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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HECATOMBE / Laura Gallego García
A HECATOMBE / Laura Gallego García

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Memórias de Idhún

Volume V / Primeira Parte

A HECATOMBE

 

                 PEDRA E GELO

A magia não era suficiente.

Apercebera-se disso muitos dias antes, mas simplesmente não quisera acreditar. Por pura teimosia tinha seguido o seu caminho em direcção a norte, sempre para norte, mesmo quando não havia já feitiço térmico capaz de manter o seu corpo quente, mesmo tendo a sua montada caído sobre a neve há já vários dias, abatida pelo frio e pela inanição.

Mas ele tinha continuado a sua viagem a pé, a coxear. E agora sabia que estava muito perto: os conjuros de localização não podiam ter falhado.

Todavia...

Estacou, a tiritar. Passou a língua pelos lábios arroxeados e olhou em volta, desorientado. A tempestade toldava-lhe os sentidos; a cortina de neve impedia-o de ver o que havia mais adiante, e o ruído surdo do vento aturdia-o impiedosamente. Procurou um ponto de referência, mas nem foi capaz de distinguir os picos das montanhas na escuridão.

Já não tinha forças para abrir um túnel seco entre a tempestade de neve. A magia abandonava-o pouco a pouco, e mal conseguia manter o seu corpo quente.

Quando tomou consciência de que sentia frio, compreendeu de imediato que, se o feitiço térmico já não funcionava, nenhum outro o faria. Tinha de parar, descansar em algum sítio, procurar um refugio. Voltou-se para todos os lados, mas só o vento e a neve responderam ao seu mudo pedido de auxílio. Soprou nas mãos o pouco alento que lhe restava e continuou a caminhar, abrindo passagem a grande custo pela gelada terra de Nanhai.

Contudo, voltou a parar uns metros mais à frente. Os seus sentidos de feiticeiro alertavam-no para um perigo indefinido, oculto algures na tempestade. Ou talvez a sua intuição, tal como a sua magia, também lhe estivesse a falhar.

Não teve tempo de preparar um feitiço de protecção antes de o animal investir.

O feiticeiro sufocou uma exclamação e pronunciou instintivamente a fórmula de um conjuro defensivo, mas não aconteceu nada: a faísca da sua magia não pegou, o seu poder não atendeu à sua chamada.

Mal teve tempo de se lançar para o lado e rolar sobre a neve, procurando afastar-se do animal, embora soubesse que, uma vez no chão, já não teria escapatória. Arrastou-se como pôde, mas o animal já investia novamente contra ele. O feiticeiro deu meia-volta e ergueu os braços, para se proteger, num movimento instintivo completamente inútil.

Quando as garras do animal se enterraram na sua carne, o jovem feiticeiro gritou de dor e de terror, e perguntou a si mesmo, com incredulidade, como era possível que tivesse chegado tão longe para acabar daquela maneira.

O animal acompanhou o seu grito com um grunhido. De súbito, estremeceu e emitiu um lastimoso uivo de dor. Fez um esforço para se afastar da sua vítima, mas as patas não lhe obedeceram. O feiticeiro viu-o lançar a cabeça para atrás, abrir as mandíbulas num grito silencioso, revirar os olhos... Depois, o enorme animal caiu pesadamente sobre ele: morto.

Demorou um pouco a reconhecer que, de alguma miraculosa maneira, se tinha salvado. Arrastou-se como pôde de debaixo do volumoso corpo do animal, ofegante, segurando o ventre ensanguentado e deixando um rasto carmesim sobre a neve. Não quis pensar que, mesmo com o animal morto, no seu estado seria muito difícil sair dali vivo.

No entanto, outra coisa reclamou imediatamente a sua atenção.

Diante de si erguia-se uma figura alta e esbelta, ataviada com uma capa de peles brancas que a borrasca sacudia furiosamente. Segurava na mão direita uma espada cujo fio irradiava um suave brilho glacial. O feiticeiro levantou a cabeça para ele, e o recém-chegado devolveu-lhe um olhar indiferente e desumano que o atemorizou ainda mais do que o animal que estivera prestes a tirar-lhe a vida. Contudo, conhecia aqueles olhos azuis demasiado bem.

Tentou levantar-se, mas não foi capaz. A vista nublou-se-lhe e caiu ao comprido sobre a neve, aos pés do seu salvador.

Acordou num lugar quente e acolhedor. Não obstante, continuava com frio, muito frio, sobretudo no estômago. Abriu os olhos com esforço, mas não conseguiu fazer mais nada. Sentia-se demasiado fraco.

De repente, um rosto de pedra surgiu no seu campo de visão. Soltou uma breve exclamação de surpresa; fixou-o melhor e conseguiu dizer, num fio de voz:

-Yber?

O gigante grunhiu algo e afastou-se um pouco. Foi outra voz, serena e impassível, que respondeu à sua pergunta.

- Chama-se Ydeon.

Virou a cabeça e descobriu então uma silhueta vestida de negro, sentada perto de si, que o observava com seriedade. Pestanejou duas vezes e franziu o sobrolho.

- Kirtash? O que estás aqui a fazer?

- A salvar-te a vida mais uma vez - respondeu o jovem com certa dureza. - Algo que se está a converter num hábito, pelo que vejo. Também poderia perguntar-te o que fazes tu aqui, Shail. Por acaso estavas à minha procura?

Shiu começava já a pensar com clareza.

- Não és assim tão importante - murmurou, aborrecido. - Não, não andava à tua procura. O que te faz pensar isso?

- Então, como chegaste até aqui? Ydeon poderá dizer-te que não são muitos os que vêm visitá-lo.

- Não me metas nisto - resmungou o gigante. - É teu amigo, não?

- Não somos amigos - replicaram os dois ao mesmo tempo e de imediato se calaram, apercebendo-se do absurdo da situação.

- Não me metam nisto - repetiu Ydeon. - Vou-me embora: tenho coisas a fazer.

Levantou-se para sair; parou um momento junto a Shail.

- Toma - disse-lhe, estendendo-lhe uma tigela de sopa. - Vai fazer-te bem.

Shail ergueu a cabeça e olhou para ele, agradecido. Esboçou um esgar de dor ao estender a mão para a sua muleta, Ydeon inclinou-se para aproximar a tigela dele.

- Que ferida feia, feiticeiro - comentou.

- Vai curar-se, acho eu... - começou Shail, mas interrompeu-se, quando percebeu que o gigante não se referia à lesão do seu estômago. - Ah, isso - disse então, olhando tristemente para a sua perna amputada. Não, receio que isso não se curará. Não pode crescer novamente.

- Hum - resmungou Ydeon, pensativo. - Nunca se sabe. Poderia acontecer.

Shail não replicou. Não gostava de falar do assunto e ainda menos com um desconhecido. Pegou na tigela com as duas mãos, porque era grande como um balde, e concentrou-se no caldo que fumegava lá dentro.

O gigante inclinou a cabeça, ainda meditabundo, e abandonou a divisão sem uma palavra.

Nenhum dos dois jovens falou durante algum tempo. Sentado num canto, Christian contemplava, absorto, o reflexo das luzes da caldeira de ava que aquecia a sala, com aquele ar aparentemente relaxado que lhe era Próprio. Shail acabou a sopa e procurou deixar a tigela numa prateleira, mas a ferida não lho permitiu. Contendo um grito de dor, arriscou-se a olhar para baixo. Surpreendeu-se ao ver que o frio que sentia não era apenas uma impressão sua: tinha o ventre coberto de geada.

- O que foi que me fizeste? - conseguiu articular, com uma nota de temor na sua voz.

Christian não se voltou para olhar para ele.

- É uma técnica curativa shek - respondeu, lacónico. - A ferida sarará mais depressa.

Shail demorou um pouco a responder.

- Suponho que devo agradecer-te - admitiu, de má vontade.

- Não te incomodes. Não o fiz por ti.

- Era o que eu supunha. Que animal era aquele do qual me salvaste?

- Um barjab. Saem à noite para caçar, mas são lentos e pesados. Não são difíceis de matar... em condições normais.

- O Anel de Gelo quase acaba comigo - admitiu o feiticeiro após um momento de silêncio. - A minha magia já tinha deixado de funcionar quando aquele animal me atacou. Se não aparecesses...

- Já te disse que não o fiz por ti - cortou Christian secamente. - Não voltes a falar nisso.

Shail olhou para ele, contendo a fúria.

- Se gostas tanto de Victoria, porque é que a abandonaste? - censurou-o.

Christian não levantou a voz, mas o seu tom era perigosamente gélido quando disse:

- Pensa o que quiseres, feiticeiro. Não vou perder tempo a dar-te explicações e, além disso, não há razão para tas dar.

- Talvez não tenhas de mas dar a mim - replicou Shail, com mais suavidade -, mas a ela sim. O que irá acontecer se acordar e não estiveres lá? Ou, pior ainda...

o que acontecerá se não sobreviver? Se a amas tanto, porque é que não estás ao seu lado agora?

Christian não respondeu. Shail suspirou, inquieto. Aquele jovem inspirava-lhe sentimentos contraditórios. Por um lado, tinha lutado ao seu lado na Resistência, contribuíra para a derrota de Ashran, arriscara a sua vida por Victoria. Mas antes disso havia sido seu inimigo na Terra durante cinco anos, ao longo dos quais a Resistência procurara, sem êxito, salvar as vidas que ele ia ceifando sem a menor compaixão. Além disso, já os tinha traído uma vez e o próprio Shail tinha sido testemunha de como assassinara Jack nos Picos de Fogo. O miraculoso e inexplicável regresso do dragão ao mundo dos vivos não podia apagar o facto de que o shek o tinha matado.

- Vim até aqui seguindo a pista de Alexander - disse então, mudando de assunto. - Soubeste alguma coisa dele?

Christian demorou um pouco a responder.

- Não - disse finalmente. - Mas, se estiver em Nanhai, os gigantes encontrá-lo-ão.

Shail assentiu e estendeu-se novamente sobre a enxerga. Ainda se sentia fraco; ainda precisaria de muito repouso para se restabelecer por completo. Christian levantou-se, com a intenção de sair da divisão. Mas deteve-se à entrada e voltou-se para o feiticeiro.

- Ela está bem - disse a meia-voz. Shail abriu os olhos.

- Como?

- Ela está bem. Estável, quero dizer. Continua inconsciente, mas o seu coração ainda bate. Continua cá, mesmo depois deste tempo todo. Acho que é um bom sinal.

- Como... como é que sabes disso?

- Porque ainda usa o meu anel.

O anel... Shail lembrou-se daquela jóia, que lhe parecia tão sinistra. A pedra, engastada numa serpente de prata, parecia um olho que espiava todos aqueles que pousavam nela o seu olhar. O feiticeiro supusera desde o início que aquele não era um anel qualquer. Sempre suspeitara que o shek controlava Victoria de alguma maneira através dele. Demorara a aceitar o facto de que a vontade de Victoria, mesmo com o anel posto, continuava a pertencer-lhe a ela. O que a jóia proporcionava era um tipo de comunicação sem palavras que os mantinha unidos mesmo à distância. "É um amuleto poderoso", disse Shail para si. Certamente, era; mas também se tratava de uma prova de afecto, de um vínculo que simbolizava o sentimento que, contra todas as probabilidades, ligara os destinos de um unicórnio e um shek em algum ponto entre dois mundos mergulhados no caos.

Por um momento, Shail invejou-os. A sua própria relação com Zaisei, a sacerdotisa celeste, era bela e sincera, mas não gozava da intensidade do amor que Christian e Victoria professavam um pelo outro. Também não tinham maneira de manter-se em contacto quando se se separavam, pelo menos não daquela maneira. Shail abandonara a Torre de Kazlunn há vários meses. Despedira-se de Zaisei, convencido de que ela estaria segura com Gaedalu e os feiticeiros da Ordem. Mas continuava a sentir a falta dela todas as noites, sonhando com o instante em que voltaria a tê-la nos seus braços.

Perdido nas suas lembranças, Shail mergulhou lentamente numa pesada sonolência. Não se apercebeu de que Christian abandonava a divisão, em silêncio.

A recuperação de Shail foi lenta, mas progressiva. Durante o tempo que passou em casa de Ydeon, o gigante, mal viu Christian. O jovem entrava e saía sem dar explicações a ninguém e, por vezes, demorava mesmo vários dias a voltar. Não dava a impressão de que Ydeon sentisse a sua falta.

Também o gigante parecia ter sempre assuntos a tratar. Nos primeiros dias, Shail ouviu barulhos ritmados, metálicos, provenientes de uma oficina próxima, talvez uma forja. Quando foi capaz de se pôr de pé e caminhar, descobriu que, efectivamente, a oficina de Ydeon era uma forja.

Como Shail nunca se interessara especialmente por armas, não o incomodava quando estava a trabalhar. Limitava-se a sentar-se na sala ao lado, junto à caldeira, pensativo, e deixava as horas passar. Ydeon era incansável e, além disso, nos últimos dias parecia estar imerso em algum trabalho importante que o absorvia quase por completo, pelo que mal dedicava tempo ao seu convidado. Shail chegara a conhecer bastante bem o carácter dos gigantes através de Yber, o feiticeiro gigante com quem travara amizade durante a sua estada em Nurgon, pelo que sabia que, para Ydeon, aquilo não era nenhuma indelicadeza. Os gigantes, especialmente aqueles que mal saíam de Nanhai, eram gente muito independente. Para eles era estranha a ideia de que alguém precisasse de atenção e companhia constantes, a não ser que estivesse gravemente doente. E, graças aos cuidados de Christian e de Ydeon, Shail já não estava.

Contudo, sentia falta de conversar com alguém. A solitária caverna de Ydeon contrastava vivamente com a barulhenta Fortaleza de Nurgon, onde passara os últimos meses antes da derrota de Ashran. As vezes, Ydeon sentava-se junto dele depois de uma longa jornada de trabalho na forja. Nessas ocasiões, Shail tentava conhecer um pouco melhor o seu anfitrião, procurava descortinar as razões que o tinham levado a desenvolver uma espécie de amizade com Kirtash, o shek, o filho do Necromante. Também lhe falava da guerra, das serpentes aladas, do que acontecia para lá do Anel de Gelo e da chegada dos deuses, que devia estar iminente, mas da qual ainda não havia outros indícios que não as ensurdecedoras vozes dos Oráculos. Perguntava ao gigante que opinião tinha de tudo aquilo, numa tentativa de o situar em alguma das partes que se debatiam naquele caos.

Invariavelmente, acabavam sempre a falar de espadas.

Para além da sua paixão pelas armas e do facto de que o seu interesse por Haiass, a espada de Christian, motivara o início da sua relação com o shek, Shail não conseguiu averiguar muito mais.

Uma tarde, Christian regressou à caverna de Ydeon após uma ausência de quatro dias. Sentou-se junto do feiticeiro e estudou-o rapidamente.

- Estás com muito melhor aspecto - comentou.

- Pois estou, o que é uma boa notícia, pelo menos para mim - assentiu Shail. - Em contrapartida, para ti o destino reservado a um simples humano não é algo digno de interesse ou estou enganado?

- Não. Mas acontece que, mesmo sendo um simples humano, tens acesso a certas informações que me podem ser úteis. Para não falar de que alguém de quem gosto muito tem um certo carinho por ti. Mas não quero falar dela agora.

- Então, de que queres falar?

- Tens boas relações com alguns sacerdotes - disse Christian -, apesar de seres um feiticeiro. Sei que enquanto estiveste na Torre de Kazlunn tentaste descobrir mais coisas acerca dos deuses. Este é um tema que me ultrapassa, reconheço-o. Nunca senti muito interesse pelos Seis.

- Não me surpreende, tendo em conta que foste criado pelo Sétimo comentou Shail.

Christian semicerrou os olhos. O feiticeiro percebeu que a descoberta de que o seu pai era afinal o sétimo deus não era uma ideia que o jovem considerasse particularmente tranquilizadora.

- Mas agora preciso de saber mais sobre eles. Preciso de saber se... hesitou por momentos e ergueu os olhos para Shail, antes de continuar. Preciso de saber se podem chegar a importar-se com a vida ou a morte do último unicórnio.

O feiticeiro não disse nada, surpreendido.

- Estás a insinuar que eles poderiam ajudar Victoria? - perguntou por fim, pausadamente.

- Quem, senão eles? Estamos a falar dos deuses que criaram os unicórnios. Se alguém pode voltar a fazer crescer o seu como ou devolver a vida à sua essência de unicórnio, são eles.

- É verdade - assentiu Shail.

- Também há a possibilidade de no fundo não se importarem - prosseguiu Christian. - Deixaram que Ashran exterminasse toda a raça dos unicórnios e só salvaram um para que o enfrentasse. Agora que cumpriu a sua missão, agora que Ashran já não é uma ameaça e que podem combater o Sétimo no seu próprio plano, já não precisam de Victoria para nada.

Se assim for, se eles não estão dispostos a protegê-la, então terei de ser eu a fazê-lo.

Shail respirou fundo e procurou organizar as ideias.

- Sejamos realistas, Kirtash: Victoria não depende só de ti. Tem amigos, gente que também gosta dela e que vai cuidar dela. Não podes agir como se fosse apenas responsabilidade tua. Além disso, há bastante tempo que não estás de muito boas relações com a Resistência, desde o que aconteceu nos Picos de Fogo, e, por muito que Jack te tenha perdoado, já não podemos considerar-te um de nós. De maneira que não podes...

- Não sou um de vós - cortou Christian com frieza. - Nunca fui um de vós. - Voltou-se para olhar para ele, e Shail retrocedeu por puro reflexo, intimidado. - Victoria é um unicórnio, uma criatura sobre-humana. Vocês não estão preparados para cuidar dela, nem têm porque o fazer. Agora que a profecia se cumpriu, a própria Resistência já não tem nenhuma razão de ser. Agora que tudo passou, Jack e eu é que devemos responsabilizar-nos por ela.

- E por que razão, se é que se pode saber?

- Porque ela já não é uma criança que possas adoptar como irmã mais nova, feiticeiro. Cresceu, amadureceu e tornou-se muito mais poderosa do que todos vocês juntos.

Shail hesitou, recordando a conversa que mantivera com Jack antes de partir em viagem.

- E Jack? Estás a contar com ele nos planos que fazes em relação a Victoria?

- É claro que sim. Mas ele estaria de acordo comigo. Este não é o seu mundo e, dado que já fez o que se esperava dele, irá adorar ir-se embora daqui.

Shail abanou a cabeça.

- Não - murmurou. - Ele não é assim: não nos viraria as costas.

- Não tem nenhuma obrigação de morrer por Idhún. Nem ele nem nenhum de nós. Forçaram-no a tomar parte numa guerra que não era a sua, numa profecia que o enviava para uma morte quase certa. Não podem pedir-lhe que continue a lutar. Muito menos pretender que enfrente um deus.

Shail não replicou. Christian levantou-se.

- Se se importam assim tanto com o vosso mundo, lutem por ele e parem de se esconder atrás de dragões, como sempre fizeram. E deixem os outros em paz.

Shail ergueu a cabeça.

- E os sheks?

- Os sheks estão muito ocupados a lutar pela sua própria sobrevivência. Estão dispersos e demorarão algum tempo para se reorganizarem.

- E tu? Sabes alguma coisa acerca do Sétimo? Acerca de onde se encontra?

- Por acaso isso importa?

- Claro que importa. Se tiver de estalar uma guerra de deuses, ela começará onde o Sétimo se encontrar. Por isso é importante que reunamos toda a informação possível.

Christian voltou a sentar-se e reflectiu por um momento.

- O Sétimo é uma sombra - disse. - Teve sempre de se esconder em lugares que os outros deuses descuravam. Por essa razão relaciona-se muito mais com as suas criaturas

do que os outros seis, que vivem na sua própria dimensão, alheios ao que acontece na superfície do mundo. Os sheks e os szish são seus filhos. Ele cuida deles, mas também os utiliza. Todas as serpentes têm de servir e obedecer às suas ordens, dado que os seus objectivos são também os nossos.

- É isso que vos ensinam acerca do vosso deus? Não é muito.

- É suficiente. O culto ao Sétimo é uma religião misteriosa e secreta, porque foi perseguida em Idhún e porque o nosso deus tem de se esconder nas sombras até que esteja preparado para enfrentar os outros seis. Assim, não nos é revelada grande coisa acerca dele.

- Como é possível que se tenha ocultado no interior do corpo de Ashran? Tu sabias?

- Não; só Zeshak, o rei dos sheks, estava ao corrente disso. Acredites ou não, andei a pensar muito nisto. Julgo que o Sétimo utiliza seres mortais como disfarce para se esconder dos Seis.

- E porquê um humano? Porque não um szish ou até mesmo um shek?

- Também eu me fiz essa pergunta. E cheguei à conclusão de que é porque os humanos são mais insignificantes do que os sheks. Uma vez que o objectivo era esconder-se, um humano seria mais difícil de detectar do que um shek; mesmo sendo esse humano Ashran, o Necrorrumte. O olhar dos deuses é muito abrangente. Vêem muito e muito longe, mas, justamente por isso, as coisas mais pequenas passam-lhes despercebidas, tal como tu vês uma vaca num prado, mas dificilmente irás reparar nos insectos que pululam entre a erva aos teus pés.

Contudo, um corpo humano, tão limitado, é incómodo para um deus; pelo que, na altura de escolher, é muito mais vantajoso optar por um humano que, além disso, seja

um feiticeiro, detentor de capacidades que os humanos comuns não têm. Além disso, um feiticeiro sangue-quente é muito mais poderoso do que qualquer feiticeiro szish, porque teve a oportunidade de se formar nas torres de feitiçaria, o que sempre foi negado aos homens-serpentes.

- O que estás a tentar dizer-me é que Ashran era um feiticeiro como os outros... até que o Sétimo o... possuiu, ou o que quer que tenha feito com ele, não é?

Christian assentiu.

- Não me perguntes como aconteceu: as minhas deduções não chegaram tão longe. Mas ambos, o homem e o deus, tornaram-se um só. O homem podia ser destruído, mas não o deus...

- E, ao sair desse esconderijo humano, tornou-se claramente visível para os outros Seis, não foi? Por isso vêm agora à procura dele. O que acontecerá com os sheks? Sabem o que se está a passar? Algum deles tem conhecimento de onde se encontra o Sétimo?

- As informações que circulam pela rede telepática são dispersas e confusas. Zeshak nomeou uma sucessora antes de morrer, Ziessel, que governava Dingra antes da batalha de Awa. Mas Ziessel desapareceu. Foi-se embora para outro mundo, dizem. Há quem afirme que morreu durante a viagem. Sinceramente, não sei. Mas, se está viva, encontrará uma forma de restabelecer a rede dos sheks e de os unir todos à sua volta.

Entretanto, os sheks estão sem líder. Há dois que se destacam: Sussh no Sul e Eissesh no Norte. O velho Sussh continua a governar Kash-Tar. Eissesh sobreviveu

miraculosamente ao incêndio do céu e dizem que está a recuperar das suas feridas nas montanhas. Mas já está a reunir todos os sheks e szish sobreviventes de Nandelt. Quando se restabelecer por completo, é provável que reclame para si a liderança da nossa gente.

Suspeito que o Sétimo, esteja onde estiver, ter-se-á posto em contacto com Ziessel, se é que esta continua viva; caso contrário, irá revelar-se ao novo líder:

Eissesh, Sussh... quem quer que seja. Se queres saber onde se encontra, pergunta-o a um deles. Para o resto dos sheks, o nosso deus continua a ser algo misterioso e desconhecido.

- Não o era assim tanto para ti, pois não? - perguntou Shail com delicadeza.

Christian não respondeu.

- E em relação a ti? - indagou o feiticeiro. - Ainda fazes parte da comunidade shek?

- Depois do que aconteceu? - replicou ele, quase a rir-se. - Enterrei Haiass no corpo humano do meu deus: creio que o que fiz pode considerar-se não só alta traição, mas também um autêntico sacrilégio.

Shail não replicou, mas escutava com interesse. O que sucedera durante o confronto na Torre de Drackwen era ainda um mistério para ele.

- Não sei que aspecto tem um deus sem corpo - prosseguiu Christian -, mas não tenciono ficar cá para saber. Os Seis vão apresentar-se aqui, em Idhún. A coisa mais inteligente que nós, mortais, podemos fazer é afastar-nos do seu caminho e esconder-nos o mais longe possível.

Shail não soube o que dizer.

- A única coisa que eu quero saber - prosseguiu Christian - é se os teus deuses estariam interessados em preservar a magia no mundo. Os unicórnios são ou não são considerados as suas criaturas mais perfeitas?

- Sim. E partia-se do princípio de que eram intocáveis e de que nada podia fazer-lhes mal... até ao dia da conjunção astral. Então morreram todos os unicórnios e só Lunnaris se salvou. Pensava... que os deuses lhe tinham reservado um destino especial, não apenas relacionado com Ashran e a profecia. Acreditava que ela estava destinada a restaurar a magia dos unicórnios no mundo. Mas agora arrebataram-lhe o

corno... e, uma vez mais, os deuses não fizeram nada para o impedir. Por isso, não sei o que dizer, Kirtash. Antes da conjunção astral, até mesmo antes de regressar a Idhún, ter-te-ia dito que os deuses não abandonariam o último unicórnio em circunstância alguma. Agora já não sei o que pensar. Tudo aquilo que era uma certeza para mim está a acabar por não ser exactamente como eu pensava. Não sei se me estás a compreender...

- Perfeitamente - respondeu Christian com um sorriso.

Shail ia perguntar-lhe algo mais, mas foi interrompido por Ydeon, que entrou na sala com o seu habitual andar pesado. Contudo, o seu rosto pétreo trazia uma marca funda de preocupação.

- Vocês dois, venham ver isto - disse.

Christian levantou-se de rompante e seguiu-o com passos leves. Shail demorou um pouco mais a alcançar a sua muleta e a pôr-se de pé.

Juntou-se a eles na oficina de Ydeon. Estava ali muito calor, demasiado para o seu gosto, demasiado também para qualquer shek. Contudo, Christian suportava-o estoicamente. Tinha colocado a palma da mão sobre uma rocha plana.

- Estás a sentir? - perguntava Ydeon. O shek anuiu.

- É uma vibração. Significa alguma coisa para ti?

- É uma mensagem de socorro.

- Uma mensagem de outro gigante? - perguntou Shail, que sabia que a raça de Ydeon era capaz de comunicar fazendo vibrar o coração de rocha da sua terra.

- Está relacionada com algo que tenho vindo a notar há dias - assentiu o fabricante de espadas. - Nas montanhas do Norte, está a produzir-se uma actividade anormal: tremores e deslizamentos de terras, desprendimentos de rochas nos precipícios. Presumo que todos os outros gigantes também se aperceberam disso. E parece que alguém se aproximou mais do que devia da zona de risco - acrescentou, franzindo o sobrolho.

- Porque te envia a mensagem a ti? - perguntou Christian. - Não estamos demasiado longe para chegar a tempo?

- Enviou-a a todos. Noutras circunstâncias, não lhe teria prestado atenção, dado que outros gigantes chegarão muito antes de nós para ver o que está a acontecer.

Ydeon colocou a palma da mão sobre a pedra plana e concentrou-se nas sensações que lhe transmitia.

- Ynaf - disse. - Sei onde vive. Se partirmos imediatamente, só demoraremos dois dias a chegar. Acho que vocês deveriam investigar. Pode ser que encontrem lá algo que vos interesse.

Christian semicerrou os olhos e Shail apercebeu-se de que o shek já tinha as suas suspeitas sobre o que estava a acontecer. Viu-o sair da oficina sem uma palavra e suspirou, preocupado.

- Quero mostrar-te uma coisa, feiticeiro - disse então Ydeon. - Ainda não está terminado, mas quero que vás pensando nisso, para quando precisar da tua colaboração.

Shail seguiu-o, intrigado, até ao recanto onde o gigante tinha a sua forja e espreitou com curiosidade o molde que ele lhe indicou.

Esperava ver algum tipo de arma no seu interior: uma espada, um machado, talvez um punhal. Assim, quando descobriu o objecto que aí arrefecia, não conseguiu reprimir

uma exclamação de assombro.

Era uma perna.

Uma perna humana, de metal, terminada num pé descalço; uma perna tão perfeita que, se não fosse pelo brilho na sua superfície, pareceria de carne e osso. Sem acreditar nos seus olhos, o feiticeiro voltou-se para Ydeon.

- Forjaste-a para mim? - perguntou sem conseguir evitar que a voz lhe tremesse.

O gigante assentiu.

- Tirei o molde enquanto estavas inconsciente. Tive de o inverter para que o resultado fosse um reflexo da tua perna esquerda, dado que não tens a perna direita. E foi bastante mais complicado do que pensava. Mas creio que o resultado é bastante satisfatório.

Shail abanou a cabeça, perplexo.

- Enlouqueceste. Uma perna de metal não pode substituir a que perdi.

- Esta, sim. Não como está agora, claro. Há que transferir-lhe uma boa quantidade de magia para que ganhe vida. Mas tu és um feiticeiro, pelo que isso não deveria ser um problema.

- O metal não pode ganhar vida!

- Este não é um metal vulgar. E gaar, uma liga que absorve e assimila a energia mágica. É o metal com que se forjam as espadas míticas.

- Podes acreditar nele. - A voz de Christian nas suas costas sobressaltou-os pois não o tinham ouvido entrar. - Ydeon entende de armas míticas. Tal como eu, sabe que este tipo de objectos adquire vida quando se lhe transfere uma determinada quantidade de energia, quer seja magia... ou o poder de um shek.

Shail voltou-se para ele, ainda desconcertado.

- Mas isto não é uma espada, Kirtash. Estamos a falar de implantar uma perna de metal animada por magia!

É uma loucura...

- Sou especialista em espadas, é verdade - assentiu Ydeon. - Mas às vezes também trabalho com seres incompletos. - Dirigiu um olhar demorado a Christian. - Se pude forjar uma presa para uma serpente, não vejo por que razão não posso devolver a perna a um humano.

Christian esboçou um sorriso. "Seres incompletos", pensou Shail, recordando Victoria. Lamentavelmente, nada nem ninguém em Idhún podia criar um novo corno para o unicórnio que habitava nela. Os feiticeiros tentavam há milénios reproduzir os poderes do unicórnio de forma artificial, sem sucesso.

- Pensa nisso, feiticeiro - concluiu o gigante. - Agora temos uma viagem pela frente; mas, quando regressarmos, tenciono terminar esta perna... e seria bom que na altura tivesses reflectido sobre o feitiço que vais utilizar para transferir para ela a magia de que necessita.

Shail murmurou de novo baixinho:

- É uma loucura. - Mas ninguém o escutou. Christian tinha saído outra vez, à procura da sua capa de peles, e Ydeon estava a acabar de recolher as suas ferramentas.

Momentos mais tarde, os três abandonavam a caverna do forjador de espadas para se embrenharem no coração de Nanhai, o mundo dos gelos perpétuos.

Raden era uma terra inóspita e pantanosa. A sua costa não possuía as impressionantes falésias que desenhavam grande parte do litoral idhunita, por isso, de cada vez que a maré subia, as águas inundavam muito do seu território. Desta forma, em Raden praticamente não havia chão firme. Os charcos cobriam quase toda a sua superfície e neles cresciam diferentes espécies de árvores de enormes raízes retorcidas, que viviam com metade do tronco debaixo de água. Poucos peixes sobreviviam no lodo, portanto, aquele era também o território de diferentes espécies de anfíbios, batráquios e répteis, e de estranhas aves de patas muito compridas.

Nenhuma raça inteligente habitava em Raden, salvo os pescadores dos charcos, uma comunidade de humanos tão acostumados a viver na humidade que muitos acreditavam que não eram realmente humanos, mas sim uma tribo de varu perdida que se tinha adaptado aos pântanos. Contudo, outrora Raden fora visitado com frequência, na época em que aí se encontrava o Oráculo dos Três Sóis. Os pescadores dos charcos costumavam levar os forasteiros de Sarei até ao Oráculo nas suas esguias e frágeis barcas, que empurravam com longas varas. Porém, havia muito que o Oráculo tinha sido destruído pelos sheks e agora já ninguém se embrenhava nos pântanos.

Por essa razão, só os pescadores sabiam o que ali se ocultava; mas enquanto houvesse coisas para pescar no lodo, não se iriam preocupar em saber o que estava a acontecer, nem alertariam ninguém.

Para humanos, pensava muitas vezes Assher, os pescadores dos charcos não pareciam muito mais espertos do que os batráquios que pescavam.

Assher tinha fugido com o seu clã para sul, depois da queda da Torre de Drackwen. Tinham encontrado refugio nos pântanos e agora viviam como mendigos na lama. Por sorte, as escamas da sua pele protegiam-nos da humidade. De qualquer forma, os szish eram uma raça paciente e estóica. Quando os mais jovens do clã ousavam queixar-se, os mais velhos mandavam-nos calar-se e recordavam-lhes que os sangues-quentes estavam à espreita longe dos pântanos, nas terras secas, e que por isso não podiam regressar a Alis Lithban.

"Além disso", costumavam dizer, "em Umadhun estaríamos pior."

Assher tinha apenas catorze anos e não conhecera Umadhun. Tinha nascido depois da conjunção astral; era idhunita, como os sangues-quentes, e fora criado em Alis Lithban. Crescera a sonhar que se juntaria ao exército e que lutaria contra os sangues-quentes, sob as ordens de um shek. Assher nunca tinha estado realmente perto de um shek, mas admirava-os e venerava-os.

No entanto, tudo aquilo se tinha desmoronado. O seu clã fugira em direcção ao Sul, em vez de se retirar para o Norte, onde os outros clãs szish se estavam a reagrupar, protegidos pelas montanhas. E agora não se atreviam a abandonar a segurança dos pântanos.

Talvez os mais velhos estivessem melhor em Raden do que em Umadhun, mas Assher considerava que Alis Lithban era muito, muito melhor.

Uma noite apareceu alguém para os ver. As sentinelas deveriam tê-la atravessado com as suas lanças mal a viram chegar, dado que ela era uma sangue-quente, uma feérica, mas, por algum motivo, não o fizeram. Deixaram-na avançar, mudos de assombro, talvez perguntando-se como uma criatura como aquela era capaz de caminhar no lodo sem se sujar acima dos tornozelos. Permitiram que ela parasse diante deles e lhes falasse.

Assher viu-a de longe. Escutou as suas palavras, as palavras dirigidas aos adultos do clã. Palavras cheias de esperança.

Alguns tinham-na reconhecido, disseram depois. Chamava-se Gerde e fora aliada de Ashran, o feiticeiro sangue-quente em quem os sheks tanto haviam confiado e que tinha sido derrotado, desencadeando assim a queda dos sangues-frios. Gerde nunca tivera verdadeiro poder sobre os szish, no entanto, naquela noite todos beberam o que dizia, especialmente os varões. Quando ela partiu, havia um brilho especial no olhar dos homens-serpentes, mas nenhum deles o admitia, para não ser objecto da troça ou da ira das mulheres do clã.

Assher também não o confessou a ninguém; mas, quando Gerde se estava a ir embora, passou à frente da sua cabana e descobriu-o a espiar por uma frincha da porta. E sorriu-lhe.

A partir desse instante, o jovem szish não conseguiu pensar noutra coisa, em nada nem em ninguém que não fosse a bela feérica, apesar de os sangues-quentes sempre lhe terem parecido extremamente feios. Mas ela... ela era diferente.

No dia seguinte, os chefes do clã reuniram-se e falaram demoradamente sobre as palavras de Gerde. Havia um novo espírito a animar os seus corações, a possibilidade de uma nova vida, de outra oportunidade. Vários dias mais tarde, começaram as provas.

No início, não permitiram a Assher apresentar-se, porque era demasiado jovem, disseram. De modo que se viu obrigado a ver os vencedores partirem em direcção a Alis Lithban para se juntarem a Gerde. A recompensa que ela lhes ia entregar não podia ser encontrada em nenhum outro lugar de Idhún. Por isso aquelas provas eram tão importantes e por isso os melhores eram aclamados como heróis.

Tempos depois, um dos vencedores visitou Raden para lhes demonstrar que as palavras de Gerde eram verdadeiras e maravilhou todos com o dom que ela lhe concedera. Chamava-lhe "minha senhora" e falava dela com grande reverência. Alguns duvidaram que fosse boa ideia servir uma sangue-quente, mas depressa se soube que havia sheks do lado dela. E o desejo de Assher de voltar a vê-la tornou-se cada vez mais intenso, mais insuportável.

Por fim, o milagre aconteceu.

Nessa altura, o clã de Assher tinha enviado onze candidatos às terras do Norte e, de todos eles, só um fora rejeitado por Gerde. Um dia, um deles regressou para anunciar que ela precisava de jovens szish, jovens que ainda não tivessem feito vinte anos, e que escolheria um para lhe conceder um dom especial, para o distinguir acima de todos os outros.

Voltaram a convocar-se provas e, desta vez, participaram quase todos os jovens do clã. Assher competia contra outros mais fortes e mais rápidos, mas não era isso que Gerde valorizava. Depois de competir em mais de dez provas diferentes, Assher não pudera evitar perguntar a si mesmo se os heróis, os eleitos, seriam realmente os mais capacitados ou se seriam simplesmente aqueles a quem a sorte sorria mais vezes.

A prova seguinte era a chamada Labirinto do Lodo. Quando se soube, muitas mães tentaram dissuadir os seus filhos de participar. Assher teve de insistir muito para que a sua lhe desse autorização e, embora tivesse finalmente acedido, renitente, o jovem szish sabia que nem sequer ela teria podido impedi-lo. É que ele teria dado qualquer coisa, teria feito qualquer coisa, para voltar a ver Gerde, para obter dela aquela honra de que se falava.

Desta forma, encontrava-se agora de pé, diante de uma vasta extensão pantanosa, num grupo de rapazes e raparigas szish, dezasseis no total. Quase todos os jovens do clã. O Labirinto de Lodo era a mais perigosa de todas as provas propostas por Gerde e, apesar disso, a participação nunca tinha sido tão elevada.

Tal devia-se a eles serem jovens. Além disso, tinham nascido em Idhún, na sua maioria, e não podiam acreditar que Umadhun fosse pior do que aquele horrível pântano onde se encontravam exilados.

Assher estremeceu quando lhe taparam os olhos com uma venda. Respirou fundo e procurou concentrar-se.

- Isto é o Labirinto do Lodo - anunciou o juiz; embora não fosse necessário, dado que já todos o conheciam, sentia-se na obrigação de cumprir todas as formalidades. - À vossa frente estende-se um lodaçal profundo e traiçoeiro. A prova consiste em atravessá-lo até ao fim. Existem caminhos ocultos debaixo da camada de barro, caminhos

pelos quais se pode avançar sem que o lodo vos chegue acima do joelho. Existem também fossas profundas que podem engolir um szish em menos tempo do que aquele que se demora a resgatá-lo. Por este motivo, participar nesta prova implica correr um grande risco. Um só passo em falso e morrerão. Pensem bem.

Reinou um pesado silêncio. Ninguém se mexeu nem disse nada. O juiz assentiu.

- Que assim seja - disse. - Que o Sétimo guie os vossos passos na escuridão. Confiem na vossa intuição: ela será a vossa melhor aliada.

Assher sentiu que prendiam à sua cintura uma corda de segurança. Aquela medida tinha salvado muitos, mas fora inútil em alguns casos. No entanto, a corda deu-lhe mais alguma confiança.

- Que se dê início à prova - anunciou o juiz.

Assher ficou momentaneamente paralisado. Ouviu um chapinhar junto de si e soube que os outros já se tinham posto em marcha. Inspirou fundo e, com cuidado, pôs um pé à frente do outro. O chão continuava estável. Respirou.

Os minutos seguintes foram longos e angustiantes. Assher movimentou-se muito lentamente, tacteando, passo a passo. Durante algum tempo, continuou em linha recta e tudo correu bem. Mas a sorte acabou depressa.

O passo seguinte esteve prestes a lançá-lo no abismo. O chão cedeu debaixo dos seus pés e só graças aos seus excelentes reflexos conseguiu dar um salto para trás. Enterrou-se até à barriga das pernas, mas o lodo não chegou mais além.

Atrás de si, ouviu um grito de horror e exclamações sufocadas entre os adultos que assistiam à prova. Ficou imóvel, com o coração apertado, até que ouviu aquele que caíra arquejar, abrindo e fechando a boca para respirar, cuspindo barro. Tinham-no tirado.

Assher engoliu em seco e procurou pensar com rapidez. Não podia seguir em linha recta, pelo que teria de procurar um caminho alternativo pela direita ou pela esquerda. Após uma breve reflexão, compreendeu que não era algo a que pudesse chegar através da lógica. À sua direita e à sua esquerda, os outros szish continuavam a avançar, mas isso não queria dizer nada. Os caminhos seguros sob o barro eram estreitos e, se o rapaz à sua direita avançava por um caminho firme, talvez entre ele e Assher se abrisse um profundo precipício. Não podia sabê-lo.

Recordou que as provas não tinham a ver com pensar ou deduzir, mas sim com deixar-se levar pela intuição e pelo instinto... coisa que os szish nunca faziam, pelo que tudo aquilo lhes era tão difícil. Assher atreveu-se a relembrar o rosto de Gerde, o seu sorriso encantador, a sua voz. Só um pedaço de lamaçal se interpunha entre ele e o seu sonho.

Fechou os olhos sob a venda e deixou-se levar.

Um passo à esquerda.

O seu pé enterrou-se no lodo... até ao tornozelo, e não mais. Respirou, aliviado. Avançou com o outro pé, inseguro. Mas também não se enterrou desta vez.

Tinha encontrado um caminho.

Continuou o caminho uns passos mais para a esquerda; mas alguém chocou contra ele e quase o fez perder o equilíbrio.

Ouviu o outro rapaz gritar. Reconheceu a sua voz: era Izass, tinha a sua idade. Os dois esbracejaram no ar, desesperados, procurando manter-se firmes sobre o lodo... e então Assher ouviu um sonoro chapinhar, que o salpicou de barro, e um grito. Compreendeu o que estava a acontecer: Izass caíra e afundava-se irremediavelmente. Gritou o seu nome e procurou estender-lhe a mão, mas não via. Tentou tirar a venda, mas só conseguiu cobrir a cara de barro. De qualquer forma, notou que algo arrastava Izass para trás: os adultos puxavam o seu corpo para a margem.

Assher ficou algum tempo parado, até que ouviu um grito agudo de dor, um grito feminino: a mãe de Izass.

Tinham tirado o seu filho do barro, mas era demasiado tarde.

Assher sentiu uma vertigem e esteve a ponto de cair também. Mas agarrou-se à lembrança de Gerde e deixou que a sua imagem inundasse os seus pensamentos até que, pouco a pouco, recobrou a sensatez.

Lentamente, movimentou de novo os pés para continuar à procura do caminho seguro.

E continuou a avançar, enquanto à sua volta os seus companheiros iam caindo, um a um. Por fim, percorrer o Labirinto do Lodo tornou-se algo mecânico. Começou a visualizar, intuitivamente, os caminhos sob o lodaçal, e os seus passos tornaram-se mais seguros e menos vacilantes. Por duas vezes esteve prestes a perder o pé, mas recuperou.

Quando deu por si, estava quase na meta.

Soube-o porque ouviu uma exclamação sufocada junto dele, e isso fê-lo voltar à realidade. Ao seu lado, um dos seus companheiros por pouco não saíra do trilho seguro. Uma rapariga, mais concretamente.

- Assher! - sussurrou ela. - És tu?

- Sassia! - reconheceu-a.

- Já não deve faltar muito, pois não? - perguntou ela, angustiada. Assher, acho... acho que já só restamos tu e eu.

Uma horrível sensação de fraqueza abateu-se sobre Assher. Não sabia que Sassia estava a participar nas provas. Nem sequer reparara, e isso levou-o a perguntar-se o que estava a acontecer. Em Drackwen estivera completamente apaixonado por ela.

- Anda, dá-me a mão - sussurrou-lhe. - Juntos avançaremos mais seguros.

- Achas? - perguntou a jovem szish, indecisa. - E se um dos dois resvalar?

- Então, cairemos os dois, mas serão duas as cordas a serem puxadas para nos resgatarem. Não te vou largar; prometo-te.

Assher não conseguiu ver a sua expressão, mas depressa sentiu que a sua mão tacteava no ar, junto dele. Agarrou-a e estreitou-a com força.

Assim, juntos, pouco a pouco, foram avançando pelos trilhos ocultos no barro. Assher voltou a visualizá-los na sua mente e continuou a caminhar, arrastando Sassia atrás de si.

- Dez passos para a chegada! - anunciou a voz do juiz um pouco mais à frente.

"Vamos conseguir... vamos conseguir...", pensou Assher. O rosto de Gerde iluminava todos os seus pensamentos.

Então, Sassia escorregou e enterrou-se com um grito, puxando Assher. Tudo se precipitou. O jovem szish quase conseguiu vislumbrar a sua companheira a cair e, ao mesmo tempo, viu-se a si mesmo a cair com ela, enterrando-se no lodo... e perdendo a prova que o levaria a Gerde.

Não pensou. Quase sem se aperceber, soltou a mão de Sassia como se o seu contacto o queimasse.

Houve gritos entre os szish que aguardavam na margem. Assher ficou petrificado enquanto puxavam a rapariga para a tirar do lodaçal para a margem. Aguçou o ouvido, esperando escutar algo que demonstrasse se Sassia tinha sobrevivido, se a tinham tirado a tempo. Silêncio.

Lentamente, Assher pôs um pé à frente do outro.

Os últimos metros, viveu-os como num sonho. Quando, por fim, trepou para terra firme, junto ao juiz, e este o declarou vencedor da prova, só foi capaz de pensar:

"vou ver Gerde. vou ver Gerde."

Depois de lhe tirarem a venda dos olhos, olhou à sua volta e, entre a multidão, viu Sassia envolta numa manta, coberta de barro, a olhá-lo fixamente. Era um olhar

acusador, um olhar que denunciava o facto de que tinha soltado a sua mão, de que tinha estado disposto a deixá-la morrer.

"Não importa", disse o rapaz para si. "vou ver Gerde."

Não demoraram dois dias, como Ydeon calculara, mas sim três dias e meio. A presença de Shail atrasava-os inevitavelmente, apesar de o gigante ter optado por carregá-lo nos ombros. Nem fazendo uso da muleta nem com toda a sua boa vontade, Shail conseguia avançar pela terra gelada.

- Isto vai mudar quando tiveres a tua perna nova - resmungou Ydeon, convicto.

Ao entardecer do quarto dia, quando o primeiro dos sóis começava a pôr-se, testemunharam um espectáculo assustador.

Uma cadeia montanhosa barrava-lhes a passagem, adornando o horizonte. E um dos picos abanava e estremecia visivelmente, como que golpeado por uma força invisível. A cada sacudidela, as avalanchas precipitavam-se bramindo pelas ladeiras, a rocha fendia-se e os barrancos atiravam blocos de pedra aos abismos. A montanha inteira rugia e gemia com uma voz rochosa, desperta do seu sono milenar, e convulsionava-se como se fosse o epicentro de um poderoso terramoto.

Christian, Ydeon e Shail estavam demasiado longe para se encontrarem em perigo, mas a destruição era fácil de perceber até mesmo àquela distância.

- Por todos os deuses - murmurou Shail. - O que é que está a provocar tudo isso?

Christian dirigiu-lhe um olhar estranho, mas não respondeu. Prosseguiram a marcha, fazendo um desvio para não se dirigirem directamente para lá. Não puderam deixar de observar com inquietação cada convulsão e, apesar de procurarem não perder nenhum pormenor, em nenhum momento conseguiram ver o quê ou quem estava a causar aqueles estragos.

Pouco depois distinguiram ao longe uma silhueta que se aproximava deles através da neve. Conforme se foi acercando, tornou-se-lhes claro que se tratava de um gigante.

Na realidade, uma giganta.

- Ynaf - cumprimentou o forjador de espadas.

- Ydeon - respondeu ela.

Os seus traços não se diferenciavam grandemente das feições de um varão da sua própria raça, mas as formas do seu corpo eram indubitavelmente femininas. Não perguntou a Ydeon o que estava ali a fazer, mas os seus olhos vermelhos cravaram-se nos dois jovens humanos, inquiridores.

- Kirtash. Shail - disse Ydeon, sucinto. - Acho que o que está a acontecer aqui lhes pode interessar.

Os olhos de Ynaf brilharam com interesse.

- A sério? Bem, não é de estranhar. Deveria interessar a toda a gente.

- Do que se trata? - perguntou Shail.

- vou levar-vos para verem mais de perto. Ainda nos restam várias horas de luz.

Christian assentiu de imediato. Shail relembrou que a curiosidade dos sheks por tudo aquilo que consideravam novo e esquisito era proverbial e compreendeu que, nesse aspecto, Christian não era uma excepção.

Acompanharam a giganta pela planície coberta de neve, seguindo a linha da cordilheira a uma distância prudente.

- Tudo começou há oito dias, quando o tecto da minha caverna se desmoronou sobre mim sem aviso prévio - explicou ela. - Consegui escapar e procurei outro refúgio, mas não demasiado longe, porque me pareceu estranho que toda a montanha tremesse daquela maneira. Desde então tenho estado a observar o fenómeno. Quando percebi que não só não parava, como além disso começava a movimentar-se...

- Move-se? - interrompeu Christian.

- Avança ao longo da cordilheira, muito, muito lentamente - explicou Ynaf. - Vêem aquele pico ali? - Indicou um cume situado um pouco mais a oeste; daquele ponto até ao lugar que agora retumbava sob o poder de uma maça invisível, as montanhas evidenciavam a passagem daquele inexplicável terramoto. - Foi ali que começou. Desde então, a destruição deslocou-se. Move-se com tanta lentidão que para poder verificá-la é preciso estar a contemplar as montanhas fixamente durante várias horas. Mas a verdade é que se move e não parece ter intenção de parar. Por isso decidi avisar quem pudesse interessar-se. Vários gigantes passaram por aqui desde então, mas ninguém foi capaz de precisar do que se trata. Embora - acrescentou, após uma breve pausa Ymur tenha uma teoria bastante... interessante.

- Ymur, o sacerdote? - perguntou Ydeon. Ynaf assentiu.

- Chegou ontem, depois do terceiro amanhecer. Parece que a minha mensagem também alcançou as ruínas do Grande Oráculo. Vamos ter com ele perto da montanha.

Encontraram Ymur num promontório cheio de neve a contemplar as sacudidelas do pico. Tinha-se sentado sobre uma rocha e tomava notas deslizando um pedaço de carvão sobre um quadro de pedra.

- Ymur - cumprimentou Ynaf.

O sacerdote voltou-se para eles. Vestia a túnica da Igreja dos Três Sóis. Era, como seria de esperar, servidor do deus Karevan, patriarca dos gigantes.

- Ynaf. Ydeon - respondeu; mal reparou em Christian e em Shail. Está outra vez a mexer-se. Repararam?

- Sim, sacerdote - rangeu Ydeon. - O que é? Também a Ymur lhe faltavam as palavras.

- Observem com atenção - disse. - Gostaria de me aproximar mais, mas receio que seja um pouco... arriscado.

- Eu posso solucionar isso - ofereceu-se Shail.

Formulou um feitiço de lente mágica. O ar ondulou suavemente e formou uma elipse de textura diferente, que ficou suspensa à frente deles.

- bom trabalho, feiticeiro - aprovou Ymur, ao verificar que através da elipse se via tudo de muito mais perto. - E agora, olhem...

Os cinco concentraram-se na imagem ampliada da montanha.

Sim, havia ali alguma coisa, algo que sacudia a cordilheira até às fundações e que arrastava rocha e neve à sua passagem, como se de um titã se tratasse. Parecia tratar-se de uma criatura ciclópica, a julgar pelos efeitos que provocava o seu avanço ou talvez a sua mera presença; mas não era perceptível à primeira vista, nem sequer através da lente mágica de Shail. Fosse o que fosse, não se avistava nada... ou não parecia haver nada. Se não o considerasse impossível, Shail teria jurado que aquilo não se deslocava sobre a rocha da montanha, mas sim através dela. Que o que destruía a cordilheira actuava por dentro dela. Ou que as próprias montanhas acordavam depois de uma sesta de vários milénios e se espreguiçavam num longo e formidável bocejo.

- É uma força. Ou uma energia. Ou como lhe queiram chamar - disse Ymur. - Invisível... mas poderosa.

- Não se trata apenas de uma questão de invisibilidade - murmurou Christian. - Receio que nem sequer seja material.

- Uma força. Uma energia - repetiu Shail. - Mas...

- Tu sabes o que é, sacerdote - cortou Christian, cravando o seu olhar frio no gigante. - Porque é que não partilhas as tuas conclusões connosco?

Ymur hesitou.

- Bem, tenho uma teoria. Sei que pode soar estranho, até mesmo... vamos... algo irreverente, mas...

- Mas o quê? - impacientou-se Shail.

Ymur desviou o olhar, incomodado. Para o feiticeiro, que sempre sentira um respeito instintivo pelos gigantes, tão grandes e poderosos, era estranho ver um deles hesitar e perguntou-se, inquieto, que tipo de ser ou criatura poderia assustá-los no seu próprio mundo.

- É um deus - concluiu Christian com suavidade. Fez-se um silêncio desconcertante.

- Um quê? - perguntou então Shail.

- Diria que é o deus Karevan, que decidiu dar uma volta pelo mundo

- prosseguiu o shek a meia-voz. - Não é nisso que estavas a pensar, sacerdote?

- Era a ideia que me tinha ocorrido, sim - admitiu Ymur, um pouco a contragosto. - Mas estou há dias a observá-lo e não entendo o seu comportamento. Porque se enfurece tanto? Porquê toda esta destruição? Será que está furioso connosco e isto é algum tipo de castigo?

Christian sorriu.

- Acho que está simplesmente a passear - disse. - Talvez ainda se encontre um tanto desorientado. Afinal de contas, há muito tempo que os deuses abandonaram o nosso mundo, não é?

- Chamas àquilo "passear"? - retorquiu o sacerdote, incrédulo, indicando a montanha que continuava a convulsionar-se violentamente.

Christian encolheu os ombros.

- É um deus. Uma espécie de cúmulo de energia, chamemos-lhe assim. Enquanto não tiver um corpo de carne e osso que lhe permita mover-se num mundo material, a sua simples presença será tremendamente perigosa para qualquer um que se aproxime dele. Mas não creio que pretenda procurar um corpo: agora não. É que, embora um corpo lhe permitisse interagir com o mundo, até mesmo com as suas criaturas, desta vez não veio para isso.

Shail olhou para ele, lívido. Depressa vieram à sua mente lembranças das conversas que mantivera com Zaisei, com Jack e com o próprio Christian acerca dos Seis, do Sétimo, da derrota de Ashran: e tudo ganhou um novo sentido, muito mais sinistro.

- Sim - assentiu Christian, adivinhando os seus pensamentos. - Fizemos cumprir a profecia dos Oráculos, destruímos Ashran... e com isso apenas conseguimos libertar um mal maior neste mundo.

Shail desviou o olhar, sem dizer nada.

- Vês aquilo? - prosseguiu o shek, indicando a devastação invisível que abria caminho pela cordilheira. - Aquilo é um dos Seis. Não digo que o Sétimo seja mais justo ou mais bondoso que Karevan, para dar um exemnlo. Mas viveu muito tempo encerrado num corpo humano.

É capaz de nos ver, porque conhece o mundo a partir do nosso ponto de vista; por pequenos e miseráveis que possamos parecer-lhe, vê-nos. Dirias que Karevan tem consciência da nossa presença? Teria por acaso noção de que Ynaf vivia precisamente debaixo da montanha por onde ele estava a "passear"? Eu diria que não.

- Então, se não tem consciência, há que dizer-lho! - exclamou Shail. - Podemos falar com ele, pedir-lhe ajuda...

- Como? Achas mesmo que um deus escutaria a voz de um mortal?

- Já chega! - cortou Ymur com dureza. - Não devias falar assim. Mas o shek ignorou-o. Os seus olhos azuis continuavam cravados em Shail.

- Aí tens Karevan, o Senhor da Pedra, o pai dos gigantes. Podes meter-te à frente dele e fazer-lhe sinais de fogos multicolores que não será capaz de te ver, pois nem sequer tem olhos. Talvez te veja como uma coisa insignificante e maçadora que anda por ali. Ou talvez só repare em ti quando, sem querer, te tiver atirado para cima uma avalancha de neve ao passar casualmente. É esse um dos deuses que serves, Shail.

É esse um dos deuses a quem queres pedir ajuda.

Todos o fitavam agora, mudos de espanto, mas Christian limitou-se a virar a cabeça para as montanhas com um semblante impenetrável.

- És um jovem estranho - comentou o sacerdote.

- Talvez saiba do que está a falar - replicou Ydeon.

Shail estava perturbado e tinha os olhos fixos na montanha que se desfazia devido à simples presença do deus Karevan. com esforço, conseguiu afastar o olhar, voltando-se para Christian para lhe fazer uma pergunta; mas o jovem tinha fechado os olhos e levado os dedos às têmporas, concentrando-se em algo que só ele parecia captar. Inquieto, Shail viu-o sentar-se sobre a rocha, sério, como se acabasse de receber uma informação crucial. Quis interrogá-lo a esse respeito, mas não se atreveu.

- Se realmente é Karevan, não pode ignorar-nos - estava Ymur a dizer. - Nós, os gigantes, somos seus filhos, criou-nos das entranhas da rocha no início dos tempos.

- Então, porque é que deitou a minha casa abaixo? - perguntou Ynaf suavemente.

- Vocês têm de abandonar a cordilheira - disse então Christian, erguendo de novo a cabeça. - Eu, no vosso lugar, emigraria para sul, para os confins de Nanhai ou até para mais longe... e rezaria para que o vosso deus não resolvesse ir por aí.

Levantou-se rapidamente e deu meia-volta para se ir embora. Nenhum dos gigantes fez nada para o impedir.

Shail pareceu então despertar de um sonho.

- Espera! - Chamou-o, e correu atrás dele, como pôde, enterrando o bordão na neve. - Espera! Aonde vais?

Christian parou bruscamente e o feiticeiro quase tropeçou nele. O shek voltou-se; Shail apercebeu-se então de que havia nos seus olhos um lampejo de emoção contida.

- vou a Kazlunn - disse. O feiticeiro detectou um ligeiríssimo tremor na sua voz. - Aconteceu alguma coisa a Victoria; há alterações.

 

                 UM OLHAR HUMANO

Quando Victoria abriu os olhos, Jack estava com ela.

Poderia ter encontrado qualquer outra pessoa no quarto. Talvez Qaydar, que aparecia algumas vezes para verificar se havia alterações no seu estado, ou mesmo Kimara, que costumava fazer companhia a Jack nas longas horas que passava a velar a rapariga. Poderia ter lá estado qualquer sacerdote, qualquer feiticeiro ou semifeiticeiro, qualquer uma das muitas pessoas que iam diariamente ver com os seus próprios olhos os heróis da profecia. Mas naquele momento estavam sozinhos. Jack e Victoria. O dragão e o-unicórnio... ou o que restava dele.

Não era completamente por acaso. Jack não só tinha acabado por restringir o acesso ao quarto onde Victoria jazia, cansado das visitas de curiosos ou admiradores, mas também já tinha percebido mudanças na noite anterior.

Ninguém mais reparara, porque, embora o vaivém de feiticeiros, curandeiros e médicos fosse contínuo, apenas Jack passava ali a maior parte do tempo, incluindo as noites. Já se tinha acostumado a deitar-se na cama, junto de Victoria, a rodeá-la com os seus braços e a dormir ao seu lado, talvez porque sentir as batidas lentas do seu coração o tranquilizava e o ajudava a descansar. Nos primeiros dias depois de a jovem ter perdido o seu corno, Jack era incapaz de dormir mais de dez minutos seguidos. Aterrava-o a ideia de que a sua amiga pudesse morrer quando ele não estivesse acordado. Por esse motivo, quando o sono o vencia, preferia estar o mais perto possível dela.

Assim, foi o único a aperceber-se da luz.

Naquela noite, tinha acordado bruscamente de um dos seus pesadelos. Os sonhos maus assaltavam-no com frequência nos últimos tempos. A maioria das vezes tinham a ver com Victoria, mas não só com ela. As lembranças do que acontecera na Torre de Drackwen torturavam-no muitas vezes. A batalha contra Ashran, a escolha de Victoria, a morte de Sheziss... tantas coisas que teria preferido esquecer, mas que continuavam ali, na sua memória, indeléveis. Contudo, aqueles pesadelos não eram os piores. Sonhava muitas vezes que Victoria não acordava mais daquele estado ou que acordava para morrer nos seus braços, privada daquilo de que a sua alma de unicórnio necessitava para continuar a viver. Há uns tempos, Qaydar dissera que qualquer unicórnio teria morrido imediatamente após lhe terem extirpado o seu corno; mas a alma humana de Victoria agarrava-se à vida com desespero e sustentava a muito custo ambas as essências. Por esta razão, o corpo humano de Victoria mantinha-se naquele estado letárgico: se acordasse, talvez a sua alma não tivesse força suficiente para preencher aquele corpo e ao mesmo tempo manter viva a essência de unicórnio. E, se o unicórnio morresse, Victoria morreria com ele.

Desta forma, Jack não tinha a certeza se queria que Victoria acordasse. Eram demasiadas interrogações, demasiadas incógnitas. Ninguém sabia o que podia acontecer caso se registasse alguma alteração na rapariga.

Depois daquele pesadelo, um de tantos, Jack apressara-se a averiguar se Victoria estava bem. Na penumbra do quarto, tinha-a estreitado e falara-lhe ao ouvido, como fazia muitas vezes. Foi então que se apercebeu de um brilho débil.

No início, pensou que o tinha imaginado. Mas afastou o cabelo da testa de Victoria e esquadrinhou o seu rosto, expectante, na penumbra do quarto.

E sim, lá estava: apenas uma faísca, tão débil que era preciso fazer um esforço para a ver. Mesmo entre os olhos, um pouco mais acima.

Jack suspirou. Não queria iludir-se, talvez não significasse nada. Acendeu uma luz e estudou o pálido rosto de Victoria. Mas não voltou a ver aquele brilho.

Não conseguiu voltar a adormecer, mas também não se afastou de Victoria durante toda a noite. No dia seguinte, não só não disse nada a ninguém, como ainda arranjou maneira de mais ninguém entrar no quarto. Queria estar junto de Victoria quando alguma coisa mudasse, se é que tinha de mudar. E somente ele. Ninguém mais; à excepção, talvez, de Christían. Mas o shek tinha partido há alguns meses e não voltara a dar sinais de vida.

Desta forma, quando as pálpebras de Victoria estremeceram e se abriram lentamente, só Jack estava ali para ver.

Foi lento, muito lento. Ou pelo menos assim pareceu a Jack, talvez porque o seu coração batia a toda a velocidade enquanto os grandes olhos de Victoria voltavam a olhar para ele pela primeira vez em tanto tempo. Jack respirou fundo e também pestanejou, porque tinha os olhos húmidos. Engoliu em seco.

- Olá - sussurrou. - Olá, pequena. Consegues... consegues ouvir-me?

Ela abriu os lábios, mas não disse nada. Olhava para ele: agora, sim, olhava para ele. E Jack teria jurado que o reconhecia.

- Victoria - disse, esperando talvez que ouvir o seu nome a ajudasse a acordar completamente.

Victoria gemeu debilmente. Jack acariciou a sua face, com os olhos cheios de lágrimas. Uma parte dele dizia-lhe que devia correr a avisar Oavdar, os curandeiros, qualquer um que pudesse ajudá-la. Mas no fundo do seu coração sabia que aquele momento pertencia somente a eles. Nada nem ninguém devia estragá-lo.

- Como estás? Diz-me, como te sentes?

Ela olhou para ele, desorientada e algo assustada. Ele rodeou-a com os braços e embalou-a com doçura.

- Calma. Calma, está tudo bem. Vais ficar bem, Victoria, calma. Estou aqui para te ajudar.

- Jack? - disse ela por fim, com um fio de voz.

Algo se soltou no coração de Jack. Meses de nervos, angústia, medo e incerteza, de comer pouco e de dormir menos ainda tiveram as suas consequências e, de repente,

sentiu-se estranhamente fraco e aliviado ao mesmo tempo. Abraçou Victoria, apoiou a cara na sua cabeleira escura e começou a chorar suavemente.

- Os unicórnios são a ponte entre a magia do mundo e os futuros feiticeiros. Eles não podem usar a magia, não como nós o fazemos, mas podem entregá-la. E nós, os

feiticeiros, podemos manipulá-la com a nossa vontade. E como expressamos essa vontade? Através da palavra. É por isso que desenvolvemos uma linguagem própria, o idhunaico arcano; porque não basta desejar algo para que se torne realidade: é necessário expressá-lo. Deste modo, concentramos a nossa vontade num só ponto, numa só acção futura, e a magia... Kimara, estás a ouvir-me? Kimara!

A jovem voltou à realidade e afastou os olhos da janela com uma expressão culpada. As lições de Qaydar costumavam ser longas e entediantes. Muito teóricas e pouco práticas.

- Agradecia que levasses isto mais a sério - repreendeu-a o Arquifeiticeiro. - És a primeira nova feiticeira em mais de quinze anos e é possível que sejas a última feiticeira em Idhún. Somos poucos e o tempo que temos para procurar descobrir a forma de transmitir o nosso poder sem unicórnios...

- Não é propriamente ilimitado - concluiu ela, com um suspiro. Sim, mestre, eu sei. - Como não havia de saber? Qaydar repetia-lho pelo menos três vezes ao dia. - É só que... que não vejo sentido nisto. Passo o dia a estudar magia... sem fazer magia. Quando vou aprender a utilizar o meu poder para alguma coisa?

- És demasiado impaciente, rapariga. Antes de utilizar o poder, há que saber como funciona...

- com Aile aprendi vários feitiços - interrompeu ela, sem conseguir aguentar mais. - De cura, sobretudo, mas também alguns de defesa e ataque.

Qaydar semicerrou as pálpebras, e Kimara soube que o tinha magoado. Não só pela comparação, mas também, sobretudo, porque lhe recordara que, apesar de Aile não ser uma arquifeiticeira, tinha-os salvado a todos no bosque de Awa, sacrificando a sua própria vida. O próprio Qaydar fora testemunha disso.

- As circunstâncias eram outras - disse o feiticeiro com frieza. - Na altura estávamos em guerra.

- Continuamos em guerra! - explodiu Kimara. - Na minha terra surgiu uma rebelião! A minha gente sublevou-se para lutar contra Sussh, para o expulsar de Kash-Tar. Pela primeira vez em muitos séculos, as tribos do deserto lutam unidas... e lutam em meu nome! Enquanto isso, estou aqui... sem poder ajudá-los.

- Já falámos sobre isso, Kimara. És uma feiticeira, já sabes o que isso significa. Não podemos dar-nos ao luxo de te perder numa guerra local.

- Não é uma guerra local! Continua a ser a guerra contra os sheks, a de sempre! Uma guerra que não acabou nem acabará até que tenhamos acabado com a última dessas criaturas.

Qaydar fitou-a, sem dizer palavra. Kimara respirou fundo, procurando acalmar-se. Sentia um grande respeito pelo Arquifeiticeiro, mas a cada dia que passava fechada na Torre de Kazlunn era-lhe mais difícil permanecer calada.

- O último dragão não é da mesma opinião - observou então Qaydar. Kimara hesitou. No fundo, era Jack que a retinha ali, bem como o facto de ele não ter feito nada para reiniciar a guerra contra as serpentes. Isso, pensava por vezes, não era próprio do Jack que ela conhecera. Ergueu os olhos para o Arquifeiticeiro e hesitou antes de dizer:

- Não, e isso não é normal.

- Não é normal? Por acaso conheces os dragões a ponto de poder dizer o que é ou não normal neles?

- Pode ser que não, mas conheço Jack. Atravessámos juntos o deserto e, na altura... era diferente. Odiava as serpentes e lutava como um verdadeiro dragão. Depois disseram que Kirtash o tinha matado, mas tempo depois regressou... e parece o mesmo, mas não é.

- Está afectado pelo que aconteceu a Victoria...

- Não, é algo mais. Quando lhe falamos de exterminar os sheks ou de os expulsar de Idhún para sempre, reage como se essa ideia o incomodasse e Até diria que se tornou amigo desse meio-shek perverso... Essa é uma conduta própria de um dragão?

Qaydar abriu a boca para responder, mas Kimara prosseguiu, cada vez mais alterada, apontando para o pedaço de céu que se via através da janela:

- Aqueles são os verdadeiros dragões de Idhún! Os que vieram em nosso auxílio para lutar contra os sheks, os que hoje em dia continuam a enfrentá-los.

Qaydar olhou de relance pela janela, embora já suspeitasse a que é que Kimara se referia: um elegante dragão de tons alaranjados aproximava-se da torre, envolto nas luzes avermelhadas do primeiro entardecer. A ilusão era perfeita; mas aqueles que tinham lutado na guerra de Nandelt junto dos Novos Dragões sabiam que qualquer dragão que não fosse Yandrak tinha sido fabricado pela feiticeira Tanawe, a quem já chamavam a Fabricante de Dragões, e a sua gente. Após a vitória do bosque de Awa, os Novos Dragões não tinham ficado quietos. Tanawe continuara a fabricar dragões, toda uma nova frota, e não lhe faltavam recursos: a rainha Erive de Raheld tinha-a tomado sob ar sua protecção. Além disso, a cada dia que passava chegavam mais e mais jovens às instalações dos Novos Dragões em Thalis: alguns pediam para se juntar à equipa da oficina de Tanawe; outros aspiravam formar-se como pilotos de dragões. A história de Kestra, a valente piloto que afinal era a princesa Reesa de Shia e que tinha morrido na batalha de Awa, lutando contra os sheks, era uma das favoritas dos cantadores de notícias. As façanhas do príncipe Alsan de Vanissar à frente da Resistência também eram bom material para os contos e histórias. No entanto, não existiam relatos que falassem da derrota de Ashran, nem de como o dragão e o unicórnio tinham feito cumprir a profecia. Sabia-se que ambos viviam na Torre de Kazlunn e que a dama Lunnaris se debatia entre a vida e a morte. Porém, uma vez que Yandrak era pouco dado a deixar-se ver e o unicórnio também não estava em condições de tomar públicas as suas experiências, ninguém sabia o que tinha acontecido realmente em Drackwen. Naquela batalha, eles tinham estado sozinhos.

Em Kazlunn sabia-se que houvera uma terceira pessoa. Sabia-se que Kirtash, o shek, tinha acompanhado o dragão e o unicórnio na sua luta contra o Necromante. Sabia-se que, por alguma razão desconhecida, o dragão protegia o filho de Ashran. Mas pouco mais.

Os rumores em torno do estranho trio eram confusos e desconcertantes. Toda a gente sabia que nenhum dos três tinha apoiado a Resistência e os Novos Dragões em Awa. Após a derrota dos sheks, não demoraram muito a encontrar o dragão de Kimara no bosque, feito em pedaços; o dragão dourado que muitos tinham tomado por Yandrak. Mas isso não era tudo: pior mesmo do que a estranha aliança do último dragão com um shek era o falatório que ligava Kirtash à própria Lunnaris. A uns parecia uma história maravilhosamente trágica, mas a maioria achava a ideia demasiado repugnante para ser verdadeira.

Não, decididamente aqueles três jovens não eram heróis comuns. Era bastante mais simples e menos perturbador cantar as façanhas do príncipe Alsan de Vanissar, do feiticeiro Shail, de Aile, a poderosa feiticeira feérica, de Hor-Dulkar, o Senhor dos Nove Clãs, dos ferozes feéricos do bosque de Awa, de Tanawe e dos seus dragões, de Denyal, Covan, Kestra e todos os outros, até mesmo da própria Kimara, a semi-yan, do que falar do dragão, do unicórnio... e do shek.

Os heróis aclamados por todos eram os Novos Dragões. Dúzias de dragões artificiais sulcavam os céus de Nandelt, perseguindo as serpentes onde quer que se escondessem. Sabia-se que Denyal e Tanawe estavam a preparar uma esquadra de dragões para enviar a Kash-Tar, a fim de ajudar os rebeldes que se tinham insurgido contra Sussh. Qaydar estava ao corrente de que Kimara queria ir com eles e voltar a pilotar um dragão, como fizera na batalha de Awa.

- Não sabes o que estás a dizer. Jack continua a ser um dragão, o último dragão. Por mais perfeitas que sejam essas máquinas, não deixam de ser máquinas. Alguém como tu, por cujas veias corre o fogo de Aldun, deveria reconhecer a diferença.

Kimara baixou a cabeça, a tremer. Desde a primeira vez, quando os seus olhos se tinham cruzado com os de Jack, no deserto, tinha tido uma fé inabalável nele, soubera que aquele dragão os salvaria a todos. Mas depois tinha morrido, ou pelo menos fora o que constara. E tiveram de travar a última batalha sozinhos. Agora, Jack tinha regressado, mas não se comportava de modo algum como um dragão. "Nós somos os Novos Dragões", dissera Kestra uma vez. "Triunfaremos onde os Velhos Dragões foram derrotados." Kimara estava a começar a acreditar que tinha razão.

- Não vais para Kash-Tar, Kimara - concluiu Qaydar. - Quer queiras quer não, a tua vida pertence à Ordem Mágica.

- A minha vida só pertence a mim - rebelou-se ela, com os seus olhos de fogo brilhando furiosamente. - Se quiser regressar a Kash-Tar, ninguém vai conseguir impedir-me.

Qaydar avançou um passo para ela.

- Não me desafies, rapariguinha - disse com calma. - Ainda continuo a ser o teu mestre.

Durante um momento, nenhum dos dois disse nada. Então, naquele breve silêncio, alguém bateu à porta.

- Entra, Jack - suspirou Qaydar, voltando-se para a entrada. Kimara não o admitiria nunca, mas, quando ele quebrou o contacto visual, sentiu-se muito melhor.

A porta abriu-se e o jovem dragão entrou na sala. Kimara desviou o lhar. Ainda se sentia confusa a respeito de Jack. Desaprovava a sua atitude sim, e preferia o Jack que conhecera no deserto; mas não era menos verdade que o novo Jack parecia mais adulto, mais poderoso e mais seguro de si mesmo. E havia algo nele que a intimidava.

Ele mal a olhou, o que era outro sinal do muito que tinha mudado. Não é que já não gostasse dela como amiga: se ela o cumprimentava, se se aproximava dele, tratava-a com o carinho e a confiança de sempre. Mas a maior parte do tempo agia como se não se lembrasse de que ela existia. E não o fazia de propósito. Simplesmente, estava distante, nalguma dimensão estranha e longínqua, num mundo seu no qual se sentia mais cómodo... num mundo menos humano. "Será que todos os dragões eram assim?", perguntou-se a semi-yan. "com esta aura de poder, com um olhar tão intenso, com a forma de ver o mundo de cima, como se todos os outros fossem muito pequenos em comparação com eles." Não era uma ideia agradável, no entanto... não podia negar que, apesar de tudo, continuava a achar Jack muito atraente, até mais do que antes.

- Qaydar - disse o rapaz. - Andava à tua procura.

Kimara notou que naquele dia estava diferente. Tinha os olhos húmidos e estava a tremer. Mesmo assim, continuava a intimidá-la com a sua mera presença.

- O que se passa, rapaz? É...?

- Victoria - assentiu ele. - Victoria acordou.

Kimara deixou escapar uma exclamação de surpresa e Jack voltou-se para ela.

- Olá - cumprimentou-a com um sorriso.

"Não me tinha visto", pensou ela. Não era a primeira vez que acontecia.

- Louvados sejam os Seis - disse Qaydar. - Como está?

- Não consegue mexer-se. Está tão fraca que mal consegue falar, mas está... está viva e consciente.

- Louvados sejam os Seis - repetiu Qaydar. - vou vê-la imediatamente. vou avisar...

- Não - cortou Jack. - Está aturdida, não quero confundi-la mais enchendo o seu quarto de gente. Não digas nada a ninguém. Ainda não. Tem de recuperar forças.

"Voltou a esquecer-se de que estou aqui", compreendeu Kimara.

- De acordo - acedeu Qaydar. - Vamos vê-la. Continuaremos depois com a lição - disse à sua discípula.

Isso não era verdade e ela sabia-o. Todos estariam demasiado concentrados em Victoria para se lembrarem de uma aprendiza de feiticeira.

Quando os dois saíram da sala, Kimara suspirou e voltou a espreitar pela janela. Viu então que o dragão alaranjado já tinha pousado no miradouro e correu a juntar-se a ele.

Tinha-o reconhecido mesmo à distância. Era o dragão de Tanawe.

- Rapariga - disse Qaydar com doçura. - Lembras-te de mim? Victoria moveu a cabeça com dificuldade e devolveu-lhe um olhar cansado. Reparou no rosto imberbe do feiticeiro, no seu longo cabelo de tonalidades verdes, preso numa trança, naquelas feições que o faziam parecer muito mais jovem do que era na realidade.

- Qay... dar - disse ela com esforço.

- Muito bem - assentiu o Arquifeiticeiro, satisfeito. - Estás na Torre de Kazlunn, Victoria. A salvo. Agora descansa, está bem?

Victoria anuiu. Tentou levantar a mão, procurando a de Jack, mas só teve forças para levantar um dedo trémulo. O rapaz apercebeu-se do gesto, pegou-lhe na mão e estreitou-a com força.

- Olha para a testa dela, Qaydar - disse Jack. - Vês?

O Arquifeiticeiro examinou o rosto de Victoria, que havia fechado as pálpebras, extenuada. Na testa da rapariga, entre os olhos, havia um estranho buraco negro que assinalava o lugar onde antes se erguia o corno de Lunnaris. Tinha estado assim desde a luta contra Ashran, mas Jack podia jurar que aquele círculo de sombras se tornara um pouco mais pequeno.

- Está a fechar-se, Qaydar.

- Tens a certeza? Não vejo nenhuma alteração. Será que não estás a querer ver coisas, rapaz?

- Sei muito bem que aspecto tem - disse Jack, secamente. - Reduziu. Muito pouco, é verdade, mas... é um começo. Pode ser que a ferida acabe por sarar completamente.

- Não podemos sabê-lo sem ver o unicórnio, Jack.

Jack respirou fundo. Aquele buraco de escuridão representava uma lesão, isso era verdade; mas essa lesão tinha-se produzido no corpo de unicórnio de Victoria, portanto, enquanto ela apresentasse forma humana, os médicos não podiam curá-la. O problema era que Victoria não podia transformar-se estando inconsciente e, agora que acordara, parecia estar demasiado fraca para sequer tentar. Além disso, o mais certo era que a metamorfose num unicórnio sem como a matasse instantaneamente. A sua essência ferida tinha-se refugiado naquele corpo humano, são e incólume de momento, sendo essa a razão pela qual ainda estava viva.

- Dá-lhe tempo - disse Jack. - E dá-me tempo para a reanimar. Não deixes que se espalhe a notícia de que acordou. Ainda não está preparada para enfrentar o mundo.

Qaydar ficou a olhar para ele, pressentindo que lhe escondia alguma coisa. Mas não teve oportunidade de descobrir mais nada, porque naquele instante vieram anunciar-lhe a chegada da feiticeira Tanawe, a Fabricante de Dragões.

- Fica com ela - disse a Jack. - Voltarei logo que me seja possível. O jovem assentiu.

Não tardaram a ficar outra vez sozinhos, ele e Victoria. Jack olhou para ela intensamente.

- Não lhe falei da luz - confiou-lhe.

Ela não reagiu, mas Jack sabia que estava a ouvir. Simplesmente, não tinha forças para abrir os olhos sequer.

- Ele não sabe - prosseguiu Jack. - Não consegue ver a luz dos olhos de um unicórnio porque, mesmo tendo antepassados feéricos, é sobretudo humano. Por isso não se apercebeu... mas depressa irão sabê-lo, Victoria. Mais cedo ou mais tarde, um feérico irá detectá-lo. Christian descobri-lo-á imediatamente. Não sei o que irá acontecer nessa altura, mas... por via das dúvidas, é melhor não lhes dizer nada.

Victoria abriu então os olhos e fitou-o, triste e cansada. Jack engoliu em seco. Os seus olhos continuavam a ser tão belos como os recordava, mas tinham perdido aquele brilho que os tornava especiais. Do pálido rosto de Victoria emergia um olhar profundamente humano.

Qaydar encontrou Tanawe a conversar animadamente com Kimara no terraço, junto ao enorme dragão artificial que repousava sobre as lajes de mármore, enroscado sobre si mesmo.

- A tentar roubar-me feiticeiras para a tua causa, Tanawe? - cumprimentou-a Qaydar com um sorriso.

As suas relações com a Fabricante de Dragões tinham-se deteriorado muito nos últimos tempos, mas ter visto Victoria consciente melhorara bastante o seu humor e estava disposto a fazer as pazes. Além disso, os dois feiticeiros tinham lutado juntos em Nurgon e na batalha de Awa. No fundo, Qaydar lamentava que se tivessem distanciado.

- As feiticeiras deviam ser livres de ir para onde entenderem, Qaydar - replicou a feiticeira com frieza. - Afinal de contas, a Ordem Mágica já não é o que era; não se pode dar ao luxo de continuar a manter as mesmas normas de há vinte anos.

O Arquifeiticeiro olhou para Kimara, que assumiu um ar inocente. Não conseguiu enganá-lo. Sabia que Tanawe queria Kimara nas suas fileiras, como piloto ou como feiticeira de apoio, dado que os dragões artificiais precisavam da magia para funcionar e, desde a extinção dos unicórnios, os feiticeiros tinham começado a tornar-se uma raridade em Idhún. Também sabia que a luta de Tanawe contra os sheks tinha passado a ser algo pessoal depois da batalha de Awa. Nela falecera Rown, o seu companheiro, o pai do seu filho Rawel. E Denyal, o seu irmão, tinha perdido um braço, selvaticamente mutilado pelo animal em que se tornara o príncipe Alsan de Vanissar.

Rown e Tanawe haviam desenvolvido juntos a ideia dos dragões artificiais. Denyal tinha-os liderado contra os sheks. Juntos, os três, eram a alma dos Novos Dragões. Eles e meia dúzia de pilotos valentes, como Garin, como Kestra, como Kimara.

Todos eles estavam mortos, à excepção de Kimara. Tinham vencido a batalha, mas pagaram um preço muito alto por aquela vitória. E Tanawe, profundamente ferida, decidira que os Novos Dragões não morreriam ali.

A feiticeira fora uma pessoa alegre e jovial, para quem a construção de dragões era, em simultâneo, um desafio e algo tão belo como fazer com que aquelas poderosas criaturas voltassem a sulcar os céus idhunitas. Antes, Tanawe liderara os Novos Dragões por vocação. Agora fazia-o por vingança. Tanawe tornara-se numa mulher dura e ressentida que poucas vezes sorria. Além disso, partilhava três coisas com Kimara: a admiração pelos dragões, o ódio pelos sheks e o desejo de continuar a lutar.

- A Ordem Mágica nunca voltará a ser o que era se os feiticeiros se dispersarem em vez de se unirem, Tanawe - replicou Qaydar.

- A Ordem Mágica nunca voltará a ser o que era, e ponto - cortou Tanawe. - Não sem unicórnios que consagrem mais feiticeiros. Quando morrer o último de nós...

- Os teus dragões deixarão de funcionar. É por isso que devemos unir-nos para encontrar a maneira de continuar a transmitir a nossa magia, com ou sem unicórnios...

- Os feiticeiros mais poderosos andam há séculos a tentar emular os poderes dos unicórnios. Não devíamos perder tempo a ir atrás do impossível. Os meus dragões até

podem deixar de funcionar, mas nessa altura teremos exterminado todas as serpentes do nosso mundo. Como vês, temos uma longa tarefa pela frente, de modo que te agradecia que deixasses de reter os feiticeiros que podem ser muito mais úteis nas nossas oficinas de Thalis.

Qaydar suspirou intimamente. Já tinham discutido aquilo muitas vezes e nunca chegavam a um acordo. Nenhum dos dois daria o braço a torcer.

- Vieste para levar Kimara, não é? Deixa que te relembre que a sua formação ainda não está concluída. Ainda é uma aprendiza.

- Eu encarrego-me da sua formação, Arquifeiticeiro. Além disso, Kimara é também uma guerreira, não podes obrigá-la a passar a sua vida encerrada numa torre.

- É uma feiticeira - respondeu Qaydar, secamente. - E isso não fui eu quem decidiu... mas sim um unicórnio. - Voltou-se para Kimara. - Entregaram-te um dom maravilhoso,

um dom pelo qual muitos matariam. O unicórnio que te deu esse poder precisa de ti, precisa de todos nós agora mesmo. Tens de decidir o que vais fazer com o que te foi entregue. Se vais devolver o favor, aprendendo os mistérios da magia e ajudando-nos a restaurar-lhe a saúde... ou se vais desperdiçar os teus dons deixando que te matem numa guerra que não é tua.

- É a minha guerra... - começou Kimara.

- Não, não é. Nós, feiticeiros, não temos pátria, não temos terra. Todo o Idhún é o nosso lar, o mundo inteiro é a nossa pátria. E não importa quantas vezes salves Kash-Tar, não importa quantas serpentes extermines, porque, -se não salvarmos o último unicórnio, não teremos salvado nada.

Nenhuma das duas respondeu. Qaydar suspirou, cansado.

- Quando é que partem para Kash-Tar, Tanawe?

- Calculo que estaremos prontos daqui a uns quinze dias, aproxima damente.

Qaydar voltou-se para Kimara.

- Tens quinze dias para pensar nisso. Sei que desejas partir agora, mas... Não é uma boa altura. As coisas estão a mudar, para bem ou para mal. Percebeste?

A semi-yan assentiu.

- Sim.

- Está a anoitecer, Tanawe. vou pedir que te preparem um quarto. Depois poderemos cear juntos, se quiseres, mas agora... há outros assuntos que requerem a minha atenção. Boa tarde, senhoras.

com uma breve inclinação, Qaydar despediu-se delas e voltou a entrar na torre.

- As coisas estão a mudar? - repetiu Tanawe. - A que se refere? Kimara recordou o pedido de Jack.

- A nada em particular - mentiu. - Já sabes como é... Vê conspirações e profecias em todo o lado. - Ergueu os olhos para ela. - Quinze dias, Tanawe. Continuo a querer ir convosco, mas não precisam de mim, pelo menos não por enquanto; e, acima de tudo, Qaydar continua a ser o meu mestre.

- Gostaria de contar contigo para afinar os dragões, mas entendo a tua posição e respeito-a.

"Não é por Qaydar", disse Kimara para si. "É por ti, Victoria. Qaydar tem razão: estou em dívida para contigo e és capaz de precisar de uma amiga por perto nestes dias."

Shail observou com apreensão a reluzente perna metálica que Ydeon lhe mostrava.

- Não podes estar a falar a sério - disse. Era a enésima vez que repetia aquelas palavras.

O gigante abanou a cabeça.

- Esteve toda a noite dentro do hexágono de poder que tu próprio criaste, a absorver energia mágica. Deu muito trabalho, mas já está pronta; tenho a certeza de que reparaste nas diferenças. Vais desistir agora?

O feiticeiro contemplou a perna artificial. Era certo que, se ficasse a olhar para ela fixamente, podia perceber uma leve palpitação na sua superfície polida e brilhante. Suspirou.

- Como vou acoplar isso ao meu coto? Por muito viva que pareça estar, não é uma parte de mim.

- No entanto, deseja fazer parte de ti, porque foi a tua magia que lhe conferiu vida e porque é uma perna que acredita ser de carne e osso. Precisa de um corpo ao qual se possa acoplar. Mas tu já devias saber estas coisas. Ou não és um feiticeiro?

Shail hesitou. Sim, era verdade, um feiticeiro mantinha a sua mente aberta a todas as possibilidades da magia; um feiticeiro acreditava no inacreditável. Sobretudo ele, que tinha visto na Terra como a energia podia mover coisas artificiais; que assistira ali mesmo, em Idhún, ao descolar dos fabulosos dragões de Tanawe, máquinas que ganhavam vida graças à magia. "Mas não eram dragões de verdade", disse para si. "Embora parecessem."

A verdade é que tinham sido reais para muita gente, pessoas que tinham lutado pela liberdade de Idhún à sombra das suas grandes asas. Eram máquinas, mas tinham substituído os verdadeiros dragões com grande eficácia. Tal como as máquinas da Terra substituíam muitas outras coisas.

"Para preencher um vazio", pensou de repente. "É para isso que servem estes objectos."

Após uma breve hesitação, subiu lentamente a túnica e arregaçou as calças até deixar a descoberto o coto da perna direita, que as fadas lhe tinham amputado há algum tempo no bosque de Awa, para impedir que o veneno de um shek se espalhasse pelo resto do seu corpo.

Ydeon fez tenção de aproximar a perna artificial dele, mas Shail de teve-o com um gesto.

- Não. Eu faço-o.

Segurou na perna de metal com as duas mãos. Surpreendeu-se ao senti-la quente entre os seus dedos. Também lhe pareceu que palpitava. Respirou fundo e aproximou-a do coto, como quem tenta calçar uma bota. Vacilou por um momento, antes de a colocar no lugar onde havia estado a perna perdida.

Foi instantâneo. O metal fluiu através da sua pele, da sua carne, procurando fundir-se com ela. Shail soltou um grito e largou a perna artificial, mas esta já tinha lançado os seus tentáculos de metal líquido e entrelaçava-os em torno dos músculos do feiticeiro.

- Tira-me esta coisa! - arquejou Shail, aterrorizado. - Arranca-a! Ydeon limitou-se a contemplar a cena, de braços cruzados, com impassibilidade pétrea. Quando, por fim, Shail se deixou cair no chão, entre convulsões, a perna de metal tinha-se solidificado, unindo-se por completo ao seu corpo de carne numa fusão perfeita.

- Vês? - disse o gigante. - Não era caso para tanto.

Shail atreveu-se a dar uma olhadela. A sua nova perna cintilava com um suave reflexo metálico que sugeria a magia que pulsava nela. Percorreu com um dedo a superfície lisa e perfeita, as formas suaves e equilibradas.

- É bonita - disse em voz baixa, erguendo a cabeça para olhar para Ydeon. - vou poder andar com ela?

- Tenta.

Shail hesitou. Por via das dúvidas, agarrou na sua muleta e pôs-se de pé, apoiando-se nela e na perna esquerda. Dobrou o joelho direito.

- Mas é de metal - disse.

- Tenta - repetiu Ydeon.

Shail mordeu os lábios, mas procurou mover o tornozelo direito... um tornozelo artificial.

Para sua surpresa, o pé de metal executou a ordem, traçando um semicírculo, tal como Shail desejava. Agitou então os dedos de metal e contemplou, estupefacto, como se mexiam. Dobrou o joelho. Parecia impossível que aquela articulação metálica pudesse mexer-se... e, não obstante, fê-lo sem um único ruído.

Engoliu em seco e apoiou a planta do pé no chão, com cuidado. Hesitou antes de deixar cair o peso do corpo sobre a perna direita. Esta manteve-se tão firme como a esquerda. Shail deixou escapar uma breve gargalhada incrédula. Tentou dar um passo, ainda sem soltar a muleta. A perna de metal obedeceu aos seus desejos e aguentou o seu corpo enquanto o pé esquerdo avançava um pouco. Pesava mais do que a sua perna de carne, mas podia movê-la apenas com um pouco mais de esforço.

Maravilhado, Shail continuou a dar passos, um atrás do outro, lentamente, até que se sentiu suficientemente seguro para deixar a muleta de lado. Depois de dar várias voltas pela sala e uma vez convencido de que, efectivamente, a sua perna de metal funcionava na perfeição, ergueu a cabeça para Ydeon, radiante.

- Consigo caminhar - disse; a voz tremia-lhe. - Consigo caminhar outra vez! Cheguei a acreditar que nunca mais voltaria a fazê-lo. - Ficou sério de repente. - Obrigado, Ydeon. Estou em dívida para contigo. Como posso pagar-te?

O gigante sorriu.

- Gostaria de voltar a ver algum dia Domivat, a espada de fogo, e conhecer o seu portador.

Shail reflectiu. Depois assentiu, com energia.

- Prometo-te que trarei cá os dois logo que me seja possível. Pensou em Jack. Enquanto Victoria estivesse doente, não se separaria dela, muito menos para ir ao fim do mundo. Mas Kirtash dissera que ela tinha acordado.

Respirou fundo. Há já vários dias que o shek abandonara Nanhai e Shail vira-se tentado a segui-lo, regressando a Kazlunn, para junto de Jack e de Victoria. Porém, embora lhe doesse admiti-lo, Kirtash tinha razão: a jovem já não era responsabilidade sua. De qualquer forma, não resistira à tentação de escrever uma mensagem a Zaisei contando-lhe tudo o que acontecera. Chamara um pássaro das neves para que levasse a mensagem até Rhyrr, onde a jovem sacerdotisa se encontrava.

- Vais-te embora? - perguntou então Ydeon.

Shail andava há uns tempos a pensar nisso e, se ainda não partira, tal devia-se ao facto de a perna de metal não estar pronta. Uns dias antes tinha prometido a Ydeon que esperaria, que se arriscaria a experimentá-la. Lançou-lhe um olhar crítico. Sim, parecia estranha, mas funcionava. E tinha a impressão de que, se por enquanto se sentia pouco à vontade com ela, não era por ser um membro artificial, mas porque já andava há tanto tempo com uma só perna que lhe custava habituar-se à ideia de que voltara a ter duas. Porém, para já não tinha a certeza de ter concluído a sua missão em Nanhai. Obtivera informações muito valiosas e queria falar com Ha-Din e com Gaedalu acerca da chegada de Karevan a Idhún. No entanto, ainda não tinha notícias de Alexander e, além disso, Ymur dissera-lhe que esperava por ele no Grande Oráculo.

Karevan, se é que era realmente ele, continuava a fazer tremer as montanhas. Mas os gigantes pareciam ter-se acostumado ao fenómeno, porque tinham deixado de lhe prestar atenção. Ynaf instalara-se noutra caverna, mais a sul, e estava ocupada a tentar torná-la habitável. Correra o rumor, através da pedra, de que aquela zona era perigosa, e alguns gigantes tinham optado por se mudar, como ela fizera, para longe dali. De resto, tudo continuava como sempre.

Ymur regressara às ruínas do Grande Oráculo. Segundo lhe contara, esperava visitas. Ha-Din tinha enviado um grupo de sacerdotes, construtores e pedreiros para iniciar as obras de reconstrução do edifício, que tinha sido destruído pelos sheks muitos anos antes. Após a derrota de Ashran, nada parecia impedir que os Oráculos fossem erigidos de novo. Os sheks tinham coisas mais importantes em que pensar.

- Vou-me embora - decidiu então Shail -, mas não para sul. vou para norte, para o Grande Oráculo. vou contar aos enviados de Ha-Din o que vimos nas montanhas. Talvez eles queiram dar uma olhadela por si mesmos. E, se regressarem ao Oráculo de Awa... irei com eles.

"E de lá partirei para Rhyrr", disse para si, "para ir ver Zaisei".

O Anel de Gelo por pouco não acabara com a sua vida, quando tentara atravessá-lo. Talvez não fosse boa ideia partir sozinho; de qualquer forma, do Grande Oráculo podia tomar a rota da costa que contornava Nanhai até chegar a Nanetten, que era o caminho pelo qual chegaria e partiria o grupo enviado por Ha-Din.

Ydeon encolheu os ombros.

- Como queiras - disse. - Que faças boa viagem. Estarei aqui quando regressares, com ou sem o portador de Domivat.

Deu meia-volta e meteu-se na sua oficina. Shail ficou de boca aberta. Seguiu-o e, ao andar, não pôde deixar de reparar que a sua nova perna continuava a adaptar-se perfeitamente aos seus movimentos.

- Espera! Não queres acompanhar-me? Ydeon voltou-se para ele.

- Para quê? Não tenho nada a fazer lá e... ah, já percebi. Queres que te acompanhe. Precisas que te acompanhe.

Shail corou. Um humano teria considerado logo a ideia de que talvez não apetecesse ao feiticeiro viajar sozinho por uma terra estranha. O gigante nem tinha pensado

nisso.

- Vocês, humanos, precisam de companhia. Esqueço-me sempre desse pormenor.

"Kirtash não precisa de companhia", pensou Shail de repente. "É por isso que Ydeon e ele se dão tão bem. Mas é que... na verdade, Kirtash não é totalmente humano."

- Deixa estar. Tenho a minha magia e uma perna nova; eu desenrasco-me bem.

Ydeon assentiu.

- Muito bem. Faz boa viagem, feiticeiro. "Um humano teria insistido", pensou Shail.

- Obrigado - disse, contudo.

Naquela noite a perna de metal deu-lhe problemas. De súbito, sem razão aparente, a zona onde a carne se fundia com o metal começou a doer-lhe terrivelmente, como se estivesse a queimar. A dor intensa despertou-o de um sono leve e inquieto, e teve de se conter para não gritar. Afastou as mantas e arrastou-se até à borbulhante caldeira de lava que aquecia a sala e a iluminava tenuemente. Examinou a perna nova à luz avermelhada, cerrando os dentes para resistir à dor. Pareceu-lhe que tinha o músculo inchado.

Respirando com dificuldade, aplicou a si mesmo um feitiço para acalmar a dor e reduzir o inchaço. Quando a dor cedeu, levantou-se como pôde e foi à procura de Ydeon.

Quando por fim o gigante se encontrava suficientemente acordado para lhe examinar a perna, a dor tinha acalmado quase por completo. Shail atribuiu-o ao seu feitiço, embora não deixasse de se surpreender por ter funcionado tão bem.

- Parece que está a voltar a soldar-se - comentou Ydeon.

- A voltar a quê?

- A soldar-se.

- Sim, eu percebi. Queres dizer que a perna se estava... a desprender? Ydeon olhou-o nos olhos.

- Quando estás a dormir - disse -, os batimentos do teu coração tornam-se mais lentos e a tua respiração mais pausada. Acontece o mesmo com a tua magia. Adormece, por assim dizer. É a tua magia que mantém a perna no sítio, o que a torna um objecto... vivo. Se adormeces ou perdes a consciência, a magia enfraquece.

Shail permaneceu calado, confuso.

- Queres dizer que tenho de estar consciente para que a perna continue no sítio? E que se adormeço... cai? Mas... e a dor? Foi a falta de magia que fez com que o meu corpo reagisse ao metal desta maneira?

- Julgo que sim. Shail cerrou os dentes.

- Sabia que não era uma boa ideia.

- Queres que tente tirar-ta?

- Podes fazê-lo?

- Os dois juntos podemos, sim. Mas só enquanto a magia fluir entre o teu corpo e a perna artificial. Nessa altura pode desprender-se da mesma maneira que se uniu a ti. Mas se tentarmos tirá-la quando essa união não estiver limpa e perfeita... será uma carnificina.

Shail ficou arrepiado.

- Contudo, há outra opção - acrescentou Ydeon. - Na realidade, duas. Uma delas consiste em evitar que a magia enfraqueça. Em manter o teu poder activo até mesmo quando estás a dormir.

- Pode fazer-se - assentiu Shail. - Há amuletos especiais para isso. Mas às vezes falham. E a outra opção?

- A outra opção é transferir para o metal um poder superior àquele que tu, como feiticeiro, possuis. Refiro-me ao poder de um dragão, de um unicórnio ou de um shek.

O feiticeiro reflectiu.

- Mas isso não teria efeitos secundários? Pensa em Domivat. Foi forjada com fogo de dragão e nenhum humano pode brandi-la sem se queimar.

Ydeon riu-se e o seu riso retumbou como uma avalanche de rochas.

- Está pensada para isso: para que nenhum humano possa empunhá-la. Mas há níveis e níveis. Talvez à tua

perna só faça falta um pouco de fogo de dragão, ou de geada de shek, ou do toque leve do corno de um unicórnio.

Shail meneou a cabeça.

- Não consigo deixar de pensar que me estás a utilizar para uma estranha experiência, Ydeon. Não acredito que tenhas experimentado isto antes com outras pessoas.

- Não o fiz - admitiu o gigante. - Mas não vou obrigar-te a continuar com essa perna, se não quiseres. A decisão é tua.

Shail voltou a contemplar a sua perna nova. Parecia que se encontrava de novo solidamente unida ao seu corpo. A dor e o inchaço tinham desaparecido por completo.

Flectiu o joelho e observou como a luz do ribeiro de lava arrancava reflexos avermelhados da sua superfície metálica. Recordou como se tinha sentido bem ao voltar a andar. Hesitou. Era uma perna tão bonita... tão perfeita...

- Não queres voltar a perdê-la - adivinhou Ydeon.

- Não - reconheceu Shail em voz baixa. - Acho que vou continuar com ela um pouco mais. Sei como fazer um amuleto de manutenção. vou ver que tal funciona e... - Interrompeu-se subitamente, recordando que tinha uma viagem planeada. Mas se a perna lhe desse problemas... não seria boa ideia que esses problemas o surpreendessem longe da caverna do forjador de espadas.

Ydeon dirigiu-lhe um olhar demorado e pensativo.

- Acho que, afinal de contas - disse finalmente -, será melhor que te acompanhe ao Oráculo. Por via das dúvidas.

Partiram dois dias depois, quando os primeiros raios de Evanor abriram passagem entre as névoas de Nanhai e tocaram os cumes brancos das montanhas. Shail não pregara olho durante toda a noite, nem na anterior: temia render-se ao sono e, ao acordar, ver que a sua maravilhosa perna artificial não era mais do que uma enorme lasca de metal atravessando a sua carne, carne lacerada, a sangrar... rasgada. Ydeon obtivera uma gema de pedra minca, um mineral de cor violácea com o qual os feiticeiros elaboravam muitos dos seus amuletos, porque era muito receptivo à energia mágica. com ela tinha forjado um engaste para passar uma corrente. Shail encarregara-se de realizar o ritual para converter a gema de pedra minca num amuleto de manutenção.

Agora usava-o pendurado ao pescoço, uma enorme gema violácea do tamanho de um punho. Preferia que fosse algo menos chamativo, mas Ydeon não se sentia à vontade a trabalhar com coisas pequenas. Entretanto, pouco a pouco o amuleto começava a surtir efeito, porque notava que estava mais desperto e com os sentidos mais apurados, apesar de estar há tanto tempo sem dormir.

Viajaram durante todo o dia, parando apenas para comer. A perna de Shail não deu problemas. Quando à noite pararam para descansar numa caverna nas montanhas, o jovem feiticeiro caiu de cansaço e dormiu de seguida até ao primeiro amanhecer, sem se preocupar com mais nada. Enquanto isso, o seu amuleto de manutenção brilhava tenuemente na penumbra, com uma suave luz violeta, conservando a sua magia tão activa como quando estava acordado.

Ao levantar-se de manhã e comprovando que estava tudo em ordem, Shail sentiu-se alegre e optimista pela primeira vez em muito tempo. Desejou que Zaisei estivesse ali para poder partilhar a sua alegria com ela. Se tudo corresse bem, depressa voltariam a encontrar-se.

Zaisei percorria as ruas de Rhyrr quase sem reparar no que acontecia à sua volta. Sentira saudades da cidade celeste, cheia de praças luminosas e ruas largas, ladeadas de edifícios de paredes brancas e telhados de cúpulas azuis, salpicada das altas torres-miradouro que se elevavam no claro céu de Celestia e que tanto agradavam aos celestes, porque, subindo à sua cúpula, se sentiam mais próximos do seu elemento. Sentira falta da sensação de estar rodeada pela sua gente, da paz que isso lhe dava, sem mentiras, sem enganos, sem desejos maus. Conviver com outras raças, especialmente com humanos, era esgotante para qualquer celeste e Zaisei, apesar de ter passado quase toda a sua vida longe de Celestia, não era uma excepção.

Contudo, naquele dia desejava com toda a sua alma estar noutro lugar.

Chegou quase sem fôlego à Biblioteca, um dos edifícios mais emblemáticos da cidade, com um corpo central coberto por três cúpulas, umas sobre as outras, e dois vastos corpos laterais que se estendiam como asas de uma borboleta. Zaisei admirara por diversas vezes a beleza delicada e equilibrada daquele local, mas desta vez não se deteve a contemnlar as enormes paredes envidraçadas nem as altas colunas brancas. Subiu as escadas muito depressa e percorreu as salas à procura da Venerável Gaedalu.

Tinha uma ideia bastante aproximada de onde a encontrar. A Mãe e o seu séquito tinham chegado há várias semanas, alojando-se numa das grandes casas de Rhyrr, que o presidente da câmara da cidade lhes cedera com muito gosto quando Gaedalu expressara o seu desejo de passar algum tempo ali a consultar os arquivos da biblioteca. A varu costumava passar os dias, e às vezes também as noites, encerrada numa das salas mais restritas, onde se guardavam os documentos mais antigos. Zaisei não sabia o que é que Gaedalu procurava tão afincadamente, mas sabia que a maior parte dos textos que examinava eram sobre mitologia, história e religião. À partida, aquilo não era nada de extraordinário. Os Oráculos estavam mergulhados no caos, o último unicórnio debatia-se entre a vida e a morte, e o último dragão anunciara que se avizinhava uma guerra de deuses, uma guerra que poderia arrasar o continente. Se Gaedalu procurava respostas nos textos antigos, a Biblioteca de Rhyrr era o lugar mais indicado. Porém, havia duas coisas que preocupavam Zaisei. A primeira era que ela e Gaedalu estavam ali há já muito tempo, e as sacerdotisas do Oráculo precisavam da Mãe em Gantadd. E a segunda, e mais inquietante ainda, tinha a ver com os sentimentos de Gaedalu.

Zaisei abanou a cabeça e procurou não pensar nisso. A verdade é que as notícias que recebera naquela manhã mudavam tudo e davam um novo rumo às pesquisas da varu.

Ao chegar à sala encontrou a Mãe Venerável inclinada, como sempre, diante de um enorme volume que tirara de uma das estantes do fundo. Estava tão concentrada no seu estudo que nem se apercebera de que a sua pele começava a ressequir.

Zaisei franziu o sobrolho, alarmada, mas não pelo estado da pele da Mãe. Nos últimos tempos, não era agradável aproximar-se dela. Quando o fazia, Zaisei experimentava dentro de si ecos de um sentimento sombrio e violento, um rasto de dor, ódio e desejo de vingança que a perturbava e lhe revolvia o estômago. Aquela sensação era mais intensa quando se encontrava com Gaedalu na biblioteca. Aquilo de que estava à procura naqueles documentos antigos alimentava aquele ódio no coração da varu, isso era evidente; mas Zaisei não conseguia deduzir mais nada e também não se atrevia a perguntar.

Portanto, ficou no umbral e pigarreou delicadamente para se fazer notar. Gaedalu ergueu a cabeça. A sensação desagradável diminuiu de imediato e Zaisei detectou, como de costume, o carinho e o orgulho que havia nos sentimentos da Mãe de cada vez que olhava para ela. Zaisei sentia-se constrangida e agradecida por aquele carinho: sabia que Gaedalu a tratava mais como a uma filha do que como a uma aluna, porque tinha sido muito amiga da sua mãe e porque ao protegê-la, de alguma maneira, recordava Deeva, a filha que perdera há algum tempo. Zaisei não chegara a conhecer Deeva. Ela era uma menina de pouco mais de cinco anos na época da conjunção astral, quando Deeva, na altura uma poderosa feiticeira, partira para o exílio para não voltar.

Zaisei, em contrapartida, sentia-se demasiado intimidada por Gaedalu para poder tratá-la com a mesma confiança com que trataria uma mãe, embora a admirasse e fizesse o possível por não a decepcionar.

- Zaisei - sorriu Gaedalu. - O que se passa? Porquê tanta pressa?

A jovem procurou esquecer o vestígio de ódio que notara na Mãe Venerável. Os celestes nunca escondiam os seus sentimentos entre si, porque não conseguiam fazê-lo, mas tinham plena consciência de que outras raças não possuíam essa capacidade de ler nos corações dos outros e que, por isso, escondiam ou dissimulavam as suas emoções, receosos de que outros pudessem descobri-las. Por uma questão de respeito, os celestes tinham aprendido a ser discretos nesse aspecto e regra geral guardavam para si o que sabiam sobre os sentimentos alheios.

- Chegou uma mensagem de Nanhai, Mãe Venerável - anunciou, e sorriu sem poder evitá-lo. - É de Shail, o feiticeiro.

Qualquer celeste teria notado sem qualquer dificuldade que o coração de Zaisei se enchia de emoção de cada vez que pronunciava o seu nome. Mas Gaedalu não precisava de ser celeste para saber muito bem, por esta altura, qual era a relação existente entre os dois jovens. Dirigiu-lhe um olhar severo.

- Não gosto desse rapaz, Zaisei - decretou. - Diz coisas estranhas e esteve aliado ao filho de As iran.

Quando Gaedalu mencionou Kirtash, Zaisei voltou a pressentir aquele vestígio de raiva e de ódio na sua alma. Recuou um passo, inquieta, mas obrigou-se a centrar-se no assunto de que estavam a tratar.

- Existe um laço, Mãe Venerável - recordou-lhe, com tacto.

- Laços - repetiu Gaedalu. - Vocês, celestes, concedem demasiada importância aos laços.

Zaisei sorriu. Tivera aquela discussão com muitas pessoas não celestes.

- Os laços - disse - acabam sempre por ser a única coisa que importa.

"A única coisa que pode mudar o curso da história ou até mesmo frustrar uma profecia; a diferença entre a vitória ou a derrota de um deus", disse para si, com um ligeiro estremecimento ao recordar a estranha relação entre Jack, Christian e Victoria.

- Bem, existe um laço entre Shail e tu - suspirou Gaedalu. - Tudo bem.

cwhonho que já és grandinha para saber o que estás a fazer.

Zaisei inclinou a cabeça.

- Obrigada, Mãe Venerável. Mas não te vim incomodar para falar de laços nem da minha relação com Shail. A carta contém informação importante de que deves tomar conhecimento.

Uma parte da mensagem de Shail era pessoal. O feiticeiro não conseguira resistir à tentação de lhe dizer na carta o quão ela lhe era querida e que sentia muitas saudades suas. Zaisei sorriu no seu íntimo. Fora bastante difícil para Shail abrir-se com ela, mas, depois de o fazer, costumava reiterar os seus sentimentos diversas vezes, sem ter em conta que Zaisei já os conhecia. "Acho que é difícil para ele, para todos os humanos em geral", pensava a jovem por vezes, "dado que não são capazes de ver os laços que existem entre as pessoas e vão às cegas para qualquer relação."

Saltou aqueles parágrafos e leu em voz alta a parte referente às descobertas de Shail em Nanhai. Tal como da primeira vez que os seus olhos tinham passeado sobre aquelas linhas, Zaisei não pôde evitar que o seu coração se apertasse de angústia ao imaginar a cordilheira sacudida por uma força destruidora que Shail associava ao deus Karevan.

- Como se atreve a insinuar semelhante coisa? - perguntou Gaedalu, perplexa, e uma pequena onda de desagrado foi bater em Zaisei.

- O sacerdote Ymur parecia estar de acordo com esta teoria, Mãe Venerável.

- Ignoremos isso. Continua a ler, por favor.

- "O que mais me preocupa é que, se este estranho fenómeno se deve à acção do deus Karevan, é possível que algo semelhante aconteça noutros lugares de Idhún. E, se os outros deuses forem tão destrutivos como este, teremos de encontrar maneira de os fazer parar ou de evacuar os habitantes dos lugares onde se manifestarem, se é que se manifestam todos de forma similar. Ymur já escreveu ao Venerável Ha-Din para lhe contar tudo o que se passa nestes dias em Nanhai. vou ficar aqui para ver se descubro mais coisas, mas não vejo a hora de regressar e..." - Zaisei saltou o que se seguia, ligeiramente corada. - "Os feiticeiros também devem estar de sobreaviso. Parece que Victoria acordou do seu transe, embora não tenha tido oportunidade de comprovar esta informação por mim mesmo, portanto agradecia-te que descobrisses se é verdade. Soube-o através de Kirtash, que neste momento viaja para Kazlunn..."

- Kirtash? - explodiu Gaedalu. A palavra soou com tanta força na mente de Zaisei que a rapariga deixou escapar um grito e levou as mãos às têmporas. - Quer dizer

que o teu feiticeiro esteve com esse monstro durante todo este tempo? Como te atreves a vir contar-me essas histórias de deuses destruidores, sabendo que vieram

da língua envenenada de um shek!

Zaisei deu dois passos atrás, assustada com a violência dos sentimentos que captava de Gaedalu. Todavia, ergueu-se, para responder com firmeza:

- O conteúdo desta carta foi testemunhado pelo próprio Shail e vários gigantes corroboram as suas palavras, entre eles o sacerdote Ymur, do Grande Oráculo.

- É evidente que esse shek os enganou a todos - grunhiu Gaedalu. - Vai-te embora com a tua carta, filha, e reza a Irial para que ilumine o teu entendimento e te faça ver que todas estas mentiras não são mais do que outra artimanha das serpentes para nos fazerem duvidar dos nossos deuses.

- Então porque é que os Oráculos nos falam aos gritos, Mãe? Gaedalu deixou escapar um suave riso gutural.

- Talvez se tenham apercebido de que ultimamente nos tornámos um pouco surdos. Vai em paz, filha, e não deixes que te confundam com essas histórias.

Zaisei não discutiu. Saiu da sala, ainda com a carta de Shail nas mãos, e abandonou a biblioteca pensativa e muito preocupada. Não duvidava das palavras do feiticeiro, mas estava de acordo com Gaedalu em relação a Kirtash ser uma criatura tortuosa e imprevisível, com uma inteligência perversa. No entanto, outras pessoas, entre elas Jack, tinham confirmado a história da chegada iminente dos deuses. Gaedalu ficava cega com o ódio por Kirtash e talvez isso a impedisse de ver a verdade.

Tranquilizava-a saber que pelo menos Ha-Din estava de sobreaviso. Talvez ele levasse a sério o alerta que chegava de Nanhai; talvez conseguisse convencer Gaedalu...

Entretanto, o que podia ela fazer? O que devia fazer? Ir a Kazlunn para verificar qual era o estado de Victoria? Regressar ao Oráculo? Ir ao encontro de Ha-Din? Ou ficar com Gaedalu? Começava a pensar que havia algo de estranho em tudo aquilo, no modo como a Mãe Venerável devorava aqueles livros antigos, com ânsia, como se estivesse à procura de algo que fosse mais do que uma informação teórica ou um conhecimento esquecido.

Reprimiu um estremecimento. Compreendia que Gaedalu odiasse Kirtash, porque o shek granjeara muitos inimigos e era difícil sentir apreço por ele depois de tudo o que fizera.

"No entanto, e apesar de tudo", recordou a si mesma, apertando com força a carta de Shail entre os dedos, "são os laços que contam, são eles que fazem mudar as coisas. No final, os laços são a única coisa que nos resta."

Devagar, bem devagar, Victoria foi recuperando forças. No início era frustrante para Jack, que era quem continuava a passar a maior parte do tempo com ela. Victoria não tinha forças para se mexer não era capaz de pronunciar mais de duas ou três frases por dia. Jack uidava dela, com paciência e carinho, mas começava a notar que havia algo que não estava bem.

Chegou a uma conclusão um dia quando lhe estava a dar de jantar, soerguendo-a com imenso cuidado e procurando fazê-la engolir mais de duas colheradas de sopa.

- Não... vou ficar bem... pois não? - perguntou ela com esforço.

- Claro que sim - respondeu ele. - E mais cedo do que pensas, vais ver. Ela abanou a cabeça.

- Não pensas realmente isso... Dizes isso... apenas... para que me sinta... melhor.

Jack olhou de relance para ela e percebeu que não ia conseguir animá-la com palavras ocas. Pôs a bandeja de lado e abraçou-a carinhosamente.

- Tem paciência - disse-lhe ao ouvido. - Isto leva algum tempo, mas vais recuperar as forças. Vais voltar a mexer-te e a falar como costumavas fazer. És muito forte, Victoria, lutaste contra serpentes e necromantes; vais sair desta como saíste de todos os desafios que te apareceram pela frente. Vi-te fazer coisas incríveis... e continuas a fazê-las: a última delas foi abrir os olhos no outro dia.

Ela abriu a boca, como se fosse falar, mas ou não encontrou palavras ou já não lhe restavam forças para as pronunciar. Olhou então para ele, com aqueles olhos que lhe provocavam tanta tristeza. Porque não só tinham perdido a luz, como também não irradiavam escuridão. Eram os olhos de uma rapariga humana... como outra qualquer.

Depois virou a cabeça e fechou os olhos, e duas lágrimas rolaram pelas suas faces. E já não fez nem disse mais nada durante todo o dia.

Jack não soube o que lhe dizer. Deixou-a sozinha, para que descansasse, mas também porque precisava de pensar. Subiu ao terraço e assomou ao miradouro, com as têmporas a arder.

Victoria não parecia a mesma. Não se tratava apenas de a luz dos seus olhos se ter extinguido. Aquela criatura débil e trémula não recordava a mulher forte e destemida que ele amava. Quando olhava para ela, tão frágil, tão... humana, Jack surpreendia-se a si mesmo sentindo pena, talvez ternura, mas não o amor e a paixão que ela lhe inspirara. "Mas eu amo-a", pensou. "Amo-a." Fechou os olhos e enterrou o rosto entre as mãos, cansado. A chama estava a apagar-se dentro dele a cada dia que passava, e o pior era que Victoria se apercebia disso. "É uma fase", pensou Jack. "Só não estou acostumado a vê-la assim." Victoria estivera mal outras vezes, doente ou em perigo, mas aquela luz interior brilhara sempre nela, aquela força que fazia Jack pensar que valia a pena lutar e morrer por ela. Em contrapartida, aquela

nova Victoria parecia tão insignificante, tão perdida e assustada... e parecia até ter medo dele.

"Porque é que tem medo de mim?", perguntou-se. "Precisamente de mim?" Sempre sentira um certo temor de Christian, mas, tendo em conta que ele tinha sido seu inimigo e que a sua missão fora matá-la, não era de estranhar. No entanto, Victoria enfrentara aquele medo para defender a sua relação com o shek contra tudo e contra todos. Em contrapartida, nunca se sentira intimidada por Jack. Nunca tinha tido motivos. Era o seu melhor amigo... entre outras coisas.

Isso levou-o a ponderar algo relevante. Ao longo daqueles dias, Victoria perguntara por toda a gente. Perguntara por Shail, por Allegra - e Jack tivera de lhe contar o sacrifício da fada e que morrera na batalha de Awa -, por Alexander, até mesmo por Kimara. Mas não perguntara por Christian. "Não é possível que o tenha esquecido", pensou Jack. E o shek? Saberia que Victoria já tinha acordado? A jovem ainda usava o seu anel. Poderia a jóia transmitir-lhe aquela alteração no seu estado? "O que irás dizer quando a vires, Christian? Onde buscarás a partir de agora a luz que encontravas nela?"

Victoria tornara-se muito humana. Demasiado humana para ele. "E eu tornei-me demasiado dragão para ela", compreendeu de repente. Era isso que amedrontava Victoria. Olhara para ele como olhavam as outras pessoas: como alguém demasiado grande, poderoso ou importante para ousar dirigir-se a ele. Como se não soubessem se era melhor travar conhecimento com ele ou afastar-se do seu caminho. "Tão humanos", costumava pensar Jack. O tempo passado com Christian e com Victoria, e também com Sheziss, tinha-o afastado das pessoas normais e vulgares. Reparara nisso ao juntar-se de novo ao que restava da Resistência. Ele era diferente. No início isso, preocupara-o. Mas por fim acabou por concluir que, tendo Victoria e também Christian, de alguma maneira não precisava de mais ninguém. Na realidade, nenhum humano, nem feérico, nem celeste, nem mesmo nenhum semi-yan como Kimara, podia chegar a conhecê-lo e compreendê-lo bem. Só a sua amada e o seu inimigo. A sua companheira e a sua némesis. O seu contrário e o seu complemento.

E agora Victoria tornara-se um deles. Tão humana...

com um suspiro, afastou-se da balaustrada e tornou a entrar na torre. Conseguia suportar que a sua némesis se tornasse mais humana e abandonasse a tríada. Mas, se perdesse Victoria, já só lhe restaria o seu inimigo, e essa não era uma perspectiva muito agradável.

Um dia, Jack surpreendeu-a a tentar levantar-se da cama. Agarrou-a no preciso momento em que ela ia cair.

- O que estás a fazer? - ralhou-lhe. - Ainda não tens forças para isto.

- Eu sei... Mas é que não suporto... estar tão fraca...

- Já te expliquei, meu amor. És uma fusão de duas essências, de duas criaturas. Uma delas está moribunda, pelo que a outra tem de manter vivas essas duas essências

em simultâneo. É como fazer funcionar dois rádios com uma só pilha... Já estás a fazer demasiado.

Reconfortou-o ver que a sua comparação a tinha feito sorrir. Em Idhún, as pessoas capazes de compreender aquelas alusões contavam-se pelos dedos de uma mão. E Victoria era uma delas. "Como eram diferentes as coisas quando vivíamos na Terra."

- Mas... não é suficiente - suspirou ela. Ergueu a cabeça para ele e fitou-o com aqueles olhos tão expressivos, tão humanos. - Não é suficiente... pois não?

Jack não soube o que dizer. "Ela sabe, sabe de tudo", pensou. "Percebeu o que mudou entre nós os dois, as minhas dúvidas, que a nossa relação esfriou. E sabe porquê." Podia ter perdido a luz e o poder do unicórnio, mas, pelos vistos, conservara a sua intuição. Ela sentia que ele já não a amava como antes, e isso fazia-a sofrer. Subitamente, achou a situação injusta. A jovem tinha dado a sua vida por ele, e Jack estava a ser um canalha ao duvidar do seu amor por ela.

- Victoria, Victoria, com tudo o que passámos juntos - murmurou, comovido. - E ainda nos acontecem estas coisas...

- Mas tu...

- Mas eu amo-te - completou Jack, sentindo que era verdade. Aproximou o seu rosto do dela e beijou-a, primeiro de forma delicada, depois com paixão. Era a primeira vez que o fazia desde a noite do Triplo Plenilúnio. Victoria gemeu suavemente, mas deixou-se levar. Quando se afastaram, ela baixou a cabeça, corada.

- O que foi? - perguntou ele em voz baixa.

- Foi tão... - suspirou ela - tão intenso... que até me deu medo. Jack sorriu.

- Sim, isso é complicado. Mas a culpa não é tua. O problema é meu: o fogo do dragão e tudo isso. Talvez com Christian te aconteça o contrário - brincou. - O homem de gelo que dá beijos de gelo.

Calou-se ao ver que ela ficara séria.

- O que se passa contigo? Não queres que mencione Christian? Não... não sentes saudades dele?

Victoria reflectiu.

- Não tenho... a certeza - disse em voz baixa. - Tenho lembranças... lembranças dos dois. Lembranças bonitas... e recordações horríveis. - Fez uma pausa para descansar; Jack aguardou pacientemente que recuperasse o fôlego. - Lembro-me... dos seus olhos. Do seu olhar. Houve uma altura.... em que gostava desses olhos... da forma como olhava para mim. Mas agora, às vezes... sonho com eles... e provocam-me pesadelos. "Demasiado humana", disse Jack para si.

- Ele nunca te faria mal, Victoria.

"Não é verdade", pensou de imediato. "Fez-lhe mal muitas vezes, mas ela esteve sempre disposta a correr o risco. Agora já não tem forças, não sabe se vale a pena."

Ela respirou fundo e fechou os olhos por um momento, e Jack viu que estava cansada.

- Já tiveste demasiadas emoções por hoje, minha menina. Chegou a hora de ir descansar até amanhã. Vês? Já passa do segundo entardecer. As meninas bonitas vão dormir quando o primeiro sol se põe.

Ergueu-a nos braços e levou-a novamente para a cama. Victoria deixou-se cobrir e dirigiu-lhe um sorriso caloroso.

- Obrigada, Jack.

Ele sorriu por sua vez.

- De nada. Gosto de cuidar da minha miúda.

Ela fechou as pálpebras, exausta. Menos de dois minutos depois, dormia profundamente.

Era já noite, mas no acampamento reinava uma grande actividade. Havia sempre coisas a fazer, planos a traçar, gente a treinar. Gerde passeava por entre as cabanas dos szish, sorrindo para si mesma. Parou para observar de longe um grupo que ouvia as indicações de um dos iniciados. Eram os jovens que pedira, seleccionados entre todos os clãs; tinham superado as primeiras provas, mas ainda lhes faltavam mais algumas, que teriam lugar nos próximos dias. Dali sairia o escolhido. Aquele que ocuparia um lugar muito importante nos planos futuros de Gerde.

Descobriu no grupo um szish muito novinho, quase uma criança. Franziu o sobrolho. Era estranho que alguém assim tivesse chegado até ali, tendo em conta que a concorrência devia ser renhida. Gerde notou que o rapaz szish se apercebera da sua presença e olhava para ela, ignorando a palestra do iniciado e arriscando-se, portanto, a ser repreendido No entanto, não parecia importar-se. O seu rosto de serpente permanecia inalterável, mas, mesmo assim, Gerde detectou nos seus olhos um brilho de adoração sincero e profundo. Sorriu animadoramente ao rapaz.

Uma sombra deslizou então até ela.

- Senhora - sussurrou; custava-lhe falar, como se cada palavra lhe provocasse uma dor agonizante. - Chegaram rumores preocupantes de Kazlunn.

- Sim? - Ela sorriu, aparentemente desinteressada.

- Acerca do unicórnio - disse a sombra, num tom que soou estranho, ansioso e ao mesmo tempo cheio de ódio. - Dizem que acordou.

Gerde voltou-se para o seu acompanhante. Tinha o rosto oculto pelo capuz da sua capa. Era humano e, como tal, não era bem recebido no acampamento szish. Gerde podia

ter-lhe dito que, por muito que se tapasse, os homens-serpentes continuariam a reconhecê-lo. Podiam detectar o calor emitido pelo seu sangue-quente.

- Ouvi os rumores - assentiu Gerde. - Não vais fazer nada quanto a isso.

- Mas...

- Eu disse que não vais fazer nada quanto a isso. Ficou claro?

A sombra ficou calada por um momento; depois assentiu, lentamente. Fez-lhe uma profunda vénia, tomou a sua mão e beijou-a com devoção. Gerde sorriu.

- Tudo tem o seu tempo - disse-lhe com alguma doçura. - Tem paciência.

O encapuzado voltou a inclinar-se e, instantes depois, perdeu-se entre as sombras. Gerde detectou que, do grupo dos jovens, o rapaz szish continuava a olhar para ela. Sabia que tinha estado a observar atentamente o seu acompanhante, devorado pelos ciúmes. Sorriu intimamente.

 

                 O UNICÓRNIO FERIDO

A viagem até ao Oráculo ainda durou mais alguns dias. Ao entardecer do oitavo dia, avistaram as suas ruínas ao longe, a enorme cúpula partida em duas, as colunas que já não sustinham qualquer tecto. Shail parou por um momento para o contemplar.

- É parecido com o de Gantadd - murmurou. - Mas muito maior. Ou, pelo menos, dá a sensação de ter sido muito maior.

Aproximava-se o terceiro crepúsculo quando se detiveram à frente do que havia sido o pórtico do Oráculo. Só restavam três colunas de pé. As outras três tinham tombado e uma delas bloqueava a entrada. Ydeon passou sem problemas por cima dela. Shail teve de trepar atrás dele e agradeceu interiormente por ter novamente duas pernas. com a muleta, ter-lhe-ia sido impossível passar.

Juntou-se a Ydeon no que restava do enorme átrio de forma hexagonal que recebera os visitantes em tempos idos. O gigante estava a dar uma vista de olhos em volta, em busca de sinais de vida, mas aquelas ruínas permaneciam silenciosas, vazias... mortas.

Shail perguntou-se onde andaria Ymur. Depois de ver com os seus próprios olhos como tinha ficado o Grande Oráculo após o ataque dos sheks, achava estranho que alguém quisesse continuar a viver ali. Contudo, Ymur continuava a viver naquelas ruínas muitos anos depois de o seu lar ter sido destruído.

"Afinal de contas", disse Shail para si, "Ymur é um gigante." Não era nada estranho que alguém como ele vivesse sozinho e rodeado de pedras.

- Não sabia que vínhamos? - perguntou a Ydeon.

- Sabia - respondeu o fabricante de espadas.

- Talvez... - começou Shail, mas algo o interrompeu: uma gargalhada histérica que ressoou pelas ruínas, sombria e inquietante.

Ydeon endireitou-se e deixou escapar um grunhido sufocado. Shail pôs-se em guarda e preparou mentalmente um feitiço de ataque. Os dois voltaram-se para todos os lados, mas não conseguiram localizar a origem daquele som.

O estranho riso esquizofrenia) voltou a ouvir-se, desta vez mais perto, e o seu eco perseguiu-os durante angustiosos segundos, deixando Shail arrepiado.

- Quem anda aí? - retumbou Ydeon.

Só obteve uma nova gargalhada como resposta.

- Ali! - disse então Shail.

Os dois viram uma figura andrajosa que saltava de pedra em pedra com temeridade louca. Uma figura humana.

- Estamos à procura de Ymur, o sacerdote! - gritou Ydeon.

- Lixo! - guinchou o desconhecido, com voz aguda. - Nada mais do que um pedaço de escória! E isso que és!

Shail pestanejou, confuso. Ydeon, todavia, não parecia ofendido.

- Conheces Ymur? - insistiu.

O outro riu como um louco e trepou ao topo de uma coluna, onde se sentou e se pôs a coçar um pé.

- Como ousaste deixar-te ver! - acusou - Volta para o lugar de onde viestes, sobras, restos, desperdícios!

Shail não sabia se havia de se zangar ou desatar a rir.

- Está completamente maluco - murmurou.

- Não devias estar aqui! - continuava o humano a berrar. - A profa nar esta terra com a tua presença suja! Fora daqui! Vai-te embora! Fora!

Levantou-se e lançou um guincho agudo. Depois, começou a puxar o cabelo e a arrancá-lo aos tufos, enquanto chorava desconsoladamente.

- Cheeeeeega! - uivou. - Calem-se já, malditos! Malditos! Canalhas! Porque é que me fazem isto?

Começou a dar saltos sobre a coluna.

- Vai matar-se! - exclamou Shail, alarmado.

Quando o homem se lançou no vazio do alto do pilar, o feiticeiro já tinha preparado um feitiço de levitação. O último grito de agonia do suicida louco terminou num pranto queixoso e apagado enquanto o seu corpo flutuava suavemente até ao chão. Shail apressou-se a aproximar-se do lugar onde tinha ficado estendido, feito um farrapo. com duas passadas, Ydeon alcançou-o.

O homem continuava a chorar, encolhido sobre si mesmo. Não conseguiam ver-lhe o rosto, oculto por detrás de um emaranhado de melenas grisalhas.

- Quem dera que soubéssemos quem é - murmurou Shail - e como chegou a este estado.

- Chama-se Deimar - disse uma voz nas suas costas. - Quanto à segunda questão, infelizmente ainda não

tenho uma resposta.

Ydeon e Shail voltaram-se. Atrás deles estava Ymur, o sacerdote, observando-os com gravidade. Carregava sobre os seus poderosos ombros um enorme vulto peludo.

- Já comeram? - perguntou. - É que eu estou a morrer de fome.

- Custou me reconhecê-lo quando o vi - disse Ymur algum tempo depois, quando estavam os três sentados em volta da fogueira e o louco dormitava num canto, sob os efeitos de um conjuro sedativo. - Deimar era um homem cordato quando abandonou Nanhai há dezassete anos. Pediu-me que fosse com ele a Awa, mas não eu quis deixar este lugar, nem sequer depois de ter sido destruído.

- Conheciam-se bem? Ymur suspirou.

- Não - admitiu. - Morávamos os dois no Oráculo, mas mal nos relacionávamos... até que veio a conjunção astral e, pouco depois, o ataque dos sheks. A última coisa de que me lembro foi que o tecto se desmoronou sobre a minha cabeça e que estava muito frio... Quando recuperei os sentidos, mal podia acreditar que ainda estava vivo. Todos os irmãos e irmãs do Oráculo tinham morrido: o abade Yskar, os sacerdotes e sacerdotisas... Nunca cheguei a conhecê-los bem, mas nesse momento senti a falta deles. Pensei que era o único sobrevivente, até que encontrei Deimar entre os escombros.

Fez uma pausa e contemplou o fogo por instantes, pensativo.

- Quando sarou das suas feridas - prosseguiu - despediu-se de mim e foi-se embora. Na altura, tinha um aspecto muito diferente e a sua mente estava sã.

" Há vários meses voltou a aparecer por aqui, só os deuses sabem como, no estado lamentável em que está. Estou desde essa altura a cuidar dele, à espera de que me diga algo coerente que possa dar-me uma pista acerca do mal que o aflige. Deixei-o sozinho outras vezes, como quando fui ver o que era essa estranha força que sacudia as montanhas. Nunca tinha tentado suicidar-se antes.

- Talvez tenhamos feito ou dito alguma coisa que o assustou - aventurou Shail.

Ymur negou com a cabeça.

- Ultimamente tem vindo a ficar pior, tenho a certeza disso. Sobretudo à noite, de modo que tenho procurado não me afastar demasiado ou regressar antes do último entardecer. Hoje atrasei-me um pouco. - Fez uma pausa. - Outros assuntos requeriam a minha atenção... longe daqui.

Shail endireitou-se.

- Ainda há movimentos sísmicos na cordilheira. Ouvimos o barulho das avalanchas quando vínhamos para cá. Referes-te a isso?

- Esse é um dos assuntos que me preocupam, sim. Mas não é o único. Pelos vistos, Nanhai está a encher-se de visitantes invulgares nos últimos tempos. Anda a vaguear uma criatura selvagem pelas cavernas a este. Deium gigante moribundo, e não há muitos animais capazes de fazer isso.

- Porque é que te avisaram a ti? - indagou Ydeon.

- Porque não sabiam muito bem o que era, se um humano ou um nimal. Se fosse um animal, tratariam de o caçar; se se tratasse de um ser Humano, tentariam capturá-lo sem lhe fazer mal. Pensei que poderia ser alguém como Deimar, um humano que tivesse perdido o juízo. Mas depois de o ver... já não sei o que pensar.

Por sorte, parece que o ataque de loucura assassina já lhe passou, porque agora evita os lugares povoados e esconde-se numa caverna mais afastada. De momento continua

lá. Os habitantes da zona vigiam-no discretamente à distância, procurando averiguar o que é exactamente.

Shail desviou o olhar, perturbado. Ymur reparou.

- Por acaso sabes do que é que estou a falar?

- Parece-me que sim - respondeu o feiticeiro. - No entanto, não estou muito certo de poder resolver o vosso dilema. Porque acho que posso dizer-vos quem é essa criatura... mas não o que é.

Os dois gigantes olharam para ele com uma certa surpresa.

- E se é quem julgo que é - prosseguiu Shail -, tenho de ver em que é que se tornou. Se é quem penso que é...

A sua voz apagou-se, mas os seus pensamentos continuaram a dar voltas. "Se é quem julgo ser, já foi meu amigo. Antes da noite do Triplo Plenilúnio."

- Pareces saber muitas coisas, feiticeiro - comentou Ymur. - Muitas, para alguém tão jovem. Ando há dois séculos a estudar os mistérios do mundo e mesmo assim há coisas para as quais ainda não tenho explicação. Como a presença desse homem-animal em Nanhai. Ou essa coisa invisível que está a destruir a cordilheira.

- Sobre a presença do homem-animal tenho muito a dizer - assentiu Shail -, mas não sem antes me certificar de que estou certo. Em relação a essa... manifestação invisível que sacode as rochas de Nanhai, não tenho certezas. Apenas suposições.

- Referes-te à teoria de que se trata de um deus que desceu ao mundo?

- Ymur abanou a cabeça. - Se essa é a resposta ao mistério, então preferia não ter formulado nenhuma pergunta.

Shail não respondeu.

- Já chegou o meu novo dragão - disse Kimara, sem conseguir evitar sorrir. - É vermelho como Fagnor, o dragão de Kestra. Falei-te de Kestra, não falei? - Victoria assentiu com um sorriso. - É maravilhoso, ou melhor, é maravilhosa, porque parece uma fêmea. É um pouco mais pequena do que os outros dragões e de linhas mais suaves e traços mais doces. Tanawe está a começar a fabricar fêmeas de dragão, não é incrível?

- Sim, é - assentiu Victoria.

Passeavam as duas pelo miradouro à luz do primeiro entardecer. Victoria já conseguia andar, embora ainda tivesse de se apoiar em alguém; como Kimara tendia inconscientemente a acelerar o passo, Victoria esforçava-se por segui-la.

- Morro de vontade de a experimentar. Parece muito mais forte e rápida do que o dragão que pilotei em Awa. E já não quero outro dragão dourado. Já o disse a Tanawe. Concordámos as duas que Yandrak deve ser o único dragão dourado de Idhún. Além disso... desta forma, tanto os sheks como os pilotos de dragões irão reconhecê-lo de longe quando liderar as nossas esquadras na batalha.

Victoria estacou e olhou para ela.

- Jack vai convosco a Kash-Tar?

Kimara saltitou de uma perna para a outra, incomodada.

- bom... não exactamente. Nós vamos embora amanhã e ele não te vai abandonar agora, no teu estado... Mas estava a falar de futuras batalhas. Todos nós gostaríamos que um verdadeiro dragão nos guiasse na luta contra os sheks... embora não te agrade que lute contra os sheks, pois não?

- Não muito. Mesmo com os dragões de Tanawe a cobrir-lhe a retaguarda, não deixa de ser perigoso. Os sheks são criaturas poderosas.

Kimara deixou escapar um suspiro de impaciência.

- Como podes gostar desses monstros, Victoria? Jack detesta-os, e o único motivo pelo qual já não quer matá-los é isso desagradar-te. Não podes pedir-lhe que renuncie ao seu instinto de dragão!

- Peço-lho porque quero que se mantenha vivo, Kimara. Considero os sheks belos, mas não esqueci que são letais e que odeiam Jack com todas as suas forças. E errado querer protegê-lo?

Kimara olhou para ela de soslaio.

- Mesmo assim, sentes algo por um deles. Victoria baixou a cabeça.

- Ou ele sente algo por ti - prosseguiu a semi-yan.

- Isso era antes. Há muito que não sei nada dele. Mudei e... quem sabe, pode ser que ele também tenha mudado.

- Por muito que tenha mudado, duvido que alguma coisa possa extirpar o instinto assassino do seu coração negro - respondeu Kimara com rancor.

Victoria não contestou. Noutros tempos teria defendido Christian, mas naquele momento não encontrou nada para dizer. Talvez porque, quando lembrava do shek, o frio e o medo se apoderavam da sua alma. "Mas eu amava-o", pensava muitas vezes. Contudo, já não era capaz de o recordar com carinho. Levou a mão ao anel de Christian, que continuava a usar. Já não a reconfortava. Transmitia-lhe frio e escuridão; o olhar sinistro daquela pedra de cristal provocava-lhe arrepios. Apesar disso, não o tinha orado nem uma única vez. É que, embora ainda não soubesse se realmente desejava continuar ligada a Christian, também não o queria trair. Aquele anel era um dos símbolos do seu poder, dissera-lhe uma vez: um poder negro e letal, mas que fazia também parte da sua alma gelada. Victoria sentia-se responsável por ele.

Sentia que ele lhe tinha entregado algo muito valioso e que devia cuidar dele com todo o carinho de que fosse capaz. Porque ele confiava nela. "Ou confiava em Lunnaris, o unicórnio", pensava Victoria frequentemente, com amargura.

Às vezes sonhava que ele regressava, olhava para ela nos olhos e ficava com aquela estranha expressão de decepção que Jack deixava escapar ao perder-se rio seu olhar. Sonhava que ele lhe pedia que lhe devolvesse o anel. "Já não és digna de o usar", dizia-lhe. "És apenas uma pobre rapariguinha assustada." Nessas alturas e apesar do medo que sentia, apesar da garra de gelo que oprimia o seu coração diante da sua mera presença, chorava a perda de Christian, chorava a sua ausência, chorava quando ele dava meia-volta e se afastava dela sem olhar para trás. As lágrimas congelavam sobre as suas faces como o orvalho na madrugada, mas Victoria continuava a sentir saudades do shek e corria atrás dele... e cada passo que dava congelava-a mais um pouco.

Costumava acordar, a tremer de medo e de frio, nos braços de Jack. Ele consolava-a com o seu abraço quente e Victoria sentia-se melhor, mas apenas por um momento... até que o fogo de Jack a abrasava por dentro.

"Já não sou capaz de resistir a nenhum dos dois", pensou.

Há algum tempo, a sua avó tinha-lhe falado da aura. Dissera-lhe que todas as pessoas irradiam um suave halo de energia, que as fadas vêem facilmente, mas que poucos humanos conseguem detectar. Tinha-lhe dito que a aura de Jack e de Christian - e naquela altura também a da própria Victoria - era brilhante e poderosa, muito mais do que a de qualquer outra pessoa. A mais poderosa das três era a de Christian, uma auréola branco-azulada tão fria como o gelo. Mas isso era antes de Jack ter aprendido a transformar-se em dragão, antes de Victoria assumir completamente a sua essência de unicórnio. Depois tinham-se separado. Victoria voltara a encontrar-se com Allegra em Nurgon, depois da suposta morte de Jack. Na altura, ela já era um unicórnio por completo, mas a sua aura, tão poderosa como deveria ser, estava impregnada de trevas. Allegra tinha olhado para ela com medo, com o mesmo medo com que Victoria olhava para Christian nos seus sonhos.

Logo depois tinha ido embora de Nurgon à procura de Christian, em busca de vingança. Não voltara a ver a avó. E não a veria nunca mais.

Chorara amargamente a sua morte, a morte de quem tinha sido como uma mãe para ela. Allegra não tinha chegado a ver o unicórnio em todo o seu esplendor, nem a aura da criatura corajosa, serena e transbordante de luz que enfrentara Ashran como os Oráculos tinham vaticinado. Entretanto, já não restava nada de tudo isso. Se estivesse ali, Allegra não teria captado nada de extraordinário nela.

Sentia falta dela. De Allegra e também de Shail.

E agora a aura de Jack queimava-a, devorava-a. Continuava a amá-lo, mas sentia-se pequena e insignificante ao seu lado... perguntando-se quanto tempo mais poderia suportá-lo.

- É por isso que Jack defende esse shek, não é? - perguntou então Kimara. - É por ti.

Victoria dirigiu-lhe um olhar cansado.

- Acho que sim. Mas já não vale a pena o esforço, pois não? Não por mim. Talvez pelo que fui um dia, mas não pelo que sou agora.

- Eu não disse isso... - protestou Kimara.

- Quando se aperceberem disso - prosseguiu ela -, concluirão que já não têm motivos para controlar o seu ódio. E irão matar-se um ao outro.

Apoiou-se na balaustrada, exausta; mas não era apenas um cansaço físico. Kimara passou-lhe o braço em volta dos ombros.

- Não te atormentes. Sofreste muito. Esse filho-da-mãe do Ashran fez-te muito mal. Vais demorar algum tempo a recuperar, mas nessa altura voltarás a ser a de sempre. Jack esperará por ti. Sabes que o fará.

Victoria olhou para ela, deixando transparecer as suas dúvidas. Kimara sorriu-lhe e a jovem acabou por sorrir também.

Alguém saiu para o miradouro e as duas voltaram-se para ver quem era.

- Jack! - cumprimentou Kimara. - Viste o meu novo dragão?

- Ainda não tive esse gosto - respondeu ele, cauteloso. Os dragões artificiais inspiravam-lhe sentimentos contraditórios. Por um lado, reconfortava-o vê-los voar. Faziam-no sentir-se em casa, num lar que não conhecera mas do qual, apesar de tudo, sentia saudades. Por outro lado, sabia perfeitamente que não eram dragões de verdade, porque não havia nenhum outro dragão no mundo além dele, e isso enchia-o de frustração, de dor e de fúria.

Aproximou-se de Victoria e agarrou-a pela cintura com delicadeza. Embora ela já conseguisse suster-se de pé sozinha, tinha-se acostumado a tê-la sempre segura, para o caso de ela cair.

- Sinto muito o que se passou esta manhã - disse-lhe em voz baixa.

- Não tem importância - respondeu ela. - A culpa não foi tua.

- Foi sim. É responsabilidade minha manter esta parte da torre isolada a que ninguém te incomode. Não sei como conseguiu entrar aqui.

Apesar de todas as suas precauções, tinha corrido o rumor de que o unicórnio recuperara a consciência e todos os dias havia alguém que tentava subir para a ver. Pelos arredores da torre, pululavam sempre curiosos, cantadores de notícias e doentes diversos, que desejavam que Victoria utilizasse o seu poder para os curar e, de caminho, porque não, transformá-los em feiticeiros. Naquela manhã tiveram de expulsar um silfo que quase tinha conseguido infiltrar-se no quarto de Victoria.

Noutros tempos, ninguém teria conseguido entrar na torre sem o consentimento dos feiticeiros. Mas a Ordem Mágica passava pelo pior momento de toda a sua história e os feiticeiros que viviam na torre mantinham a sua magia protectora a muito custo. Por este motivo, Jack contribuía pessoalmente para manter as pessoas afastadas.

Contudo, cada vez mais se sentia oprimido na sua clausura e, por esta razão, ausentava-se com maior frequência. Fazia-lhe bem transformar-se em dragão e dar uma volta, e às vezes demorava demasiado a voltar. Depois sentia-se culpado por ter deixado Victoria sozinha tanto tempo... mas, em contrapartida, tinha a impressão de que já nada o retinha ali. E isso assustava-o.

Victoria já tinha falado com ele acerca disso. Tinha-lhe dito que não queria prendê-lo a ela, que, se tivesse de ir embora, que fosse. Jack sabia que ela não queria ser um peso e que, por muito que lhe doesse, aceitaria qualquer decisão que ele tomasse. Mas o jovem ainda não tinha a certeza de que ir embora fosse o que pretendia.

Naquela manhã, em concreto, não aguentara mais e tinha-se dirigido às montanhas. Sabia que não devia fazê-lo, mas o instinto tinha sido mais forte. E o instinto levara-o directamente a um ribeiro onde se escondia um shek.

Era jovem e tinha uma asa ferida. Provavelmente tinha-se refugiado ali, fustigado pelos Novos Dragões ou pelas patrulhas de aldeãos que, auxiliados de vez em quando por algum guerreiro bárbaro com vontade de andar à bulha, perseguiam e exterminavam serpentes nos esconderijos das montanhas.

Jack tinha-se lançado sobre aquele shek com garras, dentes e fogo. Tinha descarregado tudo nele, enfurecendo-se mais do que o necessário. Sentira prazer com a matança.

"Sou um dragão", recordava-lhe o seu instinto. "Nasci para isto. Criaram-me para isto."

Depois pousara na margem do rio e lavara-se bem, livrando-se dos restos de sangue, aquele sangue frio e escuro de coração de serpente. Quando empreendeu o voo de regresso à torre, sabia que não iria contar o episódio a ninguém. Nem sequer a Victoria.

- Vou-me embora amanhã - recordou-lhes Kimara. - Tenho de me juntar ao resto da esquadra em Thalis e vou demorar dois dias a chegar lá.

- Faz boa viagem - desejou-lhe Victoria. - E tem cuidado, está bem? Quero voltar a ver-te sã e salva.

- Não te preocupes; já sabes que o deserto é o meu território, por isso nada ali me pode fazer mal.

Jack saltitava de uma perna para a outra. Victoria reparou.

- Querias ir com eles? "Claro que sim", pensou ele.

- Não. Quero ficar aqui, contigo. Victoria dirigiu-lhe um olhar de censura.

"Sabe que não estou a ser sincero", compreendeu Jack. Kimara olhou alternadamente para um e para outro.

- vou experimentar o meu novo dragão - anunciou, para aliviar um pouco a tensão. - Vens, Jack?

- Anda, vai - incitou-o Victoria. - Vai esticar as asas. Eu fico bem, a sério.

Jack pareceu hesitar, mas acabou por seguir Kimara até ao andar de baixo, ao coberto onde tinha guardado o seu dragão artificial.

Momentos depois, Victoria viu-os voar: Yandrak, o dragão dourado, e a fêmea de dragão vermelha de Kimara, uma armação de madeira sustida pela magia e pelo piloto humano que era o seu coração e a sua alma. Viu-os fazer piruetas à luz dos três sóis em declínio. "São iguaizinhos", pensou, sorrindo com tristeza.

Então um arrepio percorreu-lhe o corpo e ela levou inconscientemente a mão ao anel. Percebeu o que significava aquele sinal: Christian estava perto.

Jack não estava tão à vontade como Victoria pensava.

E a culpa era daquele dragão.

É que não se tratava de um dragão artificial qualquer: era uma fêmea de dragão. Tresandava a fêmea por todos os poros e Jack apercebeu-se de repente, horrorizado, que se sentia estranhamente atraído por ela.

"Por favor, é uma máquina!" O facto de Tanawe lhe ter dado aspecto de fêmea não a tornava instantaneamente numa.

Jack tivera a oportunidade de conhecer Tanawe pessoalmente dois meses antes, quando ela se tinha apresentado na torre para tentar Onvencê-lo a juntar-se a eles. Na altura tinha-lhe mostrado como funcionavam os seus dragões. Era verdade, cheiravam a dragão; Tanawe explicou lhe que os untavam com uma espécie de pasta que incluía pó de escamas de dragão. Era isso que fazia com que os dragões artificiais tivessem algo da essência dos dragões de verdade. Isso deixava os sheks loucos de ódio.

"Saberia Tanawe que as escamas que usara para este dragão pertenciam a uma fêmea?", perguntou-se Jack. Só podia saber; era demasiada coincidência que aquela máquina, que tinha aspecto de fêmea de dragão, cheirasse como uma fêmea de dragão.

"Controla-te, estúpido", repreendeu-se a si mesmo. "É uma máquina, não é verdadeira." Mas aquela incómoda sensação não se dissipava. A fêmea de dragão era linda, e Jack suspirou para consigo. "Acorda, parolo. Não é real. Não há mais nenhuma, nenhuma como ela. Estás sozinho."

Sozinho. Completamente sozinho.

Rugiu ferozmente, numa tentativa de esconjurar a dor causada pelo facto de ser o último dragão do mundo. Antes isso não era tão terrível, porque havia Victoria, o último unicórnio do mundo. Ela não era uma fêmea de dragão, nada que se parecesse. Contudo, dentro dela pulsava um espírito grande e brilhante como o seu. E, por sorte, ambos tinham também um corpo humano que lhes permitia estar juntos, amar-se. Assim, não importava que ele não fosse um unicórnio, nem que ela não fosse uma fêmea de dragão.

Mas agora... agora Jack olhava para ela e só via uma humana. E naquela tarde, ao ver Victoria e Kimara juntas, surpreender a-se a si próprio a fixar Kimara em vez de Victoria. Kimara era apenas uma faísca num mundo onde Jack era uma poderosa fogueira, mas ambos eram feitos do mesmo. Em contrapartida, agora... o que é que o unia a Victoria? Tinham um passado juntos e por esse passado Jack estava disposto a continuar à espera, a dar uma oportunidade àquele sentimento que os unira. Mas... teriam um futuro?

Apercebeu-se de repente de que estava a voar em círculos em volta do dragão de Kimara. Por instinto, sabia que aquilo era um ritual de acasalamento. Sentindo-se envergonhado, afastou-se um pouco e obrigou-se a voar em linha recta. Por sorte, duvidava muito que Kimara soubesse o que significava aquela manobra. Parou no ar e deixou que a fêmea de dragão vermelha se distanciasse.

Não, não ia incorrer outra vez no mesmo erro. Já se sentira atraído por Kimara anteriormente, para logo a seguir cair em si e perceber que amava Victoria. Não pensava voltar a fazer o mesmo, voltar a magoar Kimara e Victoria por causa de um capricho.

Subitamente, um som arrepiante veio perturbar os seus pensamentos: o guincho de um shek lançando-se ao ataque... e o rugido de um dragão a responder-lhe. O sangue congelou-se-lhe nas veias ao ver que uma serpente alada se abatia sobre a fêmea de dragão vermelha, também atraída pelo seu cheiro, mas por razões bem diferentes. A fúria e o ódio apoderaram-se da sua razão e dos seus sentidos e, com um rugido, lançou-se contra o shek para defender a fêmea vermelha.

Christian não acreditava no que os seus olhos viam.

Um dragão. Uma fêmea vermelha, para ser mais específico. Voava na sua direcção, vinda de poente, de modo que não conseguia vê-la bem à contraluz, mas cheirava a dragão, a fêmea de dragão, e isso era impossível porque todos os dragões tinham morrido anos antes. Todos... menos um, mas esse era um macho e, além disso, as suas escamas eram douradas. Sabia-o muito bem, porque lutara contra ele em diversas ocasiões.

No entanto, o seu instinto não falhava. E este exigia-lhe que matasse aquela fêmea de dragão.

Jurara a si mesmo que respeitaria Jack para não causar mais dor a Victoria. Mas nada o impedia de lutar contra a fêmea de dragão e desfazê-la entre os seus anéis. Estremeceu de prazer só de pensar nisso. com um guincho de cólera, lançou-se sobre ela, abrindo ao máximo as suas asas e mostrando as suas presas letais impregnadas de veneno. E o ódio cegou-o, tal como antes dele tinha cegado milhares de sheks ao longo de gerações, tal como dominara também os dragões.

Kimara assustou-se ao ver o shek precipitar-se sobre ela, mas reagiu depressa. Tinha lutado na batalha do bosque de Awa e, embora não fosse tão boa a pilotar dragões como Kestra nem possuísse a sua experiência no combate contra os sheks, sabia defender-se. Puxou as alavancas para abrir ainda mais as asas, num movimento que a fez elevar-se no ar. Lançou para trás a cabeça da fêmea de dragão e vomitou uma breve labareda de advertência. Esperava com isso fazer o shek retroceder. Sabia, contudo, que não devia abusar do fogo do dragão, dado que não era inesgotável. Os dragões Cuspidores de Fogo precisavam de ter a sua magia ígnea renovada de vez em quando, tarefa que estava reservada aos feiticeiros.

Pela escotilha lateral, viu que Jack vinha em seu auxílio com um rugido selvagem, e o peito encheu-se-lhe de orgulho e alegria. Por fim, o seu amigo estava a começar a comportar-se como um autêntico dragão.

Como o que era, afinal de contas.

Jack viu que o shek retrocedia um pouco diante da labareda da fêmea de dragão. Obsequiou-o com um rugido com o qual pretendia chamar a atenção para a sua presença. O shek voltou-se para ele, a ciciar, e mostrou-lhe as presas... mas então os seus olhos matizados brilharam estranhamente.

Jack também pestanejou, confuso. Reconheceu-o uma fracção de segundo antes de a voz telepática da serpente ressoar na sua mente:

- Jack? -

Sim, não havia dúvida, era ele. O dragão perguntou-se como tinha identificado o shek entre as centenas de sheks que pululavam ainda por Idhún. Não havia muito tempo, todos lhe pareciam iguais. Mas agora era capaz de distinguir Christian entre todos os outros. Tal como Victoria fizera... desde o início.

- Christian! - pensou. Sabia que o shek tinha estabelecido um vínculo telepático com ele e captava os seus pensamentos com clareza.

Os dois olharam-se de relance; os olhos cor de esmeralda do dragão encontraram-se com os olhos irisados da serpente. Jack deixou escapar um grunhido, Christian um breve cicio. O ódio continuava a pulsar neles; o desejo de lutar, de se matarem mutuamente, de se destruírem aumentava a cada instante e era cada vez mais difícil de controlar.

- Por Victoria - disse Jack para si. Mas a lembrança da jovem que o aguardava na torre desta vez não serviu para acalmar o seu ódio. Valeria realmente a pena renunciar ao prazer que lhe daria matar o shek... por ela?

Mas Christian bateu as asas suavemente e recuou, fechando a boca com um novo cicio; e o brilho letal das suas pupilas apagou-se. Jack, com um esforço soberano, virou a cabeça para romper o contacto visual. A sua crista, que tinha eriçado ameaçadoramente, desceu de novo, lentamente.

Kimara demorou um pouco a compreender o que estava a acontecer. O que se passava com aqueles dois? Porque é que não lutavam? Quando percebeu que o dragão e a serpente estavam a comunicar de alguma maneira, a primeira coisa em que pensou foi que Jack os tinha vendido aos sheks, que tinha pactuado com o inimigo... depois compreendeu que aquele shek devia ser Kirtash, com quem Jack e Victoria tinham estabelecido uma estranha aliança. Cerrou o punho com força, procurando controlar a sua fúria. Não conseguia entender como era possível que eles tivessem perdoado a Kirtash todo o mal que lhes causara.

Ergueu a cabeça e os seus olhos brilharam com o fogo do deserto. bom, calculou, Jack não faria mal a Kirtash porque aquela serpente significava muito para Victoria e ele não queria feri-la. Mas Kimara não tinha qualquer motivo para respeitar aquele acordo. Odiava Kirtash e, algum tempo antes, tinha jurado que encontraria maneira de o matar. Além disso, naquele momento o shek não era muito maior e mais poderoso do que ela. Pela primeira vez, ela era igualmente grande e podia lutar contra ele como um dragão o faria.

com um sorriso de triunfo, fez a fêmea de dragão vermelha bater as asas e lançar-se sobre Kirtash, com as garras de fora. Julgava que Jack se afastaria e a deixaria matar o seu inimigo. E mais: certamente agradeceria que Kimara fizesse por ele o que Victoria não lhe permitia fazer.

Assim, ficou surpreendida quando o dragão se interpôs entre os dois e os separou com um grunhido de advertência e um furioso bater de asas.

- Chega, Kimara! - gritou-lhe. - É Kirtash!

- Eu sei! - resmungou ela. Procurou fazer o seu dragão girar para se esquivar de Jack, mas ele voltou a interpor-se. Baixou a cabeça até os seus olhos ficarem à altura da escotilha dianteira.

- Chega, Kimara - repetiu.

A semi-yan estremeceu e baixou os olhos, incapaz de suster o olhar intenso do dragão dourado. Tremia de fúria quando fez retroceder a fêmea de dragão, mas não disse mais nada. Jack intimidava-a como humano e amedrontava-a como dragão, mas isso era algo que nunca reconheceria, nem sequer para si mesma.

- O que é aquilo? - perguntou Christian, que não afastava os olhos da fêmea de dragão vermelha. Jack apercebeu-se do seu olhar.

- Não percas tempo, não é de verdade - respondeu despreocupadamente; mas Christian detectou um laivo de amargura nos seus pensamentos.

Jack deu meia-volta e retomou o voo para a Torre de Kazlunn. Christian juntou-se a ele, não sem antes dirigir um suave silvo ameaçador à fêmea dragão de Kimara. Ela esperou que se afastassem um pouco e depois seguiu-os a uma certa distância. Fez com que a fêmea de dragão deixasse escapar uma baforada de fumo, mostrando o seu desagrado.

- Dragões artificiais - disse Christian. - Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto nenhum de perto. Não pensava que fossem tão...

- Reais? - ajudou-o Jack. - Sim, imagino que adorarias desfazê-lo, mas controla te, está bem? A mulher que está lá dentro é minha amiga.

Christian ciciou baixinho, e Jack calculou que estava a ponderar se aquilo seria razão suficiente para reprimir o seu instinto. Pareceu achar que sim, porque o seu rosto de réptil mostrou um sorriso rasgado.

- É uma bela fêmea de dragão - opinou. - Quando vos vi juntos pensei que era a tua nova namorada.

- Não tenho nenhuma namorada nova! - explodiu Jack, antes de se aperceber de que o shek estava a gozar com ele. - Continuo a ter a mesma namorada de sempre - acrescentou, contudo, para o caso de Christian ainda ter alguma dúvida.

- Também eu - replicou o shek brevemente. Para Jack continuava a ser um tanto estranho o facto de ambos estarem a falar da mesma pessoa.

"Já discutimos isso", disse o dragão para si, cansado.

- Certo - assentiu Christian, que captara os seus pensamentos, mesmo não sendo dirigidos a ele. - E não vou voltar a falar do assunto. Diz-me, como é que ela está?

Jack hesitou.

- Não sei dizer-te. Não muito bem.

- Mas acordou, não foi? Sei que acordou. Está consciente.

- Sim, e está a recuperar as forças pouco a pouco. Mas está... bom, já vais entender assim que a vires.

Jack teve de se adiantar para se assegurar de que os feiticeiros da torre deixavam Christian pousar no terraço. Levou Kimara consigo, para o caso de ela pensar em voltar a atacar o shek.

Entrou na torre, novamente transformado em humano, e começou a dar instruções; e ninguém, à excepção de Qaydar, ousou contradizê-lo quando ordenou que saíssem do andar onde Victoria descansava. A visita do shek era algo que só dizia respeito a eles os dois e, quando muito, ao próprio Jack.

- Enlouqueceste - grunhiu o Arquifeiticeiro.

- Sei o que estou a fazer - replicou Jack secamente.

Qaydar quis replicar, mas Jack fitou-o. O Arquifeiticeiro acabou por baixar a cabeça e retirar-se para os seus aposentos, sem mais uma palavra.

Jack foi assegurar-se de que Kimara levava a sua fêmea de dragão para o coberto e não voltava a incomodá-los. Tinha aprendido que poucas pessoas conseguiam suster o seu olhar por muito tempo. Havia algo nos seus olhos que as amedrontava e, embora no início isso o tivesse incomodado, agora considerava-o muito útil em circunstâncias como aquela.

Apenas uns instantes depois, estava de pé sobre a balaustrada, fazendo sinais a Christian que, suspenso no ar, aguardava o momento de pousar.

O shek passou ao seu lado com a elegância de uma seta de prata, levantando uma corrente de ar à sua volta, que por pouco não fez Jack, a cujos pés se abria uma impressionante falésia, perder o equilíbrio. Mas isso não amedrontou o dragão, que desceu para o terraço de um salto e se juntou ao shek um pouco mais adiante.

Também Christian se tinha metamorfoseado em humano. Estava prestes a entrar no edifício quando Jack o deteve.

- Espera, Christian. Antes de a veres... - Hesitou um pouco.

- O que é?

- bom, tens de saber que ela já não é propriamente a mesma. Mas... não deixes que isso vos afecte. Vais partir-lhe o coração se lhe virares as costas agora.

- Depois de tudo o que sofri por ela, achas que lhe vou virar as costas agora? - contrapôs o shek, estupefacto. - Tomas-me por estúpido?

Jack abanou a cabeça, muito sério.

- Eu sei porque é que o digo. Não te esqueças, está bem? Christian começava a ficar impaciente.

- Onde está Victoria?

Descobriu uma sombra de pesar na expressão de Jack.

- Supostamente, devias saber - disse com voz estranha. - Está mesmo atrás de ti.

Christian esboçou um breve sorriso. Isso era impossível. Tê-la-ia detectado. Pressentia a luz de Victoria mesmo que não pudesse vê-la.

Mas os olhos de Jack não pareciam mentir. Christian voltou-se, lentamente, quase temendo ver o que ia encontrar ali.

De facto, Victoria estava atrás dele. Tinha o cabelo solto, vestia uma túnica branca simples e estava descalça sobre o chão de mármore. Observava-os com os olhos muito abertos, semioculta atrás de uma coluna, sem se atrever a avançar mais. Christian não se lembrava dela tão pequena nem tão frágil.

Os dois entreolharam-se por um momento, até que Victoria baixou a cabeça.

- Deixo-vos sozinhos - disse Jack por fim. - Não permitirei que ninguém vos incomode, mas se precisarem de alguma coisa... não estarei longe. Está bem?

Nenhum dos dois respondeu. Jack passou pelo umbral do terraço e travessou o quarto. Quando a porta se fechou atrás dele, fez-se um breve e incómodo silêncio.

Christian aproximou-se dela. Victoria não sabia o que dizer. Não o recordava tão alto, tão gélido, tão negro nem tão ameaçador. E não conseguia parar de tremer, não sabia se de medo ou de frio.

Ele ergueu a mão para lhe pegar suavemente no queixo. Obrigou-a a levantar a cabeça. Victoria olhou-o nos olhos e um terror irracional paralisou-a.

Christian deu por isso e obrigou-se a si mesmo a afastar o olhar dos olhos de Victoria. Descobrir que ela tinha perdido a luz, que desta vez não estava velada por um manto de trevas, mas, sim, simplesmente extinta, era um duro golpe para ele, embora se esforçasse para não o deixar transparecer. Examinou o círculo escuro que marcava a testa de Victoria.

- Acho que ficou mais pequeno desde a última vez que o vi - comentou suavemente.

- Achas? - perguntou ela em voz baixa. - Jack também diz que diminuiu. Mas mais ninguém reparou.

- Talvez seja por não te ver há muito tempo. É mais fácil para mim detectar as alterações.

Pronunciou a palavra "alterações" com uma entoação especial, talvez com um pouco de dureza, e a alma de Victoria caiu-lhe aos pés. "Pronto", pensou. "Vai pedir-me que lhe devolva o anel."

Mas Christian não disse nada. Apenas continuou a olhar para ela.

- Eu... - disse ela, após um silêncio tenso. - Sei que perdi algo importante e de que vocês os dois sentem a falta. Lamento muito, Christian.

Christian permaneceu calado. Victoria não se atrevia a olhá-lo nos olhos, em parte porque ele a intimidava, mas também porque temia descobrir que ele a contemplava com a fria indiferença com que tratava o resto das pessoas. A todos os que não eram como ele.

- Olha para mim, Victoria - pediu ele então.

A jovem hesitou. Engoliu em seco e, armando-se de coragem, levantou a cabeça para voltar a enfrentar os seus olhos azuis.

- Tenho de te recordar porque é que estás assim agora? - perguntou Christian com alguma severidade.

- Porque Ashran me arrancou o corno.

- Porque tu lhe entregaste o teu corno, Victoria. Eu estava lá e tenho óptima memória. Entregaste-lho para nos salvar a vida. A Jack e a mim. Graças a isso ainda estou vivo, estou aqui. E agora diz-me... em nome do Sétimo, diz-me o que significa isto, por que razão pensas que tens de me pedir perdão.

- Porque arriscaste a tua vida por mim - respondeu ela em voz baixa.

- Se estiveste em perigo, foi justamente por minha causa. E sei que neste momento te estás a perguntar se valeu a pena o transtorno.

Christian demorou um pouco a responder.

- Vejo que me conheces bem - disse. - Mas estás enganada numa coisa. Uma vez disse-te... lembras-te? Disse-te que, enquanto visse nos teus olhos que continuavas a sentir algo por mim, regressaria para te vir buscar. Acreditas mesmo que sou eu quem não quer regressar? E tu?

- Tenho medo de ti - reconheceu ela num sussurro.

De novo reinou o silêncio entre os dois, um silêncio pesado e cheio de dúvidas, que Christian rompeu finalmente:

- Anda cá.

Puxou-a para si. Victoria quis resistir, mas não foi capaz. Os braços dele rodearam-na, e a jovem apoiou a cabeça no seu ombro, a tremer, fechando os olhos. Navegava há algum tempo num mar de gelo e escuridão, procurando desesperadamente um sentimento que parecia ter-se extinguido. Engoliu em seco e rodeou a cintura dele com os braços, vencendo o medo que a paralisava. Os dedos de Christian enredaram-se no seu cabelo. Um arrepio percorreu a coluna de Victoria, que percebeu, de repente, que o seu coração batia com força, que, sob a camada de geada que o cobria, ardia ainda uma emoção intensa e sincera.

- Eu ainda te amo, Christian - disse em voz baixa.

- Estás a tremer - observou ele. - Medo, frio...?

- As duas coisas - confessou ela.

- Dá-me a sensação de que não consegues segurar-te de pé. Se te largar, cais.

Victoria praguejou para consigo.

- Reparaste... É verdade que me canso com muita facilidade. Mas estou a melhorar. A cada dia que passa.

Christian não disse nada. "Ele sabe", pensou Victoria. "Sabe que isso não tem nada a ver; que, mesmo que consiga voltar a mover-me normalmente, mesmo que recupere as forças, não voltarei a ser um unicórnio."

Tentou afastar-se dele, mas Christian não a deixou.

- Está a anoitecer. vou levar-te ao teu quarto para que descanses. Victoria não teve forças para se opor. Deixou que ele a levasse nos braços até ao seu quarto. Também não teve alento para lhe pedir que ficasse mais um pouco ao seu lado. Impotente, viu como Christian a cobria cuidadosamente e saía do quarto em silêncio.

"Não me beijou", suspirou Victoria.

Sabia o que isso significava.

Christian encontrou Jack sentado no parapeito de uma pequena varanda, na extremidade oposta do piso. Õ dragão dirigiu-lhe um olhar inquiridor.

- Tinhas razão - limitou-se a dizer Christian. Jack recostou-se na parede.

- Espero que não tenhas sido muito frio com ela. Mais frio do que és habitualmente, quero dizer.

Christian lançou-lhe um olhar de censura.

- E tu? O que se passa contigo?

Jack permaneceu calado, pensativo, enquanto erguia os olhos para a maior das luas, que já emergia no horizonte.

- Pensei muito nisso - acabou por dizer. - Na forma como a vejo agora. No que sinto. Em que é bastante provável que nada volte a ser como antes entre nós. E, por estranho que pareça... cheguei à conclusão de que, apesar de tudo, continuo a amá-la, embora se tenha tornado uma rapariga humana como outra qualquer. Talvez seja apenas saudades, ou o termos passado demasiadas coisas juntos para atirar tudo pela janela, ou o facto de ela ser a única rapariga que amei em toda a minha vida... Mas não quero perdê-la. Seja como for, já não há ninguém no mundo como eu... portanto, não tenho escolha. Se tiver de escolher uma humana, porque não escolhê-la a ela? Não sei se me faço entender.

Christian demorou a responder.

- Tens assim tanta certeza de que se tornou completamente humana? - perguntou então. - Achas mesmo que não voltará a ser o que era?

Jack hesitou antes de dizer:

- vou contar-te uma coisa... algo que só eu e ela sabemos. Mas não comentes com ela, está bem?

Christian não disse nada. Mesmo assim, Jack prosseguiu:

- Há uns dias, pedi-lhe que pegasse no báculo. Na altura pareceu-me uma boa ideia: se esse artefacto funciona como um corno de unicórnio, que é o que Victoria perdeu, era lógico pensar que lhe devolveria o seu poder ou pelo menos parte das suas forças. Mas...

- O báculo rejeitou-a - adivinhou Christian. - Não conseguiu pegar nele.

Jack assentiu, pesaroso.

- Isso deixou-a desfeita. Foi um golpe duro para ela. Tentei fazer com que o esquecesse, mas... não consegue deixar de pensar que Lunnaris morreu dentro de si.

Christian meneou a cabeça.

- Se isso tivesse acontecido, ela teria morrido também. As duas essências são na realidade uma só, Jack.

- Não temos como o saber. Victoría é uma criatura única. Não consta que haja outros seres como ela. Não sabemos na realidade como funciona a sua alma dupla.

- Ainda tem a marca na testa - observou Christian. - Essa marca assinala uma lesão na sua parte de unicórnio. O seu corpo humano está saudável. Percebes o que eu quero dizer?

- Queres dizer que, se Lunnaris tivesse morrido, se Victoria tivesse perdido essa parte de unicórnio, não teria essa espécie de buraco na testa, não é? Mas o buraco está a fechar-se, Christian. Está cada vez mais pequeno. E não sei se é um bom sinal.

Christian ficou calado, sombrio. Jack olhou para ele.

- O que é?

-Já pensaste - disse o shek lentamente - que, se ela se tornar completamente humana... pode ser que no futuro prefira ter um companheiro humano?

Jack recuou, perplexo.

- Não, não tinha pensado nisso - reconheceu. - É verdade que reparei que ela está pouco à vontade comigo - acrescentou em voz baixa.

Christian manteve-se em silêncio.

- Mesmo assim - prosseguiu Jack -, acho que continuarei ao seu lado enquanto for necessário. E tu? - perguntou então. - O que vais fazer em relação a ela?

- Tinha planos. E suponho que, apesar de tudo, o que tinha planeado para ela continua a ser a melhor opção.

Jack olhou para ele, inquisitivo. Christian relatou-lhe então o que tinha visto em Nanhai. Falou-lhe do seu encontro com Shaú, das suas conversas acerca dos deuses, do pedido de auxílio de Ynaf e do que tinham encontrado na cordilheira. Jack ouviu-o, contendo a respiração. Era a primeira vez que ouvia falar de Ydeon, o forjador de espadas, o gigante que tinha criado Domivat séculos antes. Prometeu a si mesmo visitá-lo um dia em Nanhai. Contudo, as notícias sobre a chegada de Karevan a Idhún eram muito mais relevantes, pelo que se centrou nesse problema e na solução que Christian propunha.

- Levá-la para a Terra? - repetiu. - Não irá demorar mais a recuperar lá do que na Torre de Kazlunn?

- Provavelmente. Mas a Terra não se encontra ameaçada por uma iminente guerra de deuses, pelo menos que eu saiba. E Victoria tornou-se muito mais pequena do que antes aos olhos de um deus. Quer a sua essência de unicórnio tenha morrido quer não, é impossível detectá-la neste momento. Não creio que os deuses se apercebam sequer de que ela está aqui; e, se o fizessem, também não seria bom para Victoria: talvez o Sétimo ainda tenha interesse nela.

Jack reflectiu. Depois disse, devagar:

- A Terra pode não se encontrar ameaçada por uma guerra de deuses, mas há lá algo perigoso. Na noite do Triplo Plenilúnio, quando morreram aqueles sheks todos...

alguns escaparam para outro mundo. De alguma maneira, abriram uma Porta interdimensional e foram-se embora... Eu vi-os. No início pensei que tinha sido imaginação minha, mas agora sei que foi real. E estou convencido de que foram para a Terra.

Christian semicerrou os olhos.

- Ziessel - limitou-se a dizer.

Jack olhou para ele, curioso, mas Christian não deu mais pormenores.

- Ainda assim, acho mais fácil protegê-la de um grupo de sheks do que de um grupo de deuses.

- Nisso dou-te razão. Christian olhou para ele.

- Então, virias connosco? Jack hesitou.

- Não há realmente nada que possamos fazer aqui?

- Contra um deus? - Christian abanou a cabeça. - Estou aberto a todo o tipo de sugestões.

Jack abriu a boca, mas não disse nada. Christian levantou-se.

- Onde vais?

- Ter com Victoria. Para a velar. - Hesitou um pouco antes de acrescentar: - Eu também senti a falta dela.

Era ainda de noite, mas Kimara já estava a carregar as suas coisas para o interior da fêmea de dragão. O artefacto, agora em repouso, jazia sobre o chão de pedra do coberto; naquele estado ninguém acreditaria seriamente que aquilo pudesse confundir-se com um dragão de verdade.

Kimara conferiu as juntas, apertou as correias, pôs óleo nas alavancas e fez uma revisão às asas. Quando, com as mãos na cintura, passava um olhar examinador à máquina, satisfeita, alguém deixou cair uma mão sobre o seu ombro, sobressaltando-a.

- Madrugaste muito hoje - disse atrás dela a voz inconfundível de Jack. - Tencionavas ir-te embora sem te despedires?

Kimara desviou o olhar, aborrecida, grunhiu algo e tirou o seu manto do gancho onde o tinha pendurado, ignorando o jovem.

- Continuas zangada comigo, ha? - compreendeu Jack.

Kimara voltou-se para ele. O rapaz tinha apoiado as costas na parede e observava-a com os braços cruzados à frente do peito.

- Não devias ter impedido que lutasse contra esse shek - disse por fim.

- Ter-te-ia feito em pedaços.

- O que é que tu sabes? Não estavas na batalha de Awa. Nós, os Novos Dragões, temos capacidade para enfrentar os sheks.

- Não duvido. Mas, seja como for, esse shek é um aliado. Não faz sentido que...

- Aliado!? - cortou Kimara, estupefacta. - Shail e Zaisei disseram que te tinha matado!

Jack inclinou a cabeça.

- Tenho aspecto de estar morto, Kimara? Ela desviou o olhar, incomodada.

- Shail e Zaisei não viram tudo o que se passou - prosseguiu ele. Quem começou a luta fui eu. E saí muito beneficiado, dadas as circunstâncias. É uma história muito longa, mas basta-me que saibas que não considero que tenha de fazer Christian pagar por nada, de modo que não faz sentido tentares vingar a minha suposta "morte".

Kimara abanou a cabeça em sinal de desaprovação.

- Surpreende-me que o defendas. E que lhe permitas estar a sós com Victoria.

- Porque não havia de permitir? Tem o mesmo direito que eu a estar com ela. Isso também é uma longa história.

Kimara ergueu a cabeça para o fitar. A sua presença intimidava-a, mas armou-se de coragem para lhe dizer:

- Mudaste muito desde que te conheci. Antes eras diferente. Odiavas os sheks... como todos os dragões.

- Continuo a odiá-los, Kimara. Infelizmente, não é uma coisa da qual nos possamos libertar com facilidade. Só que a meu ver o ódio é um sentimento que não leva a lado algum. Aos sheks e aos dragões só trouxe milénios de lutas sangrentas.

Incapaz de continuar a suster o seu olhar, Kimara baixou a cabeça.

- É por isso que não te juntaste aos Novos Dragões? Que não queres ir a Kash-Tar? Ou também é por Victoria?

- Victoria está agora em boas mãos - afirmou Jack, sorrindo. - E não é que não queira ir a Kash-Tar. Apenas sei que não devo.

Kimara fitou-o, surpreendida.

- Deves fazê-lo. É o que os dragões sempre fizeram, lutar contra os sheks, matá-los.

- Sim, e é exactamente esse o problema. Não devo seguir o jogo deles.

- De quem? Dos sheks?

"Não, dos deuses", pensou Jack, mas não o disse. Desviou a sua atenção para a fêmea de dragão da semi-yan.

- Não parece muito viva - comentou um pouco decepcionado.

- É porque ainda não renovei a sua magia.

- Consegues fazê-lo?

- É uma das poucas coisas que sei fazer - suspirou ela -, e não graças Qaydar. Foi Tanawe quem me ensinou. Observa.

Jack contemplou, entre inquieto e maravilhado, como a fêmea de draeão ganhava vida sob o conjuro de Kimara, como esticava as garras e levantava um pouco as asas, como erguia a cabeça e ficava a olhar para ele. Deu um passo atrás, por via das dúvidas, mas não sentiu a atracção que tinha experimentado na tarde anterior. "Deve ser por estar no meu corpo humano", pensou.

- É bonita, não é? - perguntou Kimara, orgulhosa.

- É linda, Kimara. Mas não é de verdade.

Pronunciou as últimas palavras com um tom mais seco do que realmente pretendia. Kimara reparou e voltou-se para ele, compreendendo, de súbito, qual era o problema.

- Ah... é verdade - disse. - Não há mais nenhuma fêmea de dragão... para ti.

Jack fez uma careta, um pouco irritado com a observação. Kimara cravou nele os seus olhos de fogo e aproximou-se dele para lhe falar em voz baixa.

- E a única coisa que te resta é um unicórnio que tens de partilhar com um shek - sussurrou. - Compreendo que necessites de algo mais.

Entreolharam-se longamente. A semi-yan não precisava de dizer mais nada. Jack respirou fundo e afastou-a de si com delicadeza.

- As coisas estão bem assim, Kimara - disse-lhe com firmeza. - Já falámos sobre isto uma vez. Gosto de ti, tenho muito carinho por ti e admiro-te, porque és franca, bonita e destemida. Mas não te amo. E não quero manter uma relação desse tipo com alguém que não amo, por muito que me atraia. Não quero enganar-te quanto a isso.

Ela dirigiu-lhe um sorriso.

- Eu sei. Mas acho estranho que continues a pensar assim, quando é mais que óbvio que Victoria não age como tu. E isto não é uma crítica, é apenas uma observação - apressou-se a esclarecer, receando tê-lo aborrecido.

Jack dirigiu-lhe um olhar de censura, mas limitou-se a responder:

- Enganas-te quanto a isso. Nesse aspecto, Victoria e eu pensamos e agimos da mesma maneira. Ela também não manteria uma relação com alguém que não amasse.

- Ama-lo realmente? Surpreende-me que alguém possa sentir algo por aquela serpente.

- A sério? - apoiou-a Jack, trocista. - Além disso, sou muito mais giro do que ele!

Kimara demorou um pouco a compreender que estava a brincar. Desataram os dois a rir, mas ele ficou repentinamente sério.

- O que há entre os três - disse -, o amor, o ódio, é algo que só a nós diz respeito. E é algo complicado e muito poderoso, que nos levou a fazer grandes coisas e a cometer grandes loucuras. Ninguém mais deveria imiscuir-se nisto, pela simples razão de que poderia sair prejudicado. Afinal de contas, é um assunto nosso, de mais ninguém.

Kimara captou o aviso. Intimidada, voltou-se para a fêmea de dragão e deu-lhe uma palmada no flanco.

- Tenho de partir - disse, mudando de assunto. - Deseja-me sorte em Kash-Tar, e tu vê se fazes alguma coisa ou vais enferrujar.

- vou fazer - prometeu Jack. - Mas ainda não sei o quê. Regressar à Terra com Christian e Victoria parecia-lhe a opção mais apelativa. Porém, por alguma razão, sentia que, se se fosse embora, estaria a trair toda a gente. "O que mais posso fazer?", perguntou-se. "Estão enganados; continuam a lutar contra os sheks, quando neste momento não são eles a ameaça. Mas como enfrentar um deus?"

Puxou a semi-yan para si e deu-lhe um forte abraço de despedida.

- Cuida-te e não faças loucuras. Ah, já me esquecia! - Afastou-se dela para a olhar nos olhos. - Se em algum momento vires algo estranho, algo inexplicável...

- Como o quê?

- Como uma montanha a tremer, por exemplo... bom, algo muito grande mas que parece que não está lá... Se te deparares com algo fora do normal e que te assuste muito, que não saibas o que é e contra o qual não saibas como lutar... dá meia-volta e foge.

- Porquê? De que é que estás a falar, Jack?

- Eu contava-te, mas não ias acreditar. Se te deparares com algum deles, irás saber e, nessa altura, vais lembrar-te desta nossa conversa. E, por tudo o que te é mais querido, se isso acontecer, faz o que te digo: não fiques para ver o que é; limita-te a correr na direcção contrária, o mais rápido que puderes.

- Estás a assustar-me, Jack.

- Sim, é exactamente isso que pretendo.

Desta vez não estava a brincar. Kimara afastou-se dele, tremendo perante a seriedade e intensidade do seu olhar. Trepou até à escotilha superior da fêmea de dragão e, de lá, voltou-se para Jack pela última vez.

- Espero que voltemos a ver-nos - disse. Jack sorriu.

- Eu também. Muita sorte, Kimara.

Momentos mais tarde, a fêmea de dragão de Kimara elevava-se no céu nocturno, afastando-se da Torre de Kazlunn.

Victoria abriu os olhos de repente, com o coração a bater com força. Tinha tido um pesadelo. Soergueu-se um pouco, tentando acalmar-se. Foi então que reparou que estava sozinha no quarto. "Que esquisito", pensou. Jack costumava dormir ao seu lado todas as noites. Recordou que na tarde anterior a tinha deixado a sós com Christian.

Era óbvio que Jack ainda não tinha regressado e que o shek também não tinha ficado junto dela. Embora sentisse falta deles, preferiu considerar isso um bom sinal: estava a melhorar e não precisava que cuidassem dela constantemente.

Virou-se para continuar a dormir quando detectou um movimento junto à janela. Voltou-se, com cautela.

- Christian? - sussurrou, mas percebeu logo que não podia ser ele. Estava calor no quarto.

Inquieta, afastou o lençol e pôs os pés no chão. O seu olhar dirigiu-se involuntariamente para o canto onde repousava o Báculo de Ayshel; recordou então que não podia tocar nele e obrigou-se a não pensar nisso.

- Quem está aí? - perguntou, levantando um pouco a voz. Avançou até à janela e assomou cautelosamente, mas não viu ninguém.

De repente, algo a agarrou com força pelo pescoço. A jovem tentou gritar, mas não conseguiu. Atiraram-na ao chão com violência; ela não tinha forças para resistir.

- Então - sussurrou uma voz que conhecia, mas que há muito tempo não escutava. - Parece que não consegues levantar-te, ha? O que é feito do poderoso unicórnio que ninguém era capaz de olhar nos olhos? Já não tens esse porte tão arrogante, pois não? Já não podes olhar para os mortais de cima. E já ninguém tem de te suplicar para que lhe entregues os teus dons... porque já não tens nada para entregar.

A voz continuava a ser essencialmente a mesma, ligeiramente trocista, mas agora soava desfeita e cheia de amargura, e falava lentamente, como se sofresse ao pronunciar cada palavra. Victoria levantou a cabeça a muito custo. O desconhecido retirou o capuz e o luar das três luas banhou o seu rosto.

Era ele, como receava. As mesmas madeixas de cabelo louro-escuro, a barba de vários dias, o mesmo tipo de vestuário, casual e descuidado, com aquelas calças gastas, aquela camisa larga, aquelas botas altas. Mas nos seus olhos cinzentos havia um rasto de escuridão e sofrimento dolorosamente familiar para Victoria.

- Yaren - murmurou.

O feiticeiro dirigiu-lhe um sorriso maldoso.

- Lembras-te de mim. Que surpresa.

- En... entreguei-te a magia - murmurou Victoria. - Não poderia ter-te esquecido. Nem poderei esquecer-te nunca.

- Entregaste-me angústia, dor e trevas, oh, poderosa dama Lunnaris replicou ele, cortante.

- Dei-te a única coisa que possuía na altura.

- Estás a mentir. - Agarrou-a com rudeza pelo pescoço e puxou-a obrigando-a a ajoelhar-se. - Achas que não ouvi o que contam os cantadores de notícias? Há mais outra, uma mulher yan. Dizem que pilota dragões. E também dizem que é uma nova feiticeira. Deste-lhe a magia a ela, uma magia boa, limpa. Deste-lhe a oportunidade de estudar na Torre de Kazlunn, com o Arquifeiticeiro Qaydar. Porque é que não me deste isso a mim?

- Não era uma boa altura... - começou Victoria, mas não conseguiu continuar, porque ele cravou as unhas no seu pescoço, injectando-lhe uma energia que a fez lançar um grito de dor.

- Estás a sentir? - sussurrou Yaren, com um sorriso sinistro. - É esta magia suja e podre que me deste. Isto é o que há na minha alma, Lunnaris. E este tormento devo-o a ti.

Voltou a lançá-la ao chão. Victoria conteve um queixume.

- Então é verdade que perdeste o teu poder e que já não és mais do que uma miúda fracalhota e assustada - disse o feiticeiro. - Vim até ti, outra vez, com a esperança de que me limpasses por dentro. Mas já vi que... uma vez mais... não vais poder fazer nada por mim. De modo que, se já não serves para nada, que sentido faz que continues viva?

Inclinou-se junto da rapariga, agarrou-a pelos cabelos e puxou-a até que o seu rosto ficou em frente do seu. Victoria reprimiu um esgar de dor.

- Não evites o meu olhar, Lunnaris - ordenou-lhe o feiticeiro com dureza. - Atreve-te a olhar nos olhos da tua criação!

Victoria arquejou, mas obedeceu. E viu nos olhos de Yaren uma espiral de trevas, ódio e sofrimento tão intensa que o seu coração se apertou de medo e de dor.

- Que tens a dizer acerca disto? - ciciou o feiticeiro com um sorriso maléfico.

Victoria susteve o seu olhar com seriedade.

- Estava convencida de que morreria naquela noite - disse. - Eu sabia que não era uma boa altura, mas, se não te entregasse a magia naquela altura, ninguém mais poderia fazê-lo. Foi o que tu mesmo disseste, não te lembras? Que, quando eu morresse, o teu sonho morreria comigo. A magia era o que mais desejavas, não era?

As feições de Yaren contraíram-se num trejeito feroz de ódio.

- E isso foi a única coisa que pudeste partilhar comigo?

- É... um reflexo do que havia na minha própria alma na época. Isso é parte do que eu sentia. Não havia mais nada dentro de mim.

- Não acredito em ti. Confiei em ti... Fui teu guia e teu companheiro de viagem... e foi assim que me pagaste.

Os seus dedos fecharam-se em volta da garganta de Victoria, que se debateu, desesperada.

Foi então que chegou Christian. Irrompeu no quarto como um raio; Yaren viu-o avançar e retrocedeu de um salto. Victoria caiu no chão, respirando por fim, enquanto Christian descarregava Haiass sobre o corpo do feiticeiro. Mas a espada mítica foi travada por um escudo invisível.

Yaren deu outro passo atrás e desembainhou a sua própria espada. Os dois rivais estudaram-se mutuamente.

- Oh - disse o feiticeiro, esboçando outro dos seus sorrisos atravessados. - Sei quem és. "O homem que tenho de matar" - recitou, imitando a voz de Victoria. - O que se passa? Agora defendes a rapariga que passeou uma espada por meio continente jurando que estava destinada a ti? Será que a dor que a esmagava, todo o ódio... não era mais do que uma estúpida briga de namorados?

Christian semicerrou os olhos, mas não disse nada. com um movimento felino, avançou para Yaren, rápido como uma flecha, a fim de atacar de frente... mas fez um desvio no último momento e lançou uma estocada lateral, procurando o ponto onde a protecção mágica não se tinha fechado completamente. Yaren lançou uma exclamação de surpresa e saltou para trás, evitando por um triz a espada do shek. Interpôs a sua espada entre si e Christian, mas aquela arma nada podia fazer contra o poder gelado de Haiass. Consternado, o feiticeiro viu como a sua espada se partia em duas. Momentos depois, era a mão de Christian que rodeava o seu pescoço, impedindo-o de respirar.

- Christian, não! - gritou Victoria.

Christian semicerrou os olhos e cravou o seu olhar de shek em Yaren. Victoria levantou-se muito a custo e voltou a gritar:

- Christian, deixa-o! Não faças isso!

Yaren ficara paralisado de terror, com os olhos fixos nas íris gélidas de Christian. De repente, o shek soltou o feiticeiro, que caiu de joelhos no chão a arquejar e recuou um passo.

- Não é possível - sussurrou.

Yaren respirou e ergueu a cabeça para ele, com uma sombra de ironia a latejar nos seus olhos cinzentos.

- Assustado, Kirtash? - sorriu. - Fazes bem em estar.

Christian reagiu. Ergueu Haiass de novo e arremeteu contra ele... mas Yaren esfumou-se no ar.

Victoria avançou uns passos até Christian, a coxear. O shek voltou-se para ela e a jovem parou, com o coração apertado, ao detectar algo parecido com medo estampado na sua expressão habitualmente impassível.

 

               UMA QUESTÃO DE LEALDADE

Era muito cedo quando Ymur e Shail partiram em direcção às cavernas do Leste, onde se escondia a criatura a quem os gigantes chamavam o "homem-animal". Chegaram ao seu destino quando o primeiro dos sóis atingia já o seu zénite. Shail sabia que aquelas cavernas estavam sob a vigilância de vários gigantes, mas não chegou a vê-los, apesar ter esquadrinhado atentamente as ladeiras das montanhas próximas. Descobriu várias rochas suspeitas, mas, embora as tivesse observado com atenção, não viu nenhuma delas mexer-se. Podiam ser realmente rochas, ou não. Os gigantes eram uma raça paciente.

Também não estranhou que ninguém procurasse impedi-los de se aproximarem da caverna onde morava o homem-animal. Os vigilantes estavam ali para assegurar que a criatura não se afastava daquela zona. Mas, se alguém queria aproximar-se dela, era assunto seu, não dos gigantes.

Ymur parou diante da entrada de uma caverna cercada de pingentes de gelo.

- É aqui.

Shail executou um feitiço simples de esfera luminosa para ver no interior. Conseguiu distinguir uma forma que se movia pelo fundo da caverna.

- Alexander? - sondou.

Só obteve um grunhido como resposta.

- Alexander! Sou eu, Shail. Se és tu, por favor, deixa-te ver. Ando há muito tempo à tua procura.

- Pois já me encontraste - replicou do interior uma voz rouca e esgotada. - E agora vai-te embora.

Shail respirou fundo.

- É ele - disse a Ymur. - Alexander, vou entrar - anunciou.

Não teve resposta. com um suspiro resignado, o feiticeiro entrou na caverna. A esfera luminosa flutuava à volta dele, iluminando o seu caminho.

A figura de cócoras no fundo da caverna ergueu a cabeça e olhou para ele, pestanejando. Os seus olhos estavam injectados de sangue e espiavam-no por entre um emaranhado de cabelos grisalhos e sujos.

- Vai-te embora - disse Alexander. - Tu não és Shail. És um fantasma.

- Sou real - respondeu o feiticeiro. - O que te faz pensar isso?

- Caminhas com duas pernas.

Shail riu suavemente. Levantou a túnica e arregaçou a perna das calças para que Alexander pudesse ver a sua perna artificial. O homem-animal olhou para ela de relance, fitou novamente Shail e depois voltou a encolher-se sobre si mesmo.

- Olha para ti, estás num estado lastimável - disse o feiticeiro. - com essa guedelha e esses farrapos. Já sei porque é que os gigantes te confundiram com um animal. E não tem nada a ver com os plenilúnios.

- Vai-te embora - repetiu Alexander.

- Esta não é uma conduta própria de um príncipe herdeiro de Nandelt

- replicou Shail, com mais severidade.

- Não sou príncipe de nada! - explodiu Alexander, com uma violência que sobressaltou Shail e o fez retroceder. - De nada, estás a ouvir? Assassinei o meu próprio irmão. Não sou digno de voltar a pôr os pés na minha terra.

- Nessa noite não eras tu. As luas...

- Para o diabo com as luas! Se não sou capaz de me controlar a mim mesmo, como posso sonhar governar um reino?

Shail ficou calado. A esfera luminosa continuava a dançar à sua volta, e o feiticeiro deteve-a com um gesto da sua mão. A luz banhou as feições de Alexander, que grunhiu ameaçadoramente, mostrando-lhe os dentes.

- Apaga isso - ladrou.

Shail ignorou o seu pedido e observou-o, pensativo.

- Covan, o mestre-de-armas da Fortaleza, vai ser coroado novo rei de Vanissar - disse em voz baixa. - Ele e o líder rebelde, Denyal, foram testemunhas da tua transformação no bosque. Acusaram-te de fratricídio perante todo o reino.

- E depois? Não estão a mentir.

- Tencionam desterrar-te.

- Fazem bem.

Mas Shail abanou a cabeça.

- Não estás a perceber. Para grande parte do povo, és o herói que reconquistou Nurgon e que conduziu o exército de Vanissar à vitória, derrotando as serpentes. Todos sabem que nem os cavaleiros de Nurgon nem Denyal e os seus Novos Dragões eram grande coisa até que regressaste do outro mundo para os liderar. Pensam que Covan quer usurpar o teu reino e que Denyal o apoia simplesmente porque está com ciúmes por lhe tirares o protagonismo. Jura que lhe arrancaste um braço...

- E é verdade...

- Mas diz-me, Alexander, quem vai acreditar nele? Depois da morte do teu irmão, o trono ficou vago. Metade do reino quer que sejas tu a ocupá-lo. A outra metade acredita que Covan seria uma melhor opção.

- E é verdade. Covan será um bom rei. Melhor que eu, em qualquer caso.

- Então volta e diz-lhe isso. Diz que renuncias ao trono. Enquanto continuares desaparecido, haverá em Vanissar gente disposta a acreditar que Covan e os seus partidários te mantêm sequestrado ou, pior ainda, que te assassinaram para que não reclames o trono. Vanissar encontra-se às portas de uma guerra civil, Alexander.

O jovem não respondeu. Shail começava a impacientar-se.

- Que diria Jack se te visse assim?

- E daí? Está morto.

"É verdade, não sabe", recordou Shail de repente.

- Não, Alexander, não está. Jack está vivo.

- Agora, sim, estou convencido de que és uma alucinação.

- Não morreu nos Picos de Fogo - insistiu Shail. - Ele e Victoria enfrentaram Ashran na noite do Triplo Plenilúnio, na Torre de Drackwen, enquanto nós combatíamos no bosque de Awa. E venceram-no. Fizeram cumprir a profecia. O Necromante está morto e os sheks foram derrotados.

Alexander abanou a cabeça.

- Não acredito em ti. És apenas uma ilusão que vem torturar-me com falsas esperanças. Vai-te embora daqui e não voltes.

- Mas...

- VAI-TE EMBORA! - bramiu Alexander, precipitando-se sobre ele, furioso, com as presas de fora.

Shail deu um salto para trás, assustado, e a esfera de luz estremeceu, apagando-se de seguida. Shail ainda conseguiu ver os olhos de Alexander a brilhar na escuridão antes de dar meia-volta e sair dali a correr.

Parou à entrada da caverna e voltou-se para dar uma espreitadela ao interior. Alexander voltava a retirar-se para o seu canto escuro.

- Se visses Jack com os teus próprios olhos, acreditarias em mim? gritou-lhe.

- Deixa-me em paz - grunhiu ele do interior da caverna. Shail e Ymur entreolharam-se.

- Não há dúvida de que é humano - disse o sacerdote. - Vamos então limitar-nos a vigiá-lo.

- Voltarei noutra altura - murmurou o feiticeiro, ainda chocado. Pode ser que dentro de um ou dois dias se mostre mais razoável.

- Estás a dizer-me que não pudeste com um simples feiticeiro? - perguntou Jack. - Que se escapou de entre as tuas mãos?

Christian abanou a cabeça.

- Mais ou menos; é que enquanto me introduzia na sua mente vi algo muito estranho nas suas lembranças.

Calou-se e dirigiu um olhar rápido a Victoria.

- Podem falar à minha frente - protestou ela. - Posso ter ficado mais fraca, mas não sou parva. Nem sou uma criança.

- Não te zangues - disse Jack, abraçando-a com carinho. - Além disso, a culpa é do shek; deixo-o contigo e a única coisa de que se lembra é deixar-te sozinha. - Lançou a Christian um olhar assassino. - Pode saber-se onde estavas?

- Não é assunto teu, dragão.

- Victoria é assunto meu e esta noite estava sob a tua responsabilidade. Sabes como se encontra e que ainda não está em condições de se defender sozinha. Se não és capaz de a proteger do primeiro psicopata que entra pela janela...

- Já chega, por favor - interveio ela. - Não é preciso andarem à bulha. Não quero ser um fardo para ninguém e, no fim de contas, não me aconteceu nada de grave.

Christian dirigiu-lhe um sorriso.

- Outorgaste a magia a esse ripo, não foi? - perguntou-lhe com suavidade. - Quando foi isso?

- Quando vim aqui para lutar contra ti.

- Um momento - deteve-os Jack. - Quer dizer que há mais feiticeiros consagrados por Victoria? Mais feiticeiros além de Kimara?

- Mais um - explicou ela. - Quando chegámos aqui, antes do Triplo Plenilúnio, lembras-te de te pedir que me ajudasses a procurar alguém que me tinha seguido até à torre, mas que acabámos por não encontrar? Era Yaren, um semifeiticeiro que me acompanhou durante algum tempo, enquanto procurava Christian. Suplicou-me centenas de vezes que lhe entregasse a magia e por fim fi-lo, mas... não saiu como ele esperava.

Não acrescentou mais nada. No entanto, tanto Jack como Christian recordaram como, após a suposta morte do dragão, a luz de Victoria se tinha tornado uma escuridão terrível e mortífera.

E era isso, compreenderam de súbito, o que a jovem tinha transmitido ao semifeiticeiro.

- Andou a aprender com alguém - observou Christian, evitando falar da natureza do novo dom de Yaren. - Uma coisa é ter o poder e outra bem diferente é saber usá-lo. E realizou um feitiço de protecção e outro de teletransporte.

- Queres dizer que tem um mestre?

- Ou uma mestra - assentiu Christian em voz baixa. Jack e Victoria entreolharam-se.

- Alguém que conheças? - perguntou Victoria, com alguma timidez. Christian demorou um pouco a responder.

- Alguém que nós os três conhecemos - disse por fim a meia-voz; ergueu a cabeça para olhar para eles. - A imagem de Gerde aparecia nas suas recordações recentes.

Reinou um silêncio de estupefacção.

- Não disseste...? - começou Victoria, mas não conseguiu continuar. Jack fê-lo por ela:

- Disseste que a tinhas matado. - Soou como uma acusação, e Christian ergueu-se.

- Matei-a - confirmou, imperturbável, cravando em Jack o seu olhar frio. - Mas ultimamente as pessoas que mato têm o hábito irritante de permanecerem vivas.

Jack devolveu-lhe um sorriso trocista.

- É mais do que óbvio que estás a perder faculdades - provocou-o.

- Então terei de praticar mais. E já percebi que estás desejoso de te ofereceres como voluntário.

- Parem já, os dois - ordenou Victoria. Ambos os jovens se voltaram para ela em simultâneo e a rapariga baixou a cabeça com brusquidão, intimidada pela força do seu olhar. - Por favor - acrescentou em voz mais baixa.

- Bem, pode ser que me tenha enganado - prosseguiu Christian. Mas, se assim não for, e Gerde...

- Se a mataste, não pode estar viva - insistiu Jack.

- Eu sei. E isso conduz-me a uma série de conclusões preocupantes. Levantou-se de rompante. - vou investigar esse feiticeiro, a ver o que consigo descobrir. Se as minhas suspeitas se confirmarem...

Não disse mais nada. Mas Jack tinha uma leve ideia daquilo a que se referia e Victoria decidiu que preferia não saber.

- Como vais investigá-lo? - indagou Jack. Christian deixou escapar um sorriso sinistro.

- O vínculo mental que estabeleci com ele quando o olhei nos olhos continua activo. Uma parte da minha consciência continua dentro da sua mente; embora ele não o saiba, durante algum tempo poderei ver o que ele vê, se me concentrar o suficiente. Mas não durará muito, de modo que tenho de ir embora já.

- Tão depressa? - deixou Victoria escapar. Christian fitou-a, o que a fez corar ligeiramente. Jack olhou alternadamente para ambos e disse:

- Espero-vos no terraço.

Saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Victoria levantou-se com algum esforço.

- Já sei que não me vais ouvir - disse -, mas tenho de te pedir uma vez mais: não faças mal a Yaren.

- Odeia-te, Victoria. Vai tentar matar-te outra vez, se tiver oportunidade.

- Eu sei. Mas não é um feiticeiro qualquer, sabes... Fui eu quem lhe outorgou o dom da magia. Ele é já parte de mim, tal como Kimara. Embora eles não o saibam ou não o sintam como eu.

Christian dirigiu-lhe um olhar inquiridor.

- Ainda sentes esse vínculo? Ou são restos da consciência de Lunnaris? Victoria hesitou.

- Não sei. Mas, por via das dúvidas... se voltares a deparar-te com ele... lembra-te do que te pedi, está bem?

- Não posso prometer-te nada - respondeu ele após um breve silêncio. Victoria respirou fundo.

- Tens de deixar de fazer isso - murmurou. - Agradeço-te que te preocupes comigo, mas não podes andar por aí a matar todas as pessoas que me odeiam ou que possam constituir uma ameaça para mim. Há coisas que tenho de solucionar sozinha.

Ele olhou demoradamente para ela.

- És demasiado compassiva, Victoria - disse então, e a sua voz soou tão fria que ela teve de reprimir um tremor. - Talvez um dia isso te traga consequências irreparáveis.

- Talvez - admitiu Victoria em voz baixa -, mas continua a ser uma decisão minha. Tens de aceitar que tenho o direito de decidir se quero correr riscos... e assumir as consequências.

Christian abanou a cabeça.

- Vi o que aconteceu da última vez em que decidiste arriscar-te e não me agradou.

Victoria armou-se de coragem, ergueu a cabeça e disse:

- Pois terás de o aceitar - Procurou que a sua voz soasse firme, mas tremia-lhe um pouco; não obstante, continuou a falar. - Também não me agrada que te ponhas em perigo, no entanto não to proíbo nem tomo decisões por ti.

Fez-se um silêncio tenso entre os dois.

- Suponho que tens razão - disse ele por fim. - Só que não gosto de te ver assim.

Ela desviou o olhar. - Já tinha reparado.

Christian não disse nada. Ergueu-se, disposto a ir-se embora. Victoria reteve-o por um momento. Havia outra coisa sobre a qual queria falar com ele.

- Vais encontrar-te com Gerde... não é?

- É provável, Victoria.

Após um momento de hesitação, ela acrescentou:

- Tem muito cuidado, Christian. Tenho um mau pressentimento. Ele não respondeu. Susteve o seu olhar durante tanto tempo que Victoria sentiu as agulhas de gelo da sua consciência a cravar-se na sua alma. Inconscientemente, cerrou os punhos, para dominar o terror irracional que se estava a apoderar dela, mas não fechou os olhos nem desviou o rosto. Sentiu os dedos de Christian a acariciar suavemente a sua face, afastando-lhe o cabelo da cara. Estremeceu.

- Tens medo de mim, não tens? - perguntou ele.

- Sim - respondeu ela. - Mas... estou disposta a enfrentar esse medo e a superá-lo.

Christian sorriu.

- Voltarei - sussurrou.

Tomou o rosto de Victoria nas mãos e beijou-lhe os lábios, lenta e suavemente, acariciando-os com os seus. Ela, um pouco surpreendida, fechou os olhos e deixou-se levar, enquanto uma deliciosa sensação percorria o seu corpo em ondas. Christian teve de a segurar entre os braços, porque as pernas lhe falharam. Sentou-a na cama.

- Bolas! - A jovem sorriu um pouco envergonhada. - Ultimamente sou um estorvo. - Começou a tiritar e estendeu a mão para pegar numa capa. - De repente, fiquei com frio - murmurou, como que a desculpar-se, enquanto a colocava sobre os ombros.

Christian sorriu.

- É normal - disse. - São os efeitos secundários que provoco nos...

- Humanos - completou ela com certa amargura.

Christian não respondeu. Saiu do quarto como uma sombra e ela não levantou a cabeça para olhar para ele nem disse mais nada. Quando a porta se fechou silenciosamente atrás do shek, Victoria fechou os olhos e duas lágrimas rolaram pelas suas faces.

Jack esperava-o no terraço.

- E Victoria? - perguntou de imediato.

- Deixei-a a descansar. Demasiadas emoções para ela, suponho. Jack fitou-o com seriedade.

- Está a melhorar, Christian. A sério. Fez muitos progressos. Se a tivesses visto quando acordou... mal conseguia falar.

- Pensas que perdi o interesse por ela? - replicou Christian com calma. - Não vais ter essa sorte, dragão.

Jack dirigiu-lhe um sorriso feroz.

- Passas tanto tempo longe dela que ninguém o diria - comentou mordaz. - O que me favorece a mim, obviamente.

O shek aproximou-se tanto dele que Jack quase pôde sentir a sua respiração gelada.

- Vou-me embora porque receio que Victoria esteja em perigo... e quero descobrir que tipo de perigo é. Mas tu, que ficas com ela, tens a responsabilidade de a proteger de qualquer um que tente magoá-la...

- Olha quem fala! - soltou Jack, estupefacto. - Se a atacaram na única noite que tu passaste com ela em cinco meses!

- E ouve-me bem, dragão: se acontecer alguma coisa a Victoria, se sofrer nem que seja um bocadinho... arranco-te o coração - concluiu, com firia serenidade.

- Não te imagino a arrancar o que quer que for, serpente. Não é o teu estilo. Demasiado sangrento para o teu gosto.

Christian afastou-se dele e dirigiu-lhe um olhar inescrutável.

- Ainda não me viste zangado - assegurou-lhe com gravidade. Uma faísca de fogo de dragão acendeu-se por detrás dos olhos verdes de Jack. Christian semicerrou as pálpebras e inclinou um pouco a cabeça, tenso, como uma cobra prestes a morder. Então, Jack respirou fundo e sorriu.

- Há coisas que nunca mudam - comentou. Christian descontraiu-se, lentamente.

- Sim - concordou por fim. - E acho que é bom que assim seja. Jack assentiu. Christian inclinou a cabeça e dirigiu-se à balaustrada.

Momentos depois, a sombra das asas do shek cobriu a Torre de Kazlunn. Jack viu-o partir; quando já não era mais do que um ponto no horizonte, abanou a cabeça, preocupado, e foi à procura de Victoria.

Christian sobrevoou a costa de Kazlunn durante todo o dia. Ao entardecer, avistou ao longe a alta silhueta do monte Lunn, onde, segundo as lendas, os deuses tinham entregado a magia ao primeiro unicórnio, e lembrou-se de Victoria. No entanto, já sabia que não era aquele o seu objectivo. Embora os fios da sua consciência já tivessem abandonado há muito tempo a mente de Yaren, vira através dos olhos do feiticeiro os troncos despidos e retorcidos das árvores de Alis Lithban, que se iam cobrindo de vegetação à medida que se aproximava do seu coração: a Torre de Drackwen. As imagens eram pouco nítidas e confusas, e desfilavam diante dos seus olhos a toda a velocidade. Isto fez Christian suspeitar que ou o feiticeiro corria anormalmente rápido para um humano ou alguma coisa estava a puxá-lo violentamente... e com muita impaciência.

Ao cair da noite, alcançou os limites do bosque e parou por instantes para descansar e reflectir acerca do seu destino.

Sabia que Yaren se dirigia para o que restava da Torre de Drackwen, que fora o centro do império de Ashran. Christian não voltara ali desde a noite do Triplo Plenilúnio.

Porém, era do seu conhecimento que Qaydar tinha enviado há algum tempo várias pessoas para perscrutar as ruínas, para o caso de o corno continuar aí. Não tinham encontrado nada, tirando vários cadáveres humanos e szish, e os corpos de dois sheks que pareciam ter morrido aquando do desabamento da torre, talvez por causa dele.

Christian sabia que um daqueles corpos era o de Zeshak, senhor dos sheks. E o outro correspondia a uma fêmea a quem Jack tinha chamado Sheziss. Interiormente, Christian tinha noção de que ele próprio estava mais relacionado com aquele casal do que queria admitir; mas, simplesmente, preferia não pensar nisso.

Entre os corpos humanos encontrados sob as ruínas da torre estava o de Ashran. Encontrava-se completamente calcinado e quase irreconhecível, mas os feiticeiros tinham finalmente concluído que se tratava dele. E todo o Idhún tinha soltado um suspiro de alívio.

"Sem razão", pensou Christian. "Agora que a profecia se cumpriu, todos acreditam que a ameaça foi destruída. Ignoram que a ameaça é a mesma, mas sob outra forma e com outro nome. E enquanto não se souber onde encontrar essa ameaça, ninguém pode travá-la. Nem sequer os Seis, que não têm maneira de formular outra profecia através dos Oráculos, porque não sabem contra quem dirigir as suas forças. E talvez... fosse isso o que ele pretendia. Talvez por isso se tenha arriscado. A profecia não o preocupava: não enquanto tivesse outro lugar onde se esconder."

Talvez fosse melhor assim. Enquanto ninguém soubesse nada acerca do paradeiro do Sétimo, os Seis não voltariam a convocar jack e Victoria para a luta contra o seu inimigo. "Que resolvam eles os seus próprios assuntos. Quando se encontrarem, Victoria e eu já estaremos bem longe..."

Todavia, se as suas suspeitas se confirmassem, havia um pormenor que podia mudar tudo: os seus planos acerca de Victoria, o decurso do confronto entre as divindades, até mesmo o seu próprio envolvimento no mesmo. Christian não tinha a menor intenção de voltar a deixar-se envolver, mas começava a pressentir que já se encontrava metido naquilo... e até à ponta dos cabelos.

Estava cansado após o longo voo desde a Torre de Kazlunn e também faminto, pelo que deslizou o seu longo corpo de shek até ao fundo do primeiro ribeiro que encontrou e deixou que a água fresca lhe limpasse as escamas. Apanhou vários peixes e engoliu-os rapidamente. Embora os sheks também comessem carne, sentiam alguma preferência por peixe. Quando rastejou para fora do ribeiro, a pingar, já sabia que aquela comida não lhe encheria o estômago. Mas era suficiente para manter o seu corpo humano, pelo que se transformou novamente e, depois de sacudir a cabeça para secar o cabelo, embrenhou-se no bosque, furtivo como um felino, à procura da Torre de Drackwen: um coração que já não batia.

Naquela noite, já de volta ao Oráculo, Shail tomou a sonhar com uma cena que ainda o atormentava de vez em quando: a imagem de Alexander, transformado em animal, diante do cadáver destroçado do seu irmão mais novo. Quando acordou, ensopado em suor, e teve consciência de onde se encontrava, percebeu que os uivos que ouvia nos seus pesadelos tinham uma origem real: um pouco mais longe, Deimar, o sacerdote louco, gritava em sonhos.

Levantou-se ainda a tremer e examinou a sua perna artificial à luz das três luas. Estava tudo bem. Saiu da casa de Ymur, instalada nas ruínas de uma enorme sala abobadada que tinha sido, por certo, o refeitório do Oráculo. Ali, o gigante montara uma casa improvisada com tudo o que necessitava, que não era muito, dado que os gigantes eram seres austeros. Contudo, ao fundo, numa pequena câmara construída expressamente para esse efeito, encontrava-se o que constituía a verdadeira paixão de Ymur e a razão por que permanecia nas ruínas do Oráculo.

Os livros.

Durante aqueles anos, Ymur tinha-se dedicado a resgatar dos escombros do Oráculo todos os manuscritos que conseguira. Alguns dos volumes estavam desfeitos; de outros só tinha conseguido encontrar umas poucas páginas. Mas o que restava da grande biblioteca do Oráculo estava ali, naquela sala, e muitos daqueles livros eram de um tamanho considerável: sinal de que tinham sido escritos por gigantes. O próprio Ymur, considerado um erudito, era sem dúvida o autor de alguns deles.

Shail suspirou e saiu para o ar livre, contornando o enorme corpo de Ydeon, que dormia deitado no chão, perto da entrada. O jovem envolveu-se mais na sua capa para se proteger do frio de manhã e aproximou-se do canto onde Deimar se revirava em sonhos, sem outro abrigo a não ser a sua andrajosa túnica.

Contemplou o rosto do louco à luz das três luas, pensativo.

Subitamente, Deimar ergueu-se e agarrou o seu pulso com uma mão que parecia uma garra. Shail lançou-se para trás, sobressaltado. Os olhos do sacerdote cravaram-se nele, alimentados por um brilho febril.

- Estão a olhar para nós - sussurrou Deimar, a tremer.

- O quê? - conseguiu Shail dizer. - Do que estás a falar? Quem é que está a olhar para nós?

Deimar apontou para o céu. Érea, a lua prateada, sorria-lhe do alto, abrigada pelas suas duas irmãs.

- Referes-te a...?

- Sssssshhh - cortou o louco, baixando mais a voz. - Eles estão a olhar para nós. Sempre. Todas as noites. Mas sabes uma coisa?

- O quê?

Deimar fez-lhe sinais para que se aproximasse. Shail obedeceu, entre inquieto e intrigado. Então, o sacerdote sussurrou-lhe ao ouvido:

- Não nos vêem.

Shail afastou-se dele, confuso.

- Estás a falar dos deuses?

Aquela palavra pareceu transtorná-lo, porque olhou para ele como se tivesse mencionado algo horrivelmente assustador e começou a lançar uivos de terror enquanto procurava bater com a cabeça contra as rochas. Shail, alarmado, tentou impedi-lo, sem grande sucesso. Por sorte, a gritaria do louco acordou os dois gigantes, que vieram ver o que se passava. Momentos depois, Deimar, com o rosto coberto de sangue, retorcia-se entre os poderosos braços de Ydeon.

- O que foi que lhe disseste? - perguntou Ymur, perplexo. Shail ergueu a cabeça para ele, sombrio.

- Ymur - disse, sem responder à pergunta -, disseste que conheceste Deimar no Oráculo. Diz-me, qual era exactamente a sua função?

O gigante olhou para ele sem compreender.

- Era um dos ouvintes, se bem me lembro. Porque é que perguntas?

Shail não respondeu. Olhou por um instante para Deimar, retorcendo-se entre os braços de Ydeon, e deixou-se cair contra os restos do muro de pedra, a tremer.

Jack acordou sobressaltado. Quando percebeu onde se encontrava, estendeu o braço para se assegurar de que Victoria continuava ali, a dormir junto dele. O seu coração parou por um instante ao verificar que a rapariga tinha desaparecido.

Levantou-se de rompante; uma breve olhadela pelo quarto bastou-lhe para confirmar que Victoria não estava ali. Rapidamente, vestiu a camisa e saiu a correr para o corredor, ainda descalço.

Percorreu em silêncio os lugares que Victoria costumava frequentar, perguntando-se se devia avisar Qaydar... até que se lembrou, de repente, onde podia encontrá-la.

O jardim nas traseiras da Torre de Kazlunn era uma réplica em miniatura de Alis Lithban. Ali crescia o mesmo tipo de vegetação, trazida pelos feiticeiros do bosque dos unicórnios há muito tempo. Durante os quinze anos que durara o cerco dos sheks, o verdadeiro Alis Lithban fora agonizando pouco a pouco; mas os feiticeiros de Kazlunn tinham conseguido manter vivo o seu jardim, que, tal como a própria torre, lhes recordava tanto os seus admirados unicórnios. Após a queda da torre às mãos das serpentes, nem elas nem Gerde tinham levantado um só dedo contra aquele jardim, que continuava tão belo e exuberante como sempre.

Ao fundo, junto do muro que se erguia mesmo quase na borda da falésia, os feiticeiros tinham erigido um pequeno monumento em honra de Aile Alhenai, a poderosa feiticeira feérica.

Jack parou a poucos metros do bloco de pedra em forma de hexágono, no qual tinham inscrito o nome de Aile e uma breve oração a Wina, a deusa da terra. Aos pés do monumento encontrava-se uma figura vestida de branco, de joelhos sobre a relva. Jack suspirou, aliviado, e aproximou-se dela em silêncio.

- Deviam ter plantado uma árvore - sussurrou Victoria sem se voltar.

- Seria a sua árvore e viveria a vida que ela abandonou. Que sentido tem pôr o seu nome numa pedra?

- Dura mais - respondeu Jack em voz baixa, sentando-se ao seu lado.

- Assim, a sua memória perdurará durante muito, muito tempo.

- Vai dar ao mesmo; a pedra está morta.

Jack olhou para ela e viu que tinha as faces banhadas em lágrimas. Abraçou-a para a consolar. Victoria enterrou o rosto no seu ombro e chorou durante bastante tempo. Jack recordou de repente uma cena semelhante ocorrida há vários anos (quantos: três, quatro, cinco?), após a morte dos seus pais. Nessa altura, tinha sido Victoria quem o consolara a ele: uma desconhecida, uma rapariguinha de doze anos. Parecia ter passado uma eternidade desde então.

- Não pude dizer-lhe adeus - soluçou ela. - São tantas as coisas que não pude dizer-lhe...

- Eu sei, Victoria.

- E não estive lá. Não estive lá, Jack.

- Estivemos a fazer outras coisas. A lutar contra Ashran, contra Zeshak.

- Mas não serviu de nada. Jack abraçou-a com mais força.

- Não tivemos escolha. Não acreditas?

Ela anuiu com um suspiro e recostou-se nele. Ao fazê-lo, algo cintilou sobre o seu peito à luz das luas. Victoria viu-o e sorriu.

- Ainda não te agradeci por isto - disse em voz baixa, erguendo para ele a corrente com a lágrima de cristal.

Jack retribuiu-lhe o sorriso.

- Reparaste - murmurou.

- Como podia não reparar? O que se passa é que... para ser sincera contigo, estava com um pouco de vergonha de to dizer. Sabia que este pendente não era o meu, mas não tinha a certeza de que tivesses sido tu. Podia ser um presente de Shail ou até mesmo do Arquifeiticeiro... embora no fundo soubesse que era teu - acrescentou, baixando os olhos.

- O outro partiu-se - disse Jack - e pensei... bom, podes calcular o que pensei.

- Muito obrigada, Jack. É lindo; vou usá-lo sempre. É mais bonito do que o que perdi.

Uma sombra de angústia cobriu o seu rosto ao recordar a mão de Ashran a tentar chegar até ela e como os seus dedos se tinham enganchado na corrente, partindo-a.

Jack adivinhou-lhe os pensamentos.

- Deixa de te atormentares dessa maneira. Aquilo chegou e passou. E acabou.

Victoria olhou fixamente para ele.

- Achas mesmo que acabou?

Jack retribuiu-lhe um olhar preocupado. Victoria tremia como varas verdes; parecia ainda fraca e cansada, mas mostrava uma atitude decidida e resoluta.

- Não, não acho que tenha acabado - admitiu Jack. - Por isso tenho medo por ti.

- Sei que tanto Christian como tu querem pôr-me a salvo - disse ela.

- Mas eu quero lutar ao vosso lado, por vocês...

- Só que não podes fazê-lo, Victoria. Mas logo ficarás bem, vais ver.

- Tens a certeza? Eu sei que não acreditas realmente nisso, Jack. Tu pensas que deixei de ser um unicórnio, que sou apenas uma simples humana...

- E se fosses? Victoria ficou sem fala.

- Aconteceram muitas coisas desde que nos conhecemos - prosseguiu Jack, com os olhos fixos nos dela. - Vivemos tanta coisa juntos... tantas aventuras, tantas alegrias, tanto sofrimento, tantas emoções... Não é assim tão fácil apagar tudo isso de uma assentada, Victoria. Quer sejas humana, um unicórnio ou uma mistura das duas coisas, vai dar ao mesmo: continuas a ser Victoria. A rapariga por quem me apaixonei.

Victoria abriu a boca, incapaz de pronunciar uma palavra. Jack continuava a olhar para ela e a rapariga sentiu como se de repente o seu coração irrompesse em chamas. Engoliu em seco e o instinto disse-lhe para retroceder. Mas não conseguiu mover-se; ficou presa nos seus olhos verdes, enquanto os dela se enchiam de lágrimas de emoção. Jack não conseguiu evitá-lo. Enterrou os dedos no seu cabelo escuro, fê-la erguer um pouco mais a cabeça e beijou-a com paixão. Victoria ficou sem fôlego; suspirou e correspondeu ao beijo, e os dois fundiram-se num forte abraço.

Os momentos seguintes foram doces e intensos ao mesmo tempo, mas, acima de tudo, unicamente seus. Continuaram a sussurrar um ao outro palavras de amor, partilhando beijos e carícias junto do monumento dedicado a Allegra, até que Jack quebrou o encanto do momento, afastando-se dela com um soberano esforço de vontade.

- É tarde - disse, olhando-a com um brilho intenso nos olhos. É melhor voltarmos.

Subiram em silêncio, de mãos dadas. O coração de Victoria batia com força, porque sentia algo estranho no ambiente, uma espécie de tensão entre os dois. Ainda não tinha certeza do que devia dizer ou de como agir, pelo que, quando Jack fechou a porta atrás de si e a beijou suavemente, Victoria não opôs resistência. Lançou-lhe os braços ao pescoço, com alguma hesitação, e ele voltou a beijá-la, desta vez com mais entusiasmo.

- Senti saudades tuas - disse-lhe ao ouvido.

- Eu também tive saudades tuas - sussurrou Victoria.

- Gostaria de ficar contigo esta noite. Posso?

- Jack, já dormes ao meu lado todas as noites - disse, embora intuísse que ele não se referia a isso.

Apesar de Victoria não lhe ter dado uma resposta, Jack empurrou-a sem brusquidão até à cama. A rapariga deixou escapar um arquejo sufocado quando o sentiu deitar-se sobre ela. Tinha medo, mas o desejo de continuar junto de Jack era mais forte do que o seu temor. Respondeu aos seus beijos e às suas carícias, sentindo que o fogo dele a envolvia e lhe queimava a pele, ao mesmo tempo que lhe aquecia o coração. Deixou escapar um queixume de angústia.

- Jack... - murmurou, e na sua voz havia um tom diferente, uma mistura de desejo e medo que o fez reagir. Afastou-se um pouco dela, como se despertasse de um sonho, e olhou-a nos olhos, muito sério.

- O que é? Ainda tens medo de mim? - perguntou. - Queres que me vá embora?

Victoria fechou os olhos por um instante, ainda a tremer. A sua alma estremecia de amor por Jack, mas, ao mesmo tempo, o fogo do dragão intimidava-a.

- Se não te sentes bem, diz-me - sussurrou ele no seu ouvido. - Sei que andas... bom, muito mais sensível, e não quero aproveitar-me disso, por isso, por favor, sê sincera.

Ela acariciou-lhe o cabelo loiro. Engoliu em seco. Olhou-o nos olhos, aqueles olhos verdes que brilhavam na penumbra. Naquele momento, o coração de Victoria batia por e para Jack. Aquele momento era só deles e de mais ninguém.

- Não, Jack - disse, e a sua voz foi quase um murmúrio, mas estava cheia de amor. - Não te vás embora, por favor.

Jack sorriu e voltou a beijá-la, e Victoria entregou-se ao seu beijo, bebendo dele como se fosse a primeira vez que os seus lábios se encontravam.

Christian colou-se ao tronco coberto de musgo de uma árvore, como uma sombra. Mesmo que Yaren se voltasse para o lugar onde se escondia, não o teria visto.

Mas não se voltou. O feiticeiro tinha parado numa clareira do bosque e estava a falar com outras três pessoas, dois szish e um humano; pareciam estar à espera de alguma coisa... ou de alguém. Christian deu um passo atrás para se ocultar ainda mais entre as sombras. Se estivessem receptivos, os szish podiam intuir a sua presença, a presença de um shek, um dos seus senhores. Mas o jovem duvidava que fossem obedecer-lhe. Suspeitava que agora serviam alguém mais poderoso.

Naquele momento, entrou mais alguém na clareira. À luz das tochas, Christian viu que se tratava de outros dois homens-serpentes. Um deles era muito jovem, praticamente um rapaz, e tremia de puro nervosismo.

- Já eram horas - comentou Yaren.

- Não chegámosss asssim tão tarde - disse um dos recém-chegados, o mais velho. - Não sssomosss osss últimosss a aparecer.

- Não - concedeu outro dos szish; examinou o rapaz de alto a baixo. É demasiado jovem, Isskez - disse-lhe na língua dos szish, que Christian compreendia perfeitamente.

- Não sei se estará à altura.

- Vem do clã de Sozessar - replicou o primeiro na mesma língua. Dos pântanos de Raden. Superou todas as provas.

É o indicado.

- Isso terá de ser ela. a decidir. Christian semicerrou os olhos.

Contudo, havia outro assunto num recanto da sua consciência que requeria a sua atenção. Algo acerca do que a sua mente captava através de Shiskatchegg. Tinha a ver com Victoria e os seus sentimentos. Christian prestou atenção às sensações que o anel lhe transmitia. Bastou-lhe apenas um instante de concentração para saber o que estava a acontecer entre Jack e Victoria. Imperturbável, fechou as portas da sua consciência ao vínculo do anel, como já tinha feito uma vez, tempos antes, quando Ashran o torturara a ponto de sufocar a sua parte humana. Na altura, Victoria perdera o contacto com ele e acreditara que estava morto. Não sabia que o shek tinha rompido aquele vínculo voluntariamente, porque queria expulsá-la do seu coração e dos seus pensamentos; porque ela era, de novo, uma inimiga para ele.

Desta vez voltou a fazê-lo, mas por motivos bem diferentes: Victoria estava com Jack e precisava de privacidade. E, embora continuasse a usar o anel, Christian sabia que naqueles momentos devia retirar-se discretamente e deixá-la a sós com ele. Restauraria o vínculo de manhã.

Concentrou-se de novo nos indivíduos da clareira. Permaneciam em silêncio, à espera, e pareciam nervosos. Christian esperou com eles.

- Há muitos anos que não ouvia tanta blasfémia junta - disse Ymur, aborrecido. - Suponho que se deve ao facto de seres um feiticeiro. Vocês, feiticeiros, sempre se acharam no direito de ser mais irreverentes do que o resto dos mortais.

- Foi uma sacerdotisa que me contou tudo isto - replicou Shail, muito sério. - E o próprio Ha-Din confirmou-o perante meia centena de pessoas na Torre de Kazlunn. Quando chegar a delegação do Oráculo de Awa, os seus sacerdotes confirmarão as minhas palavras. Há meses que os Oráculos perderam contacto com os deuses. E não é por os deuses já não falarem, mas sim porque falam... demasiado.

Ymur franziu o sobrolho e olhou de relance para Deimar, que jazia no chão, perto deles; Shail tinha-lhe aplicado um feitiço tranquilizante, mas o sacerdote ainda murmurava coisas ininteligíveis e sofria estranhos espasmos de vez em quando.

- Queres dizer que a voz dos deuses o enlouqueceu? Shail assentiu.

- Sabemos que, após a destruição do Grande Oráculo, Deimar abandonou Nanhai. Decerto foi refugiar-se no bosque de Awa e ficou com o Venerável Ha-Din e os seus sacerdotes. Assim que o novo Oráculo de Awa começou a funcionar, retomou ali o seu trabalho como ouvinte. Pelo que me contaram, nos últimos tempos a mensagem divina deixou vários sacerdotes surdos e fez enlouquecer pelo menos outros dois. Deimar deve ser um deles.

Ymur meneou a cabeça.

- Primeiro dizes-me que o deus do meu povo não é o pai bondoso no qual acreditamos há milénios, tratando-se, na realidade, de uma poderosa força destrutiva, cega e invisível, que pode esmagar-nos a todos sem dar por isso. E agora vens-me com essa de que as vozes dos Seis transtornam as pessoas a ponto de as fazer perder a razão. Sabes o que estás a dizer?

- Falo de factos, Ymur. Do que vi e do que os próprios sacerdotes e sacerdotisas me contaram. Mas tu, que passaste quase toda a tua vida num Oráculo... nunca viste nada do género?

- Não sou um ouvinte. O que acontece dentro da Sala dos Ouvintes só eles e os deuses o sabem, embora não seja obviamente algo que se deva encarar de ânimo leve. Lembro-me do caso de um jovem humano que entrou lá sem autorização e procurou estabelecer comunicação com os deuses... Devem ter-lhe respondido alguma coisa, porque saiu de lá bastante alterado. Mas não perdeu o juízo nem a sua capacidade de audição, que eu saiba.

- Quando foi isso? - perguntou Shail com curiosidade.

- Não me lembro... há vários anos. Talvez vinte; talvez mais ou talvez menos.

Shail recuou, perplexo.

- Seja como for, isso foi antes da profecia. Pelo que percebi, as vozes dos deuses costumavam ser apenas ténues murmúrios aos quais era preciso prestar muita atenção.

É estranho que alguém que não tivesse sido treinado como ouvinte pudesse captar algo nessa sala. Talvez os deuses falem aos gritos há já algum tempo, mas nesse caso

não sei como é possível que apenas uma pessoa os ouvisse.

- Talvez se tratasse de um ouvinte nato - opinou Ymur. - Algumas pessoas nascem com uma sensibilidade especial. Os ouvintes deste tipo são muito valorizados nos Oráculos.

- A sério? E o que fez esse jovem depois? Ficou entre vós? Ymur negou com a cabeça.

- Não, foi-se embora, acho eu. Confesso que não costumava estar muito ao corrente do que acontecia no Oráculo. Só me lembro desse humano porque lidei directamente com ele, pelo menos antes de ter entrado à socapa na Sala dos Ouvintes. O que fez depois já não sei.

- Como era? Como se chamava? Quem...?

- Uma pergunta de cada vez, feiticeiro - cortou Ymur. - Não me lembro do seu nome, mas tu fazes com que me lembre dele: ambos dizem coisas irreverentes.

- Coisas irreverentes? - repetiu Shail, cada vez mais interessado. Anunciava a chegada dos deuses, por exemplo?

- Pior ainda: teve a desfaçatez de me vir perguntar se entre os textos sagrados da minha biblioteca conservava algum documento que falasse do sétimo deus. Do sétimo deus! Podes imaginar o que lhe respondi. É o que eu digo: os feiticeiros, especialmente os jovens, acham-se sempre acima de tudo; mas há coisas que ninguém devia... O que se passa contigo, feiticeiro? Porque é que estás com essa cara?

Uma silhueta etérea e esbelta deslizou por entre as árvores, em direcção a Yaren e aos szish. Só a viram quando já estava à frente deles, porque as fadas se movimentam pelo bosque como se fizessem parte dele; mas Christian tinha-a detectado desde o primeiro momento.

- O que é que me trouxeram? - perguntou uma voz sensual e aveludada. Os cinco caíram de joelhos diante dela e lançaram-se ao chão, em sinal de humildade. O rapaz szish tinha ficado espantado a olhar para a recém-chegada, até que um dos seus companheiros o obrigou a ajoelhar-se no chão com um empurrão.

- Fizemosss asss provasss de inssstinto e percepção, como ordenassste, minha sssenhora - disse Isskez. - Essste rapaz venceu todosss os jovensss do ssseu clã e depoisss foi o primeiro nasss provasss finaisss.

Ela inclinou-se um pouco para ele. A suave fragrância floral que o seu longo cabelo emanava chegou a Christian.

- Tão jovem - comentou, com uma nota de interesse na voz. - Olha para mim - disse-lhe na língua dos szish.

O rapaz ergueu a cabeça, trémulo. Naquele momento, Érea espreitou por detrás de uma nuvem e a sua luz prateada iluminou os rostos de todos os presentes. Incluindo o da fada a quem Yaren e os outros tratavam com tanta deferência.

Christian não conseguiu reprimir um estremecimento ao reconhecer as suas feições. Já a tinha identificado pela forma de andar, pela voz, pela fragrância que tão bem recordava. Mas não quisera acreditar até que a viu com os seus próprios olhos.

Gerde.

"Matei-a", pensou, aturdido. "Matei-a. Estava morta."

Tinha atirado Jack, moribundo, a um rio de lava. Mas na altura não estava morto, além de que era um dragão, ou seja, se parasse para pensar, não havia nada de extraordinário no facto de ele sobreviver ao fogo. Contudo, o caso de Gerde era diferente. Tinha sido ele próprio a soltar os fios da sua consciência, a paralisar as suas funções cerebrais e, com isso, a fazer também com que o seu coração deixasse de bater. Tinha-a matado.

Continuou a observá-la, ainda aturdido. Havia algo nela que era diferente do que recordava, mas não conseguia perceber o quê. De momento, só sentia que não era capaz de deixar de olhar para ela.

A fada tinha-se acocorado junto do rapaz, tomando o seu rosto entre as mãos, e observava-o com um leve sorriso nos lábios.

- Não estás mal para uma serpente - comentou com alguma doçura. Como te chamas?

- Assher, minha senhora.

- Assher - repetiu Gerde. - Sabes porque estás aqui? O szish engoliu em seco.

- Porque superei as provas, minha senhora. Melhor do que todos os outros.

Gerde sorriu-lhe.

- Muito bem - arrulhou. - Muito bem, minha jovem serpente. Afastou-se dele, com ligeireza, e pôs-se novamente de pé.

- Levantem-se todos - ordenou. - Já estou cansada de tanta adoração. Voltou-se para Yaren.

- Quanto a ti - disse-lhe muito séria, de novo em idhunaico comum -, tens muitas coisas a explicar-me.

Yaren baixou a cabeça. Tremia como uma criança.

- Eu... lamento muito. Deixei-me levar.

- Tinhas de voltar a olhá-la nos olhos, não é? Tinhas de lhe dizer como és infeliz por causa dela. E agora puseste-os a todos de sobreaviso. Disse-te que era muito cedo, cérebro de trasgo. Muito cedo. E deixaste-te surpreender e apanhar. Mais valia que te tivessem matado.

O feiticeiro, aterrorizado, deixou-se cair de joelhos aos seus pés.

- Suplico o teu perdão, minha senhora, juro-te que não voltarei a desobedecer-te.

Christian franziu levemente o sobrolho. A voz de Gerde soara um pouco ameaçadora, mas a sua expressão era tão encantadora como sempre. Como podia inspirar tanto terror a Yaren? - bom - sorriu ela. - O que viste? Yaren ergueu a cabeça, confuso.

- O quê...?

- O que viste. Nos seus olhos. Nos olhos de Victoria.

Os dedos de Christian crisparam-se involuntariamente ao ouvir o seu nome. Havia uma ameaça velada no tom de voz de Gerde ao falar de Victoria, algo sombrio que lhe soou estranhamente familiar.

Yaren tardou um pouco a responder.

- Nada, minha senhora - disse por fim. - O que haveria de ver?

- Nada, claro. Bem podiam emitir centelhas de luz ofuscantes que serias incapaz de as ver, porque os humanos simplesmente não conseguem vislumbrar a luz de um unicórnio. - Suspirou, exasperada. - Essa rapariga devia estar morta, no entanto, acordou. E como posso saber se o unicórnio continua vivo nela se tu não consegues ver a sua luz?

- Tinha... uma espécie de buraco na testa - apressou-se Yaren a responder. - E estava muito fraca, tanto que mal conseguia andar.

Gerde voltou-se para o fitar.

- Um buraco - repetiu. - Bem, não te saíste tão mal como julgava. O unicórnio continua vivo... mas sem o seu corno.

Riu-se. O seu riso era puro e melodioso, mas continuava a ter aquele leve matiz frio e desumano que era tão familiar a Christian e chocante por o encontrar na voz de Gerde.

Virou as costas a Yaren e voltou a prestar atenção ao rapaz szish. Utilizou de novo a língua das serpentes (Christian não se lembrava de Gerde alguma vez a ter falado com tanta fluidez) para lhe dizer calmamente:

- Então já sabes. O que te vou entregar esta noite mais ninguém te pode dar. Mais ninguém, em todo o Idhún. Tens consciência disso?

O jovem Assher ergueu os olhos para ela; o seu olhar era de profunda adoração.

- Te-tenho, minha sssenhora.

Para Christian, oculto entre a vegetação, estava a ser difícil conservar a calma. Intuíra há algum tempo o que estava a acontecer, pelo que sabia o que ia presenciar. E não tinha a certeza de estar preparado para o ver.

- Levanta-te - dizia Gerde ao rapaz szish. - Retirem-se - ordenou aos outros.

Todos obedeceram. A fada ergueu então a mão e algo branco e brilhante como um punhal de luz de Érea cintilou entre os seus dedos.

Christian enterrou as unhas no tronco da árvore quase a ponto de se magoar. Reprimiu o desejo de desembainhar Haiass e irromper na clareira para os matar a todos. Respirou fundo e esforçou-se por manter a calma.

Para isso teve de fechar os olhos por instantes. Recusava-se a ver aquele corno de unicórnio, o corno de Victoria, nas mãos de Gerde.

Mas abriu-os a tempo de observar como a fada deslizava a superfície perolina do corno pela epiderme escamosa de Assher, primeiro pela sua face, descendo depois até ao seu pescoço, como uma carícia de luz. O jovem fechou os olhos e lançou a cabeça para trás, com um suspiro, desfrutando da sensação incomparável da magia a inundar o seu corpo.

Christian contemplava a cena, aparentemente impassível. Algo aflorou das profundezas da sua consciência, uma lembrança quase esquecida: a lembrança do momento em que um unicórnio lhe entregara o seu dom, dezassete anos antes. Os pormenores daquele dia ainda eram confusos. Mas começava a aperceber-se de que, no fundo, nunca chegara a esquecer por completo a luz do unicórnio.

Voltou à realidade. Mais adiante, o rapaz szish tinha deixado cair os ombros e tremia. Christian não conseguia ver dali, mas sabia que estava a chorar.

Gerde olhou para ele em silêncio, com uma expressão indecifrável.

- Levem-no - disse então. - Isskez, tu serás o seu tutor. Inicia-o na arte da feitiçaria e, quando achares que está preparado... traz-mo. Parabéns, rapaz - disse-lhe com doçura, acariciando a sua face com as pontas dos dedos. - Já és um iniciado. Mas não um iniciado qualquer. Tenho planos para ti, Assher. Aprende a fazer bom uso do teu dom... e recompensar-te-ei.

O jovem szish procurou dizer algo, mas a voz não lhe saiu. Os outros afastaram-no de Gerde, que ficou a olhar para eles enquanto se embrenhavam no bosque.

Apenas Yaren permaneceu ao seu lado. Fitava o local por onde os homens-serpentes tinham ido embora, com os olhos semicerrados e uma expressão sombria nas suas feições.

A fada voltou-se para ele.

- Tens inveja de Assher, não tens?

- com todo o meu ser - disse Yaren em voz baixa; olhou para ela, com um brilho de súplica nos seus olhos cinzentos. - Será que não podias...?

- Já tentámos - cortou ela, secamente. - Sabes que não funciona.

- Mas tu... és poderosa. És a feiticeira mais poderosa que...

- Sou muito mais do que uma feiticeira poderosa, mas há coisas que, simplesmente, não se podem desfazer. Expliquei-te muitas vezes: para te limpar por dentro, teria

de canalizar para ti uma grande quantidade de energia. E poderia fazê-lo - admitiu, rindo-se -, poderia entregar-te toda a magia de que necessitas para te curares. Só que o teu corpo rebentaria em milhões de pedaços. Foi por isso que se criaram os unicórnios, é assim que funcionam os seus

cornos: os mortais são recipientes que eles têm de encher de magia, mas a magia do mundo é tão imensa, tão vasta... que, se não for canalizada através do seu corno, o recipiente será destruído. É como colocar uma frágil bilha de barro ao pé de uma catarata. - Encolheu os ombros. - Vocês, humanos, são tão delicados... partem-se logo.

- Eu sei - suspirou Yaren. - Sei que se usares o corno não vais conseguir entregar-me toda a energia de que o meu corpo precisa para desalojar a magia corrompida que ela me entregou. E sei que, se não o usares, morrerei na tentativa. Mas tem de haver... tem de haver outra maneira.

- Estou a pensar nisso - respondeu Gerde, com um suave sorriso. Mas espero que compreendas que, para já, isso não é uma prioridade para mim. Muito menos depois do que fizeste hoje.

Yaren permaneceu calado e baixou o olhar.

- Sabem que estás aqui - disse por fim em voz baixa. - Vão encontrar-nos.

No rosto da fada surgiu um sorriso enigmático.

- Eu sei - limitou-se a dizer.

Yaren olhou para ela, inquiridor. Gerde abanou a cabeça e o seu cabelo cor de azeitona ondulou em volta dela.

- Regressa ao acampamento e espera por mim na minha árvore. Tenho algo a fazer.

O feiticeiro humano esboçou um dos seus sorrisos retorcidos e, depois de fazer uma breve reverência, desapareceu atrás dos szish.

Assim que ficou sozinha, Gerde deu meia-volta e cravou os seus olhos negros nas sombras.

No lugar onde Christian se ocultava.

Nenhum humano, nem szish, nem mesmo uma fada como ela poderia tê-lo detectado com tanta facilidade. Mas há algum tempo que o shek suspeitava que Gerde deixara de ser uma fada como as outras. Desembainhou Haiass, tenso, aguardando um gesto dela. Então, de súbito, Gerde desapareceu.

Christian demorou apenas uma fracção de segundo a dar meia-volta e cobrir-se com a espada. A sua intuição indicou-lhe sem margem de erro onde estava a fada, mas não a viu até que a teve mesmo à sua frente.

Trocaram um olhar tenso. Christian mantinha a espada ao alto, mas, por alguma razão, não conseguia descarregá-la. Gerde sorria.

Finalmente, o shek baixou a espada, lentamente.

- Estavas morta - disse num sussurro; havia um ligeiríssimo tremor na sua voz.

- Estava - assentiu Gerde. - Mas agora já não estou.

Christian baixou a cabeça, rompendo o contacto visual. Não era capaz de suportar aquele olhar, aqueles olhos negros com um estranho brilho metálico. O sorriso de Gerde rasgou-se ao ver que o shek tremia.

- Encontraste-me - disse a fada com suavidade. - Surpreendido?

- Desagradavelmente surpreendido, sim - reconheceu ele; continuava a olhar para baixo.

- Não tiveste saudades minhas? - ronronou ela.

- Se tencionasse sentir saudades tuas, não te teria matado - replicou Christian.

O sorriso congelou-se no belo rosto da fada.

- Certo. Mataste-me. Como pude esquecê-lo?

Christian levantou a cabeça, muito lentamente. Olhou-a nos olhos, reprimindo um arrepio ao detectar neles aquela força que o olhar do seu pai irradiara e que sempre o intimidara. Na altura acreditava que temia e respeitava Ashran porque era seu pai, seu criador, quem tinha feito dele o que era. Agora sabia que não era assim.

Estremeceu quando os dedos da fada percorreram o seu pescoço, ágeis como borboletas.

- O que vais fazer agora, Kirtash?

- Matava-te outra vez, se pudesse - respondeu Christian com serenidade.

- Mas sabes que não podes.

- E tu? O que vais fazer? Pretendes fazer-me pagar? E que, se assim for... apressa-te, por favor.

Gerde dirigiu-lhe um riso encantador.

- Tão arisco como sempre - comentou, passando os braços em torno do seu pescoço e colando o seu corpo ao dele. - É um alívio ver que aquela rapariga não conseguiu sufocar por completo a tua fria personalidade de shek.

- Tu também não pareces ter mudado - replicou ele. - Embora possa imaginar como deve ser traumático morrer e regressar da morte transformada em... quê? A sétima deusa?

- Também não perdeste a tua perspicácia - sorriu ela. - Então, já devias saber que... sou a tua dona. Que me deves obediência. Total, absoluta... incondicional.

Christian meneou a cabeça.

- Deves estar a gostar muito disto, não é?

- É sempre agradável sentir os ventos da mudança soprar a nosso favor.

Christian tirou-a de cima de si, sem ser brusco mas com firmeza.

- Não tenho medo de ti. Lutei contra Ashran. Vencemo-lo. Não tinha tanto poder sobre mim como me fazia crer.

- Escapava-lhe a tua parte humana, Kirtash. A tua parte humana não lhe devia obediência. Julgou que pelo simples facto de ser o pai natural dessa parte humana conseguiria controlá-la. Mas não foi assim.

- Tu não és meu pai.

- Certo. - Sorriu encantadoramente. - Mas ainda assim tenho mais poder sobre ti do que Ashran alguma vez teve. Ainda não percebeste? A tua parte shek pertence-me porque sou tua deusa. A tua parte humana irá render-me vassalagem... porque és um homem.

Christian retrocedeu um passo e abanou a cabeça.

- Não funciona, Gerde. Não me sinto atraído por ti. Gerde deu uma gargalhada cristalina.

- A sério? Talvez seja porque não olhaste bem para mim. Que tal... agora?

A cada uma das últimas palavras de Gerde, Christian sentia que a cabeça começava a dar voltas, cada vez mais depressa. De repente, o ar pareceu tornar-se mais perfumado

e a voz de Gerde muito mais melodiosa, como um canto de sereia. Christian olhou para ela, um pouco aturdido, e ficou sem fôlego. Nunca tinha visto uma criatura tão bela como a mulher que se erguia naquele momento à sua frente, a fada de olhos profundos como o coração da floresta, de longuíssimo cabelo macio e leve como um dente-de-leão. Fechou os olhos e inspirou fundo, procurando acalmar-se. Mas o coração batia-lhe descompassadamente e isso não era habitual nele. Abriu os olhos devagar. Engoliu em seco. Parecia que só existia uma coisa no mundo, e eram os lábios de Gerde.

Lutou contra o impulso que o impelia a beijá-los e procurou, desesperadamente, lembrar-se de Victoria, porque sabia que, se caísse nos braços de Gerde, a sua vontade deixaria de lhe pertencer e não havia nada que temesse mais do que perder a capacidade de tomar as suas próprias decisões. Procurou Victoria do outro lado da sua percepção, mas não a encontrou e recordou-se que tinha rompido o contacto com o anel para a deixar completamente a sós com Jack. Naquele breve instante de hesitação, o poder sedutor de Gerde acabou por se apoderar dele.

- Que me dizes agora, Kirtash? - sorriu ela. - Pertences-me... ou não? Como resposta, Christian beijou-a apaixonadamente, como nunca tinha beijado nenhuma mulher.

"Não sou eu", pensou, por um momento. "Nunca perderia o controlo desta maneira. Nunca. Nem sequer por..."

O nome da mulher que realmente amava ficou sufocado entre os seus pensamentos pelo suave perfume floral que emanava da pele e do cabelo de Gerde.

Então, quando estava completamente enredado no seu corpo, quando o desejo já tinha tomado as rédeas da sua racionalidade, Gerde afastou-o com um riso cruel. Christian deu um passo em frente para tornar a aproximar-se dela, mas a fada estendeu a mão para manter a distância.

- Quieto - ordenou, e Christian, embora não suportasse estar tão longe dela, obedeceu. Respirou fundo e, pouco a pouco, foi recobrando a compostura. - As coisas mudaram um pouco. Talvez já não me interesse um meio-shek. És pouca coisa para alguém como eu, Kirtash.

Christian dirigiu-lhe um olhar repleto de ódio frio.

- Não sou um meio-shek. Tu, melhor do que ninguém, devias saber que a minha essência de shek está intacta. Sou um shek completo.

- E também és um humano completo - replicou a fada com um sorriso cruel.

- Não creio que dês assim tanta importância a isso - observou Christian.

- Os teus feiticeiros são humanos completos ou szish completos. Inferiores a mim.

- Oh, estás com ciúmes?

- Ciúmes, não. Apenas ferido no meu orgulho - replicou ele com frieza.

- Não, Kirtash, terás de conquistar o privilégio de me tocar.

- O que te faz pensar que tenho interesse em tocar-te?

Gerde ergueu uma das suas finas e arqueadas sobrancelhas, com um sorriso trocista, e Christian sentiu que o desejo voltava a apoderar-se dele. Lutou por dominá-lo, furioso ao saber-se nas mãos da fada, ao saber que ela estava a brincar com ele e que, pela primeira vez, era ela quem o controlava a ele.

Gerde aproximou-se um pouco mais. Olhou-o por debaixo das suas espessas pestanas.

- Estás sozinho, Kirtash - arrulhou-lhe. - Completamente sozinho. A tua rapariga-unicórnio perdeu o seu corno; sem ele, não é mais do que uma humana vulgar. Já não será capaz de conter o dragão. Mais cedo ou mais tarde, ele irá matar-te, se tu não o matares antes. E então o que acontecerá? O que farás? Para onde irás?

Christian não respondeu.

- Fica connosco - sussurrou-lhe Gerde ao ouvido. - com a tua gente. com a tua deusa.

O shek ergueu a cabeça.

- O que queres de mim? Gerde riu com suavidade.

- Não perdes faculdades, Kirtash. É verdade, quero algo de ti. Quero que faças algo por mim. E irás fazê-lo porque sabes que, no fundo... não tens escolha. Porque é uma questão de lealdade e porque nunca deixaste de me pertencer.

Beijou-o novamente. Christian fechou os olhos e deixou-a fazê-lo. Quando ela recuou e olhou para ele de cima a baixo, avaliando-o, Christian não disse nada, nem moveu um só músculo.

- Estás um pouco mais alto - comentou. - Um homem. E continuas tão atraente como recordava. Que pena - suspirou -, já tenho planos para esta noite. Mas se não me falhares desta vez, se cumprires a missão de que te vou encarregar, sou capaz de esquecer alguns assuntos insignificantes... e, quem sabe... talvez te convide a passar uma noite na minha árvore. Pelos velhos tempos.

Christian não disse nada, mas cerrou os punhos inconscientemente. Gerde sorriu e voltou a aproximar-se dele. Pôs-se em bicos de pés para lhe falar ao ouvido e o seu hálito suave acariciou a face do shek.

- Ouve-me, porque não vou repeti-lo duas vezes. Escuta o que quero que faças. Se obedeceres, recompensar-te-ei... e valerá a pena, acredita em mim. Se não o fizeres, mato-te.

Algo no seu tom de voz, algo obscuro e poderoso, que Christian conhecia muito bem, fê-lo estremecer de terror dos pés à cabeça.

- Percebeste? - perguntou ela.

- Sim - respondeu Christian em voz baixa.

- O que é que disseste?

O shek ergueu a cabeça, mas, uma vez mais, foi incapaz de suportar a força do olhar de Gerde.

- Sim, minha senhora - corrigiu-se.

 

           BOAS E MÁS NOTÍCIAS

Os primeiros raios de luz de Kalinor banharam o rosto de Jack na primeira hora da manhã. O rapaz pestanejou, sonolento, mas não demorou a situar-se. Baixou o olhar e viu Victoria, profundamente adormecida entre os seus braços, com a sua cascata de caracóis escuros espalhada sobre os lençóis. Reparou que o seu cabelo tinha crescido imenso naquele tempo. Jack acariciou aquele manto de cabelo castanho, ainda um pouco ensonado.

Então os pormenores do que acontecera na noite anterior vieram-lhe à memória. Arregalou os olhos, bruscamente, e fitou de novo Victoria, entre maravilhado e confuso, como se a visse pela primeira vez. Sim, havia algo diferente nela, embora não soubesse dizer o quê; a surpreendente torrente de pensamentos que lhe inundava a mente impedia-o de pensar com clareza.

Voltou a fechar os olhos por instantes, desfrutando da sensação de ter o corpo quente de Victoria tão perto do seu. Ainda estava algo aturdido, pelo que lhe custava assimilar tantas emoções e ordenar ideias e sentimentos. Apesar disso, não pôde evitar que um sorriso iluminasse o seu rosto.

Não tinha acontecido exactamente como ele pensara. Os nervos, a timidez e a inexperiência tinham entorpecido os seus movimentos; por sorte, o amor, a ternura e a confiança impediram que aquela noite fosse um desastre total. Jack suspirou. No fundo do seu ser receara que Victoria já tivesse passado por aquilo; que Christian, mais seguro de si mesmo, mais velho e experiente, se tivesse adiantado a Jack. Mas não: ele, Jack, era o primeiro. Surpreendera-se agradavelmente. Não só porque caía muito bem ao seu orgulho masculino ter obtido aquele pequeno triunfo sobre o seu rival, mas também porque, embora nunca o fosse confessar, tinha sido um alívio para ele saber que Victoria não tinha nada com que comparar a experiência daquela noite.

Arrependeu-se logo daqueles pensamentos, recordando que Christian costumava criticá-lo, com alguma razão, pela sua tendência para tratar Victoria como se fosse um trofeu que ambos tivessem de disputar. Sorriu. "Não, Victoria", disse à jovem em silêncio. "Isto é só entre tu e eu. E sinto-me feliz por ter partilhado isto contigo."

Continuou a olhar para ela, calado, até que Victoria abriu lentamente os olhos, pestanejando. Viu Jack e sorriu-lhe, ainda mergulhada na bruma que separa o sono da vigília.

- bom dia - disse ele em voz baixa.

Victoria acabou de acordar e também ela recordou tudo de repente. Jack nunca esqueceria a cara que ela fez, os seus grandes olhos ainda mais abertos, um ligeiro rubor a tingir as suas faces.

- Oh... caramba... - foi tudo o que disse. O sorriso de Jack rasgou-se.

- Como estás? Estás bem?

Victoria aninhou-se junto dele e cobriu-se ainda mais com o lençol, impelida por um súbito pudor.

- Estou bem... acho.

- Fico contente. - Hesitou por um momento antes de acrescentar: Não... não foi como imaginávamos, pois não?

- Não, foi um pouco esquisito - confessou ela em voz baixa. - Mas não me arrependo. Suponho que nestas coisas, como em tudo... se melhora com a prática, não achas?

Um grande alívio inundou o peito de Jack. Quer quisesse quer não, sentia-se responsável.

- Tenho a certeza. E estou disposto a praticar tanto quanto for preciso - acrescentou convicto.

Victoria riu-se, mas o rubor das suas faces tornou-se um pouco mais intenso. Jack sorriu e beijou-a com ternura.

- No fundo, fico contente por ter sido a tua primeira rapariga - sussurrou ela.

- Não sei, talvez tivesse sido melhor se tivesse tido mais... - Parou e fitou-a, boquiaberto. - Pensavas que não eras a primeira? - entendeu de repente. - Pensavas que Kimara e eu...?

- Não é isso - apressou-se ela a explicar. - Só que estive doente durante muito tempo e tu estavas sozinho, ela andava por aqui... - Fez uma pausa. - No fundo não acreditava, mas tinha algumas dúvidas quanto a isso.

- Pois agora já não tens - respondeu Jack, ainda perplexo. - Ou não devias ter. Sabes que não sou assim.

Parecia aborrecido. Victoria abraçou-se a ele e esfregou a face no seu ombro.

- Não te zangues. Não te censuraria. Mas... agradeço-te muito que tenhas esperado por mim.

Jack acalmou-se de imediato.

- Também tu esperaste por mim - disse-lhe com carinho. - Eu também tinha as minhas dúvidas.

Victoria compreendeu a que se referia.

- As coisas acontecem quando tiverem de acontecer - sussurrou, repetindo algo que Christian lhe dissera há algum tempo.

Jack suspirou no seu íntimo e estreitou-a. Olhou novamente para ela e perdeu-se nos traços do seu rosto enquadrado por aquela longa cabeleira de caracóis castanhos, no seu doce sorriso, nos seus grandes e expressivos olhos escuros.

- Quanto tempo passou? - perguntou então. - Nem sequer tenho a certeza de quantos anos tenho.

- Eu também não. Mas será que isso importa mesmo? Depois de tudo o que aconteceu?

Jack reflectiu.

- Penso que não. No fundo, somos muito mais velhos do que deveríamos.

- No fundo - assentiu Victoria. - Sinto que deixei de ser uma criança há muito tempo.

- Sei a que te referes. Também me sinto assim.

Voltou a olhar para ela, intrigado, procurando no seu rosto algo que evidenciasse essa mudança de adolescente para jovem mulher que lhe tinha passado ao lado. Foi então que descobriu o que é que estava a estranhar nela, mas que não conseguia identificar. O seu coração esqueceu-se de bater por um breve instante.

- Victoria - murmurou maravilhado. - Olha... olha para ti. Apontou para a sua testa, com um dedo trémulo. A rapariga arregalou os olhos e levou a mão até lá, hesitante. Receava sentir na ponta dos dedos o frio sombrio que denunciava a presença daquele buraco de nada que marcava o seu rosto desde que Ashran lhe arrebatara o corno, mas tal não aconteceu. Pouco a pouco, aproximou mais os dedos da sua pele, até acabar por lhe tocar.

Nada. Parecia que a sua testa estava de novo completamente lisa.

Jack também percorreu a zona com os dedos. Entreolharam-se.

- O que será que significa? - sussurrou ela, assustada. - Achas que o unicórnio...?

Não foi capaz de terminar a frase. Tinha ficado branca como uma folha de papel. Jack tomou-lhe o rosto nas mãos e esquadrinhou o fundo dos seus olhos. Victoria conteve a respiração.

- Não tenho a certeza - disse ele ao fim de algum tempo que pareceu a Victoria uma eternidade. - Mas quase diria que... quase diria...

- Lunnaris não morreu - sussurrou Victoria. - Continua viva dentro de mim, não é? Está... está a curar-se.

- Creio que sim, Victoria - disse Jack, emocionado.

Victoria reprimiu um grito de alegria e lançou-se nos seus braços. Jack pestanejou várias vezes para reter duas lágrimas indiscretas.

- Talvez devesses experimentar transformares-te - opinou; mas Victoria olhou para ele, assustada.

- O quê...? Não, não, é demasiado cedo. Não vou conseguir.

- Há quanto tempo não tentas? Victoria permaneceu calada, pensativa.

- É verdade - disse então em voz baixa. - E o meu corno? Como posso sobreviver como unicórnio se não tenho corno?

- Não sei. Teremos de perguntar a Qaydar... Seja como for, vai ficar felicíssimo quando souber.

- E Christian também - acrescentou Victoria, sorridente; ergueu a mão para olhar de perto para o seu anel. Franziu o sobrolho ao sentir algo estranho nele.

Jack ficou petrificado e olhou para ela com uma expressão indecifrável. Victoria reparou.

- O que se passa?

- Tinhas o anel posto? Enquanto estávamos... juntos? Tu e eu? Parecia zangado. Victoria pôs-lhe uma mão sobre o braço, para o tranquilizar.

- Nunca o tiro, Jack - disse-lhe com serenidade. - Já devias saber porquê.

Jack tremia.

- Sim, sei que têm uma espécie de... ligação ou comunicação através dessa coisa. Mas ouve: quando estiveres a sós com ele podes fazer o que quiseres, só que eu não estou disposto a, se tu e eu...

- Não - interrompeu ela. - Não temos essa ligação agora, Jack. Christian cortou-a ontem à noite.

Jack relaxou um pouco.

- Cortou a ligação? Porquê?

- Para nos dar privacidade a ti e a mim. Estivemos completamente sozinhos. Tu e eu.

Jack pareceu acalmar-se. Victoria voltou a concentrar-se no anel.

- Mas não voltou a restabelecê-la - murmurou, preocupada. - E já amanheceu há algum tempo.

- Talvez queira continuar a dar-nos privacidade - disse Jack, sorridente. - Tu sabes... caso quiséssemos repetir.

De repente, a pedra de Shiskatchegg iluminou-se com um suave brilho azulado. Victoria lançou uma breve exclamação de alegria e soergueu-se sobre a cama.

- Dirige-se para cá - anunciou.

Jack anuiu, compreendendo que o momento tinha passado. "Há coisas mais importantes em que pensar", disse para si. E não se tratava da iminente chegada de Christian; era necessário averiguar o que estava a acontecer com o unicórnio que habitava no interior de Victoria.

As instalações dos Novos Dragões em Thalis eram impressionantes. Quatro torres, unidas entre si por extensíssimas muralhas, delimitavam o vasto espaço cedido pela rainha Erive a Tanawe e aos seus. Naquela zona repousava um bom número de dragões artificiais, cada um num coberto que dava para uma praça de onde podiam levantar voo sem problemas. As torres e as muralhas não estavam ali somente para cercar o espaço; funcionavam também como mecanismo de defesa. Nelas nunca faltavam vigias que perscrutavam os céus, dispostos a dar o alarme se os sheks se aproximassem. Os Novos Dragões estavam conscientes de que naquela base tinham tudo: ali fabricavam-se

os dragões que tinham enfrentado a invasão shek, portanto, se a base fosse atacada e destruída, teriam de começar outra vez do zero. Era por isso que tomavam tantas precauções e que a própria rainha de Raheld tinha destinado uma parte do seu exército à protecção daquele lugar.

No entanto, os sheks nunca apareciam. Nenhum deles se aproximara da base nem mesmo por acaso. Tinham deixado que fosse construída e permitido que dela saíssem os mais de quarenta dragões que haviam fabricado entretanto. Parecia que não se importavam; como se não os considerassem uma ameaça ou, simplesmente, tivessem já perdido toda a esperança de vencer.

Um pouco receoso, Denyal formara uma patrulha que se dedicava especificamente a explorar as montanhas em busca do esconderijo dos sheks. Autoproclamavam-se Rastreadores e eram um grupo de seis dragões e respectivos pilotos, que empreendiam viagens regulares pela cordilheira de Nandelt e pelo Anel de Gelo. Por vezes, descobriam e abatiam um shek solitário, mas quem realmente procuravam era Eissesh, que fora governador de Vanissar e que, segundo constava, estava vivo, organizando o que restava da civilização shek em algum esconderijo nas montanhas.

Não obstante, aquilo não era mais do que um rumor, enquanto que a situação de Kash-Tar era um facto. Os Novos Dragões teriam disponibilizado metade da sua frota para apoiar os rebeldes que se tinham insurgido contra Sussh, se Denyal não continuasse obcecado em encontrar Eissesh e, portanto, se negasse a dirigir o ataque.

Por esta razão, entre muitas outras, os Novos Dragões estavam tão interessados em que Kimara se juntasse a eles. Porém, a jovem só soube de tudo isto ao chegar a Thalis com a sua nova fêmea de dragão e após uma longa reunião com os líderes do grupo.

- Yandrak não vem connosco? - foi uma das primeiras coisas que lhe perguntaram.

Ela negou com a cabeça.

- Neste momento, para ele é prioritário cuidar de Victoria... Lunnaris - corrigiu-se.

Denyal e Tanawe entreolharam-se. Não foram precisas palavras para Kimara entender, porque estava ao corrente dos rumores que circulavam em torno de todo aquele assunto. Sabia que, enquanto muita gente via Jack e Victoria como os heróis que tinham salvado Idhún, muitos outros, entre eles os Novos Dragões, consideravam que, para heróis, não tinham feito grande coisa. Desde a sua chegada a Idhún, o dragão e o unicórnio haviam estado por conta própria, viajando incógnitos e alheando-se de todas as grandes batalhas que tinham decidido o destino do continente. Os rebeldes tinham lutado em seu nome, mas eles não apareceram na batalha, tendo sido outros a lutar até à morte, sacrificando as suas vidas em muitas ocasiões, para vencer os sheks. Ashran estava morto, isso era certo; mas o facto de o seu filho Kirtash estar tão ligados aos heróis da profecia fazia com que muitos duvidassem de que tivessem sido realmente eles os artífices da sua derrota.

- Que pena - limitou-se a comentar Tanawe. - vou enviar vinte dragões a Kash-Tar e gostaria muito que ele estivesse à frente de todos eles.

- Eu preferia tê-lo nos Rastreadores - disse Denyal. - O seu instinto iria ajudar-nos a localizar de uma vez por todas o esconderijo de Eissesh.

- Assim seria o sétimo membro da patrulha, Denyal - observou Tanawe.

- Isso dá azar.

Não voltaram a mencionar o assunto, mas Kimara leu a decepção nos seus olhos.

Passaram o resto da tarde a fazer planos, a estudar mapas de Kash-Tar e a traçar diferentes estratégias de acção. Kimara também teve oportunidade de conhecer os outros pilotos, que seriam seus companheiros, e os respectivos dragões. Todos ficaram um pouco surpreendidos ao saber que a fêmea de dragão da semi-yan ainda não tinha nome. Segundo lhe disseram, para um piloto o seu dragão não era uma simples máquina; era o seu dragão, seu amigo e companheiro e, portanto, devia ter um nome. "Como as coisas mudaram", disse Kimara para si, recordando os tempos em que os dragões não eram mais do que máquinas - para todos, salvo para Tanawe e Kestra - e como na altura pensavam que Kestra era uma excêntrica, porque era a única piloto que tinha posto nome ao seu dragão. "O grande Fagnor", recordou com tristeza. Ambos, mulher e dragão, tinham perecido juntos na batalha de Awa.

- vou chamar-lhe Ayakestra - disse finalmente. "Ayakestra", em idhunaico, queria dizer "em memória de Kestra". Reinou um silêncio solene, ao qual se seguiram aplausos e vivas.

- Kimara e Ayakestra! Kimara e Ayakestra! - exclamaram todos.

- Já és um dos nossos - disse alguém, e Kimara sorriu entre incomodada e perplexa.

"Eu lutei na batalha de Awa", quis dizer. "Eu defendi a Fortaleza de Nurgon. Onde estavam vocês nessa altura?"

Mais tarde, no coberto de Ayakestra, renovou a sua magia, pronta para partir de novo. No entanto, estava cansada e um pouco aborrecida. Tanawe obrigara-a a preparar outros cinco dragões. "Fazem-nos falta feiticeiros", dissera-lhe.

Depois, Kimara ficara a saber que ela seria a única feiticeira da expedição. Tinham discutido, porque Kimara não estava disposta a encarregar-se sozinha da manutenção dos vinte dragões no período em que estivessem longe de Thalis. No final, arrancara a Tanawe a promessa de que enviaria outro feiticeiro com eles.

Quando Ayakestra ergueu a cabeça e olhou para ela, pronta para partir, Kimara sorriu e preparou-se para trepar para a escotilha. Mas uma mão deteve-a, agarrando-a pelo braço. A semi-yan voltou-se e deparou-se com Tanawe.

A Fabricante de Dragões dirigiu-lhe um sorriso débil.

- Vinha só verificar se está tudo bem.

- Tudo bem, obrigada. Estou pronta para partir.

- O resto da frota também. Rando e Ogadrak já saíram do coberto. Kimara assentiu. Rando, um mercenário que desertara do exército de Dingra há algum tempo, era agora o piloto mais audaz dos Novos Dragões. Arrojado e brigão, tinha sido o primeiro a oferecer-se para dirigir a expedição a Kash-Tar, e Denyal ficara encantado por se ter visto livre dele. Até essa altura, andara a evitar incluí-lo na sua equipa de Rastreadores, devido à tendência que ele tinha para desobedecer às suas ordens. Em Kash-Tar não daria tantos problemas. Kimara tinha consciência de que lhe tocaria a ela lidar com Rando, mas ambos se tinham dado bastante bem desde o início.

Além de tudo, era mais do que óbvio que Rando não tinha muita imaginação. Chamara ao seu dragão "Ogadrak", cujo significado era, literalmente, "dragão negro". Qualquer um que o visse de longe compreenderia porquê.

- Queria pedir-te outra coisa - disse Tanawe. - Tu conheces Kash-Tar, foste lá criada.

- Sim - respondeu Kimara, perguntando-se onde queria ela chegar.

- As escamas de dragão estão a acabar. Sei que há quem as trafique, pelo que precisava, se fosse possível, que trouxesses mais no teu regresso ou que as enviasses por alguém, se vires que vais demorar muito a regressar.

Kimara olhou para ela fixamente.

- Compras as escamas a traficantes de relíquias de dragão?

- Sim. São um pouco mais caras, mas mais eficazes do que as presas ou as unhas. Na época de Ashran costumávamos comprá-las a um tal Brajdu, mas era muito difícil as entregas chegarem intactas...

- Tinhas negócios com Brajdu? - quase gritou Kimara.

- Conhecia-lo?

- É o humano mais vil e repugnante com quem alguma vez lidei; um tipo sem escrúpulos que não se importava de saquear a terra dos dragões para seu próprio benefício. Ele...

- Kimara - cortou Tanawe, áspera. - Os dragões estão mortos, estás a ouvir? Ninguém sentirá falta dos seus restos. E sem escamas de dragão não poderemos criar mais dragões artificiais; pelo menos, não dragões que confundam os sentidos dos sheks e que estejam em condições de lutar contra eles. Queres libertar a tua terra? Então, consegue o que te pedi, porque talvez se consiga derrotar Sussh com esta frota... ou talvez não. Pode ser que sejam necessários reforços e, nessa altura, a quem vais pedi-los?

Kimara deixou-se cair contra o flanco da sua fêmea de dragão, confusa. Olhou para Tanawe e ficou preocupada com o que viu. A feiticeira estava pálida e olheiras profundas marcavam o seu rosto. Parecia cansada e muito abatida, no entanto, um brilho febril animava os seus olhos.

- Mudaste muito, Tanawe - disse a rapariga, sombria. Ela semicerrou os olhos.

- Faz boa viagem - limitou-se a responder.

Saiu do coberto. Kimara trepou por fim para a sua fêmea de dragão, fechou a escotilha, acomodou-se no assento, ajustou as correias e pousou as mãos sobre as alavancas.

- Kash-Tar, cá vamos nós - sussurrou.

Fez Ayakestra avançar até ao exterior e parou-a aí. Pela escotilha lateral, viu os outros dezanove dragões alinhados, prontos para partir. No final da fila estava Ogadrak, que batia as asas e mexia a cabeça com impaciência. Sorriu.

Alguém bateu no flanco da fêmea de dragão e Kimara viu Denyal através do vidro. Abriu a escotilha lateral. O líder dos Novos Dragões não se surpreendeu ao ver que uma parte do corpo do dragão se abria para mostrar o rosto da jovem semi-yan. Quem não estava acostumado a ver dragões artificiais ficava impressionado com aquilo; mas os Novos Dragões sabiam que, sob a aparência de uma perfeita pele de escamas, havia janelas e escotilhas em vez dos verdadeiros olhos do dragão.

- Tudo bem? - inquiriu Denyal.

- Sim, porque perguntas?

- Reparei que estavas a demorar.

- Estive a falar com Tanawe. - Hesitou momentaneamente antes de acrescentar: - Está estranha.

- Isso é porque não dormiu a noite toda. Esteve a renovar a magia dos dragões que vão a Kash-Tar.

Kimara olhou para ele, algo perplexa.

- Mas isso foi o que eu estive a fazer. Denyal riu sem alegria.

- A sério? Quantos dragões preparaste?

- Seis, contando com o meu.

- Pois ela ocupou-se dos restantes catorze. Kimara inclinou-se para trás, impressionada.

- Andamos assim tão mal de feiticeiros?

- Não fazes ideia. Temos só mais um feiticeiro, que é o que se encarrega da manutenção da patrulha de Rastreadores, e acho que afinal vai convosco. Vi-o subir para o dragão de Rando.

Kimara começou a sentir-se culpada.

- Não sabia.

- Eu calculava. Seja como for, não te sintas mal. É verdade que Tanawe já não é a mesma. Todos perdemos muito nesta guerra - acrescentou, levando a mão inconscientemente ao coto do seu braço esquerdo.

Kimara não respondeu. Sabia que, se Denyal tinha ficado sem o braço, Tanawe perdera muito mais: tinha perdido Rown.

Denyal sorriu e deu uma palmada no flanco da fêmea de dragão.

- bom exemplar - disse. - Disseram-me que lhe chamaste Ayakestra acrescentou, num tom mais baixo.

Kimara assentiu, com um nó na garganta.

- Não podia ser de outra maneira - disse.

- Estou de acordo - rematou Denyal.

Momentos depois, os vinte dragões levantavam voo, um atrás do outro, e mergulhavam nos céus de Nandelt. Denyal viu-os partir, orgulhoso da frota, mas também preocupado com ela.

- Espero que apanhem bom tempo - comentou Tanawe junto dele, sobressaltando-o.

- Porque é que dizes isso? As nuvens não estão a tapar os sóis.

- Sim, mas olha para elas. Movem-se demasiado depressa, o que é estranho porque não se sente vento aqui em baixo.

- Talvez haja correntes lá em cima.

- Nesse caso, são correntes muito fortes, não te parece?

Denyal não respondeu. Passou o braço pelos ombros da irmã e ambos observaram em silêncio como os seus dragões se afastavam rumo a sul, enquanto sobre eles nuvens esparsas corriam como se estivessem atrasadas para alguma coisa.

O grande corno de unicórnio que era a Torre de Kazlunn apareceu no horizonte, diante de Christian, ao entardecer do terceiro dia depois da sua partida. "Victoria", disse para si de imediato. Perdido nos seus sombrios pensamentos, quase se tinha esquecido de quem ia encontrar ali. Apesar de regressar à torre unicamente por ela.

Recordou também que, na sua última visita, dois dragões tinham vindo ao seu encontro. Um deles, a fêmea de dragão artificial de Kimara, tinha abandonado Kazlunn há alguns dias. Mas o outro continuava lá.

Até ao último momento, esperou voltar a ver a imponente silhueta de Yandrak recortada contra o horizonte. Mas caía já o segundo dos sóis quando alcançou a torre e nada nem ninguém foi ao seu encontro.

Um pouco receoso, Christian pousou sobre as lajes brancas do miradouro. Não se transformou logo em humano, como costumava fazer para não chamar a atenção. Tinha a sensação de que algo estranho estava a acontecer, de que aquele silêncio não era normal e, no fundo, receava que lhe tivessem preparado uma emboscada. Talvez que, de alguma forma, já tivessem chegado à torre notícias do seu encontro com Gerde. Nesse caso, se lutasse como shek, teria mais possibilidades de vencer a luta do que se o fizesse como humano.

Um vulto chegou ao terraço com um salto ágil. Christian mostrou-lhe as presas por puro instinto.

- O que é que ainda estás a fazer assim? - perguntou-lhe um Jack demasiado jovial para se tratar realmente dele. - Guarda essas presas e põe-te decente, homem. Vais assustar toda a gente.

Christian olhou para ele com desconfiança. Porque é que estava tão contente? Em todo o caso, era Jack, não havia dúvida. Lentamente, o shek tomou a sua forma humana. Jack avançou para ele; Christian levou a mão ao punho da espada e fitou-o apreensivo. Jack retribuiu o olhar.

- O que se passa contigo? Porque é que estás com essa cara de caso? Christian compreendeu que não havia perigo. Baixou a mão, devagar.

- Tenho óptimas notícias - disse Jack sem conseguir conter-se por mais tempo.

- Em contrapartida, eu trago péssimas notícias - replicou o shek. Jack demorou um pouco a responder.

- Não sei porquê, não me surpreende - disse finalmente, com um suspiro- - Está bem, de que se trata?

Deu meia-volta para entrar na torre e, com um gesto, convidou Christian a segui-lo. O shek olhou em volta.

- Onde está toda a gente?

- Numa reunião convocada por Qaydar. Tinha algo a anunciar.

- Relacionado com as tuas boas notícias?

- Sim. Encontraste o feiticeiro?

Christian assentiu e relatou-lhe, rapidamente, a cena que contemplara oculto entre as árvores de Alis Lithban. Não mencionou a sua posterior conversa com Gerde. O rosto de Jack foi-se ensombrando. Quando o shek acabou de falar, Jack deixou escapar uma imprecação.

- São mesmo más notícias - comentou. - O Sétimo é agora Gerde e, além disso, tem o corno de Victoria e está a utilizá-lo para criar novos feiticeiros. Como se não bastasse, com a sua nova identidade, uma identidade feérica, voltou a esconder-se do olhar dos Seis... E desta vez não há profecia que nos ampare! Em duas palavras: estamos perdidos.

- Resumiste-o bastante bem.

- bom, não vou deixar que isto me estrague o dia, por isso, para já, vou agir como se não me tivesses dito nada.

Naquele momento chegou alguém a correr, chamando Jack pelo nome. Os dois voltaram-se ao mesmo tempo e a pessoa estacou, intimidada. Tratava-se de uma jovem humana; Jack não sabia o seu nome, mas sabia que trabalhava na torre como criada, embora não fosse feiticeira.

- O que se passa?

No entanto, a rapariga foi incapaz de pronunciar palavra. Tinha os olhos cravados em Christian e tremia de puro terror.

- Podes falar à frente dele, está tudo bem - insistiu Jack. - Porque me procuras?

Por fim, ela conseguiu fixar o olhar em Jack, mas isso não melhorou as coisas. Corou até à raiz dos cabelos, baixou a cabeça e começou a tartamudear. Jack esperou pacientemente até que ela anunciou que tinha chegado um mensageiro com um bilhete para Jack. Era urgente e procedia de Nanhai.

- Deve ser de Shail - comentou Jack. - Bem, vou ver o que é. Obrigado - acrescentou, dirigindo-se à jovem, mas ela não se mexeu até que Jack insistiu. - Obrigado, podes ir.

- Foi uma honra, senhor - balbuciou ela, com uma deferência exagerada.

Quando se foi embora, Christian olhou para ele, arqueando uma sobrancelha.

- Sim, é sempre assim - suspirou Jack, respondendo à pergunta que ele não tinha feito. - Parece que Victoria e eu ficámos famosos. E tu sabes bem porquê, não?

Christian não respondeu. Jack não insistiu.

- vou receber o mensageiro e, de seguida, voltarei à reunião - resumiu. - Depois temos de ter os três uma conversa... longa. Victoria está no jardim: tens de a ir ver... - Dirigiu-lhe um olhar cheio de alegria mal dissimulada. - Se conseguires, claro.

Momentos depois, Christian percorria os caminhos sombrios do jardim da torre, com a estranha sensação de que algo especial latejava no ambiente, algo mágico, talvez, que antes não estava presente. Deu várias voltas por ali, percebendo a presença de Victoria algures, mas sem chegar a encontrá-la. Quando estava quase a desistir, descobriu uma forma branca semi-escondida por debaixo de um monte de flores em forma de campânula. O shek estacou e respirou fundo para acalmar os batimentos violentos do seu coração. Após assegurar-se de que os seus olhos não o enganavam, aproximou-se do monte de flores, passo a passo, ainda com receio de que aquilo fosse uma ilusão prestes a desvanecer-se a qualquer instante.

O unicórnio não se moveu nem sequer abriu os olhos. Mas Christian sabia que tinha detectado a sua presença. Sentou-se na relva, junto dela, sem pronunciar uma só palavra que pudesse quebrar a magia do momento. E esperou.

Pouco depois, a criatura abriu os olhos e fitou-o.

Christian sentiu que ficava sem fôlego. Voltou a cabeça bruscamente, com os olhos ensombrados.

- O que se passa contigo? - perguntou ela docemente. - Não estás contente por me veres?

- Sabes que sim, Victoria - respondeu ele em voz baixa. Recompondo-se, ergueu a cabeça e observou-a demoradamente. O seu olhar deteve-se no pequeno corno que crescia na sua testa, apenas uma ponta pouco maior do que o seu polegar. O unicórnio reparou e baixou a cabeça, claramente envergonhado.

Christian apercebeu-se.

- O corno está a voltar a crescer.

- É tão insignificante - suspirou ela. - Tão pequeno, tão ridículo...

- Vai crescer - tranquilizou-a Christian. - E não é insignificante. É o mais bonito que alguma vez vi.

Victoria inclinou delicadamente a cabeça em sinal de agradecimento.

- Como aconteceu?

- Não sei. Simplesmente, aconteceu. Mas não de repente. Creio que já andava há algum tempo a curar-me pouco a pouco. Só que demorou muito até o meu corpo de unicórnio gerar um novo corno. Se não fosse por a minha essência ter também um corpo humano onde se refugiar, não teria sobrevivido ao processo.

com um suspiro, apoiou a cabeça no regaço de Christian. O jovem deixou escapar um pequeno arquejo ao sentir a suave corrente de magia que o percorria por dentro.

Fechou os olhos para usufruir da sensação. Após uma breve hesitação, ergueu a mão para acariciar a crina do unicórnio, que não se mexeu.

Por fim, Christian voltou a olhar para ela.

- Porque fizeste isto? - perguntou-lhe.

- Porque o desejava - respondeu ela em voz baixa. Christian não disse nada.

Permaneceram assim mais algum tempo, os dois em silêncio, Christian sentado na relva, Victoria apoiando a cabeça no seu regaço. Então ela disse:

- As lendas da Terra dizem que os unicórnios gostam de pousar a cabeça no regaço das raparigas virgens e inocentes.

- Receio não me encaixar muito nessa descrição - comentou ele. Victoria sorriu.

- Eu sei. Mas não me importa. És Christian, e isso basta-me. O shek olhou para ela com uma expressão indecifrável.

- É por isso? É esse o segredo dos unicórnios? É que, se não for, não sei explicar o que fiz para merecer este dom... duas vezes.

- Não sei o que o unicórnio que te converteu num feiticeiro viu em ti. Mas eu sei o que vi. E desejava partilhar isto contigo... oh, desejava-o com toda a minha alma. - com Jack também?

- Sim, com ele também. Mas não agora. O meu poder é ainda muito fraco. Se entregasse a magia a um não-iniciado ou até mesmo a um semifeiticeiro como ele... o esforço poderia acabar comigo. Mas tu és já um feiticeiro. Não preciso de te conceder um dom que já possuis. Só posso renová-lo.

Christian não se pronunciou. O unicórnio ergueu a cabeça e olhou para ele desconcertado.

- Não estás contente por me ver assim - afirmou.

- Não totalmente - reconheceu Christian. - Mas tenho uma boa razão.

Observou como ela se transformava de novo em humana, entre os seus braços. Quando, com o seu rosto de rapariga, o fitou novamente, havia ainda um rasto de pesar no seu olhar.

- Tenho uma boa razão - repetiu ele. - Há alguém que não considera que uma rapariga humana seja uma ameaça. Mas pode ter muita coisa contra o último unicórnio, por ele ser capaz de conceder a magia.

Contou-lhe, em poucas palavras, o mesmo que tinha contado a Jack. Victoria empalideceu.

- Gerde tem o meu corno. E é uma deusa.

Havia medo e raiva nas suas palavras. Christian reparou.

- Tenho de te tirar daqui antes que ela saiba que o teu corno está outra vez a crescer e que em breve poderás continuar a consagrar feiticeiros. E só há um lugar onde posso esconder-te dela.

- Queres levar-me de volta à Terra - adivinhou Victoria a meia-voz. Christian anuiu.

- Sei que Idhún é o mundo mais apropriado para o unicórnio que há em ti. Mas não com Gerde. Quando começares a conceder o teu dom a mais pessoas...

- Estás a falar como Qaydar - cortou Victoria, tensa. - Não é assim tão simples entregar o dom. Há que desejá-lo de coração. É algo muito íntimo e muito especial.

Devias sabê-lo.

- Eu sei, Victoria.

Ela não disse nada e Christian demorou um pouco a retomar a conversa:

- Terias gostado - perguntou-lhe então em voz baixa - de ser a primeira a entregar-me a magia?

- Sim - sorriu ela. - Teria sido lindo. Mas não sofro com isso. No fundo, não tem assim tanta importância chegar em primeiro lugar, desde que se chegue.

- É verdade - assentiu ele, olhando-a intensamente. - E vejo que alguém já "chegou a ti" em primeiro lugar.

Victoria percebeu a indirecta e corou, desconcertada. Christian ergueu-a com cuidado para apoiar a cabeça dela no seu ombro.

- Correu tudo bem? - perguntou-lhe, sereno.

Victoria entendeu que não lhe estava a pedir pormenores, que apenas pretendia uma só palavra como resposta.

- Sim - disse em voz baixa.

- Fico contente - sussurrou ele no seu ouvido, com um sorriso. A sério.

Victoria engoliu em seco. Lançou-lhe os braços ao pescoço e abraçou-o com todas as suas forças.

- vou levar-te para longe daqui - prometeu-lhe Christian. - Para um lugar onde não entres nos planos de ninguém. Onde ninguém saiba quem és na verdade. Onde estejas realmente a salvo.

- Não vamos lutar?

- Contra Gerde? - Christian abanou a cabeça. - Não. Pode ficar com Idhún se quiser, mas não contigo. Nem comigo.

Algo no seu tom de voz alertou Victoria para o que podia ter acontecido entre Christian e Gerde.

- Viste-a? Falaste com ela?

O shek tardou um pouco a responder.

- Sim - limitou-se a dizer.

Victoria abriu a boca para perguntar mais, mas acabou por decidir não o fazer. Ergueu a cabeça com brusquidão e Christian fê-lo uma fracção de segundo depois dela, um instante antes de Jack aparecer, abrindo caminho por entre os maciços de flores, muito alterado.

- Tenho de falar convosco - foi a primeira coisa que disse ao vê-los.

- Não tinhas de estar numa reunião?

- Para o diabo com a reunião. Isto é bem mais importante. Sentou-se junto deles e começou a falar-lhes do conteúdo da carta de Shail. O feiticeiro relatava nela o seu encontro com Alexander e tudo o que tinha descoberto no Oráculo, através de Ymur e de Deimar, o ouvinte louco. Quando acabou, Victoria olhou para Christian, inquieta. Mas o semblante do shek continuava impenetrável.

- E o que é que tem? - disse apenas.

- Como "e que o que é que tem"? - perguntou Jack. - Até entendo que as notícias sobre Alexander não te interessem nem um pouco, mas o que Shail averiguou no Oráculo afecta-te directamente! Segundo a carta, o feiticeiro que perguntou a Ymur pelo sétimo deus e que entrou na Sala dos Ouvintes há anos poderia ter sido Ashran!

- Está bem, e eu repito: e o que é que tem? Isso não vai mudar as coisas.

Jack suspirou e meneou a cabeça com desaprovação.

- Parece mentira que não percebas, serpente. A história de Ymur tem muitos pontos interessantes, como Shail já deduziu. Quando Ashran chegou ao Oráculo, era apenas um jovem feiticeiro que fazia perguntas indiscretas sobre o sétimo deus. Entrou na Sala dos Ouvintes e algo aconteceu ali. Talvez na altura tenha comunicado com os deuses. Quem sabe, com o Sétimo. Se descobrirmos como o fez, talvez consigamos fazer o mesmo. Pode ser que possamos contactar com os Seis e...

- E então?

- Deixa de ser tão negativo, está bem? - replicou Jack, aborrecido. Acabaste de me dizer que o Sétimo é agora Gerde. Não seria tudo infinitamente mais simples se os deuses soubessem deste pormenor?

Christian dirigiu-lhe um olhar indecifrável.

- Não - disse -, não seria.

Afastou Victoria de si, com delicadeza, e levantou-se.

- Faz o que quiseres, dragão. Eu vou para a Terra e partirei antes do primeiro amanhecer. Victoria virá comigo, se estiver de acordo.

Jack ficou sem fala.

- Vais-te embora assim, sem mais nem menos? - conseguiu dizer, estupefacto. - Vais fugir?

- Não há nada que me retenha aqui e não tenho interesse nenhum em ficar para presenciar uma guerra de deuses.

- E Victoria? Virar-lhe-ias as costas se decidisse ficar? Voltaram-se para Victoria, em simultâneo, esperando que ela se manifestasse. Victoria hesitou.

- É uma decisão difícil - disse por fim. - Teria de pensar nisso.

- Se escolhesse ficar em Idhún - repetiu Jack -, o que farias tu, Christian?

Christian e Victoria entreolharam-se longa e intensamente. Por fim, o shek abanou a cabeça e disse:

- Já disse que vou para a Terra. Vocês podem escolher... mas é provável que eu não tenha outra opção.

Antes que qualquer um deles pudesse perguntar-lhe a que se referia, Christian desapareceu no jardim, silencioso como uma sombra, deixando-os a sós.

Jack e Victoria permaneceram em silêncio.

- O que vais fazer? - perguntou ele por fim. Victoria retorceu as mãos, indecisa.

- Queres que vá para a Terra com ele, não é?

- Já tínhamos falado disso, sim. Ambos consideramos que é o mais seguro para ti; além disso, se Gerde tem o teu

corno e souber que um novo está a crescer...

Não acabou a frase, mas Victoria entendeu o que queria dizer.

- Christian chegou à mesma conclusão - disse a meia-voz.

- E tu, qual é a tua opinião? Queres regressar à Terra com ele? Victoria inclinou a cabeça.

- Acho que devo fazê-lo. Mas não quero deixar-te para trás, por isso, antes de tomar uma decisão, gostaria de saber se estarias disposto a acompanhar-nos.

- Porque achas que deves fazê-lo? - inquiriu Jack, sem responder à pergunta.

Victoria permaneceu momentaneamente em silêncio antes de dizer:

- Lembras-te de quando chegámos a Idhún? Christian foi para Nanhai e tu para Awinor, e eu tive de decidir qual dos dois acompanhar. Na altura era difícil escolher, mas Christian fez-me ver claramente qual era a melhor opção. Disse-me que precisavas mais de mim naquele momento.

Jack arqueou uma sobrancelha.

- Ah, sim?

- Estavas sozinho num mundo que não conhecias. Ias empreender uma viagem muito perigosa em busca de ti mesmo. Christian desenrascava,se muito bem sem mim, mas tu precisavas do meu apoio e da minha ajuda. Por isso decidi acompanhar-te a ti e não a ele.

Jack recostou-se no tronco da árvore.

- E agora já não é esse o caso?

- Creio que não, Jack. Christian não está bem. Tenho medo por ele. Receio que esteja em perigo.

- Por causa de Gerde? Victoria assentiu.

- Ela tem muitos motivos para querer vingar-se dele. E já não é como antes, Jack: Gerde é a sétima deusa, tem poder sobre ele. Pode... pode fazer-lhe mal. Deixou-o partir, sem mais nem menos, e julgo que é por saber que o tem nas mãos.

- Entendo - assentiu Jack. - Já te passou pela cabeça que, nesse caso, talvez ele tenha voltado a mudar de lado? Não digo que o tenha feito voluntariamente, mas que... não lhe reste outra opção, como disse.

- Faça o que fizer, Jack, sei que não corro perigo ao lado dele. Quando diz que quer levar-me com ele para a Terra porque lá estarei mais segura, está a falar a sério. Quer afastar-me de Gerde, mas acho que há mais alguma coisa que não nos contou... nem vai contar.

- A mim não, mas pode ser que se abra contigo. Essa é outra razão por que tens de ir com ele.

- E tu? Jack, sinto que devo acompanhar Christian, mas não quero deixar-te para trás.

Jack olhou para ela, indeciso.

- Até esta tarde, estaria disposto a ir convosco. Mas depois de ter recebido a carta de Shail... não sei o que pensar. Não quero abandoná-lo, a ele e a Alexander, à sua sorte. Sinto que devo ir a Nanhai ter com eles, para tentar perceber o que está a acontecer. Não sou estúpido: se Idhún for destruído, não falo tenção de ser destruído com ele. - Estremeceu ao recordar a paisagem desolada de Umadhun. - Mas quero investigar este assunto até ao fim, pelo menos enquanto tiver tempo; se não houver nada a fazer... então trataria de convencer Shail e Alexander a voltarem connosco.

Victoria olhou-o demoradamente.

- Se for para a Terra - disse -, tem de ser com a condição de que vais ter connosco mal possas. Vais fazê-lo, Jack?

- Se ficar aqui, será com essa condição, prometo - tranquilizou-a ele.

- E com outra condição - acrescentou ela. - Se não tiveres passado pela Porta quando me tiver crescido o

corno completamente, voltarei para te buscar.

Jack ficou repentinamente sério.

- Não, Victoria...

- Tem de ser assim - cortou ela. - Não pretendo deixar-te para trás sabendo que corres perigo.

Jack não respondeu. Os dois olharam-se durante um momento e abraçaram-se, com força.

- Amo-te tanto - suspirou Victoria. - Sei que vou sentir imenso a tua falta.

- Vais acostumar-te. Também passas bastante tempo longe de Christian e consegues suportá-lo.

- Não é a mesma coisa. Nós estamos unidos através do anel. Em contrapartida, se me for embora, se atravessar a Porta para outro mundo, perderei todo o contacto contigo. Se te acontecer alguma coisa, não terei maneira de o saber.

Jack sorriu, acariciando-lhe a face.

- Não te preocupes antes do tempo. Ainda não decidi. Christian disse que iria no primeiro amanhecer, não foi? Creio que até lá tenho tempo para pensar nisso. No entanto, sou da opinião que deves ir com ele. Ficarei mais tranquilo se souber que estás a salvo na Terra. Longe de Gerde, de Yaren, dos deuses e de todos esses fanáticos que não vão esperar que o corno te cresça por completo para te obrigarem a consagrar mais feiticeiros.

Victoria inclinou a cabeça.

- Se for, não será por essa razão, e tu sabes disso. Mas como vou dizer a Qaydar que me vou embora... com Christian? Vai ter um ataque.

- Não lhe digas. Não lhe digas nada, porque, se o fizeres... não te deixará ir.

Victoria mordeu o lábio inferior, preocupada. Jack levantou-se de rompante.

- Vamos voltar para a torre - disse. - Qaydar deve estar a perguntar-se onde estamos; além disso, já é noite e levantou-se vento.

Estendeu a mão a Victoria e ela tomou-a, com um sorriso. Contudo, Jack estremeceu e retirou a mão, desconcertado.

- O que foi? - inquiriu Victoria, alarmada. Jack abanou a cabeça.

- Nada; só me deu uma cãibra.

Victoria contemplou a própria mão, pensativa.

Alguém acordou Zaisei, batendo ansiosamente à porta do seu quarto. A jovem levantou-se com ligeireza, colocou uma capa sobre os ombros e correu a abrir. Lá fora esperava-a uma rapariga semifeérica. Zaisei conhecia-a: tratava-se de uma das noviças da comitiva de Gaedalu.

- O que se passa, Feige? - perguntou a celeste. - O que fazes aqui a estas horas?

- A Mãe chama-te, Zaisei. Diz que é urgente. Preocupada, Zaisei correu até aos aposentos de Gaedalu. Encontrou a varu vestida e a recolher as suas coisas precipitadamente.

A sua pele de anfíbio tinha secado mais do que devia, mas ela parecia não ter reparado.

- Mãe, o que estás a fazer! - exclamou a celeste, alarmada. - Quanto tempo estiveste fora de água?

- Deixa-me, deixa-me - protestou Gaedalu, quando Zaisei procurou conduzi-la à enorme banheira cheia de água fresca e limpa que tinham preparado para ela ao fundo do quarto. - Isto é. mais importante. Acorda todas as noviças e sacerdotisas e trata de as fazer reunir a bagagem imediatamente. Vamos regressar a Gantadd.

- Mas, Mãe - objectou Zaisei, perplexa. - É muito tarde. Não podes esperar até amanhã?

- Não, não, isto não pode esperar. A luz das luas está brilhante esta noite; as deusas veiarão por nós. Vamos, Zaisei, apressa-te: quanto mais depressa partirmos, mais depressa chegaremos.

- Mãe, não encontraremos transporte para todas a estas horas. Se tiveres um pouco de paciência, amanhã enviarei uma mensagem a Haai-Sil para que mandem pássaros...

- Vamos viajar com o que houver, Zaisei. Os pássaros demorariam demasiado tempo a chegar. É mais rápido se formos directamente a Haai-Sií e os pedirmos lá.

Zaisei suspirou. Gaedalu estava nervosa e bastante alterada, mas, além disso, havia algo nos seus sentimentos, uma mistura de esperança sinistra e alegria selvagem, que desconcertou a celeste. Nunca a tinha visto assim. Gaedalu olhou para ela fixamente.

- O que se passa, filha? Porque não fazes o que te pedi?

- Estou preocupada contigo, Mãe. Não é próprio de ti comportares-te desta maneira.

Gaedalu sorriu.

- Pois deixa de te preocupar, Zaisei, porque tenho um bom motivo para regressar a Gantadd de forma tão precipitada. O que descobri esta noite na biblioteca talvez venha a ser vital para muita gente.

- Algo acerca dos deuses?

- Dos deuses? - Gaedalu fez soar o seu característico riso gutural. - Não, filha, algo mais importante ainda: acerca dos sheks. Mas é provável que se trate apenas de uma pista faísa, por isso tenho de a comprovar o quanto antes...

- Mas, Venerável Gaedalu, ainda não recebemos notícias da Torre de Kazlunn - recordou-lhe Zaisei. - Talvez fosse prudente aguardar que o Arquifeiticeiro nos confirme se é verdade que Lunnaris despertou...

- Os mensageiros podem alcançar-nos pelo caminho e, se não chegarem a tempo, receberemos as novidades no Oráculo.

Zaisei olhou para ela, indecisa. Finalmente, suspirou.

- Tratarei de organizar tudo para que partamos o quanto antes. Mas não vou sair daqui até te ver banhares-te - acrescentou, severa.

Percebeu o ar contrariado de Gaedalu, mas não cedeu.

- Está bem, ganhaste - disse por fim a Mãe Venerável. Colocou-se na beira da banheira e deslizou até ao interior com tanta suavidade que apenas produziu uma leve ondulação na superfície. Desapareceu debaixo da água e depois assomou unicamente a parte superior da cabeça. Os seus olhos observaram Zaisei com um certo ar de censura.

- Está melhor assim?

- Sim - assentiu ela com um sorriso. - Regressarei daqui a pouco para te ajudar com a bagagem.

Antes de fechar a porta atrás de si, a celeste notou que, sobre a cama de Gaedalu, se encontrava um velho volume poeirento. Franziu o sobrolho e pensou que devia perguntar aos encarregados da biblioteca se Gaedalu tinha pedido autorização para o levar, dado que nos últimos tempos andava um pouco alheada, esquecendo-se daquele tipo de pormenores. Então ouviu alvoroço no quarto das noviças e o riso inconfundível de Feige, tão melodioso como o de qualquer fada de Awa, e os seus pensamentos afastaram-se do livro. Pegando na ponta da túnica, Zaisei foi rapidamente impor um pouco de ordem ali.

Entraram no salão quando Qaydar já saía para os ir buscar.

- Onde estavam? - indagou. - A reunião já acabou há muito tempo. Estão todos à espera de ver Lunnaris com os seus próprios olhos... sob a sua forma humana, quero dizer - acrescentou, ao ver que Jack começava a franzir o sobrolho.

Os dois jovens entreolharam-se, mas não responderam. Seguiram Qaydar através da sala, ainda de mãos dadas, sem prestar atenção aos murmúrios que se levantavam à sua passagem. Quando ficaram à frente do que restava da Ordem Mágica e Qaydar os apresentou como Yandrak e Lunnaris, o último dragão e o último unicórnio, reinou um silêncio sepulcral.

Victoria passeou os olhos pela sala. Só se encontravam presentes oito pessoas, além de Qaydar, e todas vestiam túnicas que denunciavam a sua condição de feiticeiros. Victoria viu dois silfos, um varu, dois humanos (homem e mulher), um gigante, um celeste e uma mestiça de fada e celeste. Nenhum com menos de vinte anos. Nenhum aprendiz. "O que résta da Ordem Mágica", pensou ela com tristeza. Sabia que havia mais feiticeiros dispersos por Idhún; mas, somando-os a todos e depois da batalha de Awa, na qual ambos os lados tinham tido muitas baixas, provavelmente não restariam no mundo mais de vinte feiticeiros. Como se tivesse adivinhado os seus pensamentos, Qaydar anunciou:

- Como vêem, os rumores confirmam-se. A dama Lunnaris recuperou da sua grave doença e, embora não possamos pedir-lhe que se mostre como unicórnio diante de todos nós, por uma questão de intimidade, posso assegurar-vos de que é capaz de...

- Não pode entregar magia - cortou então Jack. Qaydar voltou-se para ele de rompante.

- O que disseste?

- Lunnaris está ainda muito fraca, pelo que não se pode pedir-lhe que entregue a magia a ninguém, ainda. Isso iria matá-la. O facto de poder transformar-se é uma boa notícia, mas há que ter em conta que as suas feridas foram muito graves e que ainda não podemos ter a certeza de que recuperará por completo.

Victoria procurou dissimular a sua surpresa perante as palavras de Jack. Não era próprio dele mostrar-se tão cauteloso. Ao olhá-lo com atenção, viu-o extraordinariamente sério, com os olhos fixos nos feiticeiros que se tinham reunido ali naquele dia. Então compreendeu que, depois das alarmantes notícias que Christian lhes tinha trazido, Jack não confiava em ninguém. Qualquer um daqueles feiticeiros podia estar ao serviço de Gerde, podia ter traído a Ordem, como a própria Gerde fizera nos tempos de Ashran... como Elrion, o assassino dos seus pais.

A rapariga inclinou a cabeça e disse:

- Sei que a Ordem atravessa tempos difíceis. Mas peço-vos paciência e compreensão. O que Ashran me fez teria matado qualquer unicórnio. Necessitarei de tempo para me recobrar, se é que algum dia o farei por completo.

Quase sentiu pena de Qaydar. O Arquifeiticeiro tinha convocado os presentes para lhes dar uma boa notícia e ela e Jack desmentiam-na ou, pelo menos, abalavam a esperança que tinha nascido nos corações daquelas pessoas.

Quando a reunião acabou, Qaydar chamou-os à parte para lhes pedir explicações.

- Temos de ser prudentes, Arquifeiticeiro - disse Jack. - Victoria tem muitos inimigos e não nos convém que se saiba ainda o que é capaz de fazer.

- Inimigos? - repetiu o Arquifeiticeiro. - Referes-te ao feiticeiro que procurou matá-la no outro dia?

O rosto de Victoria ensombrou-se ao recordar Yaren.

- E esse é só o menos perigoso - assentiu Jack. Qaydar afagou o queixo, pensativo.

- Estou a ver - disse. - No entanto, Jack, considero que procuras inimigos onde não os há e, em contrapartida, recusas-te a aceitar que o perigo pode estar muito mais perto do que julgas.

Jack demorou um pouco a compreender a que se referia, mas Victoria percebeu imediatamente.

- Kirtash não é um inimigo - disse com firmeza. - É um dos nossos. Qaydar susteve o seu olhar.

- Tens assim tanta certeza?

Jack titubeou, recordando que Christian voltara a encontrar-se com Gerde e perguntando-se até que ponto o shek podia escapar à sua natureza. Mas a voz de Victoria não tremeu nem por um instante, nem houve qualquer sombra de dúvida nos seus olhos quando disse:

- Sim.

- Os motivos de Kirtash podem parecer obscuros às vezes - interveio Jack -, mas ele lutará por Victoria até à morte, se necessário. E todo aquele que proteger Victoria está a velar, indirectamente, pelos interesses da Ordem Mágica. Não é assim?

- Talvez - disse Qaydar. - Contudo, o último unicórnio é mais valioso vivo do que morto. Se Kirtash levasse Victoria para que ela servisse as serpentes, não tenho dúvida de que continuaria a defendê-la com grande interesse... mas isso não favorece a Ordem Mágica nem acho que seja bom para ti, rapariga - acrescentou, olhando para Victoria.

- Ele nunca faria algo assim - replicou ela. - Respeita-me. Nunca me obrigaria a fazer nada que eu não quisesse, e isso é muito mais do que se pode dizer das intenções de alguns membros da Ordem Mágica.

Qaydar semicerrou os olhos, sentindo-se visado. Jack, pelo contrário, estava cada vez mais inquieto. Recordava muito bem que Christian tinha, sim, obrigado Victoria a fazer algo contra a sua vontade, quando a deixara adormecida na Torre de Kazlunn na noite do Triplo Plenilúnio. Tinha-a forçado a permanecer ali, afastando-a da batalha, para a proteger de Ashran. Seria capaz de a sequestrar agora e de a entregar a Gerde se com isso assegurasse a sua sobrevivência? E se Gerde, a sétima deusa, garantisse a Christian que protegeria Victoria dos outros seis deuses, como ninguém mais em Idhún era capaz de fazer? De facto, Gerde podia outorgar o dom da magia, mas, como Qaydar havia dito, um unicórnio era mais útil vivo e, com Victoria entre as suas fileiras, poderiam consagrar o dobro dos feiticeiros.

- Vocês lá sabem o que fazem - disse o Arquifeiticeiro com frieza. Mas informaram-me que o shek regressou à torre. Se, quando amanhecer, não tiver partido, tomaremos medidas. Não quero tê-lo por cá.

- Estás a falar de um dos heróis da profecia, de alguém que pôs em risco a sua vida para enfrentar Ashran - replicou Victoria, com os olhos a relampejar de fúria. - Não vou consentir que lhe ponham as mãos em cima.

Qaydar franziu o sobrolho.

- Chega! - intercedeu Jack. - Não é necessário tudo isto. Kirtash partirá antes do primeiro amanhecer e não creio que voltemos a vê-lo durante muito tempo, de modo que não será preciso "tomar medidas" de nenhum tipo.

A altas horas da madrugada foram acordados pelo furioso assobio do vento, que chocava contra a torre com tanta violência que fazia estalar as suas fundações, e pelo brutal estrondo das ondas a bater na escarpa. Victoria soergueu-se, sobressaltada, com o coração a bater descompassado.

- O que se passa? - perguntou Jack meio a dormir. - Já está na hora?

Victoria não respondeu. Levantou-se de rompante e correu para a janela; mas retrocedeu com uma exclamação de surpresa, quando uma onda rebentou contra a parede e a salpicou de água salgada.

- O que foi isto? - perguntou Jack, despertando completamente.

- A maré! - respondeu ela, atónita. - O vento sopra com tanta força que as ondas chegam até cá acima!

- Isso não é possível. Estamos na parte alta!

Dirigiu-se também para a janela, mas custou-lhe aproximar-se, porque o vento que entrava através dela o empurrava para atrás. Victoria tinha-se agarrado firmemente ao peitoril, mas o ar fustigava-lhe o rosto e revolvia-lhe o cabelo com violência. Juntos, atreveram-se a espreitar o que se passada lá fora...

Recebeu os uma paisagem aterradora. Tinha-se levantado um furioso vendaval que agitava a superfície do mar, gerando ondas altíssimas que rebentavam contra a torre. A água tinha inundado o jardim, derrubando parte do muro.

O pior era o céu, de um intenso tom violáceo, insólito, que fazia empalidecer as três luas e as tingia com uma fina neblina fantasmagórica. No horizonte, os ventos tinham formado um aterrador remoinho que girava sobre si mesmo lenta e inexoravelmente. O seu cone estendia-se até tocar na superfície do mar e, quando o fazia, encolhia-se novamente, para voltar a estender-se um pouco mais adiante, retorcendo-se e ondulando como se seguisse um ritmo próprio, com uma espécie de alegria despreocupada... o que não deixava de ser desconcertante, dado que a mera proximidade daquele tornado colossal tinha transformado o ar num furacão impiedoso que se abatia agora sobre a costa de Kazlunn.

- O que... que é isto? - foi a única coisa que Victoria conseguiu dizer, horrorizada.

- Não sei, mas está a vir para cá... Cuidado!

Afastaram-se bruscamente da janela, mesmo antes de uma nova onda embater contra a torre.

- Vai inundar o quarto - murmurou Jack. - Vamos embora daqui.

Agarrou em Victoria pela cintura, mas soltou-a de novo com um grito, abanando a mão. A rapariga olhou para ele, com os olhos arregalados, e ergueu as mãos. Quando aproximou os dedos, soltaram-se faíscas deles.

- O que me está a acontecer? - sussurrou.

Jack atreveu-se a tocar-lhe com a ponta do dedo, mas afastou a mão de imediato.

- Victoria, estás carregada de electricidade... como uma pilha - murmurou, perplexo. - Como é possível?

Victoria abanou a cabeça e precipitou-se para a porta. Antes de a seguir, Jack pegou em Domivat e no Báculo de Ayshel, embora não deixasse de se perguntar de que lhe serviria uma espada contra um tufão.

Encontraram-se no corredor com um dos feiticeiros, o gigante, que descia pesadamente as escadas, baixando a cabeça para não bater com ela nos arcos que sustinham o tecto.

- Yber! - chamou Jack. - O que se passa?

- Não fazemos ideia, Jack - respondeu ele. - O Arquifeiticeiro chamou todos os feiticeiros da torre. Estão a fechar todas as aberturas e a reforçar o edifício com magia para que resista quando o tornado nos alcançar. É a única coisa que podemos fazer.

Yber continuou a descer as escadas e Victoria dispôs-se a segui-lo; mas Jack chamou-a e indicou-lhe por sinais que o seguisse... pela escadaria acima. A jovem entendeu logo o que queria dizer e ambos subiram a correr para a parte alta da torre.

Ali, na cúpula, havia uma enorme sala hexagonal que os feiticeiros costumavam utilizar para realizar os conjuros mais complexos. Jack e Victoria tinham-na reconhecido mal entraram nela pela primeira vez, tempos antes. Ali, sobre aquelas lajes que representavam o hexágono perfeito formado pelos três sóis e pelas três luas de Idhún, um unicórnio e um dragão tinham-se entreolhado há quase duas décadas.

Agora, precisamente no centro do hexágono, em pé, sereno e impassível, como se o furacão que fustigava a torre não pudesse afectá-lo, estava Christian.

O vento tinha partido os vidros das seis janelas que davam luz à sala. Jack protegeu o rosto com um braço e estendeu a outra mão a Victoria; quando ela a tomou, sentiu uma violenta descarga eléctrica, mas cerrou os dentes e avançou até ao centro da sala, arrastando a rapariga atrás de si.

- O que está a acontecer? - gritou a Christian, quando chegaram ao pé dele. - Isto não é normal!

- Não, não é! - respondeu o shek, erguendo também a voz para se fazer ouvir. - E será pior quando chegar à costa!

- Está a afectar Victoria, olha!

Ela ergueu as mãos e aproximou as palmas, como tinha feito antes, para mostrar a Christian. O shek semicerrou os olhos ao ver as faíscas que saltavam dos seus dedos.

- Temos de a tirar daqui - limitou-se a dizer.

- Porquê? O que se passa?

- Estás a ver aquilo? - Christian indicou o tornado que deslizava sobre o mar. - Sabes o que é?

"Algo estranho, algo inexplicável", pensou Jack de repente, recordando as palavras que dissera a Kimara antes da sua partida, "algo muito grande mas que parece que não está lá... algo fora do normal e que te assuste muito, que não saibas o que é e contra o qual não saibas como lutar..."

- É um deus! - disse, e Victoria deixou escapar uma exclamação consternada. - Mas que tipo de deus faria algo parecido?

Christian contemplou o remoinho que continuava a retorcer-se e a ondular, expandindo-se e contraindo-se, como se os ventos dos quatro pontos cardeais se tivessem posto de acordo para criar uma obra de arte titânica, instável e turbulenta, mas de uma beleza assustadora e inquietante. Por um momento, pareceu que o shek não ia responder à pergunta, mas finalmente disse:

- É Yohavir.

Jack esforçou-se por recordar os seus conhecimentos de mitologia idhunita.

- O deus dos celestes? - assegurou-se.

- Esse mesmo!

Jack abanou a cabeça e apontou para o torvelinho.

- Estás a dizer-me que aquele tornado é Yohavir?

- Não! - respondeu Christian. - Aquele tornado é provocado por Yohavir! A sua mera presença faz com que os ventos se alterem, como em Nanhai! Karevan estava lá, mas não podíamos vê-lo... só víamos os efeitos devastadores produzidos pela sua passagem... quando se movia pelo seu elemento. com Yohavir está a acontecer a mesma coisa.

- E porque é que a sua presença afecta tanto Victoria?

- Porque ela é um unicórnio, uma canalizadora de energia! E um deus é pura energia. Por isso temos de a tirar daqui - acrescentou, voltando-se para olhar fixamente para eles. - Quando Yohavir chegar, se Victoria não tiver forma de descarregar toda a energia que está a atrair... não sei o que poderá acontecer-lhe.

Jack anuiu, tomando consciência da situação.

- Bem, então abre a Porta. Vamos para a Terra.

Victoria voltou-se para ele, surpreendida, mas Jack não olhou para ela. Em vez disso, susteve o olhar de Christian, que o observava com um brilho de compreensão nos seus olhos de gelo.

O shek assentiu brevemente e afastou-se deles. Foi-lhe fácil abrir a brecha que separava ambos os mundos, uma fissura entre dimensões que, no meio do caos provocado pela proximidade do deus celeste, parecia a única coisa estável, a única coisa segura, a única possibilidade de refúgio. Victoria ficou a olhar para ele, aturdida.

- Toma - disse-lhe então Jack. - Segura tu nisto. Estendia-lhe o Báculo de Ayshel. Victoria fitou-o, hesitante.

- Pega nele - insistiu Jack. - Tenho a certeza de que já o podes usar. Recuperaste o suficiente para que o báculo seja capaz de detectar o unicórnio que há em ti.

A rapariga sorriu e agarrou no báculo. Contudo, não se atreveu a tirá-lo da bolsa. Ajustou-o às costas e disse:

- Estou pronta.

- Eu também - assentiu Jack, e beijou-a.

Victoria ficou surpreendida, mas depois olhou para ele e somu-lhe com alguma timidez.

- Despachem-se! - apressou-os o shek.

Victoría assentiu e aproximou-se de Christian, que aguardava junto à Porta interdimensional, sem se aperceber de que Jack ficava um pouco para trás. O shek e o dragão entreolharam-se.

- Tens a certeza do que estás a fazer? - perguntou-lhe ele telepaticamente.

- Sim, tenho - respondeu Jack. - Embora não saiba muito bem de que lado estás. Achas que não percebi? Antes tinhas o poder de abrir a Porta interdimensional, mas foi-te arrebatado quando regressaste a Idhún com a Resistência. Recuperaste-o, e só a mesma pessoa que to tirou poderia ter-to devolvido. Ou talvez outra pessoa com o mesmo poder.

Christian inclinou a cabeça.

- Talvez - disse -, mas isso não tem nada a ver com Victoria.

- Acho bem, serpente. Acho bem.

Victoria ficou a olhar para eles, sem compreender bem o que se escondia por detrás daquela longa troca de olhares. De repente, deu-se conta de que ela e Christian estavam junto à Porta e que Jack tinha ficado para trás. E percebeu.

- Não! - gritou, e o uivo do vento acompanhou aquele grito.

Christian reagiu de imediato. Segurou-a pela cintura quando ela estavá prestes a sair disparada.

- Não, Jack, não! - reclamou Victoria, esperneando furiosamente.

- Até breve, Victoria - despediu-se ele.

Então deu meia-volta e virou-lhe as costas para se dirigir para a porta, sereno e seguro de si, com Domivat presa às costas, enquanto Victoria se debatia, desesperada, e o chamava pelo nome, e Christian a arrastava para a Porta interdimensional, de regresso a casa, os dois envoltos nas faíscas libertadas pelo corpo da rapariga, cheio de energia. Quando a brecha se fechou, levando com ela o unicórnio e o shek, Jack ficou sozinho na sala, enquanto ao longe os ventos anunciavam, com um silvo ensurdecedor, a chegada de um deus.

Victoria continuava a gritar o nome de Jack quando Christian a soltou. A jovem virou-se para todos os lados, angustiada, mas já era tarde. Um milhar de mundos separavam-na de Jack. Deixou-se cair de joelhos no chão, a tremer violentamente.

- Não pode ser - sussurrou. - Não pode ser.

Christian não disse nada. Limitou-se a ficar de pé junto dela, à espera... Até que Victoria ergueu a cabeça para olhar para ele.

- Leva-me de volta - pediu-lhe.

A resposta dele foi concisa e directa:

- Não.

- Tens de me levar de volta! Não posso deixá-lo ali, no meio de um tufão...!

- Isso irá matar-te, Victoria. Não posso deixar-te voltar.

Victoria levantou-se de rompante e pegou-lhe pelos braços, ansiosa.

- Vamos regressar só para o ir buscar! Só para o ir buscar e depois vamos embora!

Ele olhou para ela com ternura.

- Victoria, a. decisão de ficar foi dele. Se voltarmos e o trouxermos à força, nunca to perdoará, e tu sabes disso.

Victoria deixou cair os braços, desolada.

- Mas... porquê?

- Creio que tomou a sua decisão no preciso momento em que viu os efeitos de Yohavir. Sentiu-se na obrigação de fazer algo quanto a isso, suponho.

- E porque é que não mo disse? Porque é que me enganou?

- Porque, se soubesses o que lhe estava a passar pela cabeça, terias ficado com ele. E não podias fazê-lo, Victoria. Tu já tinhas tomado a tua decisão. E ele respeita-a, da mesma forma que tu tens de respeitar a dele. Victoria desviou o olhar.

- E se a minha decisão não for a correcta?

- Isso não tem importância. É a tua decisão e é isso que conta. Tu sentias que tinhas de regressar comigo, tal como Jack sentia que devia ficar. O porquê, não me perguntes. Sou um shek, portanto, inclino-me sempre para a opção mais sensata. Ele, em contrapartida, é um dragão, de modo que de vez em quando tem de fazer algo tremendamente nobre e estúpido. Está na sua natureza; não ligues a isso.

 

                 O SENHOR DOS VENTOS

Jack desceu rapidamente pela escada em caracol, tentando expulsar da sua mente a imagem de Christian e Victoria a desaparecerem através da Porta interdimensional.

Regressavam à Terra... a casa. O seu coração estremeceu de saudades e, por um instante, desejou dar meia-volta e ir embora com eles. Mas sentia-se em dívida para com algumas pessoas: Alexander e Shail, para começar; Qaydar, que os acolhera na sua torre; Kimara, que lhe salvara a vida uma vez. E, embora eles não fossem tão importantes para ele como Victoria e, de certa forma, como o shek que a tinha levado,-sentia-se responsável.

Além disso, não queria dar-se por vencido tão depressa. Tinha estado em Umadhun, Sheziss relatara-lhe a história daquele lugar e algo dentro de si rebelava-se perante a ideia de que Idhún, terra de belezas e de horrores, de lenda e de mistério, se visse reduzida a um mundo vazio, "horrivelmente feio e aborrecido", como dissera a shek. Tinha de haver alguma forma de travar aquilo. Tinha de haver.

Encontrou os pisos inferiores inundados de água, mas, a partir do quinto piso da torre, o chão estava apenas encharcado e as janelas estavam seladas por uma substância que parecia vidro, mas que não era. Jack recordou as janelas de Limbhad, que tanto lhe tinham chamado a atenção no dia da sua chegada. Estavam fechadas com um material cristalino que, no entanto, era tão elástico que não podia partir-se. Agora, as janelas da torre estavam seladas com o mesmo sistema. O vento e as ondas golpeavam-nas furiosamente e abaulavam-nas bastante, mas não conseguiam quebrá-las nem penetrar no interior.

Numa das divisões do quarto piso, a maior e a que estava mais seca, Jack encontrou o pessoal de serviço, todos os não-iniciados da torre, que se aninhavam uns junto aos outros, mortos de medo.

- Onde estão os feiticeiros?! - perguntou o rapaz aos gritos, para se fazer ouvir sobre o vendaval.

Todos se viraram para ele e, ao vê-lo, os seus rostos reflectiram um grande alívio e uma fé cega. "Acham que os vou salvar desta", compreendeu Jack, incomodado. "Unicamente por ser um dragão." Mas como explicar-lhes que nem sequer os dragões eram capazes de fazer milagres?

Levantou mais a voz para repetir a pergunta, já arrependido de ter ficado. Finalmente, alguém reagiu e respondeu que tinham ido à cave para reforçar as fundações da torre.

"As fundações", repetiu Jack para consigo, assaltado por uma horrível suspeita.

Correu até à parte mais baixa da torre e precipitou-se para as termas. Recordava perfeitamente que havia ali uma piscina de água natural que se enchia quando a maré subia. Mas, com aquele temporal, a piscina não era mais do que um buraco pelo qual podia entrar muito mais água do que aquele lugar podia comportar.

Contudo, quando lá chegou, verificou que os feiticeiros tinham selado a porta para as termas com um muro de pedra reforçado com magia. Jack imaginou como lhes devia ter custado abrir caminho através da cave inundada e perguntou-se como teriam conseguido levantar aquele muro e escoar a água. Abanou a cabeça e continuou a caminhar pelo corredor adiante, até que chegou a uma pequena escada. Desceu por ela.

Desembocou numa cave formada por uma série de galerias de pesados muros de pedra.

Os feiticeiros encontravam-se aí. A chapinhar no meio da lama que lhes chegava aos joelhos, trabalhavam com afinco, reforçando pilares, aplicando feitiços isolantes e renovando a magia que corria por entre as fendas da torre. Yber encarregava-se do tecto, ao qual chegava bastando levantar os seus poderosos braços. Das escadas, Jack passeou o olhar pela sala, à procura de algo que fazer.

Qaydar viu-o primeiro.

- Jack! Onde estavas? E Victoria?

- A salvo! - respondeu ele. - Posso ajudar?

- Aqui, não! No quarto piso estão os não-iniciados. Vai ter com eles e assegura-te de que não lhes acontece nada!

Jack cerrou os dentes, frustrado. "Não, nem pensar", disse para si. "Não deixei passar a oportunidade de regressar a casa para que agora me digam que não posso fazer nada."

- O tornado, Qaydar! - insistiu. - Não há maneira de o fazer parar?

- Tentámos um conjuro atmosférico, mas não funcionou! Provavelmente porque precisávamos de mais gente.

"Ou provavelmente porque nem cem arquifeiticeiros juntos conseguiriam travar um deus", pensou Jack, mas não o disse.

- E não podemos tentar desviá-lo?

- Desviá-lo? Como? - repetiu Qaydar, estupefacto.

- Tenho razões para pensar que não é um mero tornado. Creio que tem consciência e que, se nos vai passar por cima, é simplesmente porque não nos vê. Se conseguíssemos chamar a sua atenção, fazê lo ver que estamos aqui...

- Não temos tempo para fazer experiências, Jack - cortou Qaydar, exasperado. - Por favor, sobe para junto dos não-iniciados. Aqui não há nada que possas fazer.

Ferido no seu orgulho, Jack deu meia-volta e subiu novamente as escadas. Mas não ficou no quarto piso; regressou à sala da cúpula da torre, onde Christian e Victoria tinham desaparecido apenas uns momentos antes. Já não restava nada deles e a sala estava prestes a ter a mesma sorte: o telhado cónico da torre tinha sido arrancado pelo vendaval e uma chuva fina entrava pelo buraco aberto ao céu tempestuoso.

"Não deixei Victoria ir embora para ver um deus passar por cima de mim", disse para si mesmo. Observou o tornado, que se aproximara tanto que se mostrava muito maior e aterrador. "Poderás ignorar umas dezenas de sangues-quentes", disse-lhe, em silêncio. "Mas não podes ignorar um dragão."

Respirou fundo, fechou momentaneamente os olhos e de seguida transformou-se em dragão. Quando o fez, ergueu a cabeça para o céu turbulento. Tinha consciência de que os ventos o iriam empurrar e sacudir até ele perder o controlo, mas esperava que assim o deus reparasse neles. Impulsionou-se sobre as suas poderosas patas e levantou voo, abrindo ao máximo as suas grandes asas.

Foi pior do que imaginara. Mal abandonou o refúgio das paredes da torre, uma violenta rajada empurrou-o para atrás, com um golpe tão forte que o fez ficar sem respiração e o deixou ligeiramente aturdido. Bateu as asas, com todas as suas forças, e conseguiu manter-se estável. Então, lentamente, tentou avançar em direcção ao formidável furacão que se deslocava na sua direcção. Lutou contra o vento, que procurava derrubá-lo; lutou até à exaustão e, quando o tornado estava já quase sobre ele, apercebeu-se de que continuava precisamente sobre a torre: não tinha conseguido sair do sítio. Após um breve instante de pânico, disse a si mesmo que, se o que pretendia era afastar Yohavir da costa, definitivamente não estava a consegui-lo. Mas ainda havia a possibilidade de o deus parar ou, pelo menos, não continuar a avançar.

com as escassas forças que lhe restavam, Jack inspirou fundo, lançou a cabeça para trás e vomitou uma furiosa labareda às nuvens. Quando ficou sem fôlego, voltou a inspirar e a cuspir o seu fogo contra o vento, rezando para que o deus percebesse aquele sinal. E continuou a fazê-lo até que a sua poderosa chama não era mais do que uma faísca no meio do ciclone. Então, compreendeu, extenuado, que não havia mais nada a fazer. Nem sequer tinha forças para se manter no ar, pelo que a rajada de vento seguinte o levantou e arrastou como se fosse um boneco de palha. Aturdido, Jack perdeu a noção do tempo e do espaço, empurrado de um lado para o outro, como se fosse um brinquedo nas mãos dos elementos; até que, sem saber muito bem como, tudo em seu redor parou.

Jack abriu os olhos com esforço e encontrou-se, para sua surpresa, a flutuar no ar, girando lentamente sobre si mesmo. Procurou mover-se, mas isso quase o fez perder o equilíbrio, pelo que compreendeu que era melhor ficar quieto.

Todavia, não era nada simples permanecer imóvel naquela situação. Parecia que os ventos giravam à sua volta e que ele estava no centro do furacão, estável de momento, mas num equilíbrio precário. E isso não era o pior de tudo.

O pior era aquela sensação indescritível, que não se parecia com nada que alguma vez tivesse experimentado. Era um formigueiro em todas as suas escamas, como uma espécie de electricidade estática, que o aturdia, o maravilhava e aterrorizava ao mesmo tempo. Era a impressão, totalmente irracional, de ser um insecto minúsculo na palma da mão de um gigante, obrigado a ficar parado enquanto um imenso olho o observava com interesse.

Mas ali não havia palma nem olho. Não havia nada que pudesse ser visto ou tocado. Contudo, havia algo. A presença do deus enchia toda a sua consciência, embora a sua essência estivesse para lá dos seus sentidos. No meio do incomensurável pavor que enchia o coração do dragão que ousara atravessar-se no caminho de um titã, Jack apenas conseguiu pensar: "Viu-me."

O ar pareceu carregar-se ainda mais daquela estranha electricidade estática que percorria a sua pele como um milhão de formigas minúsculas. A tensão começou a subir de repente e Jack percebeu, horrorizado: "Está a aproximar-se de mim." Para quê? Para "o ver" melhor? Para comunicar com ele? Em qualquer caso, Jack soube de imediato que não queria de maneira nenhuma que Yohavir se aproximasse mais. Então, o terror inundou cada fibra do seu ser, o terror por algo que era tão ilimitado e poderoso que não queria olhá-lo de frente. Instintivamente revoltou-se, procurando escapar como um animalzinho acossado... e os ventos não conseguiram sustê-lo. com um rugido de pânico, Jack caiu no vazio, esperneando desesperadamente. Teve a sensação de que algumas rajadas de vento procuravam levantá-lo de novo, sem sucesso, e o que sentiu a seguir foi o golpe brutal que o seu corpo produziu ao cair ao mar.

Perdeu os sentidos quase instantaneamente.

- Depressa, que venha alguém! O dragão está com problemas!

Os feiticeiros voltaram-se para as escadas. Ali, muito alterado, encontrava-se um jovem que envergava as vestimentas da Igreja dos Três Sóis. A maior parte deles perguntou-se o que fazia um noviço dos Três Sóis na Torre de Kazlunn, mas alguém o reconheceu como o mensageiro que tinha chegado de Nanhai naquela mesma tarde, para entregar uma mensagem a Jack.

Qaydar era dos que não estavam ao corrente da presença do mensageiro em Kazlunn, mas não perdeu tempo com averiguações acerca da sua identidade.

- O que se passa com Jack? - exigiu saber.

- Saiu a voar em direcção ao olho do furacão, senhor Arquifeiticeiro!

- respondeu o rapaz, nervoso. - Vimos tudo pela janela! Acabámos de o ver a precipitar-se no mar!

Reinou um silêncio sepulcral, quebrado apenas pelo rugido da tempestade. Todos sabiam o que implicavam as palavras do mensageiro. Já era um suicídio lançar-se à água num dia sereno, dado que as poderosas marés que regiam os oceanos idhunitas arrojavam contra as falésias, com uma violência brutal, qualquer um que se banhasse nelas. Naquela noite, nem mesmo um dragão conseguiria vencer a força das águas.

- Façam alguma coisa, por todos os deuses! - insistiu o mensageiro. Vocês são ou não feiticeiros?

- vou contigo - disse Qaydar. - Não sei como diabo vou tirar o rapaz dali, mas vou tentar.

Todavia, uma mão húmida deteve-o antes que conseguisse dar um passo. Qaydar voltou-se.

- Dablu - murmurou o feiticeiro, ao reconhecer o único feiticeiro varu que vivia na torre. - O que é?

- Fica aqui, Arquifeiticeiro - disse o varu. - E salvaguarda a torre. Se alguém pode resgatar o dragão, esse alguém sou eu.

- Nem pensar, Dablu. Esta noite o mar é um perigo, mesmo para um varu.

- É a única coisa que podemos fazer; talvez consigas tirá-lo do mar com a tua magia, mas demorarás demasiado tempo a encontrá-lo, e nessa altura será tarde. Jack é o último dragão de Idhún: a sua vida vale mais do que a minha.

Qaydar abriu a boca para responder, mas não teve tempo, porque uma nova investida do vento fez estalar, de novo, as fundações da torre. Os feiticeiros lançaram exclamações de advertência; alguém disse que a sua magia estava a falhar, e o Arquifeiticeiro respirou fundo e assentiu, compreendendo que a sua gente precisava dele ali em baixo. - bom, tem cuidado, Dablu.

O varu não respondeu. Seguiu o jovem mensageiro pela escada acima. Quando ambos abandonaram a cave, os feiticeiros voltaram a concentrar-se na sua tarefa, embora os seus pensamentos estivessem com o dragão que tinha caído ao mar bravio e com o varu que ia arriscar a vida para o resgatar.

O feiticeiro e o noviço subiram até ao sexto piso, onde as janelas não haviam sido seladas pelos feiticeiros. O chão estava inundado. Dablu meneou a cabeça enquanto deslizava com rapidez sobre o chão molhado.

- Desce outra vez e diz-lhes que precisamos que alguém feche as janelas dos pisos superiores - indicou ao rapaz. - As ondas estão a bater cada vez mais alto.

- Mas, se selarem todas as janelas, como irás regressar?

- Não te preocupes com isso. Anda, vai e volta depois com os outros não-iniciados. Sou um varu, estarei bem na água.

Após uma breve hesitação, o noviço assentiu e deu meia-volta, deixando-o sozinho.

Dablu aproximou-se da janela, colado à parede para que o vento não o fizesse perder o equilíbrio. Quando alcançou a abertura mais próxima, despiu a túnica de feiticeiro, que estava ensopada, e rebuscou nos bolsos até encontrar as correias que todos os varu utilizavam quando se deslocavam na água. Como precisavam dos braços e pernas para nadar, qualquer coisa que quisessem transportar com eles devia ir presa às suas costas, por isso as correias eram tão necessárias para eles como os sapatos para os humanos que caminhavam sobre o chão. Dablu ajustou-as ao corpo, sorrindo no seu íntimo, como de cada vez que o fazia. Tinha muito orgulho de ser um feiticeiro e vivia na torre, servindo a Ordem Mágica, voluntariamente; mas todos os varu, mesmo aqueles que viviam há muitos anos entre as raças terrestres, sentiam falta do mar.

Uma vez pronto, trepou ao parapeito da janela, segurando-se com força para não ser arrastado pelo furioso vendaval, e olhou para baixo.

A vista era assustadora. À altura da torre havia que acrescentar uma impressionante falésia, aos pés da qual as ondas batiam furiosamente contra rochas que pareciam minúsculas dali, mas que, Dablu sabia-o muito bem, na realidade eram enormes. Um pouco mais adiante, no horizonte, uma gigantesca onda preparava-se para rebentar contra a costa. Dablu calculou que seria suficientemente alta e, ainda bem seguro ao parapeito, aguardou.

Quando a onda chocou contra a falésia, a sua crista quase alcançou o sétimo piso da torre. Dablu não se amedrontou diante da violenta muralha de água que ocupou o seu campo de visão por instantes. Segurou-se com força e colou-se à parede, resistindo à investida; e, quando as águas se retiraram novamente, soltou-se e deixou-se levar por elas.

Momentos mais tarde, lutava contra as poderosas correntes de água que sacudiam o fundo do mar. Como todos os varu, podia respirar no elemento líquido, pelo que não tinha receio de se afogar; no entanto, as ondas podiam levá-lo a embater contra o quebra-mar, se não fosse capaz de lhes resistir.

Sabia que, mais abaixo, o mar devia estar calmo, porque o que o agitava era o vento e não um movimento sísmico proveniente do leito marinho. Portanto, a primeira coisa que fez foi descer tanto quanto pôde, até águas mais tranquilas.

Aí, lançou um sinal.

Como muitas criaturas marinhas, os varu tinham a capacidade de emitir ultra-sons que os orientavam na água. Dablu sabia que a tempestade toldaria os seus sentidos

subaquáticos, mas esperava que o corpo de um dragão, suficientemente grande para ser detectado com relativa facilidade, não lhe passasse despercebido.

Quando o sinal regressou, criando na sua mente um mapa da zona, Dablu franziu o sobrolho, preocupado. Não havia nem rasto do dragão. Porém, havia um corpo à deriva: um corpo que, pela sua forma e tamanho, devia ser humano ou semelhante. Também era possível que se tratasse do tronco de uma árvore arrancada pelo vendaval, mas o varu não podia arriscar-se a ignorá-lo. Impulsionou-se com todas as suas forças naquela direcção.

Nadando sempre pela parte mais profunda, Dablu chegou por fim ao lugar onde estava o corpo. Uma nova onda de ultra-sons permitiu-lhe localizá-lo com maior precisão e identificá-lo, sem margem para dúvidas, como um corpo humano. Impulsionou-se para cima e viu-o um pouco mais adiante, arrastado pelas correntes submarinas.

Alcançou-o em duas braçadas e, ao segurá-lo entre os seus longos braços, reconheceu-o imediatamente: era Jack.

Dablu não perdeu tempo. Pousou os seus lábios sobre os dele e começou a insuflar-lhe ar ininterruptamente, filtrado pelas guelras que todos os varu possuíam nos dois lados da cabeça. Por fim, o jovem tossiu debaixo de água e abriu a boca para respirar, mas Dablu não lho permitiu. Ainda a fazer-lhe respiração boca a boca, susteve-o quieto debaixo de água até que ele recuperou a consciência e olhou para ele, assustado e desorientado.

- Aguenta a respiração - disse o varu. - vou tirar-te daqui.

Jack assentiu debilmente. Dablu carregou-o às costas e atou-o ao seu corpo com as correias. Jack limitou-se a tombar a cabeça sobre as costas do varu e a deixar-se levar.

Tinha sido Yber o encarregado de subir para selar as janelas dos pisos superiores, pela simples razão de que, como era o mais pesado, o vento não podia arrastá-lo. Mas era difícil fazê-lo quando a água não parava de o atingir. Esforçando-se por não perder a concentração, o gigante foi fechando, uma a uma, as janelas das salas exteriores. No entanto, quando ia aplicar o feitiço de fecho na última das janelas do sexto piso, sentiu uma débil chamada na sua mente.

Franziu o sobrolho e abanou a cabeça. De todas as raças de Idhún, os gigantes eram provavelmente os menos sensíveis a estímulos telepáticos, assim, o que para um varu, um shek ou até um szish teria sido um potentíssimo grito de socorro, para ele não foi mais do que um ténue sussurro num recanto da sua consciência.

Mas a chamada repetiu-se e Yber captou-a desta vez com maior clareza. Intrigado, assomou a cabeça pétrea à janela e olhou em redor.

Então, viu Dablu, o varu, colado à parede húmida da torre junto à janela, a sete pisos de altura, com Jack agarrado às costas, ambos suspensos sobre a impressionante falésia.

Quando Jack acordou, estava ensopado e tremia de frio. À sua volta, as pessoas falavam baixinho, com excepção de uma voz que dava ordens sem parar:

- Acendam uma fogueira e tragam uma manta! Chamem um curandeiro e, por todos os deuses, deixem-nos em paz!

A tiritar, Jack abriu os olhos e olhou em volta, desorientado. Encontrava-se no átrio principal da Torre de Kazlunn, deitado no chão sobre um charco de água. Ao seu lado, também ensopado e visivelmente exausto, encontrava-se o feiticeiro varu. E os restantes, feiticeiros e não-iniciados, tinham formado um círculo à volta deles. Qaydar tentava afastá-los para que Jack e o varu tivessem um pouco mais de espaço.

- O que aconteceu? - conseguiu dizer Jack, num sussurro. Alguém lhe colocou uma manta sobre os ombros. Qaydar inclinou-se

junto dele e olhou-o nos olhos.

- Estás louco, Jack.

Então Jack recordou tudo de repente. Arregalou os olhos e tentou soerguer-se, mas estava tão exausto que não conseguiu.

- Yohavir! - exclamou, com uma nota de pânico na sua voz. - Onde está? Para onde foi?

O Arquifeiticeiro deixou cair uma mão sobre o seu ombro e Jack sentiu-se imediatamente mais calmo, como se o tivessem sedado. Ainda conseguiu dizer antes de cair adormecido outra vez:

- Tão grande...

- Por um incrível golpe de sorte, o ciclone não chegou a passar por cima da torre. Parou no mar e de seguida dirigiu-se para sul. Se não se desviou, provavelmente alcançou terra perto do monte Lunn.

- com todo o respeito, senhor, não creio que tenha sido um golpe de sorte. Nós vimos como Yandrak levantou voo e mergulhou mesmo no coração do tornado para o enfrentar. O tornado parou logo de seguida e depois mudou de direcção.

Ouviram-se murmúrios carregados de um temor reverencial. Jack abriu os olhos, pouco a pouco.

Encontrava-se num cadeirão junto à lareira, envolto numa manta quente, num canto de uma das salas de reuniões da torre. Olhou à volta, desorientado, e viu que Qaydar

e os outros também se encontravam ali. Pareciam extenuados, mas também bastante mais relaxados do que da última vez que os tinha visto, pelo que deduziu que o perigo já tinha passado. Abanou a cabeça para despertar um pouco mais e então um rosto azulado apareceu diante do seu: um rosto de pele de anfíbio e enormes olhos aquáticos.

- Oíá - sorriu o varu. - Sentes-te melhor?

- Salvaste-me a vida - recordou Jack, ainda um pouco aturdido. Muito obrigado...

Deteve-se e olhou para ele atrapalhado, quando se apercebeu de que, embora o conhecesse de vista, não sabia o seu nome.

- Dablu - ajudou-o ele.

- Dablu - repetiu Jack. - Não me vou esquecer - prometeu-lhe. Ele encolheu os ombros.

- Não tem importância. Não tem nada de mais um varu tirar um pele-seca da água. Fazemo-lo constantemente.

- Pele-seca? - repetiu Jack, quase a rir-se.

- É assim que chamamos aos que vivem em terra firme.

- Jack - chamou-o a voz de Qaydar.

O jovem voltou-se. Pelos vistos o Arquifeiticeiro tinha ordenado a todos que colaborassem no arranjo dos estragos, porque tinham ficado os três sozinhos na sala.

- Vejo que já estás consciente. Talvez possas explicar-me agora o que fazias ali fora, voando na direcção do furacão.

Jack reflectiu.

- Disse-te que não era um simples tornado - recordou. - A única coisa que fiz foi plantar-me à frente dele e fazer-lhe sinais. Suponho que se apercebeu de que estava lá e...

Interrompeu-se e o seu rosto cobriu-se com uma sombra de temor. Qaydar olhou para ele, preocupado.

- Pergunto-me - disse com suavidade - o que pode haver neste mundo que possa intimidar um dragão.

Jack deixou escapar uma gargalhada sarcástica.

- "Intimidar" não é a palavra que eu usaria, Qaydar, não sejas tão delicado. Estou morto de medo. E tu também estarias, se tivesses visto de perto o que esteve prestes a esmagar-nos hoje.

- Que aspecto tem... de perto?

- Não tem aspecto. Não é algo que uma pessoa possa apreciar com os sentidos, mas é como se fosse... sabes que está lá e que pode desfazer-te sem ter consciência disso. E que provavelmente não tinha intenção de ferir ninguém.

Qaydar permaneceu em silêncio durante bastante tempo.

- Quando Dablu te trouxe, pronunciaste o nome de Yohavir. Referias-te ao deus?

- Quem mais poderia ser? Há alguns meses, quando regressámos da luta contra Ashran na Torre de Drackwen, contei-vos quem ele era e o que a sua derrota implicou... a nível cósmico. Anunciei-vos que os deuses chegariam para destruir o Sétimo, mas ninguém acreditou em mim. E, se alguém acreditou, obviamente não imaginou que os Seis constituíssem uma ameaça. Bem, não sabemos que aspecto tem um deus. Imaginamo-los semelhantes a nós, mas... são-no realmente? Poderia o Arquifeiticeiro mais poderoso criar ou construir um mundo inteiro?

Qaydar negou com a cabeça.

- Que eu saiba, nenhum dos textos sagrados diz que Yohavir é um gigantesco ciclone.

- Porque não é. O ciclone é um efeito da sua presença. Conheces a lenda da origem de Kash-Tar? Kimara contou-nos quando estivemos lá. Diz-se que o deus Aldun desceu ao mundo no início dos tempos, para contemplar de perto a criação. O fogo gerado pela sua simples presença bastou para fazer arder Awinor por completo. A terra dos dragões regenerou, mas Kash-Tar é um deserto desde então.

Qaydar inclinou a cabeça.

- Conheço a lenda; os feéricos relatam-na frequentemente para não se esquecerem nunca do poder destrutivo do fogo e para recordarem que só a mãe Wina é capaz de fazer crescer a vida onde não há nada. Como no caso de Awinor, suponho.

Jack assentiu.

- Todos os deuses são energia, magia se preferires: uma acumulação de energia tal que altera de forma brutal o elemento no qual se move e que cada um deles considera como próprio. Até Victoria se apercebeu disso.

- Essa é uma das coisas que eu queria perguntar-te. Onde está Victoria? Procurámo-la por toda a torre.

- Está num lugar seguro, Qaydar. Aconteceu-lhe algo estranho quando Yohavir se aproximou. Foi como se se carregasse de energia, como se absorvesse mais magia do que era capaz de suportar. Tivemos medo de que isso a fizesse rebentar e...

-Tivemos? Tu e mais quem?

Jack susteve o seu olhar, sereno e resoluto.

- Eu e Kirtash.

- Permitiste que ela se fosse com essa serpente? - quase gritou Qaydar.

- Obrigueis a ir com ele. Se tivesse ficado, agora estaria morta. O que quase nos passou por cima era o deus Yohavir, mas recordo-te que ainda faltam manifestar-se mais outros cinco deuses; quatro, se as minhas fontes estiverem certas e for verdade que Karevan se deixou ficar por Nanhai. Não posso arriscar que Victoria se depare com outro deus e que o seu corpo não seja capaz de resistir.

- Desde que não se transforme em unicórnio nem use o báculo, ela não tem porque...

- Mas estava a fazê-lo, Qaydar, é o que estou a tentar dizer-te! A sua essência de unicórnio absorvia a energia mesmo sob a forma humana. Calcula a enorme quantidade de magia que devia haver no ambiente. Imagina algo capaz de afectar Victoria dessa maneira e depois diz-me que não é um deus.

Qaydar deixou-se cair no cadeirão, junto dele.

- Não posso crer - murmurou.

- Eu, sim. Sobretudo agora que o senti na pele.

- Que podemos fazer quanto a isso?

"Dar meia-volta e fugir a correr", pensou Jack, mas não o disse em voz alta.

- Para já, enviei Victoria para a Terra. Lá estará a salvo. Entretanto, creio que temos de tentar comunicar com eles, com os deuses. Não sei se conseguiremos algo em concreto, mas pode ser que pelo menos se apercebam de que estamos aqui. Talvez se retirem para um lugar não habitado para fazer... o que quer

que tenham vindo fazer. Ainda não sei bem como nem porquê, mas acredito que no Grande Oráculo há algo que pode dar-me uma pista sobre tudo isto, de modo que, assim que recuperar forças e tiver a certeza de que está tudo em ordem por aqui, partirei para Nanhai.

-E em relação a Yohavir? - perguntou então Dablu, que tinha estado calado durante toda a conversa, a ouvir.

Jack meneou a cabeça.

- Que eu saiba, não há nada que possamos fazer, salvo avisar toda a gente para que se evacuem as zonas habitadas.

- Mas como vamos fazê-lo? Não sabemos para onde se dirige. Jack afagou o queixo, pensativo.

- A questão é essa - murmurou. - Dirige-se para algum lugar em concreto.

- Se eu fosse um deus criador - interveio Dablu - e regressasse ao mundo depois de muitos milénios de ausência, iria aproximar-me das minhas criaturas para as visitar... não sei, para ver como estão.

- E arrasar a sua terra com um ciclone devastador? - perguntou Qaydar, perplexo. - Que tipo de deus criador faria isso?

- Um que não tivesse consciência de que a sua presença não pode ser tolerada pelos mortais - replicou Jack, com um estremecimento. - Quando estive lá em cima, não me pareceu que Yohavir fosse perverso ou tivesse má intenção. Simplesmente... ele estava ali e eu também.

É como quando damos um passeio pelo campo, sem termos consciência das centenas de ínfimas criaturas que esmagamos debaixo dos nossos pés.

- E como é que não se apercebem disso?

- Não se apercebem, ponto final. Ou talvez sim, mas no fundo não lhes interesse ou não lhes pareça grave, não sei. O que é óbvio é que Yohavir está em movimento e é provável que Dablu tenha razão: que queira dar uma vista de olhos às suas criaturas antes de enfrentar o Sétimo. Nesse caso...

Os três entreolharam-se.

- Celestia - disse Qaydar. Jack levantou-se de rompante.

- Celestia! Temos de os avisar. Temos de... - Interrompeu-se de repente. - Zaisei está lá - disse, recordando que há apenas dois dias tinha enviado uma mensagem a Rhyrr, confirmando às sacerdotisas que Victoria tinha acordado. - E a Venerável Gaedalu também - acrescentou, esperando que isso fizesse Qaydar reagir.

Fez. O Arquifeiticeiro ergueu-se.

- Há um globo de comunicação em Rhyrr - disse. - Se o feiticeiro que se encarregava da sua manutenção não descurou o seu trabalho, poderemos pôr-nos em contacto com eles antes do segundo amanhecer.

O poder estava ali, no seu interior. Assher só tinha de o sentir, a pulsar algures dentro de si, e concentrar-se para o tirar para fora.

Aparentemente, isso era fácil. Mas na hora da verdade era difícil controlá-lo. Muitas vezes, utilizava mais energia do que necessitava e ficava exausto. Em contrapartida, outras vezes reprimia-se tanto que a magia que saía dele era débil e frágil.

O facto de Isskez não ter muita paciência não facilitava as coisas.

Aquela era uma dessas tardes. Assher encontrava-se na cabana de Isskez, o seu mestre, a fazer os exercícios que ele lhe indicava. Agora tratava-se de congelar a água contida num recipiente. Assher já tinha tentado duas vezes, mas na primeira vez mal tinha conseguido arrefecê-la um pouco e, depois, tinha utilizado tanta magia que até congelara o chão à sua volta. Ele considerara-o um grande progresso, mas o seu mestre não tinha gostado.

- Bem, congelaste a água e tudo o resto... e agora? Agora serás incapaz de fazer qualquer outro feitiço, pelo que não teria servido para nada... a esta altura estarias morto, rapaz.

Descongelou a água da tigela e voltou a colocá-la no seu lugar.

- Agora terás de repetir o exercício, apesar de...

Não acabou a frase. Uma sombra subtil tinha parado à entrada da cabana e uma suave fragrância floral inundou o interior.

Isskez lançou-se de bruços diante dela. Assher ficou sem fôlego, como de cada vez que a via.

- Fora daqui - disse Gerde sem levantar a voz. - Deixa-me a sós com o rapaz.

O szish obedeceu. Assher permaneceu imóvel, a tremer, enquanto Gerde entrava na cabana e se sentava no chão, à sua frente. Sorriu-lhe.

- Parece que não tens progredido muito - disse-lhe.

Assher mal se apercebeu de que a fada estava a falar no idioma dos szish, em vez de utilizar o idhunaico comum. Utilizou a sua língua materna quase sem dar por isso.

- Não... Suplico o teu perdão, minha senhora. Sou muito desajeitado no uso da magia, mas prometo...

- Não é preciso desculpares-te - sorriu ela. - A culpa não é tua. Os feiticeiros szish não dominam o idhunaico arcano nem possuem um dialecto próprio adequado à magia. Por isso custa-lhes muito mais controlá-la.

Assher baixou a cabeça, sem saber o que dizer. Tinha corado, e o coração batia-lhe com tanta força que mal conseguia ouvir as palavras da fada.

Gerde tomou a mão do szish e ergueu-a. Assher arrepiou-se e começou a tremer.

- O que é? - perguntou ela, com suavidade.

- Estás quente - disse ele, e arrependeu-se imediatamente de ter dito algo tão estúpido.

- Sou uma fada - respondeu Gerde, docemente. - Uma sangue-quente, como vocês dizem. Porque não haveria de ser quente?

- Não queria dizer isso. É só que... não pensei que o contacto com uma pele quente pudesse ser tão agradável.

Aquilo ainda lhe soou pior. Assher amaldiçoou-se a si mesmo por não ter controlado a sua maldita língua bífida. O sorriso de Gerde rasgou-se.

- Às vezes odiamos o que é diferente de nós - disse em voz baixa. Mas muitas vezes tal deve-se ao facto de que temos medo do que não conhecemos, do que é diferente, porque, no fundo... tememos que nos agrade. Eu, por exemplo, sempre achei que odiava as serpentes... até que as vi sulcar os céus de Idhún. Da primeira vez que vi um shek senti horror e repulsa, no entanto, era tão belo... Também não pensei que pudesse ser agradável. Mas, sim, há algo diferente num coração frio. Algo que pode atrair uma sangue-quente como eu - acrescentou, sorrindo, perdida em lembranças passadas.

- Um coração frio... como o meu? - atreveu-se a perguntar Assher. Gerde respondeu com uma gargalhada melodiosa; contudo, não era um riso trocista, mas alegre.

- Quem sabe... porque não? Mas ainda és muito jovem. Não sofras; dentro de poucos anos serás um szish adulto, enquanto que eu continuarei a ter este mesmo aspecto. Talvez nessa altura as coisas possam ser diferentes entre nós, mas de momento não vim aqui à procura disso em ti.

Assher corou ainda mais e baixou a cabeça, envergonhado. Mas Gerde fê-lo erguer o olhar para cravar os seus olhos nos do rapaz.

- És o meu escolhido, Assher - disse-lhe, com doçura. - Isso quer dizer que tenho grandes planos para ti e que estarei perto de ti o tempo todo. Isso agrada-te?

- Sim - respondeu Assher com fervor. - Agrada-me imenso.

- Então, de agora em diante serei a tua mestra. Iremos avançar muito mais depressa se formulares os teus feitiços em idhunaico arcano.

Assher torceu o nariz.

- Tenho de aprender o idioma dos sangues-quentes?

Muitos szish aprendiam-no para poderem comunicar com os seus aliados sangues-quentes; tinham muitos entre os humanos, para não ir mais longe. Mas falavam um idhunaico com um forte sotaque, acentuando muito os sons sibilantes, e, como é óbvio, não lhes agradava ter de falar a língua dos seus inimigos.

- Eu sou uma feiticeira sangue-quente - replicou Gerde. - Mas também conheço o idioma e as artes mágicas dos sangues-frios. E asseguro-te que estão muito longe de alcançar o nosso nível.

Enquanto falava, acariciou o chão com a ponta do dedo. O gelo conjurado por Assher derreteu-se instantaneamente e no seu lugar começaram a crescer florzinhas azuis, de uma beleza simples mas inegável. Gerde traçou um círculo de flores em volta da tigela e de seguida tocou na superfície da água com a ponta da unha. Todo o líquido se congelou de imediato, mas a tigela permaneceu intacta.

- Vês? - disse a fada. - Isto, que qualquer aprendiz sangue-quente consegue fazer, custa anos aos feiticeiros szish. E não porque sejam mais desajeitados ou menos poderosos. É porque não utilizam a linguagem adequada. Nunca subestimes o poder das palavras, Assher.

- Mas... se não pronunciaste nenhuma fórmula mágica... - balbuciou ele.

- Mas pensei-a. À primeira vista, as palavras podem parecer mais poderosas se as verbalizares, mas está tudo relacionado. O pensamento está ligado à linguagem, assim, quanto melhor dominarmos uma língua, mais claros e complexos são também os nossos pensamentos. Eu consigo executar os meus feitiços mentalmente, porque, quando era uma aprendiza, passei horas a pronunciá-los em voz alta; e com essas palavras dei forma aos meus pensamentos. Os feiticeiros szish tentam saltar a parte das palavras, mas não aprendem mais depressa, antes pelo contrário.

- E os sheks? - perguntou Assher, fascinado. - Porque é que os seus pensamentos têm mais poder do que a nossa palavra falada?

- Porque eles são mestres nessa arte, minha jovem serpente. A sua mente é tão imensa e tão complexa que não precisam das palavras para se comunicarem. E os seus pensamentos, as suas ideias, não se forjam com o que ouvem ou com o que dizem, mas através do contacto com os pensamentos de outros sheks. Eles têm uma rede telepática. Nós, em contrapartida, só temos a linguagem.

- Já percebi - assentiu Assher.

- E por falar em sheks... - disse então Gerde de repente, com uma nota divertida na voz.

Não tinha acabado de falar quando alguém entrou na cabana. Assher disparou-lhe um olhar cheio de antipatia. Reconhecia-o: era o feiticeiro humano que estava sempre com Gerde.

- Minha senhora - disse o feiticeiro.

- Estou a ir - suspirou ela.

com um salto ágil, levantou-se e saiu da cabana atrás dele.

Assher ficou quieto por uns instantes, mas logo a seguir levantou-se também e espreitou para ver o que se passava.

Tinha chegado um shek ao acampamento szish. Pousara mesmo no centro, na praça, e tinha enrolado o seu corpo e fechado as asas para se sentir mais ou menos confortável naquele espaço tão estreito. Observava Gerde com os olhos semicerrados, mas ela tinha-se plantado diante dele e sustinha o seu olhar com serenidade. Assher perguntou-se como podia uma mulher sangue-quente suportar o olhar de um shek sem tremer de terror, e admirou-a ainda mais. Sentiu curiosidade por saber do que estariam a falar, mas a voz mental do shek não chegou até ele. A mensagem era só para Gerde.

- Fui enviado por Eissesh, o senhor dos sheks - disse a serpente. - Quer transmitir-te uma mensagem.

Gerde arqueou uma sobrancelha, mas não disse nada. O shek tinha captado os seus pensamentos acerca do título que Eissesh se outorgava e sibilou aborrecido com a ousadia da fada, mas não fez qualquer comentário a esse respeito.

- Às terras do Norte chegaram notícias de que estás a consagrar novos feiticeiros entre os szish - prosseguiu o shek. - Eissesh acredita que tens em teu poder o corno do último unicórnio.

- É verdade - pensou Gerde.

- Exige que vás imediatamente à sua presença e que lhe entregues o corno. Um objecto tão poderoso não deve estar nas mãos de uma feérica...

- Exige? - repetiu Gerde com perigosa tranquilidade. - A mim?

O shek ia replicar, mas, por algum motivo, não foi capaz. Os pensamentos de Gerde estavam impregnados de algo frio e obscuro, tão frio e obscuro que rivalizou com a própria essência da serpente e, por fim, a fez inclinar a cabeça, a tremer.

- Vais dizer o seguinte a Eissesh - disse Gerde em voz baixa. - Vais dizer-lhe que ele não é o rei dos sheks. Que a soberana dos sheks é Ziessel e que, em relação

ao corno e a como utilizá-lo, só falarei com ela, isto se alguma vez decidir falar com alguém. Percebeste?

O shek semicerrou os olhos. O olhar de Gerde intimidava-o e o seu semblante, sério e sereno ao mesmo tempo, inspirava-lhe um horror profundo e irracional.

- Grava bem esta conversa na tua memória - pensou Gerde. - com todos Os pormenores: o meu tom de voz, o meu olhar, as minhas palavras... tudo. E transmite-a a Eissesh... na íntegra. Se for esperto, saberá que não deve voltar a pedir-me explicações de nada do que eu fizer.

A serpente baixou a cabeça.

- Mas Ziessel... - começou. Não foi capaz de continuar.

- Ziessel não está - afirmou ela. - Espero poder confirmar o quanto antes qual é a sua situação e, se tiver morrido, nessa altura poderemos começar a pensar no seu sucessor. Mas não agora.

O shek tremia. Gerde sabia que a sua mente tentava encontrar uma explicação racional para o que estava a acontecer, para o facto de uma feiticeira sangue-quente o intimidar daquela maneira. Sorriu.

- Não te preocupes - disse-lhe. - Eissesh terá notícias minhas muito em breve.

Kimara contemplava o céu aborrecida e com algum desespero. O vento sacudia os ramos das árvores e arrastava as nuvens sobre as cúpulas da cidade celeste a uma velocidade vertiginosa, enchendo-lhe os ouvidos com um incómodo assobio. E não parecia que aquilo fosse melhorar.

Kimara não tinha medo. Em Kash-Tar enfrentara tempestades de areia muito mais violentas do que aquele vento furioso que açoitava Rhyrr. O único problema era que, enquanto o vento não acalmasse, a frota de dragões artificiais teria de permanecer inactiva.

Tinham chegado a Rhyrr na véspera; deviam ter partido naquela mesma manhã, com o primeiro amanhecer, mas o vento forte impedira que os dragões levantassem voo. De modo que ali estavam, à espera.

A jovem tinha estado pela primeira vez em Rhyrr há quase um ano, quando viajara de Kash-Tar até Nurgon para se encontrar com Alexander, a pedido de Jack. No entanto, na altura não tivera tempo para visitar a cidade, pelo que aproveitou aquela manhã para dar uma volta; mas depressa se aborreceu. Os edifícios eram quase todos iguais, brancos e azulados, com cúpulas e suaves formas arredondadas. O que mais lhe despertou a atenção foram as altíssimas torres às quais os celestes costumavam subir para contemplar o firmamento, ou o que quer que fizessem lá em cima, mas não a deixaram subir. O vento soprava com demasiada força e era perigoso.

Agora estava ali sentada à janela, à espera. O presidente da câmara proporcionara alojamento a todos os pilotos e até encontrara um lugar onde guardar todos os dragões, debaixo da enorme cúpula de um antigo templo nos arredores da cidade. Kimara sabia que os seus companheiros tinham saído para percorrer a cidade, mas ainda não os conhecia o suficiente para se juntar a eles. Por enquanto, preferia estar sozinha, embora fosse tremendamente aborrecido.

Naquele momento, alguém bateu à porta com a suavidade e a delicadeza características dos celestes.

- Entre! - respondeu Kimara, soerguendo-se um pouco.

A porta abriu-se e um jovem celeste espreitou timidamente.

- És Kimara, a feiticeira?

Ela olhou para ele, surpreendida. Estava acostumada a que lhe chamassem "Kimara, a semi-yan" ou "Kimara, dos Novos Dragões".

- Suponho que sim - disse, com cautela. - Embora na realidade seja apenas uma aprendiza e...

- Mas possuis o dom da magia, não é? - Kimara assentiu. - Então não há tempo a perder. Foi o presidente da câmara quem me enviou. Precisamos da tua ajuda.

O globo de comunicação era uma grande esfera apoiada sobre um pedestal finamente lavrado. Parecia uma pérola gigantesca, de suaves tons cinzentos e matizados. De vez em quando, emitia uma leve luz avermelhada, pulsante, como uma chamada silenciosa.

- Activou-se esta manhã - disse Ba-Min, o presidente da câmara de Rhyrr, um celeste um pouco mais alto do que a maioria dos da sua raça e um pouco mais velho do que aparentava. -Está alguém a tentar entrar em contacto connosco, mas não lhe podemos responder; só um feiticeiro pode usar o globo e não nos resta nenhum na cidade.

Kimara olhou para ele, indecisa.

- Antes de mais, gostava de esclarecer que não sei como se utiliza isto

- confessou. - Sou feiticeira há pouquíssimo tempo.

- Eu sei. Ouvimos falar de ti. Dizem que és a primeira feiticeira consagrada por Lunnaris, o último unicórnio.

Kimara inclinou a cabeça. Na verdade, não gostava de falar do assunto. Não é que não apreciasse o que Victoria fizera por ela, mas por vezes tinha a impressão de que, sem querer, colocara nos seus ombros uma responsabilidade que ela não pedira.

- Mas isso não me torna especial. É melhor enviarem alguém a avisar Vankian, o outro feiticeiro do meu grupo. Decerto ele saberá o que fazer com isto.

- Já o fizemos, mas não o encontrámos. Entretanto, e caso ele não apareça, agradecia que tentasses, se fosse possível.

Kimara suspirou e aproximou a palma da mão do globo de comunicação. Os lampejos avermelhados tornaram-se mais intensos.

- Za-Kin costumava pousar as mãos sobre o globo - recordou o presidente da câmara. - Depois fechava os olhos e concentrava-se... talvez pronunciasse algumas palavras mágicas, não sei.

- E onde está Za-Kin agora? - perguntou Kimara. Ba-Min meneou a cabeça, pesaroso.

- Partiu de Rhyrr há dois anos e ainda não regressou. Nem sequer sabemos se está vivo.

Kimara suspirou de novo.

- Está bem, vou tentar.

Colocou as palmas das mãos sobre o globo de comunicação, como o presidente lhe tinha indicado. De seguida, fechou os olhos e procurou concentrar-se.

Foi muito mais fácil do que imaginara. Na sua mente materializou-se de repente a imagem de uma espécie de janela. Kimara calculou que teria de a abrir, pelo que pronunciou a palavra "abre-te" em idioma arcano... e a janela da sua mente abriu-se de repente, inundando-a de uma luz ofuscante. Kimara sufocou um grito e recuou, afastando as mãos do globo. Assim que abriu os olhos, a luz avermelhada do artefacto tinha-se tornado completamente estável e no centro do globo aparecia, nitidamente, a imagem de Qaydar, o Arquifeiticeiro.

- Mestre! - exclamou Kimara, surpreendida.

- Kimara? - disse Qaydar ao reconhecê-la. - O que fazes em Rhyrr?

- Vamos a caminho de Kash-Tar. O que se passa? O que é assim tão importante?

O rosto de Qaydar ensombrou-se.

- Têm de evacuar a cidade e procurar refugio nas montanhas. Passou algo por Kazlunn, algo tremendamente destrutivo, que se dirige agora para Celestia.

- Algo? - interveio Ba-Min, sério. - A que te referes, Arquifeiticeiro?

- Ba-Min - cumprimentou Qaydar. - Há muito tempo que não falávamos e lamento ser portador de tão más notícias. Não temos como confirmar a sua natureza, mas, seja o que for, gera à sua volta um género de furacão, de tufão, como lhe queiras chamar. Veio do mar e chegou a terra por Kazlunn. Quase arrancou a torre das fundações. Têm de se pôr a salvo e proteger a Venerável Gaedalu...

- A Venerável Gaedalu já não se encontra na cidade. Ela e as suas sacerdotisas partiram há uns dias em direcção a Gantadd.

- Então envia alguém a avisá-las, porque de qualquer modo acabará por alcançá-las.

- Talvez perto de Haai-Sil. Oh, não, os ninhos dos pássaros - recordou. - Achas que os haai poderiam resistir a esse... furacão que dizes que se aproxima?

Qaydar negou com a cabeça.

- Nem os ninhos dos pássaros nem a maioria das casas, presidente. Ouve o que te digo: não fiquem para ver o que acontece.

- Os dragões! - exclamou Kimara. - Não pudemos descolar hoje por causa do vento.

- Esse é o primeiro sinal! - exclamou de repente uma voz do outro lado do globo, e Kimara viu diante de si o rosto de Jack. - Isso quer dizer que tínhamos razão e que se dirige para Celestial

- Jack! - disse ela, encantada por o ver outra vez. - Mas o que é exactamente?

A expressão dele tornou-se extraordinariamente séria.

- Lembras-te do que te disse quando te foste embora? Que desatasses a correr se visses alguma coisa estranha e inexplicável, contra a qual não soubesses como lutar? Pois era a isto que me referia. Chegou a hora de dar meia-volta e correr, Kimara. O mais rápido que conseguires.

Antes de o primeiro dos sóis começar a desaparecer no horizonte, Kimara conseguiu localizar quase toda a sua gente e avisar que tinham de partir. Entretanto, a força do vento intensificara-se; já tinha derrubado algumas árvores e arrancado telhas em diferentes zonas da cidade. Nessa altura, todos sabiam que deviam abandonar as suas casas antes da manhã seguinte, por isso os celestes, receosos e hesitantes, embalavam as coisas que consideravam imprescindíveis enquanto se preparavam para fugir para as montanhas, onde as cavernas e os desfiladeiros os protegeriam da fúria do furacão. Também tinham enviado mensageiros a Kelesban, a cidade do bosque, o primeiro local de Celestia onde se sentiriam os efeitos da passagem de Yohavir e também o mais vulnerável, dado que poucas árvores resistiriam à violência do tornado.

- É uma loucura voar nestas condições - protestara uma das pilotos, abanando a cabeça com desaprovação, quando Kimara lhes expôs o plano.

- Mas não temos outra alternativa, porque ainda vai piorar impacientou-se a semi-yan. - A cúpula do refúgio não resistirá ao vento e os dragões ficarão expostos à intempérie. O furacão vai fazê-los em frangalhos.

- É assim tão grave?

Kimara não foi capaz de responder de imediato.

Depois de receber o aviso de Qaydar e Jack, subira a uma das torres de observação com o presidente da câmara e, juntos, olharam para noroeste.

E viram-no.

Depois disso, nenhum dos dois teve a menor dúvida de que tinham de partir o quanto antes.

- É muito, muito pior do que imaginas - murmurou a semi-yan, sombria.

Ninguém disse mais nada. Alheados nos seus pensamentos confusos, os pilotos dirigiram-se para o antigo templo onde guardavam os seus dragões. Chegar até eles foi uma proeza, dado que o vento era cada vez mais intenso e mal lhes permitia avançar. Quando alcançaram o templo, muitos suspiraram de alívio; mas os estalidos assustadores da estrutura do edifício, que sofria a cada embate do vento, voltaram a deixá-los apreensivos.

- Aos dragões! - exclamou Kimara. - Vamos embora antes que a cidade inteira voe.

Dispôs-se a correr para Ayakestra, mas alguém a deteve, agarrando -lhe no braço. Ao voltar-se, viu que se tratava de Vankian, o outro feiticeiro do grupo, que olhava para ela com gravidade.

- Rando não aparece - limitou-se a dizer. Kimara suspirou, aborrecida.

- Então teremos de ir sem ele. Sabes pilotar um dragão?

- Não, não sei. Assim, se quiseres partir sem Rando, terás também de deixar Ogadrak para trás.

Kimara deixou escapar uma imprecação. Sabia o quão valioso era cada dragão; sabia que devia lutar por cada um deles. Mas, por outro lado, se esperassem por Rando corriam o risco de perder a frota inteira.

- vou à procura dele. Volto antes de o terceiro sol se pôr, com ou sem ele. Esperem por mim até lá.

Lançou-se de novo nas ruas, varridas por um vendaval contra o qual era cada vez mais difícil lutar. A cidade celeste já se encontrava deserta, pelo que dificilmente encontrou alguém a quem pedir informações. Por sorte, Rando chamava muito a atenção. Era um homem imponente, alto e robusto, com uma barba adornada com tranças, ao estilo shur-ikaili, dado que corria algum sangue bárbaro pelas suas veias, como demonstravam as riscas pardas que tingiam a sua pele morena, de um tom demasiado suave, não obstante, para serem vistas ao longe. No entanto, o que mais sobressaía nele eram os seus olhos, um castanho e outro verde. Nem mesmo os ganti, mestiços de várias raças, tinham um olho de cada cor. Ninguém sabia porque é que os olhos de Rando apresentavam duas tonalidades diferentes e, embora isso lhe conferisse um ar inquietante e misterioso, o certo era que a sua atitude desfazia por completo aquele efeito: Rando era um homem directo, franco, barulhento e um pouco canalha.

"Não, definitivamente, ninguém que o tivesse visto conseguiria esquecê-lo", disse Kimara para si, exasperada.

Por fim encontrou-o numa taberna, exigindo ao taberneiro que lhe servisse mais bebida. O celeste pareceu bastante aliviado quando viu Kimara entrar pela porta.

- Finalmente! - exclamou. - Vens buscá-lo? Estou a tentar fechar, mas o teu amigo não se quer ir embora. Estão a evacuar a cidade...

- Por causa de um pouco de ar fresco! - replicou Rando, obviamente embriagado. - Será que vocês, celestes, têm medo de que o vento vos arraste, de tão fracos e leves que são?

- Deixa estar, Rando - cortou Kimara, envergonhada, enquanto o puxava para o levantar. - Nós também vamos. - Como o piloto parecia pouco disposto a ir-se embora, a jovem acrescentou: - E vamos levar Ogadrak. Vankian diz que está disposto a pilotá-lo, para sair daqui - mentiu.

- O quê? - rugiu Rando, levantando-se de rompante. - Nem pensar! Ninguém vai pôr as garras no meu dragão!

"Este é o espírito dos Novos Dragões", pensou Kimara, abatida. Enquanto o puxava para o tirar da taberna, perguntou-se, inquieta, como é que Rando tencionava pilotar o seu dragão naquele estado.

Depressa deixou de se preocupar, porque a primeira rajada de vento atingiu a cara de Rando com tanta violência que o acordou completamente.

- Eh! - gritou. - O que se passa aqui?

- Estamos a arriscar o pescoço por tua causa, cretino! - explodiu Kimara.

Rando olhou para ela com ar divertido, sem se sentir minimamente ofendido, e começou a andar pela rua adiante.

Não demoraram tanto a voltar como Kimara pensara, porque Rando avançava à sua frente e servia de protecção contra o vento. Chegaram ao refúgio quando já todos os pilotos estavam a pôr os seus dragões a trabalhar.

- Depressa, depressa! - apressou-os Vankian. - Temos de sair daqui! Antes de subir para o seu dragão, Kimara dirigiu um olhar severo a Rando.

- Se sairmos desta com vida, tu e eu vamos falar sobre isto... muito a sério.

Rando fez uma vénia trocista.

- Quando quiseres, minha linda.

Momentos depois, os vinte dragões, um após outro, saíam do templo e levantavam voo, desafiando o furacão, rumo a sul.

Para Kimara, foi a noite mais longa da sua vida.

O vento era tão forte que os arrastava para trás, como frágeis folhas secas, e depressa os dragões se encontraram a voar furiosamente contra a tempestade. Kimara empurrou as alavancas com desespero, mas um golpe de vento lançou-a para trás. Ayakestra capotou e deu duas voltas antes que a semi-yan conseguisse recuperar o controlo. Outro dragão passou a voar perto dela, arrastado pelo vento. Kimara viu-o dar voltas descontroladas numa espiral que o levava directamente a despenhar-se contra o chão. Lançou uma exclamação sufocada, mas procurou concentrar-se.

Outra rajada de vento fez Ayakestra estalar. Kimara fez bater as asas para se elevar um pouco mais. Após uma breve luta, a fêmea de dragão saiu da corrente de ar. A jovem respirou, aliviada, mas não baixou a guarda. Algo embateu contra o peito do dragão, e Kimara deixou escapar um grito de alarme; arregalou os olhos, aterrada, quando o vento arrastou o objecto junto a uma das janelas laterais.

Era um pedaço de asa de dragão.

Kimara inclinou-se para a frente e olhou pela janela dianteira, preocupada.

Diante dela voava um dos dragões maiores, um belo dragão branco a quem o seu dono tinha chamado Datagar, em honra de um dos grandes dragões míticos, que tinha ostentado esse nome. No entanto, faltava uma parte da sua asa direita; a mesma parte que tinha sido arrancada pelo vento e onde agora, perdida a ilusão mágica, se via parte da armação de madeira à qual faltava a lona que a tinha recoberto. Horrorizada, Kimara foi testemunha impotente da lenta destruição de Datagar. O vento foi-lhe arrancando pedaços diferentes, primeiro as asas, depois a cabeça... Quando uma rajada de vento mais forte arrebatou as peças do dorso, deixando a descoberto o corpo do piloto, Kimara soube que não sobreviveria. com os olhos inundados de lágrimas, viu como perdia o controlo e se precipitava no vazio, juntamente com os restos de Datagar.

Assim que o dragão branco caiu, um brutal golpe de vento fustigou Kimara e obrigou-a a agarrar-se aos comandos com todas as suas forças. Ouviu-se uma espécie de som de sucção; depois outro golpe, algo que se rasgava... Kimara atreveu-se a olhar pela escotilha lateral e verificou, sem fôlego, que acabava de perder metade de uma asa.

"Não é possível", disse para si. "Não posso morrer assim."

com um grito, puxou as alavancas e fez com que Ayakestra batesse as asas com força. O vento empurrou-a e sacudiu-a, mas ela não se rendeu. Continuou a lutar, agarrando os comandos até que lhe doessem os nós dos dedos, sem se importar que a fêmea de dragão voasse inclinada por lhe faltar metade da asa. Quando, por fim, o vento a cuspiu para a frente e a lançou para longe do vendaval, fazendo-a dar várias voltas sobre si mesma, Kimara segurou-se com força ao assento e rezou aos Seis para que aquilo tivesse finalmente terminado.

Momentos depois, nove dragões escapavam, maltratados, em direcção a Awinor, deixando para trás o tremendo vendaval.

Os restantes não sairiam de Celestia nunca mais.

 

               A MULHER DE TÓQUIO

- Jack está a salvo - sussurrou Victoria. - Está bem. Ergueu a mão, num gesto inconsciente, para acariciar o rosto de Jack que a Alma lhe mostrava. Mas deteve-se a meio caminho, deixando cair o braço com um suspiro.

- Não deves voltar a fazê-lo - opinou Christian. Victoria soube porquê.

Era-lhe insuportável a ideia de que tinha deixado Jack sozinho no meio do tufão provocado por Yohavir. Para a tranquilizar, Christian sugerira que pedissem à Alma que lhes mostrasse o que se passava em Idhún.

Victoria ainda não tivera tempo de assimilar que estavam outra vez em Limbhad e o que isso implicava. Tinha corrido para a biblioteca e cumprimentara novamente a Alma. No entanto, a consciência de Limbhad não parecia ter sentido saudades dela. Para ela, o tempo não tinha o mesmo significado que para os seres materiais.

Tinha-lhe mostrado o que queria ver. E Victoria testemunhara, com o coração apertado, a luta titânica dos habitantes da Torre de Kazlunn contra o temporal provocado pela presença de Yohavir. Vira como Jack enfrentava o deus cara a cara, e como caía ao mar turbulento. Observara-o desaparecer nas águas, sem esperança de salvação...

Isso foi o pior: achar que estava morto ou que estava prestes a morrer. Victoria gritara, angustiada, suplicara a Christian que lhe permitisse regressar... sem parar para raciocinar nem tendo em conta que, mesmo que voltasse a Idhún, não poderia fazer nada para resgatar Jack.

A intervenção de Dablu tinha-lhe parecido um pequeno milagre.

Agora continuava ali, sentada à frente da grande mesa da biblioteca de Limbhad, ainda sem conseguir acreditar, sem se atrever a afastar o olhar do rosto do jovem que, algures na Torre de Kazlunn, descansava das emoções vividas.

- Vai continuar a arriscar-se, sabes disso - prosseguiu Christian. - Se continuares pendente dele, vais sofrer mais.

- Eu sei - assentiu Victoria, desviando o olhar; lentamente, a imagem dissipou-se. - Mas não é por isso que não vou continuar a observá-lo.

Não quero espiá-lo. Sobretudo se ele não sabe que o faço. Não me parece correcto.

- No entanto, ficaste mais calma, agora que sabes que por enquanto está bem, não é?

Victoria sorriu e levantou-se, com algum esforço.

- É inevitável. Mas, como bem disseste, já tinha tomado a minha decisão. - Ergueu a cabeça para o fitar. - Também temia por ti.

Christian inclinou a cabeça e ficou a olhar para ela, com um sorriso.

- Já tinha reparado.

A jovem esperou que ele lhe desse mais pormenores, que lhe falasse desse perigo que ela pressentia e que ele parecia ter tão presente. Mas não o fez. Ainda a sorrir, Christian deu meia-volta e saiu da biblioteca.

Victoria dedicou os momentos seguintes a percorrer as divisões silenciosas de Limbhad, a habituar-se à ideia de que estava de volta. Entrou no que tinha sido o seu quarto e sorriu com nostalgia. Pensou, no entanto, que não se lembrava de que fosse tão pequeno.

Entrou depois no quarto de Jack e não conseguiu reprimir as lágrimas. Estava frio, escuro e vazio, mas era o lugar onde Jack tinha vivido durante algum tempo, antes de viajar para Idhún. Sentou-se em cima da cama, recordando que fora ali mesmo onde ela e Jack se tinham beijado pela primeira vez. Recostou-se, procurando talvez encontrar na almofada vestígios do calor de Jack, do seu cheiro. Depois de tudo o que tinham passado juntos, especialmente nos últimos dias, nas últimas noites, a ideia de estar longe dele parecia-lhe aterradora. com um suspiro, levantou-se por fim e continuou a percorrer a casa.

Mas tudo lhe recordava Jack.

A cozinha, onde se tinham visto pela primeira vez.

A sala de armas, onde Jack tinha aprendido a manejar a espada e passado inúmeras tardes a treinar com Alexander.

A biblioteca, onde tinham solucionado tantos mistérios.

Saiu para o terraço, aspirando o suave ar nocturno de Limbhad. Alegrava-se por estar novamente em casa, mas aquele lugar não era o mesmo: tão isolado, tão vazio.

- Passou muito tempo desde que fomos embora - disse a voz de Christian atrás dela, sobressaltando-a.

- Quanto tempo? - sussurrou Victoria. - Pareceu-me uma eternidade.

- Não tanto - sorriu o shek. - Calculo que entre um ano e meio e dois anos terrestres, embora não tenha a certeza. Seja como for, não demoraremos a descobrir.

- Não sei se quero realmente regressar a minha casa, agora que a minha avó morreu.

Christian encolheu os ombros.

- Então, fica aqui - sugeriu-lhe. - Não tardará muito a tornares isto habitável de novo.

- E tu? Não vais ficar? Christian negou com a cabeça.

- Tenho algumas coisas para fazer. Victoria olhou-o demoradamente.

- Então é verdade. Bem me parecia que não estavas a fugir assim sem mais nem menos. Não abandonaste Idhún simplesmente para escapar dos deuses.

- É um dos motivos, mas não o único. Também queria pôr-te a salvo. Na realidade, essa foi sempre a minha prioridade.

- Mas há algo mais.

- Algo que não tem a ver contigo, Victoria. E quanto menos souberes sobre isso, melhor.

Victoria não fez mais perguntas.

Christian abandonou Limbhad algum tempo depois. Victoria, em contrapartida, não tinha coragem para voltar a casa da avó, de modo que optou por ficar ali pelo menos de momento.

A casa continuaria fria e às escuras enquanto a magia de Limbhad não se renovasse. Victoria permaneceu algum tempo no seu quarto, na penumbra, a olhar para o Báculo de Ayshel, que continuava na sua bolsa. Ainda não se tinha atrevido a pegar nele.

Era verdade que conseguira transformar-se de novo em unicórnio. O que não tinha contado a ninguém, apesar de tudo, era que aquelas transformações a consumiam e já

não conseguia efectuá-las com tanta naturalidade. Perguntou-se quanto tempo demoraria o seu corno a crescer completamente. Talvez Jack tivesse razão e já pudesse utilizar o báculo como antes. Ou talvez não.

Por fim, levantou-se e saiu decidida do quarto, deixando o báculo onde estava. Subiu à biblioteca e pediu à Alma que a levasse a sua casa, a casa da sua avó.

Viu-se de imediato na mansão de Allegra. Victoria percorreu-a, divisão por divisão. Allegra deixara portas e janelas conscienciosamente fechadas, mas, de resto, estava tudo exactamente como quando partiram, sob a camada de pó e de silêncio que reinava nos corredores.

Então, algo quente e suave se esfregou contra as suas pernas, fazendo-a arrepiar-se. Ao olhar para baixo, Victoria viu uma gata de pêlo creme que ronronava, feliz por voltar a vê-la.

- És tu! - murmurou a rapariga. - Dama - acrescentou, ao lembrar-se subitamente do seu nome.

Inclinou-se para a afagar. O animal estava lustroso e bem cuidado, e Victoria tomou-o nos braços, ainda confusa.

- Tinha-me esquecido de ti - confessou-lhe. - Fugiste de casa há tanto tempo... Onde estiveste? E o que fazes aqui? Quem cuida de ti?

Ainda com a gata ao colo, Victoria percorreu o resto da casa, sonhando por um momento que tudo podia ser como antes, como sempre, que podia levar uma vida normal. Mas, quando entrou no seu antigo quarto, a ilusão desvaneceu-se.

Encontravam-se ali todas as suas coisas: os livros, os cadernos, os discos e a sua roupa, incluindo o uniforme do colégio, que continuava em cima da cadeira. As suas pantufas, tão confortáveis e quentes. Parecia mentira, mas sentira saudades de algo tão simples como aquelas pantufas.

E era tudo seu, mas, de alguma maneira, já não o era.

Victoria olhou para o seu quarto, sentindo-se estranha, perguntando-se o que era feito da rapariguinha que ali vivera, para onde fora e o que restava dela dentro de si, se é que restava alguma coisa.

- O que estou aqui a fazer? - perguntou-se em voz alta.

Tinha a sensação de estar a invadir o quarto de uma desconhecida. Observou-se ao espelho e não se surpreendeu ao ver que era ela, mas não era a mesma.

Ouviu-se um assobio vindo do jardim e Dama agitou-se nos seus braços. Victoria deixou-a ir, com o coração a bater com força. A gata correu elegantemente pelo corredor e depois pelas escadas abaixo.

Victoria seguiu-a em silêncio, colando-se à parede. Viu-a sair para o jardim, pela passagem da porta das traseiras, e aproximou-se da janela, fazendo por não ser vista do exterior.

- Olá, olá! - saudou uma voz masculina, uma voz que Victoria conhecia, mas que não conseguia situar. - Onde estavas, linda?

Victoria espreitou por detrás das cortinas e viu um homem no seu jardim a acariciar a gata, que ronronava enquanto se esfregava nas suas pernas. Custou-lhe um pouco identificá-lo, embora o conhecesse há muito.

Era Héctor, o jardineiro.

Sorriu para si mesma, comovida. Já não vivia ninguém na casa da avó, mas o jardim continuava bem cuidado como sempre. A jovem supôs que a avó deixara instruções a Héctor e a Nati, a criada, para que continuassem a cuidar da casa. "Para o caso de voltarmos", pensou. "Embora, no fundo, devesse saber que não iríamos voltar nunca mais."

Quanto tempo teria passado? Pela camada de pó que cobria os móveis, era evidente que Nati tinha deixado de lá ir. Em contrapartida, Héctor continuava a cuidar do jardim.

Do seu esconderijo por detrás das cortinas, Victoria viu como o jardineiro enchia uma tigela de comida para Dama. Certamente, o animal tinha regressado a casa há algum tempo. Devia estar num estado lastimável depois de ter andado perdida, mas Héctor decerto recolhera-a e cuidara dela desde então.

Pensou naquela casa tão vazia e no seu quarto, o quarto da adolescente que já não era; e compreendeu que não podia ficar ali.

Já não pertencia àquele lugar.

Fechou os olhos e, em silêncio, chamou a Alma para que a levasse novamente para Limbhad.

Pegou no báculo, que tinha ficado abandonado em cima da cama, e tirou-o da bolsa, segurando-o firmemente com a mão direita.

O báculo vibrou ligeiramente, mas logo estabilizou. A sua ponta brilhou por um instante na penumbra, com um brilho ofuscante, e depois ficou a emitir uma luz suave e uniforme, pronto para ser utilizado.

Victoria pousou-o, a tremer.

Não precisava de mais provas. Ela era um unicórnio, continuava a sê-lo, sê-lo-ia sempre. A sua vida na Terra não tinha sido mais do que uma fachada, um disfarce, uma mentira. Não só porque a sua avó não era a sua avó de verdade, coisa que ela sempre soubera, mas porque nem sequer era humana. Provavelmente, a mansão de Allegra era agora sua. Mas sentia que não podia nem devia regressar.

E, dado que não podia voltar a Idhún, pelo menos não enquanto estivesse debilitada e constituísse mais um fardo do que uma verdadeira ajuda, só havia um sítio para ela, um refúgio na fronteira entre dois mundos.

O báculo permitiu-lhe renovar a magia de Limbhad. Depressa voltaram a funcionar todas as luzes, a água corrente, o calor que emanava dos seus muros. Mas sob aquela luz artificial, a solidão e o abandono de Limbhad eram ainda mais evidentes.

Victoria arranjou as divisões que sabia que ia voltar a usar e a reorganizou um pouco as coisas que deixara para trás antes de partir para Idhún. Na noite eterna de Limbhad, as horas tornavam-se ainda mais longas e o tempo parecia parar. Quando acabou, estava cansada e faminta, mas não havia nada na despensa. Como sentia os olhos fechar-se, deitou-se na cama e adormeceu quase de seguida.

Quando acordou, muito depois, continuava a ser de noite, e Christian ainda não tinha voltado. Victoria suspirou, preocupada, e levou o anel aos lábios.

Voltou à mansão da avó pela última vez, para recolher algumas coisas. Encontrou algumas latas na cozinha; depois subiu ao seu quarto e revirou o armário à procura de roupa que ainda lhe servisse. Encheu uma mochila com o que encontrou e com outras coisas de que necessitava. Depois, regressou a Limbhad.

Christian reapareceu horas mais tarde. Victoria não sabia quanto tempo estivera fora, mas não lho perguntou.

O shek encontrou-a na biblioteca a ler um dos antigos volumes que ali se encontravam e percebeu logo do que estava à procura.

- Alguma novidade? - perguntou-lhe, sentando-se junto dela. A jovem negou com a cabeça.

- Limbhad foi uma casa de feiticeiros. Não me parece que estivessem interessados nos deuses.

- No entanto, pode ser que encontres aí alguma informação sobre a origem e a essência dos unicórnios - observou ele. - Algo que te possa ajudar.

Ela sorriu.

-Já tinha estudado os livros com essa intenção. Quando estava à procura de Lunnaris, lembras-te?

- Mas agora é diferente. Agora interpretas as coisas de outro modo. Porque agora sabes que Lunnaris és tu.

Victoria não disse nada. Christian deixou cair algo sobre a mesa, à sua frente.

- Toma - disse. - É de hoje.

Era um exemplar do New York Times. Victoria hesitou antes de olhar para a data, mas finalmente fê-lo.

- Tenho quase dezassete anos - disse, perplexa. - Quando me fui embora daqui, tinha acabado de fazer quinze.

Christian não disse nada. Victoria olhou para o jornal, pensativa.

- Foste a Nova Iorque? O shek assentiu.

- Eu também voltei a casa - sorriu. - E, como esteve vazia desde que me fui embora, precisava de um pouco de tempo para voltar a torná-la habitável.

Ela ergueu a cabeça, interessada.

- Não sabia que tinhas uma casa. Em Nova Iorque ou em qualquer outro lugar.

- Tenho um pequeno refugio, sim.

- Algo parecido com um castelo? - sorriu Victoria, recordando a fortaleza na Alemanha.

- Não, é bem mais discreto - respondeu Christian, retribuindo-lhe o sorriso. - Um castelo só é útil se tiveres de esconder um exército em algum lugar. Mas há bastante tempo que prefiro agir sozinho.

- E como fizeste para ter lá escondido um exército de homens-serpentes sem que ninguém desse por isso? - inquiriu Victoria com curiosidade.

Christian dirigiu-lhe um olhar demorado.

- Queres mesmo relembrar o passado? - perguntou-lhe com suavidade. Victoria entendeu porque é que dizia aquilo. O regresso a Limbhad e à casa da sua avó estava a trazer-lhe muitas lembranças da fase em que lutava ao lado da Resistência... e nem tudo eram recordações agradáveis, sobretudo as que se referiam a Christian. Aquele castelo na Alemanha, em concreto, tinha sido palco de momentos muito dramáticos na vida de Victoria.

- Não - concordou. - Não é agradável recordar o passado. É duro saber que o começo da nossa história juntos esteve marcado por sangue e dor.

Christian encolheu os ombros.

- Como as coisas eram, não podia ter sido de outra maneira.

- Eu sei. Mas juntaste-te à nossa causa, embora não fosse a tua recordou. - Para não teres de continuar a lutar contra mim. Para não teres de me matar.

- Na altura pareceu-me um bom motivo - sorriu Christian.

- Lutaste por mim num lado que não era o teu. - Ergueu a cabeça para o fitar, muito séria. - Creio que tenho o direito a fazer o mesmo por ti, não achas?

Christian semicerrou os olhos, surpreendido.

- Não vais afastar-me disto - prosseguiu ela. - Não depois de tudo o que arriscaste por mim. Se tens uma missão a cumprir, vou ajudar-te, desde que isso não implique prejudicar os que me são queridos. E, como me disseste que não tem nada a ver comigo, presumo que não é esse o caso. Não me importa para quem trabalhas; não me importa que sigas ordens de Gerde, ou do Sétimo, ou que ajas por tua conta. Só sei que, se não fizeres o que tens de fazer, vão magoar-te. E eu não vou permitir que me mantenhas à margem. Abandonei Jack à sua sorte para vir velar por ti, portanto o mínimo que podes fazer é dizer-me o que se está a passar.

Porque tu sabes que tenho direito a decidir por mim mesma e que naquela noite, há quase quatro anos, aceitei a mão que tu me estendias.

Christian sorriu e abanou a cabeça, e Victoria sentiu um prazer quente por dentro. Pelo menos uma vez, tinha-o deixado sem palavras.

- Está bem - disse ele por fim. - vou tentar explicar-to. Mas antes vamos observar a Terra... tal como é agora.

Victoria pediu à Alma que atendesse o desejo de Christian. A esfera apareceu de novo sobre a mesa e mostrou-lhes imagens do mundo ao qual acabavam de chegar. Victoria olhou para elas, aturdida. As coisas não tinham mudado muito na sua ausência. A Terra continuava a ser enorme, cheia de gente, de coisas, de fumo, de barulho. Tal como Christian a descrevera tempos antes, na letra de uma das suas canções.

- Move-se tudo tão depressa - murmurou a rapariga, impressionada.

- É algo de que nunca gostei neste mundo.

- Em contrapartida, é o que mais me agrada nele - respondeu Christian.

- Acho que me acostumei ao ritmo de vida de Idhún, porque tenho a sensação de que as coisas acontecem demasiado depressa aqui. Já me tinha esquecido disso.

Christian assentiu.

- Como vês, o mundo continua igual. É provável que algum país tenha mudado de regime, que tenha começado ou terminado uma guerra, que tenha morrido alguém importante. Mas, no seu todo, tudo continua como sempre. Sabes o que isso significa?

- Devia haver algo novo? - adivinhou Victoria.

- Há algo novo, diferente. Algo que pode modificar o rumo deste planeta, alterar completamente a existência de todas as espécies que habitam nele. Mas como acontece em todas as mudanças importantes, o processo é lento, e a maioria das pessoas não irá reparar até que esteja concluído. - Voltou-se para olhar para Victoria. - Vejo que Jack não te contou o que viu na noite do Triplo Plenilúnio.

- Não tenho a certeza se sei a que te referes.

- Conheces as normas da Porta interdimensional. Houve uma época, dizem, em que os nossos dois mundos estavam mais em contacto do que estão agora. Houve uma época em que qualquer um podia atravessar a Porta interdimensional. Mas esses dias acabaram.

- Eu sei - assentiu Victoria. - Nós, unicórnios, sheks e dragões, não podemos atravessar a Porta. Só os nossos espíritos o podem fazer. Por isso, quando enviaram Yandrak e Lunnaris através dela, os seus corpos desintegraram-se e os seus espíritos procuraram corpos humanos para reencarnarem neles. Por isso criaram-te a ti, um shek parcialmente humano, para que pudesses seguir-nos até à Terra.

- Selaram a Porta para que os sheks e os dragões não escapassem de Idhún, para que não fugissem ao seu destino. Além disso, os unicórnios não podiam levar a magia para outro lado... e, com isso, condenaram a Terra a tornar-se um mundo sem magia. Mas eles não queriam saber disso porque, afinal de contas, a Terra não era o seu mundo e os unicórnios não eram criaturas terrestres. Também não lhes importava que a Porta pudesse ser aberta por feiticeiros sangues-quentes, nem que eles conseguissem atravessá-la. Acima de tudo, eles não eram importantes. Em contrapartida, a nós proibiram-nos de atravessar de um lado para o outro; o castigo por não cumprir essa norma era a reencarnação, mas os teus feiticeiros não estavam ao corrente disto, e Yandrak e Lunnaris também não, porque eram demasiado pequenos. Mas nenhum dragão, nenhum unicórnio, nenhum shek... teria reencarnado num humano voluntariamente. Eles sabiam disso.

- Eles? Referes-te aos deuses?

- A quem mais havia de ser? Os deuses fecharam a Porta interdimensional às espécies superiores.

- Então, os deuses podiam abri-la de novo.

- Certo. Mas não o fariam, porque não lhes interessava. Apenas um deles desejava abri-la, pondo em contacto os dois mundos... contudo, enquanto estivesse encarnado num corpo mortal, não poderia fazê-lo.

- O Sétimo - adivinhou Victoria.

- O que Jack viu na noite do Triplo Plenilúnio foi um grupo de sheks a atravessar a Porta interdimensional. Guiava-os Ziessel, a nossa nova soberana.

- Foram para a Terra! - compreendeu Victoria. - Como é possível? Christian olhou para ela, muito sério.

- Quando matámos Ashran - explicou -, libertámos a essência do Sétimo, e aconteceram muitas coisas. Talvez não tenhas reparado, porque tinhas perdido os sentidos, mas a Torre de Drackwen desmoronou-se, assim, de repente. Como pudemos comprovar no caso de Yohavir, poucas coisas podem resistir à passagem de um deus.

Victoria desviou o olhar, inquieta.

- Foi dessa forma que conseguiu abrir a Porta aos sheks - disse.

- Sim. E neste preciso momento há um grupo de sheks ocultos algures na Terra. Não sabemos onde estão, nem quantos são, nem quem são, dado que também perdemos muitos durante a batalha de Awa. Também não sabemos se Ziessel sobreviveu à viagem, visto ter sido a primeira a passar, a que teve de "empurrar", por assim dizer. A minha missão consiste em averiguar tudo isto, uma vez que sou o que melhor conhece este mundo e posso movimentar-me nele mais discretamente do que qualquer shek.

Victoria estava há algum tempo a imaginar as elegantes e letais serpentes aladas a sobrevoar os céus terrestres e compreendeu porque é que Christian lhe tinha perguntado se tinha visto alguma coisa diferente no seu mundo natal.

- Mas há quanto tempo estão na Terra? Como é possível que ninguém os tenha visto, que tudo continue igual?

- Ninguém os viu, isso posso assegurar-te. Devem ter-se ocultado num lugar seguro, onde ninguém possa encontrá-los. Mas não suportarão ficar à margem num mundo povoado por humanos; ainda por cima por humanos particularmente destrutivos, que estão a deitar tudo a perder, devastando o seu próprio mundo como se fossem uma praga.

- Estás a insinuar que tentarão tomar o controlo do planeta?

- Sem dúvida. Porém, como já te disse, as grandes mudanças são lentas. Desde que chegaram, os sheks estão a observar este mundo, a estudá-lo, a aprender... e a mexer os cordelinhos. Quando chegar a hora, dentro de uns anos ou dentro de umas décadas, os sheks dominarão o mundo e ninguém achará isso estranho ou terrível. No fim de contas, por muito impiedosas que possam parecer algumas das suas decisões, acabarão por salvar o planeta da destruição humana.

- Pareces muito certo disso - murmurou Victoria, estremecendo. Christian meneou a cabeça.

- Não viste o teu mundo, Victoria. Não o viste com os olhos de um idhunita, com os olhos de um shek. Os humanos estão a acabar com toda a beleza que existe na Terra, estão a matar o planeta pouco a pouco. Mas são demasiado insensíveis e estúpidos para compreenderem isso e, quando o fazem, não lhe dão importância nenhuma.

Victoria permaneceu calada durante um momento, a reflectir. Depois disse:

- E tu vais colaborar com tudo isto? Foi isso que Gerde te pediu para fazer?

Christian encolheu os ombros.

- A única coisa que tenho de fazer é localizar o grupo de Ziessel e pô-lo de novo em contacto com Idhún. Isso não é nenhum problema para mim. De qualquer das formas, já tinha planeado voltar à Terra contigo, e também não tenho nada melhor para fazer.

- Mas gostas de tomar as tuas próprias decisões - assinalou Victoria. E odeias a ideia de ter de obedecer a Gerde.

- O que há entre mim e Gerde já é algo pessoal - respondeu Christian.

- Tenho de obedecer ao meu deus, tal como tu deves obedecer aos teus, e isso não é um problema para mim, salvo quando o que me ordena vai contra os meus próprios interesses... ou salvo se o meu deus tiver a personalidade de Gerde.

Victoria sorriu.

- E tu? - perguntou-lhe então Christian. - Ainda queres ajudar-me... Ou preferes manter-te à margem?

- Tu lutaste ao meu lado - disse Victoria. - E isso implicou a morte do teu pai, a derrota dos teus, o extermínio de centenas de sheks. Sei que finges não te importares, mas importas-te. Sentes-te culpado por isso.

" Diz-se que nós, unicórnios, somos neutros, mas isso não é totalmente verdade. ê que acontece, simplesmente, é que não tomamos partido de raças nem de lados, mas sim de pessoas. Por isso apaixonei-me por ti embora fosses um shek, por isso há feiticeiros entre os szish. E por isso vou acompanhar-te.

O shek sorriu ligeiramente.

As ruas de Tóquio eram uma orgia de luzes e sons, uma explosão de cores, de contrastes, de sensações. Mas Christian avançava entre a multidão calmo e seguro de si, como se tivesse nascido lá. Victoria caminhava ao seu lado, intimidada, e procurava não o perder de vista.

- O que estamos aqui a fazer? - perguntou-lhe, levantando a voz para se fazer ouvir acima do barulho do trânsito.

- O mar do Japão tem mais de três mil ilhas - respondeu Christian. Detectei um núcleo da rede telepática dos sheks em algumas delas, as mais frias, as que se agrupam à volta de Hocaido. Há milhares de sítios mais seguros e mais discretos no mundo para se esconderem, mas eles estão aqui, no Japão. E o mais curioso de tudo é que a rede estende-se até Tóquio.

- Mas estamos a falar da cidade mais povoada do planeta! - exclamou Victoria. - Como é possível que haja sheks aqui e que ninguém os tenha visto?

- Isso é o que tenho de averiguar.

Victoria suspirou. Atravessavam o distrito de Shibuya, o seu enorme centro comercial, e a rua estava cheia de jovens que iam ali passar a tarde. A rapariga olhou para Christian, inquieta, perguntando-se como fazia para não chamar a atenção num lugar como aquele, quando era tão evidente que não era japonês e que não tinha ido a Shibuya para se divertir. No entanto, ninguém reparava nele. O shek deslizava pelas ruas de Tóquio como uma sombra, como um fantasma.

- Dizes que detectaste a rede dos sheks - recordou Victoria. - Nesse caso, porque é que não te pões em contacto com eles por telepatia?

Christian não respondeu; Victoria não considerou aquilo um bom sinal. Deteve-o e obrigou-o a olhá-la nos olhos.

- Eu sei porquê - disse-lhe. - Para eles és um traidor, logo não irão receber-te de braços abertos. Na realidade, é um problema para ti cumprir as ordens de Gerde, pois estás a correr um grande risco... e ela sabia disso. Mas agora estás aqui, na Terra, onde ela não te pode alcançar. De modo que, diz-me... porque é que o fazes?

Christian sorriu.

- Normalmente não fazemos as coisas apenas por uma razão - foi a sua única resposta.

Encurralaram um transeunte numa ruela escura. Victoria observou, preocupada, como Christian olhava para ele nos olhos, longamente, explorando os seus conhecimentos, as suas lembranças. Quando o homem caiu ao chão, a tremer de puro terror, Christian deu meia-volta e afastou-se sem dizer palavra.

- Christian, o que foi que fizeste?

- Aprendi o seu idioma - respondeu o shek com indiferença. - Só a nível superficial, claro. Mas acho que servirá.

Passaram o resto do dia a dar voltas, de um lado para o outro, até Victoria já não sentir os pés. Tinha a sensação de que Christian procurava algo em concreto, mas não sabia onde o procurar.

- Estás cansada? - perguntou ele, quando o Sol já se punha sobre os telhados de Tóquio.

Victoria forçou-se a afastar os olhos de um grupo de colegiais que caminhavam à frente dela, a falar e a rir. Não há muito, também ela tinha usado uniforme. Mas nunca tinha sido como elas. Naquele momento invejou-as com toda a sua alma.

- Um pouco - respondeu -, mas posso aguentar mais um pouco.

- É provável que precisemos de vários dias para encontrar um sinal. Vários dias a dar voltas sem rumo pela cidade, quero dizer. Sei que pode ser frustrante e extenuante,

mas é a única maneira.

Victoria ergueu os olhos para ele.

- De que tipo de sinal estás a falar? Se me dissesses exactamente o que procuras, talvez pudesse ajudar-te.

Christian negou com a cabeça.

- Sabes como actua o instinto, não sabes? Passaste muito tempo com Jack: deves ter visto que ele detecta um shek quando o tem por perto. Bem, a nós acontece-nos algo parecido quando nos aproximamos de um da nossa espécie. É o que estou a tentar encontrar. Sei que há algo aqui perto, uma pista importante, porque os sheks de Hocaido comunicam com alguma coisa ou alguém que está aqui, algures no centro de Tóquio. Esperava que o instinto me ajudasse a localizá-lo facilmente, mas está a falhar-me, e isso é muito estranho. Se houvesse um shek por aqui, por esta altura já o teria encontrado.

- Isso quer dizer que provavelmente estamos à procura de outra coisa? Christian abanou a cabeça e cravou nela os seus olhos azuis, um olhar invulgarmente franco para alguém como ele.

- Quero dizer, Victoria, que não sei de que diabo andamos à procura.

Os dias seguintes decorreram de forma semelhante. Christian e Victoria passavam o dia a percorrer Tóquio, à procura de algo, um sinal, um indício, que os guiasse até aos sheks. E, embora aquela enorme cidade ao mesmo tempo assustasse e fascinasse Victoria, não houve tempo para fazer turismo. A jovem tinha a sensação de que se deixavam arrastar pela maré humana que inundava as principais artérias da cidade nas horas de ponta, mas o certo é que Christian nunca se deixava arrastar. Apesar de caminhar sem rumo fixo, todos os seus passos tinham uma precisão metódica e todos os seus movimentos, um propósito definido. Quando paravam em algum restaurante para comer sashimi, teppanyalá, soba ou qualquer um dos pratos típicos da cidade, para Victoria, que nunca tinha provado aquele tipo de comida, era uma experiência nova e diferente; mas Christian limitava-se a terminar a sua parte e a levantar-se quase de imediato. Para ele, parar para comer consistia exactamente nisso: parar para comer, satisfazer uma necessidade vital e ponto final. Depois, lançava-se de novo nas ruas, com a firmeza de um soldado, com a eficácia de um autómato.

Victoria não conseguia evitar olhar para ele e perguntar-se se fora sempre assim, quando procurava os idhunitas exilados por todo o globo. Nesse caso, não era de estranhar que chegasse sempre ao seu objectivo antes da Resistência. Nesses momentos, quando o via cravar os olhos de gelo na multidão procurando alguma coisa que provavelmente só ele poderia ver, Victoria recordava-o como ele era na altura, como Kirtash, o impiedoso assassino que ela odiara e temera, e apercebia-se de que ele não tinha mudado e de que a única diferença entre o passado e o presente era que agora o shek lutava ao seu lado e não contra ela. Só isso.

Contudo, uma tarde, as coisas mudaram.

Deambulavam pelo elegante bairro de Cinza, percorrendo as mesmas ruas para cima e para baixo, por alguma razão que Victoria não entendia. Apesar de não pararem para olhar para as montras dos luxuosos estabelecimentos que os contemplavam de ambos os lados da rua, Victoria tambem não sentia vontade de o fazer. Andava o dia todo, estava cansada e sedenta, e sentia que destoava tremendamente daquele lugar. Então, Christian estacou e Victoria quase chocou contra ele.

- O que...? - começou ela, mas não chegou a terminar a frase. Uma jovem acabava de sair de uma sumptuosa loja de preços exorbitantes. Vestia roupa sóbria, mas elegante e, ao mesmo tempo, delicadamente feminina. Movia-se com elegância natural e uma sensualidade insinuada. O seu cabelo negro, preso por cima da cabeça, caía sobre os ombros, tão suave como um véu de veludo.

Estavam à sua espera num carro junto à calçada, mas ela pareceu sentir o olhar de Christian, porque se voltou para eles e, no meio de uma rua apinhada de gente, fitou-os.

Victoria nunca esqueceria o olhar daqueles olhos rasgados, dois profundos espelhos repletos de mistérios, nem o semblante enigmático da sua expressão de esfinge. Havia algo nela, um magnetismo obscuro, que a perturbava e fascinava ao mesmo tempo.

Christian ficara petrificado ao vê-la. Victoria olhou para ela, preocupada, e descobriu que havia empalidecido.

- Christian - sussurrou.

O shek reagiu. Voltou-se bruscamente para ela e abraçou-a por trás, quase possessivamente, como se desejasse protegê-la de um perigo invisível. Victoria ficou surpreendida, porque ele não era muito dado ao contacto físico, muito menos em público. Christian sussurrou-lhe então ao ouvido:

- Não olhes para ela!

Victoria fechou os olhos e voltou a cabeça para apoiar a face no peito do shek. Subitamente, foi invadida por uma violenta sensação de tontura...

Quando tornou a abrir os olhos, Christian ainda a abraçava, mas já não estavam em Tóquio.

- Christian! O que aconteceu? O shek soltou-a.

- Tínhamos de ir embora dali. E Limbhad não me pareceu uma boa opção.

Victoria olhou à volta. Encontrava-se num apartamento pequeno e sóbrio, tão escassamente decorado que até pareceria demasiado frio e impessoal se não fosse pela janela, que se abria para uma vasta varanda, e um canto onde havia um sofá que aparentava ser razoavelmente confortável e que, além disso, estava à frente de uma lareira.

- Onde estamos? Christian tardou a responder.

- Em minha casa - disse finalmente.

Victoria sentiu o coração acelerar e observou o lugar com mais interesse. A sala era pequena e tinha a cozinha integrada nela. Esta também era pequena e estava demasiado limpa e ordenada, como se não fosse utilizada com frequência. Na parede do fundo havia duas portas.

- Anda - chamou-a então Christian. - Quero mostrar-te uma coisa.

Victoria seguiu-o até à varanda. Assomaram à balaustrada e contemplaram em silêncio a grande cidade que se estendia aos seus pés, cobrindo a pele da terra com o seu manto de luzes que desafiavam a mais escura das noites.

- Bem-vinda a Nova Iorque - sussurrou-lhe o shek ao ouvido. Victoria sorriu.

- Como me trouxeste para aqui? Estávamos na outra ponta do planeta.

- Usei um feitiço de teletransporte.

- Como? Nem mesmo os feiticeiros mais poderosos conseguem viajar tão longe.

- Eu também não. É só que este sítio, este andar, é o meu centro... ou, como diria um shek, o meu usshak. O meu coração.

- O teu coração?

- Nós, os sheks, chamamos assim ao nosso lar, para o designar de alguma maneira. Mas o nosso lar não é o sítio onde formamos uma família, onde nascemos nem onde crescemos. É uma espécie de santuário, um lugar que escolhemos e que é só nosso, para onde nos retiramos quando queremos estar sozinhos, quando precisamos de descansar ou de recuperar das nossas feridas. É o nosso refugio.

- Como um Limbhad só para ti - murmurou Victoria.

- Algo do género. Sabes que não posso utilizar a magia que possuo como deveria, porque o meu poder de shek interfere e sufoca-a. Mas neste caso é diferente. Este andar é o meu coração, mas também concentra o poder da minha mente. Não poderia usar o feitiço de teletransporte para ir a nenhum lugar... excepto para regressar a casa, porque este lugar atrai-me e a sua lembrança está tão cravada na minha mente que a magia é apenas um instrumento para que o meu verdadeiro poder regresse à sua fonte.

- Mas porque me trouxeste aqui? Foi por causa da mulher que vimos em Ginza?

- Estabeleceu um vínculo mental comigo, com um só olhar, Victoria. Não sei quem é nem como é possível que tenha feito algo assim, mas não me pareceu seguro regressar a Limbhad. Enquanto o vínculo permanecesse activo, ela podia seguir-nos até lá.

Victoria recordou como, há muito tempo, Alsan ralhara com Jack por espiar Christian através da Alma. "Kirtash poderia ter chegado até nós através da tua mente, e Limbhad teria deixado de ser um lugar seguro para a Resistência", dissera Shail. Pensou também em Yaren, em como Christian tinha criado um vínculo mental com ele depois de o olhar nos olhos, descobrindo assim o seu paradeiro.

- E não é perigoso teres vindo para cá? Se pode de facto encontrar-te, acabas de lhe mostrar o teu usshak, o teu santuário.

Christian sorriu.

- O usshak é algo sagrado para todos os sheks. Nenhum de nós entraria no usshak de outro shek, nem física nem mentalmente, sem ser convidado, nem sequer no de um inimigo; isso é tabu. Portanto, este é o lugar mais seguro do mundo neste momento.

Victoria estremeceu ao entender o que implicavam aquelas palavras.

- Estás a querer dizer que aquela mulher era... uma shek?

- Não sei o que era, só sei que, por um instante, senti... que podia ser. Não foi o seu aspecto, mas a sua mente que me alertou. A sua forma de olhar. Até mesmo...

- O instinto disse-to - concluiu Victoria em voz baixa. Christian abanou a cabeça.

- Mas não há mais ninguém como eu. Ninguém. Por isso, ela não pode ser uma shek.

- Isso é o que a lógica te diz. Mas o instinto contradiz a lógica.

- Seja como for, se ela era uma shek, não chegará até aqui, porque respeitará a minha casa. E, se não é, também não nos irá alcançar, dado que, como tu mesma disseste, estamos na outra ponta do planeta. compreendes agora porque te trouxe para aqui, porque me pareceu melhor do que regressar a Limbhad?

Victoria assentiu, sem insistir mais no assunto.

- De qualquer forma, obrigada - disse-lhe. - Obrigada por me convidares para o teu usshak.

Christian sorriu.

- A verdade é que és a única pessoa que entrou neste andar desde que vivo nele. À excepção de Gerde, que esteve aqui uma vez.

Victoria não fez qualquer comentário. Ficaram em silêncio por algum tempo, a contemplar as luzes da cidade, até que ela murmurou:

- Tenho um pouco de frio. vou para dentro, está bem?

Christian assentiu, sem olhar para ela. Parecia profundamente mergulhado nas suas reflexões, e Victoria não quis perturbá-lo. Voltou a entrar na casa.

Abriu uma das portas, à procura da casa de banho, mas encontrou um pequeno estúdio. Sorriu ao ver o teclado ao fundo da sala, o equipamento de gravação, a aparelhagem de música e toda a colecção de discos de Christian cuidadosamente ordenada. Mas também havia uma secretária com um computador e uma estante repleta de livros e de pastas. Victoria decidiu de imediato que não queria saber que tipo de informação estava ali, de modo que fechou a porta e abriu a contígua.

Mas também não era a casa de banho. Aquele quarto tinha uma cama, uma mesa-de-cabeceira, uma cadeira e um armário, mais nada. A cama não era particularmente grande nem parecia especialmente confortável. Era um quarto frio e austero, como o resto da casa.

Ao fundo havia outra porta, e Victoria supôs que essa sim seria a casa de banho. Mas não foi capaz de dar um passo para o interior do quarto.

- Aqui é que nunca entrou ninguém - disse de repente a voz de Christian atrás dela, sobressaltando-a. - Ninguém além de mim. Nem mesmo Gerde.

Victoria voltou-se para ele. O shek parecia um pouco tenso e olhava-a fixamente, com algum receio. A rapariga entendeu o quão difícil estava a ser para ele abrir-lhe as portas da sua casa, do seu refúgio... do seu coração. Não por se tratar dela, mas porque nunca o tinha feito antes. Não quis forçá-lo mais.

- Não te preocupes - murmurou. - Se tiver de passar cá a noite, durmo no sofá, senão regressarei a Limbhad. Está tudo bem, a sério.

Christian pareceu relaxar um pouco.

- Não - disse -, podes ficar. De facto... podes vir aqui quando quiseres, se te sentires sozinha. Embora Limbhad seja... mais acolhedor do que o meu apartamento, ao menos aqui é de dia de vez em quando e, além disso, não é tão grande. Assim, a partir de agora, quando quiseres vir, a Alma poderá trazer-te de Limbhad até aqui... porque já fazes parte deste lugar.

Victoria sorriu, emocionada.

- Obrigada, Christian. Mas a sério, não é preciso. Não quero invadir a tua privacidade.

- Terás de o fazer se quiseres ir à casa de banho - observou ele, com um sorriso.

Victoria não ficou em casa de Christian naquela noite, regressando a Limbhad enquanto o shek voltava a Tóquio paia investigar aquela misteriosa jovem do distrito de Ginza. Desta vez não permitiu que Victoria o acompanhasse, e, embora ela o compreendesse, no fundo inquietava-a o que Christian pudesse encontrar.

Um dia, ele voltou a Limbhad com um monte de papéis debaixo do braço.

- Encontrei-a - limitou-se a dizer.

Sentaram-se no sofá e Christian passou-lhe a informação que tinha obtido. Victoria não entendeu nada, dado que as folhas estavam em japonês; mas viu a fotografia da jovem a encabeçar a primeira delas. Observou-a com interesse. Não lhe pareceu tão misteriosa e fascinante na imagem como ao natural.

- Chama-se Shizuko Ishikawa - começou Christian. - Tem vinte e quatro anos e é a herdeira de uma poderosa família de empresários. Licenciou-se em Todai, a universidade mais prestigiada do país, e agora dirige os negócios do seu pai, que faleceu há uns meses. Na altura vivia na mansão que a sua família possui em Yokohama, mas mudou-se para um luxuoso apartamento no bairro de Takanawa, um dos mais caros de Tóquio.

- Alguma coisa que a relacione com os sheks ou com Idhún? Christian negou com a cabeça.

- A única coisa que considero estranha é ter mudado a orientação dos negócios familiares após a morte do seu pai. Entre as muitas empresas que os Ishikawas possuíam havia uma cadeia de cinemas e outra de hotéis; Shizuko Ishikawa vendeu-as para investir mais em investigação e novas tecnologias, sobretudo cibernética, informática e biotecnologia. A família Ishikawa tinha muitos interesses no mundo do lazer, pelo que se vê, mas Shizuko dá mais importância a outras coisas. Além disso, envolveu-se na política. Pode ser que seja uma opção pessoal e que não tenha nada a ver com a chegada dos sheks à Terra, mas...

- Estou a ver - assentiu Victoria. - Mas disseste que ela tem vinte e quatro anos, não foi? Há vinte e quatro anos os sheks ainda nem tinham invadido Idhún. Para ela ser meio-shek, teria de ter a nossa idade. Pelo menos, não devia ser mais velha do que tu.

Christian abanou a cabeça.

- A questão é que nada no decurso da sua vida indica que não seja humana.

- Mas é a chave que procuravas. Seja ou não uma shek, os outros sheks comunicam com ela, não é?

- Sim, e por isso sei que tenho de a investigar. O passo seguinte é abordar aqueles que lhe são mais próximos, que a conhecem pessoalmente. Antes de me aproximar mais, quero saber quem ou o que é. Preciso de saber quem estou a enfrentar.

Christian regressou a Tóquio naquela mesma noite e, desta vez, demorou muito mais a deixar-se ver. Depois de três dias sem ter notícias suas, Victoria, inquieta, experimentou pedir à Alma que a levasse até ao apartamento do shek em Nova Iorque; para sua surpresa, materializou-se lá sem problemas. Aquela era a prova de que Christian não se importava de a ter ali, no seu refúgio privado, uma vez que, nos tempos da Resistência, tinham procurado mil vezes localizá-lo através da Alma, e esta nunca lhes mostrara a imagem daquele lugar. Victoria perguntou-se como conseguia Christian manter a sua casa oculta à percepção da Alma e como havia feito para alterar a situação, permitindo-lhe, assim, chegar até ele.

O shek não estava em casa; Victoria não quis tocar em nada nem mexer nas suas coisas, pelo que se sentou à espera do seu regresso.

Christian chegou ao fim de algum tempo. Não pareceu surpreendido por a encontrar ali. Não fez qualquer comentário. Sentou-se ao seu lado e disse à laia de cumprimento:

- Não é ela, Victoria.

A jovem pestanejou, confusa.

- Do que estás a falar?

- De Shizuko Ishikawa. Explorei as memórias de pessoas que a conhecem, e todas elas sentem que mudou. Desde a morte do pai ou até antes. Aparentemente é a mesma Shizuko, mas há coisas nela... que não são como eram. Pensam que se tornou mais fria, mais distante. E há algo nela que intimida todos aqueles que a olham nos olhos. Há coisas que mudaram na sua forma de pensar e de agir. No entanto, os negócios da sua família correm muito melhor desde que ela está à frente deles.

- Se mudou tanto... como é que ninguém se interroga a esse respeito?

- perguntou Victoria, interessada.

- Não ligam. Acham que são sequelas.

- Sequelas de quê?

- Do acidente. Sim - confirmou Christian ao ver a expressão de Victoria. - Shizuko Ishikawa sofreu um grave acidente rodoviário há uns meses, um acidente que por pouco lhe custava a vida. Pelos vistos, quando acordou no hospital não se lembrava de nada. Não sabia quem era nem como tinha chegado ali. De facto, no início nem sequer conseguia falar e foi preciso voltar a ensiná-la a caminhar.

- E tudo isto foi apenas há uns meses? - inquiriu Victoria, surpreendida, recordando a elegante jovem que vira sair daquela loja, em Ginza.

- Uma recuperação muito rápida, não é? - observou o shek. Victoria ergueu a cabeça para olhar para ele.

- Em que estás a pensar?

- Tenho uma teoria - disse ele -, mas para já parece-me demasiado descabida. E, antes de voltar a estar cara a cara com essa mulher, teria de a confirmar. Basta-me dar uma vista de olhos à sua história clínica.

- Onde vais buscar toda esta informação, Christian? - perguntou Victoria, pasmada. - Como fazes para averiguar todas estas coisas?

Christian encolheu os ombros.

- É só uma questão de procurar nos sítios certos e de sondar as mentes certas.

- Estou a ver - murmurou Victoria.

Christian ficou a olhar para ela em silêncio. Depois, sem dizer palavra, levantou-se e dirigiu-se ao seu estúdio. Quando regressou à sala, trazia uma pasta nas mãos.

- Sabes o que é isto, Victoria? - perguntou-lhe em voz baixa. Victoria intuía o que seria. Olhou para ele, indecisa.

- Queres ver? - ofereceu-lhe Christian. Ela abanou a cabeça.

- Não sei se gostaria. Ainda não.

- Está bem - assentiu o shek. - vou deixá-la em cima da mesa do estúdio. Fica lá para quando quiseres dar-lhe uma vista de olhos... se é que queres.

A viagem seguinte de Christian a Tóquio durou muito mais. Era sempre noite em Limbhad, mas Victoria calculou que o shek já estava fora há quase seis dias. E, embora percebesse através do anel que ele não estava em perigo, não podia evitar sentir-se preocupada.

Tinha examinado metodicamente grande parte dos livros da biblioteca de Limbhad, mas não encontrou nada que lhe pudesse interessar e, com o passar dos dias, lia-os cada vez mais por alto.

Percorrer Limbhad era ainda pior, porque continuava a recordar-lhe Jack e a cada dia que passava sentia mais saudades dele.

Uma noite decidiu voltar ao apartamento de Christian em Nova Iorque. Encontrou-o novamente vazio, apesar de serem já duas da manhã. Acendeu a lareira para aquecer um pouco a casa, tirou uma manta do armário e recostou-se no sofá, disposta a esperar o que fosse preciso.

Devia ter adormecido, dado que acordou algum tempo depois, sobressaltada. O fogo da lareira tinha-se apagado há já algum tempo e sobre ela inclinava-se uma sombra que a olhava fixamente.

- Christian - sussurrou, enquanto os seus olhos se iam acostumando à penumbra. - O que se passa contigo? Estás bem?

- O que estás a fazer no sofá, Victoria? - perguntou ele por sua vez, em voz baixa. - Estarias mais confortável no quarto.

Ela negou veementemente.

- É o teu quarto. Já te disse que não te quero causar transtorno. O que se passa? - repetiu; tinha detectado um tom estranho na voz dele.

Christian deslizou a ponta dos dedos pelo rosto dela, acariciando-lhe a face, depois o cabelo e descendo até ao pescoço. Victoria ficou arrepiada.

- Não é nada - disse o shek, mas Victoria não ficou convencida. - Não te preocupes comigo.

- Viste-a, não foi? - adivinhou ela. - Já sabes quem é... o que é? Fez-se um breve e tenso silêncio entre os dois. Victoria aguardou, contendo a respiração.

- Sim, vi-a - respondeu Christian por fim. - E já sei quem é. E o que é. Pôs-se de pé.

- vou trazer-te outra manta - disse. - Se vais ficar aí, não quero que passes frio.

Victoria abriu a boca para dizer algo, mas finalmente optou por permanecer em silêncio. Christian voltou com a manta e tapou-a com suavidade. Depois entrou no seu quarto e fechou a porta atrás de si, silenciosamente.

Victoria tapou-se até ao queixo e aninhou-se no sofá, sentindo-se sozinha e perdida.

Nenhum dos dois conseguiu dormir naquela noite. Mas nenhum dos dois confessou ao outro os seus temores e dúvidas, nenhum dos dois procurou consolo no ser amado, apesar de só estarem separados por uma porta. A sombra de Shizuko Ishikawa, da distante e multifacetada Tóquio, interpunha-se entre eles como um muro intransponível.

 

             A MEMÓRIA DOS ORÁCULOS

Os gritos dos trabalhadores alertaram Shail de que alguma coisa estava a acontecer lá fora. Levantou os olhos dos documentos que estava a ler; Ymur, em contrapartida, não se mexeu, continuando embrenhado na leitura.

- vou ver o que se passa - disse o feiticeiro. O sacerdote respondeu-lhe com um grunhido de assentimento, sem chegar a levantar a cabeça.

Shail dirigiu-se ao átrio, onde se tinham juntado todos. Encontrou-os a olhar para o céu, soltando exclamações de surpresa e comentários maravilhados.

O jovem feiticeiro ergueu os olhos e sorriu ao avistar o elegante dragão dourado que se aproximava sobrevoando a linha da costa.

- É um dos dragões artificiais; vi-os a voar sobre Nurgon no dia da batalha - afirmou um dos trabalhadores, muito convicto do que estava a dizer.

Shail abanou a cabeça.

- Creio que não, amigo. Se não estou enganado, aquele dragão é verdadeiro: o único dragão de carne e osso que resta em Idhún.

Fitaram-no, incrédulos, mas aguardaram que o dragão pousasse em terra para fazer mais apreciações. Quando viram que pousava numa zona livre à frente da entrada do Oráculo, correram todos a vê-lo mais de perto. Contudo, ficaram a uma distância prudente, protegidos pelas enormes colunas do pórtico. Apenas Shail se adiantou, sorridente.

O dragão abanou a cabeça e fechou as asas. Parecia cansado, mas satisfeito por ter finalmente alcançado o seu destino. Dirigiu a Shail um olhar amistoso.

- Olá! - cumprimentou. - Fico contente por te ver. Lamento ter demorado tanto a chegar, tivemos problemas em Kazlunn. - Olhou com curiosidade para as pessoas que o observavam das colunas, sem se atreverem a aproximar mais. - O que se passa com eles? O que estão ali a fazer?

Shail riu com gosto.

- Têm medo de ti, Jack. Há que reconhecer que, como dragão, és bastante imponente.

Jack esticou o pescoço e abriu um pouco uma asa para a observar com um orgulho mal dissimulado.

- A sério? - Riu, por sua vez. - Bem, não é minha intenção assustar ninguém, portanto vou adoptar uma forma mais discreta.

Enquanto falava, foi-se metamorfoseando no jovem humano que Shail conhecia. O feiticeiro observou a transformação com interesse.

- Onde trazias a espada? - perguntou, intrigado, ao ver Domivat presa às costas de Jack.

O rapaz esboçou um largo sorriso.

- Quando me transformo, o meu corpo humano pura e simplesmente desaparece - explicou. - Incluindo a roupa e tudo o que estiver em contacto directo com ele. Na verdade, não descobri logo isso. No início, punha a espada de lado para me transformar em dragão e, depois, tinha de carregar com ela. Não sei explicar, mas é como se, pelo facto de ter... duas almas ou de ser duas entidades em simultâneo, no mesmo lugar, tivesse também direito a "guardar" o corpo que não utilizo nesse momento, como quem tem dois fatos e guarda num armário aquele que não está a usar.

- E para onde vão o teu corpo e a tua roupa quando és dragão? indagou Shail, mas Jack ergueu as mãos, impotente.

- Não mo perguntes, porque não faço a menor ideia. Nem sequer saberia dizer-te onde está agora o corpo de Yandrak. Só sei que, se o desejar, posso "chamá-lo", de onde quer que esteja, e trocar o meu corpo humano pelo seu.

- Há muitas coisas sobre as quais temos de falar - comentou o feiticeiro, ainda um tanto confuso. - Coisas que não tivemos ocasião de contar um ao outro quando estivemos na torre, porque estávamos mais preocupados com o estado de Victoria e com tudo o que tinha acontecido na noite do Triplo Plenilúnio.

- Querias partilhar comigo algumas informações - recordou Jack, ficando sério de repente. - Eu também tenho muito para te contar.

Shail assentiu.

- Então vamos para dentro. Há alguém que quer conhecer-te. Dirigiu-se então às colunas caídas do pórtico, mas estacou ao ver que Jack não o seguia. O jovem tinha ficado a olhar para ele, sem acreditar no que os seus olhos viam.

- O que se passa? - perguntou o feiticeiro, inquieto.

- Shail, estás a andar - balbuciou Jack, perplexo. - com as duas pernas. Como é possível?

Ele dirigiu-lhe um sorriso rasgado.

- Sim, é outra das coisas que queria contar-te. Se tudo correr bem, não tardarei a apresentar-te o responsável por isto.

Jack seguiu Shail até ao recinto do Oráculo e pôde ver com os seus próprios olhos o que estavam a fazer ali. Havia andaimes por todo o lado, bem como enormes reboques para o entulho. O primeiro passo para a reconstrução do edifício consistia em desimpedir a área, tarefa que parecia impossível à primeira vista, dado o tamanho dos enormes blocos de pedra que era preciso remover. Contudo, algumas dessas pedras estavam já nos reboques.

- Os gigantes estão a ajudar-nos - esclareceu Shail ao detectar o olhar do jovem.

Jack não fez comentários. Limitou-se a observar tudo com interesse, desde as casas improvisadas que se tinham preparado para os sacerdotes aos progressos atingidos: as colunas que se iam levantando novamente pouco a pouco, os muros que se iam erguendo para desenhar outra vez as diferentes divisões...

Shail guiou-o até um espaço mais reservado, onde havia um refugio que, evidentemente, existia há muito mais tempo. Tinha sido construído aproveitando parte de uma estrutura anterior, que não se desmoronara na totalidade. A entrada era enorme, pelo que Jack deduziu que era a casa de um gigante.

Entrou, um pouco inquieto. Até ao momento, o único gigante que conhecia era Yber, um dos feiticeiros da torre, e não se tratava de um gigante vulgar. Segundo lhe disseram, não era muito grande em comparação com outros membros da sua raça, além de ter um carácter bastante mais aberto do que a maioria dos habitantes de Nanhai. Uma coisa era ver um gigante longe da sua terra e outra, bem diferente, visitar a região da qual eles eram donos e senhores.

No entanto, a cena que viu surpreendeu-o.

Ymur, o sacerdote, era um gigante de certa envergadura, mais alto e mais largo de ombros do que Yber. Talvez por isso fosse um pouco estranho vê-lo encolhido sobre si mesmo, num canto junto à janela, por onde entrava mais luz, inclinado sobre um manuscrito que, obviamente, tinha sido escrito por e para gente mais pequena. Não obstante, o gigante aplicava-se à tarefa de ler aquele texto com verdadeira paixão, apesar do incómodo que era para ele. Nem sequer reparou neles até que Shail pigarreou para chamar a sua atenção.

- Ymur - cumprimentou. - Chegou Jack, também conhecido como Yandrak... o último dragão.

Ymur ergueu a cabeça e observou-os atentamente. O tom avermelhado dos seus olhos era um pouco apagado, como se a sua vista estivesse consumida de tanto decifrar livros antigos, mas Jack conseguiu detectar neles uma centelha de perspicácia.

- Yandrak, ha? - resmungou o gigante. - Confesso que esperava algo maior.

Jack não soube como reagir àquele comentário, mas Shaíl desatou a rir.

- Às vezes é maior. Mas em certas ocasiões é lhe mais prático ter o tamanho de um humano.

- Para determinadas coisas, sim, é - reconheceu Ymur com um suspiro, dando uma olhadela ao volume que estava a tentar ler.

- Ymur e eu estamos há vários dias a recolher informações nos velhos documentos do Oráculo - explicou Shail a Jack. - Procuramos elementos sobre os deuses e sobre o que aconteceu quando Ashran esteve aqui. Mas não estamos a conseguir nada de concreto.

- Se Deimar não se encontrasse naquele estado - acrescentou Ymur, meneando a cabeça -, tudo isto seria muito mais simples. Talvez ele se lembrasse de mais alguma coisa acerca do feiticeiro que esteve aqui há tanto tempo.

- Bem - disse Jack -, talvez o que eu tenho para vos contar lance um pouco mais de luz sobre todo este assunto.

- Agora não - cortou Ymur, voltando a sua enorme cabeça para a janela. - Os sóis estão a começar a pôr-se, por isso é melhor falarmos de tudo isso durante a ceia.

Jack, que estava faminto depois da viagem, não podia estar mais de acordo.

Pouco depois, os novos habitantes do Oráculo reuniam-se em torno de uma enorme fogueira sobre a qual se assavam pedaços de barjab, o enorme animal branco que constituía um autêntico manjar para os gigantes. Aparentemente, era uma noite como as outras, depois de um longo dia de trabalho. Os trabalhadores e os sacerdotes mais jovens e fortes, que colaboravam nas tarefas de limpeza, exibiam rostos cansados, mas satisfeitos. Comentavam como seria o Grande Oráculo quando o erguessem de novo.

Todavia, naquela noite as conversas pareciam vazias e os interlocutores mostravam-se distraídos e com pouca vontade de falar. O certo era que quase ninguém conseguia evitar olhar de soslaio para o canto onde Ymur, o gigante, e Shail, o feiticeiro humano, se tinham sentado com o recém-chegado, um rapaz que muitos tinham visto transformado em dragão, o lendário Yandrak, que enfrentara Ashran. Todos sentiam curiosidade em relação a ele, contudo, ninguém se atrevia a aproximar-se mais.

Se o tivessem feito, teriam escutado uma conversa bastante surpreendente... e, acima de tudo, inquietante.

Jack e Shail aproveitaram para se porem a par de todas as novidades. Shail contou mais pormenorizadamente ao jovem tudo o que tinha descoberto naqueles dias; falou-lhe acerca de Karevan, Alexander, Deimar e Ydeon, que lhe forjara uma perna nova. O dragão já tinha ouvido falar do fabricante de espadas, mas o que Shail lhe disse aumentou o seu interesse e vontade de o conhecer.

Por sua vez, Jack contou ao feiticeiro o que acontecera na Torre de Kazlunn durante a sua ausência, desde o despertar de Victoria à devastadora visita de Yohavir.

Ymur ouvia-os em silêncio, tão quieto que durante algum tempo se esqueceram de que estava ali; de facto, qualquer um poderia tê-lo confundido com mais uma das pedras do Oráculo.

- Conheci esse jovem de quem estão a falar - pronunciou de repente, sobressaltando-os aos dois. - Kirtash. Foi ele que disse que os fenómenos sísmicos da cordilheira se deviam a Karevan; e agora, se bem entendi, afirma que o sétimo deus encarnou numa feiticeira feérica. Ou está mais louco do que Deimar ou então gosta de ser irreverente. Além disso, pelo que ouvi, esse tal Kirtash é filho do feiticeiro blasfemo que esteve no Oráculo há uns tempos. Deve ser coisa de família.

Jack sorriu, mas Shail abanou a cabeça.

- Mais ninguém viu Gerde viva - afirmou. - Sabemos que morreu porque Kirtash diz que a matou, e sabemos que está viva porque ele diz que a viu e que agora é a sétima deusa. Como sabemos que não está a mentir?

- Conheço Kirtash há já algum tempo - respondeu Jack. - Posso dizer muitas coisas dele, e nem todas elas boas, mas não tem por hábito mentir, muito menos quando se trata de assuntos sérios.

- No entanto, a sua versão dos acontecimentos é inacreditável. E graças a ela, conseguiu levar Victoria consigo para a Terra. Não sei...

- Victoria estará a salvo na Terra. Lá tem a possibilidade de se refugiar em Limbhad, e recordo-te que, se Kirtash tiver intenção de a magoar, a Alma não o deixará entrar.

Suspirou para consigo ao pensar em Victoria. Sentia imensas saudades dela e, uma vez mais, lamentou não ter atravessado a Porta com eles. Afastou aqueles pensamentos da sua mente. "É isto que devo fazer", recordou a si mesmo.

Shail ficou pensativo.

- Nisso tens razão - admitiu. - Não sabes quantas vezes me arrependi de vos ter obrigado a regressar a Idhún. Embora na altura me parecesse um lugar pequeno e limitado, o certo é que nunca conheci um refugio tão seguro como Limbhad.

Sorriu com nostalgia. Jack assentiu, sorrindo por sua vez.

- Estás a ver. E eu que o achava aborrecido... agora morro de vontade de regressar.

- Acreditas, então, em toda esta história de deuses e reencarnações? perguntou Ymur, retomando a conversa.

- Não sei o que pensar - disse Jack. - Por um lado vi Ashran: sei o que era, porque o enfrentei, portanto não me é estranha a ideia de que o sétimo deus tenha encontrado outro corpo mortal para se ocultar. Por outro, vi o que arrasou as costas de Kazlunn há uns dias e, se de facto aquilo é um deus, não consigo explicar como é que algo assim pode caber dentro de um corpo tão pequeno. A única justificação que me ocorre é a essência do Sétimo ser diferente da dos outros deuses, porque eles não encarnaram em corpos materiais.

Além disso, se Kirtash não estiver a mentir, há também o facto de que Gerde estava morta. O que significa que o Sétimo a devolveu à vida para poder ocupar o seu corpo. E talvez isso implique...

- Que Ashran também tenha morrido como humano e ressuscitado como o sétimo deus.

- Sim - assentiu Jack. - E provavelmente tudo começou aqui, neste mesmo lugar, há vinte anos. Daí a importância de descobrirmos tudo o que for possível acerca de Ashran, do feiticeiro blasfemo, como lhe chama Ymur. Talvez seja essa a chave para descobrir o que está a acontecer exactamente.

Os dois voltaram-se para o gigante, que mudou de posição, fazendo estalar todas as suas articulações.

- Já vos disse que não me lembro bem do que aconteceu naquela altura. Confesso que passava o dia encerrado na biblioteca e não estava muito ao corrente do que sucedia no Oráculo.

- Ao longo de todos estes anos - explicou Shail a Jack -, Ymur tem estado a resgatar os restos dos livros e documentos que desapareceram com a destruição do Oráculo. Entre esses livros têm de estar, algures, os Registos do Grande Oráculo, uma espécie de diário onde o abade anotava tudo o que acontecia aqui. Se encontrássemos esses documentos, talvez o seu conteúdo lançasse alguma luz sobre o que é que Ashran veio fazer ao Grande Oráculo e o que lhe aconteceu na Sala dos Ouvintes.

Jack assentiu.

- Bem - disse. - Vim para vos ajudar no que for preciso e é isso que vou fazer. No entanto... gostaria, antes de mais, de falar com Alexander.

Shail fez um ar de dúvida.

- Não está lá muito bem - declarou. - Não quer falar com ninguém e não sai da caverna. Se não fosse por os gigantes lhe deixarem comida à entrada, creio que até teria morrido de inanição.

- Comigo vai falar - replicou Jack, com firmeza. - Enfrentamos algo muito grave, pior ainda do que a invasão shek e o império de Ashran, e não há tempo para lamentações nem autocomiseração. vou tirá-lo daquela caverna nem que tenha de o arrastar.

Os ninhos de pássaros haai encontravam-se por toda a Planície Celeste, mas havia uma zona onde os picos rochosos sobre os quais se erguiam eram muito numerosos. Ali, a paisagem era mais agreste e acidentada e o horizonte apresentava um aspecto estranho, como se estivesse eriçado. E sobre cada uma daquelas formações rochosas um pássaro haai tinha construído o seu ninho.

Ali, onde habitava a colónia haai mais populosa de todo o Idhún, os celestes tinham erigido Haai-Sil, a cidade dos criadores de aves.

Em Haai-Sil, os edifícios eram pequenos e estreitos, dado que tinham de ser construídos nos escassos espaços entre as agulhas de rocha. As ruas não eram tão largas nem estavam tão limpas como na capital, embora os celestes se esforçassem muito por as tornar decentes; mas, com centenas de ninhos de pássaro situados a uma vintena de metros das suas cabeças, era difícil manter a cidade asseada. Limpavam-se as ruas todas as manhãs e todas as noites, antes do segundo entardecer. Porém, nunca faltava gente que se encarregasse daquela tarefa. Normalmente, eram os rapazes mais jovens, os aprendizes dos criadores mais experientes, que o faziam. Nunca ninguém se queixara: afinal de contas, também os criadores haviam sido aprendizes, tendo o dever de contribuir para as tarefas de limpeza. Se, depois de dois anos a ocupar-se disso, os jovens não odiassem os haai com todas as suas forças, era porque tinham aprendido a amá-los; portanto, aquele era um passo imprescindível para todos os aspirantes a criadores.

Em Celestia, os tratadores de pássaros haai eram muito conceituados, mas não tanto quanto os treinadores ou os criadores, o grau máximo a que um aprendiz podia aspirar. Os haai não só eram os animais de companhia mais queridos pelos celestes, como também constituíam o seu principal meio de transporte. Celestia não era uma terra vasta, mas também não era muito povoada. Os celestes eram poucos em Idhún em comparação com os humanos, os feéricos ou os varu, por exemplo, e as suas cidades tinham sido edificadas a uma distância considerável entre si. Tinham começado a domesticar os haai séculos antes, para manter uma comunicação regular entre as principais quatro cidades de Celestia e, com o tempo, outras raças idhunitas começaram a apreciar o quão prático era aquele sistema. Os celestes enviavam pássaros para quase todo o continente. Entre as casas reais de Nandelt, antes do domínio shek, estivera na moda dispor de um haai e respectivo cavaleiro celeste para deslocações rápidas e mensagens urgentes.

Mas não era esta a razão por que os celestes se preocupavam tanto com as suas aves. Teriam continuado a cuidar delas com atenção mesmo que não lhes tivesse sido possível montá-las nem domesticá-las.

Zaisei sabia muito bem disso. Tinha nascido em Haai-Sil, embora a vida acabasse por a afastar da sua cidade natal. Mas ali estavam as suas raízes e o que restava da sua família. Por isso, quando a comitiva da Venerável Gaedalu parou na cidade dos criadores de aves, o que para todas as sacerdotisas não era mais do que uma escala no caminho, para Zaisei significou um reencontro com o passado.

Agora caminhava pelas ruas estreitas e sinuosas de Haai-Sil, levando habilmente a sombrinha que todos, nativos e visitantes, deviam usar como precaução quando percorriam a cidade. O que para as gentes de fora era um incómodo tornara-se um gesto quotidiano para os celestes de Haai-Sil. Todas as famílias cultivavam nas suas casas, num jardim interior protegido por uma cúpula, rebentos de plantas mandim; e nunca saíam à rua sem uma das suas enormes folhas em forma de campânula, que utilizavam como sombrinhas. Zaisei sorriu ao recordar o ar horrorizado das sacerdotisas quando lhes entregaram as sombrinhas à entrada da cidade e lhes explicaram para que serviam. Afinal não era caso para tanto, dado que, no trajecto até à casa onde se iam alojar, só uma das sombrinhas ficou suja.

Zaisei assegurara-se de que as noviças e sacerdotisas estavam instaladas, e de que no quarto de Gaedalu havia uma banheira suficientemente grande para ela se sentir confortável, e depois saíra da casa sem dar explicações.

Quando chegou ao seu destino, deteve-se, sem fôlego, e contemplou com emoção mal contida a casa que a vira crescer nos seus primeiros anos de vida.

Não era a casa de uma família e nunca o tinha sido. O seu pai era treinador de pássaros haai quando conhecera a sua mãe. Nessa altura já tinha gente a seu cargo, de modo que o lar de Zaisei na realidade fora uma escola, onde os aprendizes de diferentes níveis viviam debaixo do mesmo tecto.

Zaisei gostava dos haai desde criança, mas nunca chegara a juntar-se aos grupos de limpeza. É que nessa altura os sheks tinham invadido Idhún e a sua mãe enviara-a para o Oráculo a fim de a proteger.

Zaisei sorriu para si ao contemplar a casa e os ninhos dos pássaros, que eram a paixão do seu pai.

Para muitos, Do-Yin não era mais do que um inofensivo criador de pássaros.

Para poucos, que sabiam a verdade, Do-Yin era um dos mais activos membros da luta contra o império dos sheks. Jamais lutaria num campo de batalha, mas conseguira algo que muitos criadores haviam procurado obter antes dele, ao longo dos séculos, sem sucesso: pássaros-mensageiros, aves que entregavam mensagens num destino concreto sem necessidade de serem guiadas por um cavaleiro.

Assim, o correio interno das frentes armadas da luta contra Ashran fora indetectável para os sheks. Se já costumavam ignorar os celestes por os considerarem inofensivos, ainda suspeitavam menos dos pássaros, animais sem inteligência racional, cujas mentes, demasiado simples, eram incapazes de detectar.

Zaisei não se deu ao trabalho de entrar na casa. Sabia que não encontraria aí o pai. O último dos sóis ainda não se tinha posto, e era àquela hora, no limiar do terceiro entardecer, que os pássaros regressavam aos seus ninhos e que Do-Yin subia para os saudar.

Ainda a segurar na sombrinha, Zaisei levitou lentamente até alcançar uma altura de vários metros. Continuou a subir, pouco a pouco, até que os ninhos dos haai se tornaram visíveis.

Era um espectáculo belíssimo. Os pássaros chilreavam e chamavam-se uns aos outros, planavam sobre os ninhos, arrulhavam e acomodavam-se para dormir, enquanto os últimos raios de sol arrancavam reflexos alaranjados da sua plumagem. Zaisei saudou o mais próximo, uma fêmea amistosa que se encontrava no ninho e parecia cansada.

- Grande ninhada, ha? - comentou a celeste, sorridente. - Aposto que vão nascer lindos e saudáveis.

De repente, sentiu-se tiritar. Ali em cima estava frio; levantara-se um vento desagradável que revolvia a parte de baixo da sua túnica. Olhou em volta e viu ao longe uma figura que levitava de um ninho para o outro. Também tinha uma sombrinha, mas estava tão concentrado no seu trabalho que não se apercebera de que esta se inclinara. Das suas costas, pendia uma enorme bolsa cheia de frutos koa, um manjar para os haai. Zaisei sorriu de novo e foi ao seu encontro.

Do-Yin demorou um pouco a notar a sua presença. Era um celeste pequeno e vivo, de nariz algo afilado, o que, na opinião de muitos, lhe conferia uma certa semelhança com as aves que criava.

- Boa tarde, pai - saudou ela, sorridente. - Que as três deusas velem os teus sonhos e que o pai Yohavir mantenha puro o ar que respiras.

- Zaisei! - exclamou o criador de pássaros ao reconhecê-la.

Há muito que não se viam, pelo que o reencontro foi emotivo. No entanto, Do-Yin não fez tenções de descer para o chão e Zaisei não lho pediu. Sabia o quão importante era para ele aquela visita diária aos ninhos e não quis interrompê-lo. Assim, flutuou junto dele, de ninho em ninho, e conversaram enquanto ele fazia o seu trabalho.

Tinham muito de que falar. Zaisei pô-lo ao corrente de tudo o que fizera nos últimos tempos: do seu trabalho como embaixadora do Oráculo na época de Ashran, da sua relação com a Resistência que viera do outro mundo, de Yandrak, de Lunnaris, do sucedido em Nurgon e na batalha de Awa. E, embora Do-Yin continuasse a examinar patas e asas, a dar frutos koa ou a contar ovos, Zaisei sabia que no fundo estava a escutá-la atentamente. Por fim, Do-Yin voltou-se para ela e fitou-a com alguma severidade.

- Correste um grande risco, Zaisei. A tua mãe levou-te para o Oráculo para que estivesses a salvo, não para que participasses na guerra.

- Na altura era uma criança; mas agora já sou adulta e, além disso, as coisas foram acontecendo.

- É por causa desse rapaz de quem me falaste, não é? O feiticeiro da Resistência.

Zaisei corou ligeiramente.

- Existe um laço, pai - confessou em voz baixa.

Ele olhou para ela, com um sorriso de grata surpresa.

- A sério? Recíproco?

O rubor de Zaisei intensificou-se.

- Sim.

Do-Yin abanou a cabeça, rindo entre dentes.

- Sim, de facto já não és uma criança. Calculo que Gaedalu não tenha gostado muito. Não vai querer que abandones o Oráculo tão depressa.

- Queria falar-te sobre isso. A minha mãe deixou o Oráculo para formar uma família, mas depois regressou.

Do-Yin assentiu. Aquilo não tinha nada de especial. Os votos aos Seis não impediam as relações amorosas, mas na maioria dos casos estas deviam ser à distância. Alguém que servisse no Oráculo não podia ter a sua família consigo, dado que nos Oráculos só podiam viver sacerdotes e sacerdotisas: no de Raden só admitiam homens; no de Gantadd, só mulheres. E o Grande Oráculo, o único que era misto e que, portanto, podia acolher entre as suas paredes um casal formado por um sacerdote e uma sacerdotisa, estava situado em Nanhai, no fim do mundo. Um lugar pouco adequado para formar uma família.

A mãe de Zaisei servira em Gantadd, um lugar onde não teriam acolhido Do-Yin, em primeiro lugar por não ser sacerdote e em segundo por ser um homem. De qualquer forma, o criador de pássaros nunca seria feliz longe de Haai-Sil, pelo que a única opção do casal fora ela abandonar o Oráculo durante algum tempo.

Esta era uma prática habitual entre os sacerdotes e sacerdotisas dos Seis. A sua religião não os proibia de pedir autorização para deixar o Oráculo em qualquer momento, quer temporária quer definitivamente, para manter uma relação ou fundar uma família, sem deixarem por isso de ser sacerdotes. Muitos não regressavam, passando a trabalhar nos templos locais. Mas outros voltavam ao Oráculo ao fim de alguns anos, com os filhos já crescidos. Se o laço que os unia aos seus parceiros tivesse enfraquecido ou se considerassem que conseguiam viver longe da família, visitavam esta apenas esporadicamente; e o Oráculo recebia-os de braços abertos. De modo que, se os pais de Zaisei se tinham separado há algum tempo, não se devia à religião, mas sim à distância.

- Se queres manter a tua relação com esse jovem, terás de abandonar o Oráculo mais cedo ou mais tarde - disse Do-Yin. - Sobretudo se se prolongar.

- Não tenho a certeza - confessou ela. - Passamos muito tempo separados.

- Mas sentes falta dele - adivinhou o pai. - E se queres que abençoem a vossa união para formar uma família...

- É cedo para falar disso - apressou-se Zaisei a responder. - A nossa relação... é difícil.

- Porque é um feiticeiro?

- Não, pai. - Zaisei ergueu a cabeça para olhar fixamente para ele, com seriedade. - É porque não é um celeste. É um jovem humano.

Do-Yin semicerrou os olhos e não disse nada. Voltou a concentrar-se no ninho que tinha diante de si. Contudo, Zaisei não se inquietou. O que um humano poderia ter interpretado como uma reacção de repulsa ou de desaprovação, a jovem celeste via-o claramente como um gesto de preocupação. Do-Yin acolhia a notícia com alguma cautela: uma vez que existia um laço, um sentimento sincero entre ambos os jovens, o celeste não tinha nada a objectar; não obstante, como todos os celestes sabiam, sobretudo os pais que tinham filhos em idade de procurar parceiro, as relações com qualquer raça não celeste eram sempre complicadas. Os celestes eram particularmente sensíveis e, ao mesmo tempo, muito mais fortes em termos emocionais do que os humanos.

É que os celestes estavam acostumados a conhecer e aceitar os seus sentimentos, bem como os alheios, enquanto que os não celestes desconheciam as emoções dos outros à sua volta e, em simultâneo, ocultavam as suas próprias, dissimulando-as, por se julgarem assim mais seguros. E tinham tendência para mentir sobre o que sentiam, algo que não tinha nexo para um celeste. Os não celestes não entendiam que, ao erguer tantos muros em volta do seu coração, não o protegiam; pelo contrário, tornavam-no mais vulnerável.

- Irão sofrer muito os dois - disse Do-Yin. - Especialmente tu. Os sentimentos dos humanos são intensos e violentos, porque eles tendem a reprimi-los. Ele irá sentir-se desconfortável quando quiser esconder-te alguma coisa e não puder. Em contrapartida, tu terás de lhe dizer com palavras coisas que são óbvias para qualquer um que possua a empatia de um celeste.

- Eu sei - assentiu Zaisei. - Mas estamos os dois a aprender. Do-Yin sorriu.

- Isso é bom, filha. Se existe um laço, desejo de coração que seja suficientemente forte para resistir às dificuldades que possam desfazê-lo com o tempo. Quanto a abandonar o Oráculo, sabes quais são as opções. Se tiveres filhos varões, não poderás regressar, a não ser que te separes deles ou que os leves contigo para o Oráculo de Nanhai, se é que alguma vez voltará a estar activo, e os instruam lá como sacerdotes dos Três Sóis. Se tiveres rilhas, poderás levá-las contigo para Gantadd. Como a tua mãe fez contigo. Seja como for, se queres realmente estar junto do teu feiticeiro, vais ter de pensar em deixar o Oráculo.

Zaisei apertou uma mão na outra.

- Fá-lo-ia, se fosse necessário. Mas não quero deixar a Mãe Venerável sozinha. Cuidou de mim desde que era muito pequena, desde que a mamã morreu. E ultimamente anda muito estranha...

O pai não disse nada. Zaisei movimentou-se para se colocar por detrás de um dos picos de pedra, procurando resguardar-se do vento, que era cada vez mais intenso.

- Os Oráculos não estão a passar por um bom momento - prosseguiu Zaisei. - Já te contei o que aconteceu aos ouvintes.

- Sim - assentiu Do-Yin, sombrio; percebera claramente os sentimentos de angústia que encheram o coração da filha ao falar do assunto. Dou graças aos Seis por não ter acontecido nada parecido nos tempos em que a tua mãe vivia no Oráculo.

- Aconteceram coisas importantes naquela altura - sussurrou Zaisei.

- Ela escutou a primeira profecia.

Do-Yin olhou para ela, muito sério.

- Gaedalu contou-te? Não o devia ter feito. Nunca quis que te envolvesses nisto, filha, e o facto de a tua mãe ter sido uma ouvinte do Oráculo de Gantadd naquela época não te obriga a sentires-te responsável por tudo o que está a acontecer.

Zaisei inclinou a cabeça, sem tentar negar.

- Mas houve outra profecia - disse então. - Dois anos após a primeira, pouco depois da conjunção astral, pouco depois de o dragão e o unicórnio terem sido enviados para outro mundo. A segunda profecia falava também de um shek.

- Foi o que ouvi dizer - assentiu o criador de aves.

- Na altura eu era muito pequena, pelo que não me lembro de nada de tudo aquilo. A minha mãe também não teve ocasião de me explicar. Entretanto, não pude aceder às anotações que os ouvintes fizeram na época e Gaedalu não quis responder às minhas perguntas quanto a isso. Não lhe agrada falar da segunda profecia; na realidade, às vezes actua como se fosse falsa ou como se a tivéssemos interpretado mal. Por isso, pai, preciso de saber... se a minha mãe também ouviu essa segunda profecia, a que falava de Kirtash... E se te disse alguma coisa sobre ela.

Do-Yin abanou a cabeça.

- A tua mãe não ouviu essa segunda profecia, Zaisei. - Ela abriu a boca para dizer algo, mas o celeste indicou-lhe com um gesto que não tinha terminado de falar. - Não o fez, porque alguém a impediu. Alguém escutou a profecia em vez dela.

Zaisei olhou para ele surpreendida, percebendo a dor intensa que aquelas lembranças lhe provocavam, mas não conseguiu dizer nada, porque naquele momento uma violenta rajada arrancou-lhe a sombrinha de entre as mãos.

- Quem, pai? - conseguiu perguntar por fim, elevando um pouco mais a voz, para se fazer ouvir sobre o assobio do vento.

Do-Yin não respondeu. Ficara imóvel, com o olhar cravado no horizonte. Zaisei seguiu a direcção do seu olhar e viu um grupo de formas escuras que se aproximava voando de norte.

- Não são pássaros - disse.

- Não, filha. Se não parecesse impossível, diria que se trata de dragões. Zaisei compreendeu.

- São dragões. Deve ser um grupo dos Novos Dragões, os dragões artificiais. Vi-os voar. Parecem muito reais.

- No entanto, não é isso o mais surpreendente. Olha ali.

O celeste indicou um ponto mais adiante, algo que seguia os dragões e que avançava lentamente na direcção de Haai-Sil. Algo alongado, como uma gigantesca coluna de cores irisadas, que parecia, contudo, dobrar-se e ondular.

- O que é aquilo? - sussurrou Zaisei, horrorizada e fascinada ao mesmo tempo.

- Não sei, mas está a vir para cá, e os pássaros não gostam.

Foi então que Zaisei notou que os haai gemiam suavemente, aterrorizados. Nunca os ouvira a emitir aquele som e não o considerou um bom sinal.

- Os dragões vão chegar primeiro - disse. - Se vierem de Phyrr, terão de parar aqui para renovarem a sua magia. vou recebê-los quando aterrarem: talvez eles saibam

dizer o que está a acontecer.

- Alexander! - chamou Shail da entrada da caverna. - Estás aí? Era uma pergunta retórica, claro: sabia que estava lá dentro. Mas, para o caso de ainda lhe restar alguma dúvida, o habitante da caverna respondeu-lhe com um grunhido mal-humorado.

- Sou eu, Shail! - insistiu o feiticeiro. - Voltei, como te prometi! E trouxe Jack comigo!

- Põe-te a andar de uma vez por todas! - gritou Alexander lá de dentro.

- Estou farto de que me tortures com mentiras e falsas esperanças!

Shail voltou-se para Jack com um suspiro.

- Tu ouviste-o.

O rapaz meneou a cabeça em sinal de desaprovação.

- Deixa-me tentar.

Sem hesitar, embrenhou-se na caverna. Quando a luz do exterior deixou de lhe iluminar os passos, desembainhou Domivat, que resplandeceu na escuridão. Olhou em redor, inquieto, mas o tecto era suficientemente alto para que a sua essência de dragão não se sentisse sufocada.

- Alsan! - gritou.

Descobriu-o a um canto, olhando com desconfiança para a luz da chama da espada.

- Quem és tu? - grunhiu. - O que queres?

- Sou Jack. E quero tirar-te daqui.

- Estás a mentir. Jack está morto. Além disso, ele nunca me chamava Alsan.

- Sou Jack e estou vivo. E chamo-te como me apetecer.

Cravou Domivat no chão. A espada derreteu instantaneamente toda a neve à sua volta, mas Alexander não teve tempo de reparar no fenómeno, porque Jack se agachou à sua frente.

- Não me reconheces?

Alexander mostrou-lhe os dentes com um grunhido.

- Está bem, a minha paciência esgotou-se - suspirou Jack. Agarrou-o pelos cabelos e puxou-o para o obrigar a levantar a cabeça e olhá-lo nos olhos. À luz de Domivat, o fogo do olhar do dragão possuía uma força antiga e poderosa que fez com que Alexander se encolhesse sobre si mesmo, intimidado.

- Vens comigo lá para fora - ordenou-lhe, lentamente, mas com firmeza. - Vais sair daqui e enfrentar o mundo, e vais deixar de te esconder atrás dessa máscara de autocomiseração, atrás desse nome emprestado. Eu também tenho dentro de mim algo que me assusta, acredita em mim. E também fiz coisas terríveis, obrigado por algo que escapava ao meu controlo e à minha vontade. Mas isso não muda o facto de continuar a ser Jack.

Alexander não conseguiu suportar mais a intensidade do olhar do dragão; o medo e as dúvidas romperam o frágil equilíbrio entre as duas partes do seu espírito que lutavam pelo controlo do seu ser. com um feroz grunhido, libertou-se do contacto de Jack, rebelou-se e, quando se virou novamente para ele, estava a meio da transformação. Jack caiu para trás, surpreendido, e por um momento ficou ali, sentado sobre a neve. Contudo, quando o animal se abateu sobre si, reagiu e retrocedeu um pouco, com um brilho decidido a iluminar os seus olhos verdes. Pôs-se de pé e no instante seguinte estava transformado num dragão dourado. Colou-se ao chão e esticou o seu longo pescoço para o animal, respondendo ao grunhido com um poderoso rugido que fez troar toda a caverna. A criatura deteve-se, algo perplexa, mas tomou a avançar. Jack, já sem paciência, deixou cair a sua longa cauda sobre ele, como se fosse um chicote, e atirou-o ao chão com um só golpe. Depois reteve-o ali, enquanto os seus olhos cintilavam na penumbra e os seus orifícios nasais deixavam escapar uma baforada impregnada de fumo.

- Isto não são maneiras de receber os amigos, Alsan - ralhou-lhe. Lentamente, Alexander voltou a recuperar o seu aspecto humano.

Quando olhou para o dragão, confuso e desorientado, tinha lágrimas nos olhos; Jack sorriu e tornou a transformar-se perante ele.

- Vês? - disse em voz baixa. - Sou eu, Jack. O rapaz que resgataste na Dinamarca. O dragão que salvaste da conjunção astral. Continuo vivo.

- Mas... como é possível? - balbuciou Alexander. - Disseram... que Kirtash te tinha matado.

- Isso queria ele - sorriu Jack. - Não é assim tão fácil acabar com um dragão.

Entreolharam-se demoradamente.

- Fico contente por te ter encontrado - disse Jack.

- E eu fico contente por estares vivo - respondeu Alexander com voz rouca. - Não imaginas quanto.

Os dois fundiram-se num forte abraço.

Kimara avistou ao longe os ninhos de Haai-Sil quando o seu dragão começava já a falhar.

Depois de um dia inteiro de voo, a magia dos dragões estava a perder a força, pelo que tinham de a renovar. Abanou a cabeça, preocupada. No dia anterior tinham parado e o tornado quase os alcançara. Avançava muito lentamente, mas sem se deter, por isso os pilotos, que precisavam de descansar, tinham estado prestes a sofrer as consequências.

E essas consequências eram terríveis. Kimara procurara esquecer, mas as lembranças do que acontecera em Rhyrr torturavam-na impiedosamente. Dos vinte dragões que haviam partido de Thalis, só restavam agora nove. E à frente de todos eles voava Ogadrak, com aquela despreocupação que era característica do seu piloto e que tanto exasperava Kimara. A jovem perguntava-se como iriam ajudar os rebeldes de Awinor agora, o que diria Tanawe quando soubesse e, sobretudo, o que fariam as famílias e os amigos daqueles que tinham morrido. Kimara mal tivera oportunidade de os conhecer, ao contrário de Rando; era por isso que achava tão irritante que ele agisse como se nada tivesse acontecido. Na noite anterior, quando Vankian e ela estavam a renovar a magia dos dragões, Kimara descobrira que o feiticeiro tinha os olhos húmidos. Rando, em contrapartida, parecia calmo como sempre e, quando Kimara o confrontara a esse respeito, encolhera os ombros e respondera:

- Sim, é uma pena. Kimara explodira.

- Uma pena? Eles morreram e tu pareces não te importar! Rando voltara para ela o seu olhar bicolor:

- Eles eram pilotos dos Novos Dragões. Iam para Awinor para lutar e sabiam que podiam morrer. Caso contrário, não seriam pilotos de dragões e também não estariam no nosso grupo. Quando alguém está disposto a morrer por alguma coisa, é porque não dá grande valor à vida, portanto, por que chorá-lo? No meu caso, quando morrer, espero que ninguém derrame uma lágrima por mim. Prefiro que se riam e digam: "Lá vai Rando, o grande sacana que viveu a vida ao máximo e até ao limite. Brindemos por Rando, que se riu às gargalhadas da sua própria morte e esteve de bom humor até ao fim."

Kimara ficara perplexa com a franqueza do piloto, mas murmurara:

- Sim, está bem, mas é que nem todos pensam como tu.

Não tinham voltado a falar do assunto, mas Kimara continuava zangada.

Voltou à realidade ao ver que Ogadrak iniciava uma manobra de descida e que os outros dragões o seguiam. Hesitou por um momento, mas depois recordou-se de que provavelmente o presidente da câmara de Rhyrr não tinha tido tempo de avisar Haai-Sil do que se avizinhava. Talvez fosse tarde demais, mas...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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