O Conselho das Trevas voltou a se reunir.
Andulvar Yaslana, demônio-morto e Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra, dobrou as asas negras e avaliou os outros membros do Conselho, sem gostar do que via. À exceção da Magistrada, que era obrigada a assistir, eram necessários apenas dois terços dos membros em cada sessão para que fossem ouvidas as petições ou julgadas as disputas entre os Sangue em Kaeleer que não houvessem sido resolvidas pelas Rainhas dos Territórios. Esta noite, todas as cadeiras estavam ocupadas, exceto aquela ao lado da de Andulvar.
Mas o ocupante da cadeira também estava ali, aguardando pacientemente a resposta do Conselho no círculo do peticionário. Era um homem moreno, de olhos dourados, com longos e densos cabelos negros, já grisalhos nas têmporas. Ao vê-lo apoiado na elegante bengala de ponta prateada, alguém poderia pensar tratar-se de um belo macho dos Sangue no final de seu apogeu. As longas unhas pintadas de preto e o anel com uma Joia Negra na mão direita afirmavam o contrário.
A Primeira Tribuna pigarreou baixinho.
— Príncipe Saetan Daemon SaDiablo, o senhor se apresenta neste Conselho para solicitar a tutela da menor Jaenelle Angelline. Mas, contrariando o costume numa disputa dos Sangue, não nos forneceu as informações necessárias para que contactássemos a família da menina, de modo que esta pudesse falar em sua própria defesa.
— Eles não querem a criança — foi a resposta serena. — Eu quero.
— Temos apenas a sua palavra a esse respeito, Senhor Supremo.
Tolas, pensou Andulvar, observando o movimento quase imperceptível do peito de Saetan.
A Primeira Tribuna prosseguiu.
— O aspecto mais inquietante desta petição é o fato de o senhor ser um Guardião, um morto-vivo, e ainda assim pretender que coloquemos o bem-estar de uma criança viva em suas mãos.
— Não é uma criança qualquer, Tribuna. É esta criança.
A Primeira Tribuna mudou de posição na cadeira, aparentando desconforto. Varreu com os olhos os assentos dispostos em degraus em ambos os lados do amplo aposento.
— Devido às... circunstâncias... incomuns, a decisão terá de ser unânime. Compreende?
— Compreendo, Tribuna. Compreendo muito bem.
A Primeira Tribuna voltou a pigarrear.
— Procederemos de imediato à votação relativa à petição de Saetan Daemon SaDiablo solicitando a tutela da menor Jaenelle Angelline. Quem vota contra?
Algumas mãos se levantaram, e Andulvar estremeceu diante do olhar estranho e vítreo nos olhos de Saetan.
Após a contagem dos votos, ninguém falou, ninguém se moveu.
— Repitam a votação — disse Saetan, com uma afabilidade exagerada.
Não obtendo resposta da Primeira Tribuna, a Segunda Tribuna tocou-lhe o braço. Em segundos, nada restava na cadeira da Primeira Tribuna a não ser um montículo de cinzas e uma toga de seda preta.
Mãe Noite, pensou Andulvar ao ver a desintegração de tribuna após tribuna que havia se oposto. Mãe Noite.
— Repitam a votação — proferiu Saetan, exageradamente delicado.
Dessa vez foi unânime.
A Segunda Tribuna esfregou o peito com os dedos.
— Príncipe Saetan Daemon SaDiablo, o Conselho aqui reunido lhe outorga todos os direitos paternais...
— Parentais. Todos os direitos parentais.
— ...todos os direitos parentais relativos à menor Jaenelle Angelline, a partir deste momento e até que ela alcance a maioridade ao completar vinte anos.
Assim que Saetan fez uma reverência à Magistrada e iniciou a longa caminhada pela sala, Andulvar se levantou e abriu as enormes portas duplas ao fundo da câmara do Conselho. Suspirou de alívio quando Saetan, apoiando-se na bengala de ponta prateada, passou por ele devagar.
Aquilo não tinha acabado por ali, pensou Andulvar ao fechar as portas e seguir Saetan. Da próxima vez, o Conselho seria mais sutil na oposição ao Senhor Supremo, mas haveria uma próxima vez.
Quando por fim saíram para o ar fresco da noite, Andulvar voltou-se para o amigo de longa data.
— Bem, ela agora é sua.
Saetan levantou o rosto para o céu noturno e fechou os olhos dourados.
— Sim, é minha.
Cercado por guardas, o mestiço Lucivar Yaslana, Príncipe Eyrieno dos Senhores da Guerra, dirigiu-se ao pátio, certo de que ouviria a ordem para a sua execução. Não havia qualquer outro motivo para que um escravo das minas de sal fosse trazido àquele lugar, e Zuultah, a Rainha de Pruul, tinha bons motivos para querê-lo morto. Prythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, desejava mantê-lo vivo, na esperança de que ainda conseguisse transformá-lo num reprodutor. Mas não era Prythian quem estava no pátio ao lado de Zuultah.
Era Dorothea SaDiablo, a Sacerdotisa Suprema de Hayll.
Lucivar abriu as asas negras e membranosas em toda a sua envergadura, aproveitando a brisa do deserto para secá-las.
Lady Zuultah olhou de relance para o Mestre da Guarda. Logo em seguida, o chicote deste assobiou pelo ar, penetrando profundamente nas costas de Lucivar.
Lucivar silvou por entre os dentes cerrados e fechou as asas.
— Qualquer outro ato de provocação vai lhe custar cinquenta chicotadas — disse Zuultah com rispidez e, em seguida, virou-se para falar com Dorothea SaDiablo em voz baixa.
O que estariam tramando?, perguntou-se Lucivar. O que teria feito Dorothea deixar seu covil em Hayll? E quem seria o irritado Príncipe de Joia Verde afastado das mulheres, segurando um tecido dobrado?
Enviando cautelosamente uma sonda psíquica, Lucivar detectou todos os odores emocionais. Em Zuultah havia entusiasmo e a maldade de hábito. De Dorothea emanava ansiedade e medo. Sob a raiva do Príncipe desconhecido havia sofrimento e culpa.
O medo de Dorothea era o mais interessante, uma vez que significava que Daemon Sadi ainda não tinha sido recapturado.
Um sorriso cruel e satisfeito torceu os lábios de Lucivar.
Reparando no sorriso, o Príncipe de Joia Verde tornou-se agressivo.
— Estamos perdendo tempo — disse bruscamente, dando um passo na direção de Lucivar.
Dorothea voltou-se para eles.
— Príncipe Alexander, estes assuntos têm de ser tr...
Philip Alexander desdobrou o pedaço de tecido.
Lucivar olhou com assombro para o lençol manchado. Tanto sangue. Sangue demais. O sangue era o rio que corria — e o fio psíquico. Se enviasse uma sonda psíquica e tocasse aquela mancha...
Algo em seu íntimo se aquietou e tornou-se frágil.
Lucivar forçou-se a retribuir o olhar fixo e hostil de Philip Alexander.
— Há uma semana, Daemon Sadi raptou minha sobrinha de doze anos e levou-a para o Altar de Cassandra, onde a violou e a esquartejou. — Philip moveu os pulsos, fazendo com que o lençol balançasse.
Lucivar engoliu em seco, tentando conter a náusea. Balançou a cabeça lentamente.
— Isso é impossível — disse, mais para si mesmo do que para Philip. — Ele não seria capaz... Nunca foi capaz de fazer uma coisa dessas.
— Talvez antes não houvesse sangue suficiente — retrucou Philip. — Este sangue é de Jaenelle e Sadi foi reconhecido pelos Senhores da Guerra que tentaram socorrê-la.
Lucivar virou-se com relutância para Dorothea.
— Tem certeza?
— Me disseram, infelizmente, tarde demais, que Sadi desenvolveu um interesse anormal pela criança. — Dorothea deu de ombros ligeiramente, com um gesto elegante. — Talvez tenha ficado ofendido quando ela tentou se esquivar. Você sabe tão bem quanto eu do que é capaz quando está enfurecido.
— Encontraram o corpo?
Dorothea hesitou.
— Não. Isto foi tudo que os Senhores da Guerra encontraram — apontou para o lençol. — Mas não precisa acreditar em mim. Vejamos se tem estômago para aguentar o que aquele sangue encerra.
Lucivar respirou fundo. A vagabunda estava mentindo. Sem dúvida estava mentindo. Porque, doces Trevas, se não estivesse...
Haviam oferecido a Daemon sua liberdade caso assassinasse Jaenelle. Ele recusara — ou pelo menos foi o que disse. Mas e se fosse mentira?
Logo depois de abrir a mente e tocar no lençol manchado de sangue, Lucivar caiu de joelhos e pôs para fora o parco café da manhã que havia tomado uma hora antes. Tremia, e, ao mesmo tempo, alguma coisa no seu íntimo se quebrava.
Maldito Sadi. Maldita seja sua alma nas entranhas do Inferno. Era uma criança! O que poderia ter feito para merecer tal coisa? Era a Feiticeira, o mito vivo. Era a Rainha a quem tinham sonhado servir. Era a sua gatinha assanhada. Maldito seja, Sadi!
Os guardas levantaram Lucivar.
— Onde está ele? — questionou Philip Alexander.
Lucivar fechou os olhos dourados para não ter de olhar para o lençol. Nunca se sentira tão abatido, tão exausto. Nem quando era um rapaz mestiço nos campos de caça eyrienos, nem nas intermináveis cortes onde, desde então, tinha servido ao longo dos séculos, nem mesmo aqui em Pruul, como um dos escravos de Zuultah.
— Onde ele está? — Philip voltou a perguntar.
Lucivar abriu os olhos.
— Em nome do Inferno, como é que eu vou saber?
— Quando os Senhores da Guerra perderam seu rasto, Sadi estava vindo para sudeste... em direção a Pruul. Sabe-se que...
— Ele não viria para cá. — Aquilo que se quebrara no seu íntimo começou a se inflamar. — Não se atreveria.
Dorothea SaDiablo dirigiu-se a Lucivar.
— Por que não? Vocês ajudaram um ao outro no passado. Não há qualquer razão...
— Existe uma razão — disse Lucivar ferozmente. — Se eu vir aquele desgraçado de novo vou lhe arrancar o coração!
Dorothea recuou, abalada. Zuultah observava-o com cautela.
Philip Alexander baixou os braços devagar.
— Foi declarado potencialmente perigoso. Sua cabeça está a prêmio. Quando for encontrado...
— Ele será punido — interrompeu Dorothea.
— Será executado! — respondeu Philip acaloradamente.
Seguiu-se um momento de silêncio pesado.
— Príncipe Alexander — ronronou Dorothea —, até os habitantes de Chaillot deveriam saber que, entre os Sangue, não existe qualquer lei que proíba o homicídio. Se você não teve bom-senso suficiente para evitar que uma criança emocionalmente perturbada brincasse com um Príncipe dos Senhores da Guerra da índole de Sadi... — Deu de ombros delicadamente. — Bem, talvez a criança tenha tido o que merecia.
Philip empalideceu.
— Ela era uma boa menina — disse, mas a voz estremeceu com uma insinuação de dúvida.
— Sim — ronronou Dorothea. — Uma boa menina. Tão boa que a família de tempos em tempos a mandava para longe, para ser... reeducada.
Criança emocionalmente perturbada. As palavras eram um fole que atiçava o fogo em Lucivar, transformando-o em raiva gélida. Criança emocionalmente perturbada. Fique longe de mim, Bastardo. É melhor ficar longe de mim, pois, se tiver oportunidade, corto você em pedacinhos.
Em certo momento, Zuultah, Dorothea e Philip retiraram-se a fim de prosseguir a discussão nos recessos mais frescos da casa de Zuultah. Lucivar não reparou. Quase nem se deu conta de estar sendo levado para as minas de sal, mal notou a picareta nas mãos, quase nem sentiu a dor quando o suor escorreu para a nova ferida de chicote nas costas.
Tudo o que via era o lençol manchado de sangue.
Lucivar bateu com a picareta.
Mentiroso.
Não via a parede nem o sal. Via o peito moreno e dourado de Daemon, via o coração batendo sob a pele.
Melífluo... educado na corte... mentiroso!
Andulvar sentou-se de lado num canto da grande mesa de madeira escura.
Saetan levantou os olhos da carta que estava escrevendo.
— Achei que ia voltar para o seu ninho na colina.
— Mudei de ideia. — O olhar de Andulvar vagueou pelo escritório, detendo-se, por fim, no retrato de Cassandra, a Rainha de Joia Negra que caminhara nos Reinos havia mais de 50 mil anos. Cinco anos antes, Saetan tinha descoberto que Cassandra forjara a derradeira morte e que havia se tornado uma Guardiã a fim de aguardar a Feiticeira seguinte.
E vejam só o que aconteceu à Feiticeira seguinte, pensou Andulvar desanimado. Jaenelle Angelline era uma criança poderosa e extraordinária, mas, ainda assim, tão vulnerável como qualquer outra criança. Todo aquele poder não tinha impedido que fosse esmagada por segredos de família sobre os quais Andulvar e Saetan podiam apenas conjecturar, assim como pelas maquinações maldosas de Dorothea e de Hekatah com o objetivo de eliminar a única rival que poderia pôr fim ao jugo que exerciam no Reino de Terreille. Ele não tinha dúvida de que eram elas que estavam por trás da brutalidade que havia levado o espírito de Jaenelle a abandonar o corpo.
Tarde demais para evitar a violação, uma amiga conseguiu resgatar Jaenelle e levou-a para o Altar de Cassandra. Foi então que Daemon Sadi, auxiliado por Saetan, conseguiu fazer com que a menina saísse do abismo psíquico por tempo suficiente para curar os próprios ferimentos físicos. Contudo, quando os Senhores da Guerra de Chaillot chegaram para “resgatá-la”, ela entrou em pânico e fugiu novamente para o abismo.
Seu corpo se recuperava lentamente, mas só as Trevas sabiam onde estava o seu espírito — ou se algum dia regressaria.
Afastando tais pensamentos, Andulvar olhou para Saetan, respirou fundo e expirou devagar.
— É a sua carta de demissão do Conselho das Trevas?
— Já devia ter feito isso há muito tempo.
— Você sempre insistiu que era bom ter alguns demônios-mortos a serviço do Conselho, porque eles possuíam experiência mas nenhum interesse pessoal nas decisões.
— Bem, o meu interesse nas decisões do Conselho é bastante pessoal agora, não é? — Depois de assinar o nome com o floreado habitual, Saetan pôs a carta num envelope e selou-o com cera preta. — Pode entregar a carta para mim?
Andulvar recebeu o envelope com relutância.
— E se o Conselho das Trevas decidir procurar a família dela?
Saetan recostou-se na cadeira.
— O Conselho das Trevas não se reúne em Terreille desde a última guerra entre os Reinos. Não existe qualquer razão para o Conselho de Kaeleer procurar fora dos limites do Reino das Sombras.
— Se verificarem os registros de Ebon Askavi, vão descobrir que não nasceu em Kaeleer.
— Como bibliotecário da Fortaleza, Geoffrey já concordou em não encontrar qualquer entrada de grande utilidade que possa levar a Chaillot. Além do mais, Jaenelle nunca foi registrada; o que não vai acontecer até que exista uma razão para isso.
— Você vai ficar na Fortaleza?
— Sim.
— Até quando?
Saetan hesitou.
— Até quando for preciso. — Ao ver que Andulvar não fazia menção de sair, perguntou: — Mais alguma coisa?
Andulvar fixou os olhos na elegante caligrafia masculina na parte da frente do envelope.
— Há um demônio lá em cima na recepção que solicitou uma audiência com você. Diz que é importante.
Saetan levantou-se, empurrando a cadeira para trás e pegou a bengala.
— Todos dizem isso quando têm coragem suficiente para vir aqui. Quem é ele?
— Nunca o vi antes — disse Andulvar. Em seguida, acrescentou com relutância:
— É novo no Reino das Trevas e é de Hayll.
Saetan contornou a mesa, mancando.
— O que quer comigo então? Há setecentos anos que não tenho nada a ver com Hayll.
— Ele não quis revelar a razão da visita. — Andulvar fez uma pausa. — Não gosto dele.
— É claro — retrucou Saetan com frieza. — É haylliano.
Andulvar balançou a cabeça.
— É mais do que isso. Parece estar apodrecendo.
Saetan ficou imóvel.
— Nesse caso, vamos lá falar com o nosso Irmão haylliano — disse, com uma docilidade maldosa.
Andulvar não conseguiu reprimir o arrepio que o percorreu da cabeça aos pés. Felizmente, Saetan já estava a caminho da porta e não reparou. Eram amigos havia milhares de anos, tinham servido juntos, rido juntos, sofrido juntos. Andulvar não queria ofendê-lo só porque, às vezes, até mesmo os amigos temiam o Senhor Supremo do Inferno.
Porém, quando Saetan abriu a porta e olhou para ele, Andulvar vislumbrou nos seus olhos o faiscar de raiva diante do arrepio. E o Senhor Supremo saiu do escritório ao encontro do tolo que o aguardava.
O Senhor da Guerra haylliano, demônio-morto havia pouco tempo, aguardava em pé no centro da sala de recepção, com as mãos atrás das costas. Estava todo vestido de preto, incluindo um lenço de seda preta enrolado no pescoço.
— Senhor Supremo — disse, com uma reverência respeitosa.
— Não conhece sequer as reverências mais básicas ao se aproximar de um Senhor da Guerra desconhecido? — perguntou Saetan com toda a calma.
— Senhor Supremo? — balbuciou o homem.
— Um homem deixa as mãos à mostra, a menos que esconda uma arma — explicou Andulvar ao entrar na sala. Abriu as asas negras, bloqueando a porta por completo.
Como um relâmpago, a fúria surgiu no rosto do Senhor da Guerra e logo desapareceu. Ele estendeu os braços à sua frente.
— As minhas mãos não têm grande utilidade.
Saetan olhou de relance para as mãos cobertas por luvas pretas. A direita não passava de uma garra distorcida. Na esquerda, faltava um dedo.
— Como se chama?
O Senhor da Guerra hesitou por um momento demasiado longo.
— Greer, Senhor Supremo.
Até mesmo o nome do homem conspurcava o ar de alguma forma. Não, não era apenas o homem, embora o fedor de carne em decomposição só fosse desaparecer dentro de algumas semanas. Havia algo mais. O olhar de Saetan foi atraído para o lenço de seda preta. Suas narinas dilataram-se ao sentir o odor do qual se recordava com demasiada clareza. Pois bem. Hekatah ainda apreciava aquele perfume.
— O que quer, Senhor Greer? — perguntou Saetan, já sabendo por que Hekatah enviaria alguém para vê-lo. Esforçou-se por ocultar a raiva gélida que ardia no seu interior.
Greer fitou o chão.
— Eu... gostaria de saber se tem notícias da jovem feiticeira.
A sala ficou tão agradavelmente gelada, tão encantadoramente sombria. Bastaria um único pensamento, um simples ataque com a mente, um leve toque da força da Joia Negra, e aquele Senhor da Guerra seria reduzido a pó.
— Eu governo o Inferno, Greer — afirmou Saetan com falsa delicadeza. — Por que deveria me preocupar com uma feiticeira haylliana, jovem ou não?
— Ela não era de Hayll. — Greer hesitou. — Pensei que fosse sua amiga.
Saetan ergueu uma sobrancelha.
— Minha amiga?
Greer umedeceu os lábios. As palavras saíram numa torrente.
— Fui destacado para a embaixada haylliana em Beldon Mor, a capital de Chaillot, e tive o privilégio de conhecer Jaenelle. Quando os problemas começaram, traí a confiança da Sacerdotisa Suprema de Hayll e ajudei Daemon Sadi a levar a menina para um local seguro. — A mão esquerda remexia no lenço em volta do pescoço, e por fim o retirou. — Esta foi a minha recompensa.
Canalha mentiroso, pensou Saetan. Se não tivesse seus próprios planos para aquela carcaça ambulante, teria rompido a mente de Greer e descoberto o papel que o homem realmente desempenhara.
— Conheci a menina — rosnou Saetan ao caminhar em direção à porta.
Greer deu um passo em frente.
— Conheceu? Está...
Saetan deu meia-volta.
— Ela caminha entre as cildru dyathe!
Greer fez uma reverência com a cabeça.
— Que as Trevas sejam misericordiosas.
— Saia. — Saetan pôs-se de lado, para evitar contato. Não queria ser maculado pelo homem.
Andulvar fechou as asas e acompanhou Greer até a porta do Paço. Retornou alguns minutos depois, parecendo preocupado. Saetan olhou-o fixamente, já sem se importar se seus olhos deixavam transparecer raiva e ódio.
Andulvar colocou-se numa posição eyriena de combate, com os pés afastados para se equilibrar e as asas ligeiramente abertas.
— Você sabe que essa declaração vai se espalhar pelo Inferno mais rápido do que o cheiro de sangue fresco.
Saetan agarrou a bengala com as duas mãos.
— Estou me lixando para isso, contanto que o canalha repasse a informação à vagabunda que o mandou aqui.
— Ele disse isso? Disse mesmo isso?
Afundado na única cadeira da sala, Greer acenou penosamente em sinal afirmativo.
Hekatah, a autoproclamada Sacerdotisa Suprema do Inferno, ziguezagueava pela sala, os longos cabelos negros esvoaçando quando se virava.
Era ainda melhor do que a destruição pura e simples da criança. Agora, com a mente destroçada e o corpo despedaçado e sem vida, a menina representaria uma faca invisível no peito de Saetan, sempre a se retorcer, um lembrete constante de que ele não era o único poder a enfrentar.
Hekatah parou de andar de um lado para outro, inclinou a cabeça para trás e levantou os braços em sinal de triunfo.
— Ela caminha entre as cildru dyathe!
Deixando-se cair no chão em um movimento gracioso, encostou-se num braço da cadeira de Greer e afagou suavemente sua face.
— E você, meu querido, foi o responsável por isso. Ela agora já não tem qualquer utilidade para ele.
— E também já não tem qualquer utilidade para você, Sacerdotisa.
Hekatah fez um beicinho provocante, com os olhos dourados cintilando de malícia.
— Já não tem utilidade para os meus planos originais, mas será uma arma magnífica contra aquele filho da puta.
Ao reparar na expressão vazia de Greer, Hekatah levantou-se, sacudindo a poeira do vestido ao mesmo tempo que emitia um silvo de irritação.
— O seu corpo está morto, mas a sua mente, não. Tente pensar, meu querido Greer. Quem mais estava interessado na criança?
Greer levantou-se e, lentamente, sorriu.
— Daemon Sadi.
— Daemon Sadi — concordou Hekatah com arrogância. — Acha que ele ficará feliz ao descobrir que a sua queridinha está tão completamente morta? E, com uma ajudinha, quem acha que ele culpará pela sua partida do reino dos vivos? Pense só como será divertido instigar o filho contra o pai. E se destruírem um ao outro... — Hekatah abriu bem os braços —, o Inferno voltará a se fragmentar e aqueles que sempre recearam desafiá-lo vão se reunir à minha volta. Com a ajuda da força dos demônios-mortos, Terreille finalmente vai se ajoelhar perante mim como a Sacerdotisa Suprema, como poderia ter acontecido há tantos e tantos séculos atrás se aquele canalha não tivesse frustrado meus planos.
Olhou em volta da pequena sala, quase vazia, com expressão de nojo.
— Assim que ele desaparecer, viverei outra vez no esplendor que me é de direito. E você, meu leal querido, servirá a meu lado. Mas venha — chamou, guiando-o para outro pequeno recinto. — Compreendo que a morte do corpo seja um choque...
Greer olhou para o menino e a menina que se encolhiam de medo num monte de feno.
— Somos demônios, Greer — afirmou Hekatah, afagando-lhe o braço. — Precisamos de sangue fresco e quente. É assim que fortalecemos a carne morta. E, embora outros prazeres carnais não sejam mais possíveis, existem compensações.
Hekatak curvou-se sobre ele, os lábios próximos à orelha de Greer.
— Crianças plebeias. As dos Sangue são melhores, porém mais difíceis de aparecer. Mas jantar uma criança plebeia também tem as suas vantagens.
Greer respirava rapidamente, como se estivesse sem ar.
— Uma linda menininha, não acha, Greer? Ao primeiro toque psíquico a mente dela será reduzida a cinzas, mas as emoções primitivas permanecerão... por tempo suficiente... e o medo é uma refeição deliciosa.
Você é meu instrumento.
Daemon Sadi revirava-se na pequena cama que tinha sido instalada num dos depósitos no subterrâneo da casa da Lua Vermelha de Deje.
... você é meu instrumento... viajando nos Ventos para o Altar de Cassandra... Surreal já ali, chorando... Cassandra, zangada... tanto sangue... as mãos dele cobertas com o sangue de Jaenelle... descendo até o abismo... caindo, gritando... uma criança que não é criança... uma cama estreita com correias para prender mãos e pés... uma cama suntuosa com lençóis de seda... a pedra gelada do Altar das Trevas... velas negras...velas perfumadas... os gritos de uma criança... a língua dele a lamber um pequeno chifre espiralado... o seu corpo imobilizando o dela contra a pedra gelada enquanto ela lutava e gritava... implorando a ela que o perdoasse... mas o que ele tinha feito?... longos cabelos louros... os dedos percorrendo uma cauda de corça... uma cama estreita com lençóis de seda... uma cama elegante com correias... perdoe-me, perdoe-me... o seu corpo sobre o dela, prendendo-a... o que ele tinha feito?... a cólera de Cassandra caindo sobre ele... estaria a salvo?... estaria bem?... uma cama de pedra elegante... lençóis de seda com correias... os gritos de uma criança... tanto sangue... você é o meu instrumento... perdoe-me, perdoe-me... O QUE ELE TINHA FEITO?
Surreal encostou-se na parede, ouvindo o choro abafado de Daemon. Quem diria que o Sádico era tão vulnerável? Tanto ela como Deje tinham conhecimentos básicos de Arte medicinal suficientes para curar seu corpo, mas nenhuma das duas sabia como reparar as feridas mentais e emocionais. Em vez de se recuperar, ele estava ficando cada vez mais fraco, mais vulnerável.
Nos primeiros dias depois de ser trazido para este lugar, Daemon perguntava constantemente o que tinha acontecido. Mas Surreal podia apenas lhe dizer aquilo que sabia.
Com a ajuda da garota demônia-morta chamada Rose, ela entrara em Briarwood, matara o Senhor da Guerra que havia violado Jaenelle e, depois, levara Jaenelle para o Altar de Cassandra. Daemon juntou-se a elas no Santuário. Cassandra também estava presente. Daemon ordenou que se retirassem da sala do Altar para que tentasse trazer o Eu de Jaenelle de volta ao corpo, tarefa que exigia privacidade. Surreal usou esse tempo para preparar armadilhas dirigidas à “equipe de salvamento” de Briarwood. À chegada dos machos, tentou detê-los enquanto pôde. Quando se retirou para a sala do Altar, Cassandra e Jaenelle já tinham desaparecido e Daemon mal conseguia ficar de pé. Tinham então viajado pelos Ventos de volta a Beldon Mor, onde passaram as últimas três semanas escondidos na casa da Lua Vermelha de Deje.
Era tudo o que podia lhe dizer. Não era o que Daemon precisava ouvir. Não podia lhe dizer que salvara Jaenelle. Não podia lhe dizer que a menina estava sã e salva. E parecia que, quanto mais ele tentava se lembrar, mais fragmentadas ficavam as suas memórias. Entretanto, ainda possuía a força das Joias Negras, ainda possuía a capacidade para libertar todo aquele poder negro. Se perdesse aquela débil ligação com o equilíbrio mental...
Surreal virou-se ao ouvir o ruído de passadas furtivas nas escadas no final do corredor escuro. Os soluços por trás da porta fechada cessaram.
Com movimentos rápidos e silenciosos, Surreal encurralou a mulher no final das escadas.
— O que você quer, Deje?
Os pratos na bandeja que a mulher carregava tilintaram. Deje estava tremendo.
— Eu... pensei... — Ergueu a bandeja como explicação. — Sanduíches. Chá. Eu...
Surreal franziu as sobrancelhas. Por que Deje olhava fixamente para seus seios? Não era o olhar de uma matrona eficiente avaliando uma das moças. E por que estaria tremendo daquele jeito?
Surreal olhou para baixo. Viu que segurava o seu punhal favorito, com a ponta pousada na Joia Cinza que pendia da corrente de ouro por cima dos seus seios. Não tinha percebido ter invocado o punhal ou a Cinza. Ficara aborrecida pela intromissão, mas...
Surreal fez desaparecer o punhal, ajeitou a blusa de maneira a esconder a Joia e retirou a bandeja das mãos de Deje.
— Desculpe. Estou um pouco nervosa.
— A Cinza — murmurou Deje. — Você usa a Cinza.
Surreal ficou tensa.
— Mas não quando estou trabalhando numa casa da Lua Vermelha.
Deje pareceu não ouvir.
— Não sabia que era assim tão forte.
Surreal passou o peso da bandeja para a mão esquerda e deixou cair a mão direita, descontraidamente, envolvendo o punhal reconfortante. Se tivesse de ser feito, seria de forma rápida e perfeita. Deje merecia.
Observou o rosto de Deje enquanto ela reorganizava mentalmente os fragmentos de informação que possuía sobre uma prostituta chamada Surreal, que era, ao mesmo tempo, uma assassina. Por fim, quando Deje olhou para ela, seus olhos evidenciavam respeito e satisfação sombria.
Depois, Deje olhou para a bandeja e franziu a sobrancelha.
— É melhor usar um feitiço de aquecimento nesse chá ou não estará bom para beber.
— Eu cuido disso — disse Surreal.
Deje começou a subir as escadas.
— Deje — disse Surreal baixinho. — Eu realmente pago as minhas dívidas.
Deje sorriu perspicazmente e acenou com a cabeça, indicando a bandeja.
— Tente fazer com que coma. Ele precisa recuperar as forças.
Surreal aguardou até ouvir a porta se fechar no alto da escada antes de voltar ao depósito que abrigava, talvez agora mais do que nunca, o Príncipe dos Senhores da Guerra mais perigoso do Reino.
Mais tarde nessa noite, Surreal abriu a porta do depósito sem bater, detendo-se de imediato.
— Em nome do Inferno, o que você está fazendo?
Daemon ergueu os olhos por um breve instante antes de amarrar o outro sapato.
— Estou me vestindo. — Sua voz profunda e culta estava mais rouca do que o habitual.
— Você enlouqueceu? — Surreal mordeu o lábio, arrependendo-se por ter dito aquela palavra.
— É provável. — Daemon abotoou os botões de rubi no punho da camisa de seda branca. — Preciso descobrir o que aconteceu, Surreal. Preciso encontrá-la.
Exasperada, Surreal passou os dedos pelo cabelo.
— Você não pode sair no meio da noite. Além disso, lá fora está um frio de rachar.
— No meio da noite é a melhor hora, não acha? — argumentou Daemon calmo demais, enfiando o casaco preto.
— Não, não acho. Aguarde pelo menos até o amanhecer.
— Sou haylliano. Estamos em Chaillot. Chamaria um pouco a atenção à luz do dia. — Daemon olhou ao redor do pequeno quarto vazio, deu de ombros com indiferença e retirou um pente do bolso do casaco, passando-o pelo espesso cabelo negro. Quando terminou, enfiou as mãos elegantes e de unhas compridas nos bolsos das calças e ergueu a sobrancelha como se perguntasse: que tal?
Surreal examinou o corpo alto, elegante e musculoso vestido em um terno preto perfeitamente cortado. A pele morena e dourada de Sadi estava pálida de cansaço, o rosto tinha um aspecto perturbado e a pele ao redor dos olhos dourados estava inchada. Mesmo assim, era mais bonito do que deveria ser permitido a um homem.
— Você parece péssimo — disse rispidamente.
Daemon estremeceu, como se a raiva de Surreal o tivesse atingido. Tentou, em seguida, esboçar um sorriso.
— Não pense que vou mudar de ideia por causa de elogios, Surreal.
Surreal cerrou os punhos. A única coisa que tinha para arremessar era a bandeja com o chá e os sanduíches. Ao ver a xícara limpa e a comida intacta, perdeu a calma.
— Seu idiota, você não comeu nada!
— Abaixe a voz, a menos que queira que todo mundo fique sabendo que estou aqui.
Surreal pôs-se a andar de um lado para o outro, proferindo entre dentes todos os palavrões que conhecia.
— Não chore, Surreal.
Envolveu-a com os braços, e sob a sua face sentiu a seda fresca.
— Não estou chorando — retrucou ela, engolindo um soluço.
Sentiu, mais do que ouviu, o riso abafado dele.
— O erro foi meu. — Os lábios de Daemon roçaram o cabelo de Surreal antes de ele se afastar dela.
Surreal fungou audivelmente, enxugou os olhos na manga e afastou o cabelo do rosto.
— Você ainda não está forte o suficiente, Daemon.
— Só ficarei melhor quando a encontrar — disse ele baixinho.
— Sabe abrir os Portões? — perguntou. Referia-se aos treze lugares de poder que ligavam os Reinos de Terreille, de Kaeleer e do Inferno.
— Não. Mas encontrarei alguém que saiba. — Daemon respirou fundo. — Ouça, Surreal, e ouça com atenção. Em todo o Reino de Terreille são poucas as pessoas que de alguma forma podem ligar você a mim. Esforcei-me para que fosse assim. Portanto, a menos que suba no telhado e anuncie aos gritos, ninguém em Beldon Mor terá razões para desconfiar de você. Seja discreta. Controle esse mau humor. Você fez mais do que o suficiente. Não se envolva mais, pois não estarei por perto para ajudá-la.
Surreal engoliu com dificuldade.
— Daemon... você foi declarado potencialmente perigoso. Foi oferecida uma recompensa por sua cabeça.
— Eu não esperaria nada diferente depois de ter partido o Anel de Obediência.
Surreal hesitou.
— Tem certeza de que Cassandra levou Jaenelle para um dos outros Reinos?
— Sim, tenho certeza — disse, com ternura e tristeza.
— Então você vai encontrar uma Sacerdotisa que saiba abrir os Portões e ir atrás delas.
— Sim. Mas antes preciso resolver algo.
— Não é o melhor momento para fazer visitas sociais — afirmou Surreal com ironia.
— Não é bem uma visita social. Dorothea não poderá usar você contra mim porque não sabe da sua existência. Mas sabe dele e já o usou antes. Não lhe darei essa oportunidade. De resto, apesar de toda a sua arrogância e temperamento, ele é um excelente Príncipe dos Senhores da Guerra.
Cansada, Surreal encostou-se na parede.
— O que você vai fazer?
Daemon hesitou.
— Vou tirar Lucivar de Pruul.
Saetan surgiu na pequena teia de desembarque entalhada no chão de pedra de um dos vários pátios externos da Fortaleza. Ao desembarcar, olhou para cima.
A menos que se soubesse o que procurar, via-se apenas a montanha negra de Ebon Askavi, só se sentia o peso de toda aquela pedra escura. Mas Ebon Askavi era também a Fortaleza, o Santuário da Feiticeira, o arquivo da extensa história dos Sangue. Um local fortemente guardado. O lugar ideal para um segredo.
Maldita Hekatah, pensava com amargura ao atravessar o pátio devagar, com a ajuda da bengala. Maldita seja, Hekatah e suas intrigas pelo poder. Puta gananciosa e maligna. No passado evitara intervir, por achar que estava em dívida com ela, que havia dado à luz seus dois primeiros filhos. Mas essa dívida já estava paga. Mais do que paga. Agora, sacrificaria a honra, o respeito por si próprio e o que mais fosse necessário se esse fosse o preço a pagar para detê-la.
— Saetan.
Geoffrey, o historiador e bibliotecário da Fortaleza, saiu da sombra da entrada. Como sempre, suas roupas eram impecáveis, uma túnica e calças pretas elegantes, sem acessórios à exceção do anel com a Joia Vermelha. Como sempre, o cabelo estava cuidadosamente penteado para trás, chamando a atenção para o bico de viúva. No entanto, seus olhos negros pareciam pequenos pedaços de carvão em vez de pedras bem polidas.
Enquanto Saetan caminhava na sua direção, as sobrancelhas negras de Geoffrey foram ficando mais arqueadas.
— Venha até a biblioteca tomar um copo de yarbarah comigo — disse Geoffrey.
Saetan balançou a cabeça.
— Talvez mais tarde.
As sobrancelhas de Geoffrey franziram-se ainda mais, repuxando também o bico de viúva.
— Não há lugar para a ira no quarto de um doente. Muito menos agora. Muito menos a sua.
Os dois Guardiões se estudaram. Saetan desviou o olhar primeiro.
Uma vez instalados em cadeiras confortáveis e após Geoffrey ter servido a ambos um copo de vinho de sangue aquecido, Saetan obrigou-se a olhar para a grande mesa de madeira escura que dominava o aposento. Costumava estar repleta de livros de história, de Arte e de consulta que Geoffrey ia retirando das pilhas — livros nos quais os dois homens haviam procurado referências para compreender as observações fortuitas, porém invulgares, de Jaenelle e suas habilidades por vezes bizarras, embora impressionantes. No momento, estava vazia. E o vazio feria.
— Não tem nenhuma esperança, Geoffrey? — inquiriu Saetan baixinho.
— O quê? — Geoffrey olhou de relance para a mesa, para logo desviar o olhar. — Precisava... me ocupar. Quando me sentava ali, cada livro trazia uma lembrança, e...
— Compreendo. — Saetan esvaziou o copo e estendeu a mão para alcançar a bengala.
Geoffrey o acompanhou até a porta. Quando Saetan saiu para o corredor, sentiu um ligeiro e hesitante toque, que o fez se virar para trás.
— Saetan... ainda tem esperança?
Saetan considerou a pergunta por um longo momento antes de dar a única resposta que podia.
— Preciso ter.
Cassandra fechou o livro, moveu os ombros com aborrecimento e esfregou o rosto com as mãos.
— Não houve qualquer mudança. Não voltou do abismo, ou de onde quer que tenha caído. E quanto mais tempo permanecer fora do alcance de outras mentes, menores serão as chances de a trazermos de volta.
Saetan examinou a mulher de cabelo ruivo envelhecido e olhos cor de esmeralda cansados. Muito, muito tempo antes, quando Cassandra era Feiticeira, a Rainha de Joia Negra, Saetan fora seu consorte e a amara. E ela, à sua maneira, gostara dele — até Saetan realizar a Oferenda às Trevas, recebendo Joias Negras. Depois, fora uma espécie de troca de aptidões — as dele na cama pelas dela na Arte de Viúva Negra — até Cassandra forjar sua própria morte, tornando-se Guardiã. Tinha representado a cena do leito da morte de forma tão convincente e a fé de Saetan em Cassandra como Rainha era tão sólida que nunca lhe ocorreu que ela tinha feito isso para findar o reinado como Feiticeira — e para fugir dele.
Mas, estavam juntos outra vez.
Contudo, ao envolvê-la com os braços, oferecendo-lhe conforto, sentiu o retraimento interior, o estremecimento reprimido de medo. Cassandra nunca tinha se esquecido de que Saetan caminhava por caminhos sombrios que nem mesmo ela se atreveria a tomar, nunca tinha se esquecido de que o Reino das Trevas o apelidara de Senhor Supremo quando ele ainda estava completamente vivo.
Saetan beijou a testa de Cassandra e afastou-se.
— Tente descansar — disse, carinhosamente. — Eu fico com ela.
Cassandra olhou para ele, de relance para a cama, e balançou a cabeça.
— Nem mesmo você conseguirá alcançá-la, Saetan.
Saetan olhou para a frágil e pálida menina que jazia num mar de lençóis de seda preta.
— Eu sei.
Quando Cassandra fechou a porta ao sair, Saetan perguntou a si mesmo se, apesar do grande preço a pagar, ela tiraria alguma satisfação desse fato.
Balançou a cabeça para clarear as ideias, puxou a cadeira que estava mais perto da cama e suspirou. Queria que o quarto não fosse tão impessoal. Queria que existissem quadros para quebrar as extensas paredes de pedra negra polida. Queria ver as tralhas de uma menininha espalhadas pela mobília de madeira escura. Eram tantos os seus desejos...
Contudo, estes aposentos tinham sido terminados pouco tempo antes do pesadelo no Altar de Cassandra. Jaenelle não teve oportunidade de lhes inculcar o seu odor psíquico, tornando-os seus. Nem mesmo os pequenos tesouros aqui presentes tinham tido o convívio necessário, o manuseamento fundamental para que se tornassem verdadeiramente seus. Não havia uma âncora que ela pudesse reconhecer e à qual se pudesse agarrar ao tentar efetuar a subida para fora do abismo que fazia parte das Trevas.
À exceção de Saetan.
Apoiando um braço na cama, Saetan inclinou-se e afastou com delicadeza o cabelo louro e liso do rosto magro demais. Seu corpo estava sarando, embora lentamente, pois não havia ninguém no seu interior para auxiliar a convalescença. Jaenelle, a sua jovem Rainha, a filha da sua alma, estava perdida nas Trevas — ou na paisagem interior do Reino Distorcido. Fora do seu alcance.
Mas não, assim esperava, fora do alcance do seu amor.
Com a mão pousada na cabeça de Jaenelle, Saetan fechou os olhos e fez a descida interior até o nível das Joias Negras. Devagar, com cuidado, prosseguiu até não conseguir descer mais. Foi então que soltou as palavras para o abismo, tal como fizera nas últimas três semanas.
*Você está segura, criança-feiticeira. Volte. Você está segura.*
Uma mão acariciou seu braço, apertando de leve o ombro.
Lucivar se enfureceu ao sentir que estavam perturbando o breve período de sono que seu corpo dorido lhe permitia a cada noite. As correntes que prendiam seus pulsos e tornozelos à parede não eram longas o suficiente para que ele pudesse se deitar e alongar, por isso dormia de cócoras, com as nádegas encostadas à parede para aliviar a tensão nas pernas, a cabeça pousada nos antebraços cruzados e as asas levemente dobradas em volta do corpo.
Unhas compridas sussurraram em sua pele. A mão apertou-lhe o ombro com um pouco mais de força.
— Lucivar — murmurou uma voz profunda, rouca de frustração e cansaço. — Acorde, Sacana.
Lucivar ergueu a cabeça. O luar que entrava pela fresta da cela não permitia ver com clareza, mas era suficiente. Olhou para o homem inclinado sobre si e, por um breve momento, ficou satisfeito por ver seu meio-irmão. Logo em seguida, seus dentes cerraram-se num sorriso selvagem.
— Olá, Bastardo.
Daemon retirou a mão do ombro de Lucivar e recuou, cauteloso.
— Vim tirar você daqui.
Lucivar levantou-se lentamente, rosnando baixinho ao ouvir o tilintar das correntes.
— O Sádico demonstrando afeição? Estou comovido. — Investiu na direção de Daemon, mas os ferros impediram o ataque e Daemon deslizou para longe do seu alcance.
— Esse não foi o cumprimento que eu esperava, irmão — disse Daemon suavemente.
— E você ainda esperava um cumprimento, irmão? — proferiu Lucivar, furioso.
Daemon passou os dedos pelo cabelo e suspirou.
— Você sabe muito bem por que não pude fazer nada até agora para ajudá-lo.
— Sim, sei muito bem — respondeu Lucivar, e sua voz profunda assumiu um tom ameaçador. — Assim como sei por que está aqui agora.
Daemon virou-se, o rosto oculto na penumbra.
— Acha que o fato de me libertar servirá como compensação, Bastardo? Acha que algum dia vou perdoá-lo?
— Precisa me perdoar — murmurou Daemon. E estremeceu.
Lucivar semicerrou os olhos dourados. No odor psíquico de Daemon podia sentir uma fragilidade inesperada. Em outros tempos, teria ficado preocupado. No momento, usaria isso como arma.
— Você não deveria ter vindo, Bastardo. Jurei que o mataria se aceitasse aquela oferta, e é isso que vou fazer.
Daemon virou-se, encarando Lucivar.
— Que oferta?
— Talvez troca seja uma palavra melhor. A sua liberdade pela vida de Jaenelle.
— Não aceitei essa oferta!
Lucivar cerrou os punhos.
— Então matou-a por diversão? Ou não percebeu que ela estava morrendo debaixo de você até já ser tarde demais?
Os dois se encararam.
— Do que você está falando? — perguntou Daemon calmamente.
— Do Altar de Cassandra — respondeu Lucivar com a mesma calma, enquanto a raiva crescia, ameaçando quebrar seu autocontrole. — Você foi descuidado dessa vez. Deixou o lençol... e todo aquele sangue.
Abalado, Daemon olhou com espanto para as mãos.
— Tanto sangue — sussurrou. — Minhas mãos estavam cobertas de sangue.
Nos olhos de Lucivar, as lágrimas ardiam.
— Por quê, Daemon? O que ela fez para merecer esse sofrimento? — A voz subiu de tom. Não conseguia evitar. — Era a Rainha que sonhávamos servir. Aguardamos tanto tempo por ela. Carniceiro filho da puta, por que a matou?
Os olhos de Daemon se encheram de perigosa censura.
— Ela não morreu.
Lucivar prendeu a respiração, desejando acreditar no que ouvia.
— Então onde ela está?
Daemon hesitou, parecendo confuso.
— Não sei. Não tenho certeza.
A dor irrompeu em Lucivar de forma tão feroz como quando vira o sangue seco no lençol.
— Não tem certeza — zombou. — Você. O Sádico. Não tem certeza de onde enterrou a presa? Invente uma mentira mais convincente.
— Ela não morreu! — rugiu Daemon.
Ouviu-se um grito ali perto, seguido do som de passos apressados.
Daemon ergueu a mão direita. A Joia Negra reluziu. Do lado de fora dos estábulos onde estavam alojados os escravos, ouviu-se um guincho agonizante. Em seguida, fez-se silêncio.
Sabendo que não demoraria muito até que os guardas reunissem a coragem suficiente para entrar nos estábulos, Lucivar cerrou os dentes e tentou descobrir um ponto fraco nas correias que o prendiam.
— Você apenas atirou-a ao chão e a possuiu? Ou a seduziu, mentiu para ela, disse que a amava?
— Eu realmente a amo. — Os olhos de Daemon encerravam uma sombra de dúvida, um toque de medo. — Tive que mentir. Ela não queria me ouvir. Tive que mentir.
— E foi então que a seduziu para se aproximar o suficiente e depois matá-la.
Daemon explodiu em movimentos. Começou a andar para trás e para a frente na cela, balançando furiosamente a cabeça.
— Não — disse entre dentes. — Não, não, não! — Girou sobre os calcanhares, agarrou Lucivar pelos ombros e empurrou-o contra a parede. — Quem lhe disse que ela estava morta? QUEM?
Lucivar afastou os braços bruscamente de Daemon.
— Dorothea.
No rosto de Daemon surgiu um brilho súbito de sofrimento. Recuou.
— E desde quando você ouve o que Dorothea diz? — perguntou com amargura. — Desde quando acredita nessa vagabunda mentirosa?
— Não acredito.
— Então por que...
— As palavras mentem. O sangue, não. — Lucivar aguardou que Daemon percebesse a insinuação. — Você deixou o lençol, Bastardo — proferiu de maneira selvagem. — Todo aquele sangue. Toda aquela dor.
— Pare — murmurou Daemon com a voz trêmula. — Lucivar, por favor. Você não entende. Ela já estava ferida, já estava sofrendo, e eu...
— Você a seduziu, mentiu para ela, violou uma menina de doze anos.
— Não!
— Foi bom, Bastardo?
— Eu não...
— Gostou de tocá-la?
— Lucivar, por favor...
— GOSTOU?
— SIM!
Com um uivo de raiva, Lucivar investiu sobre Daemon com força suficiente para arrebentar as correntes — mas não foi rápido o bastante. Estatelou-se no chão, arranhando a palma das mãos e os joelhos. Levou um minuto para recuperar o fôlego. Levou outro minuto para perceber por que tremia. Olhou espantado para a camada espessa de gelo que cobria as paredes de pedra da cela. Levantou-se devagar, pernas trêmulas, sentindo um ressentimento tão profundo que lhe dilacerava a alma.
Daemon estava próximo, de pé e com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, o rosto uma máscara inexpressiva, os olhos ligeiramente vidrados e sonolentos.
— Odeio você — sussurrou Lucivar roucamente.
— Neste momento, irmão, o sentimento é recíproco — afirmou Daemon demasiadamente calmo, com uma delicadeza exagerada. — Vou encontrá-la, Lucivar. Vou encontrá-la só para lhe provar que ela não morreu. E, depois de encontrá-la, volto aqui e arranco essa sua língua mentirosa.
Daemon desapareceu. A parte da frente da cela explodiu.
Lucivar caiu no chão, com as asas junto ao corpo e os braços protegendo a cabeça de uma chuva de pedras e areia.
Ouviram-se mais gritos. Mais passos apressados.
Lucivar levantou-se de um salto, ao mesmo tempo que os guardas apareciam na abertura. Cerrou os dentes e rosnou, com os olhos dourados ardendo de raiva. Bastou um olhar para que os guardas recuassem. Pelo restante da noite, bloquearam a abertura mas não tentaram entrar.
Lucivar observava-os, com a respiração silvando através dos dentes cerrados.
Poderia ter lutado para abrir caminho através dos guardas e seguir Daemon. Se Zuultah tentasse detê-lo enviando uma onda de dor através do Anel de Obediência colocado em seu órgão, Daemon soltaria sua força contra ela. A despeito da violência com que lutavam um com o outro, Lucivar e Daemon sempre se uniam contra um inimigo comum.
Poderia tê-lo seguido e forçado a batalha que destruiria um deles ou até mesmo os dois. Em vez disso, permaneceu na cela.
Tinha jurado que mataria Daemon e assim o faria. Mas não conseguia reunir coragem para matar o irmão. Ainda não.
As batidas na porta soavam enérgicas, urgentes.
Dorothea SaDiablo ocultou as mãos trêmulas nas dobras da camisola e ficou no centro do quarto, de costas para a única vela que iluminava tenuemente o aposento.
Já fazia sete meses que procurava Daemon Sadi. Sob a forte luz do dia, com a corte à sua volta, quase conseguia se convencer de que ele não voltaria a Hayll, de que permaneceria no buraco que tinha encontrado para se esconder. Mas, à noite, tinha certeza de que ao abrir uma porta ou dobrar uma esquina o encontraria à sua espera. Ele prolongaria a sua dor além do imaginável e depois a mataria. O insulto subjacente àquela violência era o de que não a destruiria por tudo o que ela tinha feito a ele, mas sim por causa daquela criança.
Aquela maldita criança. A obsessão de Hekatah, o reaparecimento do Senhor Supremo, a morte de Greer, a doença misteriosa do seu filho Kartane, a fúria de Daemon, o ódio repentino de Lucivar por seu meio-irmão — tudo se resumia àquela garota.
A maçaneta girou. A porta se abriu alguns centímetros.
— Sacerdotisa? — chamou baixinho uma voz masculina.
O alívio foi logo substituído pela irritação.
— Entre — ordenou rispidamente.
O Sr. Valrik, Mestre da Guarda de Dorothea, entrou no quarto e fez uma reverência.
— Perdoe-me a intromissão a esta hora da noite, Sacerdotisa, mas achei que gostaria de ser informada imediatamente sobre este assunto. — Ao estalar os dedos entraram dois guardas, que seguravam rudemente um homem pelos braços.
Dorothea olhou espantada para o jovem macho haylliano dos Sangue que se encolhia de medo entre os guardas. Na verdade, não era mais do que um adolescente. E bonito. Do jeito que ela gostava. Até demais.
Deu um passo na direção do jovem, satisfeita pelo medo nos olhos vidrados.
— Você não serve na minha corte — ronronou. — Por que está aqui?
— Fui enviado, Sacerdotisa. Disseram que eu d-devia satisfazê-la.
Dorothea observou o rapaz. Suas palavras pareciam insípidas, forçadas. Não eram, com certeza, suas próprias palavras. Havia feitiços de coação que podiam forçar uma pessoa a fazer certo tipo de coisa ainda que contra sua vontade.
Avançou mais um passo.
— Quem o enviou?
— Não me disse o n...
Antes que ele conseguisse terminar a frase, Dorothea invocou um punhal e cravou-o no peito do rapaz. O ataque foi tão rápido e violento que os guardas caíram no chão junto com o jovem. Então libertou a força de sua Joia Vermelha contra as lastimavelmente inadequadas barreiras interiores do garoto e cauterizou sua mente, esvaziando-a, não deixando restar nada que pudesse voltar para assombrá-la.
— Levem essa coisa para os bosques além da cidade, para quem quer que queira a carniça — disse, entre dentes.
Os guardas pegaram o corpo e saíram apressadamente, seguidos por Valrik.
Dorothea começou a caminhar de um lado para o outro, fechando e abrindo os punhos. Maldição, maldição, maldição! Deveria ter sondado a mente do rapaz antes de destruí-lo por completo, deveria ter descoberto quem, de fato, o enviara. Mas era, com certeza, obra de Sadi! O desgraçado estava se divertindo com ela, tentando esgotar sua vigilância, tentando apanhá-la desprevenida.
Escondeu o rosto nas mãos trêmulas.
Sadi estava lá fora. Em algum lugar. Até que estivesse morto... Não! Morto, não. Aí é que não haveria qualquer esperança de controlá-lo, e, uma vez demônio-morto, ele e o Senhor Supremo uniriam forças. Jamais se esqueceria da ameaça de Saetan, a voz erguendo-se de um pesadelo em torvelinho: quando Daemon Sadi morresse, Hayll morreria também.
Exausta, Dorothea voltou à cama. Hesitou por um momento e, por fim, extinguiu a chama da vela. Na escuridão total, a segurança era maior — se é que existia qualquer segurança.
Dorothea puxou o capuz para trás e inspirou fundo antes de entrar na pequena sala de estar do velho Santuário. Hekatah já estava sentada em frente à lareira apagada, com o capuz puxado para a frente a fim de ocultar o rosto. Tinha diante de si uma taça vazia de vidro escuro.
Dorothea invocou uma garrafa de prata e colocou-a junto à taça.
Hekatah deixou escapar um resmungo irritado diante do tamanho da garrafa, contudo apontou um dedo para ela. A garrafa se abriu e elevou-se da mesa. Seu conteúdo quente e vermelho deslizou para a taça, que, por sua vez, deslizou pelo ar até a mão de Hekatah, que bebeu com vontade.
Dorothea cerrou os punhos e aguardou. Chegando ao limite da paciência, disse com rispidez:
— Sadi ainda está à solta.
— E cada dia servirá para afiar ainda mais o seu temperamento — retrucou Hekatah com aquela voz de menina que não combinava com sua natureza cruel.
— Exatamente.
Hekatah suspirou como uma mulher saciada.
— Isso é bom.
— Bom? — explodiu Dorothea da cadeira. — Você não o conhece!
— Mas conheço o pai dele.
Dorothea sentiu um calafrio.
Hekatah pousou a taça vazia na mesa.
— Acalme-se, Irmã. Estou tecendo uma teia deliciosa para Daemon Sadi, uma teia da qual não conseguirá escapar, pois não terá vontade disso.
Dorothea voltou para a cadeira.
— Ele poderá, então, ser anelado novamente.
Hekatah deu uma risada suave, maliciosa.
— Ah, não, seria inútil para nós se estivesse anelado. Mas não se preocupe. Ele vai caçar presas maiores do que você. — Brandiu um dedo na direção de Dorothea. — Estive muito ocupada por sua causa.
Dorothea manteve-se em silêncio, recusando-se a morder a isca.
Hekatah aguardou um minuto.
— Ele irá atrás do Senhor Supremo.
Dorothea olhou espantada.
— Por quê?
— Para vingar a menina.
— Mas foi Greer quem a destruiu!
— Sadi não sabe disso — disse Hekatah. — Quando eu terminar de contar a ele por que isso aconteceu à menina, a única coisa que ele vai querer fazer será arrancar o coração de Saetan. É óbvio que o Senhor Supremo não vai simplesmente aceitar isso.
Dorothea reclinou-se. Fazia meses não se sentia tão bem.
— O que precisa de mim?
— Soldados para me ajudarem a montar a armadilha.
— Sendo assim, o melhor é escolher machos que sejam descartáveis.
— Não se preocupe com os guardas. Sadi não será uma ameaça para eles. — Hekatah levantou-se, numa despedida implícita.
Quando já estavam do lado de fora, Hekatah disse friamente:
— Você não comentou nada sobre o meu presente, Irmã.
— Seu presente?
— O rapaz. Pensei em ficar com ele, mas achei que você tinha direito a uma compensação pela perda de Greer. É um servo extremamente solícito.
— Sabe o que deve fazer? — perguntou Hekatah, entregando dois frasquinhos a Greer.
— Sim, Sacerdotisa. Mas tem certeza de que ele irá a esse local?
Hekatah acariciou o rosto de Greer.
— Qualquer que seja a razão, Sadi tem visitado todos os Altares das Trevas indo para leste. Irá a esse também. É o único Portão que resta antes do que fica junto às ruínas do Paço dos SaDiablo. — Bateu com as pontas dos dedos nos lábios e franziu a sobrancelha. — A velha Sacerdotisa desse Altar pode representar um problema. Mas a assistente dela é uma moça pragmática, uma característica bastante presente nos Sangue menos dotados. Você conseguirá lidar com ela.
— E a velha Sacerdotisa?
Hekatah deu de ombros com delicadeza.
— Não se deve desperdiçar uma refeição.
Greer sorriu, fez uma reverência e saiu.
Cantarolando, Hekatah executou os primeiros passos de uma dança de corte. Durante os últimos sete meses, Sadi vinha escapando das armadilhas que montara para ele e suas retaliações sempre que era obrigado a se afastar de um Portão tinham feito com que até seus servos mais fiéis no Reino das Trevas tivessem medo de atacá-lo. Durante sete meses falhara. Mas ele também falhara.
Restavam poucas Sacerdotisas em Terreille capazes de abrir os Portões. As que não tinham passado à clandestinidade depois do primeiro aviso de Hekatah haviam sido eliminadas.
Aquilo tinha lhe custado alguns dos seus demônios mais fortes, mas Hekatah garantira que Sadi nunca teria tempo de descobrir sozinho como acender as velas negras pela sequência correta para conseguir abrir um Portão. É claro que se tivesse ido diretamente para Ebon Askavi, sua busca teria terminado meses antes. Hekatah tinha passado século após século transformando o assombro natural diante do local num terror sutil — o que não era difícil, já que, na única vez que entrara na Fortaleza, o local deixara até mesmo ela apavorada. Depois de seus esforços, porém, ninguém em Terreille iria lá de bom grado solicitar ajuda ou refúgio, a menos que estivesse desesperado a ponto de arriscar o que quer que fosse — e, na maioria das vezes, nem mesmo assim.
Logo, Sadi, sem um local seguro ao qual se dirigir e sem ninguém em quem confiar, continuaria se escondendo, procurando, fugindo. Quando chegasse, por fim, ao Portão onde ela o estaria aguardando, o esforço dos últimos meses o deixaria ainda mais suscetível em relação ao que planejara.
— Domine o Inferno enquanto puder, grande filho da puta — exclamou, abraçando-se. — Dessa vez tenho a arma perfeita.
Saetan abriu a porta do escritório particular e deteve-se ao ver a Harpia no corredor puxando a corda do arco e apontando a flecha para o seu coração.
— Uma forma um pouco rude de solicitar uma audiência, não acha, Titian? — perguntou secamente.
— Nenhuma das minhas armas é rude, Senhor Supremo — retrucou Titian.
Saetan examinou-a por um momento antes de voltar a entrar no escritório.
— Entre e diga o que veio dizer. — Apoiando-se na bengala, foi mancando até a mesa de madeira escura, encostou-se em um dos cantos e aguardou.
Titian entrou devagar, a raiva num turbilhão como uma tempestade de inverno. Deteve-se no outro lado do aposento, enfrentando-o, destemida na sua fúria, uma Rainha Viúva Negra dos Dea al Mon demônia-morta. Mais uma vez, o arco estava em riste, com a flecha apontada para o coração de Saetan.
A paciência de Saetan, já pequena após aqueles implacáveis meses, terminou de vez.
— Abaixe essa coisa antes que eu faça algo de que ambos nos arrependeremos depois.
Titian não vacilou.
— O senhor já não fez algo de que se arrepende, Senhor Supremo? Ou está tão coberto com o pus do ciúme que não tem espaço para remorsos?
As paredes do Paço ribombaram.
— Titian — disse, com demasiada delicadeza —, não avisarei outra vez.
Com relutância, Titian fez desaparecer o arco e a flecha.
Saetan cruzou os braços.
— Na verdade, seu autocontrole me surpreende, senhora. Esperava que esta conversa tivesse acontecido muito tempo antes.
Titian sibilou.
— Então é verdade? Ela caminha entre as cildru dyathe?
Saetan observou a tensão crescente em Titian.
— E se for?
Titian fixou o olhar em Saetan durante um terrível momento para depois inclinar a cabeça para trás e começar a chorar.
Saetan olhou com espanto para ela, abalado. Sabia que o boato se espalharia pelo Inferno. Sabia que Titian, tal como Char, o líder das cildru dyathe, o procurariam. Contava com a sua fúria. Essa fúria poderia enfrentar. O ódio poderia aceitar. Mas não isto.
— Titian — disse, com uma voz insegura. — Titian, venha aqui.
Titian continuava chorando.
Saetan mancou na sua direção. Ela não pareceu reparar que Saetan a tomou nos braços e a abraçou com força, afagando seu longo cabelo grisalho, murmurando palavras de pesar no Idioma Antigo.
— Titian — disse suavemente, quando o pranto se transformou num resmungo —, lamento pela dor que causei, mas não pôde ser evitado.
Titian enterrou o punho no estômago de Saetan e o fez cair no chão.
— Você lamenta — rosnou ao caminhar enfurecida pelo escritório. — Ora, eu também. Lamento que tenha sido simplesmente o meu punho e não uma faca, ainda agora. Você merece ser estripado por isso! Velho ciumento. Monstro! Não poderia tê-la deixado desfrutar de um romance inocente sem a dilacerar por despeito?
Conseguindo finalmente recuperar o fôlego, Saetan apoiou-se num cotovelo.
— A Feiticeira não se torna cildru dyathe, Titian — afirmou friamente. — A Feiticeira não se torna demônio-morto. Por isso, diga-me o que prefere: que afirme que ela caminha entre as cildru dyathe ou que deixe uma menininha vulnerável a outros ataques de inimigos?
Titian deteve-se, com um olhar embargado nos grandes olhos azuis. Inclinou-se sobre Saetan, tentando ler sua expressão.
— A Feiticeira não pode se tornar demônia-morta?
— Não. Mas, no Inferno, só quem sabe disso são você e Char.
— Admito — disse ela devagar — que a melhor forma de enganar um inimigo é enganar um amigo. — Considerou esta afirmação durante mais um momento e, em seguida, ofereceu uma mão a Saetan para ajudá-lo a erguer-se. Pegou sua bengala e olhou-o nos olhos. — Uma Harpia é uma Harpia pela forma como morreu. Isso contribuiu para a credibilidade dos boatos.
Aquilo era o mais parecido com um pedido de desculpas que jamais esperaria ouvir de Titian.
Saetan aceitou a bengala, agradecido.
— Direi a você o que disse a Char — proferiu. — Se ainda mantiver sua amizade e se desejar ajudar, há algo que pode fazer.
— E o que é, Senhor Supremo?
— Continue com raiva.
Acendeu-se um fogo nos olhos de Titian. Nos seus lábios, entreviu-se um sorriso que logo desapareceu.
— Uma flecha errando por pouco seria muitíssimo convincente.
Saetan ergueu uma sobrancelha e estalou a língua em reprovação.
— Uma feiticeira Dea al Mon errando o alvo?
Titian deu de ombros.
— Nem os Dea al Mon acertam sempre.
— No caso de não conseguir errar, tente não mirar algo que seja de importância vital — disse Saetan secamente.
Titian pestanejou. Um leve sorriso voltou aos lábios.
— As Harpias miram unicamente uma área da anatomia masculina, Senhor Supremo. Quão vital a considera?
— Pode ir — disse Saetan.
Titian fez uma reverência e saiu.
Saetan fixou a porta do escritório durante alguns momentos antes de mancar até uma cadeira. Deixou-se cair com um suspiro, esticando as pernas. Um minuto depois, saiu do escritório, caminhando pelos corredores em direção aos quartos acima, no Paço, esperando que Mephis ou Andulvar estivessem por lá.
Ansiava por companhia. Companhia masculina.
Ter Titian como amiga não deixava um homem muito tranquilo.
Sob o luar, o vento fustigava os campos de um prateado fantasmagórico. Ao longo do dia quente de solstício de verão, nuvens de tempestade tinham se acumulado no horizonte, e ouvia-se à distância o estrondo dos trovões.
Surreal abotoou o casaco e se abraçou para se aquecer. O ar tinha esfriado. Dali a uma hora a tempestade cairia sobre Beldon Mor. A essa altura, já teria regressado à casa da Lua Vermelha de Deje, como convidada de honra do seu íntimo jantar de aposentadoria.
Depois daquela noite no Altar de Cassandra, já não conseguia suportar o jogo sexual, nem mesmo quando ele tinha por objetivo facilitar um homicídio. Não passaria fome se deixasse de se prostituir. Lord Marcus, o administrador de Sadi, também cuidava de seus investimentos, e o fazia muito bem. Além disso, sempre tinha preferido ser assassina a prostituta.
Surreal balançou a cabeça. Poderia pensar no assunto depois.
Caminhando devagar no pequeno jardim de arbustos ao fundo do campo, chegou à grande árvore com um galho perfeito para um balanço. Alguma coisa pendia do galho, mas não era um brinquedo de criança.
Surreal olhou para cima tentando sentir a presença fantasmagórica, vislumbrar a silhueta transparente.
— Você não vai encontrá-la — disse a voz de uma menina. — Marjane foi embora.
Surreal virou-se e olhou espantada para a menina com a garganta cortada e o vestido ensanguentado. Tinha conhecido Rose sete meses antes, quando Jaenelle lhe mostrara o terrível segredo de Briarwood. Na noite seguinte, ela e Rose tinham tirado Jaenelle de Briarwood, embora tarde demais para evitar a cruel violação.
— O que aconteceu com ela? — perguntou Surreal, olhando de relance para a árvore. Uma pergunta idiota sobre uma menina morta havia muito tempo.
Rose deu de ombros.
— Ela se dissipou. Todos os fantasmas antigos finalmente voltaram às Trevas. — Estudou Surreal. — Por que está aqui?
Surreal respirou fundo.
— Vim me despedir. Vou deixar Chaillot pela manhã... e não voltarei.
Rose ponderou estas palavras.
— Se você segurar minha mão, talvez consiga ver Dannie. Não sei como Jaenelle sempre conseguia ver os fantasmas. Mesmo depois que me tornei demônia, eu não conseguia ver os mais antigos, a não ser que Jaenelle estivesse presente. Ela disse que era porque este era um dos Reinos dos vivos.
Surreal segurou a mão de Rose. Dirigiram-se à horta.
— Jaenelle está bem? — perguntou Rose, hesitante.
Surreal afastou do rosto o cabelo emaranhado pelo vento.
— Não sei. Tinha ferimentos bastante graves. Uma feiticeira no Altar de Cassandra levou-a para um lugar seguro. Pode ter chegado a uma Curandeira a tempo.
Pararam no canteiro das cenouras, onde duas irmãs ruivas haviam sido enterradas em segredo. Mas não se viam ali silhuetas nem murmúrios. Surreal não sentiu o horror entorpecedor como da primeira vez que visitara o jardim. Sentia uma mistura de pesar e esperança de que as jovens finalmente estivessem para além da memória do que lhes tinha sido feito.
Dannie era a única naquele local. Surreal esforçou-se para não olhar para o coto fantasmagórico onde antes certamente havia uma perna. Sentiu um nó no estômago quando se esforçou ainda mais para não lembrar o destino dado àquela perna.
Deixando de lado a pena que sentia, Surreal enviou um fio psíquico de afeto e de amizade em direção à menina-fantasma.
Dannie sorriu.
Até na morte os Sangue eram cruéis, pensou Surreal ao apertar a mão fria de Rose. Como deviam ter sido vazios e solitários os anos para aquelas que não eram fortes o bastante para se tornar demônias-mortas, mas fortes demais para voltar às Trevas. Ali permaneciam, acorrentadas às sepulturas, invisíveis, inaudíveis, sem ninguém para cuidar delas — à exceção de Jaenelle.
O que teria acontecido com ela?
Surreal e Rose voltaram para o jardim de arbustos.
— Deveriam ser todos estripados — resmungou Surreal, soltando a mão de Rose. Encostou-se na árvore e olhou fixamente para o edifício. A maior parte das janelas estava na escuridão, mas havia algumas luzes fracas acesas. Invocando seu punhal preferido, Surreal balançou-o com a mão e sorriu. — Antes de partir, talvez eu possa alimentar o jardim com um ou dois tios.
— Não — disse Rose bruscamente, colocando-se à frente de Surreal. — Você não pode tocar em nenhum tio de Briarwood. Ninguém pode.
Surreal endireitou o corpo, com uma expressão selvagem nos olhos verde-dourados.
— Sou excelente no que faço, Rose.
— Não — insistiu Rose. — Quando o sangue de Jaenelle foi derramado, a teia emaranhada que ela criou foi despertada. É uma armadilha para todos os tios.
Surreal olhou para o edifício, depois para Rose. Tinha ouvido rumores sobre uma doença misteriosa que afetava vários membros superiores do conselho de Chaillot — como Robert Benedict —, bem como alguns dignitários especiais — como Kartane SaDiablo.
— Esta armadilha vai matá-los?
— A seu tempo — disse Rose.
Um brilho maldoso surgiu nos olhos de Surreal.
— E existe cura?
— Briarwood é o belo veneno. Não existe cura para Briarwood.
— Vai ser doloroso?
Rose deu um largo sorriso.
— Cada um receberá o que merece.
Surreal fez desaparecer o punhal.
— Já que é assim, que os filhos da puta berrem de dor.
Sob a luz de duas tochas fumegantes, a jovem Sacerdotisa verificou duas vezes as ferramentas que tinha colocado no Altar das Trevas. Tudo estava preparado: o candelabro com quatro velas negras, a pequena taça de prata e os dois pequenos frascos com um líquido escuro — um deles com uma rolha branca, outro com uma rolha vermelha.
Ao lhe entregar os frasquinhos, o desconhecido com as mãos deformadas lhe garantira que o antídoto evitaria que ela fosse afetada pela infusão de feiticeira criada para subjugar um Príncipe dos Senhores da Guerra.
A jovem caminhava de um lado para outro atrás do Altar, roendo a unha do polegar. Aquilo tinha parecido tão fácil, porém...
Parou, sem se atrever a respirar, ao olhar para o corredor na penumbra, do outro lado do portão de ferro batido. Haveria alguma coisa ali?
Nada além do silêncio no silêncio da noite, uma sombra nas sombras, deslizando em direção ao Altar com a graça de um predador.
A Sacerdotisa foi para atrás do Altar, quebrou o lacre do frasco de rolha branca e engoliu apressadamente seu conteúdo. Fez desaparecer o vidro e se levantou. Quando voltou a olhar na direção do portão de ferro batido, agarrou a Joia Amarela como se esta pudesse protegê-la.
Ele estava do outro lado do Altar, observando-a. Apesar das roupas amarrotadas e do cabelo desgrenhado, emanava uma energia fria e carnal.
A Sacerdotisa passou a língua pelos lábios e esfregou as mãos úmidas no manto. Os olhos dourados do homem pareciam sonolentos, ligeiramente vidrados.
Foi então que ele sorriu.
Ela estremeceu e respirou fundo.
— Veio em busca de aconselhamento ou auxílio?
— Auxílio — disse, com uma voz profunda e delicada. — Você tem os conhecimentos necessários para abrir o Portão?
Como um homem poderia ser tão belo?, pensava a Sacerdotisa, enquanto assentia com a cabeça.
— Isso tem um preço. — Sua voz pareceu ser engolida pelas sombras.
Com a mão esquerda, o homem retirou um envelope de um bolso interior do casaco e colocou-o no Altar.
— Será suficiente?
Ao estender a mão para pegar o envelope, a Sacerdotisa olhou de soslaio para ele e sua mão se deteve sobre o envelope branco e grosso. Havia algo naquela pergunta, embora tivesse sido feita de forma educada, que a avisava que era melhor que fosse o suficiente.
Ela se forçou a pegar o envelope, a olhar dentro dele, e, em seguida, apoiou-se no Altar para se equilibrar. Mil marcos em ouro. Pelo menos dez vezes mais do que o desconhecido com as mãos deformadas tinha lhe oferecido.
Porém, já tinha feito um acordo com o desconhecido e teria tempo suficiente para guardar os marcos antes de os guardas chegarem.
Colocou o envelope cautelosamente na extremidade mais afastada do Altar.
— Muito generoso — disse, esperando não parecer muito impressionada.
Respirando fundo, ergueu a taça de prata acima da cabeça e colocou-a à sua frente. Quebrou o lacre do frasco de rolha vermelha, despejou o conteúdo na taça e estendeu-a a ele.
— A viagem pelo Portão é um empreendimento árduo. Isto vai ajudá-lo.
Ele não pegou a taça.
A Sacerdotisa emitiu um ruído de impaciência e bebeu um gole da taça, tentando não ficar enjoada com o sabor amargo, e, depois, voltou a estendê-la ao homem.
Ele pegou-a com a mão esquerda e suas narinas se dilataram ao cheirar o líquido, mas não o bebeu.
Passou-se um minuto. Dois.
Com um dar de ombros imperceptível, engoliu o conteúdo da taça.
A Sacerdotisa prendeu a respiração. Quanto tempo levaria para fazer efeito? Quanto tempo os guardas levariam para chegar?
Os olhos do homem se alteraram. Ele se desequilibrou. Encostou-se no Altar e olhou na direção da Sacerdotisa, tal como um amante para a sua senhora. Não conseguia desviar os olhos dos seus lábios. Macios. Sensuais. Inclinou-se na sua direção. Um beijo. Um doce beijo.
Pouco antes de seus lábios tocarem os dela, o homem agarrou-a pelo pulso com a mão direita.
— Vagabunda — rosnou mansamente.
Surpresa, ela tentou se soltar.
À medida que a mão apertava cada vez mais, a Sacerdotisa olhou para o anel com a Joia Negra.
As longas unhas do homem perfuraram sua pele. Foi então que ela sentiu a picada do dente de serpente embaixo da unha do dedo anelar, o veneno gelando seu sangue.
Ela se debateu, tentando atingir seu rosto, gritar por socorro, enquanto sua visão embaçava e seus pulmões se recusavam a receber o ar necessário.
Ele quebrou seus dois pulsos, partindo os ossos ao mesmo tempo que a empurrava para longe de si.
— O veneno do meu dente de serpente não faz efeito tão rápido como você poderia pensar — disse com demasiada calma, com demasiada delicadeza. — No final você vai conseguir gritar. Vai ser uma agonia fazer isso, mas vai gritar.
E desapareceu, sem deixar nenhum traço além de um silêncio no silêncio da noite, uma sombra nas sombras.
Quando os guardas chegaram, a Sacerdotisa já gritava.
5 / Terreille
O chão girava debaixo dos seus pés, castigando as pernas que já tremiam sem forças e que latejavam devido à repugnante infusão de feiticeira.
Atrás daquela porta havia um lugar seguro. Ao alcançá-lo, o chão girou outra vez, fazendo-o tropeçar. Bateu com o ombro na porta e ouviu o estalo da madeira velha e podre. Caiu pesadamente de lado, no chão do aposento.
— Vagabunda — rosnou em voz mansa.
Névoa Cinza. Um cálice de cristal estilhaçado. Velas negras. Cabelo louro.
Sangue. Tanto sangue.
As palavras mentem. O sangue, não.
— Cale a boca, Sacana — ordenou com rispidez.
O chão continuava a girar sob seus pés. Daemon cravou as unhas compridas na madeira, tentando se equilibrar, tentando pensar.
A febre estava perigosamente alta e ele sabia que precisava de comida, água e descanso. No momento, era presa fácil para quem quer que o procurasse naquela casa abandonada onde tinha passado os primeiros anos da sua vida com Tersa, sua verdadeira mãe.
Tudo tem um preço.
Se tivesse se rendido do lado de fora daquele Santuário três dias antes, se tivesse permitido que os guardas hayllianos o encontrassem, talvez a infusão não o tivesse deixado tão doente. Contudo, havia forçado o corpo além do limite, para chegar ao Portão próximo às ruínas do Paço dos SaDiablo.
E sempre que o cansaço chegava, sempre que a força de vontade diminuía um pouco, uma bruma cinza começava a nublar sua mente, uma bruma que ele sabia conter algo extremamente terrível. Algo que não desejava ver.
Você é meu instrumento.
Palavras como relâmpagos negros saíam da bruma, ameaçando cauterizar sua alma.
As palavras mentem. O sangue, não.
Estava a menos de dois quilômetros do Portão.
— Lucivar — sussurrou. Mas estava sem forças para se sentir zangado com a traição do irmão.
Você é meu instrumento.
— Não. — Tentou se pôr de pé, mas não conseguiu. Ainda assim, algo no seu interior ainda resistia — Não. Não sou seu instrumento. Sou... sou... Daemon... Sadi.
Fechou os olhos e foi engolido pela névoa cinza.
Com um gemido, Daemon virou-se de costas e abriu os olhos devagar. Até isso era difícil. A princípio, achou que estivesse cego. Depois começou a distinguir vultos na escuridão.
Noite. Era noite.
Respirando lentamente, começou a avaliar os danos físicos.
Sentia-se seco como madeira velha, rígido como uma pedra. Os músculos ardiam. O estômago doía de fome e a sede era intensa. A febre havia baixado em certo momento, mas...
Havia algo errado.
As palavras mentem. O sangue, não.
As palavras ditas por Lucivar pairavam à sua volta, crescendo cada vez mais, tornando-se sólidas. Atingiram a mente de Daemon, fragmentando-a ainda mais.
Daemon gritou.
Você é meu instrumento.
Enquanto as palavras de Saetan ecoavam dentro dele, a dor aumentou — e o medo surgiu. Medo de que a névoa que preenchia a sua mente pudesse se dissipar, revelando algo terrível.
Daemon.
Agarrando-se furiosamente à memória de Jaenelle e sussurrando seu nome como uma carícia suave, Daemon pôs-se de pé. Conseguiria manter as vozes afastadas, desde que se lembrasse do nome dela.
Suas pernas estavam muito pesadas, mas ele conseguiu deixar a casa e seguir os vestígios de energia que o levariam ao Paço. Ainda que cada passo fosse uma agonia, quando chegou ao Paço movia-se praticamente com sua graça habitual.
No entanto, ainda havia algo terrivelmente errado. Era difícil lembrar-se de que seu nome era Daemon Sadi, Príncipe dos Senhores da Guerra, era difícil lembrar-se de quem ele era. Precisava resistir um pouco mais. Precisava.
Reunindo suas últimas energias e força de vontade, Daemon se aproximou com cuidado do pequeno edifício onde ficava o Altar das Trevas.
Hekatah rondava o pequeno prédio que se erguia à sombra das ruínas do Paço dos SaDiablo. Erguia os punhos no ar, mais frustrada do que julgava ser possível por conta dos últimos três dias. Ainda assim, sempre que dava a volta pelo Altar, olhava de relance para a parede que havia atrás, temendo que se transformasse numa névoa e que Saetan atravessasse o Portão para enfrentá-la.
Contudo, ultimamente, o Senhor Supremo andava ocupado demais com suas próprias ocupações para prestar atenção nela.
Seu principal problema no momento era Daemon Sadi.
Depois de ingerir a bebida que ela tinha preparado, era impossível ele ter deixado aquele Altar das Trevas, apesar do que juravam aqueles guardas idiotas. Mas se ele estivesse realmente vindo para aquele Portão... no momento, a segunda parte da sua infusão, a parte que tornaria a mente de Daemon receptiva às suas palavras ensaiadas com todo o cuidado, estaria no auge. Ela planejara sussurrar-lhe palavras envenenadas enquanto cuidava dele durante seu estado de febre e de dor, para que, quando a febre baixasse, essas palavras tivessem se consolidado como uma verdade terrível da qual ele não poderia escapar. E então, toda aquela força, toda aquela raiva se tornariam um punhal apontado para o coração de Saetan.
Todos os seus planos cuidadosamente elaborados estavam à beira da ruína porque...
Hekatah parou de repente.
Havia somente o silêncio no silêncio da noite.
Olhou para as tochas apagadas nas paredes e decidiu não acendê-las. O luar proporcionava luz suficiente.
Sem querer desperdiçar energia num escudo de visão, Hekatah se escondeu num recanto sombrio. Assim que ele entrasse na sala do Altar, sairia de trás dele e o pegaria de surpresa.
Esperou. Quando já começava a achar que havia se enganado, lá estava ele, sem aviso, na entrada do portão de ferro batido, olhando fixamente para o Altar. Mas não entrou na sala.
Franzindo a sobrancelha, Hekatah virou um pouco a cabeça a fim de olhar para o Altar. Tudo estava como deveria. O candelabro sujo não tinha brilho e a cera das velas negras que havia queimado com tanto cuidado para que não parecessem ter sido usadas recentemente pendiam como estalactites dos braços de prata.
Receando que Daemon fosse embora, Hekatah se aproximou do portão de ferro batido.
— Estava à sua espera, Príncipe.
— É mesmo? — Sua voz parecia entorpecida, exausta.
Perfeito.
— É a você que devo agradecer pelos demônios nos outros Altares? — perguntou ele.
Como poderia saber que ela era uma demônia? Saberia quem ela era? De repente, perdeu a confiança para lidar com este filho tão parecido com o pai, mas balançou a cabeça com grande pesar.
— Não, Príncipe. No Inferno só existe um poder capaz de dominar os demônios. Estou aqui porque tinha uma jovem amiga que era muito especial para mim. Uma amiga, creio, que tínhamos em comum. Por isso o aguardava.
Fogo do Inferno! Será que não havia alguma expressão naqueles olhos que lhe indicasse que estava conseguindo afetá-lo?
— Jovem é um termo relativo, não acha?
Estava brincando com ela! Hekatah cerrou os dentes.
— Uma criança, Príncipe. Uma criança especial. — Forçou um tom de súplica na voz. — Esperei aqui correndo grande risco. Se o Senhor Supremo descobrir que tentei dizer aos amigos dela... — Olhou de relance para a parede atrás do Altar.
O homem do outro lado do portão continuava sem reagir.
— Ela caminha entre as cildru dyathe — disse Hekatah.
Um longo silêncio.
— Impossível — disse Daemon por fim. Sua voz era inexpressiva, completamente destituída de emoções.
— É verdade. — Estaria errada em relação a ele? Estaria ele apenas tentando escapar de Dorothea? Não. Nutria sentimentos pela garota. Hekatah suspirou. — O Senhor Supremo é um homem ciumento, Príncipe. Não partilha aquilo que reivindica para si próprio... muito menos o corpo de uma fêmea. Ao descobrir o afeto da menina por outro macho, nada fez para impedir que fosse violada. E podia ter impedido, Príncipe. Podia. Ela conseguiu escapar. Com o tempo e com ajuda, teria se restabelecido. Mas o Senhor Supremo não queria que ela se recuperasse, e por isso, sob pretexto de ajudá-la, usou outro macho para terminar o que já tinha sido iniciado. Destruiu-a completamente. Seu corpo morreu e sua mente foi dilacerada. Agora ela é um bichinho de estimação morto e de olhar vazio com o qual ele brinca.
Hekatah levantou os olhos e quis gritar de frustração. Teria ele ouvido alguma coisa do que ela dissera?
— Ele deveria pagar pelo que fez — guinchou. — Se tiver coragem o suficiente para enfrentá-lo, posso abrir o Portão para você. Quem quer que se lembre do que ela poderia ter sido deveria exigir que ele fosse punido pelo que fez.
Durante muito tempo, Daemon ficou olhando para ela. Por fim, deu meia-volta e foi embora.
Praguejando, Hekatah começou a andar de um lado para outro. Por que ele não dissera uma única palavra? Era uma história plausível. Oh, ela sabia que Daemon fora acusado do estupro, mas sabia também que isso não era verdade. E não estava totalmente convencida de que ele estivera de fato no Altar de Cassandra naquela noite. Todos os machos que juravam tê-lo visto tinham vindo de Briarwood. Poderiam ter contado essa história para que as Rainhas de Chaillot não os investigassem. Certamente...
Um grito estilhaçou a noite.
Hekatah deu um salto, abalada pelo horrível som. Besta, animal, humano. Nada disto e tudo isto. O que quer que produzisse um som assim...
Acendeu rapidamente as velas negras e aguardou impaciente que a parede se transformasse em nevoeiro. Pouco antes de transpor o Portão, lembrou-se de que não haveria ninguém para apagar as velas e fechar a entrada para os outros Reinos. Se aquela coisa...
Hekatah ergueu a mão e trancou o portão de ferro batido com a Vermelha.
Outro grito rasgou a noite.
Hekatah cruzou rapidamente o Portão. Podia ser uma demônia, mas não desejava que aquilo a seguisse no Reino das Trevas.
As palavras giravam à sua volta, ferindo sua mente, ferindo sua alma.
A névoa cinza se dissipou, deixando aparecer um Altar das Trevas.
Sangue. Tanto sangue.
... usou outro macho...
O mundo se estilhaçou.
Você é meu instrumento.
Sua mente se estilhaçou.
... destruiu-a completamente.
Gritando em agonia, fugiu pela bruma, por uma paisagem banhada de sangue e repleta de cálices de cristal estilhaçados.
As palavras mentem. O sangue, não.
Voltou a gritar, caindo na paisagem interior estilhaçada, que os plebeus chamam de loucura e os Sangue, de Reino Distorcido.
Karla, uma Rainha glaciana de quinze anos, deu uma cotovelada nas costelas do primo.
— Quem é aquela?
Morton olhou para onde Karla apontava com o queixo, e em seguida voltou a observar os jovens Senhores da Guerra que se reuniam numa das extremidades do salão de banquetes.
— É a nova amante do Tio Hobart.
Karla estreitou os olhos azuis da cor de gelo e examinou a jovem feiticeira.
— Não parece muito mais velha do que eu.
— Não é — disse Morton em tom sombrio.
Karla deu o braço ao primo, confortando-se com a proximidade.
A sociedade glaciana tinha começado a mudar depois do “acidente” que matara seus pais e os de Morton seis anos antes. Um grupo de machos da aristocracia formara imediatamente um conselho de machos “pelo bem do Território” — liderado por Hobart, um Senhor da Guerra de Joia Amarela que era parente distante do pai de Karla.
Todas as Rainhas das Províncias, após se recusarem a servir como testas de ferro do conselho, também se recusaram a reconhecer a Rainha de um pequeno povoado que o conselho por fim escolhera para governar o Território. A recusa tinha dividido Glácia, mas, ao mesmo tempo, evitara que o conselho de machos se tornasse muito poderoso ou muito eficiente na execução dos “ajustes” à sociedade glaciana.
Ainda assim, seis anos depois, pairava no ar uma sensação incômoda, a impressão de que havia algo errado.
Karla não tinha muitos amigos. Era uma Rainha perspicaz e de língua afiada, com a Azul-Safira como Joia de Direito por Progenitura. Era também Viúva Negra natural e Curandeira. Entretanto, como Lord Hobart era agora o chefe da família, ela passava boa parte do seu tempo de convívio social com as filhas de outros membros do conselho de machos — e essas garotas andavam dizendo era indecente: as feiticeiras respeitáveis devem se submeter aos machos mais sensatos e mais cultos; os machos dos Sangue não deveriam ter de servir ou se submeter a Rainhas, uma vez que são do sexo mais forte; a única razão pela qual as Rainhas e Viúvas Negras querem ter o poder de controlar os machos é porque são sexualmente e emocionalmente incapazes de serem mulheres de verdade.
Indecente. E terrível.
Quando era mais nova, tinha se perguntado por que as Rainhas das Províncias e as Viúvas Negras tinham se contentado com um impasse em vez de lutar.
Glácia está encerrada num inverno frio e sombrio, tinham lhe dito as Viúvas Negras. Temos de fazer tudo que for possível para permanecer fortes até a chegada da primavera.
Mas conseguiriam aguentar mais cinco anos até que ela atingisse a maioridade? Será que ela atingiria a maioridade? A morte de sua mãe e sua tia não fora um acidente. Alguém tinha eliminado a Rainha e a Viúva Negra mais poderosas de Glácia, deixando o território vulnerável a... o quê?
Jaenelle poderia ter lhe dito, mas Jaenelle...
Karla conteve a raiva amarga que nos últimos tempos parecia prestes a explodir. Forçando-se a desviar a atenção das memórias, examinou a amante de Hobart, dando novamente uma cotovelada nas costelas de Morton.
— Pare com isso — vociferou Morton.
Karla o ignorou.
— Por que ela está usando um casaco de couro dentro de casa?
— Foi o presente de consumação do Tio Hobart.
Ela tocou com a ponta dos dedos no cabelo curto e arrepiado, com um tom louro quase branco.
— Nunca vi uma pele dessas. Não é de urso branco.
— Acho que é de gato arceriano.
— Gato arceriano? — Não podia ser. A maioria dos glacianos não caçava em Arcéria, pois os felinos de lá eram grandes e ferozes, e a probabilidade de um caçador se tornar presa era imensa. Além disso, havia algo errado com aquela pele. Podia perceber isso mesmo à distância. — Vou até lá prestar homenagem.
— Karla. — O aviso na voz de Morton não dava margem para dúvidas.
— Vou lá! Beijos! — Sorriu perversamente e deu um abraço afetuoso no primo antes de se dirigir ao grupo de mulheres que admirava o casaco.
Foi fácil se misturar discretamente. Algumas mulheres repararam na sua presença, mas estavam mais interessadas na menina que tagarelava — Karla não conseguia chamá-la de Irmã.
— ... caçadores de um lugar distante — dizia a menina.
— Tenho uma gola feita de couro arceriano, mas não é tão luxuosa como esta — disse, cheia de inveja, uma das mulheres.
— Esses caçadores descobriram um jeito novo de recolher a pele. Hobie me disse depois que... — Ela soltou uma risadinha.
— Como?
— É segredo.
A isso seguiram-se alguma súplicas sussurradas.
Hipnotizada pela pele, Karla tocou-a no exato momento em que a garota voltou a dar uma risadinha, e disse:
— Esfolam o gato vivo.
Afastou a mão na hora, sobressaltada. Vivo.
E parte da energia do ser que tinha vivido naquela pele ainda permanecia ali. Era isso que a tornava tão luxuosa.
Uma feiticeira. Uma dos Sangue, a quem Jaenelle chamava de parentes.
Karla vacilou. Tinham assassinado cruelmente uma feiticeira.
Abriu caminho, empurrando as mulheres do grupo, e seguiu cambaleante em direção à porta. Passado um momento, Morton estava a seu lado, com o braço em volta da cintura da prima.
— Lá para fora — disse ela, ofegante. — Acho que vou vomitar.
Logo que saíram, Karla engoliu em seco o ar frio do inverno e começou a chorar.
— Karla — murmurou Morton, com um abraço apertado.
— Era uma feiticeira — soluçou Karla. — Era uma feiticeira e a esfolaram viva para que aquela putinha pudesse...
Sentiu um calafrio percorrer Morton, que a abraçou ainda mais forte, como se pudesse protegê-la. E tentaria protegê-la, por isso Karla não podia deixar transparecer como se sentia em perigo sempre que Tio Hobart olhava para ela. Com dezesseis anos, Morton tinha acabado de iniciar sua educação formal na corte. Era a única verdadeira família que lhe restava — e o único amigo.
A raiva amarga explodiu sem aviso.
— Já se passaram dois anos! — Empurrou Morton até que ele a soltasse. — Está em Kaeleer há dois anos e não veio nos visitar uma única vez! — Começou a caminhar furiosamente.
— As pessoas mudam, Karla — disse Morton, cauteloso. — Os amigos nem sempre permanecem sendo amigos.
— Mas não Jaenelle. Não comigo. Aquele desgraçado filho da puta do Paço dos SaDiablo a mantém presa de alguma maneira. Eu sinto, Morton. — Bateu no peito com tanta força que Morton estremeceu. — Eu sinto isso aqui dentro.
— O Conselho das Trevas o nomeou tutor legal...
Karla o interrompeu, furiosa.
— Não me venha falar de tutores, Lord Morton — silvou. — Conheço bem os “tutores”.
— Karla — disse Morton num fio de voz.
— Karla — imitou Karla com amargura. — É sempre “Karla”. É Karla quem está fora de controle. É Karla quem está emocionalmente instável, devido à aprendizagem na Assembleia da Ampulheta. É Karla quem anda emotiva demais, agressiva demais, irascível demais. Foi Karla quem abandonou todos aqueles encantadores modos afetados que os machos acham atraentes.
— Os machos não acham que...
— E é Karla quem vai acabar com o próximo filho da puta que tentar enfiar a mão ou o que quer que seja entre as suas pernas!
— O quê?
Karla deu as costas para Morton. Fogo do Inferno, Mãe Noite, que as Trevas sejam misericordiosas. Não tivera a intenção de dizer aquilo.
— Foi por isso que você cortou o cabelo desse jeito depois que Tio Hobart insistiu para que voltasse à propriedade da família? Foi por isso que queimou todos os seus vestidos e começou a usar minhas roupas velhas? — Morton agarrou seu braço, virando-a de frente para ele. — Foi por isso?
Os olhos de Karla se encheram de lágrimas.
— Uma feiticeira derrotada é uma feiticeira obediente — disse baixinho. — Não é verdade, Morton?
Morton balançou a cabeça.
— Você usa a Azul-Safira por Direito de Progenitura. Não existem machos em Glácia que usem Joias mais escuras do que a Verde.
— Um macho dos Sangue pode fazer frente à força de uma feiticeira se esperar pelo momento certo e tiver ajuda.
Morton praguejou baixinho, tomado de rancor.
— E se for por isso que Jaenelle já não vem mais nos visitar? E se ele fez com ela o mesmo que Tio Hobart quer fazer comigo?
Morton se afastou de Karla.
— Estou surpreso que você ainda tolere a minha presença.
Karla quase conseguia distinguir as feridas que a verdade tinha aberto no coração de Morton. Nada podia fazer em relação à verdade, mas havia algo que podia fazer em relação às feridas.
— Você é família.
— Sou macho.
— Você é o Morton. A exceção à regra.
Morton hesitou, para depois abrir os braços.
— Quer um abraço?
Jogando-se nos braços do primo, Karla o abraçou tão forte quanto ele a abraçou.
— Ouça — disse Morton, com a voz rouca. — Escreva uma carta ao Senhor Supremo e pergunte a ele se Jaenelle pode vir visitá-la. Peça uma resposta.
— O Velho Peidão jamais permitirá que eu envie um mensageiro ao Paço dos SaDiablo — resmungou Karla.
— Tio Hobart não vai saber. — Morton respirou fundo. — Eu mesmo entregarei a carta e aguardarei uma resposta.
Antes que Morton pudesse lhe oferecer um lenço, Karla recuou, fungou e limpou o rosto na camisa que tinha tirado do guarda-roupa do rapaz. Fungou uma vez mais e deixou de lado as emoções insignificantes.
— Karla — disse Morton, observando-a nervosamente. — Você vai escrever uma carta cordial, não é?
— Serei o mais cordial possível — garantiu.
Morton resmungou.
Oh, sim. Escreveria ao Senhor Supremo. E, de uma forma ou de outra, obteria sua resposta.
Por favor, Doces Trevas. Seja novamente minha amiga. Sinto saudades de você. Preciso de você. Reunindo as forças da Azul-Safira, lançou uma palavra às Trevas.
*Jaenelle!*
— Karla? — chamou Morton, tocando o braço da prima. — O banquete está quase começando. Temos de comparecer, nem que seja por pouco tempo.
Karla estava imóvel, nem sequer se atrevendo a respirar.
*Jaenelle?*
Passaram-se alguns segundos.
— Karla? — chamou Morton.
Karla inspirou fundo e expirou sua desilusão. Deu o braço a Morton e voltou para o salão de banquetes.
Morton ficou do lado de Karla durante o resto da noite, e ela ficou grata pela companhia. Porém, teria trocado seu carinho e proteção num instante para que aquele fraco mas sombrio toque psíquico que imaginara ter sentido fosse real.
Quando Andulvar Yaslana se instalou na cadeira em frente à mesa de madeira escura no escritório público de Saetan, este levantou os olhos da carta para a qual estivera olhando, pasmo, durante a última meia hora.
— Leia isto — disse, entregando-a a Andulvar.
Enquanto Andulvar lia a carta, Saetan contemplava, cansado, as pilhas de papéis na mesa. Tinham se passado vários meses desde que pisara no Paço pela última vez, e ainda mais tempo desde que concedera audiências às Rainhas que governavam as Províncias e os Distritos no seu Território. Seu filho mais velho, Mephis, cuidava dos assuntos oficiais de Dhemlan da melhor forma que conseguia, como vinha fazendo há séculos, mas os outros...
— Cadáver chupador de sangue? — cuspiu Andulvar.
Com certo deleite, Saetan observou Andulvar rosnar ao ler o resto da carta. Não tinha achado graça nenhuma ao lê-la pela primeira vez, mas a assinatura e a caligrafia de adolescente tinham abrandado sua fúria — e adicionado uma outra camada à sua tristeza.
Andulvar jogou a carta na mesa.
— Quem é Karla e como se atreve a lhe escrever algo assim?
— Não só se atreve, como aguarda uma resposta pelo mensageiro.
Andulvar resmungou alguma obscenidade.
— E quem ela é... — Saetan invocou a pasta de arquivo que normalmente mantinha trancada a chave no seu escritório particular, embaixo do Paço. Folheou as páginas repletas de suas próprias anotações e entregou uma delas a Andulvar.
Os ombros de Andulvar desmoronaram ao lê-la.
— Maldição.
— Pois é. — Saetan voltou a colocar a folha na pasta, fazendo-a desaparecer em seguida.
— O que você vai dizer?
Saetan se recostou na cadeira.
— A verdade. Ou parte dela. Consegui manter longe o Conselho das Trevas durante dois anos, negando seus pedidos, que não deixavam de ser sensatos, para ver Jaenelle. Nunca apresentei qualquer explicação para essas recusas, deixando que pensassem o que quisessem... e sei bem o que decidiram pensar. Mas os amigos dela? Até agora eram muito jovens, ou talvez não suficientemente corajosos, para questionar o que teria acontecido a ela. Mas eis que começaram a questionar. — Endireitou a cadeira e chamou Beale, o Senhor da Guerra de Joia Vermelha que trabalhava como mordomo do Paço.
— Mande entrar o mensageiro — ordenou Saetan quando Beale apareceu.
— Devo sair? — perguntou Andulvar, sem fazer menção de ir embora.
Saetan deu de ombros, preocupado com a forma como responderia à carta. Não tinha havido muito contato entre Dhemlan e Glácia nos últimos anos, mas ele ouvira o suficiente sobre Lord Hobart e suas ligações com a Pequena Terreille para decidir que a resposta seria verbal em vez de escrita.
Muitos séculos antes, a Pequena Terreille tinha sido povoada por terreillianos ansiosos para começar uma nova vida numa nova terra. Mesmo assim, as pessoas nunca se sentiram à vontade com as raças nascidas no Reino das Sombras. Por isso, ainda que a Pequena Terreille fosse um Território em Kaeleer, tinha procurado companhia e orientação no Reino de Terreille — e ainda o fazia, embora a maior parte dos terreillianos já não acreditasse na existência de Kaeleer, uma vez que o acesso ao Reino estava há tanto tempo limitado. O que significava que qualquer companhia e orientação oriundas de Terreille tinham agora origem em Dorothea, de uma forma ou de outra — e isso era motivo suficiente para levantar suspeitas.
Saetan e Andulvar trocaram olhares rápidos quando Beale introduziu o mensageiro no escritório.
Andulvar enviou um pensamento por uma linha Vermelha.
*É muito novo para ser um mensageiro oficial.*
Concordando em silêncio com a avaliação de Andulvar, Saetan ergueu a mão direita. Uma cadeira que estava junto à parede flutuou até diante da mesa.
— Sente-se, por favor, Senhor da Guerra.
— Obrigado, Senhor Supremo. — O jovem tinha a pele clara, o cabelo louro e os olhos azuis característicos do povo de Glácia. Apesar de jovem, movimentava-se com a típica segurança das famílias da aristocracia e reagia com uma confiança no Protocolo que indicava uma educação na corte.
Não é um mensageiro qualquer, pensou Saetan, enquanto observava o jovem se controlando para permanecer imóvel. Por que então está aqui, rapaz?
— Meu mordomo deve estar tendo um dia difícil, uma vez que se esqueceu de apresentá-lo quando você entrou — disse Saetan com calma. Juntou os dedos das mãos, pousando no queixo as longas unhas, pintadas de preto.
O jovem ficou ligeiramente pálido ao ver o anel com a Joia Negra. Passou a língua pelos lábios.
— Meu nome é Morton, Senhor Supremo.
Agora já não tem tanta certeza assim de que o Protocolo vai protegê-lo, não é, rapaz? Saetan não permitiu que sua satisfação transparecesse. Se o rapaz tinha a pretensão de abordar um Príncipe dos Senhores da Guerra de Joia Negra, era melhor que aprendesse desde já quais eram os possíveis perigos.
— E a quem você serve?
— Eu... eu ainda não sirvo exatamente numa corte.
Saetan levantou uma sobrancelha.
— Presta serviço a Lord Hobart? — perguntou, soando um pouco mais frio.
— Não. Ele é apenas o chefe da família. É uma espécie de tio.
Saetan pegou a carta e entregou-a Morton.
— Leia isto.
Enviou um pensamento a Andulvar.
*O que ele está tramando? Esse garoto não tem experiência suficiente para...*
— Nããão — gemeu Morton. A carta caiu no chão. — Ela me prometeu que seria cordial. Eu disse a ela que aguardaria uma resposta e ela prometeu. — Corou, para logo em seguida empalidecer. — Vou enforcá-la.
Mediante a Arte, Saetan recuperou a carta. As dúvidas que pudesse ter sobre sua motivação estavam esclarecidas, mas tinha curiosidade em saber por que o assunto estava sendo levantado justo naquele momento.
— Qual a sua relação com Karla?
— É minha prima — respondeu Morton, perturbado.
— Sinto muito — disse Andulvar, fazendo barulho com as asas negras ao se mexer na cadeira.
— Obrigado, senhor. É melhor quando Karla gosta de nós do que quando não gosta, mas... — Morton deu de ombros.
— Sim — disse Saetan friamente. — Tenho uma amiga que produz um efeito semelhante em mim. — Riu entre os dentes, diante do olhar de espanto de Morton. — Garoto, mesmo quando se trata de mim uma feiticeira difícil não se torna menos difícil.
*Especialmente uma Harpia Dea al Mon*, comentou Andulvar, divertido. *Já se recuperou da última tentativa dela em se mostrar útil?*
*Se você vai ficar aí sentado, seja útil*, replicou Saetan.
Andulvar virou-se para Morton.
— E sua prima manteve a promessa? — Ao ver que o rapaz o olhava com uma expressão vazia, acrescentou: — Estava sendo cordial?
As pontas das orelhas de Morton ficaram vermelhas. Ele deu de ombros, impotente.
— Tratando-se de Karla... acho que sim.
— Oh, Mãe Noite — murmurou Saetan. De repente, um pensamento se abateu sobre ele, fazendo-o se engasgar. Esperou o tempo necessário para recuperar o fôlego e considerar algumas possibilidades bastante desagradáveis.
Quando, por fim, recuperou o controle, escolheu as palavras com todo o cuidado.
— Lord Morton, seu tio não sabe que está aqui, não é? — O olhar nervoso de Morton bastou como resposta. — Onde ele pensa que você está?
— Em outro lugar.
Saetan estudou Morton, fascinado pela imperceptível mudança no seu porte. Já não era um jovem intimidado pelo ambiente onde estava, nem pelos machos que enfrentava. Era um Senhor da Guerra que protegia sua jovem Rainha. Está enganado, garoto, pensou Saetan. Você já escolheu aquela a quem serve.
— Karla... — Morton organizou seus pensamentos. — Não é fácil para ela. Ela usa a Azul-Safira de Direito por Progenitura e é Rainha e Viúva Negra natural, além de Curandeira, e Tio Hobart...
Saetan ficou tenso diante do ressentimento nos olhos azuis de Morton.
— Ela e Tio Hobart não se dão muito bem — concluiu Morton, de modo pouco convincente, desviando o olhar. Quando voltou a encarar Saetan, parecia muito jovem e vulnerável. — Sei que Karla quer que ela vá visitá-la como antes, mas Jaenelle não poderia ao menos lhe escrever uma mensagem curta? Só para dizer olá?
Saetan fechou os olhos dourados. Tudo tem um preço, pensou. Tudo tem um preço. Respirou fundo e abriu os olhos.
— Eu realmente desejo, com todo o meu ser, que ela pudesse fazê-lo. — Voltou a respirar fundo. — Ninguém mais pode saber o que vou lhe dizer, apenas sua prima. Preciso que me prometa guardar segredo.
De imediato, Morton assentiu com a cabeça.
— Jaenelle foi seriamente ferida há dois anos. Não pode escrever, não pode se comunicar de modo algum. Ela... — Saetan se deteve, e apenas prosseguiu após ter certeza de que era capaz de manter a voz firme. — Não reconhece ninguém.
Morton pareceu prestes a desmaiar.
— Como? — sussurrou, por fim.
Saetan procurou a resposta certa. A alteração na expressão de Morton lhe disse que não precisava ter se dado o trabalho. O rapaz compreendera o silêncio.
— Então Karla tinha razão — disse Morton, amargo. — Um macho não precisa ser assim tão forte se souber escolher o momento certo.
Saetan se endireitou de repente na cadeira.
— Karla está sendo pressionada a se entregar a um macho? Com quinze anos?
— Não. Não sei. Talvez. — As mãos de Morton apertaram os braços da cadeira. — Ela estava segura quando morava com as Viúvas Negras, mas agora que voltou à propriedade da família...
— Fogo do Inferno, rapaz! — gritou Saetan. — Mesmo que não se entendam, por que seu tio não a protege?
Morton mordeu o lábio, sem dizer nada.
Estupefato, Saetan afundou outra vez na cadeira. De novo, não. Não aqui. Não em Kaeleer. Será que aqueles tolos não compreendiam o que era perdido quando se destruía uma Rainha daquela forma?
— Agora você precisa ir — disse Saetan, com delicadeza.
Morton assentiu com a cabeça e levantou-se para sair.
— Transmita outra mensagem a Karla. Caso seja necessário, concederei refúgio a ela no Paço e lhe darei minha proteção. E a você também.
— Obrigado — disse Morton. E saiu, depois de fazer uma reverência a Saetan e a Andulvar.
Saetan pegou a bengala de ponta prateada e caminhou com dificuldade até a porta.
Andulvar se antecipou, mantendo-a fechada com a mão.
— O Conselho das Trevas clamará por sangue se você conceder proteção a outra garota.
Saetan nada disse durante muito tempo. Depois, sorriu para Andulvar de uma forma puramente maléfica.
— Se o Conselho das Trevas for tão mal orientado a ponto de acreditar que Hobart é melhor tutor do que eu, então eles merecem ver alguns dos marcos mais inusitados do Inferno, não acha?
Não sentia qualquer dor física, mas a agonia era inexorável.
As palavras mentem. O sangue, não.
Você é meu instrumento.
Carniceiro filho da puta.
Vagou por uma paisagem enevoada repleta de memórias despedaçadas, cálices de cristal despedaçados, sonhos despedaçados.
Por vezes, ouvia um grito de desespero.
Por vezes, via de relance uma menina com longos cabelos louros que fugia dele. Seguia-a sempre, desesperado para alcançá-la, aflito para explicar...
Não conseguia se lembrar do que precisava explicar.
Não tenha medo, gritava para ela. Por favor, não tenha medo.
Contudo, ela continuava a correr e ele continuava a segui-la por uma paisagem repleta de caminhos tortuosos que davam em lugar nenhum e cavernas cheias de ossos e manchas de sangue.
Para baixo, sempre para baixo.
Seguia-a, suplicando o tempo todo para que esperasse por ele, implorando o tempo todo para que não tivesse medo, sempre na esperança de ouvir o som da sua voz, ansiando incessantemente por ouvi-la pronunciar seu nome.
Se ao menos conseguisse se lembrar.
Hekatah ajeitou cuidadosamente as pregas do manto comprido enquanto aguardava que os guardas trouxessem o cildru dyathe à sua presença. Suspirou, satisfeita, ao afagar o forro de couro do manto. Pele arceriana. A pele de um Senhor da Guerra. Podia sentir a raiva e o sofrimento encurralados naquele couro.
Os parentes. Os Sangue quadrúpedes. Comparados aos humanos, possuíam mentes simples, incapazes de conceber a grandiosidade ou a ambição. Contudo, eram protetores ferozes quando dedicavam sua lealdade a alguém — e igualmente ferozes se essa lealdade fosse traída.
Ela cometera alguns pequenos erros da última vez que tentara se tornar Sacerdotisa Suprema de todos os Reinos, erros que lhe custaram a guerra entre Terreille e Kaeleer 50 mil anos antes. Um deles fora subestimar a força dos Sangue que viviam no Reino das Sombras. O outro fora subestimar os parentes.
Uma de suas primeiras providências depois de se recuperar do choque de ser demônia-morta foi exterminar os parentes em Terreille. Alguns fugiram e conseguiram sobreviver, mas não em número suficiente. Tiveram de procriar com animais plebeus e, ao longo do tempo, o cruzamento das diferentes raças provavelmente produziu criaturas próximas dos Sangue, mas sem força suficiente para usar uma Joia.
No entanto, os parentes selvagens em Kaeleer se retiraram para seus próprios Territórios logo após a guerra e teceram inúmeros feitiços para proteger suas fronteiras. Quando essas fortes defesas se enfraqueceram a ponto de alguém conseguir sobreviver ao ultrapassá-las, os parentes se tornaram pouco mais do que mitos.
Hekatah começou a andar de um lado para outro. Fogo do Inferno! Quanto tempo seria necessário para dois homens adultos pegarem um rapaz?
Depois de um minuto, parou e voltou a ajeitar as pregas do manto. Não poderia permitir que o rapaz percebesse qualquer indício da impaciência que sentia. Isso poderia torná-lo perversamente obstinado. Tocou no forro de couro do manto, deixando que o toque a acalmasse.
Ao longo dos séculos em que aguardara até que Terreille voltasse a ser um prêmio valioso, tinha ajudado o Território da Pequena Terreille a manter contato com o Reino de Terreille. Mas apenas nos últimos anos estabelecera uma posição segura em Glácia, aproveitando-se da ambição de Lord Hobart.
Escolhera Glácia por tratar-se de um Território do Norte cujo povo poderia ser mais facilmente isolado dos Sangue de outros Territórios; ali vivia Hobart, um macho de ambições superiores às suas capacidades; e havia ali também um Altar das Trevas. Assim, pela primeira vez em muito tempo, Hekatah possuía um Portão ao seu dispor e uma forma de infiltrar em Kaeleer machos criteriosamente escolhidos, dedicados à tarefa de caçar presas estimulantes.
Esse não era seu único joguinho em Kaeleer, porém os outros exigiam tempo e paciência — e a garantia de que, desta vez, nada interferiria em suas ambições.
E era por isso que ela estava aqui, na ilha das cildru dyathe.
Estava prestes a questionar a lealdade dos guardas demônios quando por fim eles voltaram, arrastando um rapaz que se debatia. Rogando pragas enfurecidas, encurralaram-no contra um paredão alto e liso.
— Não o machuquem — advertiu Hekatah.
— Sim, Sacerdotisa — respondeu um dos guardas, taciturno.
Hekatah examinou o rapaz, que lhe devolveu o olhar fixo. Char, o jovem Senhor da Guerra líder das cildru dyathe. Não era difícil perceber como tinha adquirido essa designação. De que forma teria conseguido salvar do fogo tanto do seu corpo? Provavelmente tinha grande talento na Arte para alguém tão jovem. Hekatah deveria ter percebido isso sete anos antes, ao se envolver com ele pela primeira vez. Bem, agora poderia corrigir facilmente esse equívoco.
Hekatah se aproximou devagar, apreciando a cautela nos olhos do rapaz.
— Não pretendo lhe fazer mal, Senhor da Guerra — cantarolou. — Apenas preciso da sua ajuda. Sei que Jaenelle caminha entre as cildru dyathe. Quero vê-la.
O que restava dos lábios de Char formou um sorriso maldoso.
— Nem todas as cildru dyathe estão nesta ilha.
Os olhos dourados de Hekatah brilharam de fúria.
— Você está mentindo. Invoque-a. Agora!
— O Senhor Supremo está a caminho. — disse Char. — Chegará a qualquer momento.
— Por quê? — perguntou Hekatah.
— Porque eu o mandei chamar.
— Por quê?
Os olhos de Char se iluminaram com uma luz estranha.
— Ontem eu vi uma borboleta.
Hekatah queria gritar de frustração. Em vez disso, ergueu a mão, os dedos curvados como uma garra.
— Se tem apreço pelos seus olhos, Senhorzinho da Guerra, invoque Jaenelle agora.
Char a encarou.
— Quer realmente vê-la?
— SIM!
Char inclinou a cabeça para trás e emitiu um uivo estranho e selvagem.
Enervada pelo som, Hekatah esbofeteou-o para que parasse.
— HEKATAH!
Hekatah fugiu da fúria na voz retumbante de Saetan. Ao olhar de relance para trás por sobre o ombro, deteve-se, com um choque de excitação que fez seus nervos ficarem à flor da pele.
Saetan apoiava-se numa bengala de ponta prateada com os olhos dourados brilhando de raiva. O espesso cabelo negro estava mais grisalho e seu rosto tenso de exaustão. Parecia... gasto.
E usava apenas a Joia Vermelha de Direito por Progenitura.
Ela nem sequer se deu o trabalho de se lançar numa rápida queda para reunir toda a sua força. Simplesmente levantou a mão e libertou o poder no anel com a Joia Vermelha em direção à perna debilitada de Saetan.
O grito de dor que ele soltou ao cair era o som mais agradável que ela ouvira nos últimos anos.
— Agarrem-no! — gritou aos demônios.
Um vento frio e suave suspirou pela ilha.
Os guardas hesitaram por um momento, mas, quando Saetan tentou se erguer sem sucesso, desembainharam as facas e correram na sua direção.
O chão estremeceu de leve. Uma névoa rodopiou em volta das rochas, pelas terras áridas.
Hekatah também correu para Saetan, desejando ver as facas entrando bem fundo na sua carne, ansiando por ver correr o seu sangue. O sangue de um Guardião! A excelência, o vigor nele contido! Primeiro se deliciaria com ele, para depois se ocupar daquele demoniozinho arrogante.
Do abismo emergiu um uivo, um som repleto de júbilo e de dor, de raiva e de celebração.
Foi então que a ilha das cildru dyathe foi inundada por uma onda de poder negro. Relâmpagos psíquicos queimaram o céu crepuscular do Inferno. Trovões fizeram a terra estremecer. Os uivos continuaram sem trégua.
Hekatah caiu no chão, encolhendo-se o máximo que pôde.
Seus demônios gritaram numa agonia desesperadora.
Vá embora, implorou Hekatah em silêncio. O que quer que seja, vá embora.
Alguma coisa gelada e terrível roçou seus limites interiores, e Hekatah esvaziou a mente.
Quando desvaneceu, também a tempestade de feiticeira havia desvanecido.
Hekatah sentou-se com esforço. Sua garganta se agitava convulsivamente quando ela viu o que tinha restado dos demônios.
Não havia vestígios de Saetan nem de Char.
Hekatah levantou-se devagar. Teria sido Jaenelle — ou o que restava de Jaenelle? Talvez ela não fosse cildru dyathe. Talvez tivesse se dissipado de demônio em fantasma e tudo o que restava era aquele poder incorpóreo.
Ainda bem que ela estava morta, pensava Hekatah enquanto pegava um Vento Branco e viajava de volta para o edifício de pedra que reclamava como seu. Ainda bem que o que quer que restasse de Jaenelle tinha sua presença limitada ao Reino das Sombras. Tentar controlar aquele poder selvagem... Ainda bem que a garota estava morta.
A dor o envolvia e preenchia. Sua cabeça parecia não funcionar. Ele tateou e caminhou, desesperado para alcançar as vozes abafadas que ouvia à sua volta: a voz profunda e irritada de Andulvar, a aflição de Char.
Fogo do Inferno! Por que estavam sentados ali? Pela primeira vez em dois anos, Jaenelle tinha respondido ao chamado de alguém. Por que eles não estavam tentando mantê-la ao alcance?
Porque Jaenelle deslizava pelo abismo numa profundidade grande demais para que alguém, a não ser ele próprio, sentisse a sua presença. Porém, não podia simplesmente descer ao nível da Negra e invocá-la. Precisava estar fisicamente com ela, para persuadi-la a se manter no corpo.
— Por que a tempestade da feiticeira o atingiu tão gravemente? — perguntou Char, cheio de medo.
— Porque ele é um idiota — resmungou Andulvar.
Saetan redobrou os esforços para atravessar as camadas que o envolviam a fim de rosnar para Andulvar. Talvez estivesse canalizando muita energia Negra, sem dar chance ao corpo para se recuperar. Talvez tivesse sido insensato ao não aceitar sangue fresco para manter as forças. Contudo, isso não dava a um guerreiro eyrieno o direito de agir como um Curandeiro teimoso e resmungão.
Jaenelle o teria pressionado até ele ceder.
Jaenelle. Tão próxima. Talvez ele não tivesse outra oportunidade.
Saetan debateu-se com mais força. Me ajude. Preciso alcançá-la. Me ajude.
— Senhor Supremo!
— Fogo do Inferno, SaDiablo!
Saetan agarrou o braço de Andulvar, tentando se sentar.
— Me ajude. Antes que seja tarde demais.
— Você precisa descansar — disse Andulvar.
— Não há tempo! — Saetan tentou gritar, mas só conseguiu emitir um grasnido de fúria. — Jaenelle ainda está perto o bastante para ser alcançada.
— O quê?
Quando se deu conta, estava sentado com Andulvar, que o apoiava, e Char, de joelhos à sua frente. Concentrou-se no rapaz.
— Como você a invocou?
— Não sei — lamentou Char. — Não sei. Eu estava apenas tentando manter Hekatah ocupada até você chegar. Ela insistia em ver Jaenelle, por isso pensei... Eu e Jaenelle costumávamos brincar de pique-esconde e aquele era o som que costumávamos fazer. Eu não sabia que ela responderia, Senhor Supremo. Chamei-a várias vezes daquela forma desde que ela foi embora e ela nunca respondeu.
— Até agora — disse Saetan baixinho. Por que agora? Reparou, finalmente, que estava num quarto que lhe era familiar. — Estamos na Fortaleza em Kaeleer?
— Draca insistiu em trazer você para cá — disse Andulvar.
A Senescal da Fortaleza tinha lhe cedido um quarto perto dos aposentos da Rainha. O que significava que estava a poucos metros do corpo de Jaenelle. Pura coincidência? Ou Draca também sentira a presença de Jaenelle?
— Me ajude — sussurrou Saetan.
Andulvar praticamente carregou Saetan pelos poucos metros de corredor até a porta onde Draca aguardava.
— Quando você voltar, vai beber um copo de sangue fresco — disse Draca.
Se voltar, pensou Saetan sombriamente, enquanto Andulvar o ajudava a chegar à cama onde repousava o corpo frágil de Jaenelle. Poderia não haver outra oportunidade. Iria trazê-la de volta, ou do contrário seria aniquilado.
Assim que ficou sozinho com ela, segurou sua cabeça entre as mãos, extraiu até a última gota de poder que restava nas Joias e fez uma rápida descida ao abismo, até alcançar o nível da Negra.
*Jaenelle!*
Jaenelle continuava planando lentamente em espiral, descendo cada vez mais, em direção ao abismo. Não sabia se ela o estava ignorando ou se não conseguia ouvi-lo.
*Jaenelle! Criança-feiticeira!*
Suas forças estavam se esgotando rapidamente. O abismo impelia sua mente, logo transformando a pressão em dor.
*Você está segura, criança-feiticeira! Volte! Você está segura!*
Jaenelle escapava para cada vez mais longe do seu alcance. No entanto, minúsculos redemoinhos de poder ondulavam até Saetan, que conseguia saborear a raiva neles contida.
Pique-esconde. Uma brincadeira de crianças. Durante dois anos, ele tinha enviado uma mensagem de amor e de segurança para as profundezas do abismo. Durante esse mesmo período, Char tinha enviado convites para uma brincadeira.
Silêncio.
Em pouco tempo, Saetan teria de ascender ou seria destruído.
Quietude.
Pique-esconde. Ele não tinha entrado naquele jogo?
Aguardou, cada segundo uma luta.
*Criança-feiticeira.*
Ela se chocou contra ele, sem aviso prévio. Preso pela fúria em espiral, ele não conseguia perceber se estavam subindo ou descendo.
Ouviu vidro se estilhaçando no mundo físico, ouviu alguém gritar. Sentiu algo no peito, logo abaixo do coração, com força suficiente para lhe cortar a respiração.
Sem saber o que mais poderia fazer, abriu completamente suas barreiras interiores, num gesto de entrega total. Esperava que Jaenelle entrasse de rompante, dilacerando-o. Em vez disso, sentiu uma curiosidade sobressaltada e um toque leve como uma pluma.
Foi então que Jaenelle o arremessou para fora do abismo.
O súbito regresso ao mundo físico o deixou aturdido, com os sentidos confusos. Devia ser por causa disso que pensou ter visto um pequeno chifre espiralado no meio da testa de Jaenelle. Devia ser por causa disso que suas orelhas pareciam levemente pontudas, a juba loura, uma mistura de pelo e cabelo humano. Devia ser por causa disso que seu coração parecia bater freneticamente na mão de alguém.
Fechou os olhos, tentando dominar a tontura. Ao abri-los, depois de um momento, todas as alterações no aspecto de Jaenelle tinham desaparecido, mas no seu peito permanecia aquela estranha sensação.
Ofegante, olhou para baixo, sentindo dedos fechando-se em volta do seu coração.
A mão de Jaenelle estava cravada no seu peito. Quando ela a retirasse, arrancaria seu coração. Não importava. Já lhe pertencia muito antes de conhecê-la. E isso o enchia de uma sensação singular de orgulho, quando se recordava da frustração e da alegria que tinha sentido ao tentar lhe ensinar a atravessar um objeto sólido.
Os dedos pressionaram com mais força.
Os olhos de Jaenelle se abriram. Eram insondáveis lagos azul-safira que nada reconheciam, que nada continham a não ser uma raiva profunda e desumana.
Pestanejou. Os olhos se turvaram, ocultando tantas coisas. Voltou a pestanejar e olhou para Saetan.
— Saetan? — disse, com a voz entorpecida.
Os olhos de Saetan se encheram de lágrimas.
— Criança-feiticeira — sussurrou, rouco.
Suspirou quando Jaenelle moveu a mão ligeiramente.
Ela olhou estupefata para o peito de Saetan e franziu a sobrancelha.
— Ah. — Abriu os dedos devagar e retirou a mão.
Saetan esperava ver sangue na mão de Jaenelle, mas ela estava limpa. Uma rápida verificação interna levou-o a concluir que se sentiria dolorido durante alguns dias, mas Jaenelle não tinha provocado danos. Inclinou-se para a frente, apoiando a testa na dela.
— Criança-feiticeira — sussurrou.
— Saetan? Está chorando?
— Sim. Não. Não sei.
— Você devia descansar. Parece doente.
Ele se sentiu exausto ao mover o corpo, posicionando-o junto ao dela. Quando Jaenelle se virou e se aninhou junto a ele, abraçou-a e ficou quieto.
— Tentei chegar a você, criança-feiticeira — murmurou, com o rosto encostado na cabeça de Jaenelle.
— Eu sei — disse ela, sonolenta. — Às vezes conseguia ouvir você, mas precisava encontrar todos os pedaços para poder reconstruir o cálice de cristal.
— Conseguiu? — perguntou Saetan, mal se atrevendo a respirar.
Jaenelle assentiu.
— Alguns pedaços estão turvos e ainda não encaixam bem. — Fez uma pausa. — Saetan? O que aconteceu?
Ele foi invadido pelo pavor, incapaz de reunir a coragem para responder de forma honesta àquela pergunta. O que Jaenelle faria se lhe dissesse o que acontecera? Se rompesse a ligação com o corpo e fugisse novamente para o abismo, Saetan não tinha certeza se conseguiria convencê-la a voltar.
— Você estava ferida, minha querida. — Abraçou-a com mais força. — Mas vai ficar bem. Vou ajudá-la. Nada pode feri-la, criança-feiticeira. Você tem que se lembrar disso. Aqui está em segurança.
Jaenelle franziu a sobrancelha.
— Aqui onde?
— Estamos na Fortaleza. Em Kaeleer.
— Ah. — Suas pálpebras estremeceram e fecharam-se.
Saetan apertou seu ombro. Depois a balançou.
— Jaenelle? Jaenelle, não! Não me abandone. Por favor, não vá embora.
Com esforço, Jaenelle abriu os olhos.
— Ir embora? Ah, Saetan, estou tão cansada. Tenho mesmo que ir embora?
Saetan esforçou-se para se controlar. Precisava manter a calma para que ela se sentisse segura.
— Pode ficar aqui o tempo que quiser.
— Você também vai ficar?
— Nunca a deixarei, criança-feiticeira. Prometo.
Jaenelle suspirou.
— Você devia dormir um pouco — murmurou.
Saetan ficou ouvindo a respiração profunda e regular de Jaenelle durante muito tempo. Queria abrir a mente e alcançá-la, mas isso não era necessário. Podia sentir a diferença no corpo que ainda abraçava.
Em vez disso, dirigiu-se a Andulvar.
*Ela voltou.*
Um longo silêncio.
*Verdade?*
*Verdade.* E ele precisaria de sua força nos próximos dias. *Avise aos outros. E diga a Draca que aceito agora a taça de sangue fresco.*
Levado pelo instinto e por uma inquietação enervante, Saetan entrou sem bater no quarto de Jaenelle na Fortaleza.
Ela estava de pé, diante de um grande espelho, olhando fixamente para o corpo nu ali refletido.
Saetan fechou a porta e foi mancando até Jaenelle. Durante o tempo em que estivera separada do corpo, uma ligação forte o suficiente havia permanecido, permitindo que ela fosse alimentada e levada em calmos passeios que evitavam que seus músculos atrofiassem. Uma ligação forte o suficiente que permitiu que seu corpo respondesse lentamente aos seus próprios ciclos.
De modo geral, as fêmeas dos Sangue atingiam a puberdade mais tarde do que as plebeias, e os corpos das feiticeiras precisavam de um tempo ainda maior de preparação para as alterações físicas que separam uma menina de uma mulher. Inibido pela ausência, o corpo de Jaenelle só tinha começado a se alterar após seu aniversário de catorze anos. Embora ainda estivesse na fase inicial de transformação, já não parecia o corpo de uma menina de doze anos.
Saetan se deteve a alguns centímetros de Jaenelle. Os olhos azul-safira encontraram os dele no espelho, e Saetan teve de se esforçar para manter uma expressão indiferente.
Aqueles olhos. Límpidos e selvagens e perigosos antes de vestir a máscara de humanidade. E era uma máscara. Não era como a dissimulação a que se dedicava quando criança para manter em segredo o fato de ser uma feiticeira. Era um esforço deliberado para ser, simplesmente, humana. E isso o assustava.
— Eu devia ter lhe contado — disse Saetan, baixinho. — Devia tê-la preparado. Mas você dormiu durante a maior parte dos últimos quatro dias, e eu... — As palavras se perderam.
— Quanto tempo? — perguntou, com uma voz profunda e sombria.
Saetan teve de pigarrear antes de conseguir responder.
— Dois anos. Na verdade, um pouco mais. Você vai completar quinze anos daqui a algumas semanas.
Jaenelle nada disse e Saetan não soube como preencher o silêncio.
Foi então que ela se virou, encarando-o.
— Quer fazer sexo com este corpo?
Sangue. Tanto sangue.
O estômago de Saetan se embrulhou. A máscara de Jaenelle caiu. E, por mais que se esforçasse, não conseguia distingui-la naqueles olhos safira.
Precisava responder. Precisava responder corretamente.
Inspirou fundo e expirou devagar.
— Agora sou seu tutor legal. Seu pai adotivo, se preferir assim. E os pais não fazem sexo com suas filhas.
— Ah não? — perguntou, num murmúrio sombrio.
O chão desapareceu sob os pés de Saetan. O quarto começou a girar. Teria caído se Jaenelle não o tivesse segurado pela cintura.
— Não use a Arte — resmungou entre dentes.
Tarde demais. Jaenelle já o estava conduzindo, flutuando, para o sofá. Deixando-o cair ali, sentou-se a seu lado e afastou o cabelo do pescoço.
— Você precisa de sangue fresco.
— Não, não preciso. Estou só um pouco tonto. — Além disso, vinha bebendo uma taça de sangue humano fresco duas vezes por dia nos últimos quatro dias, quase a quantidade que consumia em um ano.
— Você precisa de sangue fresco. — Na sua voz, percebia-se uma veemência inegável.
O que precisava era encontrar o sacana que a havia estuprado e despedaçá-lo centímetro por centímetro.
— Não preciso do seu sangue, criança-feiticeira.
Os olhos de Jaenelle faiscaram de raiva. Ela cerrou os dentes.
— Não há nada de errado com o meu sangue, Senhor Supremo — silvou. — Não está impuro.
— É claro que não está impuro — retrucou Saetan.
— Então por que não aceita a oferta? Nunca o recusou antes.
Nos olhos azul-safira agora havia nuvens e sombras. Parecia que, para ela, o preço da humanidade eram a vulnerabilidade e a insegurança.
Pegando a mão de Jaenelle, beijou os nós dos seus dedos e se perguntou se poderia sugerir delicadamente que vestisse um roupão, sem ofendê-la. Uma coisa de cada vez, SaDiablo.
— São três as razões pelas quais não quero o seu sangue neste momento. Em primeiro lugar, enquanto você não se fortalecer, precisa de cada gota para você mesma. Em segundo lugar, seu corpo está mudando, de criança para mulher, e o vigor do sangue também muda. Por isso, é melhor testá-lo antes para que eu não beba relâmpagos líquidos.
Isso a fez soltar uma risadinha.
— E, em terceiro lugar, Draca também decidiu que preciso de sangue fresco.
Jaenelle arregalou os olhos.
— Oh. Coitadinho do meu papai. — Mordeu o lábio. — Posso chamá-lo assim? — perguntou com voz fraca.
Ele a abraçou e apertou-a junto ao corpo.
— Ficarei honrado em ser chamado de “papai”. — Deu um beijo na testa de Jaenelle. — O quarto está um pouco frio, criança-feiticeira. Não acha melhor vestir um roupão? E calçar um par de chinelos?
— Já está parecendo um pai — resmungou ela.
Saetan sorriu.
— Esperei muito tempo para me dedicar a uma filha. Pretendo aproveitar o máximo.
— Ah, que sorte a minha — resmungou Jaenelle.
Saetan riu.
— Não. Que sorte a minha.
Saetan olhou fixamente para o tônico na pequena taça de vidro escuro e suspirou. Estava levando a taça à boca quando alguém bateu à porta.
— Entre — disse, ansioso.
Andulvar entrou, seguido pelo neto, Prothvar, e por Mephis, o filho mais velho de Saetan. Prothvar e Mephis, assim como Andulvar, tinham se tornado demônios-mortos no decorrer da remota guerra entre Terreille e Kaeleer. Geoffrey, o historiador e bibliotecário da Fortaleza, entrou por último.
— Prove isto — disse Saetan, estendendo a taça a Andulvar.
— Por quê? — perguntou Andulvar, examinando-a. — O que tem aí?
Maldita prudência eyriena.
— É um tônico que Jaenelle preparou para mim. Ela diz que ainda pareço doente.
— E parece mesmo — rosnou Andulvar. — Por isso, beba.
Saetan rangeu os dentes.
— Não cheira mal — disse Prothvar, juntando ainda mais as asas quando Saetan o fulminou com o olhar.
— O gosto também não é ruim — afirmou Saetan, tentando ser justo.
— Então qual é o problema? — perguntou Geoffrey, cruzando os braços. Franziu as sobrancelhas negras ao olhar para a taça, acentuando o bico de viúva do cabelo. — Teme que ela não tenha formação suficiente para preparar esse tipo de tônico? Acha que ela pode ter cometido algum erro?
Saetan ergueu uma sobrancelha.
— Estamos falando de Jaenelle.
— Ah — disse Geoffrey, observando a taça com certa agitação. — Sim.
Saetan estendeu-a na direção do bibliotecário.
— Diga-me o que acha.
Andulvar pôs as mãos nos quadris.
— Por que está tão ansioso para dividi-lo? Se não tem nenhum problema, por que não o bebe você mesmo?
— Eu bebo. Tenho bebido. Todos os dias nas últimas duas semanas — queixou-se Saetan. — Mas é tão... potente. — A última palavra era praticamente uma súplica.
Geoffrey pegou a taça, bebeu um pequeno gole, envolveu o líquido com a língua e engoliu. Ao passar a taça para Andulvar, começou a respirar com dificuldade e pôs as mãos sobre o estômago.
— Geoffrey? — Alarmado, Saetan segurou Geoffrey pelo braço enquanto o velho Guardião balançava.
— É assim que devemos nos sentir? — sussurrou Geoffrey.
— Assim como? — perguntou Saetan, cautelosamente.
— Como se o estômago tivesse sido atingido por uma avalanche.
Saetan suspirou de alívio.
— Isso não dura muito tempo, e o tônico tem, de fato, poderes curativos espantosos, mas...
— A sensação inicial é um pouco perturbadora.
— Justamente — confirmou Saetan, com frieza.
Andulvar observou os dois Guardiões e encolheu os ombros. Tomou um trago e passou a taça para Prothvar, que, por sua vez, tomou um trago, passando-a a Mephis.
Quando a taça voltou para Saetan, ainda tinha dois terços do líquido. Ele suspirou, bebeu um gole e pousou a taça numa mesa antiga vazia.
Draca bem que podia encher a mesa de bugigangas inúteis como fazem todas as pessoas, pensou, sarcástico. Assim ao menos poderia esconder o maldito tônico, já que Jaenelle colocara um habilidoso feitiço na taça, impedindo que a fizessem desaparecer.
— Fogo do Inferno — disse, por fim, Andulvar.
— O que ela colocou nisto? — perguntou Mephis, passando a mão na barriga.
Prothvar fitou Geoffrey.
— Olha, parece até que você ganhou uma corzinha.
Geoffrey fulminou o Senhor da Guerra eyrieno com o olhar.
— Por que queriam me ver? — inquiriu Saetan.
Eles ficaram estáticos. Em seguida, começaram a falar todos ao mesmo tempo.
— Sabe, SaDiablo, a fedelha...
— ... é um período difícil para uma jovem, isso eu compreendo...
— ... não quer nos ver...
— ... ficou tão tímida, de repente...
Saetan levantou a mão indicando que cessassem as explicações.
Tudo tem um preço. Ao olhar para eles, percebeu que precisava lhes dizer o que tinha sido obrigado a ver durante as últimas duas semanas. Tudo tem um preço. Porém, doces Trevas, já não pagamos o suficiente?
— Jaenelle não está curada. — Ao ver que não obtinha qualquer reação, perguntou-se se teria, de fato, verbalizado a frase.
— Explique melhor, SaDiablo — retumbou Andulvar. — O corpo está vivo e, agora que regressou, vai se fortalecer.
— Sim — respondeu Saetan, baixinho. — Seu corpo está vivo.
— E como, obviamente, ela consegue praticar mais do que Arte básica, sua teia interior deve estar intacta — disse Geoffrey.
— A teia interior está intacta — concordou Saetan. Fogo do Inferno. Por que estava prolongando isso? Porque assim que o verbalizasse, se tornaria real.
Observou o reconhecimento — e a raiva — crescendo nos olhos de Andulvar.
— O canalha que a violou conseguiu estilhaçar o cálice de cristal, não foi? — perguntou Andulvar, devagar. — Estilhaçou a sua mente e a impeliu para o Reino Distorcido. — Fez uma pausa enquanto examinava Saetan. — Ou ela foi impelida para outro lugar?
— Quem sabe o que jaz nas profundezas do abismo? — disse Saetan, amargo. — Eu não sei. Ela estaria perdida na loucura ou simplesmente caminhando por caminhos que jamais conseguiremos compreender? Não sei. Sei que ela está diferente, e há dias em que é difícil encontrar qualquer vestígio da criança que conhecemos. Ela disse que reconstruiu o cálice, e, até onde consigo perceber, foi o que de fato aconteceu. Porém, não se recorda do que ocorreu no Altar de Cassandra. Não se recorda de nada do que ocorreu nos meses anteriores àquela noite. E está escondendo alguma coisa. E é em parte por causa disso que está se afastando de nós. Sombras e segredos. Tem medo de confiar em nós por causa daquelas malditas sombras e segredos.
Mephis finalmente quebrou o longo silêncio.
— Talvez — disse devagar —, se for persuadida a nos encontrar em uma das salas públicas, só por alguns minutos de cada vez, isso a ajudaria a voltar a confiar em nós. Sobretudo se não a pressionarmos nem fizermos perguntas complicadas. — Em seguida acrescentou, triste: — Estar fechada em si mesma, vivendo no próprio corpo, seria muito diferente de estar perdida no abismo?
— Não — disse Saetan, baixinho. — Não é. — Era arriscado. Mãe Noite, como era arriscado! — Vou falar com ela.
Andulvar, Prothvar, Mephis e Geoffrey saíram depois de concordar em se encontrar com Saetan em uma das saletas menores. Saetan aguardou vários minutos antes de caminhar os poucos metros que separavam seu quarto dos aposentos da Rainha. Assim que Jaenelle constituísse sua corte, nenhum macho, à exceção do Consorte, do Administrador e do Mestre da Guarda, teria autorização para entrar naquela ala, a menos que convocado. Nem mesmo o seu tutor legal.
Saetan bateu suavemente à porta do quarto de Jaenelle. Como não obteve resposta, olhou para dentro do aposento. Vazio. Verificou a sala de estar ao lado. Também estava vazia.
Passando os dedos pelo cabelo, perguntou-se aonde teria ido sua criança teimosa. Sentia que estava por perto. Mas sabia que Jaenelle deixava um odor psíquico tão forte que, às vezes, era difícil localizá-la. Talvez tivesse sido sempre assim, mas não tinham passado juntos mais do que uma ou duas horas seguidas de cada vez. Agora, sua presença inundava a gigantesca Fortaleza, e o delicioso e sombrio odor psíquico que exalava era ao mesmo tempo um deleite e um tormento. Senti-la, ansiar do fundo do coração por abraçá-la e servi-la e ser impedido de fazer parte da sua vida...
Não poderia haver tortura maior.
E não era só por causa de Andulvar, Mephis, Prothvar e Geoffrey que estava disposto a arriscar a estabilidade emocional de Jaenelle ao lhe pedir uma aproximação. Havia mais alguém em quem não parava de pensar nos últimos tempos. Se Jaenelle não se conseguisse curar as feridas emocionais, se jamais voltasse a suportar o toque de um homem...
Ele não era a chave capaz de destrancar aquela última porta. Poderia fazer muito, mas não isso. Não era a chave.
A chave era Daemon Sadi.
Daemon... Daemon, onde está você? Por que não veio?
Saetan estava prestes a sair, para procurar Draca — Draca sempre sabia onde todos estavam na Fortaleza —, quando um som o fez virar em direção a uma porta entreaberta no fim do corredor.
Ao caminhar em direção à porta, reparou como sua perna tinha melhorado desde que Jaenelle começara a lhe administrar o tônico. Se seu estômago fosse forte o suficiente para aguentar mais duas semanas, poderia deixar de usar a bengala — e, com sorte, o tônico também.
Estava quase chegando à porta quando alguém lá dentro soltou um grito rouco sobressaltado. Ouviu-se um ruído forte e, logo em seguida, uma nuvem alfazema, cinza e cor-de-rosa saiu do quarto, seguida de uma voz feminina resmungando:
— Droga, droga, droga!
Bem devagar, a nuvem começou a baixar.
Saetan estendeu a mão e olhou espantado para as pequenas partículas alfazema, cinza e cor-de-rosa que cobriam sua pele e o punho da camisa. Sentiu um frio no estômago, uma vontade irracional de rir e fugir.
Reprimiu a risada, forçou-se a continuar firme e espreitou cautelosamente pela porta.
Jaenelle estava diante de uma grande mesa, com os braços cruzados e batendo o pé, enquanto franzia a testa para o livro de Arte que pairava sobre a mesa. As velas ao lado do livro emitiam uma agradável luz, semelhante à dos vitrais, suavizando o caos ao redor. Todo o aposento — e o seu interior, incluindo Jaenelle — estava completamente coberto de uma poeira alfazema, cinza e cor-de-rosa. Somente o livro estava limpo. Talvez Jaenelle tivesse criado um escudo à sua volta antes de começar... o que quer que fosse.
— Acho que não vou querer saber o que se passa aqui — disse Saetan, com frieza, imaginando a reação de Draca quando encontrasse aquela bagunça.
Jaenelle olhou-o de um jeito desesperado e divertido.
— Não, não vai mesmo. — Sorriu o seu melhor sorriso, incerta mas entrando na brincadeira. — De qualquer maneira, não imagino que gostaria de ajudar?
Fogo do Inferno! Durante os anos em que lhe ensinara Arte, tentando desvendar um de seus feitiços bizarros após sua concretização, ansiara por um convite desses.
— Infelizmente — disse ele, com a voz cheia de tristeza e melancolia —, temos outro assunto para tratar.
Jaenelle se sentou no ar, pondo os calcanhares no degrau inexistente de um banco imaginário, centrando em Saetan toda sua atenção.
Saetan se lembrou, tarde demais, de como era desconcertante ser o centro da atenção de Jaenelle.
Pigarreou e olhou de relance o aposento, em busca de inspiração. Afinal, talvez o escritório de Jaenelle, com as ferramentas da Arte à sua volta, fosse o melhor local para falar com ela.
Entrou no recinto e se encostou no vão da porta, um local neutro, que não invadia o território de Jaenelle, mas onde era legítimo estar.
— Estou preocupado, criança-feiticeira — disse serenamente.
Jaenelle inclinou a cabeça.
— Com o quê?
— Com você. Com a forma como nos evita. Com a forma como está se fechando, se afastando de nós.
Seus olhos se encheram de gelo.
— Todos temos limites e barreiras interiores.
— Não estou me referindo a limites e barreiras interiores — disse Saetan, sem conseguir manter a voz calma. — Claro que todos as temos. Protegem nossa teia interior e nosso Eu. Mas você construiu uma parede entre você e todos os outros, evitando qualquer contato.
— Talvez você devesse ficar grato pela parede, Saetan — rebateu Jaenelle, com uma voz sombria que fez Saetan estremecer.
Saetan. Nada de “papai”. Saetan. E não pronunciara seu nome da forma como sempre fazia. Parecia uma Rainha dirigindo-se formalmente a um Príncipe dos Senhores da Guerra.
Ele não sabia como responder àquelas palavras nem à advertência.
Jaenelle desceu do banco invisível e deu as costas para Saetan, pousando as mãos na mesa empoeirada.
— Ouça — pediu Saetan, contendo a ansiedade. — Você não pode se isolar assim. Não pode passar o resto da vida neste escritório criando feitiços magníficos que ninguém mais vai ver. Você é uma Rainha. Terá que interagir com sua corte.
— Não vou constituir uma corte.
Saetan olhou fixamente para ela, atônito.
— É claro que vai constituir uma corte. Você é uma Rainha.
Estremeceu diante do olhar fulminante de Jaenelle.
— Não sou obrigada a constituir uma corte. Já verifiquei. E não quero governar. Não quero controlar a vida de mais ninguém a não ser a minha.
— Mas você é feiticeira.
No momento em que pronunciou a frase, a temperatura do cômodo despencou.
— Sim — disse Jaenelle, com muita delicadeza. — Sou. — Virou-se para olhá-la.
Retirou a máscara de humanidade — e a máscara da carne —, deixando que Saetan a visse de fato pela primeira vez.
O pequeno chifre em espiral no meio da testa. A juba loura que não era exatamente feita de cabelo nem de pelo. As orelhas delicadamente pontudas. As mãos com as garras retraídas. As pernas que terminavam em pequenos cascos. A faixa de pelo louro que percorria as costas, terminando numa pequena cauda de alce que balançava sobre as nádegas. O rosto exótico e aqueles olhos azul-safira.
Por ter sido Consorte de Cassandra durante tantos anos, acreditava conhecer e compreender a Feiticeira. Percebeu, finalmente, que Cassandra e todas as outras Rainhas de Joia Negra que a haviam antecedido tinham sido chamadas de Feiticeira. Jaenelle era, de fato, o mito vivo, a realização dos sonhos.
Como fora tolo ao julgar que todos os sonhos tinham sido de humanos.
— Exatamente — disse a Feiticeira, em voz baixa, fria.
— Você é linda — sussurrou Saetan. E tão, tão perigosa.
Jaenelle olhou perplexa para Saetan e ele percebeu que não haveria melhor momento para dizer o que tinha de ser dito.
— Nós a amamos, senhora — começou, delicadamente. — Sempre a amamos, e ser impedidos de fazer parte da sua vida nos magoa muito além do que as palavras podem expressar. Você não faz ideia de como era difícil esperar aqueles poucos e preciosos minutos que podia passar conosco, como era difícil imaginar e preocupar-se com você sempre que não estava presente, sentir ciúmes das pessoas que não apreciavam quem você é. Agora... — Sua voz embargou. Ele juntou os lábios e respirou fundo. — Nós nos entregamos a você há muito tempo. Nem mesmo você consegue mudar isso. Faça de nós o que quiser. — Hesitou, para depois acrescentar: — Não, criança-feiticeira, não estamos gratos pela parede.
Não esperou resposta. Saiu tão rapidamente quanto conseguiu, com lágrimas brilhando nos olhos.
Atrás dele, ouviu um choro suave e angustiado.
Saetan não suportava a gentileza dos outros. Não suportava que fossem compassivos e compreensivos. Geoffrey lhe esquentara um copo de yarbarah. Mephis colocara um cobertor sobre suas pernas. Prothvar acendera o fogo para ajudar a espantar o frio. Andulvar se mantinha junto a ele, em silêncio.
Saetan tinha começado a tremer no momento em que entrou no ambiente seguro da saleta. Teria caído no chão se Andulvar não o tivesse amparado e ajudado a chegar à cadeira. Não haviam lhe perguntado nada, e, exceto por um “Não sei” murmurado com rouquidão, ele nada lhes havia dito sobre o que tinha acontecido — ou sobre o que tinha presenciado.
E todos aceitaram a resposta.
Uma hora depois, embora se sentisse um pouco recuperado física e emocionalmente, ainda não conseguia suportar aquela gentileza geral. Mas o que não conseguia suportar de jeito algum era não saber o que estava acontecendo naquele escritório.
A porta da saleta abriu-se de repente.
Jaenelle ficou parada na soleira, segurando uma bandeja com duas pequenas garrafas e cinco copos. Usava a máscara outra vez.
— Draca disse que estavam escondidos aqui — começou, na defensiva.
— Não estamos exatamente “escondidos”, criança-feiticeira — respondeu Saetan, seco. — Mas, se estivermos, há espaço para mais um. Quer se juntar a nós?
O sorriso de Jaenelle era tímido e vacilante, mas suas impetuosas pernas atravessaram agilmente a sala até chegar ao lado da cadeira de Saetan. Foi então que ela franziu a testa, virando-se para a porta.
— Este aposento era maior.
— Suas pernas eram mais curtas.
— Então é por isso que as escadas parecem tão estranhas — resmungou, enquanto enchia dois copos de uma das garrafas e três da outra.
Saetan encarou o copo que Jaenelle lhe ofereceu, sentindo o estômago estremecer.
— Humm — disse Prothvar, enquanto Jaenelle distribuía os outros copos.
— Bebam — retrucou ela rispidamente. — Nos últimos tempos vocês parecem todos doentes. — Ao ver que eles hesitavam, sua voz adquiriu um tom de fragilidade. — É apenas um tônico.
Andulvar bebeu um gole.
Benditas as Trevas pela solicitude eyriena em avançar para todo e qualquer campo de batalha, pensou Saetan ao beber, também ele, um gole.
— Quanto desse tônico você produz a cada vez, criança? — retumbou Andulvar.
— Por quê? — perguntou Jaenelle cautelosamente.
— Sabe, você tem razão quando diz que estamos todos parecendo doentes. Não faria mal se tomássemos outro copo mais tarde.
Saetan começou a tossir, a fim de esconder seu próprio desânimo e ganhar tempo para que os outros conseguissem controlar as expressões. Uma coisa era Andulvar avançar para o campo de batalha. Outra bem diferente era arrastar todos eles junto.
Jaenelle ajeitou o cabelo.
— Ele começa a perder a potência uma hora depois de produzido, mas não me custará nada fazer um pouco mais.
Andulvar assentiu, mantendo uma expressão séria.
— Obrigado.
Jaenelle sorriu timidamente e saiu da saleta.
Saetan aguardou até ter certeza de que ela já não os ouviria e virou-se para Andulvar.
— Desgraçado irresponsável — rosnou.
— Que palavras feias para um homem que vai ter de beber dois copos desta coisa todo dia — retrucou Andulvar, num tom presunçoso.
— É sempre possível jogá-lo nas plantas — disse Prothvar, olhando em volta, à procura de alguma coisa verde.
— Já tentei isso — resmungou Saetan. — O único comentário de Draca foi que se alguma outra planta morresse, pediria a Jaenelle para investigar.
Andulvar soltou um riso abafado, o que deu aos outros razão para se voltar contra ele.
— Todos esperam que os hayllianos sejam dissimulados, mas os eyrienos são conhecidos pela sua franqueza. Por isso, quando um de nós age de forma dissimulada...
— Você fez isso para que ela tivesse uma razão para nos visitar — disse Mephis, examinando o copo. — Sou grato, Andulvar, mas você não podia...
Saetan se levantou com um salto.
— Perde a potência depois de uma hora.
Andulvar ergueu o copo numa saudação.
— Isso mesmo.
Saetan sorriu.
— Se conseguirmos deixar metade de cada dose, perderá grande parte do vigor, e depois misturamos com a nova dose...
— E teremos um tônico fortificante com um vigor tolerável — concluiu Geoffrey, com ar satisfeito.
— Se ela descobrir, vai nos matar — protestou Prothvar.
Saetan levantou uma sobrancelha.
— Se levarmos todos os fatores em consideração, meu bom demônio, é um pouco tarde para nos preocuparmos com isso, não acha?
Prothvar quase corou.
Saetan semicerrou os olhos, dirigindo-se a Andulvar.
— Mas só soubemos desse detalhe depois que você pediu uma segunda dose.
Andulvar encolheu os ombros.
— A maioria das infusões medicinais tem de ser tomada pouco depois de ser produzida. Valeu a pena arriscar. — Sorriu para Saetan com a arrogância que só era possível num macho eyrieno. — De qualquer maneira, se você está admitindo que não tem coragem...
Saetan disse alguma coisa incisiva e direta.
— Sendo assim, não há problema, não é? — respondeu Andulvar.
Eles se entreolharam. Séculos de amizade, rivalidade e compreensão refletidos nos dois pares de olhos dourados. Levantaram os copos e esperaram que os outros os imitassem.
— À saúde de Jaenelle — disse Saetan.
— À saúde de Jaenelle — responderam os outros.
Suspiraram em uníssono e engoliram metade do tônico.
Não muito satisfeito, Saetan observava as luzes de Riada, a maior cidade dos Sangue em Ebon Rih e a mais próxima da Fortaleza. As luzes brilhavam na escuridão fértil do vale como fragmentos aprisionados da luz das estrelas.
Tinha visto o nascer do sol. Não, mais do que isso. Tinha permanecido num dos pequenos jardins, sentindo efetivamente o calor do sol no rosto. Pela primeira vez em séculos não sentira qualquer dor lancinante nas têmporas, não sentira uma enxaqueca tão brutal que lhe dava náusea, lembrando-o da distância que o separava dos vivos, não se sentira fraco.
Estava tão forte fisicamente como quando se tornara Guardião pela primeira vez, quando iniciara a caminhada na tênue linha que separa os vivos dos mortos.
Jaenelle e seu tônico tinham conseguido esse feito. Tinham conseguido ainda mais.
Ele havia se esquecido de como a comida podia ser sensual, e, nos últimos dias, saboreara o gosto de carne malpassada e de batatas novas, de frango assado e de legumes frescos. Havia se esquecido de como era dormir bem, em vez daquele descanso semivigilante ao qual os Guardiões normalmente se entregam durante o dia.
Também havia se esquecido de como era sentir fome e de como um homem pode ficar com a mente nublada quando está extremamente cansado.
Tudo tem um preço.
Cassandra juntou-se a Saetan na janela. Ele sorriu cauteloso.
— Hoje você está encantadora — disse, com um pequeno gesto indicando o longo vestido preto, o xale cor de esmeralda de trama aberta e o penteado do cabelo ruivo envelhecido.
— É uma pena que a Harpia não tenha se vestido de acordo com as circunstâncias — respondeu Cassandra causticamente. Fez uma expressão de desagrado. — Ao menos podia ter posto algo em volta do pescoço.
— E você podia ter evitado dizer que lhe emprestaria um vestido de gola alta — retrucou Saetan. Cerrou os dentes para não deixar sair as palavras que ainda tinha a dizer. Titian não precisava de um defensor, muito menos após as críticas que havia feito às delicadas sensibilidades das feiticeiras afetadas da aristocracia.
Observou as luzes de Riada se apagarem, uma após outra.
Cassandra respirou fundo, suspirando.
— Não deveria ser assim — disse serenamente. — As Negras não estão destinadas a ser Joias de Direito por Progenitura. Tornei-me Guardiã por acreditar que a próxima Feiticeira precisaria de uma amiga, alguém para ajudá-la a compreender o que se tornaria depois de realizar a Oferenda às Trevas. Mas o que aconteceu com Jaenelle a afetou de tal maneira que ela jamais voltará a ser normal.
— Normal? E o que significa ser “normal” para você, senhora?
Olhou com um ar mordaz para o canto do aposento, onde Andulvar, Prothvar, Mephis e Geoffrey tentavam incluir Titian na conversa, mantendo, ao mesmo tempo, uma distância respeitosa.
— Jaenelle acabou de celebrar seu décimo quinto aniversário. Em vez de uma festa e de uma sala cheia de jovens amigos, passou a noite com demônios, Guardiões... e uma Harpia. Sinceramente, você pode dizer que isso é normal?
— Já tive esta conversa antes — resmungou Saetan. — E a minha resposta continua sendo a mesma: para ela, é normal.
Cassandra examinou-o por alguns instantes antes de dizer baixinho:
— Sim, é claro que você pensaria assim, não é verdade?
Saetan olhou ao redor através de uma neblina avermelhada até conseguir recuperar a calma.
— O que quer dizer com isso?
— Você se tornou Senhor Supremo do Inferno ainda em vida. Não veria qualquer problema no fato de ela ter como companheiros de brincadeiras as cildru dyathe ou de ter uma Harpia ensinando-lhe a maneira certa de interagir com os machos.
A respiração de Saetan produzia um assobio ao passar entre os dentes.
— Quando você previu a chegada dela, disse que ela era a filha da minha alma. Mas eram apenas palavras vazias, não é verdade? Foi uma forma de garantir que eu me tornasse Guardião, para que meu poder estivesse à sua disposição e que pudesse assim proteger sua aprendiz, a jovem feiticeira que se sentaria a seus pés, intimidada pela atenção da Feiticeira de Joia Negra. Mas não foi isso que aconteceu. Aquela que chegou é, de fato, a filha da minha alma, que não se sente intimidada por ninguém nem se senta aos pés de quem quer que seja.
— Ela pode não se sentir intimidada por ninguém — disse Cassandra friamente —, mas também não tem ninguém. — Sua voz ganhou um tom mais suave. — E, por isso, tenho pena dela.
Ela tem a mim!
O rápido e arguto olhar de Cassandra lhe cortou o coração.
Jaenelle tinha Saetan. O Príncipe das Trevas. O Senhor Supremo do Inferno. Mais do que tudo, era por isso que Cassandra sentia pena dela.
— É melhor nos juntarmos aos outros — disse Saetan, tenso, oferecendo o braço a Cassandra. Apesar da raiva que sentia, não podia lhe virar as costas.
Cassandra começou a rejeitar aquele gesto de cortesia até reparar nos olhares frios de Andulvar e de Titian.
— Draca quer falar com todos nós — resmungou Andulvar quando se aproximaram e se afastou na mesma hora, dando-se espaço para esticar as asas. Espaço para lutar.
Saetan observou-o por alguns momentos e depois começou ele próprio a reforçar suas consideráveis defesas. Apesar das várias diferenças entre os dois, Saetan sempre confiara nos instintos de Andulvar.
Draca entrou na sala devagar e calmamente. Como de hábito, tinha as mãos enfiadas nas mangas compridas do manto. Esperou que os presentes se sentassem, até ter a atenção de todos, e em seguida fixou seu olhar reptil em Saetan.
— A ssenhora comemora hoje quinze anoss — afirmou Draca.
— É verdade — concordou Saetan, cautelosamente.
— Nossass ssimpless ofertass foram do sseu agrado.
Por vezes era difícil detectar inflexões na voz sibilante de Draca, mas as palavras soavam mais como uma ordem do que como uma pergunta.
— Sim — disse Saetan. — Acredito que sim.
Um longo silêncio.
— É hora de a ssenhora deixar a Fortaleza. Você é o sseu tutor legal. Tratará doss preparativoss.
Saetan sentiu um aperto na garganta. Sentiu os músculos do peito se retesarem.
— Prometi a ela que poderia ficar aqui.
— Chegou o momento de a Ssenhora partir. Viverá com você no Paço doss SsaDiablo.
— Proponho uma alternativa — disse Cassandra, rapidamente, cerrando os punhos no colo e sem dirigir o olhar para Saetan, nem sequer de relance. — Jaenelle poderia viver comigo. Todos sabemos quem, e o quê, Saetan é, mas eu...
Titian virou-se na cadeira.
— Acredita mesmo que ninguém no Reino das Sombras sabe que você é Guardiã? Acredita mesmo que conseguiu enganar alguém quando se fez passar por viva?
Os olhos de Cassandra flamejaram de raiva.
— Sempre fui cuidadosa...
— Sempre foi uma mentirosa. Pelo menos o Senhor Supremo é honesto sobre quem é.
— Mas ele é o Senhor Supremo... e essa é a questão.
— A questão é que você quer ser a pessoa a moldar Jaenelle, assim como Hekatah quer moldá-la, à imagem escolhida por você, em vez de deixá-la ser quem ela é.
— Como se atreve a falar assim comigo? Sou uma Rainha de Joia Negra!
— Não é minha Rainha — rosnou Titian.
— Senhoras. — A voz de Saetan ressoou pela sala como um suave trovão. Precisou de um momento para se acalmar antes de voltar as atenções novamente para Draca.
— Ela viverá no Paço — declarou Draca, com firmeza. — Esstá decidido.
— Se você não discutiu este assunto com nenhum de nós até agora, de quem foi a decisão? — questionou Cassandra rispidamente.
— Foi Lorn quem decidiu.
Saetan esqueceu como se respirava.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas.
Ninguém argumentou. Ninguém deixou escapar o mais ínfimo som.
Saetan percebeu que suas mãos tremiam.
— Posso falar com ele? Há coisas que talvez não compreenda sobre...
— Ele compreende, Ssenhor Ssupremo.
Saetan levantou o olhar para a Senescal de Ebon Askavi.
— Não chegou o momento certo para conhecê-lo — disse Draca. — Mass esse momento chegará. — Inclinou ligeiramente a cabeça. Era a maior deferência que demonstrava a alguém. Talvez à exceção de Jaenelle.
Eles viram Draca sair, escutaram os passos lentos e cautelosos se afastarem até o som desaparecer por completo.
Andulvar expirou ruidosamente.
— Quando ela quer cortar as pernas de alguém, sabe escolher bem a faca.
Saetan encostou a cabeça na cadeira, fechando os olhos.
— Não há dúvida.
Cassandra ajeitou minuciosamente o xale e se levantou, sem olhar para nenhum dos presentes.
— Se me dão licença, vou me recolher.
Eles se levantaram e lhe deram boa-noite.
Titian também disse que iria se recolher, mas antes de fazê-lo sorriu maliciosamente para Saetan.
— Viver no Paço com Jaenelle talvez seja complicado, Senhor Supremo, mas não pelas razões que você pensa.
— Mãe Noite — disse ele entre os dentes, antes de se virar para os outros machos.
Mephis pigarreou.
— Não vai ser fácil dizer à Jaenelle que ela precisa ir embora. Você não precisa fazer isso sozinho.
— Preciso sim, Mephis — respondeu Saetan penosamente. — Fiz uma promessa a ela. Sou eu quem devo lhe dizer que irei quebrá-la.
Deu boa-noite a todos e caminhou lentamente pelos corredores de pedra até chegar às escadas que o levariam aos aposentos de Jaenelle. Em vez de subir, apoiou-se na parede, tremendo.
Tinha prometido a ela que poderia ficar. Tinha prometido.
No entanto, Lorn decidira.
Já passava da meia-noite quando se juntou a Jaenelle no jardim privado dos seus aposentos. Ela lhe ofereceu um sorriso sonolento e descontraído e estendeu a mão. Grato, ele entrelaçou os dedos nos dela.
— Foi uma festa encantadora — disse Jaenelle, enquanto passeavam pelo jardim. — Ainda bem que você convidou Char e Titian. — Hesitou. — E lamento que tenha sido tão difícil para Cassandra.
Saetan a olhou pensativamente, quase fechando os olhos.
Jaenelle respondeu ao olhar com um dar de ombros.
— O que foi que você ouviu?
— É falta de educação ouvir as conversas dos outros — respondeu ela com tom de censura.
— Uma resposta que se esquiva habilmente à pergunta — rebateu Saetan, sarcasticamente.
— Não ouvi nada. Mas senti que todos estavam resmungando.
Saetan se aproximou de Jaenelle. Ela cheirava a flores selvagens, a campos ensolarados e a poças d’água à sombra de samambaias. Era uma fragrância delicadamente selvagem e esquiva, que fascinava os machos por não tentar capturá-los.
Tinha um efeito relaxante — e um pouco excitante.
Embora tivesse consciência de que aquela era a reação natural de um Príncipe dos Senhores da Guerra perante a Rainha à qual se sentia emocionalmente ligado, embora tivesse consciência de que jamais transporia a clara linha que separava a afeição de um pai da paixão de um amante, ainda assim se sentiu envergonhado pela reação.
Olhou para Jaenelle, buscando a lembrança de quem ela era e de como era jovem. Mas foi a Feiticeira que lhe retribuiu o olhar, que apertou sua mão para que não se rompesse a ligação física.
— Parece que até mesmo um homem sensato pode às vezes ser imponderado — disse ela, com sua voz sombria.
— Eu nunca... — A voz falhou. — Você sabe que eu nunca...
Vislumbrou um cintilar de diversão naqueles olhos antigos e perturbados.
— Sim, eu sei. Mas será que você sabe? Você adora as mulheres, Saetan. Sempre adorou. Gosta de estar perto delas. Gosta de tocá-las. — Ergueu as mãos de ambos.
— É diferente. Você é minha filha.
— Sendo assim, você manterá distância da Feiticeira? — perguntou, com tristeza.
Saetan puxou-a para os seus braços e abraçou-a tão forte que a fez soltar um guincho ofegante.
— Nunca — disse, com veemência.
— Papai? — chamou Jaenelle debilmente. — Papai, eu não consigo respirar.
Na mesma hora, ele afrouxou o abraço, mas não a largou.
O jardim foi invadido por ruídos suaves da noite. A brisa primaveril soprou.
— Este seu estado de espírito tem alguma coisa a ver com Cassandra, não tem? — perguntou Jaenelle.
— Em parte. — Pousou a face na cabeça de Jaenelle. — Precisamos deixar a Fortaleza.
O corpo de Jaenelle ficou tenso de tal forma que o de Saetan começou a doer.
— Por quê? — perguntou, por fim, inclinando-se o suficiente para trás de modo a conseguir olhar para o rosto de Saetan.
— Porque Lorn decidiu que temos de viver no Paço.
— Ah — disse ela. E acrescentou: — Não me admira que você esteja melancólico.
Saetan riu.
— Pois é. Bem, ele sabe como limitar as opções de uma pessoa. — Afastou o cabelo do rosto dela com toda a delicadeza. — Quero morar com você no Paço. Quero muito. Mas se você quiser ir para outro lugar ou se estiver reticente em sair da Fortaleza neste momento, lutarei com unhas e dentes.
Jaenelle arregalou os olhos.
— Ah, meu querido. Não acho que seja uma boa ideia. Ele é muito maior do que você.
Saetan tentou engolir, em vão.
— Ainda assim, lutarei com ele.
— Ah, meu querido. — Ela suspirou. — Vamos tentar morar no Paço.
— Obrigado, criança-feiticeira — disse ele, sem forças.
Jaenelle pôs um braço em volta da cintura de Saetan.
— Parece que as suas pernas estão tremendo.
— Então devo estar melhor do que me sinto — retrucou ele, colocando um braço em volta dos ombros de Jaenelle. — Vá, minha pequena feiticeira. Os próximos dias serão agitados, precisamos descansar.
Saetan abriu a porta da frente do Paço dos SaDiablo, adentrando um caos orquestrado.
Criadas andavam apressadas em todas as direções. Criados transportavam móveis de um aposento para outro com um objetivo que Saetan não compreendia. Jardineiros carregados de flores recém-colhidas entravam e saíam.
No centro do salão, Beale, seu mordomo de Joia Vermelha, segurava uma extensa lista em uma das mãos, enquanto com a outra orientava pessoas e volumes para seus devidos lugares.
Um pouco perplexo, Saetan dirigiu-se a Beale, na esperança de conseguir uma explicação para o que estava acontecendo. Depois de dar meia dúzia de passos, percebeu que um obstáculo ambulante não havia sido considerado naquela dança frenética. Criadas esbarraram contra ele e, quase sem alterar a expressão aborrecida ao reconhecerem o patrão, proferiram um “Perdão, Senhor Supremo” que beirava a grosseria.
Quando, por fim, ele conseguiu chegar perto de Beale, cutucou o seu ombro.
Beale olhou de relance para trás, reparou na expressão glacial de Saetan e baixou os braços. Ouviu-se, de imediato, um ruído surdo, e uma criada começou a se queixar:
— Ora, veja só o que você fez!
Beale pigarreou, puxou o colete para baixo, por sobre o cinturão, e esperou. Um mordomo um pouco ruborizado, mas novamente inabalável.
— Diga-me, Beale — advertiu Saetan —, você sabe quem sou?
Beale pestanejou.
— Você é o Senhor Supremo, Senhor Supremo.
— Ah, bom. Já que você me reconhece, ainda devo ter forma humana.
— Senhor Supremo?
— Não pareço um abajur de pé, por exemplo, por isso ninguém vai tentar me botar num canto e enfiar duas velas nas minhas orelhas. E não acho que possa ser confundido com uma antiga mesa animada que alguém pense em prender a uma cadeira para que não passeie para muito longe.
Beale parecia a ponto de entrar em pânico, mas rapidamente se recompôs.
— Não, Senhor Supremo. O senhor tem a mesma aparência que tinha ontem.
Saetan cruzou os braços e passou algum tempo ponderando a situação.
— Você acha que, se for para o meu escritório e ficar lá, talvez consiga escapar de ser desempoeirado, polido ou redecorado?
— Mas é claro, Senhor Supremo. Seu escritório foi limpo hoje de manhã.
— Irei reconhecê-lo? — murmurou Saetan.
Em seguida, foi se refugiar no escritório e suspirou de alívio. A mobília era a mesma de antes e estava disposta da mesma forma.
Tirou o casaco preto, estilo túnica, e, sentando-se na cadeira de couro atrás da mesa, arregaçou as mangas da camisa branca de seda. Contemplou a porta fechada do escritório e balançou a cabeça, mas seus olhos apresentavam um tom dourado e cálido, e seu sorriso era de compreensão. Afinal, fora ele mesmo quem provocara a comoção, ao contar a novidade antecipadamente a todos no Paço.
No dia seguinte, Jaenelle chegaria em casa.
–O filho da puta está tramando alguma coisa. Posso sentir.
Decidindo que o melhor era não dizer nada, Greer se recostou na cadeira remendada, observando Hekatah, que andava de um lado para outro.
— Durante dois gloriosos anos ele quase nem foi sentido, quanto mais visto, no Inferno ou em Kaeleer. Suas forças estavam diminuindo. Sei que estavam. Agora, voltou e está morando no Paço, em Kaeleer. Morando. Sabe há quanto tempo sua presença não era sentida num dos Reinos dos vivos?
— Há mil e setecentos anos? — respondeu Greer.
Hekatah parou e acenou afirmativamente com a cabeça.
— Mil e setecentos anos. Desde que Daemon Sadi e Lucivar Yaslana foram tirados dele. — Fechou os olhos dourados e deu um sorriso malicioso. — Como deve ter se lamentado quando Dorothea lhe negou a paternidade de Sadi na Cerimônia de Direito por Progenitura. Mas não havia nada que ele pudesse fazer sem sacrificar sua valiosa honra. Por isso retirou-se como um cão escorraçado, com o consolo de ainda ter um filho que as Viúvas Negras de Hayll não poderiam lhe exigir. — Abriu os olhos e abraçou-se. — Mas Prythian já tinha ido até a mãe do rapaz e contado a ela as meias-verdades que se pode contar aos que nada sabem sobre os Guardiões. Foi uma das poucas coisas que aquela porca alada fez direito na vida. — O entusiasmo desapareceu. — Então por que ele está de volta?
— Será que... — ponderou Greer, mas balançou a cabeça.
Hekatah bateu com os dedos no queixo.
— Será que encontrou outra queridinha para substituir seu bichinho de estimação? Ou terá finalmente decidido transformar Dhemlan em terreno de pastagem? Ou será alguma outra coisa?
Caminhou na direção de Greer, balançando os quadris e sorrindo de forma provocante, fazendo-o desejar tê-la conhecido quando podia fazer mais do que simplesmente apreciar o que aqueles movimentos insinuavam.
— Greer — sussurrou, enquanto colocava os braços em volta de seu pescoço e encostava os seios contra ele. — Quero que me faça um pequeno favor.
Greer aguardou, desconfiado.
O sorriso provocante de Hekatah tornou-se ameaçador.
— Suas bolas murcharam assim tão depressa, meu querido?
Um brilho súbito de raiva cruzou o olhar de Greer, mas ele rapidamente o ocultou.
— Quer que eu vá ao Paço em Kaeleer?
— E me arriscar a perdê-lo? — Hekatah fez beicinho. — Não, meu querido, não é necessário que entre naquele Paço sórdido. Temos um aliado leal que vive em Halaway. É maravilhoso quando se trata de recolher fragmentos preciosos de informação. Fale com ele. — Equilibrando-se nas pontas dos pés, beijou Greer levemente nos lábios. — Creio que vocês vão se dar bem. São farinha do mesmo saco.
Beale abriu a porta do escritório.
— Lady Sylvia — anunciou, desviando-se respeitosamente para dar passagem à Rainha de Halaway.
Saetan foi ao seu encontro no centro do escritório e estendeu-lhe as mãos, com as palmas viradas para baixo.
— Senhora.
— Senhor Supremo — respondeu ela, colocando as mãos por baixo das dele, com as palmas para cima num cumprimento formal, deixando os pulsos expostos às unhas do Príncipe das Trevas.
Saetan manteve a expressão neutra, mas aprovou a ligeira pressão que empurrava suas mãos para cima, a advertência sutil da força de uma Rainha. Algumas Rainhas ficavam profundamente ressentidas por terem de viver sob o acordo que as Rainhas de Terreille e de Kaeleer tinham feito com ele milhares de anos antes, visando à proteção do Território de Dhemlan em Terreille contra a invasão de Hayll. Sentiam-se profundamente melindradas por serem governadas por um macho. Algumas nunca compreenderam que, à sua maneira, ele servira sempre a uma Rainha, servira sempre à Feiticeira.
Felizmente, Sylvia não era uma delas.
Era a primeira Rainha nascida em Halaway desde que sua bisavó tinha governado, e sempre foi o orgulho do lugar. Um dia depois de constituir sua corte, fora até o Paço e, com uma delicadeza assertiva, informara a Saetan que, embora existisse para servir o Paço, Halaway era seu território e os habitantes dali eram seu povo; caso Saetan precisasse deles, Sylvia faria tudo para honrar o pedido — desde que fosse razoável.
Saetan agora lhe dirigia um sorriso afetuoso, embora prudente, acompanhando-a até a área do escritório mobiliada para conversas menos formais.
Depois que ela se instalou na ponta de uma cadeira almofadada, ele se sentou no sofá de couro preto, colocando entre os dois a mesa de madeira escura. Pegou o decantador de yarbarah, encheu umas das taças de vidro escurecido, aqueceu-a bem devagar sobre uma labareda de fogo encantado e em seguida ofereceu-a a Sylvia.
Assim que Sylvia aceitou a bebida, Saetan preparou uma taça para ele próprio, tentando não insultá-la rindo de sua expressão, a mesma que a Rainha provavelmente usaria ao receber de um de seus filhos um bicho grande e asqueroso, que só mesmo um rapazinho poderia achar encantador.
— É sangue de cordeiro — disse ele com calma, recostando-se e cruzando as pernas.
— Ah. — Ela deu um leve sorriso. — É bom?
Sua voz estava rouca devido ao nervosismo, reparou Saetan, divertido.
— Sim, é bom. Provavelmente mais do seu agrado do que o sangue humano que receava estar misturado com o vinho.
Ela bebeu um gole, tentando desesperadamente não se sentir nauseada.
— É um gosto que se vai adquirindo — disse Saetan, maliciosamente. Será que Jaenelle já tinha provado vinho de sangue? Caso não, teria de corrigir em breve essa lacuna. — Você despertou minha curiosidade. — Alterou a voz profunda, tornando-a aduladora e tranquilizadora. — Poucas Rainhas se disporiam a estar comigo à meia-noite, muito menos solicitar uma audiência.
Sylvia pousou o copo cuidadosamente na mesa, para depois pôr as mãos no colo, pressionando as pernas.
— Queria que fosse um encontro privado, Senhor Supremo.
— Por quê?
Sylvia umedeceu os lábios, respirou fundo e olhou-o nos olhos.
— Tem alguma coisa errada acontecendo em Halaway. Alguma coisa quase imperceptível. Posso sentir... — Franziu a testa e balançou a cabeça, verdadeiramente perturbada.
Saetan queria estender a mão e suavizar o vinco que surgiu entre as sobrancelhas de Sylvia.
— O que você sente?
Sylvia fechou os olhos.
— Gelo cobrindo o rio no auge do verão. A terra, improdutiva. As plantações definhando nos campos. O vento carrega um cheiro de medo, mas não consigo localizar sua origem. — Abriu os olhos e sorriu, constrangida. — Peço desculpas, Senhor Supremo. Meu último Consorte costumava dizer que eu não faço sentido quando tento explicar alguma coisa.
— É mesmo? — respondeu Saetan, com muita delicadeza. — Talvez fosse o Consorte errado, senhora. Porque eu a compreendo claramente. — Esvaziou o copo e colocou-o na mesa com cuidado exagerado. — Quem, no seu povo, está mais aflito?
Sylvia respirou fundo.
— As crianças.
O escritório foi tomado por um rosnado feroz. Só quando Sylvia olhou de relance para a porta foi que Saetan percebeu que o som vinha dele próprio. Parou abruptamente, mas a raiva doce e fria continuava ali. Respirando fundo, estremeceu e afastou o ímpeto assassino.
— Com licença. — Sem dar tempo a Sylvia para arrumar uma desculpa e ir embora, saiu do escritório, mandou trazer petiscos e bebidas e em seguida perambulou um bom tempo pelo salão principal, até conseguir controlar sua fúria. Quando voltou, Beale já tinha levado o chá e um prato com pequenos e finos sanduíches.
Sylvia recusou educadamente os sanduíches e não tocou no chá que Saetan lhe serviu. A intranquilidade que demonstrava perturbava Saetan. Fogo do Inferno, odiava aquela expressão nos olhos de uma mulher.
Sylvia umedeceu os lábios. Tinha a voz extremamente rouca.
— Sou sua Rainha. Isso é problema meu. Não deveria tê-lo incomodado com esse assunto.
Ele bateu com a taça e o pires na mesa, com tanta força que o pires se partiu ao meio. Em seguida, criou uma distância entre os dois, o suficiente para que pudesse andar para trás e para a frente, sem se afastar muito, para que ela não conseguisse chegar à porta antes dele.
Aquilo não deveria ter importância. Ele deveria estar acostumado. Se ela já tivesse entrado no escritório tendo medo dele, ainda poderia aceitar. Mas isso não tinha acontecido. Maldita fosse, ela não havia entrado com medo.
Virou-se de repente, mantendo o sofá e a mesa entre os dois.
— Nunca prejudiquei você ou o seu povo — afirmou rispidamente. — Usei minha força, minha Arte, minhas Joias e também o meu temperamento para proteger Dhemlan. Mesmo quando não estava visível, zelei por vocês. Há muitos serviços, inclusive extremamente íntimos, que poderia ter solicitado a você ou a qualquer outra Rainha deste Território, e no entanto nunca fiz tais exigências. Aceitei as responsabilidades de governar Dhemlan e, maldito seja, nunca abusei da minha posição ou do meu poder.
A pele morena de Sylvia foi destituída de sua cor quente e saudável. Sua mão tremia enquanto levava a taça aos lábios para bebericar o chá. Ela pousou a taça, ergueu o queixo e endireitou os ombros.
— Conheci sua filha recentemente. Perguntei a ela se achava complicado conviver com seu temperamento difícil. Ela me pareceu sinceramente perplexa e disse: “Que temperamento difícil?”
Saetan fixou-a por alguns momentos e sua fúria desapareceu. Esfregou a nuca e disse, com frieza:
— Jaenelle tem uma maneira particular de entender muitas coisas.
Antes que pudesse chamar Beale, o bule, bem como as xícaras usadas, desapareceram. Em seguida, surgiu na mesa um bule de chá recém-preparado, xícaras e pires lavados e um prato de bolos.
Saetan olhou para a porta com um ar inquisitivo antes de voltar para o sofá. Serviu outra taça de chá a Sylvia e uma para si mesmo.
— Ele não as trouxe — disse Sylvia baixinho.
— Eu reparei — respondeu Saetan, perguntando-se a que distância estaria o mordomo da porta do escritório. Colocou um feitiço silenciador no aposento.
— Talvez tenha se sentido intimidado.
Saetan bufou.
— Nenhum homem que tenha um casamento feliz com a Sra. Beale fica intimidado por quem quer que seja, nem mesmo por mim.
— Compreendo — Sylvia pegou um sanduíche e deu uma mordida.
Aliviado ao ver que a cor tinha voltado ao rosto de Sylvia e que já não se sentia assustada, Saetan pegou sua xícara e recostou-se.
— Vou descobrir o que está acontecendo em Halaway. E vou acabar com isso. — Bebericou o chá para disfarçar a hesitação. Mas precisava fazer a pergunta. — Quando começou?
Sylvia lançou-lhe um olhar penetrante.
— Sua filha não é a causa, Senhor Supremo. Estive com ela apenas por breves momentos, certa tarde, quando passeava com Mikal, meu filho mais novo; apesar disso, sei que ela não é a causa. — Brincou com a xícara, novamente nervosa. — Porém, pode ser a catalisadora. Talvez seja mais justo dizer que foi sua presença que me alertou para os fatos.
Saetan prendeu a respiração, na expectativa. Não fora fácil convencer Jaenelle a frequentar a escola de Halaway durante as últimas semanas que antecediam o verão. Esperava que, ao se relacionar com outras crianças, seu interesse em retomar contato com seus velhos amigos fosse despertado. Em vez disso, ela retraíra-se ainda mais, tornara-se ainda mais esquiva. E as elegantes perguntas de Lord Menzar a respeito da educação oficial de Jaenelle — ou sua inexistência — o haviam consternado, uma vez que, exceto pela Arte que tinha lhe ensinado, ele não fazia ideia de como tinha sido a educação dela. Todos os dias desde que tinham chegado ao Paço, Saetan via os fios que tentava tecer entre si e Jaenelle se desfazendo tão depressa quanto os conseguia tecer, e não tinha nenhuma ideia, nenhuma pista de por que isso acontecia. Até agora.
— Por quê?
Sylvia, absorta em seus pensamentos, olhou intrigada para Saetan.
— Por que ela seria a catalisadora? — repetiu Saetan.
— Ah. — O vinco entre as sobrancelhas de Sylvia voltou a surgir enquanto se concentrava. — Ela é... diferente.
Não a ataque, repreendeu-se Saetan. Escute.
— Beron, meu filho mais velho, faz algumas aulas com ela, e temos conversado. Não que sua casa seja alvo de fofocas, mas Jaenelle o deixa intrigado, por isso ele vem me fazer perguntas.
— Por que ela o intriga?
Sylvia mordeu o sanduíche, refletindo.
— Beron diz que ela é muito tímida, mas, quando alguém consegue fazê-la falar, diz coisas extraordinárias.
— Nisso eu acredito — disse Saetan, com frieza.
— Às vezes, quando está conversando com alguém ou respondendo a alguma pergunta feita durante as aulas, para no meio da frase e inclina a cabeça, como se estivesse escutando com atenção algo que mais ninguém consegue ouvir. Às vezes, quando isso acontece, retoma a frase de onde a tinha interrompido. Outras vezes, ela se distancia e não volta a falar pelo resto do dia.
Que vozes Jaenelle estaria escutando? Quem — ou o que — chamava por ela?
— Às vezes, durante um intervalo, ela se afasta das outras crianças e só volta na manhã seguinte — disse Sylvia.
Ela não tinha voltado ao Paço, ou ele teria sabido. E não estava viajando pelos Ventos. Teria sentido sua ausência caso Jaenelle tivesse viajado para além da simples percepção. Mãe Noite, para onde ela ia? De volta para o abismo?
A possibilidade o deixava apavorado.
Sylvia respirou fundo. Novamente.
— Ontem, os alunos mais velhos saíram numa excursão aos Jardins Marasten. Conhece?
— É uma grande propriedade junto à fronteira entre Dhemlan e a Pequena Terreille. Possui alguns dos mais belos jardins de Dhemlan.
— Sim. — Sylvia engoliu com dificuldade o último pedaço do sanduíche. Limpou delicadamente os dedos no guardanapo de linho. — De acordo com Beron, Jaenelle se separou do grupo, embora ninguém tivesse percebido isso até a hora de ir embora. Ele voltou para procurá-la e... encontrou-a ajoelhada junto a uma árvore, chorando. Estava cavando e suas mãos estavam cheias de arranhões e sangravam. — Sylvia fixou o olhar no bule, com a respiração acelerada. — Beron ajudou-a a se levantar e lembrou a ela que não era permitido desenterrar as plantas. Ao que ela respondeu: “Eu estava plantando.” Quando ele lhe perguntou a razão, ela disse: “Como recordação.”
Saetan sentiu os músculos doloridos devido ao frio e seu sangue desacelerou. Este não era o frio agudo e purificador da raiva. Era medo.
— Beron identificou a planta?
— Sim. No ano passado mostrei essa planta a ele e expliquei-lhe o que era. Graças às Trevas, nenhuma delas cresce em Halaway. — Sylvia olhou para Saetan, profundamente perturbada. — Senhor Supremo, ela estava plantando sangue-de-feiticeira.
Por que Jaenelle não havia lhe dito?
— Se o sangue-de-feiticeira desabrochar...
Sylvia ficou apavorada.
— Não vai desabrochar a menos que... Isso não pode acontecer!
Saetan falou com longas pausas, sentindo-se muito fraco até para juntar as palavras.
— Investigarei esse assunto. Discretamente. E tratarei do problema em Halaway.
— Fico agradecida. — Sylvia remexeu nas pregas do vestido.
Saetan aguardou, forçando-se a ter paciência. Queria ficar sozinho, queria tempo para pensar. Entretanto, era evidente que Sylvia tinha alguma outra coisa em mente.
— O que foi?
— É bem trivial, em comparação.
— Mas...?
Com um olhar rápido, ela o examinou da cabeça aos pés.
— O senhor tem muito bom gosto para roupas, Senhor Supremo.
Saetan coçou a testa, tentando entender o que aquilo tinha a ver com o que estavam falando.
— Obrigado.
Fogo do Inferno! Como é que as mulheres conseguiam mudar de assunto com tanta facilidade? E por que faziam isso?
— No entanto, não deve estar muito por dentro do que está na moda para uma jovem garota hoje em dia. — Não era bem uma pergunta.
— Se essa é sua forma de me dizer que Jaenelle parece ter ido buscar suas roupas em um sótão, então tem razão. Acho que a Senescal da Fortaleza abriu todos os velhos baús que encontrou e deixou que minha intratável filha escolhesse o que bem entendesse. — Era um assunto de menor importância, um assunto seguro. Saetan ficou alegremente rabugento. — Eu não me importo se essas roupas lhe servem... Não é verdade, eu me importo. Jaenelle precisa de roupas novas.
— Então por que não a leva às compras em Amdarh ou em algum dos povoados mais próximos, até mesmo Halaway?
— Acha que não tentei? — resmungou.
Sylvia não fez qualquer comentário durante vários minutos.
— Tenho dois filhos. São bons rapazes, mas não uma companhia muito divertida para compras. — Deu um sorriso fugaz. — Talvez se fossem apenas duas mulheres saindo para almoçar e depois indo dar uma volta...
Saetan invocou uma carteira de couro e entregou-a a Sylvia.
— Isso basta?
Sylvia abriu a carteira, remexeu nos marcos de ouro e riu.
— Creio que será possível montar um guarda-roupa razoável... ou três.
Saetan gostava de ouvi-la rir, gostava das rugas delicadamente gravadas em volta dos seus olhos.
— É claro que irá gastar uma parte com você.
Sylvia fitou-o com seu melhor olhar de Rainha.
— Não fiz esta sugestão pensando em ser paga por ajudar uma jovem Irmã.
— Não era isso que eu tinha em mente, mas se você se sente desconfortável em usar o dinheiro para seu próprio deleite, então use-o para me agradar. — Observou a expressão de Sylvia se converter de raiva em inquietação e perguntou-se quem teria sido o idiota que a tinha feito infeliz. — Além do mais — acrescentou com delicadeza —, você deve dar o exemplo.
Sylvia fez a carteira desaparecer e se levantou.
— É claro que lhe trarei todas as notas fiscais.
— É claro.
Saetan acompanhou-a até o salão principal. Pegando a capa que Beale segurava, colocou-a cuidadosamente nos ombros de Sylvia.
Enquanto caminhavam até a porta, Sylvia examinou os entalhes nas cornijas de madeira no topo cada parede.
— Só estive aqui umas seis vezes antes, se tanto, mas nunca tinha reparado nos entalhes. Quem quer que os tenha feito é muito talentoso — disse. — Foi a mesma pessoa que fez os croquis de todas estas criaturas?
— Não — disse Saetan. Percebeu que estava na defensiva e estremeceu.
— Foi você que desenhou os croquis. — Sylvia examinou os entalhes com interesse redobrado, abafando uma risada. — Creio que o escultor se divertiu um pouco com um dos seus rascunhos, Senhor Supremo. Aquela pequena besta tem os olhos tortos e a língua de fora — e está exatamente no local onde alguém pararia depois de entrar. Ao que parece, ela não tem muita consideração pelos seus convidados. — Fez uma pausa e estudou Saetan com o mesmo interesse com que examinara os entalhes. — O escultor não se divertiu com seu croqui, não é?
Saetan sentiu um calor no rosto. Conteve um grunhido.
— Não.
— Compreendo — disse Sylvia após um longo momento. — Foi uma noite interessante, Senhor Supremo.
Sem saber muito bem como interpretar o comentário, ele a acompanhou até a carruagem, apressando-se um pouco mais do que seria adequado.
Quando deixou de ouvir as rodas da carruagem, virou-se em direção à porta da frente, que estava aberta, e desejou poder adiar a conversa que teria em seguida. Mas Jaenelle ficava mais sintonizada com ele durante as horas de escuridão, mais reveladora quando se abrigava nas sombras, mais...
O som interrompeu seus pensamentos. Prendendo a respiração, Saetan olhou na direção dos bosques ao norte, que delimitavam os campos e os jardins do Paço. Esperou, mas o som não se repetiu.
— Você ouviu isso? — perguntou a Beale quando chegou à porta.
— Ouvi o quê, Senhor Supremo?
Saetan balançou a cabeça.
— Nada. Deve ter sido um cão do povoado que se afastou demais de casa.
Jaenelle ainda estava acordada, passeando pelos jardins embaixo dos seus aposentos.
Saetan dirigiu-se à cascata d’água e ao pequeno lago no centro do jardim, permitindo que ela sentisse sua presença sem perturbar seu silêncio. Era um bom lugar para conversar, já que as luzes dos seus aposentos no segundo andar não alcançavam o lago.
Instalou-se confortavelmente à beira do lago, deixando que a tranquilidade de uma agradável noite antecipada de verão e o barulho da água o acalmassem. Enquanto aguardava por Jaenelle, brincava com os dedos na água, sorrindo.
Ele havia lhe dito para decorar este jardim particular como quisesse. A fonte convencional fora a primeira a desaparecer. Ao observar as lótus, as algas e os pequenos juncos no lago, assim como as samambaias em volta, perguntou-se novamente se ela desejava dar um aspecto mais natural ao ambiente ou se tentava recriar um local que conhecia.
— Você acha inadequado? — perguntou a voz vinda das sombras.
Saetan mergulhou a mão no lago e ergueu a palma em concha, olhando para a água que escorria pelos dedos.
— Não, gostaria de ter pensado nisto eu mesmo. — Sacudiu as gotas de água dos dedos e olhou, por fim, para Jaenelle.
O vestido escuro que usava fundia-se na penumbra ao redor, dando a impressão de que o rosto, o ombro desnudado e o cabelo louro emergiam da própria noite.
Desviou o olhar, fixando uma lótus, embora intensamente consciente da presença de Jaenelle.
— Gosto do som da água cantando nas pedras — disse Jaenelle, aproximando-se um pouco mais. — É relaxante.
Mas não o suficiente. Quantas são as coisas que a inquietam, criança-feiticeira?
Saetan escutou a água. Afinou a voz para que combinasse com esse som.
— Já plantou sangue-de-feiticeira antes?
Ela ficou em silêncio durante tanto tempo que Saetan pensou que já não fosse responder. Porém, quando o fez, sua voz estava envolta naquela sombra sepulcral que sempre lhe provocava um calafrio.
— Sim, já plantei sangue-de-feiticeira antes.
Percebendo sua fragilidade, soube que estava chegando muito perto de uma ferida da alma — e de segredos.
— Ela irá desabrochar nos Jardins Marasten? — perguntou baixinho, voltando a mover os dedos pela água.
Outro silêncio prolongado.
— Sim.
O que significava que uma feiticeira que havia morrido de forma violenta estava enterrada ali.
Caminhando com delicadeza, ele se controlou. Estava em terreno perigoso. Olhou para Jaenelle, pois precisava ver o que lhe diriam aqueles olhos antigos e perturbados.
— Teremos de plantá-la em Halaway?
Jaenelle virou o rosto. Seu perfil combinava ângulos e sombras, um rosto exótico esculpido em mármore.
— Não sei. — Manteve-se imóvel. — Confia nos seus instintos, Saetan?
— Sim. Mas confio ainda mais nos seus.
Ela fez uma estranha expressão, que no entanto desapareceu com tal rapidez que Saetan não percebeu seu significado.
— Talvez não devesse. — Entrelaçou os dedos, apertando cada vez mais forte, até surgirem pequenas gotas escuras de sangue onde as unhas penetraram a pele. — Quando eu morava em Beldon Mor, estava o tempo todo... doente. Ficava hospitalizada durante semanas, às vezes por vários meses seguidos. — Acrescentou: — Não tinha nenhuma doença física, Senhor Supremo.
Respire, maldição, respire. Não fique sem reação agora.
— E por que nunca falou disso antes?
Jaenelle riu suavemente. A amargura que revelava o dilacerou.
— Tinha medo de que não quisesse ser meu amigo. Temia que, se você soubesse, não voltasse a me ensinar Arte. — Falou num tom de voz baixo e sofrido. — E tinha medo de que fosse mais uma das manifestações da doença, como os unicórnios e os dragões e... os outros.
Saetan reprimiu a dor, o medo, a raiva. Não havia como expressar esses sentimentos numa noite tão tranquila.
— Não faço parte de uma paisagem onírica, criança-feiticeira. Segure a minha mão e a carne tocará carne. O Reino das Sombras, bem como todos os seus habitantes, são reais. — Os olhos de Jaenelle se encheram de lágrimas, mas Saetan não sabia se eram de dor ou de alívio. Durante a permanência em Beldon Mor, os instintos de Jaenelle haviam sido brutalizados a ponto de ela já não mais confiar neles. Havia reconhecido o perigo em Halaway muito antes de Sylvia, mas duvidara de si própria de tal forma que fora incapaz de admiti-lo — no caso de alguém lhe dizer que estava imaginando coisas.
— Jaenelle — disse suavemente —, não tomarei nenhuma providência antes de verificar o que você me disser, mas, por favor, em nome dos que são muito jovens para se proteger, diga-me o que for possível.
Jaenelle se afastou, cabisbaixa, com o cabelo louro cobrindo o rosto como um véu. Saetan se virou, dando-lhe privacidade sem, de fato, deixá-la sozinha. As pedras sobre as quais estava sentado tinham se tornado frias e duras. Rangeu os dentes devido ao desconforto físico, sabendo instintivamente que caso se movesse ela não conseguiria encontrar as palavras necessárias.
— Conhece uma feiticeira chamada Sacerdotisa das Trevas? — sussurrou Jaenelle das sombras próximas.
Saetan cerrou os dentes, mantendo, no entanto, a voz baixa e calma.
— Sim.
— Lord Menzar também.
Saetan fixou o vazio e pressionou as mãos contra as pedras, deleitando-se com a dor provocada pelas arestas ásperas. Não se moveu, não fez nada a não ser respirar, até ouvir Jaenelle subindo as escadas que levavam à varanda externa dos seus aposentos e ouvir o som da porta de vidro se fechando. Permaneceu imóvel, erguendo somente os olhos dourados para observar as luzes apagando-se uma a uma.
A última luz no quarto de Jaenelle se apagou.
Sentado sob o céu noturno, escutava a água cantando nas pedras.
— Jogos e mentiras — murmurou. — Ora, eu também sei jogar. Você não deveria ter se esquecido disso, Hekatah. Não gosto deles, mas você subiu muito as apostas. — Sorriu, embora fosse um sorriso muito afável, muito dócil. — Além disso, sou paciente. Mas há de chegar o dia em que terei uma conversa com os insensatos parentes de Jaenelle, em Chaillot, e, nesse momento, será sangue e não água cantando nas pedras de um jardim... extremamente... privado.
— Tranque a porta.
Relutante, Mephis SaDiablo girou a chave na porta do escritório privado de Saetan SaDiablo muito abaixo do Paço, o local escolhido pelo Senhor Supremo para conversas que exigiam extrema privacidade. Precisou de alguns momentos para se lembrar de que não tinha feito nada de errado, de que o homem que o tinha mandado chamar era o seu pai, bem como o Príncipe dos Senhores da Guerra que servia.
— Príncipe SaDiablo.
Foi atraído pela voz profunda do homem sentado atrás da mesa.
Era um rosto terrível aquele que o contemplava do outro lado do escritório, estático, impassível, contido. O cabelo espesso e negro de Saetan, já grisalho, formava dois graciosos triângulos nas têmporas, atraindo o olhar para os olhos dourados. Eram esses olhos que ardiam com uma emoção de tal intensidade que palavras como “ódio” ou “raiva” não seriam adequadas. Havia apenas uma maneira de descrever o Senhor Supremo do Inferno: frio.
Séculos de preparação ajudaram Mephis a dar os últimos passos. Séculos e memórias. Quando era garoto, tinha medo de provocar o temperamento ruim do pai, embora nunca tivesse temido o homem. Era o homem que cantara para ele, que rira com ele, que ouvira com seriedade seus problemas infantis, que o respeitara. Só quando cresceu conseguiu compreender as razões pelas quais o Senhor Supremo deveria ser temido — e só passados muitos anos conseguiu avaliar quando deveria ser temido.
Como naquele momento.
— Sente-se. — A voz de Saetan trazia aquele tom de repreensão que costumava ser a última coisa que um homem jamais ouviria, à exceção dos próprios gritos.
Mephis tentou se ajeitar confortavelmente na cadeira. A grande mesa de madeira escura que os separava não lhe servia de consolo. Saetan não precisava tocar em um homem para aniquilá-lo.
Nos olhos de Saetan cintilou uma breve irritação.
— Tome um copo de yarbarah. — O decantador ergueu-se da mesa, servindo habilmente o vinho de sangue em dois copos. Duas labaredas de fogo encantado surgiram do nada. Os copos inclinaram-se, subiram e começaram a girar lentamente sobre as chamas. Já aquecido, um dos copos flutuou até Mephis, enquanto o outro se encaixou na mão de Saetan. — Relaxe, Mephis. Preciso dos seus talentos, nada mais.
Mephis tomou um gole do yarbarah.
— Dos meus talentos, Senhor Supremo?
Saetan sorriu. Isso o tornava cruel.
— Você é meticuloso, perfeccionista e, acima de tudo, confio em você. — Fez uma pausa. — Quero que descubra tudo o que puder sobre Lord Menzar, o diretor da escola de Halaway.
— Devo procurar alguma coisa em especial?
O escritório esfriou ainda mais.
— Deixe que os instintos o guiem. — Saetan cerrou os dentes e completou, com rispidez. — Que isto fique entre nós, Mephis. Não quero ninguém fazendo perguntas sobre o que você busca.
Mephis esteve a ponto de perguntar quem se atreveria a questionar o Senhor Supremo, mas a verdade é que já sabia a resposta. Hekatah. Aquilo tinha a ver com Hekatah.
Mephis esvaziou o copo e pousou-o cuidadosamente na mesa de madeira escura.
— Se é assim, com sua permissão, gostaria de começar agora mesmo.
Luthvian encolheu os ombros diante da intromissão e bateu energicamente o pilão no almofariz, ignorando a garota que rondava a soleira da porta. Se não parassem de importuná-la com perguntas imbecis, jamais conseguiria terminar aqueles tônicos.
— Já terminou a lição de Arte? — perguntou Luthvian sem se virar.
— Ainda não, senhora, mas...
— Então por que está incomodando? — disse Luthvian, ríspido, largando o pilão no almofariz antes de se dirigir à garota.
A menina se encolheu, parecendo no entanto mais confusa que assustada.
— Tem um homem ali querendo ver você.
Fogo do Inferno, até parecia que a garota nunca tinha visto um homem.
— Ele está sangrando até a morte?
— Não, senhora, mas...
— Então leve-o para a sala de tratamento enquanto termino isto.
— Ele não veio para ser curado, senhora.
Luthvian rangeu os dentes. Era Viúva Negra eyriena e Curandeira. Feria-lhe o orgulho ter de ensinar Arte àquelas garotas de Rihlan. Se ainda vivesse em Terreille, seriam suas serviçais e não alunas. É claro que, se ainda vivesse em Terreille, estaria trocando suas aptidões de Curandeira por um coelho velho ou um pedaço de pão seco.
— Se não está aqui para...
Estremeceu. Se não tivesse fechado firmemente suas barreiras interiores para não deixar entrarem os sentimentos de frustração de suas alunas, ela o teria sentido no preciso momento em que entrou naquela casa. O odor negro era inconfundível.
Luthvian esforçou-se para manter a voz firme e despreocupada.
— Diga ao Senhor Supremo que me juntarei a ele em seguida.
A garota arregalou os olhos. Correu pelo corredor, pegou uma amiga pelo braço e começou a sussurar, agitada.
Luthvian fechou devagar a porta do escritório. Soltou uma gargalhada queixosa, enfiando as mãos trêmulas nos bolsos do avental. Aquela ovelhinha de duas pernas vibrava de entusiasmo diante da perspectiva de declamar cortesias ensaiadas ao Senhor Supremo do Inferno. Também Luthvian vibrava, mas a razão era bem diferente.
Oh, Tersa, na sua loucura você talvez não soubesse ou não se importasse de quem era a lança embainhada em você. Eu era jovem e estava assustada, mas não louca. Ele fez o meu corpo cantar, e pensei... pensei...
Passados tantos séculos, a verdade ainda lhe deixava um gosto amargo na boca.
Luthvian tirou o avental e alisou os vincos do velho vestido o melhor que pôde. Uma feiticeira doméstica conheceria um pequeno feitiço para fazê-lo parecer bem engomado. Uma feiticeira versada em serviços pessoais conheceria um pequeno feitiço para alisar e em seguida entrançar os longos cabelos pretos em apenas alguns segundos. Esse não era o seu caso, e não era digno de uma Curandeira aprender uma Arte tão trivial. Não era digno de uma Viúva Negra se importar com a aprovação de um homem — quem quer que fosse ele — à sua indumentária.
Depois de fechar o escritório e fazer a chave desaparecer, Luthvian endireitou os ombros e ergueu o queixo. Só havia uma forma de saber por que estava ali.
Ao percorrer o corredor principal que dividia o andar mais baixo da casa, Luthvian manteve o passo lento e digno, como convinha a uma Irmã da Ampulheta. O escritório, a sala de tratamento, a sala de jantar, a cozinha e os depósitos ficavam na parte dos fundos. Na parte da frente ficavam a sala dos alunos, a sala de estudos, a biblioteca de Arte e a sala de estar. No segundo andar estavam os banheiros e os quartos das alunas. O terceiro andar era ocupado pelos seus aposentos e por um quarto menor para convidados especiais.
Não tinha empregados residentes. Doun ficava ali perto, por isso os criados voltavam para casa todas as noites, para suas famílias.
Luthvian se deteve, ainda não preparada para abrir a porta da sala de estar. Era uma exilada eyriena entre rihlanianos — uma eyriena nascida sem as asas que seriam o testemunho silencioso de que descendia da raça guerreira que dominava as montanhas. Por isso, era ríspida e seca, não permitindo que os rihlanianos tomassem liberdades excessivas. No entanto, isso não queria dizer que pretendesse partir, que não sentisse satisfação com seu trabalho. Gostava da deferência com que era tratada, uma vez que era uma excelente Curandeira e uma Viúva Negra. Era influente em Doun.
Porém, a casa não lhe pertencia, e o terreno, como todos os terrenos em Ebon Rih, era de propriedade da Fortaleza. A casa havia sido construída especificamente para ela, de acordo com suas condições, o que não significava que o proprietário não pudesse lhe botar na rua quando quisesse.
Seria por isso que estaria aqui, para cobrar a dívida e recuperar o investimento?
Respirando fundo, Luthvian abriu a porta da sala de estar, embora não estivesse completamente preparada para receber o antigo amante.
Ele estava rodeado pelas alunas, que davam risadinhas, flertavam e pestanejavam. Não parecia aborrecido nem desesperado para se ver livre delas, nem sequer envaidecido como um jovem macho diante de tanta e tão genuína atenção feminina. Era como sempre havia sido, um ouvinte educado, que não interromperia um falatório trivial a menos que fosse absolutamente necessário, um homem que sabia expressar uma rejeição.
E ela se lembrava bem como ele sabia fazer isso.
Foi nesse momento que ele a viu. Não havia raiva nos seus olhos dourados, e tampouco surgiu em seu rosto um sorriso afetuoso de saudação. E o que isso transmitiu a Luthvian foi o suficiente. Qualquer que fosse o assunto que tivesse a tratar com ela, era de foro particular, embora não fosse pessoal.
Isso a enfureceu, e uma Viúva Negra com um acesso de raiva não era uma mulher para brincadeiras. Saetan observou a alteração na disposição de Luthvian e levantou ligeiramente uma das sobrancelhas em reconhecimento, interrompendo, por fim, a tagarelice das meninas.
— Minhas senhoras — disse, com a voz profunda e carinhosa —, agradeço por tornarem a minha espera tão agradável, porém não devo mantê-las afastadas dos seus estudos. — Sem levantar a voz, conseguiu silenciar os protestos vigorosos. — Além do mais, o tempo de Lady Luthvian é precioso.
Luthvian se afastou da porta, deixando-as passar em debandada. Roxie, a aluna mais velha, parou na entrada da porta, olhou por cima do ombro e piscou para o Senhor Supremo.
Luthvian fechou a porta na sua cara.
Esperou que Saetan se aproximasse com o respeito cauteloso que um macho que serve à Ampulheta deve apresentar ao se aproximar de uma Viúva Negra. Quando percebeu que ele não se movia, corou diante da lembrança silenciosa de que Saetan não servia à Ampulheta. Era além de tudo Sacerdote Supremo, uma Viúva Negra de categoria superior à sua.
Movimentou-se com uma indiferença intencional, como se aproximar-se dele não tivesse grande importância, mas ao parar deixou metade do espaço do aposento entre os dois. Já era próximo o bastante.
— Como foi capaz de suportar tanta conversa fiada?
— Achei interessante... e muito educativo — acrescentou com frieza.
— Ah — exclamou Luthvian. — Roxie deve ter contado sobre sua Noite da Virgem, não? Mas em qual versão, a de bom gosto ou a pitoresca? Ela é a mais velha aqui, a única que alcançou a idade para realizar a cerimônia, por isso está sempre se enchendo de ares e dizendo às outras que anda muito cansada para as aulas da manhã, pois seu amante é muuuito exigente.
— Ela é muito jovem — disse Saetan calmamente — e...
— Ela é vulgar — disse Luthvian com rispidez.
— ... as jovens podem ser tolas.
Os olhos de Luthvian arderam. Não choraria na frente dele. Outra vez, não.
— Foi isso que pensou de mim?
— Não — disse Saetan, delicado. — Você era uma Viúva Negra natural, guiada pela necessidade ardente de expressar a Arte e, mais intensamente ainda, pela necessidade de sobrevivência. Não era nada tola.
— Fui tola o bastante para confiar em você!
Os olhos dourados de Saetan se mantiveram inexpressivos.
— Eu lhe disse quem era e o que era antes de ir para a cama com você. Meu papel era o de consorte experiente, acompanhando uma jovem feiticeira na sua Noite da Virgem para que, quando acordasse na manhã seguinte, a única coisa que tivesse rasgada fosse uma membrana — e não sua mente, suas Joias ou seu espírito. Foi um papel que desempenhei várias vezes antes, quando governava o Território Dhemlan em ambos os Reinos. Eu compreendia e honrei as regras dessa cerimônia.
Luthvian agarrou uma jarra e lançou-a na direção da cabeça de Saetan, gritando:
— E engravidá-la fazia parte dessas regras?
Saetan segurou a jarra com facilidade e em seguida abriu a mão, deixando que ela se espatifasse no chão. Dos seus olhos saíam faíscas, e sua voz enrouqueceu.
— Sinceramente, eu não sabia que ainda era fértil. Não esperava que o efeito do feitiço fosse tão prolongado. E desculpe a memória de um velho homem, mas lembro-me claramente de lhe perguntar se tinha tomado a infusão encantada para evitar a gravidez e de você responder que sim.
— O que queria que eu respondesse? — berrou Luthvian. — O risco de ser destruída pelos carniceiros de Dorothea aumentava a cada momento. Você era minha única chance de sobreviver. Eu sabia que estava perto do período fértil, mas tinha de arriscar!
Saetan permaneceu imóvel e calado durante muito tempo.
— Você sabia que era arriscado, que nada tinha feito para prevenir a gravidez, mentiu quando perguntei e ainda se atreve a me culpar?
— Não é por isso que o culpo — gritou —, mas pelo que aconteceu depois. — Os olhos de Saetan evidenciavam incompreensão. — Você só se importava com o bebê. Já não q-queria estar c-comigo.
Saetan suspirou e caminhou até a janela, fixando o olhar no muro baixo de pedra que circundava a propriedade.
— Luthvian — disse penosamente —, o homem que orienta uma feiticeira na Noite da Virgem não está destinado a ser seu amante. Isso só acontece quando já existe previamente uma forte ligação entre os dois, quando já são amantes em todos os aspectos, menos o físico. A maior parte das vezes...
— Não precisa citar as regras, Senhor Supremo — interrompeu Luthvian com rispidez.
— ... depois de deixar a cama, ele pode se tornar um amigo querido ou nada além de uma agradável memória. Ele se preocupa com ela, porque assim tem de ser para mantê-la a salvo, mas pode haver uma grande diferença entre se preocupar e amar. — Olhou por cima do ombro. — Eu me preocupava com você, Luthvian. Dei a você o que podia. Mas não foi suficiente.
Luthvian se abraçou, perguntando-se se alguma vez teria deixado de sentir aquela amargura e desilusão.
— Não, não foi suficiente.
— Você podia ter escolhido outro homem. É o que devia ter feito. Até encorajei você a fazer isso.
Luthvian olhou espantada para Saetan. Sofra, maldito, sofra tanto quanto eu sofri.
— E como você acha que esses homens se sentiriam assim que percebessem que o pai do meu filho era o Senhor Supremo do Inferno?
O golpe foi certeiro, mas o sofrimento e a mágoa que viu nos olhos de Saetan não a fizeram se sentir melhor.
— Eu queria levá-lo comigo, educá-lo. Você sabia disso.
A raiva e as incertezas antigas extravasaram.
— Educá-lo para quê? Para ser ração? Para que você tivesse um abastecimento constante de sangue fresco e forte? Quando você descobriu que ele era meio eyrieno, quis matá-lo!
Os olhos de Saetan brilharam.
— Você queria cortar as asas dele.
— Para que tivesse a oportunidade de uma vida digna! Sem elas, passaria por dhemlano. Poderia administrar uma das suas propriedades. Poderia ser respeitado.
— Você acredita mesmo que essa seria uma troca justa? Viver uma vida respeitável sem jamais ter conhecimento da linhagem eyriena, sem compreender o desejo ardente que experimentaria na alma ao sentir o vento no rosto, sempre na dúvida sobre desejos que não fariam qualquer sentido, até o dia em que olhasse para o seu primogênito e visse as asas? Ou você tinha a intenção de amputar todas as gerações?
— As asas seriam um estorvo, uma aberração.
Saetan estava completamente imóvel.
— Vou lhe dizer de novo o que disse quando ele nasceu. Ele é eyrieno de alma, e isso tinha que ser honrado acima de tudo. Se você tivesse cortado as asas dele, aí sim eu lhe teria cortado a garganta no berço. Não porque eu não estivesse preparado para isso, e não estava, já que você fez todos os esforços para não me informar, mas porque ele sofreria demais.
As palavras furiosas de Luthvian saíram cortantes:
— Então você acha que ele não sofreu? Você sabe muito pouco sobre Lucivar, Saetan.
— Mas então por que ele não foi confiado aos meus cuidados, Luthvian? — perguntou, com falsa delicadeza. — Quem foi responsável por isso?
As lágrimas voltaram. As lembranças, a angústia, a culpa.
— Você não amava a mim nem a ele.
— Isso é só em parte verdadeiro, minha cara.
Luthvian engoliu um soluço. Olhou fixamente para o teto.
Saetan balançou a cabeça e suspirou.
— Mesmo após todos estes anos, é inútil tentarmos conversar. Acho melhor ir embora.
Luthvian enxugou a única lágrima que fugiu ao seu autocontrole.
— Você não disse por que veio. — Pela primeira vez, olhou para ele sem o véu do passado a encobrir o presente. Parecia mais velho, como se carregasse um peso nos ombros.
— Provavelmente seria muito difícil para todos nós.
Luthvian esperou. O desconforto, a relutância em abordar o assunto a deixaram apreensiva — e curiosa.
— Eu queria contratar você como professora de Arte de uma jovem Rainha que também é Viúva Negra natural e Curandeira. É extremamente talentosa, embora sua educação tenha sido extremamente... irregular. As aulas teriam de ser particulares e ministradas no Paço dos SaDiablo.
— Não — disse Luthvian com rispidez. — Aqui. Se eu for ensiná-la, terá de ser aqui.
— Se ela viesse para cá, teria de ser acompanhada. E como você sempre achou Andulvar e Prothvar eyrienos além do tolerável, teria de ser por mim.
Luthvian bateu um dedo nos lábios. Uma Rainha que era também Curandeira e Viúva Negra? Mas que combinação potencialmente letal de forças. De fato, um desafio digno das suas capacidades.
— A aprendizagem dela comigo abrangeria os ensinamentos medicinais e os da Ampulheta?
— Não. Ela ainda tem dificuldades com a Arte que consideramos básica, e é nesta área que gostaria que você trabalhasse. Não me oponho a estender as aulas à Arte medicinal, se isso for de seu interesse, porém eu mesmo me encarregarei da Arte da Ampulheta.
O orgulho exigia um desafio.
— E quem é esta feiticeira que precisa de um professor de Joia Negra?
O Príncipe das Trevas, o Senhor Supremo do Inferno, examinou-a, refletindo, ponderando. Por fim, respondeu:
— A minha filha.
Mephis colocou a pasta sobre a mesa do escritório particular de Saetan e começou a esfregar as mãos, como se limpando a sujeira.
Saetan gesticulou como se abrisse algo. A pasta se abriu, mostrando várias folhas com a caligrafia compacta de Mephis.
— Temos que tomar uma providência, não é? — resmungou Mephis.
Saetan invocou os óculos em meia-lua, colocou-os cuidadosamente na ponta do nariz e pegou a primeira folha.
— Deixe-me ler.
Mephis bateu com a mão na mesa.
— Ele é obsceno!
Saetan olhou para o filho mais velho por cima dos óculos, sem deixar transparecer a raiva que começava a sentir.
— Deixe-me ler, Mephis.
Mephis se afastou de um salto, rosnando, e começou a andar de um lado para o outro.
Saetan leu e releu o relatório. Por fim, fechou a pasta, fez desaparecer os óculos e esperou que Mephis se acalmasse.
Obsceno não era a palavra adequada para Lord Menzar, o diretor da escola de Halaway. Lamentáveis acidentes ou doenças haviam permitido que ele fosse promovido a cargos de autoridade em escolas de vários Distritos em Dhemlan — acidentes aos quais não era possível relacioná-lo, que estavam desprovidos do seu odor. Ele sempre mostrou deferência o bastante para agradar, a autoconfiança necessária para convencer os outros da sua capacidade. E ali estaria ele, destruindo minuciosamente o antigo código de honra, retalhando a frágil teia de confiança que ligava os homens e as mulheres dos Sangue.
O que aconteceria aos Sangue se essa confiança fosse destruída? Bastava olhar para Terreille para obter a resposta.
Mephis estava em pé, em frente à mesa, com os punhos cerrados.
— O que vamos fazer?
— Deixe que eu cuido disto, Mephis — disse Saetan, com delicadeza excessiva. — Se Menzar tem espalhado seu veneno livremente durante todo este tempo, foi porque não estive alerta o suficiente para detectá-lo.
— Mas e quanto às Rainhas e seus Primeiros Círculos, que também não estiveram alertas o suficiente para detectá-lo quando ele esteve em seus territórios? Não é que você não tenha recebido avisos e os ignorado, você nunca recebeu qualquer aviso até Sylvia procurá-lo.
— A responsabilidade não deixa de ser minha, Mephis. — Quando Mephis começou a protestar, Saetan o interrompeu. — O que quer que eu faça? Que envie estas informações às Rainhas? Que exiba as provas de como foram manipuladas por um homem? Quer que elas cobrem a dívida?
Mephis estremeceu.
— Não, não é isso que eu quero. A raiva delas permaneceria acesa durante muito tempo.
— E atingiria outros homens além do culpado. — Saetan forçou a voz para soar afável. — Em Dhemlan há jovens feiticeiras, dentre as quais Rainhas, Viúvas Negras e Sacerdotisas, que estão atingindo a maioridade e que carregam as cicatrizes das ações daquele homem. Temos de contar o que aconteceu a alguns dos machos mais fortes nesses Distritos para que estejam preparados, e, em seguida, fazer o que estiver ao nosso alcance para ajudar a reconstruir a confiança destruída por Menzar. — Balançou a cabeça, tristemente. — Não, Mephis, se eu não estiver disposto a aceitar as responsabilidades, só me restaria renunciar a estas terras.
— O sangue desse homem não deveria sujar apenas as suas mãos — disse Mephis baixinho.
Obrigado, Mephis. Muito obrigado por isso.
— Uma execução oficial requer apenas um carrasco. — Fez uma pausa, para perguntar em seguida: — Há alguém que dependa dele?
Mephis assentiu.
— Uma irmã que toma conta da casa.
— Uma feiticeira doméstica?
Os olhos de Mephis se transformaram em pedras amarelas.
— Não por formação nem por vocação, pelo que eu soube. Parece que ele tolera sua presença... Segundo a fofoca dos vizinhos, sem dúvida plantada por ele, ela não possui a inteligência nem a sabedoria para ser independente. Enfim, ele deixa que a irmã lhe pague a moradia e a alimentação com todo tipo de serviços domésticos. — O tom de voz não deixava dúvidas quanto ao tipo de serviços exigido por Menzar.
— Você acha que ela possui a inteligência ou a sabedoria para ser independente?
Mephis deu de ombros.
— Duvido que já tenha tido oportunidade de tentar. Não usa Joias. Se nunca possuiu as competências para isso ou se foram tiradas dela... é difícil dizer neste momento.
Hekatah, você treina bem os seus servos.
— Com os rendimentos da família, providencie-lhe discretamente uma pensão equivalente ao salário de Menzar. A casa é alugada? Pague o aluguel por um período de cinco anos.
Mephis cruzou os braços.
— Sem o aluguel para pagar, ela nunca terá tido tanto dinheiro à disposição.
— Isso vai lhe dar o tempo e os recursos para descanssar. Não vejo motivo para que ela pague pelos crimes do irmão. Se suas faculdades mentais tiverem sido prejudicadas pelas manipulações de Menzar, vão se recuperar. Se, de fato, ela não for capaz de tomar conta de si própria, tomaremos outras providências.
Mephis pareceu perturbado.
— Sobre a execução...
— Deixe que eu me encarrego disso, Mephis. — Saetan deu a volta na mesa e roçou o ombro no do filho. — Além disso, há outra coisa que quero que faça. — Esperou que Mephis olhasse para ele. — Ainda tem aquela casa em Amdarh?
— Você sabe que sim.
— E ainda gosta de ir ao teatro?
— Bastante — disse Mephis, perplexo. — Alugo um camarote todas as temporadas.
— E há alguma peça em cartaz que possa agradar a uma jovem de quinze anos?
Mephis sorriu ao entender aonde o pai queria chegar.
— Haverá duas na semana que vem.
Saetan respondeu com um sorriso sinistro.
— Muito oportuno, na minha opinião. Um passeio à capital de Dhemlan com o irmão mais velho antes que os novos professores comecem a fazer exigências parece perfeito para os nossos planos.
As pernas de Lucivar vacilavam devido à exaustão e à dor. Acorrentado de frente para a parede no fundo da cela, ele tentava repousar o peito contra a parede a fim de reduzir o peso nos membros inferiores, tentava ignorar a tensão nos ombros e no pescoço.
As lágrimas começaram a cair, lenta e silenciosamente de início, transformando-se em um choro convulsivo que lhe comprimia o peito, fruto do profundo sofrimento acumulado.
O guarda taciturno tinha se encarregado do espancamento. Desta vez não foram as costas, mas as pernas. E não um chicote para ferir a pele, mas uma grossa tira de couro que golpeara com toda a força os músculos retesados. Seguindo o ritmo lento do tambor, o guarda batia com a tira de couro diligentemente, sobrepondo cada batida à anterior para que nenhuma área de suas pernas fosse ignorada. Batia e retirava, batia e retirava. Além da respiração que silvava entre os dentes, Lucivar não produzia qualquer outro som. Depois de terminada a surra, foi obrigado a se levantar — seus pés estavam maltratados demais para suportar o peso —, e recebeu o novo brinquedo de Zuultah: um cinto de castidade metálico. Ele se fechava em volta da cintura, mas a presilha metálica entre as pernas não estava apertada o bastante de forma a lhe causar desconforto. Lucivar ficara intrigado com aquilo por alguns momentos, antes de ser forçado a caminhar para a cela. Depois disso, não havia espaço para mais nada a não ser a dor. E, ao chegar à cela, ele entendeu muito bem que aconteceria.
Uma nova corrente havia sido fixada na parede do fundo. A presilha inferior do cinto foi passada por um buraco na faixa em volta da cintura, ao qual foi presa a corrente. A corrente só permitia que ele se mantivesse em pé, e, se as pernas cedessem, sua cintura não suportaria o peso. Certamente Zuultah estava sendo massageada enquanto esperava por seu atroz grito de dor.
No entanto, não era por isso que ele chorava.
Um muco bolorento tinha começado a se formar nas suas asas. Sem a limpeza de uma Curandeira, iria se propagar cada vez mais até que elas não passassem de filamentos sebosos de pele membranosa suspensa no esqueleto. Ele não podia esticar as asas na mina de sal sem levar um golpe, e nas últimas noites suas mãos eram presas atrás das costas, apertando as asas junto ao corpo coberto de poeira de sal, que pingava de suor.
Uma vez tinha dito a Daemon que preferia perder os testículos às asas, e estava sendo sincero.
No entanto, não era por isso que chorava.
Não via o sol há mais de um ano. Com exceção dos breves e preciosos minutos em que era levado, todos os dias, da cela para as minas de sal, para depois regressar, não tinha respirado ar puro nem sentido a brisa na pele. Seu mundo resumia-se a dois buracos sombrios e fétidos — e a um pátio coberto onde regularmente era estendido nas pedras e espancado.
No entanto, não era por isso que chorava.
Não era a primeira vez que era castigado, chicoteado, fechado em celas escuras. Por várias vezes fora vendido para servir a feiticeiras cruéis e pervertidas. Sempre respondera lutando, com toda a ferocidade que tinha, tornando-se tão destrutivo que acabavam por enviá-lo de volta a Askavi.
Não tinha tentado fugir de Pruul nem uma única vez, nem uma única vez libertara o seu volúvel temperamento para rasgar, despedaçar e destruir. Há alguns anos, o sangue de Zuultah e dos guardas teria manchado as paredes deste lugar, e, do meio dos destroços, ele soltaria um grito de guerra eyrieno clamando vitória e inundando a noite.
Mas esses eram os tempos em que ainda acreditava no mito, no sonho. Eram os tempos em que ainda acreditava que um dia encontraria a Rainha que o aceitaria, compreenderia e apreciaria. Conhecê-la fora o seu sonho, uma flor perfumada e resplandecente na sua alma. A Senhora da Montanha Negra. A Rainha de Ebon Askavi. Feiticeira.
Então o sonho virou carne — e Daemon a assassinou.
Era por isso que chorava. Pela perda da senhora a quem ansiara servir, pela perda do único homem em quem acreditava poder confiar.
Agora restava um vazio, um desespero tão profundo que cobria sua alma como o muco bolorento cobria suas asas.
Restava um único sonho.
Por fim, a dor no peito diminuiu. Lucivar reprimiu o último soluço e abriu os olhos.
Sempre soubera onde e como queria morrer. E não era nas minas de sal de Pruul.
Suas pernas tremiam devido ao esforço. Lucivar fincou os dentes no lábio inferior até sangrar. Mais algumas horas e os guardas viriam libertá-lo para conduzi-lo às minas de sal. Mais dor, mais sofrimento.
Choraria um pouco, estremeceria um pouco. Na semana seguinte, com a aproximação de um guarda, estremeceria um pouco mais. Aos poucos, esqueceriam aquilo que nunca deveriam esquecer sobre Lucivar. E então...
Lucivar sorriu com os lábios cobertos de sangue.
Havia ainda uma razão para viver.
Dorothea SaDiablo olhou espantada para o Mestre da Guarda.
— O que quer dizer com encerrou as buscas?
— Ele não está em Hayll, Sacerdotisa — respondeu Lord Valrik. — Eu e meus homens vasculhamos todos os celeiros, todas as casas de campo, todos os povoados plebeus e dos Sangue. Entramos em todos os becos de todas as cidades. Daemon Sadi não está em Hayll, nunca esteve em Hayll. Eu apostaria minha carreira nisso.
E perderia.
— Você encerrou as buscas sem a minha autorização.
— Sacerdotisa, eu daria a minha vida por você, mas estamos perseguindo um homem que não está aqui. Ninguém o viu, Sangue ou plebeus. Os homens estão abatidos. Precisam ficar algum tempo em casa, com suas famílias.
— E daqui a dez meses um exército de fedelhos chorões irá testemunhar quão abatidos seus homens estão.
Valrik não respondeu.
Dorothea começou a andar de um lado para outro, batendo os dedos no queixo.
— Ora, se ele não está em Hayll, comece a procurar nos Territórios de fronteira e...
— Não temos o direito de realizar buscas em outro Território.
— Todos esses Territórios estão sob a proteção de Hayll. As Rainhas não se atreveriam a negar acesso às suas terras.
— A autoridade das Rainhas que governam esses Territórios já é fraca. Não podemos nos dar ao luxo de fragilizá-la ainda mais.
Dorothea se afastou de Lord Valrik. Ele tinha razão, maldito fosse. Mas precisava fazê-lo agir de alguma maneira.
— Então você me deixar à mercê do Sádico — disse, com a voz trêmula.
— Não, Sacerdotisa — exclamou Valrik. — Falei com todos os Mestres da Guarda de todos os Territórios de fronteira e os informei sobre a índole brutal de Sadi. Eles estão cientes de que suas jovens correm perigo. Se o descobrirem em algum dos seus Territórios, ele não escapará com vida.
Dorothea se virou.
— Nunca o autorizei a matá-lo.
— Ele é um Príncipe dos Senhores da Guerra. É a única forma de...
— Você não deve matá-lo.
Dorothea cambaleou, sentindo-se satisfeita quando Valrik a envolveu com os braços e a conduziu até uma cadeira. Colocando os braços em volta do pescoço do seu Mestre da Guarda, puxou sua cabeça para baixo até as testas dos dois se tocarem.
— A morte de Sadi teria consequências para todos nós. Ele precisa ser trazido de volta a Hayll com vida. Você precisa ao menos supervisionar as buscas nos outros Territórios.
Valrik hesitou, suspirando em seguida.
— Não posso. Pelo seu bem e pelo bem de Hayll... não posso.
Um bom homem. Mais velho, experiente, respeitado, honrado.
Dorothea deslizou a mão direita pelo pescoço de Valrik, numa carícia sensual, e em seguida cravou as unhas na sua carne, injetando todo o veneno pelo dente de serpente.
Valrik recuou, horrorizado, levando a mão ao pescoço.
— Sacerdotisa... — Seus olhos brilharam. Ele deu um passo cambaleante para trás.
Dorothea lambeu delicadamente o sangue dos dedos e sorriu para Valrik.
— Você disse que daria a vida por mim. Assim foi feito. — Examinou as unhas, ignorando Valrik, que saía aos tropeções, moribundo. Invocando uma lixa, corrigiu uma irregularidade na unha.
Era uma pena perder um Mestre da Guarda tão bom, e um aborrecimento ter de substituí-lo. Fez a lixa desaparecer e sorriu. Contudo, Valrik serviria para ensinar uma lição muito importante ao seu sucessor: o excesso de honra pode matar.
Saetan fez uma bola com a camisa recém-engomada, amarrotando-a. Sacudiu-a, sinistramente satisfeito com o resultado, e vestiu-a.
Odiava isto. Sempre odiara.
As calças pretas e o casaco tipo túnica passaram pelo mesmo processo que a camisa. Enquanto abotoava o casaco, deu um sorriso sarcástico. Ainda bem que insistira para que Helene e o resto do pessoal não trabalhasse esta noite. Se sua cerimoniosa governanta o visse vestido daquela forma, se sentiria pessoalmente insultada.
Seus sentimentos eram estranhos. Preparava-se para uma execução e não sentia nada além de alívio por não ferir o orgulho da governanta com a sua aparência.
Não, não era só isso o que sentia. Havia raiva diante daquela necessidade, e uma ansiedade terrível, pois temia que, considerando o que estavas prestes a fazer, aqueles olhos azul-safira, um dia o olhassem com condenação e aversão em vez de afeto e amor.
Mas Jaenelle estava com Mephis em Amdarh. Nunca saberia.
Saetan invocou a bengala que tinha posto de lado algumas semanas antes.
É claro que Jaenelle saberia. Era inteligente demais para deixar de perceber o significado do desaparecimento repentino de Menzar. No entanto, o que iria pensar dele? Que significado isso teria para ela?
Tivera a esperança — que sensação agridoce! — de poder viver sossegado neste local sem dar razão para que as pessoas recordassem vividamente quem ele era e o que era. Havia desejado apenas ser um pai a educar uma filha Rainha.
Nunca fora assim tão simples. Não para ele.
Nunca o questionaram sobre as razões que o haviam levado a lutar em favor de Dhemlan Terreille quando Hayll ameaçou aquela terra pacata tantos séculos antes. Ambos os lados partiram do princípio de que ele agia movido pela ambição. Porém o que o havia movido era algo muito mais sedutor e de uma simplicidade muito maior: queria ter um lugar que pudesse chamar de lar.
Queria ter uma terra para cuidar, um povo com o qual se preocupar, crianças — suas e dos outros — para encher a casa com sua alegria e exuberância. Sonhava com uma vida simples na qual usaria sua Arte para o bem e não para destruir.
Entretanto, um Príncipe dos Senhores da Guerra, Viúva Negra e de Joias Negras, a quem já chamavam Senhor Supremo do Inferno, não poderia simplesmente entrar de uma hora para outra na vida tranquila de um pequeno povoado. Por isso, ele determinou um preço digno do seu poder: construiu Paços dos SaDiablo em todos os três Reinos, governou com mão de ferro e um coração piedoso, ansiando pelo dia em que conheceria uma mulher cujo amor por ele superasse o medo.
Mas em vez disso conheceu e casou-se com Hekatah.
Durante algum tempo, muito pouco tempo, achou que seu sonho tinha se concretizado — até Mephis nascer e Hekatah ter certeza de que ele não partiria, de que não abandonaria o filho. Mesmo nessa época, comprometido com Hekatah, tentou ser um bom marido, tentou ainda mais ser um bom pai. Quando ela engravidou pela segunda vez, Saetan se atreveu a acreditar, novamente, que Hekatah gostava dele, que pretendia construir uma vida a seu lado. Contudo, Hekatah tinha uma única paixão: suas próprias ambições. E os filhos representavam um pagamento ao apoio de Saetan. Somente quando carregava seu terceiro filho no ventre foi que ela percebeu que Saetan jamais usaria seu poder para torná-la a incontestada Sacerdotisa Suprema de todos os Reinos.
Saetan nunca chegou a ver seu terceiro filho. Apenas partes dele.
Saetan fechou os olhos, respirou fundo e lançou o pequeno feitiço preso a uma teia emaranhada de ilusões que tinha criado mais cedo, naquele mesmo dia. Os músculos das pernas estremeceram. Abriu os olhos e examinou as mãos, que agora pareciam deformadas e tremiam ligeiramente, mas de forma perceptível.
— Odeio isto. — Devagar, surgiu um sorriso. Parecia um velho resmungão.
Enquanto se dirigia ao salão público, suas costas começaram a doer, pois estavam arqueadas de forma pouco natural, e as pernas começaram a arder sob seu peso. No entanto, se Menzar fosse esperto o bastante para desconfiar da armadilha, o desconforto físico ajudaria a ocultar as ilusões da teia.
Saetan entrou no salão principal e assobiou baixinho para o homem que estava em silêncio junto à porta.
— Eu falei que era para tirar a noite de folga — disse, a voz despida de vigor e do tom profundo e suave como um trovão.
— Não seria adequado o senhor abrir a porta para seu convidado, Senhor Supremo — respondeu Beale.
— Que convidado? Não aguardo ninguém esta noite.
— A Sra. Beale foi visitar a irmã mais nova em Halaway. Vou me juntar a elas depois que o seu convidado chegar e então iremos jantar fora.
Saetan pousou as mãos na bengala e ergueu uma sobrancelha.
— A Sra. Beale sai para jantar fora?
Os lábios de Beale curvaram-se ligeiramente.
— Às vezes. Com relutância.
O sorriso com o qual Saetan respondeu sumiu.
— Vá se juntar à sua senhora, Sr. Beale.
— Depois que o seu convidado chegar.
— Não estou esperando...
— Minhas sobrinhas frequentam a escola de Halaway. — A Joia Vermelha cintilou sob a camisa branca de Beale.
Saetan inspirou através dos dentes. Tinha de cuidar do assento de modo discreto. O Conselho das Trevas não podia fazer nada com ele diretamente, mas se rumores sobre o que ia se passar chegassem aos seus ouvidos... Olhou fixamente para o mordomo Senhor da Guerra de Joia Vermelha.
— Quantos criados já sabem?
— Sabem o quê, Senhor Supremo? — retorquiu Beale afavelmente.
Saetan não pestanejou. Estaria equivocado? Não. Por um breve momento, tinha vislumbrado uma intensa e feroz satisfação nos olhos de Beale. Os Beale nada diriam. Nem uma palavra. Mas iriam celebrar.
— Vai aguardar no escritório público? — perguntou Beale.
Aceitando a sugestão, Saetan retirou-se para o escritório. Enquanto servia e aquecia um copo de yarbarah, reparou que suas mãos tremiam, mas não apenas por conta do feitiço que tinha lançado.
Nascido em Hayll, servira em cortes terreillianas e governara a maior parte do tempo em Terreille, e depois no Inferno. Apesar de ter domínio sobre o Território Dhemlan em Kaeleer, tinha sido um senhorio ausente, um visitante que somente via o que era permitido aos visitantes.
Sabia o que Terreille pensara sobre o Senhor Supremo. Mas aqui era Kaeleer, o Reino das Sombras, uma terra mais feroz e mais selvagem, que adotava uma magia mais obscura e mais poderosa do que Terreille poderia imaginar.
Obrigado, Beale, pelo aviso, pela advertência. Não voltarei a me esquecer do terreno sobre o qual estou pisando. Não esquecerei que o que você acabou de me demonstrar jaz debaixo do fino manto do Protocolo e do comportamento civilizado. Não esquecerei... pois estes são os Sangue atraídos por Jaenelle.
Lord Menzar estendeu a mão para bater na porta com a argola, afastando-a depressa no último segundo. A cabeça de dragão em bronze bem fixada a um largo pescoço curvo olhava-o fixamente de cima, com olhos verdes de vidro reluzindo sinistramente à luz da tocha. A argola, logo abaixo da cabeça, representava uma detalhada pata com garras a segurar uma bola lisa.
A Sacerdotisa das Trevas deveria ter me avisado.
Segurando a pata com a mão suada, bateu na porta uma, duas, três vezes, antes de recuar e olhar em volta. As tochas produziam sombras repletas de silhuetas em constante mutação e Menzar desejou, mais uma vez, que este encontro tivesse sido à luz do dia.
Acenou com a mão para afastar aquele pensamento inútil e estendeu-a em direção à argola justo no momento em que a porta se abriu de rompante. Por pouco não recuou diante do grande homem que ocupava todo o vão da porta, até que reconheceu o terno preto e o colete do uniforme de um mordomo.
— Pode informar ao Senhor Supremo que já estou aqui.
O mordomo não se moveu nem disse nada.
Menzar mordeu furtivamente o lábio inferior. O homem estava vivo, não estava? Sabia que muitos dos habitantes de Halaway trabalhavam para o Paço, de uma forma ou de outra, mas não lhe tinha ocorrido que pudessem ser completamente diferentes depois do pôr do sol. Com certeza isso não aconteceria com aquela garota que vivia aqui — embora esse fato pudesse explicar suas excentricidades.
Por fim, o mordomo lhe deu passagem.
— O Senhor Supremo o aguarda.
O alívio de Menzar por entrar durou pouco. Tão repleto de sombras quanto a escada exterior, o salão principal estava mergulhado num silêncio rico em murmúrios intermitentes. Ele seguiu o mordomo até o final do corredor, perturbado pela ausência de gente. Onde estavam os criados? Talvez em outra ala ou jantando? Um lugar deste tamanho... poderia abrigar metade do povoado.
O mordomo abriu a última porta à direita e anunciou a chegada do visitante.
Era um aposento desprovido de janelas e sem outra porta perceptível. Com a forma de um L invertido, a parte alongada estava mobiliada com grandes cadeiras, uma mesa baixa de madeira escura, um sofá de couro preto, um tapete de Dharo, velas em suportes de ferro batido de diversas formas e quadros intensos e um pouco inquietantes. A parte mais curta...
Menzar arquejou ao reparar, por fim, nos olhos dourados que reluziam na escuridão. Uma luz suave começou a brilhar de um candelabro no canto mais afastado do espaço. Na parte mais curta havia uma grande mesa de madeira escura. Atrás dela, estantes que iam do chão ao teto. As paredes de ambos os lados estavam cobertas por um veludo vermelho escuro, que transmitia uma sensação diferente do resto do aposento. Uma sensação de perigo.
As luzes das velas ganharam mais intensidade, fazendo as sombras recuarem até os cantos.
— Vá para um lugar onde eu possa vê-lo — disse uma voz lamurienta.
Menzar aproximou-se devagar da mesa, quase soltando uma gargalhada de alívio.
Era este o Senhor Supremo? Este velho mirrado, trêmulo e grisalho? Era este o homem cujo nome todos temiam sussurrar?
Menzar fez uma reverência.
— Senhor Supremo. Seu convite foi de uma grande amabilidade...
— Amabilidade? Bah! Não vi nenhuma razão para torturar meus velhos ossos uma vez que suas pernas gozam de boa saúde. — Saetan acenou com a mão trêmula na direção da cadeira em frente à mesa. — Sente-se. Sente-se. Fico cansado só de vê-lo aí em pé. — Enquanto Menzar se acomodava, Saetan resmungou e gesticulou para o espaço vazio. Voltando, finalmente, a atenção para o convidado, disse com rispidez: — E então? O que ela fez agora?
Reprimindo o regozijo que sentia, Menzar fingiu considerar a pergunta.
— Faltou às aulas esta semana — disse, de forma educada. — Acho que passará a ter aulas particulares daqui em diante. Devo salientar que a socialização com crianças da mesma idade...
— Aulas particulares? — interrompeu Saetan, batendo com a bengala no chão. — Aulas particulares? — bateu com a bengala mais uma vez. — Por que haveria de gastar meu dinheiro com aulas particulares? Ela tem toda a instrução de que necessita para realizar suas obrigações.
— Obrigações?
A boca de Saetan se curvou num sorriso malicioso.
— A mente dela está um pouco desequilibrada e ela não é uma beleza, mas no escuro é um docinho.
Menzar se esforçou para não arregalar os olhos. O amigo da Sacerdotisa Suprema tinha dado a entender, contudo... Não tinha visto marcas de dentes no pescoço da garota. Bem, havia outras veias. Que outras coisas faria Saetan — ou exigiria que ela fizesse — enquanto se deliciava bebendo de uma veia? Menzar podia pensar em várias. Todas o repugnavam. Todas o excitavam.
Menzar pôs uma mão sobre a outra para mantê-las firmes.
— E quanto às aulas particulares?
Saetan acenou com a mão, rejeitando as palavras.
— Precisei dar alguma desculpa quando aquela vagabunda da Sylvia veio aqui farejar e fazer perguntas sobre a garota. — Semicerrou os olhos. — Você parece ser um homem perspicaz, Lord Menzar. Quer ver meu quarto especial?
O coração de Menzar bateu acelerado. Se ele o convidar para o escritório particular, invente uma desculpa, qualquer uma, para ir embora.
— Quarto especial?
— Meu quarto especial. Onde eu e a garota... brincamos.
Menzar estava prestes a recusar o convite, porém as dúvidas e advertências haviam desaparecido. O Senhor Supremo não passava de um velho devasso. Era, sem dúvida, um conhecedor de assuntos sobre os quais Menzar só tinha lido.
— Gostaria muito.
A caminhada pelos corredores foi penosamente lenta. Saetan descia os lances de escada de lado, resmungando e praguejando. Sempre que Menzar começava a se sentir apreensivo em relação àquela descida, um sorriso malicioso e uma alusão a um ato erótico faziam desaparecer de novo as dúvidas.
Chegaram por fim a uma grossa porta de madeira com uma fechadura do tamanho do punho de um homem. Menzar aguardou impaciente, enquanto a mão trêmula de Saetan tentava encaixar a chave na fechadura, ajudando depois o Senhor Supremo a empurrar a pesada porta. Quem ajudaria o Senhor Supremo em outros momentos? Aquele mordomo? Será que a garota o seguiria até o quarto como um animal de estimação bem treinado ou estaria presa? Será que Saetan necessitava de auxílio? Será que o mordomo vigiava enquanto... Menzar lambeu os lábios. A cama deve ser... nem conseguia imaginar como seria a cama naquele quarto de brincar.
— Entre, entre — disse Saetan lamuriosamente.
A luz da tocha do corredor não iluminava o quarto. À entrada, relutante mais uma vez, Menzar forçou os olhos para conseguir ver a mobília, mas o quarto estava envolto numa escuridão absoluta, uma escuridão expectante que era mais do que a simples ausência de luz.
Menzar não conseguia decidir se deveria voltar ou seguir em frente. Foi nesse momento que sentiu alguma coisa fantasmagórica sussurrar ao passar por ele, deixando uma névoa tão ligeira que era quase imperceptível. No entanto, a névoa estava repleta de coisas, e, na sua mente, viu um ramalhete de jovens rostos, os rostos de todas as feiticeiras cujos espíritos tinha podado com tanto zelo. Sempre se considerara um jardineiro discreto, mas este quarto oferecia mais. Muito, muito mais.
Entrou, atraído para o centro do quarto por pequenas mãos fantasmas. Algumas puxavam de maneira brincalhona, outras acariciavam. A última se encostou firmemente junto ao peito, impedindo-o de dar outro passo, antes de deslizar pela barriga e desaparecer, contrariando suas expectativas.
Sua decepção foi tão brusca quanto o som da chave rodando na fechadura.
Frio. Escuridão. Silêncio.
— S-Senhor Supremo?
— Sim, Lord Menzar — respondeu uma voz profunda que ressoou pelo quarto como um suave trovão. Uma voz sedutora, acariciando na escuridão.
Menzar lambeu os lábios.
— Preciso ir embora.
— Não será possível.
— Tenho outro compromisso.
Lentamente, a escuridão mudou, dissipando-se. Uma luz fria e prateada se espalhou ao longo das paredes de pedra, do chão e do teto, seguindo as linhas radiais e de orientação de uma vasta teia. Suspensa na parede do fundo havia uma enorme aranha de metal preto, com sua ampulheta feita de rubis lapidados. Presas à teia prateada embutida na pedra, era possível ver facas de todos os tamanhos e tipos.
Além disso, havia apenas uma mesa no quarto.
Os músculos de seu esfíncter se retesaram.
A mesa tinha uma borda elevada e canais que levavam a pequenos orifícios nos cantos. Tubos de vidro saíam dos orifícios e desembocavam em jarros de vidro.
Pare com isto. Pare com isto. Estava permitindo que o próprio medo o vencesse. Estava permitindo ser intimidado pelo quarto. O velho é que sem dúvida não era intimidador. Poderia facilmente enxotar aquele velho louco e trêmulo.
Menzar virou-se, disposto a insistir em sair.
Levou algum tempo para reconhecer o homem encostado à porta, esperando.
— Tudo tem um preço, Lord Menzar — advertiu Saetan. — Chegou o momento do acerto de contas.
A água que escoava pelo ralo finalmente corria limpa. Saetan girou as torneiras, parando o forte esguicho que o lavava. Segurou-se nelas para manter o equilíbrio, descansando a cabeça no antebraço.
Não tinha acabado. Faltavam os últimos detalhes.
Secou-se energicamente e jogou a toalha na cama estreita ao passar pelo pequeno quarto adjacente ao escritório particular abaixo do Paço no Reino das Sombras. Aguardava-o uma garrafa de yarbarah, na grande mesa de madeira escura. Estendeu a mão, hesitou e invocou um decantador de conhaque. Encheu um copo quase até a borda e bebeu-o de uma vez só. O conhaque lhe provocaria uma terrível dor de cabeça, mas serviria também para acalmá-lo e para embaçar as memórias e as fantasias pervertidas que haviam irrompido da mente de Menzar como pus de um furúnculo.
O conhaque além disso não tinha gosto de sangue, e o gosto e o cheiro de sangue eram coisas que ele não conseguiria suportar esta noite.
Encheu o segundo copo e ficou nu em frente à lareira apagada, olhando fixamente para o quadro de Dujae, Descida aos infernos. Um artista talentoso conseguira capturar, mediante formas ambíguas, a mescla de terror e de alegria sentida pelos Sangue ao entrarem pela primeira vez no Reino das Trevas.
Encheu o terceiro copo. Queimara suas roupas. Jamais conseguira manter a indumentária usada numa execução. Uma parte do medo e do sofrimento parecia sempre se impregnar no tecido. Ser tomado de assalto por esses sentimentos, mais tarde...
O copo se estilhaçou na mão de Saetan. Vociferando, ele fez desaparecer os vidros partidos antes de voltar ao pequeno quarto e vestir apressadamente roupas limpas.
Havia retirado Menzar do seu corpo, mas seria possível algum dia limpar os pensamentos de Menzar da sua mente?
— Compreendem o que têm de fazer?
Dois demônios, outrora homens de Halaway, fitavam o grande baú de madeira.
— É claro, Senhor Supremo. Faremos exatamente como nos instruiu.
Saetan entregou uma pequena garrafa a cada um deles.
— Pelo seu esforço.
— Não é esforço algum — disse um deles. Puxou a rolha da garrafa e cheirou, arregalando os olhos. — É...
— Um pagamento.
O demônio voltou a colocar a rolha na garrafa e sorriu.
— As cildru dyathe não querem isto.
Saetan pousou a pequena garrafa numa rocha plana que servia como mesa. Já tinha distribuído todas as outras. Esta era a última.
— Não a estou oferecendo às outras cildru dyathe. Somente a você.
Char mudou a posição dos pés, pouco à vontade.
— Aguardamos o momento em que desapareceremos nas Trevas — disse, embora sua língua enegrecida lambesse o que restava dos lábios enquanto ele fitava a garrafa.
— Com você é diferente — afirmou Saetan. Sentiu o estômago embrulhado. Finas agulhas de dor atravessavam suas têmporas. — Você se preocupa com os outros, ajuda-os na adaptação e a efetuar a transição. Luta para se manter aqui, para lhes dar um lugar. E sei que, quando as oferendas são realizadas em memória de uma criança que partiu, vocês não as recusam. — Saetan pegou a garrafa e estendeu-a para o rapaz. — É apropriado que a aceite. Mais do que você pensa.
Lentamente, Char estendeu a mão para a garrafa, tirou a rolha e cheirou. Bebeu um pequeno gole e suspirou, satisfeito.
— É sangue puro.
Saetan cerrou os dentes com força para suportar a dor e a náusea. Olhou fixamente para a garrafa, odiando-a.
— Não. É uma indenização.
Hekatah olhava boquiaberta para o grande baú de madeira, batendo de leve no queixo com o papel branco dobrado.
Magnificamente decorado com entalhes de madeiras preciosas e incrustações de ouro, o baú emanava opulência, uma cáustica recordação da vida que outrora levara e dos luxos que acreditava lhe serem devidos.
Usando a Arte, Hekatah sondou o interior do baú pela quinta vez em uma hora. Nada. Talvez fosse apenas um baú.
Abrindo o papel, examinou a elegante caligrafia masculina.
Hekatah,
Em sinal de minha estima.
Saetan
Tinha que haver alguma outra coisa. O baú não era mais do que um embrulho, embora caro. Talvez Saetan tivesse percebido, por fim, o quanto precisava dela. Talvez tivesse se cansado do papel de patriarca benfeitor e estivesse preparado para reclamar o que devia — o que deviam — ter reclamado há muito tempo. Talvez sua odiosa honra tivesse sido manchada pelas brincadeiras com a garota de estimação que adquirira em Kaeleer para ocupar o lugar de Jaenelle.
Saborearia tais pensamentos depois de abrir o presente.
A chave de bronze ainda estava no envelope. Retirou-a, ajoelhou-se junto ao baú e abriu a fechadura.
Levantou o tampo e franziu a sobrancelha. O baú estava cheio de raspas de madeira perfumada. Ficou olhando surpresa por um momento e depois sorriu de modo complacente. Acondicionamento, é claro. Com um gritinho de excitação, enfiou a mão entre as raspas, à procura do presente.
A primeira coisa que retirou foi uma mão.
Deixou-a cair e rastejou para longe do baú. Sua garganta se agitava enquanto olhava atônita para a mão caída no chão, com a palma para cima e os dedos ligeiramente dobrados. Por fim, a curiosidade venceu o medo. Engatinhando, avançou bem devagar.
Se fosse de porcelana ou mármore, teria se despedaçado no chão de pedra.
Era carne.
Por um momento, ficou agradecida por ser uma mão aparentemente normal, sem mutilações nem deformidades.
Com a respiração irregular, Hekatah se levantou e olhou de novo para o baú aberto. Moveu a mão para trás e para a frente, acima do baú. Erguidas pelo vento da Arte, as raspas se espalharam pelo chão.
Outra mão. Antebraços. Braços. Pés. Pernas. Coxas. Genitais. Tronco. E no canto, olhando-a fixamente com um olhar vazio, estava a cabeça de Lord Menzar.
Hekatah gritou, mas nem ela mesma saberia dizer se de medo ou raiva. Parou bruscamente.
Um aviso. Ele não dava mais do que um aviso. Mas por quê?
Hekatah se abraçou e sorriu. Em seu trabalho na escola de Halaway, Menzar devia ter se aproximado demais da nova queridinha de Saetan.
Suspirou. Saetan podia ser muito possessivo. Como Menzar o provocara a ponto de ser executado, não era provável que a garota fosse autorizada a sair do Paço dos SaDiablo sem um acompanhante escolhido a dedo. E ela sabia bem que quem quer que tivesse sido escolhido por Saetan para um serviço particular não seria muito receptivo a qualquer tipo de suborno. Por isso...
Hekatah suspirou novamente. Teria de ser bastante convincente para persuadir Greer a entrar escondido no Paço para ver o novo bichinho de estimação do Senhor Supremo.
Ainda bem que a garota que choramingava no quarto ao lado tinha sido um aperitivo bem escolhido.
Surreal passeava pela rua tranquila e isolada onde ninguém fazia perguntas. Homens e mulheres estavam sentados nos alpendres, apreciando a leve brisa que permitia suportar a tarde quente e úmida. Não lhe dirigiam a palavra, e Surreal, que passara dois anos da sua infância numa rua desse tipo, fazia-lhes o favor de passar como se fossem invisíveis.
Ao chegar ao edifício onde tinha um apartamento no último andar, Surreal reparou no olhar que cruzou com o seu por um breve momento. Com toda a naturalidade, passou o pesado cesto de compras da mão direita para a esquerda enquanto observava um homem atravessar a rua, aproximando-se de maneira cautelosa.
Com este não usaria o punhal, decidiu. Uma faca afiada, se necessário. Pela maneira como ele se movia, parecia ainda estar se recuperando de uma ferida profunda do lado esquerdo. Tentaria proteger a região. Ou talvez não, se fosse um Senhor da Guerra experiente em combates.
O homem parou perto dela.
— Senhora.
— Senhor da Guerra.
Percebeu um tremor de medo nos olhos do homem, que no entanto se apressou em ocultá-lo. O fato de ela conseguir identificar sua casta tão facilmente, apesar de seus esforços para escondê-la, era um aviso de que Surreal era forte o bastante para vencer qualquer disputa em que se envolvessem.
— O cesto parece pesado — disse o homem, ainda cauteloso.
— São apenas alguns livros e o jantar de hoje.
— Poderia levá-lo para você... daqui a alguns minutos.
Surreal entendeu o recardo. Alguém a aguardava. Se sobrevivesse ao encontro, o Senhor da Guerra subiria com o cesto. Caso contrário, dividiria os despojos com alguns privilegiados do seu prédio, comprando assim um pouco de ajuda de que um dia pudesse precisar.
Surreal colocou o cesto na calçada e recuou.
— Dez minutos. — Assim que o homem concordou, subiu agilmente a escadaria da frente do prédio e fez uma pausa para colocar dois escudos Cinza de proteção à sua volta e um escudo Verde sobrepondo-os. Esperava que quem quer que a aguardasse lá dentro reagisse primeiro ao escudo Verde, de menor importância. Invocou, também, seu maior facão de caça. Se o ataque fosse físico, a lâmina lhe proporcionaria um alcance adicional.
Com a mão na maçaneta da porta, passou rapidamente a sonda psíquica pela entrada do prédio. Ninguém. Nada de anormal.
Girou a maçaneta num movimento rápido e entrou, virando-se para a parte de trás da porta. Fechou-a com um pontapé, mantendo-se encostada à parede onde estavam as caixas de correio enferrujadas. Seus grandes olhos verde-dourados logo se adaptaram à entrada em meia-luz, bem como às escadas igualmente mal iluminadas. Silêncio. E nenhuma sensação clara de de perigo.
Subiu as escadas bem rápido, mantendo-se atenta a alterações de estado de espírito ou a pensamentos que poderiam vir da mente de um inimigo.
Subiu até o terceiro andar, até o quarto. Finalmente, chegou ao quinto.
Encostada no canto oposto à sua própria porta, Surreal sondou mais uma vez — e, por fim, sentiu-o.
Um odor psíquico escuro. Taciturno, de certo modo alterado, mas familiar.
Aliviada — e um pouco aborrecida — pela ausência de um combate, fez a faca desaparecer, destrancou a porta e entrou.
Não o via desde que deixara a casa da Lua Vermelha de Deje mais de dois anos antes. Pelo que podia ver, não tinham sido anos fáceis. Seu cabelo negro estava comprido e desigual. Suas roupas, sujas e rasgadas. Ele não reagiu ao som da porta se fechando de repente, e continuou a olhar o croqui que ela tinha adquirido recentemente, o que fez Surreal começar a se sentir apreensiva.
A falta de reação era problemática. Muito problemática. Esticando o braço para trás, Surreal abriu a porta apenas o suficiente para não ter de lidar com a fechadura.
— Sadi?
Foi nesse momento que ele se virou. Seus olhos dourados não demonstravam reconhecê-la, porém manifestavam algo que lhe era familiar, embora não se lembrasse de onde tinha visto aquele olhar.
— Daemon?
Ele continuou a olhar para ela, como se esforçando-se para se recordar. Foi então que sua expressão confusa se desanuviou.
— É a pequena Surreal. — A voz de Daemon, aquela voz profunda e sedutora, estava agora enrouquecida e envelhecida.
A pequena Surreal?
— Não está aqui sozinha, não é? — perguntou Daemon, preocupado.
Começando a atravessar a casa, ela disse rispidamente:
— Mas é claro que estou sozinha. Quem mais estaria aqui?
— Onde está sua mãe?
Surreal ficou petrificada.
— Minha mãe?
— Você é muito nova para ficar aqui sozinha.
Titian estava morta há séculos. Ele sabia disso. Tinham-se passado séculos desde que ele e Tersa...
Os olhos de Tersa. Olhos que se esforçavam para discernir as formas acinzentadas e fantasmagóricas da realidade em meio à névoa do Reino Distorcido.
Mãe Noite, o que teria acontecido a ele?
Mantendo distância, Daemon começou a caminhar lentamente até a porta.
— Não posso ficar aqui. Não sem a sua mãe. Não quero... não posso...
— Daemon, espere. — Surreal deu um salto, interpondo-se entre Daemon e a porta. Os olhos de Daemon lampejaram de pânico. — Minha mãe precisou se ausentar por uns dias com... com Tersa. Eu... me sentiria mais segura se você ficasse.
Daemon ficou nervoso.
— Alguém tentou machucá-la, Surreal?
Fogo do Inferno, aquele tom de voz não. Não quando havia um Senhor da Guerra chegando a qualquer momento com o cesto de compras.
— Não — disse, na esperança de parecer jovem, mas convincente. — Mas você e Tersa são o que temos de mais parecido com família, e sinto-me... sozinha.
Daemon olhava fixamente para o tapete.
— Além disso — acrescentou, franzindo o nariz —, você precisa de um banho.
Ele levantou a cabeça repentinamente. Olhou para ela com uma esperança e um desejo tão óbvios que a assustou.
— Senhora? — sussurrou, estendendo a mão. — Senhora? — Observou o cabelo emaranhado nos dedos e balançou a cabeça. — Preto. Não deveria ser preto.
Se ela mentisse, isso o ajudaria? Perceberia a diferença? Fechou os olhos, sem saber se conseguiria aguentar a angústia que sentia em Daemon.
— Daemon — disse docilmente. — Sou eu, Surreal.
Ele se afastou dela, murmurando baixinho.
Surreal levou-o até uma cadeira, sem conseguir pensar no que mais poderia fazer.
— É. Você é uma amiga.
Surreal rodopiou até a porta, os pés em posição de combate e o facão de caça de volta à mão.
O Senhor da Guerra estava à porta, o cesto de compras a seus pés.
— Sou uma amiga — disse Surreal. — E você, o que é?
— Não sou um inimigo. — O Senhor da Guerra olhou para a faca. — Não pode guardar isso?
— Acho que não.
Suspirou.
— Ele me curou e me ajudou a chegar aqui.
— Vai se queixar dos serviços prestados?
— Não, fogo do Inferno — rebateu o Senhor da Guerra. — Antes de começar, ele me disse que não tinha certeza de ter conhecimentos suficientes de Arte medicinal para reparar os danos. Mas eu não sobreviveria sem ajuda e uma Curandeira me denunciaria. — Passou a mão pelo curto cabelo castanho. — E mesmo que me matasse, teria sido melhor do que o que a minha Senhora teria feito comigo por abandonar seus serviços tão repentinamente. — Gesticulou na direção de Daemon, que estava enroscado na cadeira, ainda murmurando baixinho. — Não percebi que...
Surreal fez a faca desaparecer. Imediatamente, o Senhor da Guerra pegou o cesto, apertando a mão esquerda contra o corpo e fazendo uma careta.
— Idiota — disse Surreal com rispidez, apressando-se a pegar o cesto. — Não devia carregar um peso destes se ainda está se recuperando.
Deu um puxão. Vendo que o homem não largava o cesto, resmungou:
— Idiota. Tolo. Pelo menos use a Arte para diminuir o peso.
— Não seja grossa. — Cerrando os dentes, o Senhor da Guerra levou o cesto até a mesa da cozinha. Virou-se para sair, mas hesitou. — O que dizem por aí é que ele matou uma criança.
Sangue. Tanto sangue.
— Não é verdade.
— Ele acha que é.
Não conseguia ver Daemon, mas podia ouvi-lo.
— Merda.
— Acha que conseguirá sair do Reino Distorcido?
Surreal olhou fixamente para o cesto.
— Até hoje ninguém conseguiu.
— Daemon. — Ao ver que não obteria qualquer resposta, Surreal mordeu o lábio inferior. Talvez devesse deixá-lo dormir, se é que estava mesmo dormindo. Não, as batatas estavam assando, os bifes prontos para grelhar, a salada preparada. Ele precisava de nutrientes tanto quanto de repouso. Tocá-lo? Não havia como saber o que estaria vendo no Reino Distorcido, de que forma poderia interpretar uma suave cutucada para que acordasse. Tentou novamente, falando mais alto. — Daemon.
Daemon abriu os olhos. Passado um longo minuto, estendeu a mão.
— Surreal — disse, com a voz rouca.
Surreal agarrou sua mão, desejando saber como ajudá-lo. Quando sentiu a mão se soltar, agarrou-a com mais força, puxando-o.
— Levante. Você precisa de um banho antes de jantar.
Daemon levantou-se com muito da sua graça fluida e felina, porém, quando Surreal o levou até o banheiro, ficou olhando em volta, como se nunca tivesse visto um antes. Surreal levantou o tampo do vaso sanitário, na esperança de que pelo menos ainda se lembrasse como usá-lo. Vendo que ele não se mexia, tirou seu casaco e a camisa, com algum esforço. Não se sentia incomodada quando Tersa apresentava esta passividade infantil, mas a inércia de Daemon lhe dava nos nervos. Quando tentou retirar o cinto, porém, Daemon rosnou, apertando seu pulso a ponto de Surreal pensar que seus ossos seriam feitos em pedacinhos.
Resmungou:
— Então tire você mesmo.
Percebeu a derrocada interior, o desespero.
Afrouxando o aperto no pulso de Surreal, Daemon ergueu sua mão e levou-a aos lábios.
— Me desculpe. Eu... — Largou-a. Tinha um ar abatido ao afrouxar o cinto e começar a tirar as calças, desajeitadamente.
Surreal saiu.
Alguns minutos depois, quando Daemon abriu o chuveiro, os canos de água ressoaram e chiaram.
Enquanto colocava a mesa, Surreal se perguntou se ele teria realmente tirado todas as roupas. Há quanto tempo estaria assim? Se era isto o que restava de uma mente outrora brilhante, como fora capaz de curar aquele Senhor da Guerra?
Surreal parou e pousou um prato na mesa. Tersa sempre tivera seus lampejos de lucidez, geralmente quando se tratava da Arte. Uma vez, ao cuidar de um corte profundo na perna de Surreal, a Viúva Negra louca respondera às preocupações de Titian dizendo: “Não esquecemos o básico.” Mas, uma vez terminado o curativo, não se lembrava sequer do próprio nome.
Passados alguns minutos, Surreal ouviu o grito abafado que indicava que a água quente tinha acabado. Os canos ressoaram e chiaram quando ele fechou a torneira.
Não se ouviu mais nenhum som.
Reclamando baixinho, Surreal abriu de rompante a porta do banheiro. Daemon estava na banheira, com a cabeça baixa.
— Seque-se — disse Surreal.
Vacilante, ele pegou uma toalha.
Esforçando-se para manter a voz firme, embora calma, acrescentou:
— Separei roupas limpas. Vista-as depois de se secar.
Foi para a cozinha preparar os bifes, enquanto escutava os movimentos no banheiro. Estava servindo a comida quando Daemon surgiu, devidamente vestido.
Surreal sorriu em sinal de aprovação.
— Agora já se parece mais com você.
— Jaenelle está morta — disse, num tom severo e monocórdio.
Surreal apoiou-se na mesa, absorvendo as palavras, que eram mais violentas do que um golpe físico.
— Como você sabe?
— Lucivar me disse.
Estando em Pruul, como ele poderia saber algo que nem ela nem Daemon sabiam ao certo? E a quem poderiam perguntar? Cassandra não voltara ao Altar depois daquela noite, e Surreal não sabia quem era o Sacerdote, quanto mais onde procurá-lo.
Cortou e amassou as batatas.
— Não acredito nele. — Levantou os olhos a tempo de perceber o olhar lúcido e contido de Daemon, que em seguida desapareceu. Mexeu a cabeça.
— Ela está morta.
— Talvez ele tenha se enganado. — Serviu-se de duas porções de salada e temperou-a antes de se sentar e começar a cortar o bife. — Coma.
Sentou-se à mesa.
— Ele não mentiria para mim.
Surreal colocou creme azedo na batata assada de Daemon e cerrou os dentes.
— Eu não disse que ele mentiu. Disse que talvez tenha se enganado.
Daemon fechou os olhos. Passados alguns minutos, voltou a abri-los, fitando a refeição à sua frente.
— Você fez o jantar.
Perdido. Andando por outro caminho naquela paisagem interior estilhaçada.
— Sim, Daemon — disse Surreal calmamente, controlando-se para não chorar. — Fiz o jantar. Por isso, vamos comer enquanto está quente.
Ele a ajudou a lavar a louça.
Enquanto lavavam os pratos, Surreal percebeu que a loucura de Daemon estava limitada a emoções, a pessoas, àquela tragédia ímpar que não conseguia enfrentar. Era como se Titian nunca tivesse morrido, como se Surreal não tivesse passado três anos se prostituindo em becos escuros antes de Daemon encontrá-la e tomar as providências para que tivesse uma educação adequada numa casa da Lua Vermelha. Ele achava que ela ainda era uma criança e continuava incomodado com a ausência de Titian. No entanto, quando ela mencionou um livro que estava lendo, Daemon fez uma observação mordaz sobre o gosto eclético de Surreal e indicou outros livros que talvez a interessassem. Aconteceu o mesmo com a música, com a arte. Nada disso representava uma ameaça, não pertencia a um período específico de sua vida, não fazia parte do pesadelo de Jaenelle sangrando naquele Altar das Trevas.
Ainda assim, era cansativo passar-se por uma menina, fingir não perceber a incerteza e o suplício naqueles olhos dourados. A noite mal tinha caído quando Surreal sugeriu que descansassem um pouco.
Suspirou, aninhando-se na cama. Talvez Daemon se sentisse tão aliviado por estar longe dela como ela se sentia por estar longe dele. No fundo, ele sabia que Surreal não era uma criança. Assim como sabia que estivera com ele no Altar de Cassandra.
Névoa. Sangue. Tanto sangue. Cálices de cristal estilhaçados.
Você é meu instrumento.
As palavras mentem. O sangue, não.
Caminha entre as cildru dyathe.
Talvez estivesse enganado.
Deu voltas e mais voltas.
Talvez estivesse enganado.
A névoa se dissipou, mostrando uma trilha estreita que subia. Ela a fitou e estremeceu. Era uma trilha forrada com rochas pontiagudas que apontavam para os lados e para baixo, como grandes dentes de pedra. Quem a descesse pisaria nas partes lisas. Quem a subisse...
Começou a escalar, deixando um pouco mais de si mesmo a cada extremidade pontuda e faminta. A um quarto do caminho, reparou enfim no som, no barulho da água jorrando. Olhou para cima e viu-a irromper por sobre o penhasco acima da trilha, seguindo rapidamente na sua direção.
Não era água. Era sangue. Tanto sangue.
Não havia como voltar. Chegou a tentar, mas foi apanhado na mesma hora pela inundação vermelha, que o arremessou contra as palavras de pedra que lhe tinham fustigado a mente durante tanto tempo. Aos tropeções, perdido, vislumbrou um terreno calmo que se erguia sobre a inundação. Com esforço, abriu caminho até aquela pequena ilha de segurança, agarrou-se à grama comprida e afiada e subiu para o terreno em desintegração. Tremendo, agarrou-se à ilha do talvez.
Quando a torrente e o rugido cessaram, percebeu que estava deitado em uma pequena ilha de formato fálico, rodeada por um imenso mar de sangue.
Mesmo antes de estar completamente desperta, Surreal invocou o punhal.
Um som suave e furtivo.
Deslizou para fora da cama e abriu ligeiramente a porta, escutando com atenção.
Nada.
Talvez fosse Daemon no banheiro.
Uma luz cinza, que precedia o amanhecer, inundava a pequena entrada. Mantendo-se junto à parede, Surreal examinou os outros cômodos.
O banheiro estava vazio. O quarto de Daemon também.
Resmungando baixinho, Surreal verificou o quarto. Um furacão parecia ter passado pela cama, embora o resto do ambiente estivesse intacto. As únicas roupas que faltavam eram as que lhe tinha dado na noite anterior.
Não faltava nada na sala de estar. Não faltava nada — maldição! — na cozinha.
Surreal fez desaparecer o punhal antes de pôr uma chaleira no fogo.
Tersa costumava se ausentar durante dias, meses, por vezes até anos, antes de voltar a um destes refúgios. Surreal pretendia partir em breve, mas e se Daemon voltasse dali a poucos dias e não a encontrasse? Ele se lembraria dela como uma criança e ficaria preocupado? Tentaria encontrá-la?
Preparou chá e torradas e foi para a sala da frente, onde se enroscou no sofá com um dos grossos livros que havia comprado.
Esperaria algumas semanas até decidir. Não havia pressa. Nesta zona de Terreille não faltavam homens como os que frequentavam Briarwood e que ela poderia caçar.
Ignorando obstinadamente o fluxo contínuo de criados que passavam correndo pela porta do escritório em direção aos quartos da frente, Saetan pegou o relatório seguinte.
Tinham percorrido metade do caminho. Levaria ainda outros 25 minutos até que a carruagem parasse junto à escadaria. O que teria Mephis na cabeça ao decidir usar a teia de desembarque em Halaway em vez da que ficava a alguns metros da porta principal do Paço?
Cerrando os dentes, folheou o relatório sem prestar atenção.
Era o Príncipe dos Senhores da Guerra de Dhemlan, o Senhor Supremo do Inferno. Devia dar o exemplo, ter uma conduta digna.
Pôs o relatório na mesa e saiu do escritório.
Que se danasse a dignidade.
Cruzou os braços e encostou-se numa parede na metade do caminho entre o escritório e a porta principal. Dali, era possível observar confortavelmente sem ser atropelado por um dos criados. Assim esperava.
Esforçando-se para manter o rosto impassível, Saetan ouviu Beale aceitando uma enxurrada de desculpas implausíveis como justificativa para que este criado ou aquela criada estivessem no salão principal naquele exato momento.
Concentrados em seu próprio caos e em suas próprias desculpas, ninguém percebeu a porta principal se abrindo até que um Mephis bastante desgrenhado disse:
— Beale, você podia... Deixa pra lá, os criados já estão aqui. Há mais alguns pacotes...
Mephis olhou furioso para os criados que se precipitavam porta afora até que viu Saetan. Ziguezagueando por entre as criadas, dirigiu-se a ele, apoiou-se na parede e suspirou, cansado.
— Ela não vai demorar. Saiu para falar com Tarl assim que a carruagem parou, para perguntar a ele sobre a situação de seu jardim.
— Um sortudo, esse Tarl — sussurrou Saetan. Ouvindo Mephis bufar, examinou o filho desgrenhado. — Viagem complicada?
Mephis voltou a bufar.
— Eu não achava possível que uma garota pudesse virar toda uma cidade de pernas para o ar em apenas cinco dias. — Encheu as bochechas de ar. — Felizmente, só vou ter de ajudar com a papelada. As negociações vão ficar por sua conta... como deve ser.
A sobrancelha de Saetan se ergueu de repente.
— Que negociações? Mephis, mas que...
Alguns criados voltaram, trazendo a bagagem de Jaenelle. Os outros...
Saetan observou com crescente interesse os empregados sorridentes que entravam carregados de pacotes de papel pardo, indo em direção ao labirinto de corredores que levavam aos aposentos de Jaenelle.
— Não são o que você está pensando — bufou Mephis.
Como Mephis sabia que Saetan esperava que Jaenelle comprasse mais roupas, o Príncipe das Trevas resmungou, desapontado. A ideia de Sylvia sobre o vestuário apropriado para uma garota não incluía um único vestido, e a única concessão que ela e Jaenelle tinham feito à insistência de Saetan para que todos no Paço se vestissem a rigor para o jantar foi uma camisa preta comprida e duas blusas. Quando ele argumentou — com muita sensatez — que calças, blusas e camisas compridas não eram artigos exatamente femininos, Sylvia lhe pregou um longo sermão, cujo ponto central era que o que quer que uma mulher gostasse de vestir era feminino e o que não gostasse de vestir não era, e se ele era teimoso e antiquado demais para compreender isso, então era melhor que enfiasse a cabeça num balde de água fria. Muito embora não a tivesse perdoado inteiramente por ter acrescentado que teriam de procurar bastante para encontrar um balde grande o suficiente para comportar a sua cabeça, admirara a audácia do comentário.
Nesse momento, Jaenelle entrou pela porta, com um sorriso ofuscante para Beale e o restante dos criados, perguntando em seguida a Helene, educadamente, se poderiam levar a seus aposentos um sanduíche e um suco de fruta.
Parece feliz, pensou Saetan, esquecendo-se de todo o resto.
Depois de Helene sair às pressas para a cozinha e de Beale conduzir o resto da criadagem de volta às suas respectivas obrigações, Saetan se afastou da parede, abriu os braços... e lutou contra a súbita náusea provocada pelas memórias e fantasias de Menzar, que lhe inundaram a mente. Estremeceu diante da ideia de tocar Jaenelle, de conspurcar, de alguma forma, o afeto e a boa disposição que dela fluíam. Começou a baixar os braços, mas Jaenelle enfiou-se entre eles e abraçou-o forte, dizendo:
— Olá, papai.
Abraçou-a com força, inspirando o odor físico e o obscuro odor psíquico dos quais tinha sentido uma saudade profunda nos últimos dias.
Por um momento, esse odor sombrio tornou-se ágil e penetrante. Contudo, quando ela se afastou para olhá-lo de frente, seus olhos azul-safira nada lhe transmitiram. Sentiu um calafrio de apreensão.
Jaenelle beijou-o no rosto.
— Vou desfazer as malas. Mephis precisa conversar. — Voltou-se para Mephis, que ainda estava encostado à parede, com um ar cansado. — Obrigada, Mephis. Me diverti muito, e desculpe por ter dado tanto trabalho.
Mephis abraçou-a afetuosamente.
— Foi uma experiência única. Da próxima vez preciso me preparar melhor.
Jaenelle deu uma gargalhada.
— Você voltaria a Amdarh comigo?
— Não me atreveria a deixá-la ir sozinha — resmungou Mephis.
Assim que Jaenelle foi embora, Saetan pôs o braço em volta dos ombros de Mephis.
— Venha ao meu escritório. Você está precisando de um copo de yarbarah.
— Preciso mesmo é dormir por um ano — resmungou Mephis.
Saetan levou o filho mais velho até o sofá de couro e esquentou um copo de yarbarah. Sentado num banquinho, pousou o pé direito de Mephis na sua coxa, tirou seu sapato e meia e começou uma massagem relaxante. Passados alguns silenciosos minutos, Mephis ganhou um pouco mais de ânimo e, lembrando-se do copo de yarbarah, bebeu um gole.
Sem parar a massagem, Saetan disse calmamente:
— Pois então, me diga.
— Por onde quer que comece?
Boa pergunta.
— Algum daqueles pacotes é de roupa? — Não conseguiu evitar o tom esperançoso.
Os olhos de Mephis tinham um brilho perverso.
— Um deles. Ela comprou um suéter para você. — Gritou, de repente.
— Desculpe — murmurou Saetan entre dentes, massageando com delicadeza os dedos do pé que tinha acabado de apertar com força, enquanto o murmúrio de Mephis se transformava num rosnado. — Não uso suéter. E também não uso pijama. — Estremeceu, pois as palavras despertaram outras lembranças. Pousando com cuidado o pé direito de Mephis no chão, tirou o sapato e a meia de seu pé esquerdo e começou a massagem.
— Foi difícil, não foi? — perguntou Mephis afavelmente.
— Sim. Mas as contas foram acertadas. — Saetan ficou em silêncio por um momento, massageando o pé. — Por que um suéter?
Mephis deu um gole no yarbarah, deixando a pergunta no ar.
— Ela disse que você precisa relaxar, física e mentalmente.
A sobrancelha de Saetan se ergueu de repente.
— Que você nunca poderá se largar no sofá e tirar uma sesta se estiver sempre vestido de maneira tão formal.
Oh, Mãe Noite!
— Acho que não sei me largar.
— Bem, sugiro sinceramente que aprenda. — Mephis fez o copo vazio flutuar até uma mesa próxima.
— Você tem um traço maldoso de caráter, Mephis — resmungou Saetan. — O que há nos malditos pacotes?
— Livros, sobretudo.
Dessa vez, Saetan se lembrou de não apertar os dedos.
— Livros? Talvez minha velha perspicácia tenha me abandonado, mas eu achava que tínhamos uma sala imensa cheia de livros. Várias, na verdade. Chamam-se bibliotecas.
— Pelo visto elas não têm este tipo de livros.
Saetan sentiu um frio na barriga.
— Que tipo?
— Como vou saber? — protestou Mephis. — Não vi a maior parte deles. Só paguei. Mas...
Saetan bufou.
— ... em todas as livrarias — e fomos a todas as livrarias de Amdarh — ela pedia livros sobre Tigrelan ou Sceval ou Pandar ou Centauran, e quando o livreiro lhe mostrava lendas e mitos relativos a esses locais, escritos por autores dhemlanos, ela dizia com toda a educação... a propósito, foi sempre muito cortês... que não estava interessada em livros sobre lendas e mitos, a não ser que tivessem origem direta naquelas raças. Naturalmente, os livreiros e os clientes que se aproximavam durante estas discussões explicavam que esses Territórios eram locais inacessíveis, com os quais ninguém mantinha relações comerciais. Ela agradecia sua ajuda e eles, querendo continuar nas graças de Jaenelle e manter o acesso à minha conta bancária, diziam: “Quem pode dizer o que é real e o que não é? Quem viu esses lugares?”, e ela respondia: “Eu vi”, pegava os livros que já tinha comprado e saía porta afora antes que o livreiro e os clientes tivessem tempo de se recobrar do espanto.
Saetan voltou a bufar.
— Quer que eu lhe conte sobre a música?
Saetan largou o pé de Mephis e apoiou a cabeça nas mãos.
— O que tem a música?
— As lojas de música de Dhemlan não vendem música foclórica de Scelt ou música para flauta de Pandar ou...
— Chega, Mephis — gemeu Saetan. — Todos virão à minha porta querendo saber que tipo de acordos comerciais poderão ser estabelecidos com esses Territórios, não é?
Mephis suspirou, satisfeito. Saetan fulminou o filho mais velho com o olhar.
— Alguma coisa ocorreu como previsto?
— Tivemos momentos agradáveis no teatro. Pelo menos lá eu vou poder voltar sem que rosnem para mim. — Aproximou-se do pai. — Há outra coisa. sobre a música. — Cruzou as mãos, hesitante. — Alguma vez você já ouviu Jaenelle cantar?
Saetan tentou se lembrar e, por fim, balançou a cabeça.
— Ela tem uma voz encantadora quando fala, então pensei que... Não me diga que ela não tem ouvido para música ou é desafinada?
— Não. — O olhar de Mephis apresentava uma estranha expressão. — Não é desafinada. Ela... Assim que a ouvir, vai compreender.
— Por favor, Mephis, chega de surpresas por hoje.
Mephis suspirou.
— Ela entoa cânticos de feiticeira... no Idioma Antigo.
Saetan levantou a cabeça.
— Cânticos de feiticeira autênticos?
Os olhos de Mephis encheram-se de lágrimas, que iluminaram seu olhar.
— Cantados de um jeito que nunca ouvi antes, mas, sim, autênticos cânticos de feiticeira.
— Mas como... — Era inútil perguntar como Jaenelle sabia o que sabia. — Acho que está na hora de subir e ver nossa intratável criança.
Mephis levantou-se com dificuldade. Bocejou e espreguiçou-se.
— Se você descobrir o que é aquilo tudo por que paguei, gostaria muito de ser informado.
Saetan passou a mão na nuca, suspirando.
— Comprei uma coisa para você, Mephis disse?
— Ele mencionou — respondeu Saetan, cautelosamente.
Os olhos cor de safira cintilavam quando lhe entregou, com toda a solenidade, a caixa.
Saetan abriu-a e tirou o suéter. Macio, grosso, preto, com bolsos fundos. Despiu o casaco e colocou o suéter.
— Obrigado, criança-feiticeira. — Fez a caixa desaparecer e caiu graciosamente no chão, estendendo as pernas e apoiando-se num cotovelo. — Pareço relaxado o bastante?
Jaenelle soltou uma gargalhada e caiu no chão ao lado dele.
— Completamente.
— O que mais você comprou?
Ela não o encarou.
— Alguns livros.
Saetan fitou as pilhas de livros cuidadosamente arrumadas, formando um enorme semicírculo em volta de Jaenelle.
— Dá para ver. — Lendo as lombadas mais próximas, reconheceu a maior parte dos livros de Arte, dos quais possuía exemplares na biblioteca da família ou em sua biblioteca privada. O mesmo para os livros de história, artes e música. Eram o começo da biblioteca de uma jovem feiticeira.
— Sei que a família tem a maior parte destes livros, mas queria exemplares meus. É complicado fazer anotações em livros que não são nossos.
Saetan sentiu dificuldade em respirar. Anotações. Guias manuscritos que ajudariam a explicar aqueles saltos de cortar a respiração que Janealle dava ao criar um feitiço. E não teria acesso a eles. Agitou-se mentalmente. Não seja tolo. Você só precisa pedir a porcaria do livro emprestado.
Nesse momento, foi invadido por uma tristeza agridoce. Ela queria sua própria biblioteca, para levar embora quando estivesse preparada para ter sua própria casa. Restavam poucos anos para aproveitar até que o Paço ficasse vazio outra vez.
Afastou esses pensamentos e voltou-se para as outras pilhas, as dos livros de ficção. Estes eram mais interessantes, pois uma análise minuciosa das escolhas de Jaenelle revelaria bastante sobre seus gostos e interesses imediatos. Tentar descobrir um traço comum entre eles era desnorteante demais, por isso apenas memorizou as informações. Considerava-se um leitor eclético. Quanto a Jaenelle, não sabia como descrevê-la. Alguns livros pareciam muito infantis para ela, outros muito realistas. A alguns não deu grande atenção, outros o fizeram lembrar do tempo que tinha passado desde a última vez que entrara em uma livraria, para seu próprio entretenimento. Muitos livros sobre animais.
— Uma bela coleção — disse, por fim, colocando o último livro com cuidado na respectiva pilha. — E aqueles, o que são? — Apontou para os três livros meio escondidos sob um papel pardo.
Corando, Jaenelle balbuciou:
— São só livros.
Saetan levantou uma sobrancelha e aguardou.
Com um suspiro resignado, Jaenelle deslizou a mão por baixo do papel e empurrou um livro para Saetan.
Estranho. Sylvia tinha reagido de forma idêntica quando Saetan aparecera de surpresa, certa noite, e a encontrara lendo aquele mesmo livro. Não o tinha ouvido chegar, e quando, por fim, olhou para cima e o viu, escondeu o livro na mesma hora atrás de uma almofada, transmitindo a clara impressão de que nada a faria retirá-lo do esconderijo e entregá-lo.
— É um romance — disse Jaenelle muito baixinho, enquanto Saetan invocava os óculos em meia-lua e começava a folhear o livro ao acaso. — Algumas mulheres na livraria não paravam de falar sobre ele.
Romance. Paixão. Sexo.
Ele conteve — a duras penas — o ímpeto de dar um salto e rodopiar com ela em volta do quarto. Um sinal de recuperação emocional? Por favor, doces Trevas, que seja um sinal de recuperação.
— Você acha ridículo? — O tom de voz de Jaenelle era defensivo.
— O romance nunca é ridículo, criança-feiticeira. Quer dizer, às vezes é ridículo, mas não ridículo. — Folheou mais páginas. — Além do mais, eu costumava ler coisas deste tipo. Tiveram um papel importante na minha educação.
Jaenelle olhou-o espantada.
— Verdade?
— Hum. É claro que eram um pouco mais... — Passou os olhos por uma página. Fechou o livro cuidadosamente. — Pensando bem, talvez não fossem. — Tirou os óculos e os fez desaparecer antes que ficassem embaçados.
Jaenelle ajeitou o cabelo, um pouco nervosa.
— Papai, se eu tiver perguntas sobre algumas coisas, você estaria disposto a respondê-las?
— Mas é claro, criança-feiticeira. Você terá todo o apoio de que necessitar na Arte ou em qualquer outro assunto.
— Nããão. Eu queria dizer... — Olhou de relance para o livro diante de Saetan.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas. A perspectiva o encheu de alegria e de pavor. Alegria, pois poderia ajudá-la a pintar uma tela emocional diferente, que contrabalançaria, assim esperava, as feridas provocadas pelo estupro. Pavor, pois, a despeito dos conhecimentos que possuía sobre qualquer que fosse o assunto, Jaenelle tinha sempre uma perspectiva que ultrapassava completamente sua experiência.
Os pensamentos de Menzar, as fantasias de Menzar voltaram a inundar sua mente.
Saetan fechou os olhos, lutando para que as imagens parassem.
— Ele machucou você — disse ela.
O corpo de Saetan reagiu à sombria voz sepulcral, ao esfriamento instantâneo do quarto.
— Fui eu que realizei a execução, senhora. É ele que está completamente morto.
O quarto esfriou ainda mais. O silêncio era mais do que silêncio.
— Sofreu? — perguntou com bastante delicadeza.
Névoa. Trevas cortadas por relâmpagos. A beira do abismo estava muito perto, e o chão desmoronava depressa sob seus pés.
— Sim, sofreu.
Ela ponderou a resposta.
— Não o bastante — disse, por fim, pondo-se de pé.
Entorpecido, Saetan olhou atônito para a mão estendida à sua frente. Não o bastante? O que teriam feito seus parentes de Chaillot para que ela não mostrasse remorsos diante de um assassinato? Até ele próprio lamentava ter de tirar uma vida.
— Venha comigo, Saetan. — Olhava-o com aqueles olhos antigos e perturbados, na expectativa de que se afastasse dela.
Jamais. Agarrou sua mão, deixando que o ajudasse a se levantar. Jamais se afastaria dela.
Porém, não podia negar o calafrio que o percorreu enquanto a seguia até a sala de música naquele mesmo andar. Não podia negar a prudência instintiva quando viu que a única luz do ambiente vinha de dois candelabros ao lado do piano. Velas, e não lamparinas. Luz que dançava com cada corrente de ar, dando à sala um ar irreal, sensual e proibitivo. As velas iluminavam as teclas do piano e o suporte das partituras. Todo o resto pertencia à noite.
Jaenelle invocou um pacote embrulhado em papel pardo, abriu-o e folheou as partituras.
— Encontrei muitas delas em caixas no fundo das estantes, sem qualquer feitiço de conservação para protegê-las. — Balançou a cabeça, aborrecida, entregando-lhe uma partitura. — Consegue tocar isto?
Saetan sentou-se ao piano e abriu a partitura. O papel estava amarelado e roto, os símbolos desbotados. Esforçando-se para ler à luz trêmula das velas, tocou a peça em silêncio, com os dedos mal pressionando as teclas.
— Acho que consigo tocá-la muito bem.
Jaenelle se posicionou atrás de um candelabro, misturando-se às sombras.
Saetan tocou a introdução e parou. Música estranha. Desconhecida, e apesar disso... Reiniciou.
A voz de Jaenelle elevou-se, um som pastoso. Elevava-se, megulhava, espiralava em volta das notas tocadas por Saetan, cuja alma se elevava, mergulhava, espiralava com aquela voz. Um Cântico de Pesar, Morte e Conciliação. No Idioma Antigo. Um cântico de luto... por duas vítimas de uma execução. Estranha música. Fazia arder a alma, despedaçava o coração, esta música de tempos imemoriais.
Cântico de feiticeira. Não, era mais do que isso. Os cânticos da Feiticeira.
Ele não percebeu quando parou de tocar, quando suas mãos trêmulas deixaram de bater nas teclas, nem quando seus olhos ficaram cheios de lágrimas. Foi arrebatado por aquela voz que lancetava a memória da execução, deixando uma ferida limpa, mas que sangrava — para depois também curar.
Mephis, você tinha razão.
— Saetan?
Saetan pestanejou, afastando as lágrimas, e suspirou tão profundamente que chegou a estremecer.
— Desculpe, criança-feiticeira. Eu não... estava preparado.
Jaenelle abriu os braços.
Saetan contornou o piano aos tropeções, ansioso por aquele abraço puro e afetuoso. Menzar era uma cicatriz recente em sua alma, que ficaria marcada para sempre, mas ele já não temia abraçar Jaenelle, já não duvidava do tipo de amor que sentia por ela.
Passou a mão nos seus cabelos durante muito tempo, reunindo coragem para perguntar:
— Como conhecia esta música?
Ela mergulhou o rosto ainda mais no ombro de Saetan. Por fim, sussurrou:
— Faz parte de quem eu sou.
Saetan sentiu o começo de um afastamento interior, uma distância protetora entre Jaenelle e ele.
Não, minha Rainha. Você diz “Faz parte de quem eu sou” com convicção, porém o seu afastamento grita a sua incerteza. Não permitirei isso.
Tocou levemente o nariz de Jaenelle.
— Sabe uma outra coisa que você é?
— O quê?
— Uma feiticeirazinha muito cansada.
Ela começou a rir e precisou conter um bocejo.
— Como a luz do dia deixa Mephis muito cansado, nossos passeios eram quase sempre depois do pôr do sol, mas eu não queria desperdiçar as horas do dia dormindo, então... — Voltou a bocejar.
— Mas você chegou a dormir, não?
— Mephis me obrigou a tirar a sesta — queixou-se. — Disse que só assim conseguia descansar. Eu não sabia que demônios precisavam descansar.
Era melhor não responder.
Jaenelle estava quase dormindo quando ele a levou para o quarto. Quando Saetan começou a tirar seus sapatos e meias, ela lhe garantiu que ainda estava bem acordada para se arrumar sozinha e que ele não precisava se preocupar. Dormia profundamente antes de chegarem à porta do quarto.
Saetan, por outro lado, estava desperto e agitado.
Depois de sair por uma das portas dos fundos do Paço, vagueou pelo jardim cuidadosamente aparado, desceu um pequeno lance de largos degraus de pedra e seguiu as trilhas que levavam aos jardins mais selvagens. As folhas faziam barulho na brisa ligeira. Um coelho pulou na frente de Saetan, alerta, mas sem grandes preocupações.
— Devia ser mais prudente, bola de pelos — disse Saetan baixinho. — Você ou alguém da sua família tem vindo comer os feijões verdes da Sra. Beale. Se atravessar na frente dela, ainda acaba como prato principal uma destas noites.
O coelho mexeu as orelhas antes de desaparecer atrás de um arbusto.
Saetan passou os dedos pelas folhas laranja-avermelhadas. O arbusto estava carregado de botões inchados, prestes a florir. Em breve, estaria coberto de flores amarelas, como chamas erguendo-se de brasas incandescentes.
Soltou um longo suspiro. A mesa cheia de papéis ainda o aguardava.
Confortavelmente protegido da noite fresca de verão, com as mãos aquecidas nos bolsos fundos do suéter, Saetan caminhou devagar de volta ao Paço. No momento em que subia os degraus de pedra embaixo do jardim, parou e escutou.
Além dos jardins mais selvagens estavam os bosques ao norte.
Balançou a cabeça e retomou o caminho.
— Maldito cão.
Luthvian examinou seu reflexo. O vestido novo se ajustava às suas curvas elegantes, mas ainda não estava provocante o suficiente. Talvez o cabelo solto, caindo pelas costas, parecesse muito juvenil. Talvez devesse ter feito alguma coisa em relação àquela madeixa branca que a fazia parecer mais velha.
Bem, ela era jovem, tinha pouco mais de 2.200 anos. E aquela madeixa branca tinha surgido quando ainda era criança, uma lembrança dos punhos do pai. Além do mais, Saetan perceberiria se ela tentasse ocultá-la, e, com certeza, não estava se arrumando para ele. Queria apenas que aquela filha de Saetan reconhecesse o nível da feiticeira que tinha concordado em ensiná-la.
Lançando um último olhar nervoso ao vestido, Luthvian desceu as escadas.
Pontual, como sempre.
Roxie abriu a porta logo após a primeira batida.
Luthvian não estava certa se a animação de Roxie era mera curiosidade em relação à filha de Saetan ou se era o desejo de provar às outras garotas que conseguia flertar com um Príncipe dos Senhores da Guerra de Joia Negra. Fosse o que fosse, tinha evitado que Luthvian abrisse a porta.
A filha foi uma surpresa muito boa. Luthvian não percebera que Saetan tinha adotado sua queridinha, porém não havia uma gota de sangue haylliano na garota — e muito menos dele. Imatura e sem grande traquejo social, concluiu Luthvian ao observar os breves cumprimentos trocados à porta. Nesse caso, o que teria levado Saetan a dar a esta garota a sua proteção e os seus cuidados?
Foi então que Jaenelle se virou na direção de Luthvian e sorriu timidamente, embora o sorriso não tenha chegado aos olhos azul-safira. E não havia qualquer timidez naqueles olhos. Estavam repletos de circunspecção e raiva reprimida.
— Lady Luthvian — disse Saetan ao se aproximar —, esta é a minha filha, Jaenelle Angelline.
— Irmã — saudou Jaenelle, estendendo ambas as mãos num cumprimento formal.
Essa saudação, como se fossem iguais, não agradou Luthvian, mas seria corrigida em particular, longe da presença protetora de Saetan. Por agora, devolveu o cumprimento e virou-se para Saetan.
— Fique à vontade, Senhor Supremo. — Indicou a sala de estar com o queixo.
— Aceita uma taça de chá, Senhor Supremo? — perguntou Roxie, tocando ligeiramente em Saetan ao passar.
Não era a hora nem o local para corrigir as ideias da tolinha em relação a Guardiões, em especial a este Guardião, mas Luthvian ficou surpresa ao ver Saetan agradecer Roxie e retirar-se para a sala de estar.
— Sabe — disse Roxie, fitando Jaenelle e sorrindo com muita vivacidade —, ninguém acreditaria que você é a filha do Senhor Supremo.
— Vá cuidar do chá, Roxie — ordenou Luthvian, ríspida.
Altiva, Roxie seguiu pelo corredor até a cozinha.
Jaenelle ficou olhando fixamente para a entrada vazia.
— Não se deixe enganar pelas aparências — sussurrou ela com uma voz sombria.
Luthvian sentiu um calafrio. Teria descartado a súbita alteração na voz de Jaenelle como um simples drama de adolescentes, se Saetan não tivesse surgido à porta da sala de estar bastante tenso e interrogativo.
Jaenelle sorriu para ele e deu de ombros.
Luthvian conduziu a nova aluna até seu próprio escritório, uma vez que Saetan insistira que as aulas fossem particulares. Talvez posteriormente, se Jaenelle conseguisse chegar ao nível das outras, pudesse fazer algumas aulas com as demais alunas.
— Pelo que percebi, vamos ter de começar pelo básico — disse Luthvian, fechando a porta.
— Sim — respondeu Jaenelle pesarosamente, ajeitando o cabelo sobre os ombros. Franziu o nariz e sorriu. — Papai conseguiu me ensinar algumas coisas, mas ainda tenho dificuldades com a Arte básica.
Seria ingênua ou simplesmente inábil?
Luthvian relanceou para o pescoço de Jaenelle, para detectar uma ferida recente ou uma sombra de machucado. Se ela não era mais que sangue fresquinho, por que se dar o trabalho de educá-la? Não, não fazia sentido, ainda mais porque era o próprio Saetan que a instruiria na Arte da Ampulheta. Alguma coisa não fazia sentido, alguma coisa que ainda não compreendia.
— Vamos começar deslocando um objeto. — Luthvian colocou uma bola vermelha de madeira na mesa de trabalho vazia. — Aponte o dedo para a bola.
Jaenelle resmungou, mas obedeceu.
Luthvian ignorou o lamento. Tudo indicava que Jaenelle era tão tolinha como suas outras alunas.
— Imagine um fio fino e rígido que sai da ponta do seu dedo e vai se ligar à bola. — Luthvian aguardou um momento. — Agora imagine a sua força passando pelo fio até tocar a bola. Agora imagine que puxa o fio e a bola se desloca na sua direção.
A bola não se moveu. Mas, a mesa de trabalho se deslocou. E os armários metidos na parede do fundo do escritório quase fizeram o mesmo.
— Pare! — gritou Luthvian.
Jaenelle parou e suspirou.
Luthvian olhou boquiaberta. Se tivesse sido unicamente a mesa de trabalho, poderia achar que era uma tentativa de se exibir. Mas os armários?
Luthvian invocou quatro blocos de madeira e mais quatro bolas de madeira. Colocou tudo na mesa e disse:
— Trabalhe sozinha por alguns instantes. Concentre-se em fazer uma ligação delicada entre você e o objeto que tenta deslocar. Preciso ver as outras alunas e já volto.
Obediente, Jaenelle centrou a atenção nos blocos e nas bolas.
Luthvian saiu apressada do escritório, com os punhos e os dentes cerrados. Queria ver uma única pessoa e era bom que ela tivesse uma boa resposta para aquilo.
Sentiu o frio na entrada principal antes de ouvir a risadinha.
— Roxie! — chamou com brusquidão, e agarrou o vão da porta para conter seu impulso. — Você tem feitiços para terminar.
Descontraída, Roxie agitou a mão.
— Oh, só falta um ou dois.
— Então vá fazê-los.
Roxie fez beicinho, olhando para Saetan, à espera do seu apoio.
Não havia qualquer expressão no rosto do Senhor Supremo. Pior ainda, seus olhos estavam imperturbáveis. Fogo do Inferno! Ele estava prestes a cortar a garganta daquela idiota e ela nem sequer se dava conta!
Luthvian arrastou Roxie para fora da sala de estar e pelo corredor abaixo, empurrando-a, por fim, até a sala de aula.
Roxie bateu o pé.
— Não pode me tratar assim! Meu pai é um Senhor da Guerra importante em Doun e minha mãe...
Luthvian apertou o braço de Roxie e sussurrou:
— Escute bem, sua idiota. Você não sabe com quem está se metendo.
— Ele gosta de mim.
— Ele quer matar você.
Roxie ficou atônita por um momento. Depois, mostrou um olhar calculista.
— Você está com ciúmes.
Luthvian precisou reunir todo seu autocontrole para não esbofetear a idiota com tal força que a faria girar no lugar.
— Vá para a sala de aula e não saia de lá. — Esperou até Roxie bater a porta antes de voltar para a sala de estar.
Caminhando, impaciente, de um lado para outro, Saetan praguejava baixinho enquanto passava os dedos no cabelo. A raiva dele não a surpreendeu, contudo ficou surpresa com o esforço que ele fazia para que não fosse sentida além da sala.
— Fico surpresa por não ter lhe dado uma verdadeira mostra do seu temperamento — disse Luthvian, mantendo-se junto à porta. — Por que não fez isso?
— Tenho minhas razões — rosnou.
— Razões, Senhor Supremo? Ou apenas uma?
Saetan parou de repente e olhou além de Luthvian.
— A aula já terminou? — perguntou com inquietação.
— Ela está praticando sozinha. — Luthvian odiava falar com Saetan quando estava zangado, por isso decidiu ir direto ao assunto. — Por que está se dando o trabalho de lhe ensinar os procedimentos da Ampulheta quando ela ainda é tão inexperiente?
— Nunca disse que era inexperiente — respondeu Saetan, tornando a andar pela sala. — Disse que precisava de ajuda na Arte básica.
— Até dominar o básico, uma feiticeira não pode fazer muita coisa.
— Não esteja tão certa disso.
Saetan continuou a andar de um lado para o outro, mas já não estava enfurecido. Luthvian observou-o, decidindo que não gostava de ver o Senhor Supremo nervoso. Não gostava de nada daquilo.
— O que foi que você não me contou?
— Tudo. Primeiro, queria que a conhecesse.
— Ela possui um imenso poder bruto para alguém que não usa Joias.
— Ela usa Joias. Acredite, Luthvian, Jaenelle usa Joias.
— Então o que...
Um grito entusiasmado os fez sair correndo em direção ao escritório.
Saetan abriu a porta de repente e ficou petrificado. Luthvian começou a empurrá-lo para que abrisse caminho, mas acabou se agarrando ao braço de Saetan como apoio.
A mesa descrevia círculos em sentido horário e, ao mesmo tempo, girava lentamente sobre si mesma como se estivesse num espeto. Podia ver agora uma dezena de caixas de madeira, algumas encostadas no tampo da mesa, outras pairando por cima dela, todas girando bem devagar. Sete bolas coloridas de madeira faziam uma dança complexa em volta das caixas. E todos os objetos mantinham a respectiva posição em relação à mesa que girava.
Com muito esforço, Luthvian achava que conseguiria controlar um mecanismo tão intricado, porém teria levado anos para adquirir aquela técnica. Não era possível que Jaenelle começasse com uma bola que nem sequer conseguia deslocar e acabasse naquilo numa questão de minutos.
Saetan soltou uma gargalhada que era ao mesmo tempo um lamento.
— Acho que estou pegando o jeito com esta coisa do fio até o objeto — disse Jaenelle ao olhar de relance por cima do ombro, com um largo sorriso, para logo em seguida soltar um gritinho quando tudo começou a balançar e cair.
Luthvian estendeu a mão no mesmo momento em que Saetan. Imobilizou os objetos menores, ao passo que ele deteve a mesa.
— Droga! Maldição! — Jaenelle estatelou-se no chão como uma marionete com os fios cortados, olhando feio para as mesas, caixas e bolas.
Às gargalhadas, Saetan endireitou a mesa.
— Não se preocupe, criança-feiticeira. Se tudo saísse perfeito logo de primeira, não seria muito divertido treinar, não é?
— É verdade — disse Jaenelle com um entusiasmo verdadeiro.
Luthvian fez desaparecer as caixas e bolas, esforçando-se para não rir diante do receio de Saetan. O que achava que a garota iria fazer? Tentar manipular uma sala repleta de mobília?
Parecia que sim, pois entraram numa discussão amistosa sobre qual o melhor ambiente para Jaenelle praticar.
— As salas de recepção, é claro, estão fora de questão — disse Saetan. Parecia um homem tentando desesperadamente acreditar que a lama sob seus pés era terra firme. — No Paço, há aposentos vazios e muitos móveis velhos no sótão. Por favor, comece por aí.
Saetan pedindo “por favor”?
Jaenelle olhou para Saetan com um falso ar exasperado.
— Está bem. Mas só para não criar problemas com Beale e Helene.
Saetan suspirou, sentido.
Jaenelle riu e virou-se para Luthvian.
— Obrigada, Luthvian.
— De nada — respondeu Luthvian debilmente. Todas as aulas seriam assim? Não estava certa sobre o que sentia em relação a isso. — Nossa próxima lição será daqui a dois dias — acrescentou ao deixarem o escritório.
Enquanto percorriam o corredor, Jaenelle manteve a atenção nos quadros. Estaria realmente interessada na arte ou apenas percebia a necessidade que os adultos tinham de conversar entre si depois de lidarem com ela?
— Acha que consegue sobreviver? — perguntou Saetan, baixinho.
Luthvian inclinou-se na direção de Saetan.
— É sempre assim?
— Oh, não — disse Saetan, seco. — Hoje estava muito bem-comportada. Normalmente é muito pior.
Luthvian abafou uma gargalhada. Era divertido vê-lo desorientado. Parecia tão acessível, tão...
A risada morreu. Não era acessível. Era o Senhor Supremo, o Príncipe das Trevas. E não tinha coração.
Roxie saiu da sala das alunas. Luthvian não entendeu bem o que tinha feito com o vestido, mas agora o decote estava muito mais acentuado do que até pouco antes.
Roxie olhou para Saetan, passando a língua pelo lábio superior.
Embora ele tentasse ocultá-la, Luthvian sentiu a repulsa de Saetan e o início da raiva fervilhando. Passado um momento, esses sentimentos foram arrastados por um frio que se entranhava nos ossos e que não podia ter origem num macho.
Nem mesmo neste macho.
— Deixe-o em paz — disse Jaenelle, com os olhos fixos em Roxie.
Havia algo muito feroz, muito predatório, na forma como Jaenelle se dirigira a Roxie. E aquele frio vinha de abismos que Luthvian não queria sequer imaginar.
— Precisamos ir — disse Saetan rapidamente, agarrando o braço de Jaenelle quando começou a deslizar à sua frente.
Jaenelle cerrou os dentes e rosnou. Não era um som que uma garganta humana pudesse emitir.
Saetan ficou petrificado.
Luthvian observou-os, muito assustada para se mover ou falar. Não fazia ideia do que se passava entre eles, mas esperava que Saetan fosse suficientemente forte para controlar a fúria de Jaenelle — e soube, com uma certeza terrível, que não era. Usava Joias Negras e não superava a filha. Que as Trevas sejam misericordiosas!
O frio desapareceu tão repentinamente como havia surgido.
Saetan largou o braço de Jaenelle e observou-a até a porta da frente se fechar atrás dela. Em seguida, encostou-se na parede.
Como Curandeira, Luthvian sabia que tinha de ajudá-lo, mas não conseguia mexer as pernas. Foi então que percebeu que as garotas não tinham reagido ao frio nem ao perigo, que seu burburinho girava em torno do drama exterior sobre o qual nada entendiam.
— Ela é bastante mimada — disse Roxie, fazendo seu melhor beicinho para Saetan.
Saetan olhou-a com tal fúria que Roxie se esquivou para dentro da sala de aula, esbarrando nas garotas que estavam aglomeradas junto à porta.
— Terminem seus feitiços — ordenou Luthvian. — Vou verificá-los daqui a um minuto. — Fechou a porta da sala de aula e encostou a cabeça na madeira.
— Peço desculpas — disse Saetan. Parecia esgotado.
— Você protegeu as garotas, não foi?
Saetan sorriu, cansado.
— Tentei proteger você, mas ela ascendeu na minha frente muito depressa.
— Ainda bem que não fez isso. — Luthvian se afastou da porta e ajeitou o vestido. — Mas você tinha razão. Foi melhor ter a primeira aula e saber como vai ser ensiná-la antes de aceitar o que ela é.
Luthvian viu a alteração nos olhos dourados de Saetan.
— E o que você pensa que ela é, Luthvian? — perguntou com extrema delicadeza.
Não se deixe enganar pelas aparências.
Olhou-o nos olhos.
— A sua filha.
Saetan seguia devagar pela larga estrada de terra batida. Jaenelle caminhava um pouco mais à frente e não parecia ter pressa, por isso ele não sentia uma necessidade premente de alcançá-la. Além do mais, era preferível deixá-la se acalmar antes de lhe perguntar o que precisava saber, e, sendo ela Rainha, a terra a tranquilizaria mais rapidamente do que ele próprio.
Nesse aspecto, era como qualquer outra Rainha. Quaisquer que fossem os seus talentos, as Rainhas estavam mais próximas da terra do que ninguém, eram elas que mais necessitavam do contato com a terra. Até as que viviam a maior parte do tempo em grandes cidades tinham um jardim onde seus pés podiam tocar o solo vivo, ouvindo tranquilamente tudo o que a terra tinha para lhes dizer.
Assim, ele andava sem pressa, apreciando a possibilidade de voltar a caminhar por uma estrada numa manhã de verão, admirando a terra beijada pelo sol. À direita, estendiam-se os pastos comuns de Doun, delimitados por uma cerca, onde pastavam os cavalos e o gado de todos os camponeses. À esquerda, além do muro de pedra que circundava os campos e os jardins de Luthvian, era possível ver uma pradaria salpicada de flores silvestres. À distância, viam-se aglomerados de pinheiros e outras árvores do gênero. Quase fora do alcance da vista, erguiam-se as montanhas que cercavam Ebon Rih.
Jaenelle saiu da estrada e parou, de costas para tudo o que fazia parte da civilização, com os olhos azul-safira fixos na natureza selvagem. Saetan aproximou-se devagar, não querendo interromper a meditação.
Não havia acontecido nada na casa de Luthvian que pudesse explicar a intensidade da ira de Jaenelle. Nada o preparara para aquele momento em que ela havia se virado contra ele, pois parte da sua ira era dirigida a Saetan, e ele ainda não compreendia o que havia feito para provocá-la.
Jaenelle virou-se para Saetan, aparentemente calma, mas ainda disposta a brigar.
Lute com uma Rainha apenas como última opção. Um útil e sensato conselho do administrador da primeira corte onde tinha servido.
— O que achou de Luthvian? — perguntou Saetan, enquanto oferecia o braço direito a Jaenelle.
Jaenelle observou-o por alguns momentos antes de lhe dar o braço.
— Conhece Arte. — Franziu o nariz e sorriu. — Gostei dela, embora hoje estivesse meio irritada.
— Criança-feiticeira, Luthvian está sempre meio irritada — disse Saetan com frieza.
— Ah. Especialmente com você?
— Temos um passado. — Aguardou as inevitáveis perguntas, mas se sentiu um pouco constrangido quando elas não vieram. Talvez as questões do passado não a interessassem. Ou talvez já tivesse todas as respostas de que necessitava. — Por que você estava tão zangada com a Roxie?
— Você não é um prostituto — disse Jaenelle, ríspida afastando-se de Saetan.
De repente, parecia ter escurecido, mas ao olhar para cima viu o céu tão azul quanto antes, e as nuvens permaneciam fofas e brancas. Não, a tempestade que se formava à sua volta estava apenas a alguns metros, com os punhos cerrados e as pernas afastadas, em posição de ataque — e lágrimas nos olhos perturbados.
— Ninguém disse que eu era um prostituto — respondeu Saetan com toda a calma.
As lágrimas escorreram pelo rosto de Jaenelle.
— Como pôde permitir que aquela vagabunda fizesse aquilo com você? — gritou Jaenelle.
— Fizesse o quê? — rebateu Saetan, sem conseguir reprimir a frustração que sentia.
— Como pôde deixá-la olhar para você como... forçá-lo...
— FORÇAR? Em nome do Inferno, como você acha que aquela criança poderia me forçar a fazer o que quer que fosse?
— Existem maneiras para isso!
— Mas que maneiras? Nunca houve uma mulher estúpida o bastante para tentar me forçar antes da minha Oferenda, quanto mais desde que comecei a usar a Negra.
Jaenelle vacilou.
— Ouça, criança-feiticeira. Roxie é uma jovem mulher que passou recentemente pela sua primeira experiência sexual. Neste momento, pensa que é a dona do mundo, que qualquer macho que olhe para ela desejará ser seu amante. Quando eu era mais novo, fui consorte em várias cortes. Entendo o jogo que se espera que os homens mais velhos e experientes joguem. Espera-se que deixemos que as garotas nos usem para praticar, já que não temos qualquer interesse em aquecer suas camas. Pela nossa aprovação ou desaprovação, ajudamos essas garotas a compreender a forma de pensar e de sentir de um homem. — Passou as mãos pelo cabelo. — Se bem que reconheço que Roxie é um pouco piranha.
Jaenelle enxugou as lágrimas do rosto.
— Então você não se importou?
Saetan suspirou.
— Na verdade, enquanto escutava suas risadinhas nojentas, deleitava-me imaginando como seria o som dos seus ossos se partindo.
— Ah.
— Venha cá, criança-feiticeira. — Envolveu-a num abraço apertado, apoiando o rosto na cabeça de Jaenelle. — Por quem é que estava realmente zangada, Jaenelle? Quem estava tentando proteger?
— Não sei. Eu meio que me lembro de alguém que tinha que se sujeitar a mulheres como Roxie. Isso o machucava, ele odiava isso. Não é nem sequer uma memória. É mais uma sensação, porque não consigo me lembrar de quem ou onde ou por que conheceria alguém assim.
Isso explicava o fato de ela não ter perguntado por Daemon. Ele estava muito envolvido no trauma que lhe custara dois anos de vida, um trauma que fechara a sete chaves em algum lugar dentro de si mesma. E todas as memórias de Daemon também haviam ido pelo mesmo caminho.
Saetan perguntou-se mais uma vez se não deveria lhe contar o que tinha acontecido. Porém, só poderia lhe contar uma pequena parte. Não poderia contar quem a violara, pois ainda não sabia. E não poderia contar o que acontecera entre ela e Daemon enquanto permaneceram no abismo.
Aliás, a verdade é que temia lhe contar o que quer que fosse.
— Vamos para casa, criança-feiticeira — sussurrou em seus cabelos. — Vamos para casa explorar os sótãos.
Jaenelle riu com insegurança.
— Como vamos explicar isso a Helene?
Saetan resmungou.
— Acho que sou o dono do Paço, não? Além disso, é um lugar enorme e tem muitos cômodos. Se tivermos sorte, ela vai demorar algum tempo para perceber.
Jaenelle recuou.
— Vamos ver quem chega primeiro em casa — disse, para logo em seguida desaparecer.
Saetan hesitou. Olhou os prados por um longo tempo, com as flores silvestres e as montanhas à distância.
Esperaria um pouco mais antes de começar a procurar por Daemon Sadi.
Greer esgueirou-se por trás da fileira de juníperos que delimitava um dos lados do terreno atrás do Paço dos SaDiablo. O sol estava quase nascendo. Se não conseguisse alcançar a torre sul antes que os jardineiros começassem seus afazeres, teria de voltar a se esconder na floresta. Embora fosse agora um demônio-morto, tinha passado a vida toda na cidade. O som das folhas balançando ao vento e o manto de breu da noite campestre o deixavam nervoso, e, embora ele não conseguisse detectar outra presença, era incapaz de se livrar da sensação de que estava sendo observado. E havia também aquele maldito uivo que parecia despertar a noite.
Não acreditava que alguém como o Senhor Supremo não tivesse feitiços de proteção em volta do Paço. De que outra forma poderia um lugar deste tamanho ser protegido? Entretanto, a Sacerdotisa das Trevas garantira que Saetan sempre fora negligente e arrogante demais para considerar tais providências. Além disso, a torre sul fora o domínio de Hekatah, e em cada modernização, das várias que realizou, ela adicionara escadas secretas e paredes falsas, de modo que havia diversos aposentos escondidos, que seus feitiços ainda mantinham cuidadosamente secretos. Um desses aposentos iria abrigá-lo e escondê-lo.
Desde que conseguisse chegar lá.
Enfiando as mãos nos bolsos do casaco, Greer deixou a proteção dos juníperos e caminhou, determinado, em direção à torre sul. Era uma das regras do bom assassino: agir como se tivesse o direito de estar ali. Se fosse avistado, esperava ser identificado como um comerciante ou, melhor ainda, como um hóspede.
Ao alcançar, por fim, a porta da torre sul, começou a caminhar devagar para a esquerda, com a mão esquerda tocando as pedras para encontrar o trinco que abriria a passagem secreta. Infelizmente, tinha passado tanto tempo que Hekatah já não se recordava com exatidão de que distância a passagem ficava da porta, ainda mais porque tinha se certificado de que as alterações no Paço em Kaeleer não correspondessem às que haviam sido realizadas em Terreille.
Quando já pensava que teria de voltar até a porta e começar de novo, Greer sentiu a pedra lascada que ocultava o trinco secreto. Passado um momento, já estava no interior da torre, subindo uma escada estreita de pedra.
Pouco depois, descobriu até que ponto a Sacerdotisa Suprema o enganara — ou enganara a si própria.
Na torre sul não havia aposentos luxuosamente mobiliados, camas ornamentadas, elegantes chaise-longues, tapetes, cortinados, mesas, cadeiras, mas apenas aposentos vazios após aposentos completamente vazios e limpos.
Greer pôs a mão sobre o lenço de seda preto que usava em volta do pescoço, tentando controlar o pânico.
Completamente vazios e limpos. Tal como as escadas secretas, que deveriam estar cobertas de pó e de teias de aranha. O que significava que aquele não era um segredo tão bem guardado quanto Hekatah julgava.
Tentou se confortar com a ideia de que aquilo não tinha qualquer importância, pois já estava morto, mas a verdade é que já andava pelo Reino das Trevas há tempo suficiente para ouvir as histórias sobre o que acontecia aos demônios que enfureciam o Senhor Supremo, e não queria descobrir em primeira mão o que aquelas histórias tinham de verdade.
Voltou ao quarto que outrora pertencera a Hekatah e iniciou uma busca metódica dos aposentos secretos.
Estes também estavam completamente vazios e limpos. Talvez os feitiços de Hekatah tivessem falhado com o tempo ou alguém os tivesse quebrado.
Tinha de haver um lugar onde se pudesse esconder! O sol já estava alto e, apesar da quantidade de sangue fresco que tinha consumido, a luz do dia enfraquecia-o, esvaziava-o. Se todos os aposentos tivessem sido descobertos...
Por fim, encontrou um quarto secreto dentro de outro quarto secreto. Na verdade, era mais um cubículo. Greer não conseguia imaginar qual teria sido seu uso, mas estava repugnantemente sujo e cheio de teias de aranha, sendo, por isso, seguro.
Encostado a um canto, Greer passou os braços pelos joelhos e começou a espera.
Andulvar deu uma breve batida na porta e entrou antes de obter resposta. Ia em direção ao fundo do escritório, mas parou quando Saetan escondeu rapidamente — e com um ar culpado — o livro que estava lendo.
Fogo do Inferno, pensou Andulvar ao acomodar-se na cadeira em frente à mesa, quando foi a última vez que Saetan pareceu tão relaxado? Ora, ali estava ele, o Senhor Supremo do Inferno, com os pés na mesa, de chinelos e suéter preto. Ao vê-lo assim, Andulvar lamentou que há muito tivesse passado a época em que poderiam sair juntos para a taberna e conversar tomando algumas canecas de cerveja.
Achando graça do mal-estar de Saetan, disse:
— Beale me disse que você estava aqui... tratando da correspondência, creio que foi o que disse.
— Ah, é claro, o admirável Beale.
— Não são muitas as casas que se podem gabar de ter como mordomo um Senhor da Guerra de Joia Vermelha.
— Não são muitas as casas que o desejariam — resmungou Saetan, entre dentes, pondo os pés no chão. — Yarbarah?
— Sim, por favor. — Andulvar esperou até que Saetan servisse e aquecesse o vinho de sangue. — Já que não está tratando da correspondência, o que está fazendo? Além de se esconder dos seus intimidadores empregados?
— Lendo — respondeu Saetan, um pouco constrangido.
Como era um caçador paciente, Andulvar aguardou. E aguardou mais um pouco.
— Lendo o quê? — perguntou, por fim, semicerrando os olhos. Estaria Saetan ruborizado?
— Um romance. — Saetan pigarreou. — Um romance um pouco... na verdade, bastante erótico.
— Recordando o passado? — perguntou Andulvar, com malícia.
Saetan resmungou.
— Estou tentando me antecipar. As adolescentes fazem as perguntas mais espantosas.
— Antes você do que eu.
— Covarde.
— Sem dúvida — disse Andulvar, sem querer morder a isca. Fez uma pausa. — Como vão as coisas?
— E pergunta a mim? — Saetan pôs os pés no canto da mesa.
— Você é o Senhor Supremo.
Saetan colocou uma das mãos no peito e suspirou dramaticamente.
— Ah, pelo menos alguém se lembra disso. — Tomou um gole do yarbarah. — Para dizer a verdade, se quer mesmo saber como vão as coisas pergunte a Beale ou a Helene ou à Sra. Beale. São eles o triângulo que administra o Paço.
— Um triângulo dos Sangue tem sempre um quarto lado.
— Pois é, e sempre que surge alguma coisa que exige “Autoridade”, eles me levantam, tiram a minha poeira e me jogam no salão principal para tratar do assunto. — O sorriso afetuoso de Saetan iluminou os olhos dourados. — Minha principal função é ser o leal tutor da Senhora e, uma vez que Beale jamais se dignaria a ter seu traje arruinado por um ataque de nervos, oferecer um ombro amigo quando Jaenelle desorienta seus professores, o que parece ocorrer em média de três a quatro vezes por semana.
— Então a garota está indo bem.
O sorriso de Saetan sumiu, sendo substituído por uma expressão lúgubre e perturbada.
— Não, não está indo bem. Droga, Andulvar, eu esperava... Ela está se esforçando. Ainda é Jaenelle. Continua curiosa e dócil e bondosa. — Suspirou. — Mas é incapaz de corresponder a amizade dos criados. Ah, eu sei. — Acenou com a mão, rejeitando um protesto tácito. — A relação dela com os criados da casa é o que é. Mas não é assim só com eles. Com aquela questão do Menzar e o atrito que tem com as outras alunas de Luthvian, tornou-se ainda mais tímida. Evita as pessoas sempre que possível. Sylvia não tem conseguido convencê-la a sair de novo para fazer compras, e olha que tem tentado bastante. Tanto ela como o filho, Beron, estiveram aqui uns dias atrás. Jaenelle chegou a falar com eles durante uns cinco minutos, mas depois saiu de repente da sala. Ela não tem amigos, Andulvar. Ninguém com quem rir, ninguém com quem partilhar as bobagens de garotinhas. Ainda não realizou a Oferenda e já percebe bem o fosso que há entre ela e o resto dos Sangue. — Saetan afundou na-se cadeira. — Se ao menos houvesse uma forma de fazê-la retomar a vida.
— Por que não convida aquela harpiazinha fria de Glácia para visitá-la? — sugeriu Andulvar.
— Acha que ela teria coragem de vir ao Paço?
Andulvar tomou fôlego.
— Considerando a carta que lhe escreveu, se deixá-la passar por aquela porta, irá sem dúvida pisar nos seus calos.
Saetan sorriu com nostalgia.
— Espero que sim, Andulvar. Realmente espero que sim.
Lamentando que aquele agradável estado de espírito estivesse para mudar, Andulvar esvaziou o copo, pousando-o com cuidado na mesa.
— Está na hora de você me dizer por que me pediu para voltar ao Paço.
— Foi Tarl quem sugeriu que talvez pudesse me ajudar — disse Saetan, enquanto caminhava com Andulvar na direção de um dos jardins murados.
— Sou caçador e guerreiro, não jardineiro, SaDiablo — disse Andulvar com rispidez. — Como poderei ajudá-lo?
— Um cão enorme tem marcado território nos bosques ao norte. Ouvi-o pela primeira vez na noite em que Sylvia me disse que havia algo errado em Halaway. Matou dois jovens alces, mas, tirando isso, os guardas florestais não conseguiram detectar qualquer vestígio dele. Algumas noites atrás, devorou as galinhas.
— Seus guardas-florestais deviam cuidar disso.
Saetan abriu o portão de madeira que dava acesso ao jardim de muros baixos.
— Tarl encontrou outra coisa esta manhã. — Acenou com a cabeça para o chefe dos jardineiros, que estava perto do canteiro do fundo.
Tarl passou as mãos na aba do quepe e saiu.
Saetan indicou a terra fofa entre duas plantas jovens.
— Aquilo.
Durante um bom tempo, Andulvar olhou estupefato para a nítida e profunda pegada, ajoelhando-se em seguida e colocando a mão ao lado dela.
— Caramba, é grande.
Saetan ajoelhou-se ao lado de Andulvar.
— Foi o que pensei, mas esta é o seu departamento. O que mais me incomoda é que parece intencional, posicionada assim tão cuidadosamente, como se fosse uma mensagem ou algum tipo de sinal.
— E a quem será dirigida esta mensagem? — perguntou Andulvar com sua voz profunda. — Quem viria aqui e a veria?
— Depois da partida repentina de Lord Menzar, Mephis investigou discretamente todos os que servem no Paço, tanto o pessoal interno quanto os de fora. Não encontrou nada que me fizesse acreditar que não são de confiança.
Andulvar franziu a testa, pensativo, olhando a pegada.
— Pode ser o sinal de um amante para um encontro secreto no jardim.
— Acredite em mim, Andulvar — disse Saetan com frieza —, existem maneiras mais simples e eficazes de combinar uma aventura romântica. — Apontou para a pegada. — Além disso, a não ser que tirasse a pata de um cão, como é que alguém encontraria a besta, a traria aqui e a convenceria a deixar uma pegada neste preciso local?
— Vou investigar — disse Andulvar bruscamente.
Enquanto Andulvar examinava o restante dos jardins murados à luz do dia que se extinguia, Saetan analisava a pegada. Tinha conseguido ignorar sua preocupação até Andulvar chegar, esperando que o eyrieno olhasse para a pegada e encontrasse uma explicação simples para ela. Agora, Andulvar estava preocupado e Saetan não gostava nada disso. Alguém estaria tentando marcar um encontro? Ou simplesmente tentando afastar alguém do Paço?
Rosnando baixinho, Saetan lançou terra por cima da pegada até ocultar qualquer vestígio. Levantou-se, sacudiu a terra dos joelhos, olhou de relance para o canteiro e ficou petrificado.
A pegada voltara, tão profunda e nitidamente marcada como estivera há um minuto.
— Andulvar! — Saetan deixou-se cair de joelhos e voltou a cobrir a pegada com terra.
Andulvar voou para junto de Saetan e ajoelhou-se a seu lado.
Observaram em silêncio enquanto a terra se afastava da pegada.
Andulvar praguejou com violência.
— Foi encantada.
— Sim — disse Saetan, com uma docilidade exagerada. Usou a força equivalente à de uma Joia Branca para eliminar novamente a pegada. Quando ela voltou a aparecer, tão depressa como antes, passou à Amarela. Tentou, em seguida, a Olho de Tigre, a Rosa, a Azul-Celeste. Por fim, chegando à força da Violeta, a pegada era quase imperceptível.
Com um movimento brusco de mãos, Saetan usou a força da sua Vermelha de Direito por Progenitura para eliminá-la.
Ela não reapareceu.
— Alguém queria se assegurar de que não fosse apagada por descuido — disse Saetan, limpando a mão na grama.
Andulvar esfregou o queixo com o punho fechado.
— Evite que a garota fique vagando sozinha, mesmo aqui nestes jardins. Prothvar e eu não somos grande ajuda durante o dia, mas faremos vigília à noite.
— Acha que alguém seria insensato o bastante para invadir o Paço?
— Parece que já invadiu. Não é isso que me preocupa. — Andulvar apontou para a terra agora lisa. — Aquilo não é um cão, SaDiablo. É um lobo. É difícil acreditar que um lobo se aproximaria tanto dos seres humanos por vontade própria, mas, mesmo que esteja sendo controlado por alguém, qual seria o interesse em trazê-lo até aqui?
— Isca — disse Saetan, enviando na mesma hora um chamado psíquico a Jaenelle. O reconhecimento distraído da garota o tranquilizou, pois indicava que ela estava suficientemente absorta nos estudos para permanecer dentro de casa.
— Isca para quê?
Em vez de responder, Saetan esquadrinhou amplamente o Paço e o terreno ao redor. Na torre sul havia aquela névoa, os efeitos ainda desvanecentes dos feitiços de proteção que Helene e Beale tinham quebrado ao limpar a torre e descobrir os aposentos secretos de Hekatah. Ele detectou também uma ondulação estranha nos bosques ao norte.
Sondou um pouco mais e se deteve. Entrar no Paço não era difícil. Sair era outra história.
— Isca para quê, SaDiablo? — Andulvar voltou a perguntar.
— Para uma garotinha que se sente sozinha e adora animais.
Greer aninhou-se num canto do cubículo secreto e gemeu ao sentir aquela mente obscura passando pelas pedras, sondando, procurando.
Esforçou-se para manter a mente cautelosamente vazia no momento em que aquela onda de poder obscuro o invadiu. Não podia fugir, com segurança, antes do pôr do sol. Mas, se fosse apanhado aqui, como explicaria sua presença? Tendo perdido uma queridinha, Greer duvidava que qualquer explicação sua pudesse tranquilizar o Senhor Supremo naquele momento.
Quando a sonda psíquica se extinguiu, Greer estendeu as pernas e suspirou. Por mais que temesse o Senhor Supremo, também não lhe agradava voltar sem informações para Hekatah, que insistiria para que ele voltasse a tentar.
Teria de ser esta noite. Encontraria o quarto da garota, daria uma olhada nela e voltaria ao Inferno. Se Hekatah quisesse se aproximar mais, arriscando-se a ficar cara a cara com Saetan, ela que o fizesse.
Saetan dirigiu-se a seus aposentos, na esperança de que um pouco de descanso lhe trouxesse inspiração. No início da noite, havia tentado convencer Jaenelle a entrar em contato com alguns dos seus amigos. Fracassara completamente, e, no processo, aprendera bastante sobre a volubilidade emocional de uma feiticeira adolescente.
Pensando se poderia recrutar Sylvia como aliada em futuras batalhas emocionais, e ainda intrigado pela pegada de lobo no jardim, sentiu os sinais de aviso um pouco tarde demais.
Uma enorme onda psíquica de medo e de raiva se chocou contra sua mente, fazendo-o cambalear até a parede. Agarrou a cabeça enquanto uma dor aguda lhe golpeava as têmporas e sentiu o gosto do sangue quando seus dentes morderam o lábio.
Gemendo devido ao implacável latejar na cabeça, caiu no chão e, instintivamente, tentou reforçar suas barreiras interiores contra outro ataque devastador.
Como essa outra onda psíquica não veio, ergueu a cabeça e sondou com cautela. Olhou fixamente para a porta do outro lado do corredor onde estava aninhado.
— Criança-feiticeira?
Um grito angustiado veio de dentro dos aposentos de Jaenelle.
Saetan levantou-se com dificuldade, caminhou aos tropeções pelo corredor e entrou num quarto invadido pela tempestade psíquica mais violenta que já presenciara. Exceto por um vento forte e em redemoinho que balançava as plantas e as cortinas, o quarto físico parecia intacto. Porém, podia sentir que estava repleto de fios de vidro que rasgavam a mente e não o corpo.
Com a cabeça baixa e os ombros encolhidos, Saetan cerrou os dentes e obrigou-se a avançar, cada passo uma agonia para sua mente, em direção à cama, onde Jaenelle gritava e se agitava de maneira violenta.
Ao tocar seu braço, ela voou para longe dele.
Quase sem conseguir pensar, Saetan saltou para cima de Jaenelle e envolveu-se com braços e pernas. Rolaram então pela cama, emaranhados nos lençóis que ela destruíra com as unhas, enquanto se debatia e gritava. Sem conseguir libertar os braços e pernas, girou ligeiramente nos braços de Saetan, ficando com os dentes junto ao seu pescoço, mas sem conseguir mordê-lo.
— Jaenelle! — Saetan bradou ao seu ouvido. — Jaenelle! Sou eu, Saetan!
— Nããããão!
Recorrendo ao poder das Joias Negras, Saetan girou uma vez mais, prendendo Jaenelle sob o peso de seu corpo. Abriu as barreiras interiores e lhe enviou uma mensagem que transmitia segurança, que lhe dizia que ela estava com ele, consciente de que, se ela o atingisse neste momento, o destruiria.
Jaenelle tocou sua mente vulnerável e parou de se debater.
Tremendo, Saetan encostou o rosto à cabeça dela.
— Estou aqui com você, criança-feiticeira — sussurrou. — Você está a salvo.
— Não estou a salvo — gemeu Jaenelle. — Jamais estarei.
Saetan cerrou os dentes, agoniado pelas imagens que lhe inundaram a mente de rompante. Viu tudo tal como ela, outrora, presenciara. Marjane pendurada na árvore. Myrol e Rebecca sem mãos. Dannie e a perna de Dannie. E Rose.
As lágrimas caíram por seu rosto enquanto abraçava Jaenelle, apoderando-se daquelas memórias angustiantes. Compreendia, finalmente, aquilo pelo que Jaenelle tinha passado quando criança, o que tinha sido feito a ela, por que não temia o Inferno ou seus habitantes. Enquanto as memórias fluíam da mente de Jaenelle para a de Saetan, ele viu o edifício, os quartos, o jardim, a árvore.
E se lembrou de quando Char fora procurá-lo, perturbado por uma ponte e pelas crianças mutiladas que a atravessavam até a ilha das cildru dyathe. Uma ponte que Jaenelle construíra, certa vez, entre o Inferno e... Briarwood.
No momento em que pensou nesse nome, sentiu que Jaenelle abria os olhos.
De repente, foi envolvido por uma bruma impenetrável que se desfez de repente, e Saetan olhou para o abismo. Todos os seus instintos lhe diziam para fugir, para se afastar da raiva fria e da loucura que subia em espiral das profundezas.
Porém, na loucura e na raiva estavam também entrelaçadas gentileza e magia. Por isso, aguardou à beira do abismo o que iria acontecer. Não fugiria de sua Rainha.
A bruma voltou a ficar cerrada. Não conseguia ver Jaenelle, mas sentiu-a quando ela surgiu do abismo. E estremeceu quando o sussurro sepulcral e cavernoso percorreu sua mente.
*Briarwood é o belo veneno. Não existe cura para Briarwood.*
Nesse momento, ela voltou a descer em espiral, e a mente de Saetan voltou a lhe pertencer.
Jaenelle se agitou.
— Saetan? — Parecia tão jovem, tão frágil, tão vacilante.
Saetan beijou seu rosto.
— Estou aqui, criança-feiticeira — disse, com a voz rouca, apertando-a contra o peito. Sondou o quarto cautelosamente e logo descobriu que não seria possível fazer uso da Arte até o desaparecimento total da tempestade psíquica.
— O que... — disse Jaenelle, atordoada.
— Estava tendo um pesadelo. Lembra?
Um longo silêncio.
— Não. Era sobre o quê?
Saetan hesitou... e não disse nada.
Uma bota se arrastou na varanda, atrás da porta de vidro aberta. Alguém desceu correndo as escadas.
Saetan ergueu a cabeça de repente. Uma vez que seria inútil perscrutar a identidade do intruso, rasgou freneticamente os lençóis enrolados em volta das pernas e saltou para a porta da varanda.
— PROTHVAR! — Tentou criar uma bola de fogo encantado para iluminar o jardim, mas a tempestade psíquica de Jaenelle absorvia seus poderes, e o brilho súbito de luz que conseguiu gerar lhe provocou uma cegueira noturna.
Da extremidade mais afastada do jardim, ouviu-se um rosnado feroz. Um homem gritou. Houve uma luta breve, mas desenfreada, um crepitar ofuscante quando a força de duas Joias foi libertada e absorvida, o som de passos estranhos, outro rosnado e, depois, uma porta batendo.
E, em seguida, o silêncio.
A porta do quarto se escancarou. Saetan deu meia-volta, com os dentes cerrados, no momento em que Andulvar saltava para dentro do quarto empunhando uma espada de guerra eyriena.
— Fique com ela — disse Saetan abruptamente. Correu pelas escadas da varanda, procurando os feitiços que selariam o Paço, evitando que alguém saísse dali. E praguejou. Aquela enorme onda de poder tinha destruído todos os feitiços — o que significava que o intruso poderia encontrar uma saída antes de ser apanhado. E, assim que conseguisse se afastar o suficiente dos efeitos da tempestade, poderia apanhar os Ventos e, pura e simplesmente, desaparecer.
— Mas onde você estava escondido que não senti sua presença? — resmungou Saetan, rangendo os dentes de frustração, enquanto Prothvar aterrissou a seu lado no jardim.
O Senhor da Guerra eyrieno segurava um lenço de seda preto rasgado.
— Encontrei isto junto à torre sul.
Saetan olhou o lenço que Greer usara da primeira vez que tinha vindo ao Paço. Seus olhos dourados cintilaram ao voltar-se para a torre sul.
— Tenho sido condescendente demais com os jogos de Hekatah e seus protegidos. Mas este aqui cometeu erros demais.
— Hekatah! — Praguejando, Prothvar deixou o lenço cair e limpou a mão nas calças. Depois sorriu. — Não creio que ele tenha saído daqui da mesma forma como chegou. Também vi pegadas de lobo perto da torre sul.
Lobo. Saetan olhou fixamente para a torre sul. Um lobo e Greer. Isca e um raptor? Mas e o rosnado? E aquele embate de Joias?
Um movimento na varanda chamou sua atenção.
Jaenelle olhava para os dois. O braço esquerdo de Andulvar estava em volta dos seus ombros, mantendo-a junto a si. Na mão direita empunhava ainda a grande espada de guerra, com aspecto amaldiçoado.
— Papai, qual é o problema? — gritou Jaenelle.
Acenando com a cabeça para Saetan, Prothvar fez o lenço desaparecer e deslizou para as sombras a fim de montar guarda.
Saetan atravessou o jardim devagar e subiu as escadas, frustrado por, devido aos efeitos persistentes da tempestade de feiticeira, não ter conseguido usar a Arte para impedir que mais alguém chegasse aos aposentos de Jaenelle.
Andulvar se afastou quando Jaenelle se atirou nos braços de Saetan, que beijou sua cabeça. Os três entraram no quarto.
— O que aconteceu? — perguntou Jaenelle, que tremia e observava Andulvar fechando as portas da varanda e trancando-as com a chave.
O fato de ela ter de fazer aquela pergunta era bastante indicativo do seu estado de espírito. Saetan hesitou.
— Não foi nada, criança-feiticeira — disse, por fim, abraçando-a. — Um som inexplicável. — Mas ele se perguntou se teria sido algo que viu ou sentiu que desencadeara aquelas memórias.
Andulvar e Saetan trocaram um olhar significativo. O Príncipe dos Senhores da Guerra eyrieno indicou com os olhos a cama, depois as portas da varanda.
Saetan acenou quase imperceptivelmente com a cabeça.
— Criança-feiticeira, sua cama está um pouco... desarrumada. Como está tarde, em vez de acordarmos uma criada para arrumar essa bagunça, você podia ficar no meu quarto esta noite.
A cabeça de Jaenelle levantou-se bruscamente. Nos seus olhos havia espanto, prudência e medo.
— Eu podia fazer a cama.
— Preferia que não a fizesse.
Saetan sentiu que Jaenelle estava buscando sua mente e aguardou. A menos que ela extraísse deliberadamente seus pensamentos, ele conseguiria esconder a razão da sua preocupação, embora não o sentimento de preocupação.
Jaenelle se afastou da mente de Saetan e assentiu.
Aliviado ao ver que Jaenelle ainda estava disposta a confiar nele, Saetan conduziu-a a seus aposentos do outro lado do corredor e acomodou-a na sua cama. Depois de Andulvar sair para examinar a torre sul, serviu e aqueceu um copo de yarbarah, instalando-se numa cadeira. Passado bastante tempo, a respiração de Jaenelle se tornou regular e Saetan soube que ela havia dormido.
Um lobo, pensou, enquanto velava por ela. Amigo ou inimigo?
Saetan fechou os olhos e esfregou as têmporas. A dor de cabeça estava passando, embora a última hora o tivesse esgotado. Ainda assim, continuava vendo aquela pegada no jardim, uma mensagem encantada que alguém compreenderia.
Mas e o rosnado? E aquele embate de Joias?
Saetan endireitou-se repentinamente na cadeira e olhou atônito para Jaenelle.
Nem todos os sonhadores que tinham dado forma a esta Feiticeira eram humanos.
Fazia sentido. Se isso fosse verdade, tudo fazia sentido.
Como Jaenelle não tinha ido visitar seus antigos amigos, talvez eles estivessem começando a procurá-la.
Hekatah gritou para Greer:
— O que quer dizer com “está viva”?
— É isso mesmo — respondeu Greer enquanto examinava o braço dilacerado. — A garota que ele mantém no Paço é aquela vadiazinha pálida, neta de Alexandra Angelline.
— Mas você a destruiu!
— Pelo visto, ela sobreviveu.
Hekatah caminhava para trás e para a frente no pequeno e imundo aposento, quase sem mobílias. Não podia ser verdade. Não podia. Olhou de relance para Greer, afundado numa cadeira.
— Você disse que estava escuro e era difícil ver. Não chegou a entrar efetivamente no quarto. Não podia ser a mesma garota. Ele lhe disse que ela caminhava entre as cildru dyathe.
— Ele a chamou de Jaenelle — afirmou Greer, examinando o pé.
Hekatah arregalou os olhos.
— Mentiu. — Seu rosto foi desfigurado pela raiva e pelo ódio. — O grande filho da puta mentiu!
Foi então que se lembrou daquela terrível presença na ilha das cildru dyathe. Se a garota estivesse de fato viva, ainda poderia ser moldada na Rainha-fantoche da qual Hekatah necessitava para governar os Reinos.
Hekatah passou os dedos por uma mesa marcada.
— Mesmo que tenha sobrevivido fisicamente, pouca utilidade terá para mim se estiver sem poderes.
Imobilizando o braço dilacerado, Greer mordeu a isca.
— Ainda tem poderes. Havia uma forte tempestade de feiticeira naquele quarto. Começou pouco antes da chegada do Senhor Supremo. Só as Trevas sabem como ele sobreviveu àquilo.
Hekatah franziu a sobrancelha.
— O que Saetan estava fazendo no quarto da garota àquela hora?
Greer deu de ombros.
— Parece que eles estavam rolando na cama, e não era um confronto amigável.
Hekatah olhou Greer fixamente, embora não o visse. Viu Saetan, com o sangue fervendo e ávido, satisfazendo seus apetites — todos os seus apetites — com aquela jovem feiticeira de sangue escuro que deveria pertencer a ela, Hekatah. Um Guardião ainda era capaz de sentir tais prazeres. Um Guardião... que prezava a honra. Ah, Saetan poderia tentar ignorar o escândalo e a condenação, porém, quando ela tivesse terminado, teria criado tal tempestade de fogo à sua volta que até os seus mais leais servidores o odiariam.
Mas precisava ser sutil, para que, ao contrário do insensato Menzar, Saetan não conseguisse descobrir que era ela que estava por trás de tudo.
Observou Greer. O músculo dilacerado em seu antebraço poderia ser coberto com um casaco, mas o pé... Se fosse amputado e substituído por algo artificial, ou mantido e fixado a uma bota, o caminhar arrastado seria óbvio — assim como as mãos deformadas. Era uma pena que um servo tão útil fosse tão deformado, o que chamava a atenção. Ainda assim, conseguiria executar esta última tarefa. Na verdade, essas deformidades seriam usadas em seu benefício.
Hekatah se permitiu um breve sorriso antes de exibir sua expressão mais pesarosa. Caiu de joelhos ao lado da cadeira de Greer.
— Pobrezinho — arrulhou, acariciando-lhe a face com as pontas dos dedos —, deixei que as armações daquele canalha me distraíssem de assuntos mais importantes.
— E que preocupações são essas, Sacerdotisa? — perguntou Greer, cautelosamente.
— Ora, você, meu querido, e as brutais feridas que a besta dele lhe infligiu. — Enxugou os olhos, como se eles ainda pudessem produzir lágrimas. — Sabe que agora não existe maneira de curar essas feridas, não sabe, meu querido?
Greer desviou o olhar.
Hekatah inclinou-se para a frente e beijou-o no rosto.
— Mas não se preocupe. Tenho um plano que vai fazer Saetan pagar por tudo.
— Queria me ver, Senhor Supremo?
Os olhos de Saetan reluziram. Apoiou-se na mesa de madeira escura no escritório privado no Reino das Sombras e sorriu para a Harpia dos Dea al Mon.
— Titian, minha querida — sussurrou, com uma voz de trovão suave —, tenho uma tarefa para você que acho que vai lhe agradar bastante.
Saetan, juntamente com o restante da família, permaneceu na mesa de jantar, relutante em terminar a refeição e a conversa agradável.
Ao menos alguma coisa boa tinha resultado daquela desagradável noite na semana anterior. O pesadelo de Jaenelle servira para liberar aquelas memórias reprimidas, abrandando ligeiramente a dor emocional. Saetan sabia que a ferida da alma não estava curada, mas, pela primeira vez desde que voltara do abismo, Jaenelle estava mais parecida com a criança que havia sido, e não a jovem perturbada que tinha se tornado.
— Acho que Beale quer tirar a mesa — disse Jaenelle baixinho, olhando de soslaio para o mordomo, que estava em pé na porta da sala de jantar.
— E se fôssemos então tomar café na sala de visitas? — sugeriu Saetan, empurrando a cadeira para se levantar.
Quando Jaenelle se dirigiu à porta, seguida por Mephis, Andulvar e Prothvar, ele demorou um pouco mais. Era tão bom ouvi-la rir, tão bom...
Um movimento na janela chamou sua atenção. Na mesma hora ele sondou, à procura do intruso, e deu um passo para trás ao sentir emoções ferozes e estranhamente perfumadas indo de encontro à sua mente, desafiando-o a continuar a sondar.
Raiva. Frustração. Medo. E depois...
O uivo interrompeu a conversa dos outros, e Andulvar e Prothvar deram meia-volta, com as facas de caça desembainhadas. Saetan mal reparou neles, muito concentrado na reação de Jaenelle.
Ela fechou os olhos, respirou fundo, inclinou a cabeça para trás e soltou um uivo. Não era uma imitação exata do uivar do lobo. Era algo mais sinistro que se transformou num cântico de feiticeira. Um cântico muito feroz.
E ele percebeu, com uma sensação arrepiante de admiração, que não era a primeira vez que Jaenelle e o lobo entoavam este cântico, que sabiam combinar as duas vozes, criando algo estranho e belo.
O lobo parou de uivar. Jaenelle terminou o cântico e sorriu.
Uma enorme silhueta acinzentada saltou pela janela, atravessando o vidro. O lobo aterrissou na sala de jantar, rosnando.
Soltando um grito de boas-vindas, Jaenelle passou por Andulvar e Prothvar correndo, caiu de joelhos e abraçou o pescoço do lobo.
Nesse momento, Saetan sentiu o odor psíquico que estava procurando. O lobo era um dos lendários parentes. Um Príncipe, embora não fosse, graças às Trevas, um Príncipe dos Senhores da Guerra. Conseguiu ver, de relance, a corrente de ouro e a Joia Violeta escondida no pelo.
Sempre rosnando, o lobo empurrou Jaenelle em direção à janela, enquanto mantinha o corpo entre a garota e os eyrienos.
Perdendo o equilíbrio, Jaenelle apertou ainda mais o pescoço do lobo.
— Fumaça, você está sendo mal-educado — disse com aquela voz calma e firme de Rainha que nenhum macho no seu juízo perfeito ousaria desafiar.
Fumaça lhe deu uma rápida lambida e o rosnado se suavizou um pouco.
— Qual macho malvado? — Jaenelle examinou cada rosto apreensivo e balançou a cabeça. — Ora, não foi nenhum deles. São a minha alcateia.
O animal parou de rosnar. Em seu olhar podia-se perceber inteligência e um novo interesse enquanto ele examinava cada homem, balançando a ponta da cauda uma única vez como um cumprimento relutante.
Outra pausa breve, e Jaenelle corou.
— Não, nenhum deles é meu parceiro. Ainda sou muito nova para companheiros — acrescentou às pressas, enquanto Fumaça olhava para os homens com um ar de notória desaprovação. — Este é Saetan, o Senhor Supremo. É o meu progenitor. Meu irmão, Mephis, é o cachorrinho do Senhor Supremo. E este é o meu tio, Príncipe Andulvar, e meu primo, Lord Prothvar. E aquele é Lord Beale. Pessoal, este é o Príncipe Fumaça.
Ao cumprimentar seu Irmão parente, Saetan se perguntou o que mais teria surpreendido os outros: um parente surgindo do nada, Jaenelle conversando com um lobo ou as designações familiares que havia lhes atribuído.
Após as apresentações, houve uma pausa constrangedora. Andulvar e Prothvar olharam de relance para Saetan e embainharam as facas, com movimentos lentos e ponderados. Mephis permaneceu imóvel, embora preparado para agir, e Beale, rondando a porta, aguardava instruções em silêncio. Fumaça parecia pouco à vontade e em Jaenelle havia um olhar magoado e vago.
Ele tinha de agir rapidamente. Mas o que dizer a um lobo? Mais importante ainda, o que poderia fazer para que o amigo peludo de Jaenelle ficasse à vontade e se sentisse bem-vindo? Ora, o que se dizia a um convidado?
— Posso lhe oferecer algo para comer ou beber, Príncipe Fumaça? — Dito em voz alta, o nome em combinação com o título dos Sangue parecia ridículo, ainda que “fumaça” fosse uma descrição acertada da coloração do pelo do lobo. Por outro lado, os nomes humanos sem dúvida soariam igualmente ridículos para um lobo. Saetan ergueu uma sobrancelha, dirigindo-se a Beale, e se perguntou como reagiria seu estoico mordomo Senhor da Guerra diante de um convidado quadrúpede.
Ficou imediatamente óbvio que qualquer amigo de Jaenelle, bípede ou quadrúpede, seria tratado como um convidado de honra.
Beale deu um passo à frente, fez sua reverência mais cerimoniosa e dirigiu-se a Jaenelle.
— Temos a carne assada do jantar, se o Príncipe Fumaça não se importar que não esteja crua.
Jaenelle parecia se divertir, mas sua voz manteve-se firme e solene.
— Obrigada, Beale. Será perfeito.
— E uma tigela de água fresca?
Jaenelle acenou afirmativamente com a cabeça.
— Ficaremos mais confortáveis na sala de visitas — disse Saetan. — Aproximou-se devagar de Jaenelle e ofereceu-lhe a mão para ajudá-la a se levantar.
Fumaça ficou nervoso com a aproximação, ainda que não o tenha desafiado nem recuado. O lobo não confiava nos humanos, não queria que Saetan se aproximasse e tocasse em Jaenelle, mas não sabia o que fazer para impedi-lo sem provocar a desaprovação da Senhora.
Não é assim tão diferente de nós, pensou Saetan ao acompanhar Jaenelle para a sala de visitas da família.
Inconscientemente, os homens deixaram que Jaenelle escolhesse um lugar antes de se acomodarem em cadeiras e sofás afastados o suficiente para que o lobo não ficasse perturbado, mas perto o bastante para que nada lhes escapasse. Saetan sentou-se à frente dela, consciente de que a atenção de Fumaça se centrava nele, o que acontecera desde as apresentações.
Sentiu-se grato pela cortesia de Beale quando, passados alguns minutos, o mordomo surgiu com um tabuleiro de prata com café para Jaenelle, yarbarah para os demais e tigelas com carne e água para Fumaça. Beale pousou-as na frente de Fumaça, colocou o tabuleiro sobre uma mesa em frente a Jaenelle e, já que não havia mais nenhum pedido, saiu da sala com relutância.
Fumaça cheirou a carne e a água, sentado ao lado da cadeira de Jaenelle, encostado aos seus joelhos. Saetan pôs a dose generosa de leite e de açúcar que Jaenelle apreciava no café, depois serviu e aqueceu o yarbarah, passando as taças aos outros antes de aquecer uma para si mesmo.
— O Príncipe Fumaça está sozinho? — perguntou Saetan a Jaenelle. Até descobrir de que forma os parentes se comunicavam com os humanos, não tinha outra alternativa senão dirigir as questões à garota.
Jaenelle observou Fumaça examinando as tigelas e não respondeu.
Saetan ficou tenso ao perceber que o lobo estava fazendo o mesmo que ele faria num território desconhecido e possivelmente adverso — estava usando a Arte para perscrutar a carne e a bebida, procurando veneno. Da mesma forma, compreendeu quem tinha lhe ensinado a procurar venenos — o que o fez pensar no que a teria levado a julgar necessário lhe ensinar aquela lição em especial.
— E então? — disse Jaenelle baixinho.
Fumaça remexeu os pés e produziu um som que denotava incerteza.
Jaenelle afagou-o em sinal de aprovação.
— São ervas. Os humanos as utilizam para alterar o sabor da carne e dos legumes. — Deu uma gargalhada. — Não sei por que queremos modificar o sabor da carne. Queremos e pronto.
Fumaça escolheu um naco de carne.
Jaenelle olhou para Saetan com ar divertido, mas seus olhos expressavam tristeza e um vislumbre de ansiedade.
— A alcateia de Fumaça ainda está em seu território natal. Ele veio sozinho porque... porque queria me ver, queria saber se vou visitar a alcateia como antes.
Sentiu sua falta, criança-feiticeira. Todos sentiram. Saetan girou de leve a taça de yarbarah. Compreendeu a ansiedade de Jaenelle. Fumaça estava ali em vez de proteger a parceira e as crias. O fato de Jaenelle ter lhe ensinado sobre venenos indicava claramente que os lobos parentes enfrentavam perigos além dos naturais. Seriam necessários alguns acertos, mas se Fumaça estivesse disposto...
— Uma alcateia precisa de um território muito grande?
Jaenelle deu de ombros.
— Depende. Uma extensão considerável. Por quê?
— Nossa família possui terras consideráveis em Dhemlan, incluindo os bosques ao norte. Mesmo com os direitos de caça que concedi às famílias de Halaway, estão repletas de caça. Seria território suficiente para uma alcateia?
Jaenelle olhou atônita para Saetan.
— Você quer uma alcateia nos bosques ao norte?
— Se Fumaça e sua família quiserem viver lá, por que não? — Além disso, o lobo não seria o único a sair ganhando. Saetan daria território e proteção à alcateia, e os lobos dariam companhia e proteção a Jaenelle.
O silêncio que se seguiu não era bem um silêncio, era uma conversa que mais ninguém conseguia ouvir. Jaenelle mantinha a expressão cuidadosamente imparcial. A de Fumaça, que observava cada homem na sala, era indecifrável.
Por fim, Jaenelle olhou para Saetan.
— Os humanos não gostam dos lupinos.
Saetan juntou os dedos das mãos, forçando-se a respirar regularmente. Jaenelle raras vezes mencionara os parentes. Sabia que ela tinha visitado as aranhas tecelãs de sonhos em Aracna, e uma vez, quando a conheceu, Jaenelle mencionara unicórnios. Contudo, a presença de Fumaça e o conforto com o qual dois se comunicavam indicava uma relação há muito estabelecida. Que outros parentes conheceriam o som da sua voz, o seu obscuro odor psíquico? Quantos estariam dispostos a arriscar o contato com humanos para estar, novamente, com ela? Comparado com o que poderia haver lá fora, naqueles Territórios cercados pela bruma, o que era um lobo?
A garota e o lobo aguardaram a resposta de Saetan.
— Eu governo este Território — disse, calmamente. — E, como disse, o Paço e o terreno são propriedade minha. Se os humanos não quiserem nossos Irmãos e Irmãs parentes como vizinhos, então esses humanos poderão ir embora.
Não estava certo se estava tentando abrir-lhe a mente ou se Fumaça estava tentando alcançá-lo, porém estabeleceu um tênue contato com aqueles pensamentos desconhecidos e selvagens. Não eram pensamentos, na verdade, assemelhavam-se mais a emoções filtradas por uma lente diferente, ainda que intelegíveis. Espanto, seguido de compreensão repentina e de aprovação. Fumaça, pelo menos, entendia muito bem o porquê daquela oferta.
Infelizmente, Jaenelle, que estendia a mão para o café, também percebeu alguma coisa.
— Qual macho malvado? — perguntou, franzindo a testa.
De repente, Fumaça pareceu muito interessado em sua carne.
Pela expressão contrariada de Jaenelle, Saetan deduziu que o lobo estava sendo evasivo. Como aquele não era um assunto no qual desejaria que ela se aprofundasse, Saetan decidiu satisfazer sua própria curiosidade, consciente do esforço de Andulvar, Prothvar e Mephis em se manterem sossegados, sem lançarem uma torrente de perguntas. Os parentes sempre foram esquivos e tímidos em relação ao contato com seres humanos, até mesmo antes de fecharem suas fronteiras. E agora um lobo estava aqui, parente e selvagem, sentado na sua sala de visitas.
— O Príncipe Fumaça é parente? — perguntou Saetan, mais em tom de afirmação do que de pergunta.
— É claro — respondeu Jaenelle, admirada.
— E você consegue se comunicar com ele?
— É claro.
Detectou a onda de frustração vinda dos outros e cerrou os dentes. Lembre-se de com quem está falando.
— Como?
Jaenelle pareceu intrigada.
— De fêmea para macho. Da mesma forma como me comunico com você. — Ajeitou o cabelo. — Não conseguem ouvi-lo?
Saetan e os outros homens balançaram a cabeça.
Jaenelle olhou para Fumaça.
— Consegue ouvi-los?
Fumaça olhou para os machos humanos e rosnou baixinho.
Jaenelle ficou indignada.
— O que quer dizer com “não os treinei bem”? Nem cheguei a treiná-los!
Ao voltar a atenção para a carne, Fumaça exibia um ar presunçoso.
Jaenelle murmurou entre dentes algo pouco lisonjeiro sobre o processo de pensamento dos machos e, em seguida, disse, amarga:
— Ao menos gostou da carne? — Sorriu debilmente para Saetan. — Fumaça diz que a carne é muito mais saborosa do que as aves brancas cacarejantes. — Sua expressão se alterou de contrariada para consternada. — Aves brancas cacarejantes? Galinhas? Você comeu as galinhas da Sra. Beale?
Fumaça ganiu, desculpando-se.
Saetan se recostou na cadeira. Oh, era tão gratificante vê-la desorientada.
— Com certeza a Sra. Beale ficará encantada por ter alimentado um convidado, mesmo sem saber disso — afirmou friamente, recordando com nitidez a reação da cozinheira ao saber do desaparecimento das galinhas.
Jaenelle pôs as mãos no colo.
— Sim. Bem... — Mordeu o lábio inferior. — Não é difícil me comunicar com parentes.
— Verdade? — respondeu Saetan calmamente, divertido pelo súbito retorno ao tópico original da conversa.
— Só precisamos ... — Jaenelle fez uma pausa e, por fim, deu de ombros. — Tirar os aparatos humanos e dar um passo para o lado.
Não eram as instruções mais esclarecedoras que já ouvira, mas, por ter visto o que havia por trás da máscara de humanidade, a frase “tirar os aparatos humanos” lhe trouxe alguns pensamentos desagradáveis que o fizeram refletir. Seria mais agradável, mais natural para Jaenelle alcançar as mentes dos parentes? Ou consideraria parentes e humanos quebra-cabeças semelhantes?
Desconhecida e Outra. Sangue e para além de Sangue. Feiticeira.
— O que foi? — perguntou, percebendo, de repente, que todos olhavam para ele.
— Quer tentar? — perguntou Jaenelle, com delicadeza.
Os olhos azul-safira perturbados, sombrios com o peso da antiquíssima sabedoria, diziam-lhe que Jaenelle sabia exatamente o que o preocupava. Ela não rejeitou as preocupações de Saetan, reconhecendo portanto que elas tinham fundamento. E ao mesmo tempo nenhum fundamento.
Saetan sorriu.
— Sim, gostaria de tentar.
Jaenelle tocou as mentes dos quatro homens exatamente à entrada da primeira barreira interior, mostrando-lhes como chegar a uma mente diferente da humana.
Era, de fato, simples. Um pouco como caminhar por uma ruela estreita e restrita, dando um passo para o lado através de uma brecha na cerca, descobrindo a existência de outro caminho já bastante explorado do outro lado. Os aparatos humanos não eram mais do que uma visão limitada da comunicação. Saetan — e Andulvar, Prothvar e Mephis e talvez também Fumaça — estaria sempre consciente da existência da cerca e teria de viajar através de uma brecha. Para Jaenelle, tratava-se uma única e ampla avenida.
*Humano.* Fumaça parecia satisfeito.
Cheio de espanto, Saetan sorriu.
*Lobo.*
Os pensamentos de Fumaça eram fascinantes. Felicidade, pois Jaenelle estava contente em vê-lo. Alívio, pois era aceito pelos humanos. Expectativa, diante da mudança da alcateia para um local seguro — encoberta por imagens sombrias de perseguições a parentes, e a necessidade de compreender esses humanos de modo a garantir sua própria proteção. Curiosidade em relação à forma como os humanos marcavam seus territórios, já que não tinha sentido o cheiro de nenhum marcador neste local de pedra. E um desejo ardente de marcar com urina algumas árvores.
— Devíamos dar um passeio — disse Jaenelle, levantando-se com um pulo.
Os machos humanos voltaram pelas brechas da cerca mental, retomando seus pensamentos.
— Depois do passeio, não vejo razões para que Fumaça volte para a floresta esta noite — disse Saetan, de maneira descontraída, ignorando o olhar reprovador de Jaenelle. — Se seu quarto estiver muito quente, ele poderá passar a noite na varanda ou no seu jardim.
*Não deixarei que o macho malvado se aproxime da Senhora.*
Pelo visto, Fumaça estava habituado a deslizar pela cerca mental. Saetan também reparou que o lobo enviara o pensamento por um fio masculino, de macho para macho, para que Jaenelle não o detectasse.
*Obrigado*, respondeu Saetan.
— Já terminou os estudos para amanhã? — perguntou Saetan em voz alta.
Jaenelle fez cara feia e desejou a todos boa-noite, saindo por uma porta, enquanto Fumaça caminhava entusiasmado a seu lado.
Saetan virou-se para os outros.
Andulvar assobiou baixinho.
— Doces Trevas, SaDiablo. Parentes.
— Parentes — concordou Saetan, sorrindo.
Andulvar e Mephis retribuíram o sorriso.
Prothvar desembainhou a faca de caça e examinou a lâmina.
— Vou acompanhá-lo na expedição para trazer a alcateia para casa.
As imagens de caçadores e de armadilhas fizeram os sorrisos desaparecerem.
— Sim — disse Saetan com uma serenidade excessiva —, faça isso.
Perturbada pelo fato de seu divertimento da tarde ter sido arruinado, Dorothea SaDiablo deu um último beijo no jovem Senhor da Guerra que tinha agora por brinquedo e mandou-o sair. Semicerrou os olhos diante da forma precipitada com que ele se vestiu e deixou a sala de estar. Bem, trataria daquele probleminha de disciplina à noite.
Erguendo-se graciosamente da chaise-longue dourada e creme, caminhou até uma mesa, balançando os quadris de forma provocante, e serviu-se de um copo de vinho. Bebeu metade de seu conteúdo antes de se virar e encarar o filho, pegando-o de surpresa no momento em que ele pressionava o punho contra a parte inferior das costas, tentando atenuar a dor. Voltou-se novamente, sabendo que seu rosto refletia a repulsa que agora sentia sempre que olhava para ele.
— O que deseja, Kartane?
— Descobriu alguma coisa? — perguntou ele, vacilante.
— Não há nada para descobrir — respondeu Dorothea, ríspida, pousando o copo antes que se partisse em suas mãos. — Não há nada de errado com você. — O que era mentira. Quem quer que olhasse para ele saberia que era mentira.
— Tem de haver uma razão para...
— Não há nada de errado com você. — Ou, mais precisamente, nada que ela pudesse fazer. No entanto, não havia razão para informá-lo desse detalhe.
— Tem de ser alguma coisa — insistiu Kartane. — Algum feitiço...
— Onde? — perguntou Dorothea tomada pela ira, virando-se para encará-lo. — Indique-me o local. Não há nada, estou lhe dizendo, nada.
— Mãe...
Dorothea esbofeteou-o com violência.
— Não me chame assim.
Kartane ficou tenso e não disse mais nada.
Dorothea respirou fundo, passando as mãos pelos quadris, alisando o vestido. Em seguida, olhou para Kartane, não se dando o trabalho de esconder sua repulsa.
— Continuarei a investigar o problema. Mas agora tenho outros compromissos.
Kartane fez uma reverência, conformado com a dispensa.
Assim que ficou sozinha, Dorothea pegou a garrafa de vinho e vociferou ao ver como sua mão tremia.
A “doença” de Kartane estava piorando e não havia nada que ela pudesse fazer. As melhores Curandeiras de Hayll não haviam conseguido encontrar uma razão física para a deterioração que seu corpo sofria, simplesmente porque não havia razão. Contudo, tinha insistido com as Curandeiras até alguns meses atrás, quando foi acordada pelos gritos de Kartane e tomou conhecimento dos sonhos.
Tudo se resumia àquela garota. A morte de Greer, a enfermidade de Kartane, o Anel de Obediência quebrado por Daemon, a obsessão de Hekatah.
Tudo se resumia àquela garota.
Viajara secretamente até Chaillot e descobrira que todos os machos que haviam passado por um lugar chamado Briarwood estavam sendo afetados de maneira semelhante. Um homem gritava, pelo menos uma vez por dia, que suas mãos estavam sendo amputadas, embora pudesse vê-las e movê-las. Dois outros balbuciavam alguma coisa sobre uma perna.
Furiosa, fora até Briarwood, que a essa altura já estava abandonado, a fim de procurar a teia emaranhada de sonhos e de visões que, não tinha dúvida, enredara a todos.
Seus esforços foram em vão. Um riso cáustico e fantasmagórico foi a única coisa que conseguiu retirar das madeiras e das pedras daquele lugar. Não, não foi bem apenas isso. Estava em Briarwood havia uma hora quando o medo tornou o ar mais pesado — medo e uma sensação de espera ansiosa. Poderia ter continuado a investigar, insistido um pouco mais. Se tivesse feito isso, tinha certeza de que encontraria um fio que a levaria até a teia. Mas também tinha certeza de que jamais encontraria a saída.
Tudo se resumia àquela garota.
Voltara para casa, dispensara as Curandeiras e começou a afirmar que nada havia de errado com Kartane sempre que este procurava o seu auxílio.
Continuaria a insistir, não somente porque não havia nada que pudesse fazer, mas também porque isso serviria a outro propósito. Assim que Kartane chegasse à conclusão de que não teria a ajuda de Dorothea, iria procurar outra pessoa. Iria procurar a única pessoa para quem corria, quando criança, sempre que precisava de auxílio.
E, mais cedo ou mais tarde, encontraria Daemon Sadi para ela.
Saetan atravessou os corredores às pressas, dirigindo-se à sala do jardim que dava para um terraço nos fundos do Paço.
Tinham se passado três dias desde que Jaenelle, Prothvar e Fumaça haviam partido com o objetivo de trazer a alcateia de Fumaça para o Paço! Três angustiantes e preocupantes dias preenchidos por pensamentos de caçadores e de venenos e de como ela devia ser pequena quando conheceu os parentes pela primeira vez, quando começou a lhes ensinar a evitar as armadilhas criadas pelos homens sem pensar no que lhe poderia acontecer se caísse numa delas — ou nos outros tipos de armadilhas que um macho dos Sangue podia montar para apanhar uma jovem feiticeira.
Contudo, Jaenelle fora apanhada “por esse tipo de armadilhas”, não fora? Não conseguira mantê-la a salvo.
Agora, finalmente, Jaenelle estava em casa. Tinha chegado pouco antes do alvorecer e permanecia nos jardins que faziam fronteira com os bosques ao norte. Ainda não tinha vindo ao Paço lhe dizer que estava bem.
Saetan abriu de rompante as portas de vidro, saiu para o terraço, aspirou o ar de fim de tarde pelos dentes cerrados e estremeceu.
O ar estava impregnado com as sensações de Jaenelle. Angústia, pesar, raiva. E um vestígio do abismo.
Saetan se afastou da beira do terraço, com sua fúria enfraquecida pela tempestade primitiva que estava a se formar na fronteira dos bosques ao norte. Aquilo tinha dado errado. De alguma forma, tinha dado muito errado.
A fúria foi substituída pela ansiedade. Não conseguia decidir entre esperar que ela o procurasse ou ir à procura dela quando sentiu, por fim, a natureza do silêncio, do perigoso silêncio.
Com passos cautelosos, recuou até transpor as portas de vidro.
Jaenelle estava em casa. Era o que importava. Andulvar e Mephis se levantariam com o crepúsculo. Prothvar também acordaria e se encontraria com eles no escritório, para lhes contar o que acontecera.
Não havia razão para interferir no precário autocontrole de Jaenelle.
E a verdade é que ele não queria descobrir o que aconteceria se o silêncio fosse quebrado.
Prothvar andava como se tivesse sido espancado durante três dias.
Talvez isso tivesse acontecido, pensou Saetan ao ver o Senhor da Guerra demônio-morto aquecendo um copo de yarbarah.
Prothvar ergueu o copo para beber, mas não o fez.
— Estão mortos.
Mephis deixou escapar um som de protesto e de consternação. Andulvar, enfurecido, exigiu uma explicação.
Saetan, recordando o perigoso silêncio que tinha impregnado o ar, mal os ouvia. Se a tivesse questionado mais cedo sobre a pegada de lobo, se Fumaça não tivesse tido que aguardar tanto tempo para contactá-la...
— Todos eles? — irrompeu sua voz, silenciando Andulvar e Mephis.
Prothvar balançou a cabeça penosamente.
— Lady Cinza e dois filhotes sobreviveram. Foi o que restou de uma forte alcateia quando os caçadores terminaram a retirada de peles.
— Não é possível que sejam os únicos lobos parentes que restam.
— Não, Jaenelle disse que há outros. E a verdade é que encontramos dois outros jovens lobos de outras alcateias. Dois jovens e apavorados Senhores da Guerra.
— Mãe Noite — murmurou Saetan, jogando-se numa cadeira.
Andulvar abriu e fechou as asas, num movimento rápido.
— Por que não os reuniu e saiu de lá?
Prothvar virou-se para encarar o avô.
— Não acha que tentei? Não acha... — Fechou os olhos e estremeceu. — Dois dos que foram mortos já tinham se tornado demônios. Foram esfolados e tiveram as patas amputadas, mas ainda...
— Chega! — gritou Saetan.
Silêncio. Silêncio frágil, tão frágil. Havia tempo para ouvir os detalhes. Havia tempo para acrescentar mais um pesadelo à lista.
Andando como se estivesse a ponto de se quebrar, Saetan levou Prothvar até uma cadeira.
Deixaram que ele falasse, deixaram que exorcizasse os últimos três dias. Saetan esfregou o pescoço e os ombros de Prothvar, transmitindo um conforto mudo. Andulvar ajoelhou-se junto à cadeira e segurou a mão do neto. Mephis mantinha o copo de yarbarah sempre cheio. E Prothvar continuou falando, lamentando-se pelos parentes, que tinham uma inocência inacessível aos humanos dos Sangue.
Havia outra pessoa que precisava deste tipo de consolo. Havia outra pessoa que precisava da força de todos eles. Mas ela permanecia no jardim com os parentes e, assim como os parentes, ainda não estava preparada para aceitar o que eles tinham a oferecer.
— É tudo? — perguntou Saetan quando Prothvar finalmente parou de falar.
— Não, Senhor Supremo. — Prothvar engoliu em seco, hesitante. — Jaenelle desapareceu durante várias horas antes de partirmos. Não quis me dizer onde esteve ou por que desapareceu. Quando insisti, ela disse: “Se querem peles, então terão peles.”
Saetan apertou os ombros de Prothvar, sem saber se consolava ou era consolado.
— Compreendo.
Andulvar agarrou Prothvar e o colocou de pé.
— Vamos lá, rapaz. Você precisa de ar fresco nas asas.
Quando os eyrienos saíram, Mephis disse:
— Entendeu o que a garota quis dizer?
Saetan fixou os olhos no vazio.
— Tem compromisso para hoje à noite?
— Não.
— Então arranje alguma coisa para fazer.
Mephis hesitou e, depois, fez uma reverência.
— Como quiser, Senhor Supremo.
Silêncio. Silêncio frágil, tão frágil.
Ah, entendia exatamente o que ela quis dizer. Cuidado com a aranha dourada que tece uma teia emaranhada. A teia da Viúva Negra. A teia de Aracna. Cuidado com a senhora de cabelo louro que desliza pelo abismo vestida de sangue derramado.
Se os caçadores não voltassem, nada aconteceria. Mas eles voltariam. Quem quer que fossem, de onde quer que viessem, eles voltariam, e quando um lobo parente morresse, a teia emaranhada seria despertada.
Ainda assim, os caçadores fariam sua caçada, matariam e mutilariam e esfolariam. Apenas um, confuso e apavorado, sairia com o prêmio, e, ao regressar ao local de onde quer que tivesse vindo, nesse momento, e só nesse momento, a teia o libertaria, mostrando-lhe que as peles que tinha arrancado não eram peles de lobos.
Lord Jorval esfregou as mãos, contente. Era quase bom demais para ser verdade. Um escândalo desta dimensão derrubaria qualquer um, até mesmo alguém tão bem estabelecido como o Senhor Supremo.
Recordando suas novas responsabilidades, Jorval alterou a expressão para uma que fosse mais adequada a um membro do Conselho das Trevas.
Aquela era uma acusação muito grave, e o desconhecido com as mãos deformadas admitira não possuir qualquer prova além do que tinha visto. Considerando o que o Senhor Supremo fizera às mãos do homem antes de dispensar seus serviços, era compreensível que ele tivesse se recusado a testemunhar no Conselho das Trevas contra o Senhor Supremo. Ainda assim, era preciso tomar providências em relação à garota.
Uma jovem e poderosa Rainha, o desconhecido havia dito. Uma Rainha que, com a orientação adequada, poderia ser valiosa para o Reino. Todo esse magnífico potencial estava sendo desvirtuado pelas perversões do Senhor Supremo, que a forçava a se sujeitar...
Jorval desviou os pensamentos daquele tipo de imagens.
A garota precisava de alguém que a aconselhasse, canalizando seu poder na direção certa. Precisava de alguém em quem pudesse confiar. E como não era assim tão nova, talvez precisasse de mais do que isso de seu tutor legal. Talvez até esperasse, quisesse esse tipo de comportamento...
Porém, afastar a garota de Saetan exigiria delicadeza. E o desconhecido tinha avisado sobre as movimentações extremamente rápidas. Uma Rainha de Dhemlan poderia apresentar um protesto oficial sobre o tratamento que o Senhor Supremo dispensava à garota, mas Jorval não conhecia nenhuma, a não ser de nome ou reputação. Não, de alguma forma o próprio Conselho das Trevas teria de ser pressionado a convocar o Senhor Supremo para prestar contas.
E podiam fazê-lo, não? Afinal, fora o Conselho das Trevas que lhe concedera a tutela sobre Jaenelle, e ninguém se esquecera de como isso havia sido feito. Não seria nada descabido se o Conselho exprimisse preocupação quanto ao bem-estar da garota.
Umas breves palavras aqui. Uma pergunta hesitante ali. Protestos enérgicos de que se tratava apenas de rumores abomináveis e infundados. Quando finalmente chegassem a Dhemlan e ao Senhor Supremo, ninguém teria ideia da origem dos boatos. E então veriam se Saetan conseguiria resistir à fúria de todas as Rainhas de Kaeleer.
E ele, Lord Jorval de Goth, capital da Pequena Terreille, estaria preparado para assumir suas novas e maiores responsabilidades.
O empurrão era agora um safanão.
— Acorde, SaDiablo.
Saetan tentou puxar os cobertores para cobrir os ombros nus e afundou a cabeça ainda mais na almofada.
— Vá embora.
Seu ombro foi atingido por um soco.
Resmungando, apoiou-se num cotovelo enquanto Andulvar atirava um par de calças e um roupão em cima da cama.
— Ande logo — disse Andulvar. — Antes que desapareça.
Antes que desapareça o quê?
Esfregando os olhos, Saetan se perguntou se teria tempo de jogar água no rosto para despertar, mas tinha a nítida impressão de que, se não se vestisse rapidamente, Andulvar o arrastaria nu pelos corredores.
— Já é manhã — resmungou Saetan ao se vestir. — Você já deveria ter se recolhido.
— Foi você mesmo quem disse que a presença de Jaenelle alterou o Paço de tal maneira que os demônios já não são afetados pela luz do dia, desde que permaneçam aqui dentro — disse Andulvar enquanto indicava o caminho pelos corredores.
— É a última vez que lhe conto alguma coisa — resmungou Saetan.
Quando chegaram a um quarto no segundo andar, na parte da frente do Paço, Andulvar afastou as cortinas com todo o cuidado.
— Pare de reclamar e olhe.
Esfregando os olhos pela última vez, Saetan apoiou uma das mãos na esquadria da janela e espreitou pela abertura das cortinas.
Era uma manhã de céu claro e ensolarado. O caminho de cascalho estava parcialmente revolvido. A teia de desembarque tinha sido varrida. Contudo, o trabalho parecia ter sido interrompido no meio, como se alguma coisa tivesse feito os criados externos pararem. Eles ainda estavam lá fora e Saetan conseguia sentir seu entusiasmo, apesar das proteções. Era como se tivessem a esperança de passar despercebidos.
Franzindo a testa, Saetan olhou para a esquerda e viu um unicórnio branco pastando no jardim da frente, com a parte traseira virada para as janelas. Não era branco puro, avaliou Saetan, mas creme, com a crina e a cauda brancas.
— De onde veio? — Saetan olhou inquisidoramente para Andulvar.
Andulvar bufou.
— Provavelmente de Sceval.
— O quê? — Saetan voltou a olhar para fora no exato momento em que o unicórnio levantou a cabeça, virando-se para o Paço. — Mãe Noite — sussurrou, agarrando as cortinas. — Mãe Noite.
O chifre de marfim erguia-se da cabeça majestosa. Em volta da base do chifre, reluzindo sob o sol da manhã, era possível ver um anel de ouro. Incrustada no anel, uma Joia Opala.
— É um Príncipe dos Senhores da Guerra tomando café da manhã no seu jardim — disse Andulvar, com uma voz neutra.
Saetan olhou para o amigo, incrédulo. Era verdade que Andulvar tinha visto o unicórnio primeiro e tido mais tempo para assimilar aquele fato estranho, mas estaria assim tão exausto a ponto de superar o espanto tão rapidamente? Havia um unicórnio no quintal! Um... Príncipe dos Senhores da Guerra e parente.
Saetan apoiou-se na parede.
— Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as Trevas sejam misericordiosas.
— Acha que a garota sabe dele? — perguntou Andulvar.
A resposta à pergunta veio sob a forma de um grito selvagem e radiante, enquanto Jaenelle corria a toda velocidade pelo caminho de pedras, detendo-se repentinamente a menos de meio metro daquele magnífico e mortífero chifre.
O unicórnio arqueou o pescoço, ergueu a cauda como um estandarte de seda branca e dançou em volta de Jaenelle durante um minuto. Depois, baixou a cabeça e encostou o focinho nas palmas das mãos da adolescente.
Saetan observava-os, na esperança de que nada viesse perturbar a encantadora imagem de uma garota e um unicórnio numa límpida manhã de verão.
A imagem pacífica foi destruída quando Fumaça veio atravessando o pátio como um raio.
O unicórnio empurrou Jaenelle para o lado, recolheu as orelhas, baixou o chifre letal e começou a escavar o solo. Fumaça parou repentinamente e mostrou os dentes em ar de desafio.
Jaenelle agarrou a crina do unicórnio com uma das mãos e estendeu a outra para deter Fumaça. O que quer que tenha dito fez com que os animais hesitassem.
Por fim, Fumaça deu um passo cauteloso para a frente. O unicórnio fez o mesmo. Tocaram os focinhos.
Com um ar divertido, embora atrevido, Jaenelle montou o unicórnio — e teve de lutar para se manter sentada quando o animal partiu a galope.
Ele parou repentinamente e virou a cabeça para olhar Jaenelle.
Jaenelle ajeitou o cabelo e disse alguma coisa.
O unicórnio mexeu a cabeça.
Ela se tornou mais enfática.
O unicórnio mexeu a cabeça e bateu com a pata no chão.
Finalmente, parecendo aborrecida e envergonhada, ela enrolou as mãos na longa crista alva e se ajeitou na garupa.
O unicórnio afastou-se do Paço, sempre pela grama ao lado da estrada. Ao voltar em direção ao Paço, passou a meio galope. Quando começaram a segunda volta, Fumaça se juntou a eles.
— Vamos — disse Saetan.
Ele e Andulvar saíram apressados para o salão principal. A maioria dos empregados estava junto às janelas das salas de visitas de ambos os lados do salão e Beale espreitava por uma fresta da porta principal.
— Abra a porta, Beale.
Sobressaltado pela voz de Saetan, Beale deu um salto para sair do caminho.
Fingindo não ver Beale se esforçar para adotar uma expressão estoica apropriada, Saetan abriu a porta de rompante e saiu, enquanto Andulvar ficou à sombra da entrada.
Jaenelle estava linda com os cabelos louros ao vento e o rosto iluminado pela felicidade que vinha de dentro de si. Sentia-se completamente à vontade na garupa de um unicórnio, um lobo ao seu lado. Saetan sentiu uma pontada de arrependimento ao vê-la galopar num jardim aparado em vez de numa clareira selvagem. Era como se, ao trazê-la para este lugar, tivesse de alguma maneira cortado suas asas — e perguntou-se se isso seria verdade. Foi então que Jaenelle o viu e o unicórnio se virou para a porta.
Recordando-se de que usava a Joia mais escura, Saetan tentou relaxar — sem êxito. Um Príncipe dos Sangue, mesmo sendo um lobo, aceitaria sua relação com Jaenelle simplesmente pelo fato de ele, um Príncipe dos Senhores da Guerra, tê-la reclamado. Outro Príncipe dos Senhores da Guerra questionaria essa pretensão, ainda mais se interferisse na dele, até que a Senhora a reconhecesse.
Ao descer os degraus para ir ao encontro deles, Saetan sentiu o desafio vindo do outro lado da cerca mental, uma exigência para que reconhecesse a reivindicação do unicórnio. Respondeu em silêncio ao desafio, abrindo-se o suficiente para que o outro Príncipe dos Senhores da Guerra sentisse sua força. Mas não negou a pretensão do unicórnio sobre Jaenelle.
Interessado, o unicórnio levantou as orelhas.
— Papai, este é o Príncipe Kaetien — disse Jaenelle afagando o pescoço do unicórnio. — Foi o primeiro amigo que fiz em Kaeleer.
Ah, claro. Uma reivindicação muito anterior. Que não devia ser encarada com tranquilidade. No Idioma Antigo, “kaetien” significava “fogo branco”, e Saetan não duvidou por um momento que o nome se adequava àquele Irmão quadrúpede.
— Kaetien — disse Jaenelle —, este é o Senhor Supremo, meu progenitor.
Kaetien recuou, afastando-se de Saetan, com as orelhas junto à cabeça.
— Não, não — disse Jaenelle apressadamente. — Não é esse. É o meu progenitor adotivo. É o amigo que estava me ensinando Arte. Agora vivo aqui com ele.
O unicórnio resfolegou, aliviado.
Ao observá-los, Saetan manteve os sentimentos cuidadosamente escondidos. Por enquanto não forçaria nada, mas em breve teria de ter uma conversa com Kaetien sobre o progenitor de Jaenelle.
Kaetien começou a bater com as patas nas pedras quando dois jovens cavalariços se aproximaram devagar. O mais velho passou os dedos na aba do boné.
— Será que o Príncipe aceitaria um pouco de ração e uma escovada?
Jaenelle hesitou e depois sorriu, sem deixar de afagar o pescoço de Kaetien.
— Você devia tomar café da manhã — disse baixinho. Tentou passar os dedos pelo cabelo e fez uma careta. — E também está precisando de um trato nesses pelos.
Kaetien balançou a cabeça, num sinal que poderia ser interpretado como de concordância.
Jaenelle desmontou e subiu correndo pelas escadas. De repente, virou-se, com as mãos nos quadris e faíscas saindo dos olhos.
— Eu não caí! Só não estava equilibrada.
Kaetien olhou para ela e resfolegou.
— Não tenho pernas fracas, não tenho qualquer problema de montaria e agradeço que mantenha o focinho no seu saco de ração! Eu como, sim, senhor! — Olhou para Saetan. — Não como? — Semicerrou os olhos. — Não como?
Como o silêncio era a melhor opção, Saetan não respondeu.
Jaenelle estreitou um pouco mais os olhos e bufou:
— Machos.
Satisfeito, Kaetien seguiu os cavalariços até o estábulo.
Resmungando entre dentes, Jaenelle passou como um furacão por Andulvar e Beale, dirigindo-se à sala do café da manhã.
Com um rosnar jovial, Fumaça prosseguiu suas rondas matinais.
— Ele a irritou de propósito — disse Andulvar na porta.
— É o que parece — concordou Saetan, soltando uma gargalhada abafada. Dirigiram-se lentamente à sala do café da manhã. — Mas é reconfortante saber que alguns dos nossos Irmãos desenvolveram o talento maravilhoso de atormentá-la.
— Aquele Irmão em particular parece saber bem o terreno que é capaz de cobrir num galope a toda velocidade.
Saetan sorriu.
— Acho que ambos sabem.
Jaenelle estava sentada à mesa do café da manhã, partindo um pedaço de torrada.
Saetan sentou-se, com cautela, do outro lado da mesa, serviu-se de uma xícara de chá e sentiu-se grato que a torrada fosse a única coisa que Jaenelle parecia querer partir.
— Obrigada pelo apoio — disse ela, amarga.
— Você não queria que eu mentisse para outro Príncipe dos Senhores da Guerra, não é?
Jaenelle lançou-lhe um olhar furioso.
— Tinha me esquecido de como Kaetien pode ser mandão.
— Ele não consegue evitar — disse Saetan de modo tranquilizador. — Faz parte do que ele é.
— Nem todos os unicórnios são mandões.
— Eu estava pensando nos Príncipes dos Senhores da Guerra.
Ela pareceu surpresa, mas, em seguida, sorriu.
— Você deve saber bem. — Pegou outra torrada e começou a parti-la, com um ar pensativo. — Papai? Acha mesmo que eles viriam?
A mão de Saetan titubeou, mas conseguiu levar a taça aos lábios.
— Seus amigos humanos? — perguntou calmamente.
Jaenelle assentiu.
Ele esticou-se sobre a mesa e tomou as mãos dela nas suas.
— Só há uma forma de saber, criança-feiticeira. Escreva os convites e eu me encarrego de enviá-los.
Jaenelle limpou as mãos no guardanapo.
— Vou ver como está Kaetien.
Saetan beliscou o bife do café da manhã por alguns momentos, bebeu outra xícara de chá e, por fim, desistiu. Precisava falar com alguém, compartilhar a apreensão e o entusiasmo que sentia. Poderia procurar Cassandra, é claro, mas agora a comunicação entre os dois era sempre muito formal, e ele não queria formalidades. Queria expressar toda a felicidade que sentia. Sylvia? Ela gostava de Jaenelle e ficaria satisfeita com as novidades — todas as novidades —, mas era muito cedo para aparecer em sua casa.
Restava-lhe uma única alternativa.
Saetan deu um largo sorriso.
Andulvar já devia estar confortavelmente deitado. Um soco no ombro não lhe faria mal.
Titian limpou a faca com um pedaço de tecido do casaco preto enquanto as outras Harpias esquartejavam a carne e atiravam pedaços à matilha de Cães de Caça que aguardava em semicírculo em volta do corpo.
O corpo se contorcia e lutava, ainda que com movimentos débeis, mas o canalha já não podia gritar por ajuda, e os sons surdos que produzia enchiam-na de satisfação. Um demônio não podia sentir a dor da mesma forma que os vivos, mas a dor era algo cumulativo, e, estando morto há pouco tempo, seus nervos ainda não tinham se esquecido das sensações.
Uma Harpia lançou aos cães um grande pedaço de coxa. O líder da matilha abocanhou-o em pleno ar e recuou com a recompensa, rosnando. Os outros membros da matilha voltaram a formar o semicírculo, aguardando sua vez. As cadelas observavam seus filhotes roendo os dedos das patas.
Os Cães de Caça do Inferno não costumavam se alimentar de demônios. Havia presas melhores para estes grandes caçadores de pelo preto e olhos vermelhos, presas tão nativas deste Reino frio e eternamente mergulhado no crepúsculo como os próprios Cães de Caça. Mas a carne deste demônio estava encharcada de sangue fresco — sangue que Titian sabia não provir de Oferendas voluntárias.
Levara algum tempo para persegui-lo e capturá-lo. Ele não havia se afastado muito de Hekatah desde que o Senhor Supremo lhe havia feito o pedido. Até aquela noite.
Não havia Portões no território de Hekatah, e os Portões mais próximos estavam agora fortemente vigiados. Um deles ficava junto ao Paço, de onde Hekatah já não se atreveria a chegar perto, e o outro no território das Harpias, o território de Titian. Não era um lugar para os incautos, nem mesmo os mais arrogantes. Isto significava que Hekatah e seus lacaios teriam de percorrer uma longa distância nos Ventos para chegar a outro Portão ou teriam de se arriscar.
Aquela noite, Greer arriscara e pagara por isso.
Se tivesse tido tempo para usar as Joias, o resultado talvez tivesse sido diferente, mas ele tinha alcançado o Altar das Trevas e atravessado o Portão sem resistência, por isso não tinha razões para imaginar que aguardavam sua volta. Assim que saiu do Santuário, as Harpias atacaram tão rapidamente e com tanta virulência que tudo o que conseguiu foi se defender e tentar escapar. Algumas Harpias se extinguiram e desapareceram, transformando-se num sussurro nas Trevas. Mas Titian não as lamentou. Sua existência crepuscular havia se dissolvido numa alegria feroz.
No fim das contas era uma mente aterrorizada contra várias outras enraivecidas, que sondavam, aguardando o momento de fraqueza, enquanto os Cães de Caça treinados de Titian investiam sem parar, forçando Greer a usar cada vez mais a força de reserva de suas Joias para afastá-los. As Harpias quebraram suas barreiras interiores no exato momento em que a flecha de Titian atravessou seu corpo, prendendo-o a uma árvore.
Enquanto as Harpias retiravam o corpo da árvore e começavam a destrinchar a carne, Titian vasculhou a mente de Greer tão delicadamente como se estivesse retirando o miolo de uma noz rachada. Viu as crianças com as quais ele tinha se fartado. Viu a cama estreita, o sangue nos lençóis, o jovem rosto conhecido que tinha sido ferido por aquelas mãos deformadas. Viu o punhal com cabo de chifre de Surreal atravessar seu coração, rasgar sua garganta. Viu-o sorrindo para ela ao cortar sua garganta, séculos atrás. E viu onde tinha estado naquela mesma noite.
Titian embainhou a faca e verificou a lâmina do pequeno machado caído a seu lado.
Lamentou não tê-lo abatido antes que ele chegasse à Pequena Terreille. Se Greer não tivesse se enganado em relação a Lord Jorval, os rumores começariam em breve.
Um Guardião não era um ser natural num Reino dos vivos. Haveria sempre rumores e curiosidade — sobretudo se esse Guardião fosse também o Senhor Supremo do Inferno. E Titian podia prever muito bem qual seria a reação das Rainhas de Kaeleer aos rumores.
Visitaria suas semelhantes e lhes diria o que queria delas se a oportunidade se apresentasse. Talvez isso ajudasse.
Titian pegou o machado. As Harpias se afastaram, deixando passar sua Rainha.
Greer já não tinha membros. Seu tronco estava vazio. Os olhos retinham ainda um brilho frouxo de inteligência, um vislumbre do Eu. Não era muito, mas bastava.
Com três golpes certeiros, Titian abriu o crânio de Greer. Com a lâmina do machado, afastou uma das fendas até que a abertura fosse suficiente para permitir a passagem de seus dedos. Nesse momento, arrancou o osso do crânio.
Observou os olhos de Greer. Ainda estava ali.
Titian assobiou, chamando o líder da matilha, e afastou-se, sorridente, enquanto o Cão de Caça se fartava com o cérebro do demônio.
Saetan penteou o cabelo pela terceira vez, porque isso o mantinha ocupado. Assim como polir duas vezes as longas unhas, pintadas de preto. Assim como mudar de casaco para depois voltar ao primeiro.
Deteve-se ao estender a mão para pegar a escova outra vez, ajeitou o casaco já arrumado e suspirou.
Será que as crianças viriam?
No convite, não tinha solicitado resposta, pois queria que as crianças tivessem todo o tempo possível para reunir coragem ou vencer os protestos dos mais velhos — e também porque temia aquilo que a rejeição, dia após dia, poderia provocar em Jaenelle.
Tal como prometido, ele e os outros membros da família haviam entregado todos os convites. Alguns tinham sido levados à casa de cada criança. A maioria fora deixada em pedras de mensagens, pilhas de pedregulhos na fronteira dos Territórios onde viajantes ou comerciantes podiam deixar solicitações para um encontro. Saetan não fazia ideia de como as mensagens deixadas nesses locais chegavam a seus destinatários, e duvidava que as crianças fossem chegar aquela tarde. Não sabia o que esperar das crianças dos Territórios abertos. Esperava, simplesmente, que Andulvar tivesse razão e que aquela feiticeirazinha de Glácia viesse e pisasse em seus calos.
Tentou respirar fundo, mas o resultado foi mais um suspiro. Deixou seus aposentos para se juntar ao resto da família e a Cassandra no salão principal.
Estavam todos presentes, à exceção de Jaenelle e Sylvia. A Rainha de Halaway ficara encantada quando Saetan a informou da festa, e usaria seu grande entusiasmo para forçar Jaenelle a acompanhá-la num passeio para comprar roupas novas. Não voltaram com um vestido, mas ele tinha de admitir, embora com má vontade, que as calças azul-safira macias e compridas e o longo casaco tinham um aspecto bastante feminino, ainda que a minúscula blusa dourada e prateada debaixo do casaco... Como homem, aprovava-a; como pai, ficou enfurecido.
Assim que o viu, Cassandra lhe deu o braço, afastando-o dos outros homens.
— Acha sensato estarem todos aqui? — perguntou baixinho. — Não é intimidador demais?
— E a quem pediria para sair? — respondeu Saetan, sabendo muito bem ser uma das pessoas que Cassandra pensava que deveria estar ausente.
Depois de receber o bilhete de Saetan, Cassandra viera ajudar nos preparativos, mas agira com uma animação forçada, como se estivesse se preparando, na verdade, para o momento em que Jaenelle desse de cara com um salão vazio. Sylvia, por outro lado, mostrava-se sempre indignada com quem quer que se atrevesse a expressar a menor dúvida sobre o sucesso do evento.
Um homem sensato teria se fechado no seu escritório e permanecido lá. Só um tolo teria deixado sozinhas duas feiticeiras que estavam o tempo todo prestes a se engalfinhar como gatos de rua.
Vendo que Cassandra não responderia à sua pergunta, Saetan tomou seu lugar no salão principal. Andulvar estava um passo atrás, à esquerda. Mephis e Prothvar estavam à esquerda de Andulvar e um pouco para o lado, de modo a não fazer parte dos cumprimentos oficiais. Cassandra ficou à direita de Saetan, um passo atrás. Por direito, deveria estar a seu lado, Negra com Negra, e Saetan estava bem ciente da razão pela qual recorria a uma opção do Protocolo para se distanciar dele.
Saetan virou-se na direção de passos apressados descendo as escadas na sala de visitas.
Sylvia entrou de rompante no salão principal com um ar um pouco adorável demais, os olhos dourados brilhando e as maçãs do rosto rosadas.
— Os filhotes de lobo esconderam os sapatos de Jaenelle e demoramos um pouco a encontrá-los — disse, sem fôlego. — Ela já vem, mas eu não queria chegar atrasada.
Saetan sorriu.
— Você não está...
Um relógio badalou três vezes.
Cassandra produziu um som baixo e descontente, afastando-se de Saetan.
Pela primeira vez desde que Saetan a informara sobre a festa, os olhos de Sylvia exibiram preocupação.
Estavam todos no salão principal, aguardando em silêncio, enquanto Beale se mantinha inexpressivo junto à porta, e os criados que se encarregariam dos casacos olhavam fixamente para a frente.
Os minutos foram passando.
Sylvia passou a mão na testa e suspirou.
— É melhor eu subir...
— Já não precisamos mais da sua generosa ajuda — disse Cassandra com frieza ao passar por Sylvia. — Foi você quem a meteu nisto.
Sylvia segurou o braço de Cassandra, obrigando-a a se virar.
— Posso ter me entusiasmado demais, mas você não fez outra coisa além de dizer que ela nunca teria um amigo pelo resto da vida!
— Senhoras — avisou Saetan, avançando na direção das duas.
— O que você sabe sobre usar a Negra? — rebateu Cassandra. — Eu vivi esse isolamento...
— Senho...
BUM!
— Fogo do Inferno — murmurou Andulvar, entre dentes.
BUM!
De um salto, Beale abriu a porta enquanto ainda estava inteira.
Ela entrou no salão, parando no local onde a luz do sol que vinha da janela de vitrais acima das portas duplas produzia uma iluminação natural. Alta e esguia, vestia calças bem justas, azul-escuras, um casaco folgado e botas de salto alto. O cabelo louro platinado erguia-se em picos eriçados sobre a cabeça, como gelo esculpido. As sobrancelhas e as pestanas escurecidas emolduravam os gélidos olhos azuis.
— Irmãs — disse, acenando para Sylvia e Cassandra de uma forma indiferente que beirava a insolência. Depois seus olhos examinaram Saetan da cabeça aos pés.
Saetan prendeu a respiração. Mesmo que Lord Morton não tivesse entrado furtivamente atrás dela, teria apostado que se tratava de Karla, a jovem Rainha glaciana.
— Bem — disse Karla —, até que não está mal para um cadáver.
Antes que pudesse responder, a voz serena e divertida de Jaenelle disse:
— Você tem razão apenas em parte, querida. Ele não é um cadáver.
Karla virou-se para a sala de visitas e viu Jaenelle encostada à soleira da porta, com os dedos enganchados no casaco pendurado ao ombro.
Karla soltou um guincho que eriçou os cabelos do pescoço de Saetan.
— Seus peitos cresceram! — Karla abriu o casaco azul, revelando uma blusa prateada tão pequena quanto a de Jaenelle. — Os meus também, se é que podemos chamar de peitos estes adoráveis ferrões de abelha. — Sorrindo da forma mais malévola que Saetan jamais vira, virou-se para ele. — O que você acha?
Ele não parou para pensar.
— Está perguntando se acho que são adoráveis ou se acho que são ferrões de abelha?
Karla fechou o casaco, cruzou os braços e semicerrou os gélidos olhos azuis.
— Ele é atrevido, não é?
— Bem, ele é um Príncipe dos Senhores da Guerra — respondeu Jaenelle.
Os gélidos olhos azuis encontraram os olhos azul-safira. Ambas sorriram.
Karla deu de ombros.
— Ah, está bem. Serei uma convidada bem-comportada. — Aproximou-se de Saetan e o sorriso malicioso desabrochou. — Beijos.
Ele se recusou a lhe dar o prazer de vê-lo com uma expressão incomodada.
Karla lhe deu as costas e dirigiu-se a Jaenelle.
— Você me deve muitas explicações. Tive de resolver sozinha todos aqueles malditos feitiços. — Arrastou Jaenelle para a sala de visitas e fechou a porta.
Saetan olhou para os sapatos.
— Maldição, ela realmente pisou nos meus calos — resmungou, antes de perceber que Morton tinha se aproximado o suficiente para ouvi-lo.
— S-Senhor Supremo.
— Lord Morton, tenho apenas uma coisa para lhe dizer.
— Senhor? — Morton tentou reprimir um arrepio.
Saetan, por sua vez, tentou reprimir um sorriso pesaroso, mas sem êxito.
— Tem a minha sincera solidariedade.
Morton sentiu uma onda de alívio.
— Agradeço, Senhor. É bem-vinda.
— Sirva-se de comida e bebida — disse Saetan, gesticulando ligeiramente em direção à porta fechada. — E me avise se elas começarem a fazer planos para derrubar alguma parede.
BANG!
Em pânico, Saetan achou por um momento que a advertência tinha vindo tarde demais, para depois perceber que alguém, de alguma forma, estava batendo à porta.
Se Karla era gelo, esta era fogo, pois tinha um cabelo ruivo escuro que caía pelas costas, olhos verdes que cintilavam e um vestido rodopiante semelhante a um bosque de outono em movimento. Dirigiu-se primeiro a Saetan, mas logo o ignorou quando Jaenelle e Karla puseram a cabeça para fora da sala de visitas. Com um largo sorriso, ergueu uma sacola de pano.
— Não sabia se iríamos parar nos estábulos ou acabar cavando no jardim, por isso trouxe algumas roupas de verdade.
Saetan abafou um resmungo. Será que nenhuma delas gostava de se arrumar?
As garotas desapareceram na sala de visitas — e fecharam a porta.
O jovem que acompanhava a feiticeira de fogo era alto, bonito e alguns anos mais velho. Tinha cabelos castanhos encaracolados e olhos azuis. Sorridente, estendeu a mão num cumprimento informal.
Com um nó no estômago, Saetan apertou com firmeza a mão estendida. Poderia descrever aqueles olhos azuis de diversas formas. Todas anunciavam problemas.
— O senhor deve ser o Senhor Supremo — disse o jovem Senhor da Guerra, com um sorriso. — Sou Khardeen, da ilha de Scelt. — Apontou o polegar em direção à sala de visitas. — Aquela é a Morghann.
A porta da sala de visitas se abriu. Jaenelle se aproximou, hesitante. Depois estendeu ambas as mãos num cumprimento formal.
— Olá, Khary.
Khary olhou para as mãos estendidas e virou-se para Saetan.
— Jaenelle alguma vez lhe contou sobre a aventura com a pedra do meu tio...
— Khary — suspirou Jaenelle, olhando nervosa para Saetan.
— Hã? — Khary sorriu para ela. — Sabia que um bom abraço consegue esvaziar a cabeça de um homem? Todo mundo sabe disso. Fico surpreso que você não.
Jaenelle estava na ponta dos pés, preparada para sair correndo. Agora seus calcanhares baixaram e os olhos semicerraram-se.
— Sério?
Observando os dois, Saetan decidiu que o mais prudente era permanecer imóvel e não abrir a boca.
Passaram-se alguns segundos. Vendo que Jaenelle não se decidia, Khardeen voltou-se para Saetan.
— Sabe, meu...
Jaenelle avançou.
— Não precisa me sufocar — exclamou Khary, envolvendo-a cuidadosamente com os braços.
— Então, o que ia dizer? — perguntou Jaenelle com um ar ameaçador.
— Como? — respondeu Khary, docemente.
Rindo, Jaenelle envolveu o pescoço do rapaz.
— Fico contente por ter vindo, Khardeen. Senti saudades.
Khary libertou-se devagar.
— Temos tempo de sobra para pôr tudo em dia. Agora é melhor voltar para perto das suas irmãs ou vou ter de aguentar a língua afiada de Morghann pelo resto do dia.
— Comparada à de Karla, a língua de Morghann não é nada afiada.
— Então tenho ainda mais razão.
Dando outra olhada nervosa para Saetan, Jaenelle correu para a sala de visitas. Mal chegou lá, alguém bateu à porta, de um modo que parecia quase respeitoso.
Deviam ter surgido na teia de desembarque com poucos segundos de intervalo uns dos outros, chegando juntos à porta, uma vez que não eram originários dos mesmos Territórios. E considerando não lhe dispensaram mais do que um apreensivo olhar de relance antes de se concentrarem em Jaenelle, Saetan viu-se forçado a adivinhar quem eram pelos nomes dos convites.
Os sátiros de Pandar eram Zylona e Jonah. A pequena fada com cabelo escuro e asas iridescentes empoleirada no ombro de Jonah era Katrine de Philan, uma das ilhas de Paw. O jovem de cabelo preto e olhos cinzentos que lembrava os jovens lobos que agora viviam nos bosques ao norte era Aaron de Dharo. Sabrina, uma morena com olhos cor de avelã, também vinha de Dharo. Os rapazinhos de pele amarela listrada de negro eram Grezande e Elan, de Tigrelan.
A última do grupo — uma feiticeira baixinha, com formas curvilíneas e voluptuosas, de olhos castanhos-claros e cabelo castanho-escuro — abraçou Jaenelle, aproximou-se timidamente de Saetan e apresentou-se como Kalush de Nharkhava.
Era tão doce e encantadora que Saetan teve vontade de abraçá-la. Em vez disso, ele deslizou as mãos por baixo das que ela havia estendido num cumprimento formal e disse:
— É uma honra conhecê-la, Lady Kalush.
— Senhor Supremo. — Sua voz rouca devia ter um efeito maravilhosamente pérfido na libido dos jovens rapazes. Teve pena do pai dela.
Beale, parecendo um pouco aturdido, começou a fechar a porta, mas esta voltou a abrir-se bruscamente.
Saetan empurrou Kalush na direção de Andulvar e ficou tenso.
Os centauros entraram.
A jovem feiticeira, Astar, dirigiu-se às garotas. O Príncipe dos Senhores da Guerra prosseguiu pelo salão até ficar diante de Saetan.
— Senhor Supremo. — O cumprimento soou mais como um desafio.
— Príncipe Sceron.
Sceron era alguns anos mais velho do que os outros, já tinha idade suficiente para começar a desenvolver os enormes ombros e o tronco robusto. O resto do corpo orgulharia qualquer cavalo.
Nos olhos de Sceron era possível ver uma pergunta por fazer e uma raiva contida que parecia prestes a explodir.
Jaenelle avançou naquele silêncio gélido, cerrou o punho e deu uma pancada no antebraço de Sceron.
Sceron pegou-a e levantou-a até ficarem olhos nos olhos.
— Isto foi por não ter me cumprimentado — disse Jaenelle.
Sceron examinou o rosto dela e, por fim, sorriu.
— Você está bem?
— Estava melhor antes de me você me amarrotar.
Rindo, Sceron colocou-a no chão.
Alguém suspirou.
Saetan sentiu um calafrio percorrendo a espinha e olhou para a porta.
Como achava que não viriam, não tinha pensado em como os outros reagiriam à sua presença. Mas ali estavam elas. As Crianças da Floresta. Os Dea al Mon.
Era um casal esguio e forte, uma característica da raça, tal como as orelhas levemente pontudas. Ambos usavam os grisalhos cabelos compridos e soltos. Ambos tinham olhos grandes, de um tom azul-floresta, embora os da garota tivessem uma tonalidade mais acinzentada.
A garota, Gabrielle, parou à porta. O rapaz — ah, não, seria de uma extrema leviandade julgar que Chaosti era um rapaz — avançou devagar e silenciosamente.
Saetan lutou contra os instintos que sempre se manifestavam diante de um Príncipe dos Senhores da Guerra desconhecido. Como não chegaram a se dirigir a ele, Elan e Aaron não os haviam atiçado. Sceron tinha apenas tocado de leve. Mas Chaosti, olhando-o fixamente com aqueles grandes olhos, despertaram toda a agressividade e territorialidade inerentes a um Príncipe dos Senhores da Guerra.
Saetan sentiu que chegava à beira dos instintos assassinos e soube que o mesmo acontecia com Chaosti; entretanto, os instintos deste último estavam quase saindo do controle.
— Chaosti — chamou Jaenelle com sua voz sombria.
Chaosti virou-se devagar para ela.
— É o meu pai, Chaosti — disse Jaenelle. — Por escolha minha.
Depois de um longo momento, Chaosti colocou a mão no peito.
— Por escolha sua, prima — respondeu com uma voz de tenor enganadoramente calma.
Jaenelle conduziu as garotas à sala de visitas informal e fechou a porta.
Os machos soltaram, em uníssono, um suspiro de alívio.
Chaosti virou-se para Saetan.
— Jaenelle esteve ausente durante muito tempo e sentimos profundamente a sua falta. Titian disse que não era culpa sua, mas...
— Mas sou o Senhor Supremo — disse Saetan com um vestígio de amargura.
— Não — respondeu Chaosti, sorrindo com frieza —, você não é um Dea al Mon.
Saetan sentiu o corpo relaxar.
— Por que a chama de “prima”?
— Gabrielle e eu pertencemos ao mesmo clã. Vovó Teele é a matriarca. Ela também adotou Jaenelle. — O sorriso de Chaosti era agora muito selvagem. — Portanto, você é família da minha família, o que também o torna parente de Titian.
Saetan suspirou.
Khardeen aproximou-se.
— Se quisermos comer alguma coisa, creio que teremos de lutar por isso — disse a Chaosti.
— Aceito qualquer desafio vindo de um macho — vociferou Chaosti.
— As garotas estão entre nós e a comida.
Chaosti suspirou.
— Seria mais fácil desafiar um macho.
— E também mais seguro.
— Cavalheiros — disse Beale —, também estão servindo comida e bebida na sala de visitas formal.
— Já ouviu dizer que as feiticeiras ruivas são temperamentais? — Khardeen perguntou a Chaosti, a caminho da sala de visitas formal, seguindo os outros machos.
— Não existem feiticeiras ruivas entre os Dea al Mon — respondeu Chaosti —, e todas são temperamentais.
— Ah. Então, está bem.
A porta se fechou atrás deles.
Saetan deu um salto ao sentir uma mão apertando-lhe o ombro.
— Você está bem? — perguntou Andulvar baixinho.
— Ainda estou em pé?
— Está na vertical.
— Graças às Trevas. — Saetan olhou em volta. Ele e Andulvar eram os únicos no salão principal. — Vamos nos esconder no meu escritório.
— Boa ideia.
Beberam dois copos de yarbarah e relaxaram quando uma hora se passou sem guinchos, pancadas ou estrondos.
— Mãe Noite. — Saetan tirou o casaco com dificuldade, sentando-se numa das enormes e confortáveis cadeiras.
— Pelas minhas contas — disse Andulvar ao voltar a encher os copos —, há dez feiticeiras adolescentes no mesmo ambiente, todas Rainhas, e duas delas, além de Jaenelle, são Viúvas Negras naturais.
— Karla e Gabrielle. Eu reparei. — Saetan fechou os olhos.
— No outro aposento, há sete jovens machos, sendo quatro deles Príncipes dos Senhores da Guerra.
— Também reparei nisso. Constituem um Primeiro Círculo interessante, não acha?
Andulvar resmungou em eyrieno. Saetan preferiu não traduzir.
— Aonde acha que foram os outros? — questionou Andulvar.
— Se Mephis e Prothvar forem minimamente inteligentes, estão escondidos em algum lugar. Sylvia com certeza está servindo bolinhos de avelã e sanduíches. Cassandra? — Saetan deu de ombros. — Creio que não estava preparada para tudo isto.
— E você estava?
— Droga. — Ao ouvir alguém batendo à porta do escritório, Saetan ainda pensou em se sentar direito, decidindo no entanto não se dar esse trabalho. — Entre.
Khardeen entrou, sorridente, e deixou dezesseis envelopes selados na mesa de madeira escura.
— Eu disse a Jaenelle que lhe entregaria estes envelopes. Vamos lá fora encontrar os lobos e o unicórnio.
— Já devoraram tudo o que havia na cozinha? — perguntou Saetan ao pegar um envelope.
— Pelo menos até o jantar.
— Espere um momento, Senhor da Guerra — ordenou Saetan, frustrando a retirada apressada de Khardeen. Partiu o lacre oficial, invocou os óculos em meia-lua e leu a mensagem. Depois, olhou estupefato para Khary. — É de Lady Duana.
— Hum — disse Khary, balançando-se nos calcanhares. — A avó de Morghann.
— A Rainha de Scelt é avó de Morghann?
Khary enfiou as mãos nos bolsos.
— Hum.
Saetan pousou os óculos na mesa com cuidado.
— Vamos logo ao que interessa. Estas cartas dizem todas a mesma coisa?
— E o que dizem, Senhor Supremo? — perguntou Khary, com um ar inocente.
— Todas dão permissão para uma visita prolongada?
— Imagino que sim.
— Defina “visita prolongada”.
— Não muito tempo. Só até o fim do verão.
Saetan não conseguiu abrir a boca. Não sabia ao certo o que diria se conseguisse.
— Todos os arranjos já estão sendo feitos — disse Khary, tranquilo. — Lord Beale e Lady Helene já estão tratando da distribuição dos quartos, por isso você não tem com o que se preocupar.
— Não... — A voz de Saetan estrondou.
— E é um acordo justo, Senhor Supremo. Você pode estar com ela e nós podemos estar com ela. Além disso, o Paço é o único lugar com espaço para todos.
Saetan fez um gesto suave dando permissão para que Khary saísse e aguardou até a porta se fechar para apoiar a cabeça nas mãos.
— Mãe Noite.
Saetan juntou os dedos das mãos à sua frente e fitou Sylvia.
— Perdão?
— Você precisa falar com Tersa — repetiu Sylvia.
Maldita. Por que estaria insistindo tanto?
Com dificuldade, conseguiu controlar o mau humor. Não era culpa de Sylvia. Ela não tinha como saber da ligação entre ele e Tersa.
— Posso lhe servir um copo de vinho? — perguntou, por fim, com a voz profunda traindo o que sentia.
Sylvia olhou para o decantador no canto da mesa.
— Se aquilo for conhaque, por que não toma um copo e me passa o decantador?
Saetan encheu dois copos e fez um deles flutuar até Sylvia.
Sylvia tomou um trago considerável, engasgando-se um pouco.
— Essa não é a maneira correta de beber um bom conhaque — disse Saetan com frieza, engolindo boa parte do seu próprio conhaque, mesmo sabendo da dor de cabeça que viria depois. — Muito bem. Fale-me de Tersa.
Sylvia inclinou-se para a frente, com os braços apoiados na cadeira e ambas as mãos segurando o copo de conhaque.
— Não sou nenhuma criança, Saetan. Sei que algumas pessoas deslizam para o Reino Distorcido e que outras são empurradas... E que, ainda, uma minoria corajosa entra ali por vontade própria. Sei também que a maioria das Viúvas Negras que se perdem no Reino Distorcido é inofensiva. À sua maneira, são extraordinariamente sábias.
— Mas?
Sylvia comprimiu os lábios.
— Mikal, o meu filho mais novo, passa bastante tempo com ela. Acha Tersa maravilhosa. — Bebeu o resto do conhaque e estendeu a mão com o copo para que Saetan voltasse enchê-lo. — Ultimamente, ela o tem chamado de Daemon.
Falava tão baixinho e sua voz estava tão rouca que Saetan teve dificuldade de ouvi-la. Desejou, amargamente, não tê-la ouvido.
— Mikal não se importa — continuou Sylvia depois de engolir outro trago de conhaque. — Diz que é muito fácil uma pessoa com tantas coisas interessantes a dizer se confundir com as trivialidades do dia a dia, e que provavelmente conheceu um rapaz chamado Daemon a quem costuma dizer as mesmas coisas interessantes.
Ela nunca teve chance de fazer isso. Com a idade de Mikal, ele já estava perdido para nós dois.
— Mas?
— Das últimas vezes que foi visitá-la, ela ficou insistindo para ele ter cuidado. — Sylvia fechou os olhos e franziu a testa, concentrando-se. — Disse que a ponte está muito frágil e que ela continuará enviando os galhos. — Abriu os olhos e serviu-se de conhaque. — Às vezes, ela abraça Mikal e chora. Guarda os galhos que recolheu em todos os quintais do povoado num grande cesto na cozinha e entra em pânico se alguém se aproxima. Mas não pode ou não quer dizer a Mikal ou a mim qual a importância desses galhos. Mandei inspecionar todas as pontes em Halaway e estão todas em bom estado. Pensei que você talvez pudesse conversar com ela. Talvez ela lhe dissesse.
Diria a ele? Deixaria que ele abordasse o único assunto que se recusava a discutir com ele? Sempre que a visitava, durante uma hora por semana, Tersa falava sobre o jardim; dizia-lhe o que tinha jantado; mostrava-lhe um ponto de cruz que estava praticando; falava sobre Jaenelle. Mas não sobre o filho deles.
— Vou tentar, Saetan — disse baixinho.
Sylvia pousou o copo vazio na mesa e levantou-se, cambaleando.
Saetan deu a volta na mesa e conduziu-a à porta.
— Você devia ir para casa e tirar a sesta.
— Eu nunca tiro a sesta.
— Depois de todo este conhaque, não creio que terá outra escolha.
— Meu metabolismo dará conta do conhaque rapidamente — disse Sylvia, já soluçando.
— Ahã. Você percebeu que me chamou de Saetan?
Ela virou-se tão repentinamente que esbarrou nele. Ele gostava de senti-la junto a seu corpo. E ficava perturbado com isso.
— Perdão, Senhor Supremo. Lamento.
— É mesmo? — perguntou com delicadeza. — Eu não sei se lamento.
Sylvia olhou-o fixamente. Hesitou. Nada disse.
Saetan deixou-a ir.
— Vai sair? — Jaenelle estava encostada na parede oposta à porta do quarto, com o dedo marcando a página de um livro de Arte.
Bem-humorado, Saetan levantou uma sobrancelha. Normalmente, era o pai que perguntava aonde ia sua prole e não o contrário.
— Vou visitar Tersa.
— Por quê? Não é nesta noite que costuma visitá-la.
Detectou a leve irritação na voz de Jaenelle, a advertência sutil.
— Sou assim tão previsível? — perguntou Saetan, sorrindo.
Jaenelle não retribuiu o sorriso.
Antes do seu próprio mergulho catastrófico no abismo ou no lugar onde havia passado aqueles dois anos, Jaenelle viajara até o Reino Distorcido e guiara Tersa de volta ao limite tênue entre loucura e sanidade. Era o mais longe que Tersa conseguia — ou estava disposta a — ir.
Jaenelle tinha ajudado Tersa a recuperar um pouco do mundo real. Agora que viviam próximas, continuava a ajudá-la a encaixar as peças que formavam o mundo físico. Pequenas coisas. Coisas simples. Árvores e flores. A sensação da argila entre dedos fortes. O prazer de uma tigela de sopa e de uma fatia grossa de pão recém-saído do forno.
— Sylvia veio me visitar hoje à tarde — disse Saetan, devagar, tentando compreender o frio que vinha de Jaenelle. — Acha que Tersa está perturbada com alguma coisa, por isso quero ver como ela está.
Os olhos azul-safira de Jaenelle exibiam uma profundidade e uma quietude semelhantes a um lago sem fundo.
— Não insista onde não é bem-vindo, Senhor Supremo — disse a Feiticeira.
Saetan se perguntou se ela saberia o quanto seus olhos eram reveladores.
— Prefere que eu não vá? — perguntou respeitosamente.
Os olhos de Jaenelle se alteraram.
— Vá vê-la, se quiser — respondeu a filha. — Mas não invada sua privacidade.
— Não tem vinho. — Tersa abria e fechava as portas dos armários, parecendo cada vez mais confusa. — A mulher não comprou vinho. Compra sempre uma garrafa de vinho no quarto dia para você. Não comprou o vinho e amanhã eu ia fazer um desenho do meu jardim e mostrar a você, mas o terceiro dia já passou e não sei onde o coloquei.
Saetan estava sentado à mesa de pinho na cozinha, o corpo tão pesado de sofrimento que mal conseguia se mover. Tinha brincado com o fato de ser previsível. Não percebera que sua previsibilidade era um dos referenciais de Tersa, uma forma que ela tinha de separar os dias. Jaenelle sabia disso e tinha deixado que ele viesse para aprender a lição por conta própria.
Com as mãos apoiadas na mesa, levantou-se da cadeira. Cada movimento era penoso, mas por fim alcançou Tersa, que ainda abria e fechava as portas dos armários. Resmungando, sentou-a à mesa, pôs uma chaleira no fogo e, depois de uma rápida busca nos armários, preparou um chá de camomila para os dois.
Ao colocar a xícara diante de Tersa, afastou o cabelo preto emaranhado de seu rosto. Não se lembrava de alguma vez ter visto o cabelo de Tersa sem pensar que parecia ter sido lavado e enxugado ao vento, como se os dedos fossem o único pente que ela jamais havia conhecido. Suspeitava que não era a loucura, mas a intensidade que a tornava indiferente. Perguntou-se se não teria sido essa uma das razões, quando finalmente concordou com o contrato estabelecido com a Ampulheta haylliana para gerar uma criança, para ter escolhido Tersa, que já estava quebrada e à beira da loucura. Naquela primeira noite, passara mais de uma hora penteando seu cabelo. Penteara-o todas as noites daquela semana que dormira com ela, apreciando a sensação daquele cabelo entre seus dedos, do deslocamento suave da escova.
Agora, sentado à sua frente, segurando caneca, disse:
— Vim mais cedo, Tersa. Você não perdeu o terceiro dia. Este é o segundo dia.
Tersa ficou com o olhar carregado.
— O segundo dia? Mas você não vem no segundo dia.
— Queria falar com você. Não queria esperar até o quarto dia. Voltarei no quarto dia para ver o seu desenho.
Parte da confusão abandonou os olhos dourados de Tersa. Tomou um gole do chá.
A mesa de pinho estava vazia, exceto por uma pequena jarra azul com três rosas vermelhas.
Tersa tocou as pétalas delicadamente.
— O rapaz pegou estas para mim.
— Que rapaz? — perguntou Saetan, com calma.
— Mikal, o filho de Sylvia. Costuma me visitar. Ela lhe disse?
— Pensei que estivesse falando de Daemon.
Tersa bufou.
— Daemon já não é um rapaz. Além disso, está muito longe. — Seus olhos turvaram-se, argutos. — E a ilha não tem flores.
— Mas você chama Mikal de Daemon.
Tersa deu de ombros.
— Às vezes é agradável fazer de conta que estou contando histórias a ele. Jaenelle diz que não faz mal fingir.
Sentiu um calafrio.
— Falou com Jaenelle sobre Daemon?
— É claro que não — disse Tersa, irritada. — Ela ainda não está preparada para saber. Os fios ainda não estão todos no lugar certo.
— Que fios...
— O amante é o espelho do pai. O irmão está no meio. O espelho gira, gira, gira. Sangue. Tanto sangue. Ele se agarra à ilha do talvez. A ponte terá de erguer-se do mar. Os fios ainda não estão no lugar certo.
— Tersa, onde está Daemon?
Tersa pestanejou, inspirou tão profundamente que estremeceu. Admirada, olhou-o com um ar severo.
— O nome do rapaz é Mikal.
Queria gritar: Onde está meu filho? Por que ele não foi para a Fortaleza nem passou por um dos Portões? O que está esperando? Era inútil gritar com ela. Não poderia traduzir o que vira melhor do que já tinha feito. Mas, pelo menos, Saetan conseguira entender uma coisa. Os fios ainda não estavam todos no lugar certo. Até que isso acontecesse, só lhe restava esperar.
— Para que são os galhos, Tersa?
— Galhos? — Tersa olhou para o cesto com os galhos no canto da cozinha. — Não são para nada. — Deu de ombros. — Gravetos?
Tersa afastou-se de Saetan, esgotada pelo esforço de evitar que as pedras da realidade e da loucura triturassem sua alma.
— Posso fazer algo por você? — perguntou Saetan, preparando-se para sair.
Tersa vacilou.
— Ficaria furioso se eu pedisse.
Neste momento, sentia-se incapaz de uma emoção de tal intensidade.
— Não vou me zangar, prometo.
— Podia... podia me abraçar durante um minuto?
Isso o abalou. Ele, que sempre ansiara pelo afeto físico, jamais se lembrara de lhe oferecer um abraço.
Apertou-a junto a si. Tersa o envolveu com os braços e apoiou a cabeça em seu ombro.
— Não sinto falta do cio, mas é bom ser abraçada por um homem.
Saetan beijou suavemente o cabelo emaranhado.
— E por que não disse antes? Não sabia que queria ser abraçada.
— Agora já sabe.
Os rumores se espalharam pelo Conselho das Trevas.
A princípio era apenas um olhar pensativo, um semblante perturbado. O Senhor Supremo tinha feito muitas coisas durante sua longa vida — vejam por exemplo o que fizera ao próprio Conselho para se tornar tutor da garota —, mas era difícil acreditar que seria capaz daquilo. Sempre insistira que a força de um Território, a força de um Reino, dependia da força das suas feiticeiras, das suas Rainhas. Pensar que poderia fazer aquele tipo de coisas a uma garota vulnerável, a uma jovem Rainha de Joia escura...
Ah, claro, tinham perguntado sobre a garota antes, mas o Senhor Supremo sempre respondera de forma concisa. A garota estava doente. Não podia receber visitas. Estava tendo aulas com professores particulares.
Onde estivera durante os últimos dois anos? Ao que fora submetida? Jorval tinha certeza?
Não, insistira Lord Jorval, não tinha certeza. Fora apenas um boato espúrio de um empregado despedido. Não havia razão para desconfiar de que as coisas não eram como o Senhor Supremo havia dito. Provavelmente a garota estava doente, com algum tipo de incapacidade, talvez muito frágil emocional ou fisicamente para suportar visitas.
O Senhor Supremo nunca tinha se referido à doença de Jaenelle até o momento em que o Conselho pediu para vê-la pela primeira vez.
Jorval afagou a barba escura com a mão magra e balançou a cabeça. Não havia qualquer prova. Somente a palavra de um homem que tinha desaparecido.
Murmúrios, especulações, rumoressss.
Ele agarrava-se à grama na ilha do talvez, que se desintegrava, observando os galhos que flutuavam na sua direção. Estavam espaçados uniformemente como as placas de uma ponte de corda estendida sobre o mar interminável. No entanto, o equilíbrio seria no mínimo precário, e não havia cordas nas quais se segurar. Se tentasse pisá-las, afundaria no vasto mar de sangue.
De qualquer forma, afundaria. A ilha continuava a desmoronar. Mais cedo ou mais tarde, não restaria muito a que se segurar.
Estava cansado. Estava disposto a deixar-se ser sugado para o fundo.
Os galhos se separaram, rodopiaram e voltaram a juntar-se, e de novo rodopiaram e voltaram a formar letras toscas.
É meu instrumento.
As palavras mentem. O sangue, não.
Carniceiro filho da puta.
Tentou subir para fugir daquele lado da ilha, mas o lado oposto continuava desmoronando, desmoronando. Restava apenas o espaço suficiente para se deitar, desamparado.
Sob a superfície do mar de sangue, algo se moveu, perturbando os galhos e as palavras incessantes. Os galhos rodopiaram em volta da pequena ilha, chocaram-se contra as margens em desintegração de talvez e amontoaram-se, formando uma parede frágil e protetora.
Ele se debruçou na beira da ilha e viu o rosto flutuando, os olhos cor de safira que olhavam para o vazio, o cabelo louro aberto como um leque.
Os lábios se mexeram. Daemon.
Ele estendeu a mão e, com delicadeza, retirou o rosto do mar de sangue. Não era uma cabeça, mas somente um rosto, tão liso e desprovido de vida como uma máscara.
Os lábios voltaram a se mexer. A palavra soou ao suspiro da brisa noturna, como uma carícia. Daemon.
O rosto se dissolveu, escorreu por entre seus dedos.
Soluçando, ele tentou agarrá-lo, formar novamente aquele rosto adorado. Quanto mais tentava, mais depressa escorria pelos seus dedos, até nada restar.
Sombras no mar sanguinolento. O rosto de uma mulher, repleto de compaixão e compreensão, emoldurado por uma massa de cabelos pretos embaraçados.
Espere, disse ela. Espere. Os fios ainda não estão no lugar certo.
Desapareceu na ondulação.
Finalmente havia alguma coisa fácil para fazer, algo que não implicava dor nem medo.
Tentando arranjar uma posição confortável, iniciou a espera.
Saetan se perguntou se haveria algo de errado com as estantes atrás da mesa ou se seu mordomo estaria com algum problema, visto que Beale estava parado de pé, com o olhar fixo, há quase um minuto.
— Senhor Supremo — disse Beale, com rispidez, sem tirar o olhar das estantes.
— Beale — respondeu Saetan, cautelosamente.
— Há um Senhor da Guerra lá fora querendo vê-lo.
Saetan pôs os óculos com cuidado em cima dos papéis que cobriam a mesa, entrelaçando as mãos para que não tremessem.
— Parece com medo de alguma coisa?
Os lábios de Beale tremeram.
— Não, Senhor Supremo.
Saetan afundou-se na cadeira.
— Graças às Trevas. Pelo menos o que o traz aqui não tem nada a ver com algo que as garotas tenham feito.
— Creio que as senhoras nada têm a ver com o assunto, Senhor Supremo.
— Sendo assim, mande-o entrar.
O Senhor da Guerra que entrou no escritório era dois palmos mais alto do que Saetan, duas vezes mais largo e muito musculoso. Suas mãos eram tão grandes que poderiam esmagar o crânio de uma pessoa. Parecia um daqueles homens que arrancam aquilo que querem da terra ou de outras pessoas. Contudo, por baixo daquele corpo sólido e pesado e atrás da voz estrondosa havia um coração cheio de uma ingênua alegria, e uma alma sensível demais para suportar um tratamento mais severo.
Era Dujae. Há quinhentos anos, era o artista mais renomado de Kaeleer. Agora ele era um demônio.
Saetan reconheceu que seria hipocrisia se zangar com Dujae por vir à sua casa, uma vez que Mephis, Andulvar e Prothvar passavam boa parte do seu tempo no Paço desde que Jaenelle tinha voltado com ele, e todos tinham contato com as crianças. Ainda assim, manter o Reino das Trevas separado dos Reinos dos vivos fora sempre uma dança no fio da navalha e Saetan tinha a consciência de que, mesmo quando ainda era vivo, tinha um pé de cada lado desse fio. Naquele momento, com todas as crianças passando o verão no Paço e com o Conselho das Trevas pressionando-o por uma audiência com Jaenelle, ter de lidar com demônios que iam até Kaeleer era mais do que conseguia suportar.
— Faço audiências duas vezes por mês no Inferno para aqueles que desejam falar comigo — disse friamente. — Você não tem nada o que fazer aqui, Lord Dujae.
Dujae baixou os olhos enquanto seus dedos compridos e grossos puxavam a aba do quepe azul e puído que segurava.
— Eu sei, Senhor Supremo. Peço desculpas. Não deveria ter vindo aqui, mas não pude esperar.
Mas Saetan podia e assim o fez.
Dujae amassou o quepe com as mãos. Quando levantou os olhos, neles só havia desespero.
— Estou tão cansado, Senhor Supremo. Não há mais nada para pintar, ninguém para ensinar, com quem partilhar. Não há objetivo, alegria. Não há nada. Por favor, Senhor Supremo.
Saetan fechou os olhos, esqueceu a irritação. Às vezes, acontecia. O Inferno era um Reino frio, cruel, danado, embora tivesse sua dose de bondade. Era neste lugar que os Sangue podiam se reconciliar com suas vidas, um tempo suspenso em que se resolviam assuntos pendentes. Alguns nada faziam com essa última benesse, suportando semanas ou anos ou séculos de tédio até finalmente sumirem nas Trevas. Outros dedicavam esse tempo para desenvolver talentos que negligenciaram enquanto vivos ou aos quais tinham renunciado para poderem seguir outro caminho. Outros ainda, interrompidos antes de chegarem ao fim, continuavam como tinham vivido. Dujae morrera no seu apogeu, repentina e inesperadamente. Ao perceber que ainda podia pintar, havia aceitado ser demônio-morto com um coração feliz.
Pedia agora a Saetan que o libertasse da carne sem vida, que consumisse o que restava da sua energia psíquica, deixando que se tornasse um sussurro nas Trevas.
Às vezes, acontecia. Não era muito frequente, felizmente, mas às vezes o desejo de seguir adiante se extinguia antes da energia psíquica. Quando isso acontecia, o demônio o procurava e solicitava uma libertação rápida. E sendo ele o Senhor Supremo, honrava esses pedidos.
Saetan abriu os olhos e pestanejou vigorosamente para desanuviar a visão.
— Dujae, tem certeza?
— Tenho...
Karla entrou de rompante no escritório.
— Aquele rato de esgoto arrogante e exibido, com tanto perfume que não se aguenta, está dizendo que meu desenho não é bom! — Seus olhos se encheram de lágrimas ao atirar a prancheta de desenho em cima da mesa de Saetan.
Saetan fez desaparecer os óculos antes que a prancheta caísse em cima deles.
— É um cretino cheio de merda na cabeça — lamuriou-se Karla. — Essa não é a obra da minha vida, não é o meu talento. Era para ser divertido!
Saetan levantou-se da cadeira. Tinham sido tantos os professores que entravam e saíam nas últimas três semanas que já nem se lembrava do nome deste idiota, mas, se conseguia levar Karla às lágrimas, com certeza estaria arrasando Kalush e Morghann, sem falar em Jaenelle.
Dujae estendeu a mão para a prancheta de desenho.
— Não! — Karla tentou agarrar a prancheta, muito abalada para se lembrar de que podia fazê-la desaparecer antes de Dujae alcançá-la.
A testa de Karla bateu no braço de Dujae. Ela caiu para trás, indo de encontro a Saetan. Ele envolveu-a com os braços e rangeu os dentes, odiando a angústia que jorrava da garota.
Dujae estudou o desenho, mexendo a cabeça devagar.
— É terrível — resmungou, folheando as páginas para ver os desenhos anteriores. — Obsceno — bradou. Balançou a prancheta na direção de Karla. — Você o chamou de rato de esgoto? É muito bondosa, senhora. É um...
— Dujae — advertiu Saetan, primeiro porque provavelmente ensinaria a Karla uma expressão bastante forte, e depois porque sentiu que Karla havia se animado.
Dujae olhou para Saetan e respirou fundo.
— Não é um bom instrutor — concluiu de modo pouco convincente.
Karla fungou.
— Você também acha que meus desenhos não são bons.
Dujae folheou as páginas até o último esboço.
— O que é isto? — perguntou, batendo com o dedo no papel.
Karla endireitou os ombros e semicerrou os olhos.
Saetan reprimiu um murmúrio de desagrado e se preparou.
— É uma jarra — disse com frieza.
— Jarra. Bah! — Dujae arrancou a página da prancheta, amassou-a e atirou-a por cima do ombro. Apontou para Karla.
Será que Dujae tinha noção de como seu dedo estava perto dos dentes de Karla?
— Você é Rainha, não é? — continuou Dujae, bem alto. — Dedica-se a esta ocupação por diversão, depois de terminarem as aulas difíceis de Arte, não é? Faz isso porque as senhoras devem aprender as mais variadas habilidades para se tornarem boas Rainhas, não é? Você não faz desenhos educadinhos. — Encolheu os ombros, contraiu o rosto, pousou o queixo no pulso e fez pequenos movimentos, como se estivesse rabiscando. — Bah! — Arrancou Karla dos braços de Saetan, fez a menina se virar, agarrou sua a mão e começou a fazer movimentos amplos, circulares. — Há fogo no seu coração, não é? Esse fogo precisa de carvão e de um grande bloco para se expressar. Depois, quando quiser desenhar uma jarra, irá desenhar uma jarra.
— M-mas... — balbuciou Karla, observando sua mão fazendo círculos.
— Aquela jarra que você tentou desenhar é a jarra de outra pessoa. Utilize-a como modelo. Os modelos são úteis. Mas depois, desenhe a SUA JARRA, aquela que revelar o seu fogo, a que disser sou feiticeira, sou Rainha, sou... — Dujae hesitou, por fim.
— ... Karla — disse ela, mansamente.
— KARLA! — bradou Dujae.
— O que está acontecendo? — perguntou Jaenelle da soleira da porta. Gabrielle estava ao seu lado.
Saetan apoiou-se no canto da mesa e cruzou os braços, conformado com o que quer que suas queridinhas estivessem prestes a fazer.
Ao ver as outras garotas, Dujae soltou Karla e recuou.
— Temos carvão? — perguntou Karla, limpando as lágrimas.
— Temos, mas Lord Chato diz que o carvão é imundo e inadequado para uma dama — disse Gabrielle com sarcasmo na voz.
Saetan olhou fixamente para Gabrielle e perguntou-se que tipo de idiota ele mesmo teria contratado como professor de artes.
Foi nesse momento que sentiu-se tonto. Agarrou-se à mesa, esforçando-se para não perder os sentidos. Isso nunca havia acontecido. Seria uma péssima hora para começar a acontecer.
Com as outras garotas em volta, não havia reconhecido o triângulo de poder. Karla, Gabrielle, Jaenelle. Três Rainhas poderosas que eram, ao mesmo tempo, Viúvas Negras.
Que as Trevas sejam misericordiosas, pensou. Esse trio seria capaz de despedaçar qualquer coisa ou qualquer pessoa — ou construir o que quisesse.
— Senhor Supremo?
Saetan pestanejou. Respirou fundo. Os pulmões ainda funcionavam, de certo modo. Tendo agora a certeza de que não cairia para o lado, olhou em volta. Dujae era o único que restava na sala.
Dujae retorceu o quepe.
— Eu não queria interferir.
— Agora é tarde demais — resmungou Saetan, entre dentes.
Na porta do escritório, apareceram três cabeças louras.
— Ei — disse Karla. — Já temos o carvão e as pranchetas grandes. Você não vem?
Dujae continuou a retorcer o quepe.
— Não posso, senhoras.
— E por que não? — perguntou Jaenelle, enquanto as três entravam no escritório.
Dujae olhou suplicante para Saetan, que se recusava a olhar para outra coisa além dos próprios sapatos.
— Eu... sou Dujae, senhora.
Jaenelle pareceu satisfeita.
— Você pintou a Descida aos Infernos.
Dujae arregalou os olhos.
— Por que não nos dá aulas de desenho? — perguntou Gabrielle.
— Sou demônio.
Silêncio.
Karla inclinou os quadris e cruzou os braços.
— Não me digam que há uma regra que só permite o ensino do desenho à luz do dia. Além disso, o sol já se levantou e você está aqui.
— Isso se deve ao fato de o Paço reter energia negra suficiente para que a luz do sol não incomode os demônios-mortos quando estão aqui — explicou Jaenelle.
— Sendo assim, não há problema — disse Karla
— E, se não quiser vir aqui durante o dia, velas e bolas de fogo encantado poderiam iluminar uma sala de maneira satisafatória — disse Gabrielle.
Dujae olhou, impotente, para Saetan, que continuava examinando os sapatos.
— Seu ego é tão grande que você se acha bom demais para dar aulas a umas feiticeirazinhas? — perguntou Karla, com uma doçura maliciosa.
— Grande? Não, não, senhoras, seria uma honra, mas...
— Mas? — perguntou Jaenelle suavemente, com sua voz sombria.
Dujae sentiu calafrios. Saetan se arrepiou.
— Sou demônio.
Silêncio.
Por fim, Karla bufou.
— Se não quer nos dar aulas, basta dizer, mas pare de inventar desculpas esfarrapadas.
E dito isto foram embora, fechando a porta do escritório ao sair.
Dujae retorceu o quepe.
Saetan fitava os sapatos.
— Dujae — disse, calmamente —, é preciso ter uma personalidade forte, embora sensível, para lidar com estas jovens damas, para não falar de talento. Caso queira se tornar professor de artes delas, posso lhe pagar um salário que, reconheço, não será de grande utilidade no Reino das Sombras, ou pode adicionar os materiais que quiser para seus próprios projetos à lista de materiais que vai elaborar para elas. No entanto, se decidir recusar — olhou Dujae nos olhos —, você pode ir até lá e explicar isso a elas pessoalmente.
O pânico invadiu os olhos de Dujae. Só havia uma porta para sair do escritório.
— Mas, Senhor Supremo, sou demônio.
— Elas não pareceram se importar, não é?
Dujae cedeu.
— Não. — Em seguida, deu de ombros e sorriu. — Há muito tempo não pinto retratos, e elas têm rostos interessantes, não é verdade? E muito fogo para deperdiçar em desenhos delicados.
Saetan aguardou meia hora antes de se dirigir lentamente ao salão principal. Mantendo-se à distância, observou o grupo.
As garotas estavam sentadas no chão, em círculo, desenhando uma natureza-morta composta por uma jarra, uma maçã e uma caixinha de joias. Dujae estava agachado junto a Kalush, explicando alguma coisa num murmúrio surdo, e depois se virou para Morghann, que tinha um pedaço de carvão suspenso sobre a prancheta.
Jaenelle pousou a prancheta, limpou os dedos com a toalha que dividia com Karla e foi até Saetan, sorridente, uma criança-mulher encantadora e encantada com seu próprio esforço criativo.
Saetan colocou o braço em volta da cintura da filha.
— Diga a verdade, criança-feiticeira — disse baixinho. — O outro professor era realmente fraco?
Jaenelle deslizou o dedo pela corrente de ouro que continha a Joia Vermelha de Direito por Progenitura de Saetan.
— Não era adequado para nós, para nenhuma de nós, e...
Não a deixaria baixar a cabeça, não a deixaria esconder os olhos que estava aprendendo a decifrar tão bem, que tanto lhe transmitiam.
— E?
— Tinha medo de mim — sussurrou. — Não era só de mim — corrigiu rapidamente. — Não gostava de conviver com Rainhas. Até Kalush o incomodava. Por isso, estava sempre dizendo coisas do tipo: “damas”, façam isto e “damas”, não façam aquilo. Fogo do Inferno, Saetan, não somos “damas”, não queremos ser “damas”. Somos feiticeiras.
Ele envolveu-a nos braços.
— Por que não me disse antes? — Parecia que esta pergunta estava surgindo com muita frequência, ultimamente.
Jaenelle deu de ombros.
— Também não chegamos a dizer que os professores de música e de dança partiram subitamente esta semana.
Saetan soltou um riso abafado.
— Bom, de qualquer forma parece que aulas e verão não são uma combinação muito adequada. — Beijou seus cabelos. — Dujae veio até aqui porque queria ser libertado.
— Não era bem isso que ele queria. Só precisava de alguma coisa que voltasse a despertar seu interesse.
Saetan observou Dujae andando em volta do círculo, gesticulando, encorajando, fazendo caretas enquanto olhava para o desenho de Karla, para depois dizer algo que a fez rir. Em seus olhos já não havia mais desespero, já não restavam indícios do sofrimento que o tinha levado a procurar o Senhor Supremo.
— Não somos titereiros, criança-feiticeira — murmurou Saetan. — Somos poderosos, mas temos de ter cuidado ao manipular os fios para fazer com que outros dancem.
— Depende da razão que nos leva a puxar os fios, não acha? — Olhou-o com aqueles olhos antigos cor de safira e sorriu. — Além disso, apenas fizemos pouco caso de uma desculpa tola. Se fosse mesmo a hora dele, teria ido.
Voltou ao seu lugar no chão, com Karla à direita e Gabrielle à esquerda.
Saetan regressou ao escritório e aqueceu uma taça de yarbarah.
Titereiros. Manipuladores. Hekatah e seus esquemas. Jaenelle e sua sensibilidade em relação a outros corações. Como era delicada e frágil aquela linha, em que a única diferença era o propósito.
Uma linha fina, frágil.
E agora?
Jaenelle pegou um frasquinho e bateu com o dedo, fazendo cair três pequenos grãos de cor azul arroxeada na grande tigela de vidro sobre a mesa de trabalho.
— Por que os membros do Conselho das Trevas estão vindo aqui?
Saetan fitou o líquido espesso e efervescente que preenchia um terço da tigela, esperando sinceramente que não fosse um novo tônico.
— Como foi o Conselho que me concedeu sua tutela legal, querem ver como vivemos.
— Se são membros do Conselho, também são Sangue e usam Joias. Deveriam saber como vivemos. — Jaenelle pegou um frasquinho com pó vermelho e ergueu-o contra a luz.
Saetan cruzou os braços e se encostou na parede. Não queria nem podia lhe contar sobre o último “pedido” do Conselho. Sua forte insistência havia tornado fácil ler as entrelinhas. Não vinham apenas fazer uma breve visita a um tutor e à menor a seu cargo. Vinham julgá-lo.
— Não preciso usar vestido, não é? — resmungou Jaenelle, mergulhando o dedo mindinho no frasco com o pó vermelho. Usando a unha como colher, lançou o pó na tigela.
Saetan mordeu a língua antes de deixar escapar a mentira.
— Não. Disseram que queriam ver uma tarde normal.
Jaenelle olhou por cima do ombro.
— Alguma vez tivemos uma tarde normal?
— Não — respondeu Saetan, desoladamente. — Passamos tarde típicas, mas acho que ninguém as consideraria normais.
O riso prateado e aveludado preencheu o ambiente.
— Pobre papai. Bem, já que não tenho de me arrumar nem de sorrir afetadamente, tentarei não ofender suas frágeis sensibilidades. — Deu a ele um frasquinho de pó preto. — Acrescente uma pitada à tigela e se afaste.
O estômago de Saetan estava se revirando.
— E depois o que acontece?
Jaenelle juntou os dedos.
— Bem, se eu tiver misturado os pós na proporção correta, vai aparecer uma ilusão impressionante.
Saetan olhou para a filha que sorria nervosamente para a tigela na mesa e, em seguida, para o frasquinho que segurava na mão.
— E se a proporçõão estiver errada?
— A mesa vai explodir.
Uma hora depois, deitado numa banheira de água quente tentando pôr fim à dor nos músculos, sentia-se compelido a lhe dar as notas mais altas pelos rápidos reflexos e pela força dos escudos de proteção. Tirando o fato de tê-los jogado no chão, a explosão não tinha danificado nada no escritório — com exceção da tigela de vidro e da mesa. E ele tinha de admitir que a forma que havia começado a emerigir da tigela era impressionante.
Dali a dois dias, o Conselho das Trevas visitaria o Paço. Pretendia tratá-los com cortesia e tolerar sua presença, uma vez que, no fim de contas, não importava o que pensavam. Ninguém tiraria Jaenelle dali. Se o Conselho tivesse de aprender essa lição mais uma vez, assim seria.
Duvidava que as coisas chegassem a esse ponto. Recordando o assombro entre o momento em que a forma começou a amergir da neblina e a mesa explodiu, soltou um gemido que se transformou num riso abafado. O Conselho das Trevas queria passar uma tarde normal com Jaenelle?
Os pobres idiotas não sobreviveriam.
Tudo começou a dar errado no momento em que dois membros do Conselho das Trevas entraram pela porta principal, olharam em volta e estremeceram.
O Paço dos SaDiablo era uma enorme construção cinza-escura que se assomava sobre o terreno e lançava uma extensa sombra. Sua imponência fora planejada, mas não a presença de um mordomo de Joia Vermelha e rosto inflexível que aterrorizava as visitas antes mesmo de atravessarem a soleira da porta. Quanto ao frio que pairava no ar... Helene tinha dito a ele, com uma rígida cortesia, o que achava de o Conselho das Trevas se intrometer e bisbilhotar nos seus domínios, e todos os criados haviam passado o dia fugindo da cozinha e da Sra. Beale.
As casas de Joias Escuras sempre tiveram criados dos Sangue, mas quando todas as feiticeiras da casa decidem manifestar seu desagrado, a expressão “tratamento frio” adquire um novo significado.
— Boa tarde — disse Saetan, avançando para cumprimentar os dois homens.
O mais velho fez uma reverência.
— Agradecemos por nos receber, Senhor Supremo. Eu sou Lord Magstrom, e este é Lord Friall.
Saetan gostou de Lord Magstrom. Um homem nos seus últimos anos, com um rosto bondoso, cabelos brancos e olhos azuis que provavelmente cintilavam na maior parte do tempo. Esses olhos mostravam agora seriedade, embora não indicassem condenação. Lord Magstrom, pelo menos, basearia sua decisão na própria honra e integridade.
Lord Friall, por outro lado, já tinha tomado uma decisão. Com um aspecto magro, provocado pelo excesso de gel e acessórios, não parava de olhar em volta com um ar de repugnância enquanto batia levemente nos lábios com um lenço rendado perfumado.
Saetan conduziu-os à sala de visitas formal, à direita do salão principal. Era uma sala ampla, mas a mobília estava arrumada de modo que altas divisórias pintadas pudessem ser trazidas para dividi-la, o que lhe dava um aspecto aconchegante. As paredes de gesso estavam pintadas de marfim. Todos os quadros eram aquarelas tranquilas. A mobília era escura, embora não fosse pesada, e estava disposta de forma confortável sobre tapetes de Dharo de padrões discretos. Numa mesa junto às janelas, havia um ramo de flores frescas. Saetan observou Lord Magstrom percorrendo a sala com os olhos, de forma diplomática, e percebeu que o homem estava tão satisfeito com a decoração de bom gosto quanto ele próprio.
— É uma sala encantadora, Senhor Supremo — disse Lord Magstrom, aceitando o lugar que lhe foi oferecido. — É usada com frequência?
Saetan enfiou as mãos nos bolsos do suéter de lã.
— Não — disse, após um breve, embora perceptível, momento de hesitação. — Não recebemos muitas visitas formais. — Virou-se ao perceber um movimento à porta. — Ah, Beale.
O mordomo estava parado na entrada da sala, de mãos vazias.
Saetan franziu a sobrancelha.
— Pode servir alguma coisa aos nossos convidados?
— Cuidarei disso, Senhor Supremo. — Beale fez uma reverência e retirou-se, deixando a porta aberta.
Saetan sentiu-se tentado a fechar a porta, mas não fez isso. Não era necessário forçar Beale a se rebaixar, tendo que escutar pelo buraco da fechadura.
— Viemos num horário inconveniente? — perguntou Lord Friall, lançando um olhar significativo para as roupas descontraídas de Saetan, enquanto continuava a bater com o lenço perfumado nos lábios.
O perfume não vai ajudar a melhorar aquilo que o está incomodando, Lord Friall, pensou Saetan friamente. Meu odor psíquico se infiltra até mesmo nas pedras do Paço. Saetan olhou de relance para a camisa branca de algodão desabotoada o suficiente para não ocultar por inteiro a Joia Negra em volta do pescoço, para as calças pretas de algodão que já estavam amarrotadas e para o suéter de lã.
— Imagino que esperassem uma reunião mais formal. Mas como parece que o Conselho queria conhecer nosso modo de vida habitual, essas duas pretensões não eram compatíveis.
— Certamente... — começou Friall, sendo interrompido por Beale, que entrava com uma bandeja.
Saetan observou a bandeja. Era parcimoniosa em relação aos padrões habituais da Sra. Beale. Tinha muitos sanduíches, mas nenhum bolinho de avelã ou tortas de especiarias.
— Será que a Sra. Beale poderia...
Beale pousou a bandeja na mesa com um ruído quase inaudível.
— Não — corrigiu-se Saetan insipidamente —, acho que não. — Serviu o café e ofereceu os sanduíches, tentando ignorar o brilho nos olhos de Lord Magstrom. Instalando-se numa da pontas do sofá, de onde podia vigiar a porta, sorriu para Lord Friall, perguntando-se se seus dentes cerrados sobreviveriam àquela tarde. — O que você dizia?
— Claro...
A porta da frente fechou-se com um estrondo.
Detectando o odor psíquico e as correntes subterrâneas emocionais, Saetan murmurou uma ordem severa, conformando-se com a catástrofe.
Passado um momento, Karla espreitou junto à porta.
— Beijos — disse, esforçando-se para parecer inocente.
Como já havia enfrentado vários feitiços da assembleia que tinham dado errado, Karla tentando parecer inocente era algo que o assustava bastante. No entanto, com alguma sorte, talvez nunca viesse a saber o que ela estava arquitetando.
Karla apontou para o teto.
— Estou atrasada para a aula de artes.
Saetan gemeu baixinho e esfregou as têmporas. Não tinha se lembrado de dizer a Dujae que não viesse hoje?
— Peça para Jaenelle descer, por favor. Estes senhores desejam vê-la.
Os gélidos olhos azuis perscrutaram Magstrom e Friall.
— Por quê? — Apontou com o queixo para Lord Magstrom. — O Vovô parece inofensivo, mas por que ela iria querer falar com aquele idiota?
Friall cuspiu o café.
Lord Magstrom ergueu a xícara para esconder o sorriso.
Saetan tinha certeza de que metade dos seus dentes iria se estilhaçar.
— Agora.
— Ah, está bem. Beijos — disse Karla e foi embora.
— Lady Karla é amiga de sua tutelada? — perguntou Lord Magstrom calmamente.
— Sim — os lábios de Saetan se contrairam. — Ela e outros amigos de Jaenelle estão passando o verão aqui... se eu conseguir sobreviver.
Lord Magstrom pestanejou.
— É uma vadiazinha — cuspiu Friall, dando batidinhas nos lábios com o lenço. — Não deve ser uma companhia adequada para a menina.
— Karla é Rainha e Viúva Negra natural — disse Saetan com frieza —, assim como Curandeira. É uma jovem exuberante e admirável. Tal como minha filha.
Reparou no olhar estático de Lord Magstrom. O Conselho não teria verificado o registro na Fortaleza? Assim que Jaenelle voltara, ele próprio e Geoffrey prepararam seu registro. Concordaram em não incluir nele o Território — ou o Reino — onde nascera ou qualquer coisa que pudesse ligá-la à família em Chaillot, mas registraram sua Joia de Direito por Progenitura como Negra. O Conselho não saberia com quem e com o que estava lidando? Ou a Magistrada teria optado por nada revelar a estes homens?
Lord Magstrom aceitou outra xícara de café.
— Sua... filha... é Rainha Viúva Negra? E Curandeira?
— Sim — respondeu Saetan. — O Conselho não mencionou esses fatos?
Lord Magstrom parecia incomodado.
— Não, não fez nenhuma referência. Talvez...
Um forte grito de mulher sobressaltou os três homens. Enquanto Lord Magstrom tentava limpar o café derramado, murmurando pedidos de desculpas, um jovem lobo saltou para a sala de visitas. Desviando-se do humano aos gritos, pulou para trás do sofá, surgiu do outro lado e, por fim, veio se encostar nas pernas de Saetan, com a cabeça e uma das patas no colo e uma expressão de súplica nos olhos.
Saetan lembrou que, comparada à maior parte dos dias, aquela era uma tarde calma. Afagou a cabeça do jovem lobo e suspirou.
— O que foi que você fez desta vez?
— Eu digo o que fez. — Uma mulher com o rosto avermelhado apareceu à soleira da sala de visitas.
Friall choramingou.
O lobo ganiu.
Lord Magstrom olhava boquiaberto.
Mãe Noite, Mãe Noite, Mãe Noite.
— Ah, Sra. Beale — disse Saetan calmamente, enquanto enfiava uma palma da mão úmida no pelo do lobo.
A Sra. Beale não era gorda. Era apenas... volumosa. E não precisava da Arte para erguer um saco de farinha de vinte quilos com uma única mão.
A Sra. Beale apontou o dedo para o lobo.
— Esse aquecedor de mãos ambulante acabou de comer os frangos que eu estava preparando para o jantar de hoje.
Saetan olhou para o lobo.
— Aquecedor malvado — disse placidamente.
O lobo ganiu, a ponta do rabo varrendo o chão.
Saetan suspirou e prestou atenção novamente na mulher irritada.
— Se não der mais tempo para preparar outros dos nossos, que tal mandar alguém ao açougue em Halaway?
A Sra. Beale ficou ainda mais irritada, e disse, numa voz que fez sacudir as janelas:
— Aqueles frangos estavam marinando no meu molho especial de vinho de ameixa desde ontem à noite.
— Deviam estar saborosos — murmurou Saetan.
O lobo lambeu os beiços e ladrou baixinho.
A Sra. Beale rosnou.
— E se for uma carne diferente? — sugeriu Saetan. — Tenho certeza de que o nosso jovem amigo poderia encontrar uns coelhos.
— Coelhos? — A Sra. Beale gesticulou, desferindo golpes no ar em várias direções. — E devo rechear coelhos com meu recheio de nozes e arroz?
— Não, claro que não. Que bobagem a minha. Um guisado, quem sabe? Reparei que semana passada Jaenelle e Karla repetiram o guisado.
— Também reparei que as tigelas voltaram vazias — resmungou a Sra. Beale. Apontou para o lobo. — Dois coelhos. E que não sejam magricelas. — Deu meia-volta e foi embora num passo pesado.
Lord Magstrom suspirou ruidosamente.
Lord Friall tropeçou na cadeira.
Saetan imaginou se ainda teria os ossos das pernas. Aquela estava virando uma tarde normal, afinal de contas. Acariciou o lobo atrás das orelhas.
— Entendeu? — Levantou dois dedos. — Dois coelhinhos rechonchudos para a Sra. Beale. Tarl disse que há muitos engordando na horta. — Afagou-o uma última vez. — Vá lá.
Depois de encostar o focinho na mão de Saetan, o lobo saiu da sala.
— Você permite que uma mulher dessas trabalhe aqui, com crianças na casa? — cuspiu Friall. — E tem um lobo como animal de estimação?
— A Sra. Beale é uma excelente cozinheira — respondeu Saetan, com calma. Além disso, acrescentou em silêncio, quem teria coragem de despedi-la? — E o lobo não é um animal de estimação. É nosso parente. Vivem conosco vários deles. Outro sanduíche, Lord Magstrom?
Parecendo um pouco aturdido, Lord Magstrom pegou outro sanduíche, com olhar fixo e colocou no seu prato.
— O que está acontecendo? — perguntou Jaenelle. Sorrindo educadamente para Magstrom e Friall, sentou-se ao lado de Saetan, no sofá.
— O jantar vai ser guisado de coelho em vez de frango.
— Ah. Agora entendo a Sra. Beale. — Seus lábios se crisparam. — Acho que preciso explicar a territorialidade dos humanos aos lobos para evitar outros problemas.
— Pelo menos, o território da Sra. Beale — disse Saetan, sorrindo para a filha de cabelo louro, ciente de que, por estar sentada tão próximo dele, poderia dar margem a interpretações equivocadas.
— É esse o seu vestuário habitual, Lady Angelline? — questionou Lord Friall, voltando às batidinhas nos lábios com o lenço.
Jaenelle olhou para as calças largas que tinha comprado de um dos jardineiros e para a camisa de seda branca que Saetan, involuntariamente, havia doado ao seu guarda-roupa. Pegou uma trança solta e examinou as penas, conchas e pequenas corolas que pendiam das fitas de couro entrelaçadas em seu cabelo. Em seguida, dirigiu o olhar a Friall.
— Às vezes — disse, seca. — E você, sempre se veste dessa forma?
— Mas é claro — respondeu Friall, altivo.
— Por quê?
Friall olhou para ela, atônito.
*Lembre-se da frágil sensibilidade deles, criança-feiticeira.*
*Que se danem as frágeis sensibilidades.*
Saetan estremeceu. O estado de espírito de Jaenelle havia mudado.
Colocou o braço em volta dos ombros dela.
— Lord Magstrom gostaria de lhe fazer algumas perguntas. — Com alguma sorte, o velho Senhor da Guerra teria sentido as correntes emocionais na sala e seria prudente.
— Antes de começar o interrogatório, posso lhe fazer uma pergunta?
Lord Magstrom brincava com a xícara.
— Não é um interrogatório, senhora — disse afavelmente.
— Não? — retrucou ela, com sua voz sombria.
Magstrom se arrepiou. Sua mão tremia ao colocar a xícara na mesa.
Na esperança de distraí-la, Saetan lamentou-se dramaticamente:
— O que quer me perguntar?
Os olhos azul-safira o examinaram. A apreensão se transformou num divertimento exasperado.
— Não é nada de mais.
— Isso foi o que você disse da última vez.
Jaenelle deu seu melhor sorriso, entrando no jogo.
— Dujae quer saber se você pode nos dar uma parede.
Saetan tentou não entrar em pânico.
— Uma parede? Dujae quer uma das minhas paredes?
— Sim.
Saetan apertou a têmpora com as pontas dos dedos. Alguma coisa estava obstruindo sua garganta. Não sabia se era um berro ou uma gargalhada.
— E para que Dujae quer uma parede?
— Vamos pintá-la. — Refletiu por um momento. — Bem, acho que dizer que vamos pintá-la não é muito correto. Vamos desenhar na parede. Dujae diz que precisamos pensar de maneira mais ampla e a única forma de fazer isso é usando uma tela bem extensa. E a única suficientemente grande é uma parede.
Hum-hum.
— Compreendo. — Saetan olhou à sua volta para a sala elegantemente decorada e suspirou. — Há muitos cômodos vazios. Pode escolher um na mesma ala do salão de jogos.
Jaenelle fez uma careta.
— Não temos um salão de jogos.
Saetan puxou uma das tranças da garota.
— Você não diria isso se estivesse na sala de baixo enquanto vocês estão lá... fazendo sabe-se lá o quê.
Jaenelle olhou para ele com um ar de indulgência divertida.
— Obrigada, Papai. — Beijou-o na face e saltou do sofá.
Saetan puxou-a pela parte de trás da calça e sentou-a a seu lado.
— Dujae pode esperar um pouco. Lord Magstrom tem algumas perguntas.
O fogo gélido voltou aos olhos de Jaenelle, mas ela se sentou junto a Saetan no sofá, as mãos recatadamente pousadas no colo, e olhou para os dois homens com educada impaciência.
Saetan acenou com a cabeça para Lord Magstrom.
Com as mãos pousadas nos braços da cadeira, Lord Magstrom sorriu para Jaenelle.
— Gosta muito das artes, Lady Angelline? — perguntou amavelmente. — Tenho uma neta mais ou menos da sua idade que adora “brincar com as cores”, como ela diz.
A alusão a uma neta fez com que Jaenelle olhasse para Lord Magstrom com interesse.
— Gosto de desenhar, mas não tanto como de música — disse, depois de pensar um pouco. — Muito mais do que matemática. — Fez cara feia. — Bem, qualquer coisa é melhor do que matemática.
— Arnora pensa o mesmo da matemática — disse Lord Magstrom com seriedade, embora seus olhos cintilassem.
Os lábios de Jaenelle se contraíram.
— Sério? Uma feiticeira sensata.
— De que outras matérias você gosta?
— Aprender sobre plantas e jardinagem e curas e armas e equitação, tudo isso é divertido... e línguas. E dança. Dançar é maravilhoso, não acha? E claro, a Arte, mas não é bem uma aula, não é?
— Não é bem uma aula? — Lord Magstrom parecia surpreso. Aceitou outra xícara de café. — Com tanta coisa para estudar, não lhe sobra muito tempo para o convívio social — disse, devagar.
Jaenelle franziu a sobrancelha e olhou para Saetan.
— Creio que Lord Magstrom está se referindo a bailes e outras reuniões públicas — disse, cautelosamente.
Seu olhar carregado se acentuou.
— Para que sair para dançar? Aqui há gente suficiente para tocar instrumentos e dançamos sempre que queremos. Além disso, prometi a Morghann que iria passar alguns dias com ela em Scelt, na época das festas das colheitas, e a família de Kalush me convidou para ir ao teatro com eles, e Gabrielle...
— Dujae — disse Friall, num tom tenso. — Dujae está ensinando você a desenhar?
Saetan apertou o ombro de Jaenelle, mas ela os encolheu para que ele parasse.
— Sim, Dujae está me ensinando a desenhar. — O frio estava de volta à sua voz.
— Dujae está morto.
— Há séculos.
Friall friccionou os lábios delicadamente.
— Está estudando desenho com um demônio?
— Só porque é um demônio não significa que seja um artista inferior.
— Não deixa de ser um demônio.
Jaenelle deu de ombros com indiferença.
— Assim como Char e Titian e muitos outros dos meus amigos. Quem considero meu amigo não é da sua conta, Lord Friall.
— Não é da minha conta — disse Friall, furioso. — Mas com certeza é da conta do Conselho. Para começo de conversa, foi numa demonstração de boa-fé que o Conselho permitiu que algo como o Senhor Supremo ficasse com uma menina...
— Algo como o Senhor Supremo?
— ... e maculasse as sensibilidades de uma jovem menina, forçando-a a ter relações com demônios...
— Ele nunca me força a nada. Ninguém me força a nada.
— ... e a se entregar aos seus atos libidinosos...
A sala explodiu.
Não havia tempo para pensar nem para se proteger da fúria que ascendia do abismo e os envolvia.
Extraindo toda a energia que conseguia das Joias Negras, Saetan se jogou sobre Jaenelle enquanto ela ia para cima de Friall. Enquanto lutava para se libertar e alcançar o Senhor da Guerra, que olhava espantado para ela, em choque, emitia sons selvagens e atrozes, enquanto os vidros das janelas se estilhaçavam, os quadros caíam no chão, o gesso se rachava e, ao mesmo tempo, os raios psíquicos atingiam as paredes e a mobília era despedaçada.
Aguentando firmemente, Saetan ignorou a sala, utilizando as forças para proteger os outros homens, servindo como amortecedor entre a raiva de Jaenelle e os visitantes. Não estava tentando feri-lo. Era uma ironia espantosa. Estava apenas tentando ultrapassar as barreiras que Saetan colocara entre ela e Friall. Abriu a mente, com a intenção de ir contra as barreiras interiores de Jaenelle, forçando-a a sentir um pouco da dor a que o estava sujeitando. Mas as barreiras tinham desaparecido. Somente o abismo e uma enorme queda destruidora de mentes.
*Por favor, criança-feiticeira. Por favor!*
Ela veio até Saetan numa velocidade assustadora, envolvendo-o numa bruma negra, para depois subir com ele até a profundidade da Joia Vermelha antes de deslizar de volta para o confortável refúgio do abismo.
Silêncio.
Quietude.
A cabeça de Saetan latejava implacavelmente. Sua língua doía. A boca estava cheia de sangue. Sentia-se fraco demais para se mover. Contudo, a mente estava intacta.
Jaenelle o amava. Não o machucaria deliberadamente. Ela o amava.
Usando esse pensamento para consolar a mente ferida e o corpo dolorido, como se os envolvesse um cobertor quente, Saetan se deixou apagar.
Lord Magstrom acordou com uma bofetada não muito afável. Piscando os olhos para desanuviar a visão, concentrou-se nas asas negras e no rosto austero.
— Bebam isto — disse o eyrieno com rispidez, enfiando um copo nas mãos de Magstrom. Recuou, com os punhos apoiados nos quadris. — Seu companheiro está finalmente voltando a si. Tem sorte de ainda estar aqui.
Magstrom bebeu, agradecido, e olhou em volta. À exceção das cadeiras onde ele e Friall tinham estado sentados, a sala estava vazia. As divisórias pintadas tinham desaparecido. A mobília do outro lado estava caída, mas intacta. Se não fossem as faixas negras nas paredes cor de marfim que pareciam relâmpagos dirigindo-se à terra, Talvez pudesse ter pensado que haviam sido levados para uma sala diferente, que teria sido uma espécie de alucinação.
Ouvira falar de Andulvar Yaslana, o Príncipe Demônio. Tinha consciência de que o fato de se sentir reconfortado por ter ao lado um demônio de Joia Cinza-Ébano era indício do quanto estava apavorado.
— E o Senhor Supremo? — perguntou.
Andulvar arregalou os olhos.
— Por pouco não estilhaçou a Negra tentando manter-lôs a salvo. Está exausto, mas irá se recuperar após alguns dias de repouso. — Depois resfolegou. — Além disso, servirá de desculpa para a garota medicá-lo com um dos seus tônicos fortificantes, e, graças às Trevas, isso fará com que não pense muito no que aconteceu.
— E o que aconteceu realmente?
Andulvar indicou Friall com a cabeça. Beale ainda estava passando sais de cheiro sob o nariz de Friall, embora a expressão do mordomo sugerisse claramente que preferia atirar o intruso porta fora e acabar com aquilo.
— Ele a irritou. Não foi uma boa ideia.
— Quer dizer que ela é instável? Perigosa?
Andulvar abriu lentamente as asas negras. Fazia-o parecer colossal. E nos seus olhos dourados não havia vestígio de preocupação, apenas uma ameaça muda.
— Pelo simples fato de sermos Sangue, somos todos perigosos, Lord Magstrom — rosnou Andulvar suavemente. — Jaenelle pertence à família e nós pertencemos a ela. Nunca se esqueça disto. — Fechou as asas e agachou-se junto à cadeira de Magstrom. — Mas, na realidade, Saetan é a única coisa entre você e ela. Também não se esqueça disto.
Uma hora mais tarde, a carruagem de Magstrom e Friall deixou a entrada de veículos bem-cuidada e desceu até a estrada que passava por Halaway.
Era uma tarde do fim do verão e estava escuro. As flores selvagens pintavam os campos com cores vivas. As árvores espreguiçavam os ramos sobre a estrada, criando túneis frescos. Era uma bela terra, ternamente cuidada, vigiada há milhares de anos pelo Paço dos SaDiablo e pelo homem que governava o lugar.
Vigiada e protegida.
Magstrom sentiu um calafrio. Era um Senhor da Guerra com Joias Azul-Celeste. Desempenhava as funções de vigilante do povoado onde nascera e vivia feliz. Até ser convidado a integrar o Conselho das Trevas, suas relações com os que usavam Joias mais escuras haviam sido diplomáticas e, felizmente, raras. Os Sangue de Goth, a capital da Pequena Terreille, estavam interessados nas intrigas de corte e não num povoado na margem de um rio com vista para as terras arborizadas dos Dea al Mon.
Mas agora uma cortina fora ligeiramente afastada, e Magstrom havia testemunhado o poder negro, o verdadeiro poder negro.
Saetan é a única coisa entre você e ela.
A garota tinha de permanecer com o Senhor Supremo, pensava Magstrom enquanto a carruagem seguia por Halaway até a teia de desembarque onde iriam pegar os Ventos para casa. Para o bem de todos, tinha de ser assim.
Saetan acordou lentamente quando alguém se sentou aos pés da cama. Resmungando, apoiou-se num cotovelo e tocou no candeeiro da mesa de cabeceira, que se acendeu o suficiente para lançar uma luz tênue sobre o quarto.
Jaenelle estava sentada, de pernas cruzadas, na cama, com os olhos perturbados e o rosto aflito e pálido. Estendeu-lhe um copo.
— Beba. Isto irá ajudá-lo a acalmar os nervos.
Bebeu um gole e depois outro. Tinha gosto de luar, calor de verão e água fresca.
— É delicioso, criança-feiticeira. Você também devia beber um copo.
— Já bebi dois. — Tentou sorrir, embora sem sucesso. Passou a mão no cabelo e mordeu o lábio inferior.
— Saetan, não gostei do que aconteceu hoje. Não gostei do que... quase aconteceu.
Ele esvaziou o copo, colocou-o na mesinha de cabeceira e pegou a mão da filha.
— Fico feliz. Matar nunca deveria ser um ato fácil, criança-feiticeira. Sua alma ficaria marcada por uma cicatriz. Às vezes é necessário. Às vezes não temos escolha, se estamos defendendo o que amamos. Mas, se existir uma alternativa, opte por ela.
— Vieram aqui para condená-lo, para ofendê-lo. Não tinham esse direito.
— Não seria a primeira vez que seria insultado por idiotas. Dá para sobreviver.
Mesmo sob a tênue luz, viu que os olhos de Jaenelle mudaram.
— Mesmo que ele tenha usado palavras em vez de uma faca, você não pode negar, Saetan, ele o ofendeu.
— Claro que me ofendeu — rebateu Saetan. — Ser acusado de... — Fechou os olhos e apertou a mão de Jaenelle. — Não tenho paciência para idiotas, Jaenelle, mas também não os mato por causa disso. Simplesmente mantenho-os afastados da minha vida. — Ele se sentou e pegou a outra mão de Jaenelle. — Sou sua espada e seu escudo, Senhora. Você não precisa matar.
A Feiticeira o examinou com seus olhos cor de safira, antigos e perturbados.
— Você vai ficar com as cicatrizes na sua alma para que a minha permaneça intacta?
— Tudo tem um preço — disse, com delicadeza. — Esse tipo de cicatriz faz parte de ser um Príncipe dos Senhores da Guerra. Você está numa encruzilhada, criança-feiticeira. Pode usar seu poder para curar ou para ferir. A escolha é sua.
— É uma coisa ou outra?
Beijou sua mão.
— Nem sempre. Como disse, às vezes é necessário destruir. No entanto, creio que a cura tem mais a ver com você. Seria o caminho que eu escolheria.
Jaenelle ajeitou o cabelo.
— Bom, eu gosto mesmo de preparar infusões medicinais.
— Já reparei — disse ele secamente.
Jaenelle deu uma gargalhada, mas logo ficou séria.
— O que o Conselho das Trevas vai fazer?
Ele se recostou nas almofadas.
— Não podem fazer nada. Não permitirei que a levem para longe da sua família e dos seus amigos.
Jaenelle beijou-o no rosto. E disse uma última coisa antes de sair do quarto:
— E não permitirei que ponham mais cicatrizes na sua alma.
Ele havia previsto e até se preparado para aquele momento. Mesmo assim, era difícil.
Jaenelle estava no círculo da parte requerente no tribunal, em silêncio, com os dedos recatadamente cruzados, os olhos fixos no selo gravado na parte da frente do banco de madeira escura onde a Magistrada estava sentada. Usava um vestido emprestado por uma amiga e o cabelo trançado.
Sabendo que o Conselho observava todos os seus movimentos, Saetan olhava o vazio, esperando que a Magistrada começasse o perverso joguinho.
Como havia previsto a decisão do Conselho, não permitira que ninguém, a não ser Andulvar, os acompanhasse. Andulvar sabia tomar conta de si mesmo. Tomaria conta de Jaenelle também. No momento em que a Magistrada anunciasse o veredicto do Conselho, no momento em que Jaenelle protestasse e se virasse para Saetan, pedindo ajuda...
Tudo tem um preço.
Mais de 50 mil anos atrás, ele tinha sido determinante para a criação do Conselho das Trevas. Agora, iria destruí-lo. Bastava uma palavra para isso acontecer.
A Primeira Tribuna começou a falar.
Saetan não ouvia. Observou os rostos dos membros do Conselho. Algumas feiticeiras pareciam mais perturbadas do que irritadas — mas a maior parte dos olhos brilhava como os de seres ferozes e furtivos reunidos para a matança. Conhecia algumas delas. Outras eram novas, substitutas das imbecis que o tinham desafiado naquela sala. Ao vê-las olhando para ele, o pesar pela decisão de destruí-las evaporou. Não tinham o direito de tirar sua filha.
— ... por isso, a opinião ponderada deste Conselho é de que a nomeação de um novo tutor seria de benefício da tutelada.
Tenso, Saetan esperou que Jaenelle se virasse para ele. Tinha descido profundamente até a Negra antes de entrarem na sala do Conselho. Havia ali Joias escuras que talvez pudessem resistir o suficiente para fazer uma tentativa de ataque, porém a Negra libertada estilhaçaria todas as mentes que fossem atingidas pela explosão de energia psíquica. Andulvar era forte o bastante para sobreviver à tempestade psíquica. Jaenelle estaria segura, protegida no centro da tempestade.
Saetan respirou fundo.
Jaenelle olhou para a Primeira Tribuna.
— Muito bem — disse, calma e distintamente. — Quando o sol voltar a nascer, você pode nomear um novo tutor, a menos que, até lá, reconsidere sua decisão.
Saetan olhou estupefato para Jaenelle. Não. Não! Era a filha da sua alma, a sua Rainha. Não podia, não iria deixá-lo.
Mas deixou.
Jaenelle não olhou para Saetan quando se virou e caminhou pelo centro da sala até as portas do outro lado. Ao chegar lá, esquivou-se da mão estendida de Andulvar.
As portas se fecharam.
Vozes murmuravam. Turbilhões coloridos. Corpos passavam à sua frente.
Saetan não conseguia se mexer. Achava que era muito velho para ilusões, muito ferido para ter esperança, muito insensível para sonhar. Estava enganado. Engoliu a amargura da esperança, engasgou-se nas cinzas dos sonhos.
Ela não o queria.
Saetan queria morrer, ansiava desesperadamente pela morte final, antes que a angústia e o sofrimento o esmagassem.
— Vamos embora daqui, SaDiablo.
Andulvar levou-o para longe dos rostos presunçosos e dos olhos reluzentes.
Aquela noite, antes de o sol nascer, encontraria uma forma de morrer.
Havia esquecido que as crianças o esperavam.
— Onde está Jaenelle? — perguntou Karla, tentando olhar atrás de Saetan e de Andulvar quando estes entraram na sala de estar.
Saetan queria se retirar discretamente para seus aposentos, onde poderia chorar sozinho suas mágoas e decidir como concretizar o seu fim.
Também iria perdê-las. Não teriam razões para visitá-lo, nem para falar com ele, se Jaenelle não morasse ali.
Sentiu os olhos ardendo, as lágrimas prestes a explodir. Sentiu a garganta apertada pela angústia.
— Tio Saetan? — chamou Gabrielle, procurando ver seu rosto.
Saetan estremeceu.
— O que aconteceu? — perguntou Morghann. — Onde está Jaenelle?
Andulvar por fim respondeu.
— O Conselho das Trevas vai escolher outro tutor. Jaenelle não vai voltar.
— O QUÊ? — gritaram em uníssono.
As vozes o agrediam, questionando, exigindo. Perderia todas aquelas crianças que tinham se infiltrado no seu coração ao longo das últimas semanas, a quem se tinha permitido amar, tão insensatamente.
Karla levantou a mão. Na mesma hora, a sala ficou em silêncio. Gabrielle avançou até o lado dela.
— O Conselho nomeou outro tutor — disse Karla, espaçando as palavras e semicerrando os olhos.
— Sim — sussurrou Saetan. Suas pernas iam ceder. Precisava se afastar antes que as pernas cedessem.
— Devem estar loucos — disse Gabrielle. — E o que Jaenelle disse?
Saetan tentou se concentrar em Karla e Gabrielle. Provavelmente era a última vez que as via. Contudo, não conseguia responder, não conseguia pôr as malditas palavras para fora.
Andulvar levou Saetan até um sofá e obrigou-o a se sentar.
— Ela disse que poderiam nomear um novo tutor pela manhã.
— Foram essas as palavras exatas? — perguntou Gabrielle de maneira brusca.
— Que diferença faz? — resmungou Andulvar. — Ela decidiu virar as costas...
— Malditas sejam as suas asas, grande filho da puta — berrou Karla. — O que foi que ela disse?
— Parem! — gritou Saetan. Não suportava vê-las discutir, passar a última hora com elas em meio àquela ira. — Ela disse... — A voz embargou. Enfiou as mãos entre os joelhos, o que não as impediu de tremer. — Disse que quando o sol voltasse a nascer, poderiam nomear um novo tutor, a menos que, até lá, reconsiderassem a decisão.
O estado de espírito na sala se alterou para uma ligeira inquietação misturada com uma veemente aprovação e uma aceitação tranquila. Intrigado, Saetan observou as crianças.
Karla se jogou no sofá ao lado de Saetan, passando os braços em volta dele.
— Nesse caso, ficaremos aqui e aguardaremos com você.
— Agradeço, mas prefiro ficar sozinho. — Saetan tentou se levantar, mas o olhar fixo de Chaosti o desencorajou de tal forma que ele perdeu a força nas pernas.
— Não prefere, não — disse Gabrielle, empurrando Andulvar para se sentar do outro lado de Saetan.
— Quero ficar sozinho agora — disse Saetan, tentando colocar um tom de trovão na voz, mas sem conseguir.
Chaosti, Khary e Aaron formaram uma barreira na sua frente, ao lado dos outros jovens machos. Morghann e o resto do grupo formaram um círculo em volta do sofá, encurralando-o.
— Não vamos permitir que faça algo estúpido, tio Saetan — disse Karla afavelmente. Seu sorriso malévolo floresceu. — Espere pelo menos até o nascer do sol. Não vai querer perder esse momento.
Saetan olhou perplexo para Karla. Ela sabia o que ele pretendia fazer. Derrotado, fechou os olhos. Hoje, amanhã, que diferença fazia? Mas não faria isso na presença deles. Não os faria passar por isso.
Satisfeitas, Karla e Gabrielle se enroscaram em Saetan enquanto as outras garotas se espalhavam pelos outros sofás.
Khary esfregou as mãos.
— E se eu fosse ver se a Sra. Beale pode nos preparar um chá?
— Uns sanduíches também seriam bem-vindos — disse Aaron, entusiasmado. — E umas tortas de especiarias, se não tivermos acabado com elas. Vou com você.
*SaDiablo?*, chamou Andulvar num fio masculino Cinza-Ébano.
Saetan manteve os olhos fechados.
*Não farei nenhuma tolice.*
Andulvar hesitou.
*Vou falar com Mephis e Prothvar.*
Não havia razão para responder. Não havia resposta para dar. Por sua causa, todos perderiam Jaenelle. O novo tutor receberia os lobos e os unicórnios? Acolheria os Dea al Mon e os Tigre, os centauros e os sátiros? Ou ela seria obrigada a fugir por uma horinha, de vez em quando, para poder estar com eles, como quando era criança?
Com o passar das horas e as crianças cochilando nas cadeiras ou no chão à sua volta, Saetan se entregou. Havia aproveitado aqueles momentos com eles, o peso e o calor das cabeças de Karla e de Gabrielle aninhadas nos seus ombros. Haveria tempo para lidar com a dor... depois que o sol nascesse.
— Acorde, SaDiablo.
Saetan sentiu a urgência na voz de Andulvar, mas não queria responder, não queria rasgar o véu do sono no qual havia encontrado um pouco de conforto.
— Droga, Saetan — murmurou Andulvar. — Acorde.
Contrariado, Saetan abriu os olhos. Começou a se sentir grato por Andulvar estar à sua frente, impedindo-o de ver as janelas e a traiçoeira manhã. Depois percebeu que as velas estavam acesas e que eram necessárias e viu um tremor de medo nos olhos do eyrieno.
Andulvar se afastou para o lado.
Saetan esfregou os olhos. Durante a noite, Karla e Gabrielle tinham deslizado dos seus ombros e agora usavam suas coxas como almofadas. Não sentia as pernas.
Por fim, olhou para as janelas.
Estava escuro.
Por que Andulvar o estaria despertando assim no meio da noite?
Saetan olhou de relance para o relógio sobre a lareira e ficou paralisado. Oito horas.
— A Sra. Beale quer saber se deve servir o café da manhã — disse Andulvar, com a voz tensa.
Os rapazes começaram a despertar.
— Café da manhã? — perguntou Khary, reprimindo um bocejo enquanto passava as mãos no cabelo castanho encaracolado. — Um café da manhã seria bom.
— Mas — balbuciou Saetan. O relógio estava errado. Tinha de estar. — Mas ainda é de noite.
Chaosti, a Criança da Floresta, o Príncipe Dea al Mon dos Senhores da Guerra, lançou a ele um olhar intenso e alegre.
— Pois é.
Duas risadinhas se seguiram às palavras de Chaosti, enquanto Karla e Gabrielle se levantavam.
O coração de Saetan disparou. O quarto começou a girar devagar. Ele tinha achado que os olhos dos membros do Conselho brilhavam ferozmente, mas aquilo era na verdade um brilho dócil em comparação com o destas crianças que sorriam para ele e aguardavam.
— Escuro como a meia-noite — disse Gabrielle, com uma doce malignidade.
— Como se ainda fosse meia-noite — completou Karla. Apoiou o antebraço no ombro de Saetan e inclinou-se. — Quanto tempo o Conselho vai demorar para reconsiderar sua decisão, Senhor Supremo? Um dia? Talvez dois? — Deu de ombros e se levantou. — Vamos ver o café da manhã.
Tendo Andulvar à frente, as crianças deixaram a sala de estar, tagarelando despreocupadas.
Ao observá-los, Saetan lembrou-se de algo que Titian havia lhe dito há alguns anos. Eles sabem o que ela é. Viu Khardeen, Aaron e Chaosti se entreolharem antes de Khary e Aaron seguirem os outros. Chaosti permaneceu junto à janela, aguardando.
Outro triângulo de poder, pensou Saetan ao se aproximar da janela. Quase tão forte e igualmente letal. Que as Trevas ajudassem quem quer que ficasse no seu caminho.
— Você sabia — disse, baixinho, enquanto olhava fixamente para a noite ininterrupta, sem lua ou estrelas. — Você sabia.
— É claro — disse Chaosti, sorridente. — Você não?
— Não.
O sorriso de Chaosti desapareceu.
— Sendo assim, nós lhe devemos um pedido de desculpas, Senhor Supremo. Achávamos que estava preocupado com o que iria acontecer, não percebemos que não tinha entendido.
— E como vocês sabiam?
— Jaenelle os avisou ao determinar as condições. “Quando o sol voltar a nascer.” — Chaosti deu de ombros. — Obviamente, o sol não iria nascer.
Saetan fechou os olhos. Era o Senhor Supremo do Inferno de Joias Negras, o Príncipe das Trevas. E não tinha certeza de estar à altura daquelas crianças.
— Não tem medo dela?
Chaosti pareceu surpreso.
— De Jaenelle? Por que teria medo dela? É minha amiga, minha Irmã e minha prima. E é a Rainha. — Inclinou a cabeça. — E você, tem?
— Às vezes. Às vezes tenho medo do que ela pode fazer.
— Ter medo do que ela pode fazer não é o mesmo que ter medo dela. — Chaosti hesitou, para depois acrescentar: — Ela o ama, Senhor Supremo. Você é o pai dela, por escolha própria. Francamente, acredita que ela o abandonaria, a menos que fosse este o seu desejo?
Saetan esperou que Chaosti se juntasse aos outros para responder.
Sim. Que as Trevas o amparassem, sim. Deixara que as emoções nublassem seu discernimento. Estava disposto a destruir o Conselho para que Jaenelle ficasse com ele. Deveria ter se lembrado do que ela dissera sobre não permitir que o Conselho lhe infligisse mais cicatrizes na alma.
Ela tinha parado ambos, ele e o Conselho.
Saetan estava envergonhado por não ter compreendido o que Karla, Gabrielle, Chaosti e os outros perceberam assim que ouviram a expressão que Jaenelle utilizara. Amando a garota como a amava, morando com ela e testemunhando seu esforço diário para ser Rainha, já devia saber.
Sentindo-se bem melhor, dirigiu-se à sala do café da manhã.
Uma questão ainda o perturbava, ainda lhe causava uma ponta de dor de cabeça.
Em nome do Inferno, como Jaenelle tinha feito aquilo?
Hekatah olhou pela janela para a paisagem ressequida. Assim como os outros Reinos, o Inferno possuía estações do ano, embora no verão continuasse a ser uma terra fria, eternamente envolvida no crepúsculo.
Mais uma vez, tudo dera errado. De alguma forma, dera errado.
Contara com o Conselho para separar Saetan e Jaenelle. Não previra que a garota resistisse de uma forma tão grandiosa e assustadora.
A garota. Tanto poder para ser aproveitado. Deveria haver uma maneira de chegar a ela, alguma isca para atraí-la.
À medida que o pensamento ganhou forma, Hekatah começou a sorrir.
Amor. O ardor de um rapaz contra a afeição de um pai. Apesar de todo seu poder, a garota era uma idiota de coração mole. Dividida entre seus próprios anseios e as necessidades dos outros — necessidades que podia satisfazer sem riscos, já que não era mais virgem —, haveria de consentir, se o macho fosse hábil e atraente. Depois de algum tempo, com a ajuda de um afrodisíaco viciante, precisaria do sexo muito mais do que de um pai. A rejeição seria a única disciplina exigida caso relutasse diante de um pedido do amante. Todo aquele poder negro e sedutor oferecido a um homem que, logicamente, seria controlado por Hekatah.
Hekatah mordeu a unha do polegar.
Aquele jogo exigia paciência. Se ela se sentisse intimidada pelas investidas sexuais, rejeitando os avanços... Não era necessário se preocupar com isso. Saetan jamais toleraria, jamais permitiria que se tornasse frígida. Acreditava profundamente no prazer sexual — tanto quanto na fidelidade. Esta última tinha sido um problema; aquela garantiria que sua queridinha estaria madura para ser colhida dentro de um ou dois anos.
Sorridente, Hekatah se afastou da janela.
Pelo menos aquele filho da puta servia para alguma coisa.
Saetan ofereceu um copo de conhaque a Lord Magstrom antes de se sentar atrás da mesa de madeira escura. Era início da tarde, muito embora, depois de três “dias” de noite ininterrupta, não devessem ser muitos os homens com protestos sobre a hora apropriada de tomar o primeiro trago.
Saetan juntou os dedos à sua frente. Pelo menos os idiotas do Conselho haviam tido o bom-senso de enviar Lord Magstrom. Não teria concedido uma audiência a mais ninguém. Entretanto, não apreciou o aspecto selvagem do Senhor da Guerra, e esperava que o ancião se recobrasse plenamente da tensão dos últimos três dias. Saetan havia passado a maior parte da sua longa vida entre o crepúsculo e a alvorada, mas até mesmo ele sentia-se esgotado pela escuridão antinatural.
— Queria me ver, Lord Magstrom?
As mãos de Lord Magstrom tremiam ao levar à boca o conhaque.
— O Conselho está muito incomodado. Não gostam de ser feitos reféns desta forma, e me pediram que lhe apresentasse uma proposta.
— Não é comigo que tem de negociar, Senhor da Guerra. Foi Jaenelle quem estabeleceu as condições e não eu.
Lord Magstrom pareceu chocado.
— Pensamos...
— Pensaram errado. Nem mesmo eu possuo poder para tanto.
Lord Magstrom fechou os olhos. Estava ofegante.
— Sabe onde ela está?
— Acho que em Ebon Askavi.
— Por que foi para lá?
— É a casa dela.
— Mãe Noite — murmurou Magstrom. — Mãe Noite. — Esvaziou o copo de conhaque. — Acha que conseguiremos vê-la?
— Não sei. — Não valia a pena dizer a Magstrom que ele próprio tentara ver Jaenelle e, pela primeira vez na vida, fora barrado na Fortaleza, de forma educada, mas firme.
— Ela vai falar com a gente?
— Não sei.
— E você... falaria com ela?
Saetan arregalou os olhos, momentaneamente surpreso, antes de ser inundado pela raiva fria e incandescente.
— Por que faria isso? — perguntou, com uma falsa delicadeza.
— Para o bem do Reino.
— Desgraçado! — Com as unhas, Saetan riscou a mesa de madeira escura. — Você tenta tirar minha filha de mim e espera que eu resolva a situação? Não aprendeu nada durante a última visita? Não. Escolheu simplesmente destruir a vida que Jaenelle começava a construir de novo, sem pensar no que isso lhe provocaria. Tentou arrancar meu coração e, ao descobrir que há punições para suas ações malignas, quer que eu dê um jeito. Você tirou a guarda de Jaenelle de mim. Se quer acabar com isto, vá você a Ebon Askavi e enfrente o que o aguarda lá. E caso ainda não tenha percebido de quem se trata, vou lhe dizer. A Feiticeira o aguarda, Magstrom. A Feiticeira em sua plena glória. E a Senhora não está contente.
Magstrom gemeu e caiu na cadeira.
— Maldição. — Saetan respirou fundo, tentando controlar o mau humor enquanto enchia um copo com dois dedos de conhaque. Invocou um frasquinho e acrescentou à bebida uma pitada de pó medicinal. Segurando a cabeça de Magstrom, disse:
— Beba. Vai ajudar.
Depois de Magstrom recuperar os sentidos e respirar com mais calma, Saetan voltou à sua cadeira. Apoiando a cabeça nas mãos, olhou fixamente para as marcas de unha na mesa.
— Levarei a ela a proposta do Conselho da maneira que me for transmitida, e trarei a resposta dela nos mesmos termos. Não farei nada além disso.
— Depois do que acabou de me dizer, por que faria isso?
— Você não entenderia — rebateu Saetan.
Magstrom não disse nada durante alguns momentos.
— Acho que preciso entender.
Saetan passou as mãos no espesso cabelo negro e fechou os olhos dourados. Respirou fundo. Se estivesse no lugar de Magstrom, não iria querer uma resposta?
— Olho pela janela e me preocupo com os pardais e os tentilhões e com todas as outras criaturas diurnas, os inocentes que não conseguem entender a ausência da luz do dia. Acalento uma flor nas mãos na esperança de que sobreviva e sinto a terra esfriar a cada hora que passa. Não vou pelo Conselho, nem mesmo pelos Sangue. Vou pelos pardais e pelas árvores. — Abriu os olhos. — Entende agora?
— Sim, Senhor Supremo. — Lord Magstrom sorriu. — Foi uma sorte o Conselho ter concordado em me deixar negociar as condições da proposta. Se nós dois conseguirmos chegar a um acordo, talvez seja aceitável para a Senhora.
Saetan tentou, embora sem êxito, retribuir o sorriso. Eles nunca tinham presenciado a mudança nos olhos azul-safira de Jaenelle, nunca tinham visto sua transformação de criança em Rainha, nunca tinham visto a Feiticeira.
— Talvez.
Ficou grato por Draca ter lhe permitido entrar na Fortaleza. Essa gratidão diminuiu assim que Jaenelle apareceu à sua frente, no momento em que entrou no escritório.
— Entende isto? — perguntou, indicando um parágrafo de um livro de Arte.
Com o estômago embrulhado, Saetan invocou os óculos em meia-lua, colocou-os cuidadosamente sobre o nariz e leu o texto, obediente.
— Parece bastante simples — disse, logo depois.
Jaenelle se jogou no ar, de pernas abertas.
— Eu sabia — murmurou entre dentes, cruzando os braços. — Eu sabia que estava escrito em machês.
Saetan fez os óculos desaparecerem.
— Perdão?
— É uma bagunça. Geoffrey entende, mas não consegue me explicar de modo que faça sentido. E você também entende. Por isso, deve estar escrito em machês. Só é compreensível para quem tem um pênis e um saco.
— Considerando a idade de Geoffrey, acho que o problema dele não é o saco, criança-feiticeira — disse Saetan sarcasticamente.
Jaenelle resmungou.
Fique aqui, sussurrou uma parte dele. Fique aqui com ela, desse jeito. Eles não o amam, nunca se interessaram por você, a menos quando precisaram de algum favor. Não pergunte a ela. Deixe para lá. Fique.
Saetan fechou o livro e segurou-o bem junto ao peito.
— Jaenelle, precisamos conversar.
Jaenelle ajeitou o cabelo e fitou o livro fechado.
— Precisamos conversar — insistiu ele.
— Sobre o quê?
O fato de fingir que não sabia lhe dava nos nervos.
— Kaeleer, para começar. Você precisa quebrar o feitiço, a teia ou que quer que tenha feito ali.
— Vai terminar quando o Conselho decidir.
Ele ignorou a advertência na voz de Jaenelle.
— O Conselho me pediu...
— Você está aqui em nome do Conselho?
Entre uma inspiração e uma expiração, Saetan viu uma jovem feiticeira de mau humor se transformar em uma Rainha doce e predatória. Até a roupa mudou enquanto ela andava de um lado para outro no escritório. Quando, finalmente, parou diante de Saetan, seu rosto era uma máscara fria e bela, seus olhos continham a profundeza do abismo, as unhas estavam pintadas de um vermelho tão escuro que quase parecia preto e seu cabelo era uma nuvem dourada, com grampos prateados dos lados. O vestido parecia feito de fumaça e teias de aranha e ela tinha uma Joia Negra pendurada ao pescoço, sobre o peito.
Jaenelle colocou um dos seus conjuntos de Joias Negras, pensava Saetan, o coração batendo descontrolado. Quando teria feito isso?
Olhou-a diretamente nos olhos antigos, num desafio tácito.
— Maldição, Saetan — disse, sem emoção ou ternura.
— Vivo para agradá-la, Senhora. Faça de mim o que quiser. Mas liberte Kaeleer da meia-noite. Os inocentes não merecem esse sofrimento.
— E quem você chama de inocente? — perguntou, com sua voz cavernosa.
— Os pardais, as árvores, a terra — respondeu, calmamente. — O que eles fizeram para que o sol lhes fosse roubado?
Saetan viu o sofrimento nos olhos de Jaenelle antes que ela retirasse o livro de suas mãos com um puxão e virasse as costas.
— Não seja tolo, Saetan. Eu jamais prejudicaria a terra.
Jamais prejudicaria a terra. Jamais prejudicaria a terra. Jamais jamais jamais.
Saetan observou as correntes de ar no ambiente. Eram belas. Vermelho, violeta, azul-índigo. Não importava que as correntes de ar fossem incolores. Não importava se estava tendo alucinações. Eram belas.
— Há alguma cadeira neste escritório? — Ele se perguntou se Jaenelle o teria ouvido. Se teria dito aquelas palavras em voz alta.
A voz de Jaenelle fez com que as cores rodopiassem.
— Você não descansou nada?
Saetan sentiu o abraço aconchegante de uma cadeira às costas. Um xale grosso se enrolou em volta dos seus ombros, uma manta cobriu suas pernas. Uma infusão medicinal misturada com conhaque relaxou seus músculos tensos. Mãos quentes e suaves afagaram seu cabelo, seu rosto. E uma voz, repleta de brisa de verão e meia-noite, repetiu seu nome sem parar.
Não precisava ter medo dela. Nada havia a temer. Tinha que encarar estas situações com calma e não se deixar abalar pela magnitude dos feitiços de Jaenelle. Afinal, ela ainda usava as Joias de Direito por Progenitura, ainda dava os primeiros passos na Arte. Assim que realizasse a Oferenda...
Gemeu. Jaenelle mandou que se calasse.
Envolvido pelo calor, ele estava refeito.
— Para os pardais e as árvores o sol tem se levantado, não é, criança-feiticeira?
— É claro — disse ela, apoiada no braço da cadeira.
— Na verdade, tem se levantado para tudo e para todos, à exceção dos Sangue.
— Siiiim.
— Todos os Sangue?
Jaenelle ajeitou o cabelo e resmungou.
— Não consegui separar as espécies, por isso tive de colocar todos no mesmo saco. Mas enviei mensagens para que os parentes soubessem que é uma situação temporária — acrescentou rapidamente. — Pelo menos, espero que seja temporária.
Saetan se endireitou de repente.
— Você fez o feitiço sem ter certeza de que conseguiria anulá-lo?
Jaenelle fulminou-o com o olhar.
— É claro que consigo anulá-lo. Se vou anulá-lo ou não depende do Conselho.
— Ah. — Precisava dormir durante uma semana... Assim que visse o sol nascer. — O Conselho me pediu pra lhe dizer que reconsiderou a decisão.
— Ah. — Jaenelle se mexeu no braço da cadeira. O vestido deslizou, mostrando toda a sua perna.
Sua filha loura tinha pernas atraentes. Fortes e esguias. Esganaria o primeiro rapaz que tentasse enfiar a mão por baixo de sua saia para acariciar aquela coxa sedosa.
— Você me ajuda a traduzir aquele parágrafo? — perguntou Jaenelle.
— Não tem nada para fazer antes?
— Não. Isso tem de ser feito na hora certa, Saetan — acrescentou ela, enquanto a sobrancelha de Saetan começava a se erguer.
— Então temos tempo para matar.
Duas horas depois, ainda tentavam desvendar o parágrafo. Saetan estava praticamente disposto a concordar que havia realidades intraduzíveis entre os gêneros. Ainda assim, continuava buscando uma explicação, pois aquilo lhe despertava um prazer perverso.
Graças às Trevas, apesar da força e da intuição de Jaenelle, ainda havia certas coisas que sua Senhora de cabelo louro não conseguia fazer.
Estava nas minas de sal de Pruul havia cinco anos.
Chegara o momento de morrer.
A fim de conseguir a morte completa e feroz que prometera a si mesmo, precisava vencer a força que Zuultah possuía de enfraquecê-lo com o Anel de Obediência. Não seria difícil. Como o achavam um covarde, os guardas não lhe davam muita atenção, e Zuultah tinha se tornado bastante negligente na utilização do Anel. Quando se lembrassem do que nunca deveriam esquecer sobre Lucivar, seria tarde demais.
Lucivar puxou a picareta da cintura do guarda e cravou-a no cérebro do homem, transmitindo, através do metal, força Cinza-Ébano suficiente para concluir o assassinato, estilhaçando sua mente e suas Joias.
Cerrando os dentes num sorriso selvagem, arrancou as correntes que o prendiam há cinco anos. Em seguida, invocou as Joias Cinza-Ébano e o largo cinturão de couro que guardava sua faca de caça e a espada de guerra eyriena. Ao longo dos séculos, muitas Rainhas tolas haviam tentado forçá-lo a entregar aquelas armas. Ele suportara os castigos e a dor e jamais admitira que estiveram sempre ao seu alcance — pelo menos, até fazer uso delas.
Desembainhando a espada de guerra, correu para a entrada da mina.
Os dois primeiros guardas morreram antes de notar sua presença.
Os dois seguintes explodiram ao serem atingidos pela Cinza-Ébano.
Os demais foram atropelados pelos escravos que corriam descontroladamente, tentando sair do caminho do enfurecido Príncipe dos Senhores da Guerra.
Lucivar lutava para abrir caminho entre a confusão de corpos. Chegou à entrada da mina e atravessou correndo o alojamento dos escravos, preparando-se mentalmente para um salto às cegas nas Trevas, na esperança de que, como uma flecha atirada de um arco, voasse diretamente para o Vento mais próximo e para a liberdade.
Uma dor atroz vinda do Anel de Obediência quebrou sua concentração justo no momento em que a flecha de uma balestra atravessou sua coxa, interrompendo a corrida. Uivando de raiva, Lucivar liberou uma extensa faixa de poder através do anel Cinza-Ébano, dilacerando a mente e os corpos dos guardas que o perseguiam. Outra explosão de dor vinda do Anel de Obediência irrompeu por seu corpo. Apoiando-se na perna boa, equilibrou-se e enviou uma onda de poder à casa de Zuultah.
A casa explodiu. Choveram pedras nas construções ao redor.
A dor provocada pelo Anel parou subitamente. Lucivar sondou depressa e praguejou. A filha da puta estava viva. Atordoada e ferida, mas ainda viva. Hesitou, com ânsia assassina. Uma leve batida em suas barreiras interiores chamou de novo a atenção dos guardas que haviam sobrevivido. Corriam na direção de Lucivar, tentando combinar as forças de suas Joias para conseguir dominá-lo.
Idiotas. Podia fazê-los aos pedações, e o teria feito pela alegria de vingar a dor com dor, mas a esta altura alguém já teria enviado um pedido de ajuda. E se Zuultah recobrasse os sentidos o suficiente para usar o Anel de Obediência...
O desejo de lutar corria em suas veias, entorpecendo a dor física. Talvez fosse melhor morrer lutando e transformar o Deserto de Arava num mar de sangue. O Vento mais próximo estava à distância de um longo salto às cegas. No entanto, fogo do Inferno, se Jaenelle havia conseguido pegá-lo aos sete anos, ele também conseguiria fazê-lo agora.
Sangue. Tanto sangue.
A amargura o fez se concentrar, se decidir.
Liberando outra explosão de poder pela Cinza-Ébano, recompôs-se e saltou para as Trevas.
Apoiado no poço, Lucivar encheu novamente a caneca com água doce e fresca e bebeu devagar, saboreando cada gole. Enchendo-a pela última vez, seguiu mancando até as ruínas do muro de pedra que estava a poucos passos dali e se instalou o mais confortavelmente possível.
O salto às cegas nas Trevas havia lhe custado caro. Zuultah tinha se recuperado o suficiente para enviar outra onda de dor pelo Anel de Obediência no exato momento em que Lucivar lançava-se nas Trevas, e ele esgotara metade das forças da Cinza-Ébano na tentativa desesperada de alcançar os Ventos.
Bebeu a água e ignorou o que o corpo sentia. Fome. Dor. Uma necessidade desesperada de dormir.
Um grupo de caçadores de Pruul estaria a três, talvez quatro horas dali. Poderia despistá-los, mas isso consumiria um tempo de que não dispunha. Uma mensagem transmitida de mente em mente chegaria a Prythian, a Sacerdotisa Suprema de Askavi, mais depressa do que Lucivar conseguia viajar neste momento, e ele não queria ser capturado por guerreiros eyrienos antes de...
Anne Bishop
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