No momento em que a penetração foi total, ela sentiu uma dor aguda e lancinante e teve que morder o lábio inferior para não gritar. Estava sendo levada a acreditar que neste caso talvez sua tia estivesse certa, e que não havia nada de deleitante no ato de copular, apesar dos gostosos beijos e das carícias que o precediam.
Gradualmente, à medida que ele continuava a empurrar e retirar o membro de dentro dela, a dor começou a desaparecer e a sensação de seus movimentos rítmicos tornou-se ligeiramente agradável. A cadência aumentou. Dentro de alguns momentos ele começou a gemer e a agitar-se convulsivamente; quando terminou o último estremeção, ele ficou imóvel, com todo seu peso caindo sobre ela. Depois, ele levantou-se de cima dela e rolou de lado no colchão, em aparente exaustão. No meio das pernas dela havia um fraco resto de pulsação; não era propriamente dor, mas uma vaga sensação de vazio.
- Puxa! Como foi bom! - murmurou Justin.
Marisha concluiu que não havia sido tão inadequada quanto pensara.
Quando tentou decidir-se sobre como se sentira a respeito daquilo, não pôde; na verdade não podia dizer que tinha gostado, mas também não podia dizer que detestara.
Como Marisha nunca antes dormira com qualquer outra pessoa, não sabia que um outro corpo podia armazenar tanto calor. Era como aninhar-se perto de uma lareira com carvões incandescentes. Se não houvesse outras razões, ela provavelmente teria considerado deixar que o arranjo de dormirem juntos fosse mantido só por esse motivo; mas descobrira que a segunda vez que Justin fizera amor com ela fora melhor do que a primeira, a terceira melhor do que a segunda, a quarta melhor que a terceira. A cada vez se tornara mais agradável, e sua curiosidade sexual aumentava. Envolveu-se mais ativamente, não apenas retribuindo aos toques dele, mas também tocando-o. Às vezes faziam amor duas vezes numa noite; certa vez haviam até feito de manhã, com a luz do sol nascente entrando pela janela. Depois disso Marisha não tinha mais que adivinhar pelo tato a aparência do órgão dele. Era como se afinal ela tivesse um escoadouro para todas as paixões represadas por tanto tempo e pudesse explorá-las a todas integralmente. Esse processo de descoberta demonstrou ser muito satisfatório.
Mas não podiam passar todo o tempo fazendo amor. Não. O Klondike e o ouro ainda eram sua prioridade, mas a falta de fundos suficientes forçara-os a adiar sua partida para o território canadense do Yukon. Primeiro era preciso que arranjassem trabalho para ganhar o dinheiro necessário.
Marisha teve sorte. Em seu segundo dia em Skagway, conseguiu um lugar lavando pratos numa das casas de pasto. Embora lhe pagassem muito pouco, tinha direito a uma refeição gratuita. Além disso ela sempre arranjava um jeito de escamotear alguma comida para Justin de forma que ele não tivesse que gastar seu dinheiro para comer. Mesmo assim, seu salário diário mal dava para pagar o aluguel do quarto.
Após ter passado três dias lavando pratos, um dos fregueses comentou com o cozinheiro, que era o dono do estabelecimento:
- Você está cometendo um erro, Mabe, mantendo aquela bonita pequena de cabelos louros escondida na cozinha, trabalhando como uma escrava lavando pratos sujos. Ela deveria ficar anotando as ordens lá na frente, para que os rapazes pudessem vê-la. Aposto que você duplicaria seus lucros.
E assim, com essa rapidez, ela passou de lavadora de pratos para garçonete. Ela não somente aprendeu depressa seu ofício como também aprendeu a lidar com os fregueses, quase exclusivamente homens. Depois de uma semana rodeada por homens, Marisha não podia imaginar porque sua tia os considerava uns brutamontes grosseiros, prontos para pular em cima da primeira mulher que vissem. Um sorriso ou uma palavra amável era tudo o que a maioria dos fregueses dela desejavam. Alguns pareciam solitários e desejavam conversar.
Assim mesmo toda a atenção que ela recebia dos homens era uma nova e importante experiência para ela. Agora caminhava de cabeça erguida, por fim orgulhosa de sua aparência. "Glória", eles a chamavam. Tudo começou pouco tempo depois dela iniciar seu trabalho na frente: um freguês, que estivera lá de manhã, um veterano garimpeiro, voltou ao meio-dia com um amigo e, apontando para Marisha, declarou:
- Ali está ela! Não é uma glória contemplá-la? - E o apelido pegou. Na verdade, Marisha era uma glória de mulher.
Ela enrolou um pano em volta da alça da cafeteira para proteger sua mão do calor do metal, depois pegou-a e começou a andar pelas mesas enchendo as canecas com um segundo serviço. Ao lado da cadeira do pregador parou e, com um sorriso fácil, perguntou:
- Mais café, sr. Cole? - Embora só tivesse estado no restaurante duas vezes desde que ela ali trabalhava, ele não era da espécie de homem que se pudesse esquecer.
Ele fez que sim com a cabeça e avançou sua xícara para que ela pudesse enchê-la. Como de hábito ele estava vestido com seu sombrio paletó preto e camisa branca engomada. Ela nunca o vira usar outras roupas, e no entanto ele sempre parecia correto e asseado. Ela reparava especial mente em suas mãos; elas eram lisas e pálidas, sem manchas de graxa e grossas de calos como as da maioria de seus fregueses. Debaixo das unhas curtas dele não havia sombra de sujeira.
- Ei, Glória! Traga este pote de café para cá! Queremos um pouco mais. - O pedido foi berrado do outro lado do salão. Marisha nem precisou virar-se e olhar para reconhecer a voz de um dos brigões, de pele curtida como couro, um dos tropeiros da cidade.
- Já vou, Curly - respondeu ela, e depois perguntou ao pregador:
- Precisa de mais alguma coisa?
- Não; isto é o bastante. - Ele pegou a caneca de café e inclinou a cadeira para trás enquanto Marisha cruzava a sala.
O pregador sentava-se sempre na mesma mesa de canto e na cadeira em frente à porta, sempre sozinho.
Quando chegou à mesa de Curly, ele estendeu a caneca para ela enchêla. Um gorro com protetor para as orelhas cobria-lhe a cabeça e escondia seus ralos cabelos crespos. Marisha duvidava que Curly tivesse muito mais de trinta anos, mas ele já estava ficando calvo. Ela olhou para os dois homens que o acompanhavam, mas não reconheceu nenhum dos dois.
- Você tem um sorriso para adoçar este café para mim? - perguntou Curly.
Ela sorriu para ele quando voltou-se para servir café nas canecas de seus companheiros. Embora consciente de seus olhares gulosos, já estava quase acostumada com isso.
- Você trabalha duro demais neste lugar - declarou Curly.
- Uma moça tem que ganhar a vida.
- Se ganhar a vida é a única coisa que mantém você aqui, podemos resolver este problema, não podemos, rapazes? - disse Curly, sorrindo para os amigos.
- Pode apostar nisso - replicou o homem de barba desgrenhada, sentado na cadeira mais próxima de Marisha. - Você poderia mudar-se para nossa cabana. Assim, teria um lugar para dormir e muita comida também. E não se sentiria solitária, pois estaríamos ali para fazer-lhe companhia.
- Já disponho dessas coisas. Desculpem-me. - Sugestões semelhantes já lhe haviam sido feitas incontáveis vezes, vezes demais para ela considerá-las ofensivas.
- Uma moça bonita como você necessita de alguém para protegêla e mantê-la afastada de coisas ruins - insistiu ele. - Alguém como nós.
- Desculpem, rapazes, mas já estou comprometida - disse Marisha, sorrindo enquanto enchia a caneca do segundo homem.
- Eu não disse a vocês? - comentou Curly. - Ela já arranjou um amiguinho.
O terceiro homem estendeu seu caneco. Quando ela cruzava a mesa com a cafeteira, o homem barbado enlaçou-a pela cintura e puxou-a de encontro a si, quase fazendo com que errasse o caneco do outro e derramasse o café na mesa.
- Ele não pode ser lá muito homem se você tem que trabalhar num lugar como este - disse o barbado.
De alguma forma Marisha conseguiu manter o equilíbrio e replicou:
- Tome cuidado, moço. O café está quente. - Ela levou a mão às costas para livrar-se da mão na cintura, mas ele apertou-a ainda mais.
- Se quisesse mudar-se para nossa cabana, você poderia largar esta droga. - E sorrindo sugestivamente, ele acrescentou: - Você sabe que mais de perto fica ainda mais bonita?
- Fico contente em sabê-lo. Agora quer fazer o favor de me largar? - Ela continuava a puxar a mão dele, firme mas pacientemente, tendo aprendido por experiência que essa era a melhor maneira de lidar com essa espécie de inofensivo abuso. Ficar zangada invariavelmente provocava os homens e fazia-os insistirem.
- Moça - chamou o pregador. - Mudei de ideia; gostaria de pedir meu desjejum.
- Já vou lá - prometeu ela e depois olhou com firmeza para o homem que a estava segurando. - Você se incomoda? Tenho um freguês esperando.
- Viu? Se vivesse conosco não teria que estar pulando ao chamado de qualquer homem. Ora, cuidar das necessidades de nós três não seria tão duro quanto trabalhar neste lugar, e muito mais divertido. Nós nos encarregaríamos disso, não é, rapazes?
- Sim, nós a manteríamos entretida - disse com um risinho o terceiro homem.
- Por certo que vocês fariam - retorquiu Marisha, adivinhando exatamente em que espécie de entretenimento eles estavam pensando. Mas prefiro ficar com meu emprego. Bem, você quer retirar sua mão ou tenho que escaldá-lo com este café fervendo?
- Ei, isto não foi lá muito amável... - ameaçou ele.
Do outro lado do salão, uma cadeira caiu sobre suas quatro pernas, fazendo um barulho surdo. O Diácono Cole ficou de pé num movimento suave e elegante e caminhou devagar até a mesa deles, parando perto dela.
- Moço, vou pedir-lhe só uma vez para soltá-la.
- Não me recordo de alguém tê-lo convidado para juntar-se a nós.
- O homem barbudo apertou o braço em volta de Marisha. - Por que você não volta para sua mesa e cuida de sua vida?
- Estou cuidando de meu negócio - replicou o pregador. - Estou com fome e quero qualquer coisa para comer, e não vou consegui-lo enquanto essa moça não anotar meu pedido. Você já tem seu café. Por que não o bebe e deixa a moça ir trabalhar?
- Acontece que estou ficando meio enrabichado por ela. - E ele deu um ligeiro apertão em Marisha, como se para reafirmar seu direito sobre ela.
Marisha achou que aquilo já estava indo longe demais e disse.
- Curly, diga a seu amigo para me soltar. Tenho serviço a fazer.
- Sugiro que faça como a moça está dizendo - disse o pregador com um sorriso agradável. Pelo menos parecia agradável até que Marisha notou o pequeno revólver que aparecera quase que por magia em sua mão.
- Costumo ficar irritado quando estou com fome...
- Não há necessidade de criar um caso por isso... - murmurou o homem meio sem jeito, largando a moça.
Marisha logo afastou-se da cadeira dele, olhando para o revólver de cano curto, chocada por ver uma tal coisa na mão de um ministro. Quando ele afastou-se da mesa, ela o viu enfiar a pequena e mortal arma na manga do paletó. Não pôde deixar de pensar que era um lugar estranho para guardar uma arma, enquanto o seguia até sua cadeira no canto da sala.
- Depois disso creio que é melhor pedir alguma coisa - disse ele, voltando a sentar-se com um leve sorriso. - Não gostaria de passar por mentiroso. Quero uma pilha de panquecas. - Marisha franziu a testa à inferência dele de que tudo tinha sido um pretexto. Notando a expressão da moça, ele virou a cabeça. - Será que acabei de cometer um erro? Ele falava com uma voz baixa que somente ela podia ouvir. - Tive a impressão de que você não estava contente com as atenções deles.
- De fato não estava, mas ele não queria me fazer mal. A maior parte dos camaradas aqui só vão até onde a gente permitir.
Ele estudou-a com uma quieta curiosidade.
- Pode ser que você não seja tão inocente quanto pensei.
- Há uma porção de coisas que não sei, mas estou aprendendo depressa. Os homens gostam de conversar; isto foi uma das primeiras coisas que aprendi. Mas eles não cumprem seriamente a metade do que dizem. Foi bondade sua interferir, mas realmente não era necessário.
Ela desejava tornar claro que estava feliz ali e que não precisava de nenhum bom Samaritano intervindo, por mais bem-intencionado que fosse. Gostava dos homens que frequentavam o lugar, que falavam e brincavam com ela. Nunca ficara ofendida por nada que tivessem dito ou feito, nem havia considerado seu comportamento reprovável.
Ela afastou-se da mesa daquele pregador que tinha ideias tão peculiares acerca do que era certo e do que era errado. Obviamente, ele acreditava que a havia resgatado de uma situação desagradável em duas ocasiões, e entretanto carregava um revólver escondido e frequentava bares.
- Quero uma pilha de panquecas, Mabe - disse Marisha ao cozinheiro e proprietário, e depois entrou na cozinha superaquecida. - O senhor conhece um pregador chamado Cole?
- Pregador? - Ele deu um risinho e afastou-se do fogão, limpando o rosto com um pano já molhado. - Eu me arriscaria a dizer que o único evangelho que o Diácono conhece é o evangelho de Soapy Smith.
Marisha franziu a testa. Soapy Smith era um nome que ela ouvira, associado a um bando de trapaceiros e vigaristas que assaltavam os que passavam pela cidade com os bolsos cheios de dinheiro a caminho do Klondike.
- O senhor quer dizer que o Diácono Cole não é um pregador? concluiu Marisha.
- Longe disso. Ele é um craque do baralho, um jogador profissional. Quem quer que seja bastante tolo para sentar-se num jogo de pôquer ou de faro com ele merece perder seu dinheiro. O pessoal chama-o de Diácono por causa do modo como se veste, mas o jogo é sua única religião.
- Qual é então seu verdadeiro nome?
- Quem é que sabe? - Ele encolheu os ombros, -- Ninguém aqui usa seu verdadeiro nome, ou muito poucos, se é que há alguns.
- Por quê?
- Porque aqui não importa muito quem ou o que as pessoas eram "lá embaixo" - disse ele, usando um termo local para designar os Estados Unidos. - Aqui um homem pode colocar uma grande distância entre ele próprio e seu passado e começar uma vida nova.
Com este comentário, Marisha começou a pensar. Ela havia começado uma nova vida, mas mantivera o antigo nome. Marisha Blackwood era a moça que tinha usado lenço na cabeça e roupas discretas, a quem não era permitido conversar com homens ou olhá-los nos olhos, que raramente havia sorrido ou dado uma risada. O que realmente precisava nesta nova vida era de um novo nome. Ela havia mudado e estava na hora de mudar também seu nome. Mas para qual?
Naquela noite ela sentou-se acocorada na cama e desembrulhou os restos de carne que havia surripiado do restaurante e escondido nos grandes bolsos de sua velha saia marrom, junto com meia bisnaga de pão. Espalhou o papel de embrulho sobre o colchão, para que Justin pudesse servir-se. A cama rangeu ruidosamente quando ela se virou para vê-lo partir o pão em duas partes.
- vou mudar meu nome. - Ela mal podia conter a excitação que sentia sobre sua recente decisão. - Ainda não decidi qual será meu novo nome; mas não vai ser nada que pareça russo. Quero um nome que seja especial. O que você acha? - Ela pegou um pedaço de pão que havia caído sobre o papel e ficou a mastigá-lo pensativamente, por demais absorvida na tarefa de escolher um nome para reparar no silêncio dele. Tem alguma ideia a respeito, Justin? - Quando não recebeu nenhuma resposta, ela franziu os olhos para ele e perguntou: - Justin, você está me ouvindo?
Ele continuava sentado, sem tocar no pão nem nos pedaços de carne. A segunda pergunta finalmente acordou-o de seu meditativo silêncio e ele resmungou:
- O que você disse? - Mas foi uma fraca tentativa de fingir interesse.
- Você não estava me escutando, não é? - Nos últimos dois dias ele se mostrara extremamente rabugento e deprimido por causa de seu fracasso em encontrar um emprego que pagasse bem. Ela estava ficando cansada de seu silêncio e de sua desatenção, que só acabavam quando as luzes eram apagadas e eles iam para a cama. Ele deixou cair o pão com a carne no papel e depois levantou-se e dirigiu-se até a janela ao lado do lavatório. - Depois de tudo que fiz para arranjar isso, você não vai comer?
- Não estou com fome - disse ele com o rosto encostado nas vidraças escurecidas pela noite, as mãos enfiadas profundamente nos bolsos das calças.
- O que há de errado agora? - suspirou Marisha.
- Você já notou que as folhas começaram a amarelar nas árvores da montanha?
- Não. Está escuro quando vou para o serviço e escuro quando saio.
- Na verdade, ela não" estava ligando se as folhas estavam mudando de cor ou não.
- Não sabe o que isto significa? - perguntou Justin, voltando-se para ela.
- Por que não me diz? - Ela cruzou os braços em frente ao peito, num gesto que era ao mesmo tempo tolerante e de desafio.
- Estou ficando sem tempo. Se não partirmos em breve para o Klondike, vai ser muito tarde na estação para fazer a viagem. Eu poderia ficar preso aqui em Skagway durante o inverno. - Ele virou-se de novo para a janela e ficou olhando para os vidros escuros. - Um inverno inteiro perdido! - Ele bateu com a palma da mão no vidro. - Preciso arranjar o dinheiro de que necessito! De alguma maneira preciso dar um jeito de ir para lá.
- De quanto ainda necessitamos?
- Eu poderia arranjar-me com mais dez dólares, mas do jeito que vamos indo poderia ser da mesma forma cem dólares.
- Talvez eu pudesse arranjar outro emprego.
- Fazendo o quê? E quando? Você já trabalha do raiar do sol ao anoitecer - lembrou-lhe ele.
- Eu poderia trabalhar algumas horas durante a noite, fazendo limpeza ou lavando o chão.
Ele voltou-se da janela, ficando de frente para a cama onde ela estava sentada.
- Vamos encarar as coisas, Marisha. Só há uma espécie de trabalho noturno que uma mulher pode fazer e que resultaria na espécie de dinheiro de que necessitamos! - Ele caminhou em direção à porta e agarrou seu casaco no cabide na parede quando passou por ele. - vou sair para apanhar um pouco de ar. - Escancarou a porta e depois disse: Não me demorarei muito.
Sentada sozinha no desolado quarto, Marisha ergueu os joelhos até descansar neles o queixo, enrolou a saia longa por cima dos pés calçados de meias. Ela sabia a que espécie de serviço noturno se referia Justin. Sabia que prostitutas ganhavam a vida cobrando dinheiro por seus favores. Se antes não estivera muito certa acerca do que isto queria dizer, agora o sabia.
Fechou os olhos e começou a lembrar-se do aspecto daquela amostra de minério e dos brilhantes salpicos de ouro que corriam por dentro dela. Os riachos no Klondike tinham pepitas de ouro do tamanho de calhaus em seus leitos de cascalho. Em sua imaginação, ela pintava aquela visão e tentava sonhar como seria juntar com a pá um punhado de cascalho e pegar dele as brilhantes pepitas de ouro.
Durante dois dias não conseguiu pensar em mais nada. Prestava atenção a qualquer retalho de conversa no restaurante que mencionasse os campos auríferos do Klondike. Parecia que todo mundo estava indo para lá, exceto ela. Receava que encontrassem todo o ouro antes que ela e Justin lá chegassem.
Quando saiu do restaurante, parou do lado de fora do prédio e escutou o barulho da fechadura da porta atrás dela. Prendeu a gola do casacão forrado de pele em volta do pescoço, mas não levantou o capuz para cobrir a cabeça. Cansada e com os pés doendo após um longo dia de trabalho, começou a descer a rua pela calçada de tábuas em direção à pensão.
A comprida rua estava sem o tráfego diário habitual de barulhentas carroças puxadas por parelhas de cavalos e mulas. A maior parte da atividade da cidade ocorria agora no interior de bares e casas de jogo pelos quais passava. Podia escutar um piano de som metálico tocando uma música de ragtime e a voz de um homem encorajando os outros: "Façam suas apostas!" Havia um constante murmúrio de vozes ao fundo, às vezes acentuado por risos e gritos exultantes. Através dos vidros meio sujos de algumas das janelas, podia ver as pequenas dos bares dançando com os fregueses. E sempre podia ouvir o tilintar de moedas. Dinheiro! A coisa que ela e Justin não tinham, a coisa que desejavam, aquilo de que necessitavam.
Seus passos faziam um barulho surdo enquanto caminhava pela calçada de madeira, seu caminho iluminado intermitentemente pelas manchas retangulares de luz que se projetavam das janelas dos bares. Três homens evidentemente bêbados saíram aos empurrões de uma porta de um salão logo à sua frente. Um deles reparou nela; quando todos se viraram para examiná-la, ela reconheceu Curly, e seus dois acompanhantes do outro dia no restaurante.
- Olhem só para isso! - É a nossa pequena Glória! - O homem barbudo imediatamente tirou seu chapéu num cumprimento, e não parecia tão relaxado como no primeiro dia em que ela o vira. Sua barba estava caprichosamente aparada e o cabelo repartido no meio. Quando se aproximou deles, notou que Curly tinha uma camisa limpa.
- Boa noite! - Ela inclinou a cabeça para eles, continuou andando e passou pelo bar, mas eles se voltaram e começaram a andar com ela.
- O que está fazendo, andando pela rua sozinha? Onde está aquele seu amiguinho? - perguntou Curly. - Ele devia estar por aqui para assegurar-se que nada de ruim lhe aconteça.
- Parece que não há necessidade de ele estar por aqui. Tenho vocês três para me escoltarem em segurança até minha pensão - disse ela, sorrindo.
- Se você fosse nossa pequena, nunca correríamos um risco desses - insistiu o terceiro homem.
- Por que, em vez de irmos para sua pensão, não levamos você para nossa cabana? - sugeriu o barbudo. - Garanto que será muito mais divertido.
Marisha ignorou a observação, como ela sempre fazia, mas depois, num momento de ousadia, parou e virou-se para encarar os três eventuais acompanhantes.
- Vocês realmente querem que eu vá para sua cabana?
- Claro! - exclamou o barbudo, apanhado de surpresa.
- E se eu fosse, quanto vocês me pagariam? - perguntou ela. Eles ficaram de boca aberta enquanto observavam-na sem poder dizer nada. Adivinhou no silêncio deles uma rejeição. Logo tentou voltar atrás, sentindo uma vermelhidão de vergonha queimar-lhe o rosto. - Foi somente uma brincadeira, não foi? Vocês realmente não estavam falando sério disse amargamente e começou a afastar-se.
No mesmo instante, eles correram atrás dela.
- Estávamos falando sério. Juramos que sim. É que nunca pensamos que você fosse uma... - Curly parou no meio da frase.
- Sim... Nunca suspeitamos que você fosse da espécie que ... ora, deixa pra lá... - O terceiro homem também não podia encontrar as palavras. - Nós apenas não sabíamos.
- Queremos que você vá para nossa casa, não queremos, rapazes? O barbudo insistiu. - Nós pagaremos.
Marisha parou de novo e esperou que eles se aproximassem.
- Quanto?
- Bem... - O barbudo mexeu-se meio sem jeito e deu uma olhada para seus companheiros. - Em geral custa três dólares, mas, como somos três, isso faz nove dólares.
- Quero dez dólares - replicou ela, sentindo a garganta seca.
- Negócio fechado - disse Curly, limpando a mão nas pernas da calça e depois estendendo-a para apertar a mão de Marisha.
- Fechado! - Quando ela pegou na mão dele, Curly deu-lhe uma sacudidela que quase lhe arranca o braço.
- Upa! - O barbudo deu um grito triunfante; depois virou-se para o terceiro membro do grupo e deu-lhe uma palmada nas costas que o empurrou em direção à porta do bar.
- Hank, vá pegar uma garrafa para nós. Vamos fazer uma farra esta noite, não é verdade, Glória? Ora, você sabe de uma coisa? Nós nem sabemos seu nome.
- Você acabou de dizê-lo. Meu nome é Glória.
- Glória? Ora, raios me partam! Você sabia disso, Curly?
- Certamente que não, mas o nome combina muito bem com ela! Marisha sentia as pernas meio fracas e um nervoso em seu estômago.
Entretanto, não tinha quaisquer dúvidas acerca daquela decisão. Não voltaria atrás, não se arrependeria. Fora exatamente como quando ela havia partido de Sitka. Se ela e Justin um dia quisessem chegar ao Klondike e encontrar aquele ouro, precisavam de dinheiro. E o tempo corria. Essa era a maneira mais rápida e segura de arranjar os dez dólares de que necessitavam, o próprio Justin o dissera. Agora que havia-se decidido, Marisha estava comprometida, não olharia mais para trás.
As frestas das paredes da casa grosseiramente construídas estavam calafetadas com papéis para evitar que o vento penetrasse por elas. O único quarto media uns três metros por três metros e meio, e tinha apenas uma janela. Curly apressou-se a acender o lampião e começou a acender o fogão com o formato de uma barrica. Julgando pela panela de feijão quase vazia e pelos pedaços de carne em cima dele, Marisha achou que o fogão era usado tanto para aquecer como para cozinhar.
Dois beliches de duas camas, uma em cima da outra, ficavam numa das paredes; no outro canto ficava uma cama estreita. Um par de barricas e um caixote de madeira serviam de cadeiras para a mesa grosseira ao lado da janela. Todos os três homens ficaram ao lado da mesa quando o homem chamado Hank desarrolhou a garrafa de uísque e serviu uma generosa dose em cada uma das três canecas de estanho alinhadas na mesa.
Enquanto os observava, uma voz interior avisou-a e ela falou:
- Rapazes! Primeiro quero ver o meu dinheiro!
Ela não sabia de onde lhe viera aquele aviso; talvez do edito exaustivamente repetido por sua tia de que não se podia confiar nos homens. De qualquer forma, não queria ser lograda naquilo que por todo direito era seu.
Eles hesitaram por um momento, e depois começaram a meter as mãos nos bolsos. Quando reuniram seu dinheiro até chegar aos dez dólares requeridos, houve um breve debate acerca de qual deles teria que pagar mais, já que dez não podia ser dividido em três partes iguais; o problema, no entanto, foi rapidamente resolvido.
- Aí tem o dinheiro, Glória - disse Curly, deixando as moedas caírem em suas mãos reunidas em concha. - Dez dólares de prata.
Fechando-os na mão, ela se dirigiu para a cama que ficava no canto. Eles tinham cumprido o trato e, não importa quão rápido batesse seu coração, ela sabia que chegara a hora de cumprir sua parte. Tirou o quente casacão e enfiou as moedas num de seus profundos bolsos; depois colocou-o no beliche debaixo, que ficava próximo. De costas para os homens, tirou a blusa e a comprida saia e colocou-as em cima do casacão. Continuando a despir-se, colocou mais uma saia de baixo de lã e uma camisa de mangas compridas em cima da pilha de roupas. Não usava corpete. Sua tia sempre olhara essa peça de roupa como algo destinado a exibir as formas, e portanto proibida. Vestida apenas com uma camisola e um par de calças de flanela, ela virou-se para encarar os homens de olhos arregalados. Cheia de determinação, ela ignorou as batidas de seu pulso e disse:
- Quem vai ser o primeiro? - E começou a desabotoar a frente da camisola.
- Eu - declarou o barbudo. Rápido, ele bebeu o resto do uísque de sua caneca e limpou a boca com as costas da manga. Deu um puxão nas calças para cima, pela cintura, e dirigiu-se meio cambaleante em direção à cama. Um largo sorriso surgiu em seu rosto enquanto gritava para seus companheiros.
- Lá vou eu para a glória, rapazes! Lá vou eu para a glória!
As moedas retiniam em seu bolso enquanto ela andava apressada pelo corredor em direção a seu quarto. Nenhuma réstia de luz aparecia por debaixo da porta. Ela chamou mansamente "Justin", e depois experimentou a maçaneta. Ela não se mexeu. Consciente da hora tardia, esperava que ele não tivesse saído para procurá-la. Estava ansiosa em dizer-lhe que tinham o dinheiro para seguirem rumo ao Klondike; procurou nos bolsos e encontrou a chave com a qual abriu a porta e pôde entrar no quarto às escuras.
Uma fraca luz vinha da janela e revelou-lhe um objeto comprido e volumoso em cima da cama. Sem parar para acender o lampião, ela dirigiu-se ao leito dizendo:
- Justin, seu malandro, você poderia ter esperado por mim! - Mas quando tentou sacudi-lo para acordá-lo, encontrou apenas roupa, uma porção de roupa e nenhum corpo.
Afastou-se do leito, desejando saber onde ele estaria àquela hora. Concluiu que talvez ele houvesse encontrado algum trabalho, enquanto procurava no escuro pelos fósforos e acendia o lampião. A luz do lampião revelou-lhe que as coisas espalhadas desordenadamente no leito pertenciam a ela- Sabia muito bem que haviam sido cuidadosamente arrumadas no canto Quando saíra para o trabalho naquela manhã. Alguém estivera no quarto. Apressou-se em direção à cama para ver se algo estava faltando.
Quando começou a remexer nas coisas, ouviu um barulho de papel e descobriu uma folha. A nota grosseiramente rabiscada era quase ilegível. Quando viu que estava endereçada a ela, rapidamente olhou para a assinatura: "Justin Sinclair". Por um instante, ficou olhando para as letras maiúsculas e depois lembrou-se de que Justin certa vez lhe dissera que não terminara o colégio, e que, em vez disso, fora trabalhar na traineira de pesca de seu pai. Voltou para o início da nota e começou a lê-la em voz alta.
- "Querida M. Desculpe-me por não ter tido tempo de vê-la antes de partir." - Partir? Ela ficou olhando chocada para a última palavra e depois continuou a ler, apressada: - "Consegui um serviço, levando uma tropa de carga para Dawson; tomei o lugar de um homem que foi despedido por ter-se embebedado. Esta é minha chance de ir para os campos auríferos. Sabia que você entenderia..."
Embora houvesse mais no bilhete, ela parou de ler e sentou-se na beira da cama, as moedas de prata tilintando em seu bolso. Seus dedos amarrotaram o papel. Ela entendia muito bem. Entendia que ele a havia abandonado.
Recomeçou a ler, sua voz tremendo com a raiva que sentia com a traição dele:
- "Precisava de um cobertor e peguei o seu." - Ela começou a procurar por entre a pilha de suas coisas, jogando-as apressadamente pelo quarto. O cobertor estava faltando, bem como os sacos de farinha, de feijão e de sal que trouxera da casa de sua tia. Fervilhava de raiva por dentro quando voltou a pegar a nota: - "Não tive tempo de comprar suprimentos. Pagarei a você. Voltarei quando estiver rico." Isto era tudo, além do seu nome no final da folha. Ela amassou o pedaço de papel nas mãos, transformando-o numa bola.
Ele disse que me levaria. Disse que gostava de mim. Depois se lembrou: "Eles sempre vão embora." Tia Eva costumava dizer isso. "De pois que tomam de uma mulher o que desejam, eles se vão, abandonando-a."
Num acesso de raiva, atirou a bola de papel para o outro lado do quarto e levantou-se. O súbito movimento agitou as moedas em seu bolso. Enfiando a mão nele, tirou-as e ficou olhando para elas, lembrando-se do que fizera para ganhá-las. Na ocasião não parecera tão terrível. Não fora tão maravilhoso como quando Justin fazia amor com ela, mas também não esperava que fosse. Talvez o que tinha feito fosse errado; talvez a deserção de Justin fosse uma punição. Ela sentia-se toda confusa no íntimo, zangada e ferida, confusa sobre o certo e o errado.
Deixou que as moedas escorressem por entre os dedos em cima da cama, depois removeu o pesado casacão e jogou-o ao pé do leito. Ficou encarando as dez brilhantes moedas de dólar amontoadas em cima do cobertor.
"Se tivesse esperado, Justin, você poderia ter ficado também com o dinheiro." Ela o teria dado a ele. Ela o amava e esperava que fossem juntos para o Klondile. Por isso fizera aquilo.
Talvez, se lhe tivesse dado o dinheiro, ele a teria deixado de qualquer maneira. Talvez não a amasse. Não estava mais certa acerca de coisa nenhuma - exceto que dez dólares era mais dinheiro do que jamais tivera em toda a sua vida, mais do que poderia ganhar trabalhando no restaurante uma semana inteira. E ela os ganhara em duas horas, com muito menos trabalho físico. Não era o bastante para levá-la até o Klondike, mas ela não estava pensando em ir para lá agora.
Quando ajeitou a saia para se sentar na cama, sentiu como a fazenda era grosseira e compreendeu que tinha dinheiro suficiente para comprar um jogo completo de roupas: colete, camisola, calções, blusas, camisas, saias de baixo, cinto, e que ainda lhe sobraria algo. Podia jogar fora as horríveis e desgraciosas roupas que pertenciam a Marisha Blackwood a mulher que jamais voltaria a ser.
Justin se fora e ela jurava que não iria mais olhar para o passado. Esta era uma vida nova. E teria roupas novas e um novo nome. De agora em diante ela era Glória... Glória... Ela parou para pensar num sobrenome especial. Em deferência a Justin, pela ajuda que ele lhe dera ao estabelecê-la neste novo caminho, e involuntariamente fornecer-lhe os fundos para a nova vida, ela decidiu que seria correto adotar uma variação do nome dele. Deste momento em diante, ela se chamaria Glória St.Clair.
Preguiçosamente Glória levantou-se um pouco na cama para ficar reclinada sobre os travesseiros encostados na cabeceira, e depois puxou o cobertor para encobrir os seios nus. Não era uma tentativa de falso pudor por causa do homem que se ocupava em puxar para cima dos ombros seus suspensórios bordados, porém mais uma tentativa de proteger-se do frio que reinava no cómodo devido ao ar encanado. Seus longos cabelos estavam espalhados e soltos sobre seu pescoço e seus ombros. Distraída, ela enrolava um de seus cachos dourados em volta do dedo indicador enquanto observava o homem enfiar seu casaco e depois pegar seu chapéu tipo "diplomata" pérola-acinzentado.
- Vou aceitar agora aquela moeda de cinco dólares. - Ela estendeu a mão para a moeda de ouro que ele lhe mostrara antes e que prometera pagar-lhe depois que ela tivesse ido para a cama com ele. Suas roupas, suas jóias, suas maneiras, tudo nele cheirava a dinheiro. Só por isso não ? insultara, insistindo em que ele pagasse adiantado.
- Gostei muito da trepada, Glória. Realmente gostei. - Ele tirou a moeda do bolso do colete e mostrou-a a ela. - Este é todo o dinheiro que tenho. Não me é possível dá-lo a você.
- Mas você combinou!
- De fato combinei. Infelizmente terei de voltar atrás em minha palavra. Nessa apertada bocetinha que você tem, está sua própria mina de ouro, srta. St.Clair. Não é provável que morra de fome como eu certamente morrerei. - Ele enfiou a moeda no bolso, tirou o chapéu para ela e disse: - Boa noite!
Enquanto ele caminhava para a porta, o choque inicial pela sua audácia transformou-se em indignação. Ela pulou fora da cama, gritando:
- Volte aqui! - Nos dois meses em que ela tinha deixado o serviço no restaurante e se dedicara em tempo integral a vender seus favores, este não fora o primeiro homem que se recusara a pagar.
Quando chegou na porta, ele já ia pelo meio do corredor. Dificilmente poderia persegui-lo na rua, quando tudo que lhe restava em cima do corpo eram suas meias de seda azuis e as ligas de estilo parisiense, artigos que o freguês que agora fugia pedira para não tirar. Apressadamente, ela enfiou suas calças bordadas de renda e seu corpete, depois calçou os sapatos bicudos e pegou o velho casacão forrado de pele que estava pendurado no cabide da parede. com o casacão encobrindo seu estado de seminudez, Glória correu pelo corredor e para fora da pensão.
Uma camada de neve recém-caída cobria a rua e mais flocos flutuavam e caíam, enfeitando o ar noturno. Não podia enxergar em lugar algum seu freguês, mas viu as pegadas que ele deixara na neve fresca e seguiu-as como um cão de caça, até que se misturavam a outras diante do bar de Jeff Smith. Ela hesitou apenas um momento, e depois entrou na casa de jogo.
Normalmente não frequentava bares e casas de jogo. As moças que trabalhavam nesses lugares consideravam-na uma intrusa, tentando roubar seus clientes. Glória em geral procurava fregueses nos vários hotéis e restaurantes de Skaguay - ou como, depois do estabelecimento recente dos correios passou a soletrar-se "Skagway".
A falsa fachada da casa de jogo escondia ardilosamente a grosseria do edifício que ficava por trás dele. A comprida e estreita sala era encardida e sem vida...
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