Biblio VT
As vozes chegavam rapidamente agora aos ouvidos de Armand, malévolas, exultantes, rindo, conspirando. E agora a voz de Douglas Flannery, editor do Clarion de Detroit, que se gabava de ter quatro milhões de leitores não só na área de Detroit como muito além disso:
"Meu jornal ganhou mais de um milhão de leitores durante os últimos seis meses. Isso não lhes significa nada, senhores? Vergastei tudo: do New Deal à Inglaterra, França e Espanha, dos líderes trabalhistas aos comunistas, e orgulho-me do recorde. Enfatizei que precisamos em Washington de homens de negócios, sólidos e conservadores, que coloquem as necessidades da América antes das necessidades marxistas dos radicais europeus. Não tenho receio!" — continuou triunfantemente a voz pomposa e retumbante. — "Sou o único jornal da América que ousa atacar os judeus e os negros; e no caso de alguma insatisfação ou confusão na América — que possa interferir com seus planos, cavalheiros — um pogrom, uma epidemia de linchamentos pode facilmente ser arranjada. Isso distrairá a mente do público. Vejam meus colunistas! Posso dizer que esses rapazes estão fazendo maravilhosamente o seu trabalho. Se Roosevelt tiver a audácia de apresentar-se para um terceiro mandato — o que ele não fará, claro! — nós o demoliremos abertamente.
......
Na escuridão, Armand subitamente pôs as mãos nos ouvidos, e balançou-se desoladamente em sua cadeira. A testa enrugada estava úmida e fria como gelo.
Agora as vozes se tornaram uma confusão no quente silêncio da sala, vozes de conspiração contra a América, contra o mundo, contra toda a humanidade. Vozes de ganância, crueldade, rapacidade e imensa astúcia. Vozes que falavam do rearmamento da Alemanha, dos camaradas conspiradores na Inglaterra e na França, dos conservadores, dos Tories, dos conspiradores nas classes rurais inglesas e na Riviera francesa, de enormes empréstimos a Hitler, do intrincado labirinto de cartéis internacionais que restringiam o armamento da América, e da conversão de sua economia em eficaz produção de guerra, da divisão — sob esses cartéis — da América do Sul entre companhias alemães e americanas, da supressão de competição — sob esses mesmos cartéis — e do monopólio dos mercados da América, da troca de patentes vitais com Hitler, de propaganda através do mundo que serve como apologia para o nazismo e louva as vitórias em países fascistas sobre o trabalhismo e a 'decadência’, de arranjos para embarques de vital material de guerra para Hitler em caso de guerra — através da América do Sul e outros países neutros. As vozes se erguiam como uma tempestade, como um furacão, de modo que o homem doente ouvindo-as, enquanto se balançava desoladamente em sua cadeira, pensou que a própria abóbada celeste ecoava com elas, e as devolvia aos ecos terrestres.
E depois elas desapareceram numa derradeira nota aguda. Mas o ar do mundo vibrou com elas, tremeu como cordas sendo tangidas, que embora silenciosas agora, ainda tremiam com reverberações não ouvidas...
Armand ergueu a cabeça do peito e olhou cegamente à sua volta. Tinha a boca aberta, e arquejava. Sua doença estava a devorá-lo como um tigre.
Os anos de sua vida passavam diante dele, aqueles anos confusos, medrosos e informes, cheios de hesitação e de temor. Tivera tão pequena integridade, que nunca fora suficiente para coisa alguma a não ser provocar nele essa moléstia mortal. Todos aqueles anos, quando poderia ter feito alguma coisa! Ao invés, sua fraca consciência o roera, devorando as células de sua carne, petrificando nele as forças vitais, entregando-o por fim a essa desolação e a esse desespero, essa solidão e desesperança, espanto e tortura...
Não lamentava: apenas sofria. "Que poderia eu haver feito? — murmurava para si mesmo. — "Na realidade, nunca me importa. Por que, então, me sentia atormentado? Por que fugira?"
Levantou-se, e uma lamúria fugiu-lhe dos lábios: "Eu era bom! Odiava tudo isso! Eu era melhor que eles! Eu realmente tinha a capacidade..."
Agora o terror o inundava e ele apertava convulsivamente as mãos gordas e olhava em volta, apavorado.
Nunca soubera o que é patriotismo. Sua única lealdade fora para consigo mesmo, para com sua família. Não podia compreender. Mesmo agora, conscientemente, não sentia temor pela América, nenhuma preocupação pelo mundo. Só estava cônscio do terrível e subjugante temor.
"Eu era realmente um homem bom!" — tornou a gritar, para a sombria escuridão.
E então soube que toda a sua vida desejara ser bom, e simples. Mas fora um covarde. Mesmo esse desejo fora parte de sua covardia. Nunca fora capaz de sobrepujar sua rapacidade e avareza nativas. Viu que fora criminoso ainda maior que Henri, e Christopher, que todo o resto de sua sinistra família.
Nunca tivera fé em coisa alguma. Murmurou: "Deus!" Mas a palavra não lhe significava absolutamente nada. Era um encantamento sem magia. Seu coração palpitava em fortes pancadas, como se estivesse se afogando.
Sentira agora que as salas de sua casa se estavam amontoando em torno dele, as paredes inclinando-se sobre ele como os paredões de um penhasco, que estava a ponto de ser esmagado. Abriu a boca e soluçou. Disse em voz alta, com espanto:
"Minha consciência só tinha medo por mim mesmo, medo de quaisquer possíveis consequências que poderiam desabar sobre mim devido às minhas conspirações e às dos outros."
Aumentou o seu terror mortal. Sentiu a morte dentro de si. Relanceou o olhar em volta como um animal acuado. Quando um ramo de árvore raspou a janela deu um grito e tremeu violentamente.
E então ouviu o distante abrir e fechar de uma porta, os passos de seu filho a subir a grande escadaria de mármore.
Uma onda de suor inundou-lhe o corpo. Correu para a porta da sala, tropeçando, cambaleando. Escancarou a porta, segurou-se ao portal. Gritou e gritou, numa voz que percorreu os corredores como a de um homem torturado:
—Antoine! Antoine! Antoine!
Capítulo 24
Antoine, que acabava de ter a tarde mais deliciosa e intrigante, e estava agora embriagado com agradáveis pensamentos, ficou muito espantado ao ver o pai assim, tão transtornado, todo trêmulo, à porta do seu aposento. Havia algum tempo que Antoine entrara na casa do pai.
A luz do corredor era difusa e suave, o que dava à aparição uma qualidade misteriosa e irreal. Mas o jovem ficou espantado com os olhos, que faiscavam, captando a luz nos globos arregalados. Viu como o pai se agarrava ao portal, como seus joelhos estavam curvados. Viu-lhe o terror esmagador e desvairado, viu a boca aberta e soluçante, e o peito carregado.
Rapidamente se dirigiu a ele, exclamando com inusitada aspereza:
— Mas o que é isso, papai?
Porém Armand não se moveu nem falou. Apenas olhava o filho numa espécie de horror hipnotizado, observou sua aproximação em completo silêncio.
Pensou, angustiado:
"É meu filho. Mas é como meu pai. Nunca vi isto tão claramente antes. É meu pai, olhando para mim, e eu o odeio. Como pode ele ajudar-me? Apenas me destruirá, se eu lhe disser. Rirá no meu rosto. Meu Deus! Não há nada que eu possa dizer ou fazer."
Em seus olhos havia um terror assustador enquanto Antoine continuava a avançar para ele, e embora ele ainda não se movesse, pareceu encolher, minguar.
Antoine, levemente alarmado agora, pegou o braço do pai. Estava rígido como madeira sob a sua mão, e tremia constantemente:
— Que há de errado? Está passando mal? Vamos entrar. Você deve sentar-se.
Armand tropeçou quando o filho o encaminhou de volta à grande sala quente, tão escura. Antoine foi obrigado a ampará-lo. Levou o pai até uma cadeira e com um cuidado incomum fê-lo sentar-se. Acendeu algumas lâmpadas. Armand o observava, encolhido na ponta da cadeira, as mãos trementes cobertas de pelo ruivo, apertadas nos gordos joelhos, a cabeça mergulhada nos ombros. Parecia um velho animal doente, ofegante e aniquilado.
— Devo chamar o Dr. Billingsley? — perguntou Antoine, de pé junto dele e a olhá-lo penetrantemente.
Armand murmurou:
— Não... não... Isto não é nada.
Ergueu as mãos e as pressionou de encontro ao rosto. Suspirou. O som parecia vir de suas entranhas. Quando baixou as mãos, sua expressão era rígida, abstrata.
Antoine hesitou. Puxou uma cadeira para perto do pai e sentou-se. Ainda observando o velho, acendeu um cigarro, levou-o aos lábios com gestos lentos e delicados, e pensativamente soprou a fumaça para o alto. Aquela estreita cabeça morena, tão lisa e pequena, as faces morenas, os cintilantes olhos negros e a boca sutil se imprimiam vividamente na atormentada consciência de Armand, como nunca acontecera ainda. Sim, era o pai que se sentava ali, diante dele, não o filho. Esta era a suave elegância de Jules e sua delicada compostura; e agora, como Antoine sorriu um pouco, era o sorriso de Jules, secreto, levemente divertido, quietamente cruel.
— Deve ter acontecido alguma coisa — comentou Antoine. — Você parecia mal como o diabo ainda há pouco. Que foi que o amedrontou?
"Que foi que me amedrontou? — disse Armand para si mesmo, ainda fitando o filho. E pensou: — Você!"
O desespero o chocava. Por um momento pôs a mão no peito, e tornou a soluçar. Falou:
— É só porque eu estava sozinho.
— Ah! — murmurou Antoine. Seus olhos se estreitaram: "furavam" Armand como pequenos rapinantes negros. Pensou, desdenhosamente:
"O velho idiota! Vagando por este mausoléu como um sujo fantasma gordo. Nunca teve coragem! Que quer ele? Alguma coisa fez com que a vida fugisse de seu corpo..."
Viu que Armand ainda o fitava rigidamente, e algo nesse olhar fixo o pôs momentaneamente pouco à vontade.
— Você se parece com meu pai — disse o velho.
— Já ouvi isso — replicou o filho, sorrindo. — Isso o assusta?
Armand respondeu com súbita calma:
— Sim.
Depois sua rigidez desapareceu, as feições se contorceram, os olhos novamente demonstravam um terror selvagem. Gritou:
— Estou doente! Estou morrendo!
Antoine franziu a testa. A fumaça do seu cigarro lhe flutuava diante do rosto e os olhos luziam através dela, pensativamente:
— Absurdo! — falou, quietamente. — Disse-me Billingsley, na semana passada, que você vai indo esplendidamente. Entretanto, afirmou que você precisa de algum interesse, alguma motivação em sua vida. Você pensa demais em si próprio, caro papai. Nunca teve nenhum hobby, ou qualquer diversão. Está ficando mofado nesta casa. Verde de mofo. Claro, posso ver que está solitário. Que pode esperar? Vive para o chamado de Annette todas as manhãs, depois cai na inércia outra vez. Nunca sai, a não ser para visitá-la, e a família há muito tempo desistiu de convidá-lo: quase invariavelmente você recusa convites. Compreendo que você nem sequer dá um passeio de manhã, como fazia antes. Ficou tão danadamente interessado em sua lista que abandonou mesmo os poucos interesses que tinha outrora. Introspectivo demais. Não devia ter-se retirado tão cedo dos negócios.
Sua voz, sedosa, calmante, embora cheia de macia crueldade jesuítica, prendeu a atenção distraída de Armand. Ele ouvia, não desviando do filho o olhar, esfregando os nós dos dedos no gordo nariz avermelhado ou contra a boca trêmula.
"Aqui existe algo!" — pensou Antoine. Seu instinto brutal estava alerta. Pois notou a súbita vivacidade nos olhos do velho ante suas últimas palavras. Repetiu, observando-o atentamente:
— Não devia ter-se retirado tão cedo dos negócios.
—Não — murmurou Armand. Baixou as mãos outra vez até os joelhos. A cabeça inclinou-se para o peito. Sua voz chegou, ao filho sufocada, quase inaudível:
— Ninguém me conta nada... Nunca sei. Estive ouvindo o rádio. Eles... acreditam que Hitler atacará em breve. A Polônia. Haverá guerra. Estaremos nela...
Antoine se mexeu ligeiramente na cadeira. Abaixou a mão que segurava o cigarro, e ela estava tensa e dura, a fumaça a enroscar-se lentamente.
— Não. Não estaremos nela. Isso o preocupa?
Armand ficou silencioso.
— Então, não precisa preocupar-se — continuou Antoine, sorrindo novamente. — Posso dar-lhe minha garantia pessoal. Você jamais gostou da ideia de guerra, não é? Pois bem, não precisa ter medo nenhum absolutamente. A América não se meterá em nenhuma confusão europeia. "Evitar que nossos rapazes lutem em solo estrangeiro." Este é o nosso slogan. Pela primeira vez na História os Bouchards não estão interessados em guerra para a América.
Armand ergueu a cabeça, e novamente fitou o filho, imóvel:
— Sim, sei disso.
— Então, por que se preocupa?
Porém Armand disse, olhando-o de relance com a mais estranha fixidez:
— Jamais acreditei em alguma coisa. Nunca fomos religiosos, nós os Bouchards. Nunca fomos americanos. Não é muito esquisito... nunca ter sido americanos?
"O idiota em sua senilidade..." — pensou Antoine. Fumou outra vez, para ocultar o sorriso irreprimível.
A voz de Armand era fraca e sem tonalidade quando continuou:
— Escolas francesas. Escolas alemãs. Nunca fomos americanos. Nada temos a fazer com a América, ou para a América.
— Construímos uma vasta rede industrial — disse Antoine, novamente observando o pai atentamente. — De certo modo, ajudamos a desenvolver a América. Estamos em tudo. Isto devia torná-lo orgulhoso! Você costumava ser orgulhoso. Lembro-me disso, quando eu era criança. Aço, mineração, armamentos, produtos químicos, cobre, carros, estradas de ferro, aviação... estamos em tudo! Na verdade, somos americanos, afinal de contas.
Armand desviou dele o olhar e olhou o rádio com silenciosa imobilidade:
— E nisto também, naturalmente.
Antoine franziu a testa:
— Rádio? Provavelmente.
Armand começara a balançar a cabeça lentamente. Isso continuou. Parecia não poder controlar a coisa.
Então um fluxo de palavras saiu de seus lábios ressecados, mas num sussurro tão fraco que Antoine teve de inclinar-se para diante para perceber os sons:
— Conte-me algo a esse respeito. Ninguém nunca me conta coisa alguma. Não sei de nada. Que acontecerá? Se Hitler vencer... o que acontecerá por aqui? E com a América? Que está acontecendo no mundo? Você tem de dizer-me.
Antoine ficou silencioso por alguns momentos. O brilho do terror estava novamente nos olhos de Armand. Começara a socar os joelhos com os punhos cerrados. Antoine deu de ombros:
— Não lê jornais? Você ouve rádio, não ouve, papai? Então, sabe tanto quanto nós. Suponha que Hitler tome o Corredor, tome a Polônia. Isso não é da conta da América. A Europa sempre teve suas malditas brigas. E sempre quis. A Inglaterra pode atacá-la. Não sei. Aliás, não estou muito interessado. No momento, estamos preocupados com a América.
Então notou um maço de jornais ao lado da cadeira do pai, abertos nas páginas financeiras. Riu ligeiramente. Apontou os papéis:
— Isso é que o está preocupando? A Bolsa de Valores? Bem, concordo com você que não vai lá muito bem. Entretanto, estamos esperando uma alta. — Armand nada disse. Antoine continuou, num curioso silêncio: — Naturalmente, você ficaria preocupado. Afinal de contas, ainda possui cinquenta e um por cento das ações Bouchard. Assim, se a Bolsa o tem preocupado, posso garantir-lhe, pessoalmente, que isso não acontecerá por muito tempo mais. — Esperou um momento. Disse, mais rapidamente: — Isso o tem preocupado, não tem? A Bolsa?
— Sim — afirmou Armand. Aumentou a estranheza em seu olhar. — Pensa que o Mercado de ações subirá? Habitualmente cai por algum tempo, após a eclosão de uma guerra. Por que pensa que subirá?
"Ele na verdade não sabe de nada..." — pensou Antoine, sorrindo internamente. Deu de ombros levemente:
— E por que não o faria? Estamos decididos a ganhar dinheiro. É realmente muito simples.
— E a Lei da Neutralidade? — falou Armand outra vez, num sussurro.
Antoine riu:
— Ora, papai! Você não pode ser tão ignorante! Há a América do Sul, e a Holanda, e meia dúzia de outros caminhos.
— Para a Alemanha?
Antoine se calou. Estreitou os olhos:
— Sim. Quem mais? Não haverá nada para a Inglaterra, ou a França, se pudermos evitá-lo.
Armand se afastou mais para a beirada de seu assento. Havia em seu olhar uma apaixonada intensidade:
— Nunca fizemos isso antes. Vendíamos a ambos os beligerantes... Por que a Alemanha agora, e não... os outros?
— Porque — replicou Antoine, lenta e cuidadosamente — queremos que Hitler vença. Pensei que soubesse disso, papai. Hitler é nossa única esperança, em todo o mundo. — Falava como se fala a uma criança estúpida, escolhendo palavras simples: — Temos de livrar-nos da democracia ou do comunismo: querem dizer a mesma coisa. O trabalhismo está ficando fora de controle, sob esse imundo New Deal. Temos de ter uma nova perspectiva, uma nova filosofia, na América. Não apenas negócios, como de hábito. Queremos o negócio de controlar a América totalmente. Conseguiremos isso, também. Com a ajuda de Hitler. — Deu uma palmadinha no joelho do pai: — Depois veja suas ações subir!
— Você quer dizer: fascismo na América? — murmurou Armand.
— Palavra desagradável! — sorriu Antoine. — Digamos, antes, o controle da América por homens de negócios. Por gerentes. Sensato, não? Hitler prometeu nos ajudar: deu-nos sua palavra, pelo que ela vale.
— Como pode ele "ajudá-los"? — a voz de Armand estava mais clara agora, e mais alta.
Antoine hesitou:
— Há meios para isso — replicou, agradavelmente.
Levantou-se. Armand ainda estava sentado. Ao erguer os olhos•para contemplar o filho, estavam muito brilhantes.
E agora odiava Antoine como nunca odiara ninguém, nem mesmo seu pai — para quem tivera um olhar apavorado peculiar sob seu ódio. Estava gelado com seu terror renovado. Apertou as mãos, e um longo tremor lhe tomou o corpo. Pensou: "Tarde demais! Nada posso fazer. Nem sequer sei o que fazer, ou se quero fazê-lo. Tudo está muito confuso. Eu deveria ter-me mantido informado, saber o que estava acontecendo. Ninguém me diz nada, nunca... Não sei de nada."
Antoine estava sorrindo para ele:
— Aconselho-o a sair mais. Annette e eu temos nossos próprios interesses. Já não somos crianças. Ouvi dizer que você recusou o convite de Estelle para jantar no sábado. Por que não reconsidera?
— Farei isso — disse Armand, obedientemente. — Sim, acho que sim.
Quando Antoine se foi, Armand se sentou encolhido em sua poltrona, cabeça inclinada para a frente, e mordendo os lábios. Dentro dele havia uma grande luta. Embora não se movesse por perto de uma hora, sua testa e o crânio calvo estavam úmidos e lustrosos. Finalmente, levantou-se e quase caiu de tão fraco. Tateou em busca do telefone e, embora fosse quase meia-noite, telefonou ao seu advogado e marcou uma entrevista para o dia seguinte, em Nova York.
Capítulo 25
Henri Bouchard estava só, nesse dia quente de agosto, sentado à sua secretária nos grandes escritórios Bouchard. As pesadas portas se achavam fechadas, e ele recomendara à sua secretária que não devia ser incomodado pelo menos durante uma hora. As cortinas cor de bronze haviam sido parcialmente puxadas contra a luz cegante que passava pelas janelas, e havia na sala um silêncio sombrio, quase religioso. Aqui e ali um raio de sol feria alguma peça de metal na escrivaninha.
Henri fumava. Raramente fumava quando só. Era seu único sinal de alguma profunda perturbação íntima. Não se movia, em seu terno cinza-grafite que lhe valera de Antoine o cognome de "Homem de Ferro". Fitava diante de si, imóvel, o rosto largo e pálido. Acendia cigarro após cigarro, mas dificilmente os levava aos lábios: queimavam lentamente entre seus dedos. Por vezes os olhos davam momentaneamente com a pilha de papéis diante dele e ali ficavam por longos momentos, numa espécie de transe sombrio.
De quinze em quinze minutos fazia uma discagem direta para Wall Street, e ouvia cuidadosamente a voz metálica que o informava dos mais recentes acontecimentos na situação europeia. Recolocava o fone — nem um músculo se movia em sua face — acendia outro cigarro e novamente contemplava os papéis.
Um relatório lhe chegara aquela manhã: "O povo americano permanece apático durante esta crise crescente na Europa. Só entre certos grupos existe algum interesse profundo. A opinião de peritos é que a inércia do povo se deve menos ao medo de futuros acontecimentos do que à ignorância e indiferença estáticas. Acredita um perito que a indiferença deve ser atribuída aos passados esforços de pacifistas profissionais e senadores isolacionistas. Outros, mais informados, mais afinados com a mente pública, acreditam que Hitler se tornou tão extraordinariamente popular com o povo americano — com seu antissemitismo, antidemocracia, e desumanidade — que esse povo não se pode levantar contra ele, exceto por ocasião de um ataque direto à América. Sem dúvida, Hitler compreende isto, portanto se absterá de tal ataque, cônscio de que se ele não se der, poderá contar com a apatia do povo americano para não colocar obstáculos em seu caminho de conquista."
Henri sorriu tristemente, ao ler isto. Ainda sorria ao recordar o relatório. Mas o que esperar de uma nação de primeira e segunda gerações de europeus escravos, que deviam sentir-se insondavelmente apreensivos em presença de uma liberdade criada e amada por um punhado de bretões no passado distante e amargo? Como lidaria George Washington com essa nação servil de suínos e escravos? Reconheceria, nesses obstinados rostos teutônicos, nesses miseráveis trigueiros do mediterrâneo, o povo de cujo sangue compartilhou, cuja linguagem falou, e com quem lutara e sofrera? Se pudesse achar-se entre eles hoje, não os desprezaria, compreendendo a ameaça implícita neles para a América e a sobrevivência da América? Roma aprendera a lição mortal — que nunca se deve admitir entre as pessoas livres os filhos de escravos libertos. Os vândalos às portas de Roma não tinham sido os Godos e os Visigodos.
Estranhos pensamentos para Henri Bouchard! Sorria desdenhosamente quando os pensava. Mas não podia dissipar a inquietação que havia nele, o ódio, a aversão e a raiva. Que era a América para ele? Verdade que, exceto pelo leve traço de sangue francês em sua própria corrente sanguínea, ele era da raça e, publicamente, da religião daqueles que haviam fundado a América. Sua herança era britânica. Porém nunca em sua vida sentira uma vibração de patriotismo ou paixão pela América.
Ergueu o maço de papéis, fitou-os, empurrou-os para longe dele. Jay Regan, o financista idoso e moribundo, lhos enviara por mensageiro especial. Disse a si mesmo que a raiva contra os parentes que ousaram conspirar contra ele é o que o perturbava agora. Afinal, seria patriotismo apenas medo ciumento e inveja e ódio ignorante? Finalmente concluiu que devia ser isso mesmo.
Tornou a erguer o fone, e agora a nítida voz metálica estava aguda e sem fôlego de excitação:
— Há um boato de que a Rússia e a Alemanha chegarão muito em breve a um acordo, pelo qual a Rússia não se oporá a qualquer ambição territorial por parte de Hitler, contanto que a própria Rússia não seja atacada!
Rússia! Isso não era impossível, claro! Henri recordou Munique, quando a oferta de assistência da Rússia fora ignorada, quando ela fora excluída da vergonhosa conferência em Berchtesgaden. Isso seria, então, sua vingança, nascida da amargura contra esses hipócritas que falavam de paz, covardes que venderam o tesouro de séculos a um assassino e mentiroso, conspiradores que odiavam seu próprio povo? Henri sorriu subitamente. Sentiu uma severa simpatia pela Rússia. Quando o ataque contra os hipócritas, os covardes e os conspiradores começasse, haveria um justo julgamento deles. Então seu povo guincharia que tinha sido traído, censurando "os industriais e os capitalistas" ou "os políticos", não compreendendo que antes que a morte possa subjugá-los deve a moléstia, primeiro, destruí-los internamente. Quando chegar a hora final, as pessoas, claro, não terão consciência de que a podridão primeiro estivera nelas mesmo — que vivessem em mansões ou na sarjeta — que seu próprio ódio animalesco, ignorância e falta de valores os haviam traído para seus inimigos.
Mesmo os Bouchards, e todos os seus amigos, não poderiam destruir a América se a América não estivesse madura para a destruição. Sementes do mal só podem germinar em solo predisposto ao mal.
Henri se levantou e caminhou pesadamente acima e abaixo. Não era sujeito a qualquer mal-estar do espírito, a nenhuma inquietação. Toda a sua vida soubera o que queria, e o conseguira. Sua mente tinha sido simples e integrada. De modo que não podia compreender seus pensamentos pesados e sombrios. Ouvia as palavras em seu espírito como se fosse a voz de um estranho a quem não podia expulsar. Estava impaciente e perturbado como nunca estivera antes.
Seria medo por si mesmo, ou reação contra parentes que conspiraram contra ele? Ambas as coisas, acreditava.
Houve uma leve pancada na porta, e iradamente ele disse:
— Entre.
Seu secretário entrou se desculpando, e se encolheu ante seu olhar.
— Desculpe, Sr. Bouchard, mas o Sr. Armand Bouchard está aqui e deseja vê-lo. Diz que é muito urgente.
Henri franziu a testa:
— Por favor, diga ao Sr. Bouchard que o Sr. Antoine no momento não está.
Depois se deteve, abruptamente. Que quereria com ele o velho idiota? Não estivera nos escritórios desde que fora fazer o apelo pelo filho. De repente, uma curiosa excitação o animou: seu instinto estava desperto. Sentou-se à sua mesa:
— Por favor, introduza imediatamente o Sr. Bouchard.
Enquanto esperava por Armand, tamborilava na secretária. Que diabo estaria dominando o miserável velho bajulador? Que teria ouvido?
Desprezava Armand, raramente pensava nele, e quando o fazia era com desprezo. Armand estava acabado, velho, destruído por alguma doença crônica — que Henri já havia suspeitado não ser apenas a imensa barriga. Porém ainda era latentemente poderoso. Ele, Henri, conhecia Armand o bastante para acreditar que haveria momentos em que o sogro se lembraria disso.
Agora toda a sua inquietação de há uma ou duas horas, toda a raiva latente e o aborrecimento se concentravam na visão de Armand, e sua intrusão. Sentia-se aborrecido consigo mesmo por tal criancice, mas a fria emoção permaneceu. Mantinha a maior parte dos bônus Bouchard, porém sua posição dominante em Bouchard & Sons era apenas por consentimento de Armand e seus preciosos cinquenta e um por cento. Era uma situação que há muito enraivecia Henri e que estimulava muito de sua cautela, situação que por vezes se tornara quase insustentável para ele.
De modo que, quando Armand já desorganizado, já sacudido de terror até as entranhas, já confuso e doente de corpo e alma, encontrou o olhar glacial de Henri, recuou como se o rapaz o tivesse golpeado com o punho. Seu primeiro impulso foi fugir. Ficou de pé longe da mesa, e realmente tremia, umedecendo os lábios secos e intumescidos, contemplando Henri em total silêncio e desintegração, chapéu na mão como um mendigo.
Henri se levantou lenta e relutantemente. Puxou uma cadeira para o sogro. Que haveria de errado com o velho idiota? Olhava como se tivesse ouvido as notícias mais apavorantes, e estava à beira de um colapso. Então Henri esqueceu sua raiva e frustração: ficou subitamente alerta, pôde até sorrir.
— Bem, isso é muito agradável — disse, em sua voz pesada e sem inflexões, que negava o alegado prazer da visita. — Sente-se, pai. Talvez não saiba que Antoine não está no momento? Gostaria que tivesse telefonado primeiro, para poupar-se o incômodo.
Armand sentou na beira da cadeira. Agora o tremor visível lhe invadia os joelhos, que se batiam nas calças sujas. Tornando a sentar-se, Henri viu o colarinho sujo que pouco mais era que um farrapo manchado em torno do gordo pescoço de Armand. As lapelas de seu casaco estavam salpicadas de caspas. O colete, mal abotoado, deixava escapar um tufo de camisa. A grande cabeça redonda, com suas curtas mechas grisalhas, oscilavam fracamente, como se o velho estivesse com paralisia. Porém seu rosto cor de cera, os negros olhinhos fixos, o incontrolável tremor dos músculos faciais é que chamaram a atenção de Henri. Era evidente que Armand estava doente de medo e desespero. Continuava a tocar a boca com a mão trêmula. Por alguns momentos não pôde falar, mas depois disse, de modo quase inaudível:
— Eu não queria ver Antoine. Vim porque sabia que ele não estava aqui.
— Sim? — falou Henri, em tom macio e calmo. — Bem, há algo que eu possa fazer por você, pai? Está se sentindo mal?
Mudamente, Armand o fitou de olhos esgazeados por longos minutos. Depois seus lábios se moveram num murmúrio:
— Sim. Sim, estou me sentindo muito mal.
Olhou seu chapéu como se nunca o tivesse visto; depois, timidamente, colocou-o na mesa que outrora fora dele. Henri observava todos esses movimentos hesitantes, incertos. Depois, como seus olhos encontrassem os de Armand, ficou chocado e espantado ante o brilhante terror que viu neles, o desespero súbito e esmagador. Levantou-se a meio, depois tornou a sentar-se, num silêncio alerta.
Houve alguma coisa. Disso ele estava certo. Não viu acusações na fisionomia de Armand, nenhum protesto queixoso. Podia ser que houvesse, realmente, uma súplica naqueles olhos atormentados, naquelas gordas mãos incertas, cobertas de pelos ruivos, que se erguiam e tornavam a cair?
— Que há de errado? — perguntou Henri. — Você parece perturbado... Sabe, se puder ajudá-lo, ficarei satisfeitíssimo.
Pensou: "Ele teve um choque..
Percebeu que Armand não sabia o que dizer, que os caóticos e aterrorizados pensamentos em sua mente eram por demais horríveis para falar, para começar ordenadamente. Era um velho animal mortalmente ferido que se sentava ali à sua frente, tentando deter o tremor dos lábios com os dentes amarelos e manchados. E Henri viu que isso não era coisa nova, porém a manifestação de uma vida de temor, de servilismo, de angústia inominável. Estava surpreso. Nunca dera suficiente atenção a Armand para conjeturar a seu respeito, embora a evidência cumulativa que estivera guardada em seu subconsciente agora nitidamente se encaixasse e se revelasse como um padrão visível para ele.
Sua surpresa aumentou e, com ela, uma cínica compaixão por Armand, tão atormentado, tão aniquilado, tão confuso e torturado.
Estudava-o com curiosidade alerta e crescente. Viu que Armand, por sua vez fixara nele os olhos com súbita penetração e apaixonada avidez, e que ele se endireitava em sua cadeira como se esse negócio fosse tão urgente que ele dificilmente pudesse forçá-lo nos limites ordenados de meras palavras.
As palavras brotaram dele em gaguejante e discordante confusão: inclinou-se para Henri, pondo as duas mãos na secretária e pressionando-as tanto que as veias saltavam:
— Existem tantas coisas de que me lembrei ultimamente!
E agora falou em francês, que o pai insistira que aprendesse, embora os demais Bouchards rissem disso, achando uma afetação. Henri tinha de ouvir atentamente para compreender. Por que tensão devia estar passando esse miserável velho que o levava, em seu frenesi, a inconscientemente usar a linguagem da sua infância?
As mãos de Armand se moviam no ar em fortes sacudidelas, como para garantir inteira compreensão para suas palavras incoerentes. Os olhos estavam brilhantes e febris, e à medida que expressava cada palavra ele a enfatizava como faz o gago nos sons que não pode controlar:
Todas as coisas... durante anos, que posso lembrar, Henri! Meu pai. Jules. Era um homem terrível! Sempre conheci o terror. Ele me aterrorizava muito.
Embora ouvisse com forte interesse, Henri observou que esse idioma, fluindo dos trêmulos lábios de Armand, não estava enferrujado, como seria de esperar de alguém que não o usara por muitos anos, mas sim forte e naturalmente modulado, embora rouco com inflexões rústicas como se a própria carne de Armand recordasse o sangue antigo. Esses eram, também, antigos gestos rústicos, e mesmo em seu rosto apareceu uma máscara sutil, áspera, enérgica.
Agora as palavras vinham mais depressa, de modo que Henri perdeu muitas:
— Veja você, Henri, isto sempre foi muito embaraçoso para mim. Nunca me dei conta, até recentemente. Mas eu devia ter sabido. Havia algo em mim que se revoltava. — Bateu no peito firmemente, embora os olhos nunca abandonassem os de Henri. — Eu não tinha palavras para a coisa. Ficava estúpido. Sem palavras. Mas ia crescendo algo em meu coração. Eles apenas riam. Talvez vissem tudo em meu rosto. E, para eles, era muito ridículo. Compreende? Bem, não havia nada que eu pudesse fazer, nem mesmo por mim próprio. Não podia entender isso: era tão excessivamente absurdo... Acha que é absurdo, meu filho?
Alguma coisa fez com que Henri dissesse rapidamente:
— Não, não acho absurdo. — Falou em inglês e uma curiosa agitação passou pelo rosto de Armand por um instante.
Ele continuou:
— Não compreendo mesmo agora. Só sei que estou doente. A agulha... não me ajuda. Como posso dizer isto ao doutor? Ele não pode entender. Ninguém sabe. Mas está aqui. E agora sei que me matará.
Ficou silencioso. Mas as mãos que pressionavam a mesa polida espalhavam uma aura em tomo delas como de suor. Curvou-se ainda mais perto de Henri e buscou-lhe o rosto com aqueles olhos assustados e patéticos.
Henri o olhou pensativamente, recostou-se na poltrona, e nada disse. A que ponto chegara, nesse corpo gordo e volumoso, essa alma torturada, que devia pedir socorro mesmo a um homem como ele... — pensou Henri. Jamais houvera muita amizade entre Armand e o homem que desposara sua filha, nunca qualquer confiança, simpatia ou benevolência. De fato, Henri não se lembrava de nada disso entre Armand e outro ser humano, exceto Annette. A mesquinha e irritadiça mulherzinha de Armand, seus brutais irmãos, o pai sutil e pervertido, a mãe infeliz: entre todos, ele nunca tivera um amigo ou confidente. Vivera sozinho nesse corpo — desajeitado e pesadão mesmo na juventude; e se jamais desejou ter comunicação com alguém, nunca deu sinais disso.
"Dia, infernal!" — pensou Henri, inquieto, relembrando os pensamentos que haviam precedido a chegada de Armand. E agora esse velho idiota ali sentado diante dele aumentava seu incompreensível mal-estar!
Disse, com entorpecida piedade, e escolhendo seu caminho com cuidado através de seu pedregoso francês:
— Alguma coisa o está perturbando. Se puder ajudá-lo, eu o farei. De que se trata? Disse que "se rebelou". Não vou fingir que o compreendi totalmente. Disse-me o bastante para indicar-me que sua consciência o faz sofrer. — Apertou fortemente os lábios para evitar sorrir ante a ridícula palavra.
Armand o fitou, depois lentamente ergueu a mão e esfregou a boca com força. Murmurou:
— Minha consciência... Será que algum dia tive uma consciência?
Tomou uma respiração profunda, e falou com longos intervalos entre as palavras, como se se tivesse tornado uma questão de terrível importância para ele que Henri pudesse compreender:
— Veja, tudo é tão confuso... Uma ou duas vezes pensei: "Não posso continuar fazendo essas coisas, conspirando. Mas continuei. Por quê? Porque eu era ganancioso. Eu era fraco. Tinha medo de parecer ridículo. Por vezes Christopher suspeitou. Ele me olhava com aqueles olhos maldosos e espertos. Eu não podia suportar suas suspeitas.
Parou, depois perguntou:
— Haverá guerra, Henri?
Henri ficou silencioso um momento, depois replicou judiciosamente:
— Não sou profeta, pai. Como posso dizer? Mas sou firmemente contra a guerra. Pela primeira vez os Bouchards não querem guerra.
Armand acenou com a cabeça, e sorriu tristemente:
— Sim, eu sei. Isso é o que me parece tão terrível. Você compreende?
Henri ficou de olhos arregalados, franziu a testa: "Então, ele compreendeu! O velho idiota não é inteiramente idiota. Sorriu:
— Sim, compreendo.
Olharam-se, num longo silêncio, e então uma onda de estranha simpatia passou entre eles. Henri estava cônscio de uma crescente excitação em si mesmo.
Armand contemplou seus dedos trêmulos. Falou, com hesitação:
— Há muito tempo, esperei que você fosse meu filho. Sabe, não tenho filho.
— Não tem filho... — repetiu Henri. E nada mais disse. Olhou dentro dos olhos de Armand, tão brilhantes, trágicos e perturbados.
— Antoine é realmente como meu pai. Ninguém pode ser pai de um Jules, Henri. Sinto um medo terrível! Antoine vai desposar a filha de Andrew Boland.
Então Henri esqueceu tudo, em seu espanto e apreensão:
— O demônio! Você quer dizer Mary Boland?
Então Antoine "se arrumara", pegando a filha daquela piedosa serpente velha, Boland, "Rei do Alumínio", e proprietário de um dos maiores monopólios de petróleo do mundo!
Armand viu a perturbação de Henri e acenou sombriamente:
— Você vê como é. Devemos mexer-nos muito depressa, não é?
Henri nada disse. Mas ao olhar para Armand, sua excitação aumentou e ele sentiu o coração palpitar mais rápido.
Armand deu a impressão de chegar mais perto do rapaz. Agora suas palavras vinham numa arremetida confusa:
— Lembro-me de muitas coisas a seu respeito, também, Henri. Você não é um homem bom, não é mesmo? Você é rapace e desapiedado... como os outros Bouchards. Faria qualquer coisa por poder e lucros. Mas não o estou condenando. Como poderia? Você, pelo menos, nunca teve consciência, de modo que nada se poderia esperar de você.
"Lembro-me das lendas do velho Ernest Barbour, seu bisavô. Ele nunca foi realmente cruel, sutil ou depravado. Isso porque nunca teve o menor laivo de consciência. Era uma força. Uma força natural. Não se pode censurar uma geleira ou um vulcão. Não adianta nada. Por vezes, pode ser admirado. Você é assim, Henri.
"Eu não compreendia isso completamente até que ouvi sua conversa com meu irmão, Christopher, quando você o advertia da conspiração dele com os alemães. Então recordei outras coisas, também. Formavam um todo. Diga-me, Henri, o que deseja, o que pretende fazer na América.
Henri não falou por vários momentos, embora estudasse Armand atentamente, com aqueles olhos descorados e inexoráveis. Soube que devia avançar cautelosamente.
Começou a falar com pesada lentidão:
— Pensei que soubesse. Não é que eu tenha sofrido uma mudança em meu coração — e sorriu. — Penso no que é melhor para a América, porque o melhor para a América é realmente melhor para nós. As coisas mudaram. Afinal de contas, o mundo pertence ao povo que o habita, e não a uns poucos escolhidos... nem mesmo aos Bouchards. Quando homens fortes devoram tudo, matam de fome os mais fracos que preparam o alimento para eles.
"A guerra que está a caminho foi trazida pela ganância de industriais e banqueiros para perpetuar o status quo. E esta guerra pode bem ser a arma que destruirá o sistema que eles laboriosamente construíram pela manipulação de tudo que possa ser explorado. Ora, acredito que todo homem, mesmo um Bouchard, pode operar melhor um sistema tal como o nosso: democracia capitalista. Ele só pode ser salvo, no futuro, por métodos evoluídos para dar ao povo tanto quanto possível, parando de imediato de destruir o capital que trabalha. Depois da guerra, indubitavelmente, teremos mercados novamente criados no mundo. "Produção para uso!" Devemos inaugurar um mais alto padrão de vida em todo o mundo, não apenas na América. Isso aumentará firmemente os mercados para produtos de tempo de paz, e será a maior força contra guerras futuras.
"Nossos parentes não concordam comigo. São uns loucos completos. Veem-se a si mesmos como uma família de poderosos Hitlers, operando na América. Não se dão conta de que a tirania devora-se a si mesma, ao fim de tudo. Não compreendem o povo em absoluto. Querem lutar até a morte pelo status quo, com seus aliados europeus. Seu maior sonho é reduzir o mundo novamente ao medievalismo, apoiado por um Estado inerte e uma Igreja exuberante. Não se apercebem do quanto são ridículos. Agora o mundo está cheio de uma diferente geração de homens.
Armand ouvira com a mais penosa atenção. Uma ou duas vezes acenara avidamente. Relaxara o suficiente para ser capaz de voltar a sentar em sua cadeira.
— E Antoine? — falou, agora em inglês, como se tivesse afastando alguma tensão insuportável. — Não concorda com você? Conspira contra você?
Henri ficou surpreso. Franziu a testa e nada disse. Como, diabos, esse velho idiota podia ter sabido disso, absorto como sempre andava naquela lista infernal?
— Sei tudo a esse respeito, embora ninguém me tenha dito nada — continuou Armand. — Sim, ele é realmente meu pai. Posso ver isso.
Seu rosto estava com melhor cor, e mais firme e resoluto:
— Eu conhecia seu pensamento, Henri. Por isso vim aqui esta manhã. Sabe, ontem eu estava em Nova York, com meus advogados. — Tirou de um dos bolsos um papel dobrado. Suas mãos já não tremiam. Por essa hora, foi novamente o velho Armand, hesitante, mas sólido, desajeitado, porém prático. Olhou o papel e disse:
— Fiz um novo testamento. Mas ninguém saberá disso, a não ser você, eu mesmo e os meus advogados. Criei um fundo fiduciário com os meus cinquenta e um por cento de ações Bouchard, para você e minha pequena Annette. Eu cobrarei a renda durante toda a minha vida, mas estou lhe dando poder de procurador para votar como lhe parecer melhor em qualquer ocasião. Depois da minha morte, as ações e a renda lhe pertencerão em conjunto. Eventualmente passarão para o sobrevivente, claro.
Olhou para Henri com um sorriso profundo. Henri ficara singularmente pálido. Sentou-se, imóvel como granito.
— Quanto a Antoine, meu filho, deixo-lhe apenas minhas participações menores em outras corporações. Ele não terá nada a ver com Bouchard. Esse é o perigo que eliminei.
— Deixe-me pensar sobre isso por um momento — disse Henri, numa voz curiosamente abafada. — O fundo já foi realmente criado? E agora tenho poderes de procurador?
Levantou-se e começou a andar acima e abaixo. As narinas do seu curto e potente nariz se haviam dilatado, porque respirar se tornara difícil. A exultação tomou conta dele e o encheu como um gás brilhante e em expansão, ameaçando queimá-lo internamento. Não podia acreditar! Ergueu a cabeça e cerrou os punhos. Agora, tinha tudo, e não meramente pelos favores de Armand Bouchard. Seu poder fora o indolente Armand, apenas. Agora era dele mesmo!
Parou junto à cadeira de Armand e contemplou o vulto gordo ali esparramado. O rosto de Armand estava erguido. Tinha uma expressão de completa paz e de contentamento. Os olhos estavam fechados. Henri, que estivera a pique de falar, ficou silencioso. Lenta e pensativamente mordeu o dedo indicador.
Capítulo 26
O livro de Peter ia-se desenvolvendo com rapidez febril e grande facilidade. Ele era como um homem que trabalha rápida e ansiosamente durante o espaço de tempo em que o céu escurece e ele relanceia o olhar por sobre o ombro às primeiras ameaças do trovão e aos primeiros coriscos vermelhos do raio. Apesar de sua razão, que lhe dizia que os homens raramente ponderam, e quase nunca entendem, ele possuía essa fé intoxicante do autor-cruzado de que a palavra impressa podia desviar a fúria e acalmar as paixões ignorantes da raça humana. Só quando escrevia assim acreditava, mesmo que por um momento, que a pena era mais poderosa que a espada. Não foram os panfletos de Voltaire que destruíram os opressores da França? Não foi sua palavra que derrubou o trono dourado e instituiu a guilhotina nas praças? Atrás do clamor de suas frases apaixonadas veio o ruído surdo das carroças, e todo um continente despertou de sua dormente letargia ao ardente toque de clarim de sua alma.
Então Peter experimentou um desespero insondável. Uma nação encantada por beisebol e histórias em quadrinhos, por prostitutas pintadas de Hollywood, e automóveis, possivelmente não poderia sentir a antiga e mística ânsia por um ideal. Uma nação assim é, por natureza, tímida e conservadora, desconfiada e embotada, facilmente odiando o fraco, facilmente submissa ao forte. Talvez só entre os filhos da Nova Inglaterra e entre a decadente aristocracia dos estados sulinos poderia ser encontrado um homem de características e mente similares às dos mais nobres avoengos.
Se pudessem ser despertados e sacudidos homens assim (e quão poucos haveria na América!), o que poderiam fazer? Pela primeira vez em sua vida Peter teve dúvidas da democracia, onde a voz do boi é tão importante como a voz do sábio. Ele poderia despertar cem mil homens esclarecidos para o terrível perigo que estava explodindo como um furacão nos telhados do mundo. Eles poderiam erguer-se, gritando bem alto. Que poderiam fazer numa nação de cento e trinta milhões de tolos e ignorantes que bocejariam sem compreensão ante os rostos sérios e graves, e ouviriam estupidamente os gritos de advertência? Não tinha ilusões de que esses poucos homens possuíssem qualquer poder considerável na América, na política e em lugares públicos. A própria democracia americana desconfiava da capacidade e da aristocracia mental, era hostil à superioridade; e colocava no poder apenas aqueles grandes charlatães, aqueles palhaços presumidos, aquelas mentes ardilosas e inferiores que mais se parecessem com a maioria do povo.
Durante toda a sua vida adulta Peter antipatizara com a política da Igreja Romana, que aparentemente mantivera milhões em servidão mental, e elevara apenas alguns (nos países em que era poderosa) a posições de poder e autoridade. Agora começava a cogitar se a Igreja não era dotada de uma sabedoria sutil e antiga, e se não teria compreendido totalmente que a maioria dos homens ainda está na aurora da civilização.
Porém fascismo não era a resposta à ignorância animalesca e confusa que parecia parte tão integral da democracia. Nem era válida e adequada, ou mesmo inteligente, a apaixonada afirmativa de tolos idealistas de que os homens precisavam apenas de "educação" livresca para fazê-los caminhar em suas pernas traseiras. Então, qual a resposta? Como poderia ser encontrado um caminho para que homens superiores, de integridade, compaixão, pureza de mente e coração, com sutileza e capacidade, fossem eleitos para encher as poderosas salas do Congresso e os assentos de autoridade? O maior obstáculo era que a tais homens faltava a ostentação teatral, o baixo tonitruante, aquela ágil bufonaria, a barulheira barata e colorida tão amada pelas massas.
A tais pensamentos, a caneta de Peter se tornou tão pesada em seus dedos finos que caiu na mesa, e ele ficou a olhar no vácuo durante muito tempo. A impotência lhe paralisou todos os músculos. Realmente, não havia solução... Muitos homens brilhantes haviam confessado isso, com tristeza. Sua advertência de perigo só seria atendida por aqueles que já conhecessem o perigo. E eles, também, seriam impotentes.
Falou a Celeste sobre seus pensamentos. Ela o ouviu gravemente, mudamente. Depois um dia lhe disse: "Você só pode fazer o que pode. E se cada homem inteligente fizesse o que pudesse, isso seria de valor, fosse ele um escrevente de cartório ou um filósofo de uma grande universidade, um simples político, ou um industrial solitário. É sua tarefa, Peter, fazê-los ver esse valor, e como, no total, podem ter considerável potência. Mesmo as minorias podem ter alguma força."
O egotismo de Peter como autor, a ânsia de poder que espreita mesmo no homem mais abnegado, seu desespero e sentimento de inaptidão não se sentiam confortados com essa observação. Porém era tudo que podia fazer. Talvez as imponderabilidades da sorte pudessem agir suficientemente para colocar uns poucos homens dispersos em posições de autoridade e poder. Era sua única esperança. Recordou que alguns senadores e deputados, alguns políticos, já estavam tão cônscios quanto ele do negro perigo, e embora fossem atacados como "provocadores de guerras, internacionalistas e intervencionistas", pela imprensa vendida e pelos astuciosos inimigos do povo, não poderiam ser silenciados. Deveria mostrar-lhes o caminho, deveria encorajá-los e animá-los.
Continuou a escrever.
Em sua preocupação, estava apenas vagamente — e irritadamente — cônscio de que Celeste se estava tornando excessivamente pálida, silenciosa e abstrata. Ele era de natureza gregária, mas subitamente tinha consciência de que ele e a esposa raramente aceitavam convites, nunca tomavam pequenas férias, ou tinham quaisquer outras diversões. Lembrou-se, também, de que enquanto ele e Celeste tinham morado com Annette e Henri, Celeste estava quase sempre ausente e atendendo a algum compromisso. Agora vivia isolada com ele nessa horrível Endur.
Foi assim que numa quente manhã de agosto Peter sentiu que a vida se tornara, de repente, agudamente insuportável. Ouvira, durante horas, a excitada e sinistra corrente de vozes que vinham do rádio, estalando com boatos, com relatórios da reunião de divisões germânicas perto da fronteira polonesa, com as pomposas declarações das "autoridades" americanas, e os medrosos murmúrios dos covardes. Completa e esmagadora sensação de desânimo, de seca exaustão, de aversão e nojo o subjugavam e entorpeciam, tornando-o incapaz de pensar, e despertando nele um desejo apaixonadamente voraz de algum refrigério, de um pouco de alegria e liberação. Voltaram-lhe todas as dores vagas e as prostrações de sua doença, e, embora não o reconhecesse como isso, o último desesperado desejo de viver o atormentava.
Vestiu-se com dedos trêmulos, cônscio de sua insuportável premência, de sua ânsia de fuga. Quando Celeste, como de costume, trouxe sua bandeja com o desjejum, ficou surpresa ao encontrá-lo vestido e de pé junto à janela, contemplando as brilhantes extensões de gramados. Os altos choupos de Endur se inclinavam como plumas gigantes ao vento quente do verão, ondulando e alvejando e agitando-se. Ele fechou os olhos por um momento e se voltou para a esposa.
— Não — disse, irritadamente — não estou assim tão inválido! — E acrescentou, mas gentilmente: — Vou descer com você, querida. Não posso escrever hoje. Na verdade, poderia dizer: não posso escrever. — Tentou sorrir.
Celeste nada disse. Depositou a bandeja na mesinha-de-cabeceira, depois endireitou-se e estudou Peter. Ele estava agora tão magro que sua carne parecia translúcida e frágil. Ela reprimiu a pancada em seu coração, e voltou a sorrir.
— Muito bem! Tem trabalhado demais, querido. Francamente, estou cansada de comer sozinha. Descemos agora?
A irritação dele continuou a aumentar durante a refeição, que lhe sabia mal. Empurrou a xícara de café e disse, com o vago calor e a aflição que distinguem os nervosos:
— Que tem feito, Celeste? Nunca vamos a parte alguma. Ninguém vem visitar-nos. Seremos párias? Sei que nunca fomos os queridinhos da família, mas por Deus! Ainda podemos pagar nossas despesas... Não somos mendigos, meu bem. Não somos parentes pobres. Nunca amei a família, sei, mas por que esse espesso silêncio?
Lentamente Celeste depositou sua xícara de café. Um olhar ansioso e reservado lhe veio ao rosto. Relanceou um olhar pela saleta de almoço, tão rígida, tão reluzente de vidros e peças cromadas, tão vaziamente estéril, e estremeceu um pouco. Falou, sem olhar para Peter:
— Não sei. Pensei que você queria tranquilidade para trabalhar.
— Não quero estar calado como algum maldito eunuco monástico! — gritou Peter, com invulgar irascibilidade. Ela viu como a mão dele estava magra, pois estava na mesa, ossos e veias bem visíveis. — Olhe, desculpe-me, querida. Creio que é minha culpa, também. Então, devo ficar tranquilo, não? O autor sério e severo afastado do mundo enquanto escreve sua importante farolagem, destinada a mudar a face do mundo! Que importa que eu escreva ou não? Quem se importa? Sentimentalismo egotista acreditar que algo tem importância, num tempo como este, a não ser iniquidade, desumanidade e ganância. Aqui fico eu, como uma infernal "Lady de Shalott", fiando minhas teias idiotas... — Deteve-se abruptamente, pois Celeste o fitava com uma expressão estranha. — Que aconteceu, Celeste?
— Nada — ela replicou, após um momento. — Acabo de lembrar que você me disse que o Sr. Hawkins tinha uma alta opinião sobre o que você escrevera. Não parecia achar que fosse farolagem, não é?
— Diabos! Não estou interessado no que alguém pense! — ele exclamou, com crescente exasperação. — Espere até que ele veja o último lote de manuscritos. Apertará o nariz e mandará tudo para o incinerador. Com todo o maldito egotismo, acreditar...
Celeste estava calada. De olhos baixos. Sentava-se ereta. Ele sentiu aborrecimento de si mesmo por magoá-la, mas perversamente sua irritação se fortaleceu:
— Sim, é minha culpa. Dei-lhe uma ideia errônea. Você ainda é jovem, querida, e senta-se aí, dia após dia, como uma discípula aos pés de algum miserável pequeno messias. E, claro, nunca pensou que eu poderia desejar alguma mudança. Quantas semanas temos estado encerrados nesta prisão metálica? Sem ver uma alma sequer?
Celeste o olhava quietamente:
— Que gostaria de fazer, Peter? Devemos oferecer um jantar? E quem gostaria de convidar? Para dizer a verdade, estou muito contente que você tenha voltado à vida! É sinal de que sua saúde está voltando.
— Não importa quem, minha querida. Dois ou três da família. Meu irmão Francis, talvez, e sua rústica Estelle. Mas não meu irmão Jean. Esse cogumelo venenoso... Christopher e Edith já voltaram para a Flórida? Ele é o seu irmão querido, de modo que suponho que gostaria de convidá-lo. Está agora em Nova York? Bem, é um alívio! Poderia convidar Annette e Henri, embora eu possa suportar muito bem se ele não puder vir. Mas sou louco por Annette. Sei que vocês duas eram muito amigas. Está afastada de nós, também?
— Annette tem telefonado quase todos os dias, mas pensei...
— Sim, eu sei. O grande transformador-da-face-do-mundo não deve ser perturbado em seu labor de fazedor de história. Assim, Henri e Annette devem ser convidados. Olhe, você não tem amigos fora do círculo da família?
— Alguns. — Celeste começou a contar nos dedos. — Acho que seria agradável um jantar pequeno. É mais apropriado, penso. Não gosto de jantares formais. — Seus gestos e voz eram sem vida, demasiado quietos. — Que tal uma semana a partir do sábado à noite?
— Perto de duas semanas! E nesse ínterim, claro, continuaremos estagnados! Não posso escrever, estou-lhe dizendo! Estou morto por dentro. Não quero seu consolo e sua inspiração, Celeste. Hoje não, obrigado. — Seu olhar e suas maneiras eram frenéticos, e ela viu, alarmada, que ele estava desvairadamente atemorizado, com medo de alguma coisa. — Não pode fazer mais cedo esse jantar?
— Tentarei.
Sua ansiedade aumentava. Cogitava se devia chamar o médico. Se o fizesse, ele não deveria sabê-lo, no seu estado atual.
— Será que seria altamente impróprio se você telefonasse a alguém e sugerisse que apreciaríamos um convite para jantar dentro de uma ou duas noites, ou talvez para hoje à noite?
Ela nunca o ouvira dirigir-lhe sarcasmo tão cru, e seu medo se avivou.
— Primeiro, você sabe, Peter, que todos lhe julgam de luto. E Armand e Christopher também, e outros membros da família. Mas não se importe: podemos ter jantarezinhos calmos. Gostaria de sair para um passeio de carro esta manhã?
Ele concordou, com súbita avidez. Celeste suspirou. Foi trazido um carro, e ela e Peter foram conduzidos pelas quentes campinas da região rural. A aragem parecia um sopro vindo das regiões infernais. Passaram campos emurchecidos, as espigas a brilhar ao sol, prados onde o gado modorrava. Embora Peter estivesse firme, olhando pelas janelas que rapidamente ficavam empoeiradas, ela lhe sentiu a dolorosa excitação e a exaustão. Porém mais tarde, nessa tarde, ele não conseguiu descansar em seu quarto sombreado.
Ele estava a ponto de erguer-se do leito quente quando Celeste entrou, maciamente. As cortinas do quarto estavam corridas, setas e lascas de fogo dourado dardejavam através das ripas das venezianas. Porém mesmo nessa quente escuridão ele podia sentir nela uma rigidez, uma tensão estranha.
— Está acordado, querido? Annette e Henri passaram aqui, para convidar-nos pessoalmente para jantar amanhã. Devo dizer-lhes que você está cansado demais para recebê-los agora?
— Não! — ele gritou, com violência alarmante. — Em nome de Deus, Celeste! Vou vestir-me e estarei lá embaixo em um ou dois minutos. — Levantou-se e esqueceu a peculiaridade da aparência e as maneiras de Celeste. Ela saiu do quarto, em silêncio.
Mas achou-se invulgarmente fraco quando desceu a escadaria para as salas embaixo. Foi obrigado a parar a meio caminho. O grande vestíbulo embaixo — branco e cinza e prata — parecia um vácuo quente diante de seus olhos, e a crua luz solar, sem sombras, que o enchia todo lhe feria a visão. Sua mão úmida escorregou na balaustrada de cromo, e cambaleou. Recorreu a toda a sua força de vontade para manter-se consciente. Sentiu uma náusea aguda à vista daquele desolado esplendor espelhante.
Ao entrar no amplo salão, a náusea o pegou mais forte, e ele odiou todo objeto inanimado que seus olhos encontraram. Também aqui tudo era branco e cinza e cores pastel e cromo e prata polida — do pálido capacho à cegante palidez das paredes, das redondas mesas de vidro aos divãs azuis-claros e às cadeiras coral e nos imóveis espelhos sem moldura. Como puderam, ele e Celeste, aguentar aquelas semanas dentro daquela casa apavorante? Nem uma flor, sequer, nos jarros retorcidos de vidro e prata, aquelas monstruosidades empoleiradas nas mesas. Desviou o olhar para Annette e Henri, à sua espera. Dificilmente avistou Celeste a distância, sentada numa cadeirinha azul, as mãos no colo. Por alguns minutos não ouviu vozes. Porém quando ele entrou, Henri se levantou, sorrindo, tão firme, calmo e imperturbável como sempre.
— Alô! — disse. — Pensamos em vir sem nos anunciarmos, para que você não pudesse esconder-se de nós. Como vai? Parece muito melhor.
Sua voz era cordial e amigável, os olhos descorados pensativos e penetrantes. Apertaram-se as mãos, e Peter, aliviado do horror da casa sem uma presença humana, estava recobrando seu sorriso com grande prazer.
Achou delicioso ver mesmo Henri, apesar do que sabia, a despeito dos anos de ódio violento e inimizade entre eles. Ele estava como um homem que viveu por muito tempo num deserto onde o silêncio só era quebrado pelo grito de alguma ave predatória e o rumor do vento e que, por fim, ouve uma voz humana e fica dominado pela alegria — embora essa voz já o tenha revoltado, outrora. Virou-se para Annette e pegou-lhe a mão pequenina e macia. Olharam-se com profunda ternura, os olhos azuis grandes e parecidos, brilhantes e móveis. "A querida e gentil criaturinha — ele pensou — tão ingênua, boa e compreensiva!" Seu fino vestido azul fazia quase vívido o pequeno rosto triangular, e se lhe refletia nos olhos. As mechas do fino cabelo, brilhante, encaracolavam-se em torno de um chapeuzinho branco do feitio de um solidéu. Sua aparência era ao mesmo tempo indefesa e forte, doce, porém firme, inteligente embora inocente. Ela lhe apertou a mão, respondeu gentilmente às perguntas sobre sua saúde, e indagou a respeito da de Peter.
— Oh!, vou indo esplendidamente! — ele replicou, com ânimo invulgar, de animação quase febril. — Celeste pode dizer-lhe que minha tosse praticamente foi-se. Parece que o trabalho me faz bem.
Henri sorriu para si mesmo. Deu uma olhada em Celeste, pelo canto do olho. Porém ela ali estava sentada em algum sonho petrificado e abstrato, olhando fixo para diante, os lábios muito descorados. Parecia nada ouvir.
— Estamos tão interessados em sua nova e linda casa em Placid Heights... — disse Annette, sorrindo radiante para Peter quando ele se sentou ao seu lado. — Esteve lá por estes dias, para ver o andamento do trabalho?
Peter respondeu que não, por estar muito ocupado. Mas sabia que Celeste ia lá frequentemente. A isso, Celeste se agitou, ergueu a cabeça morosamente, e virou o rosto para ele como se tivesse ouvido mal. Disse:
— Estive lá há uma semana. Esperamos que esteja pronta pelo Natal.
Annette brilhava de entusiasmo! Olhou travessamente para o marido e exclamou:
— Vocês vão achar-nos intrometidos, ou curiosos, claro, mas Henri e eu temos estado lá com frequência, e Henri tem sido severo com os operários e com o arquiteto. Havia algo a respeito das calhas de cobre.
— Tem-se de vigiar esse pessoal — observou Henri. — É uma boa planta, Peter. Simples, apropriada e não muito grande. Estamos ansiosos pelo convite para a festa da cumieira.
— A vista é deliciosa — falou Annette, chegando para a beira -da cadeira, animadamente. — Todas aquelas montanhas em volta, e o vale, e a ondulada região campestre... Será maravilhoso ali no outono! Invejo vocês... Não que eu não goste de Robin’s Nest, claro — e olhou Henri com tocante adoração — mas casas novas sempre me põem muito animada.
Celeste deu ordens para o chá, depois recaiu em seu silêncio profundo. Parecia literalmente incapaz de mover-se sem um esforço terrível. Uma madeixa de seu brilhante cabelo negro caía sobre a testa petrificada e alva, e outro anel lhe acariciava a face pálida. Os ombros estavam curvados, todo o seu corpo parecia à beira de um colapso.
Henri e Peter conversavam agradavelmente, mas Henri estava agudamente cônscio da proximidade de Celeste. Via-lhe as brancas mãos caídas molemente no regaço, a curva das coxas, a linha caída dos seios. Parecia doente. Ele tornou a sorrir para si mesmo. Ela estava sentada tão perto dele que poderia tê-la tocado, e ele a sabia tão cônscia dele quanto ele o estava dela, e que ela não ousava olhá-lo diretamente.
Annette voltou-se para a sua jovem tia e exclamou:
— Querida, você parece tão cansada! Sabe, estou realmente ofendida com você, recusando assim meus convites persistentes. De modo que viemos para insistir com você e Peter para que jantem conosco amanhã. Ou hoje, seria melhor.
Peter olhou de sua esposa para Annette, e sorriu desagradavelmente:
— Celeste pensa que sou um monge, sabe. Só hoje descobri que a razão de estarmos aparentemente no ostracismo é porque ela trancou as portas e fechou as janelas. Porém acho que é também minha culpa. Devo ter-lhe dado a impressão de ser um trapista de coração.
— Sei — disse Annette, suavemente. Olhou para o perfil imóvel de Celeste com a mais estranha expressão, compadecida, triste, e muito pesarosa, embora um momento depois sorrisse brilhantemente e suspirasse:
— Você nem sabe o quanto me faz feliz vê-los sair deste retiro. Hoje eu ia ser muito desagradável, se recusassem nosso convite. Hoje à noite, querida? Ou amanhã?
Celeste disse, indiferentemente:
— Amanhã, se Peter assim o prefere.
— Sim, amanhã — ele respondeu, apressadamente. Aquela horrível fraqueza o estava assaltando outra vez, embora lutasse seriamente contra ela. Nessa noite não poderia, mesmo, sair de casa. Inspirou profundamente. — Será bom sair um pouco deste lugar! Não que não sejamos gratos a Christopher e Edith, naturalmente. Mas a casa é apavorante, não é?
Pela primeira vez Celeste pareceu completamente cônscia da conversa. Até corou um pouco, e os olhos reluziram com um súbito fogo azul ao olhar o marido:
— Isso não é muito bonito, Peter. Jamais gostei de Endur, mas outrora foi o meu lar, e Christopher foi muito atencioso conosco. — Ela pensou: "Ele não está em si! Não deve saber o que está dizendo. Está apavorado e perturbado."
— Claro, minha querida — replicou Peter, contrito. — Desculpe-me. Mas não posso evitar que me deprima: lembra-me demais o seu irmão...
O chá foi trazido, e Celeste, sem o menor tremor nas mãos, encheu as delicadas chávenas com o líquido cor de topázio. O seu fino vestido preto fazia com que a garganta alva e os braços parecessem de mármore polido. Passou uma chávena a Annette e outra a Henri, que a aceitou com um sorriso casual e uma inclinação de cabeça. Ela não o fitou. Ela disse:
— Peter, não deveria ter a sua gemada em vez de chá?
— Oh! Deus! — resmungou Peter, lançando-lhe um olhar impaciente. — Você não preferiria que eu pedisse uma mamadeira e um bico de borracha?
Ela o estudou por um momento, e o alarma que sentia lhe fez bater o coração mais depressa. Momentaneamente esqueceu Annette e Henri. Henri estava rindo de um modo nada agradável, e Annette parecia embaraçada. Mas Celeste só via a palidez de Peter, os olhos demasiado brilhantes, os lábios quentes e secos. De repente ele começou a tossir violentamente, e Celeste tremeu visivelmente. Após um ou dois minutos, encheu uma chávena para ele e lhe entregou, como se nada houvesse acontecido e ela não tivesse ouvido sua observação impertinente. Seu ar de dignidade e calmo orgulho fez doer o doce coração de Annette, cujos olhos se encheram de lágrimas. Falou animadamente a Peter:
— Como vai indo o livro?
A antiga altaneria e inquietação de Peter tornavam a aparecer a qualquer menção a seu trabalho. Hesitou, deu uma furtiva olhadela a Henri, depois replicou:
— Não muito bem, Annette. Estou ficando sem inspiração. Talvez me tenha apegado demais a isso.
— Ou melhor — falou Henri, brandamente — talvez você não conheça bastante o seu tema.
— Henri não quis ser indelicado — murmurou Annette sem jeito.
Mas Peter a ignorou. Olhou para Henri, com sua velha aversão e desagrado:
— Não, o pior é que conheço demais, tenho material demais. Não consigo organizá-lo. Gostaria de pôr tudo ali. É tão enorme, tão horrível e pressagioso... Para fazer justiça ao assunto eu teria realmente de escrever uma biblioteca documentada. Quando vejo quão impossível é fazer mais do que sugerir, condensar, encaixar, sinto-me desesperado! Parece um pesadelo, e o inocente e o não iniciado dificilmente acreditarão nisso. — Agora seu olhar para Henri era duro e sombrio, e cheio de desprezo.
Mas Henri sorria:
—- Ora, vamos! não estamos assim tão mal! De fato, se você escreveu a história de qualquer indústria ou empresa na América, quer se trate de tecidos ou matadouros, siderurgia ou fabrico de bebidas fermentadas — a coisa pode ser apresentada de tal forma, tão realçada, tão exagerada e colorida que poderá ficar parecendo a história de Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Pois, você sabe, o elemento humano ali está, inevitavelmente, e seja o que for que o elemento humano toque, provavelmente terá mau cheiro ou será desonesto. Entretanto, o resultado final é habitualmente inofensivo, e nesse ínterim grande número de pessoas prospera de modo inocente e feliz.
— Presumo — disse Peter, voz trêmula, desaparecida toda a cor febril, de modo que estava outra vez de rosto translúcido e cheio de sombras — que o "grande número de pessoas" que tem aproveitado de suas companhias e subsidiárias tem sido apenas os Bouchards? E quanto ao resto do mundo? E quanto ao mundo que está por vir? Pode afirmar que também ele "prosperará de modo inocente e feliz" no tipo de civilização que vocês estão criando para ele agora?
Henri riu ligeiramente. Seus olhos descorados se pousaram em Peter indulgentemente:
— Francamente, não sei. Tenho meus negócios para cuidar, e isso me toma muito tempo: não me sobra nenhum para filosofar.
— Mas eu posso dizer-lhe isto agora: Você não pode honestamente declarar a uma pessoa: "Olhe, aqui está seu opressor, você é a vítima." A propósito, a vítima cria o opressor. Nada é separado do resto do mundo. O mundo, tal como o conhecemos agora e no passado, é o resultado visível da natureza humana total, seu trabalho e sua vontade. Por exemplo: o povo alemão inventou Hitler. Ele foi seu desejo feito carne, para parafrasear a Bíblia. Assim, se certos "homens maus" obtiveram o controle da América, o que eu nego, é porque americanos foram demasiado indolentes, gananciosos demais, muito estúpidos e negligentes para evitá-lo, e assim tacitamente o permitiram. Eles não existem isolados de seus "exploradores", nem esses "exploradores" existem isolados deles.
Aí Peter esqueceu tudo, exceto sua paixão ardente, sua aversão, ódio e raiva contra esse homem!
— Você faz isso parecer muito simples — disse, e agora sua voz tremia tanto que dificilmente podia controlá-la. — Mas não é assim tão simples. Admitindo que a estupidez e a indolência do povo tornem possíveis os tiranos, isso não faz virtuosa a tirania, ou inevitável. Os criminosos tiram vantagem da confiança dos desamparados ou dos indefesos. Esse é o seu crime.
Henri estava silencioso. Mas ainda sorria. Olhou para Annette, que ficara muito pálida e torcia os dedos. Olhou para Celeste. Porém ela fitava Peter, rosto branco e imóvel, e ouvia atentamente. Henri franziu o sobrolho pensativamente, e tamborilou sem som no braço da cadeira.
— Sim — disse Peter, agora em tom mais calmo — em uma coisa concordo com você: nada existe isoladamente de tudo mais, e devemos lembrar-nos do elemento humano. Todavia, existe um elemento, talvez, de que você não sabe nada, Henri, e esse elemento é o desejo profundamente enraizado de todo homem de acreditar que ele e seu trabalho são importantes. O desejo pode ser consciente ou inconsciente, mas está lá, exigindo que acredite que ele e seus esforços são necessários a seu próximo e a seu bem-estar. Você pode achar isso muito bobo. Penso que é a única coisa nobre no homem. Quando esta crença está morta num homem, e a indústria moderna a está matando depressa, por sua monotonia, seu automatismo, e padrão mortalmente mecânico, então o homem perde sua vontade de viver, que é sempre muito precária mesmo no mais forte de nós.
"Os homens de poder tampouco souberam do lastimável desejo humano de ser de alguma importância para o mundo, e de melhorá-lo por trabalho e esforço voluntários, ou não se importariam com isso. Para eles nada representa que esse desejo contenha a promessa mais profunda de bem para o mundo, uma promessa de harmonia universal, e grandeza e bondade, e que tenha o poder de curar muitos dos males e danos da raça humana.
Deteve-se, e continuou em tom mais baixo:
— Talvez você tenha razão em outra coisa. Há muito tempo você me disse que a guerra é um dos mais fortes instintos do homem. Começo a acreditar que sim. Pois guerra é a expressão do desejo de matar de massas inteiras de povo. O problema é tornar a vida tão venturosa, tão vital, significativa e importante para cada homem que ele não queira, em seu desejo de morte, recorrer ao suicídio em massa.
— E como propõe que isto seja feito? — perguntou Henri, com o mesmo olhar brando e enfurecedor, como se falasse a algum louco furioso.
Peter hesitou, e agora seu olhar estava austero e firme:
— Talvez, como eu disse antes, deixando que os homens acreditem, outra vez, que são importantes para o mundo. A religião tem uma forte influência sobre o homem apenas na razão direta da porção de importância que lhe confere. Você quereria que eu fosse prático, não? Pode mostrar-me como a indústria moderna permite a um homem, por um momento que seja, acreditar que é importante e que ele, e só ele, dá a seu trabalho algum toque peculiar que ninguém mais daria? Nossas máquinas eliminaram a alegria pessoal da habilidade manual, do artesanato individual, da criação. Que alegria existe em fazer peças fundidas ou tiras de metal iguaizinhas, em máquina idêntica, por um idêntico robô humano? Quando a indústria moderna eliminou o elemento pessoal de suas gigantescas lojas, usinas e fábricas, começou a destruir o desejo-de-viver do homem, o qual se baseia em seu senso individual de importância. E no mesmo passo estabeleceu os fundamentos para guerras devastadoras. Acredito que por isso é que o fascismo leva inevitavelmente à guerra. É a derradeira convulsão de um povo sem esperança.
Acrescentou:
— A guerra é, afinal de contas, deliciosa para o povo, por ser agora a única coisa que permite a um homem acreditar que é individualmente importante, e que algo depende dele, pessoalmente.
O rosto fino e exausto foi subitamente iluminado pela paixão, a piedade e a tristeza.
— É uma coisa terrível! — falou baixinho, como para si mesmo.
Agora ele contemplava Celeste. Ela lhe sorria, e seus olhos estavam dilatados e brilhantes. Henri os olhava, lentamente, um de cada vez.
— Está pondo tudo isso em seu livro? — perguntou.
Peter voltou a ter consciência de sua presença, após a longa troca de olhares com a esposa, e franziu um pouco a testa:
— Há tanto... sim, estou tentando contar isso. A coisa toda é tão... enorme!
Estava outra vez exausto, tendo esgotado o fogo breve e candente. Mais uma vez sentia-se desesperadamente doente.
Annette falou, e sua voz estava trêmula, bem como as mãos em seu regaço:
— Oh! Peter, gostaria que houvesse alguma coisa que eu pudesse dizer agora, que o fizesse saber o quanto mexeu comigo! Nunca tenho as palavras apropriadas para nada, mas sei que você está certo. — Seus cílios estavam úmidos, e os lábios trêmulos.
— De qualquer modo, deverá ser muito interessante — comentou Henri, com a superior e amável condescendência tão exasperante para qualquer autor. — Pode contar comigo: fico com um exemplar. Ingham é quem vai publicá-lo?
— Sim — falou Peter, brevemente.
Tomou o chá distraidamente: já estava frio e nauseante para ele. Seu desespero era nele uma desolação, uma calmaria... Como era impotente! O quão claramente Henri lhe mostrara sua impotência, em face do próprio grande poder, força e solidez físicas!
Durante sua abstração não se dava conta de que Henri o esquadrinhava atentamente. Tê-lo-ia espantado o saber o quão importante era agora para Henri, e que o outro homem tratava de refletir rapidamente.
— Olhe aqui — falou Henri, abruptamente. — Você diz que tem material demais. Por exemplo: está cônscio, com suas malditas provas documentadas, de que certo grupo de homens em Washington e outros lugares está resolvido a derrubar o Governo e substituí-lo pelo fascismo? Com a ajuda real de Hitler?
Peter ergueu o olhar com tamanha rapidez que chegou a quase entornar sua chávena. Não podia acreditar no que ouvia. Henri estava acenando com a cabeça, com um sorriso triste.
— Garanto-lhe que é verdade. E não sou um deles, esteja certo. Isto o surpreende, não é verdade? Calculo que haja tido suas suspeitas. Quer verificar?
Peter estava estupefato. Os olhos esgazeados instintivamente procuraram Celeste. Porém ela olhava Henri, com uma rígida expressão de choque, e olhava plenamente pela primeira vez.
— Imagino — continuou Henri, olhando só para Peter — que você tenha dado umas tintas a este respeito em seu manuscrito. Mas apenas insinuações sempre podem ser atacadas e destruídas. Os fatos não.
Contudo, Peter não podia mesmo falar.
Henri recostou-se confortavelmente na poltrona, e levantou as sobrancelhas com uma expressão zombeteira. Porém os olhos estavam fitos com rara intensidade em Peter.
— Quero dizer: é uma conspiração real, que só recentemente chegou ao meu conhecimento. Serei franco com você. Quis que a América se mantivesse fora da guerra que está a chegar porque a guerra destruirá o status quo, e sou muito apegado ao status quo. Não me importo a mínima com o que Hitler faz na Europa. Mas quero mantê-lo fora da América. Desgraçadamente, existem alguns homens, e você ficaria surpreso se soubesse quem são, que querem Hitler aqui ou, pelo menos, desejam a influência dele aqui. Estão trabalhando para isso. Um cavalheiro muito chegado a alguns de nós disse, recentemente: "Precisamos de Hitler, e sua eficiência. Para pôr a maldita multidão de volta em seu lugar. Digo: aliciem-no!" Você pode achar isto muito impudente e rude. Mas não é. Eles traçaram os planos vigentes.
Peter arrancou-se à sua letargia de estupor e gaguejou:
— Por que me diz isso? Agora? Você?
Henri deu de ombros, e respondeu brandamente:
— Porque não quero Hitler aqui. Estou muito satisfeito com as coisas como estão. Não estou muito interessado no que Hitler faz na Europa, mas estou resolvido a que não o faça com qualquer dos nossos materiais... se eu puder evitá-lo. Não estou muito certo de poder evitá-lo. Naturalmente, estou trabalhando para isso. Coagi — sorriu um pouco — ou melhor: persuadi alguns outros a juntar-se a mim, pois estou seguro de que não tenho desejo de ser um Thyssen para Hitler. Não é patriotismo. Só estou dando a você um esboço, um resumo. — Deteve-se, cogitando se estava sendo indiscreto, estúpido e ingênuo. — Posso ser bem-sucedido. Como a coisa aparece agora, posso não ser. Você pode imaginar o resto.
De súbito, Peter pôs-se de pé e, em profundo silêncio, palmilhou a sala abaixo e acima a passos sacudidos. Punha as mãos no rosto e deixava-as cair, com um suspiro. As duas mulheres estavam transidas em suas poltronas, Celeste observando Peter, Annette vigiando Henri. As faces de Annette estavam de um vermelho vivo, os olhos demasiado brilhantes.
Então Peter parou diante de Henri. Seus lábios se mexeram com esforço:
— De alguma forma, acredito em você. Não sei por quê. Compreendo por que me falou. Não é por patriotismo ou decência. Você deseja proteger-se. Isso não importa. Que posso fazer?
Henri estava agora muito grave e sério. Inclinou-se para Peter:
— Seu livro estará terminado tarde demais, receio bem. Suponha que seja publicado daqui a um ano ou mais. Já não fará bem algum: o dano estará causado, dano provavelmente irreparável.
"Entretanto, acabei de ter uma ideia. Suponha que você escreva para o rádio. Não poderá, claro, fazer tais palestras você mesmo, por razões mais que óbvias. Mas eu posso advertir o povo por meio de dois ou três comentaristas competentes. Já tenho em mente esses comentaristas. Dois foram recentemente tirados do ar por falta de patrocinadores. Acontece que sei por que eles não têm patrocinadores agora. Acho que você pode adivinhar, também. Eles não precisam de patrocinadores: eu pagarei pelas transmissões. Nenhum dos canais ousará manter esses homens fora do ar quando eu der a ordem. Também eles estão cheios de fatos, que eu darei a você. Lembre-se: no próximo ano haverá uma eleição — e a rudeza em seu rosto se abrandou por um momento. — Francamente, não me importa se é eleito Roosevelt ou qualquer outro homem de opinião igual à dele. Estou pensando em um homem que me foi mencionado ultimamente por determinado velho cavalheiro. Ele pode não ser escolhido. Se não o for, e o Partido Republicano eleger algum pateta, algum testa-de-ferro, então podemos ter Roosevelt. Isto o surpreende, não? Mas digo-lhe agora que nem mesmo a maior das burrices do New Deal tem mais qualquer importância. A única coisa importante é tornar impraticáveis aqueles esquemas de que acabei de falar-lhe. Tudo mais pode esperar.
Continuou, pois Peter ainda não podia falar:
— Toque o seu livro para a frente. Mas essas palestras pelo rádio são mais necessárias, mais imediatas. Que me diz?
Os olhos de Peter ardiam no rosto magro. Ele ainda estava vivo, ardente e apaixonado. Quase gritou, exultante. Após um momento, falou:
— Meu Deus! Não posso acreditar! Claro que farei isso! Você só tem de me dar os fatos, uma orientação de vez em quando!
Mal podia respirar, com seu senso de potência novamente excitado, como excitados estavam todos os seus sentidos. Mas Henri se mantinha perfeitamente calmo, sorriso macio como sempre.
Levantou-se:
— Muito bem. Você será bastante discreto, naturalmente, para não dar a mais leve pista sobre onde obtém suas informações. Seria desastroso: devo trabalhar nos bastidores. Devo desmascarar todos os conspiradores e fazer o que posso, pelo meu lado, para detê-los em seu caminho. Nesse ínterim, você pode despertar muita gente para o perigo que corre. Estude os comentadores, que são subsidiados pela Associação Americana de Industriais, uma de nossas organizações. Wright Benson é o mais apto. Você pode obter muitas indicações de sua propaganda, que é muito adequada, para dizer pouco. Você perceberá o fino controle italiano por trás do que ele diz. Estude os jornais, especialmente aquele poderoso refugo em Detroit. Você terá seu trabalho talhado para você, e isso não vai ser fácil.
Peter apertava as mãos nas têmporas latejantes. Celeste estava agora de pé ao lado dele, vendo só a ele. Ele se voltou para ela e lhe leu nos olhos a ansiedade sem palavras. Gritou:
— Meu Deus, querida! Nada mais importa, só isto! Pode perceber? — passou o braço em torno dela, que deitou a cabeça nos ombros dele.
— Eu lhe enviarei algum material amanhã, por mensageiro especial — disse Henri, estendendo a mão a Peter, que a contemplou, e depois apertou-a. — Outra coisa — falou Henri, sorrindo, como se se divertisse profundamente — não seja muito intelectual em seus ataques. Use palavras de uma só sílaba, se possível. Lembre-se: a maioria do povo é de ignorantes. Tem uma suspeita natural pelo que chama "professores universitários". Faça a coisa simples, impressionante, violenta e espetacular. Nada medido e restrito. De outro modo o "isolarão". Ouça o Bispo Halliday, esse pio suíno. Copie seu estilo, e o melhore. Ele é um bom incitador da populaça. Seja um incitador da populaça.
Peter sorriu convulsivamente. Henri viu que sua mente já se lançara num excitado e turbulento estado, e já estava formulando o que iria escrever. Mas disse:
— Será fantástico, trabalhar com você, Henri. Ainda não posso crer!
— Acredite — replicou o outro. — Eu lhe darei alguns fatos muito interessantes amanhã à noite, depois do jantar.
Annette estava silenciosa. Mas suas mãozinhas apertavam o sólido braço de Henri e ela sorria, radiante, nada mais vendo senão o rosto dele. De modo que ninguém observou que Celeste, também, olhava para Henri, lábios entreabertos, olhos escuros e estranhos.
Capítulo 27
Peter havia comprado dez acres de terra em Placid Heights para seu novo lar.
A terra compreendia uma colina inteira, e por trás dela erguiam-se as dobras cor de malva dos contrafortes mais altos, de modo que ela parecia encerrada no anel de uma imensa fortaleza circular. A casa, agora em processo de construção, ficava no topo de sua colina. Os terrenos seriam adequadamente ajardinados, mas nessa estação — fins de agosto — a colina estava escura e ressecada, tendo aqui e ali uma árvore espigada e resistente. Portanto, a casa tinha um lado exposto e vulnerável à gritante luz solar, suas fortes paredes cinzentas um tanto austeras, e o telhado vermelho demasiado brilhante e natural.
Mas a colina se inclinava gentilmente para uma estreita fenda entre as colinas, um vale cheio de névoa radiante e translúcida, de modo que as árvores espalhadas por ali estavam imóveis numa luz prateada. Nenhuma outra casa era visível. Havia apenas o pálido brilho do céu, as dobras arroxeadas das colinas, o vale semelhante a um sonho, tão longe quanto a vista podia alcançar. Nada de vento, nem um som de pássaro naquela vastidão, sob a universal catarata da luz solar. Apenas o serrar de madeira, o clamor dos martelos dos operários, uma ocasional voz áspera, ou uma pisada forte no novo e inacabado assoalhamento. O cheiro de serragem fresca saturava o ar quente e estéril.
Um pouco abaixo da ladeira estava estacionado um pequeno carro azul e, perto dele, sentada numa pedra, Celeste, cujo vestido vermelho era uma mancha de cor de encontro ao declive amarelado. Ela não examinava a casa. Fitava o vale, lá embaixo, as mãos imóveis a seu lado, uma madeixa de cabelo ondulando ao mais leve sopro de brisa. A rígida quietude do seu rosto relaxara; os lábios estavam mais macios, mais gentis, do que haviam estado por algum tempo. Uma ou duas vezes sorriu, rapidamente, depois suspirou, e por um instante a antiga rigidez lhe cerrou as feições, para desaparecer uma vez num vivido relâmpago de renovada doçura.
Viera para discutir com o arquiteto o apainelamento da biblioteca. Ele se fora. Ela ficara só. O diamante em sua mão brilhava à luz do sol como um prisma redondo. Estava ali sentada havia perto de uma hora.
Ninguém que a olhasse poderia adivinhar a excitação febril que a dominava, as súbitas rajadas de negro desânimo que se seguiam, que por sua vez eram seguidas por uma selvagem aceleração que a fazia torcer as mãos e penetrava a intumescência de seu coração com mudo êxtase e uma profunda e apaixonada tristeza. Depois, como se exausta por suas próprias emoções, ela se tornava hesitante e calma, para recomeçar o ciclo de emoção dentro de poucos minutos.
Estivera morta por tanto tempo...
Desde a última noite, quando Henri propusera seu plano a Peter, este ficara tão violentamente excitado, tão exultante que Celeste fora incapaz de contê-lo. Qualquer sugestão de que se acalmasse era recebida com uma explosão, ele gritando que ela não o compreendia, que estava tentando dominar a primeira alegria que tivera em meses, em anos. De modo que, finalmente, ela nada mais dissera. Viu que Peter, também, havia estado completamente desesperado, cheio de impotência, medo e desesperança. Agora lhe fora dada uma oportunidade de alcançar milhões, que deviam ser despertados.
Celeste pensava no homem que tornara possível a Peter voltar a viver, sentir uma vez mais a maravilhosa sensação de poder realizar algo. E ela sentia em si mesma um tremor que lhe tolhia a respiração. Quantos anos se haviam passado desde que experimentara emoção tão vibrante! Tornou-se cônscia, depois de tanto tempo, da pungente presença do mundo, sua apaixonada violência, sua maravilha e cores vividas. Tinha de novo aquela clareza de percepção, aquela jovial veemência que uma vez sentira e havia esquecido há tanto, tanto tempo! Agora, enquanto pensava em Henri Bouchard, seus sentidos despertos observavam tudo com tal vivacidade que chegava a ser dolorosa. O cascalho a seus pés tomava formas significativas. A sombra de uma árvore retorcida perto dela estava cheia de significado, e quando suas grandes folhas se inclinavam ao mais fraco dos ventos, ela dificilmente podia aguentar a pungência da luz solar sobre elas. Ergueu para o céu olhos ofuscados, e lhe pareceu que os flutuantes contornos das nuvens pálidas eram mais do que poderia suportar.
Tão absorta estava que nem ouviu o ronco de um carro que subia a colina sem estradas, nem a batida de sua porta. Nem viu de imediato a forte figura que começou lenta ascensão em sua direção. Quando discerniu quem era que se aproximava dela, pareceu-lhe apenas a continuação de seu sonho radiante. Apenas pôde ficar ali sentada na pedra, sorrindo vagamente, contemplando o homem que subia.
Depois, de súbito, tornou-se cônscia de quem era ele, e foi como um choque por todo o seu corpo, um selvagem despertar. Não pôde levantar-se. Apenas podia ficar ali sentada, as mãos agarrando os lados da pedra, o rosto branco e imóvel. Quando ele ergueu a mão num aceno amigável, ela não respondeu. Estava paralisada; o coração parecia querer parar.
Ele se deteve por um momento, alguns metros abaixo de onde ela estava, e enxugou o rosto úmido com o lenço:
— Alô! — chamou.
Os lábios e a garganta da moça estavam secos. Ainda estava incapaz de mover-se. Ele subiu lenta e facilmente até ela, depois tornou a parar.
— Peter está aqui? — perguntou.
A voz dela era rouca, emitida com esforço infinito:
— Não.
Agora pôde levantar-se. Ele lhe sorria da maneira mais amigável:
— Não está doente de novo, está?
Os lábios dela formaram a negativa, mas não saiu nenhum som.
— No último minuto Annette decidiu que estava muito quente, assim pensei em vir sozinho — falou ele.
Celeste estava ansiosa. Encararam-se e, então, também ele não falou. Sua grande cabeça se inclinava gravemente, tinha a expressão séria. Ela esperou o que ele diria a seguir, com uma agonizante agudeza de todos os sentidos. Porém ele apenas disse por fim:
— Bem. E como vão indo as coisas por aqui? Sabe, costumamos vir aqui.
— Muito bem — ela replicou, ainda lutando para falar. Seus membros estavam fracos e trêmulos.
Ele afastou-se dela, e sorriu de novo:
— Gostaria de ver por mim mesmo — disse, e subiu até a casa.
Mudamente, ela o observava. Depois de muito tempo, tornou a sentar-se na pedra, tremendo de vontade de fugir, entrar no carro e descer para o vale. Esse desejo de fugir era como uma chama a abrasá-la, mas não tinha vontade suficiente para reagir.
Não sabia há quanto tempo ele havia ido, mas de súbito ei-lo de novo ao seu lado. Não a olhava: contemplava o vale, lá embaixo, com uma expressão satisfeita.
— Muito bonito! E não muito longe da cidade. Sabe, vi algumas vezes a velha mansão Sessions, quando era garoto. Ouviu falar dela, Celeste? Se me lembro corretamente, a planta de seu interior era semelhante à desta, e exteriormente também tinha certa parecença. — Riu um pouco: — Deveria ter sido bem preservada como monumento de família. Existe uma história de que ela inspirou o velho Ernest Barbour toda a sua vida. Depois foi finalmente abandonada pela família, depois que minha bisavó, May Sessions, morreu, em 1910. Já então era rodeada de favelas, mas ainda está lá. Meu bisavô deve ter sido um demônio fascinante, hem? A casa foi lentamente caindo aos pedaços, mas minha bisavó permaneceu lá, pensando nele. Quando ela por fim morreu, a família mandou demolir a casa, para que não degenerasse numa casa de pensão ou coisa pior.
Tornou a rir. Seus dentes grandes e fortes faiscavam à luz do sol, enquanto ela o olhava, mudamente.
— Sabe, eu teria gostado da ironia final: a velha mansão Sessions transformada em bordel... Há um epigrama nisto. Aquilo que a princípio inspira um homem finalmente se torna sua degradação. Sou inteligente, não?
Agora ela pôde sorrir, doloridamente. Ergueu-se, alisou o vestido.
—- Devo ir — murmurou.
Ele ergueu a mão facilmente e lhe pegou o braço, com firmeza. Ela estremeceu, e dificilmente conteve o impulso humilhante de arrancar o braço de seu apertão. De modo que ali ficou, rígida e fria. Mas um súbito e agudo calor se espalhou dos dedos que a seguravam, espalhou-se pelo seu braço e por todo o corpo. Então seus olhos se arregalaram e se fixaram nele, ardendo com uma vivida luz azul, orgulhosa, amarga, incandescente.
— Ah, Celeste! — ele murmurou.
Qualquer movimento — ela pensou, desesperadamente — a tornaria ridícula, aumentaria sua selvagem humilhação. De modo que não se mexeu. Porém seu coração palpitava em tumulto, numa dor deliciosa. Ele a observava atentamente, sorrindo, com o pálido brilho de seus olhos que se estreitavam entre as pálpebras.
— Caminhemos um pouco — convidou.
Estreitou-lhe a mão fortemente. Puxou-a atrás de si, e ela o seguia cambaleando, vendo apenas o chão flutuante a seus pés, demasiado absorta em sua vergonha para resistir.
Moveram-se ao longo do barranco até determinado ângulo em que um montículo os escondia da curiosidade de qualquer operário na casa acima. Ali havia uma árvore curta e grossa, de sombra espessa. Pararam ali, à sombra. Aí, Henri largou a mão de Celeste e eles se enfrentaram em silêncio, um silêncio quase violento em seu mudo poder.
Depois Henri falou, gentil e lentamente:
— É tempo de termos uma conversa, não acha? E decidir o que vamos fazer.
Celeste sorriu amargamente, e ergueu a cabeça:
— Você está considerando a ideia de divorciar-se de Annette? — perguntou, com áspera zombaria, olhar brilhante e direto.
Esperava que ele hesitasse. Porém lenta e gravemente ele sacudiu a cabeça:
— Não. Ainda não. — Sua voz era firme. — Por uma razão que não lhe posso dizer agora. Surgiu muito recentemente. Mas torna impossível para mim divorciar-me dela... agora. A oportunidade virá mais tarde. Não muito tarde, espero. E agora, você. Vai esperar até que Peter morra para que comecemos a viver?
A audácia dele, inexorável como era, a espantou. Só pôde fitá-lo, aturdida, por muito tempo. Depois, palavras incoerentes e furiosas se atropelavam em seus lábios num tal fluxo que ela chegava a gaguejar, como quem tropeça, hesita, corre e cambaleia em fuga:
— Oh, você é desprezível! Como pode...! Você é um miserável! Não há nada que eu lhe possa dizer a não ser isto: deixe-me em paz. Fique longe de mim. Já não me feriu... e a Peter, bastante? Acha que me é fácil olhar para ele? Agora? Tenho de compensá-lo... Como suportar olhar para ele, todos os dias, todas as noites? Você nunca entenderia isto... Nunca houve em você um impulso decente, nem honra, nem fidelidade, nem bondade. Mataria a pobrezinha da Annette facilmente, se isso o ajudasse de alguma forma. Por vezes penso que a está matando: ultimamente ela tem um olhar impressionante! O que vou fazer? Nada! Nunca! Nunca, nunca!
Afastou-se dele e tentou correr. Porém ele a agarrou logo e a puxou para ele, sacudindo-a com violência:
— Celeste, está maluca? Pare de lutar, você está ridícula. Olhe para mim, Celeste!
Ela agora chorava a não poder mais. Contudo, ante o perverso desdém na voz dele, a ordem implacável, parou, soluçando, olhando-o com ódio mudo e intenso. Ele deixou cair as mãos que estavam nos ombros dela.
— Muito bem, assim está melhor. Você age como uma criança, uma criança estúpida, irracional e romântica. Já não somos crianças, pequena imbecil. Esta é uma questão a ser enfrentada, compreendida e resolvida. Sim, agora está me odiando, não é verdade? Fez uma confusão danada de nossas vidas, mas ainda tem a impudência de olhar-me furiosa como se eu fosse digno de censura e você não. Fino mecanismo de defesa, porém covarde, como todos os mecanismos de defesa. Ou isto está além da sua inteligência?
Um fluxo de vermelhidão cobriu o rosto dela. Estava agora muito quieta. Disse, olhando-o fixamente:
— Sim, talvez eu seja covarde. Sempre pensei que fosse. Mas isso não importa agora, sou esposa de Peter. Pode surpreendê-lo saber que não quero que Peter morra! Eu o amo.
—E então — ele a interrompeu, ironicamente — prefere discutir a questão depois da morte de Peter? É isso que tem em mente? Não percebe a sordidez disso? Ora, você me enoja Celeste! Por que não pode ser honesta? O fato de haver decidido pensar nessas coisas só depois de viúva não realça a sua fina honra, sua virtude e correção. Não desfaz qualquer "erro" seu em relação a Peter, pois o erro já foi cometido. Não a desobriga o fato de não encarar as coisas até que seu marido esteja morto. O pensamento já está lá.
Ela ficou silenciosa um momento, ainda a fitá-lo. Depois respirou profundamente e disse:
— Muito bem. Decidirei agora. Quer Peter viva ou morra nunca haverá nada entre nós, Henri. Nunca. Nem se você se divorciar de Annette. Nem se Annette morrer... e você deseja furiosamente que ela morra, não deseja?
Ele começou a sorrir:
— Annette morrer? Sim, não me importaria. Não é que desgoste daquela coisinha. Na verdade, sou louco por ela. Mas simplificaria muitas coisas se ela morresse cedo. Cedo, mas não agora.
— Agora estou certa de que o odeio! — disse Celeste, com uma espécie de espanto. — Sim, estou certa disso.
O sorriso dele se transformou numa gargalhada.
— Assim é melhor. Gosto que você me odeie. E você realmente ainda não se decidiu, já? Será que Christopher alimentou com leite e romantismo toda a sua vida? Acho que me lembro disso. Você é uma desordenada pequena romântica. Seu cabelo está todo em desordem. Claro que estou falando figuradamente. Vê, tenho de ser muito cuidadoso na escolha de palavras que não estejam além de sua limitada inteligência. Tem pensado em si mesma como uma alta e nobre intelectual todos esses anos ciganeando pela Europa com Peter, não é mesmo? Você ouvia os mestres em todas as mesas internacionais de chá. Assim, tem agora Mente e Alma. Sim, meu amor, você me enoja!
Acrescentou:
— Jamais gostei de romantismo doentio. Pedi-lhe, julgando que tivesse adquirido um pouco de senso, que discutisse comigo o que iremos fazer agora. E você me vem com Jane Eyre...
Afastou-se dela e inclinou a cabeça em direção a seu carro lá embaixo, na ladeira. Porém seus olhos duros e cruéis não se afastaram de seu rosto:
— Nunca persegui mulheres. Francamente, não gosto de mulheres. Não gosto de você, jamais gostei. Mas eu a amei. Não estou muito certo, neste exato minuto, se ainda a amo. Idiotas me fazem vomitar. Você é uma completa idiota, sabe disso. Porém eu a amei. Poderia mesmo voltar a amá-la. Mas neste momento, não tenho certeza. Não estou certo, sequer, de querê-la. Estou quase certo de que não.
Calou-se. O rosto dela estava branco feito marfim, à sombra. Não podia desviar dele o olhar. Nada disse. Mas seu coração caiu nas mais negras profundezas do desespero e da desolação, de uma angústia tão aguda e tão imensa que parecia que seu coração ia parar. Ele a observava atentamente.
Ele ergueu a mão lentamente e apontou para ela: seu dedo era como um punhal:
— Vou começar a andar, Celeste. E a qualquer momento antes que eu alcance meu carro, você pode chamar-me de volta. Mas depois que eu entrar nele, e partir, será o fim. Pense nisso por um momento, honestamente, como um ser humano decente. Quando eu partir, estará tudo feito. Não haverá nada mais. Nunca, nunca! — acrescentou, com calma.
Aguardou um pouco. Porém ela permaneceu imóvel. Ele sorriu severamente. Com infinito vagar e resolução ele se afastou dela, começando a caminhar na direção do carro. Ela o observava ir.
Ele chegara a um montículo de rochas. Ela pensou:
"Ele está realmente indo embora... Nem olha para trás. Nunca voltará."
Agora todas as suas pulsações eram como corações separados em sua garganta, nas têmporas, nas mãos, nos joelhos. Podia sentir-lhes o palpitar e o saltar, tremendo até seus limites, forçando em sua boca um gosto de sal. Estava agora a uns vinte metros do carro. Caminhava com firmeza, não titubeando sequer por um momento, nunca se apressando, nunca fingindo demorar-se. Ela via o seu amplo dorso à luz do sol, e a parte de trás da grande e brutal cabeça. Parecia tão despercebido de sua presença como se ela não existisse.
Então uma dor enorme se apoderou dela com dentes de ferro, e ela literalmente sentiu-os a rasgar-lhe a carne, a apertar-lhe as partes vitais. "Não! — ela gritou dentro de si mesma. — Oh! não! Henri, não!"
A forte figura a mover-se tão inexoravelmente à luz solar excluiu tudo mais de sua consciência. Foi um pesadelo, um sonho que arrastou cada horrível momento à sua decisão definitiva, nunca se apressando, nunca se detendo.
Agora os dentes de ferro caíram em suas derradeiras defesas vivas, e ela sentiu um amargor da agonia em seu corpo e seu espírito que era intolerável. Isto foi que a fez gritar, um grande grito, menos um ato de sua vontade do que puro tormento — que já estava além de seu poder combater.
Ele ouviu esse grito. Através de uma névoa ondulante e obscura voltou para ela, não vagarosamente agora, mas caminhando apressadamente. Ela não soube que ergueu os braços para ele...
E agora ela estava apertada contra ele, passando as mãos nos ombros dele e nos seus braços, chorando selvagem e terrivelmente, agarrando-se a ele como o faria quem estivesse a afogar-se. Ele não a consolou, mas a manteve bem apertada nos braços. Sentiu o abrandamento das pulsações do coração dela, seu sofrimento. Quando ele tentou afrouxar o aperto em que ela o mantinha, acalmá-la, ela se tornou menos controlável. Ele ficou alarmado, e olhou em volta, inquieto: alguém podia ter ouvido aquele grito terrível.
Ele se libertou com violência. Tomou entre as mãos aquele rosto convulso e, olhando-a nos olhos, forçou-a a acalmar-se. Ela chorava novamente, porém mais quietamente. Mas segurou os pulsos dele, tão próximos a seu rosto — e seus dedos pareciam de ferro, a morder-lhe a carne.
— Henri — gritou, roucamente. — Você teria ido embora? Não de verdade?
Ele a apertou mais de encontro a si:
— Sim, meu amor — falou, suavemente — eu teria ido. Realmente. — Depois acrescentou, mais asperamente: — Não me faça mais isso, Celeste, nunca mais!
Capítulo 28
Foi naquele dia de setembro de 1939 que um mundo acabou e nasceu outro, novo, estranho e terrível, que Antoine Barbour Bouchard se casou com Mary Eloise Boland.
O casamento foi muito quieto. Como foi destacado em muitos jornais, o jovem Sr. Bouchard perdera sua avó recentemente, e a jovem Srta. Boland fora "privada" de sua mãe havia apenas dois meses. O casamento se realizou (por "razões de tradição de família", diziam os jornais) na linda capelinha antiga da Episcopal St. Mary’s-on-the-Hill, em Windsor. A capela, que não era assim tão velha, era em estilo normando antigo — pesados muros cinzentos e marfim e fortes torres curtas, para combinar com o prédio de origem, agressivamente normando e imponente. Os vitrais coloridos eram excepcionais, com justa razão: haviam sido retirados em conjunto de uma verdadeira igreja normanda na França e transportados, com enormes despesas, para sua nova colocação pelo velho Ernest Barbour, que construíra o prédio. Aqui ele próprio repousava à luz iridescente e misteriosa lançada pelos vitrais, e aqui outros Barbours e Bouchards dormiram em seus frios travesseiros de cetim antes de serem levados para seus estreitos nichos no cemitério. Aqui as crianças Bouchards haviam sido batizadas e mais tarde crismadas; haviam-se casado; haviam-se revezado nos solenes bancos da igreja; haviam bocejado e se espreguiçado, cochilado e conspirado, haviam-se entregue a seus pensamentos peculiares e a suas tristezas, haviam ponderado sobre suas cobiças e seus ódios.
A Família ficou extremamente deliciada com a escolha de Antoine. Nenhum membro jamais fez um casamento inadequado. Antoine obedecera à tradição, apesar da passada inquietação a seu respeito. Os Bouchards masculinos sempre tiveram inclinação por grandes damas. Mary Boland era uma grande dama. E também — feliz e apropriadamente — muito estúpida. Era baixa e gorduchinha, e possuía lindas mãozinhas brancas e pés pequenos, também gordinhos e brancos como leite. Tinha covinhas nas articulações das mãos bem cuidadas. Como muitas jovens com o seu físico, possuía um busto redondo e muito alvo, quadris arredondados e cintura breve. Também o rosto era redondo, macio e com covinhas, e ela sorria quase constantemente com o mais doce dos temperamentos — as covinhas aparecendo deliciosamente nas faces, no queixo e junto aos lábios sempre que sorria, o que era praticamente sempre. Boquinha redonda e rosada, nariz pequeno, faces naturalmente rosadas e floridas, e olhos grandes e brilhantes rodeados de pestanas cor de bronze. A partir da testa baixa erguiam-se as ondas do fino cabelo ruivo, preso num coque na nuca. Era muito bonita; muito encantadora; tinha o riso mais doce e cristalino. Nunca dizia algo que tivesse alguma significação, porém jamais pronunciou uma palavra que não fosse delicada, graciosa ou apropriada. Estava com vinte anos e era virgem. Nunca tivera um pensamento original ou perspicaz, pertinente ou profundo, impudico ou compassivo.
Melhor que tudo: era uma grande herdeira! E adorava Antoine. Portanto, a Família só podia aprovar sua escolha. Era uma típica mulher Bouchard e, como tal, perfeita.
Mary Boland era filha única de um pai que era um bandido implacável, que tivera três esposas antes de desposar a mãe de Mary. Nenhuma das esposas lhe dera filhos, de modo que se livrara delas. A princípio o sexo de Mary o deixara furioso, porém ela finalmente o vencera com seu encanto, doçura e imbecilidade. A menina não tinha mais de um ano de idade quando ele começou a procurar em volta dele um marido apresentável para ela. Ao aparecer Antoine em cena, ele se sentiu altamente gratificado. Estava agora com setenta anos, e começara a preocupar-se a respeito da filha.
Ao pai, Armand, Antoine dissera:
— Ela é realmente uma criaturinha deliciosa e satisfatória. Sua mãe veio de uma família prolífica, de modo que você provavelmente terá pelo menos uma meia dúzia de netos.
Em suma: a escolha de Antoine foi universalmente aprovada.
Embora sem alardes, o casamento foi perfeito. Mary Boland parecia um róseo querubim em seu diáfano véu branco, vestido de cetim branco bordado, de cauda bem longa, as demoiselles d’honneur afetando timidez em seus vestidos água-marinha flutuantes, de tule. Seu primo — o ambicioso vice-presidente do Morse National Bank — foi o padrinho. Ela ficou de pé no altar com Antoine, e através do véu seu rostinho redondo brilhava como uma lua rosada.
Devido ao sinistro acontecimento que explodira no mundo, a lua-de-mel foi curta e calma. O feliz casal voltou para morar no grande e sombrio castelo de Armand.
Em menos de uma semana Armand estava apaixonadamente louco pela nova filha. Quanto a ela, "amava" todos os Bouchards, considerava-os as criaturas mais brilhantes, mais soignêes, melhor dotadas do mundo. Era-lhes muito grata por adotá-la em seu clã tão fechado. Isso não contribuiu para diminuir a aprovação de todos, claro!... Embora, depois de cinco minutos, a achassem tediosa.
Ela resolveu tornar-se indispensável a Armand, pois era realmente muito boa, desde que não ficasse confusa ou tivesse de pensar numa situação. Viu que Armand estava doente e velho, e isso despertou a sua piedade. Seu próprio pai era rijo e seco como uma velha árvore desgastada. Aqui estava uma criatura a quem ela poderia adotar, e o instinto maternal era muito forte na jovem Sra. Antoine. Para ela, bastava que ele estivesse doente e abandonado, que todos rissem de sua "Lista", que ninguém considerasse importante essa "Lista". A Sra. Antoine a achou muito importante. Todos os dias, gastava horas com ele, debruçada sobre o desprezado papel, séria e gravemente discutindo com ele vários cardápios, e pessoalmente cuidando para que só os artigos selecionados aparecessem à mesa.
"Meu amor, eu não tenho diabetes — protestava Antoine quando aparecia ao jantar outro prato de pâncreas de vitela ou de carne magra ou de frango grelhado. — Nem tenho aversão a batatas. E detesto vegetais cozidos em água e temperados com óleo mineral."
Mas a jovem Sra. Antoine era muito firme. Em consequência, Antoine passou a jantar em casa apenas uma ou duas vezes por semana. Nem davam por sua falta. Armand e sua nova filha passavam uma feliz hora de jantar discutindo o cardápio do dia seguinte. Não foi de espantar que ele começasse a adorá-la...
Dentro de menos dois meses ela estava grávida com a maior felicidade.
Num mundo doente de morte, que vivia num pesadelo de fúria, loucura, confusão e ódio, tão sacudido e atacado por mil boatos, que apresentava uma enorme quantidade de aspectos elevados ou deprimidos pelo clarão de uma selvagem Noite de Valpúrgia, que ressoava com os guinchos e gritos de loucos sem rostos — a jovem Sra. Antoine vivia uma existência plácida e isolada.
"Você é tão repousante, meu bem! — costumava dizer Antoine para ela ao café da manhã, quando ela falava alguma asneira. — Você não chega a ter o cérebro de um camundongo..."
Ele conhecia muitas mulheres sem cérebro de ratos, porém elas nunca pareciam dar-se conta disto. Eram cheias de seriedade, e discutiam muitos problemas com ares de intelectuais. Era delicioso encontrar uma que felizmente aceitava o fato de ser uma idiota, estava contente com seu papel insignificante, e tinha um lindo riso que não significava nada.
O sombrio castelo à margem do rio começou a tomar ares de festa e de alegria, incongruente com suas características. "Como uma antiga giganta usando um chapeuzinho maluco de banda a cobrir-lhe um olho" — comentava Antoine. Porém agora a luz do sol invadia as imensas peças escuras. Vasos de flores apareciam nos peitoris de todas as janelas. Antoine nada disse, até que seus queridos Rubens e Goyas subitamente desapareceram, e ele descobriu que seu armário de antigas e curiosas caixinhas de rapé haviam sido atiradas no depósito em cima de uma das garagens.
"Mas aquelas caixinhas eram tão repelentes, querido! — disse a jovem senhora, vermelha, e com os olhos cheios de lágrimas. — Eu as olhei. Algumas tinham figuras tão horríveis nas tampas... Eram mofadas e velhas, e não tinham nada de bonitas. Além disso, ninguém mais usa rapé, então para que você as quer?"
O armário reapareceu na biblioteca, e Antoine guardava a chave. A Sra. Antoine pôs um vaso de flores sobre ele, e arrumou as cortinas das janelas de jeito a que o armário ficasse sempre à sombra.
E então, de repente, Antoine achou sua mulher intoleravelmente cansativa.
Ele sempre havia admirado sua parenta Rosemarie Bouchard. Era mulher inteligente e perversa, possuía um espírito sagaz e língua viperina. Ele sabia de seu caso com Henri Bouchard, como também sabia que ela possuía muitos outros interesses. Tinha algum talento para escrever "pequenos perfis" de pessoas preeminentes, escritos por ela, frequentemente apareciam nas revistas da moda, e mesmo em jornais. Presentemente Rosemarie estava em Washington, onde tinha muitas amigas entre as esposas de senadores e funcionários do Departamento de Estado. Andava escrevendo colunas ocasionais para o jornal de um sindicato, e Antoine se deliciava com sua inteligência, sabor picante, suas observações sutis e perspicazes sobre a situação nacional e a internacional. Visitou-a várias vezes. Aborrecia-o que ela ainda estivesse tão interessada em Henri, porém lentamente começou a ter esperanças para si próprio. Dessas visitas voltava muito estimulado e com a mente confortada, e era capaz de tratar sua pequena esposa com muita afeição. Após um estimulante jantar, um frappé doce era bem apreciado.
Rosemarie, por sua vez, começou a esperar pelas visitas de Antoine com crescente interesse e prazer. A semelhança de temperamento e modo de pensar entre eles, mesmo a semelhança física, a divertiam. Além disso, ela era de grande utilidade para ele. Podia informá-lo a respeito dos mais leves boatos, das mais ligeiras mudanças de opinião dos poderosos de Washington. Ele começou a anotar suas informações, enquanto se achava no pequeno e elegante apartamento dela. Discutia com ela muitas questões de importância e, embora perfeitamente cônscio de que ela era corrupta, traiçoeira e gananciosa, sabia poder dispensar excessos de precaução durante essas tardes com ela. Desejavam as mesmas coisas. Compreendiam-se. Podiam ajudar-se. Nos começos da primavera de 1940, estavam apaixonados. Ela não esteve mais com Henri — mesmo durante suas breves visitas a Washington — mas podia contar a Antoine muitas coisas a respeito do odiado parente, coisas de extrema importância para ele.
Devido a seu livre acesso aos salões de Washington, ela podia também contar-lhe muitas outras coisas. Agindo como sua espiã, ela procurou políticos, proprietários de jornais, preeminentes politiqueiros, mulheres poderosas, e, finalmente, foi capaz de pôr-se em excelentes termos com os homens altamente colocados do New Deal. Todos a julgavam meramente uma mulher brilhante e intelectualmente curiosa, de aparência encantadora, gosto excelente, e grande simpatia. Tudo que lhe contavam era relatado a Antoine, com as opiniões sutis de Rosemarie.
Quando o America Only Committee subitamente surgiu em preeminência, Rosemarie apareceu entre os organizadores — mas apenas sob sigilo: era por demais inteligente para permitir que seu nome fosse usado. Ela sabia que uma parte de sua família estava fornecendo as enormes quantias necessárias para sua existência e sua expansão. Por causa disso, foi procurada pelos funcionários do Comitê. Escreveu muito da propaganda que aparecia em seus panfletos. Escreveu muitos dos textos para rádio que eram lançados ao espaço por locutores comprados subornados e traidores. Antoine lhe fornecia certas informações e sugestões. Estava entendido, claro, que o nome Bouchard jamais aparecia de qualquer forma.
Foi Rosemarie que trouxe muitos senadores ao America Only Committee por meio de polpudos cheques, promessas, ou mesmo delicada chantagem. Rosemarie nunca apareceu na Embaixada germânica, e até a ouviram expressar seu desprezo a aversão pelo Terceiro Reich e por Hitler. Entretanto, era curioso que muita da propaganda escolhida de Goebbels aparecesse em seus escritos, inteligentemente transformada e disfarçada, mas ainda virulenta.
"Lembre-se: o motivo deve sempre ser americanismo, e muito patriótico" — prevenira Antoine. — "E apoie o ‘Constitucionalismo. Tudo deve ser muito digno, sólido e respeitável. Pode deixar os clérigos gritarem tanto quanto possível: tudo é desculpado sob o nome da religião. A propósito, você deve gravar neles que o motivo deles é ‘cristianismo’, em oposição a ateísmo, judaísmo e comunismo. Também é necessário que nos asseguremos os serviços de algum herói nacional, algum homem preeminente. Procure-o."
Portanto, foi Rosemarie Bouchard que achou o "herói nacional" que podia agir como o porta-voz do America Only Committee.
Capítulo 29
O Capitão August Jaeckle era de velha cepa germano-americana; nascera em Wisconsin, a 2 de janeiro de 1900. Aproximava-se agora dos quarenta e era de considerável beleza. Possuía aquela indestrutível mocidade de rosto e de aparência tão irresistível às mulheres, pois era de estatura mediana, cabelos claros, crânio de adolescente, e feições imaturas e um tanto estúpidas. Mesmo nessa idade ainda possuía uma murcha juventude; a mente por trás da lisa testa inclinada se petrificara nos catorze anos de idade. Era um grande atleta, frequentemente citado quanto à necessidade de ensinar à juventude a resistência física e a construir uma musculatura, e suas observações sobre a clássica tendência das escolas americanas eram muito fortes e desdenhosas.
"Vejam a Europa! — dizia, com profundo escárnio. — Temos de ensinar nossa juventude a honrar o corpo."
Como suas observações sempre se distinguiam por uma profunda estupidez, o público americano o considerava um verdadeiro oráculo. Deliciavam-se com fotografias dele. Com seu semblante sério e insípido, de feições pequenas e um tanto efeminadas, a madeixa de cabelos claros a cair-lhe na testa, seu ar de inocência e grave dedicação, os grandes olhos azuis-pálidos brilhando de fanatismo, atraía irresistivelmente as mulheres americanas e também certo tipo de homens. Não lhes importava que ele fosse um idiota e um ignorante poseur, sempre buscando apaixonadamente publicidade barata (apesar de sua aversão altamente anunciada pela "imprensa". Ele era um herói! Personificava a "juventude americana."
Um herói, na verdade!
Pois August Jaecklé, na tenra idade de dezessete anos, nobremente mentira a respeito de sua data de nascimento e se alistara no Exército americano em maio de 1917. Dois de seus irmãos já estavam servindo na Marinha.
"Eu costumava chorar, depois que mamãe me dava o beijo de boa-noite — gostava de dizer, com um doce sorriso retrospectivo, e esse seu arzinho tímido punha em convulsões de terno êxtase mulheres de meia-idade. — Eu não podia aguentar isso, pensar em George e Heinrich firmemente estabelecidos em seus couraçados, com o vento em seus rostos, enquanto eu desperdiçava meu tempo no Ginásio Shinehaha. Mamãe tentava consolar-me: eu era o mais jovem, o seu caçulinha! Não suportava pensar em mim juntando-me a meus irmãos na defesa de nosso país. Foi ainda pior para ela quando George foi morto no mar. Ela chorava muito. Mas havia algo em mim... talvez a voz de meu pai: ele foi morto na guerra hispano-americana, sabe, exatamente antes que eu nascesse... que me instigava a servir a meu país. George Washington e Lincoln sempre foram meus heróis. Assim, um dia dei-lhe um beijo de despedida. Ela não tinha a menor ideia de que não tornaria a ver-me por perto de dois anos. Mas eu sabia. Ela pensou que eu estava indo para as aulas. Mas fui a um posto de recrutamento."
Aí, ele sorria de novo, adoravelmente, com grande ternura para a visão daquele valente escolar marchando para a guerra, com o beijo de sua mãe ainda estampado em sua face infantil. Os olhos ficavam úmidos. A voz tremia. Dava uma respiração funda e trêmula em seu peito imaturo, ainda efeminado aos trinta e nove anos. Quase sussurrava: "Mamãe!" A esta altura, não era raro que senhoras sensíveis controlassem os soluços. Já então todos sabiam que a mãe Jaeckle morrera de pneumonia, durante a epidemia de influenza, sem sequer ver seu valoroso filho já nas trincheiras da França.
Também todos sabiam que August se tornara um herói quase da noite para o dia. Sozinho, destruiu um ninho de metralhadoras de quinze alemães (também rapazinhos), fizera vinte prisioneiros, e os fizera marchar para suas próprias linhas, tendo no rosto um olhar severo e exaltado. Ninguém, a não ser August, sabia que fora um pequeno atirador judeu, apanhado com ele e mais dez outros numa cratera produzida pela explosão de uma granada, quem realmente destruiu o ninho de metralhadoras, morrendo poucos minutos depois com uma bala no coração. Felizmente, uma granada de mão de outra cratera isolada destruíra as outras testemunhas desse ato de suprema perícia e heroísmo, deixando August sozinho e quase louco de terror. Ele se erguera gritando de sua própria cratera e, na corrida de volta a suas linhas, cruzara com os vinte alemães amedrontados em outra cratera. Exaustos, famintos, doentes e desesperados se renderam a ele com gritos de alegria. Na verdade, literalmente o perseguiram, implorando que os aprisionasse. Ele finalmente voltara a si, e fizera a vontade a seus "cativos".
Sempre vivia em seu estúpido e amedrontado coração o medo de que alguém, em algum lugar, pudesse saber a respeito do pequeno atirador judeu. Em consequência — e em virtude do mecanismo de autodefesa que opera tão obscuramente na alma humana — ele se tornara um antissemita radical. Durante os seus dias de escola nunca fora religioso. Mas agora se tornou um "cristão" militante, um odioso e fanático inimigo de tudo que fosse irreligioso. O mecanismo de defesa operando vigorosamente, a Rússia se tornou para ele o símbolo do "anticristo". Odiava todas as coisas com sabor de comunismo que, de modo peculiar, era para ele símbolo do judaísmo. Por vezes, à noite, quando diante do seu olho interno se erguia a fisionomia do pequeno atirador judeu, severo, repreensivo e desdenhoso, ele não podia dormir. Caminhara incansavelmente, transpirando, chorando, torcendo as mãos, todo o seu ser ardendo de ódio. Era então que desabafava nos gritos mais torpes e obscenos, ou em voz baixa e sussurrante, intensa de loucura.
Pois ele amava seu heroísmo. Amava sua publicidade. Usava suas medalhas com egotismo apaixonado, apesar de toda a sua propalada "modéstia e timidez".
Aos trinta anos casou com uma viúva rica e jovial, uns dez anos mais velha que ele. Algumas senhoras fátuas declararam que ela era para ele o "símbolo materno"; e na verdade muitas vezes o ouviram confessar timidamente, com um olhar profundo para sua mulher, que "Emma se parece muito com a minha querida mãe". Depois de um ano de casamento, começou a chamá-la "Mama", embora ela não tivesse tido um filho. A viúva era mulher de não pequena inteligência, e possuía considerável perspicácia. Embora não gostasse de ser chamada de mamãe (pois era bonitona e tinha grande estilo), ela nunca o demonstrou. Seu primeiro marido fora apenas um gordo negociante de notável desonestidade, e a seu respeito nunca houvera nada para inspirar rapsódias na imprensa. Na verdade, como fizera o seu dinheiro fornecendo cobertores ordinários para o Exército, preferia a obscuridade. Assim a Sra. Jaeckle usou orgulhosamente a sua nova fama, transferiu uma considerável fortuna para o marido "menino", sorria-lhe em público, muitas vezes alisando-lhe (com ostentação) a mecha rebelde, e posava com ele, de modo juvenil, para fotógrafos de imprensa. Também deu entrevistas para repórteres femininas, nas quais gorjeava sobre o querido August, "sua doce juvenilidade, simplicidade, mente profunda e científica, e louvável timidez". Isso depunha em favor das habilidades histriônicas da mulher, pois conhecia muito agudamente a mesquinhez mental do marido, sua estupidez, ignorância, avareza e petulância. Sabia-o, também, capaz de apenas uma grandeza: odiar. Desprezava-o. Mas lhe era grata por elevá-la do anonimato, pois era mulher inteligente, de talentos e realizações.
Contudo o público, embora adorador, tem um novo herói a cada dia. August não podia competir para sempre com belos atores de Hollywood, jogadores de futebol, cantores de rádio, e o mais recente e colorido gangster. A Sra. Jaeckle viu a nuvem de adoradores se diluindo no ar. O brilho das medalhas já não era o bastante para deslumbrar os caprichosos olhos do público.
A Sra. Jaeckle era realmente esperta. Mais: tinha um olhar autêntico para homens verdadeiramente grandes e nobres. Entre seus amigos havia um cientista, um conde belga, que na ocasião lecionava trigonometria em alguma obscura universidade de Nova Jersey. Aparentemente estava condenado a passar sua vida nessa estagnação quando, subitamente, descobriu um novo sistema de matemática que o ergueu, por algum tempo, à mesma fama precária do mais recente assassino italiano de Chicago. Apenas poucos e brilhantes homens podiam pretender compreender o último sistema no domínio da mais clássica das artes: a matemática. Todavia o aplauso dos jornais e o mistério tornaram o público cônscio desse novo herói, embora onde residisse seu heroísmo o homem comum não pudesse dizer...
Então, um homem compreendeu, um homem entre os cinco que achavam que o sistema não era mistério para eles. Claro, esse homem era o Capitão August Jaeckle, agora quase esquecido. A fama nem sempre traz recompensas lucrativas. O conde belga estava bem cônscio dessa verdade amarga e não hesitou muito mais de uma hora de aceitar o cheque de dez mil dólares da Sra. Jaeckle, uma pensão anual permanente de dois mil dólares e uma pequena casa novinha perto do campus da universidade. Por essa recompensa recebida na calada, ele deixou que soubessem — com muita relutância — que o Capitão August Jaeckle estudava com ele há muito tempo. Sendo que o Capitão August, em sua timidez, nunca havia permitido que o público adivinhasse sua secreta devoção pela matemática.
"Foi sempre uma espécie de vício que tive" — confessou August, corando e piscando muito os olhinhos brilhantes.
Dois de seus antigos professores no Ginásio de Shinehaha ficaram muito espantados com tudo isso, mas compreendendo que não adiantava nada refutar, concordaram em ser entrevistados, com fotografias, e declararam que "o querido August sempre fora o garoto-prodígio em matemática em suas classes". Ficaram muito gratos pelos cheques substanciais enviados pela ainda mais grata Sra. Jaeckle.
A fama da matemática serviu por um ano de nova e elevada publicidade para August.
A Sra. Jaeckle era infatigável. A ânsia de notoriedade era uma doença naquele corpo de cinquenta anos de idade. Quando a nova fama começou a declinar, buscou febrilmente novos campos para August conquistar. Fez alusão a divórcio. Os jornais enlouqueceram! Ela negou os boatos. Isso serviu por dois meses. Ela e August quiseram adotar duas crianças. Fotografias de uma multidão de órfãos apareceram nos jornais, com grandes cabeçalhos indagando apropriadamente: "Será este?" August, por sua vez, ficou muito interessado por aviação, mecânica, economia, problemas sociais. Era uma autoridade sobre o Presidente Roosevelt — a quem odiava. Fez conferências. (A esposa escreveu as conferências.) Viajou, falando sobre praticamente todos os assuntos, sempre tímido, modesto e juvenil.
Nesse ínterim, a fortuna da Sra. Jaeckle começou a mostrar sintomas de desgaste, devido às novas teorias sociais da Administração. O que despertou nela um amplo e histérico ódio. Achou eco em August, que mais que tudo temia a pobreza e a obscuridade. August começou a falar sobre o "bolchevismo americano", "o novo comunismo americano", "a ditadura de Roosevelt", "conspiradores internacionais contra o americanismo puro." Sugeriu que o mundo feminino e o Lar estavam na mira de nefandos conspiradores. Estava novamente famoso.
August foi convidado pelo Governo alemão para visitar o Terceiro Reich, e ver por si mesmo como a nova ordem estava operando na Alemanha, como a propriedade privada, a empresa e a iniciativa privadas eram recompensadas e encorajadas, como a pura feminilidade era protegida, como a juventude era treinada em cultura física, como era reverenciado o Lar. Acompanhado pela "Mama" August foi à Alemanha: foi festejado, fotografado, seguido por multidões (cuidadosamente pastoreadas por tropas de choque em posições estratégicas para os fotógrafos), e condecorado pessoalmente por Hitler. Voltou para a América, estonteado com a adulação, seu mesquinho e impuro coraçãozinho inchando de orgulho e emoção. Foi consultado por funcionários do Departamento de Estado sobre a "verdade" a respeito da Alemanha, e suas observações lhes deliciaram os corações. Sua primeira conferência, após a volta, foi uma apologia do antissemitismo germânico. A segunda declarava que a Alemanha era invencível no ar, em terra, e no mar. A terceira: que Hitler era um semideus!
"Devemos aprender que existe um novo espírito surgindo no mundo!" — gritou, para um auditório de gordas senhoras de meia-idade que gostavam de ouvir falar do masculino desdém de Hitler por tudo que fosse feminino. "Devemos aprender que a correnteza da evolução humana não pode ser prejudicada por tolos idealistas e democratas desgastados! Não podemos fugir à dinâmica revolução da alma humana, como é expressa na política. Política é História! Na Alemanha se ouve o estrondo de um poderoso renascimento do mundo! Por mais que cerremos os ouvidos, o trovão penetrará. O futuro está na Alemanha! Não podemos silenciar sua voz. Podemos apenas acompanhá-la, se formos covardes, ou marchar com Hitler, na vanguarda, se temos coragem, orgulho e o espírito da verdadeira América em nossos corações."
Sempre falava com ardor e autêntica paixão, pois ultimamente o rosto do pequeno atirador judeu tinha um modo terrível de encontrá-lo todas as noites, quando ele estava só.
August estava famoso outra vez, mais famoso que nunca. A indignação, o escárnio e o furioso desprezo de seus inimigos apenas o faziam mais famoso. Violentas controvérsias ocorreram em toda a América, na imprensa, em fóruns públicos, em salões e em cozinhas. O Bispo Halliday fez uma série de palestras no rádio sobre esse "vibrante jovem herói americano que ouviu o apelo do Futuro". Organizações subversivas, que já se formavam às escondidas — usando nomes heroicos como Amigos da Constituição Americana, Guardiães da América, Soldados de Washington, etc. — convidaram-no para falar.
A guerra deu a August sua maior oportunidade. Ele fez inúmeras conferências sobre a loucura de "intervir nos conflitos europeus", e de dar ajuda e conforto à Rússia, a arqui-inimiga de Hitler. Hitler era o baluarte contra o comunismo universal. Mais ainda: nós não tínhamos nada com a guerra. Hitler nunca, em nenhum momento, sonhou atacar a América. Que ele pretendia fazê-lo foi mentira de "intervencionistas, comunistas, anticristãos, banqueiros internacionais, provocadores de guerras que desejam lucros com as mortes de nossos rapazes, americanos de primeira geração, Moors (mouros, termo eufemístico para judeus), políticos do New Deal, que querem uma guerra que os mantenha no poder", e praticamente todos que discordassem de August. Seu slogan "O Trovão Chegando" inspirou um pequeno e bem-sucedido volume escrito por Franz Haas — mais tarde acusado de agente do Governo alemão.
O público americano, suando em secreta e terrível inquietação desde o horrível ataque à Polônia por Hitler, finalmente se tornou selvagemente vociferante e excitado. Muitas regiões, antes adoradoras de August, começaram a desprezá-lo, a chamá-lo de louco, de herói de fancaria, mascarado, charlatão insignificante, bobo presumido, soleníssimo idiota, ignorante e tapeador. Em sua ira, viam o herói como ele era, e sua fúria contra ele era fúria contra si mesmas por ter sido parte do seu cortejo de adoradores. Suas pretensões à erudição foram desmascaradas. Uma de suas professoras, que nunca cessara de lamentar sua duplicidade, e que tinha um ancestral que lutara e sofrera com Washington, agora declarou sua loucura e a sedução que sofrera por parte da Sra. Jaeckle. Todavia, como ninguém nunca entendeu a fama da matemática de qualquer maneira, essa trêmula voz mal foi ouvida.
Homens sérios e inteligentes atacaram August na imprensa, no púlpito, e no rádio. Esfolaram-no vivo. Expuseram-no à zombaria de seus ouvintes esclarecidos. Um a um, demoliram seus tolos argumentos. Denunciaram-no como um simplório e um imbecil, ator barato, e puseram em dúvida sua lenda de heroísmo e sua alegada aversão por publicidade.
Entretanto, como esses homens eram inteligentes cavalheiros de ciência, sabedoria e compreensão, o povo americano antipatizava com eles intensamente. Preferia os gritadores que defendiam August, pois esses gritadores eram violentos, coloridos, dramáticos e maliciosos. Suas mentiras eram extravagantes e monstruosas, e inspiravam a delícia das massas. Pregavam o ódio mais desprezível, e as massas se contorciam de lascívia sadista.
"Minta para o povo, procure agradá-lo em seus preconceitos, faça com que deseje sangue — especialmente o sangue dos indefesos — faça-o odiar, faça-o ansiar por morte e destruição, e pode fazer dele o que quiser", disse o Bispo Halliday, um astuto servo de Cristo, e também amigo querido e servente do Barão von Teckle, Chargé d’Affairs na Embaixada alemã.
No Sul, onde viviam americanos de antigo sangue britânico, August era amaldiçoado. Em muitas partes do Oeste isso também era verdade, exceto nas regiões cheias de descendentes de alemães. Grande parte dos adeptos de August estava entre as populações das cidades do Norte, originárias da Polônia, Itália, Alemanha e Irlanda. Após uma conferência de August, muitos judeus foram atacados nas ruas de Nova York. O Bispo Halliday estava deliciado!
Tudo isso, no entanto, enquanto fazia August muito famoso, ou infamado, não aumentava a sua fortuna, ou melhor: a da Sra. Jaeckle. August estava maduro para a subversão.
Rosemarie Bouchard conhecia muito bem a Sra. Jaeckle e a procurou muito discretamente. Os detalhes nunca foram conhecidos. Mas, subitamente, August se tornou funcionário do America Only Committee, e sob seus auspícios adquiriu alta e sólida respeitabilidade. Rosemarie poliu os escritos dele, escreveu muitas de suas conferências públicas. Ele, que no passado só havia adorado a si mesmo, começou a adorá-la, a segui-la, a tocar-lhe a mão timidamente, a sonhar com ela. Essa mulher morena e vital, que de modo nenhum parecia "Mama", nem a Sra. Jaeckle (agora enorme de gorda, informe e bigoduda), lhe perturbava os sentidos. Trabalharia para ela sem qualquer recompensa a não ser seu sorriso, e a promessa contida nesse sorriso.
O Capitão August Jaeckle tomou-se uma das mais importantes e perigosas figuras da história contemporânea americana durante o primeiro ano da Segunda Guerra Mundial.
Rosemarie Bouchard encontrara seu herói para o America Only Committee. A facção de Antoine ficou altamente satisfeita.
Capítulo 30
Antoine, com os gestos graciosos e maneiras despreocupadas que herdara do avô Jules, serviu outra dose de Cointreau no delicado copo do tio Christopher. Sorria ao fazê-lo. Christopher recostou-se na cadeira, ergueu o copo contra a luz, apreciativamente, e também sorriu.
— Então, recebeu também a Águia da Aviação — observou Antoine, voltando a sentar-se e erguendo o copo numa saudação. — Bom julgamento por parte do velho Cara de Pedra. Pague ao diabo o que lhe deve, ele geralmente escolhe o homem certo. Então não voltará à Flórida?
— Ficarei transando entre Windsor, Flórida e Detroit. Temos planos de construir uma grande fábrica em Buffalo, também, e talvez em Los Angeles. Henri sugeriu que o Governo britânico já se aproximou dele com uma oferta para ajudar na construção das fábricas. O plano pague-e-leve em breve estará em operação. Sempre existe um meio de contornar a Lei de Neutralidade, e o bom velho Hugo está trabalhando para essa finalidade no Departamento de Estado.
Antoine riu:
— Jogando as extremidades contra o meio, o habitual jogo Bouchard. Nesta guerra, faremos isso por algum tempo. Não que eu o aprove, claro. Temos nossos planos. A Inglaterra não deve ser muito bem abastecida: esta é nossa ideia original. Você ainda concorda?
— Naturalmente! — replicou Christopher, gravemente. Girou o copo nos dedos descarnados e transparentes, e olhou o sobrinho fixamente com aqueles olhos gateados, tão enigmáticos e imóveis.
Os dois homens estavam confortavelmente instalados na grande e sombria biblioteca do castelo de Armand. Um belo fogo ardia na lareira de mármore negro; fora caía, maciamente, uma neve acinzentada, nesse princípio de dezembro.
— Acho que é melhor convocarmos uma reunião, Chris — sugeriu Antoine após um olhar pensativo ao fogo.
— Quanto mais cedo melhor. Hugo está vindo para casa passar o Natal, e sei que está trazendo com ele o Senador Briggs e um ou dois outros. Agora devemos mover-nos rapidamente. Sei de fonte certa que a França cairá na primavera. O que será o começo do fim.
O sorriso cintilante de Antoine brilhou na penumbra da sala aquecida:
— O fim! O fim do Império Britânico! Sabe, sempre odiei os ingleses seja pelo que há de francês em mim. De modo que tenho uma razão pessoal. Quanto tempo você pensa que se passará até que o Leão seja esmagado até o cerne?
Christopher ficou silencioso por alguns momentos. Depois disse, maciamente:
— Já pensou na Rússia?
— Rússia! Por Deus! Stalin assinou um pacto com Hitler, não é?
Aí Christopher sorriu seu curioso sorriso gelado:
— Conto-lhe mais alguma coisa. Hitler atacará a Rússia em algum momento do próximo verão.
— Impossível! — Mas Antoine olhava de modo penetrante para o tio. — Não até que a Inglaterra esteja acabada. Pensa que, na ocasião, a Inglaterra já terá soçobrado?
— Não — redarguiu Christopher, placidamente. — Não penso isso. E porque a Inglaterra não será esmagada, Hitler se voltará para o Leste. Sempre foi essa a missão dele, você sabe.
Antoine levantou-se rapidamente e começou a caminhar abaixo e acima. Franzia a testa, atentamente:
— Não gosto disto. Você nunca falou sem saber o que estava comentando, Christopher. Se Hitler ataca a Rússia antes que a Inglaterra esteja acabada...
— Então — disse Christopher, muito suavemente — ele está acabado.
Houve silêncio na sala, enquanto Antoine se movia silenciosamente acima e abaixo nos espessos tapetes. Repetidamente relanceava o olhar para o rosto magro e encovado de Christopher. Mas nada podia ler ali, embora o fogo avermelhado reluzisse nos ossos frágeis e tensos e tornasse vívidas as cavidades dos olhos.
— Ele deve ser detido — falou Antoine, por fim, parando diante do tio.
— Como?
— Vou a Nova York na próxima semana. Von Teckle deverá encontrar-se comigo lá.
— Isso é perigoso, Antoine. Se forem vistos.
— Não serei. Irá comigo?
Christopher hesitou. Depois assentiu:
— Sim.
Antoine tornou a sentar-se na beira da poltrona, os braços resistentes dobrados sobre os joelhos. Contemplou Christopher num longo silêncio, sorrindo de modo peculiar:
— Gostaria de ter certeza sobre você, Chris — observou, suavemente.
Christopher deu de ombros:
— Meu querido papai costumava dizer: "Nunca confie em ninguém a não ser no diabo."
— Você está nisso conosco profundamente, Chris — disse Antoine, reflexivamente, voltando-se para o fogo outra vez com uma expressão gentil.
Agora Christopher estava sorrindo, divertido:
— Por acaso está me chantageando?
Antoine, a sorrir-lhe também, fez um gesto latino com aquelas ágeis mãos morenas:
— Claro que não! Certamente não! Mas, como disse o meu querido avô, "Nunca confie em ninguém a não ser no diabo." Você não é completamente um diabo, Chris. Mas o velho Cara de Pedra há de ser duro de convencer.
Christopher o estudou curiosamente:
— Ainda tem medo dele, hein?
Antoine lhe relanceou um olhar cheio de ódio e de ira. Mas disse, com bom humor:
— Você deve lembrar que o meu querido papai é também pai de Annette. E enquanto permanecer este fato, Henri continua um Bouchard. Estive pensando...
— Sim?... — acudiu Christopher, prontamente.
Contudo Antoine voltou para ele os olhos negros e penetrantes, antes de responder:
— Acha que a Galeria Cinzenta esqueceu sua inclinação por nossa pequena Celeste?
Christopher não se moveu. Mas cada músculo nervoso ao longo de seu corpo estremeceu. Disse:
— Não sei. Terá esquecido?
Antoine tornou a levantar-se e se dirigiu à janela. Olhou para fora, a neve. Sem se virar, perguntou:
— E... se não o fez... qual é a sua posição?
Christopher depositou o copo cuidadosamente na mesa, muito corretamente, muito precisamente:
— Minha posição? Nenhuma. Celeste pode cuidar de si mesma, no que me diz respeito. Não é uma criança. O que faz é de sua própria escolha. Mas posso dizer-lhe uma coisa: ela não se divorciará de nosso moribundo Galahad.
— Mas, e após sua morte?
— Henri sabe onde lhe aperta o sapato. Ele não se divorciará de Annette. Pode imaginá-lo fazendo algo de tão indiscreto? Tão desastroso?
— Não — confessou Antoine, voltando-se da janela.
Meteu as mãos nos bolsos. Esse gesto em nada perturbava sua elegante aparência ou roubava graça à sua esbelta figura. Agora seu rosto estava numa tal sombra que Christopher não podia vê-lo. Mas lhe sentia o alerta maligno.
— Naturalmente você sabe que nossa angelical Celeste tem se encontrado com o Homem de Ferro num confortável rendez-vous de Nova York com absoluta regularidade?
Pela primeira vez Christopher demonstrou alguma perturbação. Suas mãos estremeceram nos braços da poltrona. Mas disse calmamente:
— É mesmo? Quem é seu informante?
Sentiu, mais do que viu, o sorriso perverso de Antoine:
— Não lhe posso dizer isto. Mas sei que a fonte é autêntica. Será possível que esteja perturbado, Chris?
Deliberadamente, Christopher relaxou, e disse:
— Não. Como observei antes, o caso é com Celeste. Mas a que leva tudo isso?
Antoine voltou à sua cadeira, sentou-se, inclinou-se para o tio, sorriso amplo e brilhante:
— Sim, você está nisto conosco bem profundamente, Chris. Henri poderia estar interessado em saber o quão profundamente. Guardamos minutas, você sabe. A propósito, ele ainda não tem a menor ideia?
— Posso votar por isso — disse Christopher, mantendo um tom de voz neutro. — Se tivesse, não acha que ele teria se mexido antes disso? Ainda pode esmagar-nos. Sim, como você tão sutilmente salientou, estou muito metido nisso. Mas, como lhe perguntei há um momento: a que nos leva tudo isso?
— Só isso — replicou Antoine, docemente: — Se minha irmãzinha ouvir falar desse rendez-vous delicioso, calculo que imediatamente se divorciará da Geleira Cinzenta. E... se houver um divórcio... — Adejou rapidamente as mãos, e fez com os lábios um gesto como se soprasse uma pena.
— Henri estará acabado — concluiu Christopher. — Bem acabado. Meu gordo irmão o atirará para fora de Bouchard, bônus ou não bônus. Claro, em tal caso, Henri poderia ser levado a arruinar Bouchard. Pensou nisso?
Antoine estava silencioso. O rosto moreno se franzia secamente. Os olhos se fixaram no rosto sem sangue de Christopher, cuja boca sorria de leve.
— O plano, seu plano, cheira mal — disse Christopher, ainda em tom gentil. — Não podemos arriscar o esmagamento de Bouchard. Já ouviu falar em Sansão? Há algo em Henri que me lembra Sansão. — Deteve-se, depois continuou:
"Se ele destruir Bouchard, destruirá a si mesmo, diria você. E quanto a você? Você é Secretário de Bouchard. Gostaria de fazer parte da destruição?
Antoine não respondeu. Começou a esfregar a boca franzida muito delicadamente com o dedo indicador. Isso não lhe era habitual. Christopher viu o gesto, e subitamente foi como se ocorresse uma espantosa explosão em seu peito. Recordou aquele gesto, delicado, reflexivo: era do seu próprio pai. Agora ele estava vivo, ardendo, estimulado, com o mais fantástico e irresistível ódio por Antoine. Suas mãos agarraram os braços da poltrona, e suas narinas transparentes se dilataram. Por algum truque das luzes brincando nas feições de Antoine, tão morenas, tensas e estreitas, era o rosto de Jules que estava voltado para Christopher.
— Você não gostaria de destruição — ele repetiu, numa estranha voz rouca.
Antoine começou a sorrir:
— Então é assim... Você ainda está bem envolvido com a sua querida, hein?
A explosão de ódio incontrolável em Christopher ainda o sacudia. Mas disse, com bastante calma:
— Suponha que deixemos minha irmã fora disto. Apenas destaquei que você não poderá arruinar Henri sem arruinar a si próprio. Quer arriscar?
Ficou surpreso quando Antoine disse pensativamente:
— Gostaria de ver o testamento do velho idiota. Naturalmente, Annette terá sua parte. Haverá também a minha parte. Haverá alguma cláusula, naturalmente, para que Henri seja mantido como presidente de Bouchard. Entretanto, eu gostaria de conhecer os termos exatos do testamento. Tem alguma ideia? Afinal de contas, papai é seu irmão.
— Nunca fomos muito ligados, você deve lembrar-se — salientou Christopher. Seu triunfo era pouco menos desastroso em seu efeito físico sobre ele do que o seu ódio. — Jamais confiou em mim.
— Vocês empregam a mesma firma de advogados. Você poderia descobrir, Chris. Algumas perguntas discretas...
Christopher estava calado. Mas sorria outra vez. Ele se regozijava intimamente. Pela primeira vez triunfava sobre o pai ao triunfar sobre Antoine.
Antoine suspirou, abanando as mãos outra vez:
— Sim, como você observou, o plano cheira mal. Eu gostava muito dele. Havia envolvimentos pessoais, também. Entretanto, eu o terei em mente. Se formos forçados a usá-lo, você não objetará.
— Por que o faria?
Antoine subitamente sentiu-se aliviado quando pensou em algo:
— Manteremos as coisas quietas por um ano. A esse tempo, muito provavelmente, já não importará. O velho Cara de Pedra não estará em posição de esmagar Bouchard. Ainda assim, gostaria de conhecer aquele testamento.
Estudou atentamente Christopher:
— Eu também sou louco por minha irmã.
Christopher riu um pouco;
— Você sabe o quanto ela adora Henri. Annette não é uma imbecil. Eu não ficaria surpreso absolutamente se ela tivesse alguma ideia das vadiações de Henri. As esposas sempre sabem por alguma danada intuição. Se não fez objeções no passado, não fará agora.
— Pode ter sido obrigada a isso.
Christopher acendeu um cigarro:
— Eu não contaria com isso. E agora, poderíamos deixar de lado esse assunto? Temos coisas mais importantes para discutir, eu acho, do que o estado dos corações das mulheres.
Antoine começou a rir amavelmente:
— Gosta do nosso herói, Jaeckle? Está nos custando cinco mil dólares por mês, mas vale isso.
— Foi um ato inteligente — confessou Christopher. — Cinco mil dólares? Saem de que bolso?
— Do fundo geral, naturalmente. Rosemarie manobrou a coisa muito bem. Em nossa próxima reunião, sugerirei considerável aumento nos fundos para o Comitê. Ele agora tem mais três comitês subsidiários que também precisam de financiamento. Especialmente no Sul, entre os Ku Kluxers. Estamos considerando também o ângulo negro. Negros no Sul, judeus no Norte, mexicanos no Sudoeste, trabalhismo no Leste. Um programa muito nítido, posso dizê-lo. Podemos desorganizar tanto o maldito país que ele deixará de olhar para a Europa, durante algum tempo. Precisamos disso, enquanto completamos nossos planos. Hitler deve ter o campo limpo: não deve aborrecer-se por preparativos alarmistas na América. Deve ser estimulada a desunião. Não será difícil. A população não tem sequer o cérebro de um piolho.
"Rosemarie é uma moça brilhante. A família não a apreciou devidamente. Está agora organizando uma sociedade pacifista a ser denominada ‘Mães da América’. Todas as mamães nos espasmos da libido aderirão com entusiasmo, para proteger seus ‘meninos’. Tínhamos começado a subsidiar Halliday também, como sabe. Três mil por mês. Nossa próxima providência será organizar a classe média. Já ouviu falar daquele canalha de Nova York, o Patrick McHenry? Há anos vem bradando que Roosevelt está decidido a liquidar a classe média, mas ninguém lhe deu ouvidos por lhe faltarem fundos. Pretendemos fornecê-los.
Christopher ouvia atentamente. A intervalos balançava a cabeça, com ar de grave aprovação.
— Daremos a Roosevelt o bastante para pensar no que há em casa sem perturbar seu terno coração a respeito da Europa — acrescentou Antoine. Deteve-se: — Acha tudo isso muito cru? Falta delicadeza? Quando é que foi necessário usar táticas elegantes com as massas? Especialmente as massas americanas?
— Eu não disse que achava cru — disse Christopher.
Antoine pensou em algo mais:
— A propósito, ouviu o mais recente comentador, Gilbert Small? Estamos delineando um plano para que Jaeckle o denuncie como comunista, instrumento de Stalin, um provocador de guerra, intervencionista e mercenário do New Deal e enganado pela Inglaterra. Temos um dossiê a seu respeito. Uma pena que não seja judeu. Não é sequer um nova-iorquino, o que é sempre bom para nosso ramo de propaganda. É do Meio-Oeste, sendo sua mãe nativa do próprio Estado de Martin Dies. Tudo isso nos desarmou, temporariamente. Ele também é, infelizmente, um herói de guerra. Tentamos descobrir uma conexão entre ele e os comunistas espanhóis, mas devo confessar que seus despachos para seu antigo jornal, o New York Times, eram finos exemplos de reportagens neutras e desapaixonadas. Mais: como sabe, ele escreveu um livro sobre a Rússia que para sempre o barrou dos domínios de Stalin. Entretanto, para fins públicos, ele é um comunista. Pressionamos a cadeia de radiodifusão que lhe permite transmitir suas bobagens. Porém, por alguma razão misteriosa elas são resistentes, apesar das ameaças. E, mistério outra vez, ele está adquirindo uma turba de adeptos na América. Já o ouviu?
— Sim — disse Christopher, pensativamente. — Ouvi. Seus escritos são excelentes. Exatamente a quantidade certa de fogo, e muita lógica. Simples também, e emocionantes. Não é o estilo dele, sempre monótono e do tipo de reportagem. Imagino quem estará realmente redigindo esses trabalhos...
— Tentaremos descobrir isso, também. Mas permanece um mistério. Ele é perigoso para nós. Está ligado à American Freedom Association. Eu também gostaria de saber quem está financiando essa Associação. Nenhum de nós, pode estar certo.
A fisionomia de Christopher estava apropriadamente séria e interessada.
— Naturalmente — continuou Antoine — nosso America Only Committee tem até agora mais de três milhões de membros, enquanto a American Freedom Association tem menos de dois milhões, se tanto. E nosso Comitê está aumentando a cada dia. — Riu: — A Associação cometeu o engano de empregar cavalheiros e sábios, com exceção de Small. Ao passo que nos concentrávamos em vagabundos, incitadores da populaça, e mentirosos. Consequentemente, sempre seremos mais poderosos na América do que a Associação.
Ele estava se animando. Seu amor pela intriga era exaltado. Christopher o observava atentamente:
— Recentemente você esteve de visita a seu sogro, Boland, a respeito de embarques de petróleo e alumínio para a Alemanha? E quanto ao Canadá? O embarque de níquel?
— Vou vê-lo quando estiver em Nova York, Chris. A Itália tem bastante alumínio para Hitler. Mas petróleo e níquel são outras matérias. O problema do níquel será solucionado na próxima semana. Nossa subsidiária no Canadá já recebeu suas ordens. É só questão de uns discretos navios para a América do Sul... o que também está sendo arranjado. Porém mais importante do que isso: vou procurar o marido de Phyllis e seu sogro, o Morse Nacional, na próxima semana. Hitler vai precisar de fundos imensos em futuro muito próximo. Podem ser arranjados empréstimos através de Bancos na América do Sul, para não mencionar o Banco da França e o Banco da Inglaterra, e outros. O Dr. Schacht se encontrará com nossos representantes na Suíça em alguma ocasião durante os próximos três meses. A propósito: Phyllis, a irmã mais nova de Rosemarie, está organizando as Catholic Wives and Mothers of America, para ajudar nosso Comitê. Esperamos venha a ser uma potente organização.
Houve uma pancadinha na porta, que se abriu mansamente, mostrando o rostinho redondo e rosado da Sra. Antoine:
— Chá, queridos! — ela trinou carinhosamente. — E a querida Annette também está aqui, tio Christopher. Acabaram seus negócios muito, muito importantes?
Capítulo 31
Havia um grande fogo em um dos amplos salões, e ali, como se acocorados em redor do calor e da luz na imensidade de alguma caverna primitiva, cheia de sombras indistintas e de teto obscuramente esculpido, lá em cima, sentavam-se a jovem Sra. Antoine, Annette e Armand. A luz do fogo brilhava roseamente nas pratarias e no reflexo rosado das xícaras de chá. Por trás deles espreitavam as formas do pesado mobiliário e os dorsos espelhantes de longas mesas, como animais pré-históricos, entrevistos à luz tremeluzente. Haviam sido corridas as cortinas das janelas, cortinas que iam do chão ao teto e eram do formato de aberturas de catedral. Porém o vento rugia de encontro a elas como uma forte presença resistente. Nos quietos intervalos se podia ouvir o silvar seco da neve. Por vezes o fogo fulgurava e mostrava os escuros retratos nas paredes, os rostos espectrais aparentemente voltando à vida por um instante.
Antoine e Christopher se juntaram ao grupo perto do fogo. Antoine era todo afabilidade, o sorriso cintilante completamente radiante e cheio de risos. A Sra. Antoine, serenamente servindo o chá, de tempos a tempos lhe relanceava o olhar ternamente, o rostinho redondo e rosado florescendo de saúde e placidez, a silhueta baixinha já denunciando traços da próxima maternidade. "O querido Tony é tão inteligente! — pensou para si mesma. — "Ele brilha mesmo num dia como este." Ela era muito feliz.
Armand abrira um grande guardanapo branco sobre os joelhos. Como de costume, sua roupa estava amarrotada e manchada. Entre os espaços de suas madeixas grisalhas, o crânio brilhava. Envelhecera muito nos últimos três meses, mas andava mais calmo, quase contente, desde o casamento do filho. Por trás dos óculos, os olhinhos pretos estavam menos assustados, menos apreensivos. Entretanto, quando viu Antoine com Christopher, suas feições achaparradas se contraíram e disse, numa voz estranha:
— O inverno chegou cedo este ano.
Christopher ergueu a cabeça, alerta, e voltou os enigmáticos olhos para o irmão. Mas Antoine comentou, ligeiramente:
— Guerras sempre trazem invernos prematuros e cruéis.
— Que andaram vocês dois conspirando, novamente? — perguntou Armand, limpando migalhas dos lábios grossos. Sorriu, mas o sorriso era outra vez inquieto, medroso e astuto.
— Gostaria de saber? — disse Christopher, e um relâmpago cruel e divertido lhe passou no rosto magro.
Armand ergueu as mãos e as agitou. O prato balançou precariamente em seus joelhos: segurou-o quando ia a escorregar, com seu conteúdo.
— Não, não! — falou apressadamente e com outro sorriso amedrontado. — Acabei com tudo isso. Tudo que quero é que me deixem em paz.
Enxugou uma ou duas gotas de chá do colete. Christopher observou que a mão lhe tremia. O velho, seus olhos procurando refúgio, encontrou sua filha, Annette.
— Tony jamais conspira: ele é alegre demais — disse a jovem Sra. Antoine, graciosamente enchendo xícaras para o marido e o "tio Christopher."
— A queridinha quer dizer que não tenho miolos para "conspirar" — falou Antoine, destramente beijando a mãozinha gorducha que lhe entregava a xícara.
A Sra. Antoine sorriu, satisfeita:
— Como você torce o sentido de minhas palavras! Não quis dizer isso, Tony, e sim que você é bonzinho demais e feliz para importar-se com qualquer coisa além de seus livros e seus quadros. E alguns desses quadros são tão horríveis... Especialmente aquele... aquele Renoir. Aquela mulher gorda, completamente sem formas.
— À luz do sol, seu corpo havia de parecer um Renoir — comentou Antoine galantemente. — Toda gordinha e rosada e sombreados madrepérola.
A moça corou:
— Como sabe, garoto malcriado? Nunca me viu à luz do sol.
Annette, depois de cumprimentar o irmão e o tio com um fraco sorriso, nada havia dito. Sentava-se junto ao pai, o vestido preto fazendo-a parecer mais frágil que nunca. O rostinho triangular estava completamente perturbado, e parecia haver encolhido, diminuído ultimamente. Porém os grandes olhos azuis, tão cheios de luz, estavam mais gentis e mais profundos que nunca. A luz do fogo cintilava em sua cabeleira loura de um modo que ela parecia rodeada por um halo.
O vivido olhar de Antoine se demorou nela pensativamente por um momento. Depois ele disse:
— Onde está o Homem de Ferro? Não veio com você, Annette?
— Não. Teve de ir a Washington esta manhã. Presumo que se refere a Henri? — replicou Annette, com seu calmo e brilhante sorriso.
— Acho Henri um amor! — gorjeou a Sra. Antoine, olhando em torno contentinha, e amando seus parentes. — Ele me diz as coisas mais amáveis. Disse-me na semana passada que eu era exatamente aquilo para que fora feita, e que você me merecia, Tony. Não é lindo?
— Muito! — respondeu Antoine, meio de esguelha. Christopher ria, aquele riso silencioso e virulento que fez sua cara de caveira parecer assustadora à luz do fogo. Antoine tornou a voltar-se para a irmã: — Veio sozinha, coelhinha? Por que Celeste não veio também? Pensei que fossem muito amigas.
Annette mexeu o seu chá e aceitou um pequeno sanduíche do prato dourado que a Sra. Antoine lhe oferecia. Sua fisionomia estava calma:
— Celeste está em Nova York: uma discussão de última hora com os decoradores. Creio que há um par de lampiões de prata em Madison Avenue que ela quer e os decoradores são violentamente contra eles. Ela pretende acabar com as discussões e trazer com ela os lampiões.
— Então — disse Antoine, vagarosamente, olhando para Christopher, e sorrindo malevolamente — você e Peter estão sós em suas tumbas. Você em sua tumba quente, e Peter em seu mausoléu de vidro e cromo. Deveria tê-lo convidado, Mary.
Por um instante Mary ficou embaraçada:
— Oh! tenho convidado tio Peter e tia Celeste com frequência, querido. Mas nunca vêm. Desde outubro não vêm aqui. O querido tio Peter me deprime: parece tão doente... E o Dr. Gordon acha que não devo ficar deprimida.
Christopher já não sorria. Suas feições tinham a cor e a textura de gesso, outra vez. Sorveu o seu chá pensativamente. Antoine sorria diabolicamente. Zumbia suavemente sob a respiração.
— Celeste espera ter a nova casa completamente pronta lá pelo Natal — observou Annette. — Já nos convidou para o jantar de Natal. Todos da família que estejam em Windsor na ocasião. Faltam poucas coisas para completar a casa.
— Tal como os lampiões da Madison Avenue — concordou Antoine, sorrindo para ela.
Por um longo momento irmão e irmã se olharam num silêncio subitamente rígido. O rostinho de Annette estava pálido, os olhos brilhantes:
— Tal como os lampiões — ela concordou, por fim. Sua mão não tremia quando ergueu sua chávena.
Enquanto a olhava, o rosto de Antoine perdeu seu olhar malvado, tornou-se escuro e fechado à luz ondulante. Havia em seu peito uma dor peculiar, uma dor muito estranha. Afastou-se dela, mas sabia que ela ainda o fitava, indomável em sua fragilidade. "Ela sabe..." — ele pensou.
— Ouviu algumas notícias pelo rádio hoje, papai? — perguntou a Armand.
Armand apressadamente mastigou e engoliu um pedaço de bolo antes de replicar:
— Não. Nunca as ouço. São muito deprimentes. Já tenho a minha dose de perturbações. Estou deixando que o mundo se agite por si mesmo. — Sorriu pouco à vontade, e novamente seus olhos buscaram refúgio.
— Ouvi William Benson esta tarde — chilreou a Sra. Antoine. — Sempre pensei que devemos manter-nos informados. E as coisas são tão emocionantes agora, tão excitantes! É fácil ficar amedrontada. Mas o Sr. Benson é tão tranquilizador! Diz que devemos manter-nos calmos, e sensatos. Devemos apenas ser espectadores, e guardar a nossa paz. A Europa não é da nossa conta. Hitler não nos ameaça. Há três mil milhas de água, diz ele, e os provocadores de guerra não podem ultrapassá-las.
— Talvez os aviões possam — disse Annette, olhando afetuosamente a esposa de seu irmão.
Porém a Sra. Antoine estava "por cima":
— O Sr. Benson tocou nesse ponto, Annette querida. Nenhum avião poderia fazer uma viagem de ida e volta. Além disso, Hitler não está absolutamente interessado em nós! Esta é uma briga europeia; estão sempre brigando, essas estranhas criaturas de nomes bizarros. Não há nada conosco, o Sr. Benson é tão inteligente! Tem uma porção de argumentos que não compreendo muito bem, mas sei que são inteligentes. Ele compreende tantas coisas, mais do que a pobrezinha de mim...
Christopher olhou para Antoine:
— Esse Benson não é o novo comentarista da Rede Verde? E não é o homem da Associação Americana de Industriais?
Antoine estava muito malicioso:
— Não sabia disso. Tanto quanto sei, ele está na meia hora da Limonada Limey. Limonada Limey! Vocês têm de admitir que nós, americanos, temos um inconsciente senso de humor.
Armand estava dando sinais de inquietação:
— Temos de falar a respeito da guerra? Não teremos coisas mais agradáveis para discutir?
Havia medo de verdade, e angústia, naquele rosto gordo e intumescido.
— Tal como a Lista? — sugeriu Antoine. Voltou-se para a esposa: — O que é esta noite? Fígado? '
A Sra. Antoine empertigou-se. Sacudiu para ele o dedinho rosado, com um sorriso:
— Ora, ora, Tony! Hoje é quinta-feira, e sempre temos fígado às quintas. É tão bom para papai! Cheio de vitaminas, e sangue, acho. É bom para você também.
Antoine estremeceu exageradamente, e os outros riram.
— O que você tem para o jantar hoje, Annette? — perguntou à irmã.
— Na verdade, não sei — ela sorria ao responder. — Creio que é frango. Nossa governanta mencionou isso esta manhã, acho. Ou talvez o capão seja para amanhã. Por quê?
— Se for capão, ou qualquer outra coisa menos fígado, irei com você para sua casa.
O rostinho da Sra. Antoine estava franzido como se estivesse prestes a chorar:
— Oh! Tony, como pode ser tão mau? Desde sexta-feira que não janta conosco. Não vai realmente sair esta noite! Creio que há cebolas para você, se as quiser com o fígado.
Ele lhe deu um tapinha na mão:
— Se Annette não tiver capão, ficarei para o fígado — prometeu. — Sou louco por capão. Em Nova York até me chamam Capão...
— Duvido — falou Christopher — duvido mesmo! Poderia citar exemplos.
Até Armand riu da piada. Porém Mary olhou de um rosto jovial para outro, muito espantada:
— Nunca entendo as piadas de vocês — queixou-se. — Por favor, expliquem-me esta.
— O tio Christopher estava apenas sendo vulgar, bichinha — disse o marido, dando-lhe palmadinhas no rosto. — Eu não lhe sujaria os ouvidos.
Christopher estava consultando o relógio:
— Quase seis horas. Se não se importa, Antoine, gostaria de ouvir nosso misterioso Gilbert Small esta noite.
— O rádio? — exclamou Armand. — Temos de ouvir essa máquina berrar?
Mas Christopher já se havia levantado e se encaminhava para o alto armário Chippendale onde ficava o rádio. Uma vez ligado, um momento depois uma calma voz masculina invadiu a grande sala:
"Aqui fala a sua KLDB. Temos o prazer de trazer-lhes de novo a esta hora o Sr. Gilbert Small, autoridade em casos europeus. As opiniões do Sr. Small não são necessariamente as desta estação. Ele não tem patrocinador comercial, portanto fala francamente, como quiser.
Houve uma curta espera. A chávena de Armand tiniu irritadamente em seu pires, e ele suspirou e se mexeu ruidosamente em sua cadeira.
— Não sei por que... — murmurou.
— Posso dar-lhe mais chá, querido papai? — perguntou a Sra. Antoine. Começou a conversar brilhante e claramente enquanto a voz grave e firme do Sr. Small emergia do rádio. Antoine virou-se para ela e disse, suavemente:
— Queridinha, quer por favor fechar a boquinha por um momento?
Ela o fitou inexpressivamente, boquiaberta, piscando. Olhou tristemente para Annette, mas Annette inclinava-se para diante em sua cadeira, olhos fixos no rádio. Christopher estava de pé junto do armário, cabeça inclinada.
"Hoje — dizia o Sr. Small — os nazis assassinaram dez mil homens, mulheres e crianças na Polônia. Hoje, mil estudantes tchecos foram mortos a bala em Praga. O mais velho tinha dezessete anos. Hoje, num pogrom em Munique, duas mil crianças judias foram arrastadas dos braços de suas mães e embarcadas em trens de gado para a morte. Hoje, vinte intelectuais austríacos foram assassinados numa adega em Viena.
"Existe uma grande calma na América. Esta noite, num estádio de Nova York, dois famosos pugilistas estão lutando por uma bolsa de cinquenta mil dólares. Esta noite, num teatro de Nova York, um cantor de rádio está atraindo um auditório de seis mil frementes mulheres e moças, que suspirarão e desmaiarão umas sobre as outras enquanto a doce voz dele as emociona da cabeça aos pés. As ruas da América estão cheias de homens e mulheres carregando pacotes de presentes de Natal. Em Hollywood, Marianne Vincent anunciou que pretende, muito em breve, divorciar-se do quinto marido. Eu disse que estamos calmos. Não. Estamos muito excitados. Temos coisas muito importantes em que pensar. Mas nenhuma dessas coisas se refere aos acontecimentos na Polônia, na Tchecoslováquia, em Munique ou Viena. Ora, Polônia, Tcheco- Eslováquia, Munique e Viena estão tão longe, e as pessoas são tão estranhas... Não são realmente nossos irmãos, nossas irmãs e nossos filhos. São criaturas à parte.
— Muito verdadeiro! — murmurou a Sra. Antoine, feliz, esquecendo a censura do marido.
Olhou em volta para os habituais sorrisos afetuosos. Mas todas as fisionomias estavam graves, afastadas dela. A cabeça de Armand descaíra para o peito; suas mãos estavam flácidas, como que penduradas nos braços.
"Esta noite — continuou o Sr. Small — quando ouço tais coisas, tenho a mais curiosa visão de certo jardim ao acaso. Um jardim totalmente mítico, vocês hão de concordar. Há um grande silêncio no jardim; acima das enormes árvores escuras o pôr-do-sol é rubro como fogo, e arde vividamente. Até os pássaros estão quietos, e o rio próximo corre sem um som, a superfície esbraseia com uma luz carmesim. Há paz no jardim; as flores inclinam as corolas.
"Mas de repente, trata-se apenas da minha visão, compreendam, vejo ali um morto, um jovem inocente. Seu rosto adormecido está coberto de sangue. É muito triste. Ele nunca fez mal a ninguém, jamais prejudicou a quem quer que seja. Apenas tem sido feliz, e apenas tem querido viver pacificamente com seu irmão. Entretanto, mão brutal e selvagem deu-lhe a morte. Onde está o assassino? Esconde-se em algum lugar entre essas árvores, acocorado à sua negra e confusa sombra, as mãos a cobrir-lhe o rosto suado.
"O ocaso escurece. E então, de repente, uma ventania terrível e furiosa sopra por entre as árvores, curvando-as, empalidecendo-as, atirando-as contra o céu avermelhado. Os pássaros gritam nos ramos. As flores ficam pálidas como a morte e penduram suas cabeças, caindo ao chão. E de além do vento vem uma voz formidável, ecoando pelo espaço: ‘Onde está Abel, teu irmão?’ "
"De algum lugar, fora dessa caverna de troncos retorcidos, fora da fúria e turbulência do vendaval e da Voz cósmica, vem um fraco murmúrio: ‘Serei o guardião do meu irmão?’
A voz do Sr. Small silenciou subitamente. Mas o ar ainda vibrava com sua lembrança. Christopher ergueu o rosto imóvel e olhou para Antoine, que sorria largamente. Armand não se mexeu. Poderia estar morto, ou adormecido, esparramado em sua poltrona. As pequenas mãos de Annette se agarravam a seus joelhos. A Sra. Antoine sentava-se boquiaberta junto ao fogo, piscando, espantada e confusa.
Então a voz do Sr. Small ergueu-se num elevado arco de som acusatório:
"Tornei a ouvir a Voz; e devo novamente avisar a meus ouvintes que tudo isto é apenas um sonho meu. E a Voz gritava: ‘Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão chegou até Mim.’
Deteve-se outra vez, com paixão, e então prosseguiu:
"Vocês me dirão, meus ouvintes, que não são Caim, que não mataram Abel no pacífico jardim, que não é o seu sangue que brada contra vocês. Mas eu lhes digo que são Caim, que mataram Abel, que é o sangue dele que está gritando contra toda a América, contra o mundo inteiro. Se não erguermos nossas mãos, hoje, na Polônia, na Tchecoslováquia, em Munique e em Viena, damos nossa aquiescência ao verdadeiro assassino. Damos a aquiescência do silêncio. Sabemos que está ali o jardim da morte. Mas estamos fora, na cidade, celebrando e adorando nossos pugilistas e nossos cantores de rádio, nossas prostitutas de Hollywood. Se ouvimos a Voz que do espaço gritava para nós, apenas dissemos ao maestro da banda para bater seu tambor mais alto, e que seus trompetistas toquem mais ensurdecedoramente. A coisa não é conosco. Caim não estava nos ameaçando. Havia o rio entre o jardim e a cidade, e o rio nos mantém a salvo dele. Muito longe para que ele nade. Além disso, tratava-se apenas de uma briga entre Caim e o irmão, e não nos dizia respeito. Sempre soubemos que os dois irmãos brigaram durante anos, e isso se tornara muito aborrecido.
"Não ouvimos a Voz quando se afastou de Caim e gritou para nós: ‘E agora tu és amaldiçoado pela Terra, que abriu a boca para receber, de tua mão, o sangue de teu irmão: Fugitivo e vagabundo serás na Terra’.
"E isso, meus amigos, é no que a América se tornou hoje: um fugitivo e vagabundo na Terra, se escondendo e se lamuriando em teatros e estádios, enquanto Abel jaz morto no jardim. Deve ser uma visão horrível para Deus, ver-nos aqui. E deve estar doente.
Outrora, calculo, Ele se orgulhava de nós. Outrora, éramos valentes, fortes, bravos e cheios de indignação contra opressores e assassinos. Agora nós os desculpamos. Agora os financiamos. Agora lhes enviamos mais armas para matar mais inocentes. Agora silenciamos aqueles que desejam avisar-nos de que Caim está à nossa porta, o Caim que admiramos, financiamos, desculpamos, por meia dúzia de anos. Em futuras irradiações darei os nomes, esboçarei as maquinações dos homens que fizeram tais coisas, que conspiraram contra vocês, que estão abrindo as portas para Caim. Têm estado muito ativos. Ficarão mais ativos no futuro, mentindo para vocês, tranquilizando-os, decepcionando-os, para que vocês não se possam erguer e pedir armas contra seus inimigos, e vingança pela morte dos inocentes assassinados hoje, e o maior número dos que o serão amanhã. Sabem, eles acreditam que Caim pode ser sua arma contra uma América livre. Eles não querem a América livre. Desejam uma nação de escravos. Você. E você. E você.
"Serão bem-sucedidos? A alma adormecida da América brilhará mais uma vez em realidade, poder e paixão? Não sei. Só vocês podem dar a resposta. Sinto-me atemorizado. Atemorizado de que a América haja vendido seu sonho por um punhado de rebuçados.
"Há uns versinhos de Wordsworth que eu gostaria de citar-lhes agora:
‘Para onde fugiu o visionário raio?
Onde estão agora a glória e o sonho?’
Ele falou as últimas palavras lentamente, claramente, claramente, depois sua voz caiu em profundo silêncio. Christopher desligou o rádio e ficou parado perto dele. Ele e Antoine trocaram um olhar agudo.
— Farolagem melodramática — comentou Antoine. — Se isso é o melhor que ele pode fazer, não oferecerá perigo.
— Não sei — resmungou Christopher. — Não estou tão certo disso. — Voltou lentamente para junto do fogo. — Lembre-se: melodrama atrai a populaça.
— Mas não se há baionetas em suas costas. Todos são surdos a qualquer apelo que inste com eles para lutar, ou ponha em perigo suas barrigas. Ouvirão mais prontamente a um homem que os aconselhe a esconder-se no porão, e lhes prometa barriga cheia se mantiverem a boca fechada.
Agora Annette falou, a voz leve estava vibrante, os olhos azuis brilhando estranhamente à luz do fogo:
— Você tem uma opinião muito má a respeito do povo americano, não é, Antoine?
— Minha querida — ele replicou, ligeiramente —não se trata de apenas uma opinião: é conhecimento pessoal. Existem alguns idiotas que acreditam que os americanos ainda podem sentir o impulso de erguer-se por um ideal, de sacrificar-se para que outros possam viver. Não creio nisso. Como o nosso Sr. Small destacou tão pungentemente: eles preferem as prostitutas de Hollywood, os lutadores em busca de prêmios. Uma nação assim não tem mente, nem espírito, decência, orgulho ou inteligência. Como vê, sou muito franco.
Annette estava silenciosa. Mas seu pequeno corpo estava tenso como uma lâmina de aço.
— Acho o Sr. Small horrível! — gorjeou a Sra. Antoine. — Ele não passa de um provocador de guerra, como o Sr. Roosevelt. Quer que nossos rapazes morram em solo estrangeiro. Apenas pelos judeus, ou os tchecos, ou seja lá quem for. Ouviu o Capitão Jaeckle na outra noite? Ele disse que ninguém quer atacar-nos, e além disso há três mil milhas de água entre nós e Hitler. Alguém devia expulsar esse Sr. Small do rádio. Quer levar-nos à guerra, e nós não queremos! As mães não deixarão os provocadores de guerra levar nossos rapazes para morrer.
Antoine gesticulou para a esposa, mas fez uma careta para Christopher:
— Aqui fala a voz do povo americano — disse, sardonicamente. — Que mais quer você?
Ninguém deu atenção a Armand. Estava de olhos fechados. Parecia dormir. Mesmo quando as visitas se levantaram para ir embora, ele continuou imóvel em sua poltrona.
Mais tarde nessa semana, Christopher se fechou com Henri. Falou durante uma hora, enquanto Henri ouvia e tomava algumas; notas.
— Sim, acho que é uma boa ideia você ir com ele a essa conferência — falou Henri. — Isso é muito interessante, na verdade. Naturalmente, ele nem suspeita?
— Ele sugeriu que eu estava "nisso profundamente" — falou Christopher, rindo. — Tem a mão ligeira na chantagem, mas a mão é inocente. A propósito — acrescentou, curiosamente — existe algo a respeito das irradiações de Small que me soa familiar. Você não tem ideia de quem redige seus textos, ou quem está pagando pelo tempo dessas irradiações?
Henri o olhou calmamente, com um pálido sorriso:
— Não! Por que deveria?
Capítulo 32
Hugo Bouchard, segundo irmão de Peter, e Assistente do Secretário de Estado, vivia com magnificência em Washington com a bela esposa, de solteira Christine Southward, cujo pai fora "Billie" Southward, Presidente do Partido Republicano da Pensilvânia. Hugo herdara essa elevada posição após a morte do rotundo e afável Billie; e devido à sua própria personalidade, que era afável, de riso fácil, possuindo aquelas qualidades extrovertidas de companheirismo, bom humor, aberta simpatia e moderação, tornara-se duas vezes mais popular como o sogro — o que era um verdadeiro feito. Advogado de consideráveis talentos e sagacidade, ainda recebia um grande salário de Endicott James de Nova York (agentes de publicidade e procuradores de Bouchard & Sons). Sua fortuna pessoal, aumentada pelo milhão e meio da esposa, era gigantesca — fato que ele, por muitas razões, guardava modestamente em segredo. Seu irmão, Jean, declarara que ele era um taco de veludo castanho com cabo de ouro, observação a que não faltava perspicácia. Pois Hugo Bouchard era de estrutura larga e sólida, sem frouxidões ou protuberâncias, e tinha uma presença imponente que mais inspirava confiança do que timidez. Rosto avermelhado, brilhantes olhos dourados cheios de riso e de amizade, nariz rombudo e amável, grande boca com dentes excelentes e brilhantes. Seus cabelos, outrora também avermelhados, eram agora uma massa prateada e ondulada, embora ele estivesse apenas com cinquenta e poucos anos. Tudo isso, combinado com certo esplendor, calor e solidez, fez dele o político ideal, em quem muitos confiavam, antipatizado por poucos, e admirado por quase todo mundo. Com todos esses admiráveis recursos, certa franqueza genuína e uma voz afeiçoada e brincalhona, muitos poucos discerniam que ali estava um consumado velhaco, um homem avarento e implacável, sem escrúpulos e sem consciência. Mesmo sua esposa desconhecia isso, pois que ele era de boa moral em questões sexuais, e era pai devotado das três filhas: Elsie, Alice e Joan. A única pessoa que realmente o compreendia, e lhe tinha uma aversão sem reservas, era o filho mais novo, Hilary, agora com quase dezessete anos.
Ninguém realmente gosta de ser "compreendido". Hugo não era exceção. Tomara uma quase imediata antipatia por Hilary, quando a criança mal tinha uma semana de nascida. Pois Hugo era daquela natureza inteiramente masculina que tende a adorar filhas e sente indiferença pelos filhos. Ele idolatrava as três meninas. Christine idolatrava Hilary. Isso aborrecia Hugo. Hilary era pequeno, moreno e sólido, "como o danado do Jules" — declarou Hugo, desdenhosamente. (Ele não admirava seu parente, Antoine, como decididamente não admirava Jules, seu primo em segundo grau, e avô de Antoine.) Como Hugo tinha grande admiração pelo tipo físico "ariano", que acreditava fosse alto, robusto, e rudemente masculino — acompanhado pela alvura da cútis e franqueza de compostura — a elegante pequenez de Hilary, suas delicadas mãos e feições, vivos olhos negros, sorriso leve — sutil mesmo na sua infância — sua tortuosidade e graça latina o afrontavam e lhe causavam aversão.
Mais ainda: Hilary exibia inteligência rara e brilhante, e infinito interesse por conhecimentos. Também amava tudo que fosse belo, de modo que adorava sua linda mãe. Christine não era muito brilhante, mas possuía a intuição do amor: assim, todos os seus presentes para o filho demonstravam um gosto delicado e consideração. Mesmo na sua infância, ela lhe enchia o quarto de objetos de arte que havia diligentemente desencavado em Nova York, Paris, Viena e Londres. Ficava sem fala, em apaixonada admiração por sua capacidade e graça, e não achava música mais doce de ouvir do que os elogios que os professores faziam a Hilary. Aos dezesseis anos foi aceito em Harvard. Hugo, a despeito de si mesmo, apesar de seu desdém pelo estudo e por todas as artes intelectuais, foi temporariamente dominado por um relutante orgulho. O forte de Hilary era a matemática, essa arte grande e clássica. Hugo queria que o rapaz estudasse leis, e, com frequência, em tom de brincadeira declarava que em breve Hilary seria de grande valor para os Bouchards. Também observou que enquanto Antoine era um adequado "substituto" de Jules, Hilary é quem herdaria a fama sutil de Jules Bouchard.
Essa observação traía a profunda ignorância de Hugo a respeito do filho. Pois Hilary, embora possuindo notável semelhança com Antoine, e com o avô de Antoine, e mostrando aqueles aparentes traços de caráter — esperteza, tortuosidade, cinismo e capacidade — que haviam sido as características salientes de Jules, tinha uma forma de espírito totalmente diferente, que poucos já haviam discernido.
Pois, espantosamente, essa jovem cópia de Jules se parecia com o tio Peter em caráter. Era honrado, bravo, firme e compassivo, e delicadamente sensível. Porém, diferente de Peter, que tendia a ser abrupto, zangado, agressivamente honesto e sombriamente quieto em certas ocasiões, Hilary era perspicaz, cético, cínico e desiludido por natureza. Mais: possuía enorme e delicado tato, e um senso de humor altamente desenvolvido, um equilíbrio de temperamento incrível em alguém tão jovem, e uma aguda consciência da necessidade de manter sua própria opinião praticamente sempre. Nele havia pouco de sonhador, mas, estranhamente, muito de místico. Sua conversa era deliciosa, sua aparência muito soignêe — para citar a enfatuada Christine.
"Ele se parece demais com Goebbels para me agradar" — era a disparatada observação de Hugo. — "Todos os malditos Bouchards latinos se parecem com Goebbels."
Essa observação, citada a Antoine e outros da "linhagem de Jules", não tornou Hugo benquisto entre seus parentes.
Desde muito cedo Hilary tomou uma aversão incessante pela Família, com poucas exceções. Só vira Peter poucas vezes, e embora compreendendo esse tio especial, e sentindo grande compaixão por ele, com pesar o considerava algo assim como um louco. Na opinião de Hilary, só loucos se desarmam, tornam-se vulneráveis, por motivo de sua própria integridade e honestidade. Acreditava Hilary que o caráter de alguém deveria ser conhecido apenas por si mesmo e por Deus, mas, preferivelmente, apenas por si mesmo. Dever-se-ia mostrar ao mundo apenas o que se desejasse que o mundo conhecesse e, como a virtude era sempre suspeita e a integridade escarnecida, esses traços deveriam ser guardados como um tesouro e revelados apenas em ocasiões extremas. Como consequência dessa filosofia, poucos dos Bouchards sabiam alguma coisa a respeito de Hilary, e ele era unanimemente declarado a completa réplica de Jules, mais ainda que Antoine.
Hilary tinha profunda afeição por Annette, uma ternura casual por suas três irmãs — que o adoravam, apesar da aversão de seu amado pai — indiferença completa por praticamente qualquer outro membro da família, e, estranhamente, um misterioso apego por Henri, a quem chamava "tio Henri", não ligando a desenredar as ramificações de relacionamento. Era muito equilibrado e demasiado frio para odiar fortemente, mas odiava verdadeiramente o pai: julgava-o um louco arrogante, um completo mentiroso, um perigoso velhaco, e um cão traiçoeiro. Como Hilary era demasiado egotista para dissimular essa fina opinião a respeito de Hugo, e por demais indiferente a ele como homem, a inicial aversão de Hugo não se poderia esperar que diminuísse com o passar dos anos.
Havia outra razão profunda e subterrânea para o ódio entre os dois. Embora Hugo adorasse todas as filhas — que eram elegantes, lindas e vivazes, e loucas por ele — a mais nova, Alice, era a queridinha. As duas mais velhas eram, como sua atraente mãe, não muito "brilhantes", embora amáveis e encantadoras. Mas Alice era capaz e inteligente, cheia de risos e de súbita seriedade, e possuía ávido interesse em viver. Era pouco mais de um ano mais velha que Hilary; haviam crescido juntos. À diferença de Hilary, tinha tendência a ficar alta. Tinha a mesma graça, tato e percepção aguda dele, bem como seus maneirismos insinuantes e gestos elegantes. Mais: muito cedo ele percebeu que ela possuía integridade e senso de honra; as duas mais velhas eram demasiado complacentes, amáveis demais e também felizes demais para ter caráter, a não ser encanto e delicioso egoísmo. A pressão de Hilary sobre a mãe, que por sua vez pressionou Hugo com determinação, é que resultou na ida de Alice para uma boa universidade para estudar Direito, ao invés de ir para uma escola de aperfeiçoamento para moças, que Hugo julgava mais de acordo para as moças Bouchard.
Alice era muito sadia, mas não agressivamente. Não tinha aquela aparência saudável, suada, aquela exuberância de natureza animal que tão frequentemente distingue as robustas fêmeas americanas. Como Hilary, detestava esportes. Sua pele, de um branco leitoso e bem macia, e as faces jovens, firmes e rosadas não precisavam de artifícios. Tinha os olhos dourados do pai e longos cílios cor de bronze e sua expressão era viva e ávida, porém profunda. A boca, um tanto grande, era doce, firme e forte, e brilhantemente colorida, de modo que não se tomava conhecimento do tamanho. Os cabelos, de dourado mais claro do que os olhos, eram lisos e lhe caíam nos ombros. Nela tudo expressava delicada força e fineza: excelente a sua aparência. "Grego clássico" — diria Hugo, orgulhosamente. E ainda tinha bom gosto, e natural simplicidade no vestir, o que lhe realçava a beleza.
Hugo, embora nunca fosse sutil, e mais malicioso do que sensível, muito cedo percebeu haver algum laço apaixonado entre a sua querida e o filho odiado, Hilary. Quando crianças, só desejavam a companhia um do outro. Hugo tentou enviar Hilary para uma escola militar, para que "fizessem dele um homem". Mas Christine se opôs violentamente. Hugo esperou. Esperou até Hilary ir para Harvard. Mas longas cartas eram trocadas entre irmão e irmã. Alice não lamentou a ausência do irmão. Mas tornou-se mais séria. Quando por sua vez se foi para uma universidade, escolheu uma não longe de Harvard. Hugo sabia que o filho e a filha passavam muitos fins de semana juntos em Nova York, em estado de completa felicidade e gentis relações. Para contra-atacar, frequentemente visitava Nova York indo ao encontro de Alice e levando-a com ele, deixando Hilary sozinho em estranho e sorridente silêncio. Hugo não tinha a elementar polidez de convidar Hilary para juntar-se a eles.
Como muitos homens com seu temperamento, Hugo tinha a mente obscena, de crua vulgaridade. Nas raras ocasiões em que era provocado, exibia violenta brutalidade, linguagem lasciva, e tremenda crueldade. Tinha o cuidado de ocultar esses traços a seus pares, mas seus inferiores os conheciam bem demais. Sempre suspeitava o pior de todo mundo. Em sua opinião, não havia mulher virtuosa: todas as mulheres (exceto sua esposa e filhas) eram vagabundas, prostitutas complacentes de mente suja. (Dos homens tinha opinião ligeiramente mais elevada, embora projetasse neles seus próprios reflexos.) Sinceramente convencido da vileza da humanidade, e da venalidade dos homens, suspeitava as maiores loucuras numa troca de sorrisos entre os sexos, na mais leve galanteria ou na mais inocente coqueteria. Tinha uma provisão de histórias depravadas. Todas enfatizando a sexualidade em sua forma mais crua e mais perversa.
Com uma mente assim, e com seu ódio incompreensível e aversão pelo filho, imaginou que o amor de Hilary por Alice era pervertido, impuro e perigoso. (Alice, claro, era a donzela pura sem a mais leve suspeita dos horríveis desejos do irmão.) Por fim, Hugo já não imaginava: acreditava saber, tinha certeza. Então seu ódio assumiu um caráter doentio, nascido de seu ciúme. Nunca lhe ocorreu estar precisando de um psiquiatra para vasculhar nas sombrias cavernas de sua própria mente.
Claro, Hilary sabia de tudo isso. Sua repugnância fora tão intensa que chegara a ficar física e mentalmente nauseado. Sentira indiferença pelo pai, e desdenhosa diversão, mas agora ele o odiava! Também ficou extremamente alarmado pela amada irmã. Mas sabia que nunca ousaria esclarecê-la a esse respeito. Fez suas cartas mais curtas e mais raras. Estava sempre muito ocupado quando ela sugeria encontrá-lo em Nova York. Nas suas folgas, forçava-se a fazer relações mais íntimas com amigos. Esse rapaz, que apenas completara dezessete anos, achou-se metido num espantoso problema do qual não via escapatória para si mesmo, a irmã, ou o pai. Pois via que, por gentilmente renunciar ao apego de Alice por ele, estava abrindo caminho para a obsessão do pai.
Via, também, que a melhor esperança de Alice escapar de uma situação horrorosa era através do casamento. Portanto, sempre que podia, perguntava-lhe se estava interessada em algum jovem. Quando se encontrava com ela em Nova York, frequentemente levava com ele colegas mais velhos. Nenhum interessou a Alice, até que o irmão apresentou a um jovem chamado Charles Miles.
Infelizmente, Charles provinha de uma obscura família de fazendeiros do interior do Estado de Nova York. No seu tempo de ginásio mostrara-se tão brilhante em pesquisa científica que recebera uma bolsa de estudos para Harvard. Entretanto, precisavam tanto dele em casa que não pudera aproveitar a oportunidade, e só quando estava com vinte e quatro anos sentiu-se livre para beneficiar-se dela. Na ocasião em que Hilary o apresentou a Alice, Charles estava com vinte e sete anos, invulgarmente maduro, pensativo, grave, talentoso e intelectual. E também paupérrimo.
Alice imediatamente apaixonou-se por ele. Esse rapaz magro, moreno, que — ela pensou ternamente — tanto se parecia com seu querido irmão, maravilhou-a, conquistou-a. Sua gentileza, atenção bem-humorada, bondade e interesse logo lhe inspiraram respeito e afeição. Após seis encontros, três deles a sós depois da discreta retirada de Hilary, ficaram noivos.
O alvoroço que aconteceu em Massachusetts Avenue podia ser ouvido três casas além. Não foi preciso muita astúcia por parte de Hugo para discernir a fina habilidade do jovem Hilary. O ódio de Hugo se tornou assassino, insano! Ameaçou Alice pela primeira vez em sua vida. Mas a moça, assustada, branca, se manteve firme. Fora avisada antecipadamente pelo irmão. Casaria com Charles Miles, disse ela, não importando o que acontecesse. Christine, embora não muito inteligente, era perspicaz. Suas vagas suspeitas se fortaleceram. Ficou ao lado da filha: se Hugo apertasse os cordões da bolsa, ela, Christine, providenciaria para que nada faltasse ao jovem casal.
Ninguém jamais fizera frente a Hugo Bouchard. Ele estava como um touro enraivecido. Teve acessos de fúria, guinchou, berrou, ameaçou com as coisas mais obscuras e aterrorizantes. Sua família, assustada, afastou-se dele. Christine tremeu vezes sem conta em seus agradáveis aposentos. Suas duas filhas mais velhas se arrastavam pela mansão, escondendo-se do pai. Alice foi para Nova York para ficar com sua parenta, a senhora Phyllis Morse, que era doida por ela.
Hugo estava desmoralizado e cheio de terror, bem como cheio de raiva, de ódio e de ciúme. Sentia agora a sua impotência. Desejava matar! Ficou afastado do Departamento de Estado, mesmo nesses dias importantes. Estava doente, numa agonia, frustrado, angustiado, e atormentado pela mais inominável das paixões. Naturalmente, ele as havia racionalizado: Charles Miles era um joão-ninguém servil e desprezível, um mendigo, um morto de fome, um caça-dotes, um vira-lata e um suíno. Horrível que um tipo assim ousasse erguer os olhos para uma moça Bouchard, esse canalha sem vintém, esse fazendeiro desengonçado, essa lesma rastejante. Não permitiria que Charles pisasse em sua casa. Ameaçou matá-lo, fazê-lo expulsar de Harvard, publicar uma provável folha de antecedentes policiais. Chegou a escrever ao diretor da Harvard, pedindo-lhe a expulsão de Charles. Se isso não fosse feito, ameaçou, não haveria mais dinheiro Bouchard a correr-lhe para os cofres. E notificou a universidade que Hilary seria retirado imediatamente.
Mas Christine agiu de novo. Hilary permaneceria: ela, Christine, pagaria sua instrução. Sem alarde, escreveu ao diretor, por sua vez pedindo que Charles pudesse continuar, e explicando que "o Sr. Bouchard estava apenas temporariamente zangado, mas em breve estaria recuperado".
Nessa casa desordenada e furiosa, Henri apareceu um dia quando dezembro já ia adiantado. Ouvira boatos do rebuliço, mas à sua moda característica, dificilmente acreditou que um homem sensato pudesse perturbar-se verdadeiramente por negócios referentes a qualquer mulher. Hugo soube dessa opinião do seu parente, e tratou de acalmar-se o suficiente para lidar com Henri exatamente dois dias antes do Natal. Tinha o maior receio e respeito por Henri, e nada mais desejava que sua boa opinião.
Capítulo 33
Henri não subestimava seu parente, Hugo, nem estava convencido de que aquele enganoso sorriso sincero, aquela amena afabilidade, aquela risada sonora e galhofeira eram atributos de um idiota. Sabia que Hugo, como homem, político, e Bouchard, era uma das pessoas mais poderosas do Departamento de Estado. Hugo foi quem trouxe os mais intransigentes para o lado que apoiou, perdoou e se desculpou por Franco, que impediu o embarque de alimentos, suprimentos médicos e materiais de guerra para as desesperadas cidades legalistas. Foi Hugo quem deturpou a opinião pública americana na crença de que os legalistas eram "vermelhos, perigosos comunistas e radicais, matadores de sacerdotes, e ateus". Mais tarde, depois da queda da República Espanhola, foi a influência de Hugo que acelerou embarques de petróleo e refugos, alimentos e munições para a Espanha angustiada e escravizada de Franco. Se muito de tudo isso achou seu caminho para Hitler, isso não era da conta de Hugo, nem do Departamento de Estado, que agira na boa e virtuosa fé americana.
Fora Hugo, que tinha profunda consideração pela política conservadora britânica, quem induzira o Departamento de Estado a proceder com precaução nos negócios europeus, e que havia inspirado admiração pelos Homens de Munique. Quando a opinião pública americana gritou indignada pelos embarques de sucata e petróleo para o Japão, foi Hugo quem inspirou a publicação pela imprensa desculpando os homenzinhos amarelos, e sugerindo que a China não era a virtuosa e nobre democracia tão docemente imaginada pelos americanos. A maioria dos homens do Departamento de Estado se parecia muito com Hugo: cautelosos, conservadores, fascistas em pensamento se não em intenção, homens de carreira, enfatuados e arrogantes, cheios de astúcia e ganância. Uma coisa possuíam em comum: uma profunda e aristocrata repugnância pelo "homem comum", "o gado sem miolos ou entranhas". (Embora "entranhas" fosse implicado mais do que dito, sendo os cavalheiros tão excessivamente refinados.) Hugo era mais robusto do que muitos dos afeminados cavalheiros do Departamento de Estado, e era muito mais perigoso. Eles pelo menos acreditavam estar protegendo sua "classe". Hugo, e outros como ele no Departamento, só cuidavam do status quo, sua riqueza e seu poder — que estavam absolutamente determinados a que permanecessem intactos. Um círculo ainda mais fechado acreditava que poderia ser necessário, em dia próximo, obter a ajuda de Hitler para subjugar as massas americanas — que andavam mostrando alarmantes sintomas de começar a pensar por si mesmas.
Foi Hugo quem ajudou vigorosamente na formação de uma política de desconfiança e ódio para com a "Rússia Vermelha", quem estivera por trás da exigência de que a Rússia pagasse em ouro por seus embarques. Dos discretos e fastidiosos corredores do Departamento de Estado vieram as publicações pela imprensa que minimizaram as forças russas, que "escarneceram" do pacto entre a Rússia e a Alemanha, que insinuaram os terríveis desígnios da Rússia sobre a paz e a segurança do mundo. A maioria dos cavalheiros do Departamento tinha a mais alta consideração por Mussolini; dois deles tinham medalhas conferidas por aquele esperto charlatão. Quando o General "Billy" Mitchell avisou o povo americano da necessidade de uma poderosa força aérea, foi o Departamento de Estado, liderado por Hugo, que manchou, destruindo publicamente o seu nome, partindo o coração daquele valente e trágico soldado. Os nobres efeminados temerosamente acreditavam que para a América estar a salvo era apenas necessário que permanecesse desarmada e se abstivesse de provocar gestos hostis por parte de Hitler e de Mussolini. Mas havia um círculo ainda mais restrito, composto por Hugo e os mais implacáveis e selvagens realistas, que desejavam que a América permanecesse desarmada por suas próprias e monstruosas razões.
E foi o Departamento de Estado que se submeteu timidamente à certa organização religiosa, que foi o mais terrível inimigo da democracia e do liberalismo em todo o mundo, mais forte e mais terrível do que o próprio Hitler. Por causa dessa organização, o Departamento de Estado foi inflexível em sua pressão sobre o Governo para recusar visto e passaportes para um torturado e moribundo gueto judeu. Os cavalheiros do Departamento, que tinham uma afetada repugnância de todos aqueles que não fossem diplomados por Harvard e não se pudessem gabar de avoengos entre os primitivos americanos (embora esses avoengos fossem prostitutas de Londres e presidiários varridos das sarjetas das cidades inglesas e transportados para a América), tinham uma aversão apavorada a pessoas que não pudessem falar inglês sem sotaque, ou cujas feições não estivessem corretamente de acordo com o tipo predominante de feições existentes no Departamento de Estado.
Em suma: foi Hugo quem esteve mais poderosamente por trás dos elementos timoratos, com espíritos de classe, fascistas, velhacos, e caçadores de feiticeiros do Departamento. Eles nunca eram vulgares, mesmo em seu desdém, ódio e suspeita do Sr. Roosevelt. Tudo que era liberado pelo Departamento brilhava de restrição cavalheiresca e frases polidas, e pálida elegância. As mais vulgares declarações de Hugo eram expurgadas e desodorizadas antes de tornadas públicas. Mas a conspiração lá estava, no entanto.
O Departamento de Estado oportunamente se manifestava, em tom queixoso, contra a França, a Rússia, a China. Mas nunca, nunca, contra a Inglaterra, a Itália ou Mussolini. Em algumas ocasiões reprovou alguns estadistas ingleses mais honestos e valentes sobre suas observações indignadas a respeito da fraqueza dos sentimentos da América para com Hitler. Esses estadistas, jovens, honrados e realistas, eram anátema para o círculo régio dentro do Departamento de Estado e eram desdenhosamente estigmatizados como "provocadores de guerra, desejosos de envolver a América nos conflitos europeus". O círculo régio não podia, na verdade, desprezar esses ingleses como não sendo pukka sahibs, pois a maioria deles era de descendentes de antigas e nobres famílias britânicas. Mas deduziam, com pesar, que não estavam preservando sua "classe" — o maior de todos os crimes.
Henri Bouchard sabia que a "panelinha" de Hugo formava apenas um segmento do Departamento de Estado, e que era implacável, vulgar, apropriada e grosseira. No entanto, influenciava muito perigosamente as demais "panelinhas" e, em seu poder combinado, poderiam sobrepujar o próprio Secretário. O Secretário nada podia fazer contra o libelo de que o Sr. Roosevelt era dominado pelos "judeus" (ao invés de pelo Departamento de Estado, o que seria mais apropriado), ou de que o New Deal se compunha de bandidos, intelectuais com estrelas nos olhos, "brilhantes jovens de Nova York, de ancestralidade dúbia", e comunistas. O Secretário aparentemente achou tudo isso muito risível. Também ele era um cavalheiro, e estava convencido de que cavalheiros não são eficientes.
Nesse ínterim, durante esses primeiros dias da guerra, o Departamento de Estado estava em total confusão. Sua natural inclinação pela Inglaterra, e reverência pela política inglesa (e a mais recente política inglesa de apaziguar Hitler e apoiá-lo) o fazia sentir uma simpatia natural e preocupação pela Inglaterra. Sem embargo, o velho hábito de apaziguar, aplacar, desculpar e apoiar Hitler ainda era muito forte. Nessa gangorra, portanto, eles ficavam muito compreensivelmente doentes do estômago, saltando no ar assustadamente, voltando à terra com fortes impactos, e assim desorganizando seus delicados sistemas nervosos.
Contudo, Hugo e sua realista "panelinha" não tinha a menor simpatia pela Inglaterra ou pela França, fato que cuidadosamente ocultavam a seus pálidos e delicados colegas: tinham seus próprios desígnios, seus próprios planos.
E esses desígnios, esses planos, eram bem conhecidos de Henri.
Henri, que descontara muitos dos boatos que lhe haviam chegado sobre a fúria frenética em casa de Hugo Bouchard, entretanto estava agora impaciente, cônscio de que muitos desses boatos deviam ser verdade. Hugo foi tão cordial como sempre ao receber o seu parente. Sua risada ainda era brincalhona. Mas Henri viu que o colorido avermelhado do rosto de Hugo já não era o habitual, que seu riso era forçado, seu aperto de mão foi úmido e alarmantemente trêmulo, seus olhos dourados estavam fundos e febris. Seu corpo avantajado também estava menos redondo e firme, sob as casimiras caras. Tinha um olhar perturbado, um nervosismo distraído, mesmo quando sorria ou fumava, ou contava alguma das suas piadas. Tinha sido sempre um bebedor prodigioso, mas agora engolia copo atrás de copo numa espécie de frenesi.
Um dos atributos de Henri era a capacidade de tomar conhecimento de condições predominantes e estudar como tirar vantagem delas. Poderia fazê-lo numa observação instantânea. Mesmo enquanto conversava amavelmente com Hugo, sua mente trabalhava, conspirando, conjeturando, negociando. Encorajava Hugo a beber, mas gentilmente recusava ter seu próprio copo reenchido mais de uma vez.
Hugo deu uma grande risada:
— Sempre com os pés na terra, hein, Henri? Sempre o Homem de Ferro! Você é um demônio esperto, mas eu sei tudo a seu respeito! Você nunca me enganou!
Henri sorriu, à vontade, e disse:
— Jamais cuidei de enganar quem quer que fosse. Além disso, sabe muito bem que não bebo muito. Não foi você quem disse, no último Natal, que meu uísque era uma lavagem?
Hugo riu ainda mais alto. Chegou mais para a frente e deu um tapinha afetuoso na coxa de Henri. "Está bêbado, — pensou Henri — porém mais de suas malditas emoções do que de uísque". Agora Hugo ergueu o dedo indicador e o sacudiu brejeiramente:
— Quem está buscando, hein? Você não veio até Washington deixando certa... Ora, deixa isso pra lá, não precisa fazer essa carranca! Quero dizer: não é uma visita casual, é? Você está atrás de alguma coisa, como de costume. Que é? Os rapazes não o vêm satisfazendo ultimamente?
Henri sorriu de novo. Observou Hugo atentamente. Apesar do barulho que fazia, Hugo tinha o ar de um homem que procura ouvir algo a distância. Por vezes se sobressaltava nervosamente, lançava um rápido olhar à maciça porta de madeira da biblioteca.
Henri disse ao que vinha, os descorados olhos, imóveis, fixos no rosto de Hugo que tinha contrações musculares:
— Estou encarregado de uma missão. De Annette. Gostaríamos de tê-los, a você e sua família, para o Ano-Novo. Sabe, vocês recusaram convite para o Natal, sob o pretexto de um compromisso prévio. Agora Annette não ficará satisfeita até que venham a Windsor.
Hugo chegou a abrir a boca para falar, depois a fechou rigidamente. Seu corpo pareceu encolher dentro da roupa. Sua mão grande e áspera bateu na longa mesa de carvalho ao seu lado, aumentando os movimentos enquanto fitava Henri. Mas disse, com bastante calma:
— Falarei com Christine. Quanto tempo se demora conosco? Até amanhã? Ela lhe dirá. Mas com certeza você sabe que Alice não está conosco?
Henri ergueu os sobrolhos:
— Não, não sabia. Como saberia? Onde está a menina? Ela é uma espécie de bichinho de estimação para mim, você sabe.
Hugo fez um som estranho:
— Ora, deixe disso! Vocês não estão murados, isolados lá em Windsor! Devem ter ouvido algo!
— Não estou interessado nos assuntos privados da família — disse Henri com impaciência. — Não são da minha conta. Espero o mesmo respeito pela minha vida particular.
Hugo se calou. Esquadrinhava Henri, desconfiado. Depois falou, roucamente:
— Bem, Alice não está conosco. Está passando as férias com aquela maldita Phyllis Morse, em Nova York. Prefere assim, parece. Filhos são o maior desperdício de tempo. Você deve dar graças por não ter nenhum. Bem, talvez iremos, Christine, Elise, Joan, e... — Subitamente parou. Seu rosto tomou uma expressão horrível, retorcido, cheio de ódio e de fúria.
"Então, é assim!" — pensou Henri, a mente trabalhando rapidamente. Ergueu o copo e fingiu beber. Disse, cuidadosamente, sem dar atenção à expressão do seu parente:
— E Hilary, naturalmente. — Depositou o copo. — Muitas vezes pensei no quanto ele se parece com o Antoine, de Armand. Você já notou a semelhança?
Hugo reprimiu uma praga involuntária. Os dedos que tamborilavam se apertaram; ergueu o punho e o bateu pesadamente na mesa uma ou duas vezes. Henri sabia muito bem com que aversão, repugnância e desdém Hugo considerava Antoine, e quão frequentemente havia sofrido sob os hábeis ataques e o leve ridículo do alegre jovem. Esperava que sua manobra tivesse sido inteligente, e não servisse apenas para enraivecer Hugo contra ele mesmo.
Quando Hugo tornou a falar, numa voz abafada e incoerente, Henri soube que a manobra fora, realmente, muito inteligente:
—- Sim, aquele maldito!, bem que percebi a semelhança! E a coisa é mais profunda, vai mais além: ele se parece com aquele suíno em caráter também. Afetado, ardiloso, mentiroso, cheio de mesuras, intrigante. Esplêndido filho para Hugo Bouchard! Um porco fedorento! O único filho que tenho, e ele tem de... tem de... — Sua voz ficou subitamente estrangulada e um fluxo arroxeado passou sob a sua vermelhidão. Seus globos oculares brilharam à luz das lâmpadas.
— Ora, deixe disso! Hilary é apenas um garoto! — disse Henri, observando-o agudamente. — É verdade que se parece com Antoine de modo notável, mas Antoine não é nenhum idiota, você bem sabe. É um brilhante conspirador. Exatamente agora — acrescentou, após uma pausa — está metido numa conspiração realmente tortuosa.
A expressão de Hugo mudou: tornou-se rudemente mal-humorada e inquieta. Levantou sua mão enorme e deu um puxão no lábio. Fitou Henri, e seus opacos olhos amarelos se estreitaram:
— Não sabia nada a esse respeito — murmurou, pouco à vontade. E passou a mão nas espessas ondas de cabelos brancos.
"Então — pensou Henri — é como suspeitei". E soube.
Henri tinha aversão a gestos de intimidade de qualquer natureza, e nunca cedia a eles com outros. Porém agora obrigou-se a inclinar-se para Hugo e dar-lhe uma pancadinha no braço:
— Hugo, você e eu sempre fomos bons amigos. Outrora nos comportamos brilhantemente. Lembra-se? Contra a facção de Armand; em outras palavras: contra a facção de Jules Bouchard. Não esqueci sua ajuda. Eu não poderia ter feito nada sem essa ajuda. Você me serviu, eu o servi. Existe um grande laço entre homens como nós. Especialmente quando servimos a nós próprios enquanto servimos a nossos amigos.
Embora resistindo pouco à vontade por alguns minutos, Hugo não se pôde opor a essa lisonja não muito sutil. Seu medo de Henri, e seu respeito, haviam aumentado com o passar dos anos. Tentou sorrir. Seus punhos relaxaram sobre a mesa.
— Nunca o subestimei, Henri, meu rapaz. Eu sabia a quem estava ajudando. Fiz como você sugeriu, quando no Departamento, e antes. Pode sempre contar comigo.
Henri se recostou em sua poltrona, e seu rosto se obscureceu:
— Creio que posso, Hugo. Mas, desta vez, a coisa é muito séria. Disse que Antoine tem estado conspirando. Conspiração perigosa. Não sei do que se trata exatamente. Mas preciso de sua ajuda.
Tão grande, agora, eram o alarme, a perturbação e as suspeitas de Hugo que ele momentaneamente esqueceu suas tragédias particulares. Começou a transpirar. Puxou do lenço e o passou na testa ampla, testa de estadista.
— Que maldita "conspiração" é essa? Não acredito nisso. Que conspiraria ele? Não ouvi falar nada.
— Confesso que também não ouvi muito, Hugo. Mas talvez eu seja médium — e Henri sorriu agradavelmente. — Sinto as coisas. Sinto algo no vento. Talvez você me possa dizer.
Porém Hugo deu de ombros, mal-humorado, e olhou para um ponto um pouco atrás dos olhos de Henri:
— Imaginação... — murmurou por fim. — Que conspiraria esse afetado idiota?
— Não subestime Antoine — avisou Henri. — Ele é esperto. Como seu filho, Hilary.
A isso, Hugo se sobressaltou com extraordinária violência. Seus olhos, postos em Henri, ficaram cheios de um fulgor amarelo. Rangeu os dentes; suas narinas se distenderam como as de um boi.
Ora, Henri tinha muita consideração por Hilary, mas sabia que este não era o momento para agrados. Acrescentou:
— Você subestimou Hilary no passado. Eu sempre soube disto. Como sempre soube que ele se parece com Antoine mais do que apenas fisicamente. Lisonjeio-me de conhecer os homens: esse é o meu negócio. Eu compreendo Antoine. Não sei o que anda buscando, mas tenho uma vaga ideia. Vê, estou lhe demonstrando muita confiança, Hugo: sei que você o merece.
Os punhos de Hugo se dobraram nos braços de sua poltrona de couro vermelho. Respirava forte. O clarão amarelo aumentou em seus olhos. Henri observava sua incerteza agonizante com resoluta proximidade.
— Que quer você? — perguntou Hugo, voz abafada. — Sempre quer alguma coisa. Você não me engana — repetiu.
— Sim — falou Henri, quietamente — quero alguma coisa. Quero sua ajuda. Quero que use sua influência para deter os embarques de sucata e petróleo para o Japão. Imediatamente.
Hugo sobressaltou-se, outra vez. Os dentes brilharam entre seus lábios. Contudo a voz estava curiosamente quieta e firme quando disse:
— Não.
Os dois se olharam em profundo silêncio. Henri parecia imperturbável. Não mexia um músculo. Sua expressão era plácida e controlada. Hugo estava como um touro encurralado, pronto para o assalto contra o inimigo. Esperou que Henri falasse novamente, mas Henri estava silencioso. Então Hugo falou:
— Por quê?
— Porque — explicou Henri, tranquilamente — não quero que o Japão fique mais forte. Penso que sua vítima derradeira é a América. Tenho consideração pela América, nem que seja apenas como campo para negócios proveitosos.
Então Hugo careteou, desagradavelmente:
— Tolice. Por que o Japão nos atacaria? Tem a China em suas mãos. E a China levará uma geração para ser dirigida. Se chegar a fazê-lo. Que lhe importa isso?
— Não partilho seu otimismo, Hugo. Pense que somos os próximos na agenda. O Japão se voltará para o Ocidente. Não gosta de nós, você bem sabe. Além disso, há os seus compromissos com Hitler. Está muito envolvido, confesso. Porém, do jeito que as coisas vão, Hitler ficará muito aborrecido conosco. Poderia induzir o Japão a atacar.
— Ele não atacará! — exclamou Hugo, com violência. Remexeu-se em sua cadeira, brincou com objetos na mesa, depois se voltou para Henri:
— Isto é pura tolice! Além do mais, não teria razão. Não vamos ajudar a Inglaterra. Isto é certo. Posso garantir-lhe.
— E eu — falou Henri, calmamente — posso garantir-lhe que vamos. Temos pegue-e-leve agora. Em breve, teremos algo de mais importante. Como sei? Não lhe posso dizer. Mas garanto-lhe que usarei toda a minha influência.
— Você! — exclamou Hugo. Explodiu numa risada rouca. — Desde quando os Bouchards ficaram tão danadamente patriotas? Desde quando ficaram do lado de "liberdade, Deus, e o direito"?!
Novamente esperou que Henri falasse, mas Henri não lhe fez a vontade. Então Hugo perdeu o controle. Começou a gritar:
— Deixe-me dizer-lhe algo! Não queremos que a Inglaterra vença, na Europa! Sabe disso! O meu pessoal não quer, e até mesmo a Inglaterra não o quer! Quer é uma paz negociada, e rápida. Por que iria ela destruir Hitler, e abrir-se para o bolchevismo da Rússia? Ela precisa de uma Alemanha forte para protegê-la. Como sempre. Esse foi sempre o seu jogo. No Departamento sabemos disso. Sempre soubemos. Assim como sabemos que a França cairá na primavera. Está tudo arranjado. E ainda vem você, respirando doçura e luz e "cremos em Deus", e querendo que atiremos todos os nossos planos no mar... Não, meu rapaz, não pode ser, realmente não pode ser.
Então Henri falou, em voz aguda e penetrante:
— E agora, eu lhe direi algo. O que diz a respeito da Inglaterra é verdade, de certo modo. Apenas de certo modo. Você fala pela chamada classe dominante na Inglaterra. Mas deixe-me dizer-lhe isto: em breve Chamberlain cairá fora. Eden ou Winston Churchill tomarão seu lugar. A "classe dominante" terá diarreia muito em breve, devido ao medo, ao terror. Porque o povo britânico está agora desperto. Não estou apenas profetizando quando digo que a Inglaterra não assinará uma paz negociada com Hitler. Lutará até o fim. Agora é: Hitler ou nós. Você quer Hitler na América?
Hugo o fitou, e lentamente empalideceu. Nada disse. Henri balançou a cabeça, severamente:
— Tenho uma suspeita, realmente tenho. Penso, na verdade, que você foi enganado por Antoine. Você é inteligente, Hugo, mas não tanto quanto Antoine. Ele não lhe falou sobre os seus planos, falou? Talvez você pense que ele é "todos por um, e um por todos". Tenho outra suspeita: creio que o Senhor Antoine está trabalhando apenas para si mesmo. Ele não tem muita consideração por você, Hugo, nem tem em alta conta a sua inteligência.
Hugo ainda estava sem fala.
— Acredito — continuou Henri, severamente — que Antoine o convenceu de que a Inglaterra cederá, assinará uma paz negociada com Hitler, e que Hitler dominará a Europa e fará excelentes negócios conosco. Estou certo?
Porém Hugo estava silencioso. De olhos arregalados, fitava Henri.
— Concedo-lhe o crédito de não haver sido completamente enganado por nosso fino manipulador, que o tem usado para seus próprios fins, Hugo. Concedo-lhe o crédito de guardar sua própria opinião. Agora, estou certo ou errado?
Sabia que seu ataque fora rude, calculado para ter efeito apenas sobre a mais brutal e exigente forma de mente. Seu desprezo por Hugo aumentou ao ver a selvagem e violenta incerteza, o egotismo atormentado nesses fixos olhos amarelos.
Tornou a falar, mas agora muito, muito quietamente:
— Hugo, quanto confia você em Ignatius O’Connor e Francis O’Malley, do Departamento?
Por um momento Henri pensou que Hugo não o ouvira, tão parada era sua expressão. E então Hugo disse, voltando a si:
— Por quê? Que tem você contra Iggy e Frank? — porém uma aparência manhosa lhe surgiu ao canto da boca.
Henri sorriu:
— Um belo truque: responder uma pergunta com outra pergunta. Mas eu conheço tudo a respeito desse truque: eu próprio costumo usá-lo. — Mudou sua expressão para uma de extrema gravidade, e ergueu a mão por um momento, deixando-a cair depois num gesto de resignação: — Muito bem. Vejo que não estamos indo a parte alguma. Devo confessar que estou desapontado. Você e eu sempre fomos amigos; melhor, trabalhamos juntos. Vim falar-lhe em confiança... mas vejo que não adianta...
Tirou a cigarreira, dali extraiu um cigarro, acendeu-o calma e pensativamente, como se sua mente já estivesse ocupada com outra questão. Hugo o observava, truculentamente, um punho apertado na mesa. Sentava-se na beirada da cadeira; parecia um perigoso leão, fulvo e superalimentado, traiçoeiro embora idoso.
Então ele disse, beligerantemente:
— Não vamos meter-nos nessa coisa, é o que lhe digo! O povo não quer isso. Sentimentos contra nós nos envolvem outra vez com a Europa, Roosevelt ou não Roosevelt. Nenhum político na América é bastante forte para convocar uma razão válida para atacar Hitler. Além disso, Hitler é muito popular aqui, devido à sua perseguição aos judeus. Você acha que pode conseguir que a populaça americana lute pela "liberdade"? — Seu olhar agora era de sorridente aversão: — E o que a populaça quereria com a liberdade? Digo-lhe que se Hitler aparecesse nas costas de Nova York, os ratos de sarjeta iriam ao seu encontro com flores! Eles o amam, é o que lhe digo. A liberdade nunca foi muito bem com estômagos americanos... o povo ainda tem lembrança da feliz e irresponsável escravidão.
Henri se permitiu sorrir:
— Você é um completo psicólogo, não é? Sabe, de certo modo sou obrigado a concordar com você: não ligo a mínima para a populaça. Mas ligo por mim mesmo, por Bouchard, por todas as nossas subsidiárias. Você confia em Hitler? — A expressão de Hugo mudou, tornou-se mal-humorada, porém ele nada disse. Entretanto seus olhos se estreitaram até ficar feito uns pontinhos de lua amarelada.
"Francamente, não confio nele — continuou Henri, pesarosamente. — Sou bastante cândido para admitir que, se julgasse que podíamos, eu consideraria certas coisas. Mas sei que não podemos confiar nele. Não o quero aqui. Nós, Bouchards, somos poderosos na América. Gostaria de manter esse poder. Você bem sabe o que ele fez aos industriais na Alemanha para ter uma ideia do que fará aqui.
"Não estou interessado na Inglaterra, ou na França. Deixe Hitler desmontar o Império Britânico, e ao diabo com ele. Quem se importa? Mas não o quero aqui. E virá para aqui, inevitavelmente, a menos que o detenhamos. Como? Por isso é que vim vê-lo: para descobrir se podemos preparar algum programa.
Hugo começou a esfregar o queixo, mas ainda mirando Henri cuidadosamente:
— O que quer você dizer ao indagar se confio em O’Connor e O’Malley? — perguntou, sombriamente.
Henri hesitou:
— Bem, francamente, é exatamente o que andei lendo nos jornais. Não estão acabando de enviar Myron Taylor ao Vaticano? Não estão acabando de tentar desacreditar os chamados "liberais"1 no Departamento, que tomaram o banco das testemunhas contra Franco, e que têm causado agitação para evitar embarque de sucata e de petróleo para o Japão?
Hugo riu asperamente:
— E daí? Não estamos em posição de aborrecer Hitler nem o Japão. Não temos exército, nem armas... nada. Chame a isso apaziguamento, se quiser, ou diplomacia. Suponho que se refere à campanha interna contra Summer Welles, que sempre gostou da Rússia? Você não pode censurar Iggy e Frank: são católicos, sabe.
— Desde quando — falou Henri, meditativamente — temos baseado nossa política externa em sensibilidades católicas? Lembra-se de sua história, Hugo? Leitura muito interessante...
Hugo golpeou a mesa selvagemente:
— Não estamos indo a parte alguma! — berrou. — Que está você querendo? Tentando sutilezas, para variar, hem?
Henri endureceu a expressão do rosto. Inclinou-se para Hugo:
— Pois muito bem: Já lhe disse que pouco me importa o que acontece na Europa. Mas importa-me o que acontece aqui. Acontece que gosto de minha posição. Decidi fazer seja o que for para mantê-la. Estou disposto a arriscar qualquer coisa. — Deteve-se um momento, depois continuou: — Não tenho base real para minhas suspeitas, confesso. Mas sei de algumas coisas. Sei que nosso querido Antoine ultimamente encontrou o Chargé d’Affaires alemão, e O’Connor e O’Malley estavam com ele. Imagina o que terão discutido?
Foi um golpe arrojado. Observou Hugo estreitamente. Falara a fim de descobrir se Hugo tivera conhecimento daquele encontro, embora não estivesse presente. E então um alívio: a expressão de Hugo, branco com o choque, boca entreaberta, o súbito brilho em seus olhos, convenceram Henri que Christopher fora correto em sua suposição de que Hugo não soubera do encontro.
E por que não soubera? Christopher tivera dúvidas sobre esse ponto, embora tivesse lá suas ideias. O’Connor e O’Malley, ele julgava, estavam fazendo seu próprio jogo, com sua própria panelinha católica. Panelinha católica. Hugo, apesar de sua liderança, suas conspirações, sua cooperação, não era realmente único com sua panelinha dentro de uma panelinha. Não confiavam nele completamente: ele era Bouchard, e o rico, afinal, é quase sempre conservador e temeroso, alarmando-se quando o perigo chega muito perto.
— Não acredito nisso! — exclamou Hugo, o rosto intumescido e úmido. — Não ousariam! Por que fariam isso, sem me dizer, sem meu conhecimento e... — Parou abruptamente.
"Sem que você estivesse presente" — terminou Henri para si mesmo.
Henri deu de ombros:
— Pouco se me dá que você acredite ou não, meu caro Hugo. Acontece ser um fato. Posso preveni-lo? Se falar nisso, eles negarão; saberão que houve uma denúncia. Não gostam de você, Hugo. Julgarão que mandou espioná-los. Tenho ideia de que não confiam inteiramente em você. Confiarão ainda menos, se lhes falar disso. Você ficará fora da estacada, e Antoine e os outros dirigirão o Departamento, sub rosa. Gosta da ideia de ser um office boy glorificado com a fina presença italiana de Antoine ao fundo?
Então todo o ódio de Hugo por seu parente Antoine, toda a sua aversão subconsciente por ele, tanto por ele quanto pela semelhança de Hilary com ele, toda a sua natural suspeita, ciúme e amor ao poder, tudo isso lhe rugiu na cabeça. Ficou literalmente sem palavras, enquanto sentado em frente de Henri, cheio de fúria insana e raiva. Porém sua mente trabalhava rapidamente. Lembrou-se de muitas coisas que o haviam espantado, e o haviam iludido, ultimamente, no Departamento de Estado; porém tinha estado tão interessado com os motins em sua própria casa que pensara nelas apenas vagamente, embora seu instinto tivesse sido desperto. A lembrança dessas coisas intangíveis é que o convenceram de que Henri estava dizendo a verdade.
— Então — murmurou entre os dentes cerrados — estiveram fazendo seu próprio joguinho, não?
— Contra nós — falou Henri, gentilmente. — Pensa que eles gostam dos Bouchards? Você acha que Antoine nos tem amor? Posso dizer-lhe isto: quando Armand morrer, Antoine não será tão cômodo aos negócios Bouchard. Sei disso com certeza. Talvez ele suspeite. Como vingança, e em seu próprio desejo de poder, fará qualquer, coisas contra nós, contra nossos interesses.
Olhou seu cigarro, e disse:
— Não sei por que estou lhe contando isso. Você poderá prejudicar-me se o repetir. Porém, como já disse, sempre fomos amigos, trabalhando juntos. Pensei que você poderia trabalhar conosco agora.
— Quem você quer dizer com esse "conosco"? — perguntou — Hugo. Respirava com óbvia dificuldade.
Henri o olhou com brandura:
— Suponho que não faz mal que lhe diga. Antoine deve haver suspeitado, e provavelmente já lhe disse: Alex, Jean, e Emile... talvez. E... alguns outros, não ligados, apenas remotamente à Família.
Hugo virou a cabeça e fitou uma fotografia da amada filha, Alice, que estava na secretária. Henri podia ver-lhe o perfil, incorreto e violento.
— E quanto a Christopher? — falou Hugo, afinal, num resmungo.
Henri abanou a mão:
— Bem, talvez Christopher esteja trabalhando com Antoine. Entretanto, não sei disso. Tenho apenas suspeitas.
Hugo virou-se para ele com violenta rapidez:
— Muito bem — rosnou. — Que quer você?
Henri sentiu-se relaxar, era quase como uma fraqueza de alívio. Olhou para o parente, sentiu-lhe a fúria, o ciúme, a suspeita selvagem e o ódio por aqueles que o haviam traído, por aqueles que ele agora julgava terem estado a usá-lo. Quando Hugo pensou em Antoine lhe fazendo isso, sua garganta se elevou a alturas loucas.
Disse Henri, tateando seu caminho com precaução:
— Deixe-me avançar mais um pouco: acabei de ter mais alguma informação. Alguns de nossos... menos patrióticos cidadãos-financistas acabaram de encontrar-se com o Dr. Schacht na Suíça. Não sabia disto? Bem, entre os arranjos feitos, os Bouchards não estavam incluídos. Por quê? Ter alguma ideia?
Hugo parecia ainda mais espantado, se possível.
Henri continuou:
— Pensei que não soubesse. Mas Antoine, sim. Creio que ele arranjou isto. Vê, ele não deve mesmo gostar de nós em absoluto. A propósito, enquanto talvez você, mal orientado, acreditasse que a conquista do mundo por Hitler podia só ter resultados benéficos para a Família, Hitler não pretendia isso absolutamente. Sabe, acontece que tenho fonte interna de informação. Hitler é, de longe, mais encantado pela América do Sul com suas classes superiores falangistas católicas, do que pela América, onde tantos de nós são de origem anglo-saxônia. Ele na certa acredita que não se pode copiar em um anglo-saxão. Depois, Franco é uma de suas focas amestradas, e Franco já havia enviado uma centena de bem-treinados padres falangistas para a América do Sul para preparar o caminho para a conquista definitiva daquele continente pelas forças fascistas. Os industriais sul-americanos, que têm completo controle trabalhista, com a assistência da Igreja farão admiráveis serventes de Hitler, e ele sabe disso. Já existe muita propaganda iniciada ali, de que o destino da América do Sul é uno com o destino da Espanha, sua "mãe". Qual será o resultado inevitável se... certas contingências tornarem Hitler dominante na América? Parafraseando o velho ditado: "O Oeste é o rumo do Império!" eu diria: "O Sul é o rumo do Império." Com tudo que isso signifique. Que será de nós então?
Hugo mordia o lábio, em silêncio, contemplando fixamente seu parente. Sua fronte tinha uma série de fundas rugas. Era evidente que estava pensando rapidamente.
— Acho que Antoine sabe disso — falou Henri, maciamente. — Ele já está muito envolvido com a América do Sul, e profundamente interessado nos cartéis nazistas lá.
Hugo tornou a golpear a secretária, em silêncio fulminante.
— Ele está brincando, mesmo agora, com a força de seu sangue "latino" — acrescentou Henri, com um sorriso divertido.
Esperou que Hugo falasse, porém Hugo manteve silêncio. Henri deu de ombros imperceptivelmente:
— Estou bem informado, Hugo. Sabe, nunca ajo drasticamente. Por exemplo: sabe que há um plano em andamento para apresentar o nome de certo proprietário de um jornal fascista do Estado de Nova York na próxima convenção republicana? Não gosto do homem. Prefiro outro. Um que Regan sugeriu. Também sugiro que você concorra à Vice-Presidência. Isto pode ser arranjado.
Hugo estremeceu. Virou-se completamente para Henri. Agora seus olhos cintilavam. Mas ainda disse:
— Quem é o homem?
— Wendell Willkie, de Commonwelth & Southern.
Hugo deu uma súbita e turbulenta gargalhada:
— Willkie! Quem jamais ouviu falar de Willkie, exceto na Street? Quem você vai conseguir que vote nele? E por que Willkie?
— Pela peculiar razão — disse Henri, com um sorriso — que ele é um homem honesto, um bom americano, sadio e inteligente. Investiguei-o o mais possível: não há nada de sujo em sua carreira. E melhor homem que o astuto Roosevelt, que gira como um catavento com qualquer vento. Sua política, acredito, será conservadora, realística e honesta. Nada encontrei nele que me leve a crer que ele trairá a América, e tudo indica que lutará pela América, se eleito. Não há nada de ilusório ou imprevisível nele. Se a América deve sobreviver precisa dele... não só durante os anos de guerra como mais tarde. Poderei apresentar o seu nome para seu Vice-Presidente.
Falou com poder e autoridade, e a tendência de Hugo para o ridículo diminuiu:
— Quem está por trás de Willkie?
Henri tornou a sorrir:
— Um velho senhor pesado de pecados, talvez. Que deseja salvar a América da ruína que ele antigamente maquinou. Um homem muito, muito poderoso.
Tossiu, depois prosseguiu em tom mais animado:
— Só para mudar de assunto momentaneamente: a fortuna de Christine não está pesadamente investida na United States Chemical Produts Company?
Hugo piscou ante tão abrupta mudança:
— Sim.
— Nada de muito importante. Mas ouvi dizer que a American Carbide Company tem intenção de comprar essa companhia. Pretendem fazer isso para acabar com um competidor. Mas tudo isto é confidencial.
Hugo ficou muito pálido:
— Tem certeza disso? — murmurou, num tom estranho.
— Tenho. Pensei que você poderia estar interessado. Mas nunca foi minha política interferir com outras companhias; já tenho muito que fazer em casa. Mas posso dizer-lhe isto: a American Carbide me pediu que ajudasse a financiar a venda. Em troca, oferecem-me um bloco de ações muito atraente.
Agora os dois se fitavam como antagonistas. Hugo respirava barulhentamente. Toda a sua vermelhidão havia desaparecido, substituída por um colorido malva e apoplético. Seus punhos cerrados caíram abertos na secretária, e ele pareceu encolher. Diante de seus olhos Henri pareceu crescer, expandir-se, tornar-se mais terrível e implacável.
— Você não faria isso... a nós? — sussurrou roucamente.
— Eu disse que sequer considerei o caso? — perguntou Henri, brandamente. — Embora esteja interessado na American Carbide, e não apenas por razões financeiras: seu presidente é meu amigo muito chegado.
Subitamente Hugo se pôs de pé. Fitou sobranceiro Henri Sua respiração se tornou mais difícil, os olhos estavam violentos:
— Que quer você?
Henri o estudou por um momento longo e penetrante:
— Quero... várias coisas. Quero que parem os embarques para o Japão. Quero uma redução, ou mesmo a interrupção, dos enormes embarques de petróleo, aço e alimentos para Franco. Quero supervisão na Espanha, para a distribuição dessas coisas— se forem enviados embarques menores, por americanos de confiança, que não gostam de Franco. Só para ter certeza que nenhum desses embarques vai para Hitler. Quero que sua panelinha se alinhe com os liberais do Departamento. Summer Wells é muito popular na América do Sul; quero uma espécie de política de "boa amizade" a ser iniciada nos países sul-americanos. Por muitas válidas razões, os sul-americanos não gostam de seus grandes vizinhos do Norte. Devem ser levados a confiar em nós, e isso pode ser feito... se virem que somos sinceros. Devem juntar-se a nós num bloco continental contra Hitler, aconteça o que acontecer na Europa. Um pouco mais tarde, quero investigação daquelas companhias americanas que têm arranjos de cartel com Hitler e lhe estão oferecendo equipamento. Desejo que seja dada a mais ampla publicidade à investigação, nos jornais. Quero uma atitude mais amigável em relação à Rússia...
Hugo aspirou profundamente, e sorriu, embora continuasse esverdeado.
— Nunca ouviu falar do pacto germano-russo, meu ladino Maquiavel?
Henri estalou os dedos:
— Gostaria de profetizar que Hitler muito em breve atacará a Rússia. Nesse ínterim, lance os fundamentos no Departamento. Você tem de se afastar dos elementos mais perigosos de sua panelinha, e arrastar os incertos com você, de qualquer maneira. Também quero uma atitude profundamente simpática para com a China.
Hugo caminhou abaixo e acima no espesso tapete da biblioteca:
— E isso é tudo que você quer, hein? Apenas umas coisinhas, umas bagatelas... — Voltou-se para Henri: — E quanto aos cartéis europeus nos quais você está pessoalmente interessado?
— Eu os estou bloqueando contra Hitler — e Henri acrescentou: — Se você e alguns dos seus camaradas que confiam em você juntarem seu peso ao dos liberais no Departamento, podemos fazer todas essas coisas.
Levantou-se e encarou Hugo: fora-se todo o seu ar casual. Seu rosto largo e pálido estava carrancudo e mais terrível que nunca, e inexorável. Seus olhos decorados e fixos mantinham Hugo em súbita e atemorizada fascinação:
— Digo-lhe, Hugo, que estou falando muito sério. Se você não puder... fazer... isto, então eu me movimentarei. E as coisas também começarão a movimentar-se. Você, pessoalmente, não gostará do que vai acontecer. Sinto muito, mas nisso existem interesses mais altos que o seu próprio bem-estar, apesar de sempre termos sido amigos. Olhe, sei de muitas e grandes coisas que você nem suspeita que eu sei.
— Está me chantageando? — perguntou Hugo, incrédulo, mas com terror.
— Eu o estou prevenindo — disse Henri, quietamente.
Depois de um momento, Hugo apertou as mãos sobre os olhos:
— Deixe-me pensar — falou, de modo quase inaudível.
Henri esperou. Disse, após um momento:
— O Departamento sempre admirou a Inglaterra. Mas ultimamente a admiração esfriou. Quero-a revivida.
Hugo deixou cair as mãos. Parecia velho e desfigurado:
— Você me pegou! — falou, exausto. — Devia ter vindo a mim antes.
Henri sorriu sombriamente:
— Queria ter certeza...a respeito de certas coisas. E agora você tem de mexer-se depressa, Hugo. Muito depressa mesmo.
Hugo ficou silencioso.
— Mexa-se com cautela — disse Henri. — Não faça nada demasiado súbito. Fale da coisa com aqueles membros de sua panelinha em quem possa confiar. E... mantenha-me informado. Você deve fazer-me saber suas próprias... opiniões.
— Está me pedindo que espione meus amigos?
Henri riu zombeteiramente:
— Ora, não seja tolo! Quem tem "amigos"? Você mudou de ideia a respeito de muitos dos objetivos de sua panelinha. Todos têm direito a mudar de ideia. Mas não deixe que sua mudança se torne suspeitamente súbita. Olhe, preciso saber de mais algumas coisas antes que você abandone os seus amigos íntimos.
— Meu Deus! — murmurou Hugo.
Henri pôs a mão amavelmente no braço trêmulo do outro:
— Você tem muito a ganhar, e nada a perder. Um pouco mais tarde, informarei à American Carbide que não estou interessado em sua proposta. A propósito, tenho alguns palpites para você, diretos da Street, e um pouco mais tarde eu os discutirei com você. Você ainda não me disse se gostaria de ser Vice-Presidente. Ou, talvez, algo ainda mais importante possa ser arranjado.
Hugo respirou fundo, e estranguladamente:
— Que faremos agora? Cantar o hino nacional?
Capítulo 34
Peter Bouchard sentava-se com o Sr. Cornell T. Hawkins no quente e confortável salão de jantar do Ritz. O final do manuscrito do Relâmpago Fatídico estava na mesa branca entre eles. O Sr. Hawkins pensativamente bebericou seu coquetel e contemplou as páginas. Depois ergueu os olhos e polidamente esquadrinhou o rosto perturbado de Peter com os lábios brancos e azulados. Viu os olhos fundos e rodeados de olheiras, o pulsar febril das finas narinas. Algo do que ele pensava, compadecido, deve ter-se comunicado a Peter, pois que ele disse com um sorriso de esguelha:
— Estou satisfeito por ter acabado, Cornell. Tenho a sensação de que não lhe verei a publicação. Estive esta manhã com o meu médico, antes de vir vê-lo.
Hawkins nada disse: seu silêncio implicava uma indagação preocupada. Porém Peter, com um movimento de cabeça, mudou de assunto.
— Estou trabalhando, agora, em outras coisas que me ocuparão toda a atenção. Este livro... não tem ideia de quando será publicado?
Hawkins sacudiu a cabeça:
— Em cerca de seis semanas, talvez, você terá as galés para quaisquer correções, cancelamentos ou acréscimos. Depois, mais tarde, as provas. Depois disso, nós usualmente damos algum tempo aos críticos para que leiam o livro. Então, a publicação. Tudo depende de nossa lista na ocasião. Queremos fazer disto uma grande coisa. Faremos o melhor possível, mas nunca se sabe qual será a reação do público. Baseamos nossa publicidade nas vendas de pré-publicação para as várias agências distribuidoras. Isto é tudo que posso dizer-lhe, Peter.
— De boa vontade pagaria para esbanjar publicidade — falou Peter, ansioso. Depois corou, pois, os gelados olhos azuis de Hawkins estavam piscando. — Por favor, não me compreenda mal. Não estou tentando nenhum conchavo. Porém é tão importante para mim, sabe, que o público leia este livro, e quanto mais público melhor... Pensei até em distribuição gratuita.
Os olhos de Hawkins continuavam a piscar, embora ele não falasse. Girou seu copo entre os dedos. Hawkins tinha um cinismo profundo e reservado, que nem sempre podia controlar; e, como todos os homens com esse tipo particular de cinismo, tinha bondosa e sensível percepção dos outros, e uma compaixão traiçoeira que com frequência o fazia inquieto, desconfiado de si mesmo. Olhou fixamente a febril expressão de Peter e sua fisionomia agonizante, e aquela compaixão fez seu coração contrair-se dolorosamente.
Então Peter, com um olhar que implorava perdão com antecedência, falou, hesitante:
-— Meu primeiro livro, The Terrible Swift Sword, foi misteriosamente silenciado no auge de sua popularidade. Já lhe contei isto. — Deteve-se: — Eles... poderiam tentar intimidá-lo...
Agora a expressão de Hawkins mudou, tornou-se fria e firme. Disse, com reserva áspera e calma:
— Ninguém jamais me intimidou. — Acrescentou, curiosamente: — O que me contou a respeito de Henri Bouchard é muito interessante. Ele foi muito franco com você. Naturalmente ele sabe a respeito deste livro?
— Sim. — Peter ficou também inquietamente reservado. — De fato, deu-me material para ele que eu não teria conhecido de outra maneira. É difícil compreendê-lo. Não confio nele, mesmo agora. Não estaria fazendo tudo isso, e arranjando os programas de rádio, se não estivesse, ele mesmo, vitalmente preocupado, e se não tivesse interesse próprio. Acredita, bem firmemente agora, que o avanço contínuo da democracia industrial-capitalista é o clima único em que todos podem ser salvos... e a América pode ser salva. Outrora eu mesmo acreditava nisto. Agora sei que devemos ir ainda mais longe... devemos ter na América uma espécie de socialismo em que seja eliminada a competição, e cada homem sirva a seu vizinho mais do que a si próprio.
Hawkins estava muito surpreso. Contemplava Peter com espantada descrença:
— Porém você teria, primeiro, de transformar a natureza humana! E até agora, na história humana, não descobri nenhum sinal dessa transformação. Parece-me que devemos proclamar todos os avanços sociais baseados nos fatos estabelecidos da personalidade humana. Não podemos ir de encontro à natureza sabe, mesmo se suas ideias são sublimes e belas. A menos — e o gelado azul de seus olhos estava triste — que possa usar de forças.
—- Usamos força para fazer coisas ruins. Por que não para fazer coisas boas? — indagou Peter.
Hawkins parou um pouco, e em sua boca houve uma curiosa expressão:
— Parece-me ter ouvido isso antes, em algum lugar... Não foi Hitler quem disse isso?
Peter corou fortemente:
— Receio que não haja compreendido, Cornell.
Porém Hawkins apenas ergueu o copo e bebeu apreciativamente.
"Era a coisa mais abominável, mas realmente existe bem pequena diferença entre bons fanáticos e fanáticos perigosos — ele refletiu. — Eram igualmente perigosos para o bem-estar humano. Ambos eram inimigos do lento e tortuoso avanço da sociedade humana através da vontade livre e da liberdade gradual. Eles não deixam margem para escolha..."
— Sempre odiei a coerção, de qualquer tipo — falou Hawkins meditativamente. — Seja essa coerção para o bem ou para o mal. Mesmo a "boa" coerção é um insulto à dignidade humana. Por isso é que nunca aprovei os métodos de Roosevelt.
O rosto de Peter havia endurecido, de irritação. Contudo, Hawkins tinha muito tato. Mudou de assunto. Não adiantava discutir com um fanático, mesmo quando esse fanático era um homem virtuoso. Hawkins se tornara ainda mais desconfiado de homens virtuosos do que dos amorais. Lamentava isso, pois lhe aumentava o cinismo. Estava chegando, rápido, ao ponto em que não afirmaria nada e não acreditaria em nada. Dava-se conta de que, se tal atitude trazia paz, eventualmente, também trazia inércia, um adormecimento espiritual. Acreditar em alguma coisa era necessário à vida.
Disse:
— Quando acredita que haverá real atividade na Europa? Até agora, alemães e franceses apenas se olharam mutuamente por cima da Linha Maginot.
Então um colorido escuro, como de iminente desagregação, espalhou-se sobre as feições de Peter. Suas mãos começaram a mover-se a esmo e fracamente por entre os talheres. Estava como um homem que não pode livrar-se de um eterno pesadelo.
— Não sei... — murmurou. — Quem sabe? — Subitamente, perdeu o controle e colocou as mãos momentaneamente sobre os olhos, pressionando-os. — Não posso suportar isto — disse, inaudivelmente. — Há algo de terrível...
Deixou cair as mãos e falou:
— Tenho um amigo na França. Está em Paris, agora. Barão Israel Opperheim. Pude ajudar seu filho a sair da Alemanha. Tentei fazer Israel sair da França. Em sua carta me dizia estar quase convencido. Mas com Israel nunca se sabe. É um cínico.
Estava desperto o interesse de Hawkins. O que Peter dissera era estimulante. Porém ele não disse mais. Porém Hawkins, com súbita nitidez, sentiu o misterioso "cinismo" do Barão Opperheim através de sua própria consciência, embora não pudesse pôr isso em palavras. Estava cheio de tristeza, uma espécie de estranha comunhão com esse desconhecido Opperheim na ameaçada Paris. E teve outra sensação peculiar: acreditava, implicitamente, que o Barão Opperheim devia ter olhado para Peter da mesma maneira reflexiva dele, Hawkins.
Fora das altas amortalhadas janelas caía uma nevasca de janeiro, o ar estava triste e escuro. Hawkins observou os grandes e pesados flocos de neve a cair inexoravelmente. Nele havia algo de místico. Sentiu a morte e a implacável tristeza do dia lutuoso através de sua carne e seu espírito, e a doentia desesperança do homem compreensivo e inteligente era como um gosto de cinzas em sua boca.
Capítulo 35
Celeste vagava inquietamente na estufa da grande casa nova de Placid Heights. Carregava uma cesta, e sob o truculento olhar do jardineiro cortava rosas do telheiro. Não apreciava particularmente esse tipo de rosas: davam-lhe a sensação vagamente repulsiva que sempre tinha em sua contemplação do artificial. Esses espinhos eram fracos e flácidos, um simulacro de defesa, como se as flores soubessem instintivamente não haver nada de que tivessem de defender-se. Eram meticulosamente cuidadas; seus inimigos naturais nunca as atacariam; todo perigo de um ambiente hostil, que as fortaleceria, lhes daria vigor e vida robusta, tinha sido eliminado. Não era de espantar, pois, que fossem débeis, demasiado delicadas e decadentes. O ambiente hostil dos campos, bem como a luta pela existência e a competição natural entre todas as formas vitais, fazia rosas cheias de colorido, de resistência e de saúde, de seus espinhos fazia armas de vigorosa defesa, tornava seus ramos fortes e fibrosos com a urgente determinação de viver e sobreviver, fazia que exalassem o perfume pesado e intoxicante que essas coisinhas fracas jamais possuiriam.
Celeste achou a imagem muito interessante. Deteve-se, parou de cortar para olhar vagamente através das vidraças enevoadas a que se grudavam os pesados flocos de neve. Suponha que os idealistas e os teoristas pudessem fazer o que quisessem, e a vida humana fosse privada da necessidade de lutar pela existência, e fosse eliminada toda competição vigorosa. Suponha que a humanidade fosse protegida contra as forças naturais que a ameaçam e contra um ambiente hostil. Suponha, desde que fosse removido esse ambiente hostil, que os fracos pudessem sobreviver. Não se tornaria a humanidade, como essas rosas de telheiro, flácida, decadente e de espírito fraco, não lhe faltariam cor e vitalidade, saúde e vigor? Não se tornaria uniforme, sem interesse e variedade, em tal sociedade? E os sobreviventes, fracos, molengas, amimados e consequentemente inferiores, embora dotados de sua estranha capacidade para procriar prodigamente, finalmente não ultrapassariam em número e inundariam seus superiores?
Como era artificial, tão perigoso e macio ambiente não sobreviveria sob tensão. E eventualmente a tensão chegaria. Quando chegasse, não morreriam imediatamente esses homens enfraquecidos, tendo-lhe sido roubadas suas naturais armas de defesa, sua saúde, vigor e resistência?
Sim, era um pensamento interessante. As negras sobrancelhas de Celeste se juntaram, em sua concentração. Discutiria isto com Peter. Outrora ele acreditara nisso, como agora ela acreditava. Porém depois ele ficara excitado e lamuriento, e veementemente defendera a causa da rosa de telheiro. O homem tinha direito a ser protegido de seus inimigos naturais; tinha direito a pedir a seus governantes que seu meio ambiente fosse fácil, doce e confortável. Tinha direito a insistir que fosse tirada de seu caminho a competição "desleal". Em outras palavras — pensou Celeste, desgostosa — era direito do homem ser alimentado a papas, reclinar-se em merecido conforto, e agarrar-se, como uma lesma gorda e vulnerável, ao tronco da ordem social. Por quê? Simplesmente por ser um homem! E, sendo homem, era inerentemente superior aos animais inferiores que lutavam naturalmente e saudavelmente com um ambiente hostil, obtendo vigor dessa luta!
Será que Peter agora, tendo alguma noção de realismo, defenderia essa insana premissa por sentir o mortal aumento da fraqueza em si mesmo, por sentir as dores mais fortes da desintegração? Talvez sempre fosse a rosa mais fraca e moribunda que acusasse as companheiras mais fortes de a estar prejudicando, impedindo-lhe a entrada, enquanto esticava para a luz as suas hastes não crestadas. E pedia, também, que esses talos não crestados fossem cortados, que o brilhante e colorido botão fosse desbastado para que à flor carunchosa fosse dada a oportunidade de desabrochar suas pétalas doentes sem competição, e enchesse o jardim com seu aroma em decomposição.
A despeito de seu amor e piedade pelo marido, Celeste sentiu um forte movimento de discordância e impaciência. Então decidiu não discutir com Peter: estaria exausto ao voltar de Nova York. Suspirou, afastou-se das rosas, e deixou as flores cortadas na mesa de madeira. Não as queria. Se ficassem em suas mesas, estariam a lembrar-lhe a questão, e ela tornaria a sentir aquele movimento de paixão, raiva e impaciência. Sentia-se mudada, e muito mais velha. Lembrou-se de si mesma em jovenzinha, e sua boca se torceu com irritação. Era sempre o ignorante que esposava a causa dos fracos? Dos inexperientes, os inocentes, os iludidos? Ela não sabia. Certo pensamento a importunava, embora vago. Estaria Henri a influenciá-la. Sentiu um cálido tremor por todo o seu cansado corpo, e o coração acelerou-se.
Entrou em um dos escuros e silenciosos salões e correu uma cortina. Os canteiros ainda não haviam sido ajardinados: era projeto para a primavera. O inverno caíra de repente sobre toda nova mansão de pedra cinzenta, cobrira a longa ladeira para o vale — como fizera durante séculos antes, com pesada e luzente onda de neve. A entrada para carros ainda era só cascalho; seu caminho baixo era fracamente visível em úmidas faixas escuras e macias curvas recortadas.
As antigas árvores ainda não haviam sido mexidas ou aparadas, e como se curvavam sob a neve pareciam velhos esqueléticos dobrados ao peso dos anos. Pairava sobre a casa o crepúsculo do inverno precoce, e sobre as colinas gotejantes e as árvores retorcidas, como a insondável profundeza de águas paradas, em cuja dimensão distância e substância se perdiam e todos os objetos adquiriam as formas ondulantes e indistintas dos sonhos. O vale ao fim da longa ladeira se perdia numa espécie de cinzenta névoa opaca. Nada se movia nesse silêncio macio, exceto os flocos de neve caindo. Não havia vento. Isolada como era a casa, encalhada como um desolado casco de navio em ondas brancas petrificadas e redondas que se estendiam infindavelmente espaço e tempo afora, Celeste tinha a sensação de que a casa estava realmente encerrada numa vasta bola de vidro cheia de névoa que rolava em todas as superfícies.
Por trás dela, de pé junto às janelas com suas vidraças no formato de diamantes, estendia-se a casa, tão sem forma, feito um sonho, tão vazia como o mundo exterior. Era uma casa de sombras. Ela ouviu o crepitar do fogo numa lareira distante na grande sala silenciosa, porém isso não tinha veracidade para ela. Através de todos os seus sentidos percebia a curva irreal da imensa escadaria no vestíbulo atrás da sala, os corredores superiores, os quartos que se abriam para eles, o salão de jantar e a biblioteca, a sala de almoço e os terraços. Mas não podia acreditar em sua existência. Tudo era um sonho. Nada existia realmente, exceto sua consciência presa num universo nublado sem forma ou substância. Em algum lugar, nas profundezas da casa, os criados se moviam sem ruído. Mas Celeste também não acreditava em sua existência.
Um medo curioso e glacial a invadiu, uma espécie de inércia alerta e de consciência. Achou-se ansiando desesperadamente por um rosto humano, uma voz humana. Peter ainda estava em Nova York. Ela tinha apenas que mandar preparar um carro para estar na cidade, logo, logo. Mas o pensamento não lhe trouxe alívio. Pesada letargia a dominava. Não podia forçar-se a acreditar que havia alguma cidade além daquela névoa sombria lá embaixo.
Finalmente, não pôde sequer acreditar em sua própria existência. A dispersão lá fora também se aplicava a ela. Sentiu sua personalidade silenciosa e maciamente a desintegrar-se, de modo que todas suas células se moviam e flutuavam. E bem lá no fundo de si mesma havia um quente núcleo de dor entorpecida.
Ficou estupidamente surpresa ao descobrir que estava chorando. A dor em seu coração ficou mais forte, porém ela não sabia o que causava a dor. Não ousava analisá-la e examiná-la. Apenas sabia que não podia suportar essa casa, que nunca pudera suportá-la, que a temera desde o momento em que fora colocada a primeira pedra. Vagamente esperara — e isso desde o princípio — nunca precisar viver ali: quando chegou o dia de entrar para ali, sentiu-se mal, com uma espécie de horror inexplicável. Sua beleza era, para ela, a beleza fantástica de um pesadelo, grotesco e irreal. Contudo, era um edifício simples e majestoso, e ela própria escolhera todo o mobiliário, fizera toda a decoração. Porém fizera tudo isso nas profundezas da fantasia, e sem alegria.
Sem alegria. Sim, toda a sua vida tinha sido sem alegria, até conhecer Henri. E essa alegria se misturara a dor e sofrimento. Suas lágrimas vinham mais rápidas agora. Porém não chorava por si mesma. Não poderia dizer por que chorava. A neve caía mais depressa e mais inexoravelmente por trás da vidraça. Não brilhava. Era apenas um pálio de morte. Ela lhe sentia a morte através de si mesma.
Pensou na guerra, guerra "de mentira", onde terríveis antagonistas se fitavam mutuamente em mudo silêncio, e esperavam. Mesmo a guerra era irreal para ela. Não lhe podia sentir a iminência, a realidade. Pensou em Peter, também ele uma sombra... Entretanto, a dor saltou em seu coração como uma coisa assustada.
Por alguns momentos, não teve consciência de que havia estado fitando um pontinho infinitesimal de luz cintilando longe de casa, pontinho que ondulava de um lado a outro, e ia aumentando de brilho. Quando estava totalmente cônscia dele, mal podia acreditar no que via. Quem poderia vir ali naquele desolado dia hibernal? Não esperava ninguém. Os parentes e amigos sempre telefonavam primeiro, antes de visitá-la.
Observava a luz chegando mais perto. Agora, lá na ladeira, podia ver o formato de um carro preto, saltando nos sulcos, resvalando, oscilando, os faróis perfurando o nevoeiro, e rodeado por uma aura tênue através da neve. Apertou o rosto de encontro à vidraça fria. Seria Henri? Mas Henri estava em Washington. Ainda esta manhã lhe telefonara.
As rodas do carro encontraram a entrada para carros e se esforçavam pesadamente, no cascalho, para subir. Celeste podia ouvir o trabalho do motor, seu ronco abafado. Estava se esforçando ao máximo nos sulcos gelados e no cascalho escorregadio. Depois, com um arfar áspero, triunfante, deu a volta diante da casa e parou.
Era uma grande limusine preta, como um carro funerário. Agora Celeste o reconheceu. Pertencia a seu irmão Emile. Mas por que viria Emile — perfeitamente indiferente a ela, e por quem ela nada sentia a não ser aborrecimento — visitá-la? O motorista saía do carro. Abria a porta. A alta figura de uma mulher de preto estava descendo com dificuldade, pois o carro inclinava-se para um lado nos montes de neve. Era Agnes, esposa de Emile.
Agnes Bouchard! Agnes, que ela sempre temera e evitara, a dura e cínica Agnes, de olhos cruéis e divertidos. Por que viria visitar a jovem cunhada, a quem abertamente desdenhava e achava excessivamente aborrecida?
Celeste acendeu as luzes, e o grande e calmo salão se encheu de calor e agradável quietude. Até o fogo tomou coragem, e suas labaredas saltaram. A neve e a morte ficaram perdidas atrás das janelas subitamente escuras e protetoras. Agora toda a casa se tornou real e tangível, sólida e forte, não mais um confuso e enevoado delineamento de paredes. Mesmo gostando pouco de Agnes, Celeste sentiu prazer com essa aproximação de outro ser humano. Ouviu a voz de Agnes no calmo vestíbulo, voz enérgica e cortante. Essa voz não mais a fazia tremer. Adiantou-se para a passagem em arco, com um sorriso de boas-vindas.
Agnes apareceu. Embora não fosse Bouchard por nascimento, mas apenas por casamento, possuía todos os atributos dos Bouchards "latinos". Era de boa altura, de compacta e excelente figura, muito elegante e esbelta. Estava agora com cerca de quarenta e nove anos, mas o brilho e a avidez de sua aparência faziam-na parecer muito mais jovem. Movia-se com graça e leveza. O rosto branco e fino, com o longo nariz patrício, tinha um olhar alerta e cruel, cínico e sagaz, e não havia gentileza na linha fina dos lábios, violentamente pintados. Os olhos negros, frios e duros, tinham um brilho maldoso. Agnes Bouchard não tinha fé na natureza humana, nem em nenhuma de suas "virtudes". Não acreditava que ela possuísse qualquer altruísmo, bondade, justiça ou piedade, ou mesmo decente honestidade, ou que tivesse mais inteligência que um macaco. Achava lamentável, mas também divertido, que os únicos homens bons que havia encontrado tinham sido loucos, e impotentes. "Os filhos da escuridão são mais sábios em sua geração do que os filhos da luz" — costumava citar, com convicção, e nenhuma tristeza. Não encontrou dificuldade em adaptar-se a um mundo tão escuro e ameaçador, e constantemente se divertia a esse respeito, porque era esperta e de considerável intelecto e muitos conhecimentos. Sob muitos aspectos se parecia com sua parenta mais jovem pelo casamento, Rosemarie Bouchard; só que ela era criteriosa e possuía muita integridade inata e retidão, bem como aberta e desdenhosa coragem, e nela não havia sadismo como em Rosemarie. Tinha pelo marido uma espécie de afeiçoado menosprezo e indiferença, e um frio desdém pelo filho, Roberto, íntimo e escravo de Antoine Bouchard.
Trouxe à sala vivacidade, frieza e movimento. Não tirou o macio casaco de peles negro; ele resvalou, mostrando o elegante vestido preto e estola vermelha. Havia um boné à moda russa, da mesma pele do casaco, sobre o perfeito penteado das suas madeixas prateadas. Estava tirando as luvas, mas era evidente que não permaneceria por muito tempo.
— Agnes — disse Celeste, estendendo-lhe a mão, um real prazer a brilhar em seu rosto. — Estou tão contente que tenha vindo! Mas que dia terrível!
Os olhos penetrantes de Agnes percorreram sua jovem cunhada: neles havia um brilho ameaçador. A linha escarlate de seus lábios se curvou:
— Dentro de cinco minutos você já não estará tão satisfeita com a minha vinda... — disse, com desdenhosa brevidade. Aproximou-se do fogo, esfregou as mãos, contemplou a sala, comentando: — Bonito lugar. Provavelmente não tornarei a vê-lo.
Celeste estava espantada. Toda a sua vida sentira-se atemorizada ao som de vozes cruéis e implacáveis, e o velho tremor, a antiga tensão lhe puseram os nervos na defensiva:
— Por que, Agnes? Que há de errado?
Agnes continuava a esfregar as mãos, o que produzia um som seco em toda a sala. Ela começara a sorrir, seu perfil agressivo delineado contra o fogo. Então tornou a virar a cabeça e fitou Celeste com brutal curiosidade, como se a jovem mulher fosse um objeto que lhe despertasse desdém e espanto. O temor inexplicável aumentou em Celeste. Retraiu-se involuntariamente. Agnes afastou-se do fogo e se sentou numa cadeira. Celeste também se sentou e esperou, apertando as mãos.
— Celeste — começou Agnes, uma voz fria e curiosa — não sabe de alguma coisa? De nada mesmo? Você é uma idiota completa? Sempre pensei que fosse, sabe disso. Pensei isso desde o primeiro momento em que a vi. Você estava com cerca de cinco anos, então, não estava, ou um pouco menos? Tinha trancinhas negras e grandes olhos azuis-escuros, e uma estúpida boquinha vermelha. Estava sempre com medo. As pessoas sempre falavam de você como de uma tenra criaturinha que devia ser protegida. As mulheres nunca se sentiram assim a seu respeito, mesmo quando você era uma pirralhinha. Eram sempre os homens.
Celeste estava silenciosa. O rosto branco estava imóvel e tenso. Mas os olhos se fixavam em Agnes, à espera. Agnes sacudiu a cabeça, com sorriso cínico:
— Sim, você sempre foi boa nessa atitude. Pensavam ser defesa. Mas sei que era invulnerabilidade. Você sempre tomou excepcionais cuidados com você mesma. Ainda faz isso.
Deteve-se, e comicamente ergueu a mão e começou a contar pelos dedos:
— Primeiro, foi seu pai, Jules, que arrumou as vidas dos filhos por sua causa. "A pequena Celeste tem de ser protegida." Ele nunca pensou que os rapazes realmente deviam ser protegidos contra você. Para começo de conversa, eles não eram filhos e irmãos muito amorosos; e a distribuição que Jules fez de seus bens, para "proteger" você, não contribuiu para aumentar o amor e a bondade entre Armand, Emile e Christopher. Provavelmente eles disputariam, de qualquer modo, e conspirariam uns contra os outros, mas não com a ferocidade que mostraram por sua causa. Jules saberia disso? Às vezes fico cogitando... jamais gostou dos filhos. Era um homem muito sutil.
Os pálidos lábios de Celeste se separaram e ela disse, quietamente:
— Isso é muito interessante. Mas histórias de família me aborrecem. Não devo ser censurada pelo testamento de meu pai. Também devo confessar que não vejo em que isso lhe interessa, Agnes, ou em que é da sua conta. Emile tem-se saído muito bem, pois não? Ou você quer mais? Você sempre foi muito avarenta.
Agnes ainda mantinha as mãos no ar, na atitude de contar, mas, sobre elas, olhou para Celeste com olhos apertados e um sorriso maldoso:
— Então, você tem garras! — comentou. — Eu sempre soube disso. Ninguém mais parece haver percebido.
Continuou, com inexorável animação:
— Agora, vejamos: Jules foi o primeiro homem a cair sob seu "encanto". Depois foi seu irmão, Christopher. Ele não nasceu um santo, mas a sua existência fez dele um demônio. Por você ele lutou com seu pai. Eles lutaram por você desde o momento em que você nasceu. Você sabe, claro, que Christopher esteve apaixonado por você durante muitos anos, Celeste? Tão apaixonado que nunca se importou muito com qualquer outra mulher. A história não é muito bonita, não é? Um tanto horrorosa? Sempre tive muita pena de Edith, a esposa de Christopher.
Um olhar de terror, repúdio e nojo relampejou na fisionomia de Celeste. Ela se levantou, agarrando-se às costas de sua cadeira.
— Você é uma mulher suja, Agnes — falou, e sua voz não passava de um rouco sussurro. As órbitas de seus olhos se estreitaram com seu mal-estar e repugnância, de modo que estavam cheios de uma flama azul.
Agnes balançou a cabeça, com sorridente ferocidade:
— As pessoas honestas são sempre sujas, minha cara. Ninguém gosta delas. São rejeitadas. Dizem coisas devastadoras e impróprias. Fui honesta agora. Pela salvação de sua alma. Pela salvação de coisas muito mais importantes que você, miserável coisinha desventurada. Não a estou censurando pela paixão de seu irmão por você. Você não podia evitar isso, suponho. Você era adorável, suave e inocente... uma combinação que vira a cabeça dos homens. Mas porque Christopher a amava, e ainda ama, acho, você arruinou a vida dele. Ele é quase louco, você bem sabe. Ele mataria por você, destruiria tudo por você, mesmo a própria vida. Sob certas circunstâncias presentes, isso é muito afortunado. Mas voltarei a isto mais tarde. O que estou dizendo agora é que a sua própria existência, Celeste, fez dele um demônio, ao invés de apenas o mau Bouchard comum que poderia ter sido. Odiou os irmãos; todos eles se odiaram mutuamente. Mas você tornou pior o ódio.
Celeste continuou de pé junto de sua cadeira, agarrando-se com mãos úmidas. Seu peito, sob o agasalho azul, se erguia e baixava com apaixonada agitação. A testa branca, o pálido lábio superior brilhavam de umidade.
Agnes continuou com dura serenidade:
— Agora, vejamos: Henri veio a seguir, você se lembra. — Parou e esperou.
Celeste não se moveu, mas pareceu minguar e encolher, tornar-se menor. Entretanto, fitava Agnes firmemente e em petrificado silêncio. Agnes estava sorrindo novamente, com renovada maldade:
— O que você fez ao Henri! Oh, claro que você não podia evitar isso! Você nunca pôde. Não foi por sua culpa que Henri voltou à América, para tentar reaver o que lhe fora roubado. Teria feito isso mesmo se você não existisse. Admito isto. Porém ele veio e viu, e você conquistou. Naturalmente, você era jovem e inexperiente, e tinha o direito de mudar de opinião. Para começar, Henri era um homem mau; todos os Bouchards o são. É parte de seu encanto irresistível. No entanto, Henri era o pior de todos eles. Não obstante, não teria sido tal monstro se não fosse por você, se nunca a tivesse visto. Pois parece, desgraçadamente, que você tem a capacidade de fazer surgir o que houver de pior nas criaturas. Sei que fez isso comigo... — e ela riu brevemente. — Pensei que Henri havia escapado quando você finalmente o jogou fora e casou com Peter. Pensei que ele então se tornasse apenas um Bouchard naturalmente mau, um Bouchard normal. Você se foi. Mas depois voltou.
Parou, pois Celeste se movera, só um pouquinho, porém mesmo esse ligeiro movimento era como se um raio a tivesse tocado.
— Voltarei a Henri mais tarde — disse Agnes, com cruel suavidade. — Agora vamos ao pobre Peter. De certa forma, ele parece haver escapado à natureza pestilencial dos Bouchards. Foi um "bom" Bouchard. Não tem havido muitos. Com minha própria experiência, não me lembro de nenhum outro. Sim, ele foi um Bouchard "bom".
"Não foi culpa sua se Peter foi intoxicado por gás na guerra... gás Bouchard, diga-se de passagem. Como não foi culpa sua se Peter voltou para aqui. Você não sabia absolutamente nada a respeito de Peter até sua chegada. Ele estava doente, mas ainda vivo. E ainda tinha coragem, força e pureza. Casou com você, e foram viajar. Não estou afirmando que ele poderia ter sido mais feliz, ou mais saudável, com qualquer outra mulher. Pelo menos, até que voltaram. Porém ele está morrendo agora. E morrendo em infelicidade e desesperança. Talvez isso nada tenha a ver com você. Ouvi dizer que você tem sido a mais terna das esposas, e ele parece que lhe é devotado. Dou-lhe este crédito. Contudo, por vezes fico pensando, você nunca lhe deu paz, ou felicidade verdadeira, pois não está em você o dar felicidade a ninguém: só paixão, loucura, desespero e ruína.
Sem remorso, fitou Celeste. Pois o controle de Celeste se havia rompido súbita e violentamente. Sua fisionomia, os olhos, expressavam terror supremo. Ficara de pé por trás de sua cadeira; erguera as mãos, as palmas para fora, em direção a Agnes, como para desviar algum ataque brutal e mortal. Gritou, incoerentemente:
— Vá embora! Não ouvirei nem mais uma palavra! Saia de minha casa, agora, imediatamente!
Mas Agnes estava imperturbável. Olhou Celeste com atenção aguda e significativa:
— Sei... Estou percebendo uma porção de coisas... Você não está tão ofendida pelo que eu disse a respeito de Peter. Está é com medo do que direi a seguir, não é mesmo?
Celeste ficou silenciosa. Mas tremia toda. Deixou cair as mãos. Depois murmurou:
— Meu Deus! Vá embora! — E recuou, em direção à porta.
— Volte, Celeste. — Falou Agnes, quietamente. Levantou-se. Havia-se apagado seu sorriso. Suas feições estavam endurecidas. — Volte. Sente-se. Não saí com esse tempo bestial só para fazer-lhe um sermãozinho. Por mim, você pode dormir com uma dúzia de homens. Pode enroscar-se numa dúzia de camas, e eu apenas darei de ombros. Isso é só da sua conta. Suponho que você, também, sofra algum enfado.
Celeste parou em sua retirada, mas não voltou à cadeira. As duas mulheres se encararam na sala silenciosa. Celeste já não parecia tão cheia de terror e apreensão. Estava rígida como gelo, e igualmente sem expressão. Seus olhos estavam vazios, como se o choque por que passara lhe tivesse arrancado a alma.
Por um momento Agnes experimentou uma espécie de piedade, e profunda curiosidade.
— Celeste — falou, em tom mudado — lamento por você. Era muito jovem e inexperiente quando casou com Peter. A culpa foi de Christopher: queria guardá-la para ele mesmo. Talvez você também tivesse agido mal. Talvez não seja completamente culpa sua. "Vítima das circunstâncias", talvez. Quando voltou, você era já uma mulher, não uma criança. Sempre amou Henri, não? Nunca o esqueceu. Percebo isso agora. Pensei que estivesse apenas aborrecida de seu marido doente, e procurando uma última aventura. Henri deve ter-lhe parecido muito romântico, pensei. Além disso, ele não a esquecera. Nenhum dos homens que a amaram jamais puderam. Pensei, erroneamente, com certeza, que você sabia disso e estava procurando tirar vantagem do caso. Enganei-me. E lamento, por você, Celeste.
Celeste tentou falar. Depois, com um gesto infinitamente patético e trágico, cobriu o rosto com as mãos. Agnes a observava. Seu próprio rosto escureceu, e os duros olhos negros ficaram subitamente gentis e tristes, como nunca o estiveram antes.
— Pobre criança! — disse, compassivamente. — É tudo tão terrível!...
Depois de um momento riu um pouco: havia uma nota trêmula e amarga nesse riso:
— Sinto muito por você, querida! E, acredite ou não, também sinto por Henri. Inacreditável, não? Sentir por um homem como Henri?
Celeste deixou cair as mãos. O rosto estava molhado de lágrimas. Seus lábios tremiam:
— Annette sabe? — perguntou, doloridamente. — E Peter sabe?
Se Agnes ainda tinha dúvidas sobre as verdadeiras emoções de Celeste, essas abnegadas palavras as destruíram. Hesitou. Depois foi até Celeste e pôs-lhe os braços em volta, com uma ternura alheia à sua natureza:
— Venha, querida, sente-se. Ainda tenho muito que dizer-lhe.
Levou Celeste de volta à sua cadeira, e com seu próprio lenço perfumado enxugou as lágrimas da jovem mulher.
— Não — disse por fim, pensativamente — não creio que Annette e Peter saibam. Mas praticamente todos os demais sabem, acho.
Celeste estremeceu. Inclinou-se para diante e agarrou com as mãos os braços cruzados, encolhendo-se numa atitude de total colapso e fria angústia. A cabeça lhe descaiu para a frente. Os brilhantes cabelos negros lhe cobriram o rosto.
— Não posso crer que Henri fosse ingênuo a ponto de esperar não ser descoberto — falou Agnes. — Penso que existe outra explicação. Acho que, em seu egotismo, acreditou que ninguém ousaria falar a respeito dele, ou murmurar a respeito dele abertamente, temendo vingança. Ele sabe que todos o temem. Provavelmente sabe que andam comentando. Isso não lhe importa. Contanto que não tentem nada hostil. Sabe lidar com inimigos. E circunstâncias. Mas que tentem injuriá-lo; ou a você, por causa disso, e ele os esmagará, é o que acredito. O caso é: estão tentando. E podem ser bem-sucedidos. O que será muito triste. — Deteve-se. — Não estou pensando em você, Celeste, ou mesmo em Henri, quando digo que será triste. Estou pensando em coisas muito mais importantes.
Celeste se mexeu vagarosamente, nas profundezas de sua depressão e desespero. Ergueu a cabeça. O cabelo caiu em anéis desordenados em volta das faces úmidas. O medo e o pânico estavam vividos em seus olhos; seu rosto parecia sombrio.
Agnes sentou-se perto dela e inclinou-se para diante, falando com calma intensidade:
— Celeste, querida, você não sabe mesmo de nada? — perguntou com surpresa piedade. — Henri não lhe falou nada a respeito do que está tentando fazer? Ou você é apenas sua favorita esposa de harém, mantida em purdah, por trás de telas, véus e muros? Será que ele a julga uma mentecapta, que não compreende?
A expressão perturbada de Celeste mudou:
— Ele me contou só um pouquinho — murmurou.
Agnes recostou-se na cadeira e contemplou a jovem mulher por um momento. Sua própria expressão era sombria:
— Entendo... — murmurou. — Sim, ele deve ter-lhe dito. Ele é muito esperto. Sabia que a perdeu outrora porque lhe era repulsivo ... suas ideias, suas intrigas e seus planos eram repulsivos. Talvez vocês tenham estado juntos uma ou duas vezes, levados por atração irresistível, quando você voltou da Europa. Contudo, ele sabia que isso não era o bastante para guardar você. Foi isso, não foi? Assim, teve de dizer-lhe. Não tenho dúvidas de que enfeitou um pouco a coisa, de modo a adquirir uma espécie de nobreza a seus olhos, até mesmo abnegação. Deus nos ajude! Imagine isso, de Henri! Seria muito divertido se não fosse tão danadamente sinistro. Francamente, você pode imaginar Henri fazendo algo de heroico e nobre devido a patriotismo, mudança de coração, virtude ou grandeza? — Ela riu duramente.
Mas Celeste nada disse. Apenas aguardava.
— Entretanto — continuou Agnes, mudando novamente para uma intensidade sombria — o que está fazendo agora é a única oportunidade de sobrevivência para a América... para todos nós. Sabe disso, não sabe? E sabe quem são os inimigos dele, e o que estão tentando fazer?
— Sim — sussurrou Celeste — sei. Ele me disse.
— São inimigos terríveis — continuou Agnes. — Existe apenas fraca possibilidade de que ele vença. Ele está determinado a vencer. Arrastou com ele alguns dos Bouchards, porque estão aterrorizados, porque ele os intimidou, subornou-os, ameaçou-os, e os coagiu. Não importa. Sabe — acrescentou, pensativamente — se eu fosse mais nova iria perseguir Henri. Ele tem alguma coisa! É um homem e tanto!
Novamente mudou a expressão de Celeste, tornou-se intensa de paixão e tragédia. Fixou os olhos em Agnes e esperou, respiração suspensa.
— Não me espanta que o ame — disse Agnes, com gentileza. — Ele tem tudo. Não existem muitos como ele agora, na América... E tem uma terrível luta pela frente. Emile está nessa com ele. Apesar de Emile ser o meu marido bem-amado, não passa de um rato preto inchado. Ao ameaçá-lo, Henri fez um bom trabalho. Christopher está nisso com ele, e Alex, e Francis. Mas existe outra facção, e bem pestilencial. Sabe disso?
Celeste acenou que sim.
— Antoine, aquele amigo brilhante e cheio de mesuras. E outros. Outros, não apenas uns poucos Bouchards, porém outros igualmente poderosos em política, no campo jornalístico, na indústria. Os Bouchards menos importantes estão se revolvendo incertamente ao longo das bordas de ambas as facções. Henri está tentando pô-los na linha. Antoine está tentando também, com muito mais finesse. E por trás de ambos está uma América amorfa e confusa. As coisas estão pretas, Celeste querida. Você sabe disso. E quanto ao futuro? A América rolará atrás do vencedor. Queremos que Henri vença. Você e eu. E muitos outros, também. Viveremos... com Henri. Nós, e a América, morreremos com Antoine.
Levantou-se, como se a pressão de seus pensamentos fosse demasiada para ela. Começou a caminhar de um lado para o outro no salão, essa mulher elegante e segura, fechando e abrindo as mãos:
— Nunca fui patriota. Nunca fui uma "americana". Quantos americanos existem na América? Terrivelmente, terrivelmente poucos! Quantos amam a América? Tenho medo de responder. Só sei que a América é inerte, estúpida, louca, fátua e inanimada. Devemos agradecer isso a tipos como Antoine. Uma nação de mentecaptos de barriga cheia lhes é muito necessária. E uma nação de lunáticos. Você conhece a respeito das organizações que ele está apoiando. Cheias de mulheres insanas, de odientos, gananciosos cruéis, estúpidos e criminosos? Pregamos a formação, aqui na América, de um robusto partido nazista. Ódio é o seu deus, e Jaeckle é seu profeta. Conseguiram o suporte de sacerdotes, assassinos, ladrões, mentirosos e loucos. Este é o panorama na América, esta a perspectiva que Antoine está favorecendo. Você sabe por quê.
Respirou profundamente:
— Engraçado! — murmurou. — Mas acredito, agora, que sou uma americana! Devido ao perigo que corre a América. Por causa dos loucos.
— Eu sei — sussurrou Celeste.
— O America Only Committee — continuou Agnes. — Metade deles é de loucos sinceros e imbecis, que talvez ainda amem a América e não a querem ver envolvida no que chamam guerras "estrangeiras". Como se jamais houvesse alguma guerra "estrangeira"! Poder-se-ia pensar que a América é um planeta rolando por aí serenamente em sua própria órbita, ao invés de parte de um mundo! É como se um homem tivesse câncer numa remota parte de seu corpo, e sua mente lhe perguntasse o que fazer com ele. Era só na barriga, pois não? Que tinha isso a ver com seus braços, ou seus olhos, ou o coração, ou os pulmões? Por algum milagre, esse homem diz a si mesmo, que ele pode ignorar o câncer em sua barriga. Mas lá chega o dia em que ele todo morrerá. Ele esquece isso.
"E, então, pairando pelas bordas do America Only Committee estão as organizações lunáticas, as mulheres orgíacas que gostariam de despedaçar criancinhas com suas mãos nuas, que gostariam de torturar outras mulheres, que gostariam de dormir com os próprios filhos, que gostariam de revolver-se no sangue dos assassinados. Por que estremece, Celeste? Não conhece nada sobre a raça humana? Eu sim, infelizmente.
"E ainda há os padres assassinos e avarentos, que gostariam de torturar os desamparados, que gostariam de roubar-lhes seus bens, que gostariam de escravizar o mundo, que estão inchados de ódio e de loucura. E depois há os criminosos, que querem violentar, atormentar e matar, e veem a oportunidade de fazer essas coisas sem punição. Sim, existe muita loucura no mundo. E muita dessa loucura está atrás de Antoine.
Então parou. Estava de pé junto de Celeste. A neve silvava nas janelas. O vento de inverno se erguia no longo arco de uma concha.
Subitamente Agnes gritou:
— Como tudo isso é apavorante! Como se pode aguentar isso? A Noite de Valpúrgia de fúria e de morte está sobre nós. E esperando, em seus calmos salões, estão os ávidos do poder. Esperando em Washington, esperando em suas fábricas imensas. Esperando pela ruína da América.
Pressionou os dedos finos e brancos de encontro às faces:
— Loucura! Loucura! O mundo inteiro está louco! Agora existem bem poucos homens sãos. Só alguns como Henri. Que importa se está pensando apenas em si mesmo? Ele pode salvar-nos, a todos nós!
Voltou-se, rápida, para Celeste:
—•Henri pensa que entraremos nesta guerra?
— Ele não sabe — suspirou Celeste. — Há alguns meses atrás ele estava certo de que não. Mas agora, não. Está tentando deixar-nos de fora. Está certo que isso significaria o fim da América como a conhecemos, se formos arrastados a ela. Agora, ele quase acredita que será o fim da América se não entrarmos nela.
— Ele ainda odeia Roosevelt? — perguntou Agnes, com um sorriso breve.
— Não sei. Outrora o Presidente o irritava terrivelmente. Mas agora ele é indiferente. Diz que esta coisa é muito maior do que a política. Entretanto, pensa que o Partido Republicano tem oportunidade de vencer a eleição se puder achar um homem bom e espetacular que atraia todos os elementos. De uma coisa ele está certo, no entanto: Roosevelt concorrerá a um terceiro mandato, contra todos os precedentes, preconceitos e tradições, e talvez o candidato republicano seja derrotado.
Porém Agnes parecia não ter ouvido isso. Voltou a sentar-se perto da cunhada:
— E agora, Celeste, tudo isso nos traz de volta a você.
— A mim?
— Sim. Você e Henri. Os inimigos de Henri não se deterão diante de coisa alguma para destruí-lo. Eles sabem, agora, o que ele está tentando fazer. Não sei que outras coisas terão em mente, mas estão prontos para expor você. Farão isso também. Pensa que o povo americano não estará interessado? Bem, pois então se lembre que homens mais importantes que Henri foram destruídos por um pecadillo. A vasta massa do povo americano é muito infantil, facilmente influenciável. Todos se julgam muito virtuosos. Os inimigos de Henri podem fazer tal escândalo nacional sobre isso, esse pequeno caso, que qualquer coisa que ele tente fazer daí em diante será enlameado. Acha isso infantil? Garanto-lhe que não é. Cada inimigo sacerdote neste país fará um cavalo de batalha da "infidelidade" de Henri, até que o destino da América se tornará um casinho sem a menor importância, em comparação. Claro, os mais inteligentes apenas rirão. Porém a massa pueril, e adúltera, de americanos não rirá. Em sua estupidez argumentarão que um homem que dorme com a esposa de outro homem deve ser um completo canalha em quem não se deve confiar, e capaz dos crimes mais odiosos e traiçoeiros e, se deve desconfiar de tudo que ele faz. Muitos heróis fracassaram, muitos grandes líderes do povo foram desacreditados devido a suas agradáveis pequenas excentricidades, e marcados como infames. Esse é o jeito da populaça. E os inimigos de Henri sabem disso.
Celeste estava mortalmente branca:
— Não acredito! O povo americano não pode ser tão estúpido e ignorante! — gritou.
Agnes abanou a cabeça gravemente:
— Garanto-lhe que pode. Como tantos de nossa classe, você acredita que sua mente, sua razão, sua inteligência são partilhadas em quantidades iguais por todas as outras pessoas. Nisso reside nosso erro fatal. O pequeno operário, a modesta balconista, o dono de loja, o pequeno artesão, cujas vidas estão em perigo nestes tempos, ficarão excitados, indignados e furiosos porque o homem que está tentando salvá-los da morte e da escravidão dorme ocasionalmente com a esposa de outro homem. Acha incrível? Só lhe peço que considere a História. Não apenas a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita: na América, o próprio César deve ser um eunuco. Esta é a nossa herança puritana.
Ela hesitou:
— E, claro, esta questão também diz respeito a Armand. Esqueceu que Annette é filha dele? Que acontecerá se contarem a ela, e a moça se divorciar de Henri? Não trema tanto, minha cara. Tem de pensar em tudo isso. Se Annette se divorciar de Henri, então Armand irá esmagá-lo. Armand é um idiota, um doente, mas também é maligno, e ama a filha. Lembre-se: Henri é apenas presidente da Bouchard devido ao poder de Armand. Se for tirado da jogada, então estará acabado o trabalho que está tentando realizar.
Parou e aguardou. Mas Celeste nada disse.
— Você só tem de esperar um pouco — instou Agnes, pondo a mão no ombro de Celeste. — Só até que Armand morra, talvez. Na pior das hipóteses, só até que Henri tenha resolvido certos assuntos. É uma coisa pequena, realmente, comparada com toda a América, não acha?
— Que posso fazer? — disse Celeste, desanimada. — Henri não me ouvirá. Dirá que isso é ridículo, que devo deixá-lo cuidar de tudo, e me deixará sem palavras.
— Sim, eu sei, querida. Por isso é que não deve contar-lhe o que eu lhe disse. É um maldito egotista. Francamente, não sei como você manobrará isso. Diga-lhe qualquer outra coisa. Diga-lhe que Peter precisa de você. Diga-lhe que não quer voltar a vê-lo enquanto Peter for vivo. A coisa agora é com você, Celeste.
Celeste era toda resignação, toda renúncia. Suspirou, e tornou a suspirar. Murmurou:
— Se ele se for, pode nunca voltar. Disse-me isto uma vez. Nunca voltará. Sei disso. Outrora eu o mandei embora... Mais tarde, quando ele compreender, pode não querer voltar...
— Isso é o que você tem de arriscar... — disse Agnes. — Sei como se sente, querida. Mas tudo isso não é nada, comparado às coisas maiores.
Ela se levantou e começou a calçar as luvas. Olhou piedosamente para Celeste, tão desamparada, tão sem vida. Então curvou-se rapidamente e beijou a testa da jovem mulher, dizendo:
— Oh! Minha querida, minha querida! — E se foi.
Celeste ouviu o roncar do carro quando se afastava. Ouvia com intensidade, como para obstruir seus próprios pensamentos. Então, quando tudo estava novamente silencioso, exceto pelo vento e estalar do fogo, a onda de desolação, pesar e agonia que a percorreu dificilmente podia ser suportada. No extremo de sua dor nem podia mover-se. Apenas podia fitar o fogo, até que as órbitas de seus olhos eram um clarão de luz refletida.
Passou-se um bom tempo até que pudesse levantar-se e arrastar-se para o seu quarto. Acendeu as luzes. Ouviu o macio chamado do gongo para o jantar. Mas sentou-se à escrivaninha e puxou para si uma folha de papel. Começou a escrever, e cada palavra era um punhal em seu coração.
Principiou sem cumprimentos:
"Cheguei à conclusão que não podemos voltar a encontrar-nos sob as presentes circunstâncias. Por favor, acredite-me: desta vez minha decisão é definitiva. Não tente procurar-me, por favor. Será inútil. Talvez algum dia seja capaz de compreender."
Selou a carta, endereçou-a a Henri, no escritório.
Livro Três - A Terra Permanente
"Geração vai, geração vem; mas a terra permanece para sempre."
ECLESIASTES, 1:4
Capítulo 36
Annette Bouchard sofria da tristeza comum aos gentis e despretensiosos: era sempre posta de lado e esquecida, embora fosse amada por muitos. Pois mesmo o cruel e o malicioso nada tinham de mau para dizer-lhe, e se fossem culpados de observações depreciativas sobre a sua paciência e doçura, eles as faziam com remorso e piedade.
Sua mente era altruística. Não que não tivesse consciência do sofrimento e da maldade, e de todas as falsidades inerentes à espécie humana. Mas tinha a firme consciência do fluxo da eternidade. E era infinitamente compassiva e compreensiva.
O último dia de fevereiro caiu sobre Robin’s Nest como uma diáfana cortina cinzenta de fumaça, onde tudo ficou indistinto. Mas havia calor e paz na grande e velha casa que jamais conhecera o nascimento de uma criança. "Uma casa tão grande e forte — ela pensava — com tantos quartos lá em cima que poderiam ser transformados em berçários!" Poderia existir coisa como uma "casa estéril"? Crianças viveram ali, sim. Henri e Edith brincaram nesses salões tão quietos, correram acima e abaixo na escadaria em espiral, viram árvores de Natal em um canto do enorme salão, viram a chuva a. cair em gotas prateadas pelas vidraças oitavadas das janelas, haviam dormido nos quartos calmos, haviam lutado, brigado, rido e chorado dentro dessas paredes. Mas apenas duas crianças, afinal de contas. Annette quisera adotar crianças, mas Henri se enfurecera a essa ideia, e lhe lançara um olhar tão terrível que ela jamais voltara a tocar no assunto.
Deu a Annette melancólica felicidade o saber que vivia na casa em que Henri passara sua primeira infância. Gostava de pensar nele como criança. Tentou muitas vezes. Mas seus esforços não lhe evocavam imagem nenhuma. Quando tentou imaginá-lo como garoto, seus pensamentos inquietos voltaram ao retrato do bisavô dele, Ernest Barbour que estava pendurado no maior dos salões. Então uma curiosa compulsão lhe vinha: em qualquer parte da casa em que estivesse, tinha de ir àquela sala e olhar para o retrato. Muitas vezes esse impulso lhe vinha depois de meia-noite, e tinha de descer a escadaria, acender uma lâmpada, e contemplar o quadro por muito tempo.
Lembrava-se de que, ao entrar nessa casa pela primeira vez, como noiva, o retrato parecera olhá-la com fria indiferença, curiosidade, e mesmo uma remota inimizade. Esses pálidos olhos de basilisco a fitaram com estranha fixidez, e por uma ou duas vezes lhe pareceu que eram desdenhosos. Mais tarde, ficaram meramente indiferentes. Quando ela julgava que seu coração se estava rompendo (o que era frequente), imaginava haver um vivido alerta naqueles olhos, como se a fisionomia pintada demonstrasse pensamentos e interesse. Contudo, nunca imaginara piedade neles, ou bondade. Fúria, sim, raiva glacial, maldoso desdém, e por vezes aversão e repugnância — mas nunca piedade. Às vezes pareciam compreendê-la, e escarnecer o que compreendiam.
Nunca, no começo, acreditara no que outros afirmavam: que Henri era a cópia do bisavô, que os olhos eram idênticos, bem como as largas faces descoloridas, o topete de cabelos claros. Por vezes admitia haver alguma semelhança física — mas a expressão era diferente.
Sem embargo, neste último ano, medrosamente fora obrigada a reconhecer que Henri estava agora precisamente como Ernest Barbour fora. Havia o mesmo sulco profundo entre os olhos, as mesmas pregas pesadas em volta da boca brutal, a mesma força abrupta no nariz curto, o mesmo olhar de inexorável determinação. Por vezes ela estava certa de que o retrato virava a cabeça com gesto idêntico ao de Henri, e muitas vezes lhe parecia que franzia os lábios como Henri fazia exatamente antes de abri-los para falar em sua voz monótona. Ernest Barbour estaria mais ou menos com a idade de Henri agora quando o retrato foi pintado, e havia a mesma sombra de cinza prematuro no leve cabelo claro.
Por alguma razão misteriosa, essa semelhança crescente a amedrontava. Com frequência, tinha o confuso pensamento de que não era mais Henri Bouchard que morava nesta casa com ela, mas Ernest Barbour. Então vagava pelas salas quietas e vazias, sentindo-se uma estranha que não tinha direito a viver ali. Erguia-se a cortina e May Sessions, primeira e última esposa de Ernest, aparecia, em seu espesso vestido de veludo carmesim, azafamada, os cachos ruivos presos no alto da cabeça, uma joia no pescoço muito branco, o bonito rosto arredondado prestes a abrir-se num gracioso sorriso — que era uma lenda na família. (Havia no quarto de Henri um pequeno retrato de sua bisavó, e tinha tal expressão de bondade, tão bem-humorada, fascinante, que Annette sentira a nostalgia de não haver conhecido essa grande dama.) Ernest se havia divorciado de May, que o amara com força e paixão, e casara com a prima dela, Amy Drumhill, viúva do irmão dele, Martin. Havia também um retrato de Amy em um dos quartos de dormir de Robin’s Nest, e ela fora adorável — pensava Annette. Amy tivera um rostinho doce e gentil, sonhador e celestial, olhos grandes e suaves, e cachinhos castanhos. O retrato fora pintado quando ela era mocinha, e os esbeltos ombros brancos apareciam inteiramente abaixo do acetinado marfim de sua garganta. Porém ela não tinha realidade para Annette, que gostava de pensar que, após a morte de Amy, Ernest tornara a casar com May, e que ambos morreram na velha mansão Sessions — inspiração e ruína daquele homem terrível. A velha casa Sessions tinha sido um entulho por muito tempo, e há muito largada em ignominiosa ruína, e May nunca vivera em Robin’s Nest onde sua filha, Gertrude, sofrera tal agonia. Entretanto, era May que Annette sempre esperava ver, entrando através do sombrio arco, a deslizar para cima ou para baixo da grande escadaria. Se Ernest Barbour era o malfazejo e insone frequentador a assombrar a casa, May era seu espírito beneficente e bondoso.
Annette suspirou. Pensou, pesarosamente, que Henri devia realmente ter casado com alguém como May Sessions, sempre graciosa e bonita, e forte e vivaz. Uma mulher que lhe tivesse dado filhos. Não era de espantar, pois, que o retrato a olhasse com desprezo e inimizade, e que os pálidos olhos fixos fossem frequentemente ameaçadores.
Henri teria ficado espantado se conhecesse os pensamentos de Annette. Pois em seu idolatrado amor por ele, muitas vezes ponderara sobre a oportunidade de conceder-lhe um divórcio que o capacitasse a voltar a casar e ter os filhos que ela nunca teria. (Frequentemente ela podia ouvir essas crianças-fantasmas a correr pelos corredores, rindo nas salas distantes, arremessando-se escadas abaixo, pedindo, acariciando, chorando.) Era então que sua dor se tornava insuportável, e ela podia lançar-se em acessos de choro que a punham doente por dias e dias. Porém após um ano ou dois de sua vida de casada, soube que não poderia dar o divórcio a Henri. Não enquanto Armand fosse vivo. Annette sabia muito que ninguém mais sabia ou ousava falar.
Certa vez ouvira a cruel Rosemarie Bouchard dizer à irmã, Phyllis:
"Essa horrível criaturinha retorcida nunca se divorciará do pobre Henri. Fincou-lhe as garras muito apropriadamente. Ela sabe que ele não pode se divorciar dela por causa daquele velho inchado, o Armand. De modo que se regozija toda convencida, sabendo que o tem bem seguro."
Annette ficou terrivelmente doente durante seis meses depois de ouvir isso, tão doente que quase morreu. Ninguém soube por que; seus médicos estavam espantados. Só o pensamento de que, se morresse, Henri poderia ficar arruinado foi que a trouxe à vida. Pouco depois de poder sair da cama, visitou um advogado obscuro e fez um testamento deixando para Henri tudo que possuía ou viria a possuir, e incluíra uma carta selada para o pai, na qual lhe implorava que sua parte dos bens, e mesmo mais, fosse para seu marido, que Armand se lembrasse dele e lhe fizesse justiça. Mas ainda temia que, por sua morte, Henri pudesse ser destruído.
Somente alguns meses atrás é que Armand, que ficara doente outra vez, choramingara a verdade para ela, falando do que ele considerara seu leito de morte. Ela sentira tamanha alegria, tal alívio, que esqueceu os receios pelo pai. Mais tarde, a dúvida e o medo lhe voltaram. Se Henri se divorciasse dela, ou o caprichoso e doente Armand mudasse de ideia, a ameaça de ruína permaneceria. Armand esquecera o que lhe dissera em seu meio delírio, mas Annette não esqueceu. Agora eram três a saber: Armand, Henri, e sua esposa.
Só ultimamente é que ocorreu a Annette uma coisa estranha e terrível: esperava, com triste impaciência, que seu amado pai morresse, e com ele morresse a ameaça a Henri. Com horror, percebeu que estava buscando sinais de dissolução no rosto doente de Armand, e tremeu intimamente quando a esperança da imediata morte dele lhe invadiu os pensamentos. Tão curto é o tempo... — diria para si mesma, desesperançadamente. Henri já não era jovem: se tivesse de casar com uma mulher de verdade, e ter filhos, teria de fazê-lo o mais cedo possível. E Armand protelava a coisa, com sua agulha, sua Lista, suas queixas e sua miséria física.
Seu horror ante seus pensamentos, sua impaciência, sofrimento e tristeza estavam devorando suas últimas forças e a tornavam mais transparente, os enormes olhos azuis mais assombrados e exaustos. Sentia que todo o mal estava nela. Mas não podia controlar o desejo apaixonado de que o pai morresse logo.
Embora os Bouchards se apiedassem de sua descendente, julgando-a uma idiota inválida e perturbada, Annette nunca estivera inconsciente das frequentes faltas conjugais de Henri. Acompanhara o desenrolar dos seus "casos" amorosos com sofrimento e interesse. "Oh! Com essa não!" — dizia a si mesma, com terror, quando um caso ou outro parecia prolongar-se indevidamente. Não aquela mulher, com aqueles astutos olhinhos verdes e boca avarenta, não aquela mulher com seu cruel e doce sorriso e suas mãos esvoaçantes, não aquela mulher que a ninguém amava a não ser a si mesma. E, bom Deus! Nunca Rosemarie Bouchard, aquele esbelto demônio parisiense! Mesmo se Armand morresse, nunca daria a Henri um divórcio que lhe permitisse casar com uma daquelas. Só lhe trariam desdita e ódio.
A cada vez que ele começava outro "caso", ela dava um jeito de conhecer a mulher, para estudá-la. E em todos esses anos nunca encontrara uma por quem renunciaria a Henri. Não até ultimamente.
Sempre, desde o início, soubera que Henri amara Celeste, que nunca o esquecera. Mas quando Celeste voltou, Annette só sentira angústia. Porque Henri não podia desposar Celeste. Celeste era esposa de Peter, e nunca se divorciaria dele. Nunca ela ousou confessar a si mesma, mesmo no recesso mais escuro da noite, o que já sabia. O pensamento era por demais doloroso. Henri não casaria com qualquer outra mulher, isso Annette compreendia agora. Contudo, ele não podia casar com Celeste. E Annette, com a culpa da esperança de que Armand logo morresse, não podia estender a mesma esperança para incluir o pobre Peter, a quem amava ternamente.
Tivesse a ligação trazido alegria a Henri, Annette teria extraído um melancólico contentamento desse fato. Mas não estava trazendo alegria a ele. Frequentemente ela o estudava a distância, e não podia notar nele nenhum novo frescor, nem nova vitalidade ou prazer de viver. Ao invés, nesses últimos dois meses, ele se tornara mais austero, envelhecido, selvagem, mais friamente violento. E não era por causa do trabalho incessante que realizava; Annette compreendeu isso. Era algo mais.
Nas últimas semanas ela se dera conta de que ele já não se encontrava com Celeste. Estava confusa e espantada, e amedrontada com isso. Não podia acreditar que estivesse cansado de Celeste, ou ela dele. Então, por que isso?
Por vezes pensava, com triste surpresa e humildade:
"Talvez estejam perturbados por minha causa... Talvez pensem que é ‘errado’..." Sentiu um estranho e inexplicável conforto, e uma súbita dor no coração de tanta ternura — e não podia compreender tudo isso, embora fosse diplomada na arte da autoanálise. Houve nela um súbito alívio, um suavizar e dissolver tristezas que lhe trouxe lágrimas aos olhos.
Pois às vezes, no passado, durante as brutais e indiferentes faltas de Henri ao dever conjugal, ela se arrancava de seu transe de sereno autocontrole com a confusa sensação de despertar de um sono drogado. Então experimentava a dor agônica, o desespero e o repúdio da resignação. Seu próprio desejo humano de amor, paz e segurança não podia ser controlado nessas ocasiões. Perguntava-se com frenético sofrimento e rebeldia, por que deveria ter sido alijada para o desamor e a infelicidade. Que fizera? Não era uma mulher, que apenas desejava amar e servir, e ter um pouco de paz? Por que toda a abnegação deveria ser dela? Henri não poderia ter-lhe dedicado um pouco de afeição, um pouco de consideração, um pouco de ternura?
Fora muito pior quando Celeste voltou. Ela não confessou nem a si mesma o quão freneticamente esperava que Henri e Celeste não se reunissem. Isso porque sempre amara e admirara Celeste, e nela confiara. "Celeste — ela pensava infantilmente, mas com fé — tinha demasiada integridade, muita honra, bondade e senso de dever, para trair a sobrinha e o marido." Se Celeste se tornasse infiel, então desapareceria a última defesa de Annette contra um mundo monstruoso.
Mas Celeste e Henri se juntaram. Annette adivinhava a luta que devia ter atormentado a mulher mais velha. Sua piedade era profunda e intensa. Entretanto, seu coração era injuriado e despedaçado por uma dor confusa. Se ao menos não fosse Celeste! Annette não podia explicar, até para si mesma, por que sentia tão selvagem desespero. Observava Celeste, notava como evitava fitar a sobrinha nos olhos, como aumentavam dia a dia sua palidez, silêncio e frieza, como cada palavra era distraída e incoerente ou triste. Nesses momentos o desespero e a raiva de Annette se suavizavam e ela apenas sentia compaixão. Uma ou duas vezes tivera de conter-se para não gritar:
"Não importa, querida! Não sofra tanto! Estou realmente satisfeita. "
Mas alguma virtude na alma da pobre criaturinha se escoava e sangrava como um órgão separado e ferido, e seu último fraco apego à vida, sua última fé na espécie humana se perdiam.
E então soube que Henri e Celeste já não se encontravam. Após a primeira confusão, ficou arrebatada de alegria. Celeste não podia continuar a traí-la. Renovaram-se sua fé e sua esperança, sua coragem e sua tranquilidade.
Hoje estava esperando por Henri. O quarto cálido e calmo estava fortificado com as luzes das lâmpadas e do fogo contra a melancolia e o acinzentado da penumbra, contra sua ameaça fria e semelhante à morte. Annette usava um vestido de macia lã amarela e seus cabelos finos e brilhantes se enroscavam em anéis em volta da cabeça. Toda a sua aparência era gentil, e os olhos azuis brilhavam. Ouviu a aproximação de Henri, e a velha pulsação dolorida começou em sua garganta. Virou-se para ele, sorridente, e estendeu-lhe a mão:
— Alô, querido! — disse, suavemente, buscando-lhe a face com íntima ansiedade.
Ele a olhou em silêncio, depois falou, brevemente:
— Boa-noite. — Falou com esforço, quando acrescentou: — Dia miserável, não?
Sentou-se pesadamente, perto do fogo, cotovelo no braço da poltrona, queixo na mão. Contemplava o fogo. Ele a havia esquecido. Ela viu sua melancolia e abstração, e ficou impotente. Se ao menos ele bebesse, como fazem outros homens! Se pudesse haver o alegre tilintar nos copos altos, o pungente odor de uísque, o silvo alegre da soda! Mas Henri Bouchard não tinha consolo, nem fuga da realidade. Nada desejava. Seria isso uma fraqueza, ou uma força? Annette não sabia. Apenas sabia que o álcool lhe repugnava, sabor e cheiro o enojavam. Certa vez dissera desejar que fosse vendido em cápsulas, de modo que não se precisasse conhecer-lhe o gosto, mas se sentisse o efeito. Mas realmente não falara a sério. Não desejava nenhum efeito.
Timidamente Annette sentou-se junto dele, um brilhante sorriso fixo no rostinho. Bateu as mãos e disse, em tom ligeiro:
— Gostaria de uma cápsula, Henri?
— Quê? — perguntou, virando a cabeça lentamente para fitá-la. — Uma cápsula?...
Ela se sentiu uma boba sob aquele olhar longo e inexorável que a condenava por sua futilidade. Estremeceu, ainda sorrindo:
— Lembra-se, querido. Você muitas vezes falou de cápsulas. Para álcool. Está um dia tão feio, e anda tanta gripe por aí... Pensei que talvez gostasse de uma bebida.
Ela esperava uma recusa abrupta e aborrecida. Para sua surpresa, ele começou a sorrir. Deixou cair a mão. Olhou-a amistosamente:
— Não é má ideia! Muito bem. Mas não uísque e soda: é uma bebida muito comprida. Algo concentrado... e forte. Não sei o quê.
Ela estava tonta de excitação e felicidade. Havia muito tempo que ele não condescendia em falar-lhe casualmente, ou em dar-se conta de que ela existia. Ele agora a fitava com uma expressão curiosamente pensativa, e havia uma excitação nos olhos descorados e inexoráveis que a miravam atentamente. Ela pulou imediatamente e tocou a campainha. Ao criado encomendou dois Manhattans.
— Mas muito fortes, por favor — murmurou. Voltou para Henri e tornou a sentar-se. Seu sorriso era amplo e forçado.
.
.
CONTINUA
.
.
Ela sabia muito bem que tinha inteligência e eloquência, mas com Henri sempre fora muda e absurda. Queria dizer, como sempre, coisas brilhantes e sutis, que lhe inspirassem admiração. Mas as palavras que lhe acudiam eram sempre tolas e sem vitalidade. Ela o amava terrivelmente, e o temia ainda mais. Apenas podia contemplá-lo com os lustrosos e brilhantes olhos tão azuis, e desejar desesperadamente poder aproximar-se dele, que ele lhe dissesse tudo que o atormentava nesses dias terríveis. Estava certa de que ele ficaria espantado com a extensão de seus conhecimentos.
Embora Henri não fosse um homem sutil, era astuto e penetrante. Sabia muito o que sua esposa estava pensando. Annette estava completamente enganada: ele não a considerava uma tola. Sob muitos aspectos, achava que ela era superior a Celeste; sua mente era translúcida, mais madura, mais civilizada. Com frequência a lamentava, e se zangava consigo mesmo por sua própria brutalidade, pois ninguém, ele sabia, devia ferir essa pobre criaturinha linda sem sofrer algum dano em si mesmo. Não era dado à compaixão, mas sentira mais piedade por Annette do que jamais sentira por outro ser humano.
.
.
.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HORA_DERRADEIRA_3.jpg
.
.
.
Embora seu olhar ainda estivesse curiosamente pensativo e alerta, enquanto a fitava, permitiu-se relaxar um pouco. Quando foram trazidos os coquetéis, ele lhes deu uma olhadela de desgosto, levou o copo aos lábios e bebeu apressadamente. Fez uma careta, limpou a boca com o lenço. Annette bebericou o dela vagarosamente, esperando e orando para que a rigidez em seu corpo diminuísse, e que ela fosse capaz de falar com ele em tom casual. Toda a sua vida de casada sonhara com uma hora em que ela e Henri conversassem facilmente, pudessem chegar a amizade e intimidade, pudessem rir juntos à luz da lareira. Seria esta a hora? Nunca antes estivera com ele quando estava tão pensativo, tão disposto. O coquetel criou nela uma radiante e ardente excitação, e o tenso tremor de seus músculos relaxou. Poderia ser sua imaginação, mas Henri parecia menos duro agora, e suas mãos largas e fortes pousavam relaxadas nos braços da poltrona. Seu coração se tornou uma enorme e trêmula massa informe no peito, e houve de repente lágrimas em seus olhos.
— Estava bom? — perguntou, num tom meio tremido. — Quero dizer: a cápsula?
— Sim — disse ele, amigavelmente. — Nada mau. Exceto pelo sabor. Por que não inventam bebidas que não repugnem ao paladar? Isso seria uma dádiva de Deus. Sinto-me aquecido agora. Estive gelado o dia todo.
"Que posso dizer que o interesse?" — pensou Annette, desesperadamente. Mas nada achou para dizer. Ouviu-se falando:
— Ouvi de papai há uma hora. Está doente outra vez. E terrivelmente assustado. Ganhou vários quilos, o que é muito mau.
Por que estaria ele interessado em Armand? Mas, para sua surpresa, ele estava interessado:
— Ele come demais — comentou. — E quanto à Lista? Está se descuidando?
— Não sei. Acho que ele está apenas infeliz — disse Annette, baixando a voz tristemente.
— Por que estaria infeliz, Annette? Ele jamais gostou do negócio. Tem sido um alívio para ele não estar mais na ativa. Está solitário? Nunca se importou muito com...
As vozes chegavam rapidamente agora aos ouvidos de Armand, malévolas, exultantes, rindo, conspirando. E agora a voz de Douglas Flannery, editor do Clarion de Detroit, que se gabava de ter quatro milhões de leitores não só na área de Detroit como muito além disso:
"Meu jornal ganhou mais de um milhão de leitores durante os últimos seis meses. Isso não lhes significa nada, senhores? Vergastei tudo: do New Deal à Inglaterra, França e Espanha, dos líderes trabalhistas aos comunistas, e orgulho-me do recorde. Enfatizei que precisamos em Washington de homens de negócios, sólidos e conservadores, que coloquem as necessidades da América antes das necessidades marxistas dos radicais europeus. Não tenho receio!" — continuou triunfantemente a voz pomposa e retumbante. — "Sou o único jornal da América que ousa atacar os judeus e os negros; e no caso de alguma insatisfação ou confusão na América — que possa interferir com seus planos, cavalheiros — um pogrom, uma epidemia de linchamentos pode facilmente ser arranjada. Isso distrairá a mente do público. Vejam meus colunistas! Posso dizer que esses rapazes estão fazendo maravilhosamente o seu trabalho. Se Roosevelt tiver a audácia de apresentar-se para um terceiro mandato — o que ele não fará, claro! — nós o demoliremos abertamente.
.
.
.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HORA_DERRADEIRA_2.jpg
.
.
.
Na escuridão, Armand subitamente pôs as mãos nos ouvidos, e balançou-se desoladamente em sua cadeira. A testa enrugada estava úmida e fria como gelo.
Agora as vozes se tornaram uma confusão no quente silêncio da sala, vozes de conspiração contra a América, contra o mundo, contra toda a humanidade. Vozes de ganância, crueldade, rapacidade e imensa astúcia. Vozes que falavam do rearmamento da Alemanha, dos camaradas conspiradores na Inglaterra e na França, dos conservadores, dos Tories, dos conspiradores nas classes rurais inglesas e na Riviera francesa, de enormes empréstimos a Hitler, do intrincado labirinto de cartéis internacionais que restringiam o armamento da América, e da conversão de sua economia em eficaz produção de guerra, da divisão — sob esses cartéis — da América do Sul entre companhias alemães e americanas, da supressão de competição — sob esses mesmos cartéis — e do monopólio dos mercados da América, da troca de patentes vitais com Hitler, de propaganda através do mundo que serve como apologia para o nazismo e louva as vitórias em países fascistas sobre o trabalhismo e a 'decadência’, de arranjos para embarques de vital material de guerra para Hitler em caso de guerra — através da América do Sul e outros países neutros. As vozes se erguiam como uma tempestade, como um furacão, de modo que o homem doente ouvindo-as, enquanto se balançava desoladamente em sua cadeira, pensou que a própria abóbada celeste ecoava com elas, e as devolvia aos ecos terrestres.
E depois elas desapareceram numa derradeira nota aguda. Mas o ar do mundo vibrou com elas, tremeu como cordas sendo tangidas, que embora silenciosas agora, ainda tremiam com reverberações não ouvidas...
Armand ergueu a cabeça do peito e olhou cegamente à sua volta. Tinha a boca aberta, e arquejava. Sua doença estava a devorá-lo como um tigre.
Os anos de sua vida passavam diante dele, aqueles anos confusos, medrosos e informes, cheios de hesitação e de temor. Tivera tão pequena integridade, que nunca fora suficiente para coisa alguma a não ser provocar nele essa moléstia mortal. Todos aqueles anos, quando poderia ter feito alguma coisa! Ao invés, sua fraca consciência o roera, devorando as células de sua carne, petrificando nele as forças vitais, entregando-o por fim a essa desolação e a esse desespero, essa solidão e desesperança, espanto e tortura...
Não lamentava: apenas sofria. "Que poderia eu haver feito? — murmurava para si mesmo. — "Na realidade, nunca me importa. Por que, então, me sentia atormentado? Por que fugira?"
Levantou-se, e uma lamúria fugiu-lhe dos lábios: "Eu era bom! Odiava tudo isso! Eu era melhor que eles! Eu realmente tinha a capacidade..."
Agora o terror o inundava e ele apertava convulsivamente as mãos gordas e olhava em volta, apavorado.
Nunca soubera o que é patriotismo. Sua única lealdade fora para consigo mesmo, para com sua família. Não podia compreender. Mesmo agora, conscientemente, não sentia temor pela América, nenhuma preocupação pelo mundo. Só estava cônscio do terrível e subjugante temor.
"Eu era realmente um homem bom!" — tornou a gritar, para a sombria escuridão.
E então soube que toda a sua vida desejara ser bom, e simples. Mas fora um covarde. Mesmo esse desejo fora parte de sua covardia. Nunca fora capaz de sobrepujar sua rapacidade e avareza nativas. Viu que fora criminoso ainda maior que Henri, e Christopher, que todo o resto de sua sinistra família.
Nunca tivera fé em coisa alguma. Murmurou: "Deus!" Mas a palavra não lhe significava absolutamente nada. Era um encantamento sem magia. Seu coração palpitava em fortes pancadas, como se estivesse se afogando.
Sentira agora que as salas de sua casa se estavam amontoando em torno dele, as paredes inclinando-se sobre ele como os paredões de um penhasco, que estava a ponto de ser esmagado. Abriu a boca e soluçou. Disse em voz alta, com espanto:
"Minha consciência só tinha medo por mim mesmo, medo de quaisquer possíveis consequências que poderiam desabar sobre mim devido às minhas conspirações e às dos outros."
Aumentou o seu terror mortal. Sentiu a morte dentro de si. Relanceou o olhar em volta como um animal acuado. Quando um ramo de árvore raspou a janela deu um grito e tremeu violentamente.
E então ouviu o distante abrir e fechar de uma porta, os passos de seu filho a subir a grande escadaria de mármore.
Uma onda de suor inundou-lhe o corpo. Correu para a porta da sala, tropeçando, cambaleando. Escancarou a porta, segurou-se ao portal. Gritou e gritou, numa voz que percorreu os corredores como a de um homem torturado:
—Antoine! Antoine! Antoine!
Capítulo 24
Antoine, que acabava de ter a tarde mais deliciosa e intrigante, e estava agora embriagado com agradáveis pensamentos, ficou muito espantado ao ver o pai assim, tão transtornado, todo trêmulo, à porta do seu aposento. Havia algum tempo que Antoine entrara na casa do pai.
A luz do corredor era difusa e suave, o que dava à aparição uma qualidade misteriosa e irreal. Mas o jovem ficou espantado com os olhos, que faiscavam, captando a luz nos globos arregalados. Viu como o pai se agarrava ao portal, como seus joelhos estavam curvados. Viu-lhe o terror esmagador e desvairado, viu a boca aberta e soluçante, e o peito carregado.
Rapidamente se dirigiu a ele, exclamando com inusitada aspereza:
— Mas o que é isso, papai?
Porém Armand não se moveu nem falou. Apenas olhava o filho numa espécie de horror hipnotizado, observou sua aproximação em completo silêncio.
Pensou, angustiado:
"É meu filho. Mas é como meu pai. Nunca vi isto tão claramente antes. É meu pai, olhando para mim, e eu o odeio. Como pode ele ajudar-me? Apenas me destruirá, se eu lhe disser. Rirá no meu rosto. Meu Deus! Não há nada que eu possa dizer ou fazer."
Em seus olhos havia um terror assustador enquanto Antoine continuava a avançar para ele, e embora ele ainda não se movesse, pareceu encolher, minguar.
Antoine, levemente alarmado agora, pegou o braço do pai. Estava rígido como madeira sob a sua mão, e tremia constantemente:
— Que há de errado? Está passando mal? Vamos entrar. Você deve sentar-se.
Armand tropeçou quando o filho o encaminhou de volta à grande sala quente, tão escura. Antoine foi obrigado a ampará-lo. Levou o pai até uma cadeira e com um cuidado incomum fê-lo sentar-se. Acendeu algumas lâmpadas. Armand o observava, encolhido na ponta da cadeira, as mãos trementes cobertas de pelo ruivo, apertadas nos gordos joelhos, a cabeça mergulhada nos ombros. Parecia um velho animal doente, ofegante e aniquilado.
— Devo chamar o Dr. Billingsley? — perguntou Antoine, de pé junto dele e a olhá-lo penetrantemente.
Armand murmurou:
— Não... não... Isto não é nada.
Ergueu as mãos e as pressionou de encontro ao rosto. Suspirou. O som parecia vir de suas entranhas. Quando baixou as mãos, sua expressão era rígida, abstrata.
Antoine hesitou. Puxou uma cadeira para perto do pai e sentou-se. Ainda observando o velho, acendeu um cigarro, levou-o aos lábios com gestos lentos e delicados, e pensativamente soprou a fumaça para o alto. Aquela estreita cabeça morena, tão lisa e pequena, as faces morenas, os cintilantes olhos negros e a boca sutil se imprimiam vividamente na atormentada consciência de Armand, como nunca acontecera ainda. Sim, era o pai que se sentava ali, diante dele, não o filho. Esta era a suave elegância de Jules e sua delicada compostura; e agora, como Antoine sorriu um pouco, era o sorriso de Jules, secreto, levemente divertido, quietamente cruel.
— Deve ter acontecido alguma coisa — comentou Antoine. — Você parecia mal como o diabo ainda há pouco. Que foi que o amedrontou?
"Que foi que me amedrontou? — disse Armand para si mesmo, ainda fitando o filho. E pensou: — Você!"
O desespero o chocava. Por um momento pôs a mão no peito, e tornou a soluçar. Falou:
— É só porque eu estava sozinho.
— Ah! — murmurou Antoine. Seus olhos se estreitaram: "furavam" Armand como pequenos rapinantes negros. Pensou, desdenhosamente:
"O velho idiota! Vagando por este mausoléu como um sujo fantasma gordo. Nunca teve coragem! Que quer ele? Alguma coisa fez com que a vida fugisse de seu corpo..."
Viu que Armand ainda o fitava rigidamente, e algo nesse olhar fixo o pôs momentaneamente pouco à vontade.
— Você se parece com meu pai — disse o velho.
— Já ouvi isso — replicou o filho, sorrindo. — Isso o assusta?
Armand respondeu com súbita calma:
— Sim.
Depois sua rigidez desapareceu, as feições se contorceram, os olhos novamente demonstravam um terror selvagem. Gritou:
— Estou doente! Estou morrendo!
Antoine franziu a testa. A fumaça do seu cigarro lhe flutuava diante do rosto e os olhos luziam através dela, pensativamente:
— Absurdo! — falou, quietamente. — Disse-me Billingsley, na semana passada, que você vai indo esplendidamente. Entretanto, afirmou que você precisa de algum interesse, alguma motivação em sua vida. Você pensa demais em si próprio, caro papai. Nunca teve nenhum hobby, ou qualquer diversão. Está ficando mofado nesta casa. Verde de mofo. Claro, posso ver que está solitário. Que pode esperar? Vive para o chamado de Annette todas as manhãs, depois cai na inércia outra vez. Nunca sai, a não ser para visitá-la, e a família há muito tempo desistiu de convidá-lo: quase invariavelmente você recusa convites. Compreendo que você nem sequer dá um passeio de manhã, como fazia antes. Ficou tão danadamente interessado em sua lista que abandonou mesmo os poucos interesses que tinha outrora. Introspectivo demais. Não devia ter-se retirado tão cedo dos negócios.
Sua voz, sedosa, calmante, embora cheia de macia crueldade jesuítica, prendeu a atenção distraída de Armand. Ele ouvia, não desviando do filho o olhar, esfregando os nós dos dedos no gordo nariz avermelhado ou contra a boca trêmula.
"Aqui existe algo!" — pensou Antoine. Seu instinto brutal estava alerta. Pois notou a súbita vivacidade nos olhos do velho ante suas últimas palavras. Repetiu, observando-o atentamente:
— Não devia ter-se retirado tão cedo dos negócios.
—Não — murmurou Armand. Baixou as mãos outra vez até os joelhos. A cabeça inclinou-se para o peito. Sua voz chegou, ao filho sufocada, quase inaudível:
— Ninguém me conta nada... Nunca sei. Estive ouvindo o rádio. Eles... acreditam que Hitler atacará em breve. A Polônia. Haverá guerra. Estaremos nela...
Antoine se mexeu ligeiramente na cadeira. Abaixou a mão que segurava o cigarro, e ela estava tensa e dura, a fumaça a enroscar-se lentamente.
— Não. Não estaremos nela. Isso o preocupa?
Armand ficou silencioso.
— Então, não precisa preocupar-se — continuou Antoine, sorrindo novamente. — Posso dar-lhe minha garantia pessoal. Você jamais gostou da ideia de guerra, não é? Pois bem, não precisa ter medo nenhum absolutamente. A América não se meterá em nenhuma confusão europeia. "Evitar que nossos rapazes lutem em solo estrangeiro." Este é o nosso slogan. Pela primeira vez na História os Bouchards não estão interessados em guerra para a América.
Armand ergueu a cabeça, e novamente fitou o filho, imóvel:
— Sim, sei disso.
— Então, por que se preocupa?
Porém Armand disse, olhando-o de relance com a mais estranha fixidez:
— Jamais acreditei em alguma coisa. Nunca fomos religiosos, nós os Bouchards. Nunca fomos americanos. Não é muito esquisito... nunca ter sido americanos?
"O idiota em sua senilidade..." — pensou Antoine. Fumou outra vez, para ocultar o sorriso irreprimível.
A voz de Armand era fraca e sem tonalidade quando continuou:
— Escolas francesas. Escolas alemãs. Nunca fomos americanos. Nada temos a fazer com a América, ou para a América.
— Construímos uma vasta rede industrial — disse Antoine, novamente observando o pai atentamente. — De certo modo, ajudamos a desenvolver a América. Estamos em tudo. Isto devia torná-lo orgulhoso! Você costumava ser orgulhoso. Lembro-me disso, quando eu era criança. Aço, mineração, armamentos, produtos químicos, cobre, carros, estradas de ferro, aviação... estamos em tudo! Na verdade, somos americanos, afinal de contas.
Armand desviou dele o olhar e olhou o rádio com silenciosa imobilidade:
— E nisto também, naturalmente.
Antoine franziu a testa:
— Rádio? Provavelmente.
Armand começara a balançar a cabeça lentamente. Isso continuou. Parecia não poder controlar a coisa.
Então um fluxo de palavras saiu de seus lábios ressecados, mas num sussurro tão fraco que Antoine teve de inclinar-se para diante para perceber os sons:
— Conte-me algo a esse respeito. Ninguém nunca me conta coisa alguma. Não sei de nada. Que acontecerá? Se Hitler vencer... o que acontecerá por aqui? E com a América? Que está acontecendo no mundo? Você tem de dizer-me.
Antoine ficou silencioso por alguns momentos. O brilho do terror estava novamente nos olhos de Armand. Começara a socar os joelhos com os punhos cerrados. Antoine deu de ombros:
— Não lê jornais? Você ouve rádio, não ouve, papai? Então, sabe tanto quanto nós. Suponha que Hitler tome o Corredor, tome a Polônia. Isso não é da conta da América. A Europa sempre teve suas malditas brigas. E sempre quis. A Inglaterra pode atacá-la. Não sei. Aliás, não estou muito interessado. No momento, estamos preocupados com a América.
Então notou um maço de jornais ao lado da cadeira do pai, abertos nas páginas financeiras. Riu ligeiramente. Apontou os papéis:
— Isso é que o está preocupando? A Bolsa de Valores? Bem, concordo com você que não vai lá muito bem. Entretanto, estamos esperando uma alta. — Armand nada disse. Antoine continuou, num curioso silêncio: — Naturalmente, você ficaria preocupado. Afinal de contas, ainda possui cinquenta e um por cento das ações Bouchard. Assim, se a Bolsa o tem preocupado, posso garantir-lhe, pessoalmente, que isso não acontecerá por muito tempo mais. — Esperou um momento. Disse, mais rapidamente: — Isso o tem preocupado, não tem? A Bolsa?
— Sim — afirmou Armand. Aumentou a estranheza em seu olhar. — Pensa que o Mercado de ações subirá? Habitualmente cai por algum tempo, após a eclosão de uma guerra. Por que pensa que subirá?
"Ele na verdade não sabe de nada..." — pensou Antoine, sorrindo internamente. Deu de ombros levemente:
— E por que não o faria? Estamos decididos a ganhar dinheiro. É realmente muito simples.
— E a Lei da Neutralidade? — falou Armand outra vez, num sussurro.
Antoine riu:
— Ora, papai! Você não pode ser tão ignorante! Há a América do Sul, e a Holanda, e meia dúzia de outros caminhos.
— Para a Alemanha?
Antoine se calou. Estreitou os olhos:
— Sim. Quem mais? Não haverá nada para a Inglaterra, ou a França, se pudermos evitá-lo.
Armand se afastou mais para a beirada de seu assento. Havia em seu olhar uma apaixonada intensidade:
— Nunca fizemos isso antes. Vendíamos a ambos os beligerantes... Por que a Alemanha agora, e não... os outros?
— Porque — replicou Antoine, lenta e cuidadosamente — queremos que Hitler vença. Pensei que soubesse disso, papai. Hitler é nossa única esperança, em todo o mundo. — Falava como se fala a uma criança estúpida, escolhendo palavras simples: — Temos de livrar-nos da democracia ou do comunismo: querem dizer a mesma coisa. O trabalhismo está ficando fora de controle, sob esse imundo New Deal. Temos de ter uma nova perspectiva, uma nova filosofia, na América. Não apenas negócios, como de hábito. Queremos o negócio de controlar a América totalmente. Conseguiremos isso, também. Com a ajuda de Hitler. — Deu uma palmadinha no joelho do pai: — Depois veja suas ações subir!
— Você quer dizer: fascismo na América? — murmurou Armand.
— Palavra desagradável! — sorriu Antoine. — Digamos, antes, o controle da América por homens de negócios. Por gerentes. Sensato, não? Hitler prometeu nos ajudar: deu-nos sua palavra, pelo que ela vale.
— Como pode ele "ajudá-los"? — a voz de Armand estava mais clara agora, e mais alta.
Antoine hesitou:
— Há meios para isso — replicou, agradavelmente.
Levantou-se. Armand ainda estava sentado. Ao erguer os olhos•para contemplar o filho, estavam muito brilhantes.
E agora odiava Antoine como nunca odiara ninguém, nem mesmo seu pai — para quem tivera um olhar apavorado peculiar sob seu ódio. Estava gelado com seu terror renovado. Apertou as mãos, e um longo tremor lhe tomou o corpo. Pensou: "Tarde demais! Nada posso fazer. Nem sequer sei o que fazer, ou se quero fazê-lo. Tudo está muito confuso. Eu deveria ter-me mantido informado, saber o que estava acontecendo. Ninguém me diz nada, nunca... Não sei de nada."
Antoine estava sorrindo para ele:
— Aconselho-o a sair mais. Annette e eu temos nossos próprios interesses. Já não somos crianças. Ouvi dizer que você recusou o convite de Estelle para jantar no sábado. Por que não reconsidera?
— Farei isso — disse Armand, obedientemente. — Sim, acho que sim.
Quando Antoine se foi, Armand se sentou encolhido em sua poltrona, cabeça inclinada para a frente, e mordendo os lábios. Dentro dele havia uma grande luta. Embora não se movesse por perto de uma hora, sua testa e o crânio calvo estavam úmidos e lustrosos. Finalmente, levantou-se e quase caiu de tão fraco. Tateou em busca do telefone e, embora fosse quase meia-noite, telefonou ao seu advogado e marcou uma entrevista para o dia seguinte, em Nova York.
Capítulo 25
Henri Bouchard estava só, nesse dia quente de agosto, sentado à sua secretária nos grandes escritórios Bouchard. As pesadas portas se achavam fechadas, e ele recomendara à sua secretária que não devia ser incomodado pelo menos durante uma hora. As cortinas cor de bronze haviam sido parcialmente puxadas contra a luz cegante que passava pelas janelas, e havia na sala um silêncio sombrio, quase religioso. Aqui e ali um raio de sol feria alguma peça de metal na escrivaninha.
Henri fumava. Raramente fumava quando só. Era seu único sinal de alguma profunda perturbação íntima. Não se movia, em seu terno cinza-grafite que lhe valera de Antoine o cognome de "Homem de Ferro". Fitava diante de si, imóvel, o rosto largo e pálido. Acendia cigarro após cigarro, mas dificilmente os levava aos lábios: queimavam lentamente entre seus dedos. Por vezes os olhos davam momentaneamente com a pilha de papéis diante dele e ali ficavam por longos momentos, numa espécie de transe sombrio.
De quinze em quinze minutos fazia uma discagem direta para Wall Street, e ouvia cuidadosamente a voz metálica que o informava dos mais recentes acontecimentos na situação europeia. Recolocava o fone — nem um músculo se movia em sua face — acendia outro cigarro e novamente contemplava os papéis.
Um relatório lhe chegara aquela manhã: "O povo americano permanece apático durante esta crise crescente na Europa. Só entre certos grupos existe algum interesse profundo. A opinião de peritos é que a inércia do povo se deve menos ao medo de futuros acontecimentos do que à ignorância e indiferença estáticas. Acredita um perito que a indiferença deve ser atribuída aos passados esforços de pacifistas profissionais e senadores isolacionistas. Outros, mais informados, mais afinados com a mente pública, acreditam que Hitler se tornou tão extraordinariamente popular com o povo americano — com seu antissemitismo, antidemocracia, e desumanidade — que esse povo não se pode levantar contra ele, exceto por ocasião de um ataque direto à América. Sem dúvida, Hitler compreende isto, portanto se absterá de tal ataque, cônscio de que se ele não se der, poderá contar com a apatia do povo americano para não colocar obstáculos em seu caminho de conquista."
Henri sorriu tristemente, ao ler isto. Ainda sorria ao recordar o relatório. Mas o que esperar de uma nação de primeira e segunda gerações de europeus escravos, que deviam sentir-se insondavelmente apreensivos em presença de uma liberdade criada e amada por um punhado de bretões no passado distante e amargo? Como lidaria George Washington com essa nação servil de suínos e escravos? Reconheceria, nesses obstinados rostos teutônicos, nesses miseráveis trigueiros do mediterrâneo, o povo de cujo sangue compartilhou, cuja linguagem falou, e com quem lutara e sofrera? Se pudesse achar-se entre eles hoje, não os desprezaria, compreendendo a ameaça implícita neles para a América e a sobrevivência da América? Roma aprendera a lição mortal — que nunca se deve admitir entre as pessoas livres os filhos de escravos libertos. Os vândalos às portas de Roma não tinham sido os Godos e os Visigodos.
Estranhos pensamentos para Henri Bouchard! Sorria desdenhosamente quando os pensava. Mas não podia dissipar a inquietação que havia nele, o ódio, a aversão e a raiva. Que era a América para ele? Verdade que, exceto pelo leve traço de sangue francês em sua própria corrente sanguínea, ele era da raça e, publicamente, da religião daqueles que haviam fundado a América. Sua herança era britânica. Porém nunca em sua vida sentira uma vibração de patriotismo ou paixão pela América.
Ergueu o maço de papéis, fitou-os, empurrou-os para longe dele. Jay Regan, o financista idoso e moribundo, lhos enviara por mensageiro especial. Disse a si mesmo que a raiva contra os parentes que ousaram conspirar contra ele é o que o perturbava agora. Afinal, seria patriotismo apenas medo ciumento e inveja e ódio ignorante? Finalmente concluiu que devia ser isso mesmo.
Tornou a erguer o fone, e agora a nítida voz metálica estava aguda e sem fôlego de excitação:
— Há um boato de que a Rússia e a Alemanha chegarão muito em breve a um acordo, pelo qual a Rússia não se oporá a qualquer ambição territorial por parte de Hitler, contanto que a própria Rússia não seja atacada!
Rússia! Isso não era impossível, claro! Henri recordou Munique, quando a oferta de assistência da Rússia fora ignorada, quando ela fora excluída da vergonhosa conferência em Berchtesgaden. Isso seria, então, sua vingança, nascida da amargura contra esses hipócritas que falavam de paz, covardes que venderam o tesouro de séculos a um assassino e mentiroso, conspiradores que odiavam seu próprio povo? Henri sorriu subitamente. Sentiu uma severa simpatia pela Rússia. Quando o ataque contra os hipócritas, os covardes e os conspiradores começasse, haveria um justo julgamento deles. Então seu povo guincharia que tinha sido traído, censurando "os industriais e os capitalistas" ou "os políticos", não compreendendo que antes que a morte possa subjugá-los deve a moléstia, primeiro, destruí-los internamente. Quando chegar a hora final, as pessoas, claro, não terão consciência de que a podridão primeiro estivera nelas mesmo — que vivessem em mansões ou na sarjeta — que seu próprio ódio animalesco, ignorância e falta de valores os haviam traído para seus inimigos.
Mesmo os Bouchards, e todos os seus amigos, não poderiam destruir a América se a América não estivesse madura para a destruição. Sementes do mal só podem germinar em solo predisposto ao mal.
Henri se levantou e caminhou pesadamente acima e abaixo. Não era sujeito a qualquer mal-estar do espírito, a nenhuma inquietação. Toda a sua vida soubera o que queria, e o conseguira. Sua mente tinha sido simples e integrada. De modo que não podia compreender seus pensamentos pesados e sombrios. Ouvia as palavras em seu espírito como se fosse a voz de um estranho a quem não podia expulsar. Estava impaciente e perturbado como nunca estivera antes.
Seria medo por si mesmo, ou reação contra parentes que conspiraram contra ele? Ambas as coisas, acreditava.
Houve uma leve pancada na porta, e iradamente ele disse:
— Entre.
Seu secretário entrou se desculpando, e se encolheu ante seu olhar.
— Desculpe, Sr. Bouchard, mas o Sr. Armand Bouchard está aqui e deseja vê-lo. Diz que é muito urgente.
Henri franziu a testa:
— Por favor, diga ao Sr. Bouchard que o Sr. Antoine no momento não está.
Depois se deteve, abruptamente. Que quereria com ele o velho idiota? Não estivera nos escritórios desde que fora fazer o apelo pelo filho. De repente, uma curiosa excitação o animou: seu instinto estava desperto. Sentou-se à sua mesa:
— Por favor, introduza imediatamente o Sr. Bouchard.
Enquanto esperava por Armand, tamborilava na secretária. Que diabo estaria dominando o miserável velho bajulador? Que teria ouvido?
Desprezava Armand, raramente pensava nele, e quando o fazia era com desprezo. Armand estava acabado, velho, destruído por alguma doença crônica — que Henri já havia suspeitado não ser apenas a imensa barriga. Porém ainda era latentemente poderoso. Ele, Henri, conhecia Armand o bastante para acreditar que haveria momentos em que o sogro se lembraria disso.
Agora toda a sua inquietação de há uma ou duas horas, toda a raiva latente e o aborrecimento se concentravam na visão de Armand, e sua intrusão. Sentia-se aborrecido consigo mesmo por tal criancice, mas a fria emoção permaneceu. Mantinha a maior parte dos bônus Bouchard, porém sua posição dominante em Bouchard & Sons era apenas por consentimento de Armand e seus preciosos cinquenta e um por cento. Era uma situação que há muito enraivecia Henri e que estimulava muito de sua cautela, situação que por vezes se tornara quase insustentável para ele.
De modo que, quando Armand já desorganizado, já sacudido de terror até as entranhas, já confuso e doente de corpo e alma, encontrou o olhar glacial de Henri, recuou como se o rapaz o tivesse golpeado com o punho. Seu primeiro impulso foi fugir. Ficou de pé longe da mesa, e realmente tremia, umedecendo os lábios secos e intumescidos, contemplando Henri em total silêncio e desintegração, chapéu na mão como um mendigo.
Henri se levantou lenta e relutantemente. Puxou uma cadeira para o sogro. Que haveria de errado com o velho idiota? Olhava como se tivesse ouvido as notícias mais apavorantes, e estava à beira de um colapso. Então Henri esqueceu sua raiva e frustração: ficou subitamente alerta, pôde até sorrir.
— Bem, isso é muito agradável — disse, em sua voz pesada e sem inflexões, que negava o alegado prazer da visita. — Sente-se, pai. Talvez não saiba que Antoine não está no momento? Gostaria que tivesse telefonado primeiro, para poupar-se o incômodo.
Armand sentou na beira da cadeira. Agora o tremor visível lhe invadia os joelhos, que se batiam nas calças sujas. Tornando a sentar-se, Henri viu o colarinho sujo que pouco mais era que um farrapo manchado em torno do gordo pescoço de Armand. As lapelas de seu casaco estavam salpicadas de caspas. O colete, mal abotoado, deixava escapar um tufo de camisa. A grande cabeça redonda, com suas curtas mechas grisalhas, oscilavam fracamente, como se o velho estivesse com paralisia. Porém seu rosto cor de cera, os negros olhinhos fixos, o incontrolável tremor dos músculos faciais é que chamaram a atenção de Henri. Era evidente que Armand estava doente de medo e desespero. Continuava a tocar a boca com a mão trêmula. Por alguns momentos não pôde falar, mas depois disse, de modo quase inaudível:
— Eu não queria ver Antoine. Vim porque sabia que ele não estava aqui.
— Sim? — falou Henri, em tom macio e calmo. — Bem, há algo que eu possa fazer por você, pai? Está se sentindo mal?
Mudamente, Armand o fitou de olhos esgazeados por longos minutos. Depois seus lábios se moveram num murmúrio:
— Sim. Sim, estou me sentindo muito mal.
Olhou seu chapéu como se nunca o tivesse visto; depois, timidamente, colocou-o na mesa que outrora fora dele. Henri observava todos esses movimentos hesitantes, incertos. Depois, como seus olhos encontrassem os de Armand, ficou chocado e espantado ante o brilhante terror que viu neles, o desespero súbito e esmagador. Levantou-se a meio, depois tornou a sentar-se, num silêncio alerta.
Houve alguma coisa. Disso ele estava certo. Não viu acusações na fisionomia de Armand, nenhum protesto queixoso. Podia ser que houvesse, realmente, uma súplica naqueles olhos atormentados, naquelas gordas mãos incertas, cobertas de pelos ruivos, que se erguiam e tornavam a cair?
— Que há de errado? — perguntou Henri. — Você parece perturbado... Sabe, se puder ajudá-lo, ficarei satisfeitíssimo.
Pensou: "Ele teve um choque..
Percebeu que Armand não sabia o que dizer, que os caóticos e aterrorizados pensamentos em sua mente eram por demais horríveis para falar, para começar ordenadamente. Era um velho animal mortalmente ferido que se sentava ali à sua frente, tentando deter o tremor dos lábios com os dentes amarelos e manchados. E Henri viu que isso não era coisa nova, porém a manifestação de uma vida de temor, de servilismo, de angústia inominável. Estava surpreso. Nunca dera suficiente atenção a Armand para conjeturar a seu respeito, embora a evidência cumulativa que estivera guardada em seu subconsciente agora nitidamente se encaixasse e se revelasse como um padrão visível para ele.
Sua surpresa aumentou e, com ela, uma cínica compaixão por Armand, tão atormentado, tão aniquilado, tão confuso e torturado.
Estudava-o com curiosidade alerta e crescente. Viu que Armand, por sua vez fixara nele os olhos com súbita penetração e apaixonada avidez, e que ele se endireitava em sua cadeira como se esse negócio fosse tão urgente que ele dificilmente pudesse forçá-lo nos limites ordenados de meras palavras.
As palavras brotaram dele em gaguejante e discordante confusão: inclinou-se para Henri, pondo as duas mãos na secretária e pressionando-as tanto que as veias saltavam:
— Existem tantas coisas de que me lembrei ultimamente!
E agora falou em francês, que o pai insistira que aprendesse, embora os demais Bouchards rissem disso, achando uma afetação. Henri tinha de ouvir atentamente para compreender. Por que tensão devia estar passando esse miserável velho que o levava, em seu frenesi, a inconscientemente usar a linguagem da sua infância?
As mãos de Armand se moviam no ar em fortes sacudidelas, como para garantir inteira compreensão para suas palavras incoerentes. Os olhos estavam brilhantes e febris, e à medida que expressava cada palavra ele a enfatizava como faz o gago nos sons que não pode controlar:
Todas as coisas... durante anos, que posso lembrar, Henri! Meu pai. Jules. Era um homem terrível! Sempre conheci o terror. Ele me aterrorizava muito.
Embora ouvisse com forte interesse, Henri observou que esse idioma, fluindo dos trêmulos lábios de Armand, não estava enferrujado, como seria de esperar de alguém que não o usara por muitos anos, mas sim forte e naturalmente modulado, embora rouco com inflexões rústicas como se a própria carne de Armand recordasse o sangue antigo. Esses eram, também, antigos gestos rústicos, e mesmo em seu rosto apareceu uma máscara sutil, áspera, enérgica.
Agora as palavras vinham mais depressa, de modo que Henri perdeu muitas:
— Veja você, Henri, isto sempre foi muito embaraçoso para mim. Nunca me dei conta, até recentemente. Mas eu devia ter sabido. Havia algo em mim que se revoltava. — Bateu no peito firmemente, embora os olhos nunca abandonassem os de Henri. — Eu não tinha palavras para a coisa. Ficava estúpido. Sem palavras. Mas ia crescendo algo em meu coração. Eles apenas riam. Talvez vissem tudo em meu rosto. E, para eles, era muito ridículo. Compreende? Bem, não havia nada que eu pudesse fazer, nem mesmo por mim próprio. Não podia entender isso: era tão excessivamente absurdo... Acha que é absurdo, meu filho?
Alguma coisa fez com que Henri dissesse rapidamente:
— Não, não acho absurdo. — Falou em inglês e uma curiosa agitação passou pelo rosto de Armand por um instante.
Ele continuou:
— Não compreendo mesmo agora. Só sei que estou doente. A agulha... não me ajuda. Como posso dizer isto ao doutor? Ele não pode entender. Ninguém sabe. Mas está aqui. E agora sei que me matará.
Ficou silencioso. Mas as mãos que pressionavam a mesa polida espalhavam uma aura em tomo delas como de suor. Curvou-se ainda mais perto de Henri e buscou-lhe o rosto com aqueles olhos assustados e patéticos.
Henri o olhou pensativamente, recostou-se na poltrona, e nada disse. A que ponto chegara, nesse corpo gordo e volumoso, essa alma torturada, que devia pedir socorro mesmo a um homem como ele... — pensou Henri. Jamais houvera muita amizade entre Armand e o homem que desposara sua filha, nunca qualquer confiança, simpatia ou benevolência. De fato, Henri não se lembrava de nada disso entre Armand e outro ser humano, exceto Annette. A mesquinha e irritadiça mulherzinha de Armand, seus brutais irmãos, o pai sutil e pervertido, a mãe infeliz: entre todos, ele nunca tivera um amigo ou confidente. Vivera sozinho nesse corpo — desajeitado e pesadão mesmo na juventude; e se jamais desejou ter comunicação com alguém, nunca deu sinais disso.
"Dia, infernal!" — pensou Henri, inquieto, relembrando os pensamentos que haviam precedido a chegada de Armand. E agora esse velho idiota ali sentado diante dele aumentava seu incompreensível mal-estar!
Disse, com entorpecida piedade, e escolhendo seu caminho com cuidado através de seu pedregoso francês:
— Alguma coisa o está perturbando. Se puder ajudá-lo, eu o farei. De que se trata? Disse que "se rebelou". Não vou fingir que o compreendi totalmente. Disse-me o bastante para indicar-me que sua consciência o faz sofrer. — Apertou fortemente os lábios para evitar sorrir ante a ridícula palavra.
Armand o fitou, depois lentamente ergueu a mão e esfregou a boca com força. Murmurou:
— Minha consciência... Será que algum dia tive uma consciência?
Tomou uma respiração profunda, e falou com longos intervalos entre as palavras, como se se tivesse tornado uma questão de terrível importância para ele que Henri pudesse compreender:
— Veja, tudo é tão confuso... Uma ou duas vezes pensei: "Não posso continuar fazendo essas coisas, conspirando. Mas continuei. Por quê? Porque eu era ganancioso. Eu era fraco. Tinha medo de parecer ridículo. Por vezes Christopher suspeitou. Ele me olhava com aqueles olhos maldosos e espertos. Eu não podia suportar suas suspeitas.
Parou, depois perguntou:
— Haverá guerra, Henri?
Henri ficou silencioso um momento, depois replicou judiciosamente:
— Não sou profeta, pai. Como posso dizer? Mas sou firmemente contra a guerra. Pela primeira vez os Bouchards não querem guerra.
Armand acenou com a cabeça, e sorriu tristemente:
— Sim, eu sei. Isso é o que me parece tão terrível. Você compreende?
Henri ficou de olhos arregalados, franziu a testa: "Então, ele compreendeu! O velho idiota não é inteiramente idiota. Sorriu:
— Sim, compreendo.
Olharam-se, num longo silêncio, e então uma onda de estranha simpatia passou entre eles. Henri estava cônscio de uma crescente excitação em si mesmo.
Armand contemplou seus dedos trêmulos. Falou, com hesitação:
— Há muito tempo, esperei que você fosse meu filho. Sabe, não tenho filho.
— Não tem filho... — repetiu Henri. E nada mais disse. Olhou dentro dos olhos de Armand, tão brilhantes, trágicos e perturbados.
— Antoine é realmente como meu pai. Ninguém pode ser pai de um Jules, Henri. Sinto um medo terrível! Antoine vai desposar a filha de Andrew Boland.
Então Henri esqueceu tudo, em seu espanto e apreensão:
— O demônio! Você quer dizer Mary Boland?
Então Antoine "se arrumara", pegando a filha daquela piedosa serpente velha, Boland, "Rei do Alumínio", e proprietário de um dos maiores monopólios de petróleo do mundo!
Armand viu a perturbação de Henri e acenou sombriamente:
— Você vê como é. Devemos mexer-nos muito depressa, não é?
Henri nada disse. Mas ao olhar para Armand, sua excitação aumentou e ele sentiu o coração palpitar mais rápido.
Armand deu a impressão de chegar mais perto do rapaz. Agora suas palavras vinham numa arremetida confusa:
— Lembro-me de muitas coisas a seu respeito, também, Henri. Você não é um homem bom, não é mesmo? Você é rapace e desapiedado... como os outros Bouchards. Faria qualquer coisa por poder e lucros. Mas não o estou condenando. Como poderia? Você, pelo menos, nunca teve consciência, de modo que nada se poderia esperar de você.
"Lembro-me das lendas do velho Ernest Barbour, seu bisavô. Ele nunca foi realmente cruel, sutil ou depravado. Isso porque nunca teve o menor laivo de consciência. Era uma força. Uma força natural. Não se pode censurar uma geleira ou um vulcão. Não adianta nada. Por vezes, pode ser admirado. Você é assim, Henri.
"Eu não compreendia isso completamente até que ouvi sua conversa com meu irmão, Christopher, quando você o advertia da conspiração dele com os alemães. Então recordei outras coisas, também. Formavam um todo. Diga-me, Henri, o que deseja, o que pretende fazer na América.
Henri não falou por vários momentos, embora estudasse Armand atentamente, com aqueles olhos descorados e inexoráveis. Soube que devia avançar cautelosamente.
Começou a falar com pesada lentidão:
— Pensei que soubesse. Não é que eu tenha sofrido uma mudança em meu coração — e sorriu. — Penso no que é melhor para a América, porque o melhor para a América é realmente melhor para nós. As coisas mudaram. Afinal de contas, o mundo pertence ao povo que o habita, e não a uns poucos escolhidos... nem mesmo aos Bouchards. Quando homens fortes devoram tudo, matam de fome os mais fracos que preparam o alimento para eles.
"A guerra que está a caminho foi trazida pela ganância de industriais e banqueiros para perpetuar o status quo. E esta guerra pode bem ser a arma que destruirá o sistema que eles laboriosamente construíram pela manipulação de tudo que possa ser explorado. Ora, acredito que todo homem, mesmo um Bouchard, pode operar melhor um sistema tal como o nosso: democracia capitalista. Ele só pode ser salvo, no futuro, por métodos evoluídos para dar ao povo tanto quanto possível, parando de imediato de destruir o capital que trabalha. Depois da guerra, indubitavelmente, teremos mercados novamente criados no mundo. "Produção para uso!" Devemos inaugurar um mais alto padrão de vida em todo o mundo, não apenas na América. Isso aumentará firmemente os mercados para produtos de tempo de paz, e será a maior força contra guerras futuras.
"Nossos parentes não concordam comigo. São uns loucos completos. Veem-se a si mesmos como uma família de poderosos Hitlers, operando na América. Não se dão conta de que a tirania devora-se a si mesma, ao fim de tudo. Não compreendem o povo em absoluto. Querem lutar até a morte pelo status quo, com seus aliados europeus. Seu maior sonho é reduzir o mundo novamente ao medievalismo, apoiado por um Estado inerte e uma Igreja exuberante. Não se apercebem do quanto são ridículos. Agora o mundo está cheio de uma diferente geração de homens.
Armand ouvira com a mais penosa atenção. Uma ou duas vezes acenara avidamente. Relaxara o suficiente para ser capaz de voltar a sentar em sua cadeira.
— E Antoine? — falou, agora em inglês, como se tivesse afastando alguma tensão insuportável. — Não concorda com você? Conspira contra você?
Henri ficou surpreso. Franziu a testa e nada disse. Como, diabos, esse velho idiota podia ter sabido disso, absorto como sempre andava naquela lista infernal?
— Sei tudo a esse respeito, embora ninguém me tenha dito nada — continuou Armand. — Sim, ele é realmente meu pai. Posso ver isso.
Seu rosto estava com melhor cor, e mais firme e resoluto:
— Eu conhecia seu pensamento, Henri. Por isso vim aqui esta manhã. Sabe, ontem eu estava em Nova York, com meus advogados. — Tirou de um dos bolsos um papel dobrado. Suas mãos já não tremiam. Por essa hora, foi novamente o velho Armand, hesitante, mas sólido, desajeitado, porém prático. Olhou o papel e disse:
— Fiz um novo testamento. Mas ninguém saberá disso, a não ser você, eu mesmo e os meus advogados. Criei um fundo fiduciário com os meus cinquenta e um por cento de ações Bouchard, para você e minha pequena Annette. Eu cobrarei a renda durante toda a minha vida, mas estou lhe dando poder de procurador para votar como lhe parecer melhor em qualquer ocasião. Depois da minha morte, as ações e a renda lhe pertencerão em conjunto. Eventualmente passarão para o sobrevivente, claro.
Olhou para Henri com um sorriso profundo. Henri ficara singularmente pálido. Sentou-se, imóvel como granito.
— Quanto a Antoine, meu filho, deixo-lhe apenas minhas participações menores em outras corporações. Ele não terá nada a ver com Bouchard. Esse é o perigo que eliminei.
— Deixe-me pensar sobre isso por um momento — disse Henri, numa voz curiosamente abafada. — O fundo já foi realmente criado? E agora tenho poderes de procurador?
Levantou-se e começou a andar acima e abaixo. As narinas do seu curto e potente nariz se haviam dilatado, porque respirar se tornara difícil. A exultação tomou conta dele e o encheu como um gás brilhante e em expansão, ameaçando queimá-lo internamento. Não podia acreditar! Ergueu a cabeça e cerrou os punhos. Agora, tinha tudo, e não meramente pelos favores de Armand Bouchard. Seu poder fora o indolente Armand, apenas. Agora era dele mesmo!
Parou junto à cadeira de Armand e contemplou o vulto gordo ali esparramado. O rosto de Armand estava erguido. Tinha uma expressão de completa paz e de contentamento. Os olhos estavam fechados. Henri, que estivera a pique de falar, ficou silencioso. Lenta e pensativamente mordeu o dedo indicador.
Capítulo 26
O livro de Peter ia-se desenvolvendo com rapidez febril e grande facilidade. Ele era como um homem que trabalha rápida e ansiosamente durante o espaço de tempo em que o céu escurece e ele relanceia o olhar por sobre o ombro às primeiras ameaças do trovão e aos primeiros coriscos vermelhos do raio. Apesar de sua razão, que lhe dizia que os homens raramente ponderam, e quase nunca entendem, ele possuía essa fé intoxicante do autor-cruzado de que a palavra impressa podia desviar a fúria e acalmar as paixões ignorantes da raça humana. Só quando escrevia assim acreditava, mesmo que por um momento, que a pena era mais poderosa que a espada. Não foram os panfletos de Voltaire que destruíram os opressores da França? Não foi sua palavra que derrubou o trono dourado e instituiu a guilhotina nas praças? Atrás do clamor de suas frases apaixonadas veio o ruído surdo das carroças, e todo um continente despertou de sua dormente letargia ao ardente toque de clarim de sua alma.
Então Peter experimentou um desespero insondável. Uma nação encantada por beisebol e histórias em quadrinhos, por prostitutas pintadas de Hollywood, e automóveis, possivelmente não poderia sentir a antiga e mística ânsia por um ideal. Uma nação assim é, por natureza, tímida e conservadora, desconfiada e embotada, facilmente odiando o fraco, facilmente submissa ao forte. Talvez só entre os filhos da Nova Inglaterra e entre a decadente aristocracia dos estados sulinos poderia ser encontrado um homem de características e mente similares às dos mais nobres avoengos.
Se pudessem ser despertados e sacudidos homens assim (e quão poucos haveria na América!), o que poderiam fazer? Pela primeira vez em sua vida Peter teve dúvidas da democracia, onde a voz do boi é tão importante como a voz do sábio. Ele poderia despertar cem mil homens esclarecidos para o terrível perigo que estava explodindo como um furacão nos telhados do mundo. Eles poderiam erguer-se, gritando bem alto. Que poderiam fazer numa nação de cento e trinta milhões de tolos e ignorantes que bocejariam sem compreensão ante os rostos sérios e graves, e ouviriam estupidamente os gritos de advertência? Não tinha ilusões de que esses poucos homens possuíssem qualquer poder considerável na América, na política e em lugares públicos. A própria democracia americana desconfiava da capacidade e da aristocracia mental, era hostil à superioridade; e colocava no poder apenas aqueles grandes charlatães, aqueles palhaços presumidos, aquelas mentes ardilosas e inferiores que mais se parecessem com a maioria do povo.
Durante toda a sua vida adulta Peter antipatizara com a política da Igreja Romana, que aparentemente mantivera milhões em servidão mental, e elevara apenas alguns (nos países em que era poderosa) a posições de poder e autoridade. Agora começava a cogitar se a Igreja não era dotada de uma sabedoria sutil e antiga, e se não teria compreendido totalmente que a maioria dos homens ainda está na aurora da civilização.
Porém fascismo não era a resposta à ignorância animalesca e confusa que parecia parte tão integral da democracia. Nem era válida e adequada, ou mesmo inteligente, a apaixonada afirmativa de tolos idealistas de que os homens precisavam apenas de "educação" livresca para fazê-los caminhar em suas pernas traseiras. Então, qual a resposta? Como poderia ser encontrado um caminho para que homens superiores, de integridade, compaixão, pureza de mente e coração, com sutileza e capacidade, fossem eleitos para encher as poderosas salas do Congresso e os assentos de autoridade? O maior obstáculo era que a tais homens faltava a ostentação teatral, o baixo tonitruante, aquela ágil bufonaria, a barulheira barata e colorida tão amada pelas massas.
A tais pensamentos, a caneta de Peter se tornou tão pesada em seus dedos finos que caiu na mesa, e ele ficou a olhar no vácuo durante muito tempo. A impotência lhe paralisou todos os músculos. Realmente, não havia solução... Muitos homens brilhantes haviam confessado isso, com tristeza. Sua advertência de perigo só seria atendida por aqueles que já conhecessem o perigo. E eles, também, seriam impotentes.
Falou a Celeste sobre seus pensamentos. Ela o ouviu gravemente, mudamente. Depois um dia lhe disse: "Você só pode fazer o que pode. E se cada homem inteligente fizesse o que pudesse, isso seria de valor, fosse ele um escrevente de cartório ou um filósofo de uma grande universidade, um simples político, ou um industrial solitário. É sua tarefa, Peter, fazê-los ver esse valor, e como, no total, podem ter considerável potência. Mesmo as minorias podem ter alguma força."
O egotismo de Peter como autor, a ânsia de poder que espreita mesmo no homem mais abnegado, seu desespero e sentimento de inaptidão não se sentiam confortados com essa observação. Porém era tudo que podia fazer. Talvez as imponderabilidades da sorte pudessem agir suficientemente para colocar uns poucos homens dispersos em posições de autoridade e poder. Era sua única esperança. Recordou que alguns senadores e deputados, alguns políticos, já estavam tão cônscios quanto ele do negro perigo, e embora fossem atacados como "provocadores de guerras, internacionalistas e intervencionistas", pela imprensa vendida e pelos astuciosos inimigos do povo, não poderiam ser silenciados. Deveria mostrar-lhes o caminho, deveria encorajá-los e animá-los.
Continuou a escrever.
Em sua preocupação, estava apenas vagamente — e irritadamente — cônscio de que Celeste se estava tornando excessivamente pálida, silenciosa e abstrata. Ele era de natureza gregária, mas subitamente tinha consciência de que ele e a esposa raramente aceitavam convites, nunca tomavam pequenas férias, ou tinham quaisquer outras diversões. Lembrou-se, também, de que enquanto ele e Celeste tinham morado com Annette e Henri, Celeste estava quase sempre ausente e atendendo a algum compromisso. Agora vivia isolada com ele nessa horrível Endur.
Foi assim que numa quente manhã de agosto Peter sentiu que a vida se tornara, de repente, agudamente insuportável. Ouvira, durante horas, a excitada e sinistra corrente de vozes que vinham do rádio, estalando com boatos, com relatórios da reunião de divisões germânicas perto da fronteira polonesa, com as pomposas declarações das "autoridades" americanas, e os medrosos murmúrios dos covardes. Completa e esmagadora sensação de desânimo, de seca exaustão, de aversão e nojo o subjugavam e entorpeciam, tornando-o incapaz de pensar, e despertando nele um desejo apaixonadamente voraz de algum refrigério, de um pouco de alegria e liberação. Voltaram-lhe todas as dores vagas e as prostrações de sua doença, e, embora não o reconhecesse como isso, o último desesperado desejo de viver o atormentava.
Vestiu-se com dedos trêmulos, cônscio de sua insuportável premência, de sua ânsia de fuga. Quando Celeste, como de costume, trouxe sua bandeja com o desjejum, ficou surpresa ao encontrá-lo vestido e de pé junto à janela, contemplando as brilhantes extensões de gramados. Os altos choupos de Endur se inclinavam como plumas gigantes ao vento quente do verão, ondulando e alvejando e agitando-se. Ele fechou os olhos por um momento e se voltou para a esposa.
— Não — disse, irritadamente — não estou assim tão inválido! — E acrescentou, mas gentilmente: — Vou descer com você, querida. Não posso escrever hoje. Na verdade, poderia dizer: não posso escrever. — Tentou sorrir.
Celeste nada disse. Depositou a bandeja na mesinha-de-cabeceira, depois endireitou-se e estudou Peter. Ele estava agora tão magro que sua carne parecia translúcida e frágil. Ela reprimiu a pancada em seu coração, e voltou a sorrir.
— Muito bem! Tem trabalhado demais, querido. Francamente, estou cansada de comer sozinha. Descemos agora?
A irritação dele continuou a aumentar durante a refeição, que lhe sabia mal. Empurrou a xícara de café e disse, com o vago calor e a aflição que distinguem os nervosos:
— Que tem feito, Celeste? Nunca vamos a parte alguma. Ninguém vem visitar-nos. Seremos párias? Sei que nunca fomos os queridinhos da família, mas por Deus! Ainda podemos pagar nossas despesas... Não somos mendigos, meu bem. Não somos parentes pobres. Nunca amei a família, sei, mas por que esse espesso silêncio?
Lentamente Celeste depositou sua xícara de café. Um olhar ansioso e reservado lhe veio ao rosto. Relanceou um olhar pela saleta de almoço, tão rígida, tão reluzente de vidros e peças cromadas, tão vaziamente estéril, e estremeceu um pouco. Falou, sem olhar para Peter:
— Não sei. Pensei que você queria tranquilidade para trabalhar.
— Não quero estar calado como algum maldito eunuco monástico! — gritou Peter, com invulgar irascibilidade. Ela viu como a mão dele estava magra, pois estava na mesa, ossos e veias bem visíveis. — Olhe, desculpe-me, querida. Creio que é minha culpa, também. Então, devo ficar tranquilo, não? O autor sério e severo afastado do mundo enquanto escreve sua importante farolagem, destinada a mudar a face do mundo! Que importa que eu escreva ou não? Quem se importa? Sentimentalismo egotista acreditar que algo tem importância, num tempo como este, a não ser iniquidade, desumanidade e ganância. Aqui fico eu, como uma infernal "Lady de Shalott", fiando minhas teias idiotas... — Deteve-se abruptamente, pois Celeste o fitava com uma expressão estranha. — Que aconteceu, Celeste?
— Nada — ela replicou, após um momento. — Acabo de lembrar que você me disse que o Sr. Hawkins tinha uma alta opinião sobre o que você escrevera. Não parecia achar que fosse farolagem, não é?
— Diabos! Não estou interessado no que alguém pense! — ele exclamou, com crescente exasperação. — Espere até que ele veja o último lote de manuscritos. Apertará o nariz e mandará tudo para o incinerador. Com todo o maldito egotismo, acreditar...
Celeste estava calada. De olhos baixos. Sentava-se ereta. Ele sentiu aborrecimento de si mesmo por magoá-la, mas perversamente sua irritação se fortaleceu:
— Sim, é minha culpa. Dei-lhe uma ideia errônea. Você ainda é jovem, querida, e senta-se aí, dia após dia, como uma discípula aos pés de algum miserável pequeno messias. E, claro, nunca pensou que eu poderia desejar alguma mudança. Quantas semanas temos estado encerrados nesta prisão metálica? Sem ver uma alma sequer?
Celeste o olhava quietamente:
— Que gostaria de fazer, Peter? Devemos oferecer um jantar? E quem gostaria de convidar? Para dizer a verdade, estou muito contente que você tenha voltado à vida! É sinal de que sua saúde está voltando.
— Não importa quem, minha querida. Dois ou três da família. Meu irmão Francis, talvez, e sua rústica Estelle. Mas não meu irmão Jean. Esse cogumelo venenoso... Christopher e Edith já voltaram para a Flórida? Ele é o seu irmão querido, de modo que suponho que gostaria de convidá-lo. Está agora em Nova York? Bem, é um alívio! Poderia convidar Annette e Henri, embora eu possa suportar muito bem se ele não puder vir. Mas sou louco por Annette. Sei que vocês duas eram muito amigas. Está afastada de nós, também?
— Annette tem telefonado quase todos os dias, mas pensei...
— Sim, eu sei. O grande transformador-da-face-do-mundo não deve ser perturbado em seu labor de fazedor de história. Assim, Henri e Annette devem ser convidados. Olhe, você não tem amigos fora do círculo da família?
— Alguns. — Celeste começou a contar nos dedos. — Acho que seria agradável um jantar pequeno. É mais apropriado, penso. Não gosto de jantares formais. — Seus gestos e voz eram sem vida, demasiado quietos. — Que tal uma semana a partir do sábado à noite?
— Perto de duas semanas! E nesse ínterim, claro, continuaremos estagnados! Não posso escrever, estou-lhe dizendo! Estou morto por dentro. Não quero seu consolo e sua inspiração, Celeste. Hoje não, obrigado. — Seu olhar e suas maneiras eram frenéticos, e ela viu, alarmada, que ele estava desvairadamente atemorizado, com medo de alguma coisa. — Não pode fazer mais cedo esse jantar?
— Tentarei.
Sua ansiedade aumentava. Cogitava se devia chamar o médico. Se o fizesse, ele não deveria sabê-lo, no seu estado atual.
— Será que seria altamente impróprio se você telefonasse a alguém e sugerisse que apreciaríamos um convite para jantar dentro de uma ou duas noites, ou talvez para hoje à noite?
Ela nunca o ouvira dirigir-lhe sarcasmo tão cru, e seu medo se avivou.
— Primeiro, você sabe, Peter, que todos lhe julgam de luto. E Armand e Christopher também, e outros membros da família. Mas não se importe: podemos ter jantarezinhos calmos. Gostaria de sair para um passeio de carro esta manhã?
Ele concordou, com súbita avidez. Celeste suspirou. Foi trazido um carro, e ela e Peter foram conduzidos pelas quentes campinas da região rural. A aragem parecia um sopro vindo das regiões infernais. Passaram campos emurchecidos, as espigas a brilhar ao sol, prados onde o gado modorrava. Embora Peter estivesse firme, olhando pelas janelas que rapidamente ficavam empoeiradas, ela lhe sentiu a dolorosa excitação e a exaustão. Porém mais tarde, nessa tarde, ele não conseguiu descansar em seu quarto sombreado.
Ele estava a ponto de erguer-se do leito quente quando Celeste entrou, maciamente. As cortinas do quarto estavam corridas, setas e lascas de fogo dourado dardejavam através das ripas das venezianas. Porém mesmo nessa quente escuridão ele podia sentir nela uma rigidez, uma tensão estranha.
— Está acordado, querido? Annette e Henri passaram aqui, para convidar-nos pessoalmente para jantar amanhã. Devo dizer-lhes que você está cansado demais para recebê-los agora?
— Não! — ele gritou, com violência alarmante. — Em nome de Deus, Celeste! Vou vestir-me e estarei lá embaixo em um ou dois minutos. — Levantou-se e esqueceu a peculiaridade da aparência e as maneiras de Celeste. Ela saiu do quarto, em silêncio.
Mas achou-se invulgarmente fraco quando desceu a escadaria para as salas embaixo. Foi obrigado a parar a meio caminho. O grande vestíbulo embaixo — branco e cinza e prata — parecia um vácuo quente diante de seus olhos, e a crua luz solar, sem sombras, que o enchia todo lhe feria a visão. Sua mão úmida escorregou na balaustrada de cromo, e cambaleou. Recorreu a toda a sua força de vontade para manter-se consciente. Sentiu uma náusea aguda à vista daquele desolado esplendor espelhante.
Ao entrar no amplo salão, a náusea o pegou mais forte, e ele odiou todo objeto inanimado que seus olhos encontraram. Também aqui tudo era branco e cinza e cores pastel e cromo e prata polida — do pálido capacho à cegante palidez das paredes, das redondas mesas de vidro aos divãs azuis-claros e às cadeiras coral e nos imóveis espelhos sem moldura. Como puderam, ele e Celeste, aguentar aquelas semanas dentro daquela casa apavorante? Nem uma flor, sequer, nos jarros retorcidos de vidro e prata, aquelas monstruosidades empoleiradas nas mesas. Desviou o olhar para Annette e Henri, à sua espera. Dificilmente avistou Celeste a distância, sentada numa cadeirinha azul, as mãos no colo. Por alguns minutos não ouviu vozes. Porém quando ele entrou, Henri se levantou, sorrindo, tão firme, calmo e imperturbável como sempre.
— Alô! — disse. — Pensamos em vir sem nos anunciarmos, para que você não pudesse esconder-se de nós. Como vai? Parece muito melhor.
Sua voz era cordial e amigável, os olhos descorados pensativos e penetrantes. Apertaram-se as mãos, e Peter, aliviado do horror da casa sem uma presença humana, estava recobrando seu sorriso com grande prazer.
Achou delicioso ver mesmo Henri, apesar do que sabia, a despeito dos anos de ódio violento e inimizade entre eles. Ele estava como um homem que viveu por muito tempo num deserto onde o silêncio só era quebrado pelo grito de alguma ave predatória e o rumor do vento e que, por fim, ouve uma voz humana e fica dominado pela alegria — embora essa voz já o tenha revoltado, outrora. Virou-se para Annette e pegou-lhe a mão pequenina e macia. Olharam-se com profunda ternura, os olhos azuis grandes e parecidos, brilhantes e móveis. "A querida e gentil criaturinha — ele pensou — tão ingênua, boa e compreensiva!" Seu fino vestido azul fazia quase vívido o pequeno rosto triangular, e se lhe refletia nos olhos. As mechas do fino cabelo, brilhante, encaracolavam-se em torno de um chapeuzinho branco do feitio de um solidéu. Sua aparência era ao mesmo tempo indefesa e forte, doce, porém firme, inteligente embora inocente. Ela lhe apertou a mão, respondeu gentilmente às perguntas sobre sua saúde, e indagou a respeito da de Peter.
— Oh!, vou indo esplendidamente! — ele replicou, com ânimo invulgar, de animação quase febril. — Celeste pode dizer-lhe que minha tosse praticamente foi-se. Parece que o trabalho me faz bem.
Henri sorriu para si mesmo. Deu uma olhada em Celeste, pelo canto do olho. Porém ela ali estava sentada em algum sonho petrificado e abstrato, olhando fixo para diante, os lábios muito descorados. Parecia nada ouvir.
— Estamos tão interessados em sua nova e linda casa em Placid Heights... — disse Annette, sorrindo radiante para Peter quando ele se sentou ao seu lado. — Esteve lá por estes dias, para ver o andamento do trabalho?
Peter respondeu que não, por estar muito ocupado. Mas sabia que Celeste ia lá frequentemente. A isso, Celeste se agitou, ergueu a cabeça morosamente, e virou o rosto para ele como se tivesse ouvido mal. Disse:
— Estive lá há uma semana. Esperamos que esteja pronta pelo Natal.
Annette brilhava de entusiasmo! Olhou travessamente para o marido e exclamou:
— Vocês vão achar-nos intrometidos, ou curiosos, claro, mas Henri e eu temos estado lá com frequência, e Henri tem sido severo com os operários e com o arquiteto. Havia algo a respeito das calhas de cobre.
— Tem-se de vigiar esse pessoal — observou Henri. — É uma boa planta, Peter. Simples, apropriada e não muito grande. Estamos ansiosos pelo convite para a festa da cumieira.
— A vista é deliciosa — falou Annette, chegando para a beira -da cadeira, animadamente. — Todas aquelas montanhas em volta, e o vale, e a ondulada região campestre... Será maravilhoso ali no outono! Invejo vocês... Não que eu não goste de Robin’s Nest, claro — e olhou Henri com tocante adoração — mas casas novas sempre me põem muito animada.
Celeste deu ordens para o chá, depois recaiu em seu silêncio profundo. Parecia literalmente incapaz de mover-se sem um esforço terrível. Uma madeixa de seu brilhante cabelo negro caía sobre a testa petrificada e alva, e outro anel lhe acariciava a face pálida. Os ombros estavam curvados, todo o seu corpo parecia à beira de um colapso.
Henri e Peter conversavam agradavelmente, mas Henri estava agudamente cônscio da proximidade de Celeste. Via-lhe as brancas mãos caídas molemente no regaço, a curva das coxas, a linha caída dos seios. Parecia doente. Ele tornou a sorrir para si mesmo. Ela estava sentada tão perto dele que poderia tê-la tocado, e ele a sabia tão cônscia dele quanto ele o estava dela, e que ela não ousava olhá-lo diretamente.
Annette voltou-se para a sua jovem tia e exclamou:
— Querida, você parece tão cansada! Sabe, estou realmente ofendida com você, recusando assim meus convites persistentes. De modo que viemos para insistir com você e Peter para que jantem conosco amanhã. Ou hoje, seria melhor.
Peter olhou de sua esposa para Annette, e sorriu desagradavelmente:
— Celeste pensa que sou um monge, sabe. Só hoje descobri que a razão de estarmos aparentemente no ostracismo é porque ela trancou as portas e fechou as janelas. Porém acho que é também minha culpa. Devo ter-lhe dado a impressão de ser um trapista de coração.
— Sei — disse Annette, suavemente. Olhou para o perfil imóvel de Celeste com a mais estranha expressão, compadecida, triste, e muito pesarosa, embora um momento depois sorrisse brilhantemente e suspirasse:
— Você nem sabe o quanto me faz feliz vê-los sair deste retiro. Hoje eu ia ser muito desagradável, se recusassem nosso convite. Hoje à noite, querida? Ou amanhã?
Celeste disse, indiferentemente:
— Amanhã, se Peter assim o prefere.
— Sim, amanhã — ele respondeu, apressadamente. Aquela horrível fraqueza o estava assaltando outra vez, embora lutasse seriamente contra ela. Nessa noite não poderia, mesmo, sair de casa. Inspirou profundamente. — Será bom sair um pouco deste lugar! Não que não sejamos gratos a Christopher e Edith, naturalmente. Mas a casa é apavorante, não é?
Pela primeira vez Celeste pareceu completamente cônscia da conversa. Até corou um pouco, e os olhos reluziram com um súbito fogo azul ao olhar o marido:
— Isso não é muito bonito, Peter. Jamais gostei de Endur, mas outrora foi o meu lar, e Christopher foi muito atencioso conosco. — Ela pensou: "Ele não está em si! Não deve saber o que está dizendo. Está apavorado e perturbado."
— Claro, minha querida — replicou Peter, contrito. — Desculpe-me. Mas não posso evitar que me deprima: lembra-me demais o seu irmão...
O chá foi trazido, e Celeste, sem o menor tremor nas mãos, encheu as delicadas chávenas com o líquido cor de topázio. O seu fino vestido preto fazia com que a garganta alva e os braços parecessem de mármore polido. Passou uma chávena a Annette e outra a Henri, que a aceitou com um sorriso casual e uma inclinação de cabeça. Ela não o fitou. Ela disse:
— Peter, não deveria ter a sua gemada em vez de chá?
— Oh! Deus! — resmungou Peter, lançando-lhe um olhar impaciente. — Você não preferiria que eu pedisse uma mamadeira e um bico de borracha?
Ela o estudou por um momento, e o alarma que sentia lhe fez bater o coração mais depressa. Momentaneamente esqueceu Annette e Henri. Henri estava rindo de um modo nada agradável, e Annette parecia embaraçada. Mas Celeste só via a palidez de Peter, os olhos demasiado brilhantes, os lábios quentes e secos. De repente ele começou a tossir violentamente, e Celeste tremeu visivelmente. Após um ou dois minutos, encheu uma chávena para ele e lhe entregou, como se nada houvesse acontecido e ela não tivesse ouvido sua observação impertinente. Seu ar de dignidade e calmo orgulho fez doer o doce coração de Annette, cujos olhos se encheram de lágrimas. Falou animadamente a Peter:
— Como vai indo o livro?
A antiga altaneria e inquietação de Peter tornavam a aparecer a qualquer menção a seu trabalho. Hesitou, deu uma furtiva olhadela a Henri, depois replicou:
— Não muito bem, Annette. Estou ficando sem inspiração. Talvez me tenha apegado demais a isso.
— Ou melhor — falou Henri, brandamente — talvez você não conheça bastante o seu tema.
— Henri não quis ser indelicado — murmurou Annette sem jeito.
Mas Peter a ignorou. Olhou para Henri, com sua velha aversão e desagrado:
— Não, o pior é que conheço demais, tenho material demais. Não consigo organizá-lo. Gostaria de pôr tudo ali. É tão enorme, tão horrível e pressagioso... Para fazer justiça ao assunto eu teria realmente de escrever uma biblioteca documentada. Quando vejo quão impossível é fazer mais do que sugerir, condensar, encaixar, sinto-me desesperado! Parece um pesadelo, e o inocente e o não iniciado dificilmente acreditarão nisso. — Agora seu olhar para Henri era duro e sombrio, e cheio de desprezo.
Mas Henri sorria:
—- Ora, vamos! não estamos assim tão mal! De fato, se você escreveu a história de qualquer indústria ou empresa na América, quer se trate de tecidos ou matadouros, siderurgia ou fabrico de bebidas fermentadas — a coisa pode ser apresentada de tal forma, tão realçada, tão exagerada e colorida que poderá ficar parecendo a história de Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Pois, você sabe, o elemento humano ali está, inevitavelmente, e seja o que for que o elemento humano toque, provavelmente terá mau cheiro ou será desonesto. Entretanto, o resultado final é habitualmente inofensivo, e nesse ínterim grande número de pessoas prospera de modo inocente e feliz.
— Presumo — disse Peter, voz trêmula, desaparecida toda a cor febril, de modo que estava outra vez de rosto translúcido e cheio de sombras — que o "grande número de pessoas" que tem aproveitado de suas companhias e subsidiárias tem sido apenas os Bouchards? E quanto ao resto do mundo? E quanto ao mundo que está por vir? Pode afirmar que também ele "prosperará de modo inocente e feliz" no tipo de civilização que vocês estão criando para ele agora?
Henri riu ligeiramente. Seus olhos descorados se pousaram em Peter indulgentemente:
— Francamente, não sei. Tenho meus negócios para cuidar, e isso me toma muito tempo: não me sobra nenhum para filosofar.
— Mas eu posso dizer-lhe isto agora: Você não pode honestamente declarar a uma pessoa: "Olhe, aqui está seu opressor, você é a vítima." A propósito, a vítima cria o opressor. Nada é separado do resto do mundo. O mundo, tal como o conhecemos agora e no passado, é o resultado visível da natureza humana total, seu trabalho e sua vontade. Por exemplo: o povo alemão inventou Hitler. Ele foi seu desejo feito carne, para parafrasear a Bíblia. Assim, se certos "homens maus" obtiveram o controle da América, o que eu nego, é porque americanos foram demasiado indolentes, gananciosos demais, muito estúpidos e negligentes para evitá-lo, e assim tacitamente o permitiram. Eles não existem isolados de seus "exploradores", nem esses "exploradores" existem isolados deles.
Aí Peter esqueceu tudo, exceto sua paixão ardente, sua aversão, ódio e raiva contra esse homem!
— Você faz isso parecer muito simples — disse, e agora sua voz tremia tanto que dificilmente podia controlá-la. — Mas não é assim tão simples. Admitindo que a estupidez e a indolência do povo tornem possíveis os tiranos, isso não faz virtuosa a tirania, ou inevitável. Os criminosos tiram vantagem da confiança dos desamparados ou dos indefesos. Esse é o seu crime.
Henri estava silencioso. Mas ainda sorria. Olhou para Annette, que ficara muito pálida e torcia os dedos. Olhou para Celeste. Porém ela fitava Peter, rosto branco e imóvel, e ouvia atentamente. Henri franziu o sobrolho pensativamente, e tamborilou sem som no braço da cadeira.
— Sim — disse Peter, agora em tom mais calmo — em uma coisa concordo com você: nada existe isoladamente de tudo mais, e devemos lembrar-nos do elemento humano. Todavia, existe um elemento, talvez, de que você não sabe nada, Henri, e esse elemento é o desejo profundamente enraizado de todo homem de acreditar que ele e seu trabalho são importantes. O desejo pode ser consciente ou inconsciente, mas está lá, exigindo que acredite que ele e seus esforços são necessários a seu próximo e a seu bem-estar. Você pode achar isso muito bobo. Penso que é a única coisa nobre no homem. Quando esta crença está morta num homem, e a indústria moderna a está matando depressa, por sua monotonia, seu automatismo, e padrão mortalmente mecânico, então o homem perde sua vontade de viver, que é sempre muito precária mesmo no mais forte de nós.
"Os homens de poder tampouco souberam do lastimável desejo humano de ser de alguma importância para o mundo, e de melhorá-lo por trabalho e esforço voluntários, ou não se importariam com isso. Para eles nada representa que esse desejo contenha a promessa mais profunda de bem para o mundo, uma promessa de harmonia universal, e grandeza e bondade, e que tenha o poder de curar muitos dos males e danos da raça humana.
Deteve-se, e continuou em tom mais baixo:
— Talvez você tenha razão em outra coisa. Há muito tempo você me disse que a guerra é um dos mais fortes instintos do homem. Começo a acreditar que sim. Pois guerra é a expressão do desejo de matar de massas inteiras de povo. O problema é tornar a vida tão venturosa, tão vital, significativa e importante para cada homem que ele não queira, em seu desejo de morte, recorrer ao suicídio em massa.
— E como propõe que isto seja feito? — perguntou Henri, com o mesmo olhar brando e enfurecedor, como se falasse a algum louco furioso.
Peter hesitou, e agora seu olhar estava austero e firme:
— Talvez, como eu disse antes, deixando que os homens acreditem, outra vez, que são importantes para o mundo. A religião tem uma forte influência sobre o homem apenas na razão direta da porção de importância que lhe confere. Você quereria que eu fosse prático, não? Pode mostrar-me como a indústria moderna permite a um homem, por um momento que seja, acreditar que é importante e que ele, e só ele, dá a seu trabalho algum toque peculiar que ninguém mais daria? Nossas máquinas eliminaram a alegria pessoal da habilidade manual, do artesanato individual, da criação. Que alegria existe em fazer peças fundidas ou tiras de metal iguaizinhas, em máquina idêntica, por um idêntico robô humano? Quando a indústria moderna eliminou o elemento pessoal de suas gigantescas lojas, usinas e fábricas, começou a destruir o desejo-de-viver do homem, o qual se baseia em seu senso individual de importância. E no mesmo passo estabeleceu os fundamentos para guerras devastadoras. Acredito que por isso é que o fascismo leva inevitavelmente à guerra. É a derradeira convulsão de um povo sem esperança.
Acrescentou:
— A guerra é, afinal de contas, deliciosa para o povo, por ser agora a única coisa que permite a um homem acreditar que é individualmente importante, e que algo depende dele, pessoalmente.
O rosto fino e exausto foi subitamente iluminado pela paixão, a piedade e a tristeza.
— É uma coisa terrível! — falou baixinho, como para si mesmo.
Agora ele contemplava Celeste. Ela lhe sorria, e seus olhos estavam dilatados e brilhantes. Henri os olhava, lentamente, um de cada vez.
— Está pondo tudo isso em seu livro? — perguntou.
Peter voltou a ter consciência de sua presença, após a longa troca de olhares com a esposa, e franziu um pouco a testa:
— Há tanto... sim, estou tentando contar isso. A coisa toda é tão... enorme!
Estava outra vez exausto, tendo esgotado o fogo breve e candente. Mais uma vez sentia-se desesperadamente doente.
Annette falou, e sua voz estava trêmula, bem como as mãos em seu regaço:
— Oh! Peter, gostaria que houvesse alguma coisa que eu pudesse dizer agora, que o fizesse saber o quanto mexeu comigo! Nunca tenho as palavras apropriadas para nada, mas sei que você está certo. — Seus cílios estavam úmidos, e os lábios trêmulos.
— De qualquer modo, deverá ser muito interessante — comentou Henri, com a superior e amável condescendência tão exasperante para qualquer autor. — Pode contar comigo: fico com um exemplar. Ingham é quem vai publicá-lo?
— Sim — falou Peter, brevemente.
Tomou o chá distraidamente: já estava frio e nauseante para ele. Seu desespero era nele uma desolação, uma calmaria... Como era impotente! O quão claramente Henri lhe mostrara sua impotência, em face do próprio grande poder, força e solidez físicas!
Durante sua abstração não se dava conta de que Henri o esquadrinhava atentamente. Tê-lo-ia espantado o saber o quão importante era agora para Henri, e que o outro homem tratava de refletir rapidamente.
— Olhe aqui — falou Henri, abruptamente. — Você diz que tem material demais. Por exemplo: está cônscio, com suas malditas provas documentadas, de que certo grupo de homens em Washington e outros lugares está resolvido a derrubar o Governo e substituí-lo pelo fascismo? Com a ajuda real de Hitler?
Peter ergueu o olhar com tamanha rapidez que chegou a quase entornar sua chávena. Não podia acreditar no que ouvia. Henri estava acenando com a cabeça, com um sorriso triste.
— Garanto-lhe que é verdade. E não sou um deles, esteja certo. Isto o surpreende, não é verdade? Calculo que haja tido suas suspeitas. Quer verificar?
Peter estava estupefato. Os olhos esgazeados instintivamente procuraram Celeste. Porém ela olhava Henri, com uma rígida expressão de choque, e olhava plenamente pela primeira vez.
— Imagino — continuou Henri, olhando só para Peter — que você tenha dado umas tintas a este respeito em seu manuscrito. Mas apenas insinuações sempre podem ser atacadas e destruídas. Os fatos não.
Contudo, Peter não podia mesmo falar.
Henri recostou-se confortavelmente na poltrona, e levantou as sobrancelhas com uma expressão zombeteira. Porém os olhos estavam fitos com rara intensidade em Peter.
— Quero dizer: é uma conspiração real, que só recentemente chegou ao meu conhecimento. Serei franco com você. Quis que a América se mantivesse fora da guerra que está a chegar porque a guerra destruirá o status quo, e sou muito apegado ao status quo. Não me importo a mínima com o que Hitler faz na Europa. Mas quero mantê-lo fora da América. Desgraçadamente, existem alguns homens, e você ficaria surpreso se soubesse quem são, que querem Hitler aqui ou, pelo menos, desejam a influência dele aqui. Estão trabalhando para isso. Um cavalheiro muito chegado a alguns de nós disse, recentemente: "Precisamos de Hitler, e sua eficiência. Para pôr a maldita multidão de volta em seu lugar. Digo: aliciem-no!" Você pode achar isto muito impudente e rude. Mas não é. Eles traçaram os planos vigentes.
Peter arrancou-se à sua letargia de estupor e gaguejou:
— Por que me diz isso? Agora? Você?
Henri deu de ombros, e respondeu brandamente:
— Porque não quero Hitler aqui. Estou muito satisfeito com as coisas como estão. Não estou muito interessado no que Hitler faz na Europa, mas estou resolvido a que não o faça com qualquer dos nossos materiais... se eu puder evitá-lo. Não estou muito certo de poder evitá-lo. Naturalmente, estou trabalhando para isso. Coagi — sorriu um pouco — ou melhor: persuadi alguns outros a juntar-se a mim, pois estou seguro de que não tenho desejo de ser um Thyssen para Hitler. Não é patriotismo. Só estou dando a você um esboço, um resumo. — Deteve-se, cogitando se estava sendo indiscreto, estúpido e ingênuo. — Posso ser bem-sucedido. Como a coisa aparece agora, posso não ser. Você pode imaginar o resto.
De súbito, Peter pôs-se de pé e, em profundo silêncio, palmilhou a sala abaixo e acima a passos sacudidos. Punha as mãos no rosto e deixava-as cair, com um suspiro. As duas mulheres estavam transidas em suas poltronas, Celeste observando Peter, Annette vigiando Henri. As faces de Annette estavam de um vermelho vivo, os olhos demasiado brilhantes.
Então Peter parou diante de Henri. Seus lábios se mexeram com esforço:
— De alguma forma, acredito em você. Não sei por quê. Compreendo por que me falou. Não é por patriotismo ou decência. Você deseja proteger-se. Isso não importa. Que posso fazer?
Henri estava agora muito grave e sério. Inclinou-se para Peter:
— Seu livro estará terminado tarde demais, receio bem. Suponha que seja publicado daqui a um ano ou mais. Já não fará bem algum: o dano estará causado, dano provavelmente irreparável.
"Entretanto, acabei de ter uma ideia. Suponha que você escreva para o rádio. Não poderá, claro, fazer tais palestras você mesmo, por razões mais que óbvias. Mas eu posso advertir o povo por meio de dois ou três comentaristas competentes. Já tenho em mente esses comentaristas. Dois foram recentemente tirados do ar por falta de patrocinadores. Acontece que sei por que eles não têm patrocinadores agora. Acho que você pode adivinhar, também. Eles não precisam de patrocinadores: eu pagarei pelas transmissões. Nenhum dos canais ousará manter esses homens fora do ar quando eu der a ordem. Também eles estão cheios de fatos, que eu darei a você. Lembre-se: no próximo ano haverá uma eleição — e a rudeza em seu rosto se abrandou por um momento. — Francamente, não me importa se é eleito Roosevelt ou qualquer outro homem de opinião igual à dele. Estou pensando em um homem que me foi mencionado ultimamente por determinado velho cavalheiro. Ele pode não ser escolhido. Se não o for, e o Partido Republicano eleger algum pateta, algum testa-de-ferro, então podemos ter Roosevelt. Isto o surpreende, não? Mas digo-lhe agora que nem mesmo a maior das burrices do New Deal tem mais qualquer importância. A única coisa importante é tornar impraticáveis aqueles esquemas de que acabei de falar-lhe. Tudo mais pode esperar.
Continuou, pois Peter ainda não podia falar:
— Toque o seu livro para a frente. Mas essas palestras pelo rádio são mais necessárias, mais imediatas. Que me diz?
Os olhos de Peter ardiam no rosto magro. Ele ainda estava vivo, ardente e apaixonado. Quase gritou, exultante. Após um momento, falou:
— Meu Deus! Não posso acreditar! Claro que farei isso! Você só tem de me dar os fatos, uma orientação de vez em quando!
Mal podia respirar, com seu senso de potência novamente excitado, como excitados estavam todos os seus sentidos. Mas Henri se mantinha perfeitamente calmo, sorriso macio como sempre.
Levantou-se:
— Muito bem. Você será bastante discreto, naturalmente, para não dar a mais leve pista sobre onde obtém suas informações. Seria desastroso: devo trabalhar nos bastidores. Devo desmascarar todos os conspiradores e fazer o que posso, pelo meu lado, para detê-los em seu caminho. Nesse ínterim, você pode despertar muita gente para o perigo que corre. Estude os comentadores, que são subsidiados pela Associação Americana de Industriais, uma de nossas organizações. Wright Benson é o mais apto. Você pode obter muitas indicações de sua propaganda, que é muito adequada, para dizer pouco. Você perceberá o fino controle italiano por trás do que ele diz. Estude os jornais, especialmente aquele poderoso refugo em Detroit. Você terá seu trabalho talhado para você, e isso não vai ser fácil.
Peter apertava as mãos nas têmporas latejantes. Celeste estava agora de pé ao lado dele, vendo só a ele. Ele se voltou para ela e lhe leu nos olhos a ansiedade sem palavras. Gritou:
— Meu Deus, querida! Nada mais importa, só isto! Pode perceber? — passou o braço em torno dela, que deitou a cabeça nos ombros dele.
— Eu lhe enviarei algum material amanhã, por mensageiro especial — disse Henri, estendendo a mão a Peter, que a contemplou, e depois apertou-a. — Outra coisa — falou Henri, sorrindo, como se se divertisse profundamente — não seja muito intelectual em seus ataques. Use palavras de uma só sílaba, se possível. Lembre-se: a maioria do povo é de ignorantes. Tem uma suspeita natural pelo que chama "professores universitários". Faça a coisa simples, impressionante, violenta e espetacular. Nada medido e restrito. De outro modo o "isolarão". Ouça o Bispo Halliday, esse pio suíno. Copie seu estilo, e o melhore. Ele é um bom incitador da populaça. Seja um incitador da populaça.
Peter sorriu convulsivamente. Henri viu que sua mente já se lançara num excitado e turbulento estado, e já estava formulando o que iria escrever. Mas disse:
— Será fantástico, trabalhar com você, Henri. Ainda não posso crer!
— Acredite — replicou o outro. — Eu lhe darei alguns fatos muito interessantes amanhã à noite, depois do jantar.
Annette estava silenciosa. Mas suas mãozinhas apertavam o sólido braço de Henri e ela sorria, radiante, nada mais vendo senão o rosto dele. De modo que ninguém observou que Celeste, também, olhava para Henri, lábios entreabertos, olhos escuros e estranhos.
Capítulo 27
Peter havia comprado dez acres de terra em Placid Heights para seu novo lar.
A terra compreendia uma colina inteira, e por trás dela erguiam-se as dobras cor de malva dos contrafortes mais altos, de modo que ela parecia encerrada no anel de uma imensa fortaleza circular. A casa, agora em processo de construção, ficava no topo de sua colina. Os terrenos seriam adequadamente ajardinados, mas nessa estação — fins de agosto — a colina estava escura e ressecada, tendo aqui e ali uma árvore espigada e resistente. Portanto, a casa tinha um lado exposto e vulnerável à gritante luz solar, suas fortes paredes cinzentas um tanto austeras, e o telhado vermelho demasiado brilhante e natural.
Mas a colina se inclinava gentilmente para uma estreita fenda entre as colinas, um vale cheio de névoa radiante e translúcida, de modo que as árvores espalhadas por ali estavam imóveis numa luz prateada. Nenhuma outra casa era visível. Havia apenas o pálido brilho do céu, as dobras arroxeadas das colinas, o vale semelhante a um sonho, tão longe quanto a vista podia alcançar. Nada de vento, nem um som de pássaro naquela vastidão, sob a universal catarata da luz solar. Apenas o serrar de madeira, o clamor dos martelos dos operários, uma ocasional voz áspera, ou uma pisada forte no novo e inacabado assoalhamento. O cheiro de serragem fresca saturava o ar quente e estéril.
Um pouco abaixo da ladeira estava estacionado um pequeno carro azul e, perto dele, sentada numa pedra, Celeste, cujo vestido vermelho era uma mancha de cor de encontro ao declive amarelado. Ela não examinava a casa. Fitava o vale, lá embaixo, as mãos imóveis a seu lado, uma madeixa de cabelo ondulando ao mais leve sopro de brisa. A rígida quietude do seu rosto relaxara; os lábios estavam mais macios, mais gentis, do que haviam estado por algum tempo. Uma ou duas vezes sorriu, rapidamente, depois suspirou, e por um instante a antiga rigidez lhe cerrou as feições, para desaparecer uma vez num vivido relâmpago de renovada doçura.
Viera para discutir com o arquiteto o apainelamento da biblioteca. Ele se fora. Ela ficara só. O diamante em sua mão brilhava à luz do sol como um prisma redondo. Estava ali sentada havia perto de uma hora.
Ninguém que a olhasse poderia adivinhar a excitação febril que a dominava, as súbitas rajadas de negro desânimo que se seguiam, que por sua vez eram seguidas por uma selvagem aceleração que a fazia torcer as mãos e penetrava a intumescência de seu coração com mudo êxtase e uma profunda e apaixonada tristeza. Depois, como se exausta por suas próprias emoções, ela se tornava hesitante e calma, para recomeçar o ciclo de emoção dentro de poucos minutos.
Estivera morta por tanto tempo...
Desde a última noite, quando Henri propusera seu plano a Peter, este ficara tão violentamente excitado, tão exultante que Celeste fora incapaz de contê-lo. Qualquer sugestão de que se acalmasse era recebida com uma explosão, ele gritando que ela não o compreendia, que estava tentando dominar a primeira alegria que tivera em meses, em anos. De modo que, finalmente, ela nada mais dissera. Viu que Peter, também, havia estado completamente desesperado, cheio de impotência, medo e desesperança. Agora lhe fora dada uma oportunidade de alcançar milhões, que deviam ser despertados.
Celeste pensava no homem que tornara possível a Peter voltar a viver, sentir uma vez mais a maravilhosa sensação de poder realizar algo. E ela sentia em si mesma um tremor que lhe tolhia a respiração. Quantos anos se haviam passado desde que experimentara emoção tão vibrante! Tornou-se cônscia, depois de tanto tempo, da pungente presença do mundo, sua apaixonada violência, sua maravilha e cores vividas. Tinha de novo aquela clareza de percepção, aquela jovial veemência que uma vez sentira e havia esquecido há tanto, tanto tempo! Agora, enquanto pensava em Henri Bouchard, seus sentidos despertos observavam tudo com tal vivacidade que chegava a ser dolorosa. O cascalho a seus pés tomava formas significativas. A sombra de uma árvore retorcida perto dela estava cheia de significado, e quando suas grandes folhas se inclinavam ao mais fraco dos ventos, ela dificilmente podia aguentar a pungência da luz solar sobre elas. Ergueu para o céu olhos ofuscados, e lhe pareceu que os flutuantes contornos das nuvens pálidas eram mais do que poderia suportar.
Tão absorta estava que nem ouviu o ronco de um carro que subia a colina sem estradas, nem a batida de sua porta. Nem viu de imediato a forte figura que começou lenta ascensão em sua direção. Quando discerniu quem era que se aproximava dela, pareceu-lhe apenas a continuação de seu sonho radiante. Apenas pôde ficar ali sentada na pedra, sorrindo vagamente, contemplando o homem que subia.
Depois, de súbito, tornou-se cônscia de quem era ele, e foi como um choque por todo o seu corpo, um selvagem despertar. Não pôde levantar-se. Apenas podia ficar ali sentada, as mãos agarrando os lados da pedra, o rosto branco e imóvel. Quando ele ergueu a mão num aceno amigável, ela não respondeu. Estava paralisada; o coração parecia querer parar.
Ele se deteve por um momento, alguns metros abaixo de onde ela estava, e enxugou o rosto úmido com o lenço:
— Alô! — chamou.
Os lábios e a garganta da moça estavam secos. Ainda estava incapaz de mover-se. Ele subiu lenta e facilmente até ela, depois tornou a parar.
— Peter está aqui? — perguntou.
A voz dela era rouca, emitida com esforço infinito:
— Não.
Agora pôde levantar-se. Ele lhe sorria da maneira mais amigável:
— Não está doente de novo, está?
Os lábios dela formaram a negativa, mas não saiu nenhum som.
— No último minuto Annette decidiu que estava muito quente, assim pensei em vir sozinho — falou ele.
Celeste estava ansiosa. Encararam-se e, então, também ele não falou. Sua grande cabeça se inclinava gravemente, tinha a expressão séria. Ela esperou o que ele diria a seguir, com uma agonizante agudeza de todos os sentidos. Porém ele apenas disse por fim:
— Bem. E como vão indo as coisas por aqui? Sabe, costumamos vir aqui.
— Muito bem — ela replicou, ainda lutando para falar. Seus membros estavam fracos e trêmulos.
Ele afastou-se dela, e sorriu de novo:
— Gostaria de ver por mim mesmo — disse, e subiu até a casa.
Mudamente, ela o observava. Depois de muito tempo, tornou a sentar-se na pedra, tremendo de vontade de fugir, entrar no carro e descer para o vale. Esse desejo de fugir era como uma chama a abrasá-la, mas não tinha vontade suficiente para reagir.
Não sabia há quanto tempo ele havia ido, mas de súbito ei-lo de novo ao seu lado. Não a olhava: contemplava o vale, lá embaixo, com uma expressão satisfeita.
— Muito bonito! E não muito longe da cidade. Sabe, vi algumas vezes a velha mansão Sessions, quando era garoto. Ouviu falar dela, Celeste? Se me lembro corretamente, a planta de seu interior era semelhante à desta, e exteriormente também tinha certa parecença. — Riu um pouco: — Deveria ter sido bem preservada como monumento de família. Existe uma história de que ela inspirou o velho Ernest Barbour toda a sua vida. Depois foi finalmente abandonada pela família, depois que minha bisavó, May Sessions, morreu, em 1910. Já então era rodeada de favelas, mas ainda está lá. Meu bisavô deve ter sido um demônio fascinante, hem? A casa foi lentamente caindo aos pedaços, mas minha bisavó permaneceu lá, pensando nele. Quando ela por fim morreu, a família mandou demolir a casa, para que não degenerasse numa casa de pensão ou coisa pior.
Tornou a rir. Seus dentes grandes e fortes faiscavam à luz do sol, enquanto ela o olhava, mudamente.
— Sabe, eu teria gostado da ironia final: a velha mansão Sessions transformada em bordel... Há um epigrama nisto. Aquilo que a princípio inspira um homem finalmente se torna sua degradação. Sou inteligente, não?
Agora ela pôde sorrir, doloridamente. Ergueu-se, alisou o vestido.
—- Devo ir — murmurou.
Ele ergueu a mão facilmente e lhe pegou o braço, com firmeza. Ela estremeceu, e dificilmente conteve o impulso humilhante de arrancar o braço de seu apertão. De modo que ali ficou, rígida e fria. Mas um súbito e agudo calor se espalhou dos dedos que a seguravam, espalhou-se pelo seu braço e por todo o corpo. Então seus olhos se arregalaram e se fixaram nele, ardendo com uma vivida luz azul, orgulhosa, amarga, incandescente.
— Ah, Celeste! — ele murmurou.
Qualquer movimento — ela pensou, desesperadamente — a tornaria ridícula, aumentaria sua selvagem humilhação. De modo que não se mexeu. Porém seu coração palpitava em tumulto, numa dor deliciosa. Ele a observava atentamente, sorrindo, com o pálido brilho de seus olhos que se estreitavam entre as pálpebras.
— Caminhemos um pouco — convidou.
Estreitou-lhe a mão fortemente. Puxou-a atrás de si, e ela o seguia cambaleando, vendo apenas o chão flutuante a seus pés, demasiado absorta em sua vergonha para resistir.
Moveram-se ao longo do barranco até determinado ângulo em que um montículo os escondia da curiosidade de qualquer operário na casa acima. Ali havia uma árvore curta e grossa, de sombra espessa. Pararam ali, à sombra. Aí, Henri largou a mão de Celeste e eles se enfrentaram em silêncio, um silêncio quase violento em seu mudo poder.
Depois Henri falou, gentil e lentamente:
— É tempo de termos uma conversa, não acha? E decidir o que vamos fazer.
Celeste sorriu amargamente, e ergueu a cabeça:
— Você está considerando a ideia de divorciar-se de Annette? — perguntou, com áspera zombaria, olhar brilhante e direto.
Esperava que ele hesitasse. Porém lenta e gravemente ele sacudiu a cabeça:
— Não. Ainda não. — Sua voz era firme. — Por uma razão que não lhe posso dizer agora. Surgiu muito recentemente. Mas torna impossível para mim divorciar-me dela... agora. A oportunidade virá mais tarde. Não muito tarde, espero. E agora, você. Vai esperar até que Peter morra para que comecemos a viver?
A audácia dele, inexorável como era, a espantou. Só pôde fitá-lo, aturdida, por muito tempo. Depois, palavras incoerentes e furiosas se atropelavam em seus lábios num tal fluxo que ela chegava a gaguejar, como quem tropeça, hesita, corre e cambaleia em fuga:
— Oh, você é desprezível! Como pode...! Você é um miserável! Não há nada que eu lhe possa dizer a não ser isto: deixe-me em paz. Fique longe de mim. Já não me feriu... e a Peter, bastante? Acha que me é fácil olhar para ele? Agora? Tenho de compensá-lo... Como suportar olhar para ele, todos os dias, todas as noites? Você nunca entenderia isto... Nunca houve em você um impulso decente, nem honra, nem fidelidade, nem bondade. Mataria a pobrezinha da Annette facilmente, se isso o ajudasse de alguma forma. Por vezes penso que a está matando: ultimamente ela tem um olhar impressionante! O que vou fazer? Nada! Nunca! Nunca, nunca!
Afastou-se dele e tentou correr. Porém ele a agarrou logo e a puxou para ele, sacudindo-a com violência:
— Celeste, está maluca? Pare de lutar, você está ridícula. Olhe para mim, Celeste!
Ela agora chorava a não poder mais. Contudo, ante o perverso desdém na voz dele, a ordem implacável, parou, soluçando, olhando-o com ódio mudo e intenso. Ele deixou cair as mãos que estavam nos ombros dela.
— Muito bem, assim está melhor. Você age como uma criança, uma criança estúpida, irracional e romântica. Já não somos crianças, pequena imbecil. Esta é uma questão a ser enfrentada, compreendida e resolvida. Sim, agora está me odiando, não é verdade? Fez uma confusão danada de nossas vidas, mas ainda tem a impudência de olhar-me furiosa como se eu fosse digno de censura e você não. Fino mecanismo de defesa, porém covarde, como todos os mecanismos de defesa. Ou isto está além da sua inteligência?
Um fluxo de vermelhidão cobriu o rosto dela. Estava agora muito quieta. Disse, olhando-o fixamente:
— Sim, talvez eu seja covarde. Sempre pensei que fosse. Mas isso não importa agora, sou esposa de Peter. Pode surpreendê-lo saber que não quero que Peter morra! Eu o amo.
—E então — ele a interrompeu, ironicamente — prefere discutir a questão depois da morte de Peter? É isso que tem em mente? Não percebe a sordidez disso? Ora, você me enoja Celeste! Por que não pode ser honesta? O fato de haver decidido pensar nessas coisas só depois de viúva não realça a sua fina honra, sua virtude e correção. Não desfaz qualquer "erro" seu em relação a Peter, pois o erro já foi cometido. Não a desobriga o fato de não encarar as coisas até que seu marido esteja morto. O pensamento já está lá.
Ela ficou silenciosa um momento, ainda a fitá-lo. Depois respirou profundamente e disse:
— Muito bem. Decidirei agora. Quer Peter viva ou morra nunca haverá nada entre nós, Henri. Nunca. Nem se você se divorciar de Annette. Nem se Annette morrer... e você deseja furiosamente que ela morra, não deseja?
Ele começou a sorrir:
— Annette morrer? Sim, não me importaria. Não é que desgoste daquela coisinha. Na verdade, sou louco por ela. Mas simplificaria muitas coisas se ela morresse cedo. Cedo, mas não agora.
— Agora estou certa de que o odeio! — disse Celeste, com uma espécie de espanto. — Sim, estou certa disso.
O sorriso dele se transformou numa gargalhada.
— Assim é melhor. Gosto que você me odeie. E você realmente ainda não se decidiu, já? Será que Christopher alimentou com leite e romantismo toda a sua vida? Acho que me lembro disso. Você é uma desordenada pequena romântica. Seu cabelo está todo em desordem. Claro que estou falando figuradamente. Vê, tenho de ser muito cuidadoso na escolha de palavras que não estejam além de sua limitada inteligência. Tem pensado em si mesma como uma alta e nobre intelectual todos esses anos ciganeando pela Europa com Peter, não é mesmo? Você ouvia os mestres em todas as mesas internacionais de chá. Assim, tem agora Mente e Alma. Sim, meu amor, você me enoja!
Acrescentou:
— Jamais gostei de romantismo doentio. Pedi-lhe, julgando que tivesse adquirido um pouco de senso, que discutisse comigo o que iremos fazer agora. E você me vem com Jane Eyre...
Afastou-se dela e inclinou a cabeça em direção a seu carro lá embaixo, na ladeira. Porém seus olhos duros e cruéis não se afastaram de seu rosto:
— Nunca persegui mulheres. Francamente, não gosto de mulheres. Não gosto de você, jamais gostei. Mas eu a amei. Não estou muito certo, neste exato minuto, se ainda a amo. Idiotas me fazem vomitar. Você é uma completa idiota, sabe disso. Porém eu a amei. Poderia mesmo voltar a amá-la. Mas neste momento, não tenho certeza. Não estou certo, sequer, de querê-la. Estou quase certo de que não.
Calou-se. O rosto dela estava branco feito marfim, à sombra. Não podia desviar dele o olhar. Nada disse. Mas seu coração caiu nas mais negras profundezas do desespero e da desolação, de uma angústia tão aguda e tão imensa que parecia que seu coração ia parar. Ele a observava atentamente.
Ele ergueu a mão lentamente e apontou para ela: seu dedo era como um punhal:
— Vou começar a andar, Celeste. E a qualquer momento antes que eu alcance meu carro, você pode chamar-me de volta. Mas depois que eu entrar nele, e partir, será o fim. Pense nisso por um momento, honestamente, como um ser humano decente. Quando eu partir, estará tudo feito. Não haverá nada mais. Nunca, nunca! — acrescentou, com calma.
Aguardou um pouco. Porém ela permaneceu imóvel. Ele sorriu severamente. Com infinito vagar e resolução ele se afastou dela, começando a caminhar na direção do carro. Ela o observava ir.
Ele chegara a um montículo de rochas. Ela pensou:
"Ele está realmente indo embora... Nem olha para trás. Nunca voltará."
Agora todas as suas pulsações eram como corações separados em sua garganta, nas têmporas, nas mãos, nos joelhos. Podia sentir-lhes o palpitar e o saltar, tremendo até seus limites, forçando em sua boca um gosto de sal. Estava agora a uns vinte metros do carro. Caminhava com firmeza, não titubeando sequer por um momento, nunca se apressando, nunca fingindo demorar-se. Ela via o seu amplo dorso à luz do sol, e a parte de trás da grande e brutal cabeça. Parecia tão despercebido de sua presença como se ela não existisse.
Então uma dor enorme se apoderou dela com dentes de ferro, e ela literalmente sentiu-os a rasgar-lhe a carne, a apertar-lhe as partes vitais. "Não! — ela gritou dentro de si mesma. — Oh! não! Henri, não!"
A forte figura a mover-se tão inexoravelmente à luz solar excluiu tudo mais de sua consciência. Foi um pesadelo, um sonho que arrastou cada horrível momento à sua decisão definitiva, nunca se apressando, nunca se detendo.
Agora os dentes de ferro caíram em suas derradeiras defesas vivas, e ela sentiu um amargor da agonia em seu corpo e seu espírito que era intolerável. Isto foi que a fez gritar, um grande grito, menos um ato de sua vontade do que puro tormento — que já estava além de seu poder combater.
Ele ouviu esse grito. Através de uma névoa ondulante e obscura voltou para ela, não vagarosamente agora, mas caminhando apressadamente. Ela não soube que ergueu os braços para ele...
E agora ela estava apertada contra ele, passando as mãos nos ombros dele e nos seus braços, chorando selvagem e terrivelmente, agarrando-se a ele como o faria quem estivesse a afogar-se. Ele não a consolou, mas a manteve bem apertada nos braços. Sentiu o abrandamento das pulsações do coração dela, seu sofrimento. Quando ele tentou afrouxar o aperto em que ela o mantinha, acalmá-la, ela se tornou menos controlável. Ele ficou alarmado, e olhou em volta, inquieto: alguém podia ter ouvido aquele grito terrível.
Ele se libertou com violência. Tomou entre as mãos aquele rosto convulso e, olhando-a nos olhos, forçou-a a acalmar-se. Ela chorava novamente, porém mais quietamente. Mas segurou os pulsos dele, tão próximos a seu rosto — e seus dedos pareciam de ferro, a morder-lhe a carne.
— Henri — gritou, roucamente. — Você teria ido embora? Não de verdade?
Ele a apertou mais de encontro a si:
— Sim, meu amor — falou, suavemente — eu teria ido. Realmente. — Depois acrescentou, mais asperamente: — Não me faça mais isso, Celeste, nunca mais!
Capítulo 28
Foi naquele dia de setembro de 1939 que um mundo acabou e nasceu outro, novo, estranho e terrível, que Antoine Barbour Bouchard se casou com Mary Eloise Boland.
O casamento foi muito quieto. Como foi destacado em muitos jornais, o jovem Sr. Bouchard perdera sua avó recentemente, e a jovem Srta. Boland fora "privada" de sua mãe havia apenas dois meses. O casamento se realizou (por "razões de tradição de família", diziam os jornais) na linda capelinha antiga da Episcopal St. Mary’s-on-the-Hill, em Windsor. A capela, que não era assim tão velha, era em estilo normando antigo — pesados muros cinzentos e marfim e fortes torres curtas, para combinar com o prédio de origem, agressivamente normando e imponente. Os vitrais coloridos eram excepcionais, com justa razão: haviam sido retirados em conjunto de uma verdadeira igreja normanda na França e transportados, com enormes despesas, para sua nova colocação pelo velho Ernest Barbour, que construíra o prédio. Aqui ele próprio repousava à luz iridescente e misteriosa lançada pelos vitrais, e aqui outros Barbours e Bouchards dormiram em seus frios travesseiros de cetim antes de serem levados para seus estreitos nichos no cemitério. Aqui as crianças Bouchards haviam sido batizadas e mais tarde crismadas; haviam-se casado; haviam-se revezado nos solenes bancos da igreja; haviam bocejado e se espreguiçado, cochilado e conspirado, haviam-se entregue a seus pensamentos peculiares e a suas tristezas, haviam ponderado sobre suas cobiças e seus ódios.
A Família ficou extremamente deliciada com a escolha de Antoine. Nenhum membro jamais fez um casamento inadequado. Antoine obedecera à tradição, apesar da passada inquietação a seu respeito. Os Bouchards masculinos sempre tiveram inclinação por grandes damas. Mary Boland era uma grande dama. E também — feliz e apropriadamente — muito estúpida. Era baixa e gorduchinha, e possuía lindas mãozinhas brancas e pés pequenos, também gordinhos e brancos como leite. Tinha covinhas nas articulações das mãos bem cuidadas. Como muitas jovens com o seu físico, possuía um busto redondo e muito alvo, quadris arredondados e cintura breve. Também o rosto era redondo, macio e com covinhas, e ela sorria quase constantemente com o mais doce dos temperamentos — as covinhas aparecendo deliciosamente nas faces, no queixo e junto aos lábios sempre que sorria, o que era praticamente sempre. Boquinha redonda e rosada, nariz pequeno, faces naturalmente rosadas e floridas, e olhos grandes e brilhantes rodeados de pestanas cor de bronze. A partir da testa baixa erguiam-se as ondas do fino cabelo ruivo, preso num coque na nuca. Era muito bonita; muito encantadora; tinha o riso mais doce e cristalino. Nunca dizia algo que tivesse alguma significação, porém jamais pronunciou uma palavra que não fosse delicada, graciosa ou apropriada. Estava com vinte anos e era virgem. Nunca tivera um pensamento original ou perspicaz, pertinente ou profundo, impudico ou compassivo.
Melhor que tudo: era uma grande herdeira! E adorava Antoine. Portanto, a Família só podia aprovar sua escolha. Era uma típica mulher Bouchard e, como tal, perfeita.
Mary Boland era filha única de um pai que era um bandido implacável, que tivera três esposas antes de desposar a mãe de Mary. Nenhuma das esposas lhe dera filhos, de modo que se livrara delas. A princípio o sexo de Mary o deixara furioso, porém ela finalmente o vencera com seu encanto, doçura e imbecilidade. A menina não tinha mais de um ano de idade quando ele começou a procurar em volta dele um marido apresentável para ela. Ao aparecer Antoine em cena, ele se sentiu altamente gratificado. Estava agora com setenta anos, e começara a preocupar-se a respeito da filha.
Ao pai, Armand, Antoine dissera:
— Ela é realmente uma criaturinha deliciosa e satisfatória. Sua mãe veio de uma família prolífica, de modo que você provavelmente terá pelo menos uma meia dúzia de netos.
Em suma: a escolha de Antoine foi universalmente aprovada.
Embora sem alardes, o casamento foi perfeito. Mary Boland parecia um róseo querubim em seu diáfano véu branco, vestido de cetim branco bordado, de cauda bem longa, as demoiselles d’honneur afetando timidez em seus vestidos água-marinha flutuantes, de tule. Seu primo — o ambicioso vice-presidente do Morse National Bank — foi o padrinho. Ela ficou de pé no altar com Antoine, e através do véu seu rostinho redondo brilhava como uma lua rosada.
Devido ao sinistro acontecimento que explodira no mundo, a lua-de-mel foi curta e calma. O feliz casal voltou para morar no grande e sombrio castelo de Armand.
Em menos de uma semana Armand estava apaixonadamente louco pela nova filha. Quanto a ela, "amava" todos os Bouchards, considerava-os as criaturas mais brilhantes, mais soignêes, melhor dotadas do mundo. Era-lhes muito grata por adotá-la em seu clã tão fechado. Isso não contribuiu para diminuir a aprovação de todos, claro!... Embora, depois de cinco minutos, a achassem tediosa.
Ela resolveu tornar-se indispensável a Armand, pois era realmente muito boa, desde que não ficasse confusa ou tivesse de pensar numa situação. Viu que Armand estava doente e velho, e isso despertou a sua piedade. Seu próprio pai era rijo e seco como uma velha árvore desgastada. Aqui estava uma criatura a quem ela poderia adotar, e o instinto maternal era muito forte na jovem Sra. Antoine. Para ela, bastava que ele estivesse doente e abandonado, que todos rissem de sua "Lista", que ninguém considerasse importante essa "Lista". A Sra. Antoine a achou muito importante. Todos os dias, gastava horas com ele, debruçada sobre o desprezado papel, séria e gravemente discutindo com ele vários cardápios, e pessoalmente cuidando para que só os artigos selecionados aparecessem à mesa.
"Meu amor, eu não tenho diabetes — protestava Antoine quando aparecia ao jantar outro prato de pâncreas de vitela ou de carne magra ou de frango grelhado. — Nem tenho aversão a batatas. E detesto vegetais cozidos em água e temperados com óleo mineral."
Mas a jovem Sra. Antoine era muito firme. Em consequência, Antoine passou a jantar em casa apenas uma ou duas vezes por semana. Nem davam por sua falta. Armand e sua nova filha passavam uma feliz hora de jantar discutindo o cardápio do dia seguinte. Não foi de espantar que ele começasse a adorá-la...
Dentro de menos dois meses ela estava grávida com a maior felicidade.
Num mundo doente de morte, que vivia num pesadelo de fúria, loucura, confusão e ódio, tão sacudido e atacado por mil boatos, que apresentava uma enorme quantidade de aspectos elevados ou deprimidos pelo clarão de uma selvagem Noite de Valpúrgia, que ressoava com os guinchos e gritos de loucos sem rostos — a jovem Sra. Antoine vivia uma existência plácida e isolada.
"Você é tão repousante, meu bem! — costumava dizer Antoine para ela ao café da manhã, quando ela falava alguma asneira. — Você não chega a ter o cérebro de um camundongo..."
Ele conhecia muitas mulheres sem cérebro de ratos, porém elas nunca pareciam dar-se conta disto. Eram cheias de seriedade, e discutiam muitos problemas com ares de intelectuais. Era delicioso encontrar uma que felizmente aceitava o fato de ser uma idiota, estava contente com seu papel insignificante, e tinha um lindo riso que não significava nada.
O sombrio castelo à margem do rio começou a tomar ares de festa e de alegria, incongruente com suas características. "Como uma antiga giganta usando um chapeuzinho maluco de banda a cobrir-lhe um olho" — comentava Antoine. Porém agora a luz do sol invadia as imensas peças escuras. Vasos de flores apareciam nos peitoris de todas as janelas. Antoine nada disse, até que seus queridos Rubens e Goyas subitamente desapareceram, e ele descobriu que seu armário de antigas e curiosas caixinhas de rapé haviam sido atiradas no depósito em cima de uma das garagens.
"Mas aquelas caixinhas eram tão repelentes, querido! — disse a jovem senhora, vermelha, e com os olhos cheios de lágrimas. — Eu as olhei. Algumas tinham figuras tão horríveis nas tampas... Eram mofadas e velhas, e não tinham nada de bonitas. Além disso, ninguém mais usa rapé, então para que você as quer?"
O armário reapareceu na biblioteca, e Antoine guardava a chave. A Sra. Antoine pôs um vaso de flores sobre ele, e arrumou as cortinas das janelas de jeito a que o armário ficasse sempre à sombra.
E então, de repente, Antoine achou sua mulher intoleravelmente cansativa.
Ele sempre havia admirado sua parenta Rosemarie Bouchard. Era mulher inteligente e perversa, possuía um espírito sagaz e língua viperina. Ele sabia de seu caso com Henri Bouchard, como também sabia que ela possuía muitos outros interesses. Tinha algum talento para escrever "pequenos perfis" de pessoas preeminentes, escritos por ela, frequentemente apareciam nas revistas da moda, e mesmo em jornais. Presentemente Rosemarie estava em Washington, onde tinha muitas amigas entre as esposas de senadores e funcionários do Departamento de Estado. Andava escrevendo colunas ocasionais para o jornal de um sindicato, e Antoine se deliciava com sua inteligência, sabor picante, suas observações sutis e perspicazes sobre a situação nacional e a internacional. Visitou-a várias vezes. Aborrecia-o que ela ainda estivesse tão interessada em Henri, porém lentamente começou a ter esperanças para si próprio. Dessas visitas voltava muito estimulado e com a mente confortada, e era capaz de tratar sua pequena esposa com muita afeição. Após um estimulante jantar, um frappé doce era bem apreciado.
Rosemarie, por sua vez, começou a esperar pelas visitas de Antoine com crescente interesse e prazer. A semelhança de temperamento e modo de pensar entre eles, mesmo a semelhança física, a divertiam. Além disso, ela era de grande utilidade para ele. Podia informá-lo a respeito dos mais leves boatos, das mais ligeiras mudanças de opinião dos poderosos de Washington. Ele começou a anotar suas informações, enquanto se achava no pequeno e elegante apartamento dela. Discutia com ela muitas questões de importância e, embora perfeitamente cônscio de que ela era corrupta, traiçoeira e gananciosa, sabia poder dispensar excessos de precaução durante essas tardes com ela. Desejavam as mesmas coisas. Compreendiam-se. Podiam ajudar-se. Nos começos da primavera de 1940, estavam apaixonados. Ela não esteve mais com Henri — mesmo durante suas breves visitas a Washington — mas podia contar a Antoine muitas coisas a respeito do odiado parente, coisas de extrema importância para ele.
Devido a seu livre acesso aos salões de Washington, ela podia também contar-lhe muitas outras coisas. Agindo como sua espiã, ela procurou políticos, proprietários de jornais, preeminentes politiqueiros, mulheres poderosas, e, finalmente, foi capaz de pôr-se em excelentes termos com os homens altamente colocados do New Deal. Todos a julgavam meramente uma mulher brilhante e intelectualmente curiosa, de aparência encantadora, gosto excelente, e grande simpatia. Tudo que lhe contavam era relatado a Antoine, com as opiniões sutis de Rosemarie.
Quando o America Only Committee subitamente surgiu em preeminência, Rosemarie apareceu entre os organizadores — mas apenas sob sigilo: era por demais inteligente para permitir que seu nome fosse usado. Ela sabia que uma parte de sua família estava fornecendo as enormes quantias necessárias para sua existência e sua expansão. Por causa disso, foi procurada pelos funcionários do Comitê. Escreveu muito da propaganda que aparecia em seus panfletos. Escreveu muitos dos textos para rádio que eram lançados ao espaço por locutores comprados subornados e traidores. Antoine lhe fornecia certas informações e sugestões. Estava entendido, claro, que o nome Bouchard jamais aparecia de qualquer forma.
Foi Rosemarie que trouxe muitos senadores ao America Only Committee por meio de polpudos cheques, promessas, ou mesmo delicada chantagem. Rosemarie nunca apareceu na Embaixada germânica, e até a ouviram expressar seu desprezo a aversão pelo Terceiro Reich e por Hitler. Entretanto, era curioso que muita da propaganda escolhida de Goebbels aparecesse em seus escritos, inteligentemente transformada e disfarçada, mas ainda virulenta.
"Lembre-se: o motivo deve sempre ser americanismo, e muito patriótico" — prevenira Antoine. — "E apoie o ‘Constitucionalismo. Tudo deve ser muito digno, sólido e respeitável. Pode deixar os clérigos gritarem tanto quanto possível: tudo é desculpado sob o nome da religião. A propósito, você deve gravar neles que o motivo deles é ‘cristianismo’, em oposição a ateísmo, judaísmo e comunismo. Também é necessário que nos asseguremos os serviços de algum herói nacional, algum homem preeminente. Procure-o."
Portanto, foi Rosemarie Bouchard que achou o "herói nacional" que podia agir como o porta-voz do America Only Committee.
Capítulo 29
O Capitão August Jaeckle era de velha cepa germano-americana; nascera em Wisconsin, a 2 de janeiro de 1900. Aproximava-se agora dos quarenta e era de considerável beleza. Possuía aquela indestrutível mocidade de rosto e de aparência tão irresistível às mulheres, pois era de estatura mediana, cabelos claros, crânio de adolescente, e feições imaturas e um tanto estúpidas. Mesmo nessa idade ainda possuía uma murcha juventude; a mente por trás da lisa testa inclinada se petrificara nos catorze anos de idade. Era um grande atleta, frequentemente citado quanto à necessidade de ensinar à juventude a resistência física e a construir uma musculatura, e suas observações sobre a clássica tendência das escolas americanas eram muito fortes e desdenhosas.
"Vejam a Europa! — dizia, com profundo escárnio. — Temos de ensinar nossa juventude a honrar o corpo."
Como suas observações sempre se distinguiam por uma profunda estupidez, o público americano o considerava um verdadeiro oráculo. Deliciavam-se com fotografias dele. Com seu semblante sério e insípido, de feições pequenas e um tanto efeminadas, a madeixa de cabelos claros a cair-lhe na testa, seu ar de inocência e grave dedicação, os grandes olhos azuis-pálidos brilhando de fanatismo, atraía irresistivelmente as mulheres americanas e também certo tipo de homens. Não lhes importava que ele fosse um idiota e um ignorante poseur, sempre buscando apaixonadamente publicidade barata (apesar de sua aversão altamente anunciada pela "imprensa". Ele era um herói! Personificava a "juventude americana."
Um herói, na verdade!
Pois August Jaecklé, na tenra idade de dezessete anos, nobremente mentira a respeito de sua data de nascimento e se alistara no Exército americano em maio de 1917. Dois de seus irmãos já estavam servindo na Marinha.
"Eu costumava chorar, depois que mamãe me dava o beijo de boa-noite — gostava de dizer, com um doce sorriso retrospectivo, e esse seu arzinho tímido punha em convulsões de terno êxtase mulheres de meia-idade. — Eu não podia aguentar isso, pensar em George e Heinrich firmemente estabelecidos em seus couraçados, com o vento em seus rostos, enquanto eu desperdiçava meu tempo no Ginásio Shinehaha. Mamãe tentava consolar-me: eu era o mais jovem, o seu caçulinha! Não suportava pensar em mim juntando-me a meus irmãos na defesa de nosso país. Foi ainda pior para ela quando George foi morto no mar. Ela chorava muito. Mas havia algo em mim... talvez a voz de meu pai: ele foi morto na guerra hispano-americana, sabe, exatamente antes que eu nascesse... que me instigava a servir a meu país. George Washington e Lincoln sempre foram meus heróis. Assim, um dia dei-lhe um beijo de despedida. Ela não tinha a menor ideia de que não tornaria a ver-me por perto de dois anos. Mas eu sabia. Ela pensou que eu estava indo para as aulas. Mas fui a um posto de recrutamento."
Aí, ele sorria de novo, adoravelmente, com grande ternura para a visão daquele valente escolar marchando para a guerra, com o beijo de sua mãe ainda estampado em sua face infantil. Os olhos ficavam úmidos. A voz tremia. Dava uma respiração funda e trêmula em seu peito imaturo, ainda efeminado aos trinta e nove anos. Quase sussurrava: "Mamãe!" A esta altura, não era raro que senhoras sensíveis controlassem os soluços. Já então todos sabiam que a mãe Jaeckle morrera de pneumonia, durante a epidemia de influenza, sem sequer ver seu valoroso filho já nas trincheiras da França.
Também todos sabiam que August se tornara um herói quase da noite para o dia. Sozinho, destruiu um ninho de metralhadoras de quinze alemães (também rapazinhos), fizera vinte prisioneiros, e os fizera marchar para suas próprias linhas, tendo no rosto um olhar severo e exaltado. Ninguém, a não ser August, sabia que fora um pequeno atirador judeu, apanhado com ele e mais dez outros numa cratera produzida pela explosão de uma granada, quem realmente destruiu o ninho de metralhadoras, morrendo poucos minutos depois com uma bala no coração. Felizmente, uma granada de mão de outra cratera isolada destruíra as outras testemunhas desse ato de suprema perícia e heroísmo, deixando August sozinho e quase louco de terror. Ele se erguera gritando de sua própria cratera e, na corrida de volta a suas linhas, cruzara com os vinte alemães amedrontados em outra cratera. Exaustos, famintos, doentes e desesperados se renderam a ele com gritos de alegria. Na verdade, literalmente o perseguiram, implorando que os aprisionasse. Ele finalmente voltara a si, e fizera a vontade a seus "cativos".
Sempre vivia em seu estúpido e amedrontado coração o medo de que alguém, em algum lugar, pudesse saber a respeito do pequeno atirador judeu. Em consequência — e em virtude do mecanismo de autodefesa que opera tão obscuramente na alma humana — ele se tornara um antissemita radical. Durante os seus dias de escola nunca fora religioso. Mas agora se tornou um "cristão" militante, um odioso e fanático inimigo de tudo que fosse irreligioso. O mecanismo de defesa operando vigorosamente, a Rússia se tornou para ele o símbolo do "anticristo". Odiava todas as coisas com sabor de comunismo que, de modo peculiar, era para ele símbolo do judaísmo. Por vezes, à noite, quando diante do seu olho interno se erguia a fisionomia do pequeno atirador judeu, severo, repreensivo e desdenhoso, ele não podia dormir. Caminhara incansavelmente, transpirando, chorando, torcendo as mãos, todo o seu ser ardendo de ódio. Era então que desabafava nos gritos mais torpes e obscenos, ou em voz baixa e sussurrante, intensa de loucura.
Pois ele amava seu heroísmo. Amava sua publicidade. Usava suas medalhas com egotismo apaixonado, apesar de toda a sua propalada "modéstia e timidez".
Aos trinta anos casou com uma viúva rica e jovial, uns dez anos mais velha que ele. Algumas senhoras fátuas declararam que ela era para ele o "símbolo materno"; e na verdade muitas vezes o ouviram confessar timidamente, com um olhar profundo para sua mulher, que "Emma se parece muito com a minha querida mãe". Depois de um ano de casamento, começou a chamá-la "Mama", embora ela não tivesse tido um filho. A viúva era mulher de não pequena inteligência, e possuía considerável perspicácia. Embora não gostasse de ser chamada de mamãe (pois era bonitona e tinha grande estilo), ela nunca o demonstrou. Seu primeiro marido fora apenas um gordo negociante de notável desonestidade, e a seu respeito nunca houvera nada para inspirar rapsódias na imprensa. Na verdade, como fizera o seu dinheiro fornecendo cobertores ordinários para o Exército, preferia a obscuridade. Assim a Sra. Jaeckle usou orgulhosamente a sua nova fama, transferiu uma considerável fortuna para o marido "menino", sorria-lhe em público, muitas vezes alisando-lhe (com ostentação) a mecha rebelde, e posava com ele, de modo juvenil, para fotógrafos de imprensa. Também deu entrevistas para repórteres femininas, nas quais gorjeava sobre o querido August, "sua doce juvenilidade, simplicidade, mente profunda e científica, e louvável timidez". Isso depunha em favor das habilidades histriônicas da mulher, pois conhecia muito agudamente a mesquinhez mental do marido, sua estupidez, ignorância, avareza e petulância. Sabia-o, também, capaz de apenas uma grandeza: odiar. Desprezava-o. Mas lhe era grata por elevá-la do anonimato, pois era mulher inteligente, de talentos e realizações.
Contudo o público, embora adorador, tem um novo herói a cada dia. August não podia competir para sempre com belos atores de Hollywood, jogadores de futebol, cantores de rádio, e o mais recente e colorido gangster. A Sra. Jaeckle viu a nuvem de adoradores se diluindo no ar. O brilho das medalhas já não era o bastante para deslumbrar os caprichosos olhos do público.
A Sra. Jaeckle era realmente esperta. Mais: tinha um olhar autêntico para homens verdadeiramente grandes e nobres. Entre seus amigos havia um cientista, um conde belga, que na ocasião lecionava trigonometria em alguma obscura universidade de Nova Jersey. Aparentemente estava condenado a passar sua vida nessa estagnação quando, subitamente, descobriu um novo sistema de matemática que o ergueu, por algum tempo, à mesma fama precária do mais recente assassino italiano de Chicago. Apenas poucos e brilhantes homens podiam pretender compreender o último sistema no domínio da mais clássica das artes: a matemática. Todavia o aplauso dos jornais e o mistério tornaram o público cônscio desse novo herói, embora onde residisse seu heroísmo o homem comum não pudesse dizer...
Então, um homem compreendeu, um homem entre os cinco que achavam que o sistema não era mistério para eles. Claro, esse homem era o Capitão August Jaeckle, agora quase esquecido. A fama nem sempre traz recompensas lucrativas. O conde belga estava bem cônscio dessa verdade amarga e não hesitou muito mais de uma hora de aceitar o cheque de dez mil dólares da Sra. Jaeckle, uma pensão anual permanente de dois mil dólares e uma pequena casa novinha perto do campus da universidade. Por essa recompensa recebida na calada, ele deixou que soubessem — com muita relutância — que o Capitão August Jaeckle estudava com ele há muito tempo. Sendo que o Capitão August, em sua timidez, nunca havia permitido que o público adivinhasse sua secreta devoção pela matemática.
"Foi sempre uma espécie de vício que tive" — confessou August, corando e piscando muito os olhinhos brilhantes.
Dois de seus antigos professores no Ginásio de Shinehaha ficaram muito espantados com tudo isso, mas compreendendo que não adiantava nada refutar, concordaram em ser entrevistados, com fotografias, e declararam que "o querido August sempre fora o garoto-prodígio em matemática em suas classes". Ficaram muito gratos pelos cheques substanciais enviados pela ainda mais grata Sra. Jaeckle.
A fama da matemática serviu por um ano de nova e elevada publicidade para August.
A Sra. Jaeckle era infatigável. A ânsia de notoriedade era uma doença naquele corpo de cinquenta anos de idade. Quando a nova fama começou a declinar, buscou febrilmente novos campos para August conquistar. Fez alusão a divórcio. Os jornais enlouqueceram! Ela negou os boatos. Isso serviu por dois meses. Ela e August quiseram adotar duas crianças. Fotografias de uma multidão de órfãos apareceram nos jornais, com grandes cabeçalhos indagando apropriadamente: "Será este?" August, por sua vez, ficou muito interessado por aviação, mecânica, economia, problemas sociais. Era uma autoridade sobre o Presidente Roosevelt — a quem odiava. Fez conferências. (A esposa escreveu as conferências.) Viajou, falando sobre praticamente todos os assuntos, sempre tímido, modesto e juvenil.
Nesse ínterim, a fortuna da Sra. Jaeckle começou a mostrar sintomas de desgaste, devido às novas teorias sociais da Administração. O que despertou nela um amplo e histérico ódio. Achou eco em August, que mais que tudo temia a pobreza e a obscuridade. August começou a falar sobre o "bolchevismo americano", "o novo comunismo americano", "a ditadura de Roosevelt", "conspiradores internacionais contra o americanismo puro." Sugeriu que o mundo feminino e o Lar estavam na mira de nefandos conspiradores. Estava novamente famoso.
August foi convidado pelo Governo alemão para visitar o Terceiro Reich, e ver por si mesmo como a nova ordem estava operando na Alemanha, como a propriedade privada, a empresa e a iniciativa privadas eram recompensadas e encorajadas, como a pura feminilidade era protegida, como a juventude era treinada em cultura física, como era reverenciado o Lar. Acompanhado pela "Mama" August foi à Alemanha: foi festejado, fotografado, seguido por multidões (cuidadosamente pastoreadas por tropas de choque em posições estratégicas para os fotógrafos), e condecorado pessoalmente por Hitler. Voltou para a América, estonteado com a adulação, seu mesquinho e impuro coraçãozinho inchando de orgulho e emoção. Foi consultado por funcionários do Departamento de Estado sobre a "verdade" a respeito da Alemanha, e suas observações lhes deliciaram os corações. Sua primeira conferência, após a volta, foi uma apologia do antissemitismo germânico. A segunda declarava que a Alemanha era invencível no ar, em terra, e no mar. A terceira: que Hitler era um semideus!
"Devemos aprender que existe um novo espírito surgindo no mundo!" — gritou, para um auditório de gordas senhoras de meia-idade que gostavam de ouvir falar do masculino desdém de Hitler por tudo que fosse feminino. "Devemos aprender que a correnteza da evolução humana não pode ser prejudicada por tolos idealistas e democratas desgastados! Não podemos fugir à dinâmica revolução da alma humana, como é expressa na política. Política é História! Na Alemanha se ouve o estrondo de um poderoso renascimento do mundo! Por mais que cerremos os ouvidos, o trovão penetrará. O futuro está na Alemanha! Não podemos silenciar sua voz. Podemos apenas acompanhá-la, se formos covardes, ou marchar com Hitler, na vanguarda, se temos coragem, orgulho e o espírito da verdadeira América em nossos corações."
Sempre falava com ardor e autêntica paixão, pois ultimamente o rosto do pequeno atirador judeu tinha um modo terrível de encontrá-lo todas as noites, quando ele estava só.
August estava famoso outra vez, mais famoso que nunca. A indignação, o escárnio e o furioso desprezo de seus inimigos apenas o faziam mais famoso. Violentas controvérsias ocorreram em toda a América, na imprensa, em fóruns públicos, em salões e em cozinhas. O Bispo Halliday fez uma série de palestras no rádio sobre esse "vibrante jovem herói americano que ouviu o apelo do Futuro". Organizações subversivas, que já se formavam às escondidas — usando nomes heroicos como Amigos da Constituição Americana, Guardiães da América, Soldados de Washington, etc. — convidaram-no para falar.
A guerra deu a August sua maior oportunidade. Ele fez inúmeras conferências sobre a loucura de "intervir nos conflitos europeus", e de dar ajuda e conforto à Rússia, a arqui-inimiga de Hitler. Hitler era o baluarte contra o comunismo universal. Mais ainda: nós não tínhamos nada com a guerra. Hitler nunca, em nenhum momento, sonhou atacar a América. Que ele pretendia fazê-lo foi mentira de "intervencionistas, comunistas, anticristãos, banqueiros internacionais, provocadores de guerras que desejam lucros com as mortes de nossos rapazes, americanos de primeira geração, Moors (mouros, termo eufemístico para judeus), políticos do New Deal, que querem uma guerra que os mantenha no poder", e praticamente todos que discordassem de August. Seu slogan "O Trovão Chegando" inspirou um pequeno e bem-sucedido volume escrito por Franz Haas — mais tarde acusado de agente do Governo alemão.
O público americano, suando em secreta e terrível inquietação desde o horrível ataque à Polônia por Hitler, finalmente se tornou selvagemente vociferante e excitado. Muitas regiões, antes adoradoras de August, começaram a desprezá-lo, a chamá-lo de louco, de herói de fancaria, mascarado, charlatão insignificante, bobo presumido, soleníssimo idiota, ignorante e tapeador. Em sua ira, viam o herói como ele era, e sua fúria contra ele era fúria contra si mesmas por ter sido parte do seu cortejo de adoradores. Suas pretensões à erudição foram desmascaradas. Uma de suas professoras, que nunca cessara de lamentar sua duplicidade, e que tinha um ancestral que lutara e sofrera com Washington, agora declarou sua loucura e a sedução que sofrera por parte da Sra. Jaeckle. Todavia, como ninguém nunca entendeu a fama da matemática de qualquer maneira, essa trêmula voz mal foi ouvida.
Homens sérios e inteligentes atacaram August na imprensa, no púlpito, e no rádio. Esfolaram-no vivo. Expuseram-no à zombaria de seus ouvintes esclarecidos. Um a um, demoliram seus tolos argumentos. Denunciaram-no como um simplório e um imbecil, ator barato, e puseram em dúvida sua lenda de heroísmo e sua alegada aversão por publicidade.
Entretanto, como esses homens eram inteligentes cavalheiros de ciência, sabedoria e compreensão, o povo americano antipatizava com eles intensamente. Preferia os gritadores que defendiam August, pois esses gritadores eram violentos, coloridos, dramáticos e maliciosos. Suas mentiras eram extravagantes e monstruosas, e inspiravam a delícia das massas. Pregavam o ódio mais desprezível, e as massas se contorciam de lascívia sadista.
"Minta para o povo, procure agradá-lo em seus preconceitos, faça com que deseje sangue — especialmente o sangue dos indefesos — faça-o odiar, faça-o ansiar por morte e destruição, e pode fazer dele o que quiser", disse o Bispo Halliday, um astuto servo de Cristo, e também amigo querido e servente do Barão von Teckle, Chargé d’Affairs na Embaixada alemã.
No Sul, onde viviam americanos de antigo sangue britânico, August era amaldiçoado. Em muitas partes do Oeste isso também era verdade, exceto nas regiões cheias de descendentes de alemães. Grande parte dos adeptos de August estava entre as populações das cidades do Norte, originárias da Polônia, Itália, Alemanha e Irlanda. Após uma conferência de August, muitos judeus foram atacados nas ruas de Nova York. O Bispo Halliday estava deliciado!
Tudo isso, no entanto, enquanto fazia August muito famoso, ou infamado, não aumentava a sua fortuna, ou melhor: a da Sra. Jaeckle. August estava maduro para a subversão.
Rosemarie Bouchard conhecia muito bem a Sra. Jaeckle e a procurou muito discretamente. Os detalhes nunca foram conhecidos. Mas, subitamente, August se tornou funcionário do America Only Committee, e sob seus auspícios adquiriu alta e sólida respeitabilidade. Rosemarie poliu os escritos dele, escreveu muitas de suas conferências públicas. Ele, que no passado só havia adorado a si mesmo, começou a adorá-la, a segui-la, a tocar-lhe a mão timidamente, a sonhar com ela. Essa mulher morena e vital, que de modo nenhum parecia "Mama", nem a Sra. Jaeckle (agora enorme de gorda, informe e bigoduda), lhe perturbava os sentidos. Trabalharia para ela sem qualquer recompensa a não ser seu sorriso, e a promessa contida nesse sorriso.
O Capitão August Jaeckle tomou-se uma das mais importantes e perigosas figuras da história contemporânea americana durante o primeiro ano da Segunda Guerra Mundial.
Rosemarie Bouchard encontrara seu herói para o America Only Committee. A facção de Antoine ficou altamente satisfeita.
Capítulo 30
Antoine, com os gestos graciosos e maneiras despreocupadas que herdara do avô Jules, serviu outra dose de Cointreau no delicado copo do tio Christopher. Sorria ao fazê-lo. Christopher recostou-se na cadeira, ergueu o copo contra a luz, apreciativamente, e também sorriu.
— Então, recebeu também a Águia da Aviação — observou Antoine, voltando a sentar-se e erguendo o copo numa saudação. — Bom julgamento por parte do velho Cara de Pedra. Pague ao diabo o que lhe deve, ele geralmente escolhe o homem certo. Então não voltará à Flórida?
— Ficarei transando entre Windsor, Flórida e Detroit. Temos planos de construir uma grande fábrica em Buffalo, também, e talvez em Los Angeles. Henri sugeriu que o Governo britânico já se aproximou dele com uma oferta para ajudar na construção das fábricas. O plano pague-e-leve em breve estará em operação. Sempre existe um meio de contornar a Lei de Neutralidade, e o bom velho Hugo está trabalhando para essa finalidade no Departamento de Estado.
Antoine riu:
— Jogando as extremidades contra o meio, o habitual jogo Bouchard. Nesta guerra, faremos isso por algum tempo. Não que eu o aprove, claro. Temos nossos planos. A Inglaterra não deve ser muito bem abastecida: esta é nossa ideia original. Você ainda concorda?
— Naturalmente! — replicou Christopher, gravemente. Girou o copo nos dedos descarnados e transparentes, e olhou o sobrinho fixamente com aqueles olhos gateados, tão enigmáticos e imóveis.
Os dois homens estavam confortavelmente instalados na grande e sombria biblioteca do castelo de Armand. Um belo fogo ardia na lareira de mármore negro; fora caía, maciamente, uma neve acinzentada, nesse princípio de dezembro.
— Acho que é melhor convocarmos uma reunião, Chris — sugeriu Antoine após um olhar pensativo ao fogo.
— Quanto mais cedo melhor. Hugo está vindo para casa passar o Natal, e sei que está trazendo com ele o Senador Briggs e um ou dois outros. Agora devemos mover-nos rapidamente. Sei de fonte certa que a França cairá na primavera. O que será o começo do fim.
O sorriso cintilante de Antoine brilhou na penumbra da sala aquecida:
— O fim! O fim do Império Britânico! Sabe, sempre odiei os ingleses seja pelo que há de francês em mim. De modo que tenho uma razão pessoal. Quanto tempo você pensa que se passará até que o Leão seja esmagado até o cerne?
Christopher ficou silencioso por alguns momentos. Depois disse, maciamente:
— Já pensou na Rússia?
— Rússia! Por Deus! Stalin assinou um pacto com Hitler, não é?
Aí Christopher sorriu seu curioso sorriso gelado:
— Conto-lhe mais alguma coisa. Hitler atacará a Rússia em algum momento do próximo verão.
— Impossível! — Mas Antoine olhava de modo penetrante para o tio. — Não até que a Inglaterra esteja acabada. Pensa que, na ocasião, a Inglaterra já terá soçobrado?
— Não — redarguiu Christopher, placidamente. — Não penso isso. E porque a Inglaterra não será esmagada, Hitler se voltará para o Leste. Sempre foi essa a missão dele, você sabe.
Antoine levantou-se rapidamente e começou a caminhar abaixo e acima. Franzia a testa, atentamente:
— Não gosto disto. Você nunca falou sem saber o que estava comentando, Christopher. Se Hitler ataca a Rússia antes que a Inglaterra esteja acabada...
— Então — disse Christopher, muito suavemente — ele está acabado.
Houve silêncio na sala, enquanto Antoine se movia silenciosamente acima e abaixo nos espessos tapetes. Repetidamente relanceava o olhar para o rosto magro e encovado de Christopher. Mas nada podia ler ali, embora o fogo avermelhado reluzisse nos ossos frágeis e tensos e tornasse vívidas as cavidades dos olhos.
— Ele deve ser detido — falou Antoine, por fim, parando diante do tio.
— Como?
— Vou a Nova York na próxima semana. Von Teckle deverá encontrar-se comigo lá.
— Isso é perigoso, Antoine. Se forem vistos.
— Não serei. Irá comigo?
Christopher hesitou. Depois assentiu:
— Sim.
Antoine tornou a sentar-se na beira da poltrona, os braços resistentes dobrados sobre os joelhos. Contemplou Christopher num longo silêncio, sorrindo de modo peculiar:
— Gostaria de ter certeza sobre você, Chris — observou, suavemente.
Christopher deu de ombros:
— Meu querido papai costumava dizer: "Nunca confie em ninguém a não ser no diabo."
— Você está nisso conosco profundamente, Chris — disse Antoine, reflexivamente, voltando-se para o fogo outra vez com uma expressão gentil.
Agora Christopher estava sorrindo, divertido:
— Por acaso está me chantageando?
Antoine, a sorrir-lhe também, fez um gesto latino com aquelas ágeis mãos morenas:
— Claro que não! Certamente não! Mas, como disse o meu querido avô, "Nunca confie em ninguém a não ser no diabo." Você não é completamente um diabo, Chris. Mas o velho Cara de Pedra há de ser duro de convencer.
Christopher o estudou curiosamente:
— Ainda tem medo dele, hein?
Antoine lhe relanceou um olhar cheio de ódio e de ira. Mas disse, com bom humor:
— Você deve lembrar que o meu querido papai é também pai de Annette. E enquanto permanecer este fato, Henri continua um Bouchard. Estive pensando...
— Sim?... — acudiu Christopher, prontamente.
Contudo Antoine voltou para ele os olhos negros e penetrantes, antes de responder:
— Acha que a Galeria Cinzenta esqueceu sua inclinação por nossa pequena Celeste?
Christopher não se moveu. Mas cada músculo nervoso ao longo de seu corpo estremeceu. Disse:
— Não sei. Terá esquecido?
Antoine tornou a levantar-se e se dirigiu à janela. Olhou para fora, a neve. Sem se virar, perguntou:
— E... se não o fez... qual é a sua posição?
Christopher depositou o copo cuidadosamente na mesa, muito corretamente, muito precisamente:
— Minha posição? Nenhuma. Celeste pode cuidar de si mesma, no que me diz respeito. Não é uma criança. O que faz é de sua própria escolha. Mas posso dizer-lhe uma coisa: ela não se divorciará de nosso moribundo Galahad.
— Mas, e após sua morte?
— Henri sabe onde lhe aperta o sapato. Ele não se divorciará de Annette. Pode imaginá-lo fazendo algo de tão indiscreto? Tão desastroso?
— Não — confessou Antoine, voltando-se da janela.
Meteu as mãos nos bolsos. Esse gesto em nada perturbava sua elegante aparência ou roubava graça à sua esbelta figura. Agora seu rosto estava numa tal sombra que Christopher não podia vê-lo. Mas lhe sentia o alerta maligno.
— Naturalmente você sabe que nossa angelical Celeste tem se encontrado com o Homem de Ferro num confortável rendez-vous de Nova York com absoluta regularidade?
Pela primeira vez Christopher demonstrou alguma perturbação. Suas mãos estremeceram nos braços da poltrona. Mas disse calmamente:
— É mesmo? Quem é seu informante?
Sentiu, mais do que viu, o sorriso perverso de Antoine:
— Não lhe posso dizer isto. Mas sei que a fonte é autêntica. Será possível que esteja perturbado, Chris?
Deliberadamente, Christopher relaxou, e disse:
— Não. Como observei antes, o caso é com Celeste. Mas a que leva tudo isso?
Antoine voltou à sua cadeira, sentou-se, inclinou-se para o tio, sorriso amplo e brilhante:
— Sim, você está nisto conosco bem profundamente, Chris. Henri poderia estar interessado em saber o quão profundamente. Guardamos minutas, você sabe. A propósito, ele ainda não tem a menor ideia?
— Posso votar por isso — disse Christopher, mantendo um tom de voz neutro. — Se tivesse, não acha que ele teria se mexido antes disso? Ainda pode esmagar-nos. Sim, como você tão sutilmente salientou, estou muito metido nisso. Mas, como lhe perguntei há um momento: a que nos leva tudo isso?
— Só isso — replicou Antoine, docemente: — Se minha irmãzinha ouvir falar desse rendez-vous delicioso, calculo que imediatamente se divorciará da Geleira Cinzenta. E... se houver um divórcio... — Adejou rapidamente as mãos, e fez com os lábios um gesto como se soprasse uma pena.
— Henri estará acabado — concluiu Christopher. — Bem acabado. Meu gordo irmão o atirará para fora de Bouchard, bônus ou não bônus. Claro, em tal caso, Henri poderia ser levado a arruinar Bouchard. Pensou nisso?
Antoine estava silencioso. O rosto moreno se franzia secamente. Os olhos se fixaram no rosto sem sangue de Christopher, cuja boca sorria de leve.
— O plano, seu plano, cheira mal — disse Christopher, ainda em tom gentil. — Não podemos arriscar o esmagamento de Bouchard. Já ouviu falar em Sansão? Há algo em Henri que me lembra Sansão. — Deteve-se, depois continuou:
"Se ele destruir Bouchard, destruirá a si mesmo, diria você. E quanto a você? Você é Secretário de Bouchard. Gostaria de fazer parte da destruição?
Antoine não respondeu. Começou a esfregar a boca franzida muito delicadamente com o dedo indicador. Isso não lhe era habitual. Christopher viu o gesto, e subitamente foi como se ocorresse uma espantosa explosão em seu peito. Recordou aquele gesto, delicado, reflexivo: era do seu próprio pai. Agora ele estava vivo, ardendo, estimulado, com o mais fantástico e irresistível ódio por Antoine. Suas mãos agarraram os braços da poltrona, e suas narinas transparentes se dilataram. Por algum truque das luzes brincando nas feições de Antoine, tão morenas, tensas e estreitas, era o rosto de Jules que estava voltado para Christopher.
— Você não gostaria de destruição — ele repetiu, numa estranha voz rouca.
Antoine começou a sorrir:
— Então é assim... Você ainda está bem envolvido com a sua querida, hein?
A explosão de ódio incontrolável em Christopher ainda o sacudia. Mas disse, com bastante calma:
— Suponha que deixemos minha irmã fora disto. Apenas destaquei que você não poderá arruinar Henri sem arruinar a si próprio. Quer arriscar?
Ficou surpreso quando Antoine disse pensativamente:
— Gostaria de ver o testamento do velho idiota. Naturalmente, Annette terá sua parte. Haverá também a minha parte. Haverá alguma cláusula, naturalmente, para que Henri seja mantido como presidente de Bouchard. Entretanto, eu gostaria de conhecer os termos exatos do testamento. Tem alguma ideia? Afinal de contas, papai é seu irmão.
— Nunca fomos muito ligados, você deve lembrar-se — salientou Christopher. Seu triunfo era pouco menos desastroso em seu efeito físico sobre ele do que o seu ódio. — Jamais confiou em mim.
— Vocês empregam a mesma firma de advogados. Você poderia descobrir, Chris. Algumas perguntas discretas...
Christopher estava calado. Mas sorria outra vez. Ele se regozijava intimamente. Pela primeira vez triunfava sobre o pai ao triunfar sobre Antoine.
Antoine suspirou, abanando as mãos outra vez:
— Sim, como você observou, o plano cheira mal. Eu gostava muito dele. Havia envolvimentos pessoais, também. Entretanto, eu o terei em mente. Se formos forçados a usá-lo, você não objetará.
— Por que o faria?
Antoine subitamente sentiu-se aliviado quando pensou em algo:
— Manteremos as coisas quietas por um ano. A esse tempo, muito provavelmente, já não importará. O velho Cara de Pedra não estará em posição de esmagar Bouchard. Ainda assim, gostaria de conhecer aquele testamento.
Estudou atentamente Christopher:
— Eu também sou louco por minha irmã.
Christopher riu um pouco;
— Você sabe o quanto ela adora Henri. Annette não é uma imbecil. Eu não ficaria surpreso absolutamente se ela tivesse alguma ideia das vadiações de Henri. As esposas sempre sabem por alguma danada intuição. Se não fez objeções no passado, não fará agora.
— Pode ter sido obrigada a isso.
Christopher acendeu um cigarro:
— Eu não contaria com isso. E agora, poderíamos deixar de lado esse assunto? Temos coisas mais importantes para discutir, eu acho, do que o estado dos corações das mulheres.
Antoine começou a rir amavelmente:
— Gosta do nosso herói, Jaeckle? Está nos custando cinco mil dólares por mês, mas vale isso.
— Foi um ato inteligente — confessou Christopher. — Cinco mil dólares? Saem de que bolso?
— Do fundo geral, naturalmente. Rosemarie manobrou a coisa muito bem. Em nossa próxima reunião, sugerirei considerável aumento nos fundos para o Comitê. Ele agora tem mais três comitês subsidiários que também precisam de financiamento. Especialmente no Sul, entre os Ku Kluxers. Estamos considerando também o ângulo negro. Negros no Sul, judeus no Norte, mexicanos no Sudoeste, trabalhismo no Leste. Um programa muito nítido, posso dizê-lo. Podemos desorganizar tanto o maldito país que ele deixará de olhar para a Europa, durante algum tempo. Precisamos disso, enquanto completamos nossos planos. Hitler deve ter o campo limpo: não deve aborrecer-se por preparativos alarmistas na América. Deve ser estimulada a desunião. Não será difícil. A população não tem sequer o cérebro de um piolho.
"Rosemarie é uma moça brilhante. A família não a apreciou devidamente. Está agora organizando uma sociedade pacifista a ser denominada ‘Mães da América’. Todas as mamães nos espasmos da libido aderirão com entusiasmo, para proteger seus ‘meninos’. Tínhamos começado a subsidiar Halliday também, como sabe. Três mil por mês. Nossa próxima providência será organizar a classe média. Já ouviu falar daquele canalha de Nova York, o Patrick McHenry? Há anos vem bradando que Roosevelt está decidido a liquidar a classe média, mas ninguém lhe deu ouvidos por lhe faltarem fundos. Pretendemos fornecê-los.
Christopher ouvia atentamente. A intervalos balançava a cabeça, com ar de grave aprovação.
— Daremos a Roosevelt o bastante para pensar no que há em casa sem perturbar seu terno coração a respeito da Europa — acrescentou Antoine. Deteve-se: — Acha tudo isso muito cru? Falta delicadeza? Quando é que foi necessário usar táticas elegantes com as massas? Especialmente as massas americanas?
— Eu não disse que achava cru — disse Christopher.
Antoine pensou em algo mais:
— A propósito, ouviu o mais recente comentador, Gilbert Small? Estamos delineando um plano para que Jaeckle o denuncie como comunista, instrumento de Stalin, um provocador de guerra, intervencionista e mercenário do New Deal e enganado pela Inglaterra. Temos um dossiê a seu respeito. Uma pena que não seja judeu. Não é sequer um nova-iorquino, o que é sempre bom para nosso ramo de propaganda. É do Meio-Oeste, sendo sua mãe nativa do próprio Estado de Martin Dies. Tudo isso nos desarmou, temporariamente. Ele também é, infelizmente, um herói de guerra. Tentamos descobrir uma conexão entre ele e os comunistas espanhóis, mas devo confessar que seus despachos para seu antigo jornal, o New York Times, eram finos exemplos de reportagens neutras e desapaixonadas. Mais: como sabe, ele escreveu um livro sobre a Rússia que para sempre o barrou dos domínios de Stalin. Entretanto, para fins públicos, ele é um comunista. Pressionamos a cadeia de radiodifusão que lhe permite transmitir suas bobagens. Porém, por alguma razão misteriosa elas são resistentes, apesar das ameaças. E, mistério outra vez, ele está adquirindo uma turba de adeptos na América. Já o ouviu?
— Sim — disse Christopher, pensativamente. — Ouvi. Seus escritos são excelentes. Exatamente a quantidade certa de fogo, e muita lógica. Simples também, e emocionantes. Não é o estilo dele, sempre monótono e do tipo de reportagem. Imagino quem estará realmente redigindo esses trabalhos...
— Tentaremos descobrir isso, também. Mas permanece um mistério. Ele é perigoso para nós. Está ligado à American Freedom Association. Eu também gostaria de saber quem está financiando essa Associação. Nenhum de nós, pode estar certo.
A fisionomia de Christopher estava apropriadamente séria e interessada.
— Naturalmente — continuou Antoine — nosso America Only Committee tem até agora mais de três milhões de membros, enquanto a American Freedom Association tem menos de dois milhões, se tanto. E nosso Comitê está aumentando a cada dia. — Riu: — A Associação cometeu o engano de empregar cavalheiros e sábios, com exceção de Small. Ao passo que nos concentrávamos em vagabundos, incitadores da populaça, e mentirosos. Consequentemente, sempre seremos mais poderosos na América do que a Associação.
Ele estava se animando. Seu amor pela intriga era exaltado. Christopher o observava atentamente:
— Recentemente você esteve de visita a seu sogro, Boland, a respeito de embarques de petróleo e alumínio para a Alemanha? E quanto ao Canadá? O embarque de níquel?
— Vou vê-lo quando estiver em Nova York, Chris. A Itália tem bastante alumínio para Hitler. Mas petróleo e níquel são outras matérias. O problema do níquel será solucionado na próxima semana. Nossa subsidiária no Canadá já recebeu suas ordens. É só questão de uns discretos navios para a América do Sul... o que também está sendo arranjado. Porém mais importante do que isso: vou procurar o marido de Phyllis e seu sogro, o Morse Nacional, na próxima semana. Hitler vai precisar de fundos imensos em futuro muito próximo. Podem ser arranjados empréstimos através de Bancos na América do Sul, para não mencionar o Banco da França e o Banco da Inglaterra, e outros. O Dr. Schacht se encontrará com nossos representantes na Suíça em alguma ocasião durante os próximos três meses. A propósito: Phyllis, a irmã mais nova de Rosemarie, está organizando as Catholic Wives and Mothers of America, para ajudar nosso Comitê. Esperamos venha a ser uma potente organização.
Houve uma pancadinha na porta, que se abriu mansamente, mostrando o rostinho redondo e rosado da Sra. Antoine:
— Chá, queridos! — ela trinou carinhosamente. — E a querida Annette também está aqui, tio Christopher. Acabaram seus negócios muito, muito importantes?
Capítulo 31
Havia um grande fogo em um dos amplos salões, e ali, como se acocorados em redor do calor e da luz na imensidade de alguma caverna primitiva, cheia de sombras indistintas e de teto obscuramente esculpido, lá em cima, sentavam-se a jovem Sra. Antoine, Annette e Armand. A luz do fogo brilhava roseamente nas pratarias e no reflexo rosado das xícaras de chá. Por trás deles espreitavam as formas do pesado mobiliário e os dorsos espelhantes de longas mesas, como animais pré-históricos, entrevistos à luz tremeluzente. Haviam sido corridas as cortinas das janelas, cortinas que iam do chão ao teto e eram do formato de aberturas de catedral. Porém o vento rugia de encontro a elas como uma forte presença resistente. Nos quietos intervalos se podia ouvir o silvar seco da neve. Por vezes o fogo fulgurava e mostrava os escuros retratos nas paredes, os rostos espectrais aparentemente voltando à vida por um instante.
Antoine e Christopher se juntaram ao grupo perto do fogo. Antoine era todo afabilidade, o sorriso cintilante completamente radiante e cheio de risos. A Sra. Antoine, serenamente servindo o chá, de tempos a tempos lhe relanceava o olhar ternamente, o rostinho redondo e rosado florescendo de saúde e placidez, a silhueta baixinha já denunciando traços da próxima maternidade. "O querido Tony é tão inteligente! — pensou para si mesma. — "Ele brilha mesmo num dia como este." Ela era muito feliz.
Armand abrira um grande guardanapo branco sobre os joelhos. Como de costume, sua roupa estava amarrotada e manchada. Entre os espaços de suas madeixas grisalhas, o crânio brilhava. Envelhecera muito nos últimos três meses, mas andava mais calmo, quase contente, desde o casamento do filho. Por trás dos óculos, os olhinhos pretos estavam menos assustados, menos apreensivos. Entretanto, quando viu Antoine com Christopher, suas feições achaparradas se contraíram e disse, numa voz estranha:
— O inverno chegou cedo este ano.
Christopher ergueu a cabeça, alerta, e voltou os enigmáticos olhos para o irmão. Mas Antoine comentou, ligeiramente:
— Guerras sempre trazem invernos prematuros e cruéis.
— Que andaram vocês dois conspirando, novamente? — perguntou Armand, limpando migalhas dos lábios grossos. Sorriu, mas o sorriso era outra vez inquieto, medroso e astuto.
— Gostaria de saber? — disse Christopher, e um relâmpago cruel e divertido lhe passou no rosto magro.
Armand ergueu as mãos e as agitou. O prato balançou precariamente em seus joelhos: segurou-o quando ia a escorregar, com seu conteúdo.
— Não, não! — falou apressadamente e com outro sorriso amedrontado. — Acabei com tudo isso. Tudo que quero é que me deixem em paz.
Enxugou uma ou duas gotas de chá do colete. Christopher observou que a mão lhe tremia. O velho, seus olhos procurando refúgio, encontrou sua filha, Annette.
— Tony jamais conspira: ele é alegre demais — disse a jovem Sra. Antoine, graciosamente enchendo xícaras para o marido e o "tio Christopher."
— A queridinha quer dizer que não tenho miolos para "conspirar" — falou Antoine, destramente beijando a mãozinha gorducha que lhe entregava a xícara.
A Sra. Antoine sorriu, satisfeita:
— Como você torce o sentido de minhas palavras! Não quis dizer isso, Tony, e sim que você é bonzinho demais e feliz para importar-se com qualquer coisa além de seus livros e seus quadros. E alguns desses quadros são tão horríveis... Especialmente aquele... aquele Renoir. Aquela mulher gorda, completamente sem formas.
— À luz do sol, seu corpo havia de parecer um Renoir — comentou Antoine galantemente. — Toda gordinha e rosada e sombreados madrepérola.
A moça corou:
— Como sabe, garoto malcriado? Nunca me viu à luz do sol.
Annette, depois de cumprimentar o irmão e o tio com um fraco sorriso, nada havia dito. Sentava-se junto ao pai, o vestido preto fazendo-a parecer mais frágil que nunca. O rostinho triangular estava completamente perturbado, e parecia haver encolhido, diminuído ultimamente. Porém os grandes olhos azuis, tão cheios de luz, estavam mais gentis e mais profundos que nunca. A luz do fogo cintilava em sua cabeleira loura de um modo que ela parecia rodeada por um halo.
O vivido olhar de Antoine se demorou nela pensativamente por um momento. Depois ele disse:
— Onde está o Homem de Ferro? Não veio com você, Annette?
— Não. Teve de ir a Washington esta manhã. Presumo que se refere a Henri? — replicou Annette, com seu calmo e brilhante sorriso.
— Acho Henri um amor! — gorjeou a Sra. Antoine, olhando em torno contentinha, e amando seus parentes. — Ele me diz as coisas mais amáveis. Disse-me na semana passada que eu era exatamente aquilo para que fora feita, e que você me merecia, Tony. Não é lindo?
— Muito! — respondeu Antoine, meio de esguelha. Christopher ria, aquele riso silencioso e virulento que fez sua cara de caveira parecer assustadora à luz do fogo. Antoine tornou a voltar-se para a irmã: — Veio sozinha, coelhinha? Por que Celeste não veio também? Pensei que fossem muito amigas.
Annette mexeu o seu chá e aceitou um pequeno sanduíche do prato dourado que a Sra. Antoine lhe oferecia. Sua fisionomia estava calma:
— Celeste está em Nova York: uma discussão de última hora com os decoradores. Creio que há um par de lampiões de prata em Madison Avenue que ela quer e os decoradores são violentamente contra eles. Ela pretende acabar com as discussões e trazer com ela os lampiões.
— Então — disse Antoine, vagarosamente, olhando para Christopher, e sorrindo malevolamente — você e Peter estão sós em suas tumbas. Você em sua tumba quente, e Peter em seu mausoléu de vidro e cromo. Deveria tê-lo convidado, Mary.
Por um instante Mary ficou embaraçada:
— Oh! tenho convidado tio Peter e tia Celeste com frequência, querido. Mas nunca vêm. Desde outubro não vêm aqui. O querido tio Peter me deprime: parece tão doente... E o Dr. Gordon acha que não devo ficar deprimida.
Christopher já não sorria. Suas feições tinham a cor e a textura de gesso, outra vez. Sorveu o seu chá pensativamente. Antoine sorria diabolicamente. Zumbia suavemente sob a respiração.
— Celeste espera ter a nova casa completamente pronta lá pelo Natal — observou Annette. — Já nos convidou para o jantar de Natal. Todos da família que estejam em Windsor na ocasião. Faltam poucas coisas para completar a casa.
— Tal como os lampiões da Madison Avenue — concordou Antoine, sorrindo para ela.
Por um longo momento irmão e irmã se olharam num silêncio subitamente rígido. O rostinho de Annette estava pálido, os olhos brilhantes:
— Tal como os lampiões — ela concordou, por fim. Sua mão não tremia quando ergueu sua chávena.
Enquanto a olhava, o rosto de Antoine perdeu seu olhar malvado, tornou-se escuro e fechado à luz ondulante. Havia em seu peito uma dor peculiar, uma dor muito estranha. Afastou-se dela, mas sabia que ela ainda o fitava, indomável em sua fragilidade. "Ela sabe..." — ele pensou.
— Ouviu algumas notícias pelo rádio hoje, papai? — perguntou a Armand.
Armand apressadamente mastigou e engoliu um pedaço de bolo antes de replicar:
— Não. Nunca as ouço. São muito deprimentes. Já tenho a minha dose de perturbações. Estou deixando que o mundo se agite por si mesmo. — Sorriu pouco à vontade, e novamente seus olhos buscaram refúgio.
— Ouvi William Benson esta tarde — chilreou a Sra. Antoine. — Sempre pensei que devemos manter-nos informados. E as coisas são tão emocionantes agora, tão excitantes! É fácil ficar amedrontada. Mas o Sr. Benson é tão tranquilizador! Diz que devemos manter-nos calmos, e sensatos. Devemos apenas ser espectadores, e guardar a nossa paz. A Europa não é da nossa conta. Hitler não nos ameaça. Há três mil milhas de água, diz ele, e os provocadores de guerra não podem ultrapassá-las.
— Talvez os aviões possam — disse Annette, olhando afetuosamente a esposa de seu irmão.
Porém a Sra. Antoine estava "por cima":
— O Sr. Benson tocou nesse ponto, Annette querida. Nenhum avião poderia fazer uma viagem de ida e volta. Além disso, Hitler não está absolutamente interessado em nós! Esta é uma briga europeia; estão sempre brigando, essas estranhas criaturas de nomes bizarros. Não há nada conosco, o Sr. Benson é tão inteligente! Tem uma porção de argumentos que não compreendo muito bem, mas sei que são inteligentes. Ele compreende tantas coisas, mais do que a pobrezinha de mim...
Christopher olhou para Antoine:
— Esse Benson não é o novo comentarista da Rede Verde? E não é o homem da Associação Americana de Industriais?
Antoine estava muito malicioso:
— Não sabia disso. Tanto quanto sei, ele está na meia hora da Limonada Limey. Limonada Limey! Vocês têm de admitir que nós, americanos, temos um inconsciente senso de humor.
Armand estava dando sinais de inquietação:
— Temos de falar a respeito da guerra? Não teremos coisas mais agradáveis para discutir?
Havia medo de verdade, e angústia, naquele rosto gordo e intumescido.
— Tal como a Lista? — sugeriu Antoine. Voltou-se para a esposa: — O que é esta noite? Fígado? '
A Sra. Antoine empertigou-se. Sacudiu para ele o dedinho rosado, com um sorriso:
— Ora, ora, Tony! Hoje é quinta-feira, e sempre temos fígado às quintas. É tão bom para papai! Cheio de vitaminas, e sangue, acho. É bom para você também.
Antoine estremeceu exageradamente, e os outros riram.
— O que você tem para o jantar hoje, Annette? — perguntou à irmã.
— Na verdade, não sei — ela sorria ao responder. — Creio que é frango. Nossa governanta mencionou isso esta manhã, acho. Ou talvez o capão seja para amanhã. Por quê?
— Se for capão, ou qualquer outra coisa menos fígado, irei com você para sua casa.
O rostinho da Sra. Antoine estava franzido como se estivesse prestes a chorar:
— Oh! Tony, como pode ser tão mau? Desde sexta-feira que não janta conosco. Não vai realmente sair esta noite! Creio que há cebolas para você, se as quiser com o fígado.
Ele lhe deu um tapinha na mão:
— Se Annette não tiver capão, ficarei para o fígado — prometeu. — Sou louco por capão. Em Nova York até me chamam Capão...
— Duvido — falou Christopher — duvido mesmo! Poderia citar exemplos.
Até Armand riu da piada. Porém Mary olhou de um rosto jovial para outro, muito espantada:
— Nunca entendo as piadas de vocês — queixou-se. — Por favor, expliquem-me esta.
— O tio Christopher estava apenas sendo vulgar, bichinha — disse o marido, dando-lhe palmadinhas no rosto. — Eu não lhe sujaria os ouvidos.
Christopher estava consultando o relógio:
— Quase seis horas. Se não se importa, Antoine, gostaria de ouvir nosso misterioso Gilbert Small esta noite.
— O rádio? — exclamou Armand. — Temos de ouvir essa máquina berrar?
Mas Christopher já se havia levantado e se encaminhava para o alto armário Chippendale onde ficava o rádio. Uma vez ligado, um momento depois uma calma voz masculina invadiu a grande sala:
"Aqui fala a sua KLDB. Temos o prazer de trazer-lhes de novo a esta hora o Sr. Gilbert Small, autoridade em casos europeus. As opiniões do Sr. Small não são necessariamente as desta estação. Ele não tem patrocinador comercial, portanto fala francamente, como quiser.
Houve uma curta espera. A chávena de Armand tiniu irritadamente em seu pires, e ele suspirou e se mexeu ruidosamente em sua cadeira.
— Não sei por que... — murmurou.
— Posso dar-lhe mais chá, querido papai? — perguntou a Sra. Antoine. Começou a conversar brilhante e claramente enquanto a voz grave e firme do Sr. Small emergia do rádio. Antoine virou-se para ela e disse, suavemente:
— Queridinha, quer por favor fechar a boquinha por um momento?
Ela o fitou inexpressivamente, boquiaberta, piscando. Olhou tristemente para Annette, mas Annette inclinava-se para diante em sua cadeira, olhos fixos no rádio. Christopher estava de pé junto do armário, cabeça inclinada.
"Hoje — dizia o Sr. Small — os nazis assassinaram dez mil homens, mulheres e crianças na Polônia. Hoje, mil estudantes tchecos foram mortos a bala em Praga. O mais velho tinha dezessete anos. Hoje, num pogrom em Munique, duas mil crianças judias foram arrastadas dos braços de suas mães e embarcadas em trens de gado para a morte. Hoje, vinte intelectuais austríacos foram assassinados numa adega em Viena.
"Existe uma grande calma na América. Esta noite, num estádio de Nova York, dois famosos pugilistas estão lutando por uma bolsa de cinquenta mil dólares. Esta noite, num teatro de Nova York, um cantor de rádio está atraindo um auditório de seis mil frementes mulheres e moças, que suspirarão e desmaiarão umas sobre as outras enquanto a doce voz dele as emociona da cabeça aos pés. As ruas da América estão cheias de homens e mulheres carregando pacotes de presentes de Natal. Em Hollywood, Marianne Vincent anunciou que pretende, muito em breve, divorciar-se do quinto marido. Eu disse que estamos calmos. Não. Estamos muito excitados. Temos coisas muito importantes em que pensar. Mas nenhuma dessas coisas se refere aos acontecimentos na Polônia, na Tchecoslováquia, em Munique ou Viena. Ora, Polônia, Tcheco- Eslováquia, Munique e Viena estão tão longe, e as pessoas são tão estranhas... Não são realmente nossos irmãos, nossas irmãs e nossos filhos. São criaturas à parte.
— Muito verdadeiro! — murmurou a Sra. Antoine, feliz, esquecendo a censura do marido.
Olhou em volta para os habituais sorrisos afetuosos. Mas todas as fisionomias estavam graves, afastadas dela. A cabeça de Armand descaíra para o peito; suas mãos estavam flácidas, como que penduradas nos braços.
"Esta noite — continuou o Sr. Small — quando ouço tais coisas, tenho a mais curiosa visão de certo jardim ao acaso. Um jardim totalmente mítico, vocês hão de concordar. Há um grande silêncio no jardim; acima das enormes árvores escuras o pôr-do-sol é rubro como fogo, e arde vividamente. Até os pássaros estão quietos, e o rio próximo corre sem um som, a superfície esbraseia com uma luz carmesim. Há paz no jardim; as flores inclinam as corolas.
"Mas de repente, trata-se apenas da minha visão, compreendam, vejo ali um morto, um jovem inocente. Seu rosto adormecido está coberto de sangue. É muito triste. Ele nunca fez mal a ninguém, jamais prejudicou a quem quer que seja. Apenas tem sido feliz, e apenas tem querido viver pacificamente com seu irmão. Entretanto, mão brutal e selvagem deu-lhe a morte. Onde está o assassino? Esconde-se em algum lugar entre essas árvores, acocorado à sua negra e confusa sombra, as mãos a cobrir-lhe o rosto suado.
"O ocaso escurece. E então, de repente, uma ventania terrível e furiosa sopra por entre as árvores, curvando-as, empalidecendo-as, atirando-as contra o céu avermelhado. Os pássaros gritam nos ramos. As flores ficam pálidas como a morte e penduram suas cabeças, caindo ao chão. E de além do vento vem uma voz formidável, ecoando pelo espaço: ‘Onde está Abel, teu irmão?’ "
"De algum lugar, fora dessa caverna de troncos retorcidos, fora da fúria e turbulência do vendaval e da Voz cósmica, vem um fraco murmúrio: ‘Serei o guardião do meu irmão?’
A voz do Sr. Small silenciou subitamente. Mas o ar ainda vibrava com sua lembrança. Christopher ergueu o rosto imóvel e olhou para Antoine, que sorria largamente. Armand não se mexeu. Poderia estar morto, ou adormecido, esparramado em sua poltrona. As pequenas mãos de Annette se agarravam a seus joelhos. A Sra. Antoine sentava-se boquiaberta junto ao fogo, piscando, espantada e confusa.
Então a voz do Sr. Small ergueu-se num elevado arco de som acusatório:
"Tornei a ouvir a Voz; e devo novamente avisar a meus ouvintes que tudo isto é apenas um sonho meu. E a Voz gritava: ‘Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão chegou até Mim.’
Deteve-se outra vez, com paixão, e então prosseguiu:
"Vocês me dirão, meus ouvintes, que não são Caim, que não mataram Abel no pacífico jardim, que não é o seu sangue que brada contra vocês. Mas eu lhes digo que são Caim, que mataram Abel, que é o sangue dele que está gritando contra toda a América, contra o mundo inteiro. Se não erguermos nossas mãos, hoje, na Polônia, na Tchecoslováquia, em Munique e em Viena, damos nossa aquiescência ao verdadeiro assassino. Damos a aquiescência do silêncio. Sabemos que está ali o jardim da morte. Mas estamos fora, na cidade, celebrando e adorando nossos pugilistas e nossos cantores de rádio, nossas prostitutas de Hollywood. Se ouvimos a Voz que do espaço gritava para nós, apenas dissemos ao maestro da banda para bater seu tambor mais alto, e que seus trompetistas toquem mais ensurdecedoramente. A coisa não é conosco. Caim não estava nos ameaçando. Havia o rio entre o jardim e a cidade, e o rio nos mantém a salvo dele. Muito longe para que ele nade. Além disso, tratava-se apenas de uma briga entre Caim e o irmão, e não nos dizia respeito. Sempre soubemos que os dois irmãos brigaram durante anos, e isso se tornara muito aborrecido.
"Não ouvimos a Voz quando se afastou de Caim e gritou para nós: ‘E agora tu és amaldiçoado pela Terra, que abriu a boca para receber, de tua mão, o sangue de teu irmão: Fugitivo e vagabundo serás na Terra’.
"E isso, meus amigos, é no que a América se tornou hoje: um fugitivo e vagabundo na Terra, se escondendo e se lamuriando em teatros e estádios, enquanto Abel jaz morto no jardim. Deve ser uma visão horrível para Deus, ver-nos aqui. E deve estar doente.
Outrora, calculo, Ele se orgulhava de nós. Outrora, éramos valentes, fortes, bravos e cheios de indignação contra opressores e assassinos. Agora nós os desculpamos. Agora os financiamos. Agora lhes enviamos mais armas para matar mais inocentes. Agora silenciamos aqueles que desejam avisar-nos de que Caim está à nossa porta, o Caim que admiramos, financiamos, desculpamos, por meia dúzia de anos. Em futuras irradiações darei os nomes, esboçarei as maquinações dos homens que fizeram tais coisas, que conspiraram contra vocês, que estão abrindo as portas para Caim. Têm estado muito ativos. Ficarão mais ativos no futuro, mentindo para vocês, tranquilizando-os, decepcionando-os, para que vocês não se possam erguer e pedir armas contra seus inimigos, e vingança pela morte dos inocentes assassinados hoje, e o maior número dos que o serão amanhã. Sabem, eles acreditam que Caim pode ser sua arma contra uma América livre. Eles não querem a América livre. Desejam uma nação de escravos. Você. E você. E você.
"Serão bem-sucedidos? A alma adormecida da América brilhará mais uma vez em realidade, poder e paixão? Não sei. Só vocês podem dar a resposta. Sinto-me atemorizado. Atemorizado de que a América haja vendido seu sonho por um punhado de rebuçados.
"Há uns versinhos de Wordsworth que eu gostaria de citar-lhes agora:
‘Para onde fugiu o visionário raio?
Onde estão agora a glória e o sonho?’
Ele falou as últimas palavras lentamente, claramente, claramente, depois sua voz caiu em profundo silêncio. Christopher desligou o rádio e ficou parado perto dele. Ele e Antoine trocaram um olhar agudo.
— Farolagem melodramática — comentou Antoine. — Se isso é o melhor que ele pode fazer, não oferecerá perigo.
— Não sei — resmungou Christopher. — Não estou tão certo disso. — Voltou lentamente para junto do fogo. — Lembre-se: melodrama atrai a populaça.
— Mas não se há baionetas em suas costas. Todos são surdos a qualquer apelo que inste com eles para lutar, ou ponha em perigo suas barrigas. Ouvirão mais prontamente a um homem que os aconselhe a esconder-se no porão, e lhes prometa barriga cheia se mantiverem a boca fechada.
Agora Annette falou, a voz leve estava vibrante, os olhos azuis brilhando estranhamente à luz do fogo:
— Você tem uma opinião muito má a respeito do povo americano, não é, Antoine?
— Minha querida — ele replicou, ligeiramente —não se trata de apenas uma opinião: é conhecimento pessoal. Existem alguns idiotas que acreditam que os americanos ainda podem sentir o impulso de erguer-se por um ideal, de sacrificar-se para que outros possam viver. Não creio nisso. Como o nosso Sr. Small destacou tão pungentemente: eles preferem as prostitutas de Hollywood, os lutadores em busca de prêmios. Uma nação assim não tem mente, nem espírito, decência, orgulho ou inteligência. Como vê, sou muito franco.
Annette estava silenciosa. Mas seu pequeno corpo estava tenso como uma lâmina de aço.
— Acho o Sr. Small horrível! — gorjeou a Sra. Antoine. — Ele não passa de um provocador de guerra, como o Sr. Roosevelt. Quer que nossos rapazes morram em solo estrangeiro. Apenas pelos judeus, ou os tchecos, ou seja lá quem for. Ouviu o Capitão Jaeckle na outra noite? Ele disse que ninguém quer atacar-nos, e além disso há três mil milhas de água entre nós e Hitler. Alguém devia expulsar esse Sr. Small do rádio. Quer levar-nos à guerra, e nós não queremos! As mães não deixarão os provocadores de guerra levar nossos rapazes para morrer.
Antoine gesticulou para a esposa, mas fez uma careta para Christopher:
— Aqui fala a voz do povo americano — disse, sardonicamente. — Que mais quer você?
Ninguém deu atenção a Armand. Estava de olhos fechados. Parecia dormir. Mesmo quando as visitas se levantaram para ir embora, ele continuou imóvel em sua poltrona.
Mais tarde nessa semana, Christopher se fechou com Henri. Falou durante uma hora, enquanto Henri ouvia e tomava algumas; notas.
— Sim, acho que é uma boa ideia você ir com ele a essa conferência — falou Henri. — Isso é muito interessante, na verdade. Naturalmente, ele nem suspeita?
— Ele sugeriu que eu estava "nisso profundamente" — falou Christopher, rindo. — Tem a mão ligeira na chantagem, mas a mão é inocente. A propósito — acrescentou, curiosamente — existe algo a respeito das irradiações de Small que me soa familiar. Você não tem ideia de quem redige seus textos, ou quem está pagando pelo tempo dessas irradiações?
Henri o olhou calmamente, com um pálido sorriso:
— Não! Por que deveria?
Capítulo 32
Hugo Bouchard, segundo irmão de Peter, e Assistente do Secretário de Estado, vivia com magnificência em Washington com a bela esposa, de solteira Christine Southward, cujo pai fora "Billie" Southward, Presidente do Partido Republicano da Pensilvânia. Hugo herdara essa elevada posição após a morte do rotundo e afável Billie; e devido à sua própria personalidade, que era afável, de riso fácil, possuindo aquelas qualidades extrovertidas de companheirismo, bom humor, aberta simpatia e moderação, tornara-se duas vezes mais popular como o sogro — o que era um verdadeiro feito. Advogado de consideráveis talentos e sagacidade, ainda recebia um grande salário de Endicott James de Nova York (agentes de publicidade e procuradores de Bouchard & Sons). Sua fortuna pessoal, aumentada pelo milhão e meio da esposa, era gigantesca — fato que ele, por muitas razões, guardava modestamente em segredo. Seu irmão, Jean, declarara que ele era um taco de veludo castanho com cabo de ouro, observação a que não faltava perspicácia. Pois Hugo Bouchard era de estrutura larga e sólida, sem frouxidões ou protuberâncias, e tinha uma presença imponente que mais inspirava confiança do que timidez. Rosto avermelhado, brilhantes olhos dourados cheios de riso e de amizade, nariz rombudo e amável, grande boca com dentes excelentes e brilhantes. Seus cabelos, outrora também avermelhados, eram agora uma massa prateada e ondulada, embora ele estivesse apenas com cinquenta e poucos anos. Tudo isso, combinado com certo esplendor, calor e solidez, fez dele o político ideal, em quem muitos confiavam, antipatizado por poucos, e admirado por quase todo mundo. Com todos esses admiráveis recursos, certa franqueza genuína e uma voz afeiçoada e brincalhona, muitos poucos discerniam que ali estava um consumado velhaco, um homem avarento e implacável, sem escrúpulos e sem consciência. Mesmo sua esposa desconhecia isso, pois que ele era de boa moral em questões sexuais, e era pai devotado das três filhas: Elsie, Alice e Joan. A única pessoa que realmente o compreendia, e lhe tinha uma aversão sem reservas, era o filho mais novo, Hilary, agora com quase dezessete anos.
Ninguém realmente gosta de ser "compreendido". Hugo não era exceção. Tomara uma quase imediata antipatia por Hilary, quando a criança mal tinha uma semana de nascida. Pois Hugo era daquela natureza inteiramente masculina que tende a adorar filhas e sente indiferença pelos filhos. Ele idolatrava as três meninas. Christine idolatrava Hilary. Isso aborrecia Hugo. Hilary era pequeno, moreno e sólido, "como o danado do Jules" — declarou Hugo, desdenhosamente. (Ele não admirava seu parente, Antoine, como decididamente não admirava Jules, seu primo em segundo grau, e avô de Antoine.) Como Hugo tinha grande admiração pelo tipo físico "ariano", que acreditava fosse alto, robusto, e rudemente masculino — acompanhado pela alvura da cútis e franqueza de compostura — a elegante pequenez de Hilary, suas delicadas mãos e feições, vivos olhos negros, sorriso leve — sutil mesmo na sua infância — sua tortuosidade e graça latina o afrontavam e lhe causavam aversão.
Mais ainda: Hilary exibia inteligência rara e brilhante, e infinito interesse por conhecimentos. Também amava tudo que fosse belo, de modo que adorava sua linda mãe. Christine não era muito brilhante, mas possuía a intuição do amor: assim, todos os seus presentes para o filho demonstravam um gosto delicado e consideração. Mesmo na sua infância, ela lhe enchia o quarto de objetos de arte que havia diligentemente desencavado em Nova York, Paris, Viena e Londres. Ficava sem fala, em apaixonada admiração por sua capacidade e graça, e não achava música mais doce de ouvir do que os elogios que os professores faziam a Hilary. Aos dezesseis anos foi aceito em Harvard. Hugo, a despeito de si mesmo, apesar de seu desdém pelo estudo e por todas as artes intelectuais, foi temporariamente dominado por um relutante orgulho. O forte de Hilary era a matemática, essa arte grande e clássica. Hugo queria que o rapaz estudasse leis, e, com frequência, em tom de brincadeira declarava que em breve Hilary seria de grande valor para os Bouchards. Também observou que enquanto Antoine era um adequado "substituto" de Jules, Hilary é quem herdaria a fama sutil de Jules Bouchard.
Essa observação traía a profunda ignorância de Hugo a respeito do filho. Pois Hilary, embora possuindo notável semelhança com Antoine, e com o avô de Antoine, e mostrando aqueles aparentes traços de caráter — esperteza, tortuosidade, cinismo e capacidade — que haviam sido as características salientes de Jules, tinha uma forma de espírito totalmente diferente, que poucos já haviam discernido.
Pois, espantosamente, essa jovem cópia de Jules se parecia com o tio Peter em caráter. Era honrado, bravo, firme e compassivo, e delicadamente sensível. Porém, diferente de Peter, que tendia a ser abrupto, zangado, agressivamente honesto e sombriamente quieto em certas ocasiões, Hilary era perspicaz, cético, cínico e desiludido por natureza. Mais: possuía enorme e delicado tato, e um senso de humor altamente desenvolvido, um equilíbrio de temperamento incrível em alguém tão jovem, e uma aguda consciência da necessidade de manter sua própria opinião praticamente sempre. Nele havia pouco de sonhador, mas, estranhamente, muito de místico. Sua conversa era deliciosa, sua aparência muito soignêe — para citar a enfatuada Christine.
"Ele se parece demais com Goebbels para me agradar" — era a disparatada observação de Hugo. — "Todos os malditos Bouchards latinos se parecem com Goebbels."
Essa observação, citada a Antoine e outros da "linhagem de Jules", não tornou Hugo benquisto entre seus parentes.
Desde muito cedo Hilary tomou uma aversão incessante pela Família, com poucas exceções. Só vira Peter poucas vezes, e embora compreendendo esse tio especial, e sentindo grande compaixão por ele, com pesar o considerava algo assim como um louco. Na opinião de Hilary, só loucos se desarmam, tornam-se vulneráveis, por motivo de sua própria integridade e honestidade. Acreditava Hilary que o caráter de alguém deveria ser conhecido apenas por si mesmo e por Deus, mas, preferivelmente, apenas por si mesmo. Dever-se-ia mostrar ao mundo apenas o que se desejasse que o mundo conhecesse e, como a virtude era sempre suspeita e a integridade escarnecida, esses traços deveriam ser guardados como um tesouro e revelados apenas em ocasiões extremas. Como consequência dessa filosofia, poucos dos Bouchards sabiam alguma coisa a respeito de Hilary, e ele era unanimemente declarado a completa réplica de Jules, mais ainda que Antoine.
Hilary tinha profunda afeição por Annette, uma ternura casual por suas três irmãs — que o adoravam, apesar da aversão de seu amado pai — indiferença completa por praticamente qualquer outro membro da família, e, estranhamente, um misterioso apego por Henri, a quem chamava "tio Henri", não ligando a desenredar as ramificações de relacionamento. Era muito equilibrado e demasiado frio para odiar fortemente, mas odiava verdadeiramente o pai: julgava-o um louco arrogante, um completo mentiroso, um perigoso velhaco, e um cão traiçoeiro. Como Hilary era demasiado egotista para dissimular essa fina opinião a respeito de Hugo, e por demais indiferente a ele como homem, a inicial aversão de Hugo não se poderia esperar que diminuísse com o passar dos anos.
Havia outra razão profunda e subterrânea para o ódio entre os dois. Embora Hugo adorasse todas as filhas — que eram elegantes, lindas e vivazes, e loucas por ele — a mais nova, Alice, era a queridinha. As duas mais velhas eram, como sua atraente mãe, não muito "brilhantes", embora amáveis e encantadoras. Mas Alice era capaz e inteligente, cheia de risos e de súbita seriedade, e possuía ávido interesse em viver. Era pouco mais de um ano mais velha que Hilary; haviam crescido juntos. À diferença de Hilary, tinha tendência a ficar alta. Tinha a mesma graça, tato e percepção aguda dele, bem como seus maneirismos insinuantes e gestos elegantes. Mais: muito cedo ele percebeu que ela possuía integridade e senso de honra; as duas mais velhas eram demasiado complacentes, amáveis demais e também felizes demais para ter caráter, a não ser encanto e delicioso egoísmo. A pressão de Hilary sobre a mãe, que por sua vez pressionou Hugo com determinação, é que resultou na ida de Alice para uma boa universidade para estudar Direito, ao invés de ir para uma escola de aperfeiçoamento para moças, que Hugo julgava mais de acordo para as moças Bouchard.
Alice era muito sadia, mas não agressivamente. Não tinha aquela aparência saudável, suada, aquela exuberância de natureza animal que tão frequentemente distingue as robustas fêmeas americanas. Como Hilary, detestava esportes. Sua pele, de um branco leitoso e bem macia, e as faces jovens, firmes e rosadas não precisavam de artifícios. Tinha os olhos dourados do pai e longos cílios cor de bronze e sua expressão era viva e ávida, porém profunda. A boca, um tanto grande, era doce, firme e forte, e brilhantemente colorida, de modo que não se tomava conhecimento do tamanho. Os cabelos, de dourado mais claro do que os olhos, eram lisos e lhe caíam nos ombros. Nela tudo expressava delicada força e fineza: excelente a sua aparência. "Grego clássico" — diria Hugo, orgulhosamente. E ainda tinha bom gosto, e natural simplicidade no vestir, o que lhe realçava a beleza.
Hugo, embora nunca fosse sutil, e mais malicioso do que sensível, muito cedo percebeu haver algum laço apaixonado entre a sua querida e o filho odiado, Hilary. Quando crianças, só desejavam a companhia um do outro. Hugo tentou enviar Hilary para uma escola militar, para que "fizessem dele um homem". Mas Christine se opôs violentamente. Hugo esperou. Esperou até Hilary ir para Harvard. Mas longas cartas eram trocadas entre irmão e irmã. Alice não lamentou a ausência do irmão. Mas tornou-se mais séria. Quando por sua vez se foi para uma universidade, escolheu uma não longe de Harvard. Hugo sabia que o filho e a filha passavam muitos fins de semana juntos em Nova York, em estado de completa felicidade e gentis relações. Para contra-atacar, frequentemente visitava Nova York indo ao encontro de Alice e levando-a com ele, deixando Hilary sozinho em estranho e sorridente silêncio. Hugo não tinha a elementar polidez de convidar Hilary para juntar-se a eles.
Como muitos homens com seu temperamento, Hugo tinha a mente obscena, de crua vulgaridade. Nas raras ocasiões em que era provocado, exibia violenta brutalidade, linguagem lasciva, e tremenda crueldade. Tinha o cuidado de ocultar esses traços a seus pares, mas seus inferiores os conheciam bem demais. Sempre suspeitava o pior de todo mundo. Em sua opinião, não havia mulher virtuosa: todas as mulheres (exceto sua esposa e filhas) eram vagabundas, prostitutas complacentes de mente suja. (Dos homens tinha opinião ligeiramente mais elevada, embora projetasse neles seus próprios reflexos.) Sinceramente convencido da vileza da humanidade, e da venalidade dos homens, suspeitava as maiores loucuras numa troca de sorrisos entre os sexos, na mais leve galanteria ou na mais inocente coqueteria. Tinha uma provisão de histórias depravadas. Todas enfatizando a sexualidade em sua forma mais crua e mais perversa.
Com uma mente assim, e com seu ódio incompreensível e aversão pelo filho, imaginou que o amor de Hilary por Alice era pervertido, impuro e perigoso. (Alice, claro, era a donzela pura sem a mais leve suspeita dos horríveis desejos do irmão.) Por fim, Hugo já não imaginava: acreditava saber, tinha certeza. Então seu ódio assumiu um caráter doentio, nascido de seu ciúme. Nunca lhe ocorreu estar precisando de um psiquiatra para vasculhar nas sombrias cavernas de sua própria mente.
Claro, Hilary sabia de tudo isso. Sua repugnância fora tão intensa que chegara a ficar física e mentalmente nauseado. Sentira indiferença pelo pai, e desdenhosa diversão, mas agora ele o odiava! Também ficou extremamente alarmado pela amada irmã. Mas sabia que nunca ousaria esclarecê-la a esse respeito. Fez suas cartas mais curtas e mais raras. Estava sempre muito ocupado quando ela sugeria encontrá-lo em Nova York. Nas suas folgas, forçava-se a fazer relações mais íntimas com amigos. Esse rapaz, que apenas completara dezessete anos, achou-se metido num espantoso problema do qual não via escapatória para si mesmo, a irmã, ou o pai. Pois via que, por gentilmente renunciar ao apego de Alice por ele, estava abrindo caminho para a obsessão do pai.
Via, também, que a melhor esperança de Alice escapar de uma situação horrorosa era através do casamento. Portanto, sempre que podia, perguntava-lhe se estava interessada em algum jovem. Quando se encontrava com ela em Nova York, frequentemente levava com ele colegas mais velhos. Nenhum interessou a Alice, até que o irmão apresentou a um jovem chamado Charles Miles.
Infelizmente, Charles provinha de uma obscura família de fazendeiros do interior do Estado de Nova York. No seu tempo de ginásio mostrara-se tão brilhante em pesquisa científica que recebera uma bolsa de estudos para Harvard. Entretanto, precisavam tanto dele em casa que não pudera aproveitar a oportunidade, e só quando estava com vinte e quatro anos sentiu-se livre para beneficiar-se dela. Na ocasião em que Hilary o apresentou a Alice, Charles estava com vinte e sete anos, invulgarmente maduro, pensativo, grave, talentoso e intelectual. E também paupérrimo.
Alice imediatamente apaixonou-se por ele. Esse rapaz magro, moreno, que — ela pensou ternamente — tanto se parecia com seu querido irmão, maravilhou-a, conquistou-a. Sua gentileza, atenção bem-humorada, bondade e interesse logo lhe inspiraram respeito e afeição. Após seis encontros, três deles a sós depois da discreta retirada de Hilary, ficaram noivos.
O alvoroço que aconteceu em Massachusetts Avenue podia ser ouvido três casas além. Não foi preciso muita astúcia por parte de Hugo para discernir a fina habilidade do jovem Hilary. O ódio de Hugo se tornou assassino, insano! Ameaçou Alice pela primeira vez em sua vida. Mas a moça, assustada, branca, se manteve firme. Fora avisada antecipadamente pelo irmão. Casaria com Charles Miles, disse ela, não importando o que acontecesse. Christine, embora não muito inteligente, era perspicaz. Suas vagas suspeitas se fortaleceram. Ficou ao lado da filha: se Hugo apertasse os cordões da bolsa, ela, Christine, providenciaria para que nada faltasse ao jovem casal.
Ninguém jamais fizera frente a Hugo Bouchard. Ele estava como um touro enraivecido. Teve acessos de fúria, guinchou, berrou, ameaçou com as coisas mais obscuras e aterrorizantes. Sua família, assustada, afastou-se dele. Christine tremeu vezes sem conta em seus agradáveis aposentos. Suas duas filhas mais velhas se arrastavam pela mansão, escondendo-se do pai. Alice foi para Nova York para ficar com sua parenta, a senhora Phyllis Morse, que era doida por ela.
Hugo estava desmoralizado e cheio de terror, bem como cheio de raiva, de ódio e de ciúme. Sentia agora a sua impotência. Desejava matar! Ficou afastado do Departamento de Estado, mesmo nesses dias importantes. Estava doente, numa agonia, frustrado, angustiado, e atormentado pela mais inominável das paixões. Naturalmente, ele as havia racionalizado: Charles Miles era um joão-ninguém servil e desprezível, um mendigo, um morto de fome, um caça-dotes, um vira-lata e um suíno. Horrível que um tipo assim ousasse erguer os olhos para uma moça Bouchard, esse canalha sem vintém, esse fazendeiro desengonçado, essa lesma rastejante. Não permitiria que Charles pisasse em sua casa. Ameaçou matá-lo, fazê-lo expulsar de Harvard, publicar uma provável folha de antecedentes policiais. Chegou a escrever ao diretor da Harvard, pedindo-lhe a expulsão de Charles. Se isso não fosse feito, ameaçou, não haveria mais dinheiro Bouchard a correr-lhe para os cofres. E notificou a universidade que Hilary seria retirado imediatamente.
Mas Christine agiu de novo. Hilary permaneceria: ela, Christine, pagaria sua instrução. Sem alarde, escreveu ao diretor, por sua vez pedindo que Charles pudesse continuar, e explicando que "o Sr. Bouchard estava apenas temporariamente zangado, mas em breve estaria recuperado".
Nessa casa desordenada e furiosa, Henri apareceu um dia quando dezembro já ia adiantado. Ouvira boatos do rebuliço, mas à sua moda característica, dificilmente acreditou que um homem sensato pudesse perturbar-se verdadeiramente por negócios referentes a qualquer mulher. Hugo soube dessa opinião do seu parente, e tratou de acalmar-se o suficiente para lidar com Henri exatamente dois dias antes do Natal. Tinha o maior receio e respeito por Henri, e nada mais desejava que sua boa opinião.
Capítulo 33
Henri não subestimava seu parente, Hugo, nem estava convencido de que aquele enganoso sorriso sincero, aquela amena afabilidade, aquela risada sonora e galhofeira eram atributos de um idiota. Sabia que Hugo, como homem, político, e Bouchard, era uma das pessoas mais poderosas do Departamento de Estado. Hugo foi quem trouxe os mais intransigentes para o lado que apoiou, perdoou e se desculpou por Franco, que impediu o embarque de alimentos, suprimentos médicos e materiais de guerra para as desesperadas cidades legalistas. Foi Hugo quem deturpou a opinião pública americana na crença de que os legalistas eram "vermelhos, perigosos comunistas e radicais, matadores de sacerdotes, e ateus". Mais tarde, depois da queda da República Espanhola, foi a influência de Hugo que acelerou embarques de petróleo e refugos, alimentos e munições para a Espanha angustiada e escravizada de Franco. Se muito de tudo isso achou seu caminho para Hitler, isso não era da conta de Hugo, nem do Departamento de Estado, que agira na boa e virtuosa fé americana.
Fora Hugo, que tinha profunda consideração pela política conservadora britânica, quem induzira o Departamento de Estado a proceder com precaução nos negócios europeus, e que havia inspirado admiração pelos Homens de Munique. Quando a opinião pública americana gritou indignada pelos embarques de sucata e petróleo para o Japão, foi Hugo quem inspirou a publicação pela imprensa desculpando os homenzinhos amarelos, e sugerindo que a China não era a virtuosa e nobre democracia tão docemente imaginada pelos americanos. A maioria dos homens do Departamento de Estado se parecia muito com Hugo: cautelosos, conservadores, fascistas em pensamento se não em intenção, homens de carreira, enfatuados e arrogantes, cheios de astúcia e ganância. Uma coisa possuíam em comum: uma profunda e aristocrata repugnância pelo "homem comum", "o gado sem miolos ou entranhas". (Embora "entranhas" fosse implicado mais do que dito, sendo os cavalheiros tão excessivamente refinados.) Hugo era mais robusto do que muitos dos afeminados cavalheiros do Departamento de Estado, e era muito mais perigoso. Eles pelo menos acreditavam estar protegendo sua "classe". Hugo, e outros como ele no Departamento, só cuidavam do status quo, sua riqueza e seu poder — que estavam absolutamente determinados a que permanecessem intactos. Um círculo ainda mais fechado acreditava que poderia ser necessário, em dia próximo, obter a ajuda de Hitler para subjugar as massas americanas — que andavam mostrando alarmantes sintomas de começar a pensar por si mesmas.
Foi Hugo quem ajudou vigorosamente na formação de uma política de desconfiança e ódio para com a "Rússia Vermelha", quem estivera por trás da exigência de que a Rússia pagasse em ouro por seus embarques. Dos discretos e fastidiosos corredores do Departamento de Estado vieram as publicações pela imprensa que minimizaram as forças russas, que "escarneceram" do pacto entre a Rússia e a Alemanha, que insinuaram os terríveis desígnios da Rússia sobre a paz e a segurança do mundo. A maioria dos cavalheiros do Departamento tinha a mais alta consideração por Mussolini; dois deles tinham medalhas conferidas por aquele esperto charlatão. Quando o General "Billy" Mitchell avisou o povo americano da necessidade de uma poderosa força aérea, foi o Departamento de Estado, liderado por Hugo, que manchou, destruindo publicamente o seu nome, partindo o coração daquele valente e trágico soldado. Os nobres efeminados temerosamente acreditavam que para a América estar a salvo era apenas necessário que permanecesse desarmada e se abstivesse de provocar gestos hostis por parte de Hitler e de Mussolini. Mas havia um círculo ainda mais restrito, composto por Hugo e os mais implacáveis e selvagens realistas, que desejavam que a América permanecesse desarmada por suas próprias e monstruosas razões.
E foi o Departamento de Estado que se submeteu timidamente à certa organização religiosa, que foi o mais terrível inimigo da democracia e do liberalismo em todo o mundo, mais forte e mais terrível do que o próprio Hitler. Por causa dessa organização, o Departamento de Estado foi inflexível em sua pressão sobre o Governo para recusar visto e passaportes para um torturado e moribundo gueto judeu. Os cavalheiros do Departamento, que tinham uma afetada repugnância de todos aqueles que não fossem diplomados por Harvard e não se pudessem gabar de avoengos entre os primitivos americanos (embora esses avoengos fossem prostitutas de Londres e presidiários varridos das sarjetas das cidades inglesas e transportados para a América), tinham uma aversão apavorada a pessoas que não pudessem falar inglês sem sotaque, ou cujas feições não estivessem corretamente de acordo com o tipo predominante de feições existentes no Departamento de Estado.
Em suma: foi Hugo quem esteve mais poderosamente por trás dos elementos timoratos, com espíritos de classe, fascistas, velhacos, e caçadores de feiticeiros do Departamento. Eles nunca eram vulgares, mesmo em seu desdém, ódio e suspeita do Sr. Roosevelt. Tudo que era liberado pelo Departamento brilhava de restrição cavalheiresca e frases polidas, e pálida elegância. As mais vulgares declarações de Hugo eram expurgadas e desodorizadas antes de tornadas públicas. Mas a conspiração lá estava, no entanto.
O Departamento de Estado oportunamente se manifestava, em tom queixoso, contra a França, a Rússia, a China. Mas nunca, nunca, contra a Inglaterra, a Itália ou Mussolini. Em algumas ocasiões reprovou alguns estadistas ingleses mais honestos e valentes sobre suas observações indignadas a respeito da fraqueza dos sentimentos da América para com Hitler. Esses estadistas, jovens, honrados e realistas, eram anátema para o círculo régio dentro do Departamento de Estado e eram desdenhosamente estigmatizados como "provocadores de guerra, desejosos de envolver a América nos conflitos europeus". O círculo régio não podia, na verdade, desprezar esses ingleses como não sendo pukka sahibs, pois a maioria deles era de descendentes de antigas e nobres famílias britânicas. Mas deduziam, com pesar, que não estavam preservando sua "classe" — o maior de todos os crimes.
Henri Bouchard sabia que a "panelinha" de Hugo formava apenas um segmento do Departamento de Estado, e que era implacável, vulgar, apropriada e grosseira. No entanto, influenciava muito perigosamente as demais "panelinhas" e, em seu poder combinado, poderiam sobrepujar o próprio Secretário. O Secretário nada podia fazer contra o libelo de que o Sr. Roosevelt era dominado pelos "judeus" (ao invés de pelo Departamento de Estado, o que seria mais apropriado), ou de que o New Deal se compunha de bandidos, intelectuais com estrelas nos olhos, "brilhantes jovens de Nova York, de ancestralidade dúbia", e comunistas. O Secretário aparentemente achou tudo isso muito risível. Também ele era um cavalheiro, e estava convencido de que cavalheiros não são eficientes.
Nesse ínterim, durante esses primeiros dias da guerra, o Departamento de Estado estava em total confusão. Sua natural inclinação pela Inglaterra, e reverência pela política inglesa (e a mais recente política inglesa de apaziguar Hitler e apoiá-lo) o fazia sentir uma simpatia natural e preocupação pela Inglaterra. Sem embargo, o velho hábito de apaziguar, aplacar, desculpar e apoiar Hitler ainda era muito forte. Nessa gangorra, portanto, eles ficavam muito compreensivelmente doentes do estômago, saltando no ar assustadamente, voltando à terra com fortes impactos, e assim desorganizando seus delicados sistemas nervosos.
Contudo, Hugo e sua realista "panelinha" não tinha a menor simpatia pela Inglaterra ou pela França, fato que cuidadosamente ocultavam a seus pálidos e delicados colegas: tinham seus próprios desígnios, seus próprios planos.
E esses desígnios, esses planos, eram bem conhecidos de Henri.
Henri, que descontara muitos dos boatos que lhe haviam chegado sobre a fúria frenética em casa de Hugo Bouchard, entretanto estava agora impaciente, cônscio de que muitos desses boatos deviam ser verdade. Hugo foi tão cordial como sempre ao receber o seu parente. Sua risada ainda era brincalhona. Mas Henri viu que o colorido avermelhado do rosto de Hugo já não era o habitual, que seu riso era forçado, seu aperto de mão foi úmido e alarmantemente trêmulo, seus olhos dourados estavam fundos e febris. Seu corpo avantajado também estava menos redondo e firme, sob as casimiras caras. Tinha um olhar perturbado, um nervosismo distraído, mesmo quando sorria ou fumava, ou contava alguma das suas piadas. Tinha sido sempre um bebedor prodigioso, mas agora engolia copo atrás de copo numa espécie de frenesi.
Um dos atributos de Henri era a capacidade de tomar conhecimento de condições predominantes e estudar como tirar vantagem delas. Poderia fazê-lo numa observação instantânea. Mesmo enquanto conversava amavelmente com Hugo, sua mente trabalhava, conspirando, conjeturando, negociando. Encorajava Hugo a beber, mas gentilmente recusava ter seu próprio copo reenchido mais de uma vez.
Hugo deu uma grande risada:
— Sempre com os pés na terra, hein, Henri? Sempre o Homem de Ferro! Você é um demônio esperto, mas eu sei tudo a seu respeito! Você nunca me enganou!
Henri sorriu, à vontade, e disse:
— Jamais cuidei de enganar quem quer que fosse. Além disso, sabe muito bem que não bebo muito. Não foi você quem disse, no último Natal, que meu uísque era uma lavagem?
Hugo riu ainda mais alto. Chegou mais para a frente e deu um tapinha afetuoso na coxa de Henri. "Está bêbado, — pensou Henri — porém mais de suas malditas emoções do que de uísque". Agora Hugo ergueu o dedo indicador e o sacudiu brejeiramente:
— Quem está buscando, hein? Você não veio até Washington deixando certa... Ora, deixa isso pra lá, não precisa fazer essa carranca! Quero dizer: não é uma visita casual, é? Você está atrás de alguma coisa, como de costume. Que é? Os rapazes não o vêm satisfazendo ultimamente?
Henri sorriu de novo. Observou Hugo atentamente. Apesar do barulho que fazia, Hugo tinha o ar de um homem que procura ouvir algo a distância. Por vezes se sobressaltava nervosamente, lançava um rápido olhar à maciça porta de madeira da biblioteca.
Henri disse ao que vinha, os descorados olhos, imóveis, fixos no rosto de Hugo que tinha contrações musculares:
— Estou encarregado de uma missão. De Annette. Gostaríamos de tê-los, a você e sua família, para o Ano-Novo. Sabe, vocês recusaram convite para o Natal, sob o pretexto de um compromisso prévio. Agora Annette não ficará satisfeita até que venham a Windsor.
Hugo chegou a abrir a boca para falar, depois a fechou rigidamente. Seu corpo pareceu encolher dentro da roupa. Sua mão grande e áspera bateu na longa mesa de carvalho ao seu lado, aumentando os movimentos enquanto fitava Henri. Mas disse, com bastante calma:
— Falarei com Christine. Quanto tempo se demora conosco? Até amanhã? Ela lhe dirá. Mas com certeza você sabe que Alice não está conosco?
Henri ergueu os sobrolhos:
— Não, não sabia. Como saberia? Onde está a menina? Ela é uma espécie de bichinho de estimação para mim, você sabe.
Hugo fez um som estranho:
— Ora, deixe disso! Vocês não estão murados, isolados lá em Windsor! Devem ter ouvido algo!
— Não estou interessado nos assuntos privados da família — disse Henri com impaciência. — Não são da minha conta. Espero o mesmo respeito pela minha vida particular.
Hugo se calou. Esquadrinhava Henri, desconfiado. Depois falou, roucamente:
— Bem, Alice não está conosco. Está passando as férias com aquela maldita Phyllis Morse, em Nova York. Prefere assim, parece. Filhos são o maior desperdício de tempo. Você deve dar graças por não ter nenhum. Bem, talvez iremos, Christine, Elise, Joan, e... — Subitamente parou. Seu rosto tomou uma expressão horrível, retorcido, cheio de ódio e de fúria.
"Então, é assim!" — pensou Henri, a mente trabalhando rapidamente. Ergueu o copo e fingiu beber. Disse, cuidadosamente, sem dar atenção à expressão do seu parente:
— E Hilary, naturalmente. — Depositou o copo. — Muitas vezes pensei no quanto ele se parece com o Antoine, de Armand. Você já notou a semelhança?
Hugo reprimiu uma praga involuntária. Os dedos que tamborilavam se apertaram; ergueu o punho e o bateu pesadamente na mesa uma ou duas vezes. Henri sabia muito bem com que aversão, repugnância e desdém Hugo considerava Antoine, e quão frequentemente havia sofrido sob os hábeis ataques e o leve ridículo do alegre jovem. Esperava que sua manobra tivesse sido inteligente, e não servisse apenas para enraivecer Hugo contra ele mesmo.
Quando Hugo tornou a falar, numa voz abafada e incoerente, Henri soube que a manobra fora, realmente, muito inteligente:
—- Sim, aquele maldito!, bem que percebi a semelhança! E a coisa é mais profunda, vai mais além: ele se parece com aquele suíno em caráter também. Afetado, ardiloso, mentiroso, cheio de mesuras, intrigante. Esplêndido filho para Hugo Bouchard! Um porco fedorento! O único filho que tenho, e ele tem de... tem de... — Sua voz ficou subitamente estrangulada e um fluxo arroxeado passou sob a sua vermelhidão. Seus globos oculares brilharam à luz das lâmpadas.
— Ora, deixe disso! Hilary é apenas um garoto! — disse Henri, observando-o agudamente. — É verdade que se parece com Antoine de modo notável, mas Antoine não é nenhum idiota, você bem sabe. É um brilhante conspirador. Exatamente agora — acrescentou, após uma pausa — está metido numa conspiração realmente tortuosa.
A expressão de Hugo mudou: tornou-se rudemente mal-humorada e inquieta. Levantou sua mão enorme e deu um puxão no lábio. Fitou Henri, e seus opacos olhos amarelos se estreitaram:
— Não sabia nada a esse respeito — murmurou, pouco à vontade. E passou a mão nas espessas ondas de cabelos brancos.
"Então — pensou Henri — é como suspeitei". E soube.
Henri tinha aversão a gestos de intimidade de qualquer natureza, e nunca cedia a eles com outros. Porém agora obrigou-se a inclinar-se para Hugo e dar-lhe uma pancadinha no braço:
— Hugo, você e eu sempre fomos bons amigos. Outrora nos comportamos brilhantemente. Lembra-se? Contra a facção de Armand; em outras palavras: contra a facção de Jules Bouchard. Não esqueci sua ajuda. Eu não poderia ter feito nada sem essa ajuda. Você me serviu, eu o servi. Existe um grande laço entre homens como nós. Especialmente quando servimos a nós próprios enquanto servimos a nossos amigos.
Embora resistindo pouco à vontade por alguns minutos, Hugo não se pôde opor a essa lisonja não muito sutil. Seu medo de Henri, e seu respeito, haviam aumentado com o passar dos anos. Tentou sorrir. Seus punhos relaxaram sobre a mesa.
— Nunca o subestimei, Henri, meu rapaz. Eu sabia a quem estava ajudando. Fiz como você sugeriu, quando no Departamento, e antes. Pode sempre contar comigo.
Henri se recostou em sua poltrona, e seu rosto se obscureceu:
— Creio que posso, Hugo. Mas, desta vez, a coisa é muito séria. Disse que Antoine tem estado conspirando. Conspiração perigosa. Não sei do que se trata exatamente. Mas preciso de sua ajuda.
Tão grande, agora, eram o alarme, a perturbação e as suspeitas de Hugo que ele momentaneamente esqueceu suas tragédias particulares. Começou a transpirar. Puxou do lenço e o passou na testa ampla, testa de estadista.
— Que maldita "conspiração" é essa? Não acredito nisso. Que conspiraria ele? Não ouvi falar nada.
— Confesso que também não ouvi muito, Hugo. Mas talvez eu seja médium — e Henri sorriu agradavelmente. — Sinto as coisas. Sinto algo no vento. Talvez você me possa dizer.
Porém Hugo deu de ombros, mal-humorado, e olhou para um ponto um pouco atrás dos olhos de Henri:
— Imaginação... — murmurou por fim. — Que conspiraria esse afetado idiota?
— Não subestime Antoine — avisou Henri. — Ele é esperto. Como seu filho, Hilary.
A isso, Hugo se sobressaltou com extraordinária violência. Seus olhos, postos em Henri, ficaram cheios de um fulgor amarelo. Rangeu os dentes; suas narinas se distenderam como as de um boi.
Ora, Henri tinha muita consideração por Hilary, mas sabia que este não era o momento para agrados. Acrescentou:
— Você subestimou Hilary no passado. Eu sempre soube disto. Como sempre soube que ele se parece com Antoine mais do que apenas fisicamente. Lisonjeio-me de conhecer os homens: esse é o meu negócio. Eu compreendo Antoine. Não sei o que anda buscando, mas tenho uma vaga ideia. Vê, estou lhe demonstrando muita confiança, Hugo: sei que você o merece.
Os punhos de Hugo se dobraram nos braços de sua poltrona de couro vermelho. Respirava forte. O clarão amarelo aumentou em seus olhos. Henri observava sua incerteza agonizante com resoluta proximidade.
— Que quer você? — perguntou Hugo, voz abafada. — Sempre quer alguma coisa. Você não me engana — repetiu.
— Sim — falou Henri, quietamente — quero alguma coisa. Quero sua ajuda. Quero que use sua influência para deter os embarques de sucata e petróleo para o Japão. Imediatamente.
Hugo sobressaltou-se, outra vez. Os dentes brilharam entre seus lábios. Contudo a voz estava curiosamente quieta e firme quando disse:
— Não.
Os dois se olharam em profundo silêncio. Henri parecia imperturbável. Não mexia um músculo. Sua expressão era plácida e controlada. Hugo estava como um touro encurralado, pronto para o assalto contra o inimigo. Esperou que Henri falasse novamente, mas Henri estava silencioso. Então Hugo falou:
— Por quê?
— Porque — explicou Henri, tranquilamente — não quero que o Japão fique mais forte. Penso que sua vítima derradeira é a América. Tenho consideração pela América, nem que seja apenas como campo para negócios proveitosos.
Então Hugo careteou, desagradavelmente:
— Tolice. Por que o Japão nos atacaria? Tem a China em suas mãos. E a China levará uma geração para ser dirigida. Se chegar a fazê-lo. Que lhe importa isso?
— Não partilho seu otimismo, Hugo. Pense que somos os próximos na agenda. O Japão se voltará para o Ocidente. Não gosta de nós, você bem sabe. Além disso, há os seus compromissos com Hitler. Está muito envolvido, confesso. Porém, do jeito que as coisas vão, Hitler ficará muito aborrecido conosco. Poderia induzir o Japão a atacar.
— Ele não atacará! — exclamou Hugo, com violência. Remexeu-se em sua cadeira, brincou com objetos na mesa, depois se voltou para Henri:
— Isto é pura tolice! Além do mais, não teria razão. Não vamos ajudar a Inglaterra. Isto é certo. Posso garantir-lhe.
— E eu — falou Henri, calmamente — posso garantir-lhe que vamos. Temos pegue-e-leve agora. Em breve, teremos algo de mais importante. Como sei? Não lhe posso dizer. Mas garanto-lhe que usarei toda a minha influência.
— Você! — exclamou Hugo. Explodiu numa risada rouca. — Desde quando os Bouchards ficaram tão danadamente patriotas? Desde quando ficaram do lado de "liberdade, Deus, e o direito"?!
Novamente esperou que Henri falasse, mas Henri não lhe fez a vontade. Então Hugo perdeu o controle. Começou a gritar:
— Deixe-me dizer-lhe algo! Não queremos que a Inglaterra vença, na Europa! Sabe disso! O meu pessoal não quer, e até mesmo a Inglaterra não o quer! Quer é uma paz negociada, e rápida. Por que iria ela destruir Hitler, e abrir-se para o bolchevismo da Rússia? Ela precisa de uma Alemanha forte para protegê-la. Como sempre. Esse foi sempre o seu jogo. No Departamento sabemos disso. Sempre soubemos. Assim como sabemos que a França cairá na primavera. Está tudo arranjado. E ainda vem você, respirando doçura e luz e "cremos em Deus", e querendo que atiremos todos os nossos planos no mar... Não, meu rapaz, não pode ser, realmente não pode ser.
Então Henri falou, em voz aguda e penetrante:
— E agora, eu lhe direi algo. O que diz a respeito da Inglaterra é verdade, de certo modo. Apenas de certo modo. Você fala pela chamada classe dominante na Inglaterra. Mas deixe-me dizer-lhe isto: em breve Chamberlain cairá fora. Eden ou Winston Churchill tomarão seu lugar. A "classe dominante" terá diarreia muito em breve, devido ao medo, ao terror. Porque o povo britânico está agora desperto. Não estou apenas profetizando quando digo que a Inglaterra não assinará uma paz negociada com Hitler. Lutará até o fim. Agora é: Hitler ou nós. Você quer Hitler na América?
Hugo o fitou, e lentamente empalideceu. Nada disse. Henri balançou a cabeça, severamente:
— Tenho uma suspeita, realmente tenho. Penso, na verdade, que você foi enganado por Antoine. Você é inteligente, Hugo, mas não tanto quanto Antoine. Ele não lhe falou sobre os seus planos, falou? Talvez você pense que ele é "todos por um, e um por todos". Tenho outra suspeita: creio que o Senhor Antoine está trabalhando apenas para si mesmo. Ele não tem muita consideração por você, Hugo, nem tem em alta conta a sua inteligência.
Hugo ainda estava sem fala.
— Acredito — continuou Henri, severamente — que Antoine o convenceu de que a Inglaterra cederá, assinará uma paz negociada com Hitler, e que Hitler dominará a Europa e fará excelentes negócios conosco. Estou certo?
Porém Hugo estava silencioso. De olhos arregalados, fitava Henri.
— Concedo-lhe o crédito de não haver sido completamente enganado por nosso fino manipulador, que o tem usado para seus próprios fins, Hugo. Concedo-lhe o crédito de guardar sua própria opinião. Agora, estou certo ou errado?
Sabia que seu ataque fora rude, calculado para ter efeito apenas sobre a mais brutal e exigente forma de mente. Seu desprezo por Hugo aumentou ao ver a selvagem e violenta incerteza, o egotismo atormentado nesses fixos olhos amarelos.
Tornou a falar, mas agora muito, muito quietamente:
— Hugo, quanto confia você em Ignatius O’Connor e Francis O’Malley, do Departamento?
Por um momento Henri pensou que Hugo não o ouvira, tão parada era sua expressão. E então Hugo disse, voltando a si:
— Por quê? Que tem você contra Iggy e Frank? — porém uma aparência manhosa lhe surgiu ao canto da boca.
Henri sorriu:
— Um belo truque: responder uma pergunta com outra pergunta. Mas eu conheço tudo a respeito desse truque: eu próprio costumo usá-lo. — Mudou sua expressão para uma de extrema gravidade, e ergueu a mão por um momento, deixando-a cair depois num gesto de resignação: — Muito bem. Vejo que não estamos indo a parte alguma. Devo confessar que estou desapontado. Você e eu sempre fomos amigos; melhor, trabalhamos juntos. Vim falar-lhe em confiança... mas vejo que não adianta...
Tirou a cigarreira, dali extraiu um cigarro, acendeu-o calma e pensativamente, como se sua mente já estivesse ocupada com outra questão. Hugo o observava, truculentamente, um punho apertado na mesa. Sentava-se na beirada da cadeira; parecia um perigoso leão, fulvo e superalimentado, traiçoeiro embora idoso.
Então ele disse, beligerantemente:
— Não vamos meter-nos nessa coisa, é o que lhe digo! O povo não quer isso. Sentimentos contra nós nos envolvem outra vez com a Europa, Roosevelt ou não Roosevelt. Nenhum político na América é bastante forte para convocar uma razão válida para atacar Hitler. Além disso, Hitler é muito popular aqui, devido à sua perseguição aos judeus. Você acha que pode conseguir que a populaça americana lute pela "liberdade"? — Seu olhar agora era de sorridente aversão: — E o que a populaça quereria com a liberdade? Digo-lhe que se Hitler aparecesse nas costas de Nova York, os ratos de sarjeta iriam ao seu encontro com flores! Eles o amam, é o que lhe digo. A liberdade nunca foi muito bem com estômagos americanos... o povo ainda tem lembrança da feliz e irresponsável escravidão.
Henri se permitiu sorrir:
— Você é um completo psicólogo, não é? Sabe, de certo modo sou obrigado a concordar com você: não ligo a mínima para a populaça. Mas ligo por mim mesmo, por Bouchard, por todas as nossas subsidiárias. Você confia em Hitler? — A expressão de Hugo mudou, tornou-se mal-humorada, porém ele nada disse. Entretanto seus olhos se estreitaram até ficar feito uns pontinhos de lua amarelada.
"Francamente, não confio nele — continuou Henri, pesarosamente. — Sou bastante cândido para admitir que, se julgasse que podíamos, eu consideraria certas coisas. Mas sei que não podemos confiar nele. Não o quero aqui. Nós, Bouchards, somos poderosos na América. Gostaria de manter esse poder. Você bem sabe o que ele fez aos industriais na Alemanha para ter uma ideia do que fará aqui.
"Não estou interessado na Inglaterra, ou na França. Deixe Hitler desmontar o Império Britânico, e ao diabo com ele. Quem se importa? Mas não o quero aqui. E virá para aqui, inevitavelmente, a menos que o detenhamos. Como? Por isso é que vim vê-lo: para descobrir se podemos preparar algum programa.
Hugo começou a esfregar o queixo, mas ainda mirando Henri cuidadosamente:
— O que quer você dizer ao indagar se confio em O’Connor e O’Malley? — perguntou, sombriamente.
Henri hesitou:
— Bem, francamente, é exatamente o que andei lendo nos jornais. Não estão acabando de enviar Myron Taylor ao Vaticano? Não estão acabando de tentar desacreditar os chamados "liberais"1 no Departamento, que tomaram o banco das testemunhas contra Franco, e que têm causado agitação para evitar embarque de sucata e de petróleo para o Japão?
Hugo riu asperamente:
— E daí? Não estamos em posição de aborrecer Hitler nem o Japão. Não temos exército, nem armas... nada. Chame a isso apaziguamento, se quiser, ou diplomacia. Suponho que se refere à campanha interna contra Summer Welles, que sempre gostou da Rússia? Você não pode censurar Iggy e Frank: são católicos, sabe.
— Desde quando — falou Henri, meditativamente — temos baseado nossa política externa em sensibilidades católicas? Lembra-se de sua história, Hugo? Leitura muito interessante...
Hugo golpeou a mesa selvagemente:
— Não estamos indo a parte alguma! — berrou. — Que está você querendo? Tentando sutilezas, para variar, hem?
Henri endureceu a expressão do rosto. Inclinou-se para Hugo:
— Pois muito bem: Já lhe disse que pouco me importa o que acontece na Europa. Mas importa-me o que acontece aqui. Acontece que gosto de minha posição. Decidi fazer seja o que for para mantê-la. Estou disposto a arriscar qualquer coisa. — Deteve-se um momento, depois continuou: — Não tenho base real para minhas suspeitas, confesso. Mas sei de algumas coisas. Sei que nosso querido Antoine ultimamente encontrou o Chargé d’Affaires alemão, e O’Connor e O’Malley estavam com ele. Imagina o que terão discutido?
Foi um golpe arrojado. Observou Hugo estreitamente. Falara a fim de descobrir se Hugo tivera conhecimento daquele encontro, embora não estivesse presente. E então um alívio: a expressão de Hugo, branco com o choque, boca entreaberta, o súbito brilho em seus olhos, convenceram Henri que Christopher fora correto em sua suposição de que Hugo não soubera do encontro.
E por que não soubera? Christopher tivera dúvidas sobre esse ponto, embora tivesse lá suas ideias. O’Connor e O’Malley, ele julgava, estavam fazendo seu próprio jogo, com sua própria panelinha católica. Panelinha católica. Hugo, apesar de sua liderança, suas conspirações, sua cooperação, não era realmente único com sua panelinha dentro de uma panelinha. Não confiavam nele completamente: ele era Bouchard, e o rico, afinal, é quase sempre conservador e temeroso, alarmando-se quando o perigo chega muito perto.
— Não acredito nisso! — exclamou Hugo, o rosto intumescido e úmido. — Não ousariam! Por que fariam isso, sem me dizer, sem meu conhecimento e... — Parou abruptamente.
"Sem que você estivesse presente" — terminou Henri para si mesmo.
Henri deu de ombros:
— Pouco se me dá que você acredite ou não, meu caro Hugo. Acontece ser um fato. Posso preveni-lo? Se falar nisso, eles negarão; saberão que houve uma denúncia. Não gostam de você, Hugo. Julgarão que mandou espioná-los. Tenho ideia de que não confiam inteiramente em você. Confiarão ainda menos, se lhes falar disso. Você ficará fora da estacada, e Antoine e os outros dirigirão o Departamento, sub rosa. Gosta da ideia de ser um office boy glorificado com a fina presença italiana de Antoine ao fundo?
Então todo o ódio de Hugo por seu parente Antoine, toda a sua aversão subconsciente por ele, tanto por ele quanto pela semelhança de Hilary com ele, toda a sua natural suspeita, ciúme e amor ao poder, tudo isso lhe rugiu na cabeça. Ficou literalmente sem palavras, enquanto sentado em frente de Henri, cheio de fúria insana e raiva. Porém sua mente trabalhava rapidamente. Lembrou-se de muitas coisas que o haviam espantado, e o haviam iludido, ultimamente, no Departamento de Estado; porém tinha estado tão interessado com os motins em sua própria casa que pensara nelas apenas vagamente, embora seu instinto tivesse sido desperto. A lembrança dessas coisas intangíveis é que o convenceram de que Henri estava dizendo a verdade.
— Então — murmurou entre os dentes cerrados — estiveram fazendo seu próprio joguinho, não?
— Contra nós — falou Henri, gentilmente. — Pensa que eles gostam dos Bouchards? Você acha que Antoine nos tem amor? Posso dizer-lhe isto: quando Armand morrer, Antoine não será tão cômodo aos negócios Bouchard. Sei disso com certeza. Talvez ele suspeite. Como vingança, e em seu próprio desejo de poder, fará qualquer, coisas contra nós, contra nossos interesses.
Olhou seu cigarro, e disse:
— Não sei por que estou lhe contando isso. Você poderá prejudicar-me se o repetir. Porém, como já disse, sempre fomos amigos, trabalhando juntos. Pensei que você poderia trabalhar conosco agora.
— Quem você quer dizer com esse "conosco"? — perguntou — Hugo. Respirava com óbvia dificuldade.
Henri o olhou com brandura:
— Suponho que não faz mal que lhe diga. Antoine deve haver suspeitado, e provavelmente já lhe disse: Alex, Jean, e Emile... talvez. E... alguns outros, não ligados, apenas remotamente à Família.
Hugo virou a cabeça e fitou uma fotografia da amada filha, Alice, que estava na secretária. Henri podia ver-lhe o perfil, incorreto e violento.
— E quanto a Christopher? — falou Hugo, afinal, num resmungo.
Henri abanou a mão:
— Bem, talvez Christopher esteja trabalhando com Antoine. Entretanto, não sei disso. Tenho apenas suspeitas.
Hugo virou-se para ele com violenta rapidez:
— Muito bem — rosnou. — Que quer você?
Henri sentiu-se relaxar, era quase como uma fraqueza de alívio. Olhou para o parente, sentiu-lhe a fúria, o ciúme, a suspeita selvagem e o ódio por aqueles que o haviam traído, por aqueles que ele agora julgava terem estado a usá-lo. Quando Hugo pensou em Antoine lhe fazendo isso, sua garganta se elevou a alturas loucas.
Disse Henri, tateando seu caminho com precaução:
— Deixe-me avançar mais um pouco: acabei de ter mais alguma informação. Alguns de nossos... menos patrióticos cidadãos-financistas acabaram de encontrar-se com o Dr. Schacht na Suíça. Não sabia disto? Bem, entre os arranjos feitos, os Bouchards não estavam incluídos. Por quê? Ter alguma ideia?
Hugo parecia ainda mais espantado, se possível.
Henri continuou:
— Pensei que não soubesse. Mas Antoine, sim. Creio que ele arranjou isto. Vê, ele não deve mesmo gostar de nós em absoluto. A propósito, enquanto talvez você, mal orientado, acreditasse que a conquista do mundo por Hitler podia só ter resultados benéficos para a Família, Hitler não pretendia isso absolutamente. Sabe, acontece que tenho fonte interna de informação. Hitler é, de longe, mais encantado pela América do Sul com suas classes superiores falangistas católicas, do que pela América, onde tantos de nós são de origem anglo-saxônia. Ele na certa acredita que não se pode copiar em um anglo-saxão. Depois, Franco é uma de suas focas amestradas, e Franco já havia enviado uma centena de bem-treinados padres falangistas para a América do Sul para preparar o caminho para a conquista definitiva daquele continente pelas forças fascistas. Os industriais sul-americanos, que têm completo controle trabalhista, com a assistência da Igreja farão admiráveis serventes de Hitler, e ele sabe disso. Já existe muita propaganda iniciada ali, de que o destino da América do Sul é uno com o destino da Espanha, sua "mãe". Qual será o resultado inevitável se... certas contingências tornarem Hitler dominante na América? Parafraseando o velho ditado: "O Oeste é o rumo do Império!" eu diria: "O Sul é o rumo do Império." Com tudo que isso signifique. Que será de nós então?
Hugo mordia o lábio, em silêncio, contemplando fixamente seu parente. Sua fronte tinha uma série de fundas rugas. Era evidente que estava pensando rapidamente.
— Acho que Antoine sabe disso — falou Henri, maciamente. — Ele já está muito envolvido com a América do Sul, e profundamente interessado nos cartéis nazistas lá.
Hugo tornou a golpear a secretária, em silêncio fulminante.
— Ele está brincando, mesmo agora, com a força de seu sangue "latino" — acrescentou Henri, com um sorriso divertido.
Esperou que Hugo falasse, porém Hugo manteve silêncio. Henri deu de ombros imperceptivelmente:
— Estou bem informado, Hugo. Sabe, nunca ajo drasticamente. Por exemplo: sabe que há um plano em andamento para apresentar o nome de certo proprietário de um jornal fascista do Estado de Nova York na próxima convenção republicana? Não gosto do homem. Prefiro outro. Um que Regan sugeriu. Também sugiro que você concorra à Vice-Presidência. Isto pode ser arranjado.
Hugo estremeceu. Virou-se completamente para Henri. Agora seus olhos cintilavam. Mas ainda disse:
— Quem é o homem?
— Wendell Willkie, de Commonwelth & Southern.
Hugo deu uma súbita e turbulenta gargalhada:
— Willkie! Quem jamais ouviu falar de Willkie, exceto na Street? Quem você vai conseguir que vote nele? E por que Willkie?
— Pela peculiar razão — disse Henri, com um sorriso — que ele é um homem honesto, um bom americano, sadio e inteligente. Investiguei-o o mais possível: não há nada de sujo em sua carreira. E melhor homem que o astuto Roosevelt, que gira como um catavento com qualquer vento. Sua política, acredito, será conservadora, realística e honesta. Nada encontrei nele que me leve a crer que ele trairá a América, e tudo indica que lutará pela América, se eleito. Não há nada de ilusório ou imprevisível nele. Se a América deve sobreviver precisa dele... não só durante os anos de guerra como mais tarde. Poderei apresentar o seu nome para seu Vice-Presidente.
Falou com poder e autoridade, e a tendência de Hugo para o ridículo diminuiu:
— Quem está por trás de Willkie?
Henri tornou a sorrir:
— Um velho senhor pesado de pecados, talvez. Que deseja salvar a América da ruína que ele antigamente maquinou. Um homem muito, muito poderoso.
Tossiu, depois prosseguiu em tom mais animado:
— Só para mudar de assunto momentaneamente: a fortuna de Christine não está pesadamente investida na United States Chemical Produts Company?
Hugo piscou ante tão abrupta mudança:
— Sim.
— Nada de muito importante. Mas ouvi dizer que a American Carbide Company tem intenção de comprar essa companhia. Pretendem fazer isso para acabar com um competidor. Mas tudo isto é confidencial.
Hugo ficou muito pálido:
— Tem certeza disso? — murmurou, num tom estranho.
— Tenho. Pensei que você poderia estar interessado. Mas nunca foi minha política interferir com outras companhias; já tenho muito que fazer em casa. Mas posso dizer-lhe isto: a American Carbide me pediu que ajudasse a financiar a venda. Em troca, oferecem-me um bloco de ações muito atraente.
Agora os dois se fitavam como antagonistas. Hugo respirava barulhentamente. Toda a sua vermelhidão havia desaparecido, substituída por um colorido malva e apoplético. Seus punhos cerrados caíram abertos na secretária, e ele pareceu encolher. Diante de seus olhos Henri pareceu crescer, expandir-se, tornar-se mais terrível e implacável.
— Você não faria isso... a nós? — sussurrou roucamente.
— Eu disse que sequer considerei o caso? — perguntou Henri, brandamente. — Embora esteja interessado na American Carbide, e não apenas por razões financeiras: seu presidente é meu amigo muito chegado.
Subitamente Hugo se pôs de pé. Fitou sobranceiro Henri Sua respiração se tornou mais difícil, os olhos estavam violentos:
— Que quer você?
Henri o estudou por um momento longo e penetrante:
— Quero... várias coisas. Quero que parem os embarques para o Japão. Quero uma redução, ou mesmo a interrupção, dos enormes embarques de petróleo, aço e alimentos para Franco. Quero supervisão na Espanha, para a distribuição dessas coisas— se forem enviados embarques menores, por americanos de confiança, que não gostam de Franco. Só para ter certeza que nenhum desses embarques vai para Hitler. Quero que sua panelinha se alinhe com os liberais do Departamento. Summer Wells é muito popular na América do Sul; quero uma espécie de política de "boa amizade" a ser iniciada nos países sul-americanos. Por muitas válidas razões, os sul-americanos não gostam de seus grandes vizinhos do Norte. Devem ser levados a confiar em nós, e isso pode ser feito... se virem que somos sinceros. Devem juntar-se a nós num bloco continental contra Hitler, aconteça o que acontecer na Europa. Um pouco mais tarde, quero investigação daquelas companhias americanas que têm arranjos de cartel com Hitler e lhe estão oferecendo equipamento. Desejo que seja dada a mais ampla publicidade à investigação, nos jornais. Quero uma atitude mais amigável em relação à Rússia...
Hugo aspirou profundamente, e sorriu, embora continuasse esverdeado.
— Nunca ouviu falar do pacto germano-russo, meu ladino Maquiavel?
Henri estalou os dedos:
— Gostaria de profetizar que Hitler muito em breve atacará a Rússia. Nesse ínterim, lance os fundamentos no Departamento. Você tem de se afastar dos elementos mais perigosos de sua panelinha, e arrastar os incertos com você, de qualquer maneira. Também quero uma atitude profundamente simpática para com a China.
Hugo caminhou abaixo e acima no espesso tapete da biblioteca:
— E isso é tudo que você quer, hein? Apenas umas coisinhas, umas bagatelas... — Voltou-se para Henri: — E quanto aos cartéis europeus nos quais você está pessoalmente interessado?
— Eu os estou bloqueando contra Hitler — e Henri acrescentou: — Se você e alguns dos seus camaradas que confiam em você juntarem seu peso ao dos liberais no Departamento, podemos fazer todas essas coisas.
Levantou-se e encarou Hugo: fora-se todo o seu ar casual. Seu rosto largo e pálido estava carrancudo e mais terrível que nunca, e inexorável. Seus olhos decorados e fixos mantinham Hugo em súbita e atemorizada fascinação:
— Digo-lhe, Hugo, que estou falando muito sério. Se você não puder... fazer... isto, então eu me movimentarei. E as coisas também começarão a movimentar-se. Você, pessoalmente, não gostará do que vai acontecer. Sinto muito, mas nisso existem interesses mais altos que o seu próprio bem-estar, apesar de sempre termos sido amigos. Olhe, sei de muitas e grandes coisas que você nem suspeita que eu sei.
— Está me chantageando? — perguntou Hugo, incrédulo, mas com terror.
— Eu o estou prevenindo — disse Henri, quietamente.
Depois de um momento, Hugo apertou as mãos sobre os olhos:
— Deixe-me pensar — falou, de modo quase inaudível.
Henri esperou. Disse, após um momento:
— O Departamento sempre admirou a Inglaterra. Mas ultimamente a admiração esfriou. Quero-a revivida.
Hugo deixou cair as mãos. Parecia velho e desfigurado:
— Você me pegou! — falou, exausto. — Devia ter vindo a mim antes.
Henri sorriu sombriamente:
— Queria ter certeza...a respeito de certas coisas. E agora você tem de mexer-se depressa, Hugo. Muito depressa mesmo.
Hugo ficou silencioso.
— Mexa-se com cautela — disse Henri. — Não faça nada demasiado súbito. Fale da coisa com aqueles membros de sua panelinha em quem possa confiar. E... mantenha-me informado. Você deve fazer-me saber suas próprias... opiniões.
— Está me pedindo que espione meus amigos?
Henri riu zombeteiramente:
— Ora, não seja tolo! Quem tem "amigos"? Você mudou de ideia a respeito de muitos dos objetivos de sua panelinha. Todos têm direito a mudar de ideia. Mas não deixe que sua mudança se torne suspeitamente súbita. Olhe, preciso saber de mais algumas coisas antes que você abandone os seus amigos íntimos.
— Meu Deus! — murmurou Hugo.
Henri pôs a mão amavelmente no braço trêmulo do outro:
— Você tem muito a ganhar, e nada a perder. Um pouco mais tarde, informarei à American Carbide que não estou interessado em sua proposta. A propósito, tenho alguns palpites para você, diretos da Street, e um pouco mais tarde eu os discutirei com você. Você ainda não me disse se gostaria de ser Vice-Presidente. Ou, talvez, algo ainda mais importante possa ser arranjado.
Hugo respirou fundo, e estranguladamente:
— Que faremos agora? Cantar o hino nacional?
Capítulo 34
Peter Bouchard sentava-se com o Sr. Cornell T. Hawkins no quente e confortável salão de jantar do Ritz. O final do manuscrito do Relâmpago Fatídico estava na mesa branca entre eles. O Sr. Hawkins pensativamente bebericou seu coquetel e contemplou as páginas. Depois ergueu os olhos e polidamente esquadrinhou o rosto perturbado de Peter com os lábios brancos e azulados. Viu os olhos fundos e rodeados de olheiras, o pulsar febril das finas narinas. Algo do que ele pensava, compadecido, deve ter-se comunicado a Peter, pois que ele disse com um sorriso de esguelha:
— Estou satisfeito por ter acabado, Cornell. Tenho a sensação de que não lhe verei a publicação. Estive esta manhã com o meu médico, antes de vir vê-lo.
Hawkins nada disse: seu silêncio implicava uma indagação preocupada. Porém Peter, com um movimento de cabeça, mudou de assunto.
— Estou trabalhando, agora, em outras coisas que me ocuparão toda a atenção. Este livro... não tem ideia de quando será publicado?
Hawkins sacudiu a cabeça:
— Em cerca de seis semanas, talvez, você terá as galés para quaisquer correções, cancelamentos ou acréscimos. Depois, mais tarde, as provas. Depois disso, nós usualmente damos algum tempo aos críticos para que leiam o livro. Então, a publicação. Tudo depende de nossa lista na ocasião. Queremos fazer disto uma grande coisa. Faremos o melhor possível, mas nunca se sabe qual será a reação do público. Baseamos nossa publicidade nas vendas de pré-publicação para as várias agências distribuidoras. Isto é tudo que posso dizer-lhe, Peter.
— De boa vontade pagaria para esbanjar publicidade — falou Peter, ansioso. Depois corou, pois, os gelados olhos azuis de Hawkins estavam piscando. — Por favor, não me compreenda mal. Não estou tentando nenhum conchavo. Porém é tão importante para mim, sabe, que o público leia este livro, e quanto mais público melhor... Pensei até em distribuição gratuita.
Os olhos de Hawkins continuavam a piscar, embora ele não falasse. Girou seu copo entre os dedos. Hawkins tinha um cinismo profundo e reservado, que nem sempre podia controlar; e, como todos os homens com esse tipo particular de cinismo, tinha bondosa e sensível percepção dos outros, e uma compaixão traiçoeira que com frequência o fazia inquieto, desconfiado de si mesmo. Olhou fixamente a febril expressão de Peter e sua fisionomia agonizante, e aquela compaixão fez seu coração contrair-se dolorosamente.
Então Peter, com um olhar que implorava perdão com antecedência, falou, hesitante:
-— Meu primeiro livro, The Terrible Swift Sword, foi misteriosamente silenciado no auge de sua popularidade. Já lhe contei isto. — Deteve-se: — Eles... poderiam tentar intimidá-lo...
Agora a expressão de Hawkins mudou, tornou-se fria e firme. Disse, com reserva áspera e calma:
— Ninguém jamais me intimidou. — Acrescentou, curiosamente: — O que me contou a respeito de Henri Bouchard é muito interessante. Ele foi muito franco com você. Naturalmente ele sabe a respeito deste livro?
— Sim. — Peter ficou também inquietamente reservado. — De fato, deu-me material para ele que eu não teria conhecido de outra maneira. É difícil compreendê-lo. Não confio nele, mesmo agora. Não estaria fazendo tudo isso, e arranjando os programas de rádio, se não estivesse, ele mesmo, vitalmente preocupado, e se não tivesse interesse próprio. Acredita, bem firmemente agora, que o avanço contínuo da democracia industrial-capitalista é o clima único em que todos podem ser salvos... e a América pode ser salva. Outrora eu mesmo acreditava nisto. Agora sei que devemos ir ainda mais longe... devemos ter na América uma espécie de socialismo em que seja eliminada a competição, e cada homem sirva a seu vizinho mais do que a si próprio.
Hawkins estava muito surpreso. Contemplava Peter com espantada descrença:
— Porém você teria, primeiro, de transformar a natureza humana! E até agora, na história humana, não descobri nenhum sinal dessa transformação. Parece-me que devemos proclamar todos os avanços sociais baseados nos fatos estabelecidos da personalidade humana. Não podemos ir de encontro à natureza sabe, mesmo se suas ideias são sublimes e belas. A menos — e o gelado azul de seus olhos estava triste — que possa usar de forças.
—- Usamos força para fazer coisas ruins. Por que não para fazer coisas boas? — indagou Peter.
Hawkins parou um pouco, e em sua boca houve uma curiosa expressão:
— Parece-me ter ouvido isso antes, em algum lugar... Não foi Hitler quem disse isso?
Peter corou fortemente:
— Receio que não haja compreendido, Cornell.
Porém Hawkins apenas ergueu o copo e bebeu apreciativamente.
"Era a coisa mais abominável, mas realmente existe bem pequena diferença entre bons fanáticos e fanáticos perigosos — ele refletiu. — Eram igualmente perigosos para o bem-estar humano. Ambos eram inimigos do lento e tortuoso avanço da sociedade humana através da vontade livre e da liberdade gradual. Eles não deixam margem para escolha..."
— Sempre odiei a coerção, de qualquer tipo — falou Hawkins meditativamente. — Seja essa coerção para o bem ou para o mal. Mesmo a "boa" coerção é um insulto à dignidade humana. Por isso é que nunca aprovei os métodos de Roosevelt.
O rosto de Peter havia endurecido, de irritação. Contudo, Hawkins tinha muito tato. Mudou de assunto. Não adiantava discutir com um fanático, mesmo quando esse fanático era um homem virtuoso. Hawkins se tornara ainda mais desconfiado de homens virtuosos do que dos amorais. Lamentava isso, pois lhe aumentava o cinismo. Estava chegando, rápido, ao ponto em que não afirmaria nada e não acreditaria em nada. Dava-se conta de que, se tal atitude trazia paz, eventualmente, também trazia inércia, um adormecimento espiritual. Acreditar em alguma coisa era necessário à vida.
Disse:
— Quando acredita que haverá real atividade na Europa? Até agora, alemães e franceses apenas se olharam mutuamente por cima da Linha Maginot.
Então um colorido escuro, como de iminente desagregação, espalhou-se sobre as feições de Peter. Suas mãos começaram a mover-se a esmo e fracamente por entre os talheres. Estava como um homem que não pode livrar-se de um eterno pesadelo.
— Não sei... — murmurou. — Quem sabe? — Subitamente, perdeu o controle e colocou as mãos momentaneamente sobre os olhos, pressionando-os. — Não posso suportar isto — disse, inaudivelmente. — Há algo de terrível...
Deixou cair as mãos e falou:
— Tenho um amigo na França. Está em Paris, agora. Barão Israel Opperheim. Pude ajudar seu filho a sair da Alemanha. Tentei fazer Israel sair da França. Em sua carta me dizia estar quase convencido. Mas com Israel nunca se sabe. É um cínico.
Estava desperto o interesse de Hawkins. O que Peter dissera era estimulante. Porém ele não disse mais. Porém Hawkins, com súbita nitidez, sentiu o misterioso "cinismo" do Barão Opperheim através de sua própria consciência, embora não pudesse pôr isso em palavras. Estava cheio de tristeza, uma espécie de estranha comunhão com esse desconhecido Opperheim na ameaçada Paris. E teve outra sensação peculiar: acreditava, implicitamente, que o Barão Opperheim devia ter olhado para Peter da mesma maneira reflexiva dele, Hawkins.
Fora das altas amortalhadas janelas caía uma nevasca de janeiro, o ar estava triste e escuro. Hawkins observou os grandes e pesados flocos de neve a cair inexoravelmente. Nele havia algo de místico. Sentiu a morte e a implacável tristeza do dia lutuoso através de sua carne e seu espírito, e a doentia desesperança do homem compreensivo e inteligente era como um gosto de cinzas em sua boca.
Capítulo 35
Celeste vagava inquietamente na estufa da grande casa nova de Placid Heights. Carregava uma cesta, e sob o truculento olhar do jardineiro cortava rosas do telheiro. Não apreciava particularmente esse tipo de rosas: davam-lhe a sensação vagamente repulsiva que sempre tinha em sua contemplação do artificial. Esses espinhos eram fracos e flácidos, um simulacro de defesa, como se as flores soubessem instintivamente não haver nada de que tivessem de defender-se. Eram meticulosamente cuidadas; seus inimigos naturais nunca as atacariam; todo perigo de um ambiente hostil, que as fortaleceria, lhes daria vigor e vida robusta, tinha sido eliminado. Não era de espantar, pois, que fossem débeis, demasiado delicadas e decadentes. O ambiente hostil dos campos, bem como a luta pela existência e a competição natural entre todas as formas vitais, fazia rosas cheias de colorido, de resistência e de saúde, de seus espinhos fazia armas de vigorosa defesa, tornava seus ramos fortes e fibrosos com a urgente determinação de viver e sobreviver, fazia que exalassem o perfume pesado e intoxicante que essas coisinhas fracas jamais possuiriam.
Celeste achou a imagem muito interessante. Deteve-se, parou de cortar para olhar vagamente através das vidraças enevoadas a que se grudavam os pesados flocos de neve. Suponha que os idealistas e os teoristas pudessem fazer o que quisessem, e a vida humana fosse privada da necessidade de lutar pela existência, e fosse eliminada toda competição vigorosa. Suponha que a humanidade fosse protegida contra as forças naturais que a ameaçam e contra um ambiente hostil. Suponha, desde que fosse removido esse ambiente hostil, que os fracos pudessem sobreviver. Não se tornaria a humanidade, como essas rosas de telheiro, flácida, decadente e de espírito fraco, não lhe faltariam cor e vitalidade, saúde e vigor? Não se tornaria uniforme, sem interesse e variedade, em tal sociedade? E os sobreviventes, fracos, molengas, amimados e consequentemente inferiores, embora dotados de sua estranha capacidade para procriar prodigamente, finalmente não ultrapassariam em número e inundariam seus superiores?
Como era artificial, tão perigoso e macio ambiente não sobreviveria sob tensão. E eventualmente a tensão chegaria. Quando chegasse, não morreriam imediatamente esses homens enfraquecidos, tendo-lhe sido roubadas suas naturais armas de defesa, sua saúde, vigor e resistência?
Sim, era um pensamento interessante. As negras sobrancelhas de Celeste se juntaram, em sua concentração. Discutiria isto com Peter. Outrora ele acreditara nisso, como agora ela acreditava. Porém depois ele ficara excitado e lamuriento, e veementemente defendera a causa da rosa de telheiro. O homem tinha direito a ser protegido de seus inimigos naturais; tinha direito a pedir a seus governantes que seu meio ambiente fosse fácil, doce e confortável. Tinha direito a insistir que fosse tirada de seu caminho a competição "desleal". Em outras palavras — pensou Celeste, desgostosa — era direito do homem ser alimentado a papas, reclinar-se em merecido conforto, e agarrar-se, como uma lesma gorda e vulnerável, ao tronco da ordem social. Por quê? Simplesmente por ser um homem! E, sendo homem, era inerentemente superior aos animais inferiores que lutavam naturalmente e saudavelmente com um ambiente hostil, obtendo vigor dessa luta!
Será que Peter agora, tendo alguma noção de realismo, defenderia essa insana premissa por sentir o mortal aumento da fraqueza em si mesmo, por sentir as dores mais fortes da desintegração? Talvez sempre fosse a rosa mais fraca e moribunda que acusasse as companheiras mais fortes de a estar prejudicando, impedindo-lhe a entrada, enquanto esticava para a luz as suas hastes não crestadas. E pedia, também, que esses talos não crestados fossem cortados, que o brilhante e colorido botão fosse desbastado para que à flor carunchosa fosse dada a oportunidade de desabrochar suas pétalas doentes sem competição, e enchesse o jardim com seu aroma em decomposição.
A despeito de seu amor e piedade pelo marido, Celeste sentiu um forte movimento de discordância e impaciência. Então decidiu não discutir com Peter: estaria exausto ao voltar de Nova York. Suspirou, afastou-se das rosas, e deixou as flores cortadas na mesa de madeira. Não as queria. Se ficassem em suas mesas, estariam a lembrar-lhe a questão, e ela tornaria a sentir aquele movimento de paixão, raiva e impaciência. Sentia-se mudada, e muito mais velha. Lembrou-se de si mesma em jovenzinha, e sua boca se torceu com irritação. Era sempre o ignorante que esposava a causa dos fracos? Dos inexperientes, os inocentes, os iludidos? Ela não sabia. Certo pensamento a importunava, embora vago. Estaria Henri a influenciá-la. Sentiu um cálido tremor por todo o seu cansado corpo, e o coração acelerou-se.
Entrou em um dos escuros e silenciosos salões e correu uma cortina. Os canteiros ainda não haviam sido ajardinados: era projeto para a primavera. O inverno caíra de repente sobre toda nova mansão de pedra cinzenta, cobrira a longa ladeira para o vale — como fizera durante séculos antes, com pesada e luzente onda de neve. A entrada para carros ainda era só cascalho; seu caminho baixo era fracamente visível em úmidas faixas escuras e macias curvas recortadas.
As antigas árvores ainda não haviam sido mexidas ou aparadas, e como se curvavam sob a neve pareciam velhos esqueléticos dobrados ao peso dos anos. Pairava sobre a casa o crepúsculo do inverno precoce, e sobre as colinas gotejantes e as árvores retorcidas, como a insondável profundeza de águas paradas, em cuja dimensão distância e substância se perdiam e todos os objetos adquiriam as formas ondulantes e indistintas dos sonhos. O vale ao fim da longa ladeira se perdia numa espécie de cinzenta névoa opaca. Nada se movia nesse silêncio macio, exceto os flocos de neve caindo. Não havia vento. Isolada como era a casa, encalhada como um desolado casco de navio em ondas brancas petrificadas e redondas que se estendiam infindavelmente espaço e tempo afora, Celeste tinha a sensação de que a casa estava realmente encerrada numa vasta bola de vidro cheia de névoa que rolava em todas as superfícies.
Por trás dela, de pé junto às janelas com suas vidraças no formato de diamantes, estendia-se a casa, tão sem forma, feito um sonho, tão vazia como o mundo exterior. Era uma casa de sombras. Ela ouviu o crepitar do fogo numa lareira distante na grande sala silenciosa, porém isso não tinha veracidade para ela. Através de todos os seus sentidos percebia a curva irreal da imensa escadaria no vestíbulo atrás da sala, os corredores superiores, os quartos que se abriam para eles, o salão de jantar e a biblioteca, a sala de almoço e os terraços. Mas não podia acreditar em sua existência. Tudo era um sonho. Nada existia realmente, exceto sua consciência presa num universo nublado sem forma ou substância. Em algum lugar, nas profundezas da casa, os criados se moviam sem ruído. Mas Celeste também não acreditava em sua existência.
Um medo curioso e glacial a invadiu, uma espécie de inércia alerta e de consciência. Achou-se ansiando desesperadamente por um rosto humano, uma voz humana. Peter ainda estava em Nova York. Ela tinha apenas que mandar preparar um carro para estar na cidade, logo, logo. Mas o pensamento não lhe trouxe alívio. Pesada letargia a dominava. Não podia forçar-se a acreditar que havia alguma cidade além daquela névoa sombria lá embaixo.
Finalmente, não pôde sequer acreditar em sua própria existência. A dispersão lá fora também se aplicava a ela. Sentiu sua personalidade silenciosa e maciamente a desintegrar-se, de modo que todas suas células se moviam e flutuavam. E bem lá no fundo de si mesma havia um quente núcleo de dor entorpecida.
Ficou estupidamente surpresa ao descobrir que estava chorando. A dor em seu coração ficou mais forte, porém ela não sabia o que causava a dor. Não ousava analisá-la e examiná-la. Apenas sabia que não podia suportar essa casa, que nunca pudera suportá-la, que a temera desde o momento em que fora colocada a primeira pedra. Vagamente esperara — e isso desde o princípio — nunca precisar viver ali: quando chegou o dia de entrar para ali, sentiu-se mal, com uma espécie de horror inexplicável. Sua beleza era, para ela, a beleza fantástica de um pesadelo, grotesco e irreal. Contudo, era um edifício simples e majestoso, e ela própria escolhera todo o mobiliário, fizera toda a decoração. Porém fizera tudo isso nas profundezas da fantasia, e sem alegria.
Sem alegria. Sim, toda a sua vida tinha sido sem alegria, até conhecer Henri. E essa alegria se misturara a dor e sofrimento. Suas lágrimas vinham mais rápidas agora. Porém não chorava por si mesma. Não poderia dizer por que chorava. A neve caía mais depressa e mais inexoravelmente por trás da vidraça. Não brilhava. Era apenas um pálio de morte. Ela lhe sentia a morte através de si mesma.
Pensou na guerra, guerra "de mentira", onde terríveis antagonistas se fitavam mutuamente em mudo silêncio, e esperavam. Mesmo a guerra era irreal para ela. Não lhe podia sentir a iminência, a realidade. Pensou em Peter, também ele uma sombra... Entretanto, a dor saltou em seu coração como uma coisa assustada.
Por alguns momentos, não teve consciência de que havia estado fitando um pontinho infinitesimal de luz cintilando longe de casa, pontinho que ondulava de um lado a outro, e ia aumentando de brilho. Quando estava totalmente cônscia dele, mal podia acreditar no que via. Quem poderia vir ali naquele desolado dia hibernal? Não esperava ninguém. Os parentes e amigos sempre telefonavam primeiro, antes de visitá-la.
Observava a luz chegando mais perto. Agora, lá na ladeira, podia ver o formato de um carro preto, saltando nos sulcos, resvalando, oscilando, os faróis perfurando o nevoeiro, e rodeado por uma aura tênue através da neve. Apertou o rosto de encontro à vidraça fria. Seria Henri? Mas Henri estava em Washington. Ainda esta manhã lhe telefonara.
As rodas do carro encontraram a entrada para carros e se esforçavam pesadamente, no cascalho, para subir. Celeste podia ouvir o trabalho do motor, seu ronco abafado. Estava se esforçando ao máximo nos sulcos gelados e no cascalho escorregadio. Depois, com um arfar áspero, triunfante, deu a volta diante da casa e parou.
Era uma grande limusine preta, como um carro funerário. Agora Celeste o reconheceu. Pertencia a seu irmão Emile. Mas por que viria Emile — perfeitamente indiferente a ela, e por quem ela nada sentia a não ser aborrecimento — visitá-la? O motorista saía do carro. Abria a porta. A alta figura de uma mulher de preto estava descendo com dificuldade, pois o carro inclinava-se para um lado nos montes de neve. Era Agnes, esposa de Emile.
Agnes Bouchard! Agnes, que ela sempre temera e evitara, a dura e cínica Agnes, de olhos cruéis e divertidos. Por que viria visitar a jovem cunhada, a quem abertamente desdenhava e achava excessivamente aborrecida?
Celeste acendeu as luzes, e o grande e calmo salão se encheu de calor e agradável quietude. Até o fogo tomou coragem, e suas labaredas saltaram. A neve e a morte ficaram perdidas atrás das janelas subitamente escuras e protetoras. Agora toda a casa se tornou real e tangível, sólida e forte, não mais um confuso e enevoado delineamento de paredes. Mesmo gostando pouco de Agnes, Celeste sentiu prazer com essa aproximação de outro ser humano. Ouviu a voz de Agnes no calmo vestíbulo, voz enérgica e cortante. Essa voz não mais a fazia tremer. Adiantou-se para a passagem em arco, com um sorriso de boas-vindas.
Agnes apareceu. Embora não fosse Bouchard por nascimento, mas apenas por casamento, possuía todos os atributos dos Bouchards "latinos". Era de boa altura, de compacta e excelente figura, muito elegante e esbelta. Estava agora com cerca de quarenta e nove anos, mas o brilho e a avidez de sua aparência faziam-na parecer muito mais jovem. Movia-se com graça e leveza. O rosto branco e fino, com o longo nariz patrício, tinha um olhar alerta e cruel, cínico e sagaz, e não havia gentileza na linha fina dos lábios, violentamente pintados. Os olhos negros, frios e duros, tinham um brilho maldoso. Agnes Bouchard não tinha fé na natureza humana, nem em nenhuma de suas "virtudes". Não acreditava que ela possuísse qualquer altruísmo, bondade, justiça ou piedade, ou mesmo decente honestidade, ou que tivesse mais inteligência que um macaco. Achava lamentável, mas também divertido, que os únicos homens bons que havia encontrado tinham sido loucos, e impotentes. "Os filhos da escuridão são mais sábios em sua geração do que os filhos da luz" — costumava citar, com convicção, e nenhuma tristeza. Não encontrou dificuldade em adaptar-se a um mundo tão escuro e ameaçador, e constantemente se divertia a esse respeito, porque era esperta e de considerável intelecto e muitos conhecimentos. Sob muitos aspectos se parecia com sua parenta mais jovem pelo casamento, Rosemarie Bouchard; só que ela era criteriosa e possuía muita integridade inata e retidão, bem como aberta e desdenhosa coragem, e nela não havia sadismo como em Rosemarie. Tinha pelo marido uma espécie de afeiçoado menosprezo e indiferença, e um frio desdém pelo filho, Roberto, íntimo e escravo de Antoine Bouchard.
Trouxe à sala vivacidade, frieza e movimento. Não tirou o macio casaco de peles negro; ele resvalou, mostrando o elegante vestido preto e estola vermelha. Havia um boné à moda russa, da mesma pele do casaco, sobre o perfeito penteado das suas madeixas prateadas. Estava tirando as luvas, mas era evidente que não permaneceria por muito tempo.
— Agnes — disse Celeste, estendendo-lhe a mão, um real prazer a brilhar em seu rosto. — Estou tão contente que tenha vindo! Mas que dia terrível!
Os olhos penetrantes de Agnes percorreram sua jovem cunhada: neles havia um brilho ameaçador. A linha escarlate de seus lábios se curvou:
— Dentro de cinco minutos você já não estará tão satisfeita com a minha vinda... — disse, com desdenhosa brevidade. Aproximou-se do fogo, esfregou as mãos, contemplou a sala, comentando: — Bonito lugar. Provavelmente não tornarei a vê-lo.
Celeste estava espantada. Toda a sua vida sentira-se atemorizada ao som de vozes cruéis e implacáveis, e o velho tremor, a antiga tensão lhe puseram os nervos na defensiva:
— Por que, Agnes? Que há de errado?
Agnes continuava a esfregar as mãos, o que produzia um som seco em toda a sala. Ela começara a sorrir, seu perfil agressivo delineado contra o fogo. Então tornou a virar a cabeça e fitou Celeste com brutal curiosidade, como se a jovem mulher fosse um objeto que lhe despertasse desdém e espanto. O temor inexplicável aumentou em Celeste. Retraiu-se involuntariamente. Agnes afastou-se do fogo e se sentou numa cadeira. Celeste também se sentou e esperou, apertando as mãos.
— Celeste — começou Agnes, uma voz fria e curiosa — não sabe de alguma coisa? De nada mesmo? Você é uma idiota completa? Sempre pensei que fosse, sabe disso. Pensei isso desde o primeiro momento em que a vi. Você estava com cerca de cinco anos, então, não estava, ou um pouco menos? Tinha trancinhas negras e grandes olhos azuis-escuros, e uma estúpida boquinha vermelha. Estava sempre com medo. As pessoas sempre falavam de você como de uma tenra criaturinha que devia ser protegida. As mulheres nunca se sentiram assim a seu respeito, mesmo quando você era uma pirralhinha. Eram sempre os homens.
Celeste estava silenciosa. O rosto branco estava imóvel e tenso. Mas os olhos se fixavam em Agnes, à espera. Agnes sacudiu a cabeça, com sorriso cínico:
— Sim, você sempre foi boa nessa atitude. Pensavam ser defesa. Mas sei que era invulnerabilidade. Você sempre tomou excepcionais cuidados com você mesma. Ainda faz isso.
Deteve-se, e comicamente ergueu a mão e começou a contar pelos dedos:
— Primeiro, foi seu pai, Jules, que arrumou as vidas dos filhos por sua causa. "A pequena Celeste tem de ser protegida." Ele nunca pensou que os rapazes realmente deviam ser protegidos contra você. Para começo de conversa, eles não eram filhos e irmãos muito amorosos; e a distribuição que Jules fez de seus bens, para "proteger" você, não contribuiu para aumentar o amor e a bondade entre Armand, Emile e Christopher. Provavelmente eles disputariam, de qualquer modo, e conspirariam uns contra os outros, mas não com a ferocidade que mostraram por sua causa. Jules saberia disso? Às vezes fico cogitando... jamais gostou dos filhos. Era um homem muito sutil.
Os pálidos lábios de Celeste se separaram e ela disse, quietamente:
— Isso é muito interessante. Mas histórias de família me aborrecem. Não devo ser censurada pelo testamento de meu pai. Também devo confessar que não vejo em que isso lhe interessa, Agnes, ou em que é da sua conta. Emile tem-se saído muito bem, pois não? Ou você quer mais? Você sempre foi muito avarenta.
Agnes ainda mantinha as mãos no ar, na atitude de contar, mas, sobre elas, olhou para Celeste com olhos apertados e um sorriso maldoso:
— Então, você tem garras! — comentou. — Eu sempre soube disso. Ninguém mais parece haver percebido.
Continuou, com inexorável animação:
— Agora, vejamos: Jules foi o primeiro homem a cair sob seu "encanto". Depois foi seu irmão, Christopher. Ele não nasceu um santo, mas a sua existência fez dele um demônio. Por você ele lutou com seu pai. Eles lutaram por você desde o momento em que você nasceu. Você sabe, claro, que Christopher esteve apaixonado por você durante muitos anos, Celeste? Tão apaixonado que nunca se importou muito com qualquer outra mulher. A história não é muito bonita, não é? Um tanto horrorosa? Sempre tive muita pena de Edith, a esposa de Christopher.
Um olhar de terror, repúdio e nojo relampejou na fisionomia de Celeste. Ela se levantou, agarrando-se às costas de sua cadeira.
— Você é uma mulher suja, Agnes — falou, e sua voz não passava de um rouco sussurro. As órbitas de seus olhos se estreitaram com seu mal-estar e repugnância, de modo que estavam cheios de uma flama azul.
Agnes balançou a cabeça, com sorridente ferocidade:
— As pessoas honestas são sempre sujas, minha cara. Ninguém gosta delas. São rejeitadas. Dizem coisas devastadoras e impróprias. Fui honesta agora. Pela salvação de sua alma. Pela salvação de coisas muito mais importantes que você, miserável coisinha desventurada. Não a estou censurando pela paixão de seu irmão por você. Você não podia evitar isso, suponho. Você era adorável, suave e inocente... uma combinação que vira a cabeça dos homens. Mas porque Christopher a amava, e ainda ama, acho, você arruinou a vida dele. Ele é quase louco, você bem sabe. Ele mataria por você, destruiria tudo por você, mesmo a própria vida. Sob certas circunstâncias presentes, isso é muito afortunado. Mas voltarei a isto mais tarde. O que estou dizendo agora é que a sua própria existência, Celeste, fez dele um demônio, ao invés de apenas o mau Bouchard comum que poderia ter sido. Odiou os irmãos; todos eles se odiaram mutuamente. Mas você tornou pior o ódio.
Celeste continuou de pé junto de sua cadeira, agarrando-se com mãos úmidas. Seu peito, sob o agasalho azul, se erguia e baixava com apaixonada agitação. A testa branca, o pálido lábio superior brilhavam de umidade.
Agnes continuou com dura serenidade:
— Agora, vejamos: Henri veio a seguir, você se lembra. — Parou e esperou.
Celeste não se moveu, mas pareceu minguar e encolher, tornar-se menor. Entretanto, fitava Agnes firmemente e em petrificado silêncio. Agnes estava sorrindo novamente, com renovada maldade:
— O que você fez ao Henri! Oh, claro que você não podia evitar isso! Você nunca pôde. Não foi por sua culpa que Henri voltou à América, para tentar reaver o que lhe fora roubado. Teria feito isso mesmo se você não existisse. Admito isto. Porém ele veio e viu, e você conquistou. Naturalmente, você era jovem e inexperiente, e tinha o direito de mudar de opinião. Para começar, Henri era um homem mau; todos os Bouchards o são. É parte de seu encanto irresistível. No entanto, Henri era o pior de todos eles. Não obstante, não teria sido tal monstro se não fosse por você, se nunca a tivesse visto. Pois parece, desgraçadamente, que você tem a capacidade de fazer surgir o que houver de pior nas criaturas. Sei que fez isso comigo... — e ela riu brevemente. — Pensei que Henri havia escapado quando você finalmente o jogou fora e casou com Peter. Pensei que ele então se tornasse apenas um Bouchard naturalmente mau, um Bouchard normal. Você se foi. Mas depois voltou.
Parou, pois Celeste se movera, só um pouquinho, porém mesmo esse ligeiro movimento era como se um raio a tivesse tocado.
— Voltarei a Henri mais tarde — disse Agnes, com cruel suavidade. — Agora vamos ao pobre Peter. De certa forma, ele parece haver escapado à natureza pestilencial dos Bouchards. Foi um "bom" Bouchard. Não tem havido muitos. Com minha própria experiência, não me lembro de nenhum outro. Sim, ele foi um Bouchard "bom".
"Não foi culpa sua se Peter foi intoxicado por gás na guerra... gás Bouchard, diga-se de passagem. Como não foi culpa sua se Peter voltou para aqui. Você não sabia absolutamente nada a respeito de Peter até sua chegada. Ele estava doente, mas ainda vivo. E ainda tinha coragem, força e pureza. Casou com você, e foram viajar. Não estou afirmando que ele poderia ter sido mais feliz, ou mais saudável, com qualquer outra mulher. Pelo menos, até que voltaram. Porém ele está morrendo agora. E morrendo em infelicidade e desesperança. Talvez isso nada tenha a ver com você. Ouvi dizer que você tem sido a mais terna das esposas, e ele parece que lhe é devotado. Dou-lhe este crédito. Contudo, por vezes fico pensando, você nunca lhe deu paz, ou felicidade verdadeira, pois não está em você o dar felicidade a ninguém: só paixão, loucura, desespero e ruína.
Sem remorso, fitou Celeste. Pois o controle de Celeste se havia rompido súbita e violentamente. Sua fisionomia, os olhos, expressavam terror supremo. Ficara de pé por trás de sua cadeira; erguera as mãos, as palmas para fora, em direção a Agnes, como para desviar algum ataque brutal e mortal. Gritou, incoerentemente:
— Vá embora! Não ouvirei nem mais uma palavra! Saia de minha casa, agora, imediatamente!
Mas Agnes estava imperturbável. Olhou Celeste com atenção aguda e significativa:
— Sei... Estou percebendo uma porção de coisas... Você não está tão ofendida pelo que eu disse a respeito de Peter. Está é com medo do que direi a seguir, não é mesmo?
Celeste ficou silenciosa. Mas tremia toda. Deixou cair as mãos. Depois murmurou:
— Meu Deus! Vá embora! — E recuou, em direção à porta.
— Volte, Celeste. — Falou Agnes, quietamente. Levantou-se. Havia-se apagado seu sorriso. Suas feições estavam endurecidas. — Volte. Sente-se. Não saí com esse tempo bestial só para fazer-lhe um sermãozinho. Por mim, você pode dormir com uma dúzia de homens. Pode enroscar-se numa dúzia de camas, e eu apenas darei de ombros. Isso é só da sua conta. Suponho que você, também, sofra algum enfado.
Celeste parou em sua retirada, mas não voltou à cadeira. As duas mulheres se encararam na sala silenciosa. Celeste já não parecia tão cheia de terror e apreensão. Estava rígida como gelo, e igualmente sem expressão. Seus olhos estavam vazios, como se o choque por que passara lhe tivesse arrancado a alma.
Por um momento Agnes experimentou uma espécie de piedade, e profunda curiosidade.
— Celeste — falou, em tom mudado — lamento por você. Era muito jovem e inexperiente quando casou com Peter. A culpa foi de Christopher: queria guardá-la para ele mesmo. Talvez você também tivesse agido mal. Talvez não seja completamente culpa sua. "Vítima das circunstâncias", talvez. Quando voltou, você era já uma mulher, não uma criança. Sempre amou Henri, não? Nunca o esqueceu. Percebo isso agora. Pensei que estivesse apenas aborrecida de seu marido doente, e procurando uma última aventura. Henri deve ter-lhe parecido muito romântico, pensei. Além disso, ele não a esquecera. Nenhum dos homens que a amaram jamais puderam. Pensei, erroneamente, com certeza, que você sabia disso e estava procurando tirar vantagem do caso. Enganei-me. E lamento, por você, Celeste.
Celeste tentou falar. Depois, com um gesto infinitamente patético e trágico, cobriu o rosto com as mãos. Agnes a observava. Seu próprio rosto escureceu, e os duros olhos negros ficaram subitamente gentis e tristes, como nunca o estiveram antes.
— Pobre criança! — disse, compassivamente. — É tudo tão terrível!...
Depois de um momento riu um pouco: havia uma nota trêmula e amarga nesse riso:
— Sinto muito por você, querida! E, acredite ou não, também sinto por Henri. Inacreditável, não? Sentir por um homem como Henri?
Celeste deixou cair as mãos. O rosto estava molhado de lágrimas. Seus lábios tremiam:
— Annette sabe? — perguntou, doloridamente. — E Peter sabe?
Se Agnes ainda tinha dúvidas sobre as verdadeiras emoções de Celeste, essas abnegadas palavras as destruíram. Hesitou. Depois foi até Celeste e pôs-lhe os braços em volta, com uma ternura alheia à sua natureza:
— Venha, querida, sente-se. Ainda tenho muito que dizer-lhe.
Levou Celeste de volta à sua cadeira, e com seu próprio lenço perfumado enxugou as lágrimas da jovem mulher.
— Não — disse por fim, pensativamente — não creio que Annette e Peter saibam. Mas praticamente todos os demais sabem, acho.
Celeste estremeceu. Inclinou-se para diante e agarrou com as mãos os braços cruzados, encolhendo-se numa atitude de total colapso e fria angústia. A cabeça lhe descaiu para a frente. Os brilhantes cabelos negros lhe cobriram o rosto.
— Não posso crer que Henri fosse ingênuo a ponto de esperar não ser descoberto — falou Agnes. — Penso que existe outra explicação. Acho que, em seu egotismo, acreditou que ninguém ousaria falar a respeito dele, ou murmurar a respeito dele abertamente, temendo vingança. Ele sabe que todos o temem. Provavelmente sabe que andam comentando. Isso não lhe importa. Contanto que não tentem nada hostil. Sabe lidar com inimigos. E circunstâncias. Mas que tentem injuriá-lo; ou a você, por causa disso, e ele os esmagará, é o que acredito. O caso é: estão tentando. E podem ser bem-sucedidos. O que será muito triste. — Deteve-se. — Não estou pensando em você, Celeste, ou mesmo em Henri, quando digo que será triste. Estou pensando em coisas muito mais importantes.
Celeste se mexeu vagarosamente, nas profundezas de sua depressão e desespero. Ergueu a cabeça. O cabelo caiu em anéis desordenados em volta das faces úmidas. O medo e o pânico estavam vividos em seus olhos; seu rosto parecia sombrio.
Agnes sentou-se perto dela e inclinou-se para diante, falando com calma intensidade:
— Celeste, querida, você não sabe mesmo de nada? — perguntou com surpresa piedade. — Henri não lhe falou nada a respeito do que está tentando fazer? Ou você é apenas sua favorita esposa de harém, mantida em purdah, por trás de telas, véus e muros? Será que ele a julga uma mentecapta, que não compreende?
A expressão perturbada de Celeste mudou:
— Ele me contou só um pouquinho — murmurou.
Agnes recostou-se na cadeira e contemplou a jovem mulher por um momento. Sua própria expressão era sombria:
— Entendo... — murmurou. — Sim, ele deve ter-lhe dito. Ele é muito esperto. Sabia que a perdeu outrora porque lhe era repulsivo ... suas ideias, suas intrigas e seus planos eram repulsivos. Talvez vocês tenham estado juntos uma ou duas vezes, levados por atração irresistível, quando você voltou da Europa. Contudo, ele sabia que isso não era o bastante para guardar você. Foi isso, não foi? Assim, teve de dizer-lhe. Não tenho dúvidas de que enfeitou um pouco a coisa, de modo a adquirir uma espécie de nobreza a seus olhos, até mesmo abnegação. Deus nos ajude! Imagine isso, de Henri! Seria muito divertido se não fosse tão danadamente sinistro. Francamente, você pode imaginar Henri fazendo algo de heroico e nobre devido a patriotismo, mudança de coração, virtude ou grandeza? — Ela riu duramente.
Mas Celeste nada disse. Apenas aguardava.
— Entretanto — continuou Agnes, mudando novamente para uma intensidade sombria — o que está fazendo agora é a única oportunidade de sobrevivência para a América... para todos nós. Sabe disso, não sabe? E sabe quem são os inimigos dele, e o que estão tentando fazer?
— Sim — sussurrou Celeste — sei. Ele me disse.
— São inimigos terríveis — continuou Agnes. — Existe apenas fraca possibilidade de que ele vença. Ele está determinado a vencer. Arrastou com ele alguns dos Bouchards, porque estão aterrorizados, porque ele os intimidou, subornou-os, ameaçou-os, e os coagiu. Não importa. Sabe — acrescentou, pensativamente — se eu fosse mais nova iria perseguir Henri. Ele tem alguma coisa! É um homem e tanto!
Novamente mudou a expressão de Celeste, tornou-se intensa de paixão e tragédia. Fixou os olhos em Agnes e esperou, respiração suspensa.
— Não me espanta que o ame — disse Agnes, com gentileza. — Ele tem tudo. Não existem muitos como ele agora, na América... E tem uma terrível luta pela frente. Emile está nessa com ele. Apesar de Emile ser o meu marido bem-amado, não passa de um rato preto inchado. Ao ameaçá-lo, Henri fez um bom trabalho. Christopher está nisso com ele, e Alex, e Francis. Mas existe outra facção, e bem pestilencial. Sabe disso?
Celeste acenou que sim.
— Antoine, aquele amigo brilhante e cheio de mesuras. E outros. Outros, não apenas uns poucos Bouchards, porém outros igualmente poderosos em política, no campo jornalístico, na indústria. Os Bouchards menos importantes estão se revolvendo incertamente ao longo das bordas de ambas as facções. Henri está tentando pô-los na linha. Antoine está tentando também, com muito mais finesse. E por trás de ambos está uma América amorfa e confusa. As coisas estão pretas, Celeste querida. Você sabe disso. E quanto ao futuro? A América rolará atrás do vencedor. Queremos que Henri vença. Você e eu. E muitos outros, também. Viveremos... com Henri. Nós, e a América, morreremos com Antoine.
Levantou-se, como se a pressão de seus pensamentos fosse demasiada para ela. Começou a caminhar de um lado para o outro no salão, essa mulher elegante e segura, fechando e abrindo as mãos:
— Nunca fui patriota. Nunca fui uma "americana". Quantos americanos existem na América? Terrivelmente, terrivelmente poucos! Quantos amam a América? Tenho medo de responder. Só sei que a América é inerte, estúpida, louca, fátua e inanimada. Devemos agradecer isso a tipos como Antoine. Uma nação de mentecaptos de barriga cheia lhes é muito necessária. E uma nação de lunáticos. Você conhece a respeito das organizações que ele está apoiando. Cheias de mulheres insanas, de odientos, gananciosos cruéis, estúpidos e criminosos? Pregamos a formação, aqui na América, de um robusto partido nazista. Ódio é o seu deus, e Jaeckle é seu profeta. Conseguiram o suporte de sacerdotes, assassinos, ladrões, mentirosos e loucos. Este é o panorama na América, esta a perspectiva que Antoine está favorecendo. Você sabe por quê.
Respirou profundamente:
— Engraçado! — murmurou. — Mas acredito, agora, que sou uma americana! Devido ao perigo que corre a América. Por causa dos loucos.
— Eu sei — sussurrou Celeste.
— O America Only Committee — continuou Agnes. — Metade deles é de loucos sinceros e imbecis, que talvez ainda amem a América e não a querem ver envolvida no que chamam guerras "estrangeiras". Como se jamais houvesse alguma guerra "estrangeira"! Poder-se-ia pensar que a América é um planeta rolando por aí serenamente em sua própria órbita, ao invés de parte de um mundo! É como se um homem tivesse câncer numa remota parte de seu corpo, e sua mente lhe perguntasse o que fazer com ele. Era só na barriga, pois não? Que tinha isso a ver com seus braços, ou seus olhos, ou o coração, ou os pulmões? Por algum milagre, esse homem diz a si mesmo, que ele pode ignorar o câncer em sua barriga. Mas lá chega o dia em que ele todo morrerá. Ele esquece isso.
"E, então, pairando pelas bordas do America Only Committee estão as organizações lunáticas, as mulheres orgíacas que gostariam de despedaçar criancinhas com suas mãos nuas, que gostariam de torturar outras mulheres, que gostariam de dormir com os próprios filhos, que gostariam de revolver-se no sangue dos assassinados. Por que estremece, Celeste? Não conhece nada sobre a raça humana? Eu sim, infelizmente.
"E ainda há os padres assassinos e avarentos, que gostariam de torturar os desamparados, que gostariam de roubar-lhes seus bens, que gostariam de escravizar o mundo, que estão inchados de ódio e de loucura. E depois há os criminosos, que querem violentar, atormentar e matar, e veem a oportunidade de fazer essas coisas sem punição. Sim, existe muita loucura no mundo. E muita dessa loucura está atrás de Antoine.
Então parou. Estava de pé junto de Celeste. A neve silvava nas janelas. O vento de inverno se erguia no longo arco de uma concha.
Subitamente Agnes gritou:
— Como tudo isso é apavorante! Como se pode aguentar isso? A Noite de Valpúrgia de fúria e de morte está sobre nós. E esperando, em seus calmos salões, estão os ávidos do poder. Esperando em Washington, esperando em suas fábricas imensas. Esperando pela ruína da América.
Pressionou os dedos finos e brancos de encontro às faces:
— Loucura! Loucura! O mundo inteiro está louco! Agora existem bem poucos homens sãos. Só alguns como Henri. Que importa se está pensando apenas em si mesmo? Ele pode salvar-nos, a todos nós!
Voltou-se, rápida, para Celeste:
—•Henri pensa que entraremos nesta guerra?
— Ele não sabe — suspirou Celeste. — Há alguns meses atrás ele estava certo de que não. Mas agora, não. Está tentando deixar-nos de fora. Está certo que isso significaria o fim da América como a conhecemos, se formos arrastados a ela. Agora, ele quase acredita que será o fim da América se não entrarmos nela.
— Ele ainda odeia Roosevelt? — perguntou Agnes, com um sorriso breve.
— Não sei. Outrora o Presidente o irritava terrivelmente. Mas agora ele é indiferente. Diz que esta coisa é muito maior do que a política. Entretanto, pensa que o Partido Republicano tem oportunidade de vencer a eleição se puder achar um homem bom e espetacular que atraia todos os elementos. De uma coisa ele está certo, no entanto: Roosevelt concorrerá a um terceiro mandato, contra todos os precedentes, preconceitos e tradições, e talvez o candidato republicano seja derrotado.
Porém Agnes parecia não ter ouvido isso. Voltou a sentar-se perto da cunhada:
— E agora, Celeste, tudo isso nos traz de volta a você.
— A mim?
— Sim. Você e Henri. Os inimigos de Henri não se deterão diante de coisa alguma para destruí-lo. Eles sabem, agora, o que ele está tentando fazer. Não sei que outras coisas terão em mente, mas estão prontos para expor você. Farão isso também. Pensa que o povo americano não estará interessado? Bem, pois então se lembre que homens mais importantes que Henri foram destruídos por um pecadillo. A vasta massa do povo americano é muito infantil, facilmente influenciável. Todos se julgam muito virtuosos. Os inimigos de Henri podem fazer tal escândalo nacional sobre isso, esse pequeno caso, que qualquer coisa que ele tente fazer daí em diante será enlameado. Acha isso infantil? Garanto-lhe que não é. Cada inimigo sacerdote neste país fará um cavalo de batalha da "infidelidade" de Henri, até que o destino da América se tornará um casinho sem a menor importância, em comparação. Claro, os mais inteligentes apenas rirão. Porém a massa pueril, e adúltera, de americanos não rirá. Em sua estupidez argumentarão que um homem que dorme com a esposa de outro homem deve ser um completo canalha em quem não se deve confiar, e capaz dos crimes mais odiosos e traiçoeiros e, se deve desconfiar de tudo que ele faz. Muitos heróis fracassaram, muitos grandes líderes do povo foram desacreditados devido a suas agradáveis pequenas excentricidades, e marcados como infames. Esse é o jeito da populaça. E os inimigos de Henri sabem disso.
Celeste estava mortalmente branca:
— Não acredito! O povo americano não pode ser tão estúpido e ignorante! — gritou.
Agnes abanou a cabeça gravemente:
— Garanto-lhe que pode. Como tantos de nossa classe, você acredita que sua mente, sua razão, sua inteligência são partilhadas em quantidades iguais por todas as outras pessoas. Nisso reside nosso erro fatal. O pequeno operário, a modesta balconista, o dono de loja, o pequeno artesão, cujas vidas estão em perigo nestes tempos, ficarão excitados, indignados e furiosos porque o homem que está tentando salvá-los da morte e da escravidão dorme ocasionalmente com a esposa de outro homem. Acha incrível? Só lhe peço que considere a História. Não apenas a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita: na América, o próprio César deve ser um eunuco. Esta é a nossa herança puritana.
Ela hesitou:
— E, claro, esta questão também diz respeito a Armand. Esqueceu que Annette é filha dele? Que acontecerá se contarem a ela, e a moça se divorciar de Henri? Não trema tanto, minha cara. Tem de pensar em tudo isso. Se Annette se divorciar de Henri, então Armand irá esmagá-lo. Armand é um idiota, um doente, mas também é maligno, e ama a filha. Lembre-se: Henri é apenas presidente da Bouchard devido ao poder de Armand. Se for tirado da jogada, então estará acabado o trabalho que está tentando realizar.
Parou e aguardou. Mas Celeste nada disse.
— Você só tem de esperar um pouco — instou Agnes, pondo a mão no ombro de Celeste. — Só até que Armand morra, talvez. Na pior das hipóteses, só até que Henri tenha resolvido certos assuntos. É uma coisa pequena, realmente, comparada com toda a América, não acha?
— Que posso fazer? — disse Celeste, desanimada. — Henri não me ouvirá. Dirá que isso é ridículo, que devo deixá-lo cuidar de tudo, e me deixará sem palavras.
— Sim, eu sei, querida. Por isso é que não deve contar-lhe o que eu lhe disse. É um maldito egotista. Francamente, não sei como você manobrará isso. Diga-lhe qualquer outra coisa. Diga-lhe que Peter precisa de você. Diga-lhe que não quer voltar a vê-lo enquanto Peter for vivo. A coisa agora é com você, Celeste.
Celeste era toda resignação, toda renúncia. Suspirou, e tornou a suspirar. Murmurou:
— Se ele se for, pode nunca voltar. Disse-me isto uma vez. Nunca voltará. Sei disso. Outrora eu o mandei embora... Mais tarde, quando ele compreender, pode não querer voltar...
— Isso é o que você tem de arriscar... — disse Agnes. — Sei como se sente, querida. Mas tudo isso não é nada, comparado às coisas maiores.
Ela se levantou e começou a calçar as luvas. Olhou piedosamente para Celeste, tão desamparada, tão sem vida. Então curvou-se rapidamente e beijou a testa da jovem mulher, dizendo:
— Oh! Minha querida, minha querida! — E se foi.
Celeste ouviu o roncar do carro quando se afastava. Ouvia com intensidade, como para obstruir seus próprios pensamentos. Então, quando tudo estava novamente silencioso, exceto pelo vento e estalar do fogo, a onda de desolação, pesar e agonia que a percorreu dificilmente podia ser suportada. No extremo de sua dor nem podia mover-se. Apenas podia fitar o fogo, até que as órbitas de seus olhos eram um clarão de luz refletida.
Passou-se um bom tempo até que pudesse levantar-se e arrastar-se para o seu quarto. Acendeu as luzes. Ouviu o macio chamado do gongo para o jantar. Mas sentou-se à escrivaninha e puxou para si uma folha de papel. Começou a escrever, e cada palavra era um punhal em seu coração.
Principiou sem cumprimentos:
"Cheguei à conclusão que não podemos voltar a encontrar-nos sob as presentes circunstâncias. Por favor, acredite-me: desta vez minha decisão é definitiva. Não tente procurar-me, por favor. Será inútil. Talvez algum dia seja capaz de compreender."
Selou a carta, endereçou-a a Henri, no escritório.
Livro Três - A Terra Permanente
"Geração vai, geração vem; mas a terra permanece para sempre."
ECLESIASTES, 1:4
Capítulo 36
Annette Bouchard sofria da tristeza comum aos gentis e despretensiosos: era sempre posta de lado e esquecida, embora fosse amada por muitos. Pois mesmo o cruel e o malicioso nada tinham de mau para dizer-lhe, e se fossem culpados de observações depreciativas sobre a sua paciência e doçura, eles as faziam com remorso e piedade.
Sua mente era altruística. Não que não tivesse consciência do sofrimento e da maldade, e de todas as falsidades inerentes à espécie humana. Mas tinha a firme consciência do fluxo da eternidade. E era infinitamente compassiva e compreensiva.
O último dia de fevereiro caiu sobre Robin’s Nest como uma diáfana cortina cinzenta de fumaça, onde tudo ficou indistinto. Mas havia calor e paz na grande e velha casa que jamais conhecera o nascimento de uma criança. "Uma casa tão grande e forte — ela pensava — com tantos quartos lá em cima que poderiam ser transformados em berçários!" Poderia existir coisa como uma "casa estéril"? Crianças viveram ali, sim. Henri e Edith brincaram nesses salões tão quietos, correram acima e abaixo na escadaria em espiral, viram árvores de Natal em um canto do enorme salão, viram a chuva a. cair em gotas prateadas pelas vidraças oitavadas das janelas, haviam dormido nos quartos calmos, haviam lutado, brigado, rido e chorado dentro dessas paredes. Mas apenas duas crianças, afinal de contas. Annette quisera adotar crianças, mas Henri se enfurecera a essa ideia, e lhe lançara um olhar tão terrível que ela jamais voltara a tocar no assunto.
Deu a Annette melancólica felicidade o saber que vivia na casa em que Henri passara sua primeira infância. Gostava de pensar nele como criança. Tentou muitas vezes. Mas seus esforços não lhe evocavam imagem nenhuma. Quando tentou imaginá-lo como garoto, seus pensamentos inquietos voltaram ao retrato do bisavô dele, Ernest Barbour que estava pendurado no maior dos salões. Então uma curiosa compulsão lhe vinha: em qualquer parte da casa em que estivesse, tinha de ir àquela sala e olhar para o retrato. Muitas vezes esse impulso lhe vinha depois de meia-noite, e tinha de descer a escadaria, acender uma lâmpada, e contemplar o quadro por muito tempo.
Lembrava-se de que, ao entrar nessa casa pela primeira vez, como noiva, o retrato parecera olhá-la com fria indiferença, curiosidade, e mesmo uma remota inimizade. Esses pálidos olhos de basilisco a fitaram com estranha fixidez, e por uma ou duas vezes lhe pareceu que eram desdenhosos. Mais tarde, ficaram meramente indiferentes. Quando ela julgava que seu coração se estava rompendo (o que era frequente), imaginava haver um vivido alerta naqueles olhos, como se a fisionomia pintada demonstrasse pensamentos e interesse. Contudo, nunca imaginara piedade neles, ou bondade. Fúria, sim, raiva glacial, maldoso desdém, e por vezes aversão e repugnância — mas nunca piedade. Às vezes pareciam compreendê-la, e escarnecer o que compreendiam.
Nunca, no começo, acreditara no que outros afirmavam: que Henri era a cópia do bisavô, que os olhos eram idênticos, bem como as largas faces descoloridas, o topete de cabelos claros. Por vezes admitia haver alguma semelhança física — mas a expressão era diferente.
Sem embargo, neste último ano, medrosamente fora obrigada a reconhecer que Henri estava agora precisamente como Ernest Barbour fora. Havia o mesmo sulco profundo entre os olhos, as mesmas pregas pesadas em volta da boca brutal, a mesma força abrupta no nariz curto, o mesmo olhar de inexorável determinação. Por vezes ela estava certa de que o retrato virava a cabeça com gesto idêntico ao de Henri, e muitas vezes lhe parecia que franzia os lábios como Henri fazia exatamente antes de abri-los para falar em sua voz monótona. Ernest Barbour estaria mais ou menos com a idade de Henri agora quando o retrato foi pintado, e havia a mesma sombra de cinza prematuro no leve cabelo claro.
Por alguma razão misteriosa, essa semelhança crescente a amedrontava. Com frequência, tinha o confuso pensamento de que não era mais Henri Bouchard que morava nesta casa com ela, mas Ernest Barbour. Então vagava pelas salas quietas e vazias, sentindo-se uma estranha que não tinha direito a viver ali. Erguia-se a cortina e May Sessions, primeira e última esposa de Ernest, aparecia, em seu espesso vestido de veludo carmesim, azafamada, os cachos ruivos presos no alto da cabeça, uma joia no pescoço muito branco, o bonito rosto arredondado prestes a abrir-se num gracioso sorriso — que era uma lenda na família. (Havia no quarto de Henri um pequeno retrato de sua bisavó, e tinha tal expressão de bondade, tão bem-humorada, fascinante, que Annette sentira a nostalgia de não haver conhecido essa grande dama.) Ernest se havia divorciado de May, que o amara com força e paixão, e casara com a prima dela, Amy Drumhill, viúva do irmão dele, Martin. Havia também um retrato de Amy em um dos quartos de dormir de Robin’s Nest, e ela fora adorável — pensava Annette. Amy tivera um rostinho doce e gentil, sonhador e celestial, olhos grandes e suaves, e cachinhos castanhos. O retrato fora pintado quando ela era mocinha, e os esbeltos ombros brancos apareciam inteiramente abaixo do acetinado marfim de sua garganta. Porém ela não tinha realidade para Annette, que gostava de pensar que, após a morte de Amy, Ernest tornara a casar com May, e que ambos morreram na velha mansão Sessions — inspiração e ruína daquele homem terrível. A velha casa Sessions tinha sido um entulho por muito tempo, e há muito largada em ignominiosa ruína, e May nunca vivera em Robin’s Nest onde sua filha, Gertrude, sofrera tal agonia. Entretanto, era May que Annette sempre esperava ver, entrando através do sombrio arco, a deslizar para cima ou para baixo da grande escadaria. Se Ernest Barbour era o malfazejo e insone frequentador a assombrar a casa, May era seu espírito beneficente e bondoso.
Annette suspirou. Pensou, pesarosamente, que Henri devia realmente ter casado com alguém como May Sessions, sempre graciosa e bonita, e forte e vivaz. Uma mulher que lhe tivesse dado filhos. Não era de espantar, pois, que o retrato a olhasse com desprezo e inimizade, e que os pálidos olhos fixos fossem frequentemente ameaçadores.
Henri teria ficado espantado se conhecesse os pensamentos de Annette. Pois em seu idolatrado amor por ele, muitas vezes ponderara sobre a oportunidade de conceder-lhe um divórcio que o capacitasse a voltar a casar e ter os filhos que ela nunca teria. (Frequentemente ela podia ouvir essas crianças-fantasmas a correr pelos corredores, rindo nas salas distantes, arremessando-se escadas abaixo, pedindo, acariciando, chorando.) Era então que sua dor se tornava insuportável, e ela podia lançar-se em acessos de choro que a punham doente por dias e dias. Porém após um ano ou dois de sua vida de casada, soube que não poderia dar o divórcio a Henri. Não enquanto Armand fosse vivo. Annette sabia muito que ninguém mais sabia ou ousava falar.
Certa vez ouvira a cruel Rosemarie Bouchard dizer à irmã, Phyllis:
"Essa horrível criaturinha retorcida nunca se divorciará do pobre Henri. Fincou-lhe as garras muito apropriadamente. Ela sabe que ele não pode se divorciar dela por causa daquele velho inchado, o Armand. De modo que se regozija toda convencida, sabendo que o tem bem seguro."
Annette ficou terrivelmente doente durante seis meses depois de ouvir isso, tão doente que quase morreu. Ninguém soube por que; seus médicos estavam espantados. Só o pensamento de que, se morresse, Henri poderia ficar arruinado foi que a trouxe à vida. Pouco depois de poder sair da cama, visitou um advogado obscuro e fez um testamento deixando para Henri tudo que possuía ou viria a possuir, e incluíra uma carta selada para o pai, na qual lhe implorava que sua parte dos bens, e mesmo mais, fosse para seu marido, que Armand se lembrasse dele e lhe fizesse justiça. Mas ainda temia que, por sua morte, Henri pudesse ser destruído.
Somente alguns meses atrás é que Armand, que ficara doente outra vez, choramingara a verdade para ela, falando do que ele considerara seu leito de morte. Ela sentira tamanha alegria, tal alívio, que esqueceu os receios pelo pai. Mais tarde, a dúvida e o medo lhe voltaram. Se Henri se divorciasse dela, ou o caprichoso e doente Armand mudasse de ideia, a ameaça de ruína permaneceria. Armand esquecera o que lhe dissera em seu meio delírio, mas Annette não esqueceu. Agora eram três a saber: Armand, Henri, e sua esposa.
Só ultimamente é que ocorreu a Annette uma coisa estranha e terrível: esperava, com triste impaciência, que seu amado pai morresse, e com ele morresse a ameaça a Henri. Com horror, percebeu que estava buscando sinais de dissolução no rosto doente de Armand, e tremeu intimamente quando a esperança da imediata morte dele lhe invadiu os pensamentos. Tão curto é o tempo... — diria para si mesma, desesperançadamente. Henri já não era jovem: se tivesse de casar com uma mulher de verdade, e ter filhos, teria de fazê-lo o mais cedo possível. E Armand protelava a coisa, com sua agulha, sua Lista, suas queixas e sua miséria física.
Seu horror ante seus pensamentos, sua impaciência, sofrimento e tristeza estavam devorando suas últimas forças e a tornavam mais transparente, os enormes olhos azuis mais assombrados e exaustos. Sentia que todo o mal estava nela. Mas não podia controlar o desejo apaixonado de que o pai morresse logo.
Embora os Bouchards se apiedassem de sua descendente, julgando-a uma idiota inválida e perturbada, Annette nunca estivera inconsciente das frequentes faltas conjugais de Henri. Acompanhara o desenrolar dos seus "casos" amorosos com sofrimento e interesse. "Oh! Com essa não!" — dizia a si mesma, com terror, quando um caso ou outro parecia prolongar-se indevidamente. Não aquela mulher, com aqueles astutos olhinhos verdes e boca avarenta, não aquela mulher com seu cruel e doce sorriso e suas mãos esvoaçantes, não aquela mulher que a ninguém amava a não ser a si mesma. E, bom Deus! Nunca Rosemarie Bouchard, aquele esbelto demônio parisiense! Mesmo se Armand morresse, nunca daria a Henri um divórcio que lhe permitisse casar com uma daquelas. Só lhe trariam desdita e ódio.
A cada vez que ele começava outro "caso", ela dava um jeito de conhecer a mulher, para estudá-la. E em todos esses anos nunca encontrara uma por quem renunciaria a Henri. Não até ultimamente.
Sempre, desde o início, soubera que Henri amara Celeste, que nunca o esquecera. Mas quando Celeste voltou, Annette só sentira angústia. Porque Henri não podia desposar Celeste. Celeste era esposa de Peter, e nunca se divorciaria dele. Nunca ela ousou confessar a si mesma, mesmo no recesso mais escuro da noite, o que já sabia. O pensamento era por demais doloroso. Henri não casaria com qualquer outra mulher, isso Annette compreendia agora. Contudo, ele não podia casar com Celeste. E Annette, com a culpa da esperança de que Armand logo morresse, não podia estender a mesma esperança para incluir o pobre Peter, a quem amava ternamente.
Tivesse a ligação trazido alegria a Henri, Annette teria extraído um melancólico contentamento desse fato. Mas não estava trazendo alegria a ele. Frequentemente ela o estudava a distância, e não podia notar nele nenhum novo frescor, nem nova vitalidade ou prazer de viver. Ao invés, nesses últimos dois meses, ele se tornara mais austero, envelhecido, selvagem, mais friamente violento. E não era por causa do trabalho incessante que realizava; Annette compreendeu isso. Era algo mais.
Nas últimas semanas ela se dera conta de que ele já não se encontrava com Celeste. Estava confusa e espantada, e amedrontada com isso. Não podia acreditar que estivesse cansado de Celeste, ou ela dele. Então, por que isso?
Por vezes pensava, com triste surpresa e humildade:
"Talvez estejam perturbados por minha causa... Talvez pensem que é ‘errado’..." Sentiu um estranho e inexplicável conforto, e uma súbita dor no coração de tanta ternura — e não podia compreender tudo isso, embora fosse diplomada na arte da autoanálise. Houve nela um súbito alívio, um suavizar e dissolver tristezas que lhe trouxe lágrimas aos olhos.
Pois às vezes, no passado, durante as brutais e indiferentes faltas de Henri ao dever conjugal, ela se arrancava de seu transe de sereno autocontrole com a confusa sensação de despertar de um sono drogado. Então experimentava a dor agônica, o desespero e o repúdio da resignação. Seu próprio desejo humano de amor, paz e segurança não podia ser controlado nessas ocasiões. Perguntava-se com frenético sofrimento e rebeldia, por que deveria ter sido alijada para o desamor e a infelicidade. Que fizera? Não era uma mulher, que apenas desejava amar e servir, e ter um pouco de paz? Por que toda a abnegação deveria ser dela? Henri não poderia ter-lhe dedicado um pouco de afeição, um pouco de consideração, um pouco de ternura?
Fora muito pior quando Celeste voltou. Ela não confessou nem a si mesma o quão freneticamente esperava que Henri e Celeste não se reunissem. Isso porque sempre amara e admirara Celeste, e nela confiara. "Celeste — ela pensava infantilmente, mas com fé — tinha demasiada integridade, muita honra, bondade e senso de dever, para trair a sobrinha e o marido." Se Celeste se tornasse infiel, então desapareceria a última defesa de Annette contra um mundo monstruoso.
Mas Celeste e Henri se juntaram. Annette adivinhava a luta que devia ter atormentado a mulher mais velha. Sua piedade era profunda e intensa. Entretanto, seu coração era injuriado e despedaçado por uma dor confusa. Se ao menos não fosse Celeste! Annette não podia explicar, até para si mesma, por que sentia tão selvagem desespero. Observava Celeste, notava como evitava fitar a sobrinha nos olhos, como aumentavam dia a dia sua palidez, silêncio e frieza, como cada palavra era distraída e incoerente ou triste. Nesses momentos o desespero e a raiva de Annette se suavizavam e ela apenas sentia compaixão. Uma ou duas vezes tivera de conter-se para não gritar:
"Não importa, querida! Não sofra tanto! Estou realmente satisfeita. "
Mas alguma virtude na alma da pobre criaturinha se escoava e sangrava como um órgão separado e ferido, e seu último fraco apego à vida, sua última fé na espécie humana se perdiam.
E então soube que Henri e Celeste já não se encontravam. Após a primeira confusão, ficou arrebatada de alegria. Celeste não podia continuar a traí-la. Renovaram-se sua fé e sua esperança, sua coragem e sua tranquilidade.
Hoje estava esperando por Henri. O quarto cálido e calmo estava fortificado com as luzes das lâmpadas e do fogo contra a melancolia e o acinzentado da penumbra, contra sua ameaça fria e semelhante à morte. Annette usava um vestido de macia lã amarela e seus cabelos finos e brilhantes se enroscavam em anéis em volta da cabeça. Toda a sua aparência era gentil, e os olhos azuis brilhavam. Ouviu a aproximação de Henri, e a velha pulsação dolorida começou em sua garganta. Virou-se para ele, sorridente, e estendeu-lhe a mão:
— Alô, querido! — disse, suavemente, buscando-lhe a face com íntima ansiedade.
Ele a olhou em silêncio, depois falou, brevemente:
— Boa-noite. — Falou com esforço, quando acrescentou: — Dia miserável, não?
Sentou-se pesadamente, perto do fogo, cotovelo no braço da poltrona, queixo na mão. Contemplava o fogo. Ele a havia esquecido. Ela viu sua melancolia e abstração, e ficou impotente. Se ao menos ele bebesse, como fazem outros homens! Se pudesse haver o alegre tilintar nos copos altos, o pungente odor de uísque, o silvo alegre da soda! Mas Henri Bouchard não tinha consolo, nem fuga da realidade. Nada desejava. Seria isso uma fraqueza, ou uma força? Annette não sabia. Apenas sabia que o álcool lhe repugnava, sabor e cheiro o enojavam. Certa vez dissera desejar que fosse vendido em cápsulas, de modo que não se precisasse conhecer-lhe o gosto, mas se sentisse o efeito. Mas realmente não falara a sério. Não desejava nenhum efeito.
Timidamente Annette sentou-se junto dele, um brilhante sorriso fixo no rostinho. Bateu as mãos e disse, em tom ligeiro:
— Gostaria de uma cápsula, Henri?
— Quê? — perguntou, virando a cabeça lentamente para fitá-la. — Uma cápsula?...
Ela se sentiu uma boba sob aquele olhar longo e inexorável que a condenava por sua futilidade. Estremeceu, ainda sorrindo:
— Lembra-se, querido. Você muitas vezes falou de cápsulas. Para álcool. Está um dia tão feio, e anda tanta gripe por aí... Pensei que talvez gostasse de uma bebida.
Ela esperava uma recusa abrupta e aborrecida. Para sua surpresa, ele começou a sorrir. Deixou cair a mão. Olhou-a amistosamente:
— Não é má ideia! Muito bem. Mas não uísque e soda: é uma bebida muito comprida. Algo concentrado... e forte. Não sei o quê.
Ela estava tonta de excitação e felicidade. Havia muito tempo que ele não condescendia em falar-lhe casualmente, ou em dar-se conta de que ela existia. Ele agora a fitava com uma expressão curiosamente pensativa, e havia uma excitação nos olhos descorados e inexoráveis que a miravam atentamente. Ela pulou imediatamente e tocou a campainha. Ao criado encomendou dois Manhattans.
— Mas muito fortes, por favor — murmurou. Voltou para Henri e tornou a sentar-se. Seu sorriso era amplo e forçado.
Ela sabia muito bem que tinha inteligência e eloquência, mas com Henri sempre fora muda e absurda. Queria dizer, como sempre, coisas brilhantes e sutis, que lhe inspirassem admiração. Mas as palavras que lhe acudiam eram sempre tolas e sem vitalidade. Ela o amava terrivelmente, e o temia ainda mais. Apenas podia contemplá-lo com os lustrosos e brilhantes olhos tão azuis, e desejar desesperadamente poder aproximar-se dele, que ele lhe dissesse tudo que o atormentava nesses dias terríveis. Estava certa de que ele ficaria espantado com a extensão de seus conhecimentos.
Embora Henri não fosse um homem sutil, era astuto e penetrante. Sabia muito o que sua esposa estava pensando. Annette estava completamente enganada: ele não a considerava uma tola. Sob muitos aspectos, achava que ela era superior a Celeste; sua mente era translúcida, mais madura, mais civilizada. Com frequência a lamentava, e se zangava consigo mesmo por sua própria brutalidade, pois ninguém, ele sabia, devia ferir essa pobre criaturinha linda sem sofrer algum dano em si mesmo. Não era dado à compaixão, mas sentira mais piedade por Annette do que jamais sentira por outro ser humano.
......
Embora seu olhar ainda estivesse curiosamente pensativo e alerta, enquanto a fitava, permitiu-se relaxar um pouco. Quando foram trazidos os coquetéis, ele lhes deu uma olhadela de desgosto, levou o copo aos lábios e bebeu apressadamente. Fez uma careta, limpou a boca com o lenço. Annette bebericou o dela vagarosamente, esperando e orando para que a rigidez em seu corpo diminuísse, e que ela fosse capaz de falar com ele em tom casual. Toda a sua vida de casada sonhara com uma hora em que ela e Henri conversassem facilmente, pudessem chegar a amizade e intimidade, pudessem rir juntos à luz da lareira. Seria esta a hora? Nunca antes estivera com ele quando estava tão pensativo, tão disposto. O coquetel criou nela uma radiante e ardente excitação, e o tenso tremor de seus músculos relaxou. Poderia ser sua imaginação, mas Henri parecia menos duro agora, e suas mãos largas e fortes pousavam relaxadas nos braços da poltrona. Seu coração se tornou uma enorme e trêmula massa informe no peito, e houve de repente lágrimas em seus olhos.
— Estava bom? — perguntou, num tom meio tremido. — Quero dizer: a cápsula?
— Sim — disse ele, amigavelmente. — Nada mau. Exceto pelo sabor. Por que não inventam bebidas que não repugnem ao paladar? Isso seria uma dádiva de Deus. Sinto-me aquecido agora. Estive gelado o dia todo.
"Que posso dizer que o interesse?" — pensou Annette, desesperadamente. Mas nada achou para dizer. Ouviu-se falando:
— Ouvi de papai há uma hora. Está doente outra vez. E terrivelmente assustado. Ganhou vários quilos, o que é muito mau.
Por que estaria ele interessado em Armand? Mas, para sua surpresa, ele estava interessado:
— Ele come demais — comentou. — E quanto à Lista? Está se descuidando?
— Não sei. Acho que ele está apenas infeliz — disse Annette, baixando a voz tristemente.
— Por que estaria infeliz, Annette? Ele jamais gostou do negócio. Tem sido um alívio para ele não estar mais na ativa. Está solitário? Nunca se importou muito com...
O melhor da literatura para todos os gostos e idades