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A HERANÇA / Margaret Way
A HERANÇA / Margaret Way

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HERANÇA

 

 

 

Estava a gritar, porém, não se apercebia. Tentava controlar o rumo do Sea Eagle que, naquele momento, subiu por uma enorme parede de água, para cair, seguidamente, entre as ondas que açoitavam a coberta.

Ninguém no seu perfeito juízo teria ido navegar com semelhante clima, porém, há muito tempo que tinha perdido o seu, para ser exacto, há vinte anos. depois dos terríveis acontecimentos do ano anterior, os ventos e as ondas daquela tempestade eram uma espécie de alívio que o libertava da lama da derrota.

O ciclone tropical estendera-se pelo Mar de Coral e estava a bater com força no norte de Queensland. Ele sabia, mas dois dias antes tinha decidido zarpar. Estava pálido e tinha olheiras, e até o seu cabelo, geralmente um pouco encaracolado, agora parecia liso. Nunca tinha bebido muito. No entanto, durante os últimos meses tinha bebido uísque como se fosse água.

Ainda se lembrava que, uma vez, se referiram a ele como Super-Homem, contudo, agora estava derrotado, quebrado e desacreditado, e até havia a possibilidade de que acabasse na prisão se ficasse ali. Contudo, não o surpreendia muito. Nunca se tinha sentido muito seguro com a sua posição, nem sequer no auge da sua carreira. A culpa era de um pai que lhe tinha batido permanentemente até a criança se transformar num adolescente de dezasseis anos. Então, descobriu que era capaz de tudo. Até de matar.

Agora, tinha cinquenta e seis anos e não desejava chegar aos cinquenta e sete. Pretendia levar o Sea Eagle aonde tinha decidido. Contudo, uns instantes depois, fechou os olhos, e quando os abriu, encontrou-se diante de outro episódio de terror, bem diferente.

Natalie.

Estava a escassos metros dele. Os seus olhos enormes, que uma vez tinham brilhado com amor, eram conchas escuras. O seu cabelo, ruivo no passado, parecia branco como um véu de noiva. Vestia uma espécie de vestido transparente, como de gaze, e podia ver através do seu corpo.

Sabia que não era um fantasma, mas uma partida da sua imaginação. Todavia, também tinha sabido sempre que Natalie regressaria no último momento para contemplar a sua morte.

Ela tinha sido a única pessoa que alguma vez tinha significado alguma coisa para ele, embora as pessoas não soubessem. Infelizmente, já não podia mudar o sucedido naquele dia terrível e nem sequer podia partilhar o seu segredo com ninguém. Só podia fazer uma coisa: lutar para sair do inferno a que tinha descido, e tinha dedicado os últimos quatro anos a trabalhar sem cessar, em busca de um alívio que lhe fugia.

Quanto a Camille, não se atrevia a olhar para ela. Os outros pensavam que agia daquele modo por dor, mas, na verdade, fazia-o porque os olhos daquela menina, tão parecidos com os de Natalie, lhe recordavam constantemente que era um assassino. No entanto, tinha-Lhe dado tudo o que estava ao seu alcance: a roupa mais cara os melhores estudos... Poucos conheciam a verdadeira história. Para o resto, era um pai modelo.

Lombard e os seus sequazes tinham sido os únicos que se tinham atrevido a atacá-lo abertamente como uma matilha, até finalmente o terem alcançado. Porém, isso também não o surpreendeu, porque, no fundo, sabia que era o seu destino.

Natalie tinha sido o seu grande sonho, o desejo mais profundo e puro da sua vida. E afastá-la da sua familia, dos seus amigos, do louco que a tinha amado, tinha sido o maior desafio que enfrentara e o que, provavelmente, tinha resolvido com maior mestria. Apesar de tudo, a única coisa que tinha querido era ficar sempre com ela.

As ondas batiam no casco do navio com tanta força que esperava que se partisse a qualquer momento. Se não estivesse embriagado, o terror tê-lo-ia paralisado. Contudo, estava embriagado e ainda teve aprumo para tentar beber um último gole. No entanto, o vento arrancou-lhe a garrafa da mão e atirou-a ao mar.

Tinha chegado o momento e não se importava nada. Morrer não era nada em comparação com o que sofrera, e quando o Sea Eagle começou a subir uma nova onda, ele deixou o leme e dirigiu-se para o espectro de Natalie como se quisesse destruí-la pela segunda vez. Afinal de contas, julgava ter o direito de o fazer: ainda era a sua esposa.

Porém, quando quis abraçá-la, a imagem desapareceu e os seus braços não encontraram nada, salvo o ar.

Desolação e amor sem fim. Isso era tudo. Uma continuação da dor que o tinha acompanhado durante vinte anos, depois daquele dia em que perdera o que Lhe restava da súa prudência. Agora, só ficava uma coisa por fazer: representar o último acto.

Uma onda arrasou a coberta e derrubou-o, no entanto, não fez o menor esforço por se agarrar a algo. Tinha decidido render-se e deixou-se levar pela água, entre o rugido das ondas, até ao final. Queria que o mar lhe arrancasse a vida. E que os peixes devorassem os seus ossos.

 

 

Na mansão Guilford havia tantas pessoas que Camille começou a perguntar-se se conseguiriam ver os quadros. O grupo selecto de coleccionadores ricos, jornalistas, artistas e famosos em geral estava ali para assistir à exposição da internacionalmente reconhecida colecção do seu pai. Era um passo prévio ao leilão que seria levado a cabo noutro dia. Primeiro, iam vender as obras de arte, depois, as antiguidades e, finalmente, a própria casa, uma magnífica mansão neoclássica que Hany Guilford construíra à beira do porto de Sidney.

A mansão era esplêndida, mas não podia comparar-se com o império económico que o seu pai presidira. Durante anos, Harry Guilford destacara-se e até ganhara a alcunha de Super-homem. Diziam que tudo em que tocava se transformava em ouro.

A ideia de que tivesse perdido a sua fortuna, próxima de um milhar de milhão de dólares, era incrível até para os seus inimigos. Muitos continuavam convencidos de que o seu suicídio no mar era um esquema para poder desaparecer como o infame Lorde Lucan. Nas praias próximas, localizaram restos do Sea Eagle, porém, o seu corpo não fora encontrado. Uns afirmavam que estava no fundo do mar. E outros, mais cépticos, asseguravam que fugira para a Argentina.

Camille e todas as pessoas mais próximas a ela estavam convencidas de que realmente se tinha suicidado. Conheciam-no e sabiam que Harry escolhera aquela forma para morrer. Não tinha deixado nenhuma nota à

sua filha, nenhuma conta oculta na Suíça, nenhum tesouro. Só fama e dívidas.

Da noite para o dia, Camille deixara de ser uma herdeira rica, noiva de um atraente executivo, para se transformar numa mulher que só possuía a sua juventude, a sua saúde, a sua inteligência e a lendária beleza da sua mãe, tragicamente desaparecida.

Mas, apesar das circunstâncias, aquela mulher, que vestira um impressionante vestido verde sem mangas para a ocasião, manteve o aprumo. Afinal, era ela quem devia apresentar a exposição aos convidados. Claude Jameson, um conhecido crítico de arte, comerciante e coleccionador, estava ali naquela noite e, entre os presentes, também se encontrava Bruce Barnard, gestor da propriedade e director da firma de advocacia Brooks Barnard. Todas as obras de arte tinham preços de licitação, porém, a última palavra cabia a ele.

Camille estava muito agradecida a Barnard. Era um homem encantador que a tinha tratado sempre com a cortesia e consideração necessárias, coisa que não podia dizer de toda a gente. Embora ela não tivesse nada a ver com as confusões do seu pai, alguns tinham aproveitado a ocasião para a tornar no alvo da sua vingança contra os Guilford.

 

Estava na galeria do piso superior quando viu que Philip Garner, o seu ex-noivo, acabava de chegar. Vinha com Robyn Masterman, a quem começou imediatamente a descrever os pormenores da mansão, enquanto ela fazia esforços evidentes para não parecer impressionada.

Alguns convidados aproximaram-se da balaustrada para apreciar a chegada de Garner e o insulto que tal pressupunha para ela. A desaprovação não a animou nada. Queria gritar, no entanto, respirou fundo e fez um esforço por manter a calma.

Nesse momento, um casal aproximou-se dela. Eram

Sir Marcus Kershaw, juiz do Supremo Tribunal, e a sua esposa, Julia, uma bonita advogada de cabelo grisalho, que era famosa por defender os direitos das mulheres.

Irdy Kershaw puxou-a pelo braço e disse:

- São uns canalhas. Mas não te deixes abater, querida. Anda de cabeça erguida e aguenta. É a única coisa que se pode fazer.

Camille assentiu. Sabia que devia deixar a sua tristeza para mais tarde, quando estivesse sozinha. Infelizmente, nem todos eram tão agradáveis como os Kershaw.

ady Kershaw sorriu com ironia e Camille riu-se. Sempre tinha gostado de Julia.

A pouco e pouco, vários convidados se foram juntando a elas e, em questão de minutos, convenceu- se de que o acto não ia ser tão terrível como tinha imaginado.

Mas ainda não tinha chegado a pessoa de quem mais necessitava. Linda, que era casada com Stephen Carghill e esperava o seu primeiro filho, era a sua melhor amiga do liceu. Ela conhecia-a melhor do que ninguém, embora se tivesse enganado ao pensar que Philip e Robyn não se atreveriam a aparecer na mansão. Afinal de contas, Robyn Masterman não era mulher que se incomodasse com facilidade. Bem pelo contrário, gostava de exibicionismo.

Camille atreveu-se a olhar para o piso inferior. O casal dirigia-se para a escadaria, enquanto vários jornalistas os fotografavam. Na verdade, não estranhou: era o casal perfeito. Robyn, uma bela morena, trazia um vestido vermelho que se ajustava perfeitamente ao seu corpo e brincos de diamantes a condizer com o colar. Philip estava magnífico com o seu smoking, o seu cabelo loiro e os seus olhos azuis. Parecia um verdadeiro aristocrata.

Era difícil de acreditar que alguma vez tivesse sido o seu melhor amigo. Derrubar as barreiras de Camille não lhe tinha custado muito, tendo em conta que tinha sofrido toda uma vida de carências emocionais.

Curiosamente, e ao contrário de Robyn, parecia um pouco nervoso, como se pensasse que, a qualquer momento, ia aproximar-se dele para o esbofetear, coisa que, é claro, não pensava fazer.

Camille era a princesa de gelo, a herdeira australiana, títulos que a imprensa lhe tinha conferido.

Pouco depois da morte do seu pai, Philip fora ver Camille, abraçara-a e tinha-lhe dito que merecia alguém melhor do que ele. Só então, Camille quebrou a sua regra de não se deixar levar pela violência e esbofeteou- o. Philip só tinha querido o seu dinheiro.

 

Nesse instante, apareceu Linda, a sua amiga de cabelo e grandes olhos castanhos, que se dirigiu imediatamente para o lugar onde Camille se encontrava.

- Viste-os? - perguntou Linda, em voz baixa.

- Quem não viu? - respondeu, com ironia.

- Será que não têm vergonha?

- Pelos vistos, não.

- Aviso-te que vêm para aqui.

- Tanto faz, não penso fugir.

- Eu também não. Embora fosse bem feito que Philip sofresse um enfarte e morresse agora mesmo...

Camille suspirou.

- Sim, mas duvido que isso aconteça. Não está tão desesperado por chamar a atenção.

- De qualquer forma, não era bom para ti. É um canalha. Sempre foi.

- É verdade, mas teria gostado de o descobrir antes e noutras circunstâncias.

Camille decidiu mudar de conversa e acrescentou:

- Estás linda com esse vestido...

Linda observou durante alguns segundos o seu sari azul e sorriu.

- É perfeito para uma mulher grávida... Mas não mudes de assunto, Milly. Philip e Robyn passaram dos limites, embora me conste que a maioria das pessoas está do teu lado. No entanto, não paro de pensar no azar que tiveste. Podias ter andado com qualquer um. Por que raio foste fazê-lo com ele?

Camille voltou a suspirar.

- Em parte, pela minha própria insegurança. Necessitava que alguém me amasse e julguei que ele me amava.

- Suponho que te amava, mas só em certa medida.

- Claro! Amava-me a mim e à minha fortuna, mas com especial ênfase na segunda.

- É provável - comentou. Mas é estranho que Harry não se desse conta...

- Não acredito que lhe importasse muito, desde que ele pudesse manter o controlo. Mas quem sabe. O meu pai e eu nunca tivemos uma relação muito próxima.

- Talvez porque nunca se recuperou da perda da tua mãe. Estava obcecado com isso e não teve ocasião de conhecer bem a sua linda filha.

- Não é isso, Lindy. Ele não me amava, contudo, não teve outro remédio senão cuidar de mim. Quanto a Philip, não é que conseguisse enganar-me: eu é que me enganei a mim própria.

Trinta minutos depois, já tinha chegado o último dos convidados. O átrio, os corredores e todas as salas dedicadas à exposição estavam cheios de gente.

Só uns poucos tinham tido oportunidade, até então, de serem convidados para a mansão. Precisamente por isso, as pessoas tinham pensado sempre que o interior seria como o próprio Harry Guilford: um excesso e um hino à opulência. Em troca, a decoração interior era simples e demonstrava muito bom gosto.

Quase todos pensaram que o falecido teria contratado um decorador, porém, a verdadeira responsável era Camille: assim que o seu pai compreendeu que tinha talento para a decoração, deu-lhe carta branca e deixou-a fazer o que quisesse.

 

Infelizmente, Camille não encontrava alívio nenhum em tudo aquilo. Embora muitos pensassem que era uma menina mimada e que o seu pai a tinha adorado, a realidade era diferente. Harry Guilford sempre a tinha rejei tado e não lhe tinha mostrado o menor carinho.

Tinha chegado a pensar que as coisas teriam sido diferentes se tivesse nascido homem. De facto, um dos executivos de Harry tinha-lhe súgerido uma vez que a deixasse trabalhar na empresa. Camille provou que tinha carácter e capacidade para os negócios, mas o seu pai não lhe permitiu chegar muito longe. Entre outras coisas, porque nunca a tinha apreciado. Harry Guilford não tinha amado ninguém, salvo a mãe da jovem.

Natalie tinha falecido quando Camille tinha só seis anos, idade insuficiente para compreender a verdadeira magnitude das coisas, mas suficiente para ter consciência do sucedido e sentir uma dor intensa. Afogara-se ao cair do iate do seu marido, que tinha estado prestes a enlouquecer com a sua perda.

Quanto a Camille, crescera sentindo-se vazia. Todos os seus amigos tinham mães que cuidavam deles, todavia, ela estava sozinha. E havia algo que piorava ainda mais as circunstâncias da morte de Natalie: estava grávida. Não só perdera a sua mãe, como também um irmão.

O assunto era tão grave que pai e filha nunca falaram disso. Depois do sucedido, Harry Guilford enviou Camille para um colégio interno e concentrou-se nos seus negócios sem lhe prestar atenção nenhuma. Só de vez em quando expressava um aparente carinho que, na verdade ocultava outra coisa, como o quadro que tinha encomendado para o vigésimo primeiro aniversário da sua filha: um retrato de Camille que, por outro lado, era o único quadro que lhe pertencia. No entanto, não o tinha feito por amor, mas porque lhe parecera adequado para mostrar à imprensa.

Nesse preciso instante, os fotógrafos pediram-lhe que posasse sob esse mesmo quadro e ela fê-lo. No enorme retrato, aparecia com um vestido parecido com o que vestia, também de cor verde. O seu cabelo comprido e avermelhado, os seus olhos grandes e a sua boca sensual dominavam a cena. Indubitavelmente, o pintor tinha sabido captar a beleza que tinha herdado de Natalie.

Quando a sessão fotográfica terminou, várias mulheres aproximaram-se dela para lhe pedir informação sobre o suposto decorador que se encarregara da mansão. Todas se surpreenderam ao saber que ela mesma o tinha feito e uma até Lhe pediu conselhos. Camille trabalhava na Comtek, uma das poucas empresas do império do seu pai que não falira, no entanto pensou que dedicar-se à decoração podia ser uma boa saída, se tivesse problemas.

Pouco depois, enquanto conversava com alguns convidados, teve a estranha sensação de que alguém estava a observá-la. Deu uma olhadela em redor e os seus grandes olhos verdes cravaram-se num homem que estava entre duas colunas de mármore do enorme salão: Nick Lombard.

Ao reconhecê-lo, a raiva dominou-a e perguntou-se como se atrevera a apresentar-se em sua casa.

 

Sem se desculpar perante os convidados, deixou-os de boca aberta e dirigiu-se para ele. Estava convencida de que aquele homem era o responsável pela ruína do seu pai; não em vão, pois ele tinha iniciado a investigação aos negócios de Harry Guilford. Quando o império económico se afundou, Nick Lombard transformou-se no novo presidente do grupo Orion.

Mas então aconteceu algo que a parou bruscamente. Lombard não estava sozinho. Ao seu lado havia um homem que reconheceu imediatamente e que a cumprimentou. Era Claude.

- Camille, querida... Como fico contente por te ver!

- exclamou o homem, enquanto avançava para ela. Vim com Nick Lombard. Penso que já se conhecem.

- Sim, é claro. As suas vítimas costumam reconhecê-lo.

Claude, que tinha sido sempre um grande diplomata, interpôs-se entre os dois, afastou-a um pouco e beijou-a nas faces antes de dizer:

- O teu bom senso nunca deixará de me surpreender.

- Não me digas que o trouxeste para a festa, Claude.

- Não, vim com Dulcie. Mas Lombard é um homem importante e um coleecionador de obras de arte conhecido - explicou. - E embora saiba que já tens que chegue com esse Philip, está na hora de tentares esquecer o passado.

- Não eras tu quem me dizia sempre que não devemos esquecer? - perguntou, irritada. - Será que esqueceste que Nick Lombard é o culpado pela minha ruína?

- Não te enganes, querida. O culpado foi o teu próprio pai. Harry era meu cliente e conhecia-o muito bem. Era um homem terrível, que, por outro lado, te tratou muito mal. Francamente, sugiro-te que dês uma oportunidade a Lombard e que esqueças as coisas que Harry disse dele.

- Se não houvesse tanta gente na casa, podes ter a certeza de que já o teria expulso aos pontapés.

Claude riu.

- Não sei por que a imprensa te chama a princesa de gelo, se és uma das pessoas mais apaixonadas que conheço. Mas tem cuidado neste caso. Não lhe ficaria nada mal a alcunha de homem de ferro.

- Nunca pensei que fosses tão oportunista. Mas suponho que, depois da morte do meu pai, a amizade de Lombard possa ser muito benéfica para ti.

Claude não teve oportunidade de se defender, porque Camille se afastou então e dirigiu-se ao próprio Lombard.

- Como te atreves a apresentar-te na minha casa?

- Lamento que a minha presença te ofenda - respondeu ele, com calma, - mas devo dizer que recebi um convite.

- Um convite? Quem to enviou?

- Ironicamente, a Guilford Corporation. Ou, pelo menos, é o que diz no cartão.

- Parece-me muito estranho - comentou ela.

- Não é. Pensam que sou um coleccionador muito conhecido e as empresas só se importam com o di nheiro. No entanto, fico contente de ter vindo, ou não teria podido conhecer-te. O teu pai sempre te manteve afastada.

Camille fez um esforço por ocultar a sua surpresa.

- É lógico que um pai queira proteger a sua filha.

- Seria, se não fosse por Harry Guilford nunca se comportar precisamente como um bom pai.

- E por isso destruíste-o? - perguntou, zangada.

- Lamento contrariar-te, mas não fui o causador da sua queda. Eliminou-se a si mesmo e lamento que te tenha magoado. Isso não fazia parte do meu plano.

- Então admites que tinhas um plano...

- É claro. Enfrentar o teu pai implicava riscos muito altos.

- Riscos? E pode saber-se o que tu arriscaste? Nick Lombard olhou para ela em silêncio durante uns segundos, como se não tivesse a certeza de até que ponto podia e devia falar. No entanto, respondeu:

- É evidente que desconheces muitas coisas sobre o teu pai.

- E tu vais pôr-me a par? - desafiou-o.

- Talvez. Quando começares a confiar em mim. Lombard sorriu de um modo tão atraente que Camille tremeu. No entanto, o sorriso desapareceu em seguida.

- Não quero voltar a ver-te em toda a minha vida - disse ela. - De facto, ofende-me que te tenham convidado para minha casa.

- Suspeito que a minha presença seja coisa pouca em comparação com o aparecimento do teu ex-noivo.

Camille corou com o comentário.

- Isso são águas passadas. E, ao contrário de ti, Philip Garner não pressupõe nenhuma ameaça.

A mulher recuou enquanto tentava ocultar o seu nervosismo. Não esperava que o seu pior inimigo se apresentasse na mansão e lhe oferecesse a sua amizade.

- Usaste todo o teu poder para arruinar o meu mundo - declarou. - Por que aceitaria a tua ajuda?

Camille sentiu-se tão enfeitiçada por aqueles olhos que esteve prestes a perder o sentido da realidade.

- No final, confiarás em mim, garanto-te.

Camille não se deu conta de que Philip e Robyn se aproximavam dela até se encontrarem ao seu lado.

- Caramba, Camille - disse Robyn, sem preâmbulos. Agora falas com Nick Lombard? Nunca deixarás de me surpreender.

- Ai sim? - inquiriu Camille, com ironia. - Pelos vistos, há muita gente que recebeu um convite sem o meu conhecimento.

Robyn não fez caso do seu desagrado evidente.

- Talvez seja porque os tempos mudam - comentou, com malícia. - Mas compreendo que te custe assumi-lo.

Camille encolheu os ombros.

- Pelo menos, a noite está a ser um sucesso.

- Sim, a minha mãe está a adorar - disse Robyn.

Estava apaixonada por aquele quadro de Condor que estão a leiloar e sei que o teria adquirido em Londres se o teu pai não tivesse intervindo.

- Pois advirto-te que há muitos compradores interessados. Talvez a tua mãe volte a perder a sua oportunidade - disse, antes de se voltar para o seu ex-noivo. Como estás, Philip?

- Bem - respondeu, com um leve sorriso. - E tu?

- Bastante bem.

- Estás linda esta noite.

Robyn olhou com cara de poucos amigos para o seu acompanhante e comentou:

- Sabias que estamos noivos?

- Que bom! - comentou Camille, com ironia. - Philip gosta muito de noivados.

- Pelo menos, o nosso acabará em casamento. Ao contrário do...

- Ao contrário do meu, já sei - interrompeu-a Camille. - Obrigada por me recordares isso.

 

Robyn quis dizer algo, mas a intervenção súbita de Nick Lombard interrompeu-a. Deu o braço a Camille, sorriu e disse, antes de a afastar do grupo:

- Desculpam-nos por um momento? Eu gostaria que Camille me desse a sua opinião de perita sobre um certo quadro.

Uns segundos depois, quando se encontrou a sós com ele, protestou.

- Não precisava que me salvasses daquela bruxa.

- Conheço Robyn Masterman e sei que pode ser muito desagradável quando quer.

- Certamente, mas sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma.

- Não duvido, embora todos precisemos de ajuda de vez em quando - observou. - Além disso, que tipo de homem é esse Garner? Abandona-te depois da morte do teu pai e apresenta-se na tua casa com ela?

- Ora, isso não significa nada. Philip tem o péssimo hábito de usar os outros.

- Já me apercebi. E também me apercebi de que não os convidaste.

- Nem a eles nem a ti. Está visto que já nem sequer posso decidir quanto à minha própria casa.

- Pergunto-me se alguma vez foi realmente tua.

- Como?

- Sabes perfeitamente a que me refiro - respondeu ele. - Porém, agora que te conheci, pergunto-me por que te puseram a alcunha de princesa de gelo. É evidente que de fria não tens nada... Segundo sei, o teu pai não te incentivou a ter amigos, pois não?

- Se estás a insinuar que não me amava, di-lo - exigiu. - Estou a ver que és especialista em arrasar as pessoas.

- Não me acuses de ser como o teu pai. Eu tenho uma filha e amo-a.

- Quer dizer que amas alguém? - gozou.

- Muitas pessoas, e a minha filha acima de todas.

- Desculpa, não devia ter dito isso. No entanto, a culpa é tua por me teres arrastado quando realmente não te interessa a minha opinião sobre quadro nenhum.

- Enganas-te - disse, levando-a para um quadro.

- Ah, sim, As três irmãs de Stanford... É magnífico. De facto, espero que se venda por um quarto de milhão de dólares, no mínimo. Parece que as pessoas vieram com vontade de ver foguetes esta noite...

- Nesse caso, dá-lhes o que esperam - comentou Nick. - Sei que enfrentaste situações piores.

- Eu que o diga...

Uma hora depois, a exposição já tinha terminado, mas as pessoas continuavam na mansão como se não tivessem pressa nenhuma em partir. Camille não tinha a certeza de poder aguentar mais tempo, embora, felizmente, Nick Lombard tivesse saído com Clare Tennant, a viúva do coleccionador Arthur Tennant, e a tivesse deixado em paz.

Claude continuava na casa e, de facto, tinha tentado animá-la com as suas brincadeiras, mas Camille não estava com humor para isso. Quanto a Linda e Stephen, saíram porque aquela não se sentia bem. Estava grávida de três meses e pensou que teria os sintomas típicos associados ao seu estado.

 

Cansada do tumulto, decidiu procurar um pouco de paz na biblioteca. Acabava de entrar quando alguém a chamou.

- Philip, peço-te que saias daqui. A biblioteca não está aberta aos convidados.

- Só queria falar contigo por um momento.

- Eu não tenho nada a dizer. Faz-nos um favor e vai ter com Robyn. Não temos nada de que falar.

Philip não fez caso. Pelo contrário, deu um passo para ela.

- Camille, sei que tens saudades minhas. E eu, tuas, imensas.

- Mas tu és idiota? - perguntou, irritada. - Se te ocorre trair Robyn, o seu pai mata-te.

- Posso lidar perfeitamente com Bert Masterman. Além disso, isto é entre mim e ti, mais nada. E quanto a Robyn, nem sequer se dará conta... agora está a falar com o seu psiquiatra.

- O seu psiquiatra está aqui? E quanto lhe vai co brar? - perguntou, com ironia. Philip riu-se.

- Nada, porque pago eu - respondeu, enquanto passava uma mão pelo cabelo.

- Seja como for, não importa. Quero que te vás embora, Philip. Estou muito cansada.

Philip aproximou-se mais e puxou-a por um pulso.

- Podes dizer isso aos outros, mas não a mim.

- O que é que queres, Philip?

- Falar contigo só por um momento.

- E Robyn?

- Esquece-a. És tu que desejo. Não pensavas que ia deixar-te sair da minha vida de qualquer modo, pois não?

- Não posso acreditar no que estás a dizer - disse Camille. - Depois do que fizeste, não quero saber nada de ti.

Philip atraiu-a para si e disse:

- Camille, sinto muito. Tenho imensas saudades. Ela tentou afastar-se dele.

- Esquece, Philip. Acabou tudo entre nós.

- Não entendes? Não podia continuar contigo porque voltaria a ser pobre, mas não importa que me case com Robyn: não a amo e ela não me ama a mim. É uma questão de puro interesse mútuo.

- Pergunto-me que raios vi em ti, Philip... - suspirou, com certa tristeza. - Agora mesmo, envergonho-me de ter andado contigo.

- Tem tanta importância assim que me tenha vendido ao melhor licitador? Não tinha outra hipótese, Camille. No entanto, isto não tem que afectar a nossa relação.

- Se não me soltares imediatamente, começarei a gritar. E tanto me faz o que acontecer depois. Já estou farta de ti. Estou a falar a sério!

Nesse instante, aconteceu algo inesperado. Camille pensava que estavam sozinhos na biblioteca, mas não era assim. De repente, um homem saiu de entre as sombras e aproximou-se. Era Nick.

- O que estás a fazer aqui? - perguntou ela.

- Tinha que fazer uma chamada urgente e o teu mordomo recomendou-me que me dirigisse à biblioteca. Ao ouvir-vos entrar, quis cumprimentar- vos para que reparassem na minha presença, mas a pequena cena de Garner impediu-me.

- Pois agora que te explicaste, vai-te embora - disse Philip.

- Será melhor que vamos os dois - ameaçou Nick.

- Sim, vão-se embora de uma vez por todas - interveio Camille, profundamente humilhada pela situação.

- E já agora, Lombard, pára de te meter na minha vida. Não te diz respeito.

- Sinto muito, Camille - disse Nick, com ironia. Como já disse, não tinha intenção de incomodar.

- Será melhor que não contes a ninguém o que ouviste. Não seria bom para ninguém - observou Philip.

- Não acho que tivesse importância, Garner. As pessoas já estão a par do teu comportamento deplorável.

- A sério? - gozou Philip.

Nesse instante, ouviu-se a voz de uma mulher, e Camille disse:

- Parece que vem aí alguém...

- Talvez seja Robyn Masterman, que veio procurar o seu... como te definirias, Garner?

- Meu Deus, não deixem que entre - disse Philip, desesperado.

Nick Lombard deu o braço a Camille e comentou:

- Comporta-te com naturalidade. Sairemos desta.

Uns segundos depois, Robyn Masterman entrou na sala.

- Sinto muito, não sabia que estava aqui gente...

- Talvez porque não te incomodaste em bater primeiro - comentou Camille.

- Estava à procura de Philip... Ah, estás aqui. Estou à tua procura há um bom bocado.

- Acho que foi culpa minha - interveio Nick. - Tinha que fazer uma chamada e o teu noivo ofereceu- se para me acompanhar à biblioteca.

Philip agarrou-se à mentira de Nick como a uma tábua de salvação.

- Já me conheces, sempre disposto a ajudar... - comentou, com um sorriso. - Porém, já está na hora de nos irmos embora. Obrigada pelo serão; Camille. Robyn e eu esperamos que o leilão seja um êxito.

- Certamente, porque bem vais precisar - comentou Robyn. - Espero ver-te com mais frequência, Nick... Porque é que te deixas ver tão pouco?

- É porque tenho uma filha que não me deixa muito tempo livre.

- Oh, é claro... Quantos anos tem? Cinco, seis?

- Seis - respondeu, sem querer dar mais explicações.

- Bom, deixamo-vos agora - disse Philip, enquanto saía com Robyn.

- Uma conversa interessante - comentou Nick, segundos mais tarde.

- Uma conversa estranha para uma noite estranha.

- E suponho que estarás cansada...

- Sim, estou.

Camille parecia tranquila, mas aquele homem deixava-a nervosa. Era tão atraente e comportava-se com tal segurança que tentou concentrar-se em qualquer outra coisa e reparou na enorme colecção de livros do seu pai. Havia textos de literatura, medicina, astronomia, filosofia, história e de muitas outras áreas.

- É uma biblioteca magnífica - observou Nick.

Sim, é verdade. Se estás interessado nela, devo dizer que será leiloada em separado.

- O teu pai foi um verdadeiro génio na arte de coleccionar coisas.

- Diz-me uma coisa: por que pareceu tão estranho esse comentário? - perguntou, com seriedade.

- Será melhor que falemos disso noutra altura.

- Não haverá outra altura. Tu e eu não temos nada em comum - afirmou Camille.

- Eu diria que sim. Ou achas que a minha família não sofreu por culpa do teu pai?

O comentário surpreendeu- a.

- O que queres dizer? As nossas famílias não se conheceram. A tua vive em Melbourne e só veio para Sidney quando te transformaste em presidente da Orion.

Nick olhou para ela com intensidade e limitou-se a dizer:

- És a viva imagem da tua mãe.

- Não pretenderás dizer que conheceste a minha mãe, pois não? - perguntou, incrédula. - Morreu há vinte anos e então tu eras apenas uma criança.

Nick assentiu.

- Sim, mas lembro-me muito bem dela. Era maravilhosa. Incomoda-te que a recorde?

- Surpreende-me, é só isso. No entanto, o meu pai nunca comentou que a tua familia a conhecia.

- Não, claro, tinha boas razões para não dizer nada. Afinal de contas, Natalie estava noiva do meu tio Hugo quando o teu pai apareceu e romperam o seu noivado.

Camille olhou para ele com espanto.

- Não acredito em ti. Estás a mentir. Não podes provar o que estás a dizer.

- Achas? Muitas pessoas sabiam.

- Então, como é possível que eu não saiba? - perguntou. - Exijo uma explicação imediata.

Nick franziu o sobrolho.

- Caso não te tenhas dado conta, as pessoas tendiam a ser muito cautelosas quando se encontravam na presença do teu pai. Digamos que tinha certos contactos e que sabia como intimidar os outros. No entanto, o meu tio não era um Lombard, mas um Vandenberg. Era o único irmão da minha mãe.

- Era? Morreu? - perguntoú, enquanto se sentava numa poltrona.

Nick Lombard voltou-se para um enorme retrato de Harry Guilford. Emanava poder. E um brilho de brutalidade nos olhos.

- Sim, está morto. Era um jovem brilhante, com uma carreira de advogado prometedora, mas suicidou-se no dia que enterraram a tua mãe. E, ao contrário do teu pai, nunca magoou ninguém. Só cometeu um erro na sua vida: acreditar que Natalie se aperceberia de quem Harry Guilford era realmente. No entanto, não se apercebeu a tempo e foi terrível para todos.

- Não quero ouvir mais nada... - disse ela, subitamente enjoada.

Nick aproximou-se da mulher e tocou-lhe com suavidade para a animar.

- Sinto muito. Não pretendia incomodar-te... Vá, bebe um gole. Far- te-á bem.

Camille olhou para a bebida que lhe oferecia. Continha o que parecia ser conhaque ou uísque.

- Nada do que dizes faz sentido...

- Bebe um pouco, a sério. Sentir-te-ás melhor.

- Não, nada fará com que me sinta melhor. No entanto, Camille pegou no copo e deu-lhe um pequeno gole.

- Descansa um pouco. Ninguém te incomodarádisse Nick.

- Agora comportas-te como se a casa fosse tua... Nick não fez caso do comentário.

- Deixemos a nossa conversa para outra altura.

- Recordo-te que tu a iniciaste - respondeu ela.

- É verdade, mas só o fiz porque há muitas coisas que desconheces. E a verdade importa, Camille.

- O que estás a insinuar, Lombard?

- Nada. Como já disse, deixemo-lo para outro dia. Hoje não estás bem, estiveste prestes a desmaiar.

- Aparentemente, não ouviste o que disse antes. Não haverá outro dia - recordou. - Se o que dizes é verdade, suponho que o meu pai teve algum tipo de desavença com o teu tio pelo afecto da minha mãe.

Nick observou-a e pensou que a beleza extraordinária daquela mulher era um eco do passado trágico.

- Confesso que sempre odiei o teu pai e que esse ódio me consumiu durante muito tempo. Todos gostá vamos muito do meu tio Hugo, mas, infelizmente, a morte é imutável... Acho que a beleza de Natalie os deixou loucos a ambos. No entanto, todos sabíamos que o teu pai ocultava algo terrível e, embora eu fosse apenas uma criança, prometi a mim mesmo que algum dia descobriria o seu segredo. Muitos anos depois, pude iniciar a investigação e o resultado é o que já sabes.

Nick Lombard deteve-se um momento antes de concluir. Os seus olhos pareciam tão negros como a noite.

- Agora, Harry Guilford sabe o que se sente ao estar morto.

 

O sol brilhava quando Camille acordou. Ficou um bom momento a olhar para o tecto, antes de começar a recordar os acontecimentos da noite anterior.

Se fosse verdade o que Lombard tinha confessado, explicaria muitas coisas. Por exemplo; o ódio que sentia pelo seu pai e a sua obsessão por acabar com ele. Até havia a possibilidade de que também quisesse vingar- se dela.

O apelido Vandenberg não lhe era desconhecido. Era famoso graças a Julian Vandenberg, o pianista, e a Sir Charles Vandenberg, um conhecido industrial. E sabia que existia alguma relação familiar entre eles, mas desconhecia se também a havia com Nick Lombard.

Os Lombard dedicavam-se às obras de arte e tinham a sua base em Melbourne, embora Nick Lombard se tivesse mudado para Sidney. Procediam, portanto, de cidades, estádos e círculos sociais e profissionais bem diferentes, embora parecesse existir algum tipo de vínculo entre eles.

Camille pensou que Claude poderia tirar-lhe as dúvidas; tinha uma memória prodigiosa e conhecia meio país.

Uns minutos mais tarde, desceu para tomar o pequeno-almoço e encontrou Tommy sentado à mesa, a ler o jornal.

- Bom dia, Tommy. Dizem alguma coisa sobre nós? Tommy Browning, que se aproximava dos sessenta anos, levantou-se da mesa e dobrou o jornal.

- Sim, há algumas bisbilhotices, mas esquece isso... Parece que os abutres se levantaram cedo esta manhã. Andam às voltas desde as seis. No entanto, nenhum está disposto a oferecer o que a casa vale.

- Tenho a certeza de que encontraremos um comprador. É uma propriedade magnífica e não perderão a oportunidade.

- Não duvido. Senta-te, por favor. Dot chegará a qualquer momento com o teu pequeno-almoço e deverias tomar qualquer coisa.

- Dot e tu passam a vida a mimar-me... - protestou.

- É um prazer.

Os Browning sempre tinham tentado que a sua vida fosse mais simples. Nem Dot nem Tommy apreciavam Harry Guilford, mas gostavam tanto da sua bela, triste e inteligente filha que, apesar de serem, respectivamente, a cozinheira e o mordomo, se tornaram nuns pais para ela.

Nisso, também tinha tido influência a perda da sua própria filha, Mary, que tinha morrido aos seis anos com sarampo. Tinham-lhes dito que era algo sem importância, mas transformara-se em meningite.

- O que vais fazer hoje? - perguntou Tommy.

- Irei à cidade. Tenho uma reunião com Hugh Evans.

- Queres que te leve no carro?

- Não, prefiro que fiques. Preciso de ti aqui. Ele assentiu.

- Bom, tinha pensado dar uma olhadela à casa, embora já não nos pertença.

- Nunca foi nossa, mas do meu pai. Iremos assim que tenhamos vendido os quadros e as antiguidades. Teria partido imediatamente, mas Bruce Barnard insistiu em que permanecêssemos aqui até lá, como já sabes. E foi tão bom connosco...

- Sempre foi um cavalheiro. No entanto, vender a casa é uma boa ideia. Já viste a confusão que se formou ontem à noite...

- Nunca pensei que Nick Lombard se atrevesse a vir.

- Devo dizer que me pareceu uma boa pessoa, muito cortês e sem arrogância nenhuma. Pediu-me que lhe indicasse onde estava o telefone e levei-o à biblioteca. Pelos vistos, tinha que fazer uma chamada urgente.

- Pois poderia ter escolhido melhor altura...

- Sim, mencionou algo a esse respeito. E quanto a Garner e a essa mulher, asseguro-te que estive prestes a expulsá-los eu mesmo.

- Ainda bem que não o fizeste. Afinal, já não é o nosso assunto. Já não pertencemos a este lugar.

Camille tinha razão. Harry Guilford tinha-lhe proporcionado casa, estudos e roupa, mas não se incomodou em deixar-lhe dinheiro nem mais bens que umas quantas jóias que tinham pertencido a Natalie e alguns presentes caros que lhe oferecera para fazer passar-se por um bom pai. Apesar da dor que lhe tinha causado, Camille tinha mantido a calma e tinha enfrentado o seu destino. E Tommy, é claro, orgulhava-se dela.

Umas horas mais tarde, Camille voltou a enfrentar a sua perda de estatuto social. Reparou-o desde o preciso instante em que entrou na sede da Comtek, na torre Guilford, para se encontrar com o seu presidente, Hugh Evans. Nenhuma das pessoas que geralmente se levantavam ou se aproximavam para a cumprimentar o fez daquela vez.

Até Ruth Maynard, a secretária de Evans, esteve fria e fê-la sentar-se e esperar. O seu chefe demorou um bom bocado a recebê-la.

Finalmente, a porta do escritório abriu-se e apareceu o próprio Evans em pessoa.

- Olá, Camille...

- Bom dia, Hugh.

Camille caminhou para ele e apertou-lhe a mão.

Vestira um fato de linho branco e apanhara o cabelo num carrapito.

Hugh convidou-a a entrar no escritório e Camille sentou-se numa poltrona em frente à secretária.

- Como vão as negociações com Sam Fullerton? perguntou ela.

Era o presidente de uma empresa de electrónica que se mostrara interessado nos seus programas.

- Não muito bem...

Nesse preciso instante, soou o intercomunicador. Hugh premiu o botão e perguntou:

- O que se passa, Ruth?

- Só queria recordar-lhe que tem um almoço de negócios com o senhor Lombard.

- Eu sei, eu sei, mas agora estou em reunião com Camille. Não me passe nenhuma chamada.

Camille não podia acreditar no que acabava de ouvir e atreveu-se a perguntar:

- O que tens para falar com Nick Lombard? Hugh ficou imediatamente na defensiva.

- Estou a tentar manter a empresa à tona. Apesar dos nossos sucessos, estamos numa posição bastante complicada. Como sabes, o teu pai descapitalizou-nos.

- Sim, eu sei. No entanto, Lombard... é o nosso inimigo.

- Camille, estaria disposto a falar com o próprio diabo, se com isso salvasse a empresa. Não me interpretes mal. Aprecio tudo o que fizeste e lamento muito o que te aconteceu, mas não estás em posição de me julgar.

- Não te estou a julgar, Hugh. Mas será que esqueceste que Nick Lombard é o culpado pelas nossas desgraças?

- Enganas-te, o culpado foi o teu pai. Não sei por que és leal à sua memória. Sou uma das poucas pessoas que sabe como se comportava mal contigo, nem sequer teve a decência de garantir o teu futuro. Nunca o entendi. Adorava a tua mãe, mas, apesar de seres o seu retrato vivo, nunca te amou. Mais: diria até que te odiava.

- Isso já não importa, Hugh. Além disso, tanto faz que não me tenha deixado nada. Sei trabalhar e ganharei a vida.

- Ainda assim, imagino que não terás gostado de saber que tinhas perdido tudo...

- Não, claro que não, mas não sentirei falta de ser uma herdeira rica. Além disso, não quero pensar em dinheiro agora. Ainda estou de luto pela morte do meu pai.

Os olhos cinzentos do Hugh obscureceram-se.

- Por Deus, não o merece. Era um canalha e, embora me chamasse incompetente com frequência, entraste nesta empresa graças ao meu esforço. Lembro-te que não foi ele, mas eu, quem te deu um emprego. Harry nunca confiou em ti.

- Como acabo de dizer, isso já não importa. Vais falar com Lombard sobre a Comtek?

Ele sorriu.

- É claro. Nick Lombard conhece o negócio. Além disso, tem muito dinheiro e é um homem muito sólido.

- Mas também é um ladrão.

- Um ladrão? - perguntou Hugh, olhando para ela directamente nos olhos. - Estás errada, Camille, e não deverias permitir que as tuas emoções te ceguem. Lombard tinha qualquer coisa pessoal contra o teu pai, mas o teu pai estava totalmente obcecado com ele.

- Existia alguma ligação entre eles? Sei que estiveste com o meu pai desde o começo e...

- A que te referes? - perguntou Hugh, corando.

- Lombard contou-me algo que me surpreendeu. Aparentemente, a minha mãe esteve prestes a casar-se com o seu tio.

- Eu não sei nada disso - declarou.

- Tens a certeza? - perguntou, com desconfiança.

- É claro que sim. Porém, não quero falar desse assunto agora. Queria ver-te para conversarmos sobre o teu emprego.

- Ainda, porque acho que aquela promoção me correspondia a mim...

Hugh recostou-se na sua poltrona.

- Bob Denholm era um bom candidato. Talvez não te tenhas dado conta, mas tendes a tomar decisões arriscadas, como o teu pai.

- Se alguma vez me arrisquei, penso que foi sempre para bem da empresa - defendeu-se. - É o que se chama tomar decisões.

- Sim, mas não és tão cautelosa como deverias. Além disso, não trabalhas bem sob pressão.

- Hugh, não sei onde queres chegar, mas nunca te tinhas queixado de mim. De facto, sempre comentaste que o meu salário era mais que justificado. O que se passou?

Hugh abriu uma gaveta da secretária, tirou um frasquito com comprimidos e tomou dois sem água.

- Trata-se do teu apelido, Camille. As pessoas odeiam-no e alguns dos nossos accionistas não querem nem ouvi-lo. Até agora, apesar do tempo decorrido, há pessoas que ficam tensas quando o ouvem.

- Estás a despedir-me, Hugh?

Hugh suspirou.

- Camille, sempre te apreciei. Preocupo-me com o que te aconteça, mas Harry deixou muito rancor atrás de si e destruiu a tua carreira, embora sejas totalmente inocente. Já deves ter reparado que as pessoas se afastam de ti.

- Sim, já reparei, e não posso acreditar que me estejas a fazer isto, Hugh. Queres transformar-me no bode expiatório, embora tu próprio me tenhas dado o emprego que tenho.

- É verdade, e acrescento que to dei apesar do teu pai. Uma mulher tão bela como tu não precisa de trabalhar. De facto, pensei que gostarias de te afastar da empresa.

- Ah, claro... E suponho que pensas falar da minha demissão com Lombard.

- Não sejas absurda.

- Absurda? No próprio dia em que me despedes, reúnes-te com ele. Devo pensar que é um acaso?

- É uma simples coincidência, garanto-te. Simplesmente, acho que a tua presença na empresa seria muito inconveniente para todos.

- E o que queres que faça agora? Em que vou trabalhar? - perguntou; desesperada.

- És uma excelente profissional, Camille, mas, sinceramente, não julgo que ninguém te dê um emprego em Sidney.

Camille levantou-se da poltrona.

- É por Lombard, não é? Está obcecado em vingar-se. Certamente, chegou a algum tipo de acordo contigo - declarou.

Hugh também se levantou.

- Não posso acreditar que digas isso. Estás a decepcionar-me, Camille.

- Vai para o inferno, Hugh. Nunca te falhei. Trabalhei muito é ganhei o meu lugar, embora todos os outros pensassem que era só uma menina bonita e que não o conseguiria.

- Não partirás com as mãos vazias, Camille. É claro que tens direito a uma compensação económica e assegurar-me-ei de que seja muito generosa. No entanto, deves entender que incomodaste muitas pessoas. A inveja pode chegar a ser terrível, e à tua beleza e à tua inteligência soma-se o facto de seres filha de Harry - declarou Hugh. - Herdaste muitos dos seus inimigos, mas também tens alguns amigos, pessoas que poderiam ajudar-te...

- Pára já, Hugh, não continues. Não quero palavras. Só quero o que é meu.

- Pelos vistos, pareces-te mais com o teu pai do que pensava. Ele também se negava a receber ajuda de ninguém - declarou, com amargura.

- Ora, tenho a impressão de que toda a vida esperaste por poder dizer isso.

Hugh riu-se com frieza.

- Nunca desejei mal ao teu pai, mas é verdade que, como muitas outras pessoas, tinha contas pendentes com ele. Sei que te tornou a vida impossível, mas também não se pode dizer que te tenha deixado na rua... Tens as jóias da tua mãe. Esse colar de esmeraldas e diamantes que Harry Lhe ofereceu deve custar uma fortuna.

- Achas que devia vendê- lo?

- Terás que o fazer, e quando te decidires, acho que poderia ajudar-te a vendê-lo - respondeu. - É verdade, se eu estivesse no teu lugar, não falaria mal de Nick Lombard em público. É um homem muito poderoso, com muitos contactos, e as pessoas não esqueceram certas coisas.

- Obrigada por tudo, Hugh.

Camille virou-se e dirigiu-se à saída, mas Hugh seguiu-a.

- Não me leves a mal, Camille.

- E como queres que faça? Adeus, Hugh. Tomara que te engasgues durante o almoço com o homem que destruiu o meu pai.

Camille abriu a porta e encontrou-se, cara a cara, com Nick Lombard em pessoa. Foi uma surpresa tão inesperada e estava tão tensa que Lhe deu uma bofetada.

- Camille - exclamou Hugh.

Lombard puxou-a por um pulso e disse em voz baixa:

- Suponho que desejavas fazê-lo há tempo.

- Ainda não comecei contigo. Vais ver.

- Camille, basta... - interveio Hugh. - Lamento muito o sucedido, Nick. Perdoa-a.

- Perdoar-me? A mim? - perguntou Camille, com incredulidade. - É ele quem deveria pedir perdão por brincar com a vida das pessoas.

- Estás enganada, Camille - disse Hugh.

- Do que estão a falar? - interveio Nick.

- É um assunto privado - respondeu o executivo.

- Oh, vamos, deixemo-nos de jogos tolos - protestou Camille. - E agora, agradecia-te que me soltasses o braço, Nick.

- Não. Fá-lo-ei no seu devido momento.

- Por quem te tomas tu, afinal? - exclamou, zangada.

- Certamente não sou o teu inimigo, como tu pensas. Entremos no escritório e conversemos sobre isto.

- Não há nada para falar - insistiu Hugh.

- Isto é incrível - declarou Camille. - Não posso acreditar que ajas como se não soubesses que me despediram.

Nick Lombard semicerrou os olhos.

- Podes ter a certeza de que a tua posição na tua empresa não tem nada a ver comigo.

- Já te disse isso, Camille. Nick não tem nada a ver. A responsabilidade é minha e a decisão da tua demissão também.

- Então é verdade que te despediram... Não entendo, Hugh - declarou Nick. - Não dizias que Camille é uma grande profissional?

- E é, mas tem muitos inimigos na empresa por culpa do seu pai. Toda a cidade odeia o seu apelido e tu deverias sabê-lo melhor que ninguém, Nick. Além disso, tenho a certeza de que será mais feliz noutra empresa.

- Obrigada pela tua preocupação, Hugh - disse ela, com ironia.

Nick Lombard voltou-se para a mulher.

- És inteligente, trabalhadora e ambiciosa. Decerto que o teu apelido não te fechará todas as portas.

- Não, só as que tu possas fechar-me - replicou.

- Camille, estás a ir longe demais. Nick não tem nada a ver com a tua demissão. E agora, se não te importas, temos que nos ir embora. Falaremos noutra altura - desculpou-se Hugh.

- Não precisas de telefonar. Assegura-te de que me págam o que me devem e mais nada. Decepcionaste-me profundamente... Sempre pensei que fosses meu amigo e hoje provaste-me que és só um rato. Quanto a ti, Nick Lombard, és um verdadeiro monstro.

- Talvez o seja, mas espero que permitas que um monstro te acompanhe ao elevador.

- Nunca deixas de me espantar, Lombard - comentou ela.

- Nem tu a mim.

Hugh interveio então, aliviado por perdê-la de vista.

- Até mais tarde, Camille. Telefonar-te-ei na semana que vem e talvez pudéssemos ir almoçar.

- Preferiria morrer de fome, Hugh.

Camille afastou-se na companhia de Nick Lombard, mas tentou livrar-se dele.

- Já podes ir-te embora. Acho-me perfeitamente capaz de chamar o elevador sem a ajuda de ninguém.

- Não duvido, no entanto, embora agora não te apercebas, é possível que, em pouco tempo, te alegres por te terem despedido desta empresa. E mais: posso ajudar-te, se quiseres.

- Ajudar-me? - perguntou, verdadeiramente espantada. - Mas que tipo de hipócrita és?

- Eu não tive nada a ver com a decisão de Hugh - respondeu, com certa aspereza. - Nem sequer entendo por que insistes em relacionar-me com isso.

- Achas que sou idiota? Admitiste que querias vingar-te do meu pai e, agora que está morto, não descansarás enquanto não concluíres a tua vingança contra todos os Guilford.

- Isso não te inclui.

- Recordo-te que sou a filha de Natalie. Porém, agora que penso nisso... não estarás a agir assim porque a minha mãe feriu o orgulho da tua familia?

O rosto de Nick endureceu-se.

- Fê-lo, mas não sabia o que fazia. Guilford manipulou-a e dominou-a com a sua personalidade. Quando se deu conta do que se tinha passado, tinha uma filha para cuidar. Além de que o teu pai nunca teria permitido que o deixasse.

Lombard detéve-se um momento e acrescentou:

- Natalie nunca ocultou o seu desejo de abandoná-lo. Nem o facto de ter medo dele.

- Medo? O que estás a dizer? - perguntou Camille, surpreendida.

- Não sabes que disseram muitas coisas sobre a morte da tua mãe?

- Não penso continuar a ouvir! - exclamou, indignada: - Como te atreves a falar nesses termos de um homem que está morto e que nem sequer pode defender-se? O acidente da minha mãe esteve prestes a deixá- lo louco. Além disso, foi investigado e a polícia disse que...

- Sei muito bem o que a polícia disse - interrompeu-a. No relatório, dizem que o teu pai arriscou a sua própria vida, mas é possível que o fizesse depois de a ter empurrado ao mar.

- Vai para o inferno. Não te chegou o facto de teres destruído o meu pai? Agora acusá-lo de assassinato... Pois bem, tu é que deverias ir para o inferno!

Estava sozinha nas águas-furtadas do edifício, onde se encontrava a sede da Comtek. Os magníficos quadros que adornavam o santuário do seu pai já tinham desaparecido das paredes, mas os tapetes persas, as estátuas e os móveis continuavam ali. Tremendo, sentou-se na poltrona que estava atrás da secretária. A mesa era enorme e ainda se viam sobre ela os objectos de Harry Guilford: a sua caneta, o seu mata-borrão e o seu cinzeiro de cristal. Estar ali, na poltrona do seu pai, parecia-lhe estranho e doloroso. Contudo, dessa vez, havia algo mais que a sensação de perda; sabia que tinha feito coisas terríveis e que se comportara muito mal com os seus próprios empregados, mas nunca tinha chegado a considerar a possibilidade de ter magoado Natalie.

Tentou convencer-se de que Nick Lombard só pretendia vingar-se, de que se lhe envenenara o sangue com o assunto do seu tio. E estava tão imersa nos seus próprios pensamentos que quase se sobressaltou quando, segundos depois, ouviu a voz de uma mulher.

- O que está aqui a fazer?

Era a secretária de Hugh, que olhava para ela com desaprovação.

- Não acho que isso seja assunto teu - respondeu Camille, com tranquilidade.

- Não deveria estar aqui - insistiu.

- Pois tenho intenção de ficar um bom momento. Estas águas-furtadas eram o santuário do meu pai e eu continuo a ser a sua filha; de facto, recordo-te que nunca te deixaram entrar. Portanto, podes descer e informar Hugh, se quiseres. É um homem tão sensível e encantador que tenho a certeza de que não se importará que fique uns minutos - declarou, com ironia.

- Está bem, como queira - disse Ruth, enquanto olhava em seu redor com apreensão. - Pessoalmente, parece-me um lugar macabro.

- Nesse caso, faça-nos um favor às duas e vá-se embora.

 

O telefone estava a tocar quando Camille entrou no quarto. Era a sua amiga Linda.

- Sou eu - disse, sem se apresentar. - Como foi com Hugh?

Camille sentou-se na cama e descalçou os sapatos.

- Antes de entrar nessa matéria, como estás tu? Ontem à noite estavas com mau aspecto.

- E esta manhã vomitei -informou-a. - Tens que ver o que se sofre com uma gravidez.

- Bom, dentro em pouco sentir-te-ás melhor.

- Assim espero, pois sinto-me esgotada e muito feia. Camille riu-se.

- Eh, não te queixes. Estás casada com um grande homem.

- Sim, eu sei. Além disso, esforça-se por mim. O problema é que Stephen quer ter quatro fillhos. Enfim, conta-me sobre Hugh. Espero que não te tenha complicado as coisas.

- Oh, não. Fez algo mais que complicá-las: despediu-me.

- Despediu-te?

- Com efeito.

- Diz-me que estás a brincar...

- Não. Toda a gente me quer fora daquela empresa. Sou a filha de Harry Guilford e essa não é a melhor carta de apresentação; além disso, Hugh pensa que tenho uma conta secreta na Suíça ou uma coisa assim. Encontrarei outro emprego. Quase fico contente de que me tenha despedido, porque aquele emprego foi conseguido por puro nepotismo.

- O que estás a dizer? Esse emprego foi ganho a pulso. Hugh limitou-se a dar-te uma oportunidade.

- Seja como for, já não me quer na empresa. E até Ruth Maynard quis pôr-me no meu lugar.

- Essa mulher é detestável - observou a sua amiga. Façamos uma coisa... Por que não vens jantar cá esta noite? Estaremos só nós os três e talvez Jeffrey, se não tiver outro compromisso. Ambas precisamos de nos animar um pouco, e o que melhor para isso que uma noite alegre entre amigos?

Camille aceitou e, horas depois, encontrava-se em casa dos seus amigos. Como Linda tinha dito, Jeffrey Prior estava presente. Era um jovem atraente que estava apaixonado por Camille há anos. Tal como Stephen, o marido de Linda, trabalhava na prestigiosa firma Carghill Kempner Morris, fundada por um bisavô de Stephen.

- Isto é que é relaxante... Precisava de saborear a tranquilidade - declarou Camille, deitando a cabeça para trás.

- E eu precisava de te saborear a ti - comentou Jeffrey, com humor.

Camille deu-Lhe uma palmadinha num braço.

- És um grande amigo, Jeffrey...

Linda apareceu naquele momento com os primeiros pratos do jantar. Assim que a viu, o seu marido levantou-se para a ajudar.

- Espero que estejam famintos - comentou Linda.

- Como sempre, bem sabes - disse Camille.

- Excelente.

O primeiro prato consistia em salmão fumado com caranguejo e gambas. Além disso, a noite era tão boa que jantaram no jardim, à luz do luar. O lugar era francamente belo. A piscina brilhava com uma cor azul intensa e as trepadeiras, encarrapitadas em postes e pilares, completavam o ambiente.

- Um jantar maravilhoso - comentou Stephen. - És insuperável.

- A tua mãe não pensará o mesmo, Stephen - disse Linda, com ironia.

A mãe do seu marido não perdia a oportunidade de criticá-la e nunca valorizava o que fazia. Era o típico caso de mãe possessiva com o seu filho único.

- Esquece isso agora - protestou Stephen. - Disse que és insuperável e repito-o. Fazes-me muito feliz.

- Então, brindemos a isso - exclamou Camille. Todos sorriram e brindaram. No entanto, no olhar de Linda havia algo profundamente triste.

No jornal da tarde apareciam algumas fotografias do acto da noite anterior. Numa delas estavam Nick Lombard e a própria Camille, juntos.

- Acreditas nisto? - perguntou Camille a Tommy.

- É uma fotografia muito boa. Estás linda e ele é um homem muito elegante.

- Esse é um comentário muito pouco apropriado. Qualquer pessoa que a veja pensará que somos amigos desde sempre.

- Bom, não há dúvida de que tem um certo ar romântico...

- As pessoas pensarão que vendi a minha alma ao diabo - declarou. - Estou furiosa, Tommy.

- Ora, é só publicidade. Não tem importância.

No dia seguinte, o telefone não parou de tocar durante toda a manhã. Decidida a escapar das chamadas, Camille foi à cidade. Estava sentada num café quando uma mulher se aproximou da sua mesa.

- Camille?

Camille elevou o olhar e teve que fazer um esforço para controlar o seu desconforto.

- Olá, Clare.

Clare Tennant sentou-se ao seu lado sem esperar que a convidasse.

- Tinha a certeza de que eras tu. O teu cabelo é inconfundível... - comentou a mulher. - Na verdade, a noite de ontem foi maravilhosa.

- Sim; foi.

Camille estava perfeitamente consciente do sarcasmo que o sorriso de Clare ocultava.

- Comportaste-te como uma verdadeira dama, embora suponha que a visita do teu ex-noivo e dessa muLher não te tenha agradado nada. Diz- se que vão casar...

- Sim, foi o que ouvi. Dar-se-ão bem.

- Será que detecto um tom de ironia no teu comentário?

- Não, de modo algum. Espero que sejam muito feli zes.

- Não sei o que te dizer. Consta-me que Robyn tomou a iniciativa nesse assunto. É uma jovem muito decidida.

Clare Tennant era uma mulher magra e elegante e era muito sensual. Apesar de ter perto de quarenta anos, aparentava ter só trinta.

Suspeito que toda a gente terá visto essa fotografia do jornal - disse a mulher, observando-a com os seus olhos de cor cinzento-azulada. - Nick e tu... Caramba. Aquele homem tem um olhar muito intenso.

- Oh, sim. E também tem certas obsessões não menos interessantes.

- Eu sei, e lamento por ti - declarou, enquanto lhe dava uma palmadinha. - Nick é um bom partido. Já sabes que somos muito amigos...

- Acompanho-te no sentimento - disse Camille, com ironia.

Clare Tennant riu-se.

- Já sei que não se dão muito bem. Contudo, quando vos vi juntos, tive a sensação de que há uma espécie de magia entre vocês.

- Magia? Eu diria fogo. Estava tão zangada que estive prestes a começar a arder. Nick Lombard não se encontra entre as minhas pessoas mais queridas.

- Entendo a tua atitude. Afinal, o teu mundo veio abaixo.

- Sim, e Nick não me ajudou nisso - disse Camille.

- Enfim, fico contente por te ter visto, Clare, mas agora tenho que sair. Deixei o carro na rua e o meu tempo de parquímetro está prestes a terminar.

A mulher olhou para ela com surpresa.

- Ah, sim, vi o teu carro lá fora. Não sabia que ainda o tinhas, pensei que terias vendido tudo.

- Aquele carro é meu, Clare. Paguei por ele.

- Não te zangues, Camille - murmurou, em tom conciliatório. - Sou uma das poucas pessoas que está do teu lado. De facto, tive uma bela surpresa quando soube que Hugh Evans te tinha despedido.

- Como descobriste?

- Disse-mo Nick.

- Pois acredita em mim: nunca teria pensado que te preocupavas com o meu bem-estar.

Clare abanou a cabeça.

- Interesso-me sempre pelas mulheres que chamam à atenção de Nick.

- O que tentas dizer-me, Clare? É algum tipo de mensagem?

- Ena, deste-te conta...

- Enganas-te se achas que Nick Lombard está interessado em mim. Além, é claro, do facto de ter as mãos manchadas com o sangue do meu pai.

- Tolices! O teu pai suicidou-se e, pessoalmente, acredito que não tinha muitas opções. Harry Guilford acabou com as vidas de muitas pessoas decentes, mas tu não tens culpa disso - afirmou, com um sorriso quente.

- Eu gostaria de ser tua amiga, Camille. Quem sabe... poderíamos combinar um almoço um dia destes.

- Muito obrigada, Clare, mas agora não tenho muito tempo. Tenho que encontrar um emprego.

- Oh, tenho a certeza de que Nick te ajudará. Além disso, disse-me que falaste com ele no escritório do Hugh.

- Assim foi, mas Nick Lombard seria a última pessoa do mundo a que acudiria.

Clare Tennant voltou a sorrir.

- Admiro o teu orgulho e a tua determinação. Diz-me uma coisa, vais assistir ao leilão, ou não queres?

- Prometi aos organizadores que estaria lá e lá estarei, por muito que me desagrade. Aparentemente, pensam que a minha presença pode facilitar a venda.

Clare assentiu.

- Não é de estranhar. As pessoas são assim. Telefona-me se puder ajudar-te em alguma coisa... O meu telefone está na lista.

O dia do leilão amanheceu com chuva, mas, às dez da manhã, o céu já estava limpo. O pessoal da empresa Christie chegou à mansão Guilford muito cedo e os primeiros clientes não se fizeram esperar.

O leilão de quadros e antiguidades ia ser levado a cabo em dois dias e a primeira sessão começou às onze. Camille sentou-se ao fundo, para não perder nem um detalhe; ao fim e ao cabo, tudo o que iam leiloar eram objectos familiares, e era-lhe muito doloroso.

Entre os objectos a leiloar, encontrava-se um quadro de equitação, que adquirira para oferecer ao seu pai, de que Claude gostara muito. As vendas correram muito bem; embora os quadros mais importantes fossem vendidos à tarde. Linda tinha insistido em aproximar-se da casa para apoiar moralmente a sua amiga, mas Camille recusou; preocupava-a a sua gravidez.

Quanto aos assistentes, de vez em quando, voltavam-se para observar as suas reacções. No entanto, Camille manteve o aprumo. Vestiu o seu fato cor de lima, com sapatos a condizer, e brincos de pérolas. Quanto ao cabelo, tinha-o deixado solto. Tommy comentara que uma coisa era ser pobre e outra parecê-lo, e Camille estava de acordo com ele.

Ao fim de um momento, ouviu uma voz familiar.

- Importas-te que me sente contigo?

Era Nick Lombard.

- Não te posso impedir, mas preferiria que não o fizesses.

- Oh, é por uma boa causa - disse, enquanto se sentava ao seu lado. - Como vão as coisas?

- Razoavelmente bem. É uma colecção importante, afinal. Vieste para comprar alguma coisa?

- Pessoalmente, não. Deixarei que os meus agentes se encarreguem.

- É claro.

- O teu pai não fazia o mesmo?

Camille não respondeu.

- O importante é que se mantenha a tensão necessária. Só estou há uns minutos na casa, mas dei-me conta de que toda a gente te observa.

- É lógico que as pessoas sintam curiosidade - disse ela. - Muitos não são compradores; são pessoas que querem misturar-se com os ricos e famosos. Suponho que, de certa forma, o meu pai foi vítima dessa mesma necessidade... Teve uma infância terrível e quis compensá-lo.

Nick limitou-se a olhar para ela.

- Não vais dizer nada sobre o meu comentário? perguntou ela, desafiando-o.

- Não. Estou de acordo contigo. Surpreendida, ela desceu o olhar.

- Nunca falava da sua infância. Tudo o que sei, é graças a Claude. O meu pai calava muitas coisas...

- Alguma vez lhas perguntaste?

- Claro que sim, mas não me respondia. Digamos que não mantínhamos uma boa relação. Mas, apesar disso, comprovarei a veracidade da história que me contaste sobre a minha mãe e o teu tio.

- Podes perguntar a Claude.

- Não acho que ele saiba grande coisa sobre as relações da minha mãe. Se o soubesse, ter-me-ia dito.

- E arriscar-se a que o teu pai descobrisse? Não, não o teria feito. Olha... Acabam de vender uma aguarela por trinta e cinco mil dólares.

- Insinuas que Claude sabe? - perguntou ela.

- Pergunta-lho e tirarás as dúvidas. A mórte do teu pai mudou muitas coisas.

- E a do teu tio. Obcecou-te com a vingança.

- Nunca neguei que tinha certos preconceitos quanto ao teu pai - comentou Nick. - Conheci a tua mãe um dia, quando o meu tio a levou à nossa casa. Embora fosse só uma criança, dava-me conta de que estavam profundamente apaixonados. Era uma mulher encantadora e muito bela, mas fraca. E tanto a minha familia como eu mesmo estamos convencidos de que o teu pai a destruiu.

- Já te disse que a minha mãe e o meu pai eram felizes. Recordo como ele a beijava, como a acariciava, como a abraçava... olhava para ela com verdadeiro amor e estavam à espera de um segundo filho. Achas que isso é próprio de um casal infeliz?

Lombard preferiu não dizer o que pensava e mudou de conversa.

- Estou interessado naquele Rodin de bronze - disse, enquanto contemplava o bonito perfil de Camille.

- Eu não gosto que me olhem desse modo - observou ela.

- Pareces um pouco tensa...

- Qualquer um estaria se se encontrasse na companhia do Diabo.

- Nesse caso, poderias jantar comigo esta noite. Camille ficou tão espantada com a proposta que se virou para olhar para ele. Vestia um fato cinzento-escuro impecável e o casaco acentuava a largura dos seus ombros. Era um homem extremamente atraente e elegante, mas parecia-lhe tãodestrutivo e perigoso como um leopardo.

- Deixaste-me sem fôlego - disse ela, com ironia.

- Não queres saber averdade? Acabas de admitir que o teu pai não te contava quase nada. O que se passa? Tens medo do que possas descobrir?

- Não, tenho medo de ti - respondeu com calma. Ah, os Masterman acabam de chegar...

- Suspeito que Robyn quer adquirir esse Streeton, mas asseguro-te que não o vai conseguir.

- Vais comprá-lo?

- Não, mas sei quem o vai fazer. E voltando ao assunto do jantar, perguntei por úma razão especial. Tenho um velho álbum de fotografias que gostaria que visses.

- Isso é chantagem.

- Sim, claro que sim.

- De quem são as fotografias?

- Prefiro que falemos mais tarde.

- Não, obrigada. Detesto que me manipulem.

- Eu também, portanto, já temos alguma coisa em comum - comentou Nick. - Enviarei o meu motorista às sete e meia da tarde. Jantaremos na minha casa, mas relaxa: comigo, estarás mais a salvo que com esse Garner. Além disso, penso que tens o direito de ver esse álbum. O que me dizes? Virás?

Camille demorou uns segundos a responder e, quando o fez, disse:

- Pensarei nisso.

Ela já estava à espera quando o velho Bentley estacionou à porta da mansão e os seus faróis iluminaram a fonte da entrada.

O guarda de segurança aproximou-se então e, antes de se dirigir ao veículo, disse:

- Espere um momento aqui, menina Guilford. Vou comprovar que está tudo bem.

- Fico contente por tê-lo contratado - comentou Tommy, satisfeito. - Leva muito a sério o seu trabalho.

Camille assentiu e deu um beijo na face de Tommy.

- Não esperes por mim acordado.

- Sabes bem que o farei. Faz-me só um favor: telefona-me quando estiveres prestes a voltar.

- Está bem, fá-lo-ei...

Assim que entrou no veículo, o motorista saudou-a.

- Boa noite, menina Guilford. Ainda bem que trouxe a minha identificação... O seu guarda de segurança é um profissional.

- É o seu trabalho.

Camille contemplou o interior do elegante veículo e, segundos depois, começaram a andar.

Deixaram para trás a ponte do porto de Sidney e diri giram-se à margem norte, onde se encontrava a mansão de Nick Lombard. Camille estava um pouco nervosa perante a perspectiva de se encontrar com o homem que julgava ser o seu pior inimigo, mas o tempo passou a voar e, quando se apercebeu, já tinham chegado. Além disso, era só um percurso de vinte escassos minutos.

- Chegámos, menina - anunciou o motorista. O condutor deteve o veículo em frente a um enorme portão de ferro forjado e premiu o controlo remoto. O portão abriu-se lentamente e o carro avançou pelo caminho até à frente da casa.

Nick estava à espera na entrada.

- Boa noite, Camille.

- Boa noite.

Nick quis apertar-lhe a mão, mas ela afastou-se.

- Podes ir para casa, Max - comentou Nick ao seu motorista. - Encarregar-me-ei pessoalmente de levar a menina à sua casa.

- Muito bem, senhor.

Nick ainda trazia o fato que vestira para o leilão e ela pressupôs que acabava de chegar à mansão. Assim que entraram, ofereceu-lhe algo para beber.

- Queres um martini? Eu necessito de uma bebida. Estive a falar durante três horas.

- Isso não pode ser bom para ninguém.

Nick voltou-se para ela e observou-a com atenção. Camille tinha vestido uma camisa de seda e uma saia a condizer, de cor violeta.

- Estás linda.

O comentário não lhe pareceu tão interessante como o seu olhar. O que brilhava nos seus olhos parecia ser, surpreendentemente para ela, desejo.

- Obrigada pelo elogio, mas não me arranjei para ti - declarou; afastando o olhar. - Ah, vejo que também gostas de porcelana chinesa...

Camille reparou nas peças de porcelana que adornavam o vestibulo.

- Herdei a colecção da minha avó materna.

- Uma sorte, não há dúvida. Nick sorriu, então, e disse:

- Bem-vinda à minha casa.

- Asseguro-te que não me sinto especialmente contente por estar aqui, embora tenha que reconhecer que vives num lugar muito bonito:

- Eu gosto.

- Não admira. Penso que também poderia acostu mar-me - disse ela, com um sorriso tímido.

- Poderias voltar a fazer isso?

- A que te referes?

- A sorrir.

- Não sorri por ti, mas por essa tapeçaria com a imagem de uma noiva... É muito bonita.

- Ah, sim, é uma tapeçaria flamenga do século XVII.

É mesmo o teu estilo. Tem os teus traços e o teu cabelo. Vamos entrar e sentar-nos... estarás mais confortável. Queres um martini ou preferes outra coisa?

- Preferiria algo menos forte.

- O martini far-te-á bem. Muito seco e com um toque de limão.

Está bem, um martini então. Importas-te que dê uma olhadela enquanto isso?

- Não, de modo algum. Só não desapareças. Nick levou-a para uma sala e afastou-se um pouco, o suficiente para preparar o cocktail no bar. Camille aproximou-se então da lareira e observou o quadro que estava pendurado na parede. Era uma paisagem.

- Ah, disseram-me que tu o tinhas comprado...

- Sim, mas não o digas a ninguém.

Nick regressou com dois copos e deu-lhe um.

- Só espero que não acendas a lareira com o quadro em cima - comentou ela.

- Não, claro que não - disse, enquanto a convidava a sentar-se num sofá.

Camille sentou-se.

- Eu gostaria de ver esse álbum, se não te importas.

- Tudo a seu tempo. Agora tenho que ir mudar de roupa. Podes dar uma olhadela à casa se quiseres... Recomendo-te a biblioteca. Não demorarei.

- Se me deixares o álbum, tanto me faz que demores.

- Não, nada disso. Ah, na verdade... Não tentes ir-te embora, porque não poderias.

- Porquê?

- Porque os cães estão soltos no jardim e não são muito simpáticos com os desconhecidos.

Assim que Nick saiu, Camille levantou-se e dirigiu-se directamente à biblioteca, que se encontrava atrás de uma enorme porta dupla. Tal como o seu anfitrião comentara, era uma sala formidável com uma escada de ferro, em caracol, que subia até à galeria superior.

Nesse instante, um inesperado movimento surpreendeu-a. Voltou-se rapidamente e encontrou-se perante uma menina que estava sentada no primeiro degrau da escada. Usava o cabelo apanhado numa trança e olhava para ela.

- Olá... Espero não te ter assustado. O meu nome é Camille.

- Sei quem és - disse ela, com uma mistura de curiosidade e agressividade.

- E como te chamas?

- Não vou dizer-te - respondeu.

A pequena era de pele muito clara e olhos pretos, como os do seu pai.

- Então terei que adivinhá-lo. Vejamos, eu diria que te chamas Zara ou Adriana... Sim, decerto que tens um nome forte e dramático, um nome a condizer com os teus olhos.

A menina sorriu.

- Ah, vejo que sorris...

- Eu nunca sorrio - disse a menina.

- Pois juraria ter-te visto fazê-lo.

- Não, não é verdade. Além disso, quero saber o que estás a fazer na minha casa.

- Vim para ver umas fotografias da minha mãe, conforme julgo.

- Não é verdade. Vieste para te casares com o meu pai.

Camille não pôde evitar começar a rir-se.

- Não, não tenho intenção nenhuma de me casar. Garanto-te que essa ideia não passou pela minha cabeça.

- Então, não estás apaixonada por ele?

- Não.

A menina observou-a com atenção e disse:

- Tens um cabelo muito bonito. Os caracóis são teus ou fizeste uma permanente?

- São naturais. Queres tocar-lhes? - perguntou Camille.

- Sim...

- Importas-te que me sente ao teu lado?

Camille sentou-se e a menina estendeu um braço e acariciou os seus caracóis.

- São de cores diferentes...

- Eu sei. Tenho um cabelo bastante complicado, entre o vermelho e o loiro.

- O meu é horrível.

- Não é verdade, eu gosto - disse Camille.

- Eu prefiro o teu. Além disso, li a história de uma princesa e agora sei que sou feia em comparação.

- Por que dizes isso?

- Porque sou:

- Ora, tens coisas bonitas... Os teus olhos, por exemplo, são lindos.

- Não é verdade. Sou como o patinho feio. Camille inclinou-se sobre a pequena.

- Não gostas de patos? Eu adoro e consta-me que não há nenhum patinho feio.

- Talvez. A minha mãe, sim, era bonita.

- Tenho a certeza disso...

Camille pegou na mão da menina e a pequena não se afastou.

- O meu pai é muito bonito e importante.

- Sim, é verdade. Mas não vais dizer-me como te chamas?

- Melissa - respondeu, por fim.

- Melissa.

- Eu não gosto do meu nome.

Camille olhou para a menina e esta olhou para Camille. As duas sabiam que o nome não lhe assentava.

- E não tens um segundo nome?

- Sim, Claudia, da parte da minha bisavó. Era uma condessa italiana - acrescentou com o nariz empinado.

- Que maravilha! Eu estive em Itália uma vez. Visitei muitos museus e até fui ao La Scala, o famoso teatro da ópera. Fiz muitas compras... Gostas de ir às compras?

- Não me deixam ir. A menina Larkins leva-me ao colégio e traz-me para casa. Odeio todas as coisas más que me faz.

- Que coisas te faz?

- Muitas. Além disso, odeia-me. Diz que sou uma menina complicada e um destes dias vou matá-la.

Camille não levou a sério a afirmação da menina. Sabia que era uma simples tolice.

- Melissa, isso de falar em matar pessoas é muito feio...

- Bom, não a vou matar, mas pensei nisso. Camille sorriu.

- Todos dizemos coisas más quando estamos zangados; é uma forma de nos libertarmos do nosso aborrecimento.

- Ela pensa que sou tola. Quando o meu pai está diante, comporta-se muito bem. Porém, quando não está...

Camille observou-a e, por alguma razão, acreditou no que dizia.

- Falaste disto com o teu pai?

- Não, só serviria para piorar as coisas. As amas nunca ficam muito tempo. Além disso, fugi duas vezes.

- E para onde foste?

- Para longe, muito longe. Oh, por que não posso ser feliz? - perguntou-se, como se carregasse um grande peso nas costas.

- Procuraremos coisas que te façam feliz, não te preocupes. Por exemplo, poderias tirar essa trança. O teu cabelo é muito bonito e ficarias muito mais bonita. - Nada pode tornar-me bonita. É uma pena, con forme diz Clare... ela traz-me sempre cadernos e lápis

para pintar. A menina Larkins diz que é uma mulher maravilhosa, tão rica e bonita. Eu, pelo contrário, acho que são umas bruxas.

- Não tens um cão ou um gato? - perguntou Camille, para mudar de assunto.

- Tive um gatinho, mas a menina Larkins disse que eu lhe fazia mal, o que era mentira. Só o meti na minha caixa de brinquedos porque ela estava prestes a vir. Salty incomodava-a. Quando subia para o sofá, zangava-se com ele.

- E onde está Salty agóra?

- Dizem que fugiu e deitaram-me as culpas. No entanto, eu sei que não fugiu; ela livrou- se dele. Era um gato bastante feio, com um olho branco e o outro preto. E, depois disso, a menina Larkins disse ao meu pai que seria melhor que não tivesse outro animal durante uma temporada.

- E o que disse o teu pai?

- Que já temos muitos cães e que posso brincar com eles. - Então, não acreditou em ti?

- Bom, não me expliquei muito bem... Ele só queria que não fizesse mal aos animais. Mas eu não lhes faço mal. Eu gosto mais deles que das pessoas.

- Mais uma razão para averiguar o que se passou com o teu gato...

A menina mudou então de conversa e disse:

- A minha mamã adorava-me. Dizia que era a menina mais bonita do mundo e amava-me.

- Compreendo. Eu também perdi a minha mãe.

- E zangaste-te muito?

- Oh, sim...

- Agora, tudo está vazio sem ela. Estava sempre a rir-se... Dava muitas festas e o meu pai e ela conheciam muitas pessoas.

- De certeza que sim - disse Camille, que rapidamente tentou animá-la com outra coisa. - Sabes o que eu acho? Que és uma menina muito inteligente e perspicaz.

- Sim, bom, mas às vezes tenho medo de ser tão inteligente. Já sou demasiado diferente dos outros.

- Em que sentido? - perguntou-lhe, preocupada com o seu tom.

- Sou feia, faço birras, minto... Soú uma pessoa má. Camille pensou que Lhe diziam tantas coisas más que não era estranho que fosse uma menina tão agressiva.

- Oh, Melissa, isso é terrível... Quem te acusou de ser todas essas coisas?

Em vez de responder, a menina afirmou:

Lamento que a minha mamã tenha tido uma filha tão má.

- Mas a tua mamã adorava-te...

- Sim, costumava dizer que eu era a sua linda princesa e queria que estivesse sempre ao seu lado. Um dia, ouvi a menina Larkins e Clare, falarem sobre mim. Escondi-me atrás de um sofá e ouvi a menina Larkins chamar-me todas essas coisas... Clare disse que tinha razão. Ela está apaixonada pelo meu pai, tenho a certeza. O meu papá é tão bonito e a minha mamã era tão bela... Eu sou uma terrível decepção para todos.

- Não digas isso! - protestou Camille. - O teu pai...

- Por favor, não digas nada que possa incomodar o papá. Que digam o que quiserem. A minha mamã amava-me e eu sei.

Nesse momento, apareceu uma mulher que Camille

não conhecia.

- Ah, então estás aí, Melissa...

- Vai-te embora! Estou a falar com a minha amiga.

A mulher não fez caso. Tinha uns quarenta anos, era

bonita e de aspecto competente.

- Ai, Não sei o que vou fazer com esta menina - disse, olhando para Camille com um ar de cumplicidade. - Tão pequena e já se faz notar.

- Suponho que seja a menina Larkins... Eu sou Camille Guilford.

- Sim, é claro. Reconheci-a pelas fotografias da imprensa. Pergunto-me como terá conseguido Melissa escapar do seu quarto...

- Terá saído pela porta - disse Camille.

- Ela fechou-me. Odeio que o façam - protestou a

menina.

- Eu também não gosto - disse Camille.

- É só por pouco tempo - defendeu-se Larkins. Não sabe como pode chegar a portar-se mal. Enfim,

Melissa, é hora de ires para a cama...

- Quero que Camille me acompanhe.

- Isso não pode ser... despede-te dela. Tenho a certeza de que terá muito que fazer...

- Não, não me importo nada - disse Camille, enquanto dava a mão à menina. - Acompanho-a ao seu

quarto.

- Eu não gosto do meu quarto - declarou a pequena.

- Porquê? Qualquer outra menina o adoraria - disse

Larkins.

- Pois eu detesto-o!

- Anda, vem comigo - disse Camille.

- Não acho que seja boa ideia - comentou a ama.

- Pode saber-se porquê?

- Porque não se deve ser demasiado indulgente com

as crianças.

- Bom, não acho que levá-la para a cama seja algo que entre na categoria da indulgência. De qualquer modo, assumo a responsabilidade.

Quando chegaram ao andar superior da casa, encontraram-se com Nick. Mudara de roupa e vestia calças escuras, uma camisa branca aberta e um casaco azul, que lhe davam um ar mais jovem e fresco.

- Ah, estou a ver que se conheceram...

- Sinto muito, senhor Lombard - apressou-se a dizer Larkins. - Só deixei Melissa por um momento e...

- Olha que travessa, Melissa!

Nick disse-o com um enorme sorriso. Inclinou-se, abriu os braços e. a menina correu para ele.

- Não se preocupe, menina Larkins. Já trato dela... Camille ajuda-me.

- Como queira, senhor - disse Larkins, visivelmente zangada. - Boa noite, então. Até amanhã, Melissa.

- Não é preciso que venhas amanhã. É sábado e Emmy vai ensinar-me a fazer bolos de chocolate - disse a menina.

- Melissa, será que alguma vez consegues portar-te bem? - perguntou o seu pai:

- Tentarei, prometo. É verdade, Camille não está apaixonada por ti... Disse-me ela.

- Sim, eu também o sabia - disse Nick, com certo sarcasmo. - De facto, não gosta nada de mim.

- Oh, claro que gosta - declarou Melissa. - Clare diz que todas as mulheres estão loucas por ti.

- Todas, excepto eu - particularizou Camille. O quarto da menina revelou-se tão grande como o resto das salas da mansão. Era muito bonito, mas Camille não estranhou que não gostasse. Pelo seu tamanho, podia assustá-la.

- Vês, Camille? - perguntou Melissa.

- O que queres que veja? - perguntou o seu pai.

- Disse a Camille que não gosto do meu quarto, papá.

- A sério? - perguntou, surpreendido. - Nunca teria imaginado...

- Claro, Disse-te que gostava.

- E só o disseste para me agradar? Que tolice. Se não te agrada, podemos mudá-lo. Do que é que não gostas?

Camille decidiu intervir para lhe dar uma mão.

- Talvez seja demasiado grande para ela. Tenho a certeza de que adorará quando for mais velha, todavia, é

demasiado sério de momento. As crianças gostam de coisas mais leves.

- Compreendo. Mas encomendei a cama precisamente para ela.

- E é muito bonita - disse, contemplando a bonita cama de madeira. - Mas talvez gostasse mais se fosse mais pequena. De certeza que se sentiria melhor se tirasse o dossel.

- Isso é possível, papá? - perguntou a menina com ansiedade.

- É claro que sim.

- Eu gosto dos móveis às cores - declarou Melissa.

- Gosta de amarelo? - perguntou Camille.

- Oh, sim, gosto muito! O meu vestido mais bonito é amarelo. Ofereceu-mo a tia Elizabeth, que vive em Melbourne. Todos a chamam lady Wyatt, conhece-a?

- É a minha irmã - explicou Nick.

A explicação do homem era desnecessária. A tia da pequena casara-se com o famoso Peter Wyatt, que acabava de entrar no Supremo Tribunal.

- Bom, penso que, enquanto dormes, poderias pensar nas mudanças que queres para o teu quarto - sugeriu

Camille. - Decerto que na casa há outro quarto de que gostes mais e que se possa pintar das cores que queiras. Além disso, poderias pôr-lhe cortinados e uma colcha a condizer, e até uma escrivaninha para que possas estudar lá.

- Isso seria maravilhoso! Sim, é o que quero.

- Pois, em tal caso, não se fala mais nisso - disse o seu pai. - Será como dizes. E tudo graças a Camille...

Nick inclinou-se então para dar um beijo de boa noite à menina.

- Fico muito contente de te ter conhecido - confessou a pequena a Camille.

- Eu também fico contente - interveio Nick, - contudo, deverias ter-me dito que não gostavas do teu quarto.

- É que a menina Larkins diz sempre que não devo protestar.

- Se não gostares de alguma coisa; deves dizer-me. A menina Larkins está aqui para cuidar de ti, mas eu sou o chefe.

Melissa sorriu.

- Pois eu gostaria que a despedisses.

- Melissa... Quantas amas já tiveste?

- Prometo-te que tentarei dar-me bem com elas, papá. Mas a menina Larkins é a pior de todas.

- Bom, falaremos disso mais tarde.

- Podes ficar aqui até adormecer, papá?

- Hoje não posso - respondeu, enquanto a metia na cama. - Está a ficar tarde e vou jantar com Camille.

- Camille disse que o meu cabelo fica melhor solto. Talvez pudésse levar-me ao cabeleireiro para que mo cortassem de outra forma...

Pela primeira vez, Camille amaldiçoou a menina. Estava a envolvê-la numa situação que lhe desagradava porque implicava estar perto de Nick Lombard. Mas, por outro lado, Melissa tinha-Lhe caído no goto.

- Se quiseres que te leve, poderia passar para te vir buscar uma tarde destas, quando saíres do colégio.

- Amanhã - disse a menina.

- Estarei muito ocupada durante os próximos dias, mas prometo-te que te acompanharei assim que puder, se o teu pai não vir nenhum inconveniente.

- Mas não posso esperar...

- Para que queres que te cortem o cabelo? - perguntou Nick. - Se é tão bonito...

- É verdade, é muito bonito - interveio Camille, mas certamente ficaria melhor se o usasse um pouco

mais curto. Confia em mim. Sei destas coisas.

Nick olhou para ela com humor e perguntou:

- Há quanto tempo estás na minha casa?

- Há meia hora, mais ou menos. Porquê?

- Porque conseguiste mudar uma série de coisas em

questão de minutos. Não sei se conseguirei aguentar.

- Está a brincar - disse Melissa. - Adora gozar com

as pessoas. Não faças caso.

- Não te preocupes, não farei. Mas agora tens que

dormir. Fico contente de te ter conhecido.

- Eujá te conhecia... Vi-te montes de vezes.

- A sério? - perguntou Camille, surpreendida.

- Claro, és como a princesa da tapeçaria da entrada.

O papá também acha que te pareces com ela. De facto,

disse que a princesa da tapeçaria vinha cá jantar. Por

isso me escondi, para te surpreender...

- Pois foi úma sorte que o fizesses.

- Foi o destino. O destino faz destas coisas - disse a

menina, muito séria. - Boa noite, Camille... Ah, uma

coisa: por que não pedes ao papá que me mude o nome?

Também não gostas. Dei-me conta.

Nick Lombard olhou para elas sem sair do seu espanto, mas esperou até sair do quarto para perguntar.

- De que estavam a falar?

- Melissa não gosta do seu nome. Acha que não Lhe

assenta bem.

- Hum... Talvez tenha razão, mas escolheu-o a sua

mãe.

- Tem muitas saudades dela...

- Sim, eu sei.

- Disseste-o sem grande convicção. Achas que não se lembra dela?

- Bom, tinha só quatro anos quando morreu, mas tenho a certeza de que se lembra perfeitamente. Como eu.

- Sinto muito o que aconteceu...

Camille afastou o olhar, contudo, quando chegaram ao piso inferior, atreveu-se a dizer o que pensava sobre a ama.

- Não pretendo meter-me nos teus assuntos, mas devo dizer-te que a menina Larkins não é a ama apropriada para a tua filha.

- Só a viste uma vez. Como podes ter tanta certeza?

- Sabes que afecha no seu quarto quando se porta mal?

- Não, não sabia, e é claro que não o aprovo - respondeu, zangado. - Porém, estou muito ocupado e, embora gostasse de passar mais tempo com Melissa, tenho que a deixar aos cuidados de alguém. Além disso, a menina Larkins é a única ama que conseguiu controlá-la um pouco. Melissa é uma menina problemática que sofreu bastante. Embora não tanto como tu.

- Só por isso, deverias acreditar em mim: sei o que sente.

- Não duvido; mas eu não posso estar o tempo todo ao seu lado. Necessito que alguém cuide dela e, além disso, julgo que a influência de uma mulher é fundamental para ela.

- Nesse caso, muda de ama.

- Querida Camille, sabes o que custa encontrar uma boa ama?

- Não me chames querida Camille.

- E como devo chamar-te? Doutora Camille, a famosa psicóloga infantil? - gozou.

- Ora, vejo que te incomodei - comentou ela. Ainda bem, porque não tenho a menor intenção de ser tua amiga. Mas gosto de Melissa e estou disposta a ajudá-la.

A sala de jantar era uma sala admirável. A mesa, grande, de mogno, era evidentemente uma antiguidade, mas as cadeiras eram confortáveis e o seu desenho era moderno. No centro da mesa tinham colocado um vaso com rosas amarelas, que impregnavam o ambiente com a sua fragrância.

O jantar consistiu em três pratos, tão apetecíveis e bem preparados como Camille esperava. No entanto, não lhes prestou demasiada atenção; estava ali para descobrir se Nick Lombard tinha mentido e não tinha intenção de se deixar seduzir pela beleza nem pela riqueza do lugar. Além disso, estava acostumada àquelas coisas desde pequena.

Não comeste muito - comentou ele, ao fim de um momento.

- Julgo que esqueceste o verdadeiro motivo da minha visita.

Ele assentiu.

- Eu sei, referes-te ao álbum. Veremos isso depois quando tomarmos vinho na sala.

Minutos mais tarde, Camille estava a mexer a sua chávena de café e ainda não tinha provado uma gota.

Mas finalmente, Nick tirou o álbum e sentaram-se num sofá. Era um álbum muito velho e, num dos cantos, havia uma espécie de animal mítico, parecido com uma gárgula, com as asas abertas.

- Suspeito que isto vai ser difícil para mim – disse ela.

- Reconhecerás a tua mãe imediatamente. É a tua viva imagem, embora as vossas. personalidades sejam tão diferentes.

Camille não disse nada.

- Natalie era encantadora... uma romântica. No entanto, também era de outra geração e pensava que devia submeter-se a um homem. Nisso, não te pareces nada com ela. Suponho que as circunstâncias da vida e a tua própria natureza te deram uma rebeldia da qual ela carecia. Se alguém tentasse controlar-te, tu resistirias.

- Não duvides nem por um momento, Lombard.

- Preferiria que me chamasses Nick. Mas força, abre o álbum. Espero que encontres algo que te interesse. Afinal, todos ocultamos alguma coisa. O teu pai, por exemplo, ocultava zelosamente os seus segredos. Embora mais tarde ou mais cedo, a verdade venha sempre à luz do dia.

Camille limitou-se a olhar para acapa do álbum.

- Quase todas as fotografias são da minha família, embora, na verdade, o nosso apelido não seja Lombard. Depois da Segunda Guerra Mundial, o meu avô estabeleceu-se na Austrália e mudou o seu sobrenome para Lombard, em honra à Lombardia, a região onde nasceu. Virou as costas à sua família, embora tenha voltado várias vezes à Europa. O meu próprio pai viajou com frequência para a Itália... Os familiares do meu avô eram banqueiros ricos e coleccionadores milaneses - explicou Nick. - A mansão que se vê numa das primeiras fotografias é uma villa de meados do século XVII. A minha avó vive nela com o meu primo Umberto, o actual conde.

- São todos muito atraentes - disse ela, enquanto olhava para as fotografias. - Eu nunca esqueci a minha viagem a Itália. Foram seis meses mágicos e não parei de sonhar em voltar. Mas diz-me, qual era o vosso apelido antes de o teu avô o mudar? Ou é um segredo?

- Não é um segredo, mas não tem importância.

- E por que não quiseste viver na Itália?

- Não renunciei a nada. O meu avô tomou a decisão de partir da Europa e eu também fiquei. Mas a Itália não é um país estrangeiro para mim. Ali estão as minhas raízes, é o meu segundo lar.

Camille continuou a apreciar as fotografias, até que, umas páginas mais tarde, parou e deixou escapar um gemido.

A mulher que tinha diante dos seus olhos era idêntica a ela. A mesma cara, o mesmo corpo, o mesmo sorriso. No entanto, era Natalie. A sua mãe.

- Como vês, são iguais - comentou ele. - A partir deste ponto, há muitas fotografias dela... até encontrarás algumas da minha irmã Elizabeth, minhas e dos nossos pais. O jovem que se encontra junto à tua mãe é o meu tio Hugo. Levou-a para a villa na Primavera de 1967 e toda a gente ficou encantada com ela. Até a minha avó, que não era propriamente uma pessoa fácil.

Camille não pôde dizer nada. Estava dominada por muitas emoções.

Nick Lombard não tinha mentido. As imagens do álbum mostravam a relação com o seu tio, apesar de Harry Guilford nunca lhe ter comentado nada a esse respeito. Pelos vistos, o seu pai era um completo desconhecido para ela. E se lhe ocultava aquela história, nem sequer podia imaginar que outras coisas ficavam por descobrir.

Os seus olhos cravaram-se noutra fotografia em que aparecia um jovem atraente que se encontrava junto a Natalie. Na imagem, a sua mãe ria.

- E este é Hugo?

- Com efeito.

- Não se parece nada contigo.

- É porque eu sou um Lombard dos pés à cabeça.

- Pergunto-me o que eram os Lombard antes de se converterem em coleccionadores e banqueiros - comentou ela, com ironia.

- Há uma coisa que não fomos: assassinos - declarou ele, com dureza.

Camille não continuou a olhar para o álbum. Levantou-se do sofá, ofendida, e disse:

- Levarei o álbum para casa.

- Tinha intenção de to emprestar. Mas eu levo-te. - Não é preciso. Telefonarei a Tommy para que venha buscar-me.

- Insisto.

Camille soube que não estava disposto a ceder, portanto, aceitou, contrariada, e, poucos minutos mais tarde, encontrou-se no interior do veículo. Viajaram em silêncio, até que ele o quebrou ao fim de um momento.

- Confesso-te que esta situação não me incomoda menos que á ti, Camille. Mas agradeço-te o teu interesse pela minha filha.

- Se eu estivesse no teu lugar, consideraria a possibilidade de os ter desiludido.

- Estás a ir demasiado longe - disse ele, com frieza.

- Ah, sim? Olha quem fala. Trouxeste-me para a tua casa com uma oferta que não podia recusar e só o fizeste para me insultar.

- Enganas-te, não era essa a minha intenção. Só quero que compreendas; que conheças a verdade, mas não passas de uma rapariga. Quantos anos tens? Vinte e cinco? Não sabes nada da vida. E na verdade, enganas-te com a minha filha... Os seus problemas são reais. Sempre deu problemas no colégio e discute o tempo todo com as outras crianças.

- E deste-te conta sozinho? Ou contaram-te as amas e as professoras?

De repente, Nick saiu da estrada e estacionou na berma. Depois, voltou-se para ela com cara de poucos amigos.

- Pensa no exemplo do teu pai, se quiseres, porque a verdade é que eu também não tenho muito tempo livre.

- Não tens ou não tentas ter? No entanto, o exemplo é bom, porque o meu pai nunca tinha tempo para mim.

Durante uns segundos intermináveis, Nick e Camille não fizeram outra coisa senão olharem-se nos olhos.

Depois, Camille abriu a porta e saiu a correr do veículo, mas ele apanhou-a em seguida.

- Estás louca? Por que saíste a correr?

- Porque tu és o causador de tudo isto.

Nick agarrou-a pelos ombros e tentou acalmá-la.

- Eu não sou o teu inimigo. Foi o teu pai quem te rejeitou, não eu.

- Não te atrevas a falar dele. Tu destruíste-o.

- O que querias? Que permitisse que acabasse sem castigo? O teu pai destruiu as vidas de muitas pessoas e gostava de o fazer, acredita em mim.

- Mas, a mim, deu-me vida.

- Tens a certeza?

- Oh, não; não quero mais mistérios por esta noite...

- Está bem, deixemo-lo, de momento.

- Não posso - disse ela, desesperada. - O que pretendeste insinuar?

- A história não te vai agradar, mas conto-te aqui

mesmo se é o que queres... Como te disse, Natalie deixou-se enrolar por Harry, todavia, não demorou muito a compreender que precisava do meu tio. Ele sempre esteve ao seu lado, disposto a ajudá-la, embora os meus avós chegassem a odiá-la por tudo aquilo. Além disso, vivíamos cada dia com medo, porque sabíamos que o teu pai era um homem perigoso e muito violento. No entanto, Hugo assumiu as consequências e escolheu. E a tua mãe também. Até ao final.

Camille não disse nada. Ficara sem fala.

- O filho que esperava quando morreu não era do teu pai, mas do meu tio. E é possível que Harry Guilford o tivesse descoberto.

- Vai para o inferno! Tantos anos a odiar o meu pai e a lamentar a morte do teu tio transformaram-te num sacana.

- É possível, mas é melhor voltarmos para o carro.

- Não. Pegarei na minha mala e no álbum e chamarei um táxi.

- Não sejas ridícula. Sou responsável por ti e levar-te-ei a tua casa.

- Faz o que quiseres, mas advirto-te que não vais convencer-me de nada. Detesto-te.

Camille falou com tanta paixão que, dessa vez, foi ele quem ficou sem fala.

- Então, deve incomodar-te muito que, além disso, me aches atraente - disse ele, com arrogância.

Um segundo depois, Nick agarrou-a entre os seus braços e ela não pôde fazer outra coisa senão apertar os seios contra o seu peito e esperar pelo beijo iminente. E quando, finalmente, chegou, foi a experiência mais intensa e erótica da sua vida; sobretudo, porque se deixou levar por uma paixão que nem sequer sabia que tinha.

Ao fim de uns segundos, reagiu.

- Como te atreves! - exclamou.

- Não negarás que tu também o desejavas...

- Obrigaste-me a fazê-lo.

- Não é verdade. Mas é possível que da próxima vez te comportes de forma menos... provocadora.

- E se não o fizer?

Os escuros olhos de Nick brilharam com um sem-fim de possibilidades.

 

No final do segundo dia, já tinham vendido todos os quadros; alguns acima do seu preço de saída e outros a preço de saldo. O resto dos objectos tinha tido a mesma sorte.

- Pelo menos, consegui comprar essa cesta de que tanto gostava - comentou Linda, enquanto tomavam um chá.

- Que bom - disse Camille.

- Paguei uma soma astronómica por ela, mas adoro.

Embora suponha que para ti deva ser muito duro... É algo como o fim de uma época.

- Talvez seja o fim de uma época, mas não é o fim do mundo. Francamente, estou mais preocupada com o teu estado de saúde que com o leilão da casa. Pareces cansada.

- É porque estou. Além disso, a minha sogra costuma dizer que sou bastante frágil e penso que, neste caso, tem razão.

- Tu não és frágil. Não faças caso.

Aquela não era a primeira vez que Linda mostrava o seu desconforto perante a mãe do seu marido.

- Milly, eu não tenho o teu carácter. Harry tentou destruir-te, mas não o conseguiu. Tu sabes que vales muito.

- Garanto-te que tive que trabalhar muito para consegui-lo e, apesar disso, de vez em quando duvido de mim, como toda a gente. Mas não há uma só mulher sobre a Terra que pudesse estar à altura das expectativas de Madelaine Carghill - disse, referindo-se à mãe de Stephen.

- Nem sequer Fiona Duncan? - perguntou Linda.

- Ora, estás a comportar-te como uma paranóica.

- Achas?

Camille olhou para a sua amiga e teve a sensação de que aquilo era algo mais que uma má temporada.

- Stephen casou-se contigo, não com Fiona.

- Eu sei.

- Então, deixa de pensar nela.

- Fá-lo-ia caso não fosse perfeita face às expectativas da mãe e das irmãs do meu marido.

- Enganas-te. Para essas três, elas são as únicas pessoas perfeitas do planeta. Aconselho-te que deixes de as ver com tanta frequência... Sobretudo, agora.

- Isso vai ser difícil. A família de Stephen é muito unida, coisa que já sabia quando o conheci. Mas não imaginei que teria que lutar pelo seu amor todos os dias.

- Seja como for, terão que aprender a deixar-te em paz, a dar-te a liberdade que necessitas.

- Às vezes, penso que não me aceitam, que sou uma completa estranha para eles. Embora o meu sogro seja muito agradável e fique sempre do meu lado. É a única pessoa que me aprecia realmente.

- Tenho a certeza de que o bebé mudará tudo, quando nascer - disse Camille, para tentar animá-la.

- Espero que sim, Milly. Ultimamente, tive pesadelos muito estranhos.

- Pesadelos? Que tipo de pesadelos?

- Não me lembro bem, mas acordei aterrorizada e vazia, como se todo o entusiasmo tivesse desaparecido da minha vida.

- Isso é terrível... - disse Milly, enquanto a puxava pela mão. - Estou a ver que estás realmente deprimida, embora seja possível que seja só uma consequência da gravidez. O teu corpo está a mudar e é natural que.

- Não se pode dizer que a minha vida seja um mar de rosas.

- Não o é para ninguém. Tu tens a vantagem de ter o amor de Stephen, uma casa, um jardim lindo e um bebé a caminho.

Linda suspirou.

- Sei que estou a exceder-me um pouco. Sempre tive dificuldade em controlar os meus sentimentos.

- Talvez devesses repensar as coisas.

- Talvez. Além disso, tenho medo de perder Stephen. Repara na própria Fiona. David e ela divorciaram-se oito meses depois de se casarem. Vimo-los no casamento e pareciam tão felizes...

- Linda, não dês mais voltas ao assunto. Estás deprimida e dominada pelas hormonas, é só isso. Por que não vais ao médico? Conta-lhe o que se passa. Certamente, poderá dar-te alguma coisa que te ajude a ultrapassar esta fase.

- Não quero tomar medicamentos durante a gravidez. Além disso, prefiro falar contigo a falar com o doutor Bourke. Ele está sempre muito ocupado.

- Não está assim tão ocupado que não possa atender-te. Além disso, tu és paciente dele. Fala com ele. E fala com Stephen.

- Antes, pensava que estar com ele era suficiente. Agora, porém, não me serve de nada... Stephen não é como a sua família. É amável, carinhoso e ama-me. No entanto, é tão impaciente como eles e isso põe-me ainda mais nervosa. Não tenho o carácter forte das mulheres da sua familia.

- E isso diminui-te enquanto pessoa? Não digas tolices, Linda, e sobretudo, não sejas tão dura contigo mesma.

- Oh, Camille! Sinto que estou a decepcionar terrívelmente Stephen - declarou, com tristeza.

- Por amor de Deus, agora não estás a ser justa com ele! O problema é a tua sogra, não o teu marido. É ela que deve mudar, não tu.

- Só tento fazer o que se espera de mim...

- Então, devias começar por gostar de ti mesma. E talvez devesses falar com a tua sogra e dizer-lhe o que pensas. Uma mulher como ela não quererá pôr em perigo o nascimento do seu neto.

- Não me atreveria. Além disso, sei que reagiria com estranheza, como se as minhas palavras não fizessem sentido, como se ela fosse incapaz de me fazer mal.

- Para começar, devia parar de te chamar frágil. Linda abanou a cabeça.

- Aceitaram Fiona, Camille. É uma delas. São todas tão altas e eu, tão baixa...

- Insisto que deixes de as ver durante uma boa temporada.

- Não posso, Milly. Stephen confia em mim e eu não gostaria de lhe causar problemas.

- Mas que importância tem essa Madelaine Carghill? Tu sabes defender-te quando queres, portanto, fá-lo. Além disso, o poder está nas tuas mãos... Tu és a pessoa mais importante na vida de Stephen.

Linda suspirou.

- Camille, é uma grande amiga.

- Espero que sim... - replicou Milly, enquanto se levantava do seu lugar. - Enfim, vou pedir a Tommy que te leve a casa. Eu seguir-te-ei no teu carro.

- Oh, não é preciso fazeres isso!

- Não admito discussões. Quando chegares, deita-te, põe as pernas ao alto e descontrai-te. Tens que pensar nas coisas boas da vida. Além disso, estar grávida pode ser, simultaneamente, uma coisa bonita e terrível, e deves aprender a aceitá-lo.

- Adoro-te, Milly.

Linda olhou para ela e apertou-Lhe a mão com força.

O telefone começou a tocar às duas da madrugada. Camille estava profundamente adormecida. e esteve prestes a atirar o aparelho ao chão ao levantar o auscultador.

- Estou sim?

- Camille?

Ao ouvir a voz de Stephen, Milly assustou-se muito.

- O que aconteceu, Stephen?

O marido da sua amiga, um homem normalmente calmo, parecia fora de si.

- É Lindy... Dói-lhe muito a barriga e estamos assustados... Tem medo de perder o bebé.

- Chama uma ambulância, rápido!

- Já chamei, mas Linda quer ver-te.

Camille levantou-se da cama.

- Nesse caso, diz-lhe que estou de caminho.

- Obrigada, Milly. Sinto-me tão impotente... Não sei o que fazer.

- Tem calma. Vemo-nos no hospital.

Foi uma noite terrível. E, por fim, Linda perdeu o bebé.

Stephen e Camille estavam sentados na sala de espera, derrotados, em silêncio. Os pais de Stephen chegaram de madrugada, de modo que os quatro receberam a notícia da boca do doutor Bourke. Quanto aos pais de Linda, estavam de férias na Europa.

- Sinto muito - disse o médico, enquanto passava um braço por cima dos ombros de Stephen. - Mas Linda é jovem e tem saúde, portanto, poderá engravidar outra vez. Tentem pensar nisso para se animarem.

- Para nos animarmos? - perguntou Stephen. Como? Acabamos de perder o nosso filho e nada pode mudar isso. Lindy não aguentará; quando o souber. Desejava-o tanto...

A sua mãe aproximou-se e acariciou-Lhe a face.

- O médico tem razão, querido. Foi inevitável.

- Por favor, mamã, não quero ouvir sermões agora.

- Deixa-o em paz, Madelaine - interveio Peter, o seu marido. - Para ser sincero, Linda não tinha muito bom aspecto, ultimamente. Suponho que tenhamos sido muito exigentes com ela.

- O que é que queres dizer com isso? - perguntou Madelaine. - Ninguém lhe exigia nada que ela não exigisse a si mesma. Sei que não é o momento indicado para falar destas coisas, contudo, começou a comportar-se de forma estranha, quando soube que estava grávida.

- Isso não é verdade. Linda estava a fazer tudo muito bem - disse Camille.

- Eu vejo-a com mais frequência do que tu e sei o que digo - afirmou Madelaine. - Um dia, vi-a a levantar um vaso de barro pesadíssimo, no jardim, e sugeri-lhe que deixasse o trabalho pesado para outras pessoas. Está sempre disposta a ajudar; às vezes, penso que é a sua forma de se afirmar... mas a verdade é que adora contrariar-me por tudo e por nada.

- Este não é o momento indicado para falarmos dessas coisas - disse Stephen, - embora, certamente, tenha trabalhado muito no jardim.

- O doutor Bourke aprovou-o, Stephen - disse Camille. - E não penso que esse vaso de barro fosse assim tão pesado.

- Estás a chamar-me mentirosa? - perguntou Madelaine, ofendida.

- Estou a dizer apenas que podias estar enganada. Além disso, não devias falar desse modo. Se Linda te ouvisse, sentir-se-ia magoada.

- Não estou disposta a aguentar isto por mais tempo. Excedeste-te, Camille.

Se o fiz, foi por Linda. É minha amiga.

- Então devias ajudá-la a proteger-se de si mesma - declarou Madelaine. - Pela minha parte, eu fiz tudo o que pude por ela, mas nunca quis a minha ajuda.

Madelaine virou-se para o seu marido e acrescentou:

- Vamos para casa, Peter. Já estou farta disto.

- Não - respondeu o seu marido. - Quero ver Linda.

- Não te deixarão entrar. Só deixarão entrar Stephen, não a família, nem os amigos - replicou Madelaine, olhando para Camille.

Desapareceu uns segundos depois e o marido não teve outro remédio senão segui-la.

- Tinhas que dizer o que disseste, Camille? - perguntou Stephen, quando ficaram sozinhos.

- Tinha, sim. A tua mãe está a fazer a vida negra a Linda.

- De que raio estás a falar? - perguntou Stephen, zangado. - É uma simples questão de incompatibilidade de caracteres, mais nada. A minha mãe não faz de pro pósito. E quanto a Lindy, conheço-a melhor do que ninguém e sei que tem muitas virtudes, mas também sei que é muito insegura. Sempre se sentira excluída. Uma vez, disse-me que só há duas pessoas neste mundo que ela ama: tu e eu.

Os olhos de Stephen encheram-se de lágrimas.

- Isto vai acabar com ela - acrescentou.

- Sim, vai ser muito doloroso, mas nós estaremos ao seu lado para a ajudar - comentou, prestes a chorar.

- Ultimamente, comportava-se de forma estranha. Primeiro, pensei que era por causa das suas mudanças físicas, mas, depois, vi que havia mais qualquer coisa. No entanto, não é muito dada a contar-me os seus problemas... Quanto à minha mãe, fez o possível por integrá-la na familia, mas ela não quer.

- Um dia destes, temos que falar muito a sério, Stephen, porque acho que não estás a ver bem a situação.

- Sou o seu marido, Camille. E sei que mudou desde que nos casámos. Fechou-se em si mesma e sempre está à defensiva. Até tem ciúmes de Fiona, acreditas?

- Bom, tu estiveste com Fiona antes de estares com ela.

- Tal como ela esteve com outras pessoas. Além disso, Fiona é minha amiga há muitos anos. O que sinto por ela e o que sinto por Linda são coisas radicalmente opostas. Eu adoro Linda, amo-a. Mas é tão insegura...

- Seja como for, agora vai precisar de nós - replicou Milly com firmeza. - Perdeu o seu filho...

- Também era meu filho, Milly.

- Eu sei, eu sei! Mas ambos sabemos que Lindy é mais sensível do que a maioria das pessoas. Teve uma infância muito difícil.

- Tu também.

- E deixou-me muitas marcas, acredita em mim.

- Linda não é tão forte como tu. Apesar do comportamento do teu pai, tu tornaste-te mais independente com os anos.

- Isso não importa agora. Além disso, perder um bebé é uma coisa horrível para uma mulher. Vai ser duro.

- Por sorte, estava grávida de três meses apenas. Suponho que não é tão mau quanto teria sido se estivesse prestes a dar à luz.

- Não, não é, mas duvido que isso a anime.

Passado um momento, uma enfermeira avisou-os de que já podiam ir vê-la. Primeiro, entrou Stephen e; depois, Camille.

- Perdi o bebé - disse Linda, ao ver a sua amiga.

- Sim, querida, e lamento muito...

- Pelos vistos, estrago sempre tudo.

- Não digas isso. O médico disse que são coisas que acontecem. Não tiveste culpa...

Linda desviou olhar e disse:

- Sinto muito, mas estás enganada. A culpa foi toda minha.

Dois dias mais tarde, Linda saiu do hospital. Como Stephen estava a trabalhar e não podia sair, foi Camille quem foi buscá-la para a levar para casa. A sua amiga estava muito calma. Estranhamente calma.

- Nunca tinha sentido tanta dor na minha vida. Não uma dor física, mas emocional.

- É natural, Lindy. No entanto, devias parar de te culpar.

- Sinto-me tão impotente... A minha sogra tentou animar-me e trouxe-me flores. Deitei-as no lixo - confessou.

- Talvez tivesse boas intenções. Só posso dizer-te que tanto ela como o marido pareciam sinceramente preocupados, quando chegaram ao hospital, na outra noite. Queriam ficar para te ver, no entanto, não os deixaram.

- Como é que tu conseguiste entrar?

- Eu teria entrado nem que todo o hospital se opusesse!

- Sim, suponho que sim - disse Linda, com um sorriso tímido. - Stephen está de rastos, sabes? Sei que está muito decepcionado.

- Claro, querida, está muito preocupado contigo e confessou-me que tem medo de te perder. Ama-te muito.

- Talvez esteja a perder-me mesmo.

Camille ficou sem fala. Olhou para a amiga, antes de voltar a concentrar-se na estrada, e disse:

- Linda, necessitas de ajuda. Quando estiveres melhor, procuraremos um bom profissional.

- Referes-te a um psicólogo?

- A um profissional que conheça esses problemas a fundo. Podem ser muito úteis.

- Tenho-te a ti.

- Sim, mas eu não sou psicóloga.

- Poderias ser, se quisesses - observou com outro sorriso tímido.

- Sei ouvir e adoro-te, mais nada. Se te doerem os dentes, vais ao dentista, não me chamas a mim. E o mesmo acontece com os psicólogos. Muitas mulheres estiveram na tua situação e saíram dela, por muito que lhes tenha custado.

- Pode ser, mas garanto-te que, neste momento, não vejo qualquer futuro para a minha vida.

As preocupações do dia não ficaram por ali. Pouco tempo depois de voltar para a mansão, Linda recebeu um telefonema da irmã mais velha de Stephen, Ann, uma jovem sem sentido de humor, que estava casada com um advogado e que se queixou do comportamento que ela tivera no hospital com a sua mãe. Camille teve que fazer um esforço para se controlar.

- A minha mãe não está habituada a ser tratada assim

- declarou Ann. - Devias pedir-lhe desculpas.

- Lamento tê-la ofendido, Ann. Não tinha intenção de o fazer. Só comentei que não acreditava que Linda se tivesse dedicado a levantar pesos durante a gravidez. Ela não teria feito nada que pusesse o bebé em perigo.

- Talvez, mas até tu tens que admitir que Linda tem problemas.

- Que tipo de problemas? - perguntou Camille, cada vez mais zangada.

- Camille, não quero discutir contigo. Compreendo que a tua relação com Linda seja diferente, porém, ela fica à defensiva quando está com a família.

- Não admira! Não a deixam em paz.

- Isso não é verdade! - gritou Ann.

- Não? Tenho olhos e ouvidos, Ann. Com excepção do teu pai, todos se comportaram mal com ela. Linda é uma pessoa que necessita de muito carinho.

- Fizemos o possível para que se sentisse em casa. Stephen sabe bem disso. Porém, Linda fecha-se em si mesma. Além disso, o meu irmão também está a sofrer... talvez devesses ter pensado nisso antes de te meteres onde não és chamada.

- Desculpa, Ann, mas tenho que me ir embora - disse Camille, controlando-se com muita dificuldade. Respeito muito a tua mãe, mas não penso pedir-lhe desculpas. Limitei- me a defender a minha amiga, porque sei que teria ficado muito magoada, se tivesse ouvido Madelaine.

- Claro, claro. Mas alguma coisa me diz que irás a correr contar-lhe a nossa conversa.

- Não, eu nunca faria uma coisa dessas, Ann, porque, ao contrário de ti, gosto de Linda.

Camille passou o resto da semana a tentar animar a sua amiga. Ia vê-la com frequência e, quando Stephen ia trabalhar, ia fazer-lhe companhia para que não estivesse sozinha.

À medida que o tempo ia passando, sentia-se cada vez mais decepcionada com ele; pelos vistos, tanto Stephen como as suas irmãs pensavam que Madelaine era uma espécie de santa. Mas, pelo menos, não tivera notícias de Nick Lombard, o homem que destruíra o seu pai.

Ao pensar em Nick, lembrou-se da sua filha. Prometera-lhe que a levaria ao cabeleireiro, mas estava muito ocupada e decidiu escrever-lhe uma carta para lhe explicar a situação. Não se tratava apenas de Linda, mas também do leilão da casa, no sábado seguinte. Era bastante improvável que pudesse vê-la nos próximos dias.

Como sempre tivera jeito para desenhar, Camille pintou flores, duendes e fadas no papel. Sabia que Melissa gostaria, porque era uma menina com muita imaginação. Além disso, uma das fadas parecia-se com ela. E, é claro, não era por acaso.

No dia do leilão, a propriedade estava cheia de gente e Camille decidiu afastar-se do tumulto e continuar a embalar as suas coisas. Afinal de contas, tinha que sair dali dentro de alguns dias.

Num determinado momento, aproximou-se da janela e contemplou a multidão. Começou a pensar no seu futuro e disse para si que talvez pudesse abrir uma galeria de arte e trabalhar por conta própria. Até podia pedir conselhos a Claude, que, com certeza, adoraria ajudá-la.

Passados alguns segundos, Tommy bateu à porta e entrou.

- Se estás a pensar em descer, eu, se fosse a ti, não o faria - disse o mordomo.

- Para ser sincera, não tenho vontade de descer, mas talvez devesse.

- Não te sintas obrigada, querida. Muitas pessoas vieram só pela morbidez da história do teu pai.

O que é que tens, Tommy? Pareces nervoso - comentou Camille, acariciando-lhe um braço.

- Estou bem, não te preocupes, mas Dot e eu cuidámos de ti desde que a tua mãe morreu e preocupamo-nos contigo.

- Não se preocupem, eu sobreviverei. Se tens medo de que alguém queira atacar-me para se vingar do meu pai, lembro- te que a casa está cheia de guardas de segurança. Tomarei cuidado, descansa.

- Mas toda a gente te conhece, Camille. Qualquer um poderia reconhecer esse cabelo...

- Então, porei um chapéu de palha:

- Está bem, desce, se quiseres. Mas estou desejoso que isto termine.

Camille desceu, então, para o jardim. Estava um lindo dia de Outubro e quase todos os convidados foram muito educados com ela. Ao fim de um momento, deparou-se com Perdita Masterman, Robyn e Philip.

- Bom dia, Camille - disse Robyn. - Não pensei que aparecesses esta manhã.

Perdita, a sua mãe, olhou para ela e franziu o sobrolho. Pelos vistos, não aprovava o comportamento da jovem.

- Estar aqui é a minha obrigação, Robyn. Bom dia, Perdita. Philip.

- Bom dia, Camille - disse Perdita. - Suponho que tudo isto deve ser muito difícil para ti.

- Ora, - a verdade é que está desejosa de sair desta casa, não é, Camille? - comentou Robyn. - Afinal, nunca foi reálmente o seu lar. Isto era a fortaleza do seu pai... Suspeito que se fechava aqui porque receava pela sua vida.

- Hum, não creio. Curiosamente, isso nunca o preocupou - afirmou Camille. - Enfim, deixo-vos. Vi lady Kershaw e gostaria de conversar um bocado com ela.

Uns minutos depois, sentiu o mesmo calafrio que sentira dias antes no interior da mansão. E, é claro, o motivo era o mesmo: a presença de Nick Lombard.

Assim que a viu, deixou a sua acompanhante, Clare Tennant, e dirigiu-se para ela. Camille tinha-se detido à sombra de uma árvore e sentiu-se estranhamente nervosa.

- Devia ter calculado que virias - disse Camille. Decerto que te alegras de que tenha perdido tudo.

- Vim por uma razão bem diferente. Com tudo o que se disse nos jornais, não quero que estejas sozinha no meio de tanta gente. Há muitos desconhecidos e alguém poderia ter más intenções.

Camille surpreendeu-se com as suas palavras. Era praticamente o mesmo que Tommy tinha dito.

- Não sei de que raios estás a falar - mentiu. - Onde estão os teus seguranças? - perguntou ele.

- Nick, estás a exceder-te. Duvido que a minha vida esteja em perigo.

- Não te faças de parva. Sabes bem que as pessoas odiavam o teu pai e que passar-se-ão muitos anos antes que o esqueçam.

- Talvez tenhas razão, porém, tenho que estar aqui.

- Nesse caso; acompanhar-te-ei.

- Mas vieste com Clare. Estará à espera...

- Não vim com ela. Só a acompanhei.

- Suspeito que ela não estaria de acordo com isso.

- Bolas, deixa-te de tolices e passeemos um pouco.

- Está bem - disse, enquanto dava uma olhadela em seu redor. - Mas, francamente, não me sinto ameaçada.

- Fico muito contente, mas faz caso do meu instinto. Chamas demasiado a atenção. Vem, vamos para casa... Além disso, dentro em pouco lerão as condições de venda.

- Onde está Melissa? - perguntou. - Enviei-lhe uma carta.

- Eu sei, já a recebeu. Não sabia que tinhas talento para o desenho.

- Há muitas coisas sobre mim que não sabes. Em questão de minutos, encontraram-se no interior da mansão. Pouco depois, o encarregado do leilão começou a ler as condições de venda da propriedade e Camille perguntou-se como éra possível que Nick Lombard tivesse invadido a sua vida daquele modo. Além disso, não deixava de se perguntar o que as pessoas pensariam ao vê-la na companhia do pior inimigo de Harry Guilford.

As licitações sobre a casa duraram um bom bocado, cada soma a mais elevada. Em determinado momento, a própria Perdita Masterman ofereceu um dinheirão.

- Decerto que é uma cobertura para a máfia - murmurou Nick ao seu ouvido.

- Não estranharia. O que estranho é que tu não licites.

A tensão da sala foi aumentando a pouco e pouco, perante o olhar atento dos curiosos e as câmaras de televisão que seguiam o acontecimento. E, no final, Perdita saiu-se com a sua e comprou-a.

- Não posso acreditar - disse Camille.

- Na minha opinião, pagou demasiado pela propriedade - observou Nick. - Mas vamo-nos daqui. Já terminou tudo.

- É incrível, é incrível... - insistiu Camille. - Os Masterman vão ficar com a mansão do meu pai...

- Podes ter a certeza de que não voltará a ser a mesma.

Quando terminou o espectáculo, as pessoas foram partindo a pouco e pouco. Ninguém prestou atenção à mulher de vestido castanho que se aproximou de Camille. Nem ela nem Nick Lombard repararam nela até os alcançar.

- Camille Guilford?

Camille e Nick voltaram-se para a desconhecida e ficaram paralisados. A mulher brandia uma enorme faca.

Nesse momento, dois guardas de segurança deram-se conta do que se passava e tentaram reagir, contudo, estavam demasiado longe para poderem ajudar. Camille estava perdida, ou teria estado se não fosse Nick, que a empurrara para o chão e impedira que a muLher lhe atingisse a garganta. Depois, atiroù-se sobre ela e neutralizou-a sem demasiado esforço.

- Maldito canalha! - exclamou. - Há anos que espero por este momento...

A mulher ainda teve forças para levantar a faca mais uma vez e cravá-la num dos ombros de Nick, que a agarrou com mais força. Camille viu o sangue na lâmina, mas não sabia de quem era:

- Odeio aquele homem, odeio-o... Matou o meu marido e agora quero matar a sua filha! Olho por olho dente por dente!

 

Camille não sabia o que fazer. Estava horrorizada e totalmente paralisada pelo medo quando os guardas de segurança se aproximaram.

- Já passou, menina Guilford. Chamámos a polícia e uma ambulância - declarou um dos homens.

Só então, os olhos de Camille repararam em Nick. A desconhecida ferira-o na parte superior do peito, por debaixo do ombro, como teve ocasião de comprovar quando tirou o casaco e viu a enorme mancha de sangue na camisa.

Parecia respirar com dificuldade, como se a lâmina lhe tivesse atravessado o pulmão, e correu para ele para tentar ajudá-lo. Três homens aproximaram-se e deram-lhe os seus lenços para tentar tapar a ferida e Camille concentrou-se nisso, sem deixar de pensar que Nick Lombard lhe tinha salvo a vida.

- Ajuda-me a estendê-lo no chão - ordenou a um guarda de segurança.

Logo então, apareceu outra pessoa.

- Afastem-se. Sou médico...

- É uma sorte que estivesse tão perto.

- Nem tanto. Estava no leilão - comentou o homem. Camille afastou-se e dirigiu-se para o carro patrulha onde esperava a sua agressora. Não soube por que o fez, porém, aproximou-se dela e disse:

- Lamento o que aconteceu com o seu marido, mas eu não tenho a culpa. E muito menos o homem que acaba de ferir.

A mulher riu.

- Não me importo. És a filha de Harry Guilford e não me arrependo do que fiz.

A polícia levou-a então e Camille voltou para perto de Nick.

- Como é que ele está? - perguntou ao médico.

- Felizmente, a lâmina cravou-se numa costela e não penetrou no pulmão. Teremos que Lhe dar uns quantos pontos e mantê-lo em observação, -caso sofra uma he morragia interna. Mas, agora, faça-me o favor de se sentar e descansar. Acaba de passar por uma situação extrema e eu não gostaria que desmaiasse.

Camille não teve tempo de obedecer. Antes que pudesse fazê-lo, a vista nublou-se-Lhe e caiu desmaiada no chão.

Quando voltou a si, encontrava-se na ambulância em que levavam Nick, inconsciente. Ao seu lado estava Tommy, que, naturalmente, estava muito preocupado com o sucedido e submeteu-a a um autêntico interrogatório.

Uma vez no hospital, Camille insistiu em permanecer junto ao homem que lhe tinha salvo a vida e ficou ali até a deixarem entrar no quarto. Então, Nick já tinha recuperado a consciência. Estava deitado numa cama, com o tronco nu e enfaixado.

- Não estás com muito bom aspecto... - disse ele, com um leve sorriso.

Camille olhou para o vestido: Tommy tinha- lhe levado roupa limpa e ela mudara-se pouco antes numa casa de banho.

- Pois deverias ter-me visto antes de mudar de roupa. Estava ainda pior:

- Não vais sentar-te?

- Sim, mas só por um momento; tens que descansar. Como te sentes?

- Um pouco melhor. Pelo menos, não foi nada grave. Mas dói terrívelmente.

- Pois suspeito que vai doer ainda mais quando passar o efeito dos analgésicos.

- Alegra-te que sofra?

- Não, é claro que não - afirmou. - Dizia-o com apreensão. Lembra-te que me salvaste a vida.

- Duvido que isso importe muito, se estás decidida a odiar-me.

Ela olhou para ele com intensidade.

- Acredita em mim, não te odeio neste momento. Poderiam ter-te matado.

- Duvido, embora essa mulher tivesse uma força incrível. É verdade o que dizem dos loucos. Mas, de qualquer forma, não teria podido comigo.

- O que lhe farão agora?

- Suponho que a submeterão a um exame psiquiátrico. E, se estiver tão louca como parece, interná-la-ão.

- Fazes ideia de quem possa ser?

- Pelo que me disseram, o seu marido chamava-se Gerald Gray. Mas esse nome não me diz nada.

- Suponho que foi outra das vítimas do meu pai. Outra das pessoas que destruiu.

- Não sei, mas tu não és culpada pelos actos de Harry Guilford. Ainda bem que não estavas sozinha quando apareceu. Ter-te-ia assassinado.

- Pois não imaginas como fico contente que te empenhasses em acompanhar-me.

- Sim, parece que me rodeio sempre de mulheres perigosas.

- Eu não sou perigosa.

- Eu diria que és.

- Queres que vá para tua casa para me assegurar de que Melissa está bem?

- Tenho a certeza de que adoraria, mas prefiro que vás descansar. Passaste por uma situação muito difícil e é possível que te sintas pior dentro de um instante, embora agora não te dês conta. Tommy Browning está contigo?

- Sim, está lá fora.

- Já imaginava. Ama-te como se fosses a sua filha... Mas não te preocupes com a Melissa. Já me assegurei que ninguém lhe contará o que aconteceu. Eu próprio lho direi amanhã, quando me derem alta.

- Virei buscar-te - ofereceu-se.

- Não é necessário. Recordo-te que tenho motorista.

- Quero fazê-lo.

- Nesse caso, não me oporei - sorriu.

Um segundo depois, apareceu uma enfermeira e olhou para Camille com recriminação: Tinha que sair.

Camille levantou-se e disse:

- Bem, vou-me embora, mas voltarei amanhã.

- Se me desses um beijo de boa noite, não me importaria nada - comentou ele, a brincar. - Tu sabes, um pequeno beijo de agradecimento.

Camille inclinou-se e beijou-o numa face.

- Satisfeito?

- Não particularmente. Eu gostaria de algo mais intenso.

Então, Nick atraiu-a para si e disse:

- Para grandes males, grandes remédios, Camille. E, quer gostes quer não, receio que já faças parte da minha vida.

 

Nick beijou-a suave e profundamente. Foi um beijo tranquilo, aparentemente relaxado, todavia, com uma enorme paixão.

Quando se separou dela, Camille soube que aquele homem podia possuir o seu corpo e a sua mente. Disse para si que o seu pai nunca o teria entendido. E, depois, pensou que ela também não o entendia.

Camille estava à espera no átrio do hospital que Tommy aparecesse com o carro quando Clare Tennant entrou a toda a pressa. Quando a viu, olhou para ela com desespero.

- Onde está? Para onde o levaram?

- Não te preocupes, não está tão mal como receávamos.

- Nunca estive tão assustada em toda a minha vida. Nick e eu somos muito bons amigos. Espero que agora compreendas o quanto odiavam o teu pai. Se eu estivesse no teu lugar, partiria para tão longe quanto pudesse.

- Mas não estás no meu lugar, Clare, e não vais conseguir que me vá embora.

- Ah, agora entendo. Estás interessada em Nick.

- Não diga parvoíces. Nunca quis nada com esse homem.

- Mas tudo mudou agora, não é? Nick é o sonho de qualquer mulher: rico, atraente, poderoso e excitante. Há mulheres que se atirariam nos seus braços só pelo seu sorriso.

Camille corou.

- Não posso acreditar que abordes esse assunto neste momento. Parece-me muito inapropriado.

- Olha, Camille, vou ser completamente sincera, ao contrário de ti: afasta-te dele, é um aviso.

Clare fechou uma mão num dos braços de Camille, que protestou imediatamente.

- Solta-me, Clare.

- Ah, acertei. Gostas de Nick. Talvez não tivesses intenção de te sentir atraída por ele, mas gostas dele - de clarou, com olhos brilhantes. - Pois bem, mantém-te afastada dele. É meu.

 

Quando Camille chegou a casa, Linda estava à sua espera. Ao que parece, soube do acontecido e tinha querido aproximar-se para se interessar pelo seu estado.

As duas amigas sentaram-se na varanda do quarto de Camille e contemplaram o mar ao longe. Era uma noite tranquila e quente, quase idilica, porém, Camille sabia que a sua vida já não ia ser a mesma.

- E pensar que estava a discutir com Stephen quando a tua vida se encontrava em perigo... - disse, enquanto bebia um gole do seu refresco de laranja. - Ainda bem que Nick Lombard estava contigo. Caso contrário, poderias ter morrido.

- Estive prestes a morrer, sim. Devo-lhe a vida.

- Qualquer pessoa diria que o destino vos uniu. Além disso, Nick tem todos os traços de um herói...

Não sei o que dizer. Compreende que tudo isto é muito estranho para mim. Harry Guilford era o meu pai e Nick foi o causador da sua destruição.

- Se não o tivesse feito ele, tê-lo-ia feito outra pessoa, Milly. Será melhor que o assumas de uma vez.

- É muito cedo para mim e são demasiadas coisas. Nick disse-me que o assunto com o meu pai é mais antigo do que pensava a princípio.

- A que te referes?

- Em vez de te contar, será melhor que te mostre.

Camille levantou-se, entrou no quarto e regressou com o álbum de fotografias que Nick lhe emprestara.

- Dá uma olhadela. Tenho que o devolver a Nick.

- É um álbum muito velho. E este brasão?

- É do ramo italiano da família de Nick.

- Tem um aspecto bastante tétrico.

- Sim, é verdade.

Camille voltou a sentar-se enquanto a sua amiga voltava as páginas do álbum e observava as fotografias em silêncio. Uns segundos mais tarde, viu a fotografia de Natalie e Hugo Vandenberg.

- Meu Deus! É tal como tu!

Camille assentiu.

- Sim, parecemo-nos muito.

- É mais do que isso. São iguais. Mas, quem é o homem que a acompanha? Pela sua forma de olhar para ela, é óbvio que estava apaixonado por ela.

- É Hugo Vandenberg, um tio de Nick Lombard. Aparentemente, ia casar-se com a minha mãe, mas Natalie conheceu Harry e abandonou-o.

- Ena, suponho que deve ter sido terrível para ele...

- Pior do que imaginas.

- Pior? Já é bastante mau que o abandonasse para ficar com o teu pai. O teu pai era tão...

- Cruel? - interrompeu-a.

- Sim, lamento dizê-lo, mas sim. Contudo, este homem tem uma expressão bem diferente. O seu sorriso é tão aberto e sincero como o de Nick Lombard. Mas que sentido tem tudo isto?

Camille encolheu os ombros.

- O meu pai nunca falava do passado e não permitia que ninguém o fizesse. A única coisa que recordo é que Natalie e Harry pareciam muito apaixonados quando eu era... Ele nunca queria afastar-se do seu lado.

- Talvez estivesse apaixonado ou talvez fosse o típico indivíduo possessivo. E o que aconteceu? Conta-me tudo.

- Não sei se deveria. Ultimamente, sofreste demasiado.

- Sou a tua amiga e é só isso que importa, Milly. Estou aqui para te ajudar.

- Está bem. Hugo Vandenberg suicidou-se no dia em que enterraram a minha mãe.

Linda ficou assombrada.

- Que horror.

Camille assentiu.

- Sim. E as consequências chegaram aos nossos dias.

- Pelo menos, agora já conheces a origem da inimizade que Harry e Nick sentiam.

Camille permaneceu em silêncio um bom bocado, pensativa. Por fim, levantou o olhar e disse:

- Vou dizer-te algo que espero que fique entre nós.

- Relaxa, já me conheces.

- A minha mãe estava grávida quando morreu, mas de Hugo Vandenberg.

- Nick contou-te isso?

Camille assentiu uma vez mais.

- E como sabe? Como pode sabê-lo?

- Suponho que Hugo o contou à sua família. Aparentemente, todos estavam muito preocupados com a situação. Além disso, a minha mãe deu-se conta do erro que tinha cometido com Harry e procurou Hugo em busca de ajuda. É evidente que uma coisa levou à outra e que recuperaram a sua relação amorosa.

Linda chegou-se para trás e esfregou a testa.

- Conhecendo o teu pai, teria sido capaz de matá-la se tivesse sabido.

Camille virou-se para a sua amiga, boquiaberta.

- O que disseste, Linda? O que disseste?

Linda não disse nada.

- Não posso acreditar que penses isso!

Linda olhou para ela então e disse:

- Milly, Harry era capaz disso e de mais.

Desta vez, foi Camille quem não foi capaz de falar. Ao vê-la em semelhante estado, Linda acrescentou:

- Eu gostaria que ficasses na minha casa até encontrares outro lugar onde viver.

Camille abanou a cabeça.

- Obrigada, mas não quero intrometer-me neste momento. Stephen e tu têm muito que falar.

- Sim, bom... está a comportar-se de forma estranha ultimamente.

- A coisa está assim tão má?

- Sim. Aparentemente, tudo estava bem quando eu me limitava a dar-lhe a razão e a fazer o que ele queria. Se surgisse algum problema, a culpada era sempre eu. Mas mudei e dei-me conta de que cometi muitos erros com a minha vida. Além disso, entendo que Stephen adore a sua familia e pretenda justificá-la, mas eu sou a sua esposa e deve-me respeito.

- Claro.

- Pois a sua mãe conseguiu meter-Lhe na cabeça que a culpa da morte do bebé é minha e que mereço o que se passou.

- E continuas empenhada em que Stephen não te toque?

Linda tinha-lhe contado que, depois do aborto, não voltara a ter relações sexuais com o seu marido.

- É o meu corpo, Milly, e preciso de pensar nas coisas durante algum tempo. Além disso, parte do desejo sexual que sentia por ele vinha da minha própria insegurança, da minha carência afectiva... Agora cresci, aprendi muito. E alguma coisa me diz que Stephen não o compreende.

- Foste ver o doutor Max Courtney?

- Sim.

- E por que não levas Stephen?

- Não quer ir. O médico sugeriu-o, mas Stephen recusou-se terminantemente quando o propus.

- É uma pena. Penso que seria útil para os dois.

- Sim, mas Stephen pensa que os problemas são meus, não dele. Acha que me comporto assim para ofender a sua fanília, e começa a perguntar-me se o conheço realmente.

- Lindy, até os melhores casamentos passam por fases problemáticas. Passaste por um período muito difícil e é possível que Stephen ache que já não precisas dele. Talvez seja desse tipo de homens.

- Sim, claro, adora cuidar de mim, desde que cumpra as regras dele. Esta noite, organizou um churrasco com toda a sua família, embora pensasse que íamos estar sozinhos para resolvermos as nossas diferenças:

- E não te contou nada?

- Não, até esta manhã. Sei que tenta melhorar as coisas entre nós, mas só consegue piorá-las. A sua família nunca gostou muito de mim e, certamente, eu não faço parte dela. Mas esta noite não vou obedecer a Stephen.

- Não vais?

- Não. Aluguei alguns vídeos que tenho no carro. Pensei que poderíamos vê-los juntas, enquanto comemos uma pizza ou outra coisa qualquer.

- E não te causará nenhum problema?

- Tanto me faz.

- Bom, está bem, será como nos velhos tempos...

- Milly, adoro-te. Não sei o que faria sem ti - comentou Linda. - Foste muito boa para mim durante este tempo todo. Oxalá pudesse ser como tu.

- Não sejas ridícula. Ainda não te deste conta do desastre em que transformei a minha vida? Até meti a pata na poça com Philip, quando tu já te tinhas dado conta de que as suas intenções não eram boas. Como vês, não sou assim tão esperta. Acho que deverias pensar um pouco mais em ti e tentar curar as tuas feridas.

Quando Camille chegou ao hospital no dia seguinte, Nick Lombard já estava vestido, à sua espera. Estava junto à janela, de costas para a porta, e ela sentiu-se muito aliviada ao vê-lo.

Nick voltou-se então e cravou o olhar nela. Camille tinha um vestido sem mangas, de seda e de cor amarela, muito apropriado para o tom da sua pele e do seu cabelo. Como sempre, estava impressionante.

Os pensamentos de Nick, no entanto, tornaram-se mais escuros. Camille era demasiado bela, o tipo de mulher que podia levar homens como o seu tio Hugo à loucura.

- Sentes-te bem? - perguntou ela, ao reparar na sua expressão.

- Sim - respondeu, com um sorriso.

- Em que estavas a pensar?

- Nada de que devêssemos falar agora - disse, enquanto enfiava o casaco. - Agradeço-te que tenhas vindo buscar-me.

- Não é nada. Se não fosse por ti, ontem teria sido o meu último dia de vida.

- Não penses nisso - disse, enquanto a convidava a sair do quarto. - Surpreende-me que tenhas recuperado tão rapidamente do susto.

- Estive com a minha amiga Linda e conversámos um bom bocado.

- Linda? A dos olhos tristes?

- A própria. Adoro-a como se fosse minha irmã. Mas, já podemos ir? Deram-te alta?

- Sim, a enfermeira disse-me que as minhas feridas cicatrizaram perfeitamente e que não há nenhuma hemorragia interna, embora tenha que voltar esta semana para me submeter a outro exame. Estou desejoso de chegar a casa para ver Melissa.

- Ainda não sabe de nada?

- Não. Dei ordens ao pessoal e pedi-lhes que não a deixassem ver televisão. Infelizmente, saí nas notícias.

Camille assentiu.

- Eu sei. Terás que Lhe dizer suavemente para não a assustar...

- Bom, se nos vir juntos será melhor.

A realidade, no entanto, foi bem diferente. Não tinham entrado ainda na mansão de Nick quando ouviram os gritos da menina. É claro, o seu pai correu para o interior a toda a pressa.

- Bruxa, bruxa, bruxa! És horrível e feia!

- Vem cá agora mesmo! - exclamou Larkins, que, obviamente, tinha perdido a calma.

Quando entraram em casa, viram que a menina Larkins tinha agarrado a menina pelos ombros, como se estivesse disposta a sacudi-la. Clare Tennant estava ao seu lado, com a atitude fria e elegante do costume.

- Papá! Papá!

Melissa atirou-se nos braços do seu pai.

- Pensei que estavas ferido! Pensei que estavas morto!

- Calma, querida, não me aconteceu nada - disse o seu pai, tentando acalmá-la.

- Clare disse que a culpa era de Camille...

- Isso não é verdade - disse Nick.

A menina Larkins e Clare Tennant começaram a falar ao mesmo tempo, mas a ama compreendeu que não devia meter-se naquele assunto e deixou que Clare o explicasse.

- Não sabíamos que Melissa estava aqui. Pusemo-nos a conversar e ouviu a conversa porque tem o mau hábito de espiar os mais crescidos... Desde então, ficara quase louca.

- Sinto muito, senhor Lombard. Não imaginava que Melissa estivesse por perto, embora seja verdade que costuma espiar os outros - afirmou Larkins.

- Mais uma razão para que o tivessem comprovado

- declarou Nick, incomodado.

- Não te zangues connosco, Nick - interveio Clare.

- Não queríamos que descobrisse, mas eu estava muito preocupada contigo e a ama quis acalmar-me um pouco.

- E quando descobriu?

- Há vinte minutos, mais ou menos. Até então, não sabia nada porque cumprimos as tuas ordens e impedimos que visse televisão e os jornais. Saíste em todos os lados e o telefone não parou de tocar.

- Então, não é verdade que aquela mulher te feriu, papá? - perguntou Melissa, com desespero.

- Feriu-me no ombro, mas o médico curou-me. Não me aconteceu nada, a sério.

- E a Camille?

- Não, também não - assegurou-lhe Camille.

- Sabia que não tinha sido culpa tua. Clare não gosta dela, nem a menina Larkins.

- Isso não é verdade, Melissa - disse Clare Tennant, corando. - Pobre ama! Ela também não disse nem uma só palavra contra Camille.

Melissa insistiu.

- Estou a dizer a verdade, mas não importa... Espero que a mulher que te atacou acabe na prisão, papá. A mamã está morta e eu não quero que tu também morras.

- Não te preocupes, não te deixará sozinha - disse Camille. - É um homem forte e muito valente.

- Ouvi dizer que arriscou a vida por ti.

- Sim, a vida pode chegar a ser bem irónica - observou Clare. - Nick, talvez devesses descansar um momento. Camille foi muito amável em trazer-te, portanto, posso levá-la para sua casa.

- Não! Sai tu, Clare! - interveio a menina.

- Já chega, Melissa - ordenou Nick. - Pede perdão a Clare agora mesmo.

- Não vou fazê-lo! Diz que é minha amiga, mas não é verdade. Eu sei pelo modo como me olha.

- Quer que a leve para o seu quarto, senhor Lombard? - perguntou Larkins.

Nick abanou a cabeça.

- Não, penso que será melhor que fale com ela em privado - disse, enquanto dava a mão à menina e a levava ao seu quarto. - Desço já. Enquanto isso, poderia servir chá e café na estufa, menina Larkins?

- É claro, senhor.

A ama afastou-se imediatamente. Assim que ficaram a sós, Clare disse a Camille:

- Vejo que não serviu de nada a minha advertência.

- Este não é o momento para ameaças, Clare.

- Por que não? Não sou do tipo de pessoas que se rende facilmente. Sei o que quero. E quero Nick Lombard.

- Não estou interessada nos teus planos. E agora, se não te importas, vou para a estufa.

Ao ver que Camille seguia a direcção correcta, Clare comentou:

- Pelos vistos, já tinhas estado nesta casa.

- Sim.

Quando?

- Não acho que seja assunto teu. Mas asseguro-te que Nick não me interessa. Só me preocupo com Melissa.

- Não é a primeira vez que ouço isso, querida - gozou.

- Pois deverias acreditar em mim. Essa menina preocupa-me. É evidente que não é feliz.

Clare riu.

- Oh, vamos, é a menina mais incontrolável que já conheci na minha vida. Suponho que será uma questão genética, porque a sua mãe também era bastante rebelde.

Não estranha que Nick esteja preocupado. Se continuar assim, perder-se-á.

- Por Deus, Clare, é só uma menina com problemas que se podem solucionar - disse, desgostada.

- Obviamente, não sabes nada sobre maternidade.

Camille entrou então na estufa e sentou-se numa poltrona. Clare acomodou-se em frente a ela e cruzou as pernas.

- Nick também tem o seu lado cruel e, certamente, adora chamar a atenção, como a sua filha. Mas Melissa comporta-se tão mal quando ele não está por perto que duvido que o seu pai o perdoe. Afinal, é um homem orgulhoso que não perdoa com facilidade.

- O que tentas dizer-me com tudo isto, Clare?

- É óbvio que não conheces bem Nick. Não é o homem que achas que é. Está acostumado a odiar. E acredita em mim, compreendo que te sintas atraída por ele... Mas és jovem e inteligente e saberás livrar-te desse problema.

- Usas sempre tácticas tão ásperas, Clare?

- Sou famosa por me mexer com rapidez - respondeu.

- Pois não sei como te dizer que não estou interessada nele. Mas, já que insistes tanto, espero que não se case contigo. Não só pelo seu bem, mas também pelo bem de Melissa.

- Não esquecerei o que disseste, Camille. £ quanto á essa menina, necessita apenas de disciplina. Nick mimou-a demasiado, para compensar.

- Achas? Se quase não tem tempo para vê-la...

- Digo-o por Carole, a sua mãe. Era uma espécie de gata selvagem e não se pode dizer que fosse muito boa mãe. A menina tem o seu cabelo e os seus olhos, todavia, certamente não herdou a sua beleza... Carole detestava-a.

Camille não confiava em Clare e pensou que estava a mentir. Era capaz de dizer qualquer coisa para levar a sua avante.

- Seja como for, é evidente que Melissa necessita de carinho. É uma menina muito inteligente e, por isso, fechou-se em si mesma. Pensa que ninguém gosta dela, a não ser o seu pai.

Clare riu.

- Nick também não gosta muito dela. Preferiria tê-la bem longe, portanto seria melhor que a metesse num internato. De certeza que todas as noites reza para que não saia à sua mãe.

Aquele comentário foi a gota de água para Camille.

- Não quero continuar a ouvir-te. Dizes que és amiga de Nick Lombard, mas não fazes outra coisa senão falar mal dele, da sua esposa e da sua filha.

- Faço-o porque o adoro e o conheço. Eu gosto dele tal como é, com os seus erros e a sua complexidade. É um homem de paixões intensas e já estou farta de homens como o meu falecido marido.

- Decerto que ele também o estava de ti.

Clare limitou-se a sorrir.

- Por sorte, sofreu um enfarte antes que pudesse mudar o testamento. Deixou-me rica. A sua família nunca me perdoou, no entanto, a quem se importa? O dinheiro abre muitas portas.

Camille afastou o olhar.

- Eu não gosto de ti, Clare - limitou-se a dizer.

- Muitas mulheres me disseram isso, mas os homens não pensam o mesmo. Só quero que saibas que estou disposta a defender os meus interesses e que tu és uma ameaça para mim, embora o negues. Já estás avisada.

Camille levantou-se da poltrona, zangada, contudo, nesse preciso instante, ouviu Nick aproximar-se. Acompanhava-o Melissa, muito mais contente, aparentemente.

Assim que a viu, a menina saiu a correr para Camille.

- Melissa, acho que antes deves fazer algo - disse o seu pai.

Melissa deteve-se, voltou-se para Clare e disse:

- Lamento ter sido mal-educada contigo, Clare. Sinto muito.

Clare sorriu.

- Desculpas aceites, Melissa. Todos dizemos coisas terríveis às vezes, coisas que, na verdade, não pensamos.

Camille olhou para a menina e não pôde evitar sorrir quando Melissa lhe piscou um olho. Para alguém tão pequeno, demonstrava ter tanto carácter como malícia.

 

Uma semana mais tarde, Camille tinha-se mudado para um apartamento na zona norte do porto de Sidney. Era caro; porém, ficava num bairro bastante seguro.

Os recentes acontecimentos tinham servido para que se preocupasse mais com a sua segurança. Além disso, tinham-na informado que Hilda Gray, a mulher que a tinha atacado, tinha sido internada num hospital psiquiátrico por tempo indefinido e que não iria a julgamento devido ao seu estado mental. Na verdade, Camille sentiu-se aliviada com isso: não queria depor num tribunal. O seu apelido já era demasiado famoso.

Quanto a Tommy e a Dot, partiram para a sua casa nas Montanhas Azuis. Não estavam longe de Sidney, portanto, podiam vê-la com frequência; de facto, tinham tido em consideração essa circunstância antes de comprar a propriedade.

Agora que mudara de vida, Camille começou a pensar no trabalho. Não sabia o que fazer, embora a ideia de se transformar num comerciante de arte Lhe fosse muito agradável. Podia concentrar-se nos novos artistas e deixar os consagrados nas mãos de Claude, que, é claro, lhe telefonara várias vezes desde a sua escaramuça com Hilda Gray. Sempre fora um grande amigo.

Naquela manhã, entrou no seu carro e dirigiu-se a casa de Claude. A sua residência não se encontrava longe dali; era uma casa linda, de pedra, rodeada por roseiras.

Acabava de chegar quando o gato de Claude, Cappy, saiu para recebê-la.

- Olá, gatinho, onde está o teu dono?

- Já estava na hora de vires. Sabes que eu adoro que me visites...

Claude estava à porta e Camille beijou-o nas duas faces.

- Tive muitas saudades tuas, Claude. Na verdade, o teu jardim está lindo. Nunca vira tantas rosas em toda a minha vida. És um génio...

- É o meu pequeno divertimento. Depois, mostro-te uns quantos vasos antigos que adquiri recentemente e que poderiam ficar muito bem na tua nova casa. Além disso, tenho muitas plantas para cuidar...

- Trouxe-te um pequeno presente. É uma garrafa de brandy - disse ela.

Claude olhou para a garrafa e sorriu.

- Se ficares para jantar, daremos conta dela.

- Se me convidares, aceito.

- Nesse caso, entra e põe-te à vontade - disse Claude, enquanto a acompanhava para o interior da elegante casa. - Há algo que quero mostrar-te. Comprei-o recentemente e é possível que fique com ele uma temporada antes de o vender.

- Desde que não o vendas a Perdita Masterman. Camille sentou-se na poltrona da sala.

- A essa mulher? Nunca, não te preocupes. Mas repara no quadro que está no cavalete pequeno... vou vendê-lo a um verdadeiro coleccionador. Estava a pensar em Nick Lombard. Agora que te salvou a vida, suponho que não te incomodasse.

Camille não fez caso do comentário sobre Nick. Levantou-se da poltrona, caminhou para o cavalete e disse:

- É magnífico! Como o conseguiste?

- Tenho os meus segredos, tu sabes. E não os posso revelar a ninguém, nem sequer a ti.

 

- Pois terás que me revelar alguns, porque estou a pensar na possibilidade de abrir uma galeria - informou, sem afastar a vista do quadro impressionista.

- É uma ideia excelente, Camille. Ajudar-te-ei em tudo o que puder.

Em seguida, Claude voltou-se de novo para o quadro e explicou-lhe a sua história.

- Os seus proprietários tinham-no desde finais do século XIX. Já não são tão ricos como costumavam ser, embora sejam o bastante para o comum dos mortais. De qualquer forma, ninguém sentirá a sua falta nas suas paredes... Substituíram-no por uma reprodução muito boa, que parece original a certa distância.

- Mas alguém acabará por se dar conta.

- Bom, isso já não será problema meu.

- Harry teria reparado mal o visse.

- O teu pai não era propriamente um amante da arte.

- Talvez, mas sabia distinguir um bom negócio. No entanto, já nem sequer tenho a certeza que fosse realmente o meu pai.

Claude olhou para ela com espanto.

- Que raios estás a dizer?

- Há muitas coisas que não me contaste, Claude. Muitas coisas que calaste todos estes anos.

- Não sejas tão dura comigo... eu conhecia bem o teu pai. Queres tomar um chá? - perguntou, desesperado por mudar de conversa.

- Tiveste ocasião de conhecer a minha mãe antes de se casar, não foi? - perguntou ela.

Camille seguiu Claude para a cozinha.

- Sim, é verdade - respondeu, enquanto punha água a aquecer. - A tua mãe era órfã e conheci-a através da tua bisavó, que cuidou de Natalie quando os seus pais morreram. A senhora Cooper esteve vários anos na direcção da National Art Gallery e foi ela quem me apresentou Natalie. Estava muito orgulhosa dela... Era doce e linda. Todos nos sentíamos mais felizes pelo simples facto de nos encontrarmos na sua presença.

- Então, também deves ter conhecido Hugo Vandenberg.

Claude assentiu, com uma expressão sombria.

- Sim. Curiosamente, conheci-o na mesma noite em que conheci o teu pai. Hugo ia acompanhar Natalie à ópera... Estava muito apaixonado por ela e, naquele momento, pensava que o sentimento era recíproco. Se não fosse pelo teu pai, ter-se-iam casado.

- Di-lo como se lamentasses que não o tivessem

feito.

- Porque o lamento - afirmou, com tristeza. - Agora, os três estão mortos e o trágico círculo fechou-se. Recordo-me muito bem da situação... Vandenberg, que era um cavalheiro, enfrentou Harry pelo carinho de Natalie. Porém, o teu pai era um homem muito atraente e, sobretudo, muito agressivo, pelo que, finalmente, levou a sua avante e conquistou-a. Nunca esquecerei o sorriso que Harry dedicou a Hugo. Era o sorriso de um predador, de um tigre que se sabia triunfante. Natalie era apenas a sua presa.

Claude deteve-se, durante alguns segundos, antes de continuar.

- Harry desagradou-me, assim que o vi; de facto, nunca me dei bem com ele. Em troca, Vandenberg pareceu-me tão boa pessoa como Natalie. Desde o começo, foi evidente que haveria problemas entre eles, mas na turalmente, o teu pai ganhou a batalha e dedicou-se de corpo e alma à tua mãe. Para ele, não havia outra coisa senão ela. Queria-a só para ele, até ao ponto de não querer partilhá-la com um possível filho.

- Sei que não me amava, mas... é possível que não fosse sua filha?

- Nunca tinha pensado nisso.

- A sério, Claude? Tu conhecias bem a situação:

- E a tua mãe também. Não se teria atrevido a trair Harry. Se o tivesse feito, o teu pai teria sido capaz de matar Hugo e a ela.

Aquilo era a última coisa que Camille desejava ouvir.

- E pensaste que talvez a tivesse matado? Talvez não tenha caído da amurada de Sea Eagle, mas tenha sido ele a atirá- la.

- Camille, a tua mãe era toda a sua vida. Ficou louco quando morreu. Além disso, houve uma investigação, a que eu mesmo assisti, e todos compreendemos que a dor de Harry era sincera. A sua morte significou a perda da única pessoa que amara.

- Mas talvez a culpa tenha sido dele... Sempre pensei que se comportava como se estivesse possuído por um demónio.

- O teu pai já tinha muitos inimigos naquela época, gente que o odiava e que teria feito tudo para feri-lo. Mas ninguém pensou que pudesse ter matado a sua esposa. Estava demasiado apaixonado por ela.

- E se ela o rejeitou, Claude?

Querida, estás a dizer algo terrível...

- porque já não sei em quem acreditar.

- Os dois estão mortos. Já não importa.

- Compreendo. Não há resposta para as minhas perguntas. O passado é como é e não podemos fazer nada a esse respeito. Mas, é possível que não soubesses que Hugo era o tio de Nick Lombard?

Os dois sentaram-se à mesa da cozinha e serviram o chá.

- Estamos a falar de algo que aconteceu há vinte anos. Como ia sabê-lo? - perguntou ele.

- Quando o descobriste então?

Claude olhou para ela com desconfiança.

- O que é isto, Camille? Um interrogatório?

- Não quero incomodar-te, Claude. Sempre foste um grande amigo, mas tenho de o saber. Ocultaram-me muitas coisas, durante estes anos.

Claude olhou para ela com simpatia.

- Estás consciente do que me estás a pedir, querida?

- Sim. Sei que o meu pai se comportou muito mal com muita gente. Além disso, a certa época, cheguei a pensar que me odiava. E talvez fosse verdade.

Claude segurou-lhe na mão.

- O ódio era algo natural em Harry. Só amou Natalie.

- Ou comportava-se como se a amasse.

- Não, isso era verdade: amava-a. Sabes que não te mentiria e podes acreditar em mim. Amava-a loucamente e, quando a perdeu, transformou-se num animal selvagem.

- Mas deves saber que a minha mãe voltou para Hugo...

- Se o fez, não sei como o conseguiu. O teu pai vigiava-a dia e noite.

- Não podia vigiá-la o tempo todo. Manter uma relação em segredo não é assim tão complicado.

- Nesse caso, desperdiçou a vida. E Vandenberg, também. Por outro lado, não tenho a certeza de que a tua mãe fora capaz de fazer uma coisa dessas. Era demasiado conservadora.

- Sim, mas também era leal a Hugo. Harry foi uma loucura transitória.

- Lombard disse-te isso?

- Com efeito. Sabes o que se passou depois?

- Sim, sei que Vandenberg se matou.

- Como?

- Com um tiro, mas os Vandenberg nunca revelam as suas coisas e passaram-se anos antes que eu descobrisse.

- Sabias que a minha mãe estava grávida quando morreu?

Claude empalideceu.

- Sim, soube pela investigação. E essa é mais uma razão para pensar que Harry não matou a tua mãe. Nunca teria matado o seu próprio filho.

- Achas? Eu era sua filha e nunca me quis.

- Harry era um homem terrível, mas, francamente, não o imagino como assassino.

- Talvez devesses começar a mudar a tua opinião sobre ele. Eu já estou a fazê-lo.

- Não, não pode ser. Esse Lombard deve ter alguma coisa entre mãos. Certamente, está afectado pela morte do seu tio e... Bom, todos adorávamos Natalie, todos. Podes ter a certeza de que eu nunca teria permanecido junto ao teu pai se soubesse que...

Claude não pôde continuar a falar. Os olhos tinham-se-lhe enchido de lágrimas.

- Desculpa-me, Claude.

- Ninguém sabe o que se passou nesse dia - continuou ele, com uma voz fraca. - A única coisa que sei é que o teu pai sofreu muito por ela e que os três morreram.

- Mas ainda sobra Nick Lombard e eu.

- Talvez fosse melhor que te mantivesses afastada dele.

- Talvez, mas o destino está empenhado contra isso.

- Não estava a sair com Clare Tennant?

- Isso é o que ela pensa.

- Tem cuidado com Clare. É uma mulher sinistra. Diz-se que o seu falecido marido estava prestes a mudar o seu testamento quando, por acaso, sofreu um enfarte. Não sei se reparaste, mas tem o olhar de um leão.

- Conheceste a esposa de Nick?

- Não, embora a visse algumas vezes. Era uma mulher linda, de cabelo escuro, olhos azuis e pele muito branca. Um pouco magra, mas vestia-se muito bem. A suafilha não se parece muito com ela.

- Tem os olhos do seu pai e um cabelo muito bonito. No entanto, receio que também tenha uns quantos problemas.

- Dizem que é um pouco... lenta.

- Por que dizes isso?

- É o que se comenta por aí.

- Não é verdade. É uma rapariga muito inteligente, mas que não recebeu carinho suficiente. Clare Tennant tenta convencê-la de que a sua mãe a odiava.

- Se isso for verdade, nunca voltarei a acreditar nessa mulher.

- De qualquer forma, Melissa tem o seu pai. E qualquer pessoa que os veja juntos percebe que Nick a adora.

- Vejo que aprecias bastante essa menina...

- É verdade. Necessita que alguém cuide dela.

- E não achas que Clare Tennant poderia ocupar esse lugar?

- Não, não gosta de crianças. Não é nada maternal.

- Isso não tem que ser necessariamente um defeito. Além disso, muitos homens ficariam encantados por ter uma mulher com aquelas características.

- Talvez, mas Nick Lombard não se interessa por uma mulher assim.

Durante o jantar, estiveram a conversar sobre a abertura da galeria que Camille organizara e a jovem falou-lhe da sua intenção de trabalhar exclusivamente com artistas desconhecidos.

Claude não se surpreendeu muito e, como mentor, ficou muito contente ao saber que queria seguir os seus passos. Sabia que tinha talento para a arte. Tinha crescido entre obras de arte e, por outro lado, possuía os conhecimentos profissionais necessários para ter êxito.

Agora, só necessitava de um pequeno capital para abrir o estabelecimento. Claude conhecia um bom local; pertencia a um antiquário, no entanto, estava prestes a mudar-se para outra zona. Quanto ao dinheiro, mostrou-se imediatamente disposto a emprestar-lhe o que lhe fizesse falta. Afinal, Camille era um pouco como a sua sobrinha honorária.

O assunto dos artistas não era um problema. Ambos conheciam muita gente.

- De qualquer forma, sugiro-te que também dediques espaço aos artistas aborígenes - comentou Claude:

- Alguns estão a fazer um trabalho excelente. E, há poucos dias, conheci uma japonesa cuja obra é francamente interessante. Poderia apresentar-te, se quiseres...

- Isso seria magnífico. Na verdade, Linda quer ser a minha ajudante.

- Precisarás de uma, certamente. Mas... Linda? Pensava que era uma dona de casa. Lamentei muito o seu aborto, embora imagine que Stephen e ela tentarão repetir mais tarde ou mais cedo.

- Não tenho tanta certeza, Claude. As coisas complicaram-se entre os dois. Linda necessita de tempo para pensar.

- Lamento o que me dizes... Sempre me pareceram o casal perfeito, embora a sogra de Linda seja uma verdadeira bruxa. Não gosta dela. Deve ser difícil para a tua amiga.

- Essa é parte do problema - disse Camille, suspirando. - E não sei como vão acabar as coisas entre eles.

- Na minha opinião, Linda devia ter pensado duas vezes antes de se casar.

- Todos cometemos erros, Claude. Eu própria o cometi com Philip.

- Isso não foi exactamente um erro. Necessitavas de carinho e ele deu-to. Harry tratava-te muito mal... Mas herdaste algumas das suas coisas boas, como a sua força e a sua obstinação. Se as usares, terás êxito nos negócios. De facto, ele era muito bom no princípio. Só no fim se tornou tão megalómano e egocêntrico que deitou tudo a perder.

- Por esta altura, estou convencida de que não tinha outra saída. Se não se tivesse concentrado até esse ponto nas suas ambições, teria ficado a sós com o seu pior inimigo: ele próprio.

Claude franziu o sobrolho.

- Olha, poderíamos continuar a falar dele durante horas e não chegaríamos a conclusão nenhuma. Harry Guilford era o teu pai e sobre isso não tenho dúvida. Além disso, amava a tua mãe e sei que nunca a teria magoado.

- Mas, achas que é só isso, Claude? Acreditas sinceramente nisso? - perguntou-lhe, com profunda tristeza.

- Talvez naquele dia, o dia da morte da minha mãe, não estivesse em si.

 

Camille não estava completamente certa de que a estivessem a seguir, porém, com o passar do dia, experienciara a sensação estranha e inquietante de que alguém a observava.

Onde mais o sentira fora na estrada; por isso, estivera atenta ao espelho retrovisor. Até fizera uma paragem imprevista, só para comprovar se o Mercedes azul que a seguia desde há um bom bocado também parava. Contudo, seguiu ao largo e ela respirou, aliviada. Pensou que o mais provável era que estivesse um pouco paranóica, reacção lógica e compreensível, depois do ataque que sofrera.

Quando chegou ao centro comercial, já se tinha acalmado. Precisava de comprar umas coisas, de modo que estacionou no beco que dava para a parte traseira das lojas e caminhou para a rua principal. Comprou uns bolos e um biscoito de chocolate na padaria, legumes e frutas na frutaria e, finalmente, na charcutaria, queijo e azeitonas pretas num local interessante, atendido por um casal de gregos muito simpáticos. Ficou a conversar com eles um pouco e agradeceu a um jovem que lhe abriu a porta.

Na rua, reparou que ce pressagiava uma tempestade. As nuvens pretas avançavam a grande velocidade e cobriam o céu. No decurso das últimas horas, o clima mudara abruptamente, como consequência do ciclone que açoitava a costa de Queensland. Tudo parecia indicar que se avizinhava um forte temporal, mas Camille pensou que ainda tinha tempo para terminar os seus assuntos. Na montra da livraria havia uma série de ofertas muito interessantes e aproveitava sempre essas ocasiões para acrescentar alguns exemplares à sua colecção.

Entrou na loja, pegou num dos livros da prateleira de novidades e folheou-o para ver do que se tratava. Foi então que se convenceu de que alguém a estava a observar. Voltou-se rapidamente e deu uma olhadela ao local, contudo, não encontrou nada de estranho, nem de suspeito. As poucas pessoas que permaneciam na loja estavam a ler com as cabeças baixas ou concentradas nas estantes. Havia duas adolescentes a rir-se num canto e um jovenzito de cabelo comprido a colocar um livro no seu lugar.

 

Era parecido com o que lhe abrira a porta na loja dos gregos, mas não tinha a certeza de que fosse o mesmo, porque tinha um aspecto demasiado vulgar. Naquele momento, o rapaz aproximou-se da caixa e pagou, sem sequer olhar para o lugar onde ela estava. Depois, saiu da livraria sem se voltar para trás.

Preocupada, Camille voltou a atenção para o seu livro. De repente, uma mulher de meia- idade perguntou-lhe:

- Sente-se bem, querida?

Ela tentou sorrir, mas não conseguiu.

- Sim, obrigada.

- Melhor assim. Parecia nervosa, por isso perguntei. Camille praguejou por ser tão óbvia.

- A verdade é que achei que alguém me estava a observar - explicou.

- O jovenzito que acaba de sair não tirava os olhos de cima de si. Não o culpo... deveria posar para a capa de um destes livros.

De seguida, a mulher pegou numa novela romântica em cuja capa aparecia uma ruiva luxuriosa abraçada a um pirata de cabelo preto e peito nu.

Camille duvidou que aquele argumento explicasse tudo. Sabia que o seu cabelo era muito apelativo e que não era estranho que as pessoas a observassem. No entanto, naquele dia, longe de se sentir admirada, tinha-se sentido ameaçada.

Quando regressou ao beco, já tinha começado a chover e as furiosas rajadas de vento quase lhe destruíram o guarda- chuva. Olhou para a esquerda e comprovou que ninguém se aproximava. Não era preciso que olhasse para a direita, porque a ruela era de uma só via. Agarrou-se ao guarda-chuva como se se tratasse de um escudo e agarrou nos sacos com força. Assim que pôs um pé no pavimento, um carro avançou na direcção contrária a toda a velocidade.

A água que os pneus levantaram salpicou-Lhe a roupa. Alterada, Camille recuou depressa e soltou o guarda-chuva, que caiu sobre o pára-brisas do automóvel, dificultando a visão do condutor. Enquanto recuperava do susto, ouviu o carro chiar e depois virou pela esquina. Milagrosamente, não se deparou com nenhum outro veículo durante o percurso. Camille estava aturdida. Tinha a impressão de que se tratava de um carro pequeno e bastante velho, cinzento-escuro ou verde. Não sabia de que marca era, todavia, tinha a certeza de que tinha uma porta traseira.

Não podia acreditar que alguém tentara atropelá-la. Isso era muito pior do que imaginara Quando, finalmente, conseguiu abrir o seu carro, estava completamente ensopada e não parava de tremer. Levou uma mão ao coração para tentar aliviar a angústia. Aparentemente, alguém a perseguia outra vez.

Enquanto se sentava, Camille viu que outro automóvel tentava entrar no beco na direcção contrária, antes de reparar que era de uma só via. Perguntou-se se se trataria de um novo engano de outro condutor desprevenido. Em qualquer dos casos, a situação inquietava-a, de modo que olhou pelo espelho retrovisor, ligou o motor e saiu dali.

Ao chegar ao seu apartamento, preferiu estacionar na rua, antes de descer a rampa que conduzia à garagem e deixou o carro num dos espaços livres em frente ao edifício. Não recuperara o guarda-chuva, mas ter que se molhar um pouco mais não parecia ter importância. A verdadeira batalha consistia em conseguir manter-se sã e salva.

Caminhou para a entrada, com a cabeça curvada e a toda pressa, quando, de repente, alguém se aproximou por trás como uma sombra. Alguém que emanava masculinidade, força, poder.

Tremeram-lhe as pernas ao ver de quem se tratava. Era Nick Lombard, com os seus grandes e impenetráveis olhos pretos. Ele não disse nada, só arqueou uma sobrancelha e indicou-lhe a porta do edifício.

- Assustaste-me - protestou ela.

- Lamento - desculpou-se Nick. - Chamei-te pelo teu nome, mas, obviamente, não me ouviste. Estás ensopada, permite-me que te ajude com esses embrulhos. Não podemos ficar aqui, vamos para dentro.

Camille riu com nervosismo.

- Agora dás-me ordens? - perguntou.

- O que se passa? Pareces assustada.

- Não tenho a certeza - balbuciou ela, olhando em seu redor, - mas acho que alguém tentou atropelar-me.

Ele olhou para ela, espantado.

- Falas a sério?

- Achas que inventaria uma coisa destas? - resmungou a mulher.

- Está agitada e muito molhada, será melhor que entremos.

Nick ficou a olhar para a rua enquanto ela abria a porta. Não havia ninguém, nem ali nem no elevador. Caminharam em silêncio para o apartamento de Camille, porém, antes que pudesse meter a chave na fechadura, a vizinha do lado, uma idosa encantadora, veio à porta.

- Camille - chamou a mulher. - Meu Deus, querida, estás ensopada. Tenho um embrulho para ti. Recebi-o em teu nome, espero que não te incomodes.

Um minuto depois, a velha regressou com uma caixa envolvida em celofane e decorada com um laço prateado. Sem dúvida, eram flores. Camille agradeceu e pegou na caixa. Depois, tirou o laço e abriu-a. Tratava-se de um ramo de lírios brancos, lindos e com certo ar mortuário.

Nick Lombard tirou-lhas das mãos e disse:

- Entremos de uma vez.

- O que é que se está a passar? - berrou ela. Em seguida, Camille fechou a porta e, em pânico, apoiou-se contra uma parede para tentar pensar com clareza.

- Há algum cartão na caixa? - perguntou a Nick.

- É o que estou a tentar averiguar - respondeu ele, enquanto revia as flores.

Camille estava a tremer de medo.

- Vai tirar essa roupa molhada - ordenou ele, sem levantar a vista do embrulho.

- Estou demasiado preocupada com essas malditas flores para pensar em mudar de roupa! - gritou ela.

- Ninguém te vai magoar. Prometo.

Na casa de banho, Camille tirou a roupa húmida e afastou-a com um pontapé, um gesto pouco comum, que evidenciava como estava alterada. Tomou um duche rápido, secou-se e apanhou o cabelo numa trança.

 

Sabia que deveria ter-se vestido de novo, porém, estava tão nervosa que a única coisa que queria era estar confortável. Finalmente, enfiou um roupão de banho verde e ajustou o cinto tanto quanto pôde.

Quando regressou à sala, Nick Lombard estava sentado no sofá, a coçar a cabeça com a palma da mão.

- Então? - perguntou ela.

Ele levantou-se bruscamente e olhou para ela com tanta inquietação que Camille voltou a tremer de medo.

- Aparentemente, trata-se de uma brincadeira perversa - respondeu Nick, com dureza.

- Oh, não! O que diz o cartão?

Ele hesitou alguns segundos, em seguida, leu em voz alta:

- Os meus mais sentidos pêsames.

Ela encolheu os ombros, com impotência.

- O que significa? - perguntou.

- Obviamente, estão a tentar pôr-te à defensiva.

- Então alguém me odeia?

Nick olhou para ela, angustiado, e o seu queixo ficou tenso.

- Acho que deveríamos falar com o detective Lewis

- sugeriu. - É um bom homem.

- Não me vou deixar intimidar.

Apesar da valentia das suas palavras, a voz de Camille tremia.

- Queres contar-me o que te assustara antes de eu chegar? - perguntou ele.

Ela respondeu com outra pergunta.

- Onde estiveste esta tarde?

- Passei o dia de reunião em reunião - assegurou ele.

- Podemos falar de ti?

Camille levou as mãos à cabeça e começou a passear pela sala.

- Maldição, será que os meus problemas nunca vão acabar? - murmurou.

- Poderemos lutar com eles. Não te preocupes. Naquele momento, tocou o telefone. Nick apressou-se a atender e tentou falar com naturalidade.

- Sim?

Fez uma pausa e depois desligou o auscultador.

- Enganaram-se - disse a Camille. -Ela olhou para ele com cepticismo.

- Uma mentira piedosa... - comentou.

- Por que não deixamos isto e bebemos qualquer coisa?

- Só tenho vinho branco. Está no frigorífico: Ele foi até à cozinha, voltou com dois copos cheios e deu um a Camille.

- Saúde - disse, lacónico.

- Saúde.

Enquanto tentava dominar as suas emoções, Camille sentou-se num canto do sofá.

- Isto não pode estar a acontecer... - murmurou.

- Deixa que te ajude a ficar mais confortável. Em seguida, Nick rodeou-a de almofadas, como se fosse uma menina. O simples toque das suas mãos bastou para que o desejo se acendesse no corpo de Camille, que, instintivamente, arqueou as costas e se deleitou com o contacto do roupão de banho sobre os seus seios nus. Estava tão excitada que quase lhe doía a pele. A única coisa em que podia pensar era na última vez que estivera entre os braços de Nick.

 

Ele pareceu reparar no estado de Camille, porque recuou de repente e sentou-se no outro canto do sofá. Depois, relatou-lhe a história, embora limitasse os pormenores ao ocorrido no centro comercial.

Nick ouviu-a, sem a interromper, e, quando ela terminou de falar, comentou com calma:

- É provável que estejas a fazer um drama sobre algo que não vale a pena, todavia, é compreensível que reajas assim.

- Sei que estou um pouco paranóica, mas acredita em mim: não és tu quem tem que agradecer por continuar com vida.

- Estás convencida de que foi intencional?

- Por acaso vês muitos carros em direcção conttrária a vir a toda a velocidade? - perguntou ela.

- É fácil que aconteça uma coisa assim se não se co nhecer a zona. Há pessoas que conduzem sem rumo

fixo, durante as tempestades. O clima altera- as ou coisa assim...

- Achas que estou a tirar conclusões precipitadas? Nick fez uma careta de dúvida com a boca.

- Sinceramente, não sei - admitiu.

- Não, não sabes. E, de facto, eu também não.

- Nem sequer pudeste ver se o condutor era homem ou mulher?

- Chovia demasiado - respondeu ela, com a voz tré mula. - Além disso, conduzia muito depressa e, como

se não bastasse, o vento virara-me o guarda- chuva ao contrário.

- Podes descrever-me o jovem da livraria? - perguntou ele, com naturalidade.

- Não.

Enquanto narrava o acontecido, Camille reparara no desconforto com que Nick reagira ao ouvir a parte do suposto admirador adolescente.

- Vamos; faz uma tentativa - insistiu ele. Ela apoiou a cabeça numa almofada e suspirou.

- Tenho uma impressão geral - esclareceu. - Um jovem comum. Alto, magro, desajeitado, de cabelo castanho claro preso num rabo-de- cavalo. Vestia calças de ganga, uma t-shirt branca sem inscrições e ténis. A muLher disse que não tirava os olhos de cima de mim.

- Tenho a certeza de que já terás ouvido esse comentário em mais do que uma ocasião - disse Nick, num tom cortante.

Camille ignorou-o.

- O mais provável é que se tratasse apenas de um estudante a comprar um livro - disse ela. - Sei que é ridículo que me preocupe com isso, mas não o consigo evitar.

- Se te acalmares, poderíamos comprová-lo com bastante facilidade.

- E o que me dizes das flores?

- Não te preocupes, investigarei isso - assegurou ele, e bebeu o resto do copo. - Este vinho é muito bom.

- Obrigada. De qualquer forma, continuo sem saber o que fazias à porta do meu edifício.

Nick ficou tenso.

- Poderias deixar de suspeitar de mim? - suplicou-Lhe. Queria ver onde vivias e se estavas bem, é só isso.

- Como conseguiste o meu endereço?

- Esta não é uma cidade grande e todos se conhecem, Camille. Deverias sabê-lo. Melissa esteve muito preocupada contigo. Pensa que não deverias ter saído da tua casa e gostaria que viesses viver connosco.

Apesar da tensão, ela teve que sorrir.

- É uma menina muito doce - murmurou. - Não sabe as coisas horríveis que aconteceram entre nós eespero que nunca saiba.

- Camille, eu gostaria de te ajudar de alguma forma.

- Obrigada, mas quero viver por minha conta.

- Isso não é nada simples.

- De momento, estou a avaliar as minhas possibilidades.

- Estou aqui para te ajudar. não pretendo intrometer-me nos teus assuntos - esclareceu Nick. - No entanto, se procuras trabalhar, poderia contratar-te amanhã mesmo.

Camille sentia-se cada vez mais confusa. Achava que Nick Lombard era um ser detestável que devia odiar com toda a sua alma, mas era impossível não apreciar a sua generosidade.

- Decidi que quero dedicar-me ao comércio de obras de arte - comentou ela.

Ele levantou as sobrancelhas.

- Tens o talento e um bom contacto para entrar no negócio.

- Claude? - perguntou Camille.

- É claro. Na minha opinião, é o melhor comerciante do país.

Ela assentiu.

- Ofereceu-me a sua ajuda. Claude sempre foi como um tio para mim.

- Essa ajuda inclui um investimento de dinheiro? quis saber Nick.

- Isso não te diz respeito.

- Perguntava-o porque, se queres trabalhar por conta própria, poderia conseguir-te um empréstimo no meu banco.

- E tu serias o fiador?

Ele fez um leve gesto de afirmação com a cabeça, ignorando o tom sarcástico de Camille.

- Não julgo que seja um problema. Tens tudo para triunfar nesse projecto. És inteligente, hábil nos negócios e contas com uma boa experiência – assegurou Nick. - Além disso, sabes muito de arte. Até o facto de pareceres alguém fugido de um quadro de Klimt, é um ponto a teu favor.

Camille corou perante os elogios e, como resistia a mostrar-se tão vulnerável, baixou a cabeça e concentrou-se no fecho de uma das almofadas.

- Claude tem uma posição económica muito boa. O meu pai transformou-o num homem rico e quer ajudar-me - explicou. - Além disso, não tenho dúvida nenhuma sobre a sua integridade pessoal.

- Receio que devo interpretar esse comentário como uma agressão - disse Nick, com a voz quebrada.

- Esperas que aja como se nada tivesse acontecido?

Sei que não és uma má pessoa, mas deves compreender que me fizeste muito mal e que me custa separar as coisas - desculpou-se. - Confias no teu instinto e ages em conformidade. Eu faço o mesmo. Por exemplo, estou convencida de que estiveram a seguir-me durante o dia e de que os inimigos de Harry continuam à espreita.

- Por que não contratas um guarda-costas por algumas semanas? - sugeriu ele. - Conheço uma empresa de segurança muito boa que poderia ocupar-se de ti.

- A mesma que Harry usou? - respondeu Camille, com ironia. - Em qualquer caso, odiaria ter alguém a vigiar-me o tempo todo.

- Às vezes, não há outra alternativa.

- Tu mesmo disseste que estava a fazer um drama por nada.

- É possível, mas teremos que investigar de qualquer forma.

Ela levantou a vista e olhou para ele nos olhos.

- Hilda Gray tem filhos? - perguntou.

- Sinceramente, não sei - respondeu Nick, com delicadeza.

Os olhos de Camille encheram-se de pena e disse, quase num murmúrio:

- Deve ser terrível que o teu pai se suicide e que, depois, internem a tua mãe num manicómio.

- O destino pode chegar a ser muito cruel. Encarregar-me-ei de que o detective Lewis descubra se Hilda tem filhos.

Em seguida, o homem levantou-se bruscamente e deu meia volta. A tensão encheu o ambiente e, sem entender porquê, Camille chamou-o.

- Não vás - suplicou.

Nick voltou-se para olhar para ela e ela aninhou-se no seu canto do sofá.

- Não te assusta o que poderia surgir disto, pois não? Camille respirou fundo e susteve o ar.

- Fiz-te uma pergunta - insistiu ele.

- Não tenho respostas para tudo - disse ela, com ironia. - Sugeriste que poderia haver uma relação entre...

- Disse-o sem pensar. Seria demasiado grotesco admitiu Nick, e mudou o tom. - Talvez não saibas que

fui eu quem encontrou o meu tio. É uma imagem que

nunca poderei esquecer.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

- Sinto muito, não sabia.

- Ele amava a tua mãe. Tanto, que era incapaz de viver sem ela.

Camille reconheceu a raiva que o comentário de

Nick albergava.

- E tu odiava-la porisso, não é verdade? - sugeriu.

Ele percorreu-a com o olhar. Deleitou-se com os olhos verdes, a pele luminosa, a cabeleira gloriosa e o corpo maravilhoso, que se ocultava sob o roupão de banho. Contemplara aquela beleza antes e sabia melhor que ninguém quão terrível podia chegar a ser.

- Odiava mais Guilford - disse, finalmente.

- E eu, Nick?

- Tu és uma vítima inocente.

- Vítima? Eu não gosto nada desse conceito... - afirmou ela.

Camille falou com orgulho e integridade até que se lhe quebrou a voz. Depois, levantou-se e foi até à varanda. Lá fora, a tempestade continuava tão forte como antes. O vento sacudia as folhas das árvores e castigava as azáleas e as tilias do jardim. A imagem da mulher reflectida nas janelas tinha um ar espectral.

- Isto é terrível - disse Camille, alterada. - Por que não vais para tua casa? Melissa precisa de ti.

- Eu sei - respondeu ele e aproximou-se dela, - mas não quero deixar-te sozinha.

As palavras de Nick soaram a confissão desesperada.

De repente, uma rajada de vento e água sacudiu a janela, distorcendo, momentaneamente, o reflexo dos corpos. Camille deixou escapar um pequeno grito. A cidade não tinha sofrido uma tempestade assim em muito tempo, contudo, não era nada, comparada com a maré de emoções contrárias que atravessava o corpo e a mente da mulher. Desejava Nick com desespero e, ao mesmo tempo, sentia-se obrigada a agir com prudência e lealdade, embora não tivesse a certeza de que Harry merecesse essa lealdade.

Naquele momento, Nick Lombard apoiou-lhe as mãos sobre os ombros e ela tremeu.

- Vai-te embora, por favor - sussurrou Camille.

- Não posso afastar-me de ti... Que tipo de feitiço é este?

- Não podes ficar comigo - disse ela.

- Eu sei.

Sem dar crédito ao que acabara de dizer, afastou-lhe a cabeleira e começou a beijá-la. Cada um dos seus movimentos estava carregado de intensidade. O coração de Camille acelerou. Todas as emoções e desejos que sempre tivera pareciam envolvê-la numa fogueira de sensações.

- Isto é uma loucura! - exclamou ela, com agitação.

- Não faz sentido que continuemos a reprimir-nos. Em seguida, Nick pôs uma mão debaixo do roupão de banho e acariciou-lhe os seios, erguidos pela excitação.

Camille estava tão excitada que lhe custava respirar. Nunca imaginara sentir tanto prazer. Consciente das sensações que Lhe provocava, Nick começou a percorrer-Lhe os mamilos com a ponta dos dedos.

Ela não pôde evitar gemer. Todo o seu corpo tremia e ardia em desejo. Deitou a cabeça para trás e olhou para ele com os olhos cheios de paixão.

- Nick, não... - implorou, num suspiro.

Ele deu uma leve gargalhada.

- Não? - murmurou Nick. - Não compreendes que estamos condenados a isto?

A electricidade entre os seus corpos sentia-se em toda a sala. Quando Camille fechou os olhos, ele aproveitou para beijá-la intensamente com a língua, lábios e dentes. Ela sentia-se excitada como nunca.

Estava total e absolutamente perdida. De facto, estava-o desde a primeira vez que olhara para ele nos olhos.

Ele beijou-a, como se se tratasse da única oportunidade que tinha para fazê-lo. Com um movimento rápido, afrouxou-lhe o cinto do roupão de banho que se interpunha entre ambos e deixou-o cair ao chão. A muLher ficou vestida só com umas cuecas de renda e seda.

Nick percorreu-lhe o corpo com o olhar carregado de uma paixão com que ela nunca sonhara. Naquele momento, levou-a nos braços até ao quarto e pousou-a na cama com delicadeza.

Camille pensou que estava a viver a cena mais ardente e perigosa da sua vida. Acomodou-se no meio da cama e flectiu as pernas. Não fazia sentido resistir ao inevitável, estava num beco sem saída e o melhor que podia fazer era entregar-se ao prazer do momento.

Quando ele se deteve nu em frente a ela, Camille sentiu que estava a contemplar uma obra de arte. Nick era atraente, viril e sensual até extremos insuspeitos. Tinha o corpo de um nadador ou de um atleta, os ombros e as costas largos e o tronco musculado. A luz do quarto fazia com que a sua pele brilhasse como o bronze. Não havia nada que destoasse nele, era um Adónis de pele dourada e proporções perfeitas.

Aproximou-se dela e Camille olhou para ele nos olhos com atenção. No seu olhar, reparava-se que estava tão seguro dele como dela.

- Podes ficar grávida? - perguntou Nick.

- Importas-te? - retrucou ela, com o fôlego entrecortado.

- Sim, importo-me muito.

- Então, a resposta é não.

Era verdade. Continuara a tomar a pílula depois de acabar com Philip.

Nick inclinou-se sobre a sua amante e roçou-lhe os seios com o pêlo do peito.

Camille sentia fogo no seu interior. Ele começou a esfregar-se sensualmente contra ela até fazê-la ofegar com frenesi.

- Quero conhecer-te - sussurrou Nick, olhando para ela nos olhos. - Entendes o que isso significa? Quero conhecer cada centímetro do teu lindo corpo, mas também quero conhecer a tua mente e o teu coração.

Ela tentou endireitar-se, porém, ele agarrou-a pelas costas e aproximou a boca dos seios, tensos e palpitantes.

Camille fechou os olhos e rendeu-se ao prazer. Tinha o sexo húmido, quente e ansioso por acolher Nick. Mas, antes de entrar nela, ele queria prová-la e desfrutar do sabor da sua essência feminina. De modo que acomodou a cabeça entre as pernas da mulher, arrancou-lhe as cuecas com os dentes e começou a lambê-la e a acariciá-la febrilmente. Ela estava à beira do êxtase e sentia-se incapaz de opor a menor resistência aos jogos de Nick.

- Por favor... - suplicou, entre gemidos.

- Como me chamo? - inquiriu ele. Ela abriu os olhos, assombrada.

- Nicholas - respondeu, quase sussurrando.

- Nicholas quê? - insistiu ele, ansioso.

- Nicholas Lombard, o meu inimigo.

A resposta de Camille revelava que continuava a pensar que Nick representava um perigo mortal para ela.

- Vais deixar-me louca - confessou a mulher.

- E tu a mim.

Depois de dizer isso, Nick introduziu-se nela, afundou-se tanto quanto pôde e começou a beijá-la apaixo nadamente. Camille agarrou-se a ele com todas as suas forças e começou a tremer. Sentia que a alma lhe escapava em cada beijo.

Nenhum outro homem a excitara tanto. Nunca experimentara um desespero semelhante e, embora, em parte, receasse perder-se de si mesma, sentia que não tinha outro remédio senão deixar-se arrastar pelo prazer.

 

Entre movimentos frenéticos, alcançou o êxtase. Foi um orgasmo eléctrico e poderoso. Arqueou as costas, as pernas ficaram tensas e gemeu loucamente.

Ele tentou acompanhá-la com os seus movimentos.

- Fica comigo - suplicou-lhe ele.

- Não posso, Nick...

- Podes sim. Agora mesmo, és minha.

Camille entregou-se por completo. Deixou que ele a guiasse para que os seus corpos se mexessem em uníssono. Sentia que estavam unidos, fundidos num só ser, livres do mundo e das complicações que os rodeavam. Livres.

Várias horas depois de Nick se ter ido embora, enquantoCamille gozava de um sono reparador, o telefone da mesa-de-cabeceira tocou. Acordou alterada pela campainha estridente, apalpou na escuridão até encontrar o aparelho e aproximou o auscultador ao ouvido.

- Foste avisada - disse-lhe uma voz estranha. Não chegou a reconhecer se se tratava de um homem ou de uma mulher, mas, sem dúvida, tratava-se de alguém cheio de ódio.

Depois daquela primeira chamada, aconteceram muitas coisas. O detective Lewis confirmou-lhe que Hilda Gray tinha um filho; Camille viu algumas fotografias do rapaz, todavia, não se parecia nada com o jovem que vira no centro comercial. Além disso, Sebastian Gray era cadastrado e não tinha carro, embora tivesse carta de condução. A polícia vigiá-lo-ia durante um tempo, apesar de ter insistido que nunca assediara Camille Guilford e que não estava interessado nela porque não gostava de mulheres.

- É homossexual e não oculta as suas preferênciascomentou o detective Lewis.

Também lhe disse que continuavam a investigar o jovem da livraria, mas a descrição que Camille lhes fizera era tão comum que, a menos que voltasse a vê-lo, duvidavam que pudessem encontrá-lo. Interrogaram os vendedores do centro comercial e não só não se tratava de um cliente regular, como também nenhum se recordava do rapaz.

Além disso, o detective duvidava que tivessem tentado atropelá-la no beco. Conforme dizia, a cidade estava demasiado infestada de péssimos condutores para supor que, atrás do incidente, houvesse mais que uma má manobra com o volante.

- Compreendo que esteja preocupada, Camille - disse Lewis, - foram demasiadas coisas. Tentaremos seguir a pista das flores, embora receie que já esgotámos todas as nossas fontes. Quanto às ameaças telefónicas, sugiro que mude de número e que solicite que não o publiquem na lista da cidade.

Aparentemente, isso era tudo o que podia fazer. Nick agiu imediatamente e contratou uma empresa de segurança privada para que se ocupasse de filtrar as chamadas, vigiasse o apartamento de Camille e lhe destinasse um guarda-costas vinte e quatro horas por dia. Embora soubesse que a vigiavam, o seu sexto sentido só parecia activar-se diante do perigo.

Tal como lhe prometera, Camille foi procurar Melissa depois do colégio para a levar a cortar o cabelo.

Marcara uma hora com o seu próprio cabeleireiro, porque era um especialista em cabelos frisados.

- Ficarás ao meu lado, não é, Camille? - perguntou Melissa, com um ar assustado.

 

A menina estava fascinada com a decoração do ca beleireiro, mas usara o cabelo trançado durante tanto tempo que, por muito que odiasse o seu penteado, estava assustada pela mudança.

Sean já tinha preparado uma cadeira e deixara a Camille umas revistas sobre a bancada.

- Como te chamas, querida? - perguntou a Melissa com simpatia.

A pequena inclinou a cabeça e murmurou: Melissa.

Concentrado no seu trabalho, o cabeleireiro entendeu que se chamava Marissa.

- Marissa! Que nome mais bonito, é perfeito para ti. A menina endireitou-se imediatamente e aproveitou a oportunidade para fingir que era outra pessoa. Não se incomodou em corrigir Sean e Camille, consciente da situação, deixou-a continuar com a travessura. Aparentemente, Melissa nunca gostara muito do seu nome e agradava-Lhe que a chamassem de outra maneira.

A sessão no cabeleireiro decorreu extraordinariamente bem. Sean sabia do seu trabalho e a menina necessitava que a ajudassem a dominar os seus caracóis rebeldes. Depois de lhe lavar a cabeça, o cabeleireiro alisou-lhe o cabelo e começou a cortar até que o chão que os rodeava se encheu de cabelo. Apesar da ansiedade de Camille; a pequena não se queixou em momento nenhum e limitou-se a olhar-se ao espelho, fascinada com a sua transformação.

- Esta é a minha verdadeira imagem! - exclamou Melissa.

Sem parar de olhar para si, a menina começou a tocar no cabelo brilhante e levemente ondeado com um entusiasmo enternecedor.

- Estás linda! - comentou Sean.

Em seguida, o cabeleireiro ajudou-a a descer da cadeira e apreciou ver a felicidade que era capaz de gerar com o seu trabalho.

Uma vez na rua, Melissa declarou que estava mortalmente faminta e Camille reconheceu que ela também precisava de comer algo. Na esquina do cabeleireiro havia um restaurante ao qual Camille nunca tinha ido, mas que parecia limpo e acolhedor.

Assim que entraram, a menina correu para o balcão e pediu duas sandes, um bolo de chocolate e um copo de leite. A mulher só pediu um café com leite. Como Melissa não queria sentar-se perto da entrada, dirigiram-se para uma mesa emoldurada por duas colunas de mármore, na esquina do local.

Camille viu Fiona Duncan primeiro e, depois, o acompanhante voltou a cabeça em resposta à expressão da Fiona. Tratava-se de Stephen.

De início, Camille sentiu consternação, e depois, raiva. Acabara de descobrir a quem acudia Stéphen em busca de consolo e compreensão. Falava com Linda diariamente e sabia que ela e Stephen estavam cada vez mais afastados, contudo, nem sequer tinham feito o seu primeiro aniversário de casados e Camille sentia-se incomodada pelo que estavam a fazer à sua amiga.

- Camille, passa-se alguma coisa? - perguntou Melissa.

A mulher teve que fazer um grande esforço para responder com naturalidade.

- Não, querida, não te preocupes. Aqui achas bem? perguntou, assinalando outra mesa livre.

 

Por uma vez, Melissa não discutiu a proposta. Era uma menina sensível e inteligente e tinha reparado na mudança de ânimo repentina de Camille que, sem dizer uma palavra, se concentrou em acomodar as chávenas e os pratos sobre a mesa. Tinha vontade de sair dali a correr, mas não o ia fazer porque, acima de tudo, não estava disposta a arruinar o passeio à menina.

Sentou Melissa de costas para o olhar arrogante de Fiona Duncan. Fiona não parecia sentir-se culpada nem surpreendida, mas despreocupada e desafiante.

Camille estava furiosa e doía-lhe o coração ao pensar em Linda. Sabia que não estava a interpretar mal um café entre amigos: aquele era um encontro romântico.

Poucos minutos depois, Fiona e Stephen levantaram-se. Fiona, loira, confiante, atlética e vestida com um fato simples, mas caro, saudou-as com uma careta de desdém. Ele, por sua vez, ficou imóvel.

- Que surpresa encontrar-te aqui! - exclamou Stephen, com um sorriso despreocupado. - Esta beleza deve ser a filha de Nick Lombard, não é?

- Marissa - respondeu Melissa, rapidamente.

- Prazer em conhecer-te, Marissa. Eu sou Stephen Carghill, um amigo de Camille.

- Muito prazer - disse a menina.

- Fiona está à tua espera, Stephen - interveio Camille.

- Não há problema - respondeu ele, olhando casualmente para a porta.

Mas Camille conhecia-o demasiado bem e dava-se conta de como estava incomodado. Notava-se nos olhos e no rubor repentino das faces.

- De qualquer forma, tenho que regressar ao escritório - continuou. - Foi um acaso encontrar Fiona por aqui.

- Também para nós - murmurou Camille.

- Por favor, não digas nada a Lindy - suplicou, a meia voz.

Ela abanou a cabeça.

- Isso significa que não o farás? - perguntou ele, angustiado.

Porquê, Stephen? Por que te preocupa tanto um encontro casual?

O marido da sua amiga corou.

- Nunca pensei que fosses tão dissimulada. Fiona é a minha amiga: Necessito de alguém com quem poder falar com a mesma confiança com que Lindy fala contigo.

- Está bem, não comentarei nada.

- Obrigado - disse ele, inclinando-se para lhe beijar a face. - Espero voltar a ver-te, Marissa.

Assim que Stephen se afastou delas, Melissa perguntou:

- O que é uma dissimulada?

- É uma pessoa que espera que os outros ajam de acordo com certas regras.

- E isso é algo mau?

- O meu amigo estava a brincar quando o disse.

- A mim não me pareceu que fosse a brincar- objectou Melissa.

- O que vou fazer contigo se nunca te escapa uma? Tenho a impressão de que sabes sempre mais do que dizes - declarou Camille, e abanou a cabeça de um lado ao outro. - Por exemplo, a tua professora disse que estás a ter grandes dificuldades em ler e pronunciar as palavras, contudo, tu não tens nenhum problema com isso, pois não?

Melissa olhou para ela com atrevimento, deixou a sandes no prato e agarrou no menu.

 

- A sugestão do dia é escalopes com becamel.

- Bechamel - corrigiu-a Camille. - É carne com um molho cremoso.

- Costeletas de cordeiro.

- Isso esteve muito bem - disse a mulher, cheia de orgulho. Eu não vejo nenhum problema, acho que teremos que falar com a tua professora.

- Também sei somar - afirmoú a menina. - Os rapazes odeiam-me por isso, não gostam que seja inteligente.

- Talvez se trate de te mostrares mais amigável com eles - sugeriu Camille. - Por exemplo, tu e eu somos amigas.

- Sim.

- Isso supõe que nos agradamos mutuamente e que não queremos discutir ou ferir os sentimentos uma da outra, não é?

Melissa ficou a pensar um momento antes de responder.

- Tu és diferente - disse, séria. - Consegues ver dentro de mim. Os rapazes são uns tolos. De qualquer forma, penso que me vai cair um dente e estarei horrorosa, até com o meu penteado novo.

- Nunca! - assegurou Camille e beijou-lhe os dedos.

- Bella ragazza!

A menina riu com uma gargalhada franca e ruidosa. Era a primeira vez que Camille a ouvia rir assim.

- Sei o que quer dizer isso. Chamaste-me bonita em italiano. O papá fala italiano - comentou Melissa, com a boca cheia de bolo. - É o homem mais sexy do mundo. Pelo menos isso é o que pensa a senhora Larkins. Ouvi-a quando o dizia a alguém ao telefone.

- Definitivamente, o teu pai é muito bonito - admitiu a mulher, entre gargalhadas. - E tu herdaste o seu cabelo e os seus olhos. Mudando de assunto, o que é isso de te chamares Marissa? Quando Sean se enganou não o corrigiste.

- Eu gosto mais - disse Melissa, com um sorriso. Tu não?

- Devo reconhecer que é um nome lindo e que te fica muito bem. Soa muito mediterrânico, porém, a tua mãe quis que te chamasses Melissa, isso não importa?

- Claro que sim! - exclamou a pequena. - A mamã adorava-me. Estava muito orgulhosa de mim. Pensava que era a menina mais linda do mundo e nunca lhe importou que parecesse um frango depenado.

Camille deixou o café sobre a mesa e olhou para ela com preocupação.

- De onde tiraste isso? - perguntou.

- A minha avó contou-me isso. Diz que isso foi o que a minha mãe disse quando nasci.

- Mas querida, a maioria dos bebés são enrugados ao nascer, é normal e desaparece poucos dias depois. A tua avó estava a tentar fazer-te rir.

- Não, nada disso - enfatizou Melissa. - A avó odeia-me, tal como odeia o papá.

A mulher tremeu ao ouvir a crueldade com que tinham falado à menina.

- O que achas se deixarmos esta conversa para outra altura? Não quero que nos arruíne o dia - disse, com um sorriso. - Estou encantada com o teu novo penteado e fico contente por saber que tu também. Tens um cabelo lindo e agora podemos apreciá-lo muito melhor.

E sinto a cabeça muito leve! - exclamou Melissa, com alegria. - O papá gostará, não achas?

- Tenho a certeza que sim.

Passaram o resto da tarde às compras no centro comercial e, finalmente, regressaram à casa da menina. Ao ver que o carro de Clare estava estacionado na entrada, Melissa ficou de mau humor.

- Oh, não! - protestou. - A parva da Clare está lá dentro.

- Que problema tens com ela?

- Detesto-a. O papá diz que tenho que ser amável com ela, mas custa-me. Eu não gosto dos seus olhos e estou convencida de que não diz o que pensa.

- Receio que, de qualquer forma, terás que recorrer às tuas boas maneiras, porque não poderei ficar muito tempo, linda - disse Camille. - Devo voltar para o meu apartamento porque tenho alguns assuntos com que me ocupar.

- Não deixes que essa tonta te intimide.

- Clare não me intimida, Melissa.

- Sim, essa bruxa assusta qualquer pessoa. Quero que fiques comigo até o papá chegar. Por favor, Camille.

A menina estava tão angustiada que a mulher não pôde negar-se.

A porta principal da casa estava aberta, mas Camille preferiu tocar à campainha. Do interior da casa, chegou-lhes a voz da menina Larkins.

- Ah, és tu, Melissa. Olá, Camille - disse a mulher, enquanto descia as escadas a toda a pressa. - pela expressão do seu rosto, estava encantada com a mudança de aspecto da menina.

- Ena, Melissa, que linda estás! - adicionou a senhora Larkins. - Nunca pensei que um corte de cabelo te pudesse favorecer tanto.

- Não me interessa o que tu pensas - resmungou a pequena.

- Já sei - afirmou a ama. - Só estava a tentar ser amável contigo, mas não faz sentido.

- Não a ouças, Camille - advertiu Melissa. - Nunca diz nada bonito.

- Eu gostaria de propor que deixassem de se tratar assim por um instante - disse Camille. - Acho que o melhor seria que dessem outra oportunidade a ambas. Achas que consegues fazer isso, Melissa? Menina Larkins?

A mulher assentiu.

- Estou aqui para atendê-la em tudo o que for preciso - disse a ama, e voltou-se para a menina. - Lamento que tenhamos começado mal.

- O que dizes, Melissa? - insistiu Camille.

- Não gosto dela nem nunca gostarei - respondeu.

A menina Larkins forçou um sorriso e perguntou com calma:

- Vamos para o teu quarto, Melissa? Vejo que fizeste muitas compras.

- Camille comprou-me coisas que gostei - respondeu a menina, mantendo o tom beligerante.

- Mas se tens um armário cheio de vestidos e coisas lindas... - repreendeu-a a ama. - Qualquer menina estaria mais que satisfeita.

- O que comprámos é roupa informal, menina Larkins - disse Camille, tentando acalmar os ânimos. - Sei que Melissa tem tudo, mas, desta vez, queria ter algo novo para sair com as suas amiguinhas.

- Tomara eu que esta menina tivesse amigas! - exclamou a ama. - A última pequena que veio visitá-la, acabou a chorar e o motorista do senhor Lombard teve que levá-la a sua casa. Melissa não se relaciona bem com as outras crianças. Não sabe partilhar.

- Sei sim -. declarou a pequena, com indignação. Amanda queria roubar a roupa da minha boneca. uma boneca muito especial, tem a cabeça de porcelana e os olhos de vidro. Não é uma Barbie estúpida.

- Receio que estamos perante uma birra, Camille, portanto, vou levar Melissa para o seu quarto. Imagino que tenha coisas para fazer.

- Camille não te vás embora! - gritou a menina, batendo com o pé no chão. - Fica comigo até que o papá

chegue.

- Por amor de Deus! O que está a acontecer aqui? perguntou uma voz feminina de outro lado da casa.

Camille, Melissa e a menina Larkins olharam para a sala e viram como Clare Tennant se aproximava. Estava muito elegante com o seu vestido preto e o seu colar de pérolas e safiras.

- Cadela! - murmurou a menina.

Apesar do tom baixo, o palavrão chegou perfeitamente aos ouvidos de Clare.

- Mais vale desculpares-te, fedelha. Que fórma de falar é essa?

- A forma como as pessoas falam quando estão furiosas - declarou.

- Pode ser, mas não são modos para alguém de seis anos - replicou a mulher. - O que vai dizer o teu pai quando lhe contar?

- Não vai dizer nada - respondeu a menina, - porque já o ouviu antes.

- Não tenho dúvidas, mas sei que não quereria que a sua filha falasse desse modo - insistiu Clare, com uma expressão reprovadora.

Seriamente preocupada com o que Melissa pudesse responder, Camille interveio na discussão.

- Penso que seria melhor que deixássemos as coisas neste ponto - sugeriu.

- És demasiado condescendente - disse-lhe Clare, olhando-a dos pés à cabeça.

- Não me parece que seja assim tão horrível que Melissa diga um ou outro palavrão. É normal na sua idade e até é provável que o tenha aprendido na escola - argu mentou Camille. - Isso não invalida que seja importante Nicholas ter uma conversa com ela para que não se exceda. Mas é algo que cabe ao pai fazer, não a nós.

- Nicholas? - repetiu Clare, com um olhar ameaçador.

- Menina Larkins, por que não leva Melissa para cima? - perguntou Camille, com uma voz calma.

Como a pequena fez má cara, a jovem inclinou- se para ela e falou-Lhe com firmeza:

- Tens que arrumar a roupa que comprámos, se não queres que se amachuque dentro dos sacos. Vai com a menina Larkins, Melissa. Eu subo já.

- Prometes?

- Claro.

- Está bem, mas não demores muito.

Depois de dizer aquilo, a menina deu a mão à ama e deu meia volta.

Camille viu-as subir as escadas, até finalmente entrarem no quarto de Melissa. Só então voltou a olhar para Clare Tennant e tremeu ao reparar no ódio que havia nos olhos daquela mulher.

- Apesar de tudo o que te disse, vejo que insistes em perseguir Nick - desafiou Clare.

Camille semicerrou os olhos. Não queria contemplar aquele rosto frio e desagradável.

- Sinceramente, não tenho que te responder - disse, com desinteresse.

- És a única pessoa que poderia impedir que me transforme na esposa de Nick.

Camille dúvidava que Clare Tennant estivesse no seu perfeito juízo.

- Tens a certeza de que não é uma simples obsessão?

- perguntou, com o sobrolho franzido.

- Por que não lhe perguntas? - replicou a mulher, com uma expressão desafiante. - Nick e eu estávamos muito unidos, até antes de Carole morrer.

Camille estava cada vez mais incomodada e inquieta.

- Ela também representava úma ameaça para ti? indagou, quase sem pensar. - Perseguia-la como me persegues a mim?

Camille sabia que o comentário tinha sido como uma punhalada à traição, mas, dadas as circunstâncias, qualquer tentativa de averiguar quem estava a espreitá-la, parecia válida.

Clare Tennant reagiu com indignação.

- De que raios estás a falar? - indagou.

Camille sustentou-lhe o olhar.

- Estiveste a seguir-me ou a telefonar? - interpelou-a.

A mulher fez um gesto desdenhoso com as mãos.

- Estás louca - afirmou.

- Não. Alguém esteve a seguir-me e a ameaçar-me e fiz uma denúncia à polícia.

- E mencionaste o meu nome entre os possíveis suspeitos? - perguntou Clare, horrorizada. - Não sabes com quem te meteste, Camile Guilford. Vemo-nos no tribunal. O teu pai já não está aqui para te proteger.

- Estiveste a seguir-me ou não?

- Não tenho que continuar a ouvir as tuas barbaridades - respondeu a mulher, e deu meia volta.

- Talvez devesse desculpar-me. Não dei o teu nome à polícia. Mas estiveste a ameaçar-me e definiste-te como minha inimiga.

Clare Tennant deu uma gargalhada estridente.

- Uma das tantas que tens, querida - assegurou. De facto, há uns dias ouvi alguns comentários sobre outra. Robyn Masterman está furiosa contigo. Arriscaste a tua vida ao tentar atentar contra os seus planos de casamento.

- É uma parva - comentou Camille, desgostada. Philip Garner nunca me preocupou.

- Talvez devesses dizer-lhe a Robyn. É muito ciumenta.

- Mas não tem motivos para duvidar de mim.

- Claro que tem - afirmou Clare. - Basta olhar para ti para saber que és uma dessas mulheres que complicam a vida a qualquer um. Ouvi algo sobre a escandalosa história dos teus pais e...

- Escandalosa? Trágica, quererás dizer.

Por um momento, Camille temeu que Nicholas tivesse contado alguma coisa a Clare, mas disse para si que ele nunca faria uma coisa dessas.

- Sei que ela levou Harry Guilford à beira da loucura e que, se não tivesse acontecido o que aconteceu, o casamento teria fracassado definitivamente - comentou Clare. - Algumas mulheres são destruidoras natas.

Camille sentiu-se aliviada ao comprovar que Nicholas não traíra a sua confiança.

- Por favor, não tentes intimidar-me novamente disse, com firmeza, - ou terei que dar o teu nome à polícia.

Clare Tennant esticou o queixo.

- Como te atreves a injuriar-me desse modo?

- Não faço senão jogar com as tuas regras - respondeu Camille, comtranquilidade. - E agora, se me desculpares, irei ver Melissa.

Em seguida, a jovem dirigiu-se às escadas e a mulher seguiu-a.

- Ele só está a usar-te, sabias? - assegurou Clare. Como Camille não fez caso, adicionou:

- Deixa-me dar-te um conselho: se não queres que a tua vida se converta num inferno, não te metas comigo.

- Não tenho medo de ti, Clare.

- Será porque, além de jovem e bela, és imbecil.

Passou mais de uma hora antes que Nick regressasse a sua casa. Passara grande parte da tarde numa reunião, que culminara com a demissão de dois altos executivos da empresa, que há vários meses negligenciavam as suas obrigações. Embora fizesse parte do seu trabalho, Nick sofria ao ter que tomar aquele tipo de decisões.

Quase não tinha entrado na casa, quando Melissa desceu as escadas a gritar com todas as suas forças:

- Papá! Papá!

Os seus olhos brilhavam e tinha as faces rosadas. Ele deixou a pasta no chão e olhou para ela com surpresa e satisfação.

- Portanto, este é o novo penteado. Adoro - disse e esticou os braços para ela.

Melissa afundou-se no abraço.

- Sabia que ias gostar! - exclamou.

Depois, afastou-se um pouco e, levando as mãos à cintura, adicionou:

- Gostas do meu vestido? E também tenho sandálias novas.

Nick levantou-se e olhou para ela para apreciar os seus presentes.

- Estás muito bonita!

Naquele momento, Nick sorriu, emocionado pelo modo comQ a sua pequena filha lhe acelerava o coração.

- Também comprei um chapéu de palha - comentou a menina. - Combina muito bem com o vestido.

 

Simplesmente, parecia uma criatura nova. Tinha um cabelo lindo. Nick pensou que era herança da sua família. A sua irmã, Elizabeth, usara uma trança até à adolescência, mas a Melissa o cabelo trançado desfavorecia-a. Agora os caracóis emolduravam-lhe a cara, realçavam-lhe os traços e destacavam os seus enormes olhos claros.

- Onde está Camille? - perguntou ele. - Não podia ficar?

- Estou aqui.

A mulher ficara atrás da porta para que Melissa gozasse o encontro com o seu pai. Assim que ouviu Nick perguntar por ela, o seu coração parou, e, quando viu que olhava para ela com os olhos acesos, sentiu-se invadida por uma estranha emoção que misturava prazer com melancolia.

Melissa correu até ela, puxou-a pela mão e arrastou-a até onde estava o seu pai.

- Passámos um dia maravilhoso, papá - contou, eufórica. - Lanchámos num bar e depois comprámos um monte de coisas.

- Foste muito amável, Camille - disse Nick, com um sorriso. - Tens que me dizer quanto gastaste.

- O vestido e o chapéu são um presente - esclareceu a mulher. - Podemos discutir o resto noutro momento. Estava à espera que chegasses para sair. Conforme en tendi, vais jantar fora, não é?

- Sim, receio que estou comprometido.

Camille levantou as sobrancelhas.

- Podes dizê-lo assim...

- Não entendo - comentou Nick, com cara de desconcerto. - De que outra maneira dirias que tens um compromisso para jantar?

Camille não fez caso da pergunta, inclinou-se e beijou a Melissa na face.

- Agora tenho que ir, linda - disse à menina. - Prometo-te que nos veremos cedo.

Melissa rodeou-a com os braços e apertou-se contra ela.

- Obrigada; obrigada... És a minha melhor amiga.

- Estás zangada, não é? - perguntou Nick, enquanto acompanhava Camille ao carro.

- Devo dizer-te que a tua querida amiga não é particularmente simpática.

- Que amiga? - perguntou ele, surpreendido.

- Clare Tennant. Está à tua espera na biblioteca.

- Raios, veio cedo...

Em seguida, Nick parou e voltou-se para olhar para a casa, por isso, Camille não pôde ver que cara fazia ao distinguir Clare atrás da janela.

Alterada pelas suas emoções, Camille enfiou a chave na fechadura do carro, mas não pôde abrir a porta porque não tinha espaço suficiente. Estavam tão perto que podia sentir o calor do corpo de Nick. A sombra das árvores sob a lua acrescentava tensão à cena.

- Até mais tarde, Nick. Goza a tua nòite - disse ela, com a voz quebrada.

- Não sejas tola, Camille. Clare Tennant é uma amiga, mais nada.

- Não tens que me dar explicações.

- Pela forma como reagiste, entendo que sim. Conheço Clare há anos. Era amiga da minha esposa. De

facto, foi uma grande ajuda para Carole durante um tempo e não costumo esquecer-me desses gestos. - E o que se passou? Apaixonou-se por ti?

Camille falava com um tom hostil e agressivo.

 

- Não sei, nem me importa. Toda a minha atenção estava em Carole - respondeu ele, com idêntica animosidade.

- E depois tiveste uma aventura com Clare? - nem ela podia acreditar no que acabava de perguntar. Estava demasiado afectada pela situação e começava a perder o controlo. - Desculpa, não tenho o direito de te perguntar uma coisa dessas - desculpou-se Camille. - É melhor ir-me embora.

- Camille, estás a pensar coisas que não fazem sentido - disse Nick, tentando detê-la. - Interesso-me por ti.

- Não - replicou ela, ofegante. Estás interessado em alterar toda a minha vida. Destruir todas as minhas estruturas.

- Por favor, Camille, tenta acalmar-te.

- Eu tento, acredita em mim.

Nick levantou-lhe o queixo e, ao olhar para ela na cara, pôde ver como estava angustiada.

- Espera um momento - disse ele, com desconfiança. - Sofreste algum novo incidente? Outra situação a denunciar à polícia?

Ela abanou a cabeça.

- Suponho que ainda haja alguém a vigiar-me disse Camille.

- Sim, quero assegurar-me de que estás bem.

- Não quero que o faças. Não quero dever-te nada nem quero ter nada a ver contigo.

- Já não podes evitá-lo - observou ele, com gravidade. - O destino assim o quis.

- Acreditas no destino?

- Tu não?

Depois, Nick apertou-se contra ela e começou a beijá-la apaixonadamente.

Era uma loucura e Camille sabia. No entanto, sentia que já não poderia viver sem ele.

- Estás tão desesperada como eu, não é? - murmurou o homem, enquanto lhe beijava a cara.

- Estou perdida e confusa.

- Eu também me sinto aturdido, linda. No entanto, há uma coisa de que tenho a certeza: desejo-te.

Camille levantou os olhos e descobriu alguém a espiá-los pela janela da sala. Antes que a pessoa se ocultasse atrás da cortina, conseguiu ver uma cabeleira loira.

Sem dúvida, tratava-se de Clare Tennant.

Camille quase podia sentir o ódio que ela emanava. Provavelmente, a mulher estava ali há um bom bocado e fora testemunha dos beijos desesperados.

Camille tinha a certeza de que isso lhe geraria um novo ataque de fúria.

 

Por volta de meados da semana seguinte, Claude telefonou para dizer que não tinham conseguido alugar o local que escolhera para que Camille montasse a sua galeria de arte.

- Estou muito zangado. Conheço o dono há muito tempo - disse Claude, com exasperação. - Comprometeu-se comigo e agora diz-me que decidiu vender e que o pôs nas mãos de uma imobiliária. Lamento, querida. Era úm sítio lindo e estava muito bem localizado, por isso o queria para ti. Mas não te preocupes, encontraremos outro local.

Camille estava com pena. No entanto, sabia que podia surgir sempre alguma complicação e não esperava que as coisas lhe viessem servidas numa bandeja de prata.

 

- Por que não recorrem a uma imobiliária? - sugeriu-lhe Linda enquanto almoçavam, no dia seguinte. Stephen poderia ajudar. Conhece todas. O único problema é que ultimamente não nos falamos muito.

- Continua sem querer acompanhar-te à terapia? Linda sorriu languidamente.

- Nem sequer me atrevi a mencionar o assunto disse, com os olhos cheios de pena.

- E a vossa vida sexual? - perguntou Camille. Linda riu-se baixo.

- Costumava ser maravilhosa. Agora, viramos as costas ao dormir. Da paixão à indiferença absoluta. É horrível - confessou. - Não só perdi o meu filho, como também sinto que perdi o meu marido.

Camille estava consternada e triste.

- Não deves permitir que a perda do bebé te provoque um trauma, Lindy.

- Estou a fazer o impossível para superá-la - afirmou. - Todas as manhãs, digo que tenho que tentar salvar a distância que há entre nós. Todavia, não estou certa de que Stephen continue a amar-me. Está cada vez mais frio e passa muito tempo com a sua familia.

- Força a aproximação, se o amas, Lindy. Ama-lo, não é? - perguntou Camille, sem rodeios.

Linda era a personificação da vulnerabilidade.

- Às vezes, penso que me casei pelos motivos errados. Era uma rapariga necessitada e Stephen ia cuidar de mim. Em teoria, deveria ser capaz de cuidar das minhas coisas - reflectiu. - Sou advogada, mas nunca exerci. Simplesmente, esperei que aparecesse algum homem maravilhoso que me pedisse em casamento e nunca mais fui independente. Stephen quer-me colada a ele. Ou atrás dele, para sèr mais exacta. Vê-se a si mesmo no papel do protector. E acho que me vê como uma menina, não como uma mulher e, definitivamente, nunca como uma igual.

- Mais uma razão para que tentes desembaraçar-te sozinha - disse Camille. - Tens duas possibilidades: retomas a tua carreira e vens trabalhar comigo. Eu adoraria que me ajudasses com a galeria. O trabalho não seria muito complicado, mas seria uma forma de começares a tornar-te independente: Sei que és capaz de muito mais.

- Faça o que fizer, Stephen não gostará. Sempre disse que queria que me ocupasse da casa.

Camille olhou para a sua amiga nos olhos e perguntou:

- Foram felizes antes de perderem o bebé?

- Bastante felizes - respondeu Linda e encolheu os ombros. - Mas agora dou-me conta de que estivera a esforçar-me para ser o que Stephen queria que eu fosse. Sentia-me pressionada pelo facto de me ter escolhido depois de Fiona o recusar. Sempre fomos muito diferentes. Quase diria que somos como dois pólos opostos. Ela é muito segura de si mesma e eu sou a insegurança personificada.

- Se Stephen te amar a sério, Lindy, quererá ver-te feliz e satisfeita. Muitos dos nossos amigos combinam perfeitamente o seu desenvolvimento profissional com o casamento; não vejo por que teria que ser um problema para vocês.

 

- Morro por ter um filho, Milly - declarou Linda. Quando conseguir recuperar-me um pouco, talvez Stephen e eu pudéssemos voltar a tentar. Sei que há gente que pensa que já deveria estar recomposta da perda, mas juro-te que sinto como se me tivessem partido ao meio.

Camille sentiu os olhos encherem-se de lágrimas.

- Queria poder ajudar-te, Lindy.

- E ajudas, Milly, muito - disse, e tentou sorrir. Sou eu. A mãe de Stephen tem razão: sou muito imatura.

Camille passou o fim-de-semana na montanha com Tommy e Dot, num ambiente agradável e relaxado. Tinham aproveitado aquele tempo para fazer algumas reformas na cabana. Deixara de ser uma casa de férias para se transformar num verdadeiro lar. Camille estava particularmente interessada nas aguarelas que a vizinha de Dot Lhes oferecera. Tratava-se de uma viúva que fora para as montanhas para pintar com tranquilidade.

- Não faz quadros para outras pessoas, querida. Só para ela - explicou Dot. - A única coisa que sei da mulher é que o seu marido morreu recentemente e que não fala do assunto. Suponho que lhe será muito doloroso.

Primeiro, convidei-a para tomar um café e, em seguida, fê-lo ela. Elogiei as suas pinturas e tirou uma da parede para ma oferecer. De início, não queria aceitar, porque me parecia demasiado, no entanto, é uma mulher encantadora e não queria que o interpretasse como um insulto.

- É um quadro lindo - disse Camille, enquanto contemplava a aguarela. - Se fosse possível, gostaria de conhecê-la.

Dot prometeu-lhe tentar organizar um encontro.

Dias depois, chegaram as primeiras fotografias. Quando Camille foi buscar o seu correio, não deu grande importância ao envelope castanho sem remetente, porque supôs que se tratava de algum folheto pu blicitário. Mas quando entrou no seu apartamento, apercebeu-se de que muito poucas pessoas tinham a sua morada. Então, pensou que talvez fosse de Claude e que contivesse dados sobre algum novo local.

Mas, mesmo assim, não o abriu. Deixou os envelopes sobre a mesa do hall e foi à cozinha para comprovar se tinha mensagens no atendedor de chamadas. Havia uma de Linda, que dizia que tiria uma entrevista para um escritório de advogados e outra de Claude, a dizer que localizara alguns sítios que poderiam funcionar e que gostaria que os fossem ver naquela semana.

Camille alegrou-se ao ouvi-lo, porque já tinha uns quantos artistas plásticos que se mostraram interessados em trabalhar com ela na sua futura galeria.

Em seguida, serviu-se de um copo de vinho branco, vestiu uma roupa mais confortável e sentou-se no sofá a rever o correio. Primeiro, abriu a conta do telefone, depois, uma carta do banco e, por último, o envelope castanho. Continha várias fotografias que Camille foi tirando lentamente. Franziu o sobrolho e deixou-as na mesinha de café.

Ao princípio, sentiu-se aturdida; depois, incrédula. Observou as fotografias com atenção. Na primeira, estava à espera de Melissa à porta do colégio. A menina tinha os braços estendidos e ela estava inclinada, beijando-lhe a face. Na segunda, estavam outra vez as duas, acabadas de sair do cabeleireiro e a caminhar pela rua de mãos dadas. Na terceira e na quarta, aparecia ela sozinha, a passear pelos arredores da cabana de Tommy e Dot. A última era uma imagem de Camille à espera que lhe abrissem a porta em casa dos Lombard.

Evidentemente, quem lhe enviara as fotografias queria que ela soubesse que a estavam a seguir constantemente.

Depois de passar uma hora a praguejar, Camille começou a sentir-se cada vez mais alterada. Naquele momento, alguém bateu à porta.

Ela deu um salto e ficou pálida. Supunha-se que qualquer visitante devia tocar à campainha e identificar-se para que o pessoal de segurança do edifício lhe franqueasse a entrada. Respirou fundo e fez um esforço por se acalmar. Talvez se tratasse só da vizinha do lado. Camille fizera-lhe alguns favores, porque era uma velha viúva e vivia sozinha.

Foi até à porta e perguntou:

- Quem é?

Respondeu-lhe uma voz masculina e conhecida.

- Sou eu, querida, com um pequeno presente para que celebremos o apartamento novo - disse Philip, com naturalidade.

Camille não acreditava no que acabava de ouvir. Não podia acreditar que aquele homem aparecesse do nada depois de tanto tempo. Embora, por outro lado, se sentisse muito aliviada ao saber que se tratava dele. Sem importar o que pensasse de Philip, tinha a certeza de que nunca a magoaria. De facto, ele é que tinha que recear pela sua integridade física, considerando que, da última vez que se viram, Camille lhe tinha dado um murro no nariz.

- Vai-te embora, Philip - disse-lhe, através da porta.

- Fá-lo-ei, assim que te der o teu presente. uma oferta de paz, além de um enfeite para a tua nova casa.

Ele tinha elevado o tom de voz, tentando pressioná-la para que o deixasse entrar. Camille não queria incomodar os vizinhos, de modo que lhe abriu a porta, decidida a livrar-se dele o mais rápido possível.

- Philip, isto é um erro - disse.

Ele sorriu com desenvoltura. Estava muito bonito com o seu fato cinzento às riscas.

- Não digas Isso, linda. Tive saudades tuas - respondeu, olhando para ela com intensidade. - Posso entrar?

- Não, Philip, não podes.

- É que conversar no corredor seria muito incómodo.

Em seguida, esticou um braço e empurrou a porta. Antes que Camille pudesse reagir, ele já estava lá dentro a fazer comentários elogiosos a respeito da decoração.

- És tão engenhosa que foste capaz de conseguir que esta pocilga tenha um aspecto agradável e acolhedor - afirmou, olhando-a de soslaio. - E então? Vais aceitar o presente ou não?

Philip fez um gesto, assinalando o enorme embru lho, envolvido num custoso papel vermelho metalizado

e atado com um elegante laço de seda.

Ela abanou a cabeça.

- Por mim, podes atirá-lo para o lixo - resmungou. Ele olhou para ela com um dos seus típicos ares suplicantes. Camille odiava que a olhasse daquele modo, porque a fazia sentir-se uma ingrata.

- Tenho a impressão de que morres por ver o que éinsistiu Philip.

- Enganas-te.

- E então por que me deixaste entrar? Ela permaneceu imóvel junto à porta:

- Eu não te deixei entrar, meteste-te à força - respondeu Camille. - Por outro lado, como entraste no edifício?

Não me foi muito complicado, querida. Utilizei o meu encanto.

Depois, o homem deixou o pacote no chão e passou uma mão pela cabeça.

- E como descobriste omeu endereço? - perguntou ela. - Ninguém me avisou que virias.

- Já que o mencionas, por que é que o teu número não está na lista telefónica? Compreendo que há pessoas que odiavam o velho Harry, mas não a ti - afirmou, e fez uma pausa. - Bom, talvez Robyn te odeie. Deu-me a entender isso.

- O que te disse? Cústa-me acreditá-lo...

- Receio que é verdade, linda. Não mo disse de maneira explícita, contudo, deixou-o entrever num jantar.

- Não entendo.

- Aparentemente, Robyn está a apreciar a tua mudança dramática de estilo de vida - revelou Philip. Quando penso no que o desgraçado do Harry fez, indigno-me. Arruinou- nos por completo. Qualquer outro homem teria reservado milhões para a sua filha. - Deve ter sido uma decepção muito grande para ti - disse Camille, com frieza.

- Foi a pior desilusão da minha vida - justificou-se Philip. Amava-te. Continuo a amar-te, não o posso evitar. Mas sou incapaz de desperdiçar uma oportunidade. Ao contrário de Harry, o pai de Robyn deixar-Lhe-á tudo em herança. Quem se casar com ela ficará rico. O senhor Masterman está doente do coração, sabias?

- Assustas-me, Philip.

Camille perguntou-se como tinha podido interessar-se por ele e partilhar uma relação.

Ele sorriu com enfado.

- Queria que soubesses, antes de ninguém, que Robyn e eu anunciaremos o nosso noivado no dia um de Dezembro - declarou. - É o dia do seu aniversário.

- Que adorável! E até quando durará esse noivado?

- Até estarmos casados, se tudo correr bem. Será um casamento espectacular.

- Não a defraudes, Philip - aconselhou Camille. Ela e a sua familia são pessoas perigosas.

O homem ficou sério, de repente.

- Tem razão. Robyn odeia-te com toda a sua alma e, às vezes, penso que gostaria de te atirar ácido à cara.

Camille tremeu sem querer.

- Não digas isso - suplicou.

Philip reparou na reacção e desdisse-se imediatamente.

- Querida, ela nunca te faria uma coisa dessas - esclareceu. - Estava a brincar.

- Uma brincadeira de muito mau gosto!

Ele quis aproximar-se, porém, deteve-se ao ver que Camille ficara tensa.

- Ficaste pálida e eu sinto-me um imbecil. Como não vais estar nervosa depois daquele ataque? Quando descobri, quis correr para o teu lado, mas Robyn estava a vigiar-me.

- Aparentemente, também me tem vigiado a mim - disse ela, com tom grave. - Sabe onde vivo.

- É o seu estilo. Herdou-o do seu pai. Vigia toda a gente.

- E então por que vieste? Poderias pôr em risco o teu plano.

Philip sorriu com atrevimento.

- Esta semana, Robyn está com a sua mãe em Melbourne - explicou.

- Mas poderia continuar a controlar os teus passos.

- Suponho que sim. É muito obsessiva, embora não ache que possa vigiar-me de tão longe.

- Poderia ter contratado alguém. Não te ocorreu essa possibilidade?

- Não penso que tenha feito uma coisa dessas - assegurou Philip. - Mudando de assunto, na outra noite estive sentado junto a uma conhecida tua. Clare Tennant. Pensa-se que é a noiva de Lombard, mas duvido que consiga casar-se com ele. Tem muito dinheiro, porém, não é da alta sociedade. Acho que tinha algumas inquietações sobre ti.

- O que te disse? - perguntou Camille, consternada. Desenhou-se um sorriso nos lábios de Philip.

- Não muito, mas referiu-se a ti com especial ressentimento - particularizou Philip. - Ela também sabe onde vives...

- Decerto que Robyn lho disse.

- Não, Robyn não falara com ela quando me comentou isso. De facto, só trocaram algumas palavras quando nos estávamos a vir embora.

- Nick Lombard estava nesse jantar? - perguntou Camille.

O homem fez má cara.

- Não, não estava - respondeu. - Os convidados eram demasiado frívolos para ele.

Depois, sentou-se no sofá e olhou para ela com os olhos cheios de desejo.

- Não vais oferecer-me nada para beber? - perguntou-Lhe. - Se quiseres, eu mesmo preparo as bebidas. De facto, já que não abres o presente, abri-lo-ei eu.

De seguida, Philip desembrulhou o volume. Tratava-se de uma gaiola branca, de estilo antigo.

- Pensei que poderia ficar bem no teu apartamento. Gostas de coisas estranhas.

Camille olhou para o objecto durante alguns segundos e comentou:

- Achas-te muito engraçado, não é?

Ele ignorou o comentário.

- Imagino que ter que deixar uma mansão para viver num apartamento tão pequeno como este deve ser um inferno - disse, com malícia. - Deves estar desesperada.

- Receio que sou mais forte do que pensas. Não quero a tua maldita gaiola, Philip. Por favór, leva isso Também. não penso oferecer-te uma bebida. Está na hora de te ires embora.

- É por Lombard, não é verdade? - perguntòu ele, ressentido. - Não me vires as costas, Camille. Olha para mim.

- Não, Philip, é por ti - respondeu ela. - Não quero ver-te.

Pela primeira vez, ele sorriu com extrema frieza.

- É uma má pessoa, sabias?

- Nem sequer o conheces - replicou Camille.

- Ouvi muitas coisas sobre ele - assegurou. - Não tentes enganar-me, Camille, porque conheço-te bem. Tens um grande interesse por Lombard e ele está interessado em ti. Mas tem cuidado. Sei por uma boa fonte que maltratava a sua mulher.

- E essa boa fonte é Clare Tennant, não é? - perguntou.

- Olha, ela conhece-o muito bem. Era muito amiga da esposa de Lombard. Uma criatura linda, pelo que ouvi dizer, mas bastante instável. Quando necessitou do apoio do seu marido, o insensível deixou-a sozinha. No fim, ela teve que recorrer ao consolo de outras pessoas. Todos sabemos o que aconteceu.

Camille sentiu um calafrio nas costas.

- Eu não - disse, - mas tenho a certeza de que poderás iluminar-me a esse respeito.

Philip acariciou a gravata com um ar triunfal.

- A pobre rapariga matou-se quando regressava de uma festa - informou. - Certamente estava embriagada e conduzia a grande velocidade. Lombard fez o possível por mantê-lo em segredo.

- Os seus supostos amigos foram muito irresponsáveis ao deixar que conduzisse ébria - disse Camille, incomodada.

- Querida, sejamos razoáveis. Na minha opinião, ela provocou o acidente porque se sentia miserável. Tu saberás o que fazes, porém, aconselho-te a não te relacionares com ele. Destruir-te-á como fez com a sua mulher.

- E até sabendo o que aconteceu, Clare Tennant quer casar-se com ele?

Os olhos de Philip brilharam.

- Ela está mais preparada do que tu para lutar com ele - sustentou. Por detrás daquela fachada fria, esconde-se uma autêntica leoa. Basta ver o que fez a Arthur Tennant. A família do velho não quer saber nada dela.

- Decerto que terão os seus motivos - afirmou Camille, e foi até à porta. - Acabou-se o tempo, Philip. Por favor, leva o teu presente. Não necessito de recordações do nosso infeliz compromisso.

- Não sejas cruel - disse ele: - Foi a melhor época da minha vida. Estarás sempre no meu coração.

Depois, Philip levantou-se e caminhou para ela.

- Pelo menos, dá-me o teu número para que possa telefonar-te noutro dia - adicionou.

Ela abanou a cabeça em sentido negativo.

- Só o dou aos meus amigos.

- Não importa - afirmou ele, com um sorriso malicioso. - Sei como consegui-lo.

- Por que não o pedes à tua noiva? É muito possível que ela seja uma das pessoas que andaram a telefonar-me.

Philip hesitou uns segundos. Parecia inquieto.

- O quê? Telefonou-te, mas não te disse nada? Não entendo.

- Ninguém diz nada, só respiram ao telefone.

- Que perverso... - gozou ele. - Por que pensas que poderia ser Robyn?

- Disseste que me odeia.

O homem abanou a cabeça.

- Querida, tu já não representas uma ameaça.

- Uma ameaça? - repetiu ela, com indignação.

- Está bem, no fundo, ela sabe que te amo.

- Philip, tu mudas de amor como de cuecas - resmungou Camille. - Mesmo assim, diz à tua noiva que ainda tenho alguns amigos poderosos.

Ele engoliu em seco.

- Sim, e todos sabemos como se chamam - disse. No teu lugar, não eliminaria o senhor Lombard da lista de suspeitos. Afinal de contas, destruiu o teu pai. Como sabes que não é ele quem está a tentar intimidar-te? Nem que seja só para se divertir um pouco.

- Nick nunca faria uma coisa dessas - respondeu Camille, com convicção.

- Agora defende-lo... - acusou Philip, magoado. Não há muito, era o inimigo número um.

- Não há muito, tu eras o meu noivo - replicou Camille, e abriu a porta. - Adeus, Philip. Espero que tenhas a vida que mereces.

- Eu gostaria de ficar contigo - disse ele, com ar suplicante.

- Tens que ir - afirmou ela. - Não quero que tenhas um problema com a tua noiva e ponhas em risco o teu futuro.

Philip não voltou a insistir e saiu com a cabeça baixa.

Passaram-se vários minutos, antes que Camille se desse conta de que não levara a gaiola.

Camille acordou com a campainha do telefone. Sentou-se na cama e olhou para o relógio. Eram sete e vinte da manhã.

Combinara encontrar-se com Claude às dez horas para que apresentasse um jovem artista que, aparentemente, tinha um talento admirável.

O responsável pela chamada era Nick. Desculpou-se por tê-la incomodado tão cedo, mas tinha uma reunião às nove e queria convidá-la para almoçar no Augustine, um pequeno restaurante do porto, perfeito para um encontro romântico.

Mas isso não parecia ser o que Nick tinha na cabeça. Falava com um tom quase formal, algo apurado e com instruções curtas, como se ela tivesse feito alguma coisa mal. Disse que tinha novidades para Lhe contar, que a reserva era para a uma e meia e que esperava não chegar tarde, mas que, caso não estivesse quando ela chegasse, que entrasse e o esperasse no local.

Camille supôs que as notícias a que Nick se referia teriam a ver com o relatório do investigador privado.

Depois de tomar banho, teve alguns problemas para escolher a roupa que vestiria. Finalmente, escolheu um fato branco Armani, que a fazia sentir-se agressiva e feminina simultaneamente. Estava confortável e elegante. Além disso, pôs um colar e uns brincos de prata e escolheù uma mala e umas sandálias a condizer.

Luzia como noutras épocas, como a herdeira australiana, como uma criatura privilegiada, embora já não o fosse na verdade. No entanto, Camille sabia que tinha o talento necessário para triunfar por sua conta. De facto, tinham-Lhe oferecido trabalho numa importante empresa de investimentos, que tinha um escritório dedicado ao comércio de obras de arte. Porém, recusara porque suspeitava que Nicholas tinha alguma coisa a ver com isso e queria conseguir as coisas pelos seus próprios meios.

Claude também tinha novidades e contou-lhas assim que terminaram a entrevista com o jovem escultor. Aparentemente, outra vez alguém se adiantara com um dos locais que tinham escolhido para montar a galeria. O edifício fora adquirido pela imobiliária Marlowe-Howell, cumprindo a vontade de um cliente.

- E adivinha quem é o cliente - disse Claude, com o sobrolho franzido.

- Nick Lombard?

- Graças a Deus, não - respondeu o homem. - O que te fez pensar que podia tratar-se dele?

- Porque é alguém que está muito interessado no que estou a fazer - raciocinou Camille.

- Tenho a certeza de que Lombard não quereria ser tão cruel contigo, querida. Afinal de contas, o homem salvou-te a vida.

- Não sei se te contei, mas uma vez sugeriu que deveria abandonar a ideia de ter a minha própria galeria e trabalhar primeiro para uma casa de leilões, para ir forjando a minha carreira desde os mais altos níveis - comentou ela. - Há uns dias, Beaumont ofereceu-me um lugar como comerciante. Imagino que Nicholas deve ter telefonado para lhes falar de mim.

Claude deu uma gargalhada.

- Chamas-Lhe Nicholas? - perguntou, com os olhos esbugalhados.

- Fica muito melhor que Nick - justificou-se ela. Mas voltemos para o nosso cliente misterioso. Quem é?

- Surpreende-me que não o tenhas adivinhado - comentou o homem, - porque é a amiga de Nicholas, Clare Tennant. O meu amigo Cosmo confessou-me isso depois de insistir muito, e tenho que admitir que me senti tão ofendido que fui vê-lo pessoalmente, para que me explicasse o sucedido. Aparentemente, ela esteve a fazer alguns investimentos, a comprar propriedades e obras de arte. Obviamente, não te quer no edifício. É uma pena, porque o lugar era perfeito para ti. Boa localização, muito espaço e com uma iluminação ideal para este tipo de negócio. Mas, claro, tinhas que te meter com o seu homem! Sempre disse que as mulheres são o pior inimigo que se pode ter.

- Não me importo nada com o que a senhora Clare Tennant pense.

Ela tentou soar natural, mas Claude conhecia-a muito bem e percebeu a sua inquietação.

- Que se passa, princesa? - perguntou.

Camille relatou-lhe o que tinha estado a acontecer. Quando terminou, Claude estava profundamente preocupado.

- Querida, deves contar isso à polícia.

- Receio que não poderiam fazer nada a esse respeito. Combinei almoçar com Nicholas. Insistiu em contratar um detective privado para que investigue, vigie o meu apartamento e controle qualquer movimento estranho em meu redor.

- É um bom homem - afirmou Claude.

- Telefonou-me esta manhã e disse que tinha novidades para me contar.

- Não pensarás que a tal Tennant é quem está a fazer tudo isto, pois não? - perguntou ele. - Embora, vendo o que nos fez com o local, pudesse ser...

Camille encolheu os ombros.

- Sinceramente, acho que até ela o consideraria demasiado baixo.

- Não tenho tanta certeza...

- É verdade, Philip veio ver-me ontem à noite - revelou ela.

- Querida, nunca mais voltes a confiar nele.

 

Podes crer! Queria contar-me que vai casar com Robyn Masterman.

- E mesmo assim quer ver-te... Agora é que estou assustado - admitiu Claude. - Bert Masterman é um adversário perigoso. Passou a vida metido em negócios sujos. Por isso amealhou uma fortuna superior a dois milhões de dólares.

- E o que achas que atrai Philip? A beleza da sua filha? E pensar que álguma vez pensei estar apaixonada por ele... Juro- te que estremeço só de pensar nisso.

Claude abanou a cabeça.

- Ele não passa de um rapaz bonito com maneiras de galã, querida. Isso cativa sempre as mulheres. Pelo menos, por um tempo. Não há dia em que não agradeça por se ter afastado de ti.

- Afastado? Saiu a correr, Claude.

Depois do comentário de Camille, olharam-se nos olhos com cumplicidade e começaram a dar gargalhadas.

Camille não teve que esperar muito no restaurante. Quando Nick chegou, sentiu que o seu coração acelerava. Nick era extremamente bonito e distinto. Aquela era a grande diferença entre ele e Philip. Nicholas irradiava inteligência e poder, enquanto que Philip se limitava a mostrar um encanto, que nem sequer era verdadeiro.

- Tiveste que esperar muito? - perguntou ele, galante e olhando para ela com intensidade.

- Uns minutos, pouco mais que isso. Como foi a tua reunião?

Nick sentou-se e respirou fundo.

- Receio que temos um espião na empresa - disse. Deve ser um gerente ou um chefe de secção. Estou a tentar descobrir de quem se trata. Seja quem for, está a passar informação para os nossos adversários.

- O mundo dos negócios é uma selva, não é? Camille falava por experiência.

- Infelizmente, algumas pessoas são incapazes de resistir a um suborno.

Naquele momento, chegou o empregado com os menus e ambos permaneceram em silêncio. Camille deu uma olhadela à lista, porém, sentia-se demasiado inquieta para ter fome, de modo que escolheu uma salada de lagosta, enquanto Nicholas se debatia entre a truta e o cordeiro. Finalmente, optou por uma truta com amêndoas. Nenhum dos dois quis tomar um aperitivo. Tudo parecia indicar que, mais que uma refeição romântica, avizinhava-se uma discussão séria. O restaurante era espaçoso e tranquilo, embora a maioria das mesas estivessem ocupadas. Ambos encontraram uns quantos olhares indiscretos ao chegar. De uma forma ou de outra, estavam sempre na boca de todos.

E então, do que querias falar-me? - perguntou ela.

- Foi por isso que vieste? Para que te conte o que o detective me disse?

Ela suspirou e engoliu em seco.

- Por isso e porque queria ver-te - respondeu. Como não podia sustentar-lhe o olhar, Camille voltou a cabeça para a janela.

- Custa-me acreditar, porque tens feito de tudo para me evitar - assegurou Nick.

- Pensei que precisávamos de nos distanciar um pouco...

- Talvez tenhas razão - reconheceu ele, finalmente.

- Mas para ser sincero, estou preocupado contigo. Por que me escondes as coisas?

Ela bebeu um gole de vinho, antes de responder.

- A que coisas te referes? - replicou.

- Parece-te uma boa ideia meter Garner outra vez na tua vida? Na minha opinião, é a coisa mais estúpida que podias fazer.

Sem dúvida, o detective informara-o da visita de Philip. De repente, o ambiente ficou tenso e carregado de hostilidade.

- O teu espião viu-o entrar no edifício? - perguntou ela.

Ele assentiu.

- Também é o teu espião, se o esqueceste. Supus que Philip poderia ter ido visitar outra pessoa, mas acaba de me confirmar que estava errado.

- Apareceu do nada - admitiu ela, sentindo uma culpa que não devia. - Eu não o convidei. Pior, nem sequer anunciou a sua Chegada pelo porteiro automático. Aparentemente, arranjou-se para que alguém o deixasse entrar.

- Mas permitiste que entrasse no teu apartamento... Os olhos verdes de Camille brilharam com fúria.

- Philip poderá ser tudo -afirmou, - mas nunca me magoaria.

- Fisicamente, queres dizer - observou Nick, em tom cortante. - Esse homem é capaz de te ferir de outras formas. Demonstrou-o em mais de uma ocasião.

Ela humedeceu os lábios com a língua.

- Põe-te no meu lugar. A última coisa que precisava era que Philip começasse a gritar no corredor da minha casa. Entrou só por um momento. Tenho a certeza de que o teu vigilante te terá informado disso também.

- Por que ficaste assim? - perguntou ele.

- Pões-me nervosa. Philip não significa nada para mim.

Nicholas assentiu, todavia, continuou a olhar para ela com receio, por alguns segundos.

- Sinceramente, espero que assim seja. Não confio em nenhum deles. Nem em Garner, nem na rapariga Masterman - particularizou. - Duvido que precise de te dizer de que são gente dura. Não quero que te transformes no alvo dos seus ciúmes e da sua fúria. Deixa que Garner sofra as consequências dos seus actos.

Camille mordeu o lábio inferior. Era um gesto que a fazia parecer uma menina, se bem que uma menina muito atraente.

- Disse-lhe que não queria voltar a vê-lo. Mas, por favor; não falemos de Philip - implorou. - Não vale a pena. Conta- me as novidades da investigação.

Nicholas inclinou-se para diante com um sorriso de satisfação.

- Identificámos os ocupantes do carro que esteve a seguir-te. Enquanto eles te vigiavam, o nosso homem dedicou-se a tirar- Lhes fotografias para contribuir com provas à polícia.

Ela olhou para ele com atenção.

- Conhecemo-los? - perguntou.

Ele assentiu.

- Trata-se de Sebastian, o filho de Hilda Gray, e o seu amante. O veículo está registado em nome do amante, que também está cadastrado, como Sebastian. Os dois têm antecedentes por delitos menores e existe uma lei que pune este tipo de perseguição, portanto, já passámos o caso à polícia.

Camille sentiu que Lhe tiravam um enorme peso de cima.

 

- Que alívio! - exclamou. - Suponho que também serão eles os que me enviaram as fotografias.

Nick olhou para ela com desconcerto.

Que fotografias?

- Pensei se te devia mostrar isso ou não. E a verdade é que ainda não sei - disse ela. - A única coisa que sei é que necessito de tempo. A minha vida mudou tão dramaticamente e, para cúmulo, tu... Sei que vou seguir em frente, mas.

- Acalma-te um pouco, Camille - ordenou-Lhe Nick.

- Insisto, de que fotografias falas?

- Não as trouxe - admitiu ela. - Sou um autêntico desastre, não é?

A mulher sentia-se tão miserável que nem sequer podia olhar para ele na cara.

- Devo reconhecer que não entendo por que ficaste assim - afirmou. - Mas isso não importa agora. Explica-me lá o que têm essas fotografias.

- Por favor - suplicou ela, - deixemos isso para mais tarde.

Justamente nesse momento, chegou a comida. Cheirava muito bem e tinha um aspecto muito tentador, mas os dois tinham perdido o apetite.

Depois, foram ao apartamento de Camille no carro dela. Nicholas não estava acostumado a usar o automóvel para distâncias curtas e fora de táxi até ao restaurante.

Subiram no elevador e permaneceram em silêncio até entrarem no apartamento. Ambos tinham muito em que pensar.

A primeira coisa que Nick viu foi a gáiola branca. Camille nem sequer a movera do lugar em que Philip a deixara.

- Um presente? - perguntou ele, com evidente desgosto.

- Por que o dizes?

A resposta da mulher não era mais que uma áspera tentativa de evasão.

- Sou adivinho - ironizou ele. - Vi o papel de embrulho ao lado. Imagino que o penses devolver, não?

- Sim - disse ela, e mordeu o lábio. - É um presente de mau gosto.

- Alguém quis dizer-te que estás presa?

- Sim e, em parte, tem razão.

De seguida, Camille foi até àmesinha de café, agarrou no envelope de papel castanho e entregou-o a Nick.

- Isto é o que querias ver - murmurou.

- Se não te importares, levarei as fotografias. Depois, sentou-se no sofá e deu-lhes uma olhadela.

- Foram tiradas por um perito - disse ele, com raiva.

- Duvido muito que tenham sido Gray e o seu amante. Camille sentiu que o seu coração parava.

- Queres dizer que mais alguém está a perseguir-me? - perguntou.

- É o que temos que averiguar. Custa-me acreditar que o nosso investigador não tenha visto Gray e o seu amigo a tirar fotografias...

- Talvez nesse momento estivesse a descansar - brincou ela, tentando descontrair-se. - Seguiram-me até à cabana de Tommy e Dot. É horrível saber que me estão a espiar o tempo todo. Fotografaram-me sozinha, com Melissa, na tua casa...

Camille deteve-se ao ver a expressão de Nick.

 

- Não gosto disto - assegurou ele. - Desespera-me pensar que há mais de uma pessoa a tentar agredir-te.

Ela tinha permanecido de pé até aquele momento. Aproximou-se e passou a mão pelas costas do sofá.

- Talvez devesse seguir o conselho que Clare Tennant me deu: fazer um cruzeiro e viajar até se esclarecer esta situação.

Ele voltou-se para olhar para ela.

- Clare disse-te isso?

Ela incomodou-se com a surpresa de Nick.

- Não vejo por que te espantas tanto - comentou. Não só sugeriu que devia afastar-me, como também, por sua culpa, perdi um local que era perfeito para a minha galeria.

- Como? O que fez? - perguntou ele, olhando para ela com frieza. - Perdoa se soo um pouco céptico, todavia, parece-me algo muito atípico em Clare.

Camille contou-Lhe brevemente o que tinha acontecido com o edifício.

- Claude contou-me isso esta manhã - adicionou. Confirmou-o com o vendedor.

- Por Deus! Isto já passa dos limites...

- Ainda bem que concordas comigo - afirmou ela, com tom áspero. - Tinha-te dito, Clare está apaixonada por ti e é capaz de tudo para não te perder.

Nicholas abanou a cabeça. Estava furioso.

- Deixemos as coisas bem claras: a única coisa que interessa a Clare Tennant é a minha posição social - exclamou.

- Duvido. Na minha opinião, é provável que esteja apaixonada por ti há anos. Sei que, aparentemente, é uma pessoa óptima, mas há qualquer coisa sinistra nela.

Ele deitou a cabeça para trás e fechou os olhos por um momento.

- Ouvi esse comentário antes - reconheceu, finalmente. - A minha irmã Elizabeth detesta-a, todavia, não posso esquecer que Clare era uma boa amiga da minha esposa.

- A esposa que maltratavas?

O comentário fora deslocado. Era uma acusação apoiada numa intriga. Camille arrependeu-se de o ter mencionado.

Ele levantou-se em seguida e olhou para ela com desconsolo.

- Não sei de onde tiraste essa informação - disse, mas não é verdade.

- Desculpa - desculpou-se ela, com uma mão no peito. Não devia dizer uma coisa dessas, mas como nunca falas dela...

- É porque não posso - argumentou Nick. - É algo de que não consigo recuperar. Sinto-me responsável pela morte de Carole. Ela era bela e maravilhosa. Tivemos uma vida feliz e plena durante um período de tempo, mas a gravidez e o nascimento de Melissa mudaram tudo. De repente, começámos a ter problemas.

Carole sempre fora alguém com tendências depressivas, porém, nunca tanto como depois de Melissa nascer.

Antes de continuar, fez uma pausa e suspirou.

 

- De início, pensei que podia tratar-se de uma depressão pós-parto, mas estava enganado - continuou. O médico falou de instabilidade psicológica, disse que era algo genético e que pioraria com o tempo. Eu não o consegui aceitar. Sabia que Carole não queria a menina. A menina parece-se com a minha família, e como Carole estava esperançada que fosse uma réplica dela, desprezava-a de um modo inaceitável. Dói-me dizê-lo, mas a sua atitude fez muito mal a Melissa.

- Mas a tua filha diz que a sua mãe a adorava...

- Mas isso não é verdade - disse ele, com crueldade.

- A pobrezinha teve que inventar uma fantasia para poder seguir em frente.

Camille estava com tanta pena que mal podia olhar para a sua cara.

- Lamento ter feito aquele comentário...

- É uma época da minha vida que preferiria esquecer

- confessou Nick. - Caso o teu informador não te tenha dito, a minha mulher faleceu num acidente de carro. Utilizei todas as minhas influências para ocultar a história. Nos últimos anos da sua vida, Carole consumiu drogas. Algum dos seus supostos amigos arrastaram-na para essse mundo. Naquela noite, regressava de uma das suas festas. Clare foi a primeira a reconhecer os sintomas do seu vício e tentou ajudá-la com as suas crises. Eu estava sob muita pressão no trabalho e Carole passava demasiado tempo sozinha. Assumo que devia ter lidado com as coisas de outra forma, mas...

Suspirou, aflito, e continuou:

- Amo a minha filha muito mais do que amava a minha mulher. Carole recusava qualquer ajuda e isso esgotou-me a paciência. Comecei a falar em divórcio e na possibilidade de lhe tirar a custódia de Melissa. Talvez isso desencadeasse a tragédia. Se assim foi, terei que viver com essa cruz.

Em seguida, Nick levantou-se para sair.

- Levarei as fotografias - disse. - O detective Lewis quererá vê-las. Provavelmente, falará contigo para que lhe dês mais dados.

Camille seguiu-o. Sentia-se como se acabassem de lhe dar uma surra brutal.

- Não queria magoar-te, Nicholas.

- Mas fizeste-o - assegurou ele e voltou-se para olhar para ela com os olhos acesos de paixão. - Para alguns, o amor e o ódio são duas faces da mesma moeda.

- Não pensarás que estou apaixonada por ti, pois não?

A mulher recuou uns passos. Não se sentia preparada para abrir o coração. A sua vida já estava demasiado revolta para se permitir algo semelhante. - Amar, odiar, qual é a diferença? - comentou ele, e atraiu-a para si. Tiras-me do sério, Camille Guilford!

- Eu sei - respondeu ela, com os olhos cheios de lágrimas.

- Mas desejo-te desesperadamente.

Nick parecia estar prestes a perder o controlo.

- Quero entrar em ti agora mesmo - adicionou. Tudo o que és me toca o coração. A tua voz, a tua cara, o teu corpo, a maneira como o cabelo te cai sobre os ombros, o teu cheiro, a tua boca adorável...

Depois, apertou-se contra o corpo ardente de Camille. Ela tremeu de prazer.

- Estou louco por ti! - exclamou ele. - É insuportável...

- Ages como se o que sentes por mim fosse uma maldição - disse ela, inclinando a cabeça.

- Como definirias um sentimento que anula o resto? Estive obcecado contigo desde o começo - confessou, desesperado. - O desejo que sinto por ti está a corroer-me.

Morro por te abraçar e levar para o quarto para voltar a sentir o prazer quente do teu interior.

Ela tapou-lhe a boca com os dedos. O contacto foi eléctrico.

Nicholas atraiu-a para si. O primeiro beijo foi frenético, como se tentasse comê-la com a boca. Camille deu um pequeno gemido e, então, ele começou a beijá-la docemente. Ela sentia-se tão vulnerável àquele homem que o menor contacto bastava para lhe aquecer o sangue. Podia sentir a ansiedade a percorrer-lhe a pele, os seios, as entranhas. Estava tão extasiada que quase não notou quando ele lhe pegou e a levou para o quarto. Os dois sabiam que o seu romance era uma ameaça, mas nenhum era capaz de resistir ao desejo que os dominava.

 

Finalmente, foi Nicholas quem encontrou o local perfeito para a galeria de Camille. Um lugar excelente, localizado numa zona rodeada por outras galerias, lojas de roupa, joalharias, restaurantes e bares. Nick comprara o edifício antes que os preços das propriedades em Sidney disparassem. O local fora ocupado por um jovem joalheiro que ia viver para os Estados Unidos no princípio do ano.

O lugar era muito melhor que os que vira com Claude. Nick propusera não cobrar aluguer durante um tempo, pelo menos até que a galeria estivesse assegurada, contudo, ela rejeitara a oferta e vendera outra das jóias da sua mãe para poder pagar-Lhe.

Há quase duas semanas que não recebia ameaças, nem novas fotografias. A polícia interrogara Sebastian Gray e o seu amigo. Conforme tinham declarado, seguiam Camille por curiosidade. Tinham assegurado que não tinham nada a ver com as fotografias. Rankin, o amante de Gray, era o proprietário do Ford amarelo que Camille vira. Depois de considerar a situação, decidiu não iniciar nenhuma acção legal, embora lhes tivesse advertido que, se continuassem com a perseguição, apresentaria queixas.

Os problemas de Linda pareciam não ter fim. Beth Selkirk, proprietária de uma das firmas de advogados mais importantes da cidade, oferecera-Lhe trabalho, mas Stephen não estava de acordo que a sua esposa exercesse a sua profissão. Dizia que ele ganhava o suficiente para sustentar os dois e que queria que a sua mulher estivesse em casa, dedicando-se exclusivamente a ele; que queria que voltassem a tentar ter um filho, que era parte do que tinham planeado antes de se casarem e que Linda aceitara essas condições. De facto, até a acusara de ser injusta com ele e a sua família.

Stephen e ela estavam temporariamente separados. Linda não estava disposta a continuar a tolerar os maus-tratos da sua sogra, que era a grande confidente de Stephen. Era a palavra de Linda contra a dela e, aparentemente, ele fazia tudo o que a sua mãe dizia. Se Linda insistisse em ver-se como uma vítima, nunca resolveriam os seus problemas conjugais.

Quando Camille chegou a casa da sua amiga, encontrou outro carro estacionado à porta.

Linda saiu tão visivelmente incomodada que Camille correu para Lhe segurar na mão.

 

- Que se passa? Qual é o problema? - perguntou.

Antes que a sua amiga pudesse responder, Madelaine Carghill apareceu na soleira.

- Boa pergunta, Camille. O problema é que tu és uma má influência para a minha nora - disse a mulher.

Atrás dela, apareceu Ann, a irmã de Stephen. Tanto Linda como as duas mulheres estavam pálidas e incomodadas, mas de maneiras diferentes. Ann tremia e a sua mãe estava tensa. Camille começou a sentir-se tão furiosa como as outras mulheres.

- Entra, Milly - disse Linda, - embora não te

culpasse se preferisses ir. Como vês, a familia veio visitar-me.

- Compreende, Linda, estamos muito preocupadas

com Stephen - declarou Madelaine Carghill, - e com o estado do vosso casamento.

Pela forma como falava, a mulher culpava Linda pelo ocorrido.

- As coisas estariam muito melhor se deixasses que Stephen se ocupasse de resolver os seus próprios problemas - respondeu-lhe Camille. - Já tem trinta anos...

A senhora Carghill olhou para ela com frieza.

- Isso diz uma jovenzinha que não sabe o que significa ser mãe. Stephen será sempre o meu filho. Contará sempre com o meu apoio e o meu conselho.

Incitada pela presença da sua amiga, Linda fez um comentário desafiante.

- Talvez seja hora de cortar o cordão umbilical - disse.

- Por que não regressamos à sala? - sugeriu Ann, angustiada.

Em seguida, deu meia volta e entrou em casa. A mãe seguiu-a, e Camille e Linda sentiram-se obrigadas a imitá-las.

- Desculpa - murmurou Linda, - não sabia que viriam.

- Não te preocupes. Encontraremos forma de nos livrarmos delas.

As duas Carghill sentaram-se no sofá, com as costas direitas. Madelaine tinha uma expressão firme e decidida. Essa éra a sua oportunidade para defender a posição da familia, de modo que retomou a conversa onde a tinha deixado e continuou a repreender Linda e Camille, como se fossem duas adolescentes que precisassem de recuperar o bom caminho. E, certamente, o bom caminho era o seu.

Camille estava furiosa, mas conteve-se à espera que Linda respondesse à sua sogra. Finalmente, fê-lo.

- O assunto é, Madelaine, que amas Stephen, contudo, não te interessas por mim. Não te preocupas nem com o que desejo nem com o que preciso - disse Lindy, num tom desafiante. - Tenho a certeza de que consegues compreender que preciso de me desenvolver profissionalmente.

- Às custas do teu marido e do teu casamento? - perguntou a senhora Carghill, com incredulidade. - Logo agora, que planeiam voltar a tentar ter um filho?

- Isso não te diz respeito - insistiu Linda.

- Tem razão, mamã - interveio Ann, apoiando a sua cunhada.

- Enganas-te, também me diz respeito - corrigiu-a a sua mãe. - Trata-se do meu futuro neto. Não te dás conta, Linda, que, se insistires com isto, conseguirás que Stephen se afaste? É isso que queres?

- Eu não quero que se afaste - protestou a jovem, angustiada. - Amo Stephen com toda a minha alma. Sei que lhe falhei ao perder o bebé.

- Linda, não digas isso! - exclamou Camille, com veemência. - Um aborto espontâneo é algo que pode acontecer a qualquer uma, e tu sabes.

- Ninguém te culpa por tê-lo perdido - disse Ann. E muito menos Stephen. De onde tiraste uma ideia semelhante? Na minha opinião, além de ser injusta, é muito cruel.

- Mas foi o que a tua mãe insinuou, Ann - respondeu Linda, com calma. - Praticamente, convenceu Stephen de que eu não cuidei de mim o suficiente e que, por isso, aconteceu o que aconteceu.

- Que insensatez! - exclamou Ann, indignada. Não pode ser verdade. Tu não. farias uma coisa assim, pois não, mamã?

Os lábios de Madelaine Carghill tremiam.

- Pensei que era a minha obrigação advertir Stephen de que Linda não estava a levar a gravidez a sério. Eu mesma a vi a carregar um vaso grande de barro cozido.

- Era de plástico e estava vazio - esclareceu Linda.

- Todos sabíamos que estavas a trabalhar no jardim mais do que devias para o teu estado - continuou a senhora Carghill, sem atender ao comentário da sua nora.

- Em mais de uma ocasião, avisei-te que não fizesses esforços, mas recusaste-te a aceitar qualquer conselho. Especialmente, o meu. No fundo, sei que estás ressentida porque Stephen me prefere a mim.

- Mamã!

Ann voltou-se para contemplar a sua mãe como se fosse a primeira vez que a via tal como era.

- Não entendo por que te surpreendes tanto, Anndisse Linda, com pena. - Por acaso não sabes que a tua mãe me odeia?

- Não, a sério que não - respondeu a sua cunhada, com voz trémula.

- Pensa um pouco, Ann - continuou Linda. - Não desprezes as minhas palavras, como sempre. Não te dás conta de que fez o impossível para te convencer a veres-me como uma intrusa? Como uma pobre substituta de Fiona Duncan? Admito que Fiona possa ter-se dado com a tua mãe melhor do que eu. Talvez se deva a parecerem-se bastante. O teu pai é o único que foi compreensivo comigo, o único que me mostrou algum apreço.

Ann estava desolada:

- Linda, lamento imenso... - desculpou-se. - Deveria ter falado contigo, mas a mamã agia como intermediária e mantinha todos informados. Além disso, Stephen só fala com ela.

Madelaine Carghill assentiu, com expressão triunfal.

- Isso é algo que precisas aprender, Linda - disse. Stephen vem sempre ter comigo. E já que mencionaste Fiona, suponho que saberás que o meu filho recorreu a ela em busca de consolo.

Ao ouvir o que a sua sogra acabava de dizer, Linda saltou do seu lugar, bruscamente.

- Que raios estás a dizer? - exclamou, furiosa. Madelaine sorriu.

- Camille pode explicar-te - respondeu. - Viu-os juntos há algumas semanas.

- Camille? - murmurou Linda, olhando para a sua amiga.

- Não faças caso, Lin. Vi-os a beber um café juntos, foi só isso. Inclusive, Stephen aproximou-se para me cumprimentar. Encontrou-se com Fiona por acaso e sentaram-se a conversar um pouco, mais nada.

- Foi o que ele te disse? - perguntou a senhora Carghill, e olhou para Linda, com malícia. - Receio, querida, que a tua amiga seja demasiado crédula e que tu estejas prestes a perder o meu filho.

Ann interveio de novo a favor da sua cunhada.

- Isso não é verdade, mamã. Stephen ama-a. Talvez se tenha interessado por Fiona, mas esqueceu-a por completo ao conhecer Linda. Pensei que o tinhas aceite.

Madelaine Carghill olhou para a sua filha com desprezo.

- Se queres pôr-te do lado da tua cunhada, fá-lo. Todavia, advirto-te que tenho sérias dúvidas relativamente a este casamento. Olha como Linda se comportou desde que perdeu o bebé. Esteve a evitar-nos como se tivéssemos peste. Não deixa que Stephen se aproxime...

- Ele disse-te isso? - interrompeu Limda, com lágrimas nos olhos.

- Eu não disse nada semelhante!

A voz de Stephen surpreendeu-as a todas. Madelaine ficou pálida.

- Lindy, vem comigo - suplicou o homem, com um braço estendido. - Por favor, querida, vem cá.

Sem hesitar um segundo, Linda correu para o seu marido e aninhou-se entre os seus braços.

Stephen levantou a cabeça e disse:

- Vim buscar uns papéis de que necessitava para esta tarde e ouvi tudo. Ouvi-te, mamã, quando ralhavas com Camille e Lindy. Ouvi Camille dizer que devia ocupar-me dos meus problemas sozinho. Tenho trinta anos; tem razão. Também ouvi o resto, o tom com que falavas com a minha mulher. Juro-te, mamã, que foi uma verdadeira revelação para mim.

Fez uma pausa e olhou para a sua esposa.

- Há tempo que me advertes que a minha mãe estava a tentar separar-nos - continuou, - e eu não o aceitava porque me custava acreditar que fosse capaz de algo semelhante. Perdoa-me, princesa, por favor.

- E Fiona? - perguntou Linda.

- Encontrei-me com ela para tomar um café. Não foi nada importante. Fiona telefonou e, nesse momento, eu sentia-me bastante deprimido. Precisava de falar com alguém, apenas isso.

- Foi por isso que me compraste uma pulseira de diamantes?

Stephen acariciou-lhe a cabeça.

- Comprei-te essa pulseira porque te amo. Queria agradar-te. Mas, como não disseste nada, pensei que não te estava a fazer feliz.

- Não me deste tempo...

Camille olhou para os seus amigos e compreendeu que precisavam de estar sozinhos.

- Falando em tempo - disse, olhando para o seu relógio, - tenho que ir.

Ann levantou-se.

- Nós também deveríamos ir, mamã - sugeriu. - Tenho que ir buscar os rapazes.

 

Em seguida, caminhou para o lugar onde estavam o seu irmão e a sua cunhada abraçados e adicionou:

- Peço-te perdão por qualquer mal que te possa ter causado, Linda. Acredita em mim, não voltará a acontecer. Sinceramente, odiava ver-vos distanciados.

Depois, Ann deu-lhes um beijo e voltou-se para olhár para a sua mãe.

Madelaine Carghill não parecia estar disposta a desculpar-se. Aproximou-se do casal, arrastando os pés, e olhou para eles como se acabassem de lhe cravar um punhal nas costas.

- Desde que chegaste à família, Linda, fizeste o possível por nos separar - afirmou, raivosa. - Costumávamos ser muito unidos e tu fizeste com que nos enfrentássemos entre nós.

Stephen abanou a cabeça, com pena.

Penso que deverias avaliar os teus próprios actos, mamã - declarou. - Adoro-te, mas isso não te dá o direito de te meteres na minha vida e muito menos de destruíres o meu casamento.

A mulher chegou-se para trás e sorriu com antipatia.

- Não me faças acusações que não me correspondem, Stephen - ameaçou. - Tu é que estiveste a queixar-te de tudo. Eu só pretendia ajudar-te com os teus problemas.

- Pensava que o fazia, no entanto, agora tenho sérias dúvidas - revelou o homem. - Ouvi-te, mamã. Ouvi o que dizias e como o dizias. Custa-me acreditar que, sendo a minha mãe, queiras arruinar o meu casamento. Não poderia viver sem Linda. Estamos a atravessar uma etapa difícil, mas seguiremos em frente. Tenho que ouvir mais Linda. Fui muito egoísta ao vê-la só como minha esposa. Obriguei-a a fazer o que eu queria e neguei-lhe a possibilidade de ter a sua própria vida.

Madelaine olhou para ele com os olhos exageradamente abertos.

- Não me faças rir, Stephen! - exclamou. - Qualquer mulher sensata morreria por ocupar o lugar de Linda. Está casada com um homem que não só é bonito e inteligente, mas, além disso, é um advogado muito respeitado e pertence a uma das melhores familias do país. E, ainda por cima, tem dinheiro para Lhe comprar o que quiser. Muitas mulheres achariam o Paraíso. Perdeu um bebé, é verdade, mas em vez de tentar fazer-te feliz, afundou-se numa depressão insuperável. E agora diz que quer voltar a trabalhar...

A mulher parou e deu uma gargalhada.

- Na minha opinião, Linda nunca vai ter êxiTo, porque não tem as armas necessárias para o conseguiracrescentou. - Quem vai consultar uma advogada que se mostra tão fraca e vulnerável? A mim, pelo menos, tira-me do sério. Por outro lado, a sua amiga Camille Guilford não faz senão piorar a situação ao incentivá-la. contra os teus desejos e os da tua família, Stephen.

Em seguida, a senhora Carghill lançou um olhar furioso a Camille e afirmou:

- Tens veneno no sangue, querida. Eu sei disso há muito tempo.

Camille teve uma ideia horrível.

- De certeza de que não fizeste algo a esse respeito?

- insinuou. - Como tentar magoar-me ou intimidar-me com ameaças, por exemplo.

- Como te atreves a imsultar-me desta maneira? Não passas de uma menina malcriada.

Ann ficou pálida e agarrou no braço da sua mãe.

- Pára, mamã, por favor - suplicou. - Ninguém quer continuar a ouvir as tuas barbaridades.

A mãe afastou-se bruscamente.

- Sustento o que disse. Este casamento só pode trazer miséria e destruição. Roubaste-me o meu filho, Linda.

- Já chega, mamã! - gritou Stephen.

- Sinto muito, maninho.

Ann voltou a agarrar no braço da sua mãe e voltou-se para olhar para Camille.

- Não sei ao que te referias exactamente - disse-lhe, - mas posso assegurar-te que a minha mãe nunca tentou fazer-te mal.

Enquanto conduzia de regresso à cidade, Camille continuava com a imagem de Madelaine Carghill, com o seu ar sério e os seus olhos de gelo, na cabeça.

Estacionou o carro no centro comercial e ficou mais tempo do que esperava; esteve a ver as montras, mas sem prestar muita atenção. Quando saiu para a rua, estava a chover torrencialmente. O clima da zona piorara devido aos ciclones sucessivos que flagelaram a costa norte de Queensland. A maioria dissolveu-se no mar. No entanto, aquele Verão estava a ser um dos mais húmidos da década.

Ao chegar ao seu apartamento, Camille voltou a estacionar na rua. A situação deixara-a preocupada e não tinha paciência para descer à garagem. Tomou úm atalho através dos jardins e, quando estava prestes a chegar à porta, uma figura minúscula apareceu entre os arbustos e lançou-se a ela, gritando o seu nome com desespero.

Melissa estava pálida e ensopada dos pés à cabeça. Ao vê-la, Camille esqueceu-se dos problemas que a atormentavam em menos de um segundo. Levantou a menina nos braços e apressou-se a entrar no edifício. Por sorte, o elevador estava livre, porque Melissa começou a chorar desconsoladamente.

- Odeio-a! - choramingou. - Não vou voltar nunca mais! Vou viver contigo! Por favor, Camille, deixa-me ficar a viver na tua casa. Portar-me-ei bem, prometo. Não te darei problema nenhum.

- Calma, pequena. Contar-me-ás o que aconteceu assim que despires esta roupa molhada.

Quinze minutos depois, Melissa estava seca, vestida com uma t-shirt de Camille e sentada na cama.

- Sabes que devo telefonar para tua casa - disse a mulher, dando-lhe a mão.

- Não, Camille, por favor. Não quero que ninguém saiba onde estou.

- Nem sequer o teu pai?

- O papá não está em casa - respondeu Melissa, em voz baixa. - Telefonar-lhe-emos quando anoitecer.

- Querida, confia em mim. Tu confias em mim, não é?

Melissa assentiu com ênfase.

- Então deixa que diga à tua ama que estás aqui. Apesar do que penses dela, a pobre deve estar desesperada - argumentou Camille. - Bom, como chegaste até aqui?

A menina sorriu.

- Vim de táxi - disse. - Tenho dinheiro.

- Mas o que disse o taxista? Não deveria ter trazido uma menina. E como sabias a minha morada?

Os olhos de Melissa estavam cheios de satisfação.

- Copiei-a da agenda do papá. Ao condutor do táxi disse que perdera o autocarro da escola.

Camille ficou sem palavras por alguns segundos, até que, finalmente, perguntou:

- E trouxe-te até aqui sem dizer nada?

- Queria ficar à espera até ver que entrava no edifício, mas um homem entrou para o táxi. Eu caminhei até à porta de entrada e, quando o carro partiu, escondi-me entre os arbustos - explicou a pequena. - Depois, toquei à campainha do teu apartamento, mas como não respondias, tive que esperar cá fora até que chegasses. É horrível esperar por alguém à chuva. Acho que vou constipar-me.

- Não te acontecerá nada - prometeu Camille. Como conseguiste sair sem que a menina Larkins ou algum dos empregados te visse?

Outra vez, a voz de Melissa estava carregada de orgulho.

- Foi muito fácil - troçou. - Escondi-me na parte de trás do carro de Arthur e, quando parou para fazer umas compras, desci.

- Quem é Arthur? - perguntou Camille, espantada.

- O jardineiro. Trabalha para nós há anos. Ia pedir-lhe que me ajudasse, mas pensei que podia contar a alguém.

- E na loja não se aproximou ninguém para perguntar o que estavas a fazer sozinha?

- Sim, duas ou três senhoras - respondeu a menina, com um sorriso. - Disse-lhes que estava à espera da minha mamã, que saíra para ir buscar qualquer coisa ao carro.

- Boa resposta! - exclamou Camille, com um toque de admiração. - És muito engenhosa, no entanto, não deves voltar a fazer uma coisa destas. Há muita gente agradável que só pretende ajudar, mas também há pessoas que poderiam fazer-te mal.

- Não te preocupes, eu sei tudo sobre essas pessoas. Se alguém tentar agarrar-me, tenho que gritar tão alto quanto puder. O papá disse-me para fazer isso. Camille olhou para ela amorosamente e abraçou-a

com força. Depois, levantou-se e disse:

- Mete-te debaixo dos cobertores enquanto telefono para tua casa. O que fez a ama para que te zangasses assim?

Melissa parecia surpreendida.

- A menina Larkins não me fez nada - esclareceu. Foi Clare.

- Estava em tua casa? O que queria?

- Ultimamente, aparece sem avisar e traz-me coisas. Desta vez foi um livro. Disse-me que estava na altura de aprender a ler como deve ser.

- Tens que dizer a todos que estão errados. Tu consegues ler - afirmou Camille. - És inteligente e bonita, não o esqueças. Quando cresceres, serás uma verdadeira beleza.

Os olhos de Melissa brilharam.

- Mas, de certeza, que nunca tanto como tu - declarou.

- E para que quererias ser como eu? Tu és tu - disse

 

Camille e começou a fazer-Lhe cócegas. - Tu, tu e tu. Agora devo ir fazer essa chamada.

Em seguida, foi até à sala e telefonou para a mansão dos Lombard. A menina Larkins atendeu rapidamente; parecia tão angustiada que mal a reconhecia. Camille fez-lhe um resumo da situação e perguntou-lhe se sabia por que Melissa fugira.

- Não entendo - disse a ama, um pouco mais calma ao saber que a menina estava a salvo. - Melissa estava a brincar no seu quarto. Parecia muito entretida com as suas coisas. Melhorou bastante ultimamente, mas até você tem que admitir que pode chegar a ser muito desrespeitosa. A senhora Tennant chegou com um livro lindo para ela. Mostrou-mo antes de lho dar. Era uma selecção de histórias de encantar com umas ilustrações bonitas. É uma mulher muito amável.

Camille assentiu por cortesia e a ama continuou:

- A senhora Tennant subiu ao quarto de Melissa e isso foi a última coisa que soube da menina. Quando descobri que não estava, pensei que morria. Alertei todo o pessoal e passámos a tarde a procurá-la na casa e no jardim. Nem sequer pudemos localizar o senhor Lombard. Não está no seu escritório nem atende o seu telemóvel. Assusta-me pensar no que vai dizer-me quando descobrir. Francamente, nunca acreditei que Melissa fosse capaz de fazer uma coisa destas. Oxalá fosse uma menina inteligente.

- E é. É muito inteligente, de facto - particularizou Camille. - Lamento que não tenha reparado.

Vinte minutos depois de Camille falar com a ama, Nicholas chegou ao seu apartamento. Aparentemente, alguém tinha conseguido localizá-lo no telefone do carro.

Atravessou a porta como se fosse um corredor de maratona a alcançar a meta, abraçou Camille pela cintura e deu uma olhadela rápida à sala.

- Está a descansar no quarto - explicou a mulher. Obviamente, alguém te avisou.

- A futura ex-ama da minha filha - respondeu ele, com ironia.

Camille sentiu uma inesperada simpatia pela mulher.

- Tens que reconhecer que Melissa parece uma menina inofensiva, mas é mais esperta que todos nós e que isto poderia ter acontecido com qualquer pessoa.

- É terrível, eu sei, mas é a minha filha e se a deixo aos cuidados de alguém, o mínimo que posso esperar é que não a percam, não achas? - argumentou. - Também terei que falar com o taxista. Supõe-se que não devem levar crianças sem um acompanhante adulto. Deveria tê-la levado ao posto de polícia.

- É claro, mas contou-Lhe uma história muito verosímil. Disse-lhe que perdera o autocarro que a levava a casa e, como tinha o uniforme da escola vestido, o pobre homem acreditou.

- Não é uma desculpa válida.

Antes de entrar no quarto, Camille tentou acalmá-lo.

- Não sejas muito duro com ela, Nicholas - rogou-Lhe.

- Tenho que sê-lo se quero assegurar-me de que não o vólta a fazer - afirmou ele, e abriu a porta.

Melissa começou a chorar assim que viu o seu pai.

- Desculpa! Desculpa! - choramingou. - Não voltarei a fazê-lo, prometo!

Reparava-se que Nick estava incomodado e aliviado, ao mesmo tempo.

- Melissa, se me dessem um dólar por cada uma das tuas promessas, seria o homem mais rico da Austrália.

- És o homem mais rico da Austrália - replicou a menina, esquecendo o choro.

- Não, não sou - disse ele, e inclinou-se para abraçá-la. - É terrível. Camille deve ter-se assustado muito quando te viu aparecer à porta. A menina parecia só. O cozinheiro não pôde ocupar-se do jantar. Toda a casa está alvoroçada e o pobre motorista sofreu um pequeno acidente enquanto te procurava.

- Desculpa, papá.

Melissa parecia estar a gostar de ter chamado tanto a atenção.

- Não pretendia preocupar-te - continuou a menina.

- Só queria estar com Camille. É horrível quando não estás em casa. Por que tens que trabalhar o tempo todo?

Ele respondeu com seriedade.

- Para me assegurar de que tenhas tudo o que precisares. Todos os pais trabalham, Melissa. E a maioria das mães, também - explicou-lhe. - Fizeste uma coisa terrível. Preocupaste muitas pessoas sem um bom motivo e é um milagre que não te tenha acontecido nada.

Ela tocou-lhe na cara e sorriu.

- A única coisa que aconteceu foi que me molhei muito - disse, tentando acalmá-lo. - Não sabia que ia chover tanto.

- Já que armaste toda esta confusão, poderias ter tido a precaução de trazer um guarda-chuva...

- Não te zangues comigo, papá -suplicou Melissa. Zanga-te com Clare.

Nicholas franziu o sobrolho.

- Não comeces outra vez - resmungou. - O que tem Clare a ver com tudo isto?

Disse que ias enviar-me para um internato - sustentou a menina.

- E tu acreditaste? Melissa, nunca te faria uma coisa dessas.

A pequena ouviu a tristeza com que o seu pai falava e baixou a cabeça.

- Clare esteve em casa esta tarde - contou Camille a Nick, em voz baixa. - Tinha um presente para Melissa. Um livro de histórias.

Nicholas levantou os olhos para olhar para ela.

- A ver se entendo o que aconteceu - disse ele, aturdido. - A visita de Clare foi o que provocou esta situação? Quer dizer que se incomodou em ir até minha casa para dizer à minha filha que eu ia enviá-la para um internato?

- Sim, papá - afirmou a pequena, com os olhos cheios de lágrimas. - Disse: quem sabe, talvez gostes.

Apesar do choro, Melissa não perdera o seu talento para as imitações.

O pai ficou em silêncio, durante alguns segundos. Tremia-lhe o queixo e notava-se que estava furioso.

- Mas tu sabes que o que Clare te disse é mentira, não é verdade? - insistiu. - Eu nunca te enviaria para um lugar desses, minha linda.

Melissa recostou-se sobre a almofada e fechou os

olhos.

- Sim, papá - afirmou: - A menos que te cases com ela.

O comentário deixou-o aniquilado.

- Nunca considerei essa possibilidade, Melissa. Além disso, se quisesse voltar a casar-me, a primeira coisa que faria seria falar disso contigo.

A menina abriu os olhos e olhou para ele com atenção.

- Então por que é que ela acredita que vai ser a mi nha madrasta? - perguntou.

- Boa pergunta! - exclamou Nick. - Há gente que se julga capaz de conseguir tudo o que quer, custe o

que custar. Clare está nas nossas vidas há algum tempo. E uma boa amiga da tua mãe. Mas nunca fiz nem disse

nada que pudesse fazê-la pensar que queria casar-me com ela.

- Fico contente por sabê-lo, papá, porque não gosto nada de Clare. Quero que Camille viva connosco.

Sim, ela poderia cuidar de mim e nós poderíamos cuidar dela. Isso é o que quero realmente.

- Compreendo - disse ele e olhou para a mulher de soslaio. - Agora, eu gostaria de ouvir toda a história sobre a tua pequena fuga, minha menina. Do princípio ao fim e com todos os pormenores. E, Melissa, não me mintas, porque eu conheço- te...

- Sim, papá.

A menina estava feliz de voltar a narrar as suas aventuras.

Camille olhou para eles com um sorriso.

- Vou deixar-vos a sós por um instante - declarou, e, assim, aproveito para preparar qualquer coisa para o jantar.

Enquanto ia para a cozinha, pensou que os Lombard tinham a força necessária para seguir em frente. Por sorte, a fuga de Melissa terminara bem, porque tremia só de pensar que qualquer pessoa poderia ter-lhe feito mal.

Quando pai e filha saírám do quarto, Camile estava a acabar de servir um esparguete à carbonara, com um pouco de toucinho, ervas e um punhado de queijo parmesão. Além disso, preparara uma salada de abacate e gambas como entrada.

Melissa estava muito animada. Devorou o seu prato de massa com gosto. Depois do jantar improvisado, e poucos mimmutos antes de irem embora; Nicholas lançou uma proposta interessante para as férias que se avizinhavam. Queria que Camille fosse com eles para a casa de campo da sua familia. Era uma propriedade que o seu pai adquirira há mais de trinta anos, onde, Nicholas e a sua irmã costumavam passar as suas férias.

- Referes-te a Kurakai? - perguntou Camille. Há uns meses atrás, vira umas fotografias do lugar numa revista.

- Sim. Tentamos passar lá uma temporada todos os anos - respondeu ele. - A minha irmã Elizabeth, o seu marido e alguns amigos irão no Natal. Elizabeth está ansiosa por te conhecer.

- De certeza? - perguntou ela, assombrada. - Deve haver muitas recordações dolorosas...

- Não podemos deixar que continuem a interpor-se entre nós - interrompeu-a ele.

Antes de continuar, olhou de soslaio para Melissa, que se passeava entre o elevador e a porta, saltitando e dançando de felicidade.

- Melissa estará de férias a partir da semana que vem. Não tem que voltar para as aulas até Fevereiro e tu não poderás resolver o assunto do aluguer até lá. Por tanto, não vejo qual é o problema.

Camille hesitou.

- Não sei, Nicholas.

- Lá, estarás a salvo. Fazia-te bem sair da cidade e arejar um pouco - comentou ele. - E já agora, obrigado por seres tão doce com a minha filha.

Ela olhou, para ele com ternura.

- Fico contente que me vejas como uma amiga - assegurou. - Entendemo-nos muito bem.

- Eu sei, desde a primeira noite.

Horas depois, quando Camille estava recostada no sofá a ver o final de um filme com Ingrid Bergman e Cary Grant, o telefone tocou. Era tarde e sobressaltou-se ao ouvi- lo. Poucas pessoas tinham o seu número novo e tinha o pressentimento de que não se tratava de nenhuma delas. A campainha do aparelho soou várias vezes antes que ela levantasse o auscultador.

- Sim?

Ninguém respondeu, embora ela pudesse ouvir

ruído da tempestade do outro lado da linha.

- Quem é? - pergúntou, bruscamente.

Naquele momento, Camille viu que a porta da varanda estava aberta e sentiu a necessidade desesperada de a fechar. Parara de chover, porém, o céu estava completamente coberto de nuvens e carregado de electricidade.

- Sim? - insistiu.

Não obteve resposta. A mulher sabia que se trattava de um jogo perverso e que o desgraçado que lhe telefonava estava a tentar assustá-la.

- Vai para o Diabo que te carregue! - gritou, furiosa. Estava prestes a desligar quando, de repente, ouviu uma voz do outro lado da linha. O mesmo sussurro barulhento que ouvira nas chamadas anteriores.

- Morre, cadela! - ameaçou a voz, com tom áspero. Por algum estranho motivo, dessa vez Camille, sentiu-se encorajada.

- Porquê? - perguntou, com tom desafiante. - És um covarde que se esconde atrás de um telefone e distorce a voz para que não te reconheça. Vamos, quero saber. Fala-me das vezes que me seguiste. Diz-me onde compraste as flores e a máquina fotográfica. Não acredito que te faça feliz ficar em silêncio. Deixa-me ouvir os motivos do teu ódio.

Por um momento, Camille pensou que, depois de semelhante provocação, o perseguidor Lhe revelaria a sua identidade. Portanto esperou, com os nervos em franja, até que, finalmente, ouviu como se cortava a comunicação.

Quando pousou o auscultador, sentia-se aturdida e raivosa. Era uma situação insuportável, mas não parecia que pudesse fazer muito a esse respeito. Nem sequer sabia por que a estavam a ameaçar. Estava desesperada por telefonar a Nicholas para que a reconfortasse, mas era tarde demais para incomodá-lo. Podia esperar até à manhã seguinte para falar com ele. Não faltava muito para que amanhecesse, porém, a Camille pareceu uma eternidade.

 

Correu até à varanda, fechou a porta de vidro à chave e puxou as persianas. De repente, teve a sensação de que uma casa de campo seria um lugar muito mais seguro que o seu pequeno apartamento num edifício cheio de estranhos.

Por essa altura, o filme terminara e havia uma loira afectada a ler as notícias da meia-noite. Camille pegou no telecomando e desligou o televisor. Na sua cabeça, continuava a ouvir a voz áspera do telefone. Continuava sem conseguir dizer se se tratava de um homem ou de uma mulher. Contudo, fosse quem fosse, a sua voz representava uma ameaça real.

 

Camille nunca esqueceria a primeira manhã em Kurakai. Nick pilotou ele próprio a avioneta e chegaram pelo entardecer; o céu tinha umas cores incríveis e aos seus pés abria-se uma imensa paisagem dos campos húmidos depois de meses de seca, com terras vermelhas e salpicadas de flores silvestres.

No percurso para a propriedade, o céu e a terra foram trocando os tons vermelhos e amarelos por tons azuis intensos e verdes brilhantes. A casa era uma verdadeira glória, com varandas e galerias cheias de arcadas, balaustradas e varandas de ferro forjado.

O pessoal doméstico apareceu como por artes mágicas e rapidamente se encarregou da bagagem. A esposa do caseiro, que estava acostumada a ocupar-se da cozinha quando a família estava na residência, deu um forte abraço de boas-vindas a Melissa. Depois, deu a mão à pequena e acompanhou-a ao segundo andar, para que pudesse mostrar os quartos a Camille.

- Fico tão contente por teres vindo, Camille! - exclamou a menina, sorridente. - Aqui estarás a salvo. Foi o que o papá disse, que em Kurakai estarias a salvo. Temos um espírito guardião que nos protege. Chama-se Wirra e tem forma de águia.

Camille sorriu com condescendência.

- E está aqui agora mesmo? - perguntou.

Melissa assentiu com a cabeça.

- Manny, o nosso aborígene, diz que Wirra nunca abandona este lugar. A sua função é proteger a familia explicou. Há muito tempo, um dos filhos desta casa caiu do cavalo e ninguém o conseguiu encontrar, até que viram uma águia enorme que lhes assinalava o lugar.

Camille inclinou-se e abraçou a menina.

- Manny contou-te tudo isso? - quis saber. Melissa voltou a assentir e disse, com ar sério:

- Há muitas histórias a respeito de Kurakai. Algumas estão num livro que se chama Espiritos do campo. O papá mostra-te. Ouviste falar da luz Min Min?

- Qualquer australiano já ouviu falar sobre essa luz. Embora, para falar a verdade, eu não gostasse que a luz Min Min me seguisse.

- Seguiu o papá - assegurou Melissa, com orgulhosa satisfação.

Min Min era a palavra que os aborígenes usavam para se referirem a uma luz brilhante e fantasmagórica que fora vista no campo pelos donos originais das terras, os proprietários dos imóveis, os ganadeiros e muitos viajantes. Ninguém podia explicar ao que se devia, embora existissem várias investigações a esse respeito. Não era uma luz amigável. Todos os que a tinham visto juravam que era uma experiência aterradora, uma luz deslumbrante, aparecendo do nada no meio da escuridão.

- Pedirei ao teu papá que me conte a história - disse Camille.

 

Em seguida, a mulher voltou-se para o armário e começou a pendurar a sua roupa.

Enquanto jantavam, Nicholas contou-lhe a sua experiência com a luz Min Min.

- Aconteceu muito antes de Melissa nascer - relatou.

- Vinha da universidade com três amigos que juraram nunca mais voltar, embora o juramento só lhes durasse até às férias seguintes. Uma noite, enquanto nos dirigíamos para Isis Siding, apareceu uma luz ofuscante no espelho retrovisor do meu carro. De início, achei que fosse um farol muito potente, mas, depois, reparei que nos estava a seguir. Quando eu diminuía a velocidade, a luz também o fazia. Se acelerava, acelerava comigo.

Nesse momento, Nick deu uma gargalhada e abanou a cabéça.

- Ouvira centenas de histórias a respeito da Min Min, portanto, disse aos meus amigos que pensava que era isso - continuou o homem. - A luz era extraordinária. Nunca pensaram que pudesse estar a brincar. Todos eles eram jovens da cidade e aquilo era algo de outro mundo. Os cientistas dizem que poderia tratar-se de um fenómeno atmosférico. Uma das teorias sustenta que a luz é causada por algum gás raro, mas a verdade é que foi vista em muitos sítios. Os aborígenes acham que é um espírito maléfico e fogem dele como da peste.

- Estavas assustado, papá? - perguntou Melissa, angustiada.

- Um pouco, querida - respondeu. - Seguiu-nos durante vários quilómetros. Foi uma experiência fantástica, mas não voltou a repetir-se. Manny garante que a viu várias vezes fora de Iluka Springs. A minha irmã jura que está num pântano da zona. O meu pai viu-a quando estava perto da auto-estrada. É uma dessas coisas queninguém pode explicar, como a lenda da Wirra Wirra.

- Melissa disse-me que têm um anjo da guarda - disse Camille, com um sorriso céptico.

- Certamente, há sempre uma águia a sobrevoar a casa - disse Nicholas. - Poderás comprová-lo com os teus próprios olhos. Alguns trabalhadores do imóvel dizem que é a águia da Wirra Wirra e que não temos que a recear, como à luz Min Min. Wirra Wirra é um éspírito poderoso, mas benévol; a menos que alguém altere a paz de Kurakai. Ao princípio, só protegia os aborígenes, todavia, parece que os Fitzgerald, que construíram este lugar em 1870, devem ter feito algo de bom, porquE desde então, a protecção estendeu-se a todos os que vivem na casa. Há centenas de histórias sobre a Wirra

Wirra. Se quiseres, posso mostrar-te um livro que as conta.

- Eu adoraria - assegurou Camille, com interesse repentino. - Diz que se alguém atentar contra nós, Wirra

Wirra recorrerá aos seus poderes mágicos? Isso acalma-me.

- Por isso insisti para que viesses - admitiu Nick, e olhou para ela com intensidade.

- Nesse caso, confio na protecção da Wirra Wirra - brincou a mulher.

Depois, Camille olhou para a menina e, acariciando-lhe carinhosamente a cabeça, disse:

- Foi um dia cansativo, não foi? Estás a cair de sono sobre a mesa.

- Estou cansada. Poderias levar-me ao meu quarto?

- perguntou Melissa.

- Claro que sim, linda. Já acabámos de jantar.

Nicholas acompanhou-as até às escadas.

- Tenho que discutir alguns assuntos com o caseiro desculpou-se. - Portanto, dou-te agora o beijo de boa noite, filhinha.

- Até amanhã, papá - respondeu Melissa, bocejando.

- Até amanhã, querida. Sonha com todas as coisas

belas da vida. Amanhã mostraremos a Camille o Kurakai de que nós tanto gostamos.

Da alta meseta chamada Wirra Wirra, em honra ao espírito guardião, Camille tinha uma vista privilegiada

de Kurakai. Parecia uma paisagem de outro planeta. Era um lugar de distâncias imensas, com terras de todas as cores, planícies misturadas com vales desérticos, rodeados de plantas silvestres e campos de campânulas cor-de-rosa, brancas e amarelas que, segundo Melissa, nunca murchavam. Havia também umas estranhas vagens verdes, carregadas de flores vermelhas, açucenas que brilhavam, violetas com pétalas enormes, arbustos avermelhados e flores-de- laranjeira. O ar estava impregnado de todos aqueles aromas. Camille nunca vira um esplendor tão selvagem.

Se olhasse para Oeste, podia ver as ondulações douradas das dunas, que se estendiam por várias centenas de quilómetros. Recordou que aquele território fora um enorme mar interior na pré-história. A meseta de Wirra Wirra era o centro de um círculo delimitado por terras de areia vermelha e planícies de granito liso como um espelho, por isso, Camille tinha a impressão de estar no meio de um grande lago de opala.

Camille abriu os braços, como se quisesse abraçar a paisagem, e exclamou:

- Nunca teria imaginado que este lugar fosse tão fantástico!

- Sabia que ias adorar, Camille - disse Melissa, alegremente.

Pai e filha estavam de pé junto à sua convidada.

- Papá, posso apanhar algumas flores silvestres para Camille? - perguntou a menina, e voltou-se para a sua amiga. - Adoro as campânulas; quando as acariciamos, parecem de papel.

Camille e Melissa olhavam-se com afecto e cumplicidade.

- Estou fascinada com os pássaros! - exclamou a mulher. - Nunca vira tantos na minha vida.

Era verdade, estavam por todo o lado. Havia papagaios de cores brilhantes, gralhas pretas, catatuas brancas e amarelas, rouxinóis e o grande fenómeno da zona: a horda de periquitos verdes e amarelos que sobrevoava o vale.

- Costumava pensar que Namatjira era um génio a lidar com as cores - disse Camille a Nicholas, referindo-se a um famoso pintor aborígene, - mas aqui está a fonte da sua inspiração. As cores são absolutamente incríveis.

O homem assentiu com a cabeça.

- Advirto-te que pensamos levar-te a muitos lugares. Às grutas de estalactites, às salinas e à reserva aborígene. Estará no teu âmbito - assegurou-lhe Nick. - A maioria dos artistas plásticos pinta de forma tradicional, mas há alguns que combinam os estilos clássicos com o trabalho rupestre e o resultado é muito interessante. Há uma pintora, em particular, uma velhota adorável, que pinta umas flores lindas e gera um efeito muito estranho que faz com que pareça que saem do tecido.

- Eu adoraria ver os seus quadros - disse Camille, e acariciou-lhe um ombro.

- Que acham se fizermos o nosso piquenique agora mesmo? - perguntou Nick. - Não será difícil encontrarmos um lugar agradável e fresco.

- E poderei apanhar flores para Camille, papá? - Sim, querida, certamente.

Quase tinham chegado ao pé da colina quando Melissa começou a saltar e a apontar para o céu.

- Ali está! É ele! - gritou. - É Wirra Wirra, Camille. Vês?

- Wirra Wirra! - exclamoù a mulher, imitando a menina.

Camille não esperava ver a águia, todavia, parecia uma surpresa digna do maravilhoso dia que estava a viver. Aquelas terras agrestes tinham uma atmosfera que sentia como sua. Tudo estava tão cheio de cores e formas que parecia um paraíso escapado de algum dos seus sonhos. Sob um céu azul-cobalto, a grande águia de cauda mágica sobrevoava o deserto, vigiando o lugar sagrado.

- Wirra Wirra, o protector - cantou Melissa, com os braços ao alto. - Precisamos que cuides de nós. Wirra Wirra, protege-nos contra o diabo de olhos grandes.

Ao ouvi-la, Nicholas começou a rir às gargalhadas, atraiu-a para ele e pediu-lhe que se acalmasse.

- Quem é o diabo de olhos grandes? - perguntou-lhe.

- É a pessoa que está a tentar assustar Camille - respondeu a menina, e voltou-se para esta. - Vês como Wirra Wirra plana no vento? Tinha-te dito: nunca se afasta de nós.

- Penso que Manny esteve a contar-te demasiadas histórias - disse ele. - Os mitos aborígenes são fascinantes, - mas, às vezes, podem fazer com que as meninas pequenas se entusiasmem demasiado.

- Não é uma história, papá. É a verdade - protestou Melissa, e olhou para Camille. - Queres saber por que os cisnes australianos são pretos?

- Outra história? - interessou-se ela.

- Sim. Na época da Criação, todos os nossos cisnes eram brancos, até que alguns aterraram na lagoa de uma águia poderosa - relatou a menina, com tom solene. Não queria que ficassem ali, portanto, arrancou-lhes as penas e abandonou-os no deserto para que morressem. Contudo, uns corvos ouviram os seus gritos e cobriram-nos com as suas próprias penas. Por isso os nossos cisnes são pretos. E têm penas brancas na ponta das asas e o bico vermelho, para não se esquecerem do que aconteceu.

- Eu gosto dessa história - comentou Camille, encantada.

- As águias são muito ciosas do seu território - explicou Nick. - Por isso Wirra Wirra faz o seu ninho na montanha.

Naquele momento, encontraram uma pequena lagoa cheia de nenúfares rosados e decidiram sentar-se na borda para comer qualquer coisa. Depois, Melissa correu em círculos ao redor de um campo de flores silvestres, gritando de alegria e arrastando umas serpentinas azuis e brancas que o seu pai lhe comprara. Quando se cansou daquela brincadeira, começou a procurar flores para Camille.

Esta pensou que nunca sentira tanta paz. Todos os terríveis acontecimentos dos últimos meses pareciam ter desaparecido. Não lhe importavam as ameaças telefónicas nem os envelopes desagradáveis no correio. Como dizia Melissa, aquela era uma terra governada pelos deuses da Criação e eles protegê-la-iam.

- Parece muito feliz, não achas? - comentou Nick. Camille e ele estavam parados um ao lado do outro, a observar como a menina brincava.

- Estas férias vão fazer-lhe muito bem - disse ele. Juro que, desde que estás na nossa vida, parece outra menina.

Em seguida, Nick abraçou-a pela cintura.

- Eu gosto de pensar que fiz algo para ajudá-la - murmurou ela.

- Fá-lo, ajuda-la o tempo todo.

De repente, Nicholas sentiu que algo se agitava no seu interior. Camille era uma mulher muito especial e sabia que não se podia dar o luxo de perdê-la.

- Carole nunca queria vir aqui - confessou. - Dizia que era da cidade e que Kurakai não lhe chamava a atenção. Penso que o achava imensamente opressivo.

Ela respondeu com delicadeza, consciente da

angústia.

- Entendo que pensasse uma coisa dessas. A imensidão, a desolação, o silêncio... - particularizou. - Algumas pessoas achariam demasiado solitário, e até me atreveria a dizer triste. Embora deva reconhecer que depois das chuvas, é o paraíso.

- O paraíso... - repetiu ele.

Nicholas olhou para ela nos olhos e pensou que ela estava fortemente ligada àquele mundo florescente.

- Kurakai está a mostrar-te a sua faceta mais deslumbrante - continuou o homem. - O clima do deserto nem sempre é prazenteiro. Pode ser um lugar terrível, mas não há outro lugar assim na Terra. Venho aqui desde que era miúdo e adoro-o em todas as estações do ano.

- Por muito que insistas, não te vou comprar a casa de Kurakai, Nicholas - brincou ela.

Depois, Camille inclinou a cabeça para sorrir e ele aproveitou a ocasião para beijá-la apaixonadamente.

Nesse momento, apareceu Melissa.

- Já não posso juntar mais - declarou, e entregou-lhes as flores. - Caem-me das mãos.

- Parece-me que há demasiado sol - disse Nick.

Os três concordaram que era o momento de tapar a cabeça. Nicholas pôs um boné creme que Lhe assentava muito bem. Camille e Melissa aproveitaram para estrear os chapéus de palha que compraram juntas.

Melissa olhou para eles na cara, com os olhos cheios de felicidade.

- Vi-vos a beijar-se - exclamou.

- Não, tu não viste nada - repreendeu-a o pai.

- Sim, papá, vi-vos.

Em seguida, a menina deu o imenso ramo de flores a Camille e disse-lhe com cumplicidade:

- Recordarás este dia para sempre, Camille. Estas flores nunca murcham.

Alguns minutos mais tarde, enquanto se acomodavam no jipe, Camille voltou a vista para a montanha.

Estava iluminada pela luz do entardecer e as sombras azuladas fundiam-se com o topo escarpado. Aquela imensa rocha de granito e areia pareciam vibrar com um poder primitivo e latente. De repente, a mulher sentiu que um calafrio lhe percorria as costás. A águia reaparecera do nada e planava sobre eles como se estivesse a proteger o ninho:

- Wirra Wirra - disse Nicholas, assinalando a ave. Isto significa que és bem- vinda, Camille.

Nick ficou uma semana inteira para as ajudar a instalar-se. Certamente, não podia ter tantos dias de férias, porém, decidira que não partiria até estar convencido de que Camille e a sua inquieta filha estavam felizes e a salvo num ambiente seguro.

Explicara tudo o que necessitava a Andy Sutherland, o seu caseiro de sempre e, além disso, um homem pelo qual poria as mãos no fogo. A esposa de Andy, Desley, também fora avisada da necessidade de uma vigilância

adicional, tal como o resto dos empregados. Kurakai estava a centenas de quilómetros de tudo, mas nenhum lugar no mundo era completamente seguro.

Durante aquela semana, foram para todos os lados. Nick e Camille saíam para cavalgar de manhã cedo ou de noite, enquanto Melissa dormia. Também passeavam os três juntos, percorrendo a fazenda com o jipe ou de helicóptero. Foi uma semana maravilhosa. Em cada dia, o deserto lhes proporcionava uma nova descoberta sobre o milagre da vida.

Houve uma só vez em que Camille sentiu medo. Depararam-se com uma iguana enorme que se escondia entre os arbustos. Media mais de dois metros e não parava de deitar a língua de fora.

Melissa rira-se às gargalhadas ao ver a reacção de Camille.

- São inofensivas, Camile! - dissera-lhe. - Estica a língua desse modo quando está assustada. Esta é das maiores que vi em Kurakai. Já viste cores mais brIlhantes?

Camille preferia os cangurus, que estavam por todos os lados, as emas e umas aves estranhas que adoravam enfiar-se no jipe. A mudança de cores do amanhecer até ao crepúsculo era incrível. Às vezes, o sol brilhava com tanta intensidade que, ao chegar a noite, estavam todos vermelhos como um tomate. Os trigais, com as suas espigas altas e douradas durante o dia, convertiam-se num mar de prata sob a luz da lua. A medida que começava a anoitecer, as cores tornavam-se azuis ou arroxeadas. Camille estava particularmente encantada com o contraste que se gerava entre os troncos brancos dos carvalhos, o vermelho das montanhas e o azul do céu.

- Sinto-me como se estivesse num templo milenário. Nicholas assentiu, enquanto contemplava os gestos da sua companheira.

- Os aborígenes consideram que o Sol é uma mulher - comentou. - É a grande deusa da Criação e a mais poderosa das suas divindades. A lua é um homem. Julgo recordar que têm vários rituais para adorar a chegada da deusa Sol. Não me surpreende que te sintas no meio de um templo. Tenho a mesma sensação.

Fez uma pausa, olhou para ela com atenção e adicionou:

- Vejo que és uma amazona experiente.

Fascinava-Lhe essa faceta de Camille, porque adorava ter uma boa companhia nas suas cavalgadas matinais.

- Nicholas, eu tenho experiência em tudo - brincou éla. - Falando a sério, sempre me custou que o meu pai duvidasse das minhas capacidades.

Ele encolheu os ombros.

- Para alguém que teve uma infância tão difícilsustentou, - devo dizer que, para além de possuíres muitas capacidades, és quase um milagre.

- Não sei se tanto, mas, certamente, sinto que superei até as minhas próprias expectativas - afirmou ela e sorriu com ironia. - A infância é uma etapa crucial, a época em que se constroem ou destroem as pessoas.

- A verdade é que, por sorte, tive uma infância maravilhosa. Por isso, quando penso em Melissa, parte-se-me o coração. Apesar de todos os meus esforços, tem uma péssima imagem de si própria. Tem tudo o que qualquer rapaz poderia vir a desejar. Ou quase tudo.

Camille suspirou e, em seguida, disse:

- Receio que o problema não passe pelas questões materiais, mas por atender às necessidades emocionais que as crianças têm. E falo por experiência. Melissa é uma menina extremamente inteligente, mas, por alguma razão, pensa que é alguém que passa despercebido. Não quero que se sinta mal, Nick, mas as coisas são assim.

Ele olhou para ela com pena.

- Muitas pessoas tentaram ajudar-me com ela: Antes de chegares às nossas vidas, Melissa estava cheia de raiva.

- É muito nova e sente-se rejeitada.

- Nunca por mim - replicou Nick.

- Mas tu tens muito trabalho, és um homem muito ocupado.

- É algo que não posso negar - admitiu. - Evidentemente, o problema de Melissa cria-nos emoções muito fortes. Tenho pena, porque, nesta última semana, conseguira tirar da minha mente todas as coisas horríveis que nos aconteceram, e pensei que tu também te tinhas livrado delas. Aparentemente, estava errado.

Ao chegar à lagoa, desmontaram. Enquanto ele atava as rédeas a uma árvore, Camille ficou a contemplar a água. Estava praticamente coberta pelos nenúfares e, na borda, cresciam umas lindas plantas de talo comprido e flores de várias cores.

- Talvez estivéssemos só a fingir que estava tudo bem - sugeriu ela. - Talvez nos estejamos a esconder de nós próprios, como se fôssemos duas crianças.

- Estás a dizer que somos dois mentirosos? - perguntou ele, com tom sarcástico.

- Acho que somos duas pessoas magoadas, Nicholas. Atravessámos situações horríveis e nem toda a gente consegue sair ileso. Pelo menos, não emocionalmente.

- Eu cá acho que estamos a ir muito bem - disse ele, calmo.

- A sério?

Ela olhou para ele dos pés à cabeça. Nick era a personificação da masculinidade e da arrogância.

- O que mais esperas aprender de Harry? - perguntou. - Ou de mim? Os teus sentimentos, como os meuS, são muito complicados...

Depois de dizer aquilo, a mulher tirou o chapéu e soltou o cabelo.

- Os meus sentimentos não são complicados, são profundos - afirmou ele, olhando para ela, com atenção. - Estou apaixonado por ti, Camille. Essa é a verdade. A tua mera presença tem um efeito transcendental em mim e na minha vida. Até na vida da minha filha. É como se tivéssemos estado à tua espera desde sempre.

Ela também sentia que o destino fizera o impossível por uni-los. No entanto, estava tão assustada que não podia evitar mostrar-se reticente.

- Mas se éramos inimigos - exclamou angustiada. Passei a vida a odiar-te. E agora estou muito confusa. Consegues que questione todas as minhas velhas crenças, que duvide do meu pai...

Ele retesou o queixo.

- Desculpa se te fiz mal, mas alguém tinha que te mostrar o tipo de homem que Harry Guilford era. Era uma má pessoa, um ser muito mau e destrutivo - Nick fez uma pausa e respirou fundo. - Além disso, penso que é o responsável pela morte de Natalie.

Camille ficou aturdida por aquela declaração. Não podia acreditar que Nicholas tivesse mantido tanto tempo em segredo uma acusação semelhante.

- O que estás a dizer é terrível - murmurou. - Achas que não tenho consciência da gravidade da minha acusação? - perguntou ele, olhando para ela nos olhos. - Talvez Harry não quisesse empurrar Natalie da quele veleiro. Talvez fosse ela quem o obrigasse a fazê-lo. Natalie estava grávida do meu tio. É provável que o dissesse a Guilford e que isso o tirasse do sério. Não sei. Sei que era um homem violento.

- E era o meu pai...

- Sinto muito, Camille. Sinto muito. Por sorte, tu não te pareces nada com ele - apesar do bronzeado, Nicholas estava pálido. - Natalie estava grávida. Foi um assassinato duplo. Sempre me senti obrigado a vingar essas mortes. Para mim, era muito importante deixar Harry Guilford a descoberto. Queria vingar-me, admito-o.

- Suponho que não pretenderás reabrir a investigação sobre a morte da minha mãe - Camille desesperou.

Ele sustentou o seu olhar.

- Já não. Vingar o meu tio serviu para chegar a ti. O teu pai era o símbolo de todo o mal. Tu és o símbolo de tudo de bom que há na minhavida.

Os olhos de Camille encheram-se de lágrimas.

- Como poderíamos esquecer o passado quando que sinto por ti é medo? Acredito em ti quando afirmas que me amas, mas, ao mesmo tempo, sinto que és perigoso para mim.

- Nunca te faria mal!

Em seguida, Nick agarrou-a pelos ombros. As mãos revelavam uma poderosa carga emocional.

- Por favor, Camille, não posso pensar em ti em termos de castigo ou de vingança.

- Alguma vez o fizeste?

Naquele momento, ele viu muito mais que a beleza de Camille: viu o seu medo.

- Desde o começo, disse-te que és uma vítima inocente - recordou-lhe.

- Mas eu não quero ser uma vítima - replicou ela. Vou fazer algo de bom com a minha vida, sei que posso fazê-lo pelos meus próprios meios.

- Com ou sem mim?

Ela sentiu um calafrio ao ouvir aquela pergunta.

- Não sei o que queres de mim, Nick - disse Camille, comovida. - Sei que me desejas sexualmente.

- Não vais dizer que não me amas, pois não, linda?

- Esse é o nosSo dilema - respondeu, com pena: como reconciliar o desejo com um ódio tão enraizado. Não falemos mais deste assunto, por favor. Esta semana foi maravilhosa, um verdadeiro sonho. E Melissa está a apreciar muito e está a fazer-lhe muito bem.

- Imagina o que poderia significar para ela que te afastasses de nós? - perguntou Nick, com certa rudeza.

Camille tentou recuar, mas ele adiantou-se e atraiu-a para si.

- Queres prender-me a ti, não é verdade, Nick? Quero unir-me a ti - respondeu ele, com os olhos carregados de paixão. - Quero que esta noite durmas comigo. Anseio fazer amor contigo.

Ela sentia-se aflita pela mistura de angústia e desejo e não soube o que dizer.

- Ouve, linda: toda a semana tenho lutado desesperadamente para não perder o controlo, mas não posso mais - confessou Nick. - Deixa que te ame esta noite, que te dispa, que te admire. Sou um homem, Camille. Preciso de ti. Acho que sentes o mesmo que eu. Prometo-te que encontraremos uma forma de resolver os nossos problemas. Nada nem ninguém se interporá entre nós. Juro-te.

Fez uma pausa, acariciou-lhe a boca com a ponta dos dedos e adicionou:

- Virás para a minha cama esta noite, meù amor? - Sim, se assim o desejares.

- Mal posso esperar - replicou, ansioso. Em seguida, afundou uma mão na cabeleira de Camille e aproximou-se um pouco mais. Depois, inclinou a cabeça e beijou-a com desespero, mas ela não se mostrou muito receptiva. Finalmente, endireitou-se, olhou para ela ardentemente e repetiu:

- Nada, nem ninguém se interporá entre nós.

Naquela tarde, estiveram entretidos a decorar a árvore de Natal.

Nick mandara trazer um abeto desde Sidney, uma ár vore verde e frondosa, que era perfeita para coroar o

jantar de Consoada. Tinham-na situado na sala, junto à escada, preparada para ser decorado com amor, imaginação e estilo. Até o enorme vaso de barro esculpido em que estava assente parecia uma obra de arte.

Uma hora depois do jantar, Camille ajudou Melissa a trazer do sótão umas caixas cheias de enfeites que a familia juntara durante anos. Havia metros e metros de fitas verdes e Camille pensou que poderiam fazer grinaldas para decorar a escada e que até lhes poderiam pendurar algumas bolas brilhantes com as cores do Natal: vermelho, verde, prateado e dourado.

 

Nicholas estava ocupado a resolver alguns assuntos de trabalho, porém, aparecia de vez em quando para admirar os esforços das duas. Ver que a sua filha estava tão feliz e confiante com o que estava a fazer era o melhor presente que podia pedir.

Melissa tinha proposto que pusessem um vestido de acordo com a ocasião. Ela escolhera um vestido melhor com bainha branca e tinha o cabelo apanhado com um laço de seda vermelha. Camille trazia uma saia verde e um top justo.

Para Nick, era um momento agridoce. Custava-lhe acreditar que, entre todas as mulheres, tivesse escoIhido, precisamente, a filha de Natalie. A mesma Natalie que tinha destruído a vida do seu tio, da sua familia.

Lombard sabia que era um homem rancoroso. Até reconhecera que a sua própria amargura o levara a agir de má fé. Mas, desde que conhecera a Camille, estava a fazer o possível por mudar essa atitude. Tinha que começar de novo, reconstruir a sua vida.

Naquele momento, Melissa chamou-o para que se aproximasse da árvore. Os olhos da pequena estavam cheios de alegria.

- Vamos deixar-te pôr a estrela na ponta, papá - disse, emocionada. - Tem cuidado, porque é o enfeite mais importante de todos!

 

Nick tivera que regressar à cidade. As duas tinham saudades da sua presença reconfortante e vital, contudo, Camille tomara rapidamente as rédeas da situação e cumpria com o seu novo papel de amiga, companheira e conselheira de Melissa.

A tarefa não era nada fácil. Melissa era cada vez mais independente, mas Camille continuava a ter que lutar contra os caprichos e as angústias da menina.

Os dias foram cheios de actividades divertidas, porém, insistira que deviam respeitar a hora das refeições e os momentos de descanso. Ao mesmo tempo, tinham começado a ter lições de música, algo que Melissa adorava. Havia um piano de cauda na sala e, segundo a pequena a tia Elizabeth tocava cada vez que lá ia. Como Camille estudara piano durante onze anos, ocorreu-lhe a possibilidade de lhe dar algumas aulas e aproveitar para a iniciar na música.

A ideia não poderia ter sido mais brilhante. Melissa aprendia rapidamente tudo o que Camille lhe ensinava e, sem dúvida, a sua destreza manual era uma grande vantagem.

- Estás a fazer um trabalho maravilhoso com Melissa - disse a Camille Desley Sutherland. - A pobrezinha sofreu tantos maus-tratos... Nicholas é um homem maravilhoso, um pai carinhoso e o melhor chefe que poderíamos ter, mas a menina precisa de uma figura materna com urgência.

Pela primeira vez, Camille atreveu-se a perguntar sobre Carole.

- Conhecias bem a esposa de Nick? - perguntou, tentando soar natural.

A caseira suspirou.

- Entre nós, querida, não a conheci a fundo, mas sempre soube como era - respondeu. - Não vinha aqui com frequência e, quando o fazia, nunca ficava na casa. Desde a primeira vez que os vi juntos, soube que ia terminar numa tragédia. Era um casamento muito irregular, compreendes? Carole precisava de estar rodeada de glamour e alvoroço. Era melhor antes de Melissa nascer.

Desley respirou fundo e continuou:

- Carole parecia sentir que a menina atentava contra o seu estilo de vida. Não consigo entender por que teve um filho se não tinha o mínimo sentimento maternal. Partia-me o coração ver a forma como ignorava Melissa. Nicholas era o único que mimava a menina.

- Talvez a conduta da mãe fizesse com que Melissa pensasse que merecia aquele desprezo.

- Definitivamente, converteu-se numa menina cheia de raiva. Nunca para com o pai, Nick é o seu herói, mas bastante fastidiosa com o resto. Provocou-me mais de uma dor de cabeça com as suas birras. No entanto, tu acalmaste-a. Dá gosto vê-la. Quando está contigo, é normal e risonha.

- Eu também vi a mudança nela - disse Camille. - É muito gratificante.

- Não receies ser firme com ela - aconselhou-lhe a caseira. - Necessita que lhe imponham limites. Mas estás a ir muito bem. Nicholas adorará quando a ouvir tocar piano. A sua tia Elizabeth toca muito bem. Uma vez tentou que Melissa se interessasse pelo piano, mas a menina não quis saber de nada.

Camille pensou um momento antes de responder.

- Melissa pensava que não podia fazer nada com a sua vida - declarou. - Agora sabe que pode. Está a trabalhar muito para controlar as suas birras. Disse-lhe que é a sua parte. Gosta que lhe fale assim. Também fui uma menina infeliz, mas tive uma amiga que me ajudou a seguir em frente.

Referes-te a Linda?

- Sim.

Camille sorriu. Linda telefonara várias vezes e a caseira atendera.

- Tenho a certeza que Melissa vai relacionar-se muito melhor com os rapazes da sua idade depois das férias - comentou Camille. - Vai ensinar as suas habilidades, em vez de as ocultar.

Desley recolheu as chávenas da mesa e levantou-se.

- Sempre disse a Andy que era uma menina muito inteligente, só que a mãe a convenceu de que não o era.

Carole pensava que nenhum dos filhos de Nicholas podia chegar a ser brilhante. Ele sofreu muito com todo o trabalho que a menina lhe deu. Imagino que saberás que Melissa vai a um psicanalista.

- Sim - respondeu Camille, em voz baixa. - Mas, na minha opinião, a terapia só serve para que Melissa se retraia cada vez mais. É demasiado nova para falar sobre os seus conflitos e oculta-os por medo de uma nova recusa.

- O que estás a fazer por ela não tem preço – disse Desley, com um enorme sorriso. - Quando chegar o momento, serás uma mãe excelente.

Nicholas regressou na semana seguinte, carregado de presentes. Melissa ocupou-se de acomodá-los prolixamente debaixo da árvore.

Depois; para deleite de Nick, Camille e Melissa tocaram num dueto uma das peças que tinham estado a praticar e, em seguida, a menina sentou-se sozinha para interpretar uma das canções que aprendera.

- Felicito-te, querida! Estiveste muito bem - disse o pai, orgulhoso. - Teremos que descobrir onde poderias ter aulas.

- Eu só quero que Camille me ensine - afirmou ela, subindo para os joelhos do seu pai.

- Para começar - interveio a mulher, - procuraremos um bom professor na tua escola, mas sempre me terás a mim para praticar e ver como progrides.

- Camille diz que tenho um talento natural - vangloriou-se Melissa. - Isso significa que vais ter que me comprar um piano para casa, papá.

- Assim que regressarmos à cidade - prometeu Nick.

- Podemos levar Camille para que nos ajude a escolhê-lo.

- Compra um Steinway - brincou Camille. - Tive que entregar o meu com o resto das coisas da casa.

- Não se fala mais nisso. Compraremos um Steinway - assegurou Nicholas, e ergueu um copo para festejá-lo.

Ele estava a apreciar a proximidade de Camille.

Quanto mais a via, mais a desejava.

- Fazes ideia de quanto custam esses pianos? - protestou ela.

Nick sorriu.

- Não entendo por que te preocupas com o meu dinheiro - comentou, alegremente surpreendido.

- Também poderíamos comprar uma guitarra! - exclamou Melissa, entusiasmada. - Camille também sabe tocar guitarra. Penso que também gostaria de ter uma flauta. Vou ter que aprender tudo sobre música e os instrumentos. Quando crescer, poderia ser concertista de piano.

- Tudo é possível, filhinha - disse o pai, - se tiveres a habilidade e estiveres disposta a trabalhar muito para consegui-lo.

Nicholas pensou na sua própria ambição: que Camille se transformasse na sua esposa.

Na tarde seguinte, enquanto tomavam o lanche no terraço, Melissa olhou para o céu e anunciou:

- É um avião, papá.

- Tens muito bom ouvido - disse Nick, levantando os olhos.

- Consigo vê-lo.

- Sim, ali está - interveio Camille, assinalando a avioneta que sobrevoava o vale.

- Deve ser a tia Elizabeth - afirmou Melissa. De repente, Camille começou a sentir-se inquieta. Receava

que aquele clima de paz e harmonia desaparecesse num instante. A morte trágica de Hugo Vandenberg devia ter afectado muito a sua sobrinha. Por muito amável e generosa que Elizabeth fosse, ia ser-lhe difícil enterrar o passado e mais ainda tendo em conta o quanto Camille se parecia com a sua mãe.

Nicholas levantou-se para ter uma vista completa do vale.

- Não é Liz - disse. - Não chegará antes da véspera de Ano Novo. Será melhor que entre para o jipe e vá ver de quem se trata.

O carro estava estacionado perto da entrada, oculto sob umas árvores.

- Podemos ir, papá? - implorou Melissa.

- Ficas melhor com Camille, querida.

A mulher teve um mau pressentimento. A menina insistiu, no entanto, bastou que Camille lhe fizesse um gesto para que se sentasse em silêncio.

Quando viu que Nick partia no jipe, comentou:

- Não necessitamos de ninguém mais aqui.

- Poderia ser um amigo - murmurou Camille.

Melissa voltou-se para olhar para ela.

- Não pareces muito convencida - disse, e franziu o sobrolho. - Eu cá gosto que estejamos só nós os três.

Camille fez um esforço para ocultar a sua inquietação.

- Anima-te - repreendeu-a. É provável que se trate só de alguém que veio ver o teu pai, mas que partirá imediatamente.

Melissa ficou a pensar durante alguns segundos.

- Poderia ser uma encomenda - disse, esperançada.

- Talvez tragam mais presentes. O papá adora o Natal. Diz que adora tudo isto, que sempre gostou, mas especialmente agora que estás aqui. Eu também.

- E eu adoro-te por isso - replicou Camille, sorridente. - Queres ir para dentro para começarmos com a tua aula de piano?

- Esperemos até ver quem é - respondeu a menina, com evidente preocupação.

Quando o jipe estava a chegar à porta, Melissa reconheceu um dos visitantes.

- Bolas, é Clare! - resmungou. - Sabes quem é o homem que está com ela?

- Não o conheço - disse Camille. - Por favor, porta-te bem, Melissa, e cuidado com o que dizes. Entende que esta é uma prova que tens que superar.

- Irei cumprimentar e serei bem-educada, embora morra por dizer a essa bruxa que se vá embora.

Camille pensou que ela também morria por expulsá-los. A chegada de Clare Tennant era uma sombra que obscurecia o brilho de Kurakai. Camille perguntava para si onde estaria Wirra, a águia mágica. Como Melissa, teria que fazer um esforço para se controlar e ser amável. Aquela mulher não era uma amiga e só podia trazer problemas.

Clare agia como se nunca tivesse dado um mau passo na sua vida. Afastou-se dos homens e dirigiu-se para o terraço, gritando, com tom amigável:

- Olá, Camille. E Melissa!

- Acho que vou vomitar - disse Melissa, entredentes.

Camille preocupou-se ao ouvi-la.

- Calma, linda.

Enquanto subia as escadas, Clare tirou o chapéu sem se despentear. Estava impecável. O penteado, a maquilhagem e a roupa estavam em perfeito estado, apesar da viagem.

- Fico contente por vos ver! - exclamou. - Melissa, juraria que cresceste. Quase pareces uma menina.

- Obrigada, Clare - respondeu a menina, com ar elegante.

Camille sentiu-se orgulhosa da pequena e deu-lhe um aperto de mãos para a incitar a prosseguir com aquela atitude.

- Que surpresa nos fizeste com a tua visita - disse a Clare.

- Uma surpresa agradável, espero - replicou a outra.

- Foi uma decisão repentina. Jack, o meu amigo Jack Martell, que certamente conheces, Camille, é o novo dono de uma propriedade próxima a esta: Lockyer Downs.

- É verdade - assentiu Camille. - Não o reconheci com o chapéu. Além disso, emagreceu muito, não?

- Ia ter um grande problema se não o fizesse – gozou Clare.

- Ainda deve estar a chorar Helen - disse Camille.

O comentário era um gesto de lealdade para a última esposa de Martell, uma mulher que dedicara a sua vida a trabalhar em organizações que defendiam os direitos das crianças.

- Helen era uma mulher maravilhosa – acrescentou - Assisti a várias reuniões da sua fundação.

- Eu também - afirmou Clare. - Ou, pelo menos, asSisti a uma. Acho.

- A verdade é que nunca te vi.

- E eu não costumo passar despercebida - declarou Clare, com frieza. - Foi uma perda terrível para Jack,

mas penso que a nossa relação o está a ajudar muito. Eu é que o convenci a fazer dieta, de facto. Camille teve que conter uma gargalhada. Aparentemente, Clare deu-se conta de que estava a perder a partida e mudou o tom.

- E vocês, o que estiveram a fazer? - perguntou.

- A divertir-nos muito - respondeu Melissa, com um sorriso de orelha a orelha. - Camille é a minha melhor amiga. Adoro-a com toda a minha alma.

- Que bom Melissa. Teria adorado que nós também tivéssemos podido ser amigas.

A menina saiu então e as duas mulheres continuaram a conversar.

- É uma menina muito inteligente, embora demasiado para o meu gosto - disse Clare. - Sabes uma coisa? Durante uma temporada, pensei que Nick e eu poderíamos ficar juntos, porém, Melissa destruiu essa ideia. Francamente, eu não gostaria de cuidar da filha de ninguém.

- Então, mudaste os teus afectos?

- Sim. A minha mãe ensinou-me a ser insistente, mas não a bater com a cabeça contra uma parede. Espero que me tenhas perdoado por tudo o que disse. Suponho que a proximidade dos quarenta me deixou louca... demasiado jovem para entendê-lo.

Segundos depois, apareceram Nick e Jack Martell. Camille aproximou-se para apertar a mão de Jack, de quem gostara desde o começo. Depois, todos se sentaram e pediram algo para beber.

- Eu beberei uma cerveja - disse Jack.

- Eu também - disse Nick. - Estás com muito bom aspecto, na verdade.

- A responsabilidade é de Clare. Ensinou-me a relaxar.

Mais tarde, quando Nick foi ver como se encontrava a sua filha, cruzou-se com Camille no corredor e desculpou-se.

- Lamento tudo isto, Camille. Não podia ser mal-educado com Jack.

- Compreendo, não te preocupes. Além disso Jack é um homem encantador, mas não entendo o que faz com Clare.

- Bom, Jack sente-se sozinho...

- E lamento-o por ele, mas merece algo melhor. Ela não pode ocupar o lugar de Helen.

- Quem sabe.

Durante o jantar, Camille observou os seus acompanhantes com supremo cuidado. Ou Clare era uma actriz consumada ou realmente gostava de Jack Martell. Fosse como fosse, não podia ter-se comportado de forma mais calorosa e divertida.

- Acreditas em Deus? - perguntou Melissa quando Camille a meteu na cama.

- Por que perguntas?

- Porque não sou nenhuma santa.

- Bom, eu também não sou.

- Pois Desley diz que és.

- Desley estava a brincar...

- Eu acreditaria em Deus se me livrasse de Clare.

- Oh, vamos, só se ficou uma noite, pequena.

- Tanto faz, eu não gosto dela. Em troca, gostei do senhor Martell. É muito divertido.

- Bom, pelo menos, parece que Clare se acalmou um pouco.

- Não confies nela - advertiu a menina. - Pode parecer contente, mas está muito zangada contigo. Eu sei.

Na manhã seguinte, quando desceu para tomar o pequeno-almoço, Jack não se sentia bem. Doía-lhe o estômago e, naturalmente, Desley sentiu-se culpada.

- Não é culpa tua - disse Clare. - Jack sofre de dores estomacais frequentemente. - Nesse caso, deveria ir ao médico - disse Nick.

- Estou de acordo. De facto, queríamos partir esta manhã, mas parece que terás que nos aguentar mais um dia.

- Isso não é um problema. E se Jack não melhorar nas próximas horas, levá-lo-emos.

- Não é nada, a sério - disse o principal interessado.

- Clare tem razão. Bebi demasiado durante o jantar e agora sinto-me mal, mas só preciso de descansar um bocado. Assim que voltar para a cidade, telefonarei ao meu médico.

Clare fez todos os possíveis por amenizar o dia de Jack e passou várias horas com ele, a conversar. Camille reparou e até chegou a pensar que talvez se tivesse enganado com ela. Uma mulher capaz de cuidar daquele modo de outra pessoa não podia ser tão má.

Naquela noite, no entanto, Camille deitou-se cedo, com a desculpa de que tinha que escrever vários cartões de Natal. Na verdade, os seus motivos eram bem diferentes: o encanto de Clare estava a tirá-la do sério e estava em pleno ataque de ciúmes. Cada vez que ouvia a sua gargalhada por alguma das piadas de Nick, tremia.

Estava tão tensa que soube que não conseguiria adormecer, portanto, pegou no guarda-jóias da sua mãe, que era uma caixa grande de madeira, e pô-lo sobre as suas pernas. Era algo que sempre a animava.

O guarda jóias era lindo e estava cheio de compartimentos, com anéis, pulseiras, brincos, pregadeiras e colares de esmeraldas. Pegou nas suas peças preferidas, as pérolas, e acariciou-as. Todavia, estava tão ensimesmada que, quando quis experimentar uns brincos, deixou cair o guarda-jóias sem querer.

- Oh, não...

Por sorte, não se estragou, mas a pancada serviu para que se abrisse um compartimento em que nunca reparara antes. Era um compartimento secreto. No seu interior, havia um maço de cartas. Pelo seu aspecto e pelo seu cheiro; soube que eram cartas de amor e sentou-se a lê-las. Estava muito nervosa e os seus olhos encheram-se de lágrimas à medida que avançava.

Leu-as por ordem cronológica e, graças a isso, pôde saber que a sua mãe e Hugo tinham decidido pedir a sua custódia. Agora, já sabia que o casamento de Natalie fora um inferno e que, afinal, tentara escapar com o homem que amava.

Profeticamente, Hugo escrevera:

Mantém-te em silêncio, meu amor, até que Camille e tù estejam comigo. Não lhe digas nada sobre a tua gravidez. Isso poderia deixá-lo louco.

Pelos vistos, Nick sempre tivera razão. Camille compreendeu-o então e levantou-se com intenção de lhe mostrar as cartas.

Acabava de sair do quarto e já avançava pelas escadas quando se encontrou com alguém na escuridão. - Nick, assustaste-me!

- Esperavas que fosse outra pessoa?

- Não, bom... De facto ia procurar-te.

Nick aproximou-se dela e beijou-a no pescoço.

- Pára, Nick, tenho algo para te mostrar...

- Vem para a cama comigo. Quero fazer amor contigo - disse ele, sem lhe fazer caso. - Casa-te comigo,

por favor.

Camille ficou assombrada.

- Nick!

Os olhos da mulher encheram-se de lágrimas.

- O que se passa? Disse algo inapropriado?

- Pelo contrário. Emocionei-me... Pediste-me mesmo que me casasse contigo ou imaginei coisas?

- Pedi, amor.

- Quer dizer que já não estou sozinha? - perguntou, ainda entre lágrimas.

- Claro que não, Camille.

- Pelos vistos, é verdade que o destino se empenhou em unir-nos.

- Sim, não há dúvida.

Camille pôs-se em bicos de pés para beijá-lo na boca.

 

- Deve ser verdade, porque procurei-te precisamente por outro motivo. Encontrei algumas cartas de Hugo dirigidas à minha mãe. Estavam escondidas no seu guarda-jóias e agora sinto-me muito estranha... Acho que não poderemos continuar a viver, enquanto não ajustarmos contas com o passado.

Nick abraçou-a.

- Conta-me o que dizia Hugo.

- Não, prefiro que leiamos as cartas juntos. Sei que, quando as leres, te sentirás como eu.

- Está bem, mas isso não tem nada a ver com o que sinto por ti. Amo-te com todo o meu coração, Camille...

- E eu também te amo.

- No entanto, gostaria de te propor que te cases comigo com uma jóia digna de ti, talvez com uma esmeralda colombiana, a condizer com os teus olhos, rodeada de diamantes.

- Fazes com que me sinta como se estivesse num sonho.

- Pois não estás num sonho. Isto é muito real. Promete-me que estarás sempre comigo - disse, com intensidade.

- Sempre, sempre!

Estavam prestes a beijar-se quando ouviram um guincho estranho. Os dois levantaram o olhar ao mesmo tempo e viram Clare Tennant na balaustrada da galeria superior. A luz da lua iluminava o seu rosto e dava-lhe um certo aspecto espectral.

- Lamento ter-vos assustado - disse a mulher. – Não conseguia dormir e saí para beber um brandy e relaxar um pouco.

- Irei buscar-te esse copo, Clare - ofereceu-se Nick.

- Não, por favor, não te incomodes. Já estou melhor.

Vejo-vos de manhã...

Assim que Clare saiu, ele disse:

- Esta mulher não pára de se intrometer nas nossas vidas.

- Por favor, Nick, livra-te dela. Acho sinceramente que não está boa da cabeça.

- Sim, eu também me dei conta. Mas, com um pouco de sorte, Jack sentir-se-á melhor amanhã e poderá viajar.

- Não estranharia que Clare tivesse organizado tudo para provocar esta situação. O que há no frasco azul com comprimidos que anda sempre com Jack?

- É um simples antiácido, Camille. Comprovei-o.

- Talvez seja um simples antiácido, mas talvez lhe esteja a deitar algo na água...

- O que insinuas, Camille?

- É uma mulher muito estranha, Nick. E tenho a certeza de que continua apaixonada por ti.

- Esquece-o. De certeza que partirão amanhã.

o que há nessas cartas? Estou desejoso de as ler...

Camille tirou-as e deu-lhas.

- Vem, vamos lê-las juntos.

Desceram para a sala e sentaram-se num sofá.

acomodou-se ao seu lado, apertada contra ele, e lêram-nas juntos até não restar nenhuma.

- Agora está tudo mais claro - disse ele. - E agora que sabemos a verdade, poderemos continuar com as nossas vidas.

Depois, Nick levantou-se, pegou nela e levou-a para a sua cama.

Camille decidiu sair para passear com Melissa depois de tomarem o pequeno-almoço. Nick tinha uma reunião às nove e Jack e Clare não estavam em lado nenhum.

- E onde pensam ir? - perguntou Nick, enquanto as acompanhava ao jipe.

- Tinha pensado na lagoa Pink Lady...

- Poderíamos comer lá - disse a menina.

- Mas também poderíamos ir para outro lado. Porias alguma objecção se fôssemos a Wirra Wirra e fizéssemos um pouco de montanhismo?

- Não, de modo algum. Já conheces o lugar. Mas sobe pela encosta Sul, que é mais fácil, e não largues Melissa em momento algum.

- Não te preocupes, papá- disse a menina. Porto-me bem.

- Linda menina...

Nick despediu-se da mulher e da sua filha, que se afastaram no veículo. Seguidamente, voltou para casa. Estava preocupado com Jack e com a possibilidade de Clare lhe estar a dar alguma substância perigosa. Conhecia-a desde há anos e sempre se dera bem com ela, todavia, indubitavelmente, havia algo frio e estranho no seu olhar.

De qualquer modo, não faria mal a Jack ver um médico.

A manhã foi bastante peculiar. Durante o percurso, não pararam de ver bandos de pássaros de todos os tipos, mas o mais interessante de tudo foi a pergunta que a pequena Lhe fez:

- Estás apaixonada pelo meu papá, Camille?

- Sim, estou. E ele por mim - respondeu ela, surpreendida. - Importas-te?

- Se me importo? Fico muito feliz! Quero que sejas mais que minha amiga. Quero que sejas da minha família. E, quando se casarem, talvez pudesse ter irmãos e irmãs...

- Gostarias disso? - perguntou, corada.

- Oh, sim, mais que tudo no mundo. Eu não gosto de estar sozinha.

Quando chegaram a Wirra Wirra, já era quase meio-dia. Fazia bastante calor, por isso, Camille perguntou:

- De certeza que queres subir?

- Claro. A vista é maravilhosa lá de cima. O papá trazia-me muitas vezes quando era mais pequena e a minha mãe gostava muito. Mas, sabes uma coisa? Ela

não me amava. Inventei a história de que me adorava. Camille acariciou-a.

- Não digas isso, tenho a certeza de que te amava.

- Não, não é verdade, mas já não importa. A mamã amava o meu pai, não a mim.

- Bom, mas o teu pai adora-te mesmo. Para ele, és a coisa mais importante do mundo. E para mim também.

- E sempre serei a menina mais importante da família, não é?

- É claro que sim.

Quando chegaram ao alto, as duas estavam esgotadas e ensopadas em suor. Contudo, já estavam a pensar que a caminhada valera a pena quando ouviram ruído e tiveram uma surpresa muito desagradável. Clare Tennant estava lá.

- Assustaste-nos - disse Melissa.

- Duvido. Sempre foste uma menina terrível. Não estranha que Carole te odiasse.

- Ficaste louca? - perguntou Camille, assombrada pela sua atitude. - Estás a falar com a filha de Nick.

- Sim, é verdade, mas julgo que estaria melhor se a internassem em algum lugar.

- Tu é que deverias ser internada.

- Talvez tenhas razão. A minha mãe era maníaca depressiva e o consumo de álcool só serviu para piorar a sua situação. Por isso ajudei tanto Carole... Reconheci os sintomas imediatamente.

- É uma história interessante, mas contas-nos noutro dia. Estávamos prestes a partir - disse Camille. - Nicholas está à nossa espera.

- Ah, Nicholas. E por que o chamas assim? Toda a gente Lhe chama Nick: Até Carole lhe chamava Nick.

- Camille pode chamá-lo como quiser - disse a menina. - Estás louca por nos dizeres coisas tão horríveis. O meu papá zangar-se-á muito.

- Louca? Queres ver-me realmente louca? Então, e para surpresa de Camille, Clare tirou um chicote e fê-lo estalar diante dos seus pés.

- O que estás a fazer? Vais assustar a menina!

- Sou muito boa com o chicote. Não sei se sabias, mas cresci numa quinta e estou acostumada a lidar com o gado - disse Clare.

- És uma bruxa! - exclamou a menina.

- Será melhor que te portes bem, pequena - ameaçou a mulher, com frieza. - Não conheces o significado do termo disciplina.

- Clare, pára já com isso. Nick sabe onde estamos e virá buscar-nos a qualquer momento.

Clare sorriu de orelha a orelha.

- Não é verdade. Tem uma reunião, comprovei-o. E, quando aparecer, já não vos encontrará... Não fiz tudo o que fiz em troca de nada.

- E o que fizeste? - perguntou Camille, para ganhar tempo. - Eras tu quem fazia aquelas chamadas telefónicas? Sim, suponho que sim. E também foste tu quem me fez seguir: Decerto que falaste com o filho de Hilda Gray.

- Certamente, eu é que me arrisquei nesta história.

Quero-te morta, Camille.

- Estás louca. Não levarás a tua avante.

- Achas?

- Deixa, pelo menos, que Melissa vá. É uma menina

inocente. Deixo-a no jipe e depois falaremos.

- Não, fiquem aqui - ordenou Clare.

- Camille, tenho medo... - disse a pequena.

- Calma, não deixarei que te magoe. O teu pai virá já...

- Já chega. Calem-se de uma vez.

- Não podes magoar uma menina, Clare. Peço-te, deixa-a em paz.

- Agora não penso parar - afirmou a mulher. – Além disso, não poderia deixá-la ir-se embora, mesmo que quisesse. Uma voz interior ordena-me que aja, uma voz que não consigo controlar.

- Mas há gente que pode ajudar-te...

- Ajudar-me? E achas que poderia viver com isso?

Não, preferiria morrer.

- Clare, está aqui uma criança. Será que não entendes? Ela não tem nada a ver com isto - tentou raciocinar.

- É estranho que a sua mãe não fizesse coisas más com ela, como as que a minha mãe fazia comigo.

Camille não soube o que dizer.

- Como vês, a minha vida foi verdadeiramente horrível, não como a tua, sua mimada - declarou. – Carole tinha-me como sua amiga da alma, e não é de estranhar.

Afinal, proporcionava-lhe tudo o que necessitava. Até lhe dei as chaves do carro naquela noite.

Camille ficou gelada. Aquilo provava que Clare tivera alguma coisa a ver com a morte de Carole.

- Sim, com efeito - continuou Clare. - Fi-lo por Nick, pelo único homem que amei e que pôde cuidar de mim. E ele agradeceu a minha ajuda.

- E ficar-te-á ainda mais agradecido se nos deixares ir embora, Clare.

- Pois, pois! Achas que vais enganar-me como a ele? Seduziste-o com o teu cabelo avermelhado e com os teus olhos. Dei-me logo conta e não sabes o quanto te odiei por isso. Foi como um cancro que me devorava por dentro, dia após dia, mas, de início, só queria assustar-te um pouco. Afinal, qualquer outra mulher teria feito as malas e ter-se-ia ido embora.

- Mas não podias fazê-lo sozinha, devias ter um cúmplice - comentou Camille, juntando as peças do quebra-cabeças.

- Só alguém capaz de fazer o que deve por dinheiro.

Devia ter imaginado, mas nunca pensei que ninguém me odiasse tanto. Eu nunca te fiz nada de mal, Clare. Mas com Melissa é ainda pior... é só uma menina. Se amas Nicholas tanto como dizes, deixarás que parta.

- Não, nada disso. Se as duas tivessem um acidente, Nick voltaria para mim outra vez.

- Não levarás a tua avante, Clare. E sabes disso. Clare riu-se. Parecia completamente fora de si.

- Mas poderia tentár.

Camille não sabia o que fazer, de modo que decidiu continuar a falar para ganhar mais tempo.

- Então, também estiveste a envenenar Jack?

- Não foi nada sério, só o suficiente para que tivesse umas quantas dores. Jack não é um mau tipo, e até tentou ajudar-me. Mas nunca me casaria com ele. Limitei-me a usá-lo e sempre estive um passo adiante de ti. Às vezes, as vozes ordenam-me isso. Outras vezes, não.

- Clare, um psicólogo poderia ajudar-te. Não arruínes a tua vida deste modo.

Nesse momento, Clare brandiu o chicote de novo e atingiu-a numa coxa. Camille gritou de dor.

- Agora, prepara-te para morrer. Espero por este momento há muito tempo.

Segundos depois, o vento deixou de soprar e Clare levantou o olhar, espantada.

- O que faz esta maldita águia aí acima?

- É Wirra Wirra! - exclamou a pequena. - Olha, está a observar-te do céu...

- Não pensarás que eu acredito nessas tolices, pois não? O que pensas, que vai atacar-me?

- Acredita no que quiseres, mas veio por ti - disse Melissa.

- Oh, é só uma águia. Estou mais acostumada a elas do que tu... Certamente tem um ninho por esta zona.

- Não. Wirra Wirra é o nosso anjo da guarda. Clare hesitou e Camille pensou que era o momento de agir. Então, murmurou à menina:

- Quando te disser para correr, corre e esconde-te. O teu pai virá buscar-nos... Corre!

Melissa saiu a correr a toda a velocidade, sabendo que a sua vida dependia disso.

- Volta aqui, maldita menina! - exclamou Clare. A mulher levantou o braço com intenção de estalar novamente o chicote. Porém, então aconteceu algo verdadeiramente assombroso: a águia precipitou-se sobre ela com um grito estranho, que foi quase humano.

- Vai-te embora daqui!

Clare empalideceu e começou a gritar. Tentava proteger-se do ataque da enorme águia, mas deu- se conta de que pretendia acabar com ela.

Recuou, aterrorizada, e não reparou que se dirigia para o abismo. Quando quis reagir, foi tarde demais. Escorregou e caiu para o vazio.

Camille correu então para a menina e abraçou-a. Ainda não conseguia acreditar no que acontecera, e tinha a certeza de que ninguém acreditaria se lhe contasse. Wirra Wirra tinha-as salvo. E, depois de concluir a sua tarefa, desaparecera.

Camille e Melissa permaneceram assim, abraçadas, até Nicholas chegar. Só um bom bocado depois, Nick lhe contou que uma enorme águia pousara na parte dianteira da casa e que ali ficara sem se mexer. Aquilo pareceu-lhe tão estranho que interrompeu a sua reunião e saiu para as procurar.

 

A investigação sobre o fim trágico de Clare Tennant, viúva de Arthur Tennant, filantropo e multimilionário, provou que a sua morte fora acidental. Quando a pequena nota necrológica apareceu nos jornais, ninguém estranhou. O lugar era bastante perigoso e o voo rasante da águia podia tê-la assustado. O animal certamente limitara-se a defender o seu ninho e ela tinha sentido pânico, caindo para o abismo.

Tudo tinha uma explicação lógica. Havia sempre uma explicação lógica.

Mais tarde, num lindo mês de Abril, a nata da sociedade reuniu-se para assistir ao casamento de Camille

Guilford, a herdeira australiana, e Nicholas Lombard, o homem de ferro.

Foi, segundo todos os jornalistas, o casamento do ano.

Uma fotografia magnífica dos noivos apareceu nas capas dos jornais de domingo. Camille e Nick apareciam sorridentes e obviamente felizes, enquanto ela se

inclinava para beijar a pequena Melissa.

Na legenda da fotografia, podia ler-se: Um mo mento perfeito".

                                                                                Margaret Way  

 

 

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