Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HERDEIRA
A HERDEIRA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

 

 

   

 

30

PARIS–JERUSALÉM

Os assistentes e guarda-costas que Khalid abandonara no Dorchester estavam esperando na sala VIP do aeroporto Le Bourget, em Paris. Eles receberam seu príncipe de volta como se receptassem um contrabando, e o colocaram às pressas a bordo de seu avião particular. Um carro da Embaixada de Israel levou Gabriel e seus companheiros para o Charles de Gaulle, ali perto. Dentro do terminal, cada um seguiu seu caminho. Keller voltou a Londres; Sarah, a Nova York. Gabriel e Mikhail tinham duas horas para esperar um voo da El Al para Tel Aviv. Sem nada melhor a fazer, o chefe informou ao diretor da CIA, Morris Payne, que o líder favorito do presidente americano no mundo árabe estava prestes a abdicar o trono para salvar a vida da filha. Payne pressionou Gabriel para saber a fonte da informação. Ele, como sempre, se fez de difícil.

Era fim de tarde quando os dois chegaram ao Ben Gurion. Foram direto para o Boulevard Rei Saul, onde Gabriel passou uma hora no escritório de Uzi Navot limpando os destroços operacionais e administrativos que se acumularam durante sua ausência. Com sua camisa social listrada elegante e óculos sem aro da moda, Navot parecia ter acabado de sair da sala da diretoria de uma empresa da lista Fortune 500. A pedido do diretor-geral, ele recusara um cargo com salário alto numa empresa de segurança particular na Califórnia para continuar como vice do Escritório. A exigente esposa de Navot, Bella, nunca perdoara nem Gabriel nem o próprio marido.

— Os analistas estão fazendo progressos com os documentos de Teerã

— contou Navot. — Não há evidências de um programa ativo, mas nós os pegamos nos trabalhos anteriores, tanto as ogivas quanto os sistemas de entrega.

— Quando podemos ir a público?

— Qual é a pressa?

— Em algumas horas, os mulás vão comemorar a queda de Khalid.

Uma mudança de assunto na região pode ajudar.

— Não vai mudar o fato de que seu amigo vai cair.

— Ele nunca foi meu amigo, Uzi. Mas sim do primeiro-ministro.

— Ele quer ver você.

— Logo hoje? Ligo para ele do carro.

Gabriel telefonou enquanto seu comboio subia o Bab al-Wad para as montanhas da Judeia. O primeiro-ministro recebeu a notícia tão bem quanto Morris Payne. Khalid era o pivô de uma estratégia regional para isolar o Irã, normalizar as relações com os regimes árabes sunitas e chegar a um acordo de paz com os palestinos em termos favoráveis a Israel.

Gabriel apoiava os objetivos gerais da estratégia, mas tinha avisado ao chanceler repetidas vezes que o príncipe era um ator errático e instável que se provaria o maior inimigo de si mesmo.

— Parece que conseguiu o que queria — disse o primeiro-ministro com sua voz de barítono.

— Com todo o respeito, essa é uma caracterização equivocada da minha posição.

— Podemos intervir?

— Acredite, eu tentei.

— Quando vai acontecer?

— Antes da meia-noite no horário de Riad.

— Ele vai mesmo seguir em frente?

— Não consigo imaginar outra coisa. Não depois do que vi hoje.

Era pouco depois das nove da noite quando o comboio de Gabriel chegou à rua Narkiss. Em geral, as crianças estavam dormindo a essa hora, mas, para sua surpresa, jogaram-se nos braços do pai quando ele passou pela porta. Raphael, futuro pintor, mostrou seu último trabalho. Irene leu uma história que tinha criado com ajuda da mãe. O caderno no qual ela escrevera era idêntico ao que haviam encontrado na cela cruel da princesa Reema no País Basco Espanhol.

É a morte... Morte, morte, morte...

Gabriel se ofereceu para colocar as crianças na cama, uma operação que acabou tendo quase tanto sucesso quanto a tentativa de achar a filha de Khalid. Após sair do quarto delas, encontrou Chiara tirando uma caçarola laranja do forno. Reconheceu o aroma. Era ossobuco, um de seus pratos favoritos. Comeram na pequena mesa redonda da cozinha, com uma garrafa de Shiraz da Galileia e o BlackBerry de Gabriel entre eles. A televisão no balcão estava no mudo. Chiara estranhou o canal escolhido pelo marido.

— Desde quando você assiste à Al Jazeera?

— Eles têm ótimas fontes na Arábia Saudita.

— O que está acontecendo?

— Um terremoto.

Exceto por algumas mensagens de texto vagas, Gabriel não tinha feito contato com Chiara desde a manhã da partida para Paris. Durante o jantar, contou-lhe tudo que se passara. Fez isso em italiano, o idioma do casamento deles. A esposa ouviu com atenção. Amava mais que tudo saber das aventuras do marido no campo. As histórias traziam à tona, ainda que de forma tênue, as lembranças da vida de que ela abrira mão para se tornar mãe.

— Deve ter sido uma surpresa e tanto.

— O quê?

— Encontrar Sarah no seu voo para Paris.

Ela olhou para a televisão. Havia cenas da último episódio de violência na fronteira da faixa de Gaza. Israel, aparentemente, era o único culpado.

— Pelo jeito, eles não sabem que há algo importante acontecendo.

— Vão saber em breve.

— Como vai acontecer?

— O príncipe herdeiro vai dizer ao pai, o rei, que não tem escolha a não ser abdicar. O rei, que tem 28 outros filhos de quatro esposas diferentes, sem dúvida vai questionar a decisão.

— Quem vai suceder o rei Mohammed agora?

— Isso depende de quem estiver por trás de toda esta trama. — Gabriel olhou o relógio. Eram 21h42 em Jerusalém, 22h42 em Riad. — Está bem em cima da hora.

— Talvez vá desistir.

— Quando se afastar, ele perderá tudo. Provavelmente, não vai poder ficar na Arábia Saudita. Vai ser só mais um príncipe exilado.

— Eu adoraria ser uma mosca na parede da corte real agora.

— Adoraria mesmo? — Gabriel pegou o BlackBerry e ligou para a Mesa de Operações no Boulevard Rei Saul.

Alguns minutos depois, o telefone começou a emitir o som de um velho gritando em árabe.

— O que ele está dizendo?

— Uma filha pode ser substituída, mas um rei, não.

Eram 23h30 em Riad quando o Al Arabiya, canal de notícias estatal saudita, interrompeu sua programação normal para um anúncio urgente do palácio. O apresentador pareceu abalado ao lê-lo. Sua Alteza Real Príncipe Khalid bin Mohammed Abdulaziz Al Saud tinha abdicado, abrindo mão, assim, de seu direito ao trono. O Conselho de Aliança, órgão composto por príncipes experientes que determinava quem entre eles governaria, planejava se reunir em breve para nomear um substituto. No momento, porém, o monarca absoluto da Arábia Saudita, em estado terminal e mentalmente incapaz, não tinha sucessor escolhido.

A Al Jazeera, que deu a notícia ao resto do mundo, mal conseguia conter sua alegria. Assim como os iranianos, a Irmandade Muçulmana, os palestinos, o Hezbollah, o Estado Islâmico e a viúva de Omar Nawwaf. A Casa Branca, imediatamente, soltou um comunicado declarando sua determinação de trabalhar próximo ao sucessor de Khalid. Downing Street murmurou algo parecido alguns minutos depois, assim como o Palácio do Eliseu. O governo de Israel, por sua vez, não disse nada.

Mas por que Khalid entregara o trono pelo qual tinha lutado de forma tão inclemente? A mídia só podia especular. Os especialistas em Oriente Médio eram unânimes na opinião de que Khalid não havia abdicado voluntariamente. A única dúvida era se a pressão viera de dentro da Casa de Saud ou de fora. Poucos repórteres e comentaristas tentaram esconder sua alegria com a queda, em especial, os apoiadores iniciais que haviam comemorado sua ascensão ao poder. “Já vai tarde”, declarou um importante colunista do The New York Times, que havia declarado Khalid como salvador do mundo árabe.

Entre os muitos mistérios daquela noite estava o paradeiro exato de KBM. Se alguém tivesse se dado ao trabalho de perguntar ao chefe da inteligência israelense, ele poderia ter dito que o príncipe tinha voado a Paris imediatamente depois de sua reunião conflituosa com o pai e, sem a entourage habitual, entrado anônimo no Hotel de Crillon. Às cinco da tarde do dia seguinte, ele recebeu uma ligação. A voz do outro lado, digitalizada e com um tom perversamente afável, emitiu uma série de instruções, e então a linha caiu. Desesperado, Khalid telefonou para Sarah em Nova York. Ela, a pedido de Khalid, ligou para Gabriel no Boulevard Rei Saul. Sem necessidade, pois ele monitorava os acontecimentos no Centro de Operações e ouvira tudo. Os sequestradores queriam mais do que a abdicação de Khalid. Queriam Gabriel.

31

TEL AVIV–PARIS

Na verdade, era um pouco mais complicado. O que os sequestradores queriam era que Gabriel cuidasse das negociações finais e da logística da libertação da princesa Reema. Caracterizaram a exigência não como ameaça, mas como gesto humanitário que garantiria o retorno da refém em segurança, sempre o elemento mais perigoso de um sequestro. Preferiam lidar com um profissional, disseram, do que com um pai desesperado e, às vezes, volátil. Allon, porém, não tinha ilusões sobre por que os sequestradores o queriam do outro lado da linha. Os homens por trás da trama, quaisquer que fossem seus motivos, pretendiam matá-lo na primeira oportunidade. E matariam Khalid, também.

Não foi surpresa que a exigência não tenha sido bem recebida entre as paredes do Boulevard Rei Saul. Uzi Navot disse que estava fora de questão, um sentimento compartilhado pelo resto da equipe sênior de Gabriel — incluindo Yaakov Rossman, que ameaçou algemar Gabriel à mesa. Até Eli Lavon, chefe dos observadores e amigo mais próximo de Gabriel, achou que era uma missão suicida. Além do mais, adicionou Lavon, uma vez que Khalid tinha abdicado, já não valia o esforço, e, certamente, nem o risco.

Gabriel nem se deu ao trabalho de consultar o primeiro-ministro. Ligou logo para a esposa. A conversa foi breve, no máximo dois ou três minutos.

Depois, Mikhail e ele saíram discretamente do Boulevard Rei Saul e se dirigiram ao Ben Gurion. Não havia mais voos a Paris naquela noite. Não tinha importância; Khalid mandara um avião para eles.

Passava pouco da uma da manhã quando chegaram ao Hotel de Crillon.

Christopher Keller estava no bar do lounge, flertando com a linda hostess em seu francês com sotaque de Córsega.

— Você já subiu? — perguntou Gabriel.

— Por que acha que estou aqui embaixo? Ele estava me enlouquecendo.

— Como ele está?

— Atordoado.

Khalid estava num apartamento de categoria superior no quarto andar.

Foi um choque vê-lo realizando uma tarefa tão comum quanto abrir a

porta. Ele a fechou de novo rapidamente e ativou as trancas. A mesa de centro na sala de estar estava cheia de latas e embalagens de aperitivos gratuitos do frigobar. Em algum lugar, o telefone dele tocava uma melodia eletrônica irritante.

— Esse inferno não acaba. — Ele esticou uma das mãos para a enorme TV. — Estão rindo de mim! Dizem que fui forçado a abdicar por causa de Omar Nawwaf.

— Você pode esclarecer depois — disse Gabriel.

— De que vai adiantar? — O telefone começou de novo. Khalid despachou a ligação para a caixa-postal. — Outro que se diz amigo.

— Quem era?

— O presidente do Brasil. E antes dele, o chefe de uma agência de talentos em Hollywood, perguntando se eu ainda planejava investir na empresa dele. — O príncipe hesitou. — Todo mundo, menos as pessoas que levaram minha filha.

— Se eu tivesse que chutar, eles vão telefonar a qualquer momento.

— Como pode ter certeza?

— Porque sabem que cheguei.

— Estão vigiando o hotel?

Gabriel fez que sim.

— Quando ligarem de volta, vou oferecer cem milhões de dólares.

Deve ser o suficiente para convencê-los a cumprirem sua parte do acordo original.

Gabriel sorriu.

— Quem dera fosse tão simples.

— Com certeza — falou Khalid, após um momento —, você não deseja morrer por um homem feito eu.

— Não — admitiu Gabriel. — Estou aqui por sua filha.

— Você consegue trazê-la de volta?

— Vou fazer o possível.

— Compreendo — respondeu Khalid. — Você é o diretor do serviço secreto de inteligência do Estado de Israel. E eu sou um homem que acabou de abrir mão de um trono, o que significa que não sou mais útil a você.

— Eu tenho dois filhos pequenos.

— Que sorte. Eu só tenho uma.

Um silêncio pesado caiu entre eles. Quebrado, apenas, pela melodia enjoativa do celular de Khalid. Ele pegou o aparelho e recusou a ligação.

— Quem era? — perguntou Gabriel.

— A Casa Branca. — Khalid revirou os olhos. — De novo.

— Não acha que deveria atender a ligação?

O príncipe abanou a mão em desprezo e fixou o olhar na televisão.

KBM se encontrando com o primeiro-ministro britânico em Downing Street. KBM antes da queda.

— Eu nunca deveria ter dado ouvidos a ele — disse a ninguém em especial.

— A quem? — perguntou Gabriel, mas Khalid não respondeu.

O telefone tocava de novo.

— Quem é agora?

— Você não acreditaria se eu dissesse.

Gabriel pegou o telefone e viu o primeiro nome do presidente russo.

— Atenda — disse Khalid. — Aposto que ele adoraria ouvir sua voz.

Gabriel deixou o telefone tocar mais vários segundos. Então, com profunda satisfação, apertou RECUSAR.

Pelo resto daquela longa noite, o relógio se moveu com a lentidão das placas tectônicas. O humor de Khalid, porém, alternava-se entre ódio daqueles que o traíram e medo pela vida da filha. Cada vez que o telefone tocava, ele o agarrava como se fosse uma granada e olhava para a tela com esperança, antes de jogar o aparelho de qualquer jeito na mesa de centro quando via que era só mais um ex-amigo ou colega querendo chafurdar no prazer de ver o sofrimento alheio.

— Eu sei, eu sei — dizia ele a Gabriel. — Telefones quebram, Príncipe Esquentadinho.

Mikhail e Keller conseguiram dormir por algumas horas, mas Gabriel ficou ao lado de Khalid. Nunca tinha acreditado no conto de fadas de KBM, o grande reformador árabe, mas, confrontado com a terrível escolha de perder o trono ou a filha, Khalid agira como um ser humano, não como o tirano mimado e inimaginavelmente rico cujo desejo por poder e posses não conhecia limites. Soubesse ele ou não, pensou Gabriel, ainda havia esperança para Khalid.

Finalmente, um amanhecer cinza-escuro invadiu a imponente sala de estar. Uma hora depois, mais ou menos, parado em uma das janelas com vista para a place de la Concorde, Gabriel testemunhou um espetáculo impressionante. Do Museu do Louvre ao Arco do Triunfo, policiais corriam e lutavam com milhares de manifestantes, todos vestidos com coletes amarelos de varredores de rua. Logo, todo o 1º arrondissement se encheu de uma densa nuvem de gás lacrimogêneo. Gabriel ligou a televisão no canal France 2 e foi informado de que os “Coletes Amarelos”

estavam furiosos com o presidente francês por causa de um aumento recente nos preços do combustível.

— Isso é a democracia — desdenhou Khalid. — Os bárbaros estão nos portões.

Talvez Gabriel estivesse enganado, pensou. Talvez o saudita fosse mesmo uma causa perdida.

E ali ficaram, o espião e o monarca derrubado, observando o grande experimento conhecido como civilização ocidental se desmoronando aos pés deles. Khalid estava tão hipnotizado que, daquela vez, não ouviu o toque do telefone.

Gabriel foi até a mesa de centro e viu o aparelho tremendo em meio ao lixo da longa noite de espera. Olhou para a tela. O chamador não estava identificado e não havia número.

Ele clicou em ACEITAR e levou o telefone ao ouvido.

— Já estava na hora — disse em inglês, sem se esforçar para disfarçar o sotaque israelense. — Agora, ouçam com atenção.

32

PARIS

Ao lidar com sequestradores, sejam bandidos comuns ou terroristas, é costume que o negociador ouça as exigências. Mas isso supondo que ele tenha algo a oferecer em troca da liberdade do refém — dinheiro, por exemplo, ou um companheiro de luta preso. Gabriel, porém, não tinha nada, então só lhe restava atacar de imediato. Ele informou aos sequestradores que a princesa Reema estaria livre até o fim do dia. Se fosse ferida de qualquer forma — ou se houvesse algum atentado contra a vida dele próprio ou a do ex-príncipe herdeiro da Arábia Saudita —, a inteligência israelense caçaria cada membro da conspiração e mataria todos. O melhor caminho, concluiu, seria finalizar tudo o mais rápido possível, sem melodrama nem contratempos de última hora. Então, ele desligou e entregou o telefone a Khalid.

— Você está louco?

— Se não estivesse, não estaria aqui.

— Percebe o que acabou de fazer?

— Dei-nos uma chance mínima de recuperar sua filha sem sermos mortos no processo.

— Eles deram alguma instrução?

— Eu não deixei.

— Por que não?

— Achei que árabes fossem bons negociadores.

Os olhos de Khalid se arregalaram de raiva.

— Agora eles nunca vão ligar de volta!

— É claro que vão.

— Como você tem tanta certeza?

Gabriel andou calmamente até a janela e observou o protesto lá embaixo.

— Porque eu não estava blefando. E eles sabem.

Para o alívio de Gabriel, ele teve que suportar uma espera de apenas vinte minutos antes de se provar ao menos parcialmente certo. As instruções

foram entregues numa mensagem gravada digitalmente a partir de um texto, como uma ligação eletrônica de telemarketing. A voz era feminina, alegre e vagamente erótica. Dizia que Gabriel e o ex-príncipe herdeiro deveriam embarcar no TGV do meio-dia de Paris a Marselha. Mais instruções seriam transmitidas quando estivessem em trânsito. Não deveriam envolver a polícia francesa. Nem viajar com um destacamento de segurança. Qualquer desvio das instruções resultaria na morte da menina.

— Vocês estão sendo observados — avisou a voz, antes de a conexão cair.

As condições não eram exatamente justas, mas, nas circunstâncias, o melhor que Gabriel podia esperar. Além do mais, ele não tinha intenção de honrá-las, e os sequestradores, também não.

Khalid chamou uma limusine do hotel. Atravessando Paris na direção leste, foram vaiados, xingados e receberam cuspes dos manifestantes de colete amarelo. O gás lacrimogêneo ardeu nos olhos deles enquanto corriam pela entrada da Gare de Lyon. Mikhail e Keller estavam parados como estranhos embaixo do quadro de partidas, cada um olhando numa direção diferente.

Khalid olhou admirado para o átrio de vidro.

— Não teve um ataque terrorista nesta estação há alguns anos?

— Continue andando — disse Gabriel. — Senão, vamos perder nosso trem.

— Olhe lá o memorial — falou Khalid, apontando para uma tábua preta de granito polido.

O painel de partidas girou com um ruído e atualizou. O embarque do trem para Marselha tinha começado. Gabriel levou Khalid até um quiosque automático e o instruiu a comprar dois assentos na primeira classe.

Khalid olhou para a geringonça, perplexo.

— Não sei se vou saber...

— Deixa pra lá. — Gabriel colocou um cartão de crédito na máquina.

Os dedos dele se moveram com agilidade na tela e a máquina cuspiu duas passagens e um recibo.

— E agora? — perguntou Khalid.

— Entramos no trem.

O israelense guiou o saudita até a plataforma, depois para dentro de um vagão de primeira classe. Mikhail estava sentado numa ponta, Keller, na outra. Os dois virados para o centro, para onde Gabriel direcionou Khalid.

Um terço do vagão estava cheio. Nenhum dos outros passageiros pareceu perceber que o homem que acabara de abrir mão de seu direito ao trono da Arábia Saudita sentava-se entre eles.

— Sabe — disse ele em voz baixa no ouvido de Gabriel —, não me lembro da última vez que fiz um trajeto de trem. Você viaja bastante assim?

— Não — respondeu Gabriel, enquanto o TGV dava um tranco para a frente. — Nunca.

Pelas primeiras três horas da viagem ao sul, o telefone silenciado de Khalid vibrou quase sem parar, mas os sequestradores esperaram até o trem chegar a Avignon antes de emitir as próximas instruções. Mais uma vez, não havia nome nem número, só a voz feminina automatizada. Ela disse que Gabriel alugasse um carro na Gare de Marseilles–Saint Charles e dirigisse até a antiga cidadela de Carcassonne. Havia uma pizzaria na avenue du Général Leclerc, chamada Plein Sud. Eles deixariam a garota em algum lugar próximo.

— E não leve os guarda-costas — alertou a voz, em tom de flerte. —

Senão, a garota morre.

Gabriel ligou para o Boulevard Rei Saul e pediu dois carros Hertz, um para Mikhail e Keller e o outro para ele e Khalid. Os dois eram Renault compactos. Mikhail e Keller saíram primeiro e foram para o norte, na direção de Aix-en-Provence. Gabriel foi para oeste pela costa, seguindo o sol ofuscante de fim de tarde.

Khalid passou o dedo indicador na poeira do painel.

— Pelo menos, podiam ter nos dado um carro limpo.

— Eu deveria ter dito que era para você. Tenho certeza de que teriam achado algo melhor.

— Por que você mandou seus homens para Aix?

— Para ver se os sequestradores vão ser idiotas o bastante de segui-los.

— E se seguirem?

— Provavelmente, vão ter uma má surpresa. E nossas chances de sair disso inteiros vão aumentar drasticamente.

Khalid estava admirando o mar.

— Lindo, não?

— Tenho certeza de que é mais bonito visto do deque do maior iate do mundo.

— Segundo maior — Khalid corrigiu.

— Todos precisamos economizar.

— Imagino que vou passar bem mais tempo a bordo dele. Riad já não é seguro para mim. E quando meu pai morrer...

— O novo príncipe herdeiro vai tratar você da mesma forma que você tratou seu predecessor e todos que eram uma ameaça.

— É assim na minha família. Damos todo um novo significado à palavra disfuncional. — Khalid não conseguiu segurar o sorriso. —

Planejo dedicar o resto da minha vida a Reema. Ela ama o Tranquility.

Talvez façamos uma viagem pelo mundo juntos.

— Ela vai precisar de muitos cuidados médicos e psiquiátricos para se recuperar do que passou.

— Você parece falar por experiência própria.

— Leia meu arquivo.

— Já li — disse Khalid. — Continha uma referência a algo que aconteceu em Viena. Houve um bombardeio. Eles dizem...

— Talvez seja uma surpresa para você, mas não é um assunto que eu gostaria de discutir.

— Então, é verdade? Sua esposa e seu filho foram mortos na sua frente?

— Não — falou Gabriel. — Minha esposa sobreviveu.

O sol ardia no horizonte — como um carro, pensou Gabriel, queimando numa praça tranquila em Viena. Ele ficou aliviado quando Khalid mudou abruptamente de assunto.

— Nunca fui a Carcassonne.

— Era um reduto cátaro na Idade Média.

— Cátaro?

— Eles acreditavam, entre outras coisas, que havia dois deuses, o Deus do Novo Testamento e o Deus do Velho. Um era bom, o outro era mau.

— Qual era qual?

— O que você acha?

— O Deus dos judeus era o mau.

— Sim.

— O que aconteceu com eles? — perguntou Khalid.

— Contrariando todas as probabilidades, fundaram um Estado moderno em sua antiga terra natal.

— Eu estava falando dos cátaros.

— Foram exterminados na Cruzada Albigense. O massacre mais famoso aconteceu na vila de Montségur. Duzentos perfeitos cátaros foram jogados numa enorme fogueira. O lugar onde isso aconteceu ficou conhecido como campo dos queimados.

— Parece que os cristãos também sabem ser violentos.

— Era o século XIII, Khalid.

O BlackBerry de Gabriel vibrou com uma mensagem. Era Mikhail com uma atualização. Gabriel ouviu e mandou que ele fosse para Carcassonne.

— Eles foram seguidos? — perguntou Khalid.

— Não — disse Gabriel. — Não tivemos essa sorte.

O sol estava deslizando para baixo da linha do horizonte. Logo, teria ido embora. Por isso, pelo menos, ele estava grato.

33

MAZAMET, FRANÇA

Nas 48 horas desde a evacuação às pressas da princesa Reema do esconderijo no País Basco Espanhol, ela tinha sido mantida num estado de movimento quase permanente. Suas lembranças da odisseia eram fragmentadas, pois estavam nubladas por injeções regulares de sedativo.

Ela se lembrava de um armazém cheio de caixas de madeira, de um barraco imundo que cheirava a bode, e de uma cozinha minúscula onde tinha ouvido, no cômodo ao lado, uma discussão entre dois de seus captores. Era a primeira vez que ela os ouvia. O idioma a chocou.

Pouco depois de a briga ser resolvida, deram-lhe mais uma injeção da droga. Ela acordou, como sempre, com uma dor de cabeça lancinante e a boca seca como um deserto. Os panos com que a vestiam havia duas semanas tinham sido removidos e ela estava com a roupa que usava na tarde do sequestro. Inclusive seu casaco Burberry favorito. Parecia mais pesado que o normal, embora Reema não pudesse ter certeza. Estava fraca pela falta de atividade, e as drogas faziam seus membros parecer feitos de ferro.

A injeção final continha uma dose menor do sedativo. Ela tinha certeza de que estava no porta-malas de um carro em movimento, pois conseguia ouvir os pneus rolando embaixo de si. Também escutava duas vozes vindas no compartimento de passageiros. Também falavam o idioma que a chocara. Ela só reconheceu duas palavras.

Gabriel Allon...

O balanço do carro e o cheiro do porta-malas sujo reviravam seu estômago. Reema parecia não conseguir puxar ar para os pulmões. Talvez fossem as drogas que tinham lhe dado. Não, pensou, era o casaco. Estava fazendo pressão nela.

Suas mãos não estavam amarradas. Ela soltou o cinto e puxou as lapelas, mas não adiantava, não abria. Fechou os olhos e, pela primeira vez em vários dias, chorou.

O casaco estava costurado.

A avenue du Général Leclerc ficava para lá das muralhas duplas da antiga cidadela de Carcassonne, e não tinha nada da beleza nem do charme do bairro antigo. A Plein Sud ocupava um prédio triangular no lado sul da rua, o último numa curta sucessão de lojas e empresas que atendiam aos residentes de classe operária do bairro. O interior era limpo, organizado e bem iluminado. Um homem grande com traços sulistas trabalhava nos fornos de pizza e uma mulher de ar pesaroso cuidava da paella. As paredes estavam cheias de arte africana, e uma grande porta de deslizar dava para a rua. Era um estande de tiro ao alvo para um franco-atirador, pensou Gabriel.

Os dois sentaram-se à única mesa disponível. Os ocupantes das outras três pareciam as pessoas que eles tinham visto se manifestando nas ruas de Paris de manhã. Eram cidadãos da outra França, aquela que não estava nos guias de turismo. Eram os explorados e os esquecidos, os que não tinham diplomas brilhantes de instituições de ensino de elite. A globalização e a automação tinham erodido seu valor como mão de obra. A economia de serviço era sua única opção. Suas contrapartes na Inglaterra e nos Estados Unidos já tinham dito o que achavam nas urnas. A França, raciocinava Gabriel, seria a próxima.

Uma mensagem chegou em seu BlackBerry. Ele leu e guardou o aparelho de volta no bolso. O telefone de Khalid estava entre eles na mesa, apagado, silencioso.

— E? — perguntou ele.

— Meus homens.

— Onde estão?

Com os olhos, Gabriel indicou que estavam estacionados perto.

— E os sequestradores?

— Não estão aqui.

— Eles sabem que chegamos?

— Absolutamente.

— Como você sabe?

— Olhe seu telefone.

Khalid olhou para baixo. Estava recebendo uma ligação. Sem nome.

Sem número.

Gabriel clicou ACEITAR e levou o aparelho ao ouvido. A voz que falou com ele era feminina e vagamente erótica. Não era, porém, uma gravação.

A voz era real.

34

CARCASSONNE, FRANÇA

–Não conseguiu resistir?

— Acho que não. Afinal, não é sempre que se fala com um homem como você.

— Que tipo de homem seria esse?

— Um criminoso de guerra. Assassino daqueles que lutam por dignidade e autodeterminação.

O inglês dela era impecável. O sotaque era alemão, mas havia um traço de outra coisa. Algo mais oriental, pensou Gabriel.

— Você é uma guerreira da liberdade? — perguntou ele.

— Sou uma profissional, Allon. Como você.

— É mesmo? E que tipo de trabalho faz quando não está sequestrando e torturando crianças?

— A criança — respondeu ela — foi bem cuidada.

— Eu vi o quarto em Areatza onde ela foi mantida. Não era adequado para um cachorro, quanto mais para uma menina de 12 anos.

— Uma garota que passou a vida inteira cercada de luxos inimagináveis. Pelo menos, agora ela tem noção de como a vasta maioria das pessoas no mundo vive.

— Onde ela está?

— Perto.

— Nesse caso, deixe-a em frente ao restaurante. Não vou tentar segui-los.

Ela deu uma risada baixa e rouca. Gabriel colocou o telefone no volume máximo e o pressionou no ouvido. Ela estava num carro em movimento, tinha certeza.

— Está pronto para as próximas instruções? — perguntou ela.

— Acho bom serem as últimas.

— Tem um vilarejo ao norte de Carcassonne chamado Saissac. Siga a D629 até a fronteira do próximo département. Depois de um quilômetro, vai ver uma passagem pela cerca do lado direito da estrada. Siga a trilha para o campo por exatamente cem metros e desligue os faróis. Qualquer desvio de sua parte — disse a mulher — vai resultar na morte da menina.

— Se tocar num fio de cabelo da cabeça dela, vou colocar uma bala na sua.

— Assim?

Nesse momento, a porta de correr do café se estilhaçou e uma bala cruzou o ar entre Gabriel e Khalid, cravando-se na parede.

— Você tem trinta minutos — falou a mulher, calmamente. — Ou a próxima será nela.

Gabriel e Khalid saíram juntos com os outros clientes em pânico para a avenida movimentada. O Renault estava estacionado em frente à loja ao lado. Gabriel sentou ao volante, ligou o motor e acelerou ao longo das muralhas da antiga cidadela. Khalid mapeava o caminho no celular. Na verdade, Gabriel não precisava de ajuda — a rota até Saissac estava claramente sinalizada —, mas era algo para o príncipe fazer além de gritar para que dirigisse mais rápido.

Só até Saissac, a viagem era de quarenta quilômetros. Gabriel cobriu a distância em cerca de vinte minutos. Deixaram o centro da cidade para trás num borrão. Em sua visão periférica, ele percebeu um baluarte com vista para uma planície, as ruínas de uma muralha e um único café. O bairro mais novo da cidade ficava a noroeste. Havia um posto da gendarmaria e uma rotatória onde, por um instante, Gabriel temeu que o Renault fosse virar.

Depois desta rotatória, a cidade minguou. Por mais ou menos um quilômetro e meio, o campo era bem cuidado e cultivado, mas ficou gradualmente selvagem. A estrada estreitou-se, atravessou o leito de um rio por uma ponte de pedra e estreitou-se de novo. Gabriel olhou de relance para o relógio do painel. Pelos seus cálculos, já estavam três ou quatro minutos atrasados. Então, checou o retrovisor e viu faróis. Por algum motivo, as luzes estavam se aproximando. Ele encontrou seu BlackBerry e discou.

Foi Keller quem atendeu.

— Afastem-se — ordenou Gabriel.

— Sem chance.

— Diga para Mikhail encostar agora.

Gabriel ouviu Keller transmitir relutante as instruções e observou alguns segundos depois o carro indo para o acostamento. Então, desligou e

guardou o telefone. O de Khalid acendeu de repente. Sem nome. Sem número.

— Coloque no viva-voz.

Khalid tocou na tela.

— Vocês estão atrasados — disse a mulher.

— Acho que estamos chegando.

— Estão. E seus homens também.

— Eu disse para eles pararem. Não vão chegar mais perto.

— É melhor não chegarem.

Uma placa apareceu: DÉPARTEMENT DU TARN.

— Estou cruzando a fronteira — afirmou Gabriel.

— Continue.

Estavam num túnel de árvores. Quando emergiram, viram uma cerca de arame ao longo do lado direito da estrada. O campo do outro lado estava escuro. Nuvens pesadas produziram uma noite sem lua.

— Desacelere — ordenou a mulher. — O buraco na cerca está logo à frente.

Gabriel suavizou o pé no acelerador e entrou pela passagem. O caminho era de terra, muito esburacado e molhado de uma chuva recente. O

israelense chacoalhou por uns cem metros e freou.

— Continue — instruiu ela.

Gabriel seguiu em frente, o carro balançando como um navio subindo e descendo com a ondulação.

— Já é suficiente.

O israelense parou.

— Desligue o motor e o farol.

Gabriel hesitou.

— Agora — disse a mulher. — Ou a próxima bala vai atravessar o para-brisa.

Gabriel desligou o motor e a luz. A escuridão era absoluta, assim como o silêncio na ligação. A mulher, pensou ele, tinha colocado o telefone no mudo.

— Quanto tempo acha que ela vai nos fazer esperar? — perguntou Khalid.

— Ela consegue ouvir você — disse a mulher.

— E eu consigo ouvir você — respondeu Khalid, com frieza.

— Foi uma ameaça?

Antes de Khalid poder responder, o vidro traseiro do carro explodiu.

Gabriel tirou uma Beretta de trás das costas e rodou o cilindro.

— Eu sei que você é muito bom com uma arma, senhor Allon, mas eu não tentaria nada. Além disso, já está quase no fim.

— Onde ela está?

— Ligue os faróis — comandou a outra, e a conexão caiu.

35

TARN, FRANÇA

Ela estava cerca de cinquenta metros à frente do carro, em cima de uma leve elevação na terra. Havia fita isolante cobrindo a boca e amarrando as mãos. Eles a tinham vestido com uma saia xadrez, meias-calças escuras e um sobretudo escolar. Parecia que tinham abotoado o casaco na ordem errada dos botões, mas não era isso. Não estava abotoado.

Imediatamente, Khalid abriu sua porta e, gritando o nome de Reema, correu pelo caminho lamacento. Gabriel seguiu alguns passos atrás, levemente curvado, braços esticados segurando a Beretta. Girou para a esquerda e para a direita, procurando algo que não sabia o que era. Reema e a terra atrás dela estavam iluminadas, mas, fora isso, a escuridão no campo era total. Gabriel não via nada, só um pai correndo até a filha aterrorizada.

Algo não estava certo. Por que ela não estava aliviada ao ouvir a voz do pai? E onde estava o outro tiro? A bala prometida na cabeça de Gabriel.

Então, ele entendeu por que o casaco de Reema não servia direito. Não havia atirador, não mais. A menina era a arma.

— Não chegue perto dela! — gritou Gabriel, mas Khalid continuava seguindo o caminho escorregadio.

Foi então que Gabriel viu um lampejo de luz nas árvores que margeavam o campo.

Um celular...

Estava longe, pelo menos a cem metros. O israelense apontou a Beretta na direção da luz e apertou o gatilho até o pente estar vazio. Então, baixou a pistola e se atirou na direção de Khalid.

O saudita era um homem muito mais jovem, mas não um atleta, e Gabriel tinha uma espécie de loucura como vantagem. Cobriu o espaço entre eles com algumas passadas desenfreadas, e jogou o príncipe na terra úmida no exato momento em que a bomba embaixo do casaco de Reema explodiu.

Um flash abrasador de luz iluminou o campo em todas as direções, e pedaços de metal encheram o ar acima da cabeça de Gabriel, como disparos de artilharia. Quando ele olhou de novo, Reema tinha

desaparecido. O que sobrara dela estava espalhado pelos dois lados da trilha. Gabriel tentou segurar Khalid no chão, mas o saudita se contorceu até se libertar, e ficou de pé cambaleando. Estava coberto pelo sangue de Reema, os dois estavam. O israelense virou-se de costas e cobriu os ouvidos quando o primeiro grito terrível de agonia saiu da garganta de Khalid.

Um carro acelerava pela estrada. Gabriel encontrou a Beretta, ejetou o pente vazio e inseriu um novo. Então, virou-se lentamente e viu Khalid coletando os membros da filha.

— Chame uma ambulância — disse ele. — Por favor, precisamos levá-

la para o hospital.

Gabriel caiu de joelhos e vomitou violentamente. Então, levantou o rosto ao céu sem luar e rezou para que uma chuva repentina lavasse o sangue da criança de seu rosto.

— É a morte! — gritou, a plenos pulmões. — Morte, morte, morte!

Parte Três

ABSOLVIÇÃO

36

SUDOESTE DA FRANÇA–JERUSALÉM

Mikhail Abramov e Christopher Keller tinham ouvido a explosão frenética de artilharia — dez balas, todas disparadas na mesma direção —

seguida, alguns segundos depois, por uma explosão. Fora relativamente pequena, a julgar pelo som, mas o flash da detonação foi suficiente para iluminar o céu no canto remoto de Tarn. A cena que encontraram ao chegar ao local era algo saído do Inferno de Dante. Os dois eram veteranos de combate responsáveis por executar inúmeros assassinatos extrajudiciais, mas ficaram enojados com o que viram. Gabriel estava de joelhos na lama, ensopado de sangue, gritando aos céus. Khalid segurava algo que parecia um pequeno braço, e gritava algo sobre uma ambulância. Mikhail e Keller nunca mais falariam sobre aquilo. Nem um com o outro, nem, certamente, com os franceses.

Depois de se recompor o suficiente para pensar com mais clareza, Gabriel ligou para Paul Rousseau em Paris — que ligou para seu chefe, que ligou para o ministro, que ligou para o Palácio do Eliseu. Dentro de minutos, as primeiras unidades da polícia estavam enfileiradas pela D629, e todo o campo logo ficou aceso de luzes de cena de crime. Sob ordens diretas do presidente francês, não foi feita tentativa de interrogar o extenuado pai nem o arrasado chefe da inteligência israelense.

As equipes forenses reuniram meticulosamente os restos mortais da vítima; os especialistas em explosivos, os fragmentos da bomba que a matara. Todas as evidências foram levadas a Paris naquela noite por um helicóptero policial. Gabriel, Khalid, Mikhail e Keller também. Ao alvorecer, o príncipe e os restos mortais de sua filha estavam de novo no ar, dessa vez rumo à Arábia Saudita. Para Gabriel e seus comparsas, porém, os franceses tinham outros planos.

Ele era aliado — inclusive, tinha praticamente destruído sozinho a rede terrorista do Estado Islâmico na França — e foi tratado de forma apropriada. O inquérito, por assim dizer, aconteceu naquele mesmo dia, numa sala dourada e com lustres do Ministério do Interior. Estavam presentes o próprio ministro, os chefes de várias unidades policiais e serviços de inteligência, e vários tomadores de nota, copeiros e

funcionários variados. Mikhail e Keller foram poupados de perguntas diretas, e os franceses juraram que não haveria gravação eletrônica.

Gabriel supôs que estivessem mentindo.

Para começo de conversa, o ministro exigiu saber como o chefe da inteligência israelense tinha se envolvido na busca pela princesa. Gabriel respondeu, com sinceridade, que tinha aceitado a missão a pedido do pai da menina.

— Mas a Arábia Saudita é sua adversária, não é?

— Eu estava querendo mudar isso.

— Recebeu assistência de alguém dentro da instituição de segurança e inteligência francesa?

— Não.

Sem dizer nada, o ministro apresentou uma fotografia a Gabriel. Um Passat sedan entrando na sede do Grupo Alpha na rue Nélaton. A visita, explicou Gabriel, tinha sido só uma cortesia.

— E a mulher no banco do carona? — indagou o ministro.

— É uma colega.

— Segundo a polícia suíça, aquele mesmo carro estava em Genebra na noite seguinte, quando Lucien Villard foi morto por uma bomba numa maleta. Imagino que você também estivesse lá?

— Estava.

— A inteligência israelense matou Lucien Villard?

— Não seja ridículo.

O ministro jogou uma fotografia embaixo do nariz de Gabriel. Um homem sentado num café em Annecy.

— Foi ele?

Gabriel fez que sim.

— Você conseguiu identificá-lo?

— Não.

Outra fotografia.

— E ela?

— Acredito que seja a mulher com quem falei ontem à noite.

— Ela cuidou das negociações?

— Não houve negociações.

— Não teve troca de dinheiro?

— A exigência foi a abdicação.

— E os dez tiros que você disparou?

— Vi a luz da tela de um celular. Supus que ele fosse ser usado para detonar a bomba.

— Ele?

Gabriel inclinou a cabeça na direção do homem na fotografia.

— Se eu tivesse conseguido atingi-lo...

— Poderia ter salvado a criança.

Gabriel não disse nada.

— Foi um erro não nos envolver. Podíamos tê-la trazido em segurança.

— Eles disseram que iam matá-la.

— Sim — disse o ministro. — E agora ela está morta.

E assim se seguiu, tarde adentro, até as luzes das ruas de Paris estarem brilhando abaixo das do ministério. Era uma tolice, e os dois lados sabiam.

Os franceses pretendiam varrer todo aquele episódio sujo para baixo do tapete. Quando, por fim, as perguntas pararam e os tomadores de nota baixaram as canetas, houve apertos de mão entre todos, como se faz em velórios, fugidios, de consolo. Um carro oficial levou Gabriel, Mikhail e Keller para o Charles de Gaulle. Keller embarcou num avião para Londres; Gabriel e Mikhail, num para Tel Aviv. Durante o voo de quatro horas, não falaram do que tinha se passado em Tarn. Nunca falariam.

No dia seguinte, houve uma nota nos jornais do sul, algo sobre restos mortais encontrados num campo remoto, uma adolescente, com certeza menina. Chegou ao Le Figaro e uma pequena notícia foi lida no jornal televisivo da noite, mas o encobrimento dos franceses foi tão completo —

e a mídia estava tão distraída com os “coletes amarelos” — que logo aquilo foi esquecido. Às vezes, até Gabriel se perguntava se tinha sonhado.

Mas bastava ouvir as gravações das conversas com a mulher para se lembrar de que uma criança tinha sido explodida em pedaços diante de seus olhos.

Se estava de luto, não dava sinais disso, pelo menos, não entre as paredes do Boulevard Rei Saul. A abdicação de Khalid tinha jogado a Arábia Saudita — e, por extensão, toda a região — num turbilhão político.

Para piorar as coisas, o presidente dos Estados Unidos declarou a intenção de retirar todas as forças norte-americanas da Síria, efetivamente cedendo o controle do país aos iranianos e à sua aliada, a Rússia. Horas depois do anúncio, feito via Twitter, um míssil do Hezbollah disparado de território

sírio cruzou o espaço aéreo israelense e foi interceptado em Hadera.

Gabriel forneceu ao primeiro-ministro a localização de um bunker de comando iraniano secreto ao sul de Damasco. Vários oficiais do Corpo da Guarda Revolucionária do Irã foram mortos na retaliação, levando Israel e a República Islâmica para ainda mais perto de uma guerra.

Mas foi a Arábia Saudita que ocupou a maior parte do tempo de Gabriel durante aqueles dias infinitos após sua volta da França. Sua previsão acertada de que Khalid estava prestes a abdicar, de repente, tornou-o o novo favorito de Langley, que estava se agarrando a qualquer coisa para descobrir o que acontecia dentro da corte real de seu aliado mais próximo no mundo árabe. Khalid estava em Riad? Será que estava vivo? Gabriel conseguia oferecer pouca ajuda aos americanos, pois suas próprias tentativas de falar com Khalid tinham se revelado infrutíferas, e o telefone grampeado do saudita já não emitia sinal. O israelense também não conseguiu fornecer aos americanos — nem a seu primeiro-ministro, por sinal — informação confiável sobre o provável sucessor de KBM.

Consequentemente, quando Gabriel foi acordado às três da manhã com a notícia de que seria o príncipe Abdullah, meio-irmão do rei que morava fazia tempos em Londres, ficou tão surpreso quanto todos os outros.

O Escritório sabia o básico sobre a carreira sem distinção de Abdullah e, nos dias seguintes à sua ascensão, o departamento de Coletas e Pesquisa rapidamente preencheu as lacunas. Ele era contra Israel, contra o Ocidente e guardava um rancor permanente dos Estados Unidos, que culpava pela violência e pelo caos político no Oriente Médio. Tinha duas esposas em Riad, que raramente via, e um grupo de mulheres e homens que atendiam suas necessidades sexuais em sua mansão em Belgravia. Um muçulmano wahabista devoto, ele bebia muito e tinha se tratado três vezes numa instituição exclusiva nos arredores de Zurique. Nos negócios, era agressivo mas imprudente. Apesar de um estipêndio mensal generoso, dinheiro sempre era um problema.

Houve especulação na mídia de que Abdullah era apenas um príncipe herdeiro substituto, que permaneceria no posto até um candidato definitivo ser escolhido entre os da próxima geração. Abdullah, porém, rapidamente consolidou seu poder purgando a corte real e os serviços de segurança saudita da influência do sobrinho. Também jogou fora O caminho para o futuro, o plano ambicioso de Khalid para transformar a economia saudita, e deixou claro que não se falaria mais em reformar a fé. O wahabismo,

proclamou, era a religião oficial do reino e seria praticado em sua forma mais pura e severa. As mulheres foram sumariamente despojadas do direito de dirigir ou frequentar eventos esportivos — e a Mutaween, a temida polícia religiosa saudita, recebeu de novo licença para aplicar as regras de pureza islâmica, com prisões e brutalidade física se necessário.

Quem se opusesse seria preso ou açoitado publicamente. A fugidia Primavera de Riad tinha chegado ao fim.

O que levou, principalmente no Ocidente, a outra grande reavaliação.

Será que os americanos e seus aliados europeus tinham sido duros demais com os erros de Khalid? Teriam ingenuamente pressionado a Casa de Saud e a deixado sem saída exceto voltar a seu método de sobrevivência testado e comprovado? Teriam deixado passar uma oportunidade de ouro de mudar o Oriente Médio? Nas salas seguras e salões de Washington e Londres, eles discutiram sobre quem tinha perdido a Arábia Saudita. Em Tel Aviv, porém, Gabriel abordou a questão de uma maneira completamente diferente. Aquela nação, concluiu, não tinha sido perdida, mas tirada deles.

A questão era: por quem?

Embora Gabriel tenha conseguido esconder seu luto da equipe, Chiara o enxergava como se ele fosse transparente. Não era difícil; ele o revivia cada noite no tumulto encharcado de suor que o invadia no sono. Várias vezes, ela foi acordada pelo grito dele. As palavras eram sempre as mesmas.

— É a morte! — berrava ele. — Morte, morte, morte!

Gabriel tinha contado a ela uma versão muito resumida da história após voltar da França. Khalid e ele tinham sido levados pelos sequestradores a um campo remoto, a menina tinha morrido. Chiara resistira à tentação de insistir por mais detalhes. Sabia que, um dia, ele contaria tudo.

Aquilo o consumia, isso era óbvio. O que ele precisava, pensou ela, era de uma pintura, alguns metros quadrados de tela danificada que ele pudesse consertar. Mas Gabriel não tinha um quadro, só um país para proteger, e estava assombrado pela perspectiva de guerra ao norte. O

Hezbollah e os iranianos tinham empilhado mais de 150 mil mísseis e foguetes na Síria e no Líbano. O maior era capaz de ir além de Tel Aviv.

Em caso de conflito, toda a Galileia e boa parte da Planície Costeira estariam ao alcance. Milhares podiam morrer.

— É por isso que a presença americana na Síria é tão importante. Eles são um cabo de detonação. Quando forem embora, só haverá um controle para a agressão do Hezbollah e do Irã.

— Os russos — disse Chiara.

Já passava de meia-noite. Gabriel estava sentado na cama com as costas apoiadas na cabeceira, uma pilha de arquivos do Escritório no colo, uma luminária de lâmpada halógena acesa sobre seu ombro. A televisão estava no mudo para não acordar as crianças. No início daquela noite, o Hezbollah disparara quatro foguetes na direção de Israel. Tinham sido destruídos pelo sistema de defesa de mísseis da Cúpula de Ferro, mas um havia alcançado os arredores de Ramat David, cidade no vale de Jezreel em que Gabriel vivera quando criança. A Força Aérea Israelense preparava um enorme ataque de retaliação, com base em informações fornecidas pelo Escritório.

— Uma prévia das próximas atrações — disse ele, suavemente.

— Como fazemos parar?

— Sem ser com uma guerra total? — Gabriel fechou o arquivo que estava lendo. — Com uma estratégia para tirar os russos, os iranianos e o Hezbollah da Síria.

— E como fazemos isso?

— Criando um governo central decente em Damasco, liderado pela maioria sunita em vez de pelo regime ditatorial brutal de uma minoria alauita minúscula.

— E eu imaginando que ia ser difícil. — Chiara entrou na cama ao lado dele. — Os árabes provaram, sem dúvida alguma, que não estão prontos para governar a si mesmos.

— Não estou falando de uma democracia jeffersoniana. Estou falando de um déspota iluminado.

— Como Khalid? — perguntou Chiara, cética.

— Depende de qual Khalid.

— Quantos existem?

— Dois — respondeu Gabriel. — O primeiro recebeu poder absoluto antes de estar pronto.

— E o segundo?

— É o homem que assistiu à filha sofrer uma morte inimaginável.

Houve um momento de silêncio. Então, Chiara perguntou:

— O que aconteceu naquele campo na França?

— Salvei a vida de Khalid — disse Gabriel. — E acho que ele nunca vai me perdoar por isso.

Chiara olhou para a televisão. O novo governante de facto da Arábia Saudita estava se reunindo com religiosos sêniores, incluindo um imã que regularmente acusava os judeus de serem descendentes de macacos e porcos.

— O que você vai fazer? — questionou ela.

— Vou descobrir quem roubou a Arábia Saudita.

— E depois?

Gabriel desligou a luminária.

— Roubar de volta.

37

TEL AVIV

Foi nesse ponto, no fim de fevereiro, enquanto Israel era castigado por uma série de tempestades de inverno, que começou uma grande busca à qual o Escritório depois se referiria como “Onde diabos está Khalid?”.

Havia sérias dúvidas de que ele sequer estivesse entre os vivos. O chefe dos observadores, Eli Lavon, convencera-se de que KBM estava a alguns palmos da superfície do Négede, provavelmente, em vários pedaços. Para defender sua teoria, ele lembrava que o celular do árabe estava fora do ar.

Ainda mais preocupante era um relato, nunca corroborado, de que Khalid tinha sido levado sob custódia pouco depois de o Conselho de Aliança nomear Abdullah príncipe herdeiro. O ex-futuro rei, concluiu Lavon, não deveria nem ter saído vivo da França. Voltar à Arábia Saudita com os restos mortais da filha dera aos conspiradores a oportunidade perfeita de garantir que ele nunca fosse uma ameaça.

Gabriel não desprezou a teoria de Lavon de início, pois, nas horas seguintes ao assassinato de Reema, havia alertado Khalid sobre a insensatez de voltar a Riad. Discretamente, tinha procurado seu antigo arqui-inimigo da polícia secreta saudita para ver se havia notícias do destino de Khalid. Sem resposta. O antigo arqui-inimigo, disse Lavon, provavelmente tinha sido descartado na limpeza pós-Khalid. Ou talvez, adicionou, de forma sombria, fosse ele quem tivesse enfiado a adaga nas costas de Khalid.

Gabriel e o Escritório não eram os únicos procurando por ele. Havia também os americanos e boa parte da mídia mundial. O ex-príncipe herdeiro tinha sido visto em vários lugares, desde a costa do Pacífico no México até a encantadora ilha caribenha de São Bartolomeu, além de uma villa à beira do golfo em Dubai. Nenhum dos relatos se provou verdadeiro.

Nem a reportagem, no Le Monde, de que Khalid estaria vivendo em esplêndido exílio em seu luxuoso château na Alta Saboia. Paul Rousseau confirmou não terem conseguido achá-lo.

— Temos só uma ou duas perguntas que gostaríamos de fazer a ele sobre Rafiq al-Madani, que também está desaparecido.

— Provavelmente, voltou a Riad.

— Se sim, não carimbou o passaporte na saída da França. Você por acaso não o viu?

Gabriel respondeu, com alguma veracidade, que não conhecia o paradeiro de al-Madani. O de Khalid também permanecia um mistério. E

quando mais uma semana se passou sem sinal dele, Gabriel temeu pelo pior. No fim, foi Sarah Bancroft quem o encontrou. Mais especificamente, foi encontrada por Khalid. Ele estava bem e saudável, e se escondia a bordo do Tranquility com uma equipe reduzida e alguns guarda-costas de confiança. Queria saber se Gabriel teria alguns minutos para conversar.

— Ele está ancorado perto de Sharm el-Sheikh, no mar Vermelho —

disse Sarah. — Vai mandar um helicóptero para você.

— É muito generoso da parte dele, mas tenho uma ideia melhor.

— Qual é?

Gabriel explicou.

— Você não pode estar falando sério.

— Ele prometeu me dar o que eu quisesse. É isso que eu quero.

38

EILAT, ISRAEL

Como diretor-geral do Escritório, Gabriel tinha autoridade para executar operações sensíveis sem obter aprovação prévia do primeiro-ministro. Seu cargo, porém, não lhe dava licença para convidar o líder deposto de uma nação árabe, formalmente hostil, para visitar o Estado de Israel, mesmo que não oficialmente. Entrar com Khalid escondido na embaixada em Londres no calor da batalha era uma coisa, mas dar a ele acesso ao terreno mais contestado do mundo era diferente. O primeiro-ministro, depois de um debate tenso, aprovou a visita, desde que em segredo. Gabriel, que tinha praticamente dado o príncipe saudita como morto, estava confortável com os termos. A última coisa com que precisavam se preocupar, disse, era uma selfie nas redes sociais. As antigas contas de Twitter e Instagram de Khalid estavam inativas; e a Casa de Saud tinha apagado a memória da existência dele. O ex-príncipe herdeiro era um fantasma.

Seu helicóptero Airbus H175 VIP pousou numa nuvem de poeira às margens do golfo de Aqaba às 8 horas do dia seguinte. Um tripulante abriu a porta da cabine e Khalid, vestindo calça de algodão cáqui e um blazer italiano, pisou hesitante em solo israelense pela primeira vez. Só Gabriel e seu pequeno destacamento de segurança estavam presentes para testemunhar a ocasião. Sorrindo, Gabriel estendeu a mão, mas o saudita o puxou para um abraço apertado. Para o bem ou para o mal, e por todos os motivos errados, eles tinham se tornado amigos íntimos.

Khalid examinou a paisagem áspera e bege.

— Eu esperava vir aqui um dia sob outras circunstâncias.

— Talvez — disse Gabriel — eu também consiga organizar isso.

Dirigiram-se ao norte pelo deserto de Négede na SUV blindada de Gabriel. Khalid pareceu surpreso de ver outros veículos na rua.

— É melhor — explicou o israelense — nos escondermos à vista de todos.

— E se alguém me reconhecer?

— Israel é o último lugar no mundo em que alguém esperaria vê-lo.

— É porque é o último lugar no mundo em que eu deveria estar. Mas, afinal, acho que não tenho mais aonde ir.

Khalid estava claramente desconfortável com suas circunstâncias menos imponentes e seu status global diminuído. Enquanto mergulhavam mais fundo no deserto sob um céu sem nuvens, ele falou do que tinha acontecido em seu retorno à Arábia Saudita após o assassinato de Reema.

Ele a enterrou segundo a tradição wahabista, disse, numa cova não identificada no deserto. Então, começou a tentar recuperar seu lugar na linha de sucessão. Como temia, não era possível. O Conselho de Aliança já tinha se decidido por Abdullah, mentor e confessor de Khalid, como novo príncipe herdeiro. Ele jurou sua lealdade ao tio, mas Abdullah, temendo a influência do sobrinho, o destituiu sumariamente de todos os seus cargos poderosos no governo. Quando Khalid se opôs, foi preso e levado a um quarto no Ritz-Carlton, onde foi forçado a entregar boa parte de suas riquezas. Temendo por sua vida, ele se refugiou no Tranquility. Asma, sua esposa, recusou-se a ir para o exílio com ele.

— Ela o culpa pela morte de Reema?

Khalid fez que sim, lentamente.

— Bastante irônico, não acha? Defendi os direitos das mulheres na Arábia Saudita e, como recompensa, fui abandonado por minha própria esposa.

— E por seu tio também.

— Foi no que deu o conselho dele de não abdicar — concordou Khalid.

— Parece que Abdullah estava tramando contra mim desde o início. O

Conselho de Aliança não considerou nenhum outro candidato. O bolo, como dizem, já estava no forno. Quando eu saí do caminho, o trono ficou à disposição de Abdullah. Nem meu pai conseguiu impedir.

— Como ele está?

— Meu pai? Tem momentos de lucidez, mas, na maior parte do tempo, vive numa névoa de demência. Abdullah tem controle total da máquina do reino, você tem visto os resultados. Saiba que ele não terminou. Aqueles senadores e congressistas em Washington que estavam querendo meu sangue vão amaldiçoar o dia em que me criticaram.

Era perto de dez da manhã quando a superfície cor de mercúrio do mar Morto apareceu no horizonte. Em Ein Gedi, Gabriel perguntou se Khalid queria nadar, mas o árabe negou. Ele já havia se banhado no lado jordano do mar Morto e não gostara da experiência.

Passaram sem desacelerar por um posto de controle e adentraram a Cisjordânia. Em Jericó, ficava a entrada para Jerusalém. Em vez disso,

seguiram para o norte. A expressão de Khalid ficou sombria ao passarem por uma série de povoados israelenses ao longo do rio Jordão.

— Como espera que eles construam um Estado se você tomou toda a terra?

— Não tomamos toda a terra — respondeu Gabriel. — Mas garanto que nunca vamos sair do vale do Jordão.

— Não pode haver dois Estados com judeus dos dois lados da fronteira.

— Infelizmente, esse trem já partiu.

— Que trem?


— A solução de dois Estados. Está morta e enterrada. Temos que pensar em coisas novas.

— Qual é a alternativa?

— Primeiro, a paz. Depois — falou Gabriel —, qualquer coisa é possível.

Passaram por mais um posto de controle antes de entrar em Israel de fato, e aceleraram através de terras agrícolas planas e férteis até o extremo sul do mar da Galileia. Lá, viraram para leste e subiram as colinas de Golã. Na cidade drusa de Majdal Shams, viram o sul da Síria através de uma cerca de arame farpado. O exército sírio e seus aliados russos e iranianos tinham eliminado as últimas forças rebeldes. O regime estava de novo controlando o território na fronteira com Israel.

Pararam para almoçar em Rosh Pina, um dos mais antigos povoados sionistas em Israel, antes de começar a cruzar a Alta Galileia. Gabriel apontou o que sobrou de vilarejos árabes abandonados. Até caminhou com Khalid entre as ruínas de al-Sumayriyya, a aldeia árabe da Galileia Ocidental cujos residentes tinham fugido em 1948 para o Líbano. Eles viram o novo skyline brilhante de Tel Aviv da rodovia 6, e se aproximaram de Jerusalém, a cidade fraturada de Deus sobre um morro, pelo oeste.

Depois de cruzar a fronteira invisível para Jerusalém Oriental, prosseguiram pelas muralhas otomanas da Cidade Velha até o Portão do Leão. A pequena praça além deles estava vazia. Só havia policiais e soldados israelenses.

— Onde estamos? — perguntou Khalid, com a voz tensa.

Gabriel abriu a porta do carro e saiu.

— Venha comigo. Vou lhe mostrar.

A pequena praça dentro da Porta do Leão não era a única parte do Bairro Muçulmano que Gabriel mandara fechar ao público naquela tarde. Havia também a ampla esplanada sacra ao sul, conhecida pelos judeus como monte do Templo e pelos muçulmanos como Haram al-Shariff, o Nobre Santuário. Os dois amigos entraram no complexo pela Bab al-Huttah, a Porta da Absolvição. A Cúpula da Rocha, dourada, brilhava suavemente com a luz fria do início da tarde. A imponente Mesquita de al-Aqsa estava recortada no horizonte.

— Fez isso para mim?

Gabriel assentiu.

— Como?

— Sou um homem — disse ele — com alguma influência.

Alguns representantes do Waqf estavam reunidos do lado oriental da esplanada.

— Quem eles acham que eu sou? — perguntou Khalid.

— Um notável árabe de um dos emirados.

— Espero que não do Catar.

Eles entraram na Cúpula da Rocha e, juntos, olharam solenemente para a Pedra Fundamental. Era o topo do monte Moriá, local em que os muçulmanos acreditavam que Maomé tinha subido aos céus, e os judeus, que Abraão sacrificaria seu filho mais novo, se não pela intercedência de um arcanjo chamado Gabriel. Depois, Khalid rezou na Mesquita de al-Aqsa enquanto o homônimo do anjo, sozinho na esplanada, contemplava o nascer da lua acima do monte das Oliveiras. A noite tinha caído quando o saudita saiu da mesquita.

— Onde fica a câmara em que você encontrou os pilares do tal Templo de Salomão?

Gabriel apontou para baixo, para as profundezas do patamar.

— E o Muro das Lamentações?

Gabriel inclinou a cabeça para o oeste.

— Você pode me levar à câmara? — perguntou Khalid.

— Talvez em outro momento.

— E ao Muro?

Estavam parados a apenas poucos metros do topo do Muro Ocidental, mas foram até lá na SUV do israelense. Os gigantes silhares herodianos estavam bastante iluminados, assim como a praça ampla em sua base.

Gabriel não tentou fechar o lugar para a visita de Khalid. Estava lotado de devotos e turistas.

— Os homens e as mulheres rezam separados — observou o saudita, com malícia.

— Para o desalento dos judeus mais liberais.

— Talvez possamos mudar isso.

— Shwaya, shwaya — disse Gabriel.

Khalid tirou um pequeno pedaço de papel do bolso interno de seu paletó.

— É uma oração para Reema. Gostaria de deixar no muro.

Gabriel colocou um quipá no topo do cabelo escuro de Khalid e observou-o aproximar-se do muro. Ele colocou o bilhete entre dois dos silhares e inclinou a cabeça numa oração silenciosa. Ao voltar, lágrimas escorriam. A SUV estava estacionada na Porta de Dung. Eles atravessaram para o lado ocidental da cidade, a caminho do antigo bairro conhecido como Nachlaot. Na entrada da rua Narkiss, havia um posto de controle.

Passaram sem desacelerar e pararam em frente ao prédio residencial de pedra calcária, número 16.

— Onde estamos agora? — perguntou Khalid.

— Em casa — disse Gabriel.

39

JERUSALÉM

Chiara tinha aberto uma garrafa de Domaine du Castel, um vinho estilo Bordeaux das montanhas da Judeia. Khalid prontamente aceitou uma taça.

Por ter sido deposto, disse, já não tinha desculpas para manter a aparência de devoção wahabista. Pareceu surpreso que um homem tão poderoso quanto Gabriel vivesse numa habitação tão modesta. Mas, afinal, qualquer casa pareceria humilde a um príncipe que tinha crescido num palácio do tamanho de um quarteirão urbano.

O olhar dele estudou com ar de especialista os quadros nas paredes da sala de estar.

— Seus?

— Alguns — respondeu Gabriel.

— E os outros?

— Da minha mãe e do meu avô. E um ou dois da minha primeira esposa.

Chiara tinha preparado comida suficiente para Khalid e a entourage que costumava acompanhá-lo aonde ele fosse. Foi servida na sala de jantar.

Khalid sentou-se à cabeceira, com Gabriel e Chiara de um lado e Raphael e Irene do outro. O chefe do serviço secreto israelense apresentou Khalid às crianças como senhor Abdulaziz, mas ele insistiu em só ser chamado por seu primeiro nome. Os pequenos estavam claramente intrigados com sua presença na casa. Gabriel raramente recebia convidados na rua Narkiss e as crianças, apesar de viverem muito perto de Jerusalém Oriental, quase nunca viam árabes, quanto mais no jantar.

Mesmo assim, só levou alguns minutos para os dois caírem nas graças de Khalid. Com seu cabelo escuro, traços elegantes e olhos castanhos afetuosos, ele parecia a versão hollywoodiana de um príncipe árabe. Era fácil imaginar Khalid com robes e turbantes do deserto, cavalgando para a batalha ao lado de T. E. Lawrence. Mesmo sem o dinheiro e os brinquedos caros, seu charme e carisma eram irresistíveis.

Só falaram de temas seguros — pinturas, livros, a jornada dele por parte de Israel e da Cisjordânia, qualquer coisa menos a morte de Reema e sua desgraça particular. Ele estava contando às crianças histórias de

falcoaria quando soaram as sirenes em Nachlaot. Gabriel ligou para o Boulevard Rei Saul e descobriu que mais um míssil vinha da Síria, dessa vez, na direção de Jerusalém.

— E se este atingir o Haram al-Sharif? — perguntou Khalid.

— Sua viagem a Israel vai ficar bem mais interessante.

Por vários minutos, esperaram o baque, até que as sirenes pararam.

Gabriel ligou para o Boulevard Rei Saul pela segunda vez e foi informado de que o míssil havia sido interceptado, seus destroços caído, sem danos, num campo nos arredores do povoado de Ofra, na Cisjordânia.

Às nove da noite, as crianças começaram a espernear. Chiara as levou para a cama enquanto Gabriel e Khalid terminavam o vinho no terraço. O

saudita se sentou na cadeira que costumava ser usada por Shamron. O

cheiro do eucalipto era intoxicante.

— Isso faz parte de se esconder à vista de todos?

— Infelizmente, meu endereço é o segredo menos bem guardado de Israel.

— E sua primeira esposa? Onde está?

Gabriel olhou para oeste. O hospital, como explicou, ficava no antigo vilarejo árabe de Deir Yassin, onde soldados judeus dos grupos paramilitares Irgun e Lehi haviam massacrado mais de cem palestinos na noite de 9 de abril de 1948.

— Deve ser terrivelmente doloroso para ela ter que viver num lugar desses.

— É a vida — respondeu Gabriel — na Terra Duplamente Prometida.

Khalid deu um sorriso triste.

— Você viu acontecer?

— O quê?

— A bomba que matou seu filho e feriu sua esposa?

Gabriel assentiu lentamente.

— Você me poupou dessa memória. Acho que eu deveria ser grato. —

Khalid bebeu um pouco do vinho. — Lembra as coisas que disse aos sequestradores quando estava negociando a libertação de Reema?

— Tenho as gravações.

— E as palavras que gritava depois de a bomba explodir?

Gabriel não disse nada.

— Devo admitir — falou Khalid — que é a única coisa em que penso desde aquela noite.

— Sabe o que dizem sobre vingança?

— O quê?

— “Antes de iniciar uma vingança, cave duas covas.”

— É um antigo provérbio árabe.

— Na verdade, é judeu.

— Não seja bobo — disse Khalid, com um lampejo de sua velha arrogância. — Você já fez alguma tentativa de encontrá-los?

— Fiz alguns questionamentos — respondeu Gabriel, vagamente.

— Algum deu frutos?

Gabriel negou.

— Nem os meus.

— Talvez devamos nos unir.

— Concordo — disse Khalid. — Por onde vamos começar?

— Omar Nawwaf.

— O que tem ele?

— Por que deu a ordem para matá-lo?

Khalid hesitou, mas respondeu:

— Fui aconselhado a fazer isso.

— Por quem?

— Pelo meu querido tio Abdullah. O próximo rei da Arábia Saudita.

40

JERUSALÉM

No fim das contas, a culpa, começou Khalid, em tom de brincadeira, era dos americanos. Após os atentados de 11 de setembro, eles exigiram que a família real fosse dura com a al-Qaeda e cortasse o fluxo de dinheiro e a ideologia wahabista que tinha dado origem à organização. As ligações do reino com o pior ataque em solo americano na história eram inegáveis.

Quinze dos dezenove sequestradores eram cidadãos sauditas, e Osama bin Laden, fundador e mentor da al-Qaeda, era descendente de uma família saudita notável que tinha ficado fabulosamente rica devido a suas ligações financeiras com a Casa de Saud.

— Há muitos motivos para o 11 de setembro ter acontecido —

argumentou Khalid —, mas nós, sauditas, precisamos aceitar nossa responsabilidade. O atentado deixou uma mancha indelével em nosso país e em minha família, e nada parecido pode acontecer de novo.

Para combater a al-Qaeda de forma efetiva, o reino precisava de tecnologia de contravigilância para monitorar as comunicações na internet dos suspeitos de terrorismo e seus colegas viajantes, em especial, depois de o movimento jihadista global ter se transformado com o advento das redes sociais. Para isso, ele mesmo estabeleceu o Centro de Dados Real e o encheu de ciberferramentas sofisticadas compradas dos modernos emiradenses e de uma firma particular italiana. O centro chegou a adquirir software para hackear celulares de uma empresa israelense chamada ONS

Systems. Gabriel estava ciente da transação. Tinha se oposto veementemente, bem como o chefe da Unidade 8200, mas os dois foram vencidos pelo primeiro-ministro.

O Centro de Dados Real permitia que o regime monitorasse não só potenciais terroristas, como também oponentes políticos comuns. Por esse motivo, Khalid passou a controlá-lo quando se tornou príncipe herdeiro.

Usou para espionar os aparelhos móveis de inimigos e rastrear as atividades deles no ciberespaço. O centro também dava ao saudita o poder de monitorar e manipular as redes sociais. Não tinha vergonha de admitir que, como o presidente americano, estava obcecado por seu status no universo paralelo do Twitter e do Instagram. Não era mera vaidade que

dominava suas preocupações. Ele temia a possibilidade de ser derrubado por uma rebelião de hashtags, como a que causara a queda de Mubarak no Egito. O Catar, seu arquirrival no golfo, estava trabalhando on-line contra ele, assim como vários comentaristas e jornalistas que tinham adquirido enormes quantidades de seguidores árabes jovens e inquietos, desesperados por mudança política.

Um desses comentaristas era um saudita chamado Omar Nawwaf.

Nawwaf era editor-chefe do Arab News, o jornal diário de língua inglesa mais importante da Arábia Saudita. Correspondente veterano no Oriente Médio, tinha conseguido manter boas relações tanto com a Casa de Saud, a quem devia sua sobrevivência como jornalista, quanto com a al-Qaeda e a Irmandade Muçulmana. Como resultado, a corte real, regularmente, utilizava-o como emissário às forças do Islã político. Ele, um ateu, havia muito defendia a flexibilização das restrições inspiradas no wahabismo sobre as mulheres, e recebeu a ascensão de um jovem KBM

reformista com um editorial entusiasmado. Seu apoio se dissolveu quando Khalid suprimiu de forma inclemente a oposição política e enriqueceu às custas do povo.

Não levou muito tempo para Khalid e seus asseclas perceberem que tinham um problema chamado Omar Nawwaf. No início, tentaram desarmar a situação com charme e engajamento. Mas, quando as críticas do jornalista se intensificaram, ele recebeu uma ordem de parar ou sofrer graves consequências. Ao se deparar com a escolha entre o silêncio e o exílio, Nawwaf escolheu o exílio. Refugiou-se em Berlim e encontrou trabalho na Der Spiegel, a mais importante revista alemã. Livre da máquina de repressão da Arábia Saudita, ele deslanchou uma torrente de comentários ácidos sobre seu obstinado príncipe herdeiro, pintando-o como fraude e vigarista, sem intenção de fazer reforma política real em seu reino. Khalid declarou guerra a Nawwaf de dentro do Centro de Dados Real, mas não adiantou. Só no Twitter, Nawwaf tinha quase dez milhões de seguidores, muito mais que o futuro monarca. O intrometido jornalista exilado estava ganhando a batalha de ideias nas redes sociais.

— E aí — disse Khalid — houve um acontecimento muito intrigante.

Omar Nawwaf, meu grande detrator, pediu uma entrevista.

— E você recusou?

— Nem pensei duas vezes.

— O que aconteceu?

Nawwaf fez um segundo pedido. Depois, um terceiro. Quando nenhum deles recebeu resposta, usou seus contatos dentro da Casa de Saud para enviar uma mensagem diretamente a Khalid.

— Parecia que o pedido de entrevista era uma armadilha desde o começo. Ele alegava ter descoberto informações sobre uma ameaça contra mim. Insistia em me contar sobre essa ameaça pessoalmente. Claro, dado tudo que ele tinha escrito e dito sobre mim, eu estava cético. Meus seguranças também. Estavam convencidos de que ele queria me matar.

— Com o quê? Uma caneta e um caderno?

— Quando Bin Laden matou Ahmad Shah Massoud, da Aliança do Norte, dois dias antes do 11 de setembro, os assassinos posaram como jornalistas televisivos.

— Continue — disse Gabriel.

— Sei que você acha que sou impulsivo e imprudente, mas pensei sobre o assunto. No fim, decidi vê-lo. Enviei uma mensagem pela Embaixada Saudita em Berlim, convidando Omar a voltar ao reino, mas ele se recusou. Disse que só me encontraria numa localização neutra, em algum lugar em que se sentisse seguro. Meus seguranças estavam mais convencidos do que nunca de que Omar pretendia me matar.

— E você?

— Não tinha tanta certeza. Sinceramente, se estivesse na posição de Omar, eu também não voltaria ao reino.

— Mas queria ouvir o que ele tinha a dizer?

— As fontes dele eram impecáveis — explicou Khalid. — Omar tinha contatos na região toda.

— Então, o que você fez?

— Busquei o conselho de alguém em quem achei que podia confiar.

— Tio Abdullah?

Khalid assentiu.

— O próximo rei da Arábia Saudita.

Abdullah bin Abdulaziz Al Saud não era membro dos sete Sudairis, linha de sangue real interna dos filhos do Fundador, que tinha produzido três monarcas sauditas, incluindo o pai de Khalid. Além disso, sabia que nunca seria rei. Vivera sua vida de acordo com isso, com um pé na Arábia Saudita e outro no Ocidente. Mesmo assim, continuava sendo uma figura

importante na Casa de Saud, respeitado por seu intelecto e sua astúcia política. O sobrinho achava seu tio uma fonte de conselhos sábios, precisamente porque ele se opunha a muitas de suas reformas, incluindo à das mulheres, para quem Abdullah só via uma utilidade.

— E quando você contou a seu tio sobre Omar Nawwaf?

— Ele ficou preocupado.

— O que ele sugeriu?

Khalid passou o dedo indicador pela garganta.

— Bastante drástico, não acha?

— Não para os nossos padrões.

— Mas você supostamente era diferente, Khalid. Supostamente seria aquele que ia mudar o Oriente Médio e o mundo islâmico.

— Não posso mudar o mundo se estiver morto, não é?

— E a retaliação?

— Abdullah prometeu que não haveria.

— Que sábio — disse Gabriel, seco. — Mas por que ele diria uma coisa dessas?

— Porque minhas mãos ficariam limpas.

— Abdullah disse que ia cuidar disso?

Khalid assentiu.

— Como ele convenceu Nawwaf a ir ao consulado em Istambul?

— Adivinha!

— Disse a Nawwaf que você estaria lá.

— Muito bem.

— E aquele monte de bobagem que você divulgou depois da morte dele? Aquela conversinha sobre uma operação de rendição que deu errado?

— Omar Nawwaf — falou Khalid, sério — nunca sairia vivo daquele consulado.

— Bem desleixado, não acha?

— Abdullah queria uma morte barulhenta para assustar outros assassinos em potencial.

— Foi barulhenta, sim. E agora, ele é o próximo na linha do trono.

— E eu estou aqui sentado com você em al-Quds. — Khalid ouviu os ruídos da antiga cidade. — Parece que Abdullah me levou a cometer um ato imprudente para danificar meu status internacional e me enfraquecer em casa.

— Parece, sim.

— E se estivermos olhando isso do jeito errado?

— E qual seria o jeito certo?

— E se Omar Nawwaf realmente quisesse me alertar sobre uma grave ameaça? — Khalid olhou seu relógio. — Meu Deus, que tarde.

— Está cedo para os nossos padrões.

O saudita colocou a mão direita em um dos ombros de Gabriel.

— Não sei como agradecer por me convidar a vir aqui.

— Vai ser nosso segredinho.

Khalid sorriu.

— Considerei trazer um presente, mas sabia que você não aceitaria.

Então, isto vai ter que servir. — Ele mostrou um pendrive. — Lindo, não?

— O que tem aí?

— Alguns registros financeiros que obtive durante aquele episódio no Ritz-Carlton. Meu tio Abdullah era péssimo empresário, mas, há alguns anos, virou bilionário quase do dia para a noite. — Ele colocou o pendrive na palma da mão de Gabriel. — Talvez você consiga descobrir como ele fez isso.

41

NOVA YORK–BERLIM

Na noite da improvável visita de Khalid a Jerusalém, Sarah Bancroft estava num encontro com o homem de seus pesadelos. O nome dele era David Price. Eles tinham sido apresentados por um amigo em comum num leilão na Christie’s. David tinha 57 anos e trabalhava com algo relacionado a finanças. Era uma criatura viril, com cabelo preto liso penteado para trás, dentes brancos brilhantes e um bronzeado escuro adquirido durante as férias no Caribe com a ex-esposa e os dois filhos universitários. Ele a levou a uma nova peça que o Times tinha julgado importante e, depois, ao restaurante Joe Allen, onde era conhecido dos atendentes do bar e dos garçons. Depois, na entrada do prédio dela na 67th Street, Sarah evitou os lábios dele como se estivesse pulando uma poça. Já no apartamento, ela ligou para a mãe, atitude rara, e lamentou o estado de sua vida amorosa. A mãe, que sabia pouco do passado secreto de Sarah, sugeriu que ela começasse a fazer ioga, jurando que lhe traria maravilhas.

A bem da verdade, o fracasso da noite não era totalmente culpa de David Price. Sarah estava preocupada com o pedido repentino de Khalid para entrar em contato de novo com Gabriel. Era o primeiro contato dela com qualquer um dos dois desde que voltara a Nova York. Ela ficara sabendo da abdicação de Khalid assistindo à CNN, supondo que Reema tinha sido devolvida em segurança. Gabriel, porém, contara-lhe a verdade.

Sarah sabia que um ato como aquele não ficaria sem punição. As pessoas responsáveis seriam caçadas, haveria uma operação de vingança. Outro motivo para a mente dela ter vagado durante a peça — ela mal se lembrava de qualquer fala — e o jantar no Joe Allen. Queria estar de volta ao campo com Gabriel, Mikhail e o inglês misterioso chamado Christopher Keller, e não jogando conversa fora e comendo fígado acebolado com um investidor divorciado de Connecticut.

Portanto, Sarah não ficou triste quando, três dias depois, acordou e encontrou em sua caixa de entrada um cartão de embarque do voo noturno da Lufthansa para Berlim. Informou, por alto, seus planos de viagem à sua equipe e foi para o aeroporto de Newark. Aparentemente, seu vizinho de assento, um banqueiro de investimentos do Morgan Stanley, tinha jurado

beber todo o estoque de álcool do avião. Sarah comeu pouco do jantar e dormiu até um campo alemão coberto de neve aparecer abaixo de sua janela. Um mensageiro da Estação de Berlim do Escritório se aproximou dela no saguão de desembarque e a acompanhou até uma BMW sedan à espera. Mikhail estava ao volante.

— Pelo menos não é outro Passat horrendo — disse ela, entrando no banco do carona.

Mikhail pegou a rampa de saída do aeroporto até a autoestrada e seguiu em direção a Charlottenburg. Sarah conhecia bem a vizinhança. Enquanto ainda estava na CIA, passara seis meses em Berlim trabalhando com o BfV, o serviço de inteligência interno alemão, contra uma célula da al-Qaeda que tramava outro 11 de setembro a partir de um apartamento na Kantstrasse. Mikhail visitara Sarah em segredo várias vezes durante a missão.

— É bom estar de volta — disse ela, provocativa. — Sempre gostei de Berlim.

— Especialmente no fim do inverno. — Os trilhos de segurança estavam cobertos por uma neve suja, e às 8h30 o céu ainda estava escuro.

— Pelo menos, temos sorte de ela não estar morando em Oslo.

— Quem?

Mikhail não respondeu.

— Você estava lá quando Reema foi morta?

— Perto o suficiente — respondeu Mikhail. — Keller também.

— Ele está em Berlim?

— Keller? — Mikhail olhou de soslaio para ela. — Por que está perguntando?

— Curiosidade, só isso.

— Christopher está com outro compromisso no momento. Somos só nós três de novo.

— Onde está Gabriel?

— No apartamento seguro.

Mikhail entrou na Bundestrasse e seguiu até o Tiergarten. Havia uma manifestação no Portão de Brandemburgo, algumas centenas de pessoas, a maioria na casa dos vinte, de jeans e blusas de lã em estilo escandinavo.

Pareciam membros do Partido Verde ou pacifistas. Suas placas, porém, denunciavam suas verdadeiras convicções políticas.

— São de um grupo chamado Geração Identidade — explicou Mikhail.

— Parecem inofensivos, mas adotam a mesma ideologia dos skinheads e do resto dos neonazistas.

Ele virou à direita na Ebertstrasse, e caiu no silêncio ao passarem pelo desolador Memorial aos Judeus Mortos da Europa, com seus 2.700 blocos de concreto cinza dispostos num terreno do tamanho de um quarteirão.

Sarah levara Mikhail ao local durante uma das visitas secretas dele à cidade. Tinha acabado com o fim de semana dos dois.

Na Potsdamer Platz, que já foi uma terra arrasada pela Guerra Fria mas se tornou um monumento de vidro e aço ao poderio econômico alemão, Mikhail foi pro leste em direção ao bairro de Mitte. Fez uma série de viradas consecutivas, uma manobra de contravigilância bem conhecida, antes de, abruptamente, encostar no meio-fio na Kronenstrasse e desligar o motor.

— Quanto você sabe sobre a família de Gabriel? — perguntou ele.

— O básico, acho.

— Ele é judeu alemão, nosso chefe. Embora tenha nascido em Israel, aprendeu a falar alemão antes do hebraico. É por isso que tem um sotaque britânico tão forte. Pegou da mãe. — Mikhail apontou para um bloco residencial com janelas que brilhavam como ônix polido. — Quando ela era criança, morava num prédio que ficava bem aqui. No outono de 1942, foi despachada a Auschwitz num vagão de gado junto com o resto da família. Foi a única a sobreviver.

Uma lágrima escorreu pela bochecha de Sarah.

— Há algum motivo para você querer que eu veja isso?

— O apartamento seguro é exatamente ali. — Mikhail apontou para o prédio em frente. — Gabriel fez um aluguel de longo prazo quando se tornou chefe.

— Ele vem sempre?

— A Berlim? — Mikhail balançou a cabeça. — Odeia este lugar.

— Então, por que estamos aqui?

— Hanifa — respondeu Mikhail, abrindo a porta do carro. — Estamos aqui por causa de Hanifa.

42

BERLIM

Eram 20h15 quando Hanifa Khoury, produtora veterana de campo da transmissora estatal alemã ZDF, saiu na calçada úmida da Unter den Linden. Um vento frio soprou pelas árvores sem folhas que davam nome ao famoso boulevard. Tremendo, Hanifa enrolou um keffiyeh xadrez preto e branco apertado em volta do pescoço. Ao contrário da maioria dos alemães, ela não usava o acessório por moda ou para demonstrar convicção política anti-Israel; Hanifa era de linhagem palestina. Os olhos dela estudaram a rua em ambas as direções. Tendo trabalhado como jornalista em todo o Oriente Médio, era hábil em perceber vigilância, especialmente, quando conduzida por outros árabes. Não viu nada de suspeito. Aliás, fazia muitas semanas que não notava ninguém a observando. Talvez, pensou, finalmente tivessem decidido deixá-la em paz.

Ela seguiu pela Unter den Linden até a Friedrichstrasse e virou à esquerda mais à frente. Perto do Checkpoint Charlie ficava o bistrô onde ela se encontrava com Omar depois do trabalho. Uma mulher bonita, loura, de quarenta e poucos anos, estava sentada à mesa cativa deles, a do canto no fundo, com uma visão desobstruída da porta da frente. Lia um livro de poesia de Mahmoud Darwish, o bardo do movimento nacional palestino. Quando Hanifa se aproximou, a mulher tirou os olhos da página, sorriu e olhou de novo para baixo.

Hanifa parou de repente.

— Está gostando?

A mulher demorou a responder.

— Desculpe — disse, em inglês. — Não falo alemão.

O sotaque era inconfundivelmente americano. Hanifa considerou se fazer de desentendida e encontrar uma mesa o mais longe possível da mulher loura — talvez, pensou, em outro café. As únicas pessoas que Hanifa desprezava mais que americanos eram israelenses, embora, dependendo dos caprichos da política da Casa Branca no Oriente Médio, fosse parada dura.

— O livro — falou, dessa vez, em inglês. — Perguntei se você estava gostando.

— Seria mesmo possível gostar de versos tão dolorosos?

O comentário surpreendeu Hanifa positivamente.

— Eu o conheci pouco antes de morrer.

— Darwish? Verdade?

— Produzi uma de suas últimas entrevistas.

— Você é jornalista?

— Da ZDF. E você?

— No momento, estou tirando umas férias estendidas.

— Que sorte.

— Na verdade, não.

— Você é americana?

— Infelizmente. — A mulher contemplou o keffiyeh preto e branco ao redor do pescoço de Hanifa. — Espero que não seja um problema.

— Por que seria?

— Não somos muito populares hoje em dia. — A mulher colocou o livro na mesa, de modo que Hanifa conseguisse ver a página aberta. —

Conhece este?

— Claro. É muito famoso. — Recitou de cor a abertura do poema: —

“Aqui nas encostas de morros, em frente ao anoitecer e o cânone do tempo...” — Sorriu. — Soa muito melhor no árabe original.

— Você é da Palestina?

— Meus pais eram da Alta Galileia. Foram expulsos, enviados para a Síria em 1948 e acabaram vindo para cá. — Hanifa baixou a voz e disse, com astúcia: — Espero que não seja um problema.

A mulher sorriu. Hanifa olhou para a cadeira vazia.

— Está esperando alguém?

— Em geral, sim. Mas no momento não.

— Posso me sentar com você?

— Por favor.

Hanifa se sentou e se apresentou.

— Que nome lindo — disse a mulher. Então, estendeu a mão. — Sarah Bancroft.

Durante os noventa minutos seguintes, sozinho no apartamento seguro da Kronenstrasse, Gabriel suportou um discurso sobre Israel e os judeus feito por Hanifa Khoury, jornalista, exilada, viúva do mártir Omar Nawwaf. Ela não deixou passar nada: o Holocausto, a fuga e expulsão do povo palestino, o horror de Sabra e Chatila, os acordos de paz de Oslo, que ela declarou uma tolice perigosa. Com isso, pelo menos, Gabriel concordava inteiramente.

A fonte do áudio era o telefone que Sarah tinha colocado na mesa após se sentar no café. A câmera estava voltada para o teto. Gabriel às vezes via as mãos de Hanifa enquanto a mulher descrevia seu plano para levar paz à Palestina. Ela declarou que a ideia de dois Estados, um para judeus, outro para árabes, era carta fora do baralho. A única solução justa, falou, era um Estado único binacional, com “direito de retorno” completo e irrevogável para todos os cinco milhões de refugiados palestinos registrados.

— Mas isso não seria o fim do Estado judeu? — perguntou Sarah.

— Sim, claro. Mas essa é a questão.

Hanifa, então, presenteou Gabriel com uma leitura de poesia de Mahmoud Darwish, a voz do sofrimento palestino e da opressão israelense, antes de, finalmente, perguntar a sua nova conhecida americana por que tinha decidido tirar umas férias estendidas justamente em Berlim.

Sarah recitou a história que Gabriel havia criado naquela tarde. Dizia respeito à dissolução desastrosa de um casamento sem filhos. Humilhada e de coração partido, Sarah decidira passar alguns meses numa cidade em que ninguém a conhecesse. Um amigo ofereceu seu apartamento de veraneio em Berlim. Ficava na esquina do café na Kronenstrausse.

— E você? — perguntou Sarah. — É casada?

— Só com meu trabalho.

— Seu nome é familiar.

— É bem comum, na verdade.

— Seu rosto também é familiar. É quase como se já tivéssemos nos conhecido.

— Ouço muito isso.

Nesse ponto, já eram 21h30. Hanifa anunciou que estava faminta.

Sugeriu que pedissem algo para comer, mas Sarah insistiu em jantarem no apartamento dela. A geladeira estava vazia, mas podiam pegar algumas garrafas de vinho no Planet Wein e uns rolinhos de camarão crocantes do Sapa Sushi.

— Prefiro o Izumi — disse Hanifa.

— Izumi, então.

Sarah pagou pelas duas garrafas de Grüner Veltliner austríaco gelado; Hanifa, pelo sushi. Alguns minutos depois, Gabriel as viu caminhando lado a lado pela Kronenstrasse. Fechou seu notebook, apagou as luzes, sentou-se no sofá e esperou.

— Não grite — falou, suavemente. — Faça o que fizer, Hanifa, por favor, não grite.

43

BERLIM

Hanifa Khoury não gritou, mas largou a sacola com os sushis e emitiu um grunhido agudo que os vizinhos podiam muito bem ter ouvido, se Mikhail não tivesse fechado a porta logo atrás dela. Assustada com o som, ela olhou para ele por um momento antes de se voltar novamente a Gabriel.

Uma série de expressões passou como a sombra de uma nuvem pelo rosto dela. A última foi um olhar inconfundível de reconhecimento.

— Meu Deus, é...

— Sim — disse Gabriel, interrompendo-a. — Sou eu.

Ela fez menção de ir para a porta, mas Mikhail estava encostado nela como se esperasse um ônibus passar. Então, ela caçou um telefone na bolsa e tentou discar um número.

— Eu nem tentaria — disse Gabriel. — O sinal é horrível neste prédio.

— Ou talvez você esteja bloqueando para eu não chamar ajuda.

— Você está perfeitamente segura, Hanifa. Aliás, está muito mais segura agora do que tem estado há tempos.

Gabriel olhou de relance para Mikhail, que arrancou o aparelho da mão de Hanifa. Depois, pegou a bolsa e analisou o conteúdo.

— O que ele está procurando?

— Um colete suicida, um AK47... — Gabriel deu de ombros. — O de sempre.

O russo ficou com o telefone, mas devolveu a bolsa. Hanifa olhou para Sarah.

— Ela também é israelense?

— O que mais seria?

— Ela fala inglês como americana.

— A diáspora nos deu uma vantagem decisiva no recrutamento de oficiais.

— Os judeus não são o único povo espalhado aos quatro ventos.

— Não — concordou Gabriel. — Os palestinos também sofreram. Mas nunca foram alvo de uma campanha organizada de aniquilação física como a Shoah. É por isso que precisamos de um Estado nosso. Não podemos

contar com alemães, poloneses, húngaros ou letões para nos proteger. Essa é a lição da história.

Gabriel proferiu essas palavras não em inglês, mas em alemão. Hanifa respondeu na mesma língua.

— É por isso que você me sequestrou? Para jogar de novo o Holocausto na minha cara e me transformar em exilada?

— Você não foi sequestrada.

— A Bundespolizei talvez ache que sim.

— Talvez — respondeu Gabriel. — Mas tenho uma relação muito boa com o chefe do BfV, principalmente porque dou a ele muitas informações sobre ameaças à segurança alemã. Sim, imagino que você possa me trazer um pouco de vergonha, mas estaria perdendo uma oportunidade importante.

— Que tipo de oportunidade?

— De mudar o curso dos acontecimentos no Oriente Médio.

Ela o olhou inquisitivamente. Seus olhos eram quase pretos, e as pálpebras, proeminentes. Era como ser contemplado pela Adele Bloch-Bauer de Klimt.

— Como? — perguntou ela, por fim.

— Me dando a história em que Omar estava trabalhando antes de ser morto. — Sem receber resposta, Gabriel disse: — Ele não foi assassinado naquele consulado por causa das coisas que escrevia nas redes sociais. Foi morto porque tentou avisar Khalid de uma trama contra ele.

— Quem disse?

— Khalid.

Hanifa apertou os olhos.

— Para variar — disse, amarga —, Khalid está equivocado.

— Como assim?

— Não foi Omar quem tentou avisá-lo sobre a trama.

— Quem foi?

Hanifa hesitou e então declarou:

— Fui eu.

44

BERLIM

Como o sushi estava espalhado pelo chão do hall de entrada, Mikhail desceu até o restaurante de comida persa e pediu vários pratos de carne grelhada com arroz. Comeram na pequena mesa retangular do apartamento, arrumada em frente a uma janela com vista para a Kronenstrasse. Gabriel sentou-se de costas para a rua, com Hanifa Khoury, sua nova recruta, a seu lado esquerdo. Durante toda a refeição, ela mal olhou na direção de Sarah. Era óbvio que não a perdoara por usar uma obra de Mahmoud Darwish, o tesouro literário da Palestina, como isca para atrai-la. Também era óbvio que não acreditava que Sarah fosse cidadã do Estado que ela desejava inundar sob um mar de exilados palestinos retornando.

Para provar sua impressão, Hanifa Khoury só precisava pedir que Sarah falasse algumas palavras em hebraico. Em vez disso, usou a ocasião para repreender o chefe da inteligência israelense pelos crimes que ele e seu povo tinham cometido contra o dela. Gabriel aguentou a arenga em silêncio. Tinha aprendido fazia muito tempo que a maioria dos debates sobre o conflito árabe-israelense era como um gato correndo atrás do próprio rabo. Além disso, não queria perder Hanifa como aliada temporária. Os judeus venceram a disputa pela Palestina, os árabes perderam. Os judeus tinham sido mais inteligentes e lutado com mais afinco o tempo todo. Os árabes haviam sido mal servidos por seus líderes.

Hanifa tinha direito à sua dor e raiva, embora sua palestra talvez fosse mais tolerável se não tivesse sido feita em alemão na cidade em que Hitler e os nazistas conceberam e executaram seu plano de livrar a Europa dos judeus. Não havia nada a fazer sobre a situação. A grande roleta-russa da Providência tinha colocado Gabriel Allon e Hanifa Khoury, ambos filhos da Palestina, em Berlim naquela noite.

Tomando café e comendo baklava, Hanifa tentou fazer Gabriel confessar algumas de suas proezas. Quando ele gentilmente mudou o rumo da conversa, ela jogou seu fogo retórico sobre os americanos e sua intervenção desastrosa no Iraque. Ela tinha entrado em Bagdá depois do avanço das forças de coalizão e relatado a queda rápida do Iraque na

insurgência e na guerra civil sectária. No outono de 2003, durante a sangrenta Ofensiva do Ramadã, ela conheceu um jornalista saudita alto e bonito no bar do Palestine Hotel, onde morava à época. O saudita, embora pouco conhecido da maioria dos repórteres ocidentais, era um dos mais influentes e com melhores fontes no mundo árabe.

— O nome dele — disse ela — era Omar Nawwaf.

Os dois eram solteiros e, verdade seja dita, estavam um pouco assustados. O The Palestine ficava fora da Zona Verde americana e era alvo frequente dos insurgentes. Aliás, naquela mesma noite, foi atacado por morteiros. Hanifa se abrigou no quarto de Omar. Voltou na noite seguinte, já com o hotel em paz, e também na outra. Logo se apaixonaram loucamente, embora divergissem muitas vezes sobre a presença americana no Iraque.

— Omar acreditava que Saddam era um perigo e um monstro que precisava ser removido, ainda que pelas mãos das tropas americanas.

Também aceitava a ideia de que o estabelecimento de uma democracia no coração do mundo árabe, inevitavelmente, espalharia liberdade para o resto da região. Eu achava que a aventura iraquiana ia terminar em desastre. Estava certa, claro. — Ela deu um sorriso triste. — Omar não gostou disso. Ele era um saudita secular de aparência ocidental, mas, ainda assim, um saudita, se é que me entendem.

— Ele não gostou de perder a razão para uma mulher?

— E palestina, ainda por cima.

Por um breve momento, porém, pareceu que Omar estava certo. No início de 2011, a revolução popular conhecida como Primavera Árabe varreu a região. Regimes opressores desmoronaram na Tunísia, Egito, Iêmen e Líbia, e uma guerra civil de grandes proporções irrompeu na Síria. As velhas monarquias aguentaram melhor, mas na Arábia Saudita houve conflitos violentos. Dezenas de manifestantes foram baleados ou executados. Centenas foram presos, incluindo muitas mulheres.

— Durante a Primavera Árabe — disse Hanifa —, Omar já não era um mero correspondente. Era editor-chefe do Arab News. Em particular, esperava que Vossa Alteza tivesse o mesmo destino de Mubarak ou até Muamar Kadafi. Mas sabia que se pressionasse demais, os Al Saud fechariam o jornal e o jogariam na prisão. Sua única opção era apoiar o regime em editoriais. Ele chegou a assinar uma coluna criticando os manifestantes como baderneiros inspirados por estrangeiros. Depois disso,

caiu numa depressão profunda. Omar nunca se perdoou por não participar da Primavera Árabe.

Hanifa tentou convencer Omar a ir embora da Arábia Saudita e viver com ela na Alemanha, onde ele teria liberdade para escrever o que quisesse, sem medo de ser preso. No início de 2016, com a economia saudita estagnada devido à queda do preço do petróleo, ele finalmente concordou. Mudou de ideia algumas semanas depois, porém, depois de conhecer um jovem príncipe saudita em ascensão chamado Khalid bin Mohammed.

— Foi pouco depois de o pai de Khalid subir ao trono. O filho já era ministro da Defesa, vice-primeiro-ministro e presidente do conselho de planejamento econômico, mas ainda não era príncipe herdeiro e sucessor legítimo. Ele convidou Omar a seu palácio uma tarde para uma reunião extraoficial, que chegou, como instruído, às quatro da tarde. Saiu bem depois da meia-noite.

Não houve gravação do encontro — Khalid não permitira — nem anotações feitas na hora, só o memorando composto às pressas por Omar depois de voltar ao escritório. Ele mandou uma cópia a Hanifa por e-mail, por segurança, que ficou chocada ao lê-la. Khalid previa que, em vinte anos, o preço do óleo chegaria a zero. Se a Arábia Saudita quisesse ter algum futuro, teria que mudar, e rápido. Ele queria modernizar e diversificar a economia. Queria soltar as amarras wahabistas sobre as mulheres e inseri-las no mercado de trabalho. Queria quebrar o pacto entre os Al Saud e os barbados das tribos Ikhwan do Négede. Queria que a Arábia Saudita fosse um país normal, com cinemas, música, casas noturnas e cafés em que pessoas de ambos os sexos convivessem sem medo da Mutaween.

— KBM falava até em permitir que hotéis e restaurantes servissem álcool para os sauditas não precisarem atravessar de carro a ponte para o Bahrein toda vez que quisessem um drinque. Eram coisas radicais.

— Omar ficou impressionado?

— Não — disse Hanifa. — Omar não ficou impressionado. Omar ficou apaixonado.

Logo apareceram nas páginas do Arab News muitos artigos elogiosos sobre o jovem e moderno filho do monarca saudita que atendia pelas iniciais KBM. Mas Omar virou oposição logo depois de Khalid se tornar príncipe herdeiro e ordenar a captura de multidões de dissidentes e

ativistas pró-democracia, incluindo vários de seus amigos íntimos. O Arab News não se pronunciou oficialmente sobre as prisões, porém Omar soltou uma avalanche de críticas nas redes sociais, incluindo um tuíte furioso comparando KBM ao governante da Rússia. O chefe da corte, então, mandou uma mensagem ao jornalista, com instruções de furtar-se de críticas futuras a Vossa Alteza Real. Omar respondeu ridicularizando Khalid por gastar mais de um bilhão de dólares em mansões, iates e quadros enquanto sauditas comuns sofriam com suas medidas de austeridade econômica.

— Depois disso — disse Hanifa — o jogo começou.

Contudo, num país como a Arábia Saudita, só podia haver um resultado para uma disputa entre a família real e um jornalista dissidente. O Centro de Dados Real passou a monitorar os telefones de Omar e interceptar seus e-mails e mensagens. Tentou até desativar suas mídias sociais. E, quando falharam, ele foi atacado com milhares de postagens falsas de bots e trolls.

A gota d’água foi a bala, um único projétil .45, entregue ao escritório dele no Arab News. Ele foi embora da Arábia Saudita naquela noite, para nunca mais voltar.

Mudou-se para o apartamento de Hanifa, casou-se com ela numa cerimônia discreta e foi trabalhar para a Der Spiegel. Com seus posts em redes sociais cada vez mais críticos a KBM, seu número de seguidores cresceu exponencialmente. Agentes sauditas o seguiam abertamente pelas ruas de Berlim. O telefone dele ficou lotado de e-mails e mensagens ameaçadores.

— O recado era inconfundível. Não importava que Omar tivesse ido embora do reino, eles ainda podiam pegá-lo. A partir desta época, ele se convenceu de que seria sequestrado ou morto.

Mesmo assim, decidiu arriscar uma viagem ao Cairo para escrever uma reportagem sobre a vida no Egito sob o comando do novo faraó, quem desprezava quase tanto quanto Khalid. No lobby do Hotel Sofitel, ele encontrou, por acaso, um membro da realeza saudita de pouca importância que tinha sido espoliado por Khalid no Ritz-Carlton. O príncipe de pouca importância, como Omar, vivia no exílio. Concordaram em jantar naquela noite num restaurante em Zamalek, um bairro afluente do Cairo localizado na ilha de Gezira. Era fim do verão, agosto, e fazia um calor sufocante.

Mesmo assim, o príncipe de pouca importância insistiu que jantassem ao ar livre. Quando se sentaram, instruiu o jornalista a desligar o telefone e

remover o chip. Então, contou-lhe sobre um rumor que tinha ouvido de uma conspiração para tirar KBM da linha de sucessão.

— Omar se mostrou cético quanto às chances de sucesso da trama.

Khalid tinha sido alvo de inúmeras tentativas de assassinato e golpe, todas fracassadas porque ele controlava os serviços de segurança e o Centro de Dados Real. O príncipe insistiu que essa trama era diferente.

— Por quê?

— Tinha uma potência estrangeira envolvida.

— Qual?

— Ele não sabia. Mas relatou que a trama envolvia a filha de Khalid.

Os conspiradores estavam planejando sequestrá-la para forçá-lo a abdicar.

— Tem certeza de que foi em agosto?

— Posso mostrar as mensagens que ele me mandou do Cairo.

— Alguma referência à trama contra Khalid?

— Claro que não. Omar sabia que o Centro de Dados Real estava monitorando as comunicações dele. Esperou estar de volta a Berlim para me contar. Conversamos no Tiergarten, sem telefones. Infelizmente, Omar não gostou muito da minha reação.

— Você queria que ele contasse a Khalid sobre a conspiração.

— Falei que ele tinha a obrigação de fazer isso.

— Porque a filha de Khalid podia ser morta.

Ela assentiu.

— E porque, apesar de todas as suas falhas e defeitos, KBM era melhor que a alternativa.

— Imagino que Omar tenha discordado.

— Ele disse que não seria ético do ponto de vista jornalístico contar a Khalid o que tinha ouvido.

— E o que ele fez?

— Voltou ao Oriente Médio para tentar transformar um boato numa reportagem.

— E você?

— Fingi ser Omar.

— Como?

Ela criou uma conta do Yahoo com um endereço de e-mail que era uma versão do nome de Omar: omwaf5179@yahoo.com. A partir daí, mandou uma série de e-mails ao Ministério de Comunicações saudita, solicitando uma entrevista com Vossa Alteza Real Príncipe Khalid bin Mohammed.

Não houve resposta — nada incomum no que dizia respeito aos sauditas

—, então, ela mandou um alerta a um endereço que encontrou nos contatos de Omar. Era alguém próximo a KBM, com cargo sênior na corte dele.

— Você contou sobre a conspiração?

— Sem dar detalhes.

— Mencionou Reema?

— Não.

Alguns dias depois, Hanifa recebeu um e-mail da Embaixada Saudita em Berlim. Khalid queria que Omar voltasse a Riad para se encontrarem.

A resposta dela deixava claro que Omar nunca mais pisaria no reino. Uma semana se passou. Então, ela recebeu um e-mail do endereço do oficial sênior da corte de Khalid. Ele queria que Omar fosse ao consulado em Istambul na terça-feira seguinte, às 13h15. Khalid estaria esperando por ele.

45

BERLIM

Quando Omar voltou a Berlim, Hanifa contou a ele o que tinha feito em seu nome. Mais uma vez no Tiergarten, sem telefones, mas dessa era óbvio que estavam sendo seguidos. Ele ficou furioso com a esposa, embora tenha escondido a raiva dos agentes sauditas que os observavam.

Sua viagem jornalística ao Oriente Médio tinha dado frutos. Ele havia confirmado tudo o que sua fonte no Cairo dissera, inclusive o envolvimento de uma potência estrangeira na conspiração contra Khalid.

Omar estava diante de uma escolha difícil. Se escrevesse o que sabia nas páginas da Der Spiegel, Khalid usaria a informação para acabar com o golpe e consolidar seu poder. Mas se Omar permitisse que o plano fosse bem-sucedido, uma criança inocente podia ser ferida ou até morta.

— E o convite para ir a Istambul? — perguntou Gabriel.

— Ele achava que era uma armadilha.

— Então, por que concordou em ir?

— Porque eu o convenci. — Hanifa ficou em silêncio por um momento.

— Sou culpada pela morte de Omar. Ele nunca teria entrado naquele consulado se não fosse por mim.

— Como você o fez mudar de ideia?

— Contando que ele ia ser pai.

— Você está grávida?

— Eu estava grávida. Não estou mais.

A conversa deles no Tiergarten ocorreu na sexta-feira. Hanifa mandou um e-mail para o endereço do assistente de Khalid e informou-o de que Omar chegaria ao consulado na terça-feira seguinte, como solicitado, às 13h15. Ele passou o sábado e o domingo transformando suas gravações e anotações numa reportagem coerente para a Der Spiegel e, na segunda, ele e Hanifa voaram a Istambul e fizeram check-in no InterContinental.

Naquela noite, caminhando à margem do Bósforo, foram seguidos por equipes de vigilância saudita e turca.

— Na manhã da terça-feira, Omar estava tão nervoso que tive medo de ele ter um ataque cardíaco. Consegui acalmá-lo. “Se forem matar você”, falei, “o último lugar do mundo para isso é dentro de um dos consulados

deles.” Saímos do hotel às 12h30. O trânsito estava tão ruim que quase não chegamos na hora. Nas barricadas de segurança, Omar me deu o telefone dele. Aí, me deu um beijo e entrou.

Eram 13h14. Pouco depois das 15, Hanifa ligou para o telefone principal do consulado e perguntou se Omar estava lá. O homem que atendeu disse que o jornalista nunca chegara para sua reunião. Quando ela ligou uma hora depois, outro atendente disse que Omar já tinha saído. Às 16h15, Hanifa viu vários homens saindo do prédio com malas grandes.

Vossa Alteza Real Príncipe Khalid bin Mohammed não estava entre eles.

Quando ela finalmente voltou ao InterContinental, o quarto tinha sido vasculhado e só o notebook de Omar fora levado. Hanifa ligou para a sede da rede de televisão ZDF e fez um relato urgente sobre um jornalista da Der Spiegel que tinha desaparecido depois de entrar no consulado saudita em Istambul. Dentro de 48 horas, boa parte do mundo estaria fazendo a mesma pergunta: onde estava Omar Nawwaf?

Dez dias mais tarde, após ter permissão de entrar no consulado, a polícia turca declarou que Omar tinha sido assassinado lá dentro e que seu corpo fora horrivelmente desmembrado e descartado. Quase do dia para a noite, KBM, o grande reformista, amado pelas elites financeira e intelectual do Ocidente, tornou-se um pária.

Hanifa continuou em Istambul até fim de outubro, monitorando a investigação turca. Ao voltar a Berlim, descobriu que seu apartamento, como seu quarto no InterContinental, havia sido virado de ponta-cabeça.

Todos os papéis de Omar haviam sido roubados, incluindo as anotações feitas durante a última viagem jornalística ao Oriente Médio. Desolada, Hanifa se agarrou à ideia de carregar o filho de Omar. Mas, no início de novembro, sofreu um aborto espontâneo.

Sua primeira pauta depois de voltar ao trabalho a levou, justamente, a Genebra. Posando como esposa de um diplomata jordaniano preocupado com a segurança, ela visitou a Escola Internacional da cidade, onde observou o êxodo vespertino do corpo discente. Uma das crianças, uma menina de 12 anos, foi embora da escola numa limusine Mercedes blindada. O diretor insinuou que a garota era filha de um magnata egípcio do ramo da construção. Hanifa, porém, sabia a verdade. Era Reema bint Khalid Abdulaziz Al Saud, filha do demônio.

— E você nunca tentou alertar o demônio de que a filha dele estava em perigo?

— Depois do que ele fez com Omar? — Ela balançou a cabeça. —

Além do mais, achei que não precisava.

— Por que não?

— Khalid tinha o computador e as anotações de Omar.

A não ser, pensou Gabriel, que não tivessem sido roubados pelos sauditas.

— E quando você ficou sabendo que ele tinha abdicado?

Ela tinha chorado de alegria e postado uma mensagem de provocação no Twitter. Alguns dias depois, voltou a Genebra para observar a saída vespertina dos alunos da Escola Internacional. A filha do demônio não estava lá.

— E ainda assim, você ficou em silêncio.

Os olhos escuros dela se incendiaram.

— Se Khalid tivesse assassinado sua...

— Ele já estaria morto. — Depois de um momento de silêncio, Gabriel completou: — Mas ele não é o único culpado pela morte de Omar.

— Não ouse tentar absolvê-lo.

— É verdade que ele autorizou, mas não foi ideia dele. Aliás, ele queria se encontrar com Omar para ouvir o que ele tinha a dizer.

— E por que não fez isso?

— Disseram que seu companheiro queria matá-lo.

Ela ficou incrédula.

— Omar nunca machucou ninguém na vida. Quem diria uma coisa dessas?

— Abdullah — explicou Gabriel. — O próximo rei da Arábia Saudita.

Os olhos de Hanifa se arregalaram.

— Abdullah tramou o assassinato de Omar para Khalid não descobrir a conspiração contra ele? É isso que está dizendo?

— Sim.

— Tudo encaixa muito bem, não é?

— Sua versão da história combina perfeitamente com a de Khalid. Só tem uma parte que não faz nenhum sentido.

— Qual?

— É impossível dois repórteres veteranos do Oriente Médio como vocês dois não terem feito uma cópia da reportagem.

— Na verdade, senhor Allon, eu nunca disse isso.

Tinham feito várias, aliás. Hanifa enviara cópias criptografadas do e-mail para sua conta profissional da ZDF e para a pessoal do Gmail. Temerosa dos hackers do Centro de Dados Real, também salvara o arquivo em três pendrives. Um estava cuidadosamente escondido no apartamento dela e outro, trancado em sua mesa no escritório da ZDF em Berlim, protegido por segurança 24 horas.

— E o terceiro? — questionou Gabriel.

Hanifa tirou um pendrive de um compartimento com zíper de sua bolsa e colocou na mesa. Gabriel abriu seu notebook e inseriu o acessório numa das entradas USB. Uma pasta sem nome apareceu na tela. Quando ele clicou, uma caixa de diálogo solicitou um nome de usuário.

— Yarmouk — ditou Hanifa. — É o campo de refugiados...

— Eu sei o que é.

Gabriel digitou os sete caracteres, e um único ícone apareceu.

— Omar — falou Hanifa, com lágrimas escorrendo pelo rosto. — A senha é Omar.

46

GOLFO DE AQABA

Poucos minutos depois das quatro da tarde, o voo 2372 da El Al pousou no Aeroporto Ben Gurion. Gabriel, Mikhail e Sarah se apertaram no banco traseiro de uma SUV do Escritório que esperava na pista. Yossi Gavish, o estudioso chefe de Pesquisas, estava no banco do carona. Enquanto o veículo dava um solavanco à frente, ele entregou um arquivo a Gabriel.

Era uma análise forense da carreira de negócios cheia de altos e baixos do príncipe herdeiro Abdullah, baseada em parte no material fornecido por ele durante sua visita à casa de Gabriel.

— Descobrimos tudo, chefe. Todo o dinheiro veio de você-sabe-quem.

A SUV parou ao lado de um helicóptero Airbus H175 VIP particular, hélices estáticas, na ponta norte do aeroporto. O piloto de Khalid estava atrás dos controles. Yossi entregou um revólver Jericho .45 a Mikhail e uma Beretta M9 a Gabriel.

— A Força Aérea Israelense vai seguir vocês até onde for possível.

Quando entrarem no espaço aéreo egípcio, estarão por conta própria.

Gabriel deixou seu BlackBerry e notebook do Escritório na SUV, e entrou depois de Mikhail e Sarah na cabine luxuosamente decorada do helicóptero. Eles voaram para o sul pela costa, por cima das cidades de Ashdod e Ashkelon, depois viraram para o continente para evitar o espaço aéreo da Faixa de Gaza. Havia incêndios nos campos de grão do lado israelense da linha de armistício.

— O Hamas coloca fogo com pipas e balões incendiários — explicou Mikhail a Sarah.

— Não é uma vida tão fácil.

Ele apontou para o horizonte caótico da Cidade de Gaza.

— Mas é melhor que a deles.

Gabriel leu o arquivo de Yossi duas vezes enquanto o Négede passava abaixo deles. O céu em sua janela escureceu lentamente e, quando chegaram ao extremo sul do golfo de Aqaba, o mar estava negro. O

Tranquility localizava-se ancorado à beira da ilha Tiran, iluminado por suas luzes de navegação azul neon. Uma lancha de desembarque pairava protetora a bombordo do superiate, e outra a estibordo.

A aeronave pousou no heliponto dianteiro do Tranquility — havia dois

—, e o piloto desligou o motor. Mikhail saiu da cabine e foi confrontado por um par de seguranças sauditas vestindo jaquetas de nylon com a insígnia da embarcação. Um deles estendeu a mão com a palma para cima.

— Tenho uma ideia melhor — disse Mikhail. — Por que não enfia...

— Está tudo bem — chamou Khalid de algum lugar no alto do navio.

— Mande-os subir imediatamente.

Gabriel e Sarah se uniram a Mikhail no convés da proa. Os dois guardas os escrutinaram, Sarah em especial, mas não se ofereceram para acompanhá-los às habitações do príncipe. Sem serem vigiados, eles andaram à vontade pela embarcação, passando pelo lounge do piano e o cinema, pela discoteca, a sala de reuniões, a sala de bilhar, a sauna, a sala de neve, além do salão de bailes, da academia, do centro de arco e flecha, da parede de escaladas, da brinquedoteca e do centro de observação de vida marinha, onde muitas espécies de vida aquática do mar Vermelho nadavam e brincavam, do outro lado do vidro grosso, para o entretenimento particular deles.

Encontraram Khalid no Deque 4, no terraço em frente à suíte do proprietário. Ele estava usando um casaco de fleece da North Face, jeans desbotados e elegantes mocassins italianos de camurça. O vento produzia ondas na superfície de uma pequena piscina e abanava as chamas do inferno que crepitava na lareira externa. Eram os últimos pedaços de lenha, explicou. Fora isso, estava bem provisionado com comida, combustível e água fresca.

— Posso ficar no mar por um ano ou mais, se necessário. — Ele esfregou as mãos vigorosamente uma na outra. — Está frio hoje. Talvez devêssemos entrar.

Ele os levou à suíte. Era maior que o apartamento de Gabriel em Jerusalém.

— Deve ser bom — disse ele, observando o ambiente opulento. — Não sei como consegui viver sem uma discoteca particular ou uma sala de neve.

— Essas coisas não significam nada para mim.

— Porque você é filho de um rei. — Gabriel mostrou o arquivo que Yossi lhe tinha dado no Ben Gurion. — Mas talvez não se sentisse assim se fosse apenas o meio-irmão do rei.

— Pelo jeito, você revisou os documentos que lhe dei em Jerusalém.

— Só usamos como ponto de partida.

— E onde eles os levaram?

— Para cá — disse Gabriel. — Para o Tranquility.

O sistema primário segundo o qual o reino da Arábia Saudita transfere a imensa riqueza de petróleo do país a membros da família real é o estipêndio oficial mensal. Nem todos os sauditas reais, porém, são iguais.

Um membro de hierarquia mais baixa da Casa de Saud pode coletar um pagamento em dinheiro de alguns milhares de dólares, mas aqueles com ligações sanguíneas diretas a Ibn Saud recebem muito mais. Um neto do Fundador, em geral, recebe cerca de 27 mil dólares por mês; um bisneto, cerca de 8 mil. Há pagamentos adicionais disponíveis para a construção de um palácio, um casamento ou o nascimento de um filho. Na Arábia Saudita, pelo menos para membros da família real, há um incentivo financeiro para procriar.

Os maiores estipêndios são reservados para os poucos privilegiados no topo da cadeia alimentar — os filhos do Fundador. Ele teve, no total, 45, incluindo Abdullah bin Abdulaziz. Antes de ser elevado a príncipe herdeiro, ele recebia um pagamento mensal de 250 mil dólares, ou 3

milhões de dólares por ano. Era mais do que bastante para viver com conforto, mas sem luxos, especialmente, nos playgrounds dos Al Saud, Londres e a Côte d’Azur. Para complementar sua renda, Abdullah desviava dinheiro do orçamento estatal ou de subornos e comissões de empresas ocidentais interessadas em negócios no reino. Uma firma aeroespacial britânica pagou a ele 20 milhões de dólares por uma “consultoria”.

Abdullah usou parte do dinheiro, explicou Gabriel, para comprar uma mansão em Eaton Square, 71, no bairro de Belgravia.

— Acredito que você tenha jantado lá recentemente, não?

Sem receber resposta, Gabriel seguiu com seu briefing. O tio, contou ele, era muito bom no outro negócio familiar — o de corrupção e roubo

—, mas, em 2016, envolveu-se em problemas financeiros graves com uma série de investimentos ruins e gastos questionáveis. Ele implorou ao Rei Mohammed por alguns riyais extras para cobrir seu custo de vida. E, quando Vossa Alteza se negou a socorrê-lo, ele pediu um empréstimo a seu vizinho de porta, proprietário da Eaton Square, 70. O nome do homem era Konstantin Dragunov, mais conhecido pelos amigos como Konnie Drag.

— Você lembra de Konstantin, não lembra, Khalid? É o bilionário russo que vendeu este barco ridículo a você. — Gabriel fingiu estar pensativo.

— Me recorde quanto pagou por ele.

— Quinhentos milhões de euros.

— Em dinheiro, certo? Konstantin insistiu que o dinheiro fosse transferido a uma das contas dele no Gazprombank em Moscou antes de concordar em sair do barco. Alguns dias depois, ele emprestou cem milhões de libras ao seu tio. Suponho que esse seja o significado de lavar petrodólares.

Khalid permaneceu em silêncio.

— É um camarada interessante, esse Konstantin. É um oligarca de segunda geração, não um barão ladrão original, daqueles que roubaram os ativos da antiga União Soviética depois da queda. Ao contrário de muitos oligarcas, Konstantin é diversificado. Também é bem próximo do Kremlin.

Em círculos de negócios russos, supõe-se que a maioria do dinheiro dele, na verdade, pertença ao czar.

— É assim que funciona para pessoas como nós.

— Nós?

— O czar e eu. Operamos por meio de intermediários e influências.

Não sou proprietário nominal deste barco, como você chama, e também não sou dono do château na França. — Ele olhou para Sarah. — Nem do Leonardo.

— E quando pessoas como você não estão mais no poder?

— O dinheiro e os brinquedos costumam desaparecer. Abdullah já me tirou bilhões. Além do Leonardo — completou.

— Você vai achar um jeito de sobreviver. — Gabriel admirou a vista de Khalid da costa egípcia. — Voltando ao seu tio. Nem preciso dizer que Abdullah nunca pagou de volta os cem milhões de libras emprestados por Konstantin Dragunov, ou seja, pelo presidente da Rússia. É porque não foi um empréstimo. E era só o início. Enquanto você estava se envolvendo em intrigas da corte em Riad, Abdullah fechava negócios lucrativos em Moscou. Ganhou mais de três bilhões de dólares nos últimos dois anos, tudo por meio de sua associação com Konstantin Dragunov, ou seja, com o presidente da Rússia.

— Por que ele estava tão interessado em Abdullah?

— Suponho que quisesse um aliado dentro da Casa de Saud. Alguém respeitado por sua sagacidade política. Alguém que odiasse os americanos

tanto quanto ele. Alguém que pudesse servir como conselheiro fiel a um futuro rei jovem e inexperiente. Alguém capaz de convencer o futuro rei a se dobrar para Moscou e, assim, expandir a influência regional do Kremlin. — Gabriel virou-se para olhar Khalid. — Alguém que pudesse se oferecer para livrar o futuro rei de um padre turbulento. Ou de um jornalista dissidente que estava tentando avisá-lo sobre uma trama para forçá-lo a abdicar.

— Está dizendo que Abdullah conspirou com os russos para tomar o trono da Arábia Saudita?

— Não sou eu que estou dizendo, é Omar Nawwaf. — Gabriel tirou o pendrive de Hanifa Khoury do bolso. — Por acaso não tem um computador neste barco, tem?

— Iate — corrigiu Khalid. — Venha comigo.

Havia um iMac no escritório particular da suíte, mas Khalid teve o bom senso de não permitir que o chefe do Escritório o conectasse a um pendrive. Levou Gabriel ao business center do Tranquility, que parecia o de um hotel. Continha meia dúzia de estações de trabalho com computadores conectados à internet, impressoras e telefones multilinhas ligados ao sistema de comunicação por satélite do navio.

O saudita se sentou em frente a um dos terminais e inseriu o objeto na entrada USB. Uma caixa de diálogo pediu-lhe um usuário.

— Yarmouk — disse Gabriel.

— O campo?

— Os pais dela pereceram lá em 1948.

— Sim, eu sei. Também temos um arquivo sobre ela. — Khalid inseriu o nome do campo de refugiados e um ícone apareceu.

— Omar — disse Gabriel. — A senha é Omar.

47

GOLFO DE AQABA

A reportagem tinha 12 mil palavras e era escrita à maneira fluida de um repórter livre. A cena de abertura descrevia um encontro fortuito com um príncipe saudita exilado no lobby de um hotel do Cairo. Num jantar naquela noite, o membro real contou ao jornalista uma história impressionante sobre uma conspiração contra o futuro rei de seu país, que descreveu, de forma pouco lisonjeira, como o “homem mais interessante do mundo”, referência a um personagem num comercial de cerveja mexicana.

O que se seguia era um relato da rápida busca do repórter para corroborar o que descobrira. Ele viajou por todos os cantos para se encontrar com muitas de suas fontes regionais — inclusive para Dubai, onde passou 48 horas ansiosas ao alcance fácil dos serviços secretos de Riad. Foi ali, numa suíte no Burj Al Arab, que uma fonte valiosa costurou os fios soltos, que transformaram a história numa narrativa coerente.

KBM, disse, já não era bem-vindo na Casa de Saud. A Casa Branca e os israelenses estavam apaixonados pelo príncipe, mas ele tinha desprezado a tradição dos Al Saud de governar por consenso e tratava seus parentes com arrogância. Um golpe palaciano, ou algo do tipo, era inevitável. Os membros do Conselho de Aliança se aglutinavam ao redor de Abdullah, principalmente porque ele estava em campanha desesperada pelo cargo.

— Por sinal, a fonte foi citada dizendo: “mencionei que o Centro de Moscou está mexendo os pauzinhos? Abdullah está totalmente no bolso do czar. Se conseguir tomar o trono, vai se dobrar tanto para o Kremlin que é capaz de cair de cara.”

De Dubai, o repórter voltou a Berlim, onde descobriu que sua esposa, também jornalista, andava se comunicando em segredo com um membro da corte do príncipe herdeiro. Depois de um longo exame de consciência, relatado na passagem final do artigo, ele tinha decidido viajar à Turquia para falar com o homem que o havia forçado a se exilar. O encontro aconteceria no consulado saudita em Istambul, às 13h15.

— Então era Hanifa, não Omar, que estava tentando falar comigo?

— Sim — confirmou Gabriel. — E foi ela também que convenceu o companheiro a entrar naquele consulado. Ela se culpa pela morte dele.

Quase tanto quanto culpa você.

— Ela sapateou no meu túmulo depois que eu abdiquei.

— Era direito dela.

— Ela deveria ter me avisado que Reema corria perigo.

— Ela tentou.

Cansado de ler o longo artigo numa tela de computador, Khalid estava sentado na sala de reunião adjacente com uma impressão, várias páginas jogadas com raiva no carpete a seus pés.

— Se ela me odeia tanto assim, por que concordou em entregar a magnum opus de Omar? — Ele pegou uma das páginas e, carrancudo, releu. — Não consigo acreditar que ele ousou escrever essas coisas sobre mim. Me chamou de criança mimada.

— Você é uma criança mimada. Mas e o resto?

— Quer dizer, a parte sobre o czar estar por trás da trama para me derrubar?

— Sim, essa parte.

Khalid pegou outra página do chão.

— Segundo as fontes de Omar, começou depois da minha última visita a Washington, quando concordei em gastar cem bilhões de dólares em armamento americano em vez de comprar as armas da Rússia.

— Parece plausível.

— Parece plausível, mas não é verdade. — Houve um momento de silêncio. Então, Khalid falou, em voz baixa: — Aliás, se eu tivesse de chutar, diria que o czar, provavelmente decidiu se livrar de mim muito antes disso.

— Por quê?

— Porque ele tinha um plano para o Oriente Médio — respondeu o príncipe. — E eu não queria ter nada a ver com isso.

Eles voltaram à suíte. Lá fora, no terraço varrido pelo vento, Khalid alimentou o fogo com a reportagem de Omar. Quando, finalmente, falou, foi sobre Moscou. Sua primeira viagem para lá, lembrou ele a Gabriel sem necessidade, tinha sido um ano antes de se tornar príncipe herdeiro. Ele acabara de lançar seu plano econômico, e a imprensa ocidental estava

ávida por qualquer palavra sua. O CEO de qualquer empresa no mundo atendia a um telefonema dele em questão de minutos. Hollywood estava completamente seduzida. O Vale do Silício também.

— Eram dias de glória. A inexperiência de minha mocidade. — E

acrescentou, num tom debochado: — Eu era o homem mais interessante do mundo.

A pauta da visita a Moscou, explicou ele, era puramente econômica.

Fazia parte do esforço de Khalid para garantir a tecnologia e o investimento de que precisava para transformar a economia saudita em algo mais que um posto de gasolina do mundo. Além disso, seus anfitriões russos e ele planejavam discutir meios de melhorar o preço do petróleo, que estava chegando a cerca de 45 dólares o barril, um nível insustentável para as economias saudita e russa. Khalid passou o primeiro dia em reunião com banqueiros russos e o segundo com CEOs de empresas de tecnologia que não o impressionaram. Seu encontro com o czar estava marcado para as dez da manhã do terceiro dia, uma sexta-feira, mas só começou à uma da tarde.

— Ele faz com que eu pareça pontual.

— E a reunião?

— Foi horrível. Ele ficou jogado na cadeira com as pernas abertas e os fundilhos totalmente à mostra. Assistentes nos interrompiam constantemente, e ele me pediu licença três vezes para atender ligações.

Era um jogo de poder, claro. Um jogo mental. Ele estava me colocando no meu lugar. Eu era filho do rei árabe. Para o czar, isso não significava nada.

Assim, Khalid ficou surpreso quando, na conclusão do frio encontro, o czar o convidou para um fim de semana em seu palácio no mar Negro.

Entre os muitos cômodos luxuosos, havia uma piscina coberta folhada de ouro. O príncipe foi instalado em sua própria área, mas seus assistentes foram espalhados em várias casas de visita. Não havia evidências da esposa nem dos filhos do czar. Estavam só os dois.

— Admito — disse Khalid — que não me senti totalmente seguro sozinho com ele.

Passaram a manhã de sábado relaxando na piscina — era o auge do verão de 2016 — e, à tarde, saíram para velejar. Naquela noite, jantaram numa câmara cavernosa decorada em creme e dourado. Depois, caminharam até uma pequena datcha em cima de um morro com vista para o mar.

— E foi lá — afirmou — que ele me contou.

— Contou o quê?

— O plano mestre. O esquema.

— Para quê?

Khalid pensou um pouco.

— O futuro.

— E como é esse futuro?

— Por onde quer que eu comece?

— Como é verão de 2016 — falou Gabriel —, vamos começar pelos Estados Unidos.

O czar tinha muitas esperanças na eleição presidencial americana daquele outono. Também estava confiante de que os dias hegemônicos de Washington no Oriente Médio estavam chegando ao fim. Os americanos tinham cometido um erro ao invadir o Iraque e pago um preço alto em sangue e moeda. Estavam ansiosos para colocar toda a região, com seus problemas intratáveis, no espelho retrovisor. Por outro lado, o czar tinha saído vencedor na luta pela Síria. Havia ido ao socorro de um velho amigo e, no processo, enviado um sinal ao resto da região de que, em momentos difíceis, era possível contar com Moscou, não com Washington.

— Ele queria que você descartasse os americanos e se tornasse aliado russo?

— Está pensando pequeno demais — respondeu Khalid. — O czar queria formar uma parceria. Disse que o Ocidente estava morrendo, em parte porque ele estava fazendo de tudo para implantar divisão social e caos político onde pudesse. Falou que o futuro estava na Eurásia, com sua enorme oferta de energia, água e população. Rússia, China, Índia, Turquia, Irã...

— E Arábia Saudita?

O príncipe assentiu.

— Íamos governar o mundo juntos. E a melhor parte era que ele nunca ia me recriminar por conta de democracia ou direitos humanos.

— Como recusou uma oferta dessas?

— Com bastante facilidade. Eu queria tecnologia e expertise americanas, não russas, para potencializar minha economia. — Ele ficou animado de repente, como o antigo KBM. — Diga uma coisa, qual foi o último produto russo que você comprou? O que eles exportam fora vodca, petróleo e gás?

— Madeira.

— Verdade? Talvez devêssemos começar a exportar areia. Isso resolveria todos os nossos problemas.

— Você disse ao czar o que achava?

— Sim, claro.

— Como ele reagiu?

— Fez aquele olhar de peixe morto e disse que eu tinha cometido um erro.

— Você e seu pai foram a Moscou alguns meses depois. Anunciaram um acordo para aumentar o preço do petróleo. Você também comprou um sistema de defesa aérea russo.

— Estávamos só diminuindo nossos riscos.

— E aquele aperto de mão ridículo em Buenos Aires? Vocês dois pareciam ter acabado de marcar o gol da vitória numa final de Copa do Mundo.

— E sabe o que ele sussurrou no meu ouvido depois de nos sentarmos?

Perguntou se eu tinha conseguido reconsiderar a oferta dele.

— Qual foi sua resposta?

— Para ser sincero, não lembro. Qualquer que tenha sido, obviamente foi a errada. Reema foi sequestrada duas semanas depois. — Khalid analisou a embarcação gigantesca que não era de fato dele. Esfregava as mãos uma na outra como se tentasse remover uma mancha. — Acho que nunca vou conseguir vingar a morte dela.

— Por que diz isso?

— O czar é o homem mais poderoso do mundo, nunca se esqueça disso.

Aquela mulher que nos levou ao campo na França, quase com certeza é oficial de inteligência russa.

— O homem que detonou a bomba também. E daí?

— Já voltaram a Moscou. Você nunca vai encontrá-los.

— Você ficaria surpreso. Além do mais — disse Gabriel —, existem muitas formas de vingança.

— É mais um provérbio judeu?

Gabriel sorriu.

— Quase.

48

NOTTING HILL, LONDRES

Às cinco e meia de uma tarde londrina encharcada, Gabriel Allon, diretor-geral do serviço secreto de inteligência de Israel, balançou a pesada aldrava de aço da porta da casa segura em St. Luke’s Mews, em Notting Hill. Foi recebido por um homem de 40 anos com cara de garoto que insistia em chamá-lo de “Senhor Mudd”. Na sala de estar atulhada, ele encontrou Graham Seymour assistindo desanimado à televisão. O plano do primeiro-ministro Jonathan Lancaster para tirar o Reino Unido da União Europeia, de acordo com os desejos do eleitorado britânico, sofrera uma derrota humilhante na Casa dos Comuns.

— Foi a pior surra de qualquer líder britânico nos tempos modernos. —

Os olhos de Seymour ainda estavam colados à tela. — Jonathan, sem dúvida, vai ter que enfrentar uma moção de censura.

— Ele vai sobreviver?

— Provavelmente. Mas não há garantias, não depois disto. Se o governo cair, há uma boa chance de o Partido Trabalhista ganhar a próxima eleição. O que significa que você vai ter que lidar com o primeiro-ministro mais anti-Israel da história britânica.

Seymour foi até o carrinho de bebidas, uma nova aquisição, e jogou um punhado de gelo num copo de vidro lapidado. Balançou uma garrafa de gim Beefeater na direção de Gabriel, que levantou a mão, recusando.

— Nigel colocou uma garrafa de Sancerre na geladeira.

— É um pouco cedo para mim, Graham.

Seymour franziu a sobrancelha ao olhar para o relógio de pulso.

— São mais de cinco da tarde, pelo amor de Deus. — Ele colocou uma medida generosa de gim por cima do gelo e completou com um pouco de tônica e uma fatia de limão. — Saúde.

— A que vamos brindar?

— À queda de uma nação que já foi grande. Ao fim da civilização ocidental como a conhecemos. — Seymour olhou a televisão e balançou a cabeça lenta e negativamente. — Os malditos russos devem estar amando isso.

— Rebecca também.

Seymour assentiu.

— Eu vejo aquela mulher nos meus sonhos. Deus me perdoe por dizer isso, mas, às vezes, queria que você a tivesse deixado se afogar no Potomac aquele dia.

— Deixado? Fui eu que segurei a cabeça dela embaixo da água, lembra?

— Deve ter sido horrível. — Seymour estudou Gabriel com cuidado por um momento. — Quase tão horrível quanto o que aconteceu na França.

Até Christopher pareceu abalado quando chegou em casa. Pelo jeito, você tem sorte de estar vivo.

— Khalid também.

— Não ouvimos um pio dele desde que abdicou.

— Está a bordo do seu iate perto de Sharm el-Sheikh.

— Pobrezinho. — Na Câmara dos Comuns, Jonathan Lancaster tinha ficado em pé para reconhecer a magnitude da derrota que acabava de sofrer, só para ser vaiado sem dó pela fileira de novos membros da oposição. Seymour apontou o controle remoto para a tela e a colocou no mudo. — Quem dera fosse tão fácil. — Com um drinque na mão, voltou a se sentar. — Mas nem tudo é desgraça e tristeza. Graças a você, tive uma reunião bem agradável com meu ministro hoje de manhã.

— É mesmo?

— Mostrei a ele aqueles documentos iranianos que você me deu. E ele imediatamente fechou o arquivo e mudou o assunto para Abdullah.

— O que tem Abdullah?

— Até onde ele pretende ir para aplacar os religiosos radicais? Vai fazer o mesmo jogo duplo de sempre no que diz respeito aos jihadistas e terroristas? Vai ser uma força de estabilidade ou caos na região?

Principalmente, meu ministro quer saber se Abdullah, dada sua ligação próxima com Londres, pode estar inclinado a nos favorecer mais que aos americanos.

— Com isso, você quer dizer que gostaria de vender a Abdullah quantos aviões de caça ele estiver disposto a comprar, não importa o que isso signifique para a segurança do meu país.

— Mais ou menos. Estamos pensando em ser mais rápidos que os americanos e convidá-lo para vir a Londres numa visita oficial.

— Acho que uma visita a Londres é uma ideia maravilhosa. Mas, infelizmente, você perdeu sua chance de seduzir Abdullah.

— Por quê?

— Porque ele já tem dono.

— Malditos americanos — murmurou Seymour.

— Antes fossem eles.

— Do que você está falando?

Gabriel pegou o controle remoto e colocou o volume da televisão no máximo.

Por cima da cacofonia da democracia parlamentar britânica, Gabriel contou a Graham Seymour tudo que tinha se passado desde a noite do assassinato de Reema na França. Khalid, disse, tinha lhe dado registros financeiros relacionados à riqueza repentina de seu tio Abdullah. Analistas do Escritório tinham usado os documentos para estabelecer uma ligação clara entre Abdullah e certo Konstantin Dragunov, oligarca russo e amigo pessoal do czar. Além disso, Gabriel tinha obtido um artigo não publicado escrito por Omar Nawwaf, alegando que a inteligência russa estava envolvida numa conspiração para remover Khalid e instalar Abdullah como novo príncipe herdeiro. Era o tio quem havia aconselhado o sobrinho a mandar matar o jornalista — e Abdullah, de sua mansão em Belgravia, quem havia cuidado dos detalhes sórdidos. Por meio de um intermediário, ele atraiu Omar Nawwaf ao consulado saudita em Istambul com a promessa de que Khalid estaria esperando lá dentro. Naquela noite, enquanto o corpo desmembrado de Nawwaf estava sendo descartado, agentes russos entraram no quarto do jornalista no InterContinental e em seu apartamento em Berlim, levando os computadores, dispositivos de armazenamento portáteis e anotações escritas.

— Quem disse?

— Hanifa Khoury.

— Esposa de Nawwaf?

— Viúva — corrigiu Gabriel.

— Como ela sabe que foram agentes russos?

— Não sabe. Aliás, supôs que fossem sauditas.

— Por que não sauditas?

— Se agentes sauditas tivessem saqueado o quarto do hotel e o apartamento, a reportagem de Omar teria acabado nas mãos de Khalid. Ele só soube que existia quando eu mostrei.

Seymour voltou ao carrinho de bebidas e preparou um novo drinque.

— Então, o que está me dizendo é que a defesa de KBM no assassinato de Omar Nawwaf é que o tio Abdullah o obrigou?

Gabriel ignorou o sarcasmo de Seymour.

— Você sabe como vai ficar o Oriente Médio se a Rússia, o Irã e a China tomarem o lugar dos americanos no golfo Pérsico?

— Seria um desastre. É por isso que nenhum governante saudita em sã consciência quebraria o laço entre Riad e Washington.

— A não ser que o governante saudita esteja em dívida com o Kremlin.

— Gabriel caminhou até as portas francesas que davam para o jardim. —

Vocês nunca notaram que Abdullah estava convivendo com um dos amigos mais íntimos do czar?

— Notamos, mas, sinceramente, não ligamos muito. Abdullah era um ninguém.

— Não é mais, Graham. É o próximo na linha de sucessão ao trono.

— Sim. E quando Vossa Alteza morrer, o que deve acontecer em breve, ele será rei.

Gabriel se virou.

— Não se eu puder evitar.

Seymour deu um meio sorriso.

— Você acha mesmo que pode escolher o próximo governante da Arábia Saudita?

— Não necessariamente. Mas não tenho intenção de permitir que um fantoche russo chegue ao trono.

— E como pretende evitar isso?

— Imagino que eu possa simplesmente matá-lo.

— Você não pode matar o futuro rei da Arábia Saudita.

— Por que não?

— Porque seria imoral e contra as leis internacionais.

— Nesse caso — disse Gabriel —, acho que vou ter que achar quem o mate por nós.

49

VAUXHALL CROSS, LONDRES

Uma semana depois, quando boa parte de Westminster estava engajada num debate furioso sobre a melhor forma de cometer suicídio nacional, o Governo de Sua Majestade conseguiu, de alguma forma, mandar um convite a Vossa Alteza Real Príncipe Abdullah para uma visita oficial a Londres. Cinco dias se passaram sem resposta, tempo suficiente para um vento gelado de incerteza passar pelos corredores do Ministério de Relações Exteriores e pelas salas secretas de Vauxhall Cross e também do Boulevard Rei Saul. Quando a resposta saudita chegou — entregue por mensageiro da corte à Embaixada Britânica em Riad —, a Londres oficial ficou muito aliviada. Foi marcada uma data para o início de abril. A BAE

Systems e outros fornecedores militares britânicos ficaram animados, ao contrário de seus concorrentes americanos. Os especialistas de aluguel na televisão viam a cúpula anglo-saudita como reprimenda à política do atual governo americano no Oriente Médio. Washington tinha colocado todas as suas fichas num príncipe jovem e inexperiente com pavio curto e atração por objetos brilhantes. Agora, ele tinha caído e a Inglaterra, embora enfraquecida e dividida, havia brilhantemente tomado a iniciativa diplomática. “Nem tudo está perdido”, declarou o jornal The Independent.

“Talvez ainda haja esperança para nós.”

Charles Bennett, porém, não compartilhava do entusiasmo da mídia com a visita iminente de Abdullah, em especial porque não soubera de planos para uma cúpula, nem que Downing Street e o Ministério de Relações Exteriores estavam considerando isso. Se alguém nas instituições londrinas precisava ser avisado com antecedência sobre uma visita real, era o controlador das estações do MI6 no Oriente Médio. O trabalho de Bennett era fornecer boa parte das informações que o primeiro-ministro iria revisar antes de se sentar com Abdullah. Que tipo de homem ele era?

Quais eram suas crenças centrais? Era um radical wahabista ou só estava jogando para os fãs? Ia ser um parceiro confiável na luta contra o terrorismo? Quais eram seus planos no Iêmen e em relação ao Catar? Ele era confiável? Ele era manipulável?

Bennett ia ter que correr para preparar as avaliações e estimativas necessárias. Sua opinião pessoal era de que era cedo demais para convidar Abdullah a Downing Street. A poeira ainda não tinha baixado depois da confusa abdicação de Khalid, e o futuro herdeiro do trono começou a voltar atrás nas reformas. Melhor esperar, Bennett teria aconselhado, pelo menos até a situação se estabilizar. Ele sabia muito bem por que Jonathan Lancaster estava tão ansioso para se encontrar com Abdullah. O primeiro-ministro precisava de sucesso em sua política externa. E, claro, havia o comércio a se considerar. A BAE Systems e sua laia queriam tentar convencer Abdullah antes de os americanos enfiarem as garras nele.

Bennett tirou os olhos de seu iPhone pessoal quando ouviu o trem das 7h12 de Stoke Newington chegar à estação de Liverpool Street. Como sempre, foi o último a sair do vagão, e seguiu uma rota longa e indireta até a rua. Lá fora, em Bishopsgate, ainda não estava propriamente claro. Ele caminhou até o rio e cruzou a London Bridge até Southwark.

Do Borough Market, era uma caminhada de cerca de vinte minutos até o escritório. Bennett gostava de variar sua rota. Dessa vez, seguiu por St.

George’s Circus e o Albert Embankment. Ele tinha quase 1,80 metro e era magro como um maratonista; um homem de 52 anos com bochechas encovadas e olhos fundos. Seu terno e sobretudo não eram exatamente de Savile Row, mas, devido à sua composição delgada, caíam bem nele. Sua gravata estilo escolar estava amarrada com cuidado, seus oxfords brilhavam com graxa recente. Uma pessoa treinada podia notar certa vigilância no olhar dele, mas, fora isso, não havia nada em sua vestimenta ou aspecto que sugerisse que ele estava indo à horrorosa cidadela secreta que surgia aos pés da Vauxhall Bridge.

Bennett nunca gostara da construção. Preferia a antiga e sombria Century House, um prédio comercial de concreto com vinte andares, em que ele tinha chegado como recruta nos dias moribundos da Guerra Fria.

Como todos os outros estagiários de sua turma, ele não tinha se candidatado para trabalhar para o Serviço Secreto britânico. Não se pedia para entrar no clube mais exclusivo da Inglaterra. Só se fosse convidado e viesse da família certa, com as conexões exclusivas e um diploma decente de Oxford ou Cambridge. No caso de Bennett, era Cambridge, onde ele tinha estudado a história e os idiomas do Oriente Médio. Quando chegou ao MI6, ele falava árabe e persa fluentemente. Depois de passar no treinamento rigoroso do Curso de Entrada de Novos Oficiais de

Inteligência, no forte Monckton, a escola para espiões principiantes, ele foi mandado para o Cairo para recrutar e lidar com agentes.

Depois, foi para Amã, Damasco e Beirute, antes de conseguir o cargo de Chefe de Estação em Bagdá. Relatos incorretos ou enganosos de vários ativos de Bennett no Iraque acabaram indo parar no infame Dossiê de Setembro, usado pelo governo Blair para justificar o envolvimento da Grã-

Bretanha na guerra liderada pelos americanos para tirar Saddam Hussein do poder. A carreira de Bennett, porém, não foi prejudicada. Ele foi para Riad, de novo como Chefe de Estação, e, em 2012, foi promovido a controlador do Oriente Médio, um dos cargos mais importantes do serviço.

Bennett entrou em Vauxhall Cross pelo Albert Embankment e aguentou uma revista e checagem de identidade completas antes de ter permissão para passar do lobby. Era tudo parte da reformulação de segurança pós-Rebecca Manning. As suspeitas pairavam sobre o prédio como a peste negra. Oficiais mal se falavam ou apertavam as mãos uns dos outros por medo de pegar a temida doença. Não havia produto entrando ou saindo para os clientes do outro lado do oceano sobre o qual não se pudesse ler na The Economist. A carreira de Bennett só tinha cruzado brevemente com a de Rebecca, mas, como muitos de seus colegas, ele tinha sido levado perante seus inquisidores para um interrogatório completo. Depois de muitas horas, recebera um atestado de boa saúde, ou assim lhe tinham informado. Bennett não confiava em ninguém dentro do MI6, muito menos nos cães farejadores do departamento de inquéritos.

Uma vez fora do lobby, ele passou o cartão, digitou o código e teve a retina escaneada para chegar ao seu escritório. Fechou a porta, ligou a luz que mostrava que queria privacidade e pendurou seu sobretudo no gancho.

O HD de seu computador, segundo as regras do serviço, estava trancado no cofre. Após inseri-lo, estava analisando o tráfego de telegramas da noite quando uma chamada em seu telefone internacional o interrompeu. O

mostrador indicava Nigel Whitcombe, o mordomo-chefe e carrasco-chefe de “C”. Tinha ido do MI5 para Vauxhall Cross. Só por isso, Bennett o detestava.

Ele levou o telefone ao ouvido.

— “C” quer dar uma palavrinha.

— Quando?

A linha ficou muda. Levantando-se, Bennett alisou seu paletó e passou a mão pelo cabelo embaraçado. Meu Deus! Não é um encontro. Ele foi aos

elevadores e entrou no primeiro que abriu as portas. Whitcombe, com um sorriso forçado, esperava-o quando as portas se abriram.

— Bom dia, Bennett.

— Nigel.

Juntos, entraram na suíte executiva de Graham Seymour, com sua mesa de mogno usada por todos os chefes antes dele, as janelas imponentes com vista para o rio Tâmisa e seu relógio de pêndulo pomposo construído pelo próprio Sir Mansfield Smith-Cumming, primeiro “C” do Serviço Secreto de Inteligência britânico. Seymour escrevia uma anotação na margem de um documento com uma caneta-tinteiro Parker. A tinta era verde, cor reservada a ele.

Bennett ouviu um farfalhar e, virando-se, notou Whitcombe saindo da sala. Seymour olhou para cima, como se surpreso pela presença de Bennett, e colocou a Parker de volta no suporte. Levantando-se, ele saiu de trás da mesa com a mão esticada diante de si como uma baioneta.

— Olá, Charles. Que bom que veio. Acho que é hora de você ser atualizado sobre uma operação especial que estamos executando há um tempo. Sinto muito por não termos falado nada até agora, mas aqui vai.

Naquela noite, Bennett bebeu uma única dose de uísque no lounge particular do MI6 e saiu de Vauxhall Cross a tempo de pegar o trem das 19h30 na Liverpool Street. O vagão em que entrou estava lotado. De fato, havia um único assento livre, ao lado de um homem baixinho usando um casaco de lã grossa e uma boina preta — polonês ou eslavo, pensou o agente — que parecia que a qualquer momento podia tirar um volume de O capital da mochila de couro gasta. Bennett nunca o vira no trem das 19h30, que pegava com frequência.

Passaram a viagem de 13 minutos até Stoke Newington em silêncio.

Bennett saiu do vagão primeiro e subiu os degraus da plataforma até a caixa de vidro que servia como bilheteria da estação. Ficava localizada numa esplanada triangular em Stamford Hill, ao lado de uma instituição financeira que servia à comunidade imigrante do bairro e de um café chamado Kookies. Um casal de quarenta e poucos anos, ambos louros, bebia smoothies numa das mesas de piquenique marrom-avermelhadas.

O homenzinho de boina preta emergiu da estação alguns segundos depois de Bennett e foi direto para Kingdom Hall, em Willow Cottages.

Bennett, por sua vez, dirigiu-se às lojas ao longo de Stamford Hill — a Princess Curtains e a Bedding Palace, a Perfect Shirt, a Stokey Karaoke, a New China House (em oposição à velha), o King’s Chicken, do qual ele gostava muito. Ao contrário de muitos de seus colegas, ele não vinha de uma família importante. Os bairros elegantes como Notting Hill e Hampstead eram caros demais para um homem que sobrevivia só do salário do serviço. Além disso, ele gostava que Stoke Newington ainda parecesse uma aldeia. Às vezes, até Bennett achava difícil de acreditar que a agitação de Charing Cross ficava só oito quilômetros ao sul.

As lojas e restaurantes na Church Street eram de nível mais alto.

Bennett, aparentemente por capricho, entrou numa floricultura e comprou um buquê de jacintos para sua mulher, Hester. Segurou as flores na mão direita enquanto andava pelo lado sul da rua até a esquina de Albion Road.

Das janelas do Rose & Crown saía luz quente, iluminando dois viciados em nicotina sentados na mesa única na calçada. Bennett reconheceu um dos homens.

Ele virou na Albion Road e a seguiu até depois dos apartamentos de tijolos vermelhos de Hawksley Court. Uma mulher empurrando um carrinho de bebê se aproximou da direção oposta. Fora isso, as calçadas estavam desertas. Bennett ouvia o eco de seus próprios passos. O aroma forte dos jacintos irritava seu nariz como uma alergia matinal. Por que tinham que ser jacintos? Por que não prímulas ou tulipas?

Ele pensou em sua convocação ao último andar de Vauxhall Cross naquela manhã e na operação sobre a qual “C” finalmente decidira informá-lo. Ao saber que o príncipe Abdullah, próximo rei da Arábia Saudita, havia muito tempo era um ativo do MI6, Bennett fez uma pose de justa indignação. Graham, como pôde ter me deixado no escuro sobre um programa vital por tanto tempo? É inadmissível. Ainda assim, ele tinha que admirar a audácia. Talvez o antigo serviço não estivesse morto, afinal.

Depois do edifício dos apartamentos, a Albion Road, de repente, tornava-se próspera. A casa em que o agente morava era uma bonita estrutura branca de três andares, com um jardim murado na frente. Ele pendurou o casaco no hall e foi para a sala de estar. Hester estava esticada no sofá com uma revista de palavras-cruzadas e uma taça de vinho branco.

Algo tedioso saía da caixa de som, que Bennett desligou com uma careta.

— Eu estava escutando. — Hester tirou os olhos da revista e franziu a testa. — Flores de novo? É a terceira vez este mês.

— Não sabia que você estava contando.

— O que fiz para merecer flores?

— Não posso trazer de presente para você, querida?

— Desde que não esteja fazendo nenhuma bobagem.

Os olhos de Hester voltaram à página. Bennett largou as flores na mesa de centro e entrou na cozinha em busca do jantar.

50

HARROW, LONDRES

Não era verdade que Charles Bennett nunca tomara o trem da noite para Stoke Newington com o homem de boina. Eles tinham compartilhado o mesmo vagão das 19h30 em duas ocasiões prévias. O homenzinho também pegara o trem na outra direção com Bennett várias vezes, incluindo naquela mesma manhã. Ele usava o traje clérigo e o colarinho de um padre romano católico. Em Bishopsgate, um mendigo havia pedido sua bênção, que ele concedeu com dois movimentos amplos da mão direita, o primeiro na vertical e o segundo na horizontal.

O controlador do Oriente Médio podia ser perdoado por não o ter notado. O homem era Eli Lavon, melhor artista de vigilância já produzido pelo Escritório, um predador natural, capaz de seguir um oficial de inteligência altamente treinado ou um terrorista implacável por qualquer rua do mundo sem atrair uma faísca de interesse. Ari Shamron certa vez dissera que ele era capaz de desaparecer enquanto apertava sua mão. Era um exagero, mas por pouco.

Embora fosse chefe de divisão, Lavon, como seu diretor-geral, preferia liderar suas tropas no campo de batalha. Além do mais, Charles Bennett era um caso especial. Era oficial de um serviço de inteligência por vezes amigável, que havia sido enganado no mais alto nível pela inteligência russa. Bennett tinha sobrevivido ao encontro com os investigadores, mas ainda havia uma sombra de suspeita sobre ele, porque dois importantes ativos na Síria tinham, recentemente, sumido. Quase todos os investigadores concordavam que a culpada provável era Rebecca Manning.

Mas havia uma ala, incluindo o próprio “C”, que não estava pronto para fechar o arquivo de Bennett. Inclusive, alguns em sua ala achavam que ele deveria ser pendurado de ponta-cabeça na London Bridge até confessar ser um espião russo venenoso. No mínimo, queriam tirá-lo da posição de controlador e forçá-lo a se aposentar para não causar mais danos. Foram, porém, contrariados pelo próprio “C”, declarando que Bennett continuaria no posto até a situação ficar insustentável. Ou, de preferência, até “C”

encontrar a oportunidade de desfazer alguns dos danos ao seu serviço.

Numa casa segura em Notting Hill, um velho amigo tinha dado a ele essa

oportunidade. Por isso, a reunião da manhã na qual Bennett foi trazido para o círculo interno referente ao status operacional de certo real saudita prestes a ascender ao trono. O controlador tornou-se guardião de um segredo importantíssimo, ainda que falso.

Bennett conhecia as táticas e, talvez, algumas das identidades dos artistas de vigilância de seu serviço. Por esse motivo, “C” confiara a observação dele ao Escritório. Naquela noite, havia doze observadores israelenses, incluindo Eli Lavon. Após a breve aparição em Kingdom Hall, onde Bennett fora recebido de braços abertos, o judeu o seguiu por Stamford Hill até a Church Street. Lá, testemunhou a compra de um ramo de jacintos da floricultura Evergreen & Outrageous. Tomou nota do fato de o inglês, ao sair da loja, ter mudado as flores da mão esquerda para a direita, para deixá-las visíveis, ao virar a esquina na Albion Road, para qualquer um que estivesse sentado em frente ao Rose & Crown. Os dois homens presentes naquela noite não prestaram atenção em Lavon, mas um pareceu observar Bennett atentamente quando este passou. O israelense, com um sussurro no minúsculo microfone escondido em seu pulso, ordenou que seis membros de sua equipe seguissem o homem ao sair do pub.

Lavon continuou direto pela Church Street até a antiga prefeitura até dar meia-volta e se encaminhar de novo para Stamford Hill. Mikhail e Sarah Bancroft tinham saído do café Kookies e esperavam num Ford Fiesta estacionado no supermercado Morrisons. Lavon entrou no banco de trás e fechou a porta sem fazer som.

— E então? — perguntou Mikhail.

Lavon não respondeu; estava escutando o falatório dos observadores em sua orelha. Eles estavam no jogo, pensou. Definitivamente, estavam no jogo.

A casa tinha vista para o clube de golfe Grims Dyke, na seção de Harrow chamada Hatch End. Ao estilo Tudor, com muitas alas e frontões, era cercada por árvores imponentes e localizada ao fim de uma longa entrada particular para carros. Com uma única mensagem de texto a Khalid, Gabriel presenteou com a casa o Serviço Secreto de Inteligência de Sua Majestade, que precisava desesperadamente de propriedades seguras.

Havia oito quartos e uma grande sala dupla, que servia como centro

nervoso da operação. Oficiais israelenses e britânicos trabalhavam lado a lado em duas longas mesas sobre cavaletes. Grandes painéis de tela plana exibiam imagens ao vivo de câmeras de segurança. Rádios seguros chiavam com atualizações de campo em inglês com sotaques hebraico e britânico.

Por insistência de Gabriel, era proibido fumar no centro de operações ou em qualquer outro cômodo da casa, exceto nos jardins. Ele também ditou que não haveria bufê nem entregas de comida. Eles faziam suas próprias compras na loja Tesco no fim da rua em Pinner Green e comiam todos juntos sempre que possível. Com a convivência, passaram a se conhecer bem, um perigo para qualquer operação conjunta — a exposição de pessoal e de técnicas de espionagem. Gabriel pagou um preço alto em observadores e outros agentes de campo, a maioria dos quais nunca mais seria capaz de trabalhar disfarçado na Grã-Bretanha.

Mas alguns profissionais do israelense eram conhecidos dos britânicos por empreendimentos conjuntos anteriores, incluindo Sarah, Mikhail e Eli Lavon. Eram 20h30 quando eles voltaram à casa em Hatch End. Ao entrar, juntaram-se a Gabriel, Graham Seymour e Christopher Keller em frente a uma das telas de vídeo, que transmitia imagens da câmera localizada em frente à estação de metrô Arsenal, na Gillespie Road. O homem do Rose &

Crown estava parado no quiosque ao lado da entrada da estação. Se tivesse ido para lá direto do pub, podia ter feito o caminho em no máximo quinze minutos. Mas tinha feito uma rota tortuosa cheia de meias-voltas e entradas erradas que forçara cinco dos observadores mais experientes de Eli Lavon a abandonar a perseguição.

Um, porém, conseguiu seguir o homem até a estação e embarcar no mesmo trem da linha Picadilly na direção de Hammersmith. O suspeito continuou até a estação Hyde Park Corner. Ao emergir, entrou no bairro de Mayfair e, mais uma vez, iniciou uma série de manobras de contravigilância clássicas, que obrigaram o último observador de Lavon a se afastar. Não importava; as câmeras do sistema orwelliano de Londres nunca piscavam.

Elas o seguiram pelas ruas de Mayfair até Marble Arch, e depois a oeste pela Bayswater Road, onde ele passou abaixo das janelas escurecidas do apartamento seguro do escritório conhecido, carinhosamente, como a segunda casa de Gabriel em Londres. Um momento depois, ele atravessou a rua fora da faixa, entrou no Hyde Park e desapareceu de vista. Graham

Seymour ordenou que seus subordinados ligassem as câmeras no Jardim de Kensington, e, às 21:18:43, eles o observaram entrando na Embaixada Russa. Após passar a foto dele na base de dados, o sistema o sinalizou como Dimitri Mentov.

— Um ninguém da seção consular — disse Graham Seymour.

— Não há ninguéns na Embaixada Russa — respondeu Gabriel. — Ele é um brutamontes do SVR. E acabou de fazer contato com seu controlador das estações do Oriente Médio.

Nas duas longas mesas sobre cavaletes, a notícia de que mais um oficial sênior do MI6 estaria trabalhando para os russos foi recebida apenas com o bater de teclados e o estalar de rádios seguros. Eles estavam no jogo.

Definitivamente, estavam no jogo.

 

 

 

 

CONTINUA