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16
PARIS
A Brasserie Saint-Maurice ficava localizada no coração de Annecy medieval, no térreo de um prédio antigo que era uma bagunça de janelas, persianas e balaustradas que não combinavam entre si. Várias mesas quadradas estavam dispostas na calçada sob o abrigo de três toldos retangulares modernos. Numa delas, um homem bebia café e olhava um celular. O cabelo dele era claro e liso, bem-arrumado. O rosto, também.
Ele usava casaco de lã, um cachecol de seda estiloso e óculos de sol esportivos. O horário no canto inferior direito da foto dizia 16:07:46. A data era 13 de dezembro, dia do sequestro da princesa Reema.
— Como pode ver pela resolução — disse Rousseau —, a imagem foi ampliada. Aqui está a original.
O francês deslizou outra fotografia pela mesa de reuniões. A perspectiva era ampla o bastante para a rua estar visível. Vários carros estavam parados no meio-fio. O olhar de Gabriel foi instantaneamente atraído para uma van Citröen.
— Nosso sistema de vigilância de tráfego não é tão orwelliano quanto o seu ou o da Inglaterra, mas a ameaça de terrorismo nos levou a melhorar nossas habilidades. Não levou muito tempo para achar o carro. Nem o homem que o dirigia.
— O que sabem sobre ele?
— Alugou uma villa de férias nos arredores de Annecy duas semanas antes do sequestro. Pagou em dinheiro por um mês, o que a imobiliária e o proprietário ficaram mais que felizes em aceitar.
— Imagino que não tenha um passaporte.
— Tem, na verdade. Britânico. A imobiliária fez uma cópia.
Rousseau passou uma folha de papel por cima da mesa. Era a cópia de uma cópia, mas com boa resolução. O nome no passaporte era Ronald Burke, nascido em Manchester em 1969. A foto tinha uma vaga semelhança com o homem sentado na Brasserie Saint-Maurice algumas horas antes de a princesa Reema ser raptada.
— Vocês perguntaram aos britânicos se é genuíno?
— E o que íamos dizer a eles? Que é um suspeito num sequestro que não aconteceu?
Gabriel estudou o rosto do homem. A pele dele era esticada e sem ruga, e o formato artificial de seus olhos sugeria uma visita recente ao cirurgião plástico. As íris olhavam sem expressão para a lente da câmera. Os lábios não sorriam.
— Como é o sotaque dele?
— Ele falou francês com sotaque britânico com a corretora.
— Vocês têm algum registro dele entrando no país?
— Não.
— Alguém o viu após o sequestro?
Rousseau negou.
— Ele parece ter desaparecido no ar. Igual à princesa Reema.
Gabriel apontou para a foto em plano geral do homem sentado na Brasserie Saint-Maurice.
— Suponho que seja a captura de uma gravação em vídeo.
Rousseau abriu um laptop e teclou com ar de um homem que ainda não estava confortável com a tecnologia moderna. Então, virou o computador para que Gabriel e Sarah pudessem ver a tela e deu PLAY. O suspeito estava vendo algo no celular. A mulher bebendo vinho branco na mesa ao lado, também. Ela estava vestida de forma profissional, o cabelo escuro caído em seu bonito rosto. Também usava óculos escuros, apesar de estar na sombra. As lentes eram grandes e retangulares, o tipo de óculos, pensou Gabriel, usado por atrizes famosas quando não queriam ser reconhecidas.
Às 16:09:22, ela levou o telefone ao ouvido. Se tinha feito a ligação ou recebido, Gabriel não conseguia discernir. Alguns segundos depois, às 16:09:48, ele notou que o homem também estava ao telefone.
Gabriel apertou PAUSE.
— Que coincidência, não?
— Continue assistindo.
Gabriel deu PLAY e observou as duas pessoas na Brasserie Saint-Maurice desligarem, ela primeiro e ele 27 segundos depois, às 16:11:34. O
homem saiu do café às 16:13:22 e entrou na van Citröen. A mulher partiu três minutos depois, a pé.
— Pode pausar agora.
Gabriel obedeceu.
— Não conseguimos determinar se as duas pessoas na Brasserie Saint-Maurice estavam numa ligação celular ou numa conversa pela internet às 16h11 daquela sexta. Se eu tivesse que chutar...
— Os telefones eram um disfarce. Eles estavam falando diretamente um com o outro no café.
— Simples, mas eficaz.
— Para onde ela foi depois?
Rousseau passou outra foto por cima da mesa. Uma mulher vestida de forma profissional entrando no banco do carona de uma Ford Transit cinza-claro. A mão enluvada dela estava na maçaneta.
— Onde foi tirada?
— Na avenue de Cran, que cruza uma área operária na fronteira oeste da cidade.
— Conseguiu ver o motorista?
Outra foto deslizou pela mesa. Mostrava um homem com cabeça em formato de objeto pontiagudo usando uma balaclava de lã e, claro, óculos escuros. Gabriel supôs que houvesse vários outros agentes no compartimento de trás, todos armados com submetralhadoras HK.
Devolveu a foto a Rousseau, envolvido no ritual de preparação de seu cachimbo.
— Talvez agora seja um bom momento para você explicar seu envolvimento neste assunto.
— Vossa Alteza Real solicitou minha ajuda.
— O governo da França é mais do que capaz de recuperar a princesa Reema sem assistência do serviço secreto de inteligência de Israel.
— Vossa Alteza Real discorda.
— É mesmo? — Rousseau acendeu um fósforo e levou ao fornilho do cachimbo. — Ele recebeu alguma comunicação dos sequestradores?
Gabriel entregou a carta de resgate. Rousseau a leu em meio a uma nuvem de fumaça.
— Me pergunto por que Khalid não nos contou sobre isso. Só posso supor que não queira que a gente fique fuçando numa batalha interna pelo controle da Casa de Saud. Mas por que diabos ele confiaria em você e não em nós?
— Estive me perguntando a mesma coisa.
— E se não conseguir encontrá-la até o prazo acabar?
— Vossa Alteza Real vai ter de tomar uma decisão difícil.
Rousseau franziu o cenho.
— Estou surpreso que um homem como você ofereça seus serviços a um homem como ele.
— Você não aprova o príncipe herdeiro?
— Acho que é seguro dizer que ele passa mais tempo no meu país do que no seu. Como oficial sênior da DGSI, tive a oportunidade de observá-
lo de perto. Nunca acreditei no conto de fadas sobre como ele ia mudar a Arábia Saudita e o Oriente Médio. Também não fiquei surpreso quando ele encomendou o assassinato de um jornalista que ousou criticá-lo.
— Se a França ficou tão chocada com o assassinato de Omar Nawwaf, por que permitiu que Khalid entrasse todo fim de semana no país para ficar com a filha?
— Porque Vossa Alteza Real é um programa de estímulo econômico numa pessoa só. E porque, gostando ou não, ele vai governar a Arábia Saudita por muito tempo. — disse Rousseau, em voz baixa: — Se você conseguir achar a filha dele.
Gabriel não respondeu.
A sala se encheu de fumaça enquanto Rousseau considerava suas opções.
— Só para deixar registrado — disse, finalmente —, o governo da França não vai tolerar seu envolvimento na busca pela filha do príncipe Khalid. Dito isso, sua participação pode se mostrar útil para o Grupo Alpha. Desde que, é claro, coloquemos algumas regras do jogo.
— Por exemplo?
— Você vai compartilhar informação comigo, assim como compartilhei com você.
— Feito.
— Não vai grampear, chantagear ou cometer violência contra nenhum cidadão francês.
— Só se merecer.
— E não vai tentar resgatar a princesa Reema em solo francês. Se descobrir a localização dela, vai me contar, e nossas unidades de polícia tática vão libertá-la.
— Inshallah — murmurou Gabriel.
— Temos um acordo?
— Parece que sim. Vou achar a princesa Reema, e você vai ficar com todo o crédito.
Rousseau sorriu.
— Pelos meus cálculos, você tem mais ou menos cinco dias antes do prazo se esgotar. Como pretende proceder?
Gabriel apontou para a foto do homem sentado na Brasserie Saint-Maurice.
— Vou encontrá-lo. E, aí, vou perguntar onde ele está escondendo a princesa.
— Como seu parceiro clandestino, eu daria um conselho. — Rousseau apontou para a imagem da mulher entrando na van. — Pergunte a ela.
17
PARIS–ANNECY
A Embaixada Israelense localizava-se na margem oposta do Sena, na rue Rabelais. Gabriel e Sarah ficaram lá por quase uma hora — ele no cofre de comunicação segura da estação, Sarah na antessala do embaixador. Ao saírem, compraram sanduíches e café num estabelecimento que ficava na esquina, e passaram pelos bairros do sul de Paris até a A6, a autoroute du Soleil. O trânsito caótico de fim de tarde já tinha passado havia muito tempo, e a estrada diante de Gabriel estava praticamente livre. Ele pisou no acelerador do Passat e sentiu uma pequena animação rebelde quando o motor respondeu com um rugido.
— Você já provou o que queria com o diabo deste carro. Agora, por favor, desacelere. — Sarah desembrulhou um dos sanduíches e comeu com voracidade. — Por que tudo é mais gostoso na França?
— Não é, na verdade. Esse sanduíche vai ter exatamente o mesmo gosto quando cruzarmos a fronteira suíça.
— É para lá que estamos indo?
— Em algum momento, sim.
— Onde é nossa primeira parada?
— Achei que seria bom olharmos a cena do crime.
Sarah deu mais uma mordida no sanduíche.
— Tem certeza de que não quer um?
— Talvez mais tarde.
— O sol já se pôs, Gabriel. Você pode comer.
Ela acendeu a lâmpada do teto e abriu o dossiê que Paul Rousseau tinha colocado discretamente na maleta de Gabriel enquanto saíam da sede do Grupo Alpha. Continha uma foto de vigilância de Khalid e Rafiq al-Madani a bordo do Tranquility. Gabriel olhou de lado antes de voltar a se concentrar na estrada.
— Quando foi tirada?
Sarah virou a imagem e leu a legenda no verso.
— Em 22 de agosto, na baía de Cannes. — Ela analisou com cuidado.
— Conheço essa expressão no rosto de Khalid. É a que ele usa quando
alguém está dizendo algo que ele não quer escutar. Encontrei-a pela primeira vez quando falei que não queria ser consultora de arte dele.
— E pela segunda?
— Quando falei que ele seria idiota de gastar meio bilhão de dólares no Leonardo suspeito.
— Você já entrou no iate?
Sarah fez que não.
— Memórias ruins demais. Toda vez que Khalid me convidava, eu inventava alguma desculpa. — Ela analisou de novo a fotografia. — Sobre o que acha que estão falando?
— Talvez estejam discutindo a melhor forma de se livrar de um jornalista enxerido chamado Omar Nawwaf.
Sarah devolveu-a ao arquivo.
— Achei que Khalid fosse cortar o fluxo de dinheiro aos radicais.
— Eu também.
— Então, por que está com um fiel wahabista como al-Madani?
— Boa pergunta.
— Se eu fosse você, pediria vigilância o quanto antes.
— O que acha que eu estava fazendo lá embaixo na Embaixada?
— Não tenho como saber, não fui convidada. — Sarah pegou outra imagem do dossiê de Rousseau. Um homem e uma mulher em mesas separadas na Brasserie Saint-Maurice em Annecy, cada um com um celular. — E sobre o que você acha que eles estão falando?
— Não pode ser nada bom.
— Obviamente não são sauditas.
— Obviamente.
Sarah estudou a foto do passaporte.
— Ele não me parece britânico.
— Como são as pessoas britânicas?
Sarah desembrulhou outro sanduíche.
— Coma alguma coisa. Vai ficar menos mal-humorado.
Gabriel deu uma mordida.
— E então?
— Talvez seja o melhor sanduíche que já comi.
— Eu falei — disse Sarah. — Tudo é mais gostoso na França.
Chegaram a Annecy pouco depois da meia-noite. Deixaram o Passat em frente à Brasserie Saint-Maurice e fizeram check-in num pequeno hotel perto da catedral. Gabriel foi acordado pouco depois das quatro da manhã por uma briga na rua embaixo de sua janela. Sem conseguir dormir de novo, desceu para o restaurante. Aproveitou para ler os jornais de Paris e Genebra, enquanto tomava uma xícara de café atrás da outra. As páginas estavam cheias de relatos dos últimos escândalos de Washington, mas não havia menção sobre uma princesa sumida na Arábia Saudita.
Sarah apareceu alguns minutos depois das nove. Juntos, caminharam por uma hora ao lado dos canais verdejantes da cidade histórica para determinar se estavam sendo seguidos. Ao cruzar a Pont des Amours, concordaram que não.
Voltaram ao hotel apenas para pegar a bagagem, dirigindo-se, depois, até a Brasserie Saint-Maurice. Sarah tomou um café crème enquanto Gabriel, à moda de um motorista em apuros, investigava o Passat em busca de explosivos ou rastreador. Sem achar evidências de que o carro tivesse sido adulterado, ele jogou as malas no banco de trás e chamou Sarah com um aceno de cabeça. Foram embora de Annecy pela avenue de Cran, passando pelo lugar onde a mulher tinha entrado no Ford Transit, e pegaram a D14.
A estrada para oeste os conduzia por uma série de cidades e aldeias alpinas ao longo das margens do rio Fier. Além do povoado de La Croix, a rodovia subia íngreme até um bosque, antes de emergir de novo numa paisagem de terra à la Van Gogh. No cruzamento com a D38, Gabriel entrou no acostamento de grama e desligou o motor. O silêncio era total.
Uma única villa ocupava o topo de um morro a cerca de um quilômetro.
Fora isso, não havia residência alguma à vista.
Gabriel abriu a porta e colocou um pé no chão. Instantaneamente, sentiu vidro de automóvel estilhaçado sob seu sapato. O vidro estava por todo lugar, em todos os quatro cantos do cruzamento imperfeito. A polícia francesa, como lhe é habitual, não tinha limpado adequadamente a cena.
Até um pouco de sangue podia ser notado no asfalto, como uma mancha de óleo e uma longa marca de pneus. Gabriel imaginou que fossem do Range Rover. Viu tudo claramente — a colisão, os tiros, a explosão controlada, uma criança sendo arrancada do banco de trás de um automóvel de luxo.
Com a mão direita, ele contava os segundos: 25, 30 no máximo.
Entrou no carro ao lado de Sarah. Seu dedo pairou sobre o botão de partida.
— Em que está pensando?
— Também não acho que Ronald Burke pareça britânico. — Gabriel ligou o motor. — Você já foi ao château de Khalid?
— Uma vez.
— Lembra o caminho?
Sarah apontou para oeste.
Antes mesmo de chegarem ao portão principal, a propriedade fazia sentir sua presença. Havia, para começar, um muro. Com muitos quilômetros, era feito de pedra local e tinha, na parte de cima, fileiras de arame farpado voltado para fora. Lembrava a Gabriel a cerca que corria ao longo de Grosvenor Place, em Londres, separando o terreno do Palácio de Buckingham da ralé do bairro vizinho de Belgravia. O portão era uma monstruosidade de barras de ferro e lâmpadas banhadas a ouro, e atrás havia uma entrada perfeita de cascalho, levando a um Versalhes particular.
Gabriel refletiu em silêncio. Por fim, perguntou:
— Por que estou tentando ajudar um homem que desperdiçaria quatrocentos milhões de euros numa casa dessas?
— Qual é a resposta?
Antes de Gabriel conseguir falar, seu BlackBerry tremeu. Ele fez uma careta para a tela.
— O que foi? — perguntou Sarah.
— Rafiq al-Madani acabou de entrar no Ministério do Interior em Paris.
18
GENEBRA
Durante sua breve estada na estação do Escritório em Paris, Gabriel fizera mais do que colocar Rafiq al-Madani sob vigilância. Também tinha ordenado que a Unidade 8200 encontrasse o endereço de Lucien Villard, ex-chefe de segurança da Escola Internacional de Genebra. Os ladrões cibernéticos da Unidade conseguiram em questão de minutos na seção de recursos humanos da rede de computadores da escola, na qual entraram como se passassem por uma porta aberta. Villard morava num bairro movimentado de prédios residenciais de estilo parisiense. Sua rua era cheia de lojas e cafés, um paraíso para observadores. Havia até um hotel modesto, a que Gabriel e Sarah chegaram ao meio-dia. Gabriel pediu para falar com um hóspede de nome Lange e foi levado a um quarto no terceiro andar. Lá, encontraram uma placa de não perturbe e Mikhail Abramov parado na fresta da porta entreaberta.
Ele olhou para Sarah e sorriu.
— Algo errado?
— Eu só...
— Achou que seria outra pessoa?
— Tive esperança, na verdade. — Sarah olhou para Gabriel. — Você podia ter mencionado que ele estaria aqui.
— Mikhail é profissional, e você também. Tenho certeza de que os dois podem deixar as diferenças de lado e trabalhar juntos.
— Como Israel e os palestinos?
— Tudo é possível.
Gabriel passou por eles e entrou no quarto. As luzes estavam apagadas, e as cortinas, bem fechadas. As únicas fontes de iluminação eram o laptop aberto na escrivaninha e o BlackBerry de Mikhail.
Ele tirou um envelope fino do bolso externo de sua mala de mão.
— Buscamos essas fotos do homem e da mulher de Annecy em todas as bases de dados ontem à noite.
— E?
— Nada. Mesma coisa com o passaporte.
Gabriel foi à janela e olhou pelo canto das cortinas.
— Qual é o prédio de Villard?
— Número 21.
Mikhail entregou um binóculo Zeiss a Gabriel.
— Terceiro andar, lado direito do prédio.
Gabriel vasculhou as duas janelas voltadas à rua do apartamento de Lucien Villard. Viu uma sala de estar com poucos móveis, mas sem sinal do proprietário.
— Tem certeza de que ele está lá?
Mikhail aumentou o volume do laptop. Em alguns segundos, Gabriel ouviu a frase de abertura de “I Want to Talk About You”, de Coltrane.
— Qual é a fonte do áudio?
— O celular dele. A Unidade conseguiu o número no arquivo digital interno da escola. Quando pousei hoje de manhã, o telefone já estava grampeado e estávamos lendo os e-mails e as mensagens dele.
— Algo interessante?
— Ele está indo para Marrakesh amanhã à tarde.
Gabriel apontou o binóculo para Mikhail.
— Sério?
— Tem uma reserva na Lufthansa, com uma breve conexão em Munique. Primeira classe em ambos os trechos.
Gabriel abaixou a lente.
— Quando ele volta?
— A passagem está em aberto. Ele ainda não marcou a volta.
— Agora que não está mais trabalhando, imagino que tenha muito tempo livre.
— E o Marrocos é lindo nesta época do ano.
— Eu lembro — comentou Gabriel, distante. — A Unidade conseguiu ver o arquivo dele?
— Pegaram uma cópia antes de sair.
— Alguma menção ao fato de que ele foi escorraçado da SDLP por ter um caso com a esposa do presidente francês?
— Ele parece não ter mencionado isso na entrevista de emprego.
— Alguma informação secreta?
Mikhail negou.
— Quanto estavam pagando a ele?
— O suficiente para alugar um apartamento num bairro chique de Genebra, mas não para as coisas supérfluas.
— Como uma viagem longa ao Marrocos?
— Sem esquecer a passagem de primeira classe.
— Não esqueci. — A música de Lucien Villard preencheu o silêncio. —
E a vida pessoal dele?
— Foi casado uma vez há um milhão de anos.
— Filhos?
— Uma filha. Trocam e-mails às vezes.
— Que simpático.
— Eu não diria isso antes de ler os e-mails.
Gabriel levou o binóculo de volta aos olhos e analisou o apartamento de Villard.
— Tem uma mulher lá?
— Se tiver, ainda não está acordada. Mas ele vai tomar um drinque com uma mulher chamada Isabelle Jeanneret às cinco.
— Quem é?
— Por enquanto, só um endereço de e-mail. A Unidade está trabalhando nisso.
— Onde vão se encontrar?
— No Café Remor, na place du Cirque.
— Quem escolheu o lugar?
— Ela. — Um silêncio caiu entre os dois, antes de Mikhail perguntar:
— Acha que ele sabe de algo?
— Não estaríamos aqui se eu não achasse.
— Como pretende agir?
— Quero ter uma conversinha com ele em particular.
— Uma conversinha amigável?
— Isso depende inteiramente de Lucien.
— Quando vamos agir?
— Depois de ele terminar os drinques com a Madame Jeanneret no Café Remor. Você e Sarah vão estar sentados à mesa ao lado. — Gabriel sorriu. — Como nos velhos tempos.
A canção de Coltrane acabou, e a seguinte começou.
— Como se chama essa? — perguntou Sarah.
— “You Say You Care”.
Sarah balançou a cabeça.
— Não dava para ter achado outra pessoa para mandar para Genebra?
— Ele se voluntariou.
Viram Villard pela primeira vez às 13h30, parado na janela da sala de estar, sem camisa, com o celular grampeado na orelha. Conversava em francês com uma mulher que o aparelho identificava como Monique.
Obviamente eram íntimos. Inclusive, por uns dez minutos, ela explicou com detalhes torturantes o que faria com o corpo de Villard se ele concordasse em encontrá-la à noite. Ele, alegando um conflito de agendas, declinou. Não mencionou que ia sair com Isabelle Jeanneret às 17h.
Também não fez referência a sua viagem iminente a Marrakesh. Gabriel admirou muito a performance. Lucien Villard, concluiu, era um homem que mentia com frequência e bem.
A mulher desligou abruptamente, e Villard desapareceu da vista deles.
Voltavam a vê-lo de relance quando ele passava ao alcance da câmera do telefone, mas, principalmente, ouviam as gavetas abrindo e fechando —
um som que Gabriel, veterano de muitas operações de vigilância, associou ao de malas sendo arrumadas. Havia duas, na verdade, uma de pano e uma gigante retangular de rodinhas, do tamanho de um baú. Ele deixou as duas no hall de entrada antes de descer.
Quando o viram em seguida, Villard estava saindo para a rua movimentada, com um casaco de couro, jeans escuros e uma bota de cano médio de camurça. Parou brevemente na calçada, olhando para os dois lados — talvez por hábito, pensou Gabriel, ou talvez porque temesse estar sendo vigiado.
Um cigarro foi levado aos lábios, um isqueiro se acendeu, uma baforada de fumaça foi carregada pelo vento frio do inverno. Então, ele enfiou as mãos bem fundo no bolso e se dirigiu ao centro de Genebra.
Gabriel continuou no quarto de hotel enquanto Mikhail e Sarah seguiam Villard a pé. O telefone permitia que a Unidade 8200 rastreasse todos os movimentos dele de longe. Os dois agentes serviam apenas como olhos humanos no alvo. Mantinham uma distância segura, às vezes posando de casal, às vezes trabalhando sozinhos. Consequentemente, apenas Sarah observou Villard entrando num pequeno banco particular na rue du Rhône.
O telefone grampeado permitiu que Gabriel monitorasse a transação feita por Villard lá dentro — a transferência de uma quantia grande de dinheiro para um banco em Marrakesh. Ele, então, pediu acesso ao seu cofre. Como o telefone estava no bolso, a câmera acabou ficando cega. Mas a sequência de sons — o ranger de uma dobradiça, o farfalhar de papéis, o zíper de
uma jaqueta de couro se fechando — levou Gabriel a concluir que itens haviam sido removidos do cofre, não colocados.
Mikhail estava tomando café na Starbucks do outro lado da rua quando Villard saiu do banco. O francês checou o horário no relógio de pulso —
eram exatamente 16h30 — e seguiu pela rue du Rhône até o rio. Então, abriu caminho pelas ruas estreitas e tranquilas da Cidade Antiga até a place de la Synagogue, onde Gabriel estava ao volante do Passat.
O Café Remor ficava cem metros mais para a frente, no boulevard Georges-Favon. Havia várias mesas desocupadas na place du Cirque, e outras sob o toldo. Villard decidiu se sentar na praça. Mikhail se juntou a Sarah sob o toldo. Um aquecedor a gás aliviava o frio do fim de tarde.
Sarah levou uma taça de vinho tinto aos lábios.
— Como me saí?
— Nada mal — disse Mikhail. — Nada mal mesmo.
Por dez minutos, ninguém apareceu. Villard fumou dois cigarros, acendendo o segundo com o primeiro, e olhou várias vezes para o celular, apoiado na mesa. Finalmente, às 17h15, chamou um garçom que passava e fez o pedido. Uma única garrafa de cerveja Kronenbourg chegou um minuto depois.
— Parece que ela deu bolo nele — disse Mikhail. — Se eu fosse ele, ligaria para Monique antes que seja tarde.
Mas Sarah não estava ouvindo; observava um homem vindo pelo boulevard na direção do café. Em vestimenta e aspecto, parecia um banqueiro ou empresário suíço, na casa dos quarenta ou cinquenta anos, a caminho de casa depois de um dia próspero no escritório. Seu sobretudo caro era marrom, e a pasta de couro que carregava na mão esquerda, vermelho-escuro. Ele a deixou na calçada ao lado de Lucien Villard antes de sentar-se a uma mesa adjacente.
Em voz baixa, Mikhail perguntou:
— Será uma coincidência ele ter escolhido sentar-se do lado do nosso cara, quando tem tantas outras mesas disponíveis?
— Não — respondeu Sarah. — Não é.
— O rosto dele é familiar.
— Deveria ser.
— Onde o vi antes?
— Na Brasserie Saint-Maurice em Annecy.
Mikhail olhou para Sarah, perplexo.
— É o rosto que você procurou nas bases de dados do Boulevard Rei Saul ontem à noite.
Mikhail pegou seu BlackBerry e discou.
— Você não imagina quem acaba de entrar no Café Remor.
— Eu sei — disse Gabriel. — Estou do outro lado da rua.
19
GENEBRA
A vaga em que Gabriel estava estacionado na place du Cirque não era, de forma alguma, legal. Nem a Beretta M9 com cabo de nogueira no banco do passageiro, embaixo de um exemplar do Le Temps daquele dia. Gabriel colocara a arma ali depois de ver o homem de sobretudo marrom caminhando pelo boulevard. As vestimentas dele eram mais profissionais do que da última vez, usava outro penteado e um óculos de armação escura. Ainda assim, não havia como confundi-lo. Tendo passado uma vida restaurando telas dos Velhos Mestres, Gabriel tinha desenvolvido uma habilidade quase infalível para reconhecer rostos familiares, mesmo disfarçados. O homem sentado ao lado de Lucien Villard tinha estado na Brasserie Saint-Maurice em Annecy no dia do sequestro da princesa Reema.
Gabriel considerou tentar prender o homem, mas rejeitou a ideia na mesma hora. Era um profissional, sem dúvida, armado. Sua rendição não seria amigável. Era provável que balas voassem numa praça movimentada no coração de Genebra.
Tratava-se de um risco que Gabriel não estava disposto a correr. O
código do Escritório proibia o uso de força letal em cenários urbanos lotados, a não ser que o oficial em questão estivesse correndo perigo de vida ou de ser privado de sua liberdade, em especial, para uma nação hostil. Não era o caso no momento. Gabriel e Mikhail podiam seguir o homem depois de ele ir embora do Café Remor e capturá-lo no lugar e momento em que escolhessem. Então, o encorajariam a revelar o destino da princesa Reema, por persuasão ou força. Se a sorte estivesse a favor deles, talvez o suspeito os levasse diretamente à princesa. Melhor esperar, considerou Gabriel, do que agir precipitadamente e perder a oportunidade de salvar a vida da menina.
De seu ponto de observação, ele conseguia ver que o homem de sobretudo marrom ainda não fizera seu pedido. Sua pose era idêntica à que adotara na Brasserie Saint-Maurice — pernas casualmente cruzadas, cotovelo direito na mesa, mão esquerda na coxa, com certeza para alcançar facilmente a arma. A pasta de couro continuava na calçada, entre a mesa
dele e a de Villard. Era um lugar estranho para deixá-la. A não ser, pensou Gabriel, que ele não tivesse intenção de levá-la consigo ao sair.
Mas por que o suspeito estava sentado num café ao lado do ex-diretor de segurança da Escola Internacional de Genebra? O telefone comprometido de Villard estava na mesa a sua frente. A Unidade 8200
hackeara as informações de forma segura para o BlackBerry de Gabriel. A qualidade do áudio era cristalina — ele conseguia ouvir o tilintar dos talheres e das taças no café, bem como as conversas passantes na calçada
—, mas havia um atraso de vários segundos na transmissão. Era como assistir a um filme antigo com som e imagem dessincronizados. Os dois personagens centrais dessa história estavam em silêncio. Era possível, pensou Gabriel, que assim permanecessem.
Nesse momento, houve uma batida à janela dele, dois toques firmes vindos dos nós dos dedos enluvados de um policial, seguidos por um aceno seco. Gabriel levantou uma das mãos em sinal de desculpas e se afastou do meio-fio, entrando no trânsito frenético do fim de tarde. Fez uma série de curvas rápidas — direita na avenue du Mail, esquerda na rue Harry-Marc, esquerda de novo no boulevard Georges-Favon — e voltou à place du Cirque.
Um sinal vermelho deu a ele uma desculpa para levar uns instantes a mais por ali. Vários transeuntes passaram pela faixa de pedestre a sua frente. Um era um homem aparentemente bem-sucedido com um sobretudo marrom. Alguns passos atrás estava Mikhail Abramov. Sarah permanecia no Café Remor, sem tirar os olhos de Lucien Villard, que esticava uma das mãos para pegar a pasta de couro na calçada.
Ele o notou pela primeira vez, o homem longilíneo de pele pálida e olhos sem cor, sentado ao lado da loura bonita no Café Remor. E lá estava ele de novo, o mesmo homem, seguindo-o pela escuridão na rue de la Corraterie.
Também havia um carro atrás dele — o mesmo que estacionara ilegalmente na place du Cirque. Ele não tinha visto nada do motorista a não ser um borrão grisalho nas têmporas.
Mas como o haviam encontrado? Ele tinha certeza de não ter sido seguido até o café. Portanto, a explicação lógica era que Villard estava sob vigilância, não ele. Não importava, o ex-diretor de segurança não sabia quase nada. E, em poucos minutos, não seria mais uma ameaça.
Ele tirou o telefone do bolso do casaco e ligou para um número já gravado. A conversa foi breve e codificada. Quando terminou, ele desligou e parou numa vitrine. Olhando para a esquerda, viu o homem pálido — e, mais longe na rua, o carro.
Esperou um bonde passar, cruzou para o outro lado da rua e entrou num pequeno cinema. O filme tinha acabado de começar. Comprou um ingresso e entrou na sala escura e meio vazia. Do lado esquerdo da tela localizava-se a saída de emergência. O alarme soou alto quando o suspeito destravou a trava antipânico e saiu de novo para a noite.
Viu-se num pátio cercado por um muro alto. Escalou sem dificuldade, saltou para uma via de paralelepípedos e foi até uma passagem para a Cidade Antiga. Encontrou uma moto Piaggio estacionada em frente a um sebo, com uma figura numa roupa de couro e capacete. Subiu na traseira e abraçou sua cintura fina.
O alarme de incêndio ainda estava soando quando Mikhail irrompeu pela entrada do cinema. Não se deu ao trabalho de comprar um ingresso para disfarçar e precisou de duas tentativas para escalar o muro do pátio dos fundos. A rua na qual saltou estava completamente vazia. Ao se erguer, correu a esmo pelos paralelepípedos até chegar a uma charmosa praça no coração da Cidade Antiga. Lá, viu o homem de sobretudo marrom subindo na traseira de uma motocicleta. Mikhail considerou, por um segundo, sacar a arma e dar um tiro. Em vez disso, correu de volta à rue de la Corraterie, onde Gabriel o esperava.
— Onde ele está?
Mikhail contou da moto.
— Você viu quem pilotava?
— Ela estava usando um capacete.
— Era uma mulher? Tem certeza?
Mikhail fez que sim.
— Onde está Villard?
— Saindo agora do Café Remor.
— Seguido por uma curadora de museu desarmada com treinamento limitado em técnicas de vigilância de rua.
Gabriel pisou no acelerador e fez um retorno na frente de um bonde que se aproximava.
— Você está na contramão de uma rua de mão única.
— Se eu for na mão certa, vamos levar dez minutos para voltar à place du Cirque.
Mikhail bateu os dedos, nervoso, no console central.
— O que você acha que está na pasta?
— Espero que seja dinheiro.
— Eu também.
O primeiro erro de Sarah foi não pagar a conta adiantado, um pecado capital no negócio de vigilância. Quando conseguiu chamar a atenção do indiferente garçom, Lucien Villard já tinha saído da place du Cirque e seguia lá longe pelo boulevard Georges-Favon. Com medo de perdê-lo na multidão de fim de tarde, Sarah correu atrás de sua presa, e foi assim que cometeu o segundo erro.
Aconteceu no cruzamento com a rue du Stand.
Villard estava prestes a atravessar, mas, quando o semáforo ficou vermelho, ele parou abruptamente e pegou um maço de cigarros. A brisa estava vindo do Rhône, diretamente em sua direção. Ao se virar para usar o isqueiro, ele viu Sarah examinando a vitrine de uma loja de vinhos a cerca de trinta metros. Olhou-a descaradamente por um bom tempo, o cigarro entre os lábios, o isqueiro na mão direita, a pasta na esquerda. A pasta que lhe tinha sido dada pelo homem de sobretudo marrom.
Imediatamente, Villard jogou o cigarro na calçada e deu dois passos bruscos na direção de Sarah. Foi aí que ela viu uma explosão de luz branca brilhante e sentiu uma rajada de ar quente com a força de um furacão, erguendo-a do chão e jogando-a na calçada. Ficou deitada imóvel, incapaz de se mexer ou respirar, perguntando-se se estava viva ou morta. Só tinha consciência do vidro estilhaçado e de membros e vísceras humanas. E
sangue. Estava por todo canto, o sangue. Um pouco, temia, devia ser seu. E
um pouco pingava nela dos galhos pelados da árvore abaixo da qual ela caíra.
Por fim, ouviu alguém chamando seu nome. Percebeu uma mulher mancando lentamente enquanto atravessava uma esplanada banhada de sol à beira-mar, o rosto escondido por um véu negro. Então, ela desapareceu e um homem tomou seu lugar. Os olhos dele eram azul-acinzentados, como gelo glacial, e ele gritava a plenos pulmões:
— Sarah! Sarah! Está me ouvindo, Sarah?
Parte Dois
ABDICAÇÃO
20
GENEBRA–LYON
A bomba era pequena, só cinco quilos de explosivo de classe militar, mas fora construída por especialistas. Tinha sido colocada não num carro ou caminhão, mas numa pasta. O homem que a segurava quando ela detonou foi reduzido a uma coleção de órgãos e extremidades, incluindo sua mão que foi parar no para-brisa de um carro que trafegava pelo boulevard Georges-Favon.
Foi encontrada uma carteira dentro dos restos de um casaco de couro, preso em torno dos restos de um torso humano. Tudo pertencia a certo Lucien Villard, veterano do Service de la Protection, que, até pouco tempo, tinha o cargo de chefe de segurança na Escola Internacional de Genebra.
Duas outras pessoas, um homem de 28 anos e uma mulher de 33, foram mortas na explosão. Ambos estavam bem ao lado de Villard enquanto ele esperava para atravessar a rue du Stand. Cidadãos suíços e residentes de Genebra.
A pasta foi mais difícil de identificar, pois não sobrou quase nada. A Polícia Federal suíça obteria vídeos de circuito fechado mostrando Lucien Villard pegando a maleta no Café Remor. Tinha sido largada ali por um homem de óculos e sobretudo marrom. Quando saiu do café a pé, ele fora seguido por um homem alto de pele e cabelo claros e por outro dirigindo um Passat sedan. O de sobretudo tinha feito uma breve ligação antes de entrar num cinema na rue de la Corraterie, de onde saiu rapidamente. O
Onyx, sistema de inteligência de sinais altamente capacitado da Suíça, por fim interceptaria a ligação. Ele havia ligado para uma mulher, com quem trocou poucas palavras em francês. Analistas linguísticos determinariam que não era o idioma nativo de nenhum dos dois.
Quando Lucien Villard saiu do Café Remor com a pasta às 17h17, foi seguido por uma mulher que estava numa mesa com o homem alto. Ela estava a meio quarteirão de Villard no boulevard Georges-Favon quando a bomba foi detonada. Permaneceu imóvel na calçada por vários minutos, como se estivesse entre os mortos. Então, o homem alto apareceu e a colocou às pressas no banco de trás do Passat sedan.
O carro tinha placa francesa e retornou à França, minutos depois de sair da cena da explosão. Pouco antes das nove da noite, entrou num estacionamento no centro de Lyon, com boa parte da placa de trás suja de lama. Gabriel escondeu a chave embaixo da roda posterior esquerda, enquanto Mikhail ajudava Sarah a sair do banco traseiro. Os passos dela eram instáveis ao atravessar a rua até a Gare de la Part Dieu.
O último trem da noite para Paris estava prestes a sair. Mikhail comprou três passagens, e, juntos, foram para a plataforma. O vagão deles estava quase vazio. O russo sentou-se sozinho na frente, numa poltrona voltada para a traseira do trem; Gabriel e Sarah, à direita. O rosto dela estava cinzento, o cabelo, úmido. Mikhail a lavara com alguns litros de água Vittel antes de colocar roupas limpas nela. Por sorte, o sangue não era de Sarah, mas de Lucien Villard.
Ela examinou seu reflexo no vidro da janela.
— Sem nenhum arranhão. Como explica isso?
— A bomba foi projetada para limitar vítimas colaterais.
— Você viu a explosão?
Gabriel fez que não.
— Só ouvimos.
— Eu vi. Ou pelo menos, acho que sim. Só lembro da expressão de Lucien Villard ao ser rasgado em pedaços. Era como se ele fosse...
— Um homem-bomba?
Sarah assentiu lentamente.
— Você já viu?
— Um homem-bomba? Perdi as contas.
Ela, de repente, fez uma careta de dor.
— Parece que fui atropelada por um caminhão. Acho que devo ter quebrado uma ou duas costelas.
— Vamos pedir para um médico examiná-la antes do seu voo.
— Que voo?
— O voo para Nova York.
— Não vou a lugar nenhum.
Gabriel não se deu ao trabalho de responder. O rosto no vidro estava contorcido de dor.
— A noite não saiu exatamente como planejado — disse Sarah.
— Lucien Villard foi explodido em pedacinhos. E um dos sequestradores de Reema escapou por entre nossos dedos.
— Infelizmente, esse é um ótimo resumo.
— Ele caiu no nosso colo e deixamos escapar.
— Fomos Mikhail e eu que o perdemos, não você.
— Talvez devêssemos tê-lo capturado no café.
— Ou talvez devêssemos ter atirado nele quando estava andando naquela rua tranquila perto do cinema. Uma bala tende a deixar até o homem mais duro tagarela.
— Lembro disso, também. — Sarah observou um bairro feio de periferia passar por sua janela. — Acho que sabemos como os sequestradores descobriram que a filha de Khalid estava matriculada naquela escola.
— Duvido que precisassem de Villard para isso.
— Então, o que ele fez por eles?
— Aí — falou Gabriel — eu precisaria especular.
— O caminho até Paris é longo. Fique à vontade.
— Observação próxima do alvo — disse Gabriel, após um momento.
— Continue.
— Não podiam fazer sozinhos, porque sabiam que os serviços suíços estavam vigiando. Então, contrataram alguém para fazer isso por eles.
Alguém que deveria cuidar da segurança dela.
— Ele sabia para quem estava trabalhando?
— Duvido.
— Então, por que matá-lo?
— Imagino que quisessem eliminar qualquer um capaz de comprometê-
los. Ou é possível que Lucien tenha feito alguma estupidez.
— Tipo o quê?
— Talvez os tenha ameaçado. Ou pedido mais dinheiro.
— Ele deve ter pensado que tinha dinheiro na pasta. Por que mais a teria pegado? — Sarah olhou para Mikhail, que os observava na frente do vagão. — Você deveria ter visto a cara dele quando achou que eu pudesse estar morta.
— Eu vi.
— Sei que ele está apaixonado pela fulana, mas ainda gosta de mim. —
Ela apoiou a cabeça no ombro de Gabriel. — O que vamos fazer agora?
— Você vai para casa, Sarah.
— Já estou em casa — disse ela, e fechou os olhos.
21
Mais tarde, naquela mesma noite, enquanto um trem com o chefe da inteligência israelense se aproximava da Gare de Lyon em Paris, três figuras encapuzadas tiraram a princesa Reema bint Khalid Abdulaziz de um sono atormentado. Estavam claramente agitadas, o que a surpreendeu.
Desde o incidente do caderno, as interações de Reema com seus sequestradores tinham sido formais e silenciosas, mas sem rancor. Aliás, fazia algum tempo que ela não via a mulher. Reema não sabia dizer, com certeza, quanto. Media a passagem das horas e dos dias não por um relógio ou calendário, mas pelo ritmo de suas refeições e suas visitas supervisionadas ao banheiro.
Um dos homens estava segurando uma escova de cabelo e um pequeno espelho em formato de raquete. Também tinha um bilhete. Ele queria que Reema melhorasse sua aparência — o motivo, não disse. O primeiro relance da criatura no espelho a chocou. Ela mal reconheceu o rosto pálido e abatido. Seu cabelo negro estava imundo e embaraçado.
O homem se retirou enquanto Reema, segurando o espelho diante de si, forçava a escova a passar pelo emaranhado de fios. Ele voltou um momento depois com um exemplar de um jornal de Londres e uma câmera instantânea vermelho vivo. Parecia um brinquedo, não algo que estaria na mão de um criminoso implacável. Ele entregou o periódico a Reema —
era uma edição do The Telegraph daquela manhã — e, com gestos rudes, instruiu-a a segurá-lo embaixo do queixo. Para a fotografia, ela adotou um juhaymin, a tradicional “cara de bravo” dos beduínos árabes. O olhar, porém, implorava que o pai acabasse com seu sofrimento.
A câmera soltou um flash e, alguns segundos depois, cuspiu a fotografia. Então, o homem tirou uma segunda foto, que preferiu à primeira. Ficou com ambas enquanto ele e os outros companheiros se preparavam para sair.
— Posso ficar com ela?
Os olhos por trás da máscara a estudaram de forma questionadora.
— A que você não for mandar para o meu pai para provar que ainda estou viva.
O sequestrador pareceu considerar com cuidado o pedido. Então, a foto não escolhida voou, fazendo uma curva suave antes de pousar no catre ao lado de Reema. A porta se fechou, as trancas estalaram. A luz no teto continuou acesa.
Reema pegou a foto. Era muito boa, pensou. Ela parecia ter mais do que 12 anos e estar levemente bêbada ou drogada, um pouco sexy, como modelos na Vogue e na Glamour. Duvidava de que seu pai fosse achar o mesmo.
Ela esticou o corpo de costas no catre e olhou para os olhos da garota na fotografia.
— É a morte — sussurrou. — Morte, morte, morte.
22
PARIS–LONDRES
O apartamento seguro ficava num pequeno prédio residencial no extremo do Bois de Boulogne. Mikhail e Sarah pegaram um quarto para cada um, deixando o sofá-cama na sala — a cama de pregos, como era conhecida no Escritório — para Gabriel. Consequentemente, como a princesa Reema, ele não dormiu bem naquela noite.
Levantou cedo, vestiu-se e saiu à luz fria e metálica da manhã. Uma equipe de segurança de dois homens da embaixada esperava por ele em um Renault sedan com placa diplomática. Dirigiram pelas ruas silenciosas até a Gare du Nord, onde Gabriel entrou na classe executiva do Eurostar das 8h15 rumo a Londres. Rodeado de comerciantes e profissionais do mercado financeiro, ele leu os jornais da manhã. Estavam cheios de relatos enganosos sobre o misterioso bombardeio em Genebra envolvendo o ex-chefe de segurança de uma escola particular de elite para filhos de diplomatas.
Enquanto o trem se aproximava do Eurotúnel, Gabriel mandou uma mensagem codificada, informando o destinatário de sua chegada iminente à capital inglesa. A resposta demorou muito para chegar, e o tom era inóspito. Não continha cumprimento nem saudação, só um endereço.
Gabriel supôs que fosse de uma casa segura. Ou não. Os britânicos não tinham casas seguras, pensou. Pelo menos, nenhuma que o Centro de Moscou não conhecesse.
Eram 9h30 quando o trem chegou à Estação de St. Pancras, em Londres.
Gabriel esperava ser recebido no desembarque, mas, cruzando o imponente átrio principal, não viu evidências de um comitê de recepção britânico. Deveria ter ligado para a Estação de Londres e pedido um motorista e um acompanhante. Em vez disso, passou as duas horas seguintes vagando pelas ruas do West End, buscando evidências de que estivesse sendo seguido. Era uma violação dos protocolos do Escritório, mas no caso dele, não sem precedentes. Da última vez em que se aventurara sozinho em público, tinha encontrado Rebecca Manning, a traidora ex-Chefe de Estação de Washington, e um time de extração russo
fortemente armado. Os russos não tinham sobrevivido. Rebecca Manning, para o bem ou para o mal, sim.
A Embaixada da Rússia em Londres, com sua rezidentura do SVR cheia de funcionários, ocupava um terreno valioso perto do Palácio de Kensington. Gabriel passou por ela na Bayswater Road e seguiu até Notting Hill. St. Luke’s Mews ficava na margem norte deste bairro elegante, perto de Westway. O número 7, como todas as outras casas na rua, era uma garagem convertida. O exterior era pintado numa escala de cinza — cinza-claro nos tijolos, cinza-escuro no acabamento e na porta. A aldrava era um grande anel prateado. Gabriel o bateu duas vezes. E, quando não recebeu resposta, repetiu o gesto.
Por fim, a porta se abriu e Nigel Whitcombe o recebeu. O inglês recentemente fizera 40 anos, mas ainda parecia um adolescente que tinha sido esticado e moldado como adulto. Gabriel o conhecia desde que era um estagiário no MI5. Neste momento, era assistente pessoal e cuidava da maioria dos assuntos para o diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência, o MI6.
— Estou bem — disse Gabriel, incisivo, depois de Whitcombe ter fechado a porta. — E você, Nigel?
— Davies — respondeu ele. — Não usamos nomes reais nos apartamentos seguros, só os de trabalho.
— E quem eu sou?
— Mudd — disse Whitcombe.
— Interessante.
— Deveria ouvir o que nós rejeitamos.
— Posso imaginar.
Gabriel olhou ao redor do interior da casa minúscula. Estava recém-reformada e pintada, mas quase sem mobília.
— Tomamos posse na semana passada. Você é o primeiro convidado.
— Que honra.
— Acredite, não era nossa intenção. Estamos no processo de liquidar todo o nosso inventário de casas seguras. E não só em Londres. No mundo todo.
— Mas não fui eu que contei as localizações aos russos. Foi Rebecca Manning.
Um momento se passou. Então, Whitcombe disse:
— Temos muita história, senhor Mudd.
— Se me chamar assim de novo...
— Nos conhecemos desde a operação Kharkov. Sabe que tenho o máximo de respeito por você.
— Mas?
— Teria sido melhor se tivesse deixado que ela desertasse.
— Nada teria mudado, Nigel. Ainda seria um escândalo e vocês ainda seriam forçados a se livrar de todas as casas seguras.
— Não são só as propriedades seguras, mas tudo. Nossas redes, nossos chefes de estação, nossas cifras e criptografia. Para todos os efeitos, já não estamos no negócio da espionagem.
— É isso que acontece quando os russos plantam uma informante no nível mais alto de um serviço de inteligência — falou Gabriel. — Aqui é muito melhor que aquela pocilga em Stockwell.
— Essa também foi embora. Estamos vendendo e comprando propriedades tão rápido que causamos impacto no mercado imobiliário londrino.
— Tenho um lindo apartamento em Bayswater de que estou querendo me livrar.
— Aquele lugar com vista para o parque? Todo mundo sabe que é um apartamento seguro do Escritório. — Whitcombe sorriu pela primeira vez.
— Perdoe, os últimos meses foram um pesadelo. Rebecca deve estar adorando o show de seu novo escritório no Centro de Moscou.
— Como está o “C”?
— Vou deixar que ele responda.
Pela janela da frente, Gabriel viu Graham Seymour sair do banco traseiro de uma limusine Jaguar. Parecia deslocado naquelas ruazinhas da moda, como um homem mais velho e rico visitando sua amante jovem.
Seymour sempre teve esse ar. Com seus traços prontos para a câmera e mechas abundantes cinza-escuras quase azuladas, ele parecia um daqueles modelos que se via em anúncios de bugigangas caras como canetas-tinteiro e relógios suíços. Ao entrar, examinou a sala de estar como se estivesse tentando esconder seu entusiasmo de um corretor imobiliário.
— Quanto pagamos por este lugar? — perguntou a Whitcombe.
— Quase dois milhões, chefe.
— Lembro os dias em que uma quitinete em Chiswick resolvia. As camareiras encheram a despensa?
— Infelizmente, não.
— Tem um mercado Tesco na esquina. Chá, leite e uma caixa de biscoitos. E pode demorar, Nigel. — A porta da frente foi aberta e fechada em seguida. Seymour tirou seu sobretudo Crombie e o jogou nas costas de uma cadeira. Parecia comprada na Ikea. — Imagino que não tenha sobrado muito para decoração. Não com um preço de dois milhões de libras.
— É melhor não enfiar móveis demais em lugares pequenos como este.
— Não tenho experiência nisso. — Seymour morava numa mansão georgiana na Eaton Square com uma esposa chamada Helen, que cozinhava com ânimo, mas muito mal. O dinheiro vinha da família de Helen. O pai de Seymour tinha sido um lendário oficial do MI6 que trabalhara, principalmente, no Oriente Médio. — Ouvi dizer que tem estado ocupado.
— Ouviu?
Seymour sorriu de lábios fechados.
— O GCHQ captou, há algumas noites, uma explosão de tráfego de rádio e telefone incomum em Teerã. — O Government Communications Headquarters é o serviço de inteligência britânico encarregado pela segurança e pela espionagem e contra espionagem nas comunicações. —
Sinceramente, soava como se o lugar estivesse em chamas.
— E o que era?
— Alguém invadiu um armazém e roubou toneladas de arquivos e disquetes. Aparentemente, esses documentos representam todos os registros do programa de armas nucleares do Irã.
— Imagine só.
Outro sorriso, dessa vez, mais longo que o último.
— Como seus parceiros em várias operações contra o programa nuclear iraniano, incluindo uma de codinome Obra-Prima, gostaríamos de ver os documentos.
— Tenho certeza de que sim.
— Antes de você mostrar aos americanos.
— Como sabe que já não compartilhamos com Langley?
— Porque não deu tempo de analisar um tesouro como aquele. Se tivesse entregado o material aos americanos, eles teriam oferecido a mim.
— Eu não teria tanta certeza. Seu aliado tem as mesmas preocupações que nós com seu serviço. E por bons motivos. Afinal, Rebecca passou os últimos meses de sua carreira no MI6 roubando todos os segredos americanos em que conseguia colocar as mãos.
A expressão de Seymour ficou fechada, como se uma sombra tivesse caído sobre seu rosto.
— Rebecca se foi.
— Nada disso, Graham. Está trabalhando no Departamento do Reino Unido no Centro de Moscou. E você está num beco sem saída, porque não tem certeza de que ela tem outro agente dentro do MI6.
— É por isso que preciso de um bom segredo para provar que ainda estou no jogo.
— Então, talvez devesse ir roubar.
— Estamos ocupados demais desmoronando para cometer um ato de espionagem simples. Estamos totalmente paralisados.
— Como ficaram depois de...
— Sim — interrompeu Seymour. — Os paralelos entre aquela época e hoje são impressionantes. Levou anos para nos levantarmos após sermos derrubados por Philby. Estou determinado a não deixar acontecer de novo.
— E quer minha ajuda.
Seymour não disse nada.
— Como posso ter certeza de que os documentos iranianos não vão acabar na mesa de Rebecca no Centro de Moscou?
— Não vão — afirmou Seymour, com seriedade.
— E o que recebo em troca?
— Uma trégua em nosso conflito fratricida e um retorno gradual aos negócios de sempre.
— Que tal algo mais tangível?
— Está bem — concordou Seymour. — Se me entregar esses documentos, ajudo a encontrar a filha de KBM antes de ele ser forçado a abdicar.
— Como descobriu?
Seymour deu de ombros.
— Fontes e métodos.
— Os americanos sabem?
— Falei com Morris Payne ontem à noite sobre outro assunto. — Payne era diretor da CIA. — Ele sabe que a filha de Khalid foi raptada, mas parece não estar ciente de seu envolvimento.
Depois de um breve silêncio, adicionou, de repente:
— Ele está na cidade, sabia?
— Morris?
— Khalid. Chegou de avião ontem à tarde. — Seymour olhou Gabriel com cuidado. — Estou surpreso, dada a intimidade de seu novo relacionamento, que ele não tenha dito a você que estava vindo.
— Ele não mencionou.
— E você não está rastreando aquele telefone dele?
— Perdemos o sinal. Imaginamos que ele tenha trocado.
— O GCHQ concorda.
— O que o trouxe à cidade?
— Ele jantou ontem com seu amado tio Abdullah. É o irmão mais novo do atual rei.
— Meio-irmão — corrigiu Gabriel. — Há uma grande diferença.
— E é por isso que Abdullah passa a maior parte do tempo em Londres.
Aliás, somos praticamente vizinhos. Ele inicialmente se opôs à ascensão de Khalid, mas se comportou depois de o príncipe ameaçar fali-lo e colocá-lo em prisão domiciliar. Agora, é um dos conselheiros mais próximos de KBM. — Seymour franziu a sobrancelha. — Não dá nem para imaginar sobre que tipo de coisas falam. Apesar de seu endereço chique em Londres, Abdullah não gosta muito do Ocidente.
— Nem de Israel — completou Gabriel.
— De fato. Mas é uma figura influente dentro da Casa de Saud, e Khalid precisa do apoio dele.
— Ele é ativo do MI6?
— Abdullah? De onde você tiraria uma ideia dessas? — Seymour se sentou. — Acho que você se enfiou numa guerra dos tronos de verdade. Se tivesse bom senso, se afastaria e deixaria os Al Saud brigarem entre si.
— O Oriente Médio é um lugar perigoso demais para permitir instabilidade na Arábia Saudita.
— Concordamos. E é por isso que estávamos dispostos a fazer vista grossa para as óbvias falhas de KBM, incluindo o assassinato de Omar Nawwaf.
— Qual foi a motivação?
— Há rumores — disse Seymour, vagamente.
— Que tipo de rumores?
— De que Nawwaf sabia de algo que não deveria saber.
— Como o quê?
— Por que não pergunta ao seu amigo? Ele está hospedado no Dorchester com um pseudônimo. — Seymour balançou a cabeça em
reprovação. — Devo dizer, se minha filha tivesse sido sequestrada, o último lugar em que eu estaria é uma suíte de luxo do hotel Dorchester.
Estaria atrás das pessoas que a levaram.
— Foi para isso que ele veio até mim.
Gabriel pegou uma foto em sua pasta de um homem sentado num café francês.
— Quem é?
— Esperava que você me dissesse. — Gabriel entregou a Seymour a fotocópia do passaporte. — Ele é bastante bom. Despistou Mikhail em uns cinco segundos ontem à noite em Genebra.
Seymour levantou o rosto.
— Genebra?
— Será que é um dos seus, Graham? Um ex-oficial do MI6 vendendo seus serviços no mercado aberto?
— Vou checar, mas duvido. Aliás, ele não me parece britânico. —
Seymour analisou a imagem. — Acha que é profissional?
— Definitivamente.
Seymour devolveu a fotografia e a cópia do passaporte.
— Talvez você possa mostrar a alguém familiarizado com o lado obscuro da profissão.
— Conhece alguém assim?
— Talvez.
— Importa-se de eu fazer uma visita?
— Por que não? Ele está com bastante tempo livre no momento. —
Seymour olhou ao redor do cômodo pouco mobiliado. — Todos estamos.
23
KENSINGTON, LONDRES
Enquanto alguns homens percorrem um caminho direto à redenção, outros, como Christopher Keller, pegam a estrada mais longa. Ele morava num duplex de luxo em Queen’s Gate Terrace, em Kensington. Seus muitos cômodos estavam, em grande parte, sem móveis e decoração, evidência de que seu caso com Olivia Watson, ex-modelo e dona de uma galeria de arte moderna bem-sucedida, tinha acabado. O passado dela era quase tão complicado quanto o de Keller. Gabriel era o denominador comum entre eles.
— Você fez alguma coisa indesculpável?
— Deixe-me contar quantas.
Keller sorriu, mesmo sem querer. Ele tinha olhos azul-claros, cabelo queimado de sol e queixo grosso com um buraco no meio. A boca parecia permanentemente fixada num sorriso irônico.
— O que aconteceu?
— Olivia aconteceu.
— O que isso quer dizer?
— Caso não tenha notado, ela virou a estrela do círculo de arte londrino. Muitas fotos glamorosas nos jornais. Muita especulação sobre a vida amorosa misteriosa dela. Chegou ao ponto em que eu não conseguia mais sair em público com ela.
— O que, compreensivelmente, causou tensão no relacionamento.
— Olivia não é exatamente o tipo que fica em casa.
— Você também não, Christopher.
Veterano do Serviço Aéreo Especial, Keller tinha servido sob disfarce na Irlanda do Norte e lutado na primeira Guerra do Golfo. Também tinha sido capanga de um notável criminoso corso, praticando serviços descritos como assassinatos de aluguel. Mas tudo isso tinha ficado para trás. Graças a Gabriel, Christopher Keller era um respeitável oficial do Serviço de Inteligência de Vossa Majestade. Estava recuperado.
Colocou água na chaleira elétrica e ligou na tomada para esquentá-la. A cozinha ficava no térreo da antiga casa georgiana. Parecia saída de uma revista de design. Os balcões de granito eram amplos e com iluminação
elegante, o forno a gás era um Vulcan, a geladeira era uma Sub-Zero de aço inoxidável e a ilha à qual Gabriel se sentava em uma banqueta alta tinha uma pia e uma adega. Pela janela, ele via as canelas de pedestres passando rápido pela calçada na chuva. Eram só 15h30, mas estava quase escuro. O chefe do serviço secreto israelense já tinha aguentado muitos invernos ingleses — ele havia morado num chalé à beira-mar no extremo da Cornualha —, mas tardes chuvosas de dezembro em Londres sempre o deprimiam.
Keller abriu um armário e alcançou uma caixa de Twinings — com o braço esquerdo, notou Gabriel, não o direito.
— Como está?
Keller colocou a mão na clavícula direita.
— A bala causou mais estrago do que pensei. Levou muito tempo para curar.
— É isso que acontece quando envelhecemos.
— Você deve estar falando por experiência própria. Francamente, é tudo muito humilhante. Parece que sou o único oficial da história do MI6 a ter sido baleado por um colega.
— Rebecca não era uma colega, era coronel de alta patente do SVR. Ela me disse que nunca pensou em si como oficial do MI6. Era só uma agente de penetração.
— Igual ao pai dela. — Keller pegou a caixa de chá e fechou o armário sem fazer som. — Eu estava começando a achar que não veria mais você, principalmente, depois da forma como as coisas acabaram em Washington.
Nem preciso dizer, fiquei agradavelmente surpreso quando Graham me deu permissão para renovar nossa amizade.
— Quanto ele contou?
— Só que você se enfiou num rolo com o Príncipe Apressadinho.
— Ele é um ativo valioso numa região conturbada.
— Falou como um verdadeiro espiocrata. Antigamente, você não teria sujado as mãos com alguém como ele.
— Graham contou que tem uma criança envolvida?
Keller fez que sim.
— Ele disse que você tinha uma foto que queria que eu visse.
Gabriel a colocou no balcão. Um homem sentado num café, uma mulher à mesa do lado.
— Onde foi tirada?
Gabriel respondeu.
— Annecy? Lembro com carinho de lá.
— Você o reconhece?
— Não posso dizer que sim.
— E esta?
Gabriel entregou a foto do passaporte a Keller.
— Nós, ingleses, existimos em todos os tamanhos e formatos, mas duvido que ele seja um de nós.
Nesse momento, o BlackBerry de Gabriel vibrou com uma mensagem.
— Julgando pela expressão em seu rosto — disse Keller —, não são boas notícias.
— Os sequestradores acabaram de dar a Khalid até a meia-noite de amanhã para abdicar.
O aparelho celular tremeu com mais uma mensagem. Dessa vez, Gabriel sorriu.
— O que é?
— Uma saída.
— O que isso quer dizer?
— Explico no caminho.
— Aonde estamos indo?
Gabriel se levantou abruptamente.
— Ao Dorchester.
24
MAYFAIR, LONDRES
Gabriel segurou por reflexo o descanso de braço de couro do Bentley Continental chamativo de Keller enquanto passavam correndo em frente à Harrods. Eles mergulharam no viaduto abaixo do Hyde Park Corner e emergiram, um momento depois, em Picadilly. Keller navegou pelas ruas labirínticas de Mayfair com a destreza de um taxista londrino, e freou bruscamente em frente à entrada do Dorchester. Estava iluminada como uma árvore de Natal.
— Espere aqui — falou Keller.
— Onde mais eu iria?
— Você está armado?
— Só com uma sagacidade rápida e charme em excesso.
Keller retirou uma velha Walther PPK do bolso do sobretudo e deu a Gabriel.
— Obrigado, senhor Bond.
— É fácil de esconder e tem uma potência e tanto.
— Um tijolo numa janela de vidro. — Gabriel deslizou a pistola pela cintura da calça nas costas. — Ele está hospedado com o nome de al-Jubeir.
— E quem sou eu?
— Senhor Allenby.
— Igual à ponte?
— Sim, Christopher, igual à ponte.
— O que acontece se ele se recusar a vir sem um destacamento de segurança?
— Diga que é a única forma de recuperar a filha. Isso deve chamar a atenção dele.
Keller entrou no hotel. Alguns brutamontes sauditas bem alimentados estavam comendo pistaches no lobby, mas não havia repórteres. De alguma forma, a imprensa britânica não tinha conhecimento do fato de que o homem mais vilipendiado do mundo estava hospedado no mais elegante hotel de Londres.
Os dois sauditas observaram Keller enquanto ele caminhava até a recepção. O rosto da linda mulher atrás do balcão se iluminou automaticamente, como uma lâmpada acesa por um detector de movimento.
— Vim ver o senhor al-Jubeir. Ele está me esperando.
— Nome, por favor?
Keller respondeu.
A atendente levou o telefone ao ouvido e sussurrou algo cordato. Então, recolocou-o no gancho e fez um gesto na direção do hall do elevador.
— Um dos assistentes do senhor al-Jubeir vai acompanhá-lo à suíte dele.
Keller caminhou até o local indicado, observado pelos dois brutamontes sauditas. Cinco minutos se passaram antes de um assistente se materializar, um homenzinho com olhos sonolentos e terno e gravata imaculados.
— Eu esperava pelo senhor Allon.
— E eu esperava o príncipe.
— Vossa Alteza Real não se encontra com subordinados.
— Se eu fosse você, habibi, me levaria até lá. Senão, vou embora daqui e você vai ter que explicar para o Príncipe Serra de Ossos que me deixou escapar.
O pequeno saudita deixou alguns segundos transcorrerem antes de apertar o botão. Khalid estava hospedado na cobertura. Quando Keller e o pequeno faz-tudo saudita entraram, ele estava andando de um lado para outro diante das janelas amplas com vista para o Hyde Park. Um de seus seguranças ordenou que Keller levantasse os braços para ser revistado. Em um árabe rápido, o enviado de Gabriel mandou o guarda praticar sexo com um camelo.
Khalid parou de andar e baixou o telefone.
— Quem é esse homem?
O pequeno assistente explicou da melhor forma que pôde.
— Cadê o Allon?
Dessa vez, foi Keller quem respondeu. O chefe da inteligência israelense, disse ele, estava esperando lá embaixo num automóvel. Não mencionou a pistola Walther.
— É urgente que eu fale com ele — disse Khalid. — Por favor, peça que ele suba imediatamente.
— Infelizmente, não será possível.
— Por que não?
— Porque este é, provavelmente, o quarto menos seguro de Londres.
Khalid trocou algumas palavras velozes em árabe com o faz-tudo.
— Não — falou Keller, no mesmo idioma. — Nada de limusine nem guarda-costas. Você vem comigo. Sozinho.
— Não posso de jeito nenhum sair daqui sem um destacamento de segurança.
— Não precisa. Agora, pegue seu casaco, Khalid. Não temos a noite toda.
— Vossa Alteza Real — corrigiu o príncipe herdeiro, altivo.
— É coisa demais para falar, não é? — Keller sorriu. — Pode me chamar só de Ned.
Khalid nunca viajava no Ocidente sem um chapéu de feltro e óculos falsos de armação escura. O disfarce rudimentar o deixava quase irreconhecível.
Aliás, nem os dois durões sauditas no lobby tiraram os olhos de seus pistaches quando seu futuro rei atravessou o piso de mármore brilhante com Keller ao lado. Gabriel tinha ido para o banco traseiro do Bentley.
Keller entrou atrás do volante enquanto Khalid se sentou no lado do carona. Um momento depois, já faziam parte do trânsito da hora do rush na Park Lane.
Khalid olhou para Gabriel atrás.
— Ele sempre dirige assim?
— Só quando tem uma vida em risco.
— Para onde estão me levando?
— Para o último lugar no mundo em que você deveria estar.
Khalid olhou o interior do Bentley com aprovação.
— Pelo menos, alugou um carro decente para o trajeto.
— Gostou?
— Sim, muito.
— Que bom — disse Gabriel. — Não imagina como isso me deixa feliz.
Keller passou a meia hora seguinte costurando pelo West End de Londres
— por Knightsbridge e Belgravia e Chelsea e Earl’s Court — até Gabriel
ter certeza de que ninguém os seguia. Só então, instruiu Keller a ir para Kensington Palace Gardens. Um enclave diplomático, a rua estava bloqueada para o tráfego normal. O Bentley de Keller passou pelo posto de controle sem ser incomodado e virou no átrio de um prédio vitoriano de tijolos vermelhos sobre o qual tremulava a bandeira azul e branca do Estado de Israel.
Khalid olhou pela janela sem acreditar.
— Você não pode estar falando sério.
Com seu silêncio, Gabriel deixou claro que estava.
— Sabe o que vai acontecer se eu puser os pés aí?
— Vai ser assassinado por uma equipe de 15 assassinos e cortado em pedaços.
Khalid olhou para Gabriel com uma expressão genuinamente assustada.
— Estou brincando, Khalid. Agora, saia do carro.
25
KENSINGTON, LONDRES
O disfarce simples de Khalid não enganou a equipe de segurança da embaixada nem o embaixador, que, por acaso, estava saindo para uma recepção diplomática quando o lendário chefe de espionagem israelense entrou como um furacão na chancelaria com o governante de facto da Arábia Saudita a seu lado.
— Explico depois — disse Gabriel, em hebraico e em voz baixa, e ouviu o embaixador murmurar:
— Ah, mas vai mesmo.
No subsolo, Gabriel colocou o celular novo de Khalid numa caixa bloqueadora de sinais conhecida como colmeia antes de abrir a porta da estação, que parecia um cofre. Moshe Cohen, o novo chefe, esperava do outro lado. O olhar dele caiu primeiro sobre seu diretor-geral e depois, em choque, no príncipe herdeiro da Arábia Saudita.
— O que em nome de Deus...
— O telefone dele está na colmeia — interrompeu Gabriel num hebraico ríspido.
Cohen não exigiu mais instruções.
— Quanto tempo pode nos dar?
— Cinco minutos.
— Dez seria melhor.
Khalid não entendeu o diálogo, mas ficou visivelmente impressionado com os modos. Seguiu Gabriel pelo corredor central da estação até outra porta segura. A sala atrás dela era pequena, cerca de dois metros e meio por três. Havia dois telefones, um computador e uma tela de vídeo pregada na parede. O ar era vários graus mais frio do que o resto da estação. Khalid ficou de casaco.
— Uma sala à prova de escutas?
— Usamos outro nome.
— Qual?
Gabriel hesitou.
— O Santo dos Santos.
Era óbvio que Khalid, apesar de sua educação em Oxford, não entendeu a referência.
— O Santo dos Santos era o santuário interno do Templo de Jerusalém.
Era um cubo perfeito, de vinte cúbitos por vinte cúbitos. Continha a Arca da Aliança, e dentro dela estava a tábua com os Dez Mandamentos originais que Deus deu a Moisés no Sinai.
— Tábua de pedra? — perguntou Khalid, incrédulo.
— Deus não imprimiu numa HP LaserJet.
— E você acredita nessa bobagem?
— Estou disposto a debater a autenticidade das tábuas — disse Gabriel.
— Mas não o resto.
— O chamado Templo de Salomão nunca existiu. É uma mentira usada pelos sionistas para justificar a conquista judia da Palestina árabe.
— O Templo foi descrito com detalhes na Torá bem antes do advento do sionismo.
— Isso não muda o fato de não ser verdade. — Khalid, claramente, estava gostando do debate. — Lembro alguns anos atrás quando seu governo alegou ter achado os pilares do tal templo.
— Eu também lembro — falou Gabriel.
— Foram colocados no Museu de Israel, não? — Khalid balançou a cabeça com desdém. — Aquela exposição é uma peça de propaganda rude para justificar sua existência em terras muçulmanas.
— Minha esposa desenhou a exposição.
— Ah, é?
— E fui eu que descobri os pilares.
Dessa vez, Khalid não retrucou.
— O Waqf escondera numa câmera cinquenta metros abaixo da superfície do monte do Templo. — O Waqf era a autoridade religiosa islâmica que administrava a Cúpula da Rocha e a Mesquita de al-Aqsa. —
Imaginaram que ninguém nunca ia encontrar. Estavam enganados.
— Outra mentira — contrariou Khalid.
— Venha a Israel — sugeriu Gabriel. — Eu o levo à câmara.
— Eu? Visitar Israel?
— Por que não?
— Consegue imaginar a reação?
— Consigo.
— Devo admitir, seria um grande privilégio orar no Nobre Santuário.
— Era assim que os muçulmanos se referiam ao monte do Templo.
— Podemos fazer isso, também.
Khalid se sentou de um lado da pequena mesa de reuniões e olhou ao redor da sala.
— Que sorte estarmos os dois em Londres ao mesmo tempo.
— Sim — concordou Gabriel. — Eu buscando desesperadamente sua filha, e você jantando com o tio Abdullah e se hospedando na suíte mais cara do Dorchester.
— Como sabe que vi meu tio?
Ignorando a pergunta, Gabriel esticou a mão e pediu para ver a carta de resgate. Khalid a colocou na mesa. Era uma fotocópia. A original, disse, tinha sido entregue à Embaixada Saudita em Paris. A tipografia e as margens eram idênticas às da primeira carta. O tom seco e direto também.
Khalid tinha até a meia-noite de amanhã para abdicar. Caso se recusasse, nunca mais veria a filha.
— Havia alguma prova de vida?
Khalid entregou uma cópia da foto. A menina estava segurando a edição do dia anterior do The Telegraph e olhava diretamente para a lente da câmera. Tinha os olhos do pai. Exausta e desgrenhada, mas nem um pouco assustada.
Gabriel devolveu a foto.
— Nenhum pai deveria ter que ver uma imagem dessas.
— Talvez eu mereça.
— Talvez sim. — Foi a vez de Gabriel colocar uma foto na mesa. Um homem sentado num café em Annecy. — Reconhece?
— Não.
— E este homem? — Gabriel mostrou uma segunda imagem.
Era da câmera de vigilância da DGSI de Rafiq al-Madani sentado ao lado de Khalid a bordo do Tranquility.
— Onde você conseguiu isso?
— Na revista Tatler. — Gabriel recuperou a foto. — É amigo seu?
— Não tenho amigos. Tenho súditos, convidados e familiares.
— Em qual categoria está al-Madani?
— É um aliado temporário.
— Pensei que você fosse cortar o fluxo de dinheiro para os jihadistas e os salafistas.
O sorriso de Khalid foi condescendente.
— Você não sabe muito sobre os árabes, não é? — Ele esfregou o dedão contra as pontas dos demais dedos. — Shwaya, shwaya. Devagar, devagar.
Pouco a pouco.
— O que quer dizer que você ainda está financiando os extremistas com a ajuda de seu amigo Rafiq al-Madani.
— O que quer dizer que tenho que fazer as coisas com cuidado e o apoio de alguém como Rafiq. Alguém que tenha a confiança de clérigos importantes. Alguém que possa me dar a cobertura necessária. Senão, a Casa de Saud vai desmoronar, e a Arábia Saudita será governada pelos filhos da al-Qaeda e do Estado Islâmico. É isso que você quer?
— Você está bancando o bom e velho agente duplo.
— Estou segurando o tigre pelas orelhas. E se soltar, ele vai me devorar.
— Já devorou. — Gabriel recuperou uma mensagem em seu BlackBerry. Era a que ele tinha recebido enquanto estava sentado na cozinha de Christopher Keller. — Foi al-Madani que contou a você sobre a segunda carta de resgate. Às 15h12. Horário de Londres.
— Vejo que está monitorando meu telefone.
— Não o seu, o dele. E cinco minutos depois de ele ligar para você, mandou uma mensagem criptografada a outra pessoa. Como sabíamos de onde ele teclava, não tivemos dificuldade para ler.
— O que diz?
— O bastante para deixar claro que sabe onde está sua filha.
— Posso ver a mensagem?
Gabriel entregou seu telefone. O saudita xingou baixinho em árabe.
— Vou matá-lo.
— Talvez primeiro devesse descobrir onde está sua filha.
— Isso é trabalho seu.
— Meu papel neste caso chegou oficialmente ao fim. Não vou me enfiar no meio de uma briga familiar saudita.
— Sabe o que dizem sobre família, não sabe?
— O quê?
— É mais um xingamento que começa com “F”.
Gabriel não conseguiu segurar o sorriso. Khalid devolveu o BlackBerry.
— Talvez possamos chegar a algum tipo de acordo comercial.
— Economize seu dinheiro, Khalid.
— Vai pelo menos me ajudar?
— Você quer que eu interrogue um de seus oficiais de governo?
— É claro que não. Eu mesmo vou fazer o interrogatório. Não deve levar muito tempo. — Khalid baixou a voz. — Afinal, tenho certa reputação.
— Para dizer o mínimo.
— Onde podemos interrogá-lo? — perguntou Khalid.
— Precisa ser em algum lugar isolado. Algum lugar em que a polícia não nos encontre. — Gabriel hesitou. — Algum lugar em que os vizinhos não ouçam um pouco de barulho.
— Conheço o lugar perfeito.
— Consegue levá-lo para lá sem ele suspeitar?
Khalid sorriu.
— Só preciso do meu telefone.
26
ALTA SABOIA, FRANÇA
Khalid tinha um Gulfstream à sua espera no Aeroporto London City. Eles pararam no Le Bourget, em Paris, por tempo suficiente para pegar Mikhail e Sarah e, então, voaram a Annecy, onde uma caravana de Range Rovers esperava na pista escura. Levava vinte minutos de carro até o Versalhes particular de Khalid. A equipe doméstica, uma mescla de cidadãos franceses e sauditas, estava postada como um coro no altíssimo hall de entrada. O patrão os cumprimentou brevemente antes de acompanhar Gabriel e os outros até o principal cômodo público — o grande salão, como ele chamava. Era longo e retangular, como uma basílica, e nas paredes estava pendurada parte da coleção de Khalid, incluindo o Salvator Mundi, seu Leonardo duvidoso. Gabriel estudou o painel com cuidado, com uma das mãos no queixo, a cabeça levemente inclinada para o lado.
Então, agachou-se e examinou as pinceladas na luz rasante.
— E então? — perguntou Sarah.
— Como pôde deixá-lo comprar essa coisa?
— É um Leonardo?
— Talvez uma pequena porção tenha sido, há muito tempo. Mas não mais.
Khalid se juntou a eles.
— Magnífico, não é?
— Não sei o que foi mais idiota — respondeu Gabriel. — Matar Omar Nawwaf ou desperdiçar meio bilhão de dólares numa peça devocional de ateliê que foi restaurada demais.
— Ateliê? A senhorita Bancroft me garantiu que era um Leonardo autêntico.
— A senhorita Bancroft estudou história da arte em Courtauld e Harvard. Tenho certeza de que ela não fez isso.
Gabriel observou, com desesperança, um dos criados entrar no salão com uma bandeja de drinques.
— Não é uma festa, Khalid.
— Isso não quer dizer que não podemos tomar algo para relaxar depois de nossa viagem.
— Quantos funcionários você tem?
— Acredito que 22.
— Nem imagino como consegue se virar.
A ironia passou batida por Khalid.
— Os oficiais sêniores são sauditas — explicou —, mas a maioria dos funcionários é francesa.
— A maioria?
— Os jardineiros são marroquinos e da África Ocidental. — O tom dele era pejorativo. — Os sauditas moram numa casa separada no limite norte da propriedade. Os outros, em Annecy ou em vilarejos próximos.
— Dê a noite de folga a eles. Aos motoristas também.
— Mas...
— E desligue as câmeras de segurança — interrompeu Gabriel. —
Como fez em Istambul.
— Acho que não sei fazer isso.
— Passe o botão de “ligado” para “desligado”. Deve resolver.
Khalid tinha instruído Rafiq al-Madani a ir sozinho ao château. Al-Madani, porém, imediatamente desobedeceu ao chefe, pedindo um carro e um motorista da frota da embaixada. Saíram do 8º arrondissement de Paris às seis da tarde e, seguidos por uma equipe de observadores do Escritório, pegaram a A6. Com base na conversa, que Gabriel e Khalid monitoravam pelo telefone grampeado, era óbvio que os dois eram conhecidos. Também era óbvio que ambos estavam armados.
Quando chegaram à cidade de Mâcon, Gabriel se apropriou de um dos Range Rovers de Khalid e dirigiu com Sarah para o interior. A noite estava fria e clara. Ele parou numa elevação que dava vista para o cruzamento das estradas D14 e D38, apagou os faróis e desligou o motor.
— O que fazemos se aparecer um gendarme?
— A doutrina do Escritório diz para fingirmos que somos amantes.
Sarah sorriu.
— Meu maior sonho virando realidade.
O BlackBerry de Gabriel estava no console entre eles, emitindo a transmissão de áudio do telefone de al-Madani. No momento, estava limitado ao ruído de um motor alemão e um chocalhar rítmico que soava como o bater de peças de xadrez.
— O que é isso?
— Contas de oração.
— Ele parece preocupado.
— Você não estaria se Khalid a convocasse no meio da noite?
— Ele fazia isso comigo o tempo todo.
— E você nunca suspeitou de que não fosse o grande reformador que se dizia?
— O KBM que eu conhecia não teria ordenado o assassinado de Omar Nawwaf. Imagino que ele tenha mudado por causa do excesso de poder.
Foi rápido demais, e acabou trazendo à tona a hamartia da personalidade dele. A falha fatal — completou Sarah.
— Eu sei o que significa, doutora Bancroft. Graças ao Escritório, nunca terminei meus estudos formais, mas não sou idiota.
— Você é a pessoa mais inteligente que já conheci.
— Se sou tão esperto, por que estou parado no acostamento de uma estrada francesa no meio da noite?
— Está tentando evitar que nosso herói trágico destrua a si mesmo.
— Talvez eu devesse deixar isso acontecer.
— Você é um restaurador, Gabriel. Conserta coisas. — Do BlackBerry, veio o som das contas de oração. — Khalid sempre me disse que algo assim ia acontecer. Ele sabia que iam tentar destruí-lo. Disse que ia ser alguém próximo. Alguém da família.
— Não é uma família, é um negócio. E os louros vão para quem tem o poder.
— É disso que se trata? Dinheiro?
— Vamos descobrir logo logo.
O telefone de al-Madani recebeu uma mensagem de texto. Os cliques das contas silenciaram.
— De quem acha que é?
Um momento depois, o telefone de Gabriel vibrou. A mensagem era da mesa de operações na Unidade 8200.
— Era Khalid. Perguntou quando Rafiq chegaria.
Ouviram o príncipe herdeiro digitar uma resposta e enviar com um bloop. Uma transcrição chegou ao telefone de Gabriel alguns segundos depois, junto com o número ao qual tinha sido enviada.
— Ele acabou de dizer aos sequestradores que está indo se encontrar com Khalid. Prometeu mandar uma atualização assim que acabar.
— Lá vem ele.
Sarah apontou para um único carro, uma Mercedes S-Class sedan, atravessando a paisagem. Passou pelo cruzamento onde a filha de Khalid tinha sido levada — clique, clique, clique, clique-clique, clique — e desapareceu de vista. Gabriel deixou que trinta segundos se passassem e ligou o motor da Range Rover.
O chacoalhar das contas de oração ficou mais insistente enquanto a Mercedes percorria o caminho final ao château de Khalid. Rafiq al-Madani murmurou uma expressão árabe de surpresa pelo portão encimado de ouro estar aberto. Também ficou surpreso de encontrar o próprio Khalid esperando do lado de fora, no frio do pátio de carros.
Seguiu-se o abrir e fechar de uma porta de um carro de luxo e os cumprimentos de paz islâmicos de sempre. Al-Madani comentou sobre a falta de luz no hall. Khalid explicou, de forma até sociável, que seu palácio de quatrocentos milhões de euros tinha defeitos elétricos.
O comentário suscitou em al-Madani uma risada entrecortada. Seria sua última. Houve uma luta, muito breve, seguida pelo som de vários golpes numa maçã do rosto e uma mandíbula. Depois, Gabriel daria uma bronca em Keller e Mikhail por usar força excessiva para neutralizar o alvo.
Ambos fizeram objeção a essa interpretação dos fatos. Fora Khalid o responsável pela surra, disseram, não eles.
Quando Gabriel chegou ao pátio, o telefone grampeado tinha sido desligado e já não emitia sinal. Mikhail estava infligindo danos permanentes ao braço direito do motorista, que tolamente tinha recusado um pedido educado de entregar sua arma. Dentro do château, Keller amarrava Rafiq al-Madani semiconsciente com fita a uma cadeira no grande salão. Vossa Alteza Real Príncipe Khalid bin Mohammed Abdulaziz Al Saud estava girando um colar de contas de oração entre dois dedos da mão esquerda. Na direita havia uma arma.
27
ALTA SABOIA, FRANÇA
Rafiq al-Madani precisou de poucos segundos para avaliar a gravidade de sua situação. Lentamente, ele levantou o queixo do peito e lançou um olhar incerto pelo enorme quarto. Os olhos caíram primeiro no futuro regente, que ainda estava mexendo nas contas de oração, depois em Gabriel. Eram suaves e castanhos, os olhos de al-Madani, como os de um cervo. Com seu rosto alongado e cabelo escuro bagunçado, ele tinha uma semelhança infeliz com Osama bin Laden.
Mais um momento se passou antes de al-Madani reconhecer o rosto do chefe de inteligência de Israel. Os olhos castanhos suaves se arregalaram.
O saudita estava assustado, observou Gabriel, mas não surpreso.
Al-Madani olhou com desprezo para Khalid, e se dirigiu a ele em árabe.
— Vejo que trouxe seu amigo judeu para fazer o trabalho sujo. E você se pergunta por que tem tantos inimigos em casa.
Khalid lhe deu uma coronhada com o revólver. Al-Madani encarou Sarah com sangue escorrendo de um corte acima do olho esquerdo.
— Cubra o rosto na minha presença, sua puta americana!
Khalid levantou a arma, com raiva.
— Não! — gritou Sarah. — De novo, não.
Quando Khalid a abaixou, al-Madani conseguiu sorrir em meio à dor.
— Aceitando ordens de uma mulher? Só falta se vestir que nem elas.
Khalid bateu de novo nele. Sarah se encolheu com o som do osso rachando.
— Onde ela está? — perguntou Khalid.
— Quem? — retrucou al-Madani, com a boca cheia de sangue.
— Minha filha.
— Como vou saber?
— Porque está em contato com os sequestradores. — Khalid pegou o telefone de al-Madani com Keller. — Quer que eu mostre as mensagens?
Al-Madani não disse nada. O futuro príncipe rapidamente aproveitou a vantagem.
— Por que fez mal a minha filha, Rafiq? Por que só não me matou?
— Tentei, mas era impossível. Você era protegido demais.
A confissão repentina surpreendeu até Khalid.
— Eu o tratei bem, não?
— Você me tratou como um criado. Fui apenas um meio para manter os ulemás na linha enquanto dava às mulheres direito de dirigir e fazia amizade com os americanos e os judeus.
— Temos que mudar, Rafiq.
— O Islã é a resposta!
— O Islã é o problema, habibi.
— Você é um apóstata. — Al-Madani espumou.
Não havia maior insulto no Islã. Khalid aguentou o ataque com um controle admirável.
— Quem o convenceu a isso, Rafiq?
— Eu agi sozinho.
— Você não é inteligente o bastante para planejar algo assim.
Al-Madani conseguiu dar um sorriso desdenhoso.
— Reema talvez pense diferente.
O golpe foi repentino e duro.
— Ela é a princesa Reema. — O rosto de Khalid estava contorcido de raiva. — E você, Rafiq, não é bom o suficiente nem para lamber a sola dos sapatos dela.
— Ela é herdeira de um apóstata. E se você não abdicar até a meia-noite de amanhã, será um pai sem filha.
Khalid segurou a arma diante dos olhos de al-Madani.
— O que você vai fazer? Me matar?
— Sim.
— E se eu contar? E aí? — respondeu Al-Madani à sua própria pergunta. — Já estou morto.
Khalid apertou o cano no centro da testa de al-Madani.
— Me mate, Vossa Alteza Real. É a única coisa que sabe fazer.
Khalid colocou o dedo no gatilho.
— Não faça isso — falou Gabriel, calmamente.
Khalid olhou por cima do ombro e viu o israelense estudando a tela de seu BlackBerry.
— Localizamos a posição do outro telefone.
— Onde está?
— Numa casa no País Basco Espanhol.
Rafiq al-Madani cuspiu um monte de sangue e muco na direção de Gabriel.
— Judeu!
Gabriel guardou o BlackBerry no bolso.
— Pensando bem — disse —, pode matar, sim.
Depois de quebrar o braço do motorista e deslocar o ombro dele, Mikhail o tinha forçado a entrar no porta-malas da Mercedes S-Class sedan. Agora, com a ajuda de Keller, colocou também Rafiq al-Madani. Khalid olhou com aprovação, a arma na mão.
Virou-se para Gabriel.
— O que devemos fazer com eles?
— Imagino que possamos levar para a Espanha.
— É um caminho longo para fazer no porta-malas de um carro. Talvez devêssemos deixá-los em algum bosque deserto da Alta Saboia.
— Vai ser uma noite longa e fria.
— Quanto mais fria, melhor. — Khalid se aproximou da traseira do carro e olhou para os dois homens apertados no espaço confinado. —
Talvez haja algo que possamos fazer para ficarem um pouco mais confortáveis.
— O quê, por exemplo?
Khalid levantou a arma e esvaziou o pente em seus dois alvos. Então, olhou por cima do ombro para Gabriel e sorriu, sem notar o sangue salpicado em seu rosto.
— Você não achou que eu fosse matá-los dentro de casa, achou? Aquele lugar me custou uma fortuna.
Gabriel estudou os dois corpos rasgados de balas.
— O que vamos fazer com eles agora?
— Não se preocupe. — Khalid fechou o porta-malas. — Eu cuido disso.
28
AUVERGNE–RHÔNE–ALPES
–Para deixar registrado, eu só estava brincando quando falei para matá-
lo.
— Estava? Às vezes, é difícil saber.
Estavam acelerando pela autopista A89 a oeste, o chefe do serviço secreto de inteligência israelense e o futuro rei da Arábia Saudita. Gabriel estava ao volante e Khalid jogado, cansado, no banco do carona. Entre eles o celular de Rafiq al-Madani carregava. Alguns minutos antes, imitando o estilo críptico de al-Madani, Khalid enviara uma atualização aos sequestradores. A mensagem dizia basicamente que Vossa Alteza Real estava desesperada para libertar sua filha e disposta a abdicar. Por enquanto, não havia resposta. Khalid checou o telefone de novo, depois o largou no console.
— Cuidado, Príncipe Esquentadinho. Os telefones quebram.
— O que você acha que está dizendo?
— Provavelmente, que você não deveria ter matado Rafiq antes de ter certeza de que sua filha estava naquele endereço na Espanha.
— Foi você que disse que ela estava lá.
— O que eu disse — respondeu Gabriel — foi que tínhamos localizado o telefone. Eu teria preferido testar essa afirmação com uma testemunha viva e respirando.
— Ele tinha praticamente confirmado.
— Estava com uma arma apontada para a testa.
— Acredito que ele estivesse dizendo a verdade sobre o esconderijo.
Mas o resto era mentira.
— Não acha que ele organizou sozinho?
— Al-Madani é uma pequena engrenagem. Há outros envolvidos numa conspiração contra mim.
— Talvez devêssemos interrogá-lo de novo e descobrir quem são. —
Gabriel olhou pelo retrovisor. Mikhail, Keller e Sarah estavam a alguns metros atrás deles. — O que vai fazer com os corpos?
— Fique tranquilo, os corpos vão desaparecer.
— Livre-se da sua arma, também.
— Não era minha, era de Rafiq.
— Mas está com suas digitais. — Depois de um silêncio, Gabriel completou: — Você não deveria ter matado os dois, Khalid. Com isso, implicou Sarah e eu nos assassinatos.
— Ninguém nunca vai saber.
— Mas você sabe. E pode me chantagear sempre que quiser.
— Não era minha intenção comprometê-lo.
— Dado seu histórico de comportamentos impulsivos, estou inclinado a acreditar.
Khalid olhou de novo para o telefone.
— Foi minha imaginação ou Rafiq não ficou surpreso com sua presença em minha casa?
— Você também notou?
— Alguém certamente disse a ele que você estava envolvido na busca por Reema.
— Algumas centenas de membros da sua corte me viram na Arábia Saudita outro dia.
— Infelizmente, nunca vou a lugar nenhum sozinho.
— Está sozinho agora, Khalid.
— Com você, quem diria. — O sorriso dele foi breve. — Devo dizer, minha conselheira de arte não pareceu chocada com um pouco de sangue.
— Ela não se abala facilmente, não depois do que Zizi al-Bakari fez com ela.
— O que aconteceu, exatamente?
Gabriel decidiu que não havia mal em contar a ele, fazia muito tempo.
— Quando Zizi descobriu que Sarah era uma agente da CIA emprestada ao Escritório, entregou-a a uma célula da al-Qaeda para ser interrogada e executada.
— Mas você conseguiu salvá-la.
— E no processo — disse Gabriel —, evitei uma trama financiada pelos sauditas para assassinar o Papa.
— Você teve uma vida e tanto.
— E o que ganho como recompensa? Não possuo nem um palácio na Alta Saboia.
— Nem o segundo maior superiate do mundo — apontou Khalid.
— Nem um Leonardo.
— Parece que isso eu também não tenho.
— Por que precisa de tudo isso? — perguntou Gabriel.
— Me faz feliz.
— Faz mesmo?
— Nem todos nós somos tão sortudos quanto você. É um homem de dons extraordinários. Não precisa de brinquedos para ser feliz.
— Um ou dois seria bom.
— O que você quer? Dou qualquer coisa.
— Quero vê-lo segurando sua filha de novo.
— Não dá para dirigir mais rápido? — pediu Khalid, impaciente.
— Não, não dá.
— Então, deixe que eu dirija.
— Não nas suas condições.
Khalid olhou para a região campestre escura.
— Acha que ela vai estar lá?
— Sim — falou Gabriel, com mais certeza do que pretendia.
— E se não estiver?
Gabriel ficou em silêncio.
— Sabe o que meu tio Abdullah me disse? Que uma filha pode ser substituída, mas um rei, não.
O ruído do motor encheu o silêncio. Depois de um momento, Gabriel notou que Khalid estava girando um cordão de contas de oração com os dedos da mão esquerda.
— É o de al-Madani?
— Deixei o meu no Dorchester.
— Com certeza há alguma proibição islâmica contra usar as contas de oração de um homem que se acabou de assassinar.
— Não. Não que eu saiba.
O mensageiro estava esperando na fronteira de um campo iluminado pelo luar na comuna de Saint-Sulpice. A mochila esportiva de nylon que ele entregou a Gabriel continha duas submetralhadoras compactas Uzi Pro, um par de Jerichos calibre .45 e uma Beretta M9. Gabriel deu as Uzis e os Jerichos a Mikhail e Keller, e ficou com a pistola.
— Nada para mim? — perguntou Khalid, quando voltaram a se movimentar.
— Você não vai chegar perto daquela casa.
Ao chegar a Bordeaux, o israelense conseguia ver um sol flamejante nascendo em seu retrovisor. Eles seguiram para o sul pelo golfo da Biscaia e cruzaram a fronteira espanhola sem fiscalização de passaportes. O clima estava inconstante, sol dourado numa hora e céu preto e chuva com vento na outra.
— Você passou muito tempo na Espanha? — perguntou Khalid.
— Tive motivos para visitar Sevilha há pouco tempo.
— Antigamente, era uma cidade muçulmana.
— Na velocidade em que as coisas estão indo, talvez volte a ser.
— Já houve judeus em Sevilha também.
— E todos sabemos como terminou.
— Uma das maiores injustiças da história — disse Khalid. — E cinco séculos depois, vocês fizeram o mesmo com os palestinos.
— Quer discutir quantas pessoas os Al Saud mataram e deslocaram para estabelecer controle da Península Arábica?
— Não éramos uma entidade colonial.
— Nem nós.
Estavam se aproximando de San Sebastián, a cidade turística a qual os bascos se referiam como Donóstia. Bilbao era a próxima cidade grande, mas, antes de chegarem lá, Gabriel se dirigiu para o sul, no interior basco.
Num vilarejo chamado Olarra, ele parou no acostamento da estrada por tempo suficiente para Sarah se juntar a eles. Ela entrou no banco de trás, com o cabelo desgrenhado e os olhos pesados de fadiga. Mikhail e Keller viraram numa estrada lateral e desapareceram de vista.
— Eu deveria estar com os seus homens.
— Você ia atrapalhá-los. — Gabriel olhou para Sarah. — Ainda acha que o mundo secreto é mais interessante?
— Tem café no mundo secreto?
Villaro, a cidade que os bascos chamavam de Areatza, ficava a alguns quilômetros ao sul. Não era um destino turístico popular, mas havia vários pequenos hotéis no centro da cidade e um café na praça. Gabriel fez o pedido num espanhol decente.
— Tem algum idioma que você não fale? — perguntou Khalid, quando a garçonete se afastou.
— Russo.
Pela janela do café, Khalid observou a luz mudando na praça e os ventos fortes espalhando jornais pelas arcadas.
— Nunca vi um dia assim. Tão bonito e tão horrível ao mesmo tempo.
Gabriel e Sarah se entreolharam quando três mulheres jovens, os cabelos voando, entraram para se proteger do frio. De leggings rasgadas e piercings no nariz, as mãos, tatuagens, e muitos penduricalhos e pulseiras nos pulsos tilintavam quando elas caíram em três cadeiras de uma mesa perto do bar. Eram conhecidas da garçonete, que comentou que não estavam sóbrias. Estavam no fim do dia, pensou Gabriel, não no início.
— Olhe para elas — disse Khalid, com desprezo. — Parecem bruxas.
Imagino que seja isso que podemos esperar na Arábia Saudita.
— Você queria ter essa sorte.
O iPhone de al-Madani, mudo, estava no centro da mesa, ao lado do BlackBerry de Gabriel. Khalid continuava passando o dedão pelas contas de oração.
— Talvez devesse deixar esse negócio de lado — sugeriu Gabriel.
— É reconfortante.
— Faz você parecer um príncipe saudita que está se perguntando se vai ver a filha de novo.
Khalid colocou as contas no bolso quando o café da manhã chegou.
— Aquelas garotas estão me analisando.
— Provavelmente, acham você atraente.
— Será que sabem quem eu sou?
— Sem chance.
Khalid pegou o iPhone de al-Madani.
— Não entendo por que não responderam.
Nesse momento, a tela do BlackBerry de Gabriel acendeu com uma mensagem.
— O que diz?
— Eles localizaram a casa.
— Quando vão entrar?
Gabriel recolocou o aparelho na mesa, quando uma chuva repentina começou a bater nas pedras do calçamento da praça.
— Agora.
29
AREATZA, ESPANHA
Mikhail tinha estudado uma imagem comum de satélite da casa durante a longa noite de viagem. Vista de cima, era um perfeito quadrado com telhas vermelhas — se de um ou dois andares, ele não conseguia saber — no meio de uma clareira, a que se chegava por uma trilha longa particular.
Vista pelas lentes do binóculo posicionado na proteção do bosque, era um sobrado modesto mas bem cuidado, com venezianas azuis, todas fechadas.
Não havia veículos na entrada nem cheiro de café ou comida no ar frio e escasso da manhã. Um grande pastor-belga, raça temperamental, debatia-se na ponta de sua corrente comprida como um peixe no anzol. Um latido profundo e inconsolado parecia fazer as árvores vibrarem.
— Imagina viver ao lado disso? — comentou Keller.
— Tem gente que não tem modos.
— Por que acha que ele está tão irritado?
— Talvez tenha ouvido falar que Gabriel está na cidade. Você sabe o que os cachorros acham dele.
— Ele não se dá bem com caninos?
Mikhail balançou a cabeça, sério.
— Fogo e gasolina. — O bicho latia sem parar. — Por que ninguém saiu da casa para ver o motivo da confusão?
— Talvez esse diabo lata o tempo todo.
— Ou talvez seja a casa errada.
— Estamos prestes a descobrir.
Keller puxou a trava da Uzi Pro e foi silenciosamente para a clareira, a arma em uma das mãos e Mikhail alguns passos atrás. O cão estava totalmente atento à presença deles, e tão enraivecido que Keller temeu que fosse romper a corrente.
Tinha cerca de dez metros, a corrente, o que dava ao cachorro domínio da porta da frente. Keller foi pelos fundos. Lá também as venezianas estavam fechadas, e uma cortina cobria a janela de vidro reforçado da porta.
Keller colocou um pouco de peso na maçaneta. Porta trancada. Gabriel teria aberto em menos de dez segundos, mas nem Keller, nem Mikhail
tinham a habilidade extraordinária dele com um simples grampo de cabelo. Além do mais, um cotovelo no vidro era muito mais rápido.
O ato em si produziu muito menos som do que ele temia — o craquelado inicial do vidro seguido pelo tilintar dos estilhaços caindo num piso de azulejo. Keller esticou o braço pela moldura vazia, girou a maçaneta e, com Mikhail no seu encalço, irrompeu na casa.
A mensagem chegou ao BlackBerry de Gabriel dois minutos depois. Ele entregou algumas notas na mão da garçonete e correu para a praça com Sarah e Khalid. O Range Rover estava na esquina. O príncipe herdeiro manteve a compostura até estarem dentro do carro com as portas fechadas.
Gabriel tentou dissuadi-lo de ir ver a casa, mas foi inútil; Khalid insistia em ver o lugar onde tinham mantido sua filha. O israelense não o culpava.
Se estivesse na posição de Khalid, também ia querer.
Ouviram o latido irado do cachorro ao chegarem à clareira. Keller estava na entrada de carros, e os acompanhou pela porta dos fundos, por cima do vidro quebrado, descendo um lance de escadas até o porão. Em frente a uma porta de metal, havia um cadeado profissional no chão ao lado de um balde de plástico azul-claro. Khalid engasgou com o cheiro ao entrar na cela.
Era um quarto pequeno com paredes brancas nuas onde mal cabia o catre. Em cima dos lençóis manchados havia uma fotografia instantânea e um caderno. A foto era uma versão diferente daquela que os sequestradores tinham mandado à Embaixada Saudita em Paris. O caderno estava inteiro escrito com a letra cursiva de uma garota de 12 anos. Era sempre a mesma coisa, página após página.
É a morte... Morte, morte, morte...
CONTINUA
16
PARIS
A Brasserie Saint-Maurice ficava localizada no coração de Annecy medieval, no térreo de um prédio antigo que era uma bagunça de janelas, persianas e balaustradas que não combinavam entre si. Várias mesas quadradas estavam dispostas na calçada sob o abrigo de três toldos retangulares modernos. Numa delas, um homem bebia café e olhava um celular. O cabelo dele era claro e liso, bem-arrumado. O rosto, também.
Ele usava casaco de lã, um cachecol de seda estiloso e óculos de sol esportivos. O horário no canto inferior direito da foto dizia 16:07:46. A data era 13 de dezembro, dia do sequestro da princesa Reema.
— Como pode ver pela resolução — disse Rousseau —, a imagem foi ampliada. Aqui está a original.
O francês deslizou outra fotografia pela mesa de reuniões. A perspectiva era ampla o bastante para a rua estar visível. Vários carros estavam parados no meio-fio. O olhar de Gabriel foi instantaneamente atraído para uma van Citröen.
— Nosso sistema de vigilância de tráfego não é tão orwelliano quanto o seu ou o da Inglaterra, mas a ameaça de terrorismo nos levou a melhorar nossas habilidades. Não levou muito tempo para achar o carro. Nem o homem que o dirigia.
— O que sabem sobre ele?
— Alugou uma villa de férias nos arredores de Annecy duas semanas antes do sequestro. Pagou em dinheiro por um mês, o que a imobiliária e o proprietário ficaram mais que felizes em aceitar.
— Imagino que não tenha um passaporte.
— Tem, na verdade. Britânico. A imobiliária fez uma cópia.
Rousseau passou uma folha de papel por cima da mesa. Era a cópia de uma cópia, mas com boa resolução. O nome no passaporte era Ronald Burke, nascido em Manchester em 1969. A foto tinha uma vaga semelhança com o homem sentado na Brasserie Saint-Maurice algumas horas antes de a princesa Reema ser raptada.
— Vocês perguntaram aos britânicos se é genuíno?
— E o que íamos dizer a eles? Que é um suspeito num sequestro que não aconteceu?
Gabriel estudou o rosto do homem. A pele dele era esticada e sem ruga, e o formato artificial de seus olhos sugeria uma visita recente ao cirurgião plástico. As íris olhavam sem expressão para a lente da câmera. Os lábios não sorriam.
— Como é o sotaque dele?
— Ele falou francês com sotaque britânico com a corretora.
— Vocês têm algum registro dele entrando no país?
— Não.
— Alguém o viu após o sequestro?
Rousseau negou.
— Ele parece ter desaparecido no ar. Igual à princesa Reema.
Gabriel apontou para a foto em plano geral do homem sentado na Brasserie Saint-Maurice.
— Suponho que seja a captura de uma gravação em vídeo.
Rousseau abriu um laptop e teclou com ar de um homem que ainda não estava confortável com a tecnologia moderna. Então, virou o computador para que Gabriel e Sarah pudessem ver a tela e deu PLAY. O suspeito estava vendo algo no celular. A mulher bebendo vinho branco na mesa ao lado, também. Ela estava vestida de forma profissional, o cabelo escuro caído em seu bonito rosto. Também usava óculos escuros, apesar de estar na sombra. As lentes eram grandes e retangulares, o tipo de óculos, pensou Gabriel, usado por atrizes famosas quando não queriam ser reconhecidas.
Às 16:09:22, ela levou o telefone ao ouvido. Se tinha feito a ligação ou recebido, Gabriel não conseguia discernir. Alguns segundos depois, às 16:09:48, ele notou que o homem também estava ao telefone.
Gabriel apertou PAUSE.
— Que coincidência, não?
— Continue assistindo.
Gabriel deu PLAY e observou as duas pessoas na Brasserie Saint-Maurice desligarem, ela primeiro e ele 27 segundos depois, às 16:11:34. O
homem saiu do café às 16:13:22 e entrou na van Citröen. A mulher partiu três minutos depois, a pé.
— Pode pausar agora.
Gabriel obedeceu.
— Não conseguimos determinar se as duas pessoas na Brasserie Saint-Maurice estavam numa ligação celular ou numa conversa pela internet às 16h11 daquela sexta. Se eu tivesse que chutar...
— Os telefones eram um disfarce. Eles estavam falando diretamente um com o outro no café.
— Simples, mas eficaz.
— Para onde ela foi depois?
Rousseau passou outra foto por cima da mesa. Uma mulher vestida de forma profissional entrando no banco do carona de uma Ford Transit cinza-claro. A mão enluvada dela estava na maçaneta.
— Onde foi tirada?
— Na avenue de Cran, que cruza uma área operária na fronteira oeste da cidade.
— Conseguiu ver o motorista?
Outra foto deslizou pela mesa. Mostrava um homem com cabeça em formato de objeto pontiagudo usando uma balaclava de lã e, claro, óculos escuros. Gabriel supôs que houvesse vários outros agentes no compartimento de trás, todos armados com submetralhadoras HK.
Devolveu a foto a Rousseau, envolvido no ritual de preparação de seu cachimbo.
— Talvez agora seja um bom momento para você explicar seu envolvimento neste assunto.
— Vossa Alteza Real solicitou minha ajuda.
— O governo da França é mais do que capaz de recuperar a princesa Reema sem assistência do serviço secreto de inteligência de Israel.
— Vossa Alteza Real discorda.
— É mesmo? — Rousseau acendeu um fósforo e levou ao fornilho do cachimbo. — Ele recebeu alguma comunicação dos sequestradores?
Gabriel entregou a carta de resgate. Rousseau a leu em meio a uma nuvem de fumaça.
— Me pergunto por que Khalid não nos contou sobre isso. Só posso supor que não queira que a gente fique fuçando numa batalha interna pelo controle da Casa de Saud. Mas por que diabos ele confiaria em você e não em nós?
— Estive me perguntando a mesma coisa.
— E se não conseguir encontrá-la até o prazo acabar?
— Vossa Alteza Real vai ter de tomar uma decisão difícil.
Rousseau franziu o cenho.
— Estou surpreso que um homem como você ofereça seus serviços a um homem como ele.
— Você não aprova o príncipe herdeiro?
— Acho que é seguro dizer que ele passa mais tempo no meu país do que no seu. Como oficial sênior da DGSI, tive a oportunidade de observá-
lo de perto. Nunca acreditei no conto de fadas sobre como ele ia mudar a Arábia Saudita e o Oriente Médio. Também não fiquei surpreso quando ele encomendou o assassinato de um jornalista que ousou criticá-lo.
— Se a França ficou tão chocada com o assassinato de Omar Nawwaf, por que permitiu que Khalid entrasse todo fim de semana no país para ficar com a filha?
— Porque Vossa Alteza Real é um programa de estímulo econômico numa pessoa só. E porque, gostando ou não, ele vai governar a Arábia Saudita por muito tempo. — disse Rousseau, em voz baixa: — Se você conseguir achar a filha dele.
Gabriel não respondeu.
A sala se encheu de fumaça enquanto Rousseau considerava suas opções.
— Só para deixar registrado — disse, finalmente —, o governo da França não vai tolerar seu envolvimento na busca pela filha do príncipe Khalid. Dito isso, sua participação pode se mostrar útil para o Grupo Alpha. Desde que, é claro, coloquemos algumas regras do jogo.
— Por exemplo?
— Você vai compartilhar informação comigo, assim como compartilhei com você.
— Feito.
— Não vai grampear, chantagear ou cometer violência contra nenhum cidadão francês.
— Só se merecer.
— E não vai tentar resgatar a princesa Reema em solo francês. Se descobrir a localização dela, vai me contar, e nossas unidades de polícia tática vão libertá-la.
— Inshallah — murmurou Gabriel.
— Temos um acordo?
— Parece que sim. Vou achar a princesa Reema, e você vai ficar com todo o crédito.
Rousseau sorriu.
— Pelos meus cálculos, você tem mais ou menos cinco dias antes do prazo se esgotar. Como pretende proceder?
Gabriel apontou para a foto do homem sentado na Brasserie Saint-Maurice.
— Vou encontrá-lo. E, aí, vou perguntar onde ele está escondendo a princesa.
— Como seu parceiro clandestino, eu daria um conselho. — Rousseau apontou para a imagem da mulher entrando na van. — Pergunte a ela.
17
PARIS–ANNECY
A Embaixada Israelense localizava-se na margem oposta do Sena, na rue Rabelais. Gabriel e Sarah ficaram lá por quase uma hora — ele no cofre de comunicação segura da estação, Sarah na antessala do embaixador. Ao saírem, compraram sanduíches e café num estabelecimento que ficava na esquina, e passaram pelos bairros do sul de Paris até a A6, a autoroute du Soleil. O trânsito caótico de fim de tarde já tinha passado havia muito tempo, e a estrada diante de Gabriel estava praticamente livre. Ele pisou no acelerador do Passat e sentiu uma pequena animação rebelde quando o motor respondeu com um rugido.
— Você já provou o que queria com o diabo deste carro. Agora, por favor, desacelere. — Sarah desembrulhou um dos sanduíches e comeu com voracidade. — Por que tudo é mais gostoso na França?
— Não é, na verdade. Esse sanduíche vai ter exatamente o mesmo gosto quando cruzarmos a fronteira suíça.
— É para lá que estamos indo?
— Em algum momento, sim.
— Onde é nossa primeira parada?
— Achei que seria bom olharmos a cena do crime.
Sarah deu mais uma mordida no sanduíche.
— Tem certeza de que não quer um?
— Talvez mais tarde.
— O sol já se pôs, Gabriel. Você pode comer.
Ela acendeu a lâmpada do teto e abriu o dossiê que Paul Rousseau tinha colocado discretamente na maleta de Gabriel enquanto saíam da sede do Grupo Alpha. Continha uma foto de vigilância de Khalid e Rafiq al-Madani a bordo do Tranquility. Gabriel olhou de lado antes de voltar a se concentrar na estrada.
— Quando foi tirada?
Sarah virou a imagem e leu a legenda no verso.
— Em 22 de agosto, na baía de Cannes. — Ela analisou com cuidado.
— Conheço essa expressão no rosto de Khalid. É a que ele usa quando
alguém está dizendo algo que ele não quer escutar. Encontrei-a pela primeira vez quando falei que não queria ser consultora de arte dele.
— E pela segunda?
— Quando falei que ele seria idiota de gastar meio bilhão de dólares no Leonardo suspeito.
— Você já entrou no iate?
Sarah fez que não.
— Memórias ruins demais. Toda vez que Khalid me convidava, eu inventava alguma desculpa. — Ela analisou de novo a fotografia. — Sobre o que acha que estão falando?
— Talvez estejam discutindo a melhor forma de se livrar de um jornalista enxerido chamado Omar Nawwaf.
Sarah devolveu-a ao arquivo.
— Achei que Khalid fosse cortar o fluxo de dinheiro aos radicais.
— Eu também.
— Então, por que está com um fiel wahabista como al-Madani?
— Boa pergunta.
— Se eu fosse você, pediria vigilância o quanto antes.
— O que acha que eu estava fazendo lá embaixo na Embaixada?
— Não tenho como saber, não fui convidada. — Sarah pegou outra imagem do dossiê de Rousseau. Um homem e uma mulher em mesas separadas na Brasserie Saint-Maurice em Annecy, cada um com um celular. — E sobre o que você acha que eles estão falando?
— Não pode ser nada bom.
— Obviamente não são sauditas.
— Obviamente.
Sarah estudou a foto do passaporte.
— Ele não me parece britânico.
— Como são as pessoas britânicas?
Sarah desembrulhou outro sanduíche.
— Coma alguma coisa. Vai ficar menos mal-humorado.
Gabriel deu uma mordida.
— E então?
— Talvez seja o melhor sanduíche que já comi.
— Eu falei — disse Sarah. — Tudo é mais gostoso na França.
Chegaram a Annecy pouco depois da meia-noite. Deixaram o Passat em frente à Brasserie Saint-Maurice e fizeram check-in num pequeno hotel perto da catedral. Gabriel foi acordado pouco depois das quatro da manhã por uma briga na rua embaixo de sua janela. Sem conseguir dormir de novo, desceu para o restaurante. Aproveitou para ler os jornais de Paris e Genebra, enquanto tomava uma xícara de café atrás da outra. As páginas estavam cheias de relatos dos últimos escândalos de Washington, mas não havia menção sobre uma princesa sumida na Arábia Saudita.
Sarah apareceu alguns minutos depois das nove. Juntos, caminharam por uma hora ao lado dos canais verdejantes da cidade histórica para determinar se estavam sendo seguidos. Ao cruzar a Pont des Amours, concordaram que não.
Voltaram ao hotel apenas para pegar a bagagem, dirigindo-se, depois, até a Brasserie Saint-Maurice. Sarah tomou um café crème enquanto Gabriel, à moda de um motorista em apuros, investigava o Passat em busca de explosivos ou rastreador. Sem achar evidências de que o carro tivesse sido adulterado, ele jogou as malas no banco de trás e chamou Sarah com um aceno de cabeça. Foram embora de Annecy pela avenue de Cran, passando pelo lugar onde a mulher tinha entrado no Ford Transit, e pegaram a D14.
A estrada para oeste os conduzia por uma série de cidades e aldeias alpinas ao longo das margens do rio Fier. Além do povoado de La Croix, a rodovia subia íngreme até um bosque, antes de emergir de novo numa paisagem de terra à la Van Gogh. No cruzamento com a D38, Gabriel entrou no acostamento de grama e desligou o motor. O silêncio era total.
Uma única villa ocupava o topo de um morro a cerca de um quilômetro.
Fora isso, não havia residência alguma à vista.
Gabriel abriu a porta e colocou um pé no chão. Instantaneamente, sentiu vidro de automóvel estilhaçado sob seu sapato. O vidro estava por todo lugar, em todos os quatro cantos do cruzamento imperfeito. A polícia francesa, como lhe é habitual, não tinha limpado adequadamente a cena.
Até um pouco de sangue podia ser notado no asfalto, como uma mancha de óleo e uma longa marca de pneus. Gabriel imaginou que fossem do Range Rover. Viu tudo claramente — a colisão, os tiros, a explosão controlada, uma criança sendo arrancada do banco de trás de um automóvel de luxo.
Com a mão direita, ele contava os segundos: 25, 30 no máximo.
Entrou no carro ao lado de Sarah. Seu dedo pairou sobre o botão de partida.
— Em que está pensando?
— Também não acho que Ronald Burke pareça britânico. — Gabriel ligou o motor. — Você já foi ao château de Khalid?
— Uma vez.
— Lembra o caminho?
Sarah apontou para oeste.
Antes mesmo de chegarem ao portão principal, a propriedade fazia sentir sua presença. Havia, para começar, um muro. Com muitos quilômetros, era feito de pedra local e tinha, na parte de cima, fileiras de arame farpado voltado para fora. Lembrava a Gabriel a cerca que corria ao longo de Grosvenor Place, em Londres, separando o terreno do Palácio de Buckingham da ralé do bairro vizinho de Belgravia. O portão era uma monstruosidade de barras de ferro e lâmpadas banhadas a ouro, e atrás havia uma entrada perfeita de cascalho, levando a um Versalhes particular.
Gabriel refletiu em silêncio. Por fim, perguntou:
— Por que estou tentando ajudar um homem que desperdiçaria quatrocentos milhões de euros numa casa dessas?
— Qual é a resposta?
Antes de Gabriel conseguir falar, seu BlackBerry tremeu. Ele fez uma careta para a tela.
— O que foi? — perguntou Sarah.
— Rafiq al-Madani acabou de entrar no Ministério do Interior em Paris.
18
GENEBRA
Durante sua breve estada na estação do Escritório em Paris, Gabriel fizera mais do que colocar Rafiq al-Madani sob vigilância. Também tinha ordenado que a Unidade 8200 encontrasse o endereço de Lucien Villard, ex-chefe de segurança da Escola Internacional de Genebra. Os ladrões cibernéticos da Unidade conseguiram em questão de minutos na seção de recursos humanos da rede de computadores da escola, na qual entraram como se passassem por uma porta aberta. Villard morava num bairro movimentado de prédios residenciais de estilo parisiense. Sua rua era cheia de lojas e cafés, um paraíso para observadores. Havia até um hotel modesto, a que Gabriel e Sarah chegaram ao meio-dia. Gabriel pediu para falar com um hóspede de nome Lange e foi levado a um quarto no terceiro andar. Lá, encontraram uma placa de não perturbe e Mikhail Abramov parado na fresta da porta entreaberta.
Ele olhou para Sarah e sorriu.
— Algo errado?
— Eu só...
— Achou que seria outra pessoa?
— Tive esperança, na verdade. — Sarah olhou para Gabriel. — Você podia ter mencionado que ele estaria aqui.
— Mikhail é profissional, e você também. Tenho certeza de que os dois podem deixar as diferenças de lado e trabalhar juntos.
— Como Israel e os palestinos?
— Tudo é possível.
Gabriel passou por eles e entrou no quarto. As luzes estavam apagadas, e as cortinas, bem fechadas. As únicas fontes de iluminação eram o laptop aberto na escrivaninha e o BlackBerry de Mikhail.
Ele tirou um envelope fino do bolso externo de sua mala de mão.
— Buscamos essas fotos do homem e da mulher de Annecy em todas as bases de dados ontem à noite.
— E?
— Nada. Mesma coisa com o passaporte.
Gabriel foi à janela e olhou pelo canto das cortinas.
— Qual é o prédio de Villard?
— Número 21.
Mikhail entregou um binóculo Zeiss a Gabriel.
— Terceiro andar, lado direito do prédio.
Gabriel vasculhou as duas janelas voltadas à rua do apartamento de Lucien Villard. Viu uma sala de estar com poucos móveis, mas sem sinal do proprietário.
— Tem certeza de que ele está lá?
Mikhail aumentou o volume do laptop. Em alguns segundos, Gabriel ouviu a frase de abertura de “I Want to Talk About You”, de Coltrane.
— Qual é a fonte do áudio?
— O celular dele. A Unidade conseguiu o número no arquivo digital interno da escola. Quando pousei hoje de manhã, o telefone já estava grampeado e estávamos lendo os e-mails e as mensagens dele.
— Algo interessante?
— Ele está indo para Marrakesh amanhã à tarde.
Gabriel apontou o binóculo para Mikhail.
— Sério?
— Tem uma reserva na Lufthansa, com uma breve conexão em Munique. Primeira classe em ambos os trechos.
Gabriel abaixou a lente.
— Quando ele volta?
— A passagem está em aberto. Ele ainda não marcou a volta.
— Agora que não está mais trabalhando, imagino que tenha muito tempo livre.
— E o Marrocos é lindo nesta época do ano.
— Eu lembro — comentou Gabriel, distante. — A Unidade conseguiu ver o arquivo dele?
— Pegaram uma cópia antes de sair.
— Alguma menção ao fato de que ele foi escorraçado da SDLP por ter um caso com a esposa do presidente francês?
— Ele parece não ter mencionado isso na entrevista de emprego.
— Alguma informação secreta?
Mikhail negou.
— Quanto estavam pagando a ele?
— O suficiente para alugar um apartamento num bairro chique de Genebra, mas não para as coisas supérfluas.
— Como uma viagem longa ao Marrocos?
— Sem esquecer a passagem de primeira classe.
— Não esqueci. — A música de Lucien Villard preencheu o silêncio. —
E a vida pessoal dele?
— Foi casado uma vez há um milhão de anos.
— Filhos?
— Uma filha. Trocam e-mails às vezes.
— Que simpático.
— Eu não diria isso antes de ler os e-mails.
Gabriel levou o binóculo de volta aos olhos e analisou o apartamento de Villard.
— Tem uma mulher lá?
— Se tiver, ainda não está acordada. Mas ele vai tomar um drinque com uma mulher chamada Isabelle Jeanneret às cinco.
— Quem é?
— Por enquanto, só um endereço de e-mail. A Unidade está trabalhando nisso.
— Onde vão se encontrar?
— No Café Remor, na place du Cirque.
— Quem escolheu o lugar?
— Ela. — Um silêncio caiu entre os dois, antes de Mikhail perguntar:
— Acha que ele sabe de algo?
— Não estaríamos aqui se eu não achasse.
— Como pretende agir?
— Quero ter uma conversinha com ele em particular.
— Uma conversinha amigável?
— Isso depende inteiramente de Lucien.
— Quando vamos agir?
— Depois de ele terminar os drinques com a Madame Jeanneret no Café Remor. Você e Sarah vão estar sentados à mesa ao lado. — Gabriel sorriu. — Como nos velhos tempos.
A canção de Coltrane acabou, e a seguinte começou.
— Como se chama essa? — perguntou Sarah.
— “You Say You Care”.
Sarah balançou a cabeça.
— Não dava para ter achado outra pessoa para mandar para Genebra?
— Ele se voluntariou.
Viram Villard pela primeira vez às 13h30, parado na janela da sala de estar, sem camisa, com o celular grampeado na orelha. Conversava em francês com uma mulher que o aparelho identificava como Monique.
Obviamente eram íntimos. Inclusive, por uns dez minutos, ela explicou com detalhes torturantes o que faria com o corpo de Villard se ele concordasse em encontrá-la à noite. Ele, alegando um conflito de agendas, declinou. Não mencionou que ia sair com Isabelle Jeanneret às 17h.
Também não fez referência a sua viagem iminente a Marrakesh. Gabriel admirou muito a performance. Lucien Villard, concluiu, era um homem que mentia com frequência e bem.
A mulher desligou abruptamente, e Villard desapareceu da vista deles.
Voltavam a vê-lo de relance quando ele passava ao alcance da câmera do telefone, mas, principalmente, ouviam as gavetas abrindo e fechando —
um som que Gabriel, veterano de muitas operações de vigilância, associou ao de malas sendo arrumadas. Havia duas, na verdade, uma de pano e uma gigante retangular de rodinhas, do tamanho de um baú. Ele deixou as duas no hall de entrada antes de descer.
Quando o viram em seguida, Villard estava saindo para a rua movimentada, com um casaco de couro, jeans escuros e uma bota de cano médio de camurça. Parou brevemente na calçada, olhando para os dois lados — talvez por hábito, pensou Gabriel, ou talvez porque temesse estar sendo vigiado.
Um cigarro foi levado aos lábios, um isqueiro se acendeu, uma baforada de fumaça foi carregada pelo vento frio do inverno. Então, ele enfiou as mãos bem fundo no bolso e se dirigiu ao centro de Genebra.
Gabriel continuou no quarto de hotel enquanto Mikhail e Sarah seguiam Villard a pé. O telefone permitia que a Unidade 8200 rastreasse todos os movimentos dele de longe. Os dois agentes serviam apenas como olhos humanos no alvo. Mantinham uma distância segura, às vezes posando de casal, às vezes trabalhando sozinhos. Consequentemente, apenas Sarah observou Villard entrando num pequeno banco particular na rue du Rhône.
O telefone grampeado permitiu que Gabriel monitorasse a transação feita por Villard lá dentro — a transferência de uma quantia grande de dinheiro para um banco em Marrakesh. Ele, então, pediu acesso ao seu cofre. Como o telefone estava no bolso, a câmera acabou ficando cega. Mas a sequência de sons — o ranger de uma dobradiça, o farfalhar de papéis, o zíper de
uma jaqueta de couro se fechando — levou Gabriel a concluir que itens haviam sido removidos do cofre, não colocados.
Mikhail estava tomando café na Starbucks do outro lado da rua quando Villard saiu do banco. O francês checou o horário no relógio de pulso —
eram exatamente 16h30 — e seguiu pela rue du Rhône até o rio. Então, abriu caminho pelas ruas estreitas e tranquilas da Cidade Antiga até a place de la Synagogue, onde Gabriel estava ao volante do Passat.
O Café Remor ficava cem metros mais para a frente, no boulevard Georges-Favon. Havia várias mesas desocupadas na place du Cirque, e outras sob o toldo. Villard decidiu se sentar na praça. Mikhail se juntou a Sarah sob o toldo. Um aquecedor a gás aliviava o frio do fim de tarde.
Sarah levou uma taça de vinho tinto aos lábios.
— Como me saí?
— Nada mal — disse Mikhail. — Nada mal mesmo.
Por dez minutos, ninguém apareceu. Villard fumou dois cigarros, acendendo o segundo com o primeiro, e olhou várias vezes para o celular, apoiado na mesa. Finalmente, às 17h15, chamou um garçom que passava e fez o pedido. Uma única garrafa de cerveja Kronenbourg chegou um minuto depois.
— Parece que ela deu bolo nele — disse Mikhail. — Se eu fosse ele, ligaria para Monique antes que seja tarde.
Mas Sarah não estava ouvindo; observava um homem vindo pelo boulevard na direção do café. Em vestimenta e aspecto, parecia um banqueiro ou empresário suíço, na casa dos quarenta ou cinquenta anos, a caminho de casa depois de um dia próspero no escritório. Seu sobretudo caro era marrom, e a pasta de couro que carregava na mão esquerda, vermelho-escuro. Ele a deixou na calçada ao lado de Lucien Villard antes de sentar-se a uma mesa adjacente.
Em voz baixa, Mikhail perguntou:
— Será uma coincidência ele ter escolhido sentar-se do lado do nosso cara, quando tem tantas outras mesas disponíveis?
— Não — respondeu Sarah. — Não é.
— O rosto dele é familiar.
— Deveria ser.
— Onde o vi antes?
— Na Brasserie Saint-Maurice em Annecy.
Mikhail olhou para Sarah, perplexo.
— É o rosto que você procurou nas bases de dados do Boulevard Rei Saul ontem à noite.
Mikhail pegou seu BlackBerry e discou.
— Você não imagina quem acaba de entrar no Café Remor.
— Eu sei — disse Gabriel. — Estou do outro lado da rua.
19
GENEBRA
A vaga em que Gabriel estava estacionado na place du Cirque não era, de forma alguma, legal. Nem a Beretta M9 com cabo de nogueira no banco do passageiro, embaixo de um exemplar do Le Temps daquele dia. Gabriel colocara a arma ali depois de ver o homem de sobretudo marrom caminhando pelo boulevard. As vestimentas dele eram mais profissionais do que da última vez, usava outro penteado e um óculos de armação escura. Ainda assim, não havia como confundi-lo. Tendo passado uma vida restaurando telas dos Velhos Mestres, Gabriel tinha desenvolvido uma habilidade quase infalível para reconhecer rostos familiares, mesmo disfarçados. O homem sentado ao lado de Lucien Villard tinha estado na Brasserie Saint-Maurice em Annecy no dia do sequestro da princesa Reema.
Gabriel considerou tentar prender o homem, mas rejeitou a ideia na mesma hora. Era um profissional, sem dúvida, armado. Sua rendição não seria amigável. Era provável que balas voassem numa praça movimentada no coração de Genebra.
Tratava-se de um risco que Gabriel não estava disposto a correr. O
código do Escritório proibia o uso de força letal em cenários urbanos lotados, a não ser que o oficial em questão estivesse correndo perigo de vida ou de ser privado de sua liberdade, em especial, para uma nação hostil. Não era o caso no momento. Gabriel e Mikhail podiam seguir o homem depois de ele ir embora do Café Remor e capturá-lo no lugar e momento em que escolhessem. Então, o encorajariam a revelar o destino da princesa Reema, por persuasão ou força. Se a sorte estivesse a favor deles, talvez o suspeito os levasse diretamente à princesa. Melhor esperar, considerou Gabriel, do que agir precipitadamente e perder a oportunidade de salvar a vida da menina.
De seu ponto de observação, ele conseguia ver que o homem de sobretudo marrom ainda não fizera seu pedido. Sua pose era idêntica à que adotara na Brasserie Saint-Maurice — pernas casualmente cruzadas, cotovelo direito na mesa, mão esquerda na coxa, com certeza para alcançar facilmente a arma. A pasta de couro continuava na calçada, entre a mesa
dele e a de Villard. Era um lugar estranho para deixá-la. A não ser, pensou Gabriel, que ele não tivesse intenção de levá-la consigo ao sair.
Mas por que o suspeito estava sentado num café ao lado do ex-diretor de segurança da Escola Internacional de Genebra? O telefone comprometido de Villard estava na mesa a sua frente. A Unidade 8200
hackeara as informações de forma segura para o BlackBerry de Gabriel. A qualidade do áudio era cristalina — ele conseguia ouvir o tilintar dos talheres e das taças no café, bem como as conversas passantes na calçada
—, mas havia um atraso de vários segundos na transmissão. Era como assistir a um filme antigo com som e imagem dessincronizados. Os dois personagens centrais dessa história estavam em silêncio. Era possível, pensou Gabriel, que assim permanecessem.
Nesse momento, houve uma batida à janela dele, dois toques firmes vindos dos nós dos dedos enluvados de um policial, seguidos por um aceno seco. Gabriel levantou uma das mãos em sinal de desculpas e se afastou do meio-fio, entrando no trânsito frenético do fim de tarde. Fez uma série de curvas rápidas — direita na avenue du Mail, esquerda na rue Harry-Marc, esquerda de novo no boulevard Georges-Favon — e voltou à place du Cirque.
Um sinal vermelho deu a ele uma desculpa para levar uns instantes a mais por ali. Vários transeuntes passaram pela faixa de pedestre a sua frente. Um era um homem aparentemente bem-sucedido com um sobretudo marrom. Alguns passos atrás estava Mikhail Abramov. Sarah permanecia no Café Remor, sem tirar os olhos de Lucien Villard, que esticava uma das mãos para pegar a pasta de couro na calçada.
Ele o notou pela primeira vez, o homem longilíneo de pele pálida e olhos sem cor, sentado ao lado da loura bonita no Café Remor. E lá estava ele de novo, o mesmo homem, seguindo-o pela escuridão na rue de la Corraterie.
Também havia um carro atrás dele — o mesmo que estacionara ilegalmente na place du Cirque. Ele não tinha visto nada do motorista a não ser um borrão grisalho nas têmporas.
Mas como o haviam encontrado? Ele tinha certeza de não ter sido seguido até o café. Portanto, a explicação lógica era que Villard estava sob vigilância, não ele. Não importava, o ex-diretor de segurança não sabia quase nada. E, em poucos minutos, não seria mais uma ameaça.
Ele tirou o telefone do bolso do casaco e ligou para um número já gravado. A conversa foi breve e codificada. Quando terminou, ele desligou e parou numa vitrine. Olhando para a esquerda, viu o homem pálido — e, mais longe na rua, o carro.
Esperou um bonde passar, cruzou para o outro lado da rua e entrou num pequeno cinema. O filme tinha acabado de começar. Comprou um ingresso e entrou na sala escura e meio vazia. Do lado esquerdo da tela localizava-se a saída de emergência. O alarme soou alto quando o suspeito destravou a trava antipânico e saiu de novo para a noite.
Viu-se num pátio cercado por um muro alto. Escalou sem dificuldade, saltou para uma via de paralelepípedos e foi até uma passagem para a Cidade Antiga. Encontrou uma moto Piaggio estacionada em frente a um sebo, com uma figura numa roupa de couro e capacete. Subiu na traseira e abraçou sua cintura fina.
O alarme de incêndio ainda estava soando quando Mikhail irrompeu pela entrada do cinema. Não se deu ao trabalho de comprar um ingresso para disfarçar e precisou de duas tentativas para escalar o muro do pátio dos fundos. A rua na qual saltou estava completamente vazia. Ao se erguer, correu a esmo pelos paralelepípedos até chegar a uma charmosa praça no coração da Cidade Antiga. Lá, viu o homem de sobretudo marrom subindo na traseira de uma motocicleta. Mikhail considerou, por um segundo, sacar a arma e dar um tiro. Em vez disso, correu de volta à rue de la Corraterie, onde Gabriel o esperava.
— Onde ele está?
Mikhail contou da moto.
— Você viu quem pilotava?
— Ela estava usando um capacete.
— Era uma mulher? Tem certeza?
Mikhail fez que sim.
— Onde está Villard?
— Saindo agora do Café Remor.
— Seguido por uma curadora de museu desarmada com treinamento limitado em técnicas de vigilância de rua.
Gabriel pisou no acelerador e fez um retorno na frente de um bonde que se aproximava.
— Você está na contramão de uma rua de mão única.
— Se eu for na mão certa, vamos levar dez minutos para voltar à place du Cirque.
Mikhail bateu os dedos, nervoso, no console central.
— O que você acha que está na pasta?
— Espero que seja dinheiro.
— Eu também.
O primeiro erro de Sarah foi não pagar a conta adiantado, um pecado capital no negócio de vigilância. Quando conseguiu chamar a atenção do indiferente garçom, Lucien Villard já tinha saído da place du Cirque e seguia lá longe pelo boulevard Georges-Favon. Com medo de perdê-lo na multidão de fim de tarde, Sarah correu atrás de sua presa, e foi assim que cometeu o segundo erro.
Aconteceu no cruzamento com a rue du Stand.
Villard estava prestes a atravessar, mas, quando o semáforo ficou vermelho, ele parou abruptamente e pegou um maço de cigarros. A brisa estava vindo do Rhône, diretamente em sua direção. Ao se virar para usar o isqueiro, ele viu Sarah examinando a vitrine de uma loja de vinhos a cerca de trinta metros. Olhou-a descaradamente por um bom tempo, o cigarro entre os lábios, o isqueiro na mão direita, a pasta na esquerda. A pasta que lhe tinha sido dada pelo homem de sobretudo marrom.
Imediatamente, Villard jogou o cigarro na calçada e deu dois passos bruscos na direção de Sarah. Foi aí que ela viu uma explosão de luz branca brilhante e sentiu uma rajada de ar quente com a força de um furacão, erguendo-a do chão e jogando-a na calçada. Ficou deitada imóvel, incapaz de se mexer ou respirar, perguntando-se se estava viva ou morta. Só tinha consciência do vidro estilhaçado e de membros e vísceras humanas. E
sangue. Estava por todo canto, o sangue. Um pouco, temia, devia ser seu. E
um pouco pingava nela dos galhos pelados da árvore abaixo da qual ela caíra.
Por fim, ouviu alguém chamando seu nome. Percebeu uma mulher mancando lentamente enquanto atravessava uma esplanada banhada de sol à beira-mar, o rosto escondido por um véu negro. Então, ela desapareceu e um homem tomou seu lugar. Os olhos dele eram azul-acinzentados, como gelo glacial, e ele gritava a plenos pulmões:
— Sarah! Sarah! Está me ouvindo, Sarah?
Parte Dois
ABDICAÇÃO
20
GENEBRA–LYON
A bomba era pequena, só cinco quilos de explosivo de classe militar, mas fora construída por especialistas. Tinha sido colocada não num carro ou caminhão, mas numa pasta. O homem que a segurava quando ela detonou foi reduzido a uma coleção de órgãos e extremidades, incluindo sua mão que foi parar no para-brisa de um carro que trafegava pelo boulevard Georges-Favon.
Foi encontrada uma carteira dentro dos restos de um casaco de couro, preso em torno dos restos de um torso humano. Tudo pertencia a certo Lucien Villard, veterano do Service de la Protection, que, até pouco tempo, tinha o cargo de chefe de segurança na Escola Internacional de Genebra.
Duas outras pessoas, um homem de 28 anos e uma mulher de 33, foram mortas na explosão. Ambos estavam bem ao lado de Villard enquanto ele esperava para atravessar a rue du Stand. Cidadãos suíços e residentes de Genebra.
A pasta foi mais difícil de identificar, pois não sobrou quase nada. A Polícia Federal suíça obteria vídeos de circuito fechado mostrando Lucien Villard pegando a maleta no Café Remor. Tinha sido largada ali por um homem de óculos e sobretudo marrom. Quando saiu do café a pé, ele fora seguido por um homem alto de pele e cabelo claros e por outro dirigindo um Passat sedan. O de sobretudo tinha feito uma breve ligação antes de entrar num cinema na rue de la Corraterie, de onde saiu rapidamente. O
Onyx, sistema de inteligência de sinais altamente capacitado da Suíça, por fim interceptaria a ligação. Ele havia ligado para uma mulher, com quem trocou poucas palavras em francês. Analistas linguísticos determinariam que não era o idioma nativo de nenhum dos dois.
Quando Lucien Villard saiu do Café Remor com a pasta às 17h17, foi seguido por uma mulher que estava numa mesa com o homem alto. Ela estava a meio quarteirão de Villard no boulevard Georges-Favon quando a bomba foi detonada. Permaneceu imóvel na calçada por vários minutos, como se estivesse entre os mortos. Então, o homem alto apareceu e a colocou às pressas no banco de trás do Passat sedan.
O carro tinha placa francesa e retornou à França, minutos depois de sair da cena da explosão. Pouco antes das nove da noite, entrou num estacionamento no centro de Lyon, com boa parte da placa de trás suja de lama. Gabriel escondeu a chave embaixo da roda posterior esquerda, enquanto Mikhail ajudava Sarah a sair do banco traseiro. Os passos dela eram instáveis ao atravessar a rua até a Gare de la Part Dieu.
O último trem da noite para Paris estava prestes a sair. Mikhail comprou três passagens, e, juntos, foram para a plataforma. O vagão deles estava quase vazio. O russo sentou-se sozinho na frente, numa poltrona voltada para a traseira do trem; Gabriel e Sarah, à direita. O rosto dela estava cinzento, o cabelo, úmido. Mikhail a lavara com alguns litros de água Vittel antes de colocar roupas limpas nela. Por sorte, o sangue não era de Sarah, mas de Lucien Villard.
Ela examinou seu reflexo no vidro da janela.
— Sem nenhum arranhão. Como explica isso?
— A bomba foi projetada para limitar vítimas colaterais.
— Você viu a explosão?
Gabriel fez que não.
— Só ouvimos.
— Eu vi. Ou pelo menos, acho que sim. Só lembro da expressão de Lucien Villard ao ser rasgado em pedaços. Era como se ele fosse...
— Um homem-bomba?
Sarah assentiu lentamente.
— Você já viu?
— Um homem-bomba? Perdi as contas.
Ela, de repente, fez uma careta de dor.
— Parece que fui atropelada por um caminhão. Acho que devo ter quebrado uma ou duas costelas.
— Vamos pedir para um médico examiná-la antes do seu voo.
— Que voo?
— O voo para Nova York.
— Não vou a lugar nenhum.
Gabriel não se deu ao trabalho de responder. O rosto no vidro estava contorcido de dor.
— A noite não saiu exatamente como planejado — disse Sarah.
— Lucien Villard foi explodido em pedacinhos. E um dos sequestradores de Reema escapou por entre nossos dedos.
— Infelizmente, esse é um ótimo resumo.
— Ele caiu no nosso colo e deixamos escapar.
— Fomos Mikhail e eu que o perdemos, não você.
— Talvez devêssemos tê-lo capturado no café.
— Ou talvez devêssemos ter atirado nele quando estava andando naquela rua tranquila perto do cinema. Uma bala tende a deixar até o homem mais duro tagarela.
— Lembro disso, também. — Sarah observou um bairro feio de periferia passar por sua janela. — Acho que sabemos como os sequestradores descobriram que a filha de Khalid estava matriculada naquela escola.
— Duvido que precisassem de Villard para isso.
— Então, o que ele fez por eles?
— Aí — falou Gabriel — eu precisaria especular.
— O caminho até Paris é longo. Fique à vontade.
— Observação próxima do alvo — disse Gabriel, após um momento.
— Continue.
— Não podiam fazer sozinhos, porque sabiam que os serviços suíços estavam vigiando. Então, contrataram alguém para fazer isso por eles.
Alguém que deveria cuidar da segurança dela.
— Ele sabia para quem estava trabalhando?
— Duvido.
— Então, por que matá-lo?
— Imagino que quisessem eliminar qualquer um capaz de comprometê-
los. Ou é possível que Lucien tenha feito alguma estupidez.
— Tipo o quê?
— Talvez os tenha ameaçado. Ou pedido mais dinheiro.
— Ele deve ter pensado que tinha dinheiro na pasta. Por que mais a teria pegado? — Sarah olhou para Mikhail, que os observava na frente do vagão. — Você deveria ter visto a cara dele quando achou que eu pudesse estar morta.
— Eu vi.
— Sei que ele está apaixonado pela fulana, mas ainda gosta de mim. —
Ela apoiou a cabeça no ombro de Gabriel. — O que vamos fazer agora?
— Você vai para casa, Sarah.
— Já estou em casa — disse ela, e fechou os olhos.
21
Mais tarde, naquela mesma noite, enquanto um trem com o chefe da inteligência israelense se aproximava da Gare de Lyon em Paris, três figuras encapuzadas tiraram a princesa Reema bint Khalid Abdulaziz de um sono atormentado. Estavam claramente agitadas, o que a surpreendeu.
Desde o incidente do caderno, as interações de Reema com seus sequestradores tinham sido formais e silenciosas, mas sem rancor. Aliás, fazia algum tempo que ela não via a mulher. Reema não sabia dizer, com certeza, quanto. Media a passagem das horas e dos dias não por um relógio ou calendário, mas pelo ritmo de suas refeições e suas visitas supervisionadas ao banheiro.
Um dos homens estava segurando uma escova de cabelo e um pequeno espelho em formato de raquete. Também tinha um bilhete. Ele queria que Reema melhorasse sua aparência — o motivo, não disse. O primeiro relance da criatura no espelho a chocou. Ela mal reconheceu o rosto pálido e abatido. Seu cabelo negro estava imundo e embaraçado.
O homem se retirou enquanto Reema, segurando o espelho diante de si, forçava a escova a passar pelo emaranhado de fios. Ele voltou um momento depois com um exemplar de um jornal de Londres e uma câmera instantânea vermelho vivo. Parecia um brinquedo, não algo que estaria na mão de um criminoso implacável. Ele entregou o periódico a Reema —
era uma edição do The Telegraph daquela manhã — e, com gestos rudes, instruiu-a a segurá-lo embaixo do queixo. Para a fotografia, ela adotou um juhaymin, a tradicional “cara de bravo” dos beduínos árabes. O olhar, porém, implorava que o pai acabasse com seu sofrimento.
A câmera soltou um flash e, alguns segundos depois, cuspiu a fotografia. Então, o homem tirou uma segunda foto, que preferiu à primeira. Ficou com ambas enquanto ele e os outros companheiros se preparavam para sair.
— Posso ficar com ela?
Os olhos por trás da máscara a estudaram de forma questionadora.
— A que você não for mandar para o meu pai para provar que ainda estou viva.
O sequestrador pareceu considerar com cuidado o pedido. Então, a foto não escolhida voou, fazendo uma curva suave antes de pousar no catre ao lado de Reema. A porta se fechou, as trancas estalaram. A luz no teto continuou acesa.
Reema pegou a foto. Era muito boa, pensou. Ela parecia ter mais do que 12 anos e estar levemente bêbada ou drogada, um pouco sexy, como modelos na Vogue e na Glamour. Duvidava de que seu pai fosse achar o mesmo.
Ela esticou o corpo de costas no catre e olhou para os olhos da garota na fotografia.
— É a morte — sussurrou. — Morte, morte, morte.
22
PARIS–LONDRES
O apartamento seguro ficava num pequeno prédio residencial no extremo do Bois de Boulogne. Mikhail e Sarah pegaram um quarto para cada um, deixando o sofá-cama na sala — a cama de pregos, como era conhecida no Escritório — para Gabriel. Consequentemente, como a princesa Reema, ele não dormiu bem naquela noite.
Levantou cedo, vestiu-se e saiu à luz fria e metálica da manhã. Uma equipe de segurança de dois homens da embaixada esperava por ele em um Renault sedan com placa diplomática. Dirigiram pelas ruas silenciosas até a Gare du Nord, onde Gabriel entrou na classe executiva do Eurostar das 8h15 rumo a Londres. Rodeado de comerciantes e profissionais do mercado financeiro, ele leu os jornais da manhã. Estavam cheios de relatos enganosos sobre o misterioso bombardeio em Genebra envolvendo o ex-chefe de segurança de uma escola particular de elite para filhos de diplomatas.
Enquanto o trem se aproximava do Eurotúnel, Gabriel mandou uma mensagem codificada, informando o destinatário de sua chegada iminente à capital inglesa. A resposta demorou muito para chegar, e o tom era inóspito. Não continha cumprimento nem saudação, só um endereço.
Gabriel supôs que fosse de uma casa segura. Ou não. Os britânicos não tinham casas seguras, pensou. Pelo menos, nenhuma que o Centro de Moscou não conhecesse.
Eram 9h30 quando o trem chegou à Estação de St. Pancras, em Londres.
Gabriel esperava ser recebido no desembarque, mas, cruzando o imponente átrio principal, não viu evidências de um comitê de recepção britânico. Deveria ter ligado para a Estação de Londres e pedido um motorista e um acompanhante. Em vez disso, passou as duas horas seguintes vagando pelas ruas do West End, buscando evidências de que estivesse sendo seguido. Era uma violação dos protocolos do Escritório, mas no caso dele, não sem precedentes. Da última vez em que se aventurara sozinho em público, tinha encontrado Rebecca Manning, a traidora ex-Chefe de Estação de Washington, e um time de extração russo
fortemente armado. Os russos não tinham sobrevivido. Rebecca Manning, para o bem ou para o mal, sim.
A Embaixada da Rússia em Londres, com sua rezidentura do SVR cheia de funcionários, ocupava um terreno valioso perto do Palácio de Kensington. Gabriel passou por ela na Bayswater Road e seguiu até Notting Hill. St. Luke’s Mews ficava na margem norte deste bairro elegante, perto de Westway. O número 7, como todas as outras casas na rua, era uma garagem convertida. O exterior era pintado numa escala de cinza — cinza-claro nos tijolos, cinza-escuro no acabamento e na porta. A aldrava era um grande anel prateado. Gabriel o bateu duas vezes. E, quando não recebeu resposta, repetiu o gesto.
Por fim, a porta se abriu e Nigel Whitcombe o recebeu. O inglês recentemente fizera 40 anos, mas ainda parecia um adolescente que tinha sido esticado e moldado como adulto. Gabriel o conhecia desde que era um estagiário no MI5. Neste momento, era assistente pessoal e cuidava da maioria dos assuntos para o diretor-geral do Serviço Secreto de Inteligência, o MI6.
— Estou bem — disse Gabriel, incisivo, depois de Whitcombe ter fechado a porta. — E você, Nigel?
— Davies — respondeu ele. — Não usamos nomes reais nos apartamentos seguros, só os de trabalho.
— E quem eu sou?
— Mudd — disse Whitcombe.
— Interessante.
— Deveria ouvir o que nós rejeitamos.
— Posso imaginar.
Gabriel olhou ao redor do interior da casa minúscula. Estava recém-reformada e pintada, mas quase sem mobília.
— Tomamos posse na semana passada. Você é o primeiro convidado.
— Que honra.
— Acredite, não era nossa intenção. Estamos no processo de liquidar todo o nosso inventário de casas seguras. E não só em Londres. No mundo todo.
— Mas não fui eu que contei as localizações aos russos. Foi Rebecca Manning.
Um momento se passou. Então, Whitcombe disse:
— Temos muita história, senhor Mudd.
— Se me chamar assim de novo...
— Nos conhecemos desde a operação Kharkov. Sabe que tenho o máximo de respeito por você.
— Mas?
— Teria sido melhor se tivesse deixado que ela desertasse.
— Nada teria mudado, Nigel. Ainda seria um escândalo e vocês ainda seriam forçados a se livrar de todas as casas seguras.
— Não são só as propriedades seguras, mas tudo. Nossas redes, nossos chefes de estação, nossas cifras e criptografia. Para todos os efeitos, já não estamos no negócio da espionagem.
— É isso que acontece quando os russos plantam uma informante no nível mais alto de um serviço de inteligência — falou Gabriel. — Aqui é muito melhor que aquela pocilga em Stockwell.
— Essa também foi embora. Estamos vendendo e comprando propriedades tão rápido que causamos impacto no mercado imobiliário londrino.
— Tenho um lindo apartamento em Bayswater de que estou querendo me livrar.
— Aquele lugar com vista para o parque? Todo mundo sabe que é um apartamento seguro do Escritório. — Whitcombe sorriu pela primeira vez.
— Perdoe, os últimos meses foram um pesadelo. Rebecca deve estar adorando o show de seu novo escritório no Centro de Moscou.
— Como está o “C”?
— Vou deixar que ele responda.
Pela janela da frente, Gabriel viu Graham Seymour sair do banco traseiro de uma limusine Jaguar. Parecia deslocado naquelas ruazinhas da moda, como um homem mais velho e rico visitando sua amante jovem.
Seymour sempre teve esse ar. Com seus traços prontos para a câmera e mechas abundantes cinza-escuras quase azuladas, ele parecia um daqueles modelos que se via em anúncios de bugigangas caras como canetas-tinteiro e relógios suíços. Ao entrar, examinou a sala de estar como se estivesse tentando esconder seu entusiasmo de um corretor imobiliário.
— Quanto pagamos por este lugar? — perguntou a Whitcombe.
— Quase dois milhões, chefe.
— Lembro os dias em que uma quitinete em Chiswick resolvia. As camareiras encheram a despensa?
— Infelizmente, não.
— Tem um mercado Tesco na esquina. Chá, leite e uma caixa de biscoitos. E pode demorar, Nigel. — A porta da frente foi aberta e fechada em seguida. Seymour tirou seu sobretudo Crombie e o jogou nas costas de uma cadeira. Parecia comprada na Ikea. — Imagino que não tenha sobrado muito para decoração. Não com um preço de dois milhões de libras.
— É melhor não enfiar móveis demais em lugares pequenos como este.
— Não tenho experiência nisso. — Seymour morava numa mansão georgiana na Eaton Square com uma esposa chamada Helen, que cozinhava com ânimo, mas muito mal. O dinheiro vinha da família de Helen. O pai de Seymour tinha sido um lendário oficial do MI6 que trabalhara, principalmente, no Oriente Médio. — Ouvi dizer que tem estado ocupado.
— Ouviu?
Seymour sorriu de lábios fechados.
— O GCHQ captou, há algumas noites, uma explosão de tráfego de rádio e telefone incomum em Teerã. — O Government Communications Headquarters é o serviço de inteligência britânico encarregado pela segurança e pela espionagem e contra espionagem nas comunicações. —
Sinceramente, soava como se o lugar estivesse em chamas.
— E o que era?
— Alguém invadiu um armazém e roubou toneladas de arquivos e disquetes. Aparentemente, esses documentos representam todos os registros do programa de armas nucleares do Irã.
— Imagine só.
Outro sorriso, dessa vez, mais longo que o último.
— Como seus parceiros em várias operações contra o programa nuclear iraniano, incluindo uma de codinome Obra-Prima, gostaríamos de ver os documentos.
— Tenho certeza de que sim.
— Antes de você mostrar aos americanos.
— Como sabe que já não compartilhamos com Langley?
— Porque não deu tempo de analisar um tesouro como aquele. Se tivesse entregado o material aos americanos, eles teriam oferecido a mim.
— Eu não teria tanta certeza. Seu aliado tem as mesmas preocupações que nós com seu serviço. E por bons motivos. Afinal, Rebecca passou os últimos meses de sua carreira no MI6 roubando todos os segredos americanos em que conseguia colocar as mãos.
A expressão de Seymour ficou fechada, como se uma sombra tivesse caído sobre seu rosto.
— Rebecca se foi.
— Nada disso, Graham. Está trabalhando no Departamento do Reino Unido no Centro de Moscou. E você está num beco sem saída, porque não tem certeza de que ela tem outro agente dentro do MI6.
— É por isso que preciso de um bom segredo para provar que ainda estou no jogo.
— Então, talvez devesse ir roubar.
— Estamos ocupados demais desmoronando para cometer um ato de espionagem simples. Estamos totalmente paralisados.
— Como ficaram depois de...
— Sim — interrompeu Seymour. — Os paralelos entre aquela época e hoje são impressionantes. Levou anos para nos levantarmos após sermos derrubados por Philby. Estou determinado a não deixar acontecer de novo.
— E quer minha ajuda.
Seymour não disse nada.
— Como posso ter certeza de que os documentos iranianos não vão acabar na mesa de Rebecca no Centro de Moscou?
— Não vão — afirmou Seymour, com seriedade.
— E o que recebo em troca?
— Uma trégua em nosso conflito fratricida e um retorno gradual aos negócios de sempre.
— Que tal algo mais tangível?
— Está bem — concordou Seymour. — Se me entregar esses documentos, ajudo a encontrar a filha de KBM antes de ele ser forçado a abdicar.
— Como descobriu?
Seymour deu de ombros.
— Fontes e métodos.
— Os americanos sabem?
— Falei com Morris Payne ontem à noite sobre outro assunto. — Payne era diretor da CIA. — Ele sabe que a filha de Khalid foi raptada, mas parece não estar ciente de seu envolvimento.
Depois de um breve silêncio, adicionou, de repente:
— Ele está na cidade, sabia?
— Morris?
— Khalid. Chegou de avião ontem à tarde. — Seymour olhou Gabriel com cuidado. — Estou surpreso, dada a intimidade de seu novo relacionamento, que ele não tenha dito a você que estava vindo.
— Ele não mencionou.
— E você não está rastreando aquele telefone dele?
— Perdemos o sinal. Imaginamos que ele tenha trocado.
— O GCHQ concorda.
— O que o trouxe à cidade?
— Ele jantou ontem com seu amado tio Abdullah. É o irmão mais novo do atual rei.
— Meio-irmão — corrigiu Gabriel. — Há uma grande diferença.
— E é por isso que Abdullah passa a maior parte do tempo em Londres.
Aliás, somos praticamente vizinhos. Ele inicialmente se opôs à ascensão de Khalid, mas se comportou depois de o príncipe ameaçar fali-lo e colocá-lo em prisão domiciliar. Agora, é um dos conselheiros mais próximos de KBM. — Seymour franziu a sobrancelha. — Não dá nem para imaginar sobre que tipo de coisas falam. Apesar de seu endereço chique em Londres, Abdullah não gosta muito do Ocidente.
— Nem de Israel — completou Gabriel.
— De fato. Mas é uma figura influente dentro da Casa de Saud, e Khalid precisa do apoio dele.
— Ele é ativo do MI6?
— Abdullah? De onde você tiraria uma ideia dessas? — Seymour se sentou. — Acho que você se enfiou numa guerra dos tronos de verdade. Se tivesse bom senso, se afastaria e deixaria os Al Saud brigarem entre si.
— O Oriente Médio é um lugar perigoso demais para permitir instabilidade na Arábia Saudita.
— Concordamos. E é por isso que estávamos dispostos a fazer vista grossa para as óbvias falhas de KBM, incluindo o assassinato de Omar Nawwaf.
— Qual foi a motivação?
— Há rumores — disse Seymour, vagamente.
— Que tipo de rumores?
— De que Nawwaf sabia de algo que não deveria saber.
— Como o quê?
— Por que não pergunta ao seu amigo? Ele está hospedado no Dorchester com um pseudônimo. — Seymour balançou a cabeça em
reprovação. — Devo dizer, se minha filha tivesse sido sequestrada, o último lugar em que eu estaria é uma suíte de luxo do hotel Dorchester.
Estaria atrás das pessoas que a levaram.
— Foi para isso que ele veio até mim.
Gabriel pegou uma foto em sua pasta de um homem sentado num café francês.
— Quem é?
— Esperava que você me dissesse. — Gabriel entregou a Seymour a fotocópia do passaporte. — Ele é bastante bom. Despistou Mikhail em uns cinco segundos ontem à noite em Genebra.
Seymour levantou o rosto.
— Genebra?
— Será que é um dos seus, Graham? Um ex-oficial do MI6 vendendo seus serviços no mercado aberto?
— Vou checar, mas duvido. Aliás, ele não me parece britânico. —
Seymour analisou a imagem. — Acha que é profissional?
— Definitivamente.
Seymour devolveu a fotografia e a cópia do passaporte.
— Talvez você possa mostrar a alguém familiarizado com o lado obscuro da profissão.
— Conhece alguém assim?
— Talvez.
— Importa-se de eu fazer uma visita?
— Por que não? Ele está com bastante tempo livre no momento. —
Seymour olhou ao redor do cômodo pouco mobiliado. — Todos estamos.
23
KENSINGTON, LONDRES
Enquanto alguns homens percorrem um caminho direto à redenção, outros, como Christopher Keller, pegam a estrada mais longa. Ele morava num duplex de luxo em Queen’s Gate Terrace, em Kensington. Seus muitos cômodos estavam, em grande parte, sem móveis e decoração, evidência de que seu caso com Olivia Watson, ex-modelo e dona de uma galeria de arte moderna bem-sucedida, tinha acabado. O passado dela era quase tão complicado quanto o de Keller. Gabriel era o denominador comum entre eles.
— Você fez alguma coisa indesculpável?
— Deixe-me contar quantas.
Keller sorriu, mesmo sem querer. Ele tinha olhos azul-claros, cabelo queimado de sol e queixo grosso com um buraco no meio. A boca parecia permanentemente fixada num sorriso irônico.
— O que aconteceu?
— Olivia aconteceu.
— O que isso quer dizer?
— Caso não tenha notado, ela virou a estrela do círculo de arte londrino. Muitas fotos glamorosas nos jornais. Muita especulação sobre a vida amorosa misteriosa dela. Chegou ao ponto em que eu não conseguia mais sair em público com ela.
— O que, compreensivelmente, causou tensão no relacionamento.
— Olivia não é exatamente o tipo que fica em casa.
— Você também não, Christopher.
Veterano do Serviço Aéreo Especial, Keller tinha servido sob disfarce na Irlanda do Norte e lutado na primeira Guerra do Golfo. Também tinha sido capanga de um notável criminoso corso, praticando serviços descritos como assassinatos de aluguel. Mas tudo isso tinha ficado para trás. Graças a Gabriel, Christopher Keller era um respeitável oficial do Serviço de Inteligência de Vossa Majestade. Estava recuperado.
Colocou água na chaleira elétrica e ligou na tomada para esquentá-la. A cozinha ficava no térreo da antiga casa georgiana. Parecia saída de uma revista de design. Os balcões de granito eram amplos e com iluminação
elegante, o forno a gás era um Vulcan, a geladeira era uma Sub-Zero de aço inoxidável e a ilha à qual Gabriel se sentava em uma banqueta alta tinha uma pia e uma adega. Pela janela, ele via as canelas de pedestres passando rápido pela calçada na chuva. Eram só 15h30, mas estava quase escuro. O chefe do serviço secreto israelense já tinha aguentado muitos invernos ingleses — ele havia morado num chalé à beira-mar no extremo da Cornualha —, mas tardes chuvosas de dezembro em Londres sempre o deprimiam.
Keller abriu um armário e alcançou uma caixa de Twinings — com o braço esquerdo, notou Gabriel, não o direito.
— Como está?
Keller colocou a mão na clavícula direita.
— A bala causou mais estrago do que pensei. Levou muito tempo para curar.
— É isso que acontece quando envelhecemos.
— Você deve estar falando por experiência própria. Francamente, é tudo muito humilhante. Parece que sou o único oficial da história do MI6 a ter sido baleado por um colega.
— Rebecca não era uma colega, era coronel de alta patente do SVR. Ela me disse que nunca pensou em si como oficial do MI6. Era só uma agente de penetração.
— Igual ao pai dela. — Keller pegou a caixa de chá e fechou o armário sem fazer som. — Eu estava começando a achar que não veria mais você, principalmente, depois da forma como as coisas acabaram em Washington.
Nem preciso dizer, fiquei agradavelmente surpreso quando Graham me deu permissão para renovar nossa amizade.
— Quanto ele contou?
— Só que você se enfiou num rolo com o Príncipe Apressadinho.
— Ele é um ativo valioso numa região conturbada.
— Falou como um verdadeiro espiocrata. Antigamente, você não teria sujado as mãos com alguém como ele.
— Graham contou que tem uma criança envolvida?
Keller fez que sim.
— Ele disse que você tinha uma foto que queria que eu visse.
Gabriel a colocou no balcão. Um homem sentado num café, uma mulher à mesa do lado.
— Onde foi tirada?
Gabriel respondeu.
— Annecy? Lembro com carinho de lá.
— Você o reconhece?
— Não posso dizer que sim.
— E esta?
Gabriel entregou a foto do passaporte a Keller.
— Nós, ingleses, existimos em todos os tamanhos e formatos, mas duvido que ele seja um de nós.
Nesse momento, o BlackBerry de Gabriel vibrou com uma mensagem.
— Julgando pela expressão em seu rosto — disse Keller —, não são boas notícias.
— Os sequestradores acabaram de dar a Khalid até a meia-noite de amanhã para abdicar.
O aparelho celular tremeu com mais uma mensagem. Dessa vez, Gabriel sorriu.
— O que é?
— Uma saída.
— O que isso quer dizer?
— Explico no caminho.
— Aonde estamos indo?
Gabriel se levantou abruptamente.
— Ao Dorchester.
24
MAYFAIR, LONDRES
Gabriel segurou por reflexo o descanso de braço de couro do Bentley Continental chamativo de Keller enquanto passavam correndo em frente à Harrods. Eles mergulharam no viaduto abaixo do Hyde Park Corner e emergiram, um momento depois, em Picadilly. Keller navegou pelas ruas labirínticas de Mayfair com a destreza de um taxista londrino, e freou bruscamente em frente à entrada do Dorchester. Estava iluminada como uma árvore de Natal.
— Espere aqui — falou Keller.
— Onde mais eu iria?
— Você está armado?
— Só com uma sagacidade rápida e charme em excesso.
Keller retirou uma velha Walther PPK do bolso do sobretudo e deu a Gabriel.
— Obrigado, senhor Bond.
— É fácil de esconder e tem uma potência e tanto.
— Um tijolo numa janela de vidro. — Gabriel deslizou a pistola pela cintura da calça nas costas. — Ele está hospedado com o nome de al-Jubeir.
— E quem sou eu?
— Senhor Allenby.
— Igual à ponte?
— Sim, Christopher, igual à ponte.
— O que acontece se ele se recusar a vir sem um destacamento de segurança?
— Diga que é a única forma de recuperar a filha. Isso deve chamar a atenção dele.
Keller entrou no hotel. Alguns brutamontes sauditas bem alimentados estavam comendo pistaches no lobby, mas não havia repórteres. De alguma forma, a imprensa britânica não tinha conhecimento do fato de que o homem mais vilipendiado do mundo estava hospedado no mais elegante hotel de Londres.
Os dois sauditas observaram Keller enquanto ele caminhava até a recepção. O rosto da linda mulher atrás do balcão se iluminou automaticamente, como uma lâmpada acesa por um detector de movimento.
— Vim ver o senhor al-Jubeir. Ele está me esperando.
— Nome, por favor?
Keller respondeu.
A atendente levou o telefone ao ouvido e sussurrou algo cordato. Então, recolocou-o no gancho e fez um gesto na direção do hall do elevador.
— Um dos assistentes do senhor al-Jubeir vai acompanhá-lo à suíte dele.
Keller caminhou até o local indicado, observado pelos dois brutamontes sauditas. Cinco minutos se passaram antes de um assistente se materializar, um homenzinho com olhos sonolentos e terno e gravata imaculados.
— Eu esperava pelo senhor Allon.
— E eu esperava o príncipe.
— Vossa Alteza Real não se encontra com subordinados.
— Se eu fosse você, habibi, me levaria até lá. Senão, vou embora daqui e você vai ter que explicar para o Príncipe Serra de Ossos que me deixou escapar.
O pequeno saudita deixou alguns segundos transcorrerem antes de apertar o botão. Khalid estava hospedado na cobertura. Quando Keller e o pequeno faz-tudo saudita entraram, ele estava andando de um lado para outro diante das janelas amplas com vista para o Hyde Park. Um de seus seguranças ordenou que Keller levantasse os braços para ser revistado. Em um árabe rápido, o enviado de Gabriel mandou o guarda praticar sexo com um camelo.
Khalid parou de andar e baixou o telefone.
— Quem é esse homem?
O pequeno assistente explicou da melhor forma que pôde.
— Cadê o Allon?
Dessa vez, foi Keller quem respondeu. O chefe da inteligência israelense, disse ele, estava esperando lá embaixo num automóvel. Não mencionou a pistola Walther.
— É urgente que eu fale com ele — disse Khalid. — Por favor, peça que ele suba imediatamente.
— Infelizmente, não será possível.
— Por que não?
— Porque este é, provavelmente, o quarto menos seguro de Londres.
Khalid trocou algumas palavras velozes em árabe com o faz-tudo.
— Não — falou Keller, no mesmo idioma. — Nada de limusine nem guarda-costas. Você vem comigo. Sozinho.
— Não posso de jeito nenhum sair daqui sem um destacamento de segurança.
— Não precisa. Agora, pegue seu casaco, Khalid. Não temos a noite toda.
— Vossa Alteza Real — corrigiu o príncipe herdeiro, altivo.
— É coisa demais para falar, não é? — Keller sorriu. — Pode me chamar só de Ned.
Khalid nunca viajava no Ocidente sem um chapéu de feltro e óculos falsos de armação escura. O disfarce rudimentar o deixava quase irreconhecível.
Aliás, nem os dois durões sauditas no lobby tiraram os olhos de seus pistaches quando seu futuro rei atravessou o piso de mármore brilhante com Keller ao lado. Gabriel tinha ido para o banco traseiro do Bentley.
Keller entrou atrás do volante enquanto Khalid se sentou no lado do carona. Um momento depois, já faziam parte do trânsito da hora do rush na Park Lane.
Khalid olhou para Gabriel atrás.
— Ele sempre dirige assim?
— Só quando tem uma vida em risco.
— Para onde estão me levando?
— Para o último lugar no mundo em que você deveria estar.
Khalid olhou o interior do Bentley com aprovação.
— Pelo menos, alugou um carro decente para o trajeto.
— Gostou?
— Sim, muito.
— Que bom — disse Gabriel. — Não imagina como isso me deixa feliz.
Keller passou a meia hora seguinte costurando pelo West End de Londres
— por Knightsbridge e Belgravia e Chelsea e Earl’s Court — até Gabriel
ter certeza de que ninguém os seguia. Só então, instruiu Keller a ir para Kensington Palace Gardens. Um enclave diplomático, a rua estava bloqueada para o tráfego normal. O Bentley de Keller passou pelo posto de controle sem ser incomodado e virou no átrio de um prédio vitoriano de tijolos vermelhos sobre o qual tremulava a bandeira azul e branca do Estado de Israel.
Khalid olhou pela janela sem acreditar.
— Você não pode estar falando sério.
Com seu silêncio, Gabriel deixou claro que estava.
— Sabe o que vai acontecer se eu puser os pés aí?
— Vai ser assassinado por uma equipe de 15 assassinos e cortado em pedaços.
Khalid olhou para Gabriel com uma expressão genuinamente assustada.
— Estou brincando, Khalid. Agora, saia do carro.
25
KENSINGTON, LONDRES
O disfarce simples de Khalid não enganou a equipe de segurança da embaixada nem o embaixador, que, por acaso, estava saindo para uma recepção diplomática quando o lendário chefe de espionagem israelense entrou como um furacão na chancelaria com o governante de facto da Arábia Saudita a seu lado.
— Explico depois — disse Gabriel, em hebraico e em voz baixa, e ouviu o embaixador murmurar:
— Ah, mas vai mesmo.
No subsolo, Gabriel colocou o celular novo de Khalid numa caixa bloqueadora de sinais conhecida como colmeia antes de abrir a porta da estação, que parecia um cofre. Moshe Cohen, o novo chefe, esperava do outro lado. O olhar dele caiu primeiro sobre seu diretor-geral e depois, em choque, no príncipe herdeiro da Arábia Saudita.
— O que em nome de Deus...
— O telefone dele está na colmeia — interrompeu Gabriel num hebraico ríspido.
Cohen não exigiu mais instruções.
— Quanto tempo pode nos dar?
— Cinco minutos.
— Dez seria melhor.
Khalid não entendeu o diálogo, mas ficou visivelmente impressionado com os modos. Seguiu Gabriel pelo corredor central da estação até outra porta segura. A sala atrás dela era pequena, cerca de dois metros e meio por três. Havia dois telefones, um computador e uma tela de vídeo pregada na parede. O ar era vários graus mais frio do que o resto da estação. Khalid ficou de casaco.
— Uma sala à prova de escutas?
— Usamos outro nome.
— Qual?
Gabriel hesitou.
— O Santo dos Santos.
Era óbvio que Khalid, apesar de sua educação em Oxford, não entendeu a referência.
— O Santo dos Santos era o santuário interno do Templo de Jerusalém.
Era um cubo perfeito, de vinte cúbitos por vinte cúbitos. Continha a Arca da Aliança, e dentro dela estava a tábua com os Dez Mandamentos originais que Deus deu a Moisés no Sinai.
— Tábua de pedra? — perguntou Khalid, incrédulo.
— Deus não imprimiu numa HP LaserJet.
— E você acredita nessa bobagem?
— Estou disposto a debater a autenticidade das tábuas — disse Gabriel.
— Mas não o resto.
— O chamado Templo de Salomão nunca existiu. É uma mentira usada pelos sionistas para justificar a conquista judia da Palestina árabe.
— O Templo foi descrito com detalhes na Torá bem antes do advento do sionismo.
— Isso não muda o fato de não ser verdade. — Khalid, claramente, estava gostando do debate. — Lembro alguns anos atrás quando seu governo alegou ter achado os pilares do tal templo.
— Eu também lembro — falou Gabriel.
— Foram colocados no Museu de Israel, não? — Khalid balançou a cabeça com desdém. — Aquela exposição é uma peça de propaganda rude para justificar sua existência em terras muçulmanas.
— Minha esposa desenhou a exposição.
— Ah, é?
— E fui eu que descobri os pilares.
Dessa vez, Khalid não retrucou.
— O Waqf escondera numa câmera cinquenta metros abaixo da superfície do monte do Templo. — O Waqf era a autoridade religiosa islâmica que administrava a Cúpula da Rocha e a Mesquita de al-Aqsa. —
Imaginaram que ninguém nunca ia encontrar. Estavam enganados.
— Outra mentira — contrariou Khalid.
— Venha a Israel — sugeriu Gabriel. — Eu o levo à câmara.
— Eu? Visitar Israel?
— Por que não?
— Consegue imaginar a reação?
— Consigo.
— Devo admitir, seria um grande privilégio orar no Nobre Santuário.
— Era assim que os muçulmanos se referiam ao monte do Templo.
— Podemos fazer isso, também.
Khalid se sentou de um lado da pequena mesa de reuniões e olhou ao redor da sala.
— Que sorte estarmos os dois em Londres ao mesmo tempo.
— Sim — concordou Gabriel. — Eu buscando desesperadamente sua filha, e você jantando com o tio Abdullah e se hospedando na suíte mais cara do Dorchester.
— Como sabe que vi meu tio?
Ignorando a pergunta, Gabriel esticou a mão e pediu para ver a carta de resgate. Khalid a colocou na mesa. Era uma fotocópia. A original, disse, tinha sido entregue à Embaixada Saudita em Paris. A tipografia e as margens eram idênticas às da primeira carta. O tom seco e direto também.
Khalid tinha até a meia-noite de amanhã para abdicar. Caso se recusasse, nunca mais veria a filha.
— Havia alguma prova de vida?
Khalid entregou uma cópia da foto. A menina estava segurando a edição do dia anterior do The Telegraph e olhava diretamente para a lente da câmera. Tinha os olhos do pai. Exausta e desgrenhada, mas nem um pouco assustada.
Gabriel devolveu a foto.
— Nenhum pai deveria ter que ver uma imagem dessas.
— Talvez eu mereça.
— Talvez sim. — Foi a vez de Gabriel colocar uma foto na mesa. Um homem sentado num café em Annecy. — Reconhece?
— Não.
— E este homem? — Gabriel mostrou uma segunda imagem.
Era da câmera de vigilância da DGSI de Rafiq al-Madani sentado ao lado de Khalid a bordo do Tranquility.
— Onde você conseguiu isso?
— Na revista Tatler. — Gabriel recuperou a foto. — É amigo seu?
— Não tenho amigos. Tenho súditos, convidados e familiares.
— Em qual categoria está al-Madani?
— É um aliado temporário.
— Pensei que você fosse cortar o fluxo de dinheiro para os jihadistas e os salafistas.
O sorriso de Khalid foi condescendente.
— Você não sabe muito sobre os árabes, não é? — Ele esfregou o dedão contra as pontas dos demais dedos. — Shwaya, shwaya. Devagar, devagar.
Pouco a pouco.
— O que quer dizer que você ainda está financiando os extremistas com a ajuda de seu amigo Rafiq al-Madani.
— O que quer dizer que tenho que fazer as coisas com cuidado e o apoio de alguém como Rafiq. Alguém que tenha a confiança de clérigos importantes. Alguém que possa me dar a cobertura necessária. Senão, a Casa de Saud vai desmoronar, e a Arábia Saudita será governada pelos filhos da al-Qaeda e do Estado Islâmico. É isso que você quer?
— Você está bancando o bom e velho agente duplo.
— Estou segurando o tigre pelas orelhas. E se soltar, ele vai me devorar.
— Já devorou. — Gabriel recuperou uma mensagem em seu BlackBerry. Era a que ele tinha recebido enquanto estava sentado na cozinha de Christopher Keller. — Foi al-Madani que contou a você sobre a segunda carta de resgate. Às 15h12. Horário de Londres.
— Vejo que está monitorando meu telefone.
— Não o seu, o dele. E cinco minutos depois de ele ligar para você, mandou uma mensagem criptografada a outra pessoa. Como sabíamos de onde ele teclava, não tivemos dificuldade para ler.
— O que diz?
— O bastante para deixar claro que sabe onde está sua filha.
— Posso ver a mensagem?
Gabriel entregou seu telefone. O saudita xingou baixinho em árabe.
— Vou matá-lo.
— Talvez primeiro devesse descobrir onde está sua filha.
— Isso é trabalho seu.
— Meu papel neste caso chegou oficialmente ao fim. Não vou me enfiar no meio de uma briga familiar saudita.
— Sabe o que dizem sobre família, não sabe?
— O quê?
— É mais um xingamento que começa com “F”.
Gabriel não conseguiu segurar o sorriso. Khalid devolveu o BlackBerry.
— Talvez possamos chegar a algum tipo de acordo comercial.
— Economize seu dinheiro, Khalid.
— Vai pelo menos me ajudar?
— Você quer que eu interrogue um de seus oficiais de governo?
— É claro que não. Eu mesmo vou fazer o interrogatório. Não deve levar muito tempo. — Khalid baixou a voz. — Afinal, tenho certa reputação.
— Para dizer o mínimo.
— Onde podemos interrogá-lo? — perguntou Khalid.
— Precisa ser em algum lugar isolado. Algum lugar em que a polícia não nos encontre. — Gabriel hesitou. — Algum lugar em que os vizinhos não ouçam um pouco de barulho.
— Conheço o lugar perfeito.
— Consegue levá-lo para lá sem ele suspeitar?
Khalid sorriu.
— Só preciso do meu telefone.
26
ALTA SABOIA, FRANÇA
Khalid tinha um Gulfstream à sua espera no Aeroporto London City. Eles pararam no Le Bourget, em Paris, por tempo suficiente para pegar Mikhail e Sarah e, então, voaram a Annecy, onde uma caravana de Range Rovers esperava na pista escura. Levava vinte minutos de carro até o Versalhes particular de Khalid. A equipe doméstica, uma mescla de cidadãos franceses e sauditas, estava postada como um coro no altíssimo hall de entrada. O patrão os cumprimentou brevemente antes de acompanhar Gabriel e os outros até o principal cômodo público — o grande salão, como ele chamava. Era longo e retangular, como uma basílica, e nas paredes estava pendurada parte da coleção de Khalid, incluindo o Salvator Mundi, seu Leonardo duvidoso. Gabriel estudou o painel com cuidado, com uma das mãos no queixo, a cabeça levemente inclinada para o lado.
Então, agachou-se e examinou as pinceladas na luz rasante.
— E então? — perguntou Sarah.
— Como pôde deixá-lo comprar essa coisa?
— É um Leonardo?
— Talvez uma pequena porção tenha sido, há muito tempo. Mas não mais.
Khalid se juntou a eles.
— Magnífico, não é?
— Não sei o que foi mais idiota — respondeu Gabriel. — Matar Omar Nawwaf ou desperdiçar meio bilhão de dólares numa peça devocional de ateliê que foi restaurada demais.
— Ateliê? A senhorita Bancroft me garantiu que era um Leonardo autêntico.
— A senhorita Bancroft estudou história da arte em Courtauld e Harvard. Tenho certeza de que ela não fez isso.
Gabriel observou, com desesperança, um dos criados entrar no salão com uma bandeja de drinques.
— Não é uma festa, Khalid.
— Isso não quer dizer que não podemos tomar algo para relaxar depois de nossa viagem.
— Quantos funcionários você tem?
— Acredito que 22.
— Nem imagino como consegue se virar.
A ironia passou batida por Khalid.
— Os oficiais sêniores são sauditas — explicou —, mas a maioria dos funcionários é francesa.
— A maioria?
— Os jardineiros são marroquinos e da África Ocidental. — O tom dele era pejorativo. — Os sauditas moram numa casa separada no limite norte da propriedade. Os outros, em Annecy ou em vilarejos próximos.
— Dê a noite de folga a eles. Aos motoristas também.
— Mas...
— E desligue as câmeras de segurança — interrompeu Gabriel. —
Como fez em Istambul.
— Acho que não sei fazer isso.
— Passe o botão de “ligado” para “desligado”. Deve resolver.
Khalid tinha instruído Rafiq al-Madani a ir sozinho ao château. Al-Madani, porém, imediatamente desobedeceu ao chefe, pedindo um carro e um motorista da frota da embaixada. Saíram do 8º arrondissement de Paris às seis da tarde e, seguidos por uma equipe de observadores do Escritório, pegaram a A6. Com base na conversa, que Gabriel e Khalid monitoravam pelo telefone grampeado, era óbvio que os dois eram conhecidos. Também era óbvio que ambos estavam armados.
Quando chegaram à cidade de Mâcon, Gabriel se apropriou de um dos Range Rovers de Khalid e dirigiu com Sarah para o interior. A noite estava fria e clara. Ele parou numa elevação que dava vista para o cruzamento das estradas D14 e D38, apagou os faróis e desligou o motor.
— O que fazemos se aparecer um gendarme?
— A doutrina do Escritório diz para fingirmos que somos amantes.
Sarah sorriu.
— Meu maior sonho virando realidade.
O BlackBerry de Gabriel estava no console entre eles, emitindo a transmissão de áudio do telefone de al-Madani. No momento, estava limitado ao ruído de um motor alemão e um chocalhar rítmico que soava como o bater de peças de xadrez.
— O que é isso?
— Contas de oração.
— Ele parece preocupado.
— Você não estaria se Khalid a convocasse no meio da noite?
— Ele fazia isso comigo o tempo todo.
— E você nunca suspeitou de que não fosse o grande reformador que se dizia?
— O KBM que eu conhecia não teria ordenado o assassinado de Omar Nawwaf. Imagino que ele tenha mudado por causa do excesso de poder.
Foi rápido demais, e acabou trazendo à tona a hamartia da personalidade dele. A falha fatal — completou Sarah.
— Eu sei o que significa, doutora Bancroft. Graças ao Escritório, nunca terminei meus estudos formais, mas não sou idiota.
— Você é a pessoa mais inteligente que já conheci.
— Se sou tão esperto, por que estou parado no acostamento de uma estrada francesa no meio da noite?
— Está tentando evitar que nosso herói trágico destrua a si mesmo.
— Talvez eu devesse deixar isso acontecer.
— Você é um restaurador, Gabriel. Conserta coisas. — Do BlackBerry, veio o som das contas de oração. — Khalid sempre me disse que algo assim ia acontecer. Ele sabia que iam tentar destruí-lo. Disse que ia ser alguém próximo. Alguém da família.
— Não é uma família, é um negócio. E os louros vão para quem tem o poder.
— É disso que se trata? Dinheiro?
— Vamos descobrir logo logo.
O telefone de al-Madani recebeu uma mensagem de texto. Os cliques das contas silenciaram.
— De quem acha que é?
Um momento depois, o telefone de Gabriel vibrou. A mensagem era da mesa de operações na Unidade 8200.
— Era Khalid. Perguntou quando Rafiq chegaria.
Ouviram o príncipe herdeiro digitar uma resposta e enviar com um bloop. Uma transcrição chegou ao telefone de Gabriel alguns segundos depois, junto com o número ao qual tinha sido enviada.
— Ele acabou de dizer aos sequestradores que está indo se encontrar com Khalid. Prometeu mandar uma atualização assim que acabar.
— Lá vem ele.
Sarah apontou para um único carro, uma Mercedes S-Class sedan, atravessando a paisagem. Passou pelo cruzamento onde a filha de Khalid tinha sido levada — clique, clique, clique, clique-clique, clique — e desapareceu de vista. Gabriel deixou que trinta segundos se passassem e ligou o motor da Range Rover.
O chacoalhar das contas de oração ficou mais insistente enquanto a Mercedes percorria o caminho final ao château de Khalid. Rafiq al-Madani murmurou uma expressão árabe de surpresa pelo portão encimado de ouro estar aberto. Também ficou surpreso de encontrar o próprio Khalid esperando do lado de fora, no frio do pátio de carros.
Seguiu-se o abrir e fechar de uma porta de um carro de luxo e os cumprimentos de paz islâmicos de sempre. Al-Madani comentou sobre a falta de luz no hall. Khalid explicou, de forma até sociável, que seu palácio de quatrocentos milhões de euros tinha defeitos elétricos.
O comentário suscitou em al-Madani uma risada entrecortada. Seria sua última. Houve uma luta, muito breve, seguida pelo som de vários golpes numa maçã do rosto e uma mandíbula. Depois, Gabriel daria uma bronca em Keller e Mikhail por usar força excessiva para neutralizar o alvo.
Ambos fizeram objeção a essa interpretação dos fatos. Fora Khalid o responsável pela surra, disseram, não eles.
Quando Gabriel chegou ao pátio, o telefone grampeado tinha sido desligado e já não emitia sinal. Mikhail estava infligindo danos permanentes ao braço direito do motorista, que tolamente tinha recusado um pedido educado de entregar sua arma. Dentro do château, Keller amarrava Rafiq al-Madani semiconsciente com fita a uma cadeira no grande salão. Vossa Alteza Real Príncipe Khalid bin Mohammed Abdulaziz Al Saud estava girando um colar de contas de oração entre dois dedos da mão esquerda. Na direita havia uma arma.
27
ALTA SABOIA, FRANÇA
Rafiq al-Madani precisou de poucos segundos para avaliar a gravidade de sua situação. Lentamente, ele levantou o queixo do peito e lançou um olhar incerto pelo enorme quarto. Os olhos caíram primeiro no futuro regente, que ainda estava mexendo nas contas de oração, depois em Gabriel. Eram suaves e castanhos, os olhos de al-Madani, como os de um cervo. Com seu rosto alongado e cabelo escuro bagunçado, ele tinha uma semelhança infeliz com Osama bin Laden.
Mais um momento se passou antes de al-Madani reconhecer o rosto do chefe de inteligência de Israel. Os olhos castanhos suaves se arregalaram.
O saudita estava assustado, observou Gabriel, mas não surpreso.
Al-Madani olhou com desprezo para Khalid, e se dirigiu a ele em árabe.
— Vejo que trouxe seu amigo judeu para fazer o trabalho sujo. E você se pergunta por que tem tantos inimigos em casa.
Khalid lhe deu uma coronhada com o revólver. Al-Madani encarou Sarah com sangue escorrendo de um corte acima do olho esquerdo.
— Cubra o rosto na minha presença, sua puta americana!
Khalid levantou a arma, com raiva.
— Não! — gritou Sarah. — De novo, não.
Quando Khalid a abaixou, al-Madani conseguiu sorrir em meio à dor.
— Aceitando ordens de uma mulher? Só falta se vestir que nem elas.
Khalid bateu de novo nele. Sarah se encolheu com o som do osso rachando.
— Onde ela está? — perguntou Khalid.
— Quem? — retrucou al-Madani, com a boca cheia de sangue.
— Minha filha.
— Como vou saber?
— Porque está em contato com os sequestradores. — Khalid pegou o telefone de al-Madani com Keller. — Quer que eu mostre as mensagens?
Al-Madani não disse nada. O futuro príncipe rapidamente aproveitou a vantagem.
— Por que fez mal a minha filha, Rafiq? Por que só não me matou?
— Tentei, mas era impossível. Você era protegido demais.
A confissão repentina surpreendeu até Khalid.
— Eu o tratei bem, não?
— Você me tratou como um criado. Fui apenas um meio para manter os ulemás na linha enquanto dava às mulheres direito de dirigir e fazia amizade com os americanos e os judeus.
— Temos que mudar, Rafiq.
— O Islã é a resposta!
— O Islã é o problema, habibi.
— Você é um apóstata. — Al-Madani espumou.
Não havia maior insulto no Islã. Khalid aguentou o ataque com um controle admirável.
— Quem o convenceu a isso, Rafiq?
— Eu agi sozinho.
— Você não é inteligente o bastante para planejar algo assim.
Al-Madani conseguiu dar um sorriso desdenhoso.
— Reema talvez pense diferente.
O golpe foi repentino e duro.
— Ela é a princesa Reema. — O rosto de Khalid estava contorcido de raiva. — E você, Rafiq, não é bom o suficiente nem para lamber a sola dos sapatos dela.
— Ela é herdeira de um apóstata. E se você não abdicar até a meia-noite de amanhã, será um pai sem filha.
Khalid segurou a arma diante dos olhos de al-Madani.
— O que você vai fazer? Me matar?
— Sim.
— E se eu contar? E aí? — respondeu Al-Madani à sua própria pergunta. — Já estou morto.
Khalid apertou o cano no centro da testa de al-Madani.
— Me mate, Vossa Alteza Real. É a única coisa que sabe fazer.
Khalid colocou o dedo no gatilho.
— Não faça isso — falou Gabriel, calmamente.
Khalid olhou por cima do ombro e viu o israelense estudando a tela de seu BlackBerry.
— Localizamos a posição do outro telefone.
— Onde está?
— Numa casa no País Basco Espanhol.
Rafiq al-Madani cuspiu um monte de sangue e muco na direção de Gabriel.
— Judeu!
Gabriel guardou o BlackBerry no bolso.
— Pensando bem — disse —, pode matar, sim.
Depois de quebrar o braço do motorista e deslocar o ombro dele, Mikhail o tinha forçado a entrar no porta-malas da Mercedes S-Class sedan. Agora, com a ajuda de Keller, colocou também Rafiq al-Madani. Khalid olhou com aprovação, a arma na mão.
Virou-se para Gabriel.
— O que devemos fazer com eles?
— Imagino que possamos levar para a Espanha.
— É um caminho longo para fazer no porta-malas de um carro. Talvez devêssemos deixá-los em algum bosque deserto da Alta Saboia.
— Vai ser uma noite longa e fria.
— Quanto mais fria, melhor. — Khalid se aproximou da traseira do carro e olhou para os dois homens apertados no espaço confinado. —
Talvez haja algo que possamos fazer para ficarem um pouco mais confortáveis.
— O quê, por exemplo?
Khalid levantou a arma e esvaziou o pente em seus dois alvos. Então, olhou por cima do ombro para Gabriel e sorriu, sem notar o sangue salpicado em seu rosto.
— Você não achou que eu fosse matá-los dentro de casa, achou? Aquele lugar me custou uma fortuna.
Gabriel estudou os dois corpos rasgados de balas.
— O que vamos fazer com eles agora?
— Não se preocupe. — Khalid fechou o porta-malas. — Eu cuido disso.
28
AUVERGNE–RHÔNE–ALPES
–Para deixar registrado, eu só estava brincando quando falei para matá-
lo.
— Estava? Às vezes, é difícil saber.
Estavam acelerando pela autopista A89 a oeste, o chefe do serviço secreto de inteligência israelense e o futuro rei da Arábia Saudita. Gabriel estava ao volante e Khalid jogado, cansado, no banco do carona. Entre eles o celular de Rafiq al-Madani carregava. Alguns minutos antes, imitando o estilo críptico de al-Madani, Khalid enviara uma atualização aos sequestradores. A mensagem dizia basicamente que Vossa Alteza Real estava desesperada para libertar sua filha e disposta a abdicar. Por enquanto, não havia resposta. Khalid checou o telefone de novo, depois o largou no console.
— Cuidado, Príncipe Esquentadinho. Os telefones quebram.
— O que você acha que está dizendo?
— Provavelmente, que você não deveria ter matado Rafiq antes de ter certeza de que sua filha estava naquele endereço na Espanha.
— Foi você que disse que ela estava lá.
— O que eu disse — respondeu Gabriel — foi que tínhamos localizado o telefone. Eu teria preferido testar essa afirmação com uma testemunha viva e respirando.
— Ele tinha praticamente confirmado.
— Estava com uma arma apontada para a testa.
— Acredito que ele estivesse dizendo a verdade sobre o esconderijo.
Mas o resto era mentira.
— Não acha que ele organizou sozinho?
— Al-Madani é uma pequena engrenagem. Há outros envolvidos numa conspiração contra mim.
— Talvez devêssemos interrogá-lo de novo e descobrir quem são. —
Gabriel olhou pelo retrovisor. Mikhail, Keller e Sarah estavam a alguns metros atrás deles. — O que vai fazer com os corpos?
— Fique tranquilo, os corpos vão desaparecer.
— Livre-se da sua arma, também.
— Não era minha, era de Rafiq.
— Mas está com suas digitais. — Depois de um silêncio, Gabriel completou: — Você não deveria ter matado os dois, Khalid. Com isso, implicou Sarah e eu nos assassinatos.
— Ninguém nunca vai saber.
— Mas você sabe. E pode me chantagear sempre que quiser.
— Não era minha intenção comprometê-lo.
— Dado seu histórico de comportamentos impulsivos, estou inclinado a acreditar.
Khalid olhou de novo para o telefone.
— Foi minha imaginação ou Rafiq não ficou surpreso com sua presença em minha casa?
— Você também notou?
— Alguém certamente disse a ele que você estava envolvido na busca por Reema.
— Algumas centenas de membros da sua corte me viram na Arábia Saudita outro dia.
— Infelizmente, nunca vou a lugar nenhum sozinho.
— Está sozinho agora, Khalid.
— Com você, quem diria. — O sorriso dele foi breve. — Devo dizer, minha conselheira de arte não pareceu chocada com um pouco de sangue.
— Ela não se abala facilmente, não depois do que Zizi al-Bakari fez com ela.
— O que aconteceu, exatamente?
Gabriel decidiu que não havia mal em contar a ele, fazia muito tempo.
— Quando Zizi descobriu que Sarah era uma agente da CIA emprestada ao Escritório, entregou-a a uma célula da al-Qaeda para ser interrogada e executada.
— Mas você conseguiu salvá-la.
— E no processo — disse Gabriel —, evitei uma trama financiada pelos sauditas para assassinar o Papa.
— Você teve uma vida e tanto.
— E o que ganho como recompensa? Não possuo nem um palácio na Alta Saboia.
— Nem o segundo maior superiate do mundo — apontou Khalid.
— Nem um Leonardo.
— Parece que isso eu também não tenho.
— Por que precisa de tudo isso? — perguntou Gabriel.
— Me faz feliz.
— Faz mesmo?
— Nem todos nós somos tão sortudos quanto você. É um homem de dons extraordinários. Não precisa de brinquedos para ser feliz.
— Um ou dois seria bom.
— O que você quer? Dou qualquer coisa.
— Quero vê-lo segurando sua filha de novo.
— Não dá para dirigir mais rápido? — pediu Khalid, impaciente.
— Não, não dá.
— Então, deixe que eu dirija.
— Não nas suas condições.
Khalid olhou para a região campestre escura.
— Acha que ela vai estar lá?
— Sim — falou Gabriel, com mais certeza do que pretendia.
— E se não estiver?
Gabriel ficou em silêncio.
— Sabe o que meu tio Abdullah me disse? Que uma filha pode ser substituída, mas um rei, não.
O ruído do motor encheu o silêncio. Depois de um momento, Gabriel notou que Khalid estava girando um cordão de contas de oração com os dedos da mão esquerda.
— É o de al-Madani?
— Deixei o meu no Dorchester.
— Com certeza há alguma proibição islâmica contra usar as contas de oração de um homem que se acabou de assassinar.
— Não. Não que eu saiba.
O mensageiro estava esperando na fronteira de um campo iluminado pelo luar na comuna de Saint-Sulpice. A mochila esportiva de nylon que ele entregou a Gabriel continha duas submetralhadoras compactas Uzi Pro, um par de Jerichos calibre .45 e uma Beretta M9. Gabriel deu as Uzis e os Jerichos a Mikhail e Keller, e ficou com a pistola.
— Nada para mim? — perguntou Khalid, quando voltaram a se movimentar.
— Você não vai chegar perto daquela casa.
Ao chegar a Bordeaux, o israelense conseguia ver um sol flamejante nascendo em seu retrovisor. Eles seguiram para o sul pelo golfo da Biscaia e cruzaram a fronteira espanhola sem fiscalização de passaportes. O clima estava inconstante, sol dourado numa hora e céu preto e chuva com vento na outra.
— Você passou muito tempo na Espanha? — perguntou Khalid.
— Tive motivos para visitar Sevilha há pouco tempo.
— Antigamente, era uma cidade muçulmana.
— Na velocidade em que as coisas estão indo, talvez volte a ser.
— Já houve judeus em Sevilha também.
— E todos sabemos como terminou.
— Uma das maiores injustiças da história — disse Khalid. — E cinco séculos depois, vocês fizeram o mesmo com os palestinos.
— Quer discutir quantas pessoas os Al Saud mataram e deslocaram para estabelecer controle da Península Arábica?
— Não éramos uma entidade colonial.
— Nem nós.
Estavam se aproximando de San Sebastián, a cidade turística a qual os bascos se referiam como Donóstia. Bilbao era a próxima cidade grande, mas, antes de chegarem lá, Gabriel se dirigiu para o sul, no interior basco.
Num vilarejo chamado Olarra, ele parou no acostamento da estrada por tempo suficiente para Sarah se juntar a eles. Ela entrou no banco de trás, com o cabelo desgrenhado e os olhos pesados de fadiga. Mikhail e Keller viraram numa estrada lateral e desapareceram de vista.
— Eu deveria estar com os seus homens.
— Você ia atrapalhá-los. — Gabriel olhou para Sarah. — Ainda acha que o mundo secreto é mais interessante?
— Tem café no mundo secreto?
Villaro, a cidade que os bascos chamavam de Areatza, ficava a alguns quilômetros ao sul. Não era um destino turístico popular, mas havia vários pequenos hotéis no centro da cidade e um café na praça. Gabriel fez o pedido num espanhol decente.
— Tem algum idioma que você não fale? — perguntou Khalid, quando a garçonete se afastou.
— Russo.
Pela janela do café, Khalid observou a luz mudando na praça e os ventos fortes espalhando jornais pelas arcadas.
— Nunca vi um dia assim. Tão bonito e tão horrível ao mesmo tempo.
Gabriel e Sarah se entreolharam quando três mulheres jovens, os cabelos voando, entraram para se proteger do frio. De leggings rasgadas e piercings no nariz, as mãos, tatuagens, e muitos penduricalhos e pulseiras nos pulsos tilintavam quando elas caíram em três cadeiras de uma mesa perto do bar. Eram conhecidas da garçonete, que comentou que não estavam sóbrias. Estavam no fim do dia, pensou Gabriel, não no início.
— Olhe para elas — disse Khalid, com desprezo. — Parecem bruxas.
Imagino que seja isso que podemos esperar na Arábia Saudita.
— Você queria ter essa sorte.
O iPhone de al-Madani, mudo, estava no centro da mesa, ao lado do BlackBerry de Gabriel. Khalid continuava passando o dedão pelas contas de oração.
— Talvez devesse deixar esse negócio de lado — sugeriu Gabriel.
— É reconfortante.
— Faz você parecer um príncipe saudita que está se perguntando se vai ver a filha de novo.
Khalid colocou as contas no bolso quando o café da manhã chegou.
— Aquelas garotas estão me analisando.
— Provavelmente, acham você atraente.
— Será que sabem quem eu sou?
— Sem chance.
Khalid pegou o iPhone de al-Madani.
— Não entendo por que não responderam.
Nesse momento, a tela do BlackBerry de Gabriel acendeu com uma mensagem.
— O que diz?
— Eles localizaram a casa.
— Quando vão entrar?
Gabriel recolocou o aparelho na mesa, quando uma chuva repentina começou a bater nas pedras do calçamento da praça.
— Agora.
29
AREATZA, ESPANHA
Mikhail tinha estudado uma imagem comum de satélite da casa durante a longa noite de viagem. Vista de cima, era um perfeito quadrado com telhas vermelhas — se de um ou dois andares, ele não conseguia saber — no meio de uma clareira, a que se chegava por uma trilha longa particular.
Vista pelas lentes do binóculo posicionado na proteção do bosque, era um sobrado modesto mas bem cuidado, com venezianas azuis, todas fechadas.
Não havia veículos na entrada nem cheiro de café ou comida no ar frio e escasso da manhã. Um grande pastor-belga, raça temperamental, debatia-se na ponta de sua corrente comprida como um peixe no anzol. Um latido profundo e inconsolado parecia fazer as árvores vibrarem.
— Imagina viver ao lado disso? — comentou Keller.
— Tem gente que não tem modos.
— Por que acha que ele está tão irritado?
— Talvez tenha ouvido falar que Gabriel está na cidade. Você sabe o que os cachorros acham dele.
— Ele não se dá bem com caninos?
Mikhail balançou a cabeça, sério.
— Fogo e gasolina. — O bicho latia sem parar. — Por que ninguém saiu da casa para ver o motivo da confusão?
— Talvez esse diabo lata o tempo todo.
— Ou talvez seja a casa errada.
— Estamos prestes a descobrir.
Keller puxou a trava da Uzi Pro e foi silenciosamente para a clareira, a arma em uma das mãos e Mikhail alguns passos atrás. O cão estava totalmente atento à presença deles, e tão enraivecido que Keller temeu que fosse romper a corrente.
Tinha cerca de dez metros, a corrente, o que dava ao cachorro domínio da porta da frente. Keller foi pelos fundos. Lá também as venezianas estavam fechadas, e uma cortina cobria a janela de vidro reforçado da porta.
Keller colocou um pouco de peso na maçaneta. Porta trancada. Gabriel teria aberto em menos de dez segundos, mas nem Keller, nem Mikhail
tinham a habilidade extraordinária dele com um simples grampo de cabelo. Além do mais, um cotovelo no vidro era muito mais rápido.
O ato em si produziu muito menos som do que ele temia — o craquelado inicial do vidro seguido pelo tilintar dos estilhaços caindo num piso de azulejo. Keller esticou o braço pela moldura vazia, girou a maçaneta e, com Mikhail no seu encalço, irrompeu na casa.
A mensagem chegou ao BlackBerry de Gabriel dois minutos depois. Ele entregou algumas notas na mão da garçonete e correu para a praça com Sarah e Khalid. O Range Rover estava na esquina. O príncipe herdeiro manteve a compostura até estarem dentro do carro com as portas fechadas.
Gabriel tentou dissuadi-lo de ir ver a casa, mas foi inútil; Khalid insistia em ver o lugar onde tinham mantido sua filha. O israelense não o culpava.
Se estivesse na posição de Khalid, também ia querer.
Ouviram o latido irado do cachorro ao chegarem à clareira. Keller estava na entrada de carros, e os acompanhou pela porta dos fundos, por cima do vidro quebrado, descendo um lance de escadas até o porão. Em frente a uma porta de metal, havia um cadeado profissional no chão ao lado de um balde de plástico azul-claro. Khalid engasgou com o cheiro ao entrar na cela.
Era um quarto pequeno com paredes brancas nuas onde mal cabia o catre. Em cima dos lençóis manchados havia uma fotografia instantânea e um caderno. A foto era uma versão diferente daquela que os sequestradores tinham mandado à Embaixada Saudita em Paris. O caderno estava inteiro escrito com a letra cursiva de uma garota de 12 anos. Era sempre a mesma coisa, página após página.
É a morte... Morte, morte, morte...