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A definição de mocho sempre lhe agradara: Uma ave nocturna predatória... garras afiadas e plumagem macia que permite um voo sem som... aplica-se figurativamente a uma pessoa com hábitos nocturnos. ”Eu sou o Mocho”, sussurrava ele para si mesmo depois de ter seleccionado a sua presa, ”e a noite é que é a minha hora”.
CAPÍTULO UM
Era a terceira vez no espaço de um mês que ia a Los Angeles observar as actividades diárias dela.
- Conheço as tuas idas e vindas - murmurou enquanto aguardava na casa da piscina. Passava um minuto das sete. O Sol matinal escoava-se através das árvores, imprimindo cintilações aos salpicos da cascata que tombavam na piscina.
Interrogou-se se Alison conseguia pressentir que apenas lhe restava mais um minuto de vida na terra. Experimentaria ela um certo mal-estar, porventura o desejo inconsciente de, nessa manhã, esquivar-se às braçadas na água? Mesmo que assim fosse, de nada lhe valia, pois era tarde de mais.
A porta de vidro deslizou para o lado e ela entrou no pátio. Aos trinta e oito, era muito mais atraente do que fora aos vinte. O biquini assentava-lhe bem no corpo bronzeado e esbelto, e o cabelo, agora com os tons dourados do mel, emoldurava-lhe e esbatia-lhe o queixo adunco.
Viu-a atirar a toalha que trazia para cima de uma espreguiçadeira. Sentiu a fúria cega que fervilhava dentro de si converter-se em raiva, e logo a seguir em satisfação por saber o que estava prestes a fazer. Ucorreu-lhe uma entrevista feita a um mergulhador temerário em que este jurara que o momento que antecedia o mergulho - momento esse em que iniciava as proezas acrobáticas, ciente de que arriscava a vida era avassalado por emoções indescritíveis, uma sensação que ele necessitava de repetir vezes sem conta.
Para mim é diferente, pensou. O que me causa emoção é o momento em que estou prestes a revelar-me a elas. Sei que vão morrer, e quando me vêem, também ficam a sabê-lo, pois compreendem o que lhes vou fazer.
Alison avançou para a prancha de saltos e esticou-se. Viu-a balançar-se ao de leve, testando a prancha e, em seguida, levar os braços à frente.
Abriu a porta da casa da piscina no momento exacto em que ela erguia os pés da prancha. Queria que executasse o salto no ar e o avistasse. Antes de tocar na água. Queria que compreendesse o quão vulnerável estava.
Nessa fracção de segundo, os olhos de ambos cruzaram-se. Viu a sua expressão quando ela mergulhou. Era de terror, como se percebesse que não tinha hipóteses de fuga.
Antes que voltasse à superfície, já ele se encontrava na piscina. Apertou-a contra o peito, e vê-la contorcer-se e bater com os pés fê-lo soltar uma gargalhada. Que estúpida. Porque não se limitava a aceitar o inevitável?
- Vais morrer - sussurrou-lhe, com voz calma e despojada de sentimentos.
O cabelo dela atravessou-se-lhe no rosto, cegando-o. Repeliu-o com um gesto impaciente, pois queria gozar o prazer de a sentir estrebuchar.
O fim estava próximo. Na ânsia por respirar, a mulher abrira a boca e engolia golfadas de água. Sentiu-lhe o esforço derradeiro para, frenética, se afastar dele, e depois as débeis e vãs convulsões à medida que o corpo ia ficando inerte e flácido. Apertou-a um pouco mais, desejoso de lhe poder ler a mente. Estaria a rezar? Estaria a suplicar a Deus que a salvasse? Estaria a vislumbrar a tal luz que as pessoas que passaram por uma experiência próxima da morte afirmam ter visto?
Aguardou três minutos antes de a soltar, e observou com um sorriso de satisfação o corpo dela esparramar-se no fundo da piscina.
Passavam cinco minutos das sete quando saiu da piscina, vestiu uns calções, uma camisola, calçou uns ténis e colocou um chapéu e óculos escuros. Já escolhera o local onde depositaria a lembrança silenciosa da sua visita, o cartão nunca descoberto por ninguém.
Passavam seis minutos das sete quando começou a percorrer a rua calma em passo acelerado, mais um praticante da boa forma física, madrugador numa cidade repleta de adeptos da boa forma física.
CAPÍTULO DOIS
Naquela tarde, Sam Deegan não tencionava abrir o ficheiro relativo a Karen Sommers. Pusera-se a esquadrinhar a gaveta do fundo da secretária à procura da embalagem de pastilhas para a constipação que se recordava vagamente de ter atirado lá para dentro, quando os seus dedos tocaram no dossiê gasto e perturbadoramente familiar. Hesitou e, esboçando uma careta, puxou-o para fora e abriu-o. Ao olhar para a data que figurava na primeira página, percebeu que o subconsciente o impelira a encontrá-lo. Na semana seguinte, iam completar-se vinte anos que Karen Sommers morrera, no Dia de Cristóvão Colombo.
O ficheiro devia estar guardado juntamente com os outros casos por resolver, mas três promotores consecutivos do Condado de Orange tinham acedido ao desejo que manifestara de o manter à sua guarda. Vinte anos atrás, Sam fora o primeiro detective a acorrer ao apelo desesperado de uma mulher que telefonara a gritar que a filha fora esfaqueada.
Passados alguns minutos, quando chegara à casa da Mountain Road em Cornwall-on-Hudson, deparara com o quarto da vítima apinhado de curiosos em estado de choque e apavorados. Um dos vizinhos encontrava-se inclinado sobre a cama tentando em vão reanimá-la. Havia outros que se esforçavam por afastar os histéricos pais do espectáculo pungente oferecido pelo corpo retalhado da filha.
O cabelo de Karen Sommers espalhava-se pela almofada. Quando o aprendiz de socorrista se afastou, Sam conseguiu ver as feridas horrendas desferidas pela navalha no peito e coração de Karen, que lhe deviam ter provocado morte imediata e tinham empapado os lençóis de sangue.
Lembrou-se de que na altura o seu pensamento imediato fora de que a jovem talvez nem tivesse ouvido o atacante entrar no quarto. Se calhar nunca acordou, reflectiu, abanando a cabeça ao abrir o dossiê. Os gritos da mãe tinham atraído não só os vizinhos como também um agrimensor e o homem do leite, que se encontravam junto à porta do lado. Como consequência, a cena do crime fora seriamente conspurcada.
Não havia indícios de entrada por arrombamento e nada faltava. Karen Sommers, de vinte anos, frequentava o primeiro ano de Medicina e aparecera de surpresa em casa dos pais para passar a noite com eles. O suspeito lógico fora Cyrus Lindstrom, o ex-namorado que frequentava o terceiro ano de Direito na Universidade de Columbia. Admitira que Karen lhe dissera que queria que ambos começassem a conviver com outras pessoas, mas também insistira que concordara tratar-se de uma boa ideia por nenhum deles se achar preparado para assumir um compromisso a sério. O álibi que apresentara - de que estava a dormir no apartamento que partilhava com outros três estudantes de Direito - fora confirmado, embora os companheiros de quarto admitissem ter-se deitado por volta da meia-noite e, portanto, desconhecerem se depois daquela hora Lindstrom deixara ou não o apartamento. A hora da morte de Karen fora calculada entre as duas e as três da manhã.
Lindstrom frequentara algumas vezes a casa dos Sommers e sabia que junto à porta das traseiras, por baixo de uma pedra falsa, estes guardavam uma chave suplementar. Sabia que o quarto de Karen era o primeiro à direita, de quem vinha das escadas dos fundos. Mas não havia provas de que a meio da noite, ele tivesse efectuado o trajecto de cerca de cinquenta quilómetros desde a Amsterdam Avenue com a 104th Street em Manhattan até Cornwall-on-Hudson, e a matasse.
Uma pessoa interessante... é o que chamamos hoje aos indivíduos como Lindstrom, reflectiu Sam. Achei sempre que o tipo tinha a culpa estampada na testa. Nunca consegui entender por que motivo a família Sommers tomou o partido dele. Santo Deus, qualquer pessoa até julgaria que defendiam o próprio filho.
Com um gesto impaciente, Sam atirou a pasta para cima da secretária, levantou-se e dirigiu-se à janela. Dali conseguia vislumbrar o parque de estacionamento e lembrou-se da ocasião em que um prisioneiro que ia ser condenado por homicídio dominara um dos guardas, se atirara da janela do edifício do tribunal, atravessara a correr o parque, estrangulara um tipo que ia a entrar num carro, apoderara-se do veículo deste e fugira.
Apanhámo-lo decorridos vinte minutos, pensou Sam. Então por que motivo ao fim de vinte anos eu não consigo descobrir a besta que matou Karen Sommers? Aposto a minha cabeça em como foi Lindstrom.
Lindstrom era agora um advogado criminal de Nova Iorque altamente conceituado.
Um mestre em ilibar os assassinos, pensou Sam. Não admira, pois também pertence à ralé.
Encolheu os ombros. O dia estava péssimo, chovia e fazia um frio pouco habitual para aquele início de Outubro.
Costumava adorar a minha profissão, cismou, mas já não é a mesma coisa. Estou a precisar de me reformar. Tenho cinquenta anos e passei quase toda a vida a trabalhar como polícia. Chegou a altura de viver da pensão e afastar-me disto. De perder uns quilos, visitar os filhos e passar mais tempo com os netos. Não tarda nada já andam na faculdade.
Ao passar a mão pelo cabelo ralo, experimentou um vago latejar que prenunciava uma enxaqueca.
Kate costumava dizer-me para não afazer, pensou. Afirmava que assim eu enfraquecia as raízes.
Esboçou um sorriso ao lembrar-se da análise pseudocientífica que a falecida mulher fazia da sua calvície incipiente, voltou a instalar-se à secretária e pôs-se de novo a contemplar o ficheiro identificado como ”Karen Sommers”.
Continuava a visitar com regularidade Alice, a mãe de Karen, pois esta mudara-se para um condomínio da cidade. Sabia que a reconfortava saber que continuavam a tentar descobrir a pessoa que roubara a vida à filha, mas também o movia um outro motivo. Sam tinha o pressentimento de que chegaria o dia em que Alice havia de mencionar algo que nunca lhe ocorrera ser importante, algo que constituísse o primeiro passo para descobrir quem entrara naquela noite no quarto de Karen.
Isso é que me tem mantido nos últimos anos no activo, reflectiu. Ansiei tanto por resolver este caso, mas já não consigo aguentar mais.
Abriu a gaveta do fundo e hesitou. Tinha de desistir. Chegara o momento de arrumar o dossiê no arquivo geral juntamente com os outros casos sem solução. Fizera tudo ao seu alcance. Nos primeiros doze anos após o homicídio, fora ao cemitério por altura do aniversário. Permanecera o dia inteiro, escondido atrás de um mausoléu, a observar a campa de Karen. Chegara mesmo a colocar um gravador no túmulo a fim de registar tudo o que os visitantes porventura dissessem. Houvera casos em que os homicidas tinham sido apanhados por visitarem a campa das vítimas por ocasião do aniversário da morte destas e chegarem mesmo a referir-lhes o crime.
Nessas ocasiões, as únicas pessoas a visitarem a campa de Karen tinham sido os pais da jovem e considerava uma devassa infame à intimidade destes ouvi-los desfiarem recordações da sua única filha. Há oito anos desistira de lá ir, pois Michael Sommers falecera e só Alice visitava agora a campa onde pai e filha repousavam lado a lado. Nessa altura desistira por não querer testemunhar o desgosto da senhora, e nunca mais voltara.
Sam levantou-se e colocou a pasta debaixo do braço. Já tomara uma decisão. Nunca mais voltaria a pegar-lhe. E na semana seguinte, por altura do vigésimo aniversário da morte de Karen, ia meter os papéis para a reforma.
E passo pelo cemitério, pensou. Só para ela saber o quanto lamento não conseguir fazer mais nada por ela.
CAPÍTULO TRÊS
Demorara quase sete horas a sair de Washington, passar por Maryland, Delaware e Nova Jérsia até chegar à cidade de Cornwall-on-Hudson.
Não era uma viagem que Jean Sheridan apreciasse efectuar - não se tratava bem da distância, mas sim do facto de Cornwall, a cidade em que crescera, estar repleta de lembranças dolorosas.
Jurara a si mesma que por mais convincente e encantador que Jack Emerson, o presidente do comité da vigésima reunião dos antigos alunos do último ano do secundário tentasse ser, evocaria o trabalho, outros compromissos, a saúde - tudo para evitar comparecer à mesma.
Não sentia desejos de celebrar a sua condição de finalista do secundário pela Academia Stonecroft que ocorrera há vinte anos, embora estivesse grata pela educação que aí recebera. Embora ciente do facto de que os estudos académicos que completara em Stonecroft haviam constituído a pedra basilar para a sua formação em Bryn Mawr e depois para o seu doutoramento pela Universidade de Princeton, nem sequer a perspectiva de ir receber a medalha para ”Aluna de Mérito” a entusiasmava.
Mas agora que a efeméride em honra de Alison passara a integrar a agenda da reunião, era-lhe impossível recusar-se a comparecer.
A morte de Alison ainda se lhe afigurava tão irreal que Jean quase esperava ouvir o telefone tocar e escutar a voz familiar da amiga, debitando um discurso sincopado e apressado como se tudo fosse para ser dito no espaço de dez segundos. ”Jeannie. Ultimamente não tens ligado. Já te esqueceste de que estou viva? Detesto-te. Não, não te detesto. Gosto de ti. Inspiras-me um pavor respeitoso. Caramba, és tão inteligente! Na próxima semana há uma estreia teatral em Nova Iorque. Curt Ballard é um dos meus clientes. Um actor do pior que há, mas tão borracho que ninguém se rala. A última namorada dele também vai. Ias desmaiar mesmo que te bichanasse o nome dela ao ouvido. Adiante. Estás livre na próxima terça-feira? O cocktail é às seis, segue-se o filme, depois um jantar íntimo para vinte, trinta ou cinquenta pessoas.”
A Alison conseguia transmitir sempre este tipo de mensagem no espaço de dez segundos, reflectiu Jean. E ficava sempre escandalizada quando noventa por cento das vezes Jean não conseguia entender patavina, largava tudo e corria a ir ter com ela a Nova Iorque.
Alison morrera há quase um mês. Por inacreditável que fosse, o facto de poder ter sido vítima de homicídio era insuportável. Mas ao longo da sua carreira granjeara hordas de inimigos. Ninguém consegue chefiar uma das agências de talentos mais importantes do país sem suscitar ódios. Demais, a perspicácia acutilante e o sarcasmo contundente de Alison tinham sido comparados às elocuções provocadoras da lendária Dorothy Parker. Jean interrogou-se se haveria alguém - a quem ela expusera ao ridículo ou despedira - com raiva suficiente para a matar.
Gostaria de poder pensar que quando mergulhou na piscina desmaiou, pensou. Recuso-me a crer que alguém a obrigou a manter-se debaixo de água.
Olhou de soslaio para a bolsa que se encontrava no assento do lado do passageiro, e a sua atenção desviou-se para o envelope que esta continha.
Que vou fazer?, interrogou-se. Quem é que mo enviou e porquê? Como foi possível alguém descobrir a existência de Uly? Correrá ela perigo? Oh, meu Deus, que hei-de fazer? Que posso eu fazer?
Tais dúvidas acossavam-na desde que há algumas semanas recebera o relatório do laboratório, provocando-lhe noites de insónia.
Encontrava-se na estrada lateral que ia da Via 9W a Cornwall. E West Point ficava perto de Cornwall. Jean engoliu em seco, tentando desfazer o nó que lhe embargava a garganta, e esforçou-se por se concentrar na beleza da tarde outonal. O espectáculo das árvores cobertas de folhas cor de ouro, laranja e vermelho rubro era de cortar a respiração. Elevando-se acima destas, as montanhas repousavam como sempre numa serena quietude.
Já me esquecera de como este lugar é lindo, reflectiu.
Mas é claro que o pensamento lhe despertou inevitavelmente recordações das tardes passadas em West Point, durante as quais em dias como aquele se sentava nos degraus do monumento. Ali começara o seu primeiro livro, uma história a respeito da academia militar.
Demorei dez anos a terminá-lo, pensou, sobretudo porque durante muito tempo me senti incapaz de escrever sobre o assunto.
Cadete Carroll Reed Thornton, Jr., de Maryland.
Não penses agora no Reed, admoestou-se Jean.
O desvio da Via 9W para a Walnut Street continuava a ser mais uma reacção automática do que uma decisão ponderada. A Casa Glen-Ridge na Cornwall, cujo nome se inspirara num dos colégios internos mais importantes da cidade, datando de meados do século xix, fora o hotel escolhido para a reunião. Na sua turma de formatura havia noventa estudantes e de acordo com a última lista actualizada que recebera, quarenta e dois destes planeavam comparecer, acompanhados dos cônjuges ou dos namorados, assim como dos filhos.
Quanto a si, não tivera de fazer reservas adicionais.
Coubera a Jack Emerson a decisão de efectuar o convívio em Outubro e não em Junho. Com base na estimativa que elaborara da turma concluíra que Junho era um mês em que os filhos estavam a finalizar o secundário ou o preparatório, dificultando assim a disponibilidade dos participantes.
Recebera pelo correio um crachá, que no cimo incluía a fotografia da turma de finalistas e por baixo, o seu nome gravado. Fora enviado em conjunto com a agenda de actividades para o fim-de-semana: na noite de sexta-feira, um cocktail de abertura e bufete. Sábado, o pequeno-almoço volante, passeio até West Point, o jogo de futebol Exército-Princeton, cocktail e jantar de trajo a rigor. Em princípio, a reunião deveria terminar no domingo com um almoço ligeiro em Stonecroft, mas devido à morte de Alison decidira-se incluir da parte da manhã uma cerimónia fúnebre em sua honra. Ela fora enterrada no cemitério adjacente à escola, e o serviço decorreria no cemitério.
O motivo principal para esta cerimónia, planeada à última hora, devia-se ao facto de Alison ter deixado em testamento um generoso donativo para o fundo de bolsas de estudo de Stonecroft.
A rua principal não parece muito diferente, pensou Jean enquanto conduzia devagar pela cidade. Muitos anos se tinham passado desde que ali estivera. No Verão da sua formatura em Stonecroft, e depois de optarem finalmente pelo divórcio, os pais tinham vendido a casa e seguido caminhos distintos. O pai geria agora um hotel em Maui. A mãe mudara-se para Cleveland, local onde crescera, e casara-se com um antigo namorado do liceu.
- O meu maior erro foi há trinta anos não casar com Eric - declarara, efusiva, no casamento.
E aonde é que isto me leva? - fora o pensamento que na altura atravessara o espírito de Jean. Mas o divórcio significara, pelo menos, o fim misericordioso da sua vida em Cornwall.
Resistiu ao impulso de efectuar o desvio para a Mountain Road e passar pela sua antiga casa. Talvez o faça durante o fim-de-semana, pensou, mas não agora. Decorridos três minutos estacionara junto ao passeio da Casa Glen-Ridge e, com um sorriso caloroso de profissional a atravessar-lhe o rosto, o porteiro abriu-lhe a porta do carro e declarou:
- Bem-vinda a casa.
Jean premiu o botão do porta-bagagem e ficou a observar o homem a retirar o porta-fatos e a mala de viagem.
- Dirija-se à recepção para confirmar a reserva - insistiu o porteiro. - Nós encarregamo-nos da bagagem.
O átrio do hotel era selecto e acolhedor, com alcatifas espessas e grupos de cadeiras confortáveis. A recepção ficava à esquerda e na diagonal desta, Jean avistou o bar, e verificou que este já começava a encher-se com os participantes do beberete.
Sobre o balcão da recepção, via-se um cartaz a dar as boas-vindas à turma de Stonecroft.
- Bem-vinda a casa, Sr.a Sheridan - declarou o recepcionista, Um homem já na casa dos sessenta, esboçando um sorriso que lhe revelava os dentes brancos e cintilantes. O tom do cabelo mal pintado coincidia exactamente com o tampo de madeira de cerejeira do balcão. Ao estender-lhe o cartão de crédito, ocorreu a Jean o pensamento incongruente de que se calhar o homem retirara uma lasca do mesmo para o levar como amostra ao barbeiro.
Ainda não se sentia preparada para confraternizar com os antigos colegas, e fez votos para conseguir chegar ao elevador sem esbarrar com alguém conhecido. Pretendia ter, pelo menos, meia hora de descanso para poder tomar um duche e mudar de roupa, antes de colocar o crachá com a fotografia da assustada rapariguinha de dezoito anos e coração destroçado, e juntar-se no cocktail aos antigos colegas.
Quando pegou na chave do quarto e se virou, ouviu a voz do recepcionista:
- Oh, Sr.a Sheridan, quase me ia esquecendo. Tenho um fax para si. - Pestanejando ao ver o nome no envelope, acrescentou: - Ah, desculpe, devia tratá-la por Dr.a Sheridan.
Sem responder, Jean abriu o envelope. O fax era da sua secretária de Georgetown e dizia: ”Dr.a Sheridan, desculpe incomodá-la. Se calhar trata-se de uma brincadeira ou de um engano, mas achei que queria ver isto.” O ”isto” referia-se a uma folha de papel que fora enviada por fax para o seu escritório e dizia: ”Jean, acho que por esta altura já percebeste que conheço a Lily. Eis o meu problema. Devo beijá-la ou matá-la? É só uma gracinha. Depois contacto-te.”
Por um instante, Jean sentiu-se incapaz de se mexer ou raciocinar. Matá-la? Matá-la? Mas porquê? Porquê?
Ele encontrava-se junto ao bar, observando, à espera que ela aparecesse. Ao longo dos anos vira a sua fotografia nas capas dos livros e constituía sempre um choque renovado verificar que Jeannie Sheridan adquirira aquele aspecto tão requintado.
Em Stonecroft fora uma aluna inteligente, embora discreta. Até chegara a mostrar-se simpática para com ele e revelara uma certa genuinidade. Começara a gostar mesmo da rapariga até Alison lhe contar que todas troçavam dele. Sabia muito bem quem eram ”todas”: Alison, Catherine, Cindy, Debra, Gloria, Jean e Laura. Ao almoço, costumavam sentar-se à mesma mesa.
Tão queridinhas! - pensou, sentindo a raiva começar a embargar-lhe a garganta. Agora Alison, Catherine, Cindy, Debra e Gloria já se foram. Guardara Laura para o fim. O engraçado era que ainda tinha dúvidas em relação a Jean. Por um motivo qualquer, hesitava em matá-la. Ainda se lembrava da ocasião em que, sendo caloiro, tentara que o admitissem na equipa de basebol. Tinham corrido logo com ele e começara a chorar, derramando aquelas lágrimas que nunca conseguia refrear.
Chora, meu bebé. Chora, meu bebé.
Correra para fora do campo e instantes depois Jeannie viera no seu encalço.
- Não consegui entrar para a claque de apoio - disse ela. E depois, que é que tem?
Sabia que ela o seguira por estar com pena dele. Por isso é que uma vozinha lhe sussurrara que Jean não fora das que tinham troçado dele por querer convidar Laura para um passeio até à esplanada. Mas depois magoara-o de um modo diferente.
Laura fora sempre a rapariga mais bonita da turma - cabelos de um louro dourado, olhos azuis de porcelana e um corpo estupendo que até a saia e blusa de Stonecroft não conseguiam esconder. Nunca tivera dúvidas quanto ao poder que exercia sobre os rapazes. Quando dizia ”aproxima-te”, fazia-o num sussurro.
Alison fora sempre maldosa. Escrevia para o jornal da escola, e a sua coluna ”Nos Bastidores” devia em princípio relatar as actividades escolares. Porém, descobria sempre uma maneira de enterrar alguém, como acontecera numa crítica à peça da escola, em que afirmara: ”Para surpresa de todos, Romeu, aliás, Joel Nieman, conseguiu lembrar-se de quase todas as deixas.” Na altura, os miúdos populares consideravam Alison uma víbora, e os parvalhões mantinham-se longe dela.
Parvalhões como eu, pensou, saboreando a recordação do olhar de terror estampado no rosto de Alison quando o viu encaminhar-se na sua direcção, vindo da casa da piscina.
Jean gozara de popularidade, mas nunca se parecera com as outras raparigas. Fora eleita para o conselho escolar e revelara uma actuação tão discreta que qualquer um julgaria que não conseguia falar. Porém, sempre que abria a boca, fosse aí fosse na aula, tinha a resposta adequada. Já nessa altura era uma apaixonada por História. O que o surpreendia era verificar o quão bonita se tornara. O fino cabelo castanho-claro escurecera e ganhara volume, emoldurando-lhe o rosto como se fosse um capuz. Continuava esbelta, mas sem a magreza aflitiva de outrora. Algures a meio do percurso também se aprendera a vestir, e apresentava-se agora com casacos e calças de bom corte. Observou-o enquanto ela atirava o fax para dentro da mala e só teve pena de não conseguir ver-lhe a expressão do rosto.
Eu sou o mocho e vivo numa árvore.
As palavras de Laura a imitá-lo repercutiram-se-lhe no espírito.
”Ela conhece-te de ginjeira”, guinchara-lhe Alison naquela noite, há vinte anos. ”E disse-nos que também fazes chichi nas calças.”
Conseguia imaginá-las a troçar dele, chegavam-lhe estridentes aos ouvidos as revoadas de gargalhadinhas trocistas.
Acontecera na segunda classe, contava ele sete anos. Ensaiavam a peça de teatro e era a sua deixa, tinha apenas que dizer uma linha. Porém não conseguira. Gaguejara tanto que todos os miúdos que se encontravam no palco e até alguns dos pais começaram a rir-se à socapa.
”Eu ssssssooou o-o-o mooooccchhhoooo e viiiiivwo nummmaaa...”
Fora incapaz de pronunciar a palavra ”árvore”. Nessa altura irrompera em pranto e correra para fora do palco segurando na mão o ramo de árvore. O pai dera-lhe uma estalada por ser tão mariquinhas e a mãe interviera, dizendo: ”Deixa-o em paz. O miúdo é apalermado. Que é que esperavas? Olha para ele. Voltou a mijar nas calças.”
Enquanto via Jean Sheridan a entrar no elevador, à recordação da vergonha sofrida vieram misturar-se as gargalhadas imaginárias das raparigas e sentiu a cabeça a fervilhar.
Porque te hei-de eu poupar?, pensou. Talvez despache primeiro a Laura e em seguida vais tu. Depois já podem rir à vontade no inferno, todas vocês.
Ouviu pronunciar o seu nome e virou a cabeça. Dick Gormley, o grande ás de basebol da turma, encontrava-se no bar ao lado dele, com os olhos fixos no seu crachá.
- Que prazer em ver-te - declarou Dick, animadamente.
Aldrabão pensou, e não tenho prazer nenhum em ver-te.
CAPÍTULO QUATRO
Laura dispunha-se a meter a chave na fechadura da porta do quarto quando apareceu o paquete carregado com a sua bagagem: um porta-fatos, duas malas de viagem grandes e uma bolsa de couro. Percebeu o que o homem estava a pensar: Minha senhora, a reunião vai durar quarenta e oito horas, não duas semanas.
Mas o sujeito declarou em voz alta:
- Sr.a Wilcox, eu e a minha mulher costumávamos ver todas as terças-feiras à noite o Henderson County. Achávamos que a senhora ia muito bem. Há alguma hipótese de reporem a série?
Há tantas hipóteses como um boneco de neve se dar bem no inferno, pensou Laura. Porém, a sinceridade evidente do homem animou-a, e bem precisava.
- Henderson County não, mas fiz uma série-piloto para o Canal Maximum - respondeu. - Está programada para começar a ser exibida depois do Dia de Ano Novo.
Não era verdade, mas estava perto. O Maximum dera o seu aval ao episódio-piloto e anunciara que estava a ponderar a continuação da série. Então, dois dias antes de morrer, Alison telefonara-lhe.
- Laura, minha querida, não sei como dizer-te, mas estamos com um problema. O Canal Maximum quer alguém mais jovem para desempenhar o papel de Emmie.
Mais jovem? - gritara. - Alison, pelo amor de Deus, tenho trinta e oito anos! A mãe da série tem uma filha de doze. E eu estou com um óptimo aspecto. Sabes bem que sim.
- Não me grites - retorquira Alison. - Ando a esforçar-me ao máximo por convencê-los a deixarem-te ficar. Quanto ao bom aspecto, toda a gente, nos intervalos entre uma cirurgia a laser, injecções de botox e liftings à cara, o tem. Por isso é que se torna tão difícil distribuir papéis para avozinhas. Já ninguém se parece com velhotas.
Concordámos em vir juntas à reunião, pensou Laura. Alison informou-me que, segundo a lista de colegas de turma que aceitaram vir, o Gordon Amory ia comparecer, e ao que parece o tipo comprou há pouco tempo acções do Maximum. Disse-me que se ele puder ser persuadido a utilizar o poder que tem, goza de influência suficiente para me ajudar a manter o emprego.
Insistira e voltara a insistir com Alison para que telefonasse de imediato a Gordon, a fim deste obrigar o Canal Maximum a aceitá-la para o papel. Por fim, Alison respondera:
- Para começar, não lhe chames Gordie, pois detesta. Segundo, estou a tentar agir com tacto, coisa com a qual é raro preocupar-me, e tu bem o sabes. Vou deixar-me de rodeios. Ainda és bonita, mas como actriz não vales grande coisa. O pessoal do Maximum acha que esta série pode tornar-se um êxito, mas sem ti. Talvez o Gordon consiga fazê-los mudar de ideias. Podes seduzi-lo. Ele tinha um fraquinho por ti, não tinha?
O paquete dirigira-se ao átrio a fim de encher o balde de gelo. Sem pensar duas vezes, Laura abriu a carteira e retirou desta uma nota de vinte dólares. Ouvindo-o exclamar com entusiasmo: ”Muito agradecido, Sr.a Wilcox!”, estremeceu. Tivera de se armar outra vez. Dez dólares bastavam.
Gordie Amory fora um dos rapazolas que tivera um verdadeiro fraquinho por ela quando andavam em Stonecroft. Quem é que iria calcular que acabaria no poleiro?
Céus, vá-se lá adivinhar, pensou Laura, enquanto corria o fecho do porta-fatos. Devíamos possuir todos uma bola de cristal para prever o futuro.
O armário era pequeno, tal como o quarto, e com janelas estreitas. Alcatifa castanha-escura, uma cadeira com o estofo castanho, colcha em tons de abóbora e castanho. Impaciente, Laura retirou do porta-fatos os vestidos de cocktail e o vestido de noite. Sabia de antemão que naquela noite usaria o Chanel.
Põe-te deslumbrante. Deixa-os de rastos. Irradia êxito, mesmo sabendo que estás atrasada com os impostos e que por causa do IRS, as Finanças te penhoraram a casa.
Alison dissera-lhe que Gordie Amory se divorciara. Nos ouvidos de Laura ainda se repercutia o último conselho da amiga: ”Olha, querida, se não conseguires convencê-lo a incluir-te na série, quem sabe se não o levas ao altar. Ouvi dizer que é bastante impressionável. Esquece que em Stonecroft era um grande palerma.
CAPÍTULO CINCO
- Deseja mais alguma coisa, Dr.a Sheridan? - inquiriu o empregado.
Jean abanou a cabeça.
- Doutora, sente-se bem? Está com um ar pálido.
- Sinto-me óptima, obrigada.
- Bom, se precisar de mais alguma coisa, é só dizer-nos.
Por fim, a porta fechou-se atrás dele e Jean pôde, por fim, afundar-se na beira da cama. Tirou o fax que guardara na algibeira lateral da mala e voltou a ler a enigmática frase: ”Jean, acho que por esta altura já percebeste que conheço a Lily. Eis o meu problema. Devo beijá-la ou matá-la? É só uma gracinha. Depois contacto-te.
Fora ao Dr. Connors que há vinte anos ela confiara a sua gravidez. Com relutância, o obstetra concordara que seria um erro envolver os pais dela no assunto.
- Não me interessa o que possam dizer, vou entregar o bebé para adopção. Tenho dezoito anos e a decisão pertence-me. Se soubessem iam ficar perturbados e furiosos, e tornar-me a vida mais infeliz do que já o é - declarara ela, a chorar.
O Dr. Connors falara-lhe do casal que desistira da esperança de ter filhos biológicos e planeava adoptar um.
- Se tem dúvidas em relação a manter o bebé, posso garantir-lhe que lhe proporcionarão um lar maravilhoso e cheio de amor.
Arranjara-lhe trabalho numa clínica de Chicago até o bebé nascer. Depois apanhara um voo para Chicago, assistira-a no parto e levara-lhe o recém-nascido. Em Setembro, ela começara a faculdade e passados dez anos viera a saber que o Dr. Connors morrera de enfarte, depois de um incêndio que lhe consumira todas as fichas clínicas. Jean fora informada de que ele perdera todos os arquivos.
Mas talvez não estivessem perdidos. E se não se perderam, quem é que os descobriu e por que motivo essa pessoa me contacta ao fim de todos estes anos?, interrogou-se Jean, angustiada.
Lily - fora esse o nome que dera ao bebé que trouxera dentro de si ao longo de nove meses, e que conhecera durante umas escassas quatro horas. Três semanas antes de Reed se licenciar em West Point e dela finalizar o secundário em Stonecroft, percebera que estava grávida. Ficaram ambos assustados, mas concordaram em casar-se logo a seguir à formatura.
-Jeannie, os meus pais vão adorar-te - insistira Reed. Mas ela sabia que estava preocupado com a reacção que estes iriam ter. Admitira que o pai o avisara para evitar compromissos sérios até, pelo menos, aos vinte e cinco anos. Nunca conseguira falar-lhes dela. Uma semana antes de jurar bandeira, fora mortalmente atropelado no campus de West Point por um condutor que seguia a alta velocidade pela estrada estreita por onde ele caminhava, e que se pusera em fuga. Foi o general, agora reformado, e a Sr.a Carroll Reed, que numa apresentação especial aquando da cerimónia de formatura receberam o diploma e a espada do filho falecido.
Nunca souberam que tinham uma neta.
Mesmo que alguém tivesse salvo o registo de adopção, como é que alguém se teria conseguido aproximar o suficiente de Lily para lhe tirar a escova do cabelo, ainda com fios do cabelo comprido e dourado entre as cerdas?, interrogou-se Jean.
A primeira mensagem aterradora viera juntamente com a escova e uma nota que a aconselhava: ”Confirma o ADN... é a tua filha.” Alarmada, Jean enviara para um laboratório particular fios da madeixa de cabelo que guardara do bebé para análise ao ADN, juntamente com uma amostra do seu próprio ADN, e fios de cabelo da escova. O relatório confirmara-lhe de forma inequívoca os seus piores receios - os cabelos da escova provinham da filha, agora com dezanove anos e meio.
Ou será possível que o casal encantador e amoroso que a adoptou saiba quem eu sou, e esteja a usar esta táctica para me extorquir dinheiro?
O livro que escrevera a respeito de Abigail Adams tornara-se um best-seller, granjeando grande publicidade, e inspirara um filme cheio de êxito.
Meu Deus, faz com que seja apenas por dinheiro, rezou Jean, levantando-se e estendendo a mão para a mala pois era altura de a esvaziar.
CAPÍTULO SEIS
Cárter Stewart arremessou o porta-fatos para cima da cama. Além de roupa interior e peúgas, continha um par de casacos Armani e vários pares de calças. Levado pelo impulso decidira comparecer à festa da primeira noite com calças de ganga e o camisolão que vestia.
Na escola fora um garoto magricela e pouco asseado, filho de uma mãe magricela e pouco asseada que, quando se lembrava de atirar as toalhas para dentro da máquina de lavar, o mais certo era não ter detergente. Usava então lixívia, dando cabo das outras peças de vestuário que se encontrassem na máquina. Até ele começar a esconder a roupa e a lavá-la, ia sempre para a escola com vestuário enxovalhado ou algo extravagante.
Se comparecesse todo aperaltado ao primeiro encontro com os antigos colegas, isso iria talvez provocar comentários a respeito da forma como costumava vestir-se no passado. O que veriam agora quando olhassem para ele? Não o zé-ninguém que fora durante quase todo o secundário, mas sim um homem de estatura média e corpo ginasticado. Ao contrário de alguns antigos colegas que avistara no átrio, não tinha fios grisalhos na cabeleira farta e bem cuidada, de tom castanho-escuro. O seu crachá mostrava-o de cabelo comprido e hirsuto, e olhos quase fechados. Recentemente um colunista referira-se aos seus ”olhos castanhos-escuros que lançam centelhas amarelas quando se zanga?.
Impaciente, relanceou o olhar pela sala. Trabalhara naquele hotel no ano em que fora caloiro em Stonecroft. Era possível que tivesse ido inúmeras vezes àquele quarto soturno, levando tabuleiros de comida a homens de negócios, senhoras que faziam excursões ao Hudson Valley, ou pais de visita aos filhos que frequentavam West Point - ou até, pensou, aos casais que davam uma escapadela de casa e da família, e ali se reuniam para os seus encontros amorosos. Consegui sempre topá-los, recordou-se. Quando lhes trazia o pequeno-almoço, costumava perguntar-lhes com um sorriso afectado: ”Vêm em lua-de-mel?” A expressão de culpa que se lhes estampava no rosto era algo digno de se ver.
Detestara aquele lugar, tal como o detestava agora, mas já que se encontrava ali, o melhor era descer as escadas e dar início ao ritual das palmadinhas nas costas e do: ”É um prazer ver-te.”
Saiu do quarto, não sem antes confirmar que não se esquecia do cartão de plástico que servia de chave do quarto, percorreu o corredor e dirigiu-se para o elevador.
A suite do Hudson Valley onde decorria o cocktail de abertura ficava no andar mezanino. Quando saiu do elevador, chegaram-lhe revoadas de música electronicamente amplificada e vozes estrídulas que tentavam fazer-se ouvir no meio da algazarra. Parecia que já se encontravam ali reunidos cerca de quarenta ou cinquenta convidados. Especados à entrada, viam-se dois empregados com tabuleiros de bebidas. Retirou um copo de vinho tinto e provou. Uma mistela, Devia ter adivinhado.
Entrou na suite e sentiu alguém dar-lhe uma palmadinha no ombro.
- Sr. Stewart, chamo-me Jake Perkins e estou a efectuar a cobertura da reunião para o Stonecroft Gazette. Posso fazer-lhe algumas perguntas?
Irritado, Stewart virou-se e encarou o miúdo ruivo de ar nervoso e ansioso que se colocara a escassos centímetros dele.
Quando queres alguma coisa, a primeira coisa que tens de aprender é não ficares quase de cara encostada ao outro sujeito, pensou irritado, enquanto tentava recuar e sentiu os ombros roçarem a parede.
-Jake, sugiro que procuremos lá fora um sítio calmo para conversar, a não ser que saiba ler lábios - disse em voz alta.
- Infelizmente não sou capaz. Irmos até lá fora é uma excelente ideia. Venha comigo.
Por uma fracção de segundo, Stewart decidiu não deixar a taça de vinho. Com um encolher de ombros, virou-se e seguiu o estudante ao longo do corredor.
- Sr. Stewart, antes de começarmos gostava de lhe dizer o quanto aprecio as suas peças. Sabe, também desejo ser escritor. Quero dizer, acho que já o sou, mas pretendo ter tanto êxito como o senhor.
Deus me valha, pensou Stewart.
- Toda a gente que me entrevista afirma a mesma coisa - replicou. - A maioria não o consegue e o mesmo poderá vir a passar-se consigo.
Ficou à espera de o ver assumir a expressão de raiva ou de constrangimento que regra geral esta declaração provocava. Mas em vez disso verificou, desiludido, que o rosto de bebé de Jake Perkins se abria num sorriso radioso.
- Mas vou ter - respondeu o fedelho. - Estou absolutamente convencido de que sim. Sr. Stewart, efectuei um importante trabalho de pesquisa a seu respeito bem como dos outros que vão ser homenageados. Têm todos uma coisa em comum. Quando cá andavam, as três mulheres já revelavam fibra de vencedoras, mas quanto a vocês, os homens, nenhum dos quatro fez nada de relevante em Stonecroft. No seu caso em particular, não consegui descobrir no livro de curso nenhum registo de actividades e as suas notas foram sempre medíocres. Não escreveu para o jornal da escola, nem...
O descaramento do badameco, pensou Stewart.
- No meu tempo, o jornal da escola, mesmo para um jornal escolar, era amador - ripostou em voz alta. - E estou certo de que continua a sê-lo. Nunca fui de atletismos e a minha escrita circunscrevia-se a um diário pessoal.
- É com base nesse diário que elabora as suas peças?
- Talvez.
- São bastante soturnas.
- Não teço ilusões quanto à vida, e não as tecia quando cá estudava.
- Diria então que os anos que passou em Stonecroft não foram felizes?
Cárter Stewart bebeu um gole de vinho.
- Não foram felizes - replicou com voz impessoal.!
- Então o que o trouxe à reunião? Stewart sorriu com frieza e respondeu:
- A oportunidade de ser entrevistado por si. Agora vai-me desculpar, estou a ver a Laura Wilcox, a rainha esplendorosa da nossa turma, a sair do elevador. Quero saber se me reconhece.
- Dê-me só mais um minuto, Sr. Stewart - insistiu Perkins. - Tenho aqui uma lista que acho que considerará de grande interesse.
Stewart ignorou a folha de papel que o rapazola tentava estender-lhe.
Perkins ficou a observar as costas elegantes de Cárter Stewart enquanto este se afastava com rápidas passadas no encalço da loura deslumbrante que entrava agora na suite Hudson Valley.
Parece estranho, pensou Perkins, usar calças de ganga, camisolão e ténis para mostrar o seu desprezo pelos que compareceram aqui esta noite todos aperaltados. Não é do tipo de se exibir só para receber uma medalha de pouco valor e sem qualquer significado. Vamos lá ver, o que é que o trouxe realmente cá?
Era a pergunta que colocaria na última frase do seu artigo. Efectuara uma série de pesquisas a respeito de Cárter Stewart. Na faculdade, começara a escrever peças pouco convencionais de um só acto que eram postas em cena pelo departamento de teatro e que tinham culminado com um trabalho de pós-graduação em Yale. Fora então que deixara de usar o primeiro nome, Howard - ou Howie, como lhe chamavam em Stonecroft. Alcançara o seu primeiro êxito na Broadway, antes de completar os trinta anos. Gozava da reputação de ser um homem solitário que quando trabalhava numa peça se refugiava numa das inúmeras casas que possuía por todo o país. Retraído, desagradável, perfeccionista, um génio - eram estes alguns dos adjectivos com que costumavam descrevê-lo nos artigos.
Eu podia acrescentar mais uns quantos, pensou Jake Perkins, soturno. E é o que farei.
CAPÍTULO SETE
O percurso de Boston a Cornwall demorou mais tempo do que Mark Fleischman previra. Planeara tirar umas horas para passear pela cidade antes de se voltar a encontrar com os antigos colegas. Queria ter a oportunidade de estabelecer a diferença entre a percepção de si próprio tal como fora enquanto ali crescera e a realidade, conforme a entendia, do que era agora.
Estarei a querer exorcizar os meus próprios demónios? - interrogou-se.
Enquanto seguia com uma lentidão exasperante pelo congestionado Nó de Connecticut, ia meditando nas palavras que nessa manhã ouvira o pai de um dos seus doentes proferir:
- Doutor, sabe tão bem como eu que os miúdos são cruéis. Eram-no no meu tempo e não mudaram. Lembram um bando de leões que se aproxima furtivamente da presa. É o que andam agora a fazer com o meu filho. Era o que me faziam quando tinha a idade dele. E sabe que mais, doutor? Sou um tipo com bastante êxito, mas quando compareço às reuniões ocasionais da minha escola do pré-preparatório, em dez segundos deixo de ser o senhor administrador de empresas e volto-me a sentir como se fosse o pateta que era alvo da chacota de toda a gente. É de loucos, não acha?
Quando o carro voltou de novo a avançar a passo de caracol, Mark concluiu que, segundo a terminologia hospitalar, o Nó de Connecticut se encontrava num constante estado de cuidados intensivos. Algures ao longo do trajecto, havia sempre em curso um imenso projecto de construção, daqueles que significam juntar três vias numa só e acarretam inevitáveis congestionamentos de trânsito.
Deu consigo a comparar os problemas do nó rodoviário com os que detectava nos doentes, como os do rapaz cujo pai o fora consultar. A criança tentara suicidar-se no ano anterior. Havia outros miúdos que, depois de atormentados e ignorados, podiam arranjar uma arma e descarregá-la sobre os colegas. Gerava-se dentro do sujeito um misto de raiva, sofrimento e humilhação que o atormentavam e forçavam a procurar um escape. Quando tal acontecia, algumas pessoas tentavam autodestruir-se e outras tentavam destruir os carrascos.
Mark, que era psiquiatra especializado em adolescentes, dirigia um programa televisivo de aconselhamento e chamadas ao vivo que recentemente passara a ter a cobertura da imprensa. A reacção fora muito positiva. ”Alto, magro, alegre, divertido e sábio, o Dr. Mark Fleischman recorre a uma abordagem informal para tentar resolver os problemas inerentes a esse penoso ritual de passagem que designamos por adolescência”, fora o que um dos críticos escrevera a respeito do programa.
Talvez consiga pôr tudo para trás das costas depois deste fim-de-semana, pensou.
Não tivera tempo para almoçar, de modo que quando chegou por fim ao hotel, dirigiu-se ao bar e mandou vir uma sanduíche e uma cerveja light. De repente, o bar começou a encher-se de participantes da reunião, de modo que verificou rapidamente a reserva e, deixando metade da sanduíche intacta, encaminhou-se para o quarto.
Eram cinco e um quarto e as trevas já começavam a adensar-se. Permaneceu alguns minutos à janela. Saber o que fora forçado a fazer pesava-lhe na alma.
Mas quando isto acabar, deitarei tudo para trás das costas, pensou. Com a esponja limparei o quadro. E então serei capaz de me tornar mesmo alegre, divertido... e porventura sábio.
Sentiu os olhos humedecerem-se-lhe e com um gesto brusco afastou-se da janela.
Gordon Amory desceu no elevador levando o crachá na algibeira. Quando chegasse à festa, colocá-lo-ia. Por enquanto, achava divertido manter-se incógnito perante os antigos colegas e olhar de relance para os respectivos nomes e fotografias, à medida que piso após piso, iam entrando no elevador.
Jenny Adams foi a última a entrar. Em miúda era bastante entroncada, e embora tivesse emagrecido um pouco continuava a ser uma mulher corpulenta. Havia algo de inegavelmente provinciano no vestido de brocado barato e na bijutaria que usava às três pancadas. Vinha acompanhada por um tipo grandalhão, cujos braços gorduchos ameaçavam rebentar as costuras do casaco demasiado justo. Ambos exibiam um sorriso rasgado e dirigiram um ”olá? aos ocupantes do elevador.
Gordon não respondeu. Os outros, uma meia dúzia, todos exibindo os crachás identificativos, irromperam num coro de saudações. Trish Canon que, recordava-se Gordon, integrava a equipa de atletismo e continuava magra como um palito, guinchou:
- Jenny! Estás um espanto!
- Trish Canon! - exclamou esta, precipitando-se para a antiga colega e apertando-a nos braços - Herb, eu e Trish costumávamos trocar de apontamentos na aula de Matemática. Trish, este é Herb, o meu marido.
- E este é Barclay, o meu marido - respondeu Trish. - E... O elevador parou no mezanino. Quando saíram, Gordon tirou com relutância o crachá e colocou-o. Gastara rios de dinheiro em cirurgia estética para apagar quaisquer vestígios do miúdo com cara de doninha que figurava na fotografia escolar. Possuía agora um nariz aquilino e os olhos, outrora semicerrados por pesadas pálpebras, eram rasgados. Haviam-lhe esculpido o queixo e as orelhas colavam-se-lhe bem torneadas à cabeça. Vários implantes e o engenho de um dos melhores cabeleireiros tinham-lhe transformado o cabelo ralo e castanho-claro numa melena espessa e de um tom castanho-escuro. Sabia que era agora um homem bem-parecido. A única manifestação exterior da criança torturada de outrora era o facto de em momentos de grande tensão não se conseguir refrear e roer as unhas.
O Gordie que conheceram já não existe., disse para si mesmo enquanto se encaminhava para a suite do Hudson Valley. Sentiu uma palmadinha no ombro e virou-se.
- Sr. Amory.
Especado junto dele avistou um rapazola de cabelo ruivo e cara de bebé.
- Chamo-me Jake Perkins e sou repórter do Stonecroft Gazette. Ando a entrevistar os homenageados. Não se importa de me conceder um minuto do seu tempo?
- Claro - replicou Gordon, conseguindo esboçar um sorriso caloroso.
- Antes de mais, permita-me que lhe diga que em vinte anos, desde que tirou a fotografia de fim de curso, mudou imenso.
- Acho que sim.
- Já detém a maioria das acções de quatro canais de televisão por cabo. Porque é que comprou o Maximum?
- O Maximum goza da reputação de apostar nos programas para a família e concluí que serviria de plataforma para chegarmos a um segmento das audiências que pretendia ver incluído na nossa grelha de entretenimento.
- Correm zunzuns a respeito de uma nova série e o boato de que a estrela poderá vir a ser Laura Wilcox, antiga colega de turma. É verdade?
- Ainda não foram atribuídos os papéis para a série que referiu.
- O seu canal de crime e castigo foi criticado por incluir demasiada violência. Concorda?
- Não, não concordo. Proporciona a realidade autêntica, não essas situações forjadas e grotescas que constituem o pão-nosso de cada dia das redes comerciais. Agora se me dá licença.
- Só mais uma pergunta, por favor. Não se importa de dar uma vista de olhos a esta lista?
Impaciente, Gordon Amory pegou na folha de papel que Perkins lhe estendia.
- Reconhece esses nomes?
- Parecem ser de alguns dos meus antigos colegas de turma.
- Há cinco mulheres, que pertenciam à turma e que ao longo destes vinte anos morreram ou desapareceram.
- Não tinha reparado.
- Quando iniciei a minha pesquisa fiquei espantado - replicou Perkins. - Começou há dezanove anos com Catherine Kane. O carro dela foi parar ao rio Potomac, andava ela no primeiro ano da Universidade George Washington. Cindy Lane desapareceu quando esquiava em Snowbird. Ao que parece, Gloria Martin suicidou-se. Debra Parker pilotava o seu próprio avião e fez seis anos que este se despenhou, provocando-lhe a morte. No mês passado, Alison Kendall morreu afogada na piscina. Dizia que é justo classificarmos esta turma de bastante azarada e consideraria a hipótese de efectuar um programa televisivo a respeito do assunto?
- Prefiro designá-la por turma ”atreita à tragédia” e não, não quero fazer nenhum programa a respeito disso. Agora se não se importa.
- Claro. Só mais uma pergunta. Receber esta medalha de Stonecroft que significado tem para si?
Gordon Amory sorriu.
Significa que obtive a minha desforra. Em vez de continuar a ser o infeliz que fui aqui, dei a volta por cima, foi o que pensou. Mas em voz alta declarou:
- É a concretização de um sonho o ser considerado um êxito aos olhos dos meus colegas de turma.
CAPÍTULO OITO
Robby Brent chegara ao hotel na tarde de terça-feira. Terminara um contrato de seis dias no Casino Trump de Atlantic City onde o seu famoso número de comédia atraíra, como de costume, uma vasta audiência. Não fazia sentido apanhar um voo para São Francisco onde vivia e ter de regressar de novo; além disso, não estava com vontade de permanecer em Atlantic City nem de parar em Nova Iorque.
Foi uma decisão satisfatória, concluiu enquanto se vestia para o cocktail. Abriu o armário e retirou um casaco azul-escuro. Vestiu-o e olhou-se com ar crítico ao espelho. Embora considerasse a iluminação péssima, achou que continuava com bom aspecto. Haviam-no comparado a Don Rickles, não só devido ao número de comédia que protagonizava com movimentos e passos rápidos, como também por causa da aparência. Rosto redondo, uma calva luzidia, um pouco corpulento - até conseguia entender a comparação. Porém, o seu aspecto não dissuadira as mulheres de se sentirem atraídas por ele.
- Pós-Stonecroft - acrescentou de si para si -, definitivamente pós-Stonecroft.
Restavam-lhe ainda alguns minutos antes de ser altura de descer. Dirigiu-se à janela e olhou para o exterior, meditando no passeio que dera na véspera pela cidade - depois de ter chegado ao hotel - e durante o qual efectuara uma ronda pelas casas dos que, tal como ele, iam ser homenageados na reunião.
Ao passar pela casa de Jean Sheridan, ocorrera-lhe as vezes em que a vizinhança chamara a Polícia por os pais dela se estarem a agredir na via pública. Ouvira dizer que se tinham divorciado há alguns anos. Fora porventura a sorte deles, porque as pessoas costumavam dizer que durante uma dessas discussões um deles acabaria por sair magoado.
A primeira casa de Laura Wilcox situava-se ao lado da de Jeannie. Depois, o seu pai herdara algum dinheiro e a família mudara-se para a grande casa da Concord Avenue quando andavam no segundo ano da faculdade. Lembrava-se de em miúdo rondar a primeira casa de Laura, com a esperança de a ver sair para o jardim e poder meter conversa com ela.
Uma família de apelido Sommers comprara a casa de Laura. A filha do casal fora assassinada no seu interior e posteriormente tinham-na vendido. Há pouca gente que consegue permanecer num sítio onde a filha foi esfaqueada até à morte. Aconteceu no Dia de Cristóvão Colombo, reflectiu.
O convite para a reunião encontrava-se em cima da cama. Olhou-o de relance. O envelope continha os nomes dos homenageados e respectivas biografias. Cárter Stewart. Desde Stonecroft, quanto tempo se passou até desistir de se chamar Home?, interrogou-se Robbie. A mãe de Howie gabava-se de ser uma artista e era vista na cidade sempre com o bloco de esboços debaixo do braço. De vez em quando convencia a galeria de arte a expor alguns dos seus trabalhos. Eram péssimos, recordou Robby. O pai de Howie era um desordeiro que enchia o filho de pancada. Não admirava que as suas peças fossem tão soturnas. Howie costumava fugir de casa e para se esquivar ao pai refugiava-se nos pátios traseiros dos vizinhos. Pode ser um homem de êxito, mas no íntimo continua o mesmo cobardolas que costumava espreitar pelas janelas das casas das pessoas, pensou. Julgava que se safava, mas surpreendi-o algumas vezes a fazê-lo. Tinha um fraco tão grande por Laura que parecia que o exsudavapor todos os poros.
Também eu, admitiu Robby, contemplando a fotografia de Gordon Amory, o miúdo das operações de estética. O Sr. Capaz de Revista em pessoa. Na véspera, durante o passeio, olhara para a casa de Gordie e reparara que fora toda restaurada. No início era de um azul desbotado e esquisito, e agora possuía o dobro do tamanho e estava pintada de um branco resplandecente. Como os dentes novos de Gordie, pensou Robby.
A primeira casa de Gordie ardera quando ainda andavam no ciclo. Corria na cidade a piada que dizia ter sido esta a única maneira da casa ser limpa de alto a baixo. A mãe de Gordie transformara-a numa pocilga, e muita gente pensava que ele lhe deitara fogo deliberadamente. Se calhar até o fez pensou Robby, que sempre o considerara esquisito. Ocorreu-lhe que quando se encontrassem no cocktail devia chamar-lhe Gordon e não ”Gordie”. Ao longo dos anos, vira-o algumas vezes - sempre à pressa, assoberbados com trabalho. Também fora um dos que idolatrara Laura.
O mesmo acontecia com Mark Fleischman, o outro tipo a ser homenageado. Na escola, Mark nunca dirigia a palavra a ninguém, mas ficava-se com a impressão de que no íntimo era um vulcão. Fora sempre a sombra de Dennis, o irmão mais velho, que se destacara em Stonecroft como um estudante óptimo e um atleta de gabarito. Todas as pessoas da cidade o conheciam. Morrera num acidente de carro no Verão anterior à turma iniciar o segundo ano da faculdade. Dois irmãos diferentes como o dia e a noite. Na cidade era do conhecimento geral que os pais de Mark, visto que Deus decidira arrebatar um dos irmãos, preferiam que tivesse sido ele o escolhido e não Dennis. Tinha tanto ressentimento a fervilhar dentro de si que foi um milagre a cabeça não lhe saltar, pensou Robby, soturno.
Estendeu a mão para a chave do quarto, sentindo-se finalmente preparado para enfrentar a multidão do piso inferior e abriu a porta.
Em relação a todos os meus colegas de turma, ou embirrava com eles ou detestava-os, pensou. Então porque é que aceitei o convite para vir até cá?, questionou-se, carregando no botão para chamar o elevador. Vou arranjar imenso material novo para o número, assegurou a si mesmo. Claro que havia outro motivo, mas expulsou-o de imediato da mente. Não vou lá, pensou enquanto a porta do elevador se abria. Pelo menos, por enquanto.
CAPÍTULO NOVE
Ao chegarem ao cocktail, Jack Emerson, o presidente da comissão da reunião, conduziu os homenageados até uma divisória que ficava ao fundo da suite do Hudson Valley. Homem de rosto corado e ar de amigo dos copos, confirmado pelos derrames de capilares que lhe sulcavam a cara, era o único da turma a ter optado por permanecer em Cornwall e, portanto, em condições de efectuar o planeamento para aquele fim-de-semana.
- Quando apresentarmos a turma um a um, quero deixar-te e aos outros para o fim - explicava a um deles.
Jean entrou no anexo a tempo de ouvir Gordon Amory observar:
- Jack, acho que temos de te agradecer por sermos os únicos a receber a homenagem.
- A ideia foi minha - replicou Emerson com entusiasmo. E tu merece-lo, assim como os outros. Gordie, quero dizer Gordon, és uma figura proeminente no âmbito da televisão por cabo. Mark é psiquiatra e goza da reputação de ser um perito em comportamento de adolescentes. Robby é um comediante e um imitador de renome. Howie, quero dizer Cárter Stewart, é um famoso dramaturgo. Jean Sheridan... oh, cá estás tu, Jean, que prazer ver-te... é decana e professora de História em Georgetown, e agora também se tornou a autora de um best-seller. Laura Wilcox foi a estrela de um sitcom que passou durante muito tempo na televisão. E Alison Kendall dirigia uma importante agência de talentos. Como sabem, seria a sétima homenageada. Vamos mandar a sua placa aos pais, que ficaram muito satisfeitos por saber que ela ia ser homenageada pela sua turma de formatura.
A turma amarada, pensou Jean, sentindo uma pontada de dor quando Emerson se precipitou para ela e lhe pespegou um beijo na face. Fora o termo que Jack Perkins, o repórter da escola, sugerira quando a chamara de parte para a entrevistar. O que ele lhe contara deixara-a chocada. Depois da formatura, e com excepção de A.lison e Laura, perdi o contacto com os outros, ocorreu-lhe. No ano em que Catherine morreu, encontrava-me em Chicago, supostamente porque optei por trabalhar durante um ano antes de entrar para a faculdade. Sabia que o avião de Debby Parker se despenhara, mas ignorava o que aconteceu a Cindy lang e a Gloria Martin. E no mês passado, foi a vez de Alison. Santo Deus, costumávamos sentar-nos todas à mesma mesa.
E agora só resto eu e Laura, pensou. Que raio de karma pende sobre nós?
Laura telefonara-lhe a dizer-lhe que se encontrariam na festa.
-Jeannie, bem sei que falámos em nos encontrarmos antes, mas nem por sombras me sinto preparada... Preciso de fazer uma entrada com pompa e circunstância - explicara. - O meu objectivo para o fim-de-semana é conquistar as boas graças do Gordie Amory a fim de poder ser a estrela principal da nova série televisiva dele.
Jean percebeu que em vez de se sentir desiludida ficara aliviada, pois o atraso no encontro dera-lhe tempo para ligar a Alice Sommers, que anos atrás fora a sua vizinha do lado. A Sr.a Sommers vivia agora num condomínio da cidade, junto à alameda. Os Sommers tinham-se mudado para Cornwall cerca de dois anos antes da filha Karen ser assassinada. Jean nunca se esquecera da ocasião em que a Sr.a Sommers a fora buscar à escola.
- Jean, porque não vens comigo às compras? - sugerira. Acho que não devias ir já para casa.
Nesse dia fora poupada à terrível vergonha de ver um carro patrulha estacionado em frente da sua casa e os pais a serem algemados. Nunca conhecera bem Karen Sommers. Esta frequentara a faculdade de Medicina de Columbia em Manhattan e os Sommers mantinham um apartamento em Manhattan, onde passavam o tempo com a filha. Com efeito, Karen, até à noite da sua morte, raramente fora a Cornwall.
Mantivemo-nos sempre em contacto, pensou Jean. Quando vinham a Washington, telefonavam sempre a convidar-me para jantar. Michael Sommers morrera há alguns anos, mas Alice, que soubera da reunião, telefonara ajean a dizer-lhe para aparecer às dez horas para tomarem um pequeno-almoço reforçado antes da visita programada a West Point.
Jean tomara uma decisão. Já que não se encontraria com Laura, no dia seguinte quando estivesse com Alice, ia revelar-lhe a existência de Lily e mostrar-lhe os faxes assim como a primeira carta que incluía a escova e fios do cabelo da filha. Seja quem for que esteja ao corrente do bebé, deve ter visto os ficheiros do Dr. Connors, pensou. Tem de ser uma pessoa que se encontrava por perto na altura, ou que conhecia alguém das redondezas capaz de deitar a mão aos arquivos. Alice é capaz de me ajudar a descobrir um representante da lei adequado com quem possa falar. Disse-me sempre que continuavam a tentar descobrir o assassino de Karen.
- Jean, que prazer em voltar a ver-te! - exclamou Mark Fleischman, que até então estivera a falar com Robby Brent e se dirigia agora para ela. - Estás linda, mas com um ar preocupado. Aquele fedelho do repórter também te caçou?
- Sim - replicou ela, anuindo. - Mark, fiquei chocada. Salvo Debby e, é claro, Alison, desconhecia que as outras tinham morrido.
- Também eu - respondeu Fleischman, concordando com a cabeça. - Para ser franco, ignorava o que se passou com a Debby. Até Jack Emerson me contactar, nunca me preocupei com as notícias vindas de Stonecroft.
- Que é que Perkins te perguntou?
- Para ser exacto, e dado que nenhuma das cinco morreu ao mesmo tempo numa espécie de acidente múltiplo, queria saber se eu, como psiquiatra, não achava que era um exagero ocorrerem tantas mortes num grupo tão pequeno. Respondi-lhe que não precisava de consultar nada para saber que foram em número excessivo. Claro que foram.
Anuindo, Jean replicou:
- Disse-me que segundo a pesquisa que efectuou, é mais provável esse género de estatística ocorrer em tempo de guerra, mas acrescentou que há amostras de famílias, colegas de turma ou membros de uma equipa que parecem estar embruxados. Mark, não acho que se trate de bruxedo, mas sim de um mistério.
Jack Emerson ouviu o que ela disse. O sorriso que exibia quando enumerava as proezas deles deu lugar a uma expressão de irritada preocupação.
- Pedi ao fedelho do Perkins para não andar por aí a mostrar a lista - disse.
Acompanhado de Laura Wilcox, Cárter Stewart enfiou-se na divisória a tempo de ouvir Emerson.
- Anda por aí a mostrá-la, isso posso-te garantir - interveio. O que eu sugiro aos que ainda não foram importunados pelo rapazola é que lhe digam que não desejam ver a lista. Comigo resultou.
Jean encontrava-se afastada da porta e Laura, quando entrou, não a viu.
- Não se importam que me junte a vocês? - inquiriu em tom de brincadeira. - Ou será que me enganei e vim parar ao clube dos homens?
Sorridente, passou revista aos homens, examinando atenta os respectivos crachás e beijando-os na face.
- Mark Fleischman, Gordon Amory, Robby Brent, Jack Emerson. E, é claro, Cárter, que eu conhecia por Howie e ainda não me beijou. Todos vocês parecem estupendos. Estão a ver a diferença? Aos dezasseis anos encontrava-me eu no auge, mas agora é sempre a resvalar. Nessa altura, vocês quatro e o Howie, quero dizer Cárter, ainda mal tinham começado a trepar a colina.
Avistou então Jean e precipitou-se para ela a fim de a abraçar.
A presença de Laura veio quebrar o gelo. Mark Fleischman viu-os descontraírem-se, as expressões polidas dando lugar a sorrisos divertidos e começaram a beberricar os melhores vinhos que tinham sido guardados para os homenageados.
Laura continua uma brasa, pensou. Com trinta e oito ou trinta e nove anos como nós, mas parece ter trinta. O vestido de cocktail que usava era obviamente caro, muito caro, e a série televisiva em que entrara fora cancelada havia uns dois anos. Interrogou-se quantos mais papéis tivera desde então. Sabia que passara por um divórcio litigioso, com recursos e mais recursos, lera-o na página seis do New York Post. Sorriu para si mesmo ao vê-la beijar Gordie pela segunda vez.
- Costumavas ter um fraquinho por mim - disse-lhe, arreliadora.
Chegou a vez dele.
- Mark Fleischman - exclamou arquejante. - Ia jurar que ficaste ciumento quando eu namorei o Barry Diamond. Tenho ou não razão?
- Sim, tens razão, Laura - respondeu ele a sorrir. - Mas já se passou tanto tempo.
- Bem sei, mas não me esqueci - replicou ela com um sorriso radioso.
Ele lera uma vez que a duquesa de Windsor tinha a capacidade de fazer com que cada homem se sentisse o único existente na sala. Ficou a observá-la, vendo-a virar-se para outro rosto familiar.
- Eu também não me esqueci, Laura - disse baixinho. - Nem por um minuto me esqueci.
CAPÍTULO DEZ
Divertiu-o reparar que no cocktail, Laura, como sempre, constituía o centro das atenções, embora de todos os homenageados fosse a que menos o merecia. Na série televisiva - o único trofeu que tinha para mostrar - desempenhara o papel de loura frívola que apenas se preocupava com a pessoa que via reflectida no espelho.
Tal como na vida real, pensou.
Não havia dúvida de que ela possuía ainda um óptimo aspecto, mas tratava-se do canto do cisne que antecedia a mudança: à volta dos olhos e da boca começavam já a formar-se rugas ténues. Ocorreu-lhe que a mãe dela também possuía a mesma pele quebradiça, do tipo que envelhece depressa e profundamente. Se Laura vivesse mais dez anos, apenas a cirurgia estética a poderia salvar.
Mas, claro está, ela não ia viver mais dez anos.
Às vezes, mesmo durante meses a fio, o Mocho enclausurava-se num escaninho secreto que havia dentro de si. Nessas alturas quase chegava a acreditar que todos os actos praticados pelo Mocho não passavam de um sonho. Porém noutras ocasiões, tal como agora, conseguia senti-lo palpitando-lhe no íntimo e chegava a ver a cabeça do Mocho, os seus olhos escuros orlados de laivos de amarelo. Sentia-lhe as garras enclavinhadas no ramo de uma árvore, a sua plumagem macia e aveludada a aflorá-lo e percorria-o um calafrio. Também conseguia sentir o ar rodopiando por sob as suas asas quando voava a pique e investia contra a presa.
Ao ver Laura, o Mocho arremeteu do poleiro abaixo. Porque aguardara ele tanto tempo para atacar?, exigiu o Mocho saber, porém, teve medo de responder. Será, interrogou-se, porque quando Jean e Laura forem por fim destruídas, o poder do Mocho sobre a vida e a morte se desvanecerá com elas? Laura devia ter sido morta há vinte anos, mas esse erro libertara-o.
Esse erro, esse acaso do destino, transformara o choramingas balbuciante - ”Eu ssssooouu o-o-o mooocccchhhhoooo e vivwwo nuuuummma...” - no Mocho, a ave de rapina implacável e poderosa.
Alguém estudava o seu crachá, um tipo de óculos e cabelo ralo, vestido com um fato cinzento-escuro bastante caro. Depois, o homem sorriu e estendeu-lhe a mão.
- Joel Nieman - disse.
Joel Nieman. Oh, claro, fora o Romeu da peça, aquele em relação a quem Alison se referira na sua coluna declarando: ”Para surpresa de todos, Romeu, aliás, Joel Nieman, conseguiu lembrar-se da maior parte das deixas.”
- Desististe do teatro? - inquiriu o Mocho, retribuindo-lhe o sorriso.
Nieman, pareceu surpreendido.
- Tens boa memória. Achei que os palcos passavam bem sem mim - replicou.
- Ainda me lembro da crítica que Alison escreveu a teu respeito.
- Também eu - respondeu Nieman, soltando uma risada. - Se ainda estivesse entre nós dizia-lhe que até me fez um favor. Estudei contabilidade e não podia ter escolhido melhor. Foi horrível o que lhe aconteceu, não foi?
- Horrível - concordou o Mocho.
- Li que a princípio ainda colocaram a hipótese de homicídio e de uma investigação nesse sentido, mas a Polícia acredita agora que ela desmaiou ao embater na água.
- Pois eu acho que a Polícia é estúpida.
Joel Nieman fez uma expressão de curiosidade.
- Achas que Alison foi assassinada!
O Mocho percebeu de repente que falara com demasiada veemência.
- Pelo que li - respondeu circunspecto -, ao longo da vida arranjou uma data de inimigos. Mas vá-se lá saber! Se calhar, a Polícia tem razão. Por isso é que estão sempre a aconselhar as pessoas para não nadarem sozinhas.
- Romeu, oh meu Romeu! - exclamou uma voz esganiçada. Marcy Rogers, que fora a Julieta da peça da escola, deu uma palmadinha no ombro de Nieman. Este virou-se.
Marcy ainda usava o cabelo castanho-escuro apanhado numa nuvem de caracóis, mas agora o mesmo ostentava laivos dourados. Assumindo uma pose teatral, recitou:
- E vinda a noite o mundo inteiro deverá apaixonar-se.
- Mal posso acreditar! É a Julieta! - exclamou Joel Nieman esfuziante.
- Oh, viva! - acrescentou Marcy, olhando de relance para o Mocho. Em seguida virou-lhe as costas e acrescentou, dirigindo-se a Nieman - Tens de conhecer o meu Romeu da vida real. Está ali no bar.
Rejeição. Fora o que sempre sentira em Stonecroft. Marcy nem sequer se incomodara a olhar para o crachá dele. A sua pessoa não lhe dizia absolutamente nada.
O Mocho olhou em volta. Jean Sheridan e Laura Wilcox encontravam-se junto à mesa do bufete. Estuda atentamente o perfil de Jean. Ao invés de Laura, pertencia ao tipo de mulher cuja aparência melhorava com a idade. Decididamente parecia outra, embora as feições permanecessem as mesmas. O que mudara fora o porte, a voz, a postura. Oh, o cabelo e as roupas, faziam diferença, é evidente, mas nela a transformação era mais interior do que de fachada. À medida que crescera, vira-se forçada a lidar com a vergonha ocasionada pelo comportamento dos pais, que por algumas vezes tinham feito os polícias perderem de tal modo a cabeça que se viam obrigados a algemá-los.
O Mocho dirigiu-se para a mesa do bufete e tirou um prato. Percebeu que começara a entender a ambivalência que sentia em relação a Jean. Durante os anos passados em Stonecroft, algumas vezes, como na altura em que não conseguira entrar para a equipa de futebol, ela mostrara-se solidária para com ele, ao ponto de na Primavera do ano de formatura ele chegar mesmo a considerar a hipótese de a convidar para sair. Tinha a certeza de que a rapariga não andava com ninguém. Às vezes, nas noites quentes de sábado, ele ia até à vereda dos namorados, escondia-se atrás das árvores e depois de terminado o cinema ficava à espera de ver surgir os carros. Nunca vira Jean em nenhum.
Pondo de lado os pensamentos positivos, agora era tarde de mais para mudar o curso dos acontecimentos. Escassas horas antes, ao vê-la entrar no hotel, tomara por fim a decisão de também a matar. Compreendeu naquele momento porque tomara essa resolução irrevogável. A mãe dele costumava afirmar que ”águas passadas não movem moinhos”. Era possível que em algumas ocasiões Jean se tivesse mostrado simpática para com ele, mas no íntimo, se calhar assemelhava-se a Laura e troçara do pobre coitado que molhava as calças, chorava e gaguejava.
Serviu-se de salada. E que interessa ela não ter estado na vereda dos namorados com um dos palermóides da turma?, reflectiu. Em vez disso, a Menina Jeannie ”Não-Me-Toques-Que-Me-Desafinas” andara a ter um romance com um cadete de West Point - ele conhecia toda a história.
A fúria começou a fervilhar no seu interior, avisando-o de que em breve precisava de libertar o Mocho.
Não tocou na massa, escolheu salmão e presunto com feijão-verde e olhou em seu redor. Jean e Laura tinham acabado de se instalar na mesa de honra. Jean detectou-o e acenou-lhe com a mão.
Uly parece-se mesmo contigo, pensou. Na verdade, a semelhança era espantosa.
O pensamento acirrou-lhe ainda mais a raiva.
CAPÍTULO ONZE
Às duas horas, Jean desistiu de tentar dormir, acendeu a luz e abriu um livro. Mas depois de ler durante uma hora e perceber que não assimilara uma única palavra, pousou-o agitada, e voltou a desligar a luz. Sentia todos os músculos do corpo retesados e feitos num novelo, e uma dor de cabeça incipiente começou a latejar-lhe nas têmporas. Sabia que o facto de se esforçar naquele serão por confraternizar quando a torturava a perspectiva de Lily porventura correr perigo, a deixara exausta. Percebeu que estava a contar as horas que faltavam para as dez, altura em que ia visitar Alice Sommers e confidenciar-lhe a respeito da filha. Os mesmos pensamentos de sempre desfilaram-lhe em tropel pelo espírito.
Durante todos estes anos nunca falei dela a ninguém. A adopção foi particular. O D r. Connors morreu e o seu arquivo ficou destruído. Quem podia ter descoberto a sua existência? Será possível que os pais adoptivos saibam o meu nome e tenham acompanhado o meu percurso ao longo da vida? Talvez contassem a mais alguém e seja essa pessoa que agora me contactou. Mas porquê?
A janela virada para as traseiras do hotel ficara aberta e a temperatura do quarto começava a arrefecer. Depois de reconsiderar um instante, Jean suspirou e afastou a roupa da cama. Se pretendo dormir alguma coisa, é melhor ir fechá-la, pensou. Levantou-se e encaminhou-se descalça até à janela. Tremendo de frio enquanto fechava o postigo, olhou por acaso para baixo. Um carro com os faróis apagados parara no parque de estacionamento do hotel. Curiosa, ficou a observar o vulto de um homem a sair de um veículo e a encaminhar-se em passos rápidos para a entrada das traseiras do hotel.
Ia com a gola do casaco levantada, mas ao abrir a porta que dava para o átrio, o seu rosto ficou em evidência. Jean afastou-se da janela.
Santo Deus, o que é que um dos meus distintos colegas terá andado afazer até estas horas da noite?, interrogou-se.
CAPÍTULO DOZE
O telefonema foi recebido às três da manhã na esquadra da Polícia em Goshen. Helen Whelan de Surrey Meadows desaparecera. Era uma mulher solteira com pouco mais de quarenta anos, e fora vista pela última vez por um vizinho quando por volta da meia-noite andava a passear Brutus, o seu pastor-alemão. As três da manhã, um casal que vivia na orla do parque a alguns quarteirões de distância acordara com os uivos e o ladrar de um cão. Foram investigar o que se passava e depararam com um pastor-alemão que tentava a todo o custo levantar-se. O animal fora selvaticamente agredido na cabeça e no lombo com um objecto pesado. Numa estrada próxima, descobriram um sapato de mulher tamanho 37.
Às quatro da manhã, Sam Deegan foi convocado e designado para a equipa de detectives que ia investigar o desaparecimento. Primeiro avistou-se com o Dr. Siegel, o veterinário que tratara do animal ferido.
- Suponho que esteve algumas horas inconsciente devido às pancadas que levou na cabeça - declarou Siegel a Deegan. - Foram causadas por um objecto mais ou menos do tamanho e com o peso de um macaco hidráulico.
Sam imaginou a cena. Helen Whelan soltara a trela ao cão para este dar uma corrida pelo parque. Vendo-a sozinha na estrada, alguém tentara arrastá-la para dentro de um carro. O pastor-alemão investira contra o agressor para proteger a dona e fora atacado até ficar inconsciente.
Conduziu até à rua onde haviam deparado com o animal e pôs-se a tocar às portas. Ao chegar à quarta casa, um homem idoso afirmou-lhe ter ouvido por volta da meia-noite e meia um cão ladrar desabaladamente.
Helen Whelan era, ou fora, professora de Educação Física e gozava de popularidade na escola secundária de Surrey Meadows. Vários professores seus colegas informaram Sam que o hábito de ela passear o cão a altas horas da noite era bem conhecido.
- Isso nunca a assustou. Afirmava-nos que Brutus preferia morrer a deixar que alguém a magoasse - declarou com tristeza o director da escola.
- E tinha razão - respondeu-lhe Sam. - O veterinário teve de abater o animal.
Por volta das dez horas daquela manhã, começou a perceber que o caso não seria de fácil resolução. De acordo com a apoquentada irmã que vivia na vizinha Newburgh, Helen não possuía inimigos. Andara durante alguns anos com um professor seu colega, contudo, nesse semestre ele encontrava-se em Espanha, de licença.
Desaparecida ou morta? Sam ia jurar que a pessoa que agredira um cão de maneira tão selvagem não sentiria complacência por uma mulher. Tinha início a parte espinhosa da investigação. Pelo que lhe tocava, começaria por averiguar junto dos vizinhos e da escola de Helen. Havia sempre a possibilidade de um daqueles adolescentes esquisitos que, actualmente, são expulsos das escolas guardar ressentimento contra ela. Pela fotografia, via-se que era uma mulher muito atraente. Talvez algum dos vizinhos se apaixonasse e ela o repudiasse.
Só esperava não se tratar de um daqueles crimes aleatórios cometido por um estranho contra um estranho, cujo único delito fora encontrar-se no sítio errado à hora errada. Este tipo de crime era o mais difícil de se investigar e com frequência ficava por resolver, algo que ele detestava.
Inevitavelmente, tais cogitações trouxeram-lhe de novo ao espírito a lembrança de Karen Sommers.
Mas não era difícil resolver a morte dela, pensou Sam. O difícil era prová-la.
O assassino de Karen era Cyrus Lindstrom, o namorado com quem ela cortara relações havia vinte anos - disso tinha ele a certeza.
Mas na próxima semana, quando eu meter os papéis para a reforma, estarei fora desse caso, recordou Sam a si mesmo.
E também do teu, pensou, contemplando com uma expressão condoída a fotografia recente de Helen Whelan, olhos azuis e cabelo fulvo, agora reportada a título oficial como ”desaparecida, presumivelmente morta”.
CAPÍTULO TREZE
Laura sentira-se tentada a dormir e a guardar as energias para o pequeno-almoço volante em West Point que antecederia o jogo de futebol, porém, quando acordou naquela manhã de quarta-feira, mudou de ideias. Durante o jantar que se seguira ao cocktail, o seu objectivo de namoriscar Gordie Amory alcançara um êxito moderado. Os homenageados sentaram-se ao pé uns dos outros e Jack Emerson juntara-se-lhes. No início, Gordie mostrara-se comedido, mas com a continuação abrira-se um pouco e até lhe dirigira um elogio.
- Laura, julgo que numa ou noutra altura todos os tipos da turma tiveram um fraquinho por ti - declarara.
- Porque é que o dizes no passado? - inquirira-lhe ela em tom brejeiro.
- Com efeito, porquê? - Fora a promissora resposta dele.
E o serão trouxera-lhe um bónus inesperado. Robby Brent anunciara ao grupo que o canal HBO o solicitara para fazer uma comédia de costumes e que o guião lhe agradara.
- Até que enfim o público se fartou dos reality shows - afirmara - e está preparado para rir. Pensem nas comédias clássicas: Lacy Show, Uma Família às Direitas, O Shon de Mary Tyler. Isso é que é humor a sério e creiam-me, o humor a sério está prestes a regressar. - Fitando-a, acrescentara: - Sabes, Laura, devias mesmo ler o papel da que fará de minha mulher. Tenho um pressentimento de que te saías bem.
Ficara sem saber se ele estava a brincar, visto que Robbie fizera da comédia o seu meio de subsistência. Por outro lado, se não estivesse a brincar e ela não conseguisse baixar as defesas de Gordie, talvez esta constituísse mais uma oportunidade de conseguir uma aliança de ouro - porventura a última.
- A última oportunidade. - Sem dar por isso, proferira as palavras em voz alta, e isso provocara-lhe uma estranha sensação de repugnância. Sonhos agitados tinham-na atormentado durante toda a noite. Sonhara com Jake Perkins, o fedelho metediço armado em repórter que lhe estendera a lista com o nome das raparigas que em Stonecroft se sentavam com elas ao almoço, e que desde essa altura tinham morrido. Catherine, Debra, Cindy, Gloria e Alison. Cinco. Sonhara que o rapazola ia riscando os nomes da lista, um a um, até ela e Jeannie serem as únicas sobreviventes.
Embora seguindo percursos diferentes, mantivemo-nos ambas próximas de Alison, pensou, e agora só restamos nós duas. Mesmo quando andávamos na escola e vivíamos ao lado uma da outra, eu e Jeannie nunca fomos parecidas nem verdadeiramente próximas. Ela é amorosa, nunca gozzou com os rapazes como todas nós fazíamos.
Pára com isso!, disse Laura para consigo. Deixa de pensar em bruxedos ou maldições. Tens o dia de hoje e amanhã para conseguires a tua aliança de ouro. Bastava Gordie Amory proferir uma palavra com os seus lábios recém-fabricados para ela ser mantida na série do Maximum. E, de repente, Robby Brent surgira como mais um do grupo que fazia as coisas acontecerem, pois no caso de não estar a aldrabá-la quanto à série e decidir que a queria no espectáculo dele, tinha boas hipóteses de se safar.
E eu sou boa comediante, disse Laura para consigo. Do melhor que há.
E depois havia Howie - não, Cárter. Querendo, podia abrir-lhe portas. Não nas peças dele, é evidente. Santo Deus!, eram tão deprimentes, mas nunca se sabe. Porém quando se tratava de a ajudar na carreira, não era por isso que o obscurantismo artístico dele o tornava menos poderoso.
Não me importava de contracenar numa peça famosa, pensou cobiçosa. Contudo, agora que Alison morrera, também precisava de um novo agente.
Consultou o relógio. Eram horas de se vestir. Fizera a opção certa quando escolhera a roupa para o passeio a West Point - o fato azul de camurça Armani com um lenço Gugci era perfeito para o dia frio que se avizinhava. Segundo o boletim meteorológico, a temperatura máxima rondaria os cinco graus.
Não sou uma rapariga dada às actividades ao ar livre, pensou Laura, mas já que toda agente diz que vai assistir ao jogo, não faltarei.
Gordon, lembrou a si mesma enquanto dava um nó no lenço. Gordon e não Gordie. Cárter e não Home. Pelo menos, Robby continuava a ser Robby e Mark, ainda Mark. Quanto a Jack Emerson, o Donald Trump de Cornwall, Nova Iorque, não optara por passar a ser conhecido por Jacques.
Quando desceu à sala de jantar, ficou desiludida ao verificar que na mesa dos homenageados apenas se encontravam Jean e Mark Fleischman.
- Estou só a beber café - explicou Jean. - Vou ter com uma amiga para tomarmos o pequeno-almoço. Vemo-nos ao almoço.
- Vais assistir à cerimónia de saudação à bandeira, e ao jogo? perguntou Laura.
- Vou sim.
- Nunca me interessei lá muito por essas coisas - declarou Laura. - Ao contrário de ti, Jeannie. Foste sempre uma maluquinha por História. Não houve um cadete que conhecias muito bem e que morreu antes da formatura? Como é que ele se chamava?
Mark Fleischman bebeu um gole de café e reparou que os olhos de Jean se toldavam de dor. Viu-a hesitar e comprimiu fortemente os lábios para se refrear e não responder por ela.
- Reed Thornton - replicou Jean. - Cadete Carroll Reed Thornton Jr.
CAPÍTULO CATORZE
Para Alice Sommers a semana mais dolorosa era a que antecedia o aniversário da morte da filha. E naquele ano ia ser particularmente difícil.
Vinte anos, pensou. Duas décadas. Se fosse viva, Karen teria agora quarenta e dois anos. Seria médica, talvez cardiologista. Foi esse o seu objectivo quando ingressou na Escola Superior de Medicina. Porventura seria casada, mãe de um ou dois filhos.
Alice Sommers imaginou os netos que nunca chegara a conhecer. O rapaz, alto e louro como Cyrus - sempre acreditara que ele e Karen iam acabar juntos. A única coisa que a deixava mesmo perturbada em Sam Deegan era a sua crença inabalável de que fora Cyrus o causador da morte de Karen.
E quanto à neta? Seria parecida com Karen, concluiu Alice, de constituição delicada, olhos azuis-esverdeados e cabelo negro como azeviche. Claro que nunca iria sabê-lo.
Meu Deus, faz com que o tempo volte para trás e que aquela noite pavorosa se desvaneça. Ao longo dos anos murmurara esta oração milhares de vezes.
Sam Deegan afirmara-lhe não acreditar que Karen tivesse chegado a acordar quando o intruso se introduzira no quarto dela. Mas Alice fora sempre atormentada pelas dúvidas. Será que abrira os olhos? Que pressentira uma outra presença? Que vira um braço executar um arco por cima da cama? Será que sentira as terríveis facadas que lhe tinham roubado a vida?
Era um assunto que podia mencionar a Sam, embora jamais o tivesse desabafado com o marido, pois ele agarrara-se à esperança de que a filha única fora poupada a esse instante de horror e sofrimento, e precisara de acreditar que acontecera assim.
Havia dias em que tudo isto passava em tropel pelo espírito de Alice Sommers. Na manhã de quinta-feira ao acordar, a perspectiva da visita de Jeannie Sheridan aligeirara-lhe um pouco o pesado manto de dor.
Às dez horas, ouviu tocarem à campainha. Abriu a porta e abraçou Jean com um afecto feroz. Tão bom que era sentir a jovem nos braços! Tinha consciência de que o beijo de boas-vindas se dirigia a Jean e também a Karen.
Ao longo dos anos vira a jovem tímida e esquiva de dezasseis anos que era Jean, quando se tinham tornado vizinhas em Cornwall, transformar-se na historiadora e escritora com êxito e elegante que era agora.
Ao longo dos dois anos em que tinham vivido ao lado uma da outra antes de Jean completar o secundário, ir trabalhar para Chicago e ingressar na Bryn Mawr, Alice aprendera a admirar e a um tempo a compadecer-se da jovem. Parecia incrível ser filha daqueles pais, tão cegos de desprezo um pelo outro que nem sequer reparavam no mal que causavam à filha única com as suas zaragatas públicas.
Já nessa altura ela revelava uma grande dignidade, pensou Alison, afastando Jean para a contemplar e abraçando-a de novo.
- Dás-te conta de que não te vejo há oito meses? - perguntou em voz alta. - Tive saudades tuas, Jeannie.
- Também tive saudades suas - replicou Jean, fitando a mulher mais velha com uma expressão repassada de afecto. Alice Sommers era uma mulher bonita de cabelo prateado e uns olhos azuis que guardavam sempre uma centelha de tristeza. Porém o sorriso dela era espontâneo e caloroso. - E a senhora está óptima.
- Nada mal para sessenta e três anos - concordou ela. - Desisti das colorações e de dar dinheiro a ganhar aos cabeleireiros. O que agora vês é autêntico.
Deram o braço e passaram do vestíbulo à salinha de estar.
- Jeannie, acabou de me ocorrer que nunca aqui estiveste. Encontrávamo-nos sempre em Nova Iorque ou em Washington. Deixa-me mostrar-te a casa, a começar pela vista fabulosa do Hudson.
Enquanto percorriam as divisões, Alice explicou:
- Não sei por que ficámos tanto tempo na outra casa, sou muito mais feliz aqui. Penso que Richard achava que se mudássemos, estávamos de certo modo a abandonar Karen. Nunca recuperou da perda da filha, sabes?
Jean recordou a bonita mansão estilo Tudor que tanto admirara na sua juventude.
Conhecia-a como à palma da minha mão, pensou. Quando Laura lá vivia, eu andava sempre dentro e fora, e depois Alice e o Sr. Sommers foram sempre amorosos comigo. Quem me dera ter conhecido melhor a Karen.
- Quem comprou a casa? É alguém que eu conheço? - inquiriu em voz alta.
- Acho que não. As pessoas que a compraram são da zona norte de Nova Iorque. Venderam-na o ano passado. Ouvi dizer que o novo proprietário mandou efectuar alguns restauros e que a tenciona alugar mobilada. Muita gente acha que o verdadeiro comprador foi Jack Emerson. Corre por aí o boato de que anda a comprar imensas propriedades na cidade. Para quem foi o rapazola que costumava varrer escritórios, percorreu sem dúvida um longo trajecto e tornou-se bastante empreendedor.
- É o presidente da reunião.
- E o motor que a impulsiona. Em vinte anos nunca houve em Stonecroft tanto cerimonial - replicou Alice com um encolher de ombros. - Mas, pelo menos, fez com que viesses até cá. Espero que estejas com fome. Da ementa constam waffles e morangos.
Foi durante a segunda chávena de café que Jean tirou os faxes e o envelope com a escova, os estendeu a Alice e lhe revelou a existência de Lily.
- O Dr. Connors conhecia um casal que desejava um bebé. Eram doentes dele, o que significa que devem ter vivido nesta localidade. Alice, não sei se vá à Polícia ou se contrate um detective particular. Não sei o que fazer.
- Estás a querer dizer que aos dezoito anos tiveste um bebé e nunca contaste a ninguém? - exclamou Alice, debruçando-se sobre a mesa e pegando na mão de Jean.
A senhora conheceu a minha mãe e o meu pai. Se soubessem, armavam uma zaragata para descobrir qual deles fora o culpado por eu me meter em sarilhos. Era o mesmo que contratar um avião para sobrevoar a cidade e espalhar a notícia.
E nunca contaste a ninguém?
- Nem a uma única pessoa. Na altura, ouvi dizer que o Dr. Connors ajudava as pessoas na adopção de bebés. Queria que eu contasse aos meus pais, mas como já era maior anunciou-me que tinha uma doente que fora informada de que não podia ter filhos. Ela e o marido tencionavam adoptar uma criança e eram pessoas maravilhosas. Quando lhes comunicou, responderam logo que adoravam ficar com o bebé. Arranjou-me emprego numa clínica de Chicago, o que serviu de pretexto para eu poder dizer que queria trabalhar durante um ano antes de entrar para a Bryn Mawr.
- Lembro-me de como ficámos orgulhosos por saber que receberas uma bolsa de estudo.
- Logo que acabei o secundário, segui para Chicago. Precisava de me afastar. E não foi só por causa do bebé. Tinha de fazer o luto. Quem me dera que tivesse conhecido o Reed. Era tão especial. Acho que foi por isso que nunca me casei. - Os olhos de Jean marejaram-se de lágrimas. - Nunca senti aquele amor por mais ninguém. - Abanando a cabeça, pegou no fax e acrescentou: - Pensei em ir à Polícia, mas vivo em Washington. Que podiam eles fazer? ”Devo beijá-la ou matá-la? É só uma piada.” Não pode ser considerado uma ameaça, pois não? Mas leva-me a supor que quem adoptou Lily viveu nesta localidade, pois era doente do Dr. Connors. Por isso é que julgo que se recorrer à Polícia, deve ser a desta cidade ou, pelo menos, desta região. Alice, que é que acha?
- Acho que tens razão e conheço a pessoa certa que deves contactar - replicou Alice em tom firme. - Sam Deegan é um detective que trabalha para o gabinete do delegado distrital. Foi ele que compareceu na manhã em que encontrámos Karen assassinada e nunca encerrou o dossiê relativo à morte dela. Tornou-se um grande amigo e há-de descobrir uma maneira de te ajudar.
CAPÍTULO QUINZE
A partida do autocarro para West Point estava programada para as dez horas. Às nove e cinquenta, Jack Emerson abandonou o hotel e efectuou um rápido trajecto até casa a fim de ir buscar a gravata que se esquecera de enfiar na mala. Rita, a sua mulher há quinze anos, encontrava-se sentada à mesa a tomar o pequeno-almoço e a beberricar café, enquanto lia o jornal. Quando o marido entrou, olhou-o com indiferença.
- Jack, como é que está a decorrer a grande reunião? - perguntou à laia de cumprimento e extravasando um imenso sarcasmo em cada palavra que proferia.
- Diria que está a decorrer muito bem, Rita - replicou ele em tom amigável.
- O quarto de hotel é confortável ou quê?
- O quarto é tão confortável como qualquer outro da Casa Glen-Ridge. Porque não vens comigo e vês com os teus próprios olhos?
- Dispenso - replicou ela, virando-se de novo para o jornal e ignorando-o.
Permaneceu um instante a contemplá-la. Tinha trinta e sete anos, mas não pertencia ao tipo de mulher que melhora com a idade. Rita fora sempre reservada, mas com o passar do tempo a expressão carrancuda que lhe fazia descair os lábios finos tornara-os pouco atraentes. Quando contava vinte anos e o cabelo lhe pendia solto até aos ombros, fora realmente bonita. Agora que repuxava o cabelo todo para trás e o apanhava numa banana, parecia que tinha a pele retesada. Na realidade, tudo nela se afigurava mesquinho e raivoso. Enquanto permanecia ali especado, Jack percebeu o quanto ela lhe desagradava.
Enfureceu-o sentir que precisava de justificar a sua presença na casa que lhe pertencia.
Não tinha a gravata que quero usar esta noite ao jantar - disse em tom ríspido. - Por isso, passei por cá.
- Jack - replicou ela, pousando o jornal -, quando insisti para que Sandy fosse para um colégio interno e não para a tua bem-amada Stonecroft, deves ter desconfiado que se passava qualquer coisa.
- Acho que sim - respondeu ele, ao mesmo tempo que pensava: Vai passar ao ataque.
- Vou mudar-me para Connecticut. Aluguei por seis meses uma casa em Westport até ver o que pretendo comprar. Combinaremos as visitas a Sandy. Apesar de seres um marido de merda, tens-te revelado um pai bastante decente e é melhor que a separação seja de comum acordo. Sei exactamente o que tu vales, de modo que não desperdices muito dinheiro com os advogados. - Levantando-se, acrescentou: -Jack Emerson, o amigo do peito de toda a gente... jovial, sempre com piadas engraçadas, dedicado à comunidade, homem de negócios, inteligente. É o que a maioria das pessoas afirma a teu respeito, Jack. Mas além de seres um fraldiqueiro, há muita coisa a apodrecer dentro de ti. Só por curiosidade gostava de saber o que é.
Jack Emerson esboçou um sorriso gélido.
- Claro que desconfiei que te preparavas para mudar para Connecticut quando insististe em mandar Sandy para Choate - replicou. - Ainda reconsiderei falar-te do assunto... isto é, reconsiderei dez segundos, depois celebrei.
E estás muito enganada se pensas que sabes quanto eu valho, acrescentou para si mesmo.
Com um encolher de ombros, Rita contrapôs:
- Andavas sempre a afirmar que tu é que tinhas a última palavra a dizer. Sabes que mais, Jack? Por baixo dessa camada de verniz estaladiço continuas a ser o mesmo porteirozeco pindérico que depois das aulas andava todo contrariado a passar a esfregona pelo chão. E se no divórcio não fizeres jogo limpo, talvez me veja obrigada a comunicar às autoridades que me confessaste teres sido tu que há dez anos planeaste o incêndio no consultório do médico.
- Nunca te disse isso - ripostou ele, fitando-a com ar espantado.
- Mas eles vão acreditar, não é? Trabalhaste naquele prédio, conhecia-lo palmo a palmo e andavas a cobiçar o imóvel para o centro comercial que planeavas construir. Depois do incêndio conseguiste adquiri-lo por um baixo preço. - Arqueando o sobrolho, Rita acrescentou: - Despacha-te, Jack e vai lá buscar a gravata da escola. Daqui a umas horas, já não estarei cá. Quem sabe se não engatas uma das tuas colegas de turma e promoves aqui esta noite um convívio a sério. Fica à vontade como se a casa fosse tua.
CAPÍTULO DEZASSEIS
A sensação de que entrara, por fim, em acção incutiu a Jean uma certa paz. Alice Sommers prometera telefonar a Sam Deegan e tentar combinar um encontro para domingo à tarde.
Não preciso de ir amanhã para casa, pensou Jean. Posso ficar no hotel pelo menos uma semana. Tenho jeito para pesquisas. Talvez descubra alguém que tivesse trabalhado no consultório do Dr. Connors, uma enfermeira ou uma secretária que me consiga informar onde registava ele as datas de nascimento dos bebés cuja adopção estava a seu cargo. Talvez ele guardasse noutro sítio cópias das fichas. Supondo que existem, Sam Deegan podia ajudar-me a descobrir uma maneira de ter acesso às mesmas.
Fora em Chicago que o Dr. Connors lhe levara o bebé. Seria possível que o médico tivesse aí registado o nascimento? Teria a mãe adoptiva viajado com ele até Chicago ou ele próprio é que levara Lily de volta a Cornwall?
Todos os elementos do grupo que se dirigiram para West Point em transporte próprio, foram informados de que deviam estacionar no terreno próximo do Hotel Thayer. Ao transpor o portão e vendo-se no recinto da Academia, Jean sentiu um nó na garganta. Como lhe ocorria com frequência nos últimos dias, recordou-se da última vez em que ali estivera, aquando da formatura da turma de Reed, e ela vira os pais dele a aceitarem o diploma e a espada que lhe pertenciam.
A maior parte do grupo de Stonecroft andava a passear pelos terrenos de Point, e tinham combinado encontrar-se ao meio-dia e meia no Thayer para o almoço. Depois compareceriam à cerimónia de saudação à bandeira antes de seguirem para o jogo.
Jean, antes de ir ter com os outros, dirigiu-se ao cemitério para visitar a campa de Reed. Era um longo trajecto através dos campos, mas ficou contente porque assim permitia-lhe tempo para reflectir.
Encontrei aqui tanta paz pensou. Se Reed fosse vivo e a minha filha estivesse comigo e não algures com estranhos, como seria a minha vida? Não arranjara coragem para comparecer ao funeral de Reed que decorrera no dia da sua formatura em Stonecroft. A mãe e o pai nunca o tinham conhecido, e praticamente nada sabiam a seu respeito. Que desculpa podia ela arranjar para justificar o facto de não se encontrar presente no dia da sua própria formatura?
Ao contornar a Capela dos Cadetes, lembrou-se dos concertos a que aí assistira, de início sozinha e mais tarde com Reed. Passou pelos monumentos que ostentavam nomes gravados na História, encaminhou-se para a secção 23 e deteve-se em frente da pedra tumular com o nome dele, Tenente Carroll Reed Thornton, Jr. Encostada à pedra viu uma rosa à qual estava preso um pequeno envelope. Jean soltou um arquejo ao reparar que o mesmo lhe era dirigido. Pegou na rosa, rasgou o envelope e retirou um cartão do interior. As mãos começaram a tremer-lhe à medida que lia a curta mensagem: ”Jean, é para ti. Calculei que passasses por aqui.”
No caminho de regresso a Thayer, esforçou-se por recuperar a compostura.
Quase de certeza um dos participantes da reunião conhece a existência de Lily e anda a brincar ao gato e ao rato comigo, pensou. Quem mais podia saber que eu estaria aqui hoje e calcular que visitaria a campa do Reed?
Estão cá quarenta e dois elementos da nossa turma. O que reduz a margem dos que não pertencem ao grupo, e talvez me contactassem como a qualquer outra pessoa do mundo, ou porque faço parte dos quarenta e dois. Vou descobrir quem é e onde se encontra Lily. Talvez desconheça que foi adoptada. Não desejo interferir na vida dela, mas preciso de saber que se encontra bem. Só gostava de a ver uma vez mesmo que fosse à distância.
Estugou o passo. Só lhe restava aquele dia e o seguinte para um contacto directo com todos, e para tentar saber quem estivera no cemitério.
Voufalar com Laura, pensou. Não lhe escapa nada. Se esteve no passeio que incluía uma paragem no cemitério, é capaz de ter reparado em alguma coisa.
Mal entrou na sala reservada para o almoço dos alunos de Stonecroft, Mark Fleischman foi ter com ela.
O passeio foi muito interessante - declarou este. – Lamento que não participasses. Até me envergonho de o dizer, mas mesmo quando vivia em Cornwall as únicas vezes que me desloquei a West Point foi para praticar corrida. Mas no último ano do secundário ias lá muitas vezes, não ias? Quero dizer, lembro-me de escreveres alguns artigos sobre o assunto para o jornal da escola.
- Ia, sim - replicou Jean em tom comedido. Desfilaram-lhe pela memória um caleidoscópio de recordações. Na Primavera, durante as tardes de domingo, percorria a vereda de Trophy Point e sentava-se num dos bancos a escrever. Estes, de granito cor-de-rosa, tinham sido doados a Point pela turma de 1934. Sabia de cor as palavras gravadas nos mesmos:
DIGNIDADE, CORAGEM, INTEGRIDADE, LEALDADE.
Até essa frase me fez perceber a mesquinhez de vida que os meus pais levavam, pensou.
Virou-se de novo para Mark, que dizia:
-Jack Emerson, o nosso chefe, decretou que hoje os homenageados devem misturar-se com os outros, o que para Laura vai constituir um problema. Reparaste que toda ela se derretia em charme? No jantar de ontem atirou-se ao Gordon, o nosso executivo televisivo, ao Cárter, o nosso dramaturgo, e ao Robby, o nosso comediante. No autocarro ficou sentada ao lado de Jack Emerson e namoriscou-o à descarada. Ouvi dizer que se tornou um grande magnata imobiliário.
- Mark, tu és o especialista em comportamento de adolescentes. Laura andou sempre com tipos com êxito. Não achas que isso se transfere para a idade adulta? E além disso, bem faz ela em se concentrar nesses quatro porque os ex-namorados, como Doug Hanover, ou não se encontram cá ou andam com as mulheres a reboque - replicou Jean, parecendo divertida.
Mark sorria, mas ao observá-lo, ela detectou-lhe uma mudança de expressão, viu os olhos semicerrarem-se-lhe.
Também tu? - interrogou-se. E percebeu que a desiludia pensar que Mark fora outro dos que tinham tido, e talvez ainda tivesse, um fraquinho por Laura. Bom, ela queria arranjar um pretexto para falar com a colega e se ele também desejava estar com ela, tudo bem.
- Vamo-nos sentar ao pé da Laura - sugeriu. - Era o que eu fazia sempre na escola.
Por um instante, a imagem da mesa de almoço em Stonecroft atravessou-lhe a mente com tanta nitidez que Catherine, Debra, Cindy, Gloria e Alison adquiriram vida.
E eu e Laura.
E eu... e Laura...
CAPÍTULO DEZASSETE
O Mocho julgava que em Surrey Meadows, Nova Iorque, o desaparecimento de uma mulher não seria participado a tempo de fazer as manchetes dos matutinos de sábado. Porém, ficou satisfeito ao verificar que o mesmo era relatado na rádio e na televisão. Antes e depois do pequeno-almoço, enquanto embebia o braço em desinfectante, viu e ouviu as transmissões. A dor no braço emanava do local onde o cão lhe ferrara os dentes; considerou-o um castigo por ser descuidado. Antes de parar o carro e arrastar a mulher, devia ter reparado na trela que esta segurava na mão. O pastor alemão surgira de nenhures e investira contra ele, a rosnar. Felizmente, conseguira agarrar no macaco hidráulico que guardava sempre no banco dianteiro quando efectuava estas incursões.
Jean encontrava-se agora sentada à sua frente e era evidente que vira a rosa depositada na campa. Estava certo de que ela alimentava a esperança de Laura poder ter reparado se alguém do grupo levara a flor, ou a deixara tombar durante o passeio pelo cemitério. Mas isso não o inquietava, pois Laura não reparara em nada. Podia pôr as mãos no fogo em relação a isso.
Anda demasiado ocupada a tentar adivinhar qual de nós oferece mais hipóteses de ser utilizado. Está pálida e desesperada, pensou triunfante.
O facto de ao longo de todos aqueles anos saber da existência de Lily também lhe permitira o discernimento das múltiplas vias que lhe possibilitavam a ascendência sobre outras pessoas. Às vezes, divertia-o usar tal poder. Outras, limitava-se a aguardar. A chamada anónima que fizera há três anos para os serviços do IRS tinham determinado a auditoria das finanças de Laura, que agora se via com a casa penhorada. Em breve isso deixaria de interessar, mas restara-lhe a satisfação de saber que antes de a matar, ela andava preocupada com a eventualidade de perder a casa.
A ideia de contactar Jean a respeito de Lily só surgira quando conhecera por acaso os pais adoptivos da sua filha.
Embora me sinta ambivalente quanto a matar Jean, quero fazê-la sofrer, pensou, sem sombra de remorso.
Depositar a flor na campa constituíra um golpe de mestre. Em Thayer, ao almoço, vira a aflição estampada nos seus olhos, e durante a cerimónia militar de saudação à bandeira antes do início do jogo de futebol, fizera questão de sentar-se ao lado de Jean.
- Que belo espectáculo, não achas? - perguntara-lhe. - Acho. E ele sabia que o pensamento dela voara para Reed Thornton. Nessa altura, o tambor dos Hellcats e os porta-bandeiras desfilavam perante a tribuna onde se encontravam sentados.
jeannie, presta bem atenção, pensara. A tua filha é a que vai no fim da segunda fila.
CAPÍTULO DEZOITO
Quando regressaram à Casa Glen-Ridge em Cornwall, Jean fez questão de subir no elevador com Laura, e segui-la até ao quarto.
- Laura, querida, preciso de falar contigo - pediu.
- Oh, Jeannie, mal tenho tempo para um banho e para descansar um pouco - protestou Laura. - Pode ser muito bonito dar uma volta por West Point e assistir ao jogo de futebol, mas as actividades ao ar livre não me seduzem.
- Não - replicou Jean com firmeza. - Preciso de falar contigo já.
- Então que seja, mas só por causa da nossa grande amizade replicou Laura com um suspiro ao introduzir o cartão de plástico na fechadura. - Bem-vinda ao Taj Mahal - acrescentou, abrindo a porta e acendendo a luz. Os candeeiros ao lado da cama e o da secretária iluminaram a obscuridade causada pelo sol poente com laivos bruxuleantes de luz.
Jean sentou-se na beira da cama.
- Laura - perguntou -, presta bem atenção porque é muitíssimo importante. O passeio que deste incluía uma visita ao cemitério, não incluía?
Laura começou a desabotoar o casaco de camurça que usara para a ida a West Point.
- Mmm, Jeannie - replicou. - Sei que quando andávamos em Stonecroft costumavas ir lá com frequência, mas foi a primeira vez que visitei o cemitério. Santo Deus, quando pensamos na quantidade de gente famosa que lá se encontra enterrada! O general Custer. E eu que julgava que ele tinha dado cabo daquele ataque que chefiou mas descobri que, graças à sua mulher, decidiram torná-lo um herói. Enquanto estava junto à campa, lembrei-me de uma coisa que me disseste há muito tempo, que os índios chamavam a Custer ”Chefe do Cabelo Amarelo”. Lembravas-te sempre de coisas desse género.
- Laura, todos os que foram no passeio pararam no cemitério?
- Os que foram no autocarro, sim. Os que levaram os filhos tinham transporte próprio e deram o passeio por conta própria. Quero dizer, vi-os andar por ali sem se juntarem ao grupo. Quando eras miúda, gostavas de ver as campas? - replicou Laura. Pendurando o casaco no armário, acrescentou: - Jeannie, gosto muito de ti, mas preciso de descansar. E tu também. Esta é a nossa grande noite, vamos receber a medalha, ou placa, ou lá o que é. Achas que nos obrigam a cantar? Espero que não.
Jean levantou-se e pousou as mãos nos ombros de Laura.
- Laura - disse -, isto é importante. Reparaste se alguém no autocarro levava alguma rosa ou viste alguém depositar uma rosa no cemitério?
- Alguma rosa? Não, é claro que não. Quero dizer, vi pessoas depositarem flores em campas, mas não pertenciam ao nosso grupo. Quem é que da turma tinha lá algum familiar ou amigo enterrado para lhe levar flores?
Devia calcular, pensou Jean. Laura só prestou atenção ao que era importante para ela.
- Não te incomodo mais - garantiu. - A que horas nos querem lá em baixo?
- O cocktail é às sete e o jantar às oito. Às dez, vamos receber as medalhas. Para amanhã só falta a cerimónia fúnebre em memória de Alison e o almoço ligeiro em Stonecroft.
- Depois voltas para a Califórnia, Laura?
Num gesto impulsivo, esta abraçou Jean e replicou:
- Ainda não fiz planos definitivos, mas digamos que talvez tenha uma opção melhor. Até logo, querida.
Depois da porta se fechar atrás de Jean, Laura retirou o saco da roupa do armário. Mal terminasse o jantar, escapuliam-se. Conforme afirmara: ”Fiquei farto do hotel, Laura. Prepara uma muda de roupa que eu meto-a no meu carro antes do jantar. Mas fica entre nós. Ninguém tem nada que saber onde passamos a noite. Vamos recuperar o atraso de vinte anos durante os quais não percebeste como eu era maravilhoso.”
Enquanto arrumava numa malinha, um casaco de caxemira que tencionava vestir na cerimónia fúnebre em memória de Alison, Laura sorriu para si mesma.
Disse-lhe que fazia absoluta questão de comparecer à cerimónia de Alison, mas que não me importava se faltássemos ao almoço.
Franziu então o sobrolho, pois lembrou-se de que ele respondera, ”Nem por sombras pensei em faltar à cerimónia de Alison.”
é claro que estava a querer dizer que estaríamos lá juntos, reflectiu.
CAPÍTULO DEZANOVE
Às três horas da tarde, Sam Deegan ficou surpreendido por receber um telefonema de Alice Sommers.
- Sam, esta noite por acaso está livre para ir a um jantar de cerimónia? - perguntou ela.
Atónito, Sam hesitou em responder.
- Eu sei que se trata de um convite à última hora - acrescentou Alice em tom contrito.
- Não, de modo nenhum. A resposta é sim, estou livre, e tenho pendurado no armário um smoking limpo e engomado.
- Esta noite há uma gala em honra de alguns finalistas da vigésima reunião da turma de Stonecroft. Pediram às pessoas da cidade para comprar lugares para o novo anexo que pretendem construir em Stonecroft. Tenciono ir, mas entre os homenageados há uma pessoa que gostava que conhecesse. Chama-se Jean Sheridan, vivia na casa ao lado da minha, e gosto bastante dela. Está com um problema grave e precisa que a aconselhem. De início, pensei pedir-lhe que passasse amanhã por minha casa e assim poderia falar com ela. Depois decidi que seria um gesto bonito encontrar-me presente quando Jean receber a medalha e...
Sam percebeu que Alice Sommers o convidara levada pelo impulso e que não só estava constrangida como também um pouco arrependida por lhe ter telefonado.
- Alice, tenho muito prazer em ir - replicou efusivo. Não lhe disse que estivera a trabalhar no caso de Helen Whelan até às quatro e meia da manhã, que acabara de chegar a casa e que tencionava deitar-se cedo. Uma sesta de uma ou duas horas e recupero, pensou. - Tencionava passar amanhã por sua casa - acrescentou. Alice Sommers sabia o que ele queria dizer.
- Estava à espera que o fizesse - replicou. - Se puder, apareça às sete, toma primeiro uma bebida e depois seguimos para o hotel.
- Combinado. Até logo, Alice.
Sam desligou e percebeu envergonhado que ficara bastante satisfeito por receber o convite. Em seguida, pensou num motivo para isso. Com que tipo de problema estará a debater-se jean Sheridan, a amiga de Alice?, interrogou-se. Mas por mais grave que este fosse, não podia comparar-se com o que acontecera nessa madrugada a Helen Whelan quando passeava o cão.
CAPÍTULO VINTE
- Que grande festa, não achas, Jean? - inquiriu Gordon Arnory. Encontrava-se sentado à direita dela, na segunda fila da tribuna onde tinham sido instalados os homenageados. Por baixo deles, o congressista local, o presidente da câmara de Cornwall-on-Hudson, os patrocinadores do jantar, o reitor de Stonecroft e vários administradores observavam com ar satisfeito o salão de baile apinhado.
- Pois é - concordou ela.
- Pensaste em convidar a tua mãe e o teu pai para esta grande ocasião?
Se Gordie o tivesse perguntado com uma entoação irónica, Jean teria ficado zangada, mas como o fizera de bom humor, respondeu-lhe na mesma moeda:
- Não. E tu pensaste convidar os teus?
- Claro que não. Aqui para nós, deves ter reparado que nenhum dos homenageados trouxe a reboque um progenitor esfuziante para partilhar este momento de triunfo.
- Pelo que sei, a maioria dos pais mudou-se. Os meus partiram no Verão em que completei os estudos em Stonecroft. Partiram e, como deves saber, divorciaram-se - acrescentou Jean.
- Tal como os meus. Quando penso em nós seis, aqui sentados, supostamente o orgulho da nossa turma de formatura, chego à conclusão de que, de todos nós, foi talvez Laura a única que gostou de crescer cá. Acho que foste bastante infeliz tal como eu, Robby, Mark e Cárter. Robby foi um estudante indiferente que pertencia a uma família de intelectuais e estava sempre a ser ameaçado com a perda da bolsa de estudos para Stonecroft. O humor converteu-se no seu escudo e no seu refúgio. Os pais de Mark declararam a toda a gente que o preferiam morto e ver o outro filho poupado. A reacção dele foi tornar-se psiquiatra, especializado em adolescentes. Interrogo-me se não estará a tentar tratar o adolescente que existe dentro dele.
Médico, cura-te a ti mesmo, pensou Jean, achando que se calhar Gordon tinha razão.
O pai de Howie, ou Cárter, como insiste em ser chamado, costumava dar-lhe sovas tanto a ele como à mãe - prosseguiu Gordon. - Fazia questão de se afastar de casa o mais possível. Deves saber que costumava espreitar às janelas. Será que tentava obter um vislumbre do que era a vida normal? Achas que é por esse motivo que as peças dele são tão deprimentes?
Jean preferiu esquivar-se à pergunta.
- Restamos eu e tu - declarou baixinho.
- A minha mãe não era uma dona de casa desmazelada. Se calhar
lembras-te que quando a nossa casa ardeu, afirmaram por brincadeira na cidade que fora a única maneira de ficar bem limpa. Agora, possuo três casas e confesso-te que em cada uma delas sou um completo obcecado com as limpezas. Por isso o meu casamento falhou, embora tivesse sido um erro desde o princípio.
- E a minha mãe e o meu pai tinham zaragatas à vista de toda a gente. Gordon, não é isso que eu te faço recordar? - perguntou ela, sabendo exactamente o que ele estava a pensar.
- Estava a lembrar-me da facilidade com que os miúdos ficam envergonhados e de que, com excepção de Laura, que foi sempre a menina bonita da nossa turma, eu, tu, Cárter, Mark e Robby levávamos uma vida dura. Não precisávamos que os nossos pais a tornassem pior, mas o facto é que todos eles, de uma maneira ou doutra, contribuíram para isso. Jean, eu ansiava tanto por uma mudança que até arranjei uma cara totalmente nova. Mas quando me sinto em baixo, as vezes acordo e verifico que continuo a ser Gordie, o imbecil, o miúdo com cara de palerma de quem gostavam de troçar. Quanto a ti, tornaste-te famosa nos círculos académicos e agora escreveste um livro que, além de aclamado pela crítica, se tornou um best-seller. Mas no íntimo quem és tu?
Quem, na verdade? No íntimo, continuo muitas vezes a ser a intrusa carente pensou Jean, mas foi salva da resposta quando de repente Gordon esboçou um sorriso agarotado e declarou:
- Ao jantar nunca devemos ficar demasiado filosóficos. Depois de me pregarem a medalha, talvez me sinta diferente. Laura, que achas?
Ele virou-se para esta, e Jean virou-se para Jack Emerson, que se sentara à sua esquerda.
- Parece que tiveste um debate aceso com Gordon - observou este.
Jean detectou-lhe no rosto uma expressão de indisfarçável curiosidade. A última coisa que queria era prosseguir com ele a conversa que entabulara com Gordon.
- Oh, estávamos só a falar do tempo em que crescemos aqui. Bisbilhotices, Jack - replicou sem hesitar.
Era tão insegura., pensou. Tão magra e desengonçada. Tinha o cabelo oleoso e estava sempre à espera de ver a minha mãe e o meu pai começarem com as zaragatas. Senti-me tão culpada quando me afirmaram que era só por minha causa que continuavam juntos. Tudo o que desejava era tornar-me adulta e afastar-me para bem longe. E foi o que fiz.
- Cornwall foi um sítio óptimo para crescermos - declarou Jack esfuziante. - Nunca consegui entender por que motivo a maioria de vocês não se instalou cá nem comprou uma casinha de campo, agora que são todos pessoas com êxito. A propósito, Jeannie, se alguma vez te decidires a comprar uma, tenho algumas propriedades que, garanto-te, são verdadeiras pérolas.
Jean lembrou-se que Alice Sommers lhe afirmara que corria o boato de ser Jack Emerson o novo proprietário da sua antiga casa.
- Há alguma no meu antigo bairro? - perguntou. Ele meneou a cabeça e replicou:
- Não. Refiro-me a locais com uma vista para o rio de cortar a respiração. Quando é que te posso levar a dar uma volta a fim de tos mostrar?
Nunca, pensou Jean. Não voltei para viver aqui. Só me quero ir embora. Mas primeiro, tenho de encontrar a pessoa que me anda a importunar por causa de LYly. É só um pressentimento. No entanto, punha as mãos no fogo em como neste preciso instante se encontra sentada nesta sala. Quero ver este jantar despachado para poder encontrar-me com Alice e o detective que ela trouxe esta noite. Preciso de acreditar que arranjará uma maneira de me ajudar a descobrir Lily, e a protegê-la de qualquer ameaça à sua segurança. E quando tiver a certeza de que está bem e feliz impÕe-se que regresse ao meu mundo de adulta. Permanecer aqui vinte e quatro horas já me fez compreender que, aquilo em que me tornei, para o melhor e para o pior, foi o resultado da vida que levei aqui e tenho de me conformar com isso.
- Oh, acho que não ando à procura de casa em Cornwall - disse em voz alta a Jack Emerson.
- Neste momento talvez não, Jeannie - replicou este com os olhos a luzir -, mas aposto em como não tarda nada descubro um sítio para ficares. Na verdade, tenho a certeza.
CAPÍTULO VINTE E UM
Normalmente neste jantares, os homenageados são apresentados por ordem crescente de importância, pensou sardónico, o Mocho quando pronunciaram o nome de Laura. Foi a primeira a receber a medalha, atribuída em conjunto pelo presidente da câmara de Cornwall e pelo reitor de Stonecroft.
O porta-fatos e uma pequena malinha encontravam-se já no carro dele. Sem ser observado, levara-os à socapa pela escada das traseiras, depois pela entrada de serviço e por fim, enfiara-os no porta-bagagem. Como precaução, quebrara a lâmpada da entrada de serviço e pusera um boné e um casaco que lembravam vagamente um uniforme, isto para o caso de alguém o ver, mesmo à distância.
Como era de prever, Laura apareceu deslumbrante. Envergava um vestido comprido dourado que, como rezava o bem conhecido ditado, ”não deixava nada à imaginação”. Maquilhara-se de forma impecável e ostentava um colar de diamantes que talvez fosse falso mas disfarçava muito bem. Os brincos de diamantes talvez fossem genuínos e constituíssem os últimos resquícios da colecção de jóias que herdara do segundo marido. Um pouco de talento, enriquecido pela sua aparência espectacular, proporcionou a Laura os seus quinze minutos de fama. E, a bem da verdade, era dotada de uma personalidade cativante - para quem não figurasse no seu rol de pretendentes.
Na altura, estava a agradecer ao presidente da câmara, ao reitor de Stonecroft e aos convivas.
- Cresci em Cornwall-on-Hudson, um lugar encantador - declarou com emoção. - E os quatro anos que passei em Stonecroft foram os mais felizes da minha vida.
Estremecendo de expectativa, o Mocho imaginou o momento em que chegavam a casa, ele fechava a porta atrás dela, e via o medo a ensombrar-lhe os olhos, o momento em que ela compreendia que caíra numa armadilha.
Aplaudiram o discurso de Laura e o presidente da câmara anunciou o homenageado seguinte.
Por fim, a cerimónia terminou, e puderam abandonar a sala. Sentiu que Laura o fitava, mas não lhe retribuiu o olhar. Tinham combinado que permaneceriam na festa durante mais algum tempo e depois enquanto toda a gente se estivesse a despedir, seguiria cada um para os respectivos quartos. Depois ela iria ter com ele ao carro.
De manhã, os outros entregariam as chaves na recepção, seguiriam em transporte próprio para a cerimónia fúnebre junto à campa de Alison e juntar-se-iam ao almoço. Até essa altura ninguém daria pela falta de Laura e se tal acontecesse, suporiam que se fartara da reunião e se fora embora para casa mais cedo.
- Suponho que chegou a altura de te dar os parabéns - disse Jean, pousando-lhe a mão a escassos centímetros do pulso e tocando-lhe na ferida mais profunda resultante das dentadas do cão. O Mocho sentiu uma golfada de sangue molhar-lhe o casaco e percebeu que a manga do vestido azul-turquesa de Jean estivera em contacto com o mesmo.
Fez um esforço tremendo e conseguiu disfarçar a dor excruciante que lhe atravessou o braço. Era óbvio que Jean não percebera o que acontecera, pois virou-se para cumprimentar um casal com cerca de sessenta anos que se aproximara dela.
Por uns instantes, o Mocho pensou no sangue que pingara para a rua quando o cão o mordera. ADN. Preocupou-o ser a primeira vez que deixava indícios físicos excepto, claro, o seu símbolo, mas ao longo dos anos, ninguém em parte nenhuma reparara nisso. De certo modo ficara desiludido com a estupidez dos investigadores, mas também contente. Se começassem a associar as mortes das mulheres, seria mais difícil continuar. Isto se ele, depois de Laura e Jean, optasse por continuar.
Mesmo que Jean reparasse que a nódoa na manga era sangue, não faria a mínima ideia de onde é que esta surgira e em que é que roçara. Além disso, não havia detective, nem sequer o próprio Sherlock Holmes que pudesse associar uma nódoa de sangue na manga do casaco de uma homenageada da Academia Stonecroft ao sangue descoberto numa rua que ficava a vinte quilómetros de distância.
Nem num milhão de anos, pensou o Mocho, considerando a ideia absurda.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Ao conhecer Sam Deegan, Jean compreendeu por que motivo Alice se lhe referira com tanta eloquência. Agradou-lhe o seu aspecto: rosto enérgico realçado por olhos azuis-escuros. O sorriso caloroso e o firme aperto de mão também a cativaram.
- Contei a Sam o que se passa com Lily e o fax que recebeste ontem - declarou Alice, em voz baixa.
- Aconteceu outra coisa - replicou Jean num sussurro. - Alice, estou tão assustada por causa de Lily. Estive quase para não vir ao jantar. Tem-me sido tão difícil fazer conversa quando me sinto tão insegura quanto ao que lhe possa acontecer.
Antes que Alice tivesse tempo de responder, alguém puxou a manga de Jean e uma voz alegre exclamou:
- Jean Sheridan! Ora, ora, estou tão feliz por te ver! Quando tinhas treze anos, costumavas tomar conta dos meus filhos.
Jean conseguiu esboçar um sorriso e responder:
- Oh, Sr.a Rhodeen, que prazer voltar a vê-la.
-Jean, há pessoas que querem falar consigo - interveio Sam. Eu e Alice vamos tentar arranjar uma mesa no salão de cocktail. Logo que puder vá ter connosco.
Só passados quinze minutos é que se conseguiu livrar das pessoas da localidade que tinham comparecido ao jantar e se recordavam dela em criança, ou tinham lido os livros que escrevera e pretendiam falar-lhe a respeito dos mesmos. Mas, por fim, lá se sentou com Alice e Sam à mesa do canto onde podiam falar sem serem ouvidos.
Enquanto beberricavam o champanhe que Sam mandara vir, ela falou-lhes da flor e da mensagem que encontrara no cemitério.
- A rosa não podia lá estar há muito tempo - declarou com nervosismo. - Quase de certeza que foi colocada por alguém do grupo da reunião que sabia que eu ia a West Point, e tinha a certeza de que passaria pela campa do Reed. Mas por que motivo anda com estas jogadas comigo? Porquê estas ameaças vagas? Por que motivo não aparece e explica o motivo por que me anda a contactar?
- Posso agora contactar-te? - perguntou Mark Fleischman em tom de gracejo. Encontrava-se de pé junto à cadeira dela, com um copo na mão. - Andava à tua procura para te perguntar se querias beber um copo comigo antes de te deitares, Jean - explicou. - Não consegui localizar-te até que reparei que estavas aqui.
Reparou na hesitação que se estampou no rosto das pessoas sentadas à mesa e disse para consigo que já esperava que tal acontecesse. Percebera de imediato que estavam embrenhados numa conversa séria, mas pretendia saber com quem é que Jean se encontrava e de que falavam.
- Claro, faz-nos companhia - replicou Jean, tentando parecer amistosa. Que terá ele ouvido?, interrogou-se, enquanto o apresentava a Alice e a Sam.
- Mark Fleischman - declarou Sam. - Dr. Mark Fleischman. Tenho visto o seu programa e aprecio-o bastante. O senhor dá conselhos óptimos. Admiro em particular a maneira como lida com os adolescentes. Quando são convidados, faz com que exponham o que sentem sem ficarem constrangidos com isso. Se houvesse mais jovens a abrirem-se e a receberem aconselhamento decente, perceberiam que não estão sozinhos e os problemas deles não lhes pareceriam tão opressivos.
Jean reparou que o rosto de Mark Fleischman se iluminava com um sorriso de agrado ao ouvir o elogio obviamente sincero de Sam Deegan.
Em miúdo era tão calado, pensou. Sempre tão tímido. Mal sabia ele que acabaria por se tornar uma personalidade televisiva. Será que Gordon teve razão ao afirmar que Mark escolheu ser psiquiatra especializado em adolescentes, devido aos seus próprios problemas após a morte do irmão?
- Sei que foi aqui que cresceu, Mark. Ainda tem família na cidade? - perguntou Alice Sommers.
- O meu pai nunca se mudou. Está reformado e creio que viaja bastante.
Jean ficou surpreendida.
- Eu e Gordon estivemos a falar do facto de nenhum de nós já possuir aqui raízes - interveio.
- Jean, eu já não tenho aqui raízes - replicou Mark baixinho.
- Há anos que não contacto com o meu pai. Embora, com toda a certeza, lhe tenha chegado aos ouvidos a publicidade gerada à volta da reunião e o facto de eu ser um dos homenageados, o certo é que não recebi notícias dele.
Reparando no azedume que começava a trespassar-lhe a voz, sentiu-se envergonhado. Que foi que me levou a abrir-me com dois estranhos e com a Jeannie Sheridan?, interrogou-se. Eu é que devia ser o interlocutor. ”Alto, magro, alegre, divertido e sábio, eis o Dr. Mark Fleischman”, era assim que o anunciavam na TV.
- Talvez o seu pai não se encontre na cidade - observou Alice com voz suave.
- Se assim é, então anda a gastar imensa electricidade. Na noite passada tinha as luzes acesas - replicou Mark, encolhendo os ombros e sorrindo. - Desculpem. Não tencionava carpir as minhas mágoas. Vim ter com vocês porque queria dar os parabéns à Jean pelo seu discurso na tribuna. Foi amorosa, natural e ajudou a esquecer as baboseiras de alguns dos nossos colegas homenageados.
- Você também - replicou Alice Sommers em tom sincero. Achei o Robby Brent completamente despropositado, e tanto o Gordon Amory como o Cárter Stewart pareceram-me bastante azedos. Mas se pretende dar os parabéns à Jeannie, não se esqueça de lhe referir como ela está linda.
- Duvido sinceramente que com Laura presente alguém desse por mim - comentou Jean, embora se tivesse apercebido que ficara extremamente agradada com o elogio inesperado de Mark.
- Estou certo de que toda a gente reparou em ti e te achou linda - declarou Mark levantando-se. - E para o caso de não nos vermos amanhã, Jeannie, também te queria dizer que gostei muito de voltar a estar contigo. Irei à cerimónia da Alison, mas talvez não me seja possível ficar para o almoço.
Sorriu a Alice Sommers, estendeu a mão a Sam Deegan e acrescentou:
- Foi um prazer conhecer-vos. Agora se não se importam, estou a ver um casal com quem gostava de falar, para o caso de não conseguir fazè-lo amanhã. - E dizendo isto, afastou-se atravessando a sala em largas passadas.
- Mas que homem tão atraente, Jean - observou Alice Sommers em tom categórico. - E é evidente que está pelo beicinho por ti.
Mas talvez não seja a única razão que o fez vir ter connosco, reflectiu Sam Deegan. Esteve no bar a observar-nos. Quis saber do que falávamos. Porque seria assim tão importante para ele?
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
O Mocho encontrava-se quase fora da gaiola. Estava a separar-se dela e conseguia sempre prever quando ocorreria a cisão total. O seu eu bondoso e gentil - a pessoa que em circunstâncias diferentes poderia ter sido - começou a recuar. Ouviu e viu-se a si mesmo gracejar, sorrir e aceitar os beijos na face de algumas das mulheres do grupo da reunião de turma.
A seguir desvaneceu-se. Decorridos vinte minutos, já sentia a maciez aveludada da plumagem quando se sentou no carro à espera de Laura. Viu-a emergir sorrateira das traseiras do hotel, tomando a precaução de olhar à volta e evitando esbarrar em alguém. Até tivera a esperteza de enfiar uma gabardina com capuz por cima do vestido.
Aproximou-se então da porta do carro, abriu-a e deslizou para o banco ao lado dele.
- Leva-me contigo, queriducho - disse a rir. - Não tem graça?
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Jake Perkins permaneceu acordado até tarde a redigir a sua reportagem sobre o banquete para o Stomcroft Academy Gazette. Morava numa casa em Riverbank Lane com vista para o rio Hudson e havia poucas coisas na vida que prezasse tanto como o cenário que aquela lhe proporcionava. Aos dezasseis anos já se considerava um filósofo, um bom escritor e um estudioso perspicaz do comportamento humano.
Num momento de reflexão profunda, concluíra que as correntes e marés do rio simbolizavam para si os humores e as paixões dos seres humanos. Apreciava imbuir as reportagens dessas considerações profundas. Claro que sabia que as colunas que pretendia escrever nunca teriam a aceitação do Dr. Holland, o professor de Inglês que exercia as funções de conselheiro e censor da Gazette, mas antes de elaborar o trabalho que submeteria à apreciação deste, Jake redigiu a coluna que desejaria ver imprimida.
O salão de baile um pouco decrépito da algo cediça casa Glen-Ridge iluminou-se com os galhardetes e arranjos de mesa azuis e brancos de Stonecroft. Como se previa, a comida foi horrível, a começar por um pseudo cocktail de marisco, seguido de bife do lombo esturricado, mas quase frio, batatas meio assadas e pudim de feijão verde meio murcho. Gelado líquido com molho de chocolate completaram a tentativa do rapaz confeccionar um jantar requintado.
Os habitantes da cidade aguentaram o evento concentrando as energias na homenagem aos finalistas que, no passado, residiram todos em Cornwall. É do conhecimento geral que Jack Emerson, o presidente e a força impulsionadora por detrás da reunião tem um objectivo que de modo nenhum se relaciona com o esforço de abraçar os colegas de turma. O banquete constituiu também o pontapé de saída para o projecto de construção destinado a Stonecroft, um novo anexo que será erigido no terreno que actualmente é propriedade de Emerson e cuja construção ficará a cargo de um empreiteiro que, segundo se afirma, é da confiança de Emerson.
Os seis homenageados instalaram-se no palanque juntamente com Walter Carlson, o presidente da Câmara, Alfred Downes, o reitor de Stonecroft e os membros do conselho de administração...
Jake decidiu que nesta versão da história não fazia mal divulgar os respectivos nomes.
Laura Wilcox foi a primeira a receber a medalha de Aluna de Mérito. O vestido de lamé dourado que envergava fez com que a maioria dos homens da assembleia nem reparasse no que ela papagueava, algo nos moldes de como a vida nesta cidade fora feliz. Dado que nunca regressou, e como ninguém poderá imaginar a encantadora Sr.a Wilcox a passear-se pela rua principal ou a deter-se para fazer uma tatuagem no império das tatuagens recentemente aberto ao público, os seus comentários foram acolhidos com aplausos polidos e algumas assobiadelas.
O Dr. Mark Fleischman, psiquiatra e actualmente uma estrela televisiva, endereçou um discurso pouco emocionado e bem recebido pela assistência, no qual advertia pais e professores para consolidarem a moral dos filhos e alunos. ”O mundo anseia deitá-los abaixo”, declarou. ”A vossa função é fazê-los sentir bem consigo mesmos ao mesmo tempo que lhes impõem os limites adequados.”
Cárter Stewart, o dramaturgo, fez um discurso de duas partes. Na primeira, declarou que estava certo que as pessoas da cidade e os estudantes que se tornaram os protótipos de muitas personagens das suas peças se encontravam presentes. Na segunda, afirmou que ao invés das observações do Dr. Fleischman, o pai dele acreditava na velha máxima segundo a qual ”de pequenino é que se torce o pepino”. Sendo assim agradecia ao falecido pai por ter pertencido a esse tipo de progenitor dado que lhe proporcionara uma visão sombria da vida que tão adequada se revelara na sua profissão.
Os comentários de Stewart foram acolhidos com gargalhadas nervosas e escassos aplausos.
O comediante Robby Brent galvanizou a assistência imitando de forma realista e cómica os professores que sempre o tinham ameaçado chumbar, o que resultaria na perda da bolsa de estudos para o ingresso em Stonecroft. Uma delas encontrava-se presente e sorriu divertida quando Brent executou uma paródia implacável dos seus gestos e maneirismos, e imitou de forma impagável a sua voz. Porém, a Dr.a ela Bender, a pedra basilar do Departamento de Matemática, ficou à beira das lágrimas quando o comediante fez uma imitação impecável da voz estridente e das risadinhas nervosas da professora.
”Fui o último e o mais imbecil dos Brent”, concluiu Robby. ”Nunca me permitiram que o esquecesse. Para me defender virei-me para o humor e por isso agradeço-vos.”
Piscou então os olhos e franziu os lábios, assemelhando-se exactamente ao reitor Downes quando este pisca os olhos e franze os lábios, e estendeu-lhe um cheque de um dólar, o seu contributo para o fundo destinado ao projecto de construção.
De seguida, enquanto a audiência ficava de respiração suspensa, gritou: ”Estava a brincar!”, e acenou com um cheque de dez mil dólares que com um gesto cerimonioso estendeu ao reitor.
Entre a assistência houve quem o achasse de uma comicidade demolidora. Outros, como a Dr.a Jean Sheridan, afligiram-se com as palhaçadas de Brent. Mais tarde, ouviram-na afirmar a alguém que considerava que o humor não devia ser cruel.
Gordon Amory, o nosso czar da televisão por cabo, foi o orador seguinte. ”Nunca consegui realizar nada em equipa para Stonecroft”, declarou. ”Nem imaginam como rezei com fervor para ao menos ter uma hipótese de me tornar um atleta... o que vem provar o velho adágio: ”Cuidado com o que rezas, porque podes ser ouvido”. Em vez disso, tornei-me um dependente da televisão e posteriormente comecei a analisar os programas a que assistia. Não tardei em perceber que era capaz de determinar por que motivo alguns programas, edições especiais, comédias de costumes ou dramas documentais funcionavam e outros não. Tal assinalou o início da minha carreira, que se alicerçou na rejeição, dor e desilusão. Ah, para terminar e antes que me esqueça, permitam-me que esclareça um boato que correu por aí. Não foi de propósito que ateei fogo à casa dos meus pais. Acontece que estava a fumar um cigarro, e depois de desligar a televisão e ir para a cama não reparei que a beata acesa deslizara para trás da embalagem de piza vazia que a minha mãe deixara no sofá.”
Antes que a assistência tivesse tempo para reagir, o Sr. Amory presenteou o fundo para o projecto de construção com um cheque de cem mil dólares e virando-se para o reitor Downes, declarou-lhe em tom de gracejo: ”Que o destino permita à Academia de Stonecroft prosseguir no futuro a grande tarefa de moldar corações e mentes.”
Foi o mesmo que di^er-lhe para se ir enforcar, pensou Jack, lembrando-se do sorriso enfatuado que Amory ostentava ao sentar-se de novo na tribuna.
A Dr.a Jean Sheridan, a última homenageada, referiu-se ao facto de ter crescido em Cornwall, a cidade que há cerca de 150 anos constituíra o enclave dos ricos e privilegiados. ”Como bolseira, estou ciente de que recebi em Stonecroft uma educação soberba. Mas fora do recinto da escola, nesta cidade e na região rural, sei que existe outro local de aprendizagem. Cá e na área que nos circunda, aprendi a apreciar a História e foi isso que me moldou a vida e a carreira. Aqui fica a minha eterna gratidão.”
A Dr.a Sheridan não afirmou que fora feliz aqui nem mencionou que todos aqueles do seu tempo se deviam recordar das disputas domésticas dos pais que imprimiam colorido à cidade, pensou Jake Perkins, nem tão-pouco que era conhecida por na aula se desfazer em pranto, em consequência dos episódios de Zaragatas mais publicitados dos pais.
Bom, amanhã acaba tudo, reflectiu, espreguiçando-se e dirigindo-se para a janela. Em Cold Spring, a cidade na outra margem do Hudson, começava a formar-se um manto de nevoeiro que tirava a visibilidade às luzes. Espero que amanhã se dissipe, pensou Jake. Ia fazer a cobertura da cerimónia fúnebre junto à campa de Alison Kendall e tencionava passar a tarde no cinema. Ouvira dizer que na efeméride iam também ser lidos os nomes das outras quatro finalistas falecidas.
Voltou para a secretária e contemplou a fotografia que desenterrara dos arquivos. Numa reviravolta quase inacreditável do destino, no ano de fim de curso, as cinco finalistas que haviam morrido não só almoçavam todas à mesma mesa com Laura Wilcox e Jean Sheridan, duas das homenageadas, como também tinham falecido pela ordem de lugares à mesa.
O que significa que se calhar Laura Wilcox é a próxima, cismou Jake. Seria apenas uma coincidência bizarra ou alguém fizera de modo a que assim fosse? Mas era uma loucura pensar dessa maneira, dado que a morte dessas mulheres ocorrera ao longo de vinte anos por todo o país e com desfechos diferentes. Uma delas até estava a esquiar quando fora apanhada por uma avalanche.
O destino tem muita força, concluiu Jake. Muita, muita força.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Tenciono ficar mais alguns dias - declarou Jean ao empregado da recepção que naquela manhã de domingo atendeu o telefone. - Isso causa problemas? Sabia que não, dado que depois do almoço ligeiro em Stonecroft todos os convidados presentes na reunião ir-se-iam sem dúvida embora e, portanto, haveria muitos quartos vagos. Embora não passasse das oito e um quarto, já se levantara, vestira, beberricara o café e o sumo, e beliscara o queque do pequeno-almoço que mandara vir. Combinara ir a casa de Alice Sommers depois do almoço. Sam Deegan também compareceria e poderiam conversar sem receio de serem interrompidos. Sam afirmara-lhe que mesmo assumindo um carácter particular, a adopção tinha de estar registada e os documentos teriam de ter sido lavrados por um advogado. Perguntara-lhe se guardava uma cópia do documento que assinara, a renunciar os direitos sobre o bebé.
- O Dr. Connors não me entregou nenhum papel - explicara ela. - Ou se calhar fui eu que não quis ficar com nada que me lembrasse a decisão que tomei. A sério que não me lembro. Fiquei estupidificada. Quando ele me tirou a menina dos braços, julguei que o meu coração se ia dilacerar.
Mas a conversa abrira-lhe novas perspectivas. No domingo de manhã, antes da cerimónia fúnebre em memória de Alison, tencionava assistir à missa das nove em St. Thomas of Canterbury. Tratara-se da paróquia onde crescera, mas enquanto falava com Sam Deegan lembrara-se que o Dr. Connors também fora paroquiano da mesma. Durante a noite, a meio de um dos períodos de insónia, ocorrera-lhe que era no mínimo possível que as pessoas que tinham adoptado a bebé fossem igualmente paroquianos de St. Thomas.
Frisei ao Dr. Connors que queria que Lyly fosse educada segundo os preceitos católicos, lembrou-se. E se na época os pais adoptivos eram católicos e paroquianos de St. Thomas of Canterbury, faz sentido que Lily tenha sido aí baptizada. Se eu pudesse examinar as certidões de baptismo entre finais de
Março e meados de Junho desse ano, seria um ponto de partida para iniciarmos as buscas ao paradeiro de Uly.”
Às seis, quando acordou, sentiu as lágrimas correrem-lhe pela cara e ouviu-se murmurar a prece que se tornara agora parte do seu subconsciente:
- Meu Deus, não permitas que ninguém a magoe. Por favor, protege-a.
Sabia que aos domingos a secretaria da igreja não abria. Apesar disso, talvez conseguisse naquela manhã, depois da missa, falar com o pároco e marcar uma entrevista. Preciso de pensar que estou afazer algo, pensou. Talvez até encontrasse um sacerdote que vinte anos antes pertencesse à paróquia, e se conseguisse lembrar dos paroquianos que na altura tinham adoptado um bebé.
A sensação de que algo de iminente, aquela certeza cada vez maior de que Lily corria um perigo imediato, tornara-se tão forte que Jean sabia que não podia desperdiçar o dia sem tomar medidas.
Às oito e meia desceu, dirigiu-se para o parque de estacionamento e entrou no carro. O trajecto até à igreja demorava cinco minutos. Concluíra que a melhor altura para se dirigir a um padre era depois da missa, pois apanhá-lo-ia lá fora, a cumprimentar as pessoas que saíam.
Ao iniciar o percurso até à Hudson Street, reparou que tinha pelo menos vinte minutos de avanço e, num gesto impulsivo, guinou o carro para a Mountain Road, decidida a ver a casa na qual crescera.
Esta situava-se quase a meio da rua ventosa. Quando lá vivera, a fachada era castanha com persianas bege. Os novos proprietários não só a tinham mandado ampliar como também a haviam redecorado com persianas de ripas brancas e uma cerca de canteiros verdejantes. O novo proprietário compreendera obviamente que uma casa a atirar para o modesto podia ser embelezada com árvores e plantas. Envolta na névoa matinal, parecia quase uma pedra preciosa.
A casa de tijolo e estuque onde os Sommers viveram também parece mais bem tratada, pensou Jean, embora se tornasse evidente que se encontrava agora desabitada. As janelas estavam todas corridas, mas a fachada fora pintada de novo, as sebes cortadas com esmero e a comprida rampa cor de sulfato de cobre que se estendia desde a porta da frente até ao passeio, era nova.
Sempre adorei esta casa, pensou enquanto parava o carro para a observar melhor. A mãe e o pai da Laura conservaram-na em bom estado enquanto cá viveram, o mesmo acontecendo com os Sommers. Quando tínhamos nove ou dez anos, lembro-me de Laura afirmar que achava a nossa casa feia. Eu também considerava o tom de castanho feio, mas nunca lhe dei a satisfação de o admitir. Aprovaria agora as alterações?
Não que interessasse. Jean virou o carro no sentido contrário e começou a descer a colina em direcção à Hudson Street. E Laura nunca me magoou de má-fé, reflectiu. Ensinaram-na a ser egoísta e não acho que ao longo da vida isso a tenha beneficiado. Da última vez que falei com Alison, ela contou-me que estava a tentar arranjar um papel a Laura numa nova telenovela, mas que era difícil consegui-lo.
Jean continuou a desfiar as suas recordações.
Laura afirmou que Gordie... isto é, Gordon, riu-se quando emendou o nome, podia exercer a sua influência e arranjar-lhe alguma coisa, mas achava que ele não o faria. Foi sempre a menina bonita e tornou-se quase patético vê-la andar a atirar-se a todos os tipos, até mesmo aojack Emerson, que diabo! O homem não é nada atraente, reflectiu, sentindo um calafrio. Que é que o leva a ter tanta certeza de que um dia destes comprarei uma casa por estas bandas?
Uns minutos antes, parecera que o nevoeiro se ia dissipar, porém como estavam no mês de Outubro, as nuvens foram engrossando e a neblina transformara-se agora num chuvisco gelado. Jean reparou que no dia em que percebera que se encontrava grávida o tempo era idêntico. A mãe e o pai tinham-se engalfinhado de novo, só que daquela vez acabara tudo em tréguas. Jean recebera uma bolsa de estudos e ia para a faculdade. Já não precisavam de se envolver à zaragata um com o outro. Tinham cumprido a sua missão como progenitores e chegara a altura de levarem uma vida própria.
Puseram a casa à venda - com sorte, por volta de Agosto estariam livres dela.
Jean recordou-se que descera em silêncio as escadas, esgueirara-se para a rua e caminhara, caminhara, caminhara.
Ignorava o que diria o Reed, pensou. Mas sabia que ele sentiria que defraudara as expectativas que o pai tinha em relação a ele.
Vinte anos atrás, o pai de Reed ocupava o posto de tenente-general e trabalhava para o Pentágono.
Foi um dos motivos que nos levou a nunca confraternizarmos com os colegas dele, pensou Jean. Reed não queria que chegasse aos ouvidos do pai que andava a namorar a sério.
E eu não queria que ele conhecesse os meus pais.
Se ele fosse vivo e nos tivéssemos casado, ainda estaríamos juntos?, era uma pergunta que ao longo dos últimos vinte anos colocara amiúde a si mesma. E a resposta era sempre a mesma: ainda estariam juntos. Apesar do facto da família dele o reprovar e de porventura eu ter levado anos a conseguir as habilitações que achava que devia possuir, ainda estaríamos juntos.
Conheci-o durante tão pouco tempo, reflectiu Jean, enquanto dirigia o carro para o parque de estacionamento da igreja. Antes dele, nunca tive namorado. E um dia, estava eu sentada nos degraus do monumento em West Point, ele sentou-se ao meu lado. Na capa do bloco de notas que levava comigo figurava o meu nome. Ouvi-o dizer: ”Jean Sheridan” e acrescentar: ”Aprecio a música de Stephen Póster e sabes em que canção estou neste momento apensar.” É claro que não sabia, e ele insistiu: ”Começa assim: ”Sonho com a Jeannie de cabelos castanhos-claros...”
Jean estacionou o carro. Passados três meses morreu, recordou, e eu traria dentro de mim um filho dele. E quando vi o D r. Connors nesta igreja e me lembrei que ouvira dizer que tratava de adopções, pareceu-me que era uma dádiva de Deus, que me indicava o que fazer.
Preciso de receber de novo uma dádiva semelhante.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Jake Perkins calculou em menos de trinta o número de pessoas que se reuniram junto à campa de Alison Kendall. As outras tinham optado por seguir directamente para o almoço. Não as censurava. A chuva caía a potes e sentiu os pés afundarem-se na relva mole e lamacenta.
Não há nada pior do que estar-se morto num dia chuvoso, pensou, registando mentalmente aquela pérola de sabedoria a fim de a incluir na reportagem.
O presidente da câmara faltara à cerimónia, mas o reitor Downes, que já elogiara a generosidade e o talento de Alison Kendall, proferia agora uma oração genérica, certo de que, à excepção de um ateu empedernido, caso houvesse algum presente, todos ficariam satisfeitos com a mesma.
Talvez fosse talentosa, meditou Jake, mas é por causa da generosidade dela que nos arriscamos a apanhar uma pneumonia. Conheço uma pessoa que não arriscou. Olhou em redor, para confirmar, mas ficou com a certeza absoluta de que a ausência de Laura Wilcox era um facto. Todos os outros homenageados se encontravam presentes. Avistou Jean Sheridan próximo do reitor Downes e esta mostrava-se sem dúvida genuinamente triste. Viu-a enxugar algumas vezes os olhos com o lenço. O resto do grupo parecia desejar que Downes despachasse quanto antes a cerimónia a fim de poderem ir para dentro e beber um uísque.
- Recordamos também as colegas de turma de Alison que foram chamadas à sua última morada - declarava Downes em tom sóbrio. - Catherine Kane, Debra Parker, Cindy Lang e Gloria Martin. Esta turma de finalistas de há vinte anos produziu vencedores, mas também não houve nenhuma outra que sofresse tantas perdas.
Amén, pensou Jake e decidiu que iria incluir na reportagem da reunião a fotografia das sete raparigas sentadas à mesa a almoçar. Até já tinha a legenda - a inspiração viera-lhe de Downes. ”Não houve nenhuma outra turma que sofresse tantas perdas.”
No início da cerimónia, alguns estudantes tinham oferecido uma rosa aos que haviam comparecido à cerimónia. Concluído o discurso de Downes, um a um ia depositando a flor aos pés da campa, e atravessando o cemitério em direcção ao recinto escolar contíguo. Quanto mais distanciados ficavam do cemitério, mais depressa caminhavam. Jake até era capaz de lhes adivinhar os pensamentos: Ufa, graças a Deus que terminou. Julguei que ia enregelar.
A última pessoa a afastar-se foi Jean Sheridan. Permaneceu ali, parecendo não apenas triste como também imersa em cogitações. Jake reparou que o Dr. Fleischman se detivera e esperava por ela. Jean baixou-se e tocou no nome de Alison que se via gravado na campa, virou-se, e Jack reparou que ficara contente ao avistar o Dr. Fleischman. Depois encaminharam-se juntos para a escola.
Antes que pudesse impedi-la, a estudante universitária do segundo ano que distribuía as rosas estendeu-lhe uma. Jake não era muito dado a cerimónias, mas no entanto decidiu depositar a flor no mesmo sítio que as outras. Quando estava prestes a fazê-lo, reparou num objecto caído no chão. Inclinou-se e apanhou-o.
Tratava-se de um alfinete em estanho com o formato de um mocho. Num relance, Jake percebeu que não valia muito. Parecia o tipo de coisa usada por uma criança, ou um amante da Natureza que iniciara uma cruzada em defesa dos mochos. Jake estava prestes a deitá-lo fora, mas depois mudou de ideias. Limpou-o e enfiou-o na algibeira. Dentro de pouco tempo, seria a Noite das Bruxas. Ia dá-lo ao primo e diria ao garoto que o desenterrara de propósito do cemitério para lho oferecer.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Jean ficou desiludida por ver que Laura não se dera ao incómodo de estar presente na cerimónia fúnebre em memória de Alison, mas também reparou que não ficou surpreendida. Laura nunca se dedicara a ninguém, e era tolice achar que com aquela idade ela pudesse mudar. Conhecendo Laura como conhecia, sabia que esta não aguentaria estar exposta à chuva e ao frio - seguira directamente para o almoço.
Mas quando a refeição ia a meio e Laura não apareceu, Jean começou a sentir-se incomodada e confidenciou-o a Gordon Amory.
- Gordon, sei que ontem tu e Laura conversaram bastante. Ela por acaso disse-te que não ia comparecer hoje?
- Conversámos ontem ao almoço e durante o jogo - corrigiu-a ele. - Estava a armar-se em simpática para ver se me convencia a atribuir-lhe o papel principal na nossa nova telenovela. Respondi-lhe que nunca interfiro no trabalho dos profissionais que contrato para formar o elenco para os meus programas. Como continuou a insistir, fui bastante antipático e salientei que nunca abria excepções, em particular para colegas de escola com pouco talento. Nessa altura utilizou uma expressão inconcebível para uma senhora, e dirigiu os seus encantos a Jack Emerson, o nosso insuportável presidente. Como deves saber, o tipo andou a apregoar a sua invejável situação financeira, e na noite passada a mulher deixou-o, de modo que acho que surgiu aos olhos de Laura como um bom partido.
Ao jantar, ”Laura parecia muito bem-disposta, pensou Jean. E antes disso também estava óptima quando fomos para o quarto dela e tentei falar-lhe. Será que no final da noite de ontem alguma coisa correu mal? Ou será que apenas decidiu ficar esta manhã a dormir?
Ao menos isso poderei confirmar, reflectiu.
Encontrava-se sentada à mesa próximo de Gordon e de Cárter Stewart. Murmurando um ”já volto”, percorreu as fileiras de mesas, evitando olhar directamente para quem quer que fosse. O almoço decorria no auditório. Esgueirou-se para o corredor que desembocava na sala dos caloiros e marcou o número do hotel.
Do quarto, Laura não atendeu. Jean hesitou, e em seguida pediu que a pusessem em contacto com a recepção. Identificou-se e perguntou se Laura Wilcox por acaso saíra do hotel.
- Estou um pouco preocupada - explicou. - A Sr.a Wilcox tinha um encontro marcado com o nosso grupo e não apareceu.
- Bom, ela não saiu do hotel - replicou o empregado em tom jovial. - Vamos fazer o seguinte. Vou mandar alguém ver se ela se distraiu e se ainda está a dormir. Mas se ficar zangada, a responsável é a senhora.
É o tipo que pintou o cabelo a condizer com o tampo do balcão., pensou Jean, reconhecendo-lhe a voz e a entoação.
- Assumo a responsabilidade - garantiu-lhe. Enquanto aguardava, Jean olhou para o corredor.
Deus do céu, sinto-me como se nunca tivesse saído daqui, pensou. Quando éramos caloiros tínhamos por professora a Dr.a Clemens e a minha carteira era a segunda da quarta fila.
Ouviu a porta do auditório abrir-se, virou-se e deparou com Jake Perkins, o repórter do jornal da escola.
- Dr.a Sheridan. - Na voz do empregado já não se detectava o tom brincalhão.
- Sim? - replicou Jean, reparando que tinha a mão enclavinhada no telefone.
Passa-se qualquer coisa de errado, pensou. Qualquer coisa de errado.
- A empregada subiu ao quarto da Sr.a Wilcox. A cama não foi aberta. As roupas dela condnuam guardadas no armário, mas a empregada reparou que tinham desaparecido alguns artigos de toucador que se encontravam na bolsa. Pensa que há algum problema?
Oh, se levou coisas com ela, acho que não. Obrigada.
Era aquilo de que Laura estava mesmo a precisar, pensou Jean, ter saído com alguém e eu andar a fazer perguntas a seu respeito. Premiu o botão do telemóvel para terminar a chamada e baixou a tampa. Mas com quem estará?, interrogou-se. A crer no Gordon, ele deu-lhe tampa. Afirmou que ela andava a fazer olhinhos aojack Emerson, mas ia jurar que não se esqueceu de deitar também o anzol ao Mark, ao Robby ou ao Cárter. Ontem ao almoço, ouvi-a a gracejar com Mark a respeito do êxito do programa dele e a afirmar-lhe que talvez começasse afazer terapia com ele. Também a ouvi declarar a Cárter que adorava entrar no espectáculo da Broadway e mais tarde encontrei-a no bar com Robby a tomar uma bebida antes de se ir deitar.
- Dr.a Sheridan, concede-me uma palavrinha? Sobressaltada, Jean virou-se. Esquecera-se de Jake Perkins.
- Lamento incomodá-la - disse este, não parecendo nada pesaroso -, mas era capaz de me informar se a Sr.a Wilcox tenciona aparecer hoje?
- Ignoro os planos dela - replicou Jean, esboçando um sorriso que era também um adeus. - Agora se não se importa, preciso mesmo de voltar para a mesa.
Se calhar, Laura arranjou algum amigo entre os tipos que se encontravam no jantar de ontem e foi para casa dele, pensou. Se não confirmou a saída do hotel, vai de certeza aparecer mais tarde.
Quando Jean passou por ele, Jake Perkins avaliou-lhe a expressão do rosto.
Está preocupada, reflectiu. Será por Laura Wilcox não aparecer? Deus do céu, será possível que desaparecesse?
Tirou o telemóvel, ligou para a Casa Glen-Ridge e pediu que o pusessem em contacto com a recepção.
- Tenho aqui uma entrega de flores para a Sr.a Laura Wilcox disse -, mas pediram-me para confirmar se não saiu já do hotel.
- Não, não saiu - respondeu o empregado -, mas como não ficou cá a noite passada, não posso garantir-lhe que volte para recolher a bagagem.
- Ela tencionava permanecer o fim-de-semana? - inquiriu Jake tentando parecer indiferente.
- Em princípio, devia confirmar a saída do hotel às duas. Mandou vir um carro para as duas e um quarto a fim de a levar ao aeroporto de modo que não sei o que lhe diga quanto às flores, filho.
- Vou falar com o meu cliente. Obrigado.
Jake desligou o telemóvel e voltou a metê-lo na algibeira.
Sei exactamente onde estarei às duas horas., pensou. Estarei no átrio do Glen-Ridge à espera de encontrar Laura Wilcox a confirmar a saída do hotel.
Voltou a percorrer o corredor em direcção ao auditório.
Suponhamos que ela nunca vai aparecer, reflectiu. Suponhamos que desapareceu sem mais nem menos. E se ela...
Sentiu-se percorrido por uma onda de nervosismo expectante. Compreendeu do que se tratava - o repórter farejara uma história quente.
E demasiado importante para ser publicada no Stonecroft Academy Gazette, ponderou. Mas o New York Post ia adorar. Vou mandar ampliar a fotografia das sete à mesa do almoço e prepará-la para a incluir na reportagem.
Já imaginava a manchete: ”Mais Uma Baixa a Lamentar na Turma Aziaga.” Excelente.
Ou talvez: ”E Lá Se Vai Mais Uma.” Ainda soava melhor!
As fotografias que tirei à Dr.a Sheridan ficaram óptimas, pensou. Vou prepará-las para também as mostrar no Post.
Quando abriu a porta que dava para o auditório, chegaram-lhe as primeiras estrofes do hino da escola entoadas pelos convivas: ”Saudamos-te, ó querida Stonecroft, o berço dos nossos sonhos...”
Por fim, terminara a reunião do vigésimo aniversário dos finalistas.
CAPÍTULO VINTE E OITO
Jean, acho que chegou a hora da despedida. Foi óptimo voltar a ver-te - declarou Mark Fleischman, segurando um cartão de visita. - Se tu me deres o teu, eu dou-te o meu - acrescentou com um sorriso.
- Claro - respondeu Jean, vasculhando a mala e retirando um cartão da carteira. - Fiquei contente por afinal teres conseguido vir ao almoço.
- Eu também. Quando é que partes?
- Vou ficar mais uns dias no hotel. É para um pequeno projecto de pesquisa - replicou Jean, tentando aparentar à-vontade.
- Se não tivesse de ir amanhã a Boston gravar alguns programas, também ficava e convidava-te para um jantar tranquilo. - Mark hesitou, depois inclinou-se e beijou-a na face. - Mais uma vez, como se costuma dizer, foi bom voltar a ver-te.
- Adeus, Mark - respondeu Jean, tomando fôlego antes de acrescentar: - Se tencionares passar por Washington dá-me uma apitadela. - As mãos de ambos afloraram-se por um instante e ele afastou-se.
Cárter Stewart e Gordon Amory tinham permanecido juntos e faziam as despedidas finais aos colegas de turma que se dispersavam. Jean encaminhou-se para eles e antes que pudesse falar, Gordon inquiriu-lhe:
- Tiveste notícias de Laura?
- Ainda não.
- É uma mulher instável e esse foi outro dos motivos que fez com que a carreira dela estagnasse. É famosa por manter as pessoas penduradas, à espera, mas Alison moveu céus e terra para lhe arranjar emprego. Que pena Laura não se ter lembrado disso hoje.
- Bom... - retorquiu Jean, decidida a não concordar nem discordar. Virando-se para Cárter Stewart, acrescentou: - Cárter, vais voltar para Nova Iorque?
- Para te ser franco, não. Vou confirmar a minha saída do Glen-Ridge e mudar-me para o Hotel Hudson Valley que fica no outro extremo da cidade. Pierce Ellison é quem dirige a minha nova peça e vive em Highland Falis, a apenas dez minutos de distância. Precisamos de discutir em conjunto o argumento, e ele sugeriu que se eu ficasse mais alguns dias, podia trabalhar na casa dele com toda a tranquilidade. Mas no Glen-Ridge é que não fico. Há cinquenta anos que não gastam um cêntimo a remodelá-lo.
- Dou-te razão - concordou Amory. - Tenho demasiadas recordações de quando trabalhei ali como ajudante de mesa e depois como empregado de room-service. Vou para o country club. Parte do meu pessoal estará lá. Andamos à procura de uma sede nesta área.
- Fala com o Jack Emerson - comentou Stewart sarcástico.
- Nem que fosse o último homem à face da terra. A minha rapaziada agendou alguns locais para eu visitar.
- Então é capaz de não ser a despedida - declarou Jean. - Talvez esbarremos na cidade um com o outro. Pelo sim pelo não, quero dizer-vos que foi um prazer estar convosco.
Não viu Robby Brent nem Jack Emerson em parte alguma, mas não quis demorar-se mais tempo. Combinara com Sam Deegan encontrar-se às duas em casa de Alice Sommers, e estava mesmo em cima da hora.
Com um sorriso final e depois de murmurar um adeus aos colegas de turma por quem passou ao dirigir-se para a saída, encaminhou-se a toda a pressa para o parque de estacionamento. Ao entrar no carro, o seu olhar atravessou o recinto da escola e deteve-se no cemitério. De novo, a morte de Alison pareceu-lhe irreal. Parecia-lhe tão estranho deixá-la ali abandonada naquele dia frio e húmido.
Costumava dizer a Alison que ela devia ter nascido na Califórnia, pensou Jean enquanto metia a chave na ignição. Ela detestava o frio.
A ideia que fazia do paraíso, era sair de manhã da cama, abrir a porta e dar um mergulho.
Fora o que Alison fizera na manhã em que morrera.
Jean dirigiu-se para casa de Alice Sommers com este pensamento a martelar-lhe na cabeça.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Cárter Stewart reservara uma suite no novo Hotel Hudson Valley que se localizava próximo do Parque Storm King State. Inclinado sobre o flanco da montanha sobranceira ao Hudson, com o seu edifício central e as torres gémeas, lembrava-lhe uma águia de asas abertas.
A águia, símbolo de vida, de luz, de poder e de majestade.
O título provisório da sua nova peça seria A Águia e o Mocho.
O mocho. Símbolo das trevas e da morte. Ave de rapina. Pierce Ellison, o director, gostara do título.
Não tenho a certeza, pensou Stewart, enquanto estacionava junto à entrada do hotel e saía do carro. Não tenho a certeza.
Não seria demasiado óbvio? Os símbolos destinam-se a merecer a atenção do pensador profundo, não a serem servidos de bandeja nas matinés de quartas-feiras no clube de brídge. Mas também não era esse grupo que corria a comprar bilhetes para as suas peças.
- Cavalheiro, nós encarregamo-nos da bagagem.
Cárter Stewart enfiou uma nota de cinco dólares na mão do porteiro.
Pelo menos, não disse: ”Bem-vindo a casa?, pensou.
Passados cinco minutos encontrava-se à janela da suite, um copo de uísque do minibar na mão. O rio Hudson mostrava-se opressivo e encapelado. Estava-se a meio da tarde de um dia de Outubro e já pairava no ar uma atmosfera invernosa.
Mas a reunião acabou, graças a Deus. Se ao menos fosse para me recordar do longo percurso que efectuei desde que saí daqui, pensou Cárter, até teria gostado de rever alguns dos presentes.
Pierce Ellison achava que precisavam de reforçar na peça a personagem de Gwendolyn.
- Arranja alguém que seja uma loura burra - insistira. - Não uma actriz que faça de loura burra.
Ao pensar em Laura, Cárter Stewart soltou risadinhas estridentes.
- Ora, ora, o papel assentava-lhe que nem uma luva - comentou em voz alta. - Vou brindar a isso, embora tal não aconteça nem daqui a um milhão de anos.
CAPÍTULO TRINTA
O facto de muitos dos antigos colegas de turma, após o discurso que proferira ao jantar, o evitarem, não passou despercebido a Robby Brent. Houve alguns que o elogiaram de forma rebuscada, afirmando que se mostrara um excelente imitador, embora usasse de uma certa dureza para com os antigos professores e o reitor. Também lhe chegou aos ouvidos que Jean Sheridan afirmara que o humor não devia ser cruel.
Tudo isto causou a Robby Brent uma profunda satisfação. Ao que parecia, a Dr.a ela Bender, a professora de Matemática, fora vista na casa de banho, lavada em lágrimas, depois do jantar.
O só tora Render, parece que se esqueceu que me estava a atirar constantemente à cara que em Matemática avançada, eu não chegava aos calcanhares dos meus irmãos e irmãs. Eu era o seu aluno choramingas, só tora Render. O último e o menos dotado dos Brent. E agora tem o descaramento de se ofender porque parodiei os seus maneirismos de beata e o hábito infeliz de lamber os lábios com a língua. Com franqueza, só tora.
Dera a entender a Jack Emerson que talvez lhe interessasse investir no mercado imobiliário, e depois do almoço ele não o largara.
Em muitos sentidos, Emerson é um cagarolas, pensou Robby enquanto metia pela estrada para Glen-Ridge. Mas quando falaram de bens imobiliários e da conveniência em investir nessa área até fizera bastante sentido.
- Terra - declarara Emerson. - Por estas bandas, o valor está sempre a subir. Quando há subdesenvolvimento, as taxas são baixas.
Se aplicares as tuas poupanças, daqui a vinte anos terás uma fortuna. Aproveita enquanto podes deitar-lhe a mão, Robby. Tenho umas listas de parcelas fabulosas, todas com vista para o Hudson e algumas à beira rio. Vais ficar boquiaberto. Comprei-as eu, mas possuo bastantes e não quero que o meu filho quando crescer se torne demasiado rico. Não te vás embora e eu amanhã levo-te a vê-las.
- ”É a terra”. Katie Scarlett, é a terra.?
Robby fez um sorriso rasgado ao recordar-se do olhar estupidificado de Emerson quando lhe citara a frase de E Tudo o Vento Levou. Mas depois percebera quando lhe explicara que o que o pai de Scarlett queria dizer era que a terra constituía os alicerces da segurança e da riqueza.
- Nunca te esqueças disso, Robby, porque é uma frase maravilhosa e verdadeira. A terra é que é o dinheiro autêntico, o valor autêntico. A terra não desaparece.
Para a próxima, vou tentar citar-lhe Platão, pensou Robby enquanto parava o carro junto à entrada do Glen-Ridge. Hoje vou deixar que seja o empregado a arrumar-me o carro. Até amanhã não tenciono ir aparte nenhuma e depois vou no carro de Emerson.
jack Emerson já devia estar ao corrente da quantidade de propriedades que possuo, pensou. Durante as suas actuações, o W. C. Fields costumava depositar dinheiro nas várias cidades por todo o país. Eu vou por esse país fora, compro terrenos subdesenvolvidos e depois mando afixar tabuletas a dizer:
PROIBIDA A ENTRADA
Em toda a minha vida até chegar a adulto, prosseguiu Robby nas suas divagações, vivi numa casa alugada. A minha mãe e o meu pai, esses gurus intelectuais, nunca conseguiram juntar dinheiro suficiente para comprar casa própria. Agora, além da minha principal casa em Vegas, se eu quisesse podia mandar construir uma casa na minha propriedade em Santa Bárbara, ou em Minneapolis, Atlanta, Boston, Hampton, Nova Orleães, Palm Beach ou Aspen, já para não falar dos quilómetros e quilómetros quadrados que possuo em Washington. A terra é o meu segredo, reflectiu com petulância enquanto penetrava no átrio do Glen-Ridge.
E a terra é a guardiã dos meus segredos.
CAPÍTULO TRINTA E UM
- Esta manhã fui ao cemitério - declarou Alice Sommers a Jean. - Avistei o grupo de Stonecroft na cerimónia fúnebre. A campa de Karen não fica muito longe do local onde Alison Kendall foi enterrada.
- Houve menos gente a comparecer do que eu esperava - replicou Jean. - A maior parte dos antigos colegas de turma seguiram directamente para o almoço.
Encontravam-se sentadas na confortável salinha da casa de Alice. Esta acendera a lareira e as chamas crepitantes, além de aquecerem a atmosfera, também lhes levantaram o ânimo. Tornou-se evidente para Jean que a amiga estivera a chorar durante muito tempo. Tinha os olhos inchados e congestionados, mas o seu rosto deixava transparecer uma expressão de paz que não lhe vira no dia anterior. Como se lhe lesse os pensamentos, Alice declarou:
- Conforme te disse ontem, bem sabes que os dias que antecedem os aniversários são os piores. Ponho-me a repisar todos os minutos daquele dia fatídico, e a interrogar-me se haveria alguma coisa que pudéssemos ter feito para proteger Karen. Claro que há vinte anos não possuíamos sistema de alarme. Hoje em dia, a maioria de nós nem sonharia em ir para a cama sem instalar um alarme em casa.
Estendeu a mão para o bule e voltou a encher as chávenas.
- Mas hoje já me sinto bem - continuou em tom enérgico.
- Para te ser franca, concluí que a reforma é capaz de não ser uma boa ideia. Uma das minhas amigas é proprietária de uma loja de flores e precisa de ajuda. Perguntou-me se eu não queria trabalhar para ela umas horas por semana, e vou aceitar.
É uma excelente ideia - aprovou Jean em tom sincero. -
Lembro-me de que o seu jardim estava sempre lindo.
Michael costumava arreliar-me dizendo que se eu passasse tanto tempo na cozinha como o fazia no jardim, seria uma cozinheira de primeira água - confidenciou Alice. E relanceando o olhar pela janela, acrescentou: - Oh, olha, o Sam vem aí. Pontual, como sempre.
Antes de tocar à campainha, Sam Deegan limpou cuidadosamente os pés no tapete. Pelo caminho, detivera-se junto à campa de Karen e surpreendera-se por se sentir quase incapaz de lhe dizer que desistira de tentar descobrir o assassino dela. Algo continuava a embargar a desculpa que tencionara apresentar-lhe. Por fim, lá conseguira murmurar:
- Karen, vou reformar-me, tem de ser. Falarei do teu caso a um dos polícias mais novos. Talvez haja alguém mais esperto do que eu que consiga localizar o crápula que te roubou a vida.
Antes que tivesse tempo de tocar à campainha, Alice abriu-lhe a porta. Absteve-se de fazer comentários ao ver-lhe os olhos inchados, mas no entanto apertou com força as mãos dela entre as suas.
- Deixe-me limpar bem os pés para não sujar a casa de lama disse.
Esteve no cemitério, pensou Alice num assomo de gratidão. Sei que esteve.
- Entre - declarou-lhe. - Não se preocupe com a lama. Sam emana força e inspira-me segurança, pensou enquanto lhe pendurava o casaco. Fiz bem em pedir-lhe que tentasse ajudar Jean.
Trouxera com ele um bloco de notas e, depois de cumprimentar Jean e aceitar a chávena de café que Alice lhe oferecia, deitou mãos à obra.
-Jean, fartei-me de pensar e cheguei à conclusão de que temos de encarar seriamente a hipótese da pessoa que anda a mandar-lhe mensagens a respeito da Lily ser capaz de a magoar. Esteve suficientemente perto dela para lhe roubar a escova, de modo que talvez seja um membro da família que a adoptou. Ele... e entenda que também pode muito bem ser ela... se calhar vai tentar extorquir-lhe dinheiro, o que conforme salientou quase a deixaria aliviada. Mas esse tipo de situação pode igualmente arrastar-se por muitos anos. Torna-se evidente que temos de localizar o mais rápido possível essa pessoa.
- Esta manhã fui a St. Thomas of Canterbury - replicou Jean -, mas o sacerdote que rezou a missa informou-me que só lá vai aos domingos. Aconselhou-me a ir amanhã à sacristia e a pedir ao pastor que consulte os registos de baptismo. Depois disso, fartei-me de matutar. É possível que o padre mostre renitência em possibilitar-me o acesso aos mesmos. É capaz de pensar que se trata de um estratagema meu para encontrar a Lily.
E fitando Sam nos olhos, acrescentou:
- Aposto que também lhe ocorreu.
- Quando Alice me falou de si, ocorreu - replicou Sam com toda a franqueza. - Mas depois de a conhecer, fiquei absolutamente convicto de que a situação corresponde tal qual ao que descreveu. Mas tem razão... o padre vai ficar muito desconfiado e por isso acho que devia ser eu e não você a falar com ele, pois se conhecer algum bebé adoptado que foi baptizado nessa altura, é provável que mo revele.
- Também pensei nisso - respondeu Jean baixinho. - Sabe, durante estes vinte anos interroguei-me se não devia ter ficado com a menina. Não se passaram assim tantas gerações desde que deixou de ser uma aberração uma rapariga solteira de dezoito anos ter um filho. Agora que preciso mesmo de encontrar Lily, acho que se pudesse vê-la mesmo que fosse ao longe, ficava satisfeita. - Mordendo o lábio, acrescentou com voz doce: - Ou, pelo menos, julgo que ficava.
Sam olhou de Jean para Alison. Duas mulheres que, de maneiras diferentes, tinham perdido um filho. O cadete estava prestes a fazer o juramento de bandeira e tornar-se oficial. Se não tivesse morrido no acidente, Jean teria casado com ele e ficado com a bebé. Se, vinte anos atrás, Karen não tivesse por acaso passado a noite com os pais, ainda estaria viva e Alice se calhar seria avó.
A vida nunca é justa, pensou Sam, Mas há coisas que podemos tentar melhorar. Fora incapaz de resolver o assassínio de Karen, mas quem sabe se não podia agora ajudar Jean.
- Para tratar dos papéis de adopção, o Dr. Connors teve de contratar um advogado - disse. - Alguém deve saber quem foi. A mulher ou familiares dele ainda cá vivem?
- Não sei - replicou Jean.
- Bom, começaremos por aí. Trouxe consigo a escova e os faxes?
- Não, não trouxe.
- Gostava que mos arranjasse.
- A escova é daquelas pequenas que se enfiam numa bolsa respondeu Jean. - Compramos uma igual em qualquer farmácia. Os faxes não têm nenhuma referência que nos ajude a identificar a origem, mas é claro que lhos disponibilizarei.
- Gostava de os ter quando fosse falar com o padre.
Decorridos alguns minutos, Jean e Sam foram-se embora e combinaram que o detective a seguiria no carro dele até ao hotel. Da janela, Alice ficou a observá-los enquanto se afastavam e depois levou a mão ao bolso do casaco. Naquela manhã, encontrara um mocho em miniatura na campa de Karen que devia, sem dúvida, pertencer a uma criança que o deixara cair.
Quando era miúda, Karen adorava animais de pelúcia e tinha uma colecção deles, pensou Alice. Ocorreu-lhe que o mocho fora um dos seus preferidos. Contemplou então com ar saudoso a miniatura de estanho que segurava na palma da mão.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
Jake Perkins encontrava-se sentado no átrio da Casa Glen-Ridge, a observar os últimos participantes do convívio saírem e seguirem cada um o seu destino. O cartaz de boas-vindas fora retirado, e ao olhar para o bar viu que este se encontrava vazio.
Não houve despedidas à última hora, pensou. Por esta altura, se calhar, já estavam todos fartos uns dos outros.
A primeira coisa que fizera ao chegar fora dirigir-se à recepção para confirmar se a Sr.a Wilcox ainda não regressara para formalizar a sua saída do hotel, e se não cancelara o envio do carro que às duas e um quarto a transportaria ao aeroporto.
Às duas e um quarto, viu um motorista de uniforme entrar no átrio e encaminhar-se para a recepção. Jack aproximou-se do homem e ouviu-o dizer que vinha buscar Laura Wilcox.
As duas e meia, o motorista foi-se embora, visivelmente mal-humorado. Jack ouviu-o comentar que fora indecente não o informarem que ela desistira dos seus serviços, pois podia ter arranjado outro trabalho, e que da próxima vez que ela precisasse de um motorista era escusado contactarem-no.
As quatro horas, Jack ainda permanecia no átrio. Foi quando avistou a Dr.a Sheridan que voltava com o homem mais velho com quem estivera a conversar depois do jantar. Viu-os encaminharem-se directamente para a recepção.
Foi perguntar se sabem do paradeiro da Laura Wilcox, pensou o rapaz.
Acertara no palpite - Laura Wilcox desaparecera.
Concluiu que se tentasse obter uma declaração da Dr.a Sheridan esta não lhe iria bater. Aproximou-se a tempo de ouvir o homem que a acompanhava dizer:
- Concordo, Jean. Não me agrada a situação, mas a Laura é adulta e tem todo o direito de mudar de ideias quanto a confirmar a saída do hotel ou apanhar um avião.
- Cavalheiro, queira desculpar. Chamo-me Jake Perkins e sou repórter do jornal de Stonecroft - interveio Jake.
- Sam Deegan, muito prazer.
Para Jake tornou-se evidente que nem a Dr.a Sheridan nem Sam Deegan consideravam a sua presença bem-vinda. Vai direito ao assunto, pensou.
- Dr.a Sheridan, sei que está preocupada por a Sr.a Wilcox ter faltado ao almoço e por agora não aparecer para ser levada de carro ao aeroporto. Acha que pode ter-lhe acontecido alguma coisa... quero dizer, atendendo ao que sucedeu às outras mulheres que costumavam almoçar juntas na mesma mesa quando frequentavam Stonecroft?
Apercebeu-se do olhar sobressaltado que Jean Sheridan lançou a Sam Deegan.
Não lhe contou nada do grupo que se sentava à mesa do almoço, cismou Jake.
Desconhecia quem era aquele sujeito, mas seria interessante testar a reacção dele ao que Jake considerava agora com toda a segurança tratar-se de um furo jornalístico. Retirando da algibeira a fotografia em que se viam as raparigas sentadas à mesa, declarou:
- Como vê, Sr. Deegan, este era o grupo da Dr.a Sheridan que costumava sentar-se junto à mesa do almoço, no ano da formatura em Stonecroft. Depois de terminarem o secundário, cinco delas morreram, tendo a última morrido no mês passado. Duas morreram em acidentes, uma suicidou-se e outra desapareceu em Snowbird, alegadamente colhida por uma avalanche. No mês passado, Alison Kendall, a última, afogou-se na própria piscina. Pelo que li, parece haver uma possibilidade de não se tratar de uma morte acidental. Supõe-se agora que Laura Wilcox desapareceu. Não o considera uma coincidência muito bizarra?
Sam pegou na fotografia e enquanto a examinava, uma expressão sombria toldou-lhe o rosto.
- Não acredito que haja coincidências desta amplitude - replicou em tom brusco. - Agora se não se importa, Sr. Perkins.
- Oh, não se preocupe comigo. Vou ficar por aqui à espera que a Sr.a Wilcox apareça. Gostava de lhe fazer uma última entrevista.
Ignorando-o, Sam retirou o crachá da algibeira e estendeu-o ao empregado da recepção.
- Quero uma lista dos empregados que a noite passada estiveram de serviço - declarou com uma voz de comando que não admitia réplicas.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
- Julgava que a esta hora já me encontraria longe daqui, mas quando voltei do almoço tinha um monte de mensagens à minha espera - explicou Gordon Amory a Jean. - Vamos ao Canadá filmar um episódio da nossa nova série e ocorreram alguns problemas graves. Nas últimas duas horas, estive agarrado ao telefone.
Aproximara-se do balcão da recepção e pousara a bagagem na altura em que o empregado mostrava a Sam as folhas do pessoal do hotel. Ao reparar na cara de Jean, inquiriu:
- Jean, passa-se alguma coisa?
- Laura desapareceu - respondeu Jean, percebendo quão trémula a voz lhe soara. - Ficou combinado um carro vir buscá-la às duas e um quarto para a levar ao aeroporto. A cama do quarto onde ela ficou não foi aberta, e a empregada afirmou que tinham desaparecido alguns artigos de toucador. Talvez tivesse decidido ficar com alguém e não acontecesse nada de mal, mas foi tão peremptória quando disse que contássemos com ela esta manhã que agora me sinto raladíssima.
- Ela foi realmente peremptória na noite passada ao declarar a Jack Emerson que estaria presente no almoço - concordou Gordon.
- Como eu te contei, ficou muito fria comigo quando lhe afirmei que não tinha a mínima hipótese de ser escolhida para a próxima série, mas depois do jantar ouvi o que ela disse a Jack.
Sam, que estivera atento à conversa, virou-se para Gordon e apresentou-se:
- Bem sabemos que Laura Wilcox é adulta. Tem todo o direito do mundo em sair quando lhe apetece, ou na companhia de um amigo e de mudar de ideias no que toca a confirmar junto da recepção se se vai ou não embora. No entanto, considero sensato investigar e ver se alguém, um empregado do hotel ou um amigo, estava ao corrente dos seus planos.
- Desculpe tê-lo feito esperar, Sr. Amory - disse o recepcionista. - Já lhe preparei a conta.
Gordon Amory hesitou e em seguida olhou para Jean.
- Desconfias que aconteceu alguma coisa a Laura, não desconfias?
- Sim, desconfio. Laura era muito íntima de Alison. Por mais planos que tivesse na noite passada, não ia faltar de propósito à cerimónia em memória dela.
- O meu quarto ainda está livre? - inquiriu Gordon ao empregado.
- É claro que sim, Sr. Amory.
- Então vou ficar mais alguns dias, pelo menos até sabermos notícias da Sr.a Wilcox.
Virou-se então para Jean e esta, apesar da sua preocupação por causa de Laura, ficou espantada ao reparar o quão bem-parecido Gordon Amory se tornara.
Costumava sentir pena dele, pensou. Naquela altura, era um falhado patético e vejam-me como se transformou num belo homem.
-Jean, eu sei que na noite passada magoei a Laura e foi indecente da minha parte... acho que se tratou de uma vingança, pela maneira como me desprezava quando éramos miúdos. Podia ter-lhe prometido um papel na série, mesmo que não fosse o principal. Tenho um pressentimento de que ela é capaz de andar para aí desesperada. Talvez isso explicasse porque não apareceu esta manhã. Aposto que vai voltar com ou sem uma explicação do sítio onde esteve, e quando isso acontecer, oferecer-lhe-ei trabalho. E vou continuar por aqui para o fazer pessoalmente.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
Jake Perkins permaneceu no átrio do Glen-Ridge e ficou a observar os empregados a entrarem um após outro no pequeno gabinete que ficava por trás do balcão a fim de falarem com Sam Deegan. À saída, conseguiu sondar muitos deles e ficou a saber que tinham a impressão de que Deegan também pretendia ligar para todos os que, embora não se encontrando de serviço nessa noite, tinham andado por aquelas bandas.
Pelo que ouviu dizer a conclusão foi de que ninguém vira Laura Wilcox abandonar o hotel. O porteiro e os empregados que arrumavam os carros garantiram a pés juntos que ela não saíra pela porta da frente.
Calculou, acertadamente, que a jovem de uniforme de empregada devia ser a que limpara o quarto de Laura. Jake, depois dela ser interrogada por Deegan, seguiu-a através do átrio, entrou no elevador e saiu no quarto andar sempre atrás dela.
- Sou repórter do jornal de Stonecroft - explicou, estendendo-lhe um cartão de visita - e também faço uns biscates para o New York Post.
Não estou muito longe da verdade, pensou. Não tarda que aconteça.
Não foi difícil convencê-la a falar. Chamava-se Myrna Robinson, era estudante da escola secundária pública e trabalhava no hotel em part-time.
É tão ingénua, pensou Jake prazenteiro ao observar-lhe a expressão de puro deleite e excitação por ter sido interrogada por um detective.
Abrindo o bloco de notas, perguntou:
- Myrna, o detective Deegan questionou-a ao certo acerca de quê?
- Queria saber se não havia dúvidas de que faltavam alguns cosméticos de Laura Wilcox, e respondi-lhe que tinha a certeza absoluta de que faltavam - confidenciou ela, arquejante. - Disse-lhe: ”Sr. Deegan, não imagina a quantidade de tralha que ela enfiou na bolsinha que estava na casa de banho, e metade dessa tralha desapareceu. Refiro-me a produtos como leites de limpeza, cremes hidratantes, uma escova para os dentes e a bolsa dos cosméticos.”
- O tipo de cangalhada que toda a mulher leva consigo quando passa a noite fora - acrescentou Jake com solicitude. - E quanto às roupas?
- Não falei ao Sr. Deegan de nenhumas roupas - replicou Myrna hesitante. Nervosamente começou a torcer o botão de cima do uniforme preto, acrescentando: - Quer dizer, disse-lhe que tinha a certeza de que faltava uma das malas, mas não quis que ele julgasse que eu era uma bisbilhoteira ou coisa assim, de modo que não lhe mencionei que o conjunto de casaco e calças de caxemira azul, e as botas de cano baixo não se encontravam no armário.
Myrna tem mais ou menos a estatura de Laura. Aposto a minha mesada em como andou a experimentara roupa, pensou Jake. Faltava um conjunto de casaco e calças - porventura o que Laura tencionava usar na cerimónia fúnebre e no almoço.
- Contou ao Sr. Deegan que uma das malas não se encontrava no quarto? - inquiriu à rapariga.
- Hmm. Ela trouxe imensa bagagem. Aqui para nós, uma pessoa até podia pensar que ela andava a efectuar uma viagem à volta do mundo. Adiante... Esta manhã a mala mais pequena não estava lá. É diferente das outras. É uma Louis Vuitton... por isso é que dei pela falta dela. Adoro o padrão, não acha? Tão fino. As duas maiores são de cabedal creme.
Jack, que se orgulhava da sua queda para o francês, estremeceu de forma sub-reptícia ao ouvir a rapariga pronunciar ”Vuitton”.
- Myrna - perguntou -, há alguma hipótese de eu entrar no quarto de Laura? Juro-lhe que não toco em nada.
Fora longe de mais. Reparou que o entusiasmo estampado no rosto dela dava lugar a uma expressão alarmada. Viu-a olhar de relance para o corredor e adivinhou-lhe os pensamentos. Se o gerente a apanhasse a meter pessoas num dos quartos dos hóspedes, era despedida. Apressou-se a retractar-se.
- Myrna, não lhe devia ter pedido isso. Esqueça. Olhe, aqui tem o meu cartão. Poderá valer-lhe vinte dólares se ficar com o meu número e me ligar para o caso de saber notícias da Laura. Que me diz?
Quer ser jornalista?
Myrna mordeu o lábio enquanto ponderava a oferta.
- Não é por causa do dinheiro - replicou.
- Claro que não - concordou Jake.
- Se publicar a história no Post, quero ser citada como fonte anónima.
É mais esperta do que parece, reflectiu Jake, enquanto aquiescia ansiosamente.
Eram perto das seis horas. Quando regressou ao átrio, este encontrava-se quase deserto. Dirigiu-se à recepção e inquiriu se o Sr. Deegan já saíra do hotel.
O empregado, que parecia cansado e tenso, ripostou:
- Olha, rapazote, já se foi embora e a menos que pretendas reservar um quarto, sugiro que também vás para casa.
- Tenho a certeza de que ele lhe pediu para o informar, caso a Sr.a Wilcox volte ou contacte consigo - insinuou Jake. - Permite-me que lhe dê o meu cartão? Ao longo do fim-de-semana, tornei-me amigo da Sr.a Wilcox e também me sinto preocupado por causa dela.
O empregado pegou no cartão e examinou-o.
- Repórter do Stonecroft Academy Gazette e escritor-jornalista nas horas vagas, hmm? - Rasgou o cartão em dois e acrescentou:
- Ainda cheiras a cueiros, miúdo. Faz-me um favor, sim? Põe-te a milhas!
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
O corpo de Helen Whelan foi descoberto às cinco e meia dessa tarde de domingo, numa área arborizada de Washingtonville, uma cidade que ficava a cerca de quinze quilómetros de Surrey Meadows. Quem deparou com ele foi um rapazinho de doze anos que metera por um atalho no matagal a fim de chegar mais depressa a casa de um amigo.
Sam recebeu a mensagem quando estava a terminar o interrogatório aos empregados da Casa Glen-Ridge. Telefonou para o quarto de Jean. Esta fora ao andar de cima ligar para Mark Fleischman, Cárter Stewart e Jack Emerson, na esperança de que algum deles estivesse ao corrente dos planos de Laura. Já se encontrara no átrio com Robby Brent e este afirmara-lhe desconhecer o presumível paradeiro de Laura.
- Jean, tenho de ir - explicou Sam. -Já contactou alguém?
- Falei com Cárter. Ficou muito preocupado, mas não faz a mínima ideia onde possa estar Laura. Disse-lhe que eu e Gordon íamos jantar juntos e ele vai ter connosco. Talvez se pudéssemos elaborar os três uma lista das pessoas com quem Laura pareceu estar mais tempo, conseguíssemos descobrir alguma coisa. Jack Emerson não se encontra em casa. Deixei-lhe uma mensagem no atendedor de chamadas. O mesmo aconteceu com Mark Fleischman.
- Por agora é tudo o que está ao seu alcance fazer - replicou Sam. - Em termos legais, estamos de mãos atadas. Se amanhã ainda ninguém souber do seu paradeiro, tentarei arranjar um mandato de busca de modo a podermos revistar-lhe o quarto e vermos se deixou alguma indicação para onde foi. Senão, ficamos a aguardar.
- Amanhã sempre vai à sacristia?
- Sem dúvida - garantiu Sam, desligando e precipitando-se para o carro. Tornava-se escusado comunicar a Jean que ia a caminho da cena do crime, onde fora encontrada outra mulher desaparecida.
Tinham atingido Helen Whelan com uma pancada na nuca e depois fora repetidamente esfaqueada.
- Foi provavelmente agredida pelas costas com o mesmo objecto pesado com que atingiram o cão - declarou Cal Grey, o médico-legista, a Sam quando este chegou à cena do crime. O corpo estava a ser retirado, e orientados por holofotes os investigadores passavam a pente fino a área assinalada com cordão amarelo, tentando descobrir pistas que os levassem ao assassino. - Só o posso asseverar quando proceder à autópsia, mas parece-me que a pancada na cabeça a fez perder os sentidos. As feridas resultantes das facadas ocorreram depois de ele a trazer para aqui. Só podemos fazer votos para que não percebesse o que lhe estava a acontecer.
Sam contemplou o corpo esguio que se preparavam para meter num saco mortuário e observou:
- Parece que as roupas dela não foram remexidas.
- E não foram. O meu palpite é que quem quer que a agarrou a trouxe deliberadamente para aqui e a matou. Ainda tem a trela do cão enrolada no pulso.
- Espere só um minuto - pediu repentinamente Sam ao subordinado que estava a armar a maca. Agachou-se e sentiu os pés afundarem-se no solo enlameado. - Cal, empreste-me aí a sua lanterna.
- Que é que está a ver?
- Há uma mancha de sangue na parte lateral das calças. Duvido que provenha das feridas do peito e do pescoço. A minha suposição é que o assassino estava a sangrar bastante, talvez devido à dentada de um cão. - Endireitando-se, acrescentou: - O que significa que talvez fosse obrigado a recorrer às urgências. Vou emitir um alerta a todos os hospitais da área para que comuniquem quaisquer ferimentos resultantes das mordeduras de um cão que tenham recebido tratamento no fim-de-semana ou que poderão ainda aparecer ao longo dos próximos dias. E encarregue-se de confirmar que o laboratório faz análises ao sangue. Encontramo-nos depois no seu consultório, Cal.
Durante o trajecto até ao consultório do médico-legista, a sensação de desperdício que fora a perda da vida de Helen Whelan foi tão intensa que atingiu Sam em cheio no estômago como se fosse um murro. Acontecia-lhe sempre que deparava com este género de violência.
Quero apanhar o tipo, pensou, e quero ser eu a algemá-lo. Rogo a Deus que esteja neste momento a contorcer-se com dores por causa da dentada do cão. Desta reflexão surgiu-lhe uma nova ideia.
Talvez o sujeito seja demasiado esperto para recorrer às urgências de um hospital, reflectiu, mesmo assim precisará de tratar da ferida. É como procurar uma agulha num palheiro, mas é capaz de valer a pena alertar as farmácias da zona para estarem atentas e confirmarem se alguém compra produtos como água oxigenada, ligaduras e pomadas bactericidas.
Mas se for esperto o suficiente para evitar recorrer aos hospitais, se calhar também o é para comprar esses produtos numa farmácia de grandes dimensões onde se formam bichas enormes junto às caixas registadoras e ninguém presta atenção ao conteúdo dos cestos das compras, a não ser as empregadas que confirmam as etiquetas com o scanner.
Mesmo assim, vale a pena tentar, concluiu Sam com uma expressão grave, lembrando-se da fotografia de uma Helen Whelan sorridente, que vira no apartamento dela.
Era vinte anos mais velha que Karen Sommers, pensou, mas morreu da mesma forma... apunhalada selvaticamente até à morte.
O nevoeiro que ao longo do dia surgira em revoadas transformara-se numa chuva miudinha. Sam franziu o sobrolho e ligou o limpa-pára-brisas.
É improvável haver qualquer relação entre os casos, pensou. Em vinte anos, não ocorreu na localidade nenhum esfaqueamento idêntico. Karen estava em casa e Helen Whelan, na rua a passear o cão. Mas será possível que fossem obra de algum maníaco que ao longo destes anos todos permaneceu na sombra?
Tudo é possível, concluiu. Por favor, Deus, faz com que tenha algum descuido e deixe cair algo que nos conduza até ele. Felizmente, obtivemos o ADN do sujeito. O sangue nos bigodes do cão deve pertencer-lhe, o mesmo porventura acontecendo com a mancha nas calças da mulher.
Ao chegar ao consultório do médico-legista, arrumou o carro no parque de estacionamento, saiu do veículo, trancou-o e entrou. A noite ia ser longa e o dia seguinte ainda mais. Tinha de se encontrar com o pároco de St. Thomas, e convencê-lo a abrir os arquivos dos baptismos efectuados há quase vinte anos. Tinha de entrar em contacto com os familiares das cinco mulheres de Stonecroft, cuja morte ocorrera por ordem dos lugares que ocupavam à mesa do almoço - precisava de conseguir mais pormenores sobre os respectivos óbitos. E precisava de descobrir o que acontecera a Laura Wilcox.
Se não fossem as mortes das outras cinco da mesma turma, eu diria que se tratou apenas de uma escapadela com algum sujeito, pensou Sam. Pelo que me contaram é muito vivida e sempre andou com homens a reboque.
O médico-legista e a ambulância que transportava o corpo de Helen Whelan chegaram poucos segundos depois dele. Meia hora mais tarde, Sam analisava os artigos que haviam sido retirados do corpo. Os únicos de valor eram um relógio e um anel. Talvez não trouxesse mala, pois encontraram na algibeira direita do casaco a chave de casa e um lenço de assoar.
Junto à chave de casa, sobre a mesa, reparou noutro objecto: um mocho de estanho com pouco mais de vinte milímetros. Sam pegou nas pinças que o médico assistente utilizara para manipular as chaves e o mocho, pegou neste último e examinou-o com atenção. Pareceu-lhe que os olhos imóveis, frios e enormes o fitavam.
- Estava no fundo da algibeira das calças dela - explicou o assistente. - Quase nem dava por isso.
Sam lembrou-se de ver uma abóbora do lado de fora da porta que dava para a varanda do apartamento de Helen Whelan e no vestíbulo, dentro de uma caixa, um esqueleto de papel que ela tencionava pendurar nalgum lado.
- Andava a fazer as decorações para o Dia das Bruxas - declarou. - Se calhar isto, vinha incluído nos enfeites. Meta tudo num saco que eu levo para o laboratório.
Quarenta minutos depois, observava os assistentes que examinavam a roupa de Helen Whelan ao microscópio a fim de detectarem algo que pudesse identificar o assassino. Outro assistente analisava as chaves do carro tentando descobrir impressões digitais.
- Estas são todas dela - comentou enquanto estendia a pinça para o mocho. Passado um momento, acrescentou: - Tem graça. Não há impressões digitais nesta coisa, nem sequer manchas. Estranho, não acha? Não caiu para a algibeira dela. Foi ali colocado por alguém que usava luvas.
Sam reflectiu por uns instantes. Teria o assassino deixado ali o mocho de propósito? Ia apostar que sim.
- Vamos guardar sigilo quanto a isto - disse. - Tirando a pinça da mão do assistente, pegou no mocho e contemplou-o. - Vais conduzir-me até ao sujeito - jurou. - Não sei como, mas vais.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
Tinham combinado encontrar-se às sete horas na sala de jantar. À última hora, Jean decidiu mudar de roupa e vestir umas calças azuis-escuras e uma camisola azul-clara com uma gola larga que comprara em saldo na loja Escada. Ao longo de todo o dia não conseguira livrar-se da frialdade do cemitério. Até a camisola e as calças que envergava pareciam reter o frio e a humidade que aí sentira.
Claro que é ridículo, disse para consigo enquanto retocava a maquilhagem e escovava o cabelo. Enquanto se olhava ao espelho da casa de banho, deteve-se por um instante, segurou na escova e observou-a.
Quem é que se teria aproximado de Lily o suficiente para conseguir surripiar-lhe a escova de casa ou da mala? - interrogou-se.
Ou será possível que Uly me tenha localizado e esteja a castigar-me por eu desistir da custódia dela?, voltou Jean a interrogar-se, sentindo-se angustiada com o pensamento. Tem agora dezanove anos e meio. Que tipo de vida levou? AS pessoas que a adoptaram serão mesmo o casal encantador que o D r. Connors me descreveu, ou revelaram-se maus pais logo que se viram com a tutela da bebé?
Mas o instinto avisou-a de imediato que Lily não andava com manigâncias para a atormentar.
É outra pessoa, alguém que me quer magoar. Ela que me peça dinheiro que eu dou-lho, suplicou em silêncio. Mas não lhe faça mal.
Voltou a olhar-se ao espelho e contemplou o seu reflexo. Tinham-lhe dito diversas vezes que era parecida com Katie Couric, a anfitriã do programa televisivo Today e a comparação deixara-a lisonjeada.
Será que Lily se parece comigo?, interrogou-se. Ou é mais parecida com Reed? Aqueles fios de cabelo são tão louros, e ele costumava afirmar por piada que a mãe dizia que o cabelo dele era da cor do trigo colhido no Inverno. Isso quer dizer que sai a ele em relação ao cabelo. Os olhos de Reed eram azuis e os meus também, de modo que os dela são de certeza azuis.
Costumava perder-se neste género de especulações. Sacudindo a cabeça, Jean pousou a escova em cima do armário, apagou a luz da casa de banho, pegou na bolsa e desceu as escadas para ir ter com os outros para jantarem.
Gordon Amory, Jack Emerson e Robby Brent já se encontravam à mesa da sala de jantar quase vazia. Ao levantarem-se para a cumprimentar, reparou no acentuado contraste que revelavam em termos de vestuário e aparência. Amory vestia uma camisa de caxemira de colarinho aberto e um casaco de tecido escocês de marca. Cada poro ressumava a imagem do executivo com êxito que era. Robby Brent trocara o camisolão de malha grossa que vestia ao almoço por uma camisa de colarinho subido que Jean achou que lhe realçava o pescoço curto e o corpo atarracado. As gotículas de transpiração na testa e nas faces imprimiam-lhe um ar luzidio que ela considerou repelente. O efeito causado pelo casaco de bombazina de Jack Emerson, embora de bom corte, era anulado pela camisa aos quadrados brancos e vermelhos, e a gravata furta-cores berrante que usava. Ocorreu a Jean que o colega, com a sua cara rubicunda e cheia, lembrava o anúncio político anti-Nixon acompanhado do slogan: ”Compraria um carro em segunda mão a este homem?” puxou a cadeira vazia junto dele, e deu-lhe uma palmadinha no braço quando ela a contornou. Instintivamente, Jean ficou rígida e desviou o braço.
- Jeannie, mandámos vir bebidas - anunciou-lhe o colega. Arrisquei e pedi um vinho branco seco para ti.
- Fizeste bem. Vocês vieram cedo ou sou eu que estou atrasada?
- Antecipámo-nos um bocado. Tu foste pontual e Cárter ainda não chegou.
Passados vinte minutos, quando estavam a decidir que pratos deviam encomendar, este apareceu.
- Desculpem se os fiz esperar, mas não estava à espera de outra reunião tão cedo - declarou com frieza enquanto se sentava. Vestia agora calças de ganga e um camisolão com capuz.
Também nós - concordou Gordon Amory. - Porque não mandas vir uma bebida? Sugiro depois que vamos directos ao assunto que nos trouxe aqui.
Cárter aquiesceu com a cabeça e fez sinal ao empregado, apontando-lhe para o martini que Emerson estava a beber.
- Continua - disse a Gordon, ainda em tom seco.
- Começo por declarar que depois de reflectir um pouco cheguei à conclusão, e espero que assim seja, de que talvez não haja motivos para nos preocuparmos em relação a Laura. Lembro-me de ouvir dizer que ela aceitou há alguns anos um convite para visitar um tipo cheio de massa, cujo nome omitirei, na propriedade deste em Palm Beach, e que alegadamente saiu a meio de uma festa para viajar no avião particular do sujeito. Tanto quanto se sabe, nessa altura nem se preocupou em levar a escova de dentes e muito menos os cosméticos.
- Creio que nenhum dos que participaram no convívio regressou a Stonecroft num avião particular - observou Robby Brent.
- Aqui para nós, a avaliar pelo aspecto de alguns deles acho mesmo que para cá chegar vieram à boleia.
- Com franqueza, Robby! - protestou Jack Emerson. - Muitos dos nossos colegas finalistas tiveram bastante êxito na vida, e é por isso que alguns até compraram propriedades por estas bandas para uma eventual segunda residência.
-Jack, por hoje chega de falar em picos de vendas! - interveio Gordon irritado. - Ouve, tu estás cheio de massa e, tanto quanto sabemos, és o único que possui uma casa na cidade e podias convidar Laura para um convívio tranquilo.
O rosto já avermelhado de Jack Emerson assumiu uma expressão sombria.
- Gordon, espero bem que estejas a brincar.
- Robby é que é o nosso comediante residente e não pretendo substituí-lo - replicou Gordon, tirando uma azeitona do pires que o empregado pousara sobre a mesa. - É claro que estava a meter-me contigo por causa de Laura, mas falava a sério em relação aos picos de vendas.
Jean concluiu que era altura de mudar de assunto.
- Deixei uma mensagem no telemóvel de Mark - declarou.
- Ele mandou-me outra quando eu estava prestes a descer. Se até amanhã não tivermos notícias de Laura, reorganiza a sua agenda de trabalho e volta para cá.
- Quando éramos miúdos sempre teve um fraquinho pela Laura
- observou Robby. - E não me surpreendia se ainda tivesse. Na noite em que ficámos na tribuna fez questão de se sentar ao lado dela. Chegou a trocar os cartões que assinalavam os lugares para que tal acontecesse.
Por isso é que vai voltar a correr, pensou Jean, percebendo que interpretara mal as entrelinhas da mensagem que ele lhe enviara: ”Jeannie, quero acreditar que Laura se encontra bem, mas se lhe aconteceu alguma coisa, isso pode significar que o desaparecimento das raparigas que se sentavam à tua mesa obedece a um padrão macabro. Quero que te capacites disso.”
E eu a julgar que estava preocupado comigo, pensou. Até me dispunha a falar-lhe a respeito de Lily. Julguei que, sendo ele psiquiatra, talvez tivesse algum discernimento quanto ao tipo de pessoa que anda a importunar-me por causa dela.
Foi um alívio quando o empregado, um homem franzino e idoso, começou a distribuir as ementas.
- Desejam saber qual é a especialidade do chefe para esta noite? - inquiriu.
Olhando para o empregado com um sorriso esperançoso, Robby murmurou:
- Estou ansioso por saber.
- Bife do lombo com cogumelos, filetes de solha recheados com carne de caranguejo...
Quando o homem acabou a ladainha, Robby inquiriu:
- Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Claro que sim, cavalheiro.
- Este estabelecimento tem por hábito transformar as sobras da véspera na especialidade do dia seguinte?
- Oh, cavalheiro, garanto-lhe - replicou o empregado com voz nervosa e como que a pedir desculpa - que trabalho aqui há quarenta anos e sempre nos orgulhámos bastante da nossa cuisine.
- Deixe lá, deixe lá. Foi só um pouco de humor para aligeirar a conversa à mesa. Jean, tu primeiro.
- A salada César e sela de borrego, mal passada - disse Jean baixinho.
Robby não só é sarcástico como também perverso e cruel, pensou. Gosta de magoar pessoas que não podem ripostar, como a Dr.a Bender, a professora de Matemática e agora este pobre diabo. E diz ele que Mark teve um fraquinho por Laura. Mas não havia ninguém que andasse tanto pelo beicinho por ela como ele.
De repente, ocorreu-lhe um pensamento inquietante. Robby era agora um indivíduo cheio de dinheiro e famoso.
Se convidasse a Laura a encontrar-se com ele em algum lado ela ia, eu sei que sim, pensou Jean, apavorada por estar seriamente a considerar a hipótese de Robby ter atraído Laura para uma cilada para depois a agredir.
Jack Emerson foi o último a pedir. Quando devolveu a ementa ao empregado, declarou:
- Prometi a uns amigos tomar uma bebida com eles antes de me ir deitar, de modo que era boa ideia começarmos a analisar quem é que achamos que foi o centro das atenções de Laura durante o fim-de-semana. - Olhando de relance para Gordie, acrescentou:
- Além de ti, Gordie, é evidente. Tu figuravas em primeiro lugar na lista dela.
Santo Deus, pensou Jean, se isto continua assim ainda acabam por se estrangular uns aos outros. Virando-se para Cárter Stewart, sugeriu:
- Cárter, porque é que não começamos por ti? Alguma sugestão?
- Vi-a num grande paleio com Joel Nieman, mais conhecido como o Romeu que na peça da escola se esquecia de metade das deixas. A mulher dele só se encontrou presente no cocktail no jantar de sexta-feira, depois foi-se embora. Sábado de manhã apanhou um voo para Hong-Kong, pois é executiva e trabalha para a Target.
- Jack, eles não vivem algures por estas bandas? - inquiriu Gordon.
- Moram em Rye.
- Não fica muito longe.
- Na festa de sexta-feira à noite estive a falar com o Joel - interveio Jean. - Não se parece com o tipo de sujeito que mal a mulher sai da cidade convida a Laura para ir a casa dele.
- Talvez não pareça, mas por acaso vim a saber que tem umas quantas namoradas - esclareceu Emerson. - E também que esteve quase a ser processado por causa de uns contratos duvidosos em que a sua firma de contabilidade andou implicada. Por isso é que desistimos de o incluir entre os homenageados.
- E quanto a Mark Fleischman, o nosso homenageado ausente?
- inquiriu Robby Brent. - Conforme foi apresentado ao jantar, é muito provável que seja ”alto, magro, alegre, divertido e sábio”, mas o facto é que sempre que pôde andou pendurado em Laura. Até torceu o pescoço tal era a pressa de se sentar ao lado dela no autocarro para West Point.
Jack Emerson acabou o martini e pediu ao empregado que lhe trouxesse nova dose. Depois arqueou o sobrolho e declarou:
- Acabou de me ocorrer uma coisa. Se quisesse convidar a Laura, o Mark tinha casa para onde ir. Sei que o pai dele está fora da cidade. Na semana passada, encontrei Cliff Fleischman no posto dos Correios, e perguntei-lhe se ia assistir à cerimónia de homenagem ao filho. Respondeu-me que planeava passar uma longa temporada em Chicago, mas que telefonara ao Mark. Talvez Cliff lhe pusesse a casa à disposição, pois só volta na terça-feira.
- Pois eu acho que o Sr. Fleischman deve ter mudado de ideias
- interveio Jean. - Mark contou-me que passou pela casa onde viveu, e que reparou que havia imensas luzes acesas. Não referiu que recebera um telefonema do pai.
- Sempre que vai para fora, Cliff Fleischman deixa uma data de luzes acesas - replicou Emerson. - Há uns dez anos quando partiu de férias assaltaram-lhe a casa e ele atribuiu-o ao facto da casa ter ficado tão às escuras. Afirmou que era um indício óbvio de não haver ninguém a habitá-la.
Gordon partiu uma tosta e observou:
- Desconfio que Mark não está de boas relações com o pai.
- Não está e eu sei porquê - replicou Emerson. - Quando a mãe do Mark faleceu, o pai dele prescindiu dos serviços da empregada doméstica, e esta trabalhou uns tempos em nossa casa. Adorava mexericos e contou-nos tudo a respeito dos Fleischman. Toda a gente sabia que Dennis, o filho mais velho, era o menino querido da mãe. A senhora nunca recuperou da perda e atribuiu as culpas do acidente a Mark. O carro encontrava-se ao cimo daquela rampa comprida e íngreme, e como sempre Mark andava a chatear Dennis para que este o ensinasse a conduzir. Mark tinha apenas treze anos e não o deixavam guiar a menos que Dennis estivesse com ele. Naquela tarde pôs o carro em movimento e antes de sair do veículo esqueceu-se de meter o travão. O carro veio lançado pela rampa abaixo e Dennis não deu por ele.
- Como é que a mãe descobriu? - indagou Jean.
- De acordo com a empregada, uma noite pouco antes dela falecer, aconteceu algo que fez mudar por completo a sua atitude em relação a Mark, que nem sequer compareceu ao funeral. A senhora, que possuía muitos bens por parte da família da mãe, também o deserdou. Na altura, Mark frequentava a Escola Superior de Medicina.
- Mas quando o acidente ocorreu ele só tinha treze anos! protestou Jean.
- E teve ciúmes do irmão - replicou Cárter Stewart baixinho.
- Podes apostar. Mas talvez contacte ainda com o pai, talvez este lhe tenha dado uma chave da casa, e talvez soubesse que o pai se encontrava fora.
Será que Mark mentiu quando disse que tinha de voltar para Boston?, interrogou-se Jean. Quando eu me encontrava no bar sentada à mesa com Alice e Sam, veio ter connosco e contou-nos que passara pela casa dopai. Será possível que continue aqui na cidade na companhia de Laura?
Recuso-me a acreditar nisso, concluiu de si para si, ao ouvir Gordon Amory alvitrar:
- Todos nós estamos a presumir que Laura saiu com alguém, mas também é possível que fosse ter com alguém. Não estamos assim tão longe de Bedford, Greenwich e Westport, onde vivem imensas celebridades amigas dela.
Jack Emerson trouxera a lista das pessoas que tinham comparecido ao convívio. No final, decidiram que cada um se encarregaria de telefonar a algumas delas, explicar por que motivo se sentiam preocupados e indagar-lhes se tinham ideia do paradeiro de Laura.
Quando abandonaram a sala de jantar, depois de prometerem que de manhã entravam em contacto, Cárter Stewart e Jack Emerson dirigiram-se para os respectivos carros. Ao chegar ao átrio, Jean declarou a Gordon Amory e a Robby Brent que ia passar pela recepção.
- Sendo assim, despeço-me - respondeu-lhe Gordon. - Ainda tenho que fazer alguns telefonemas.
- Gordie, hoje é sábado e já é de noite - interveio Robby Brent.
- São assim tão importantes que não possam esperar até amanhã? Gordon Amory fitou o rosto de Robby, que assumira uma expressão de inocência velhaca.
- Como sabes, prefiro que me tratem por ”Gordon” - replicou em tom sereno. - Boa-noite, Jean.
- É tão senhor de si - comentou Robby enquanto observava Gordon a atravessar o átrio, e a carregar no botão para chamar o elevador. - Aposto que quando chegar lá acima vai logo a correr ligar a televisão. Hoje estreia uma nova série num dos canais dele. Ou talvez deseje apenas admirar ao espelho a sua linda cara nova. Muito sinceramente, Jeannie, aquele cirurgião estético deve ser um génio. Lembras-te da cara de chanfrado que Gordie tinha em miúdo?
Quero lá saber porque é que ele foi para o quarto, pensou Jean. Só desejo confirmar na recepção se por acaso Laura não telefonou e depois vou-me deitar.
- O facto é que Gordon conseguiu dar a volta por cima - respondeu. - Sofreu bastante na infância e na adolescência.
- Como todos nós - redarguiu Robby em tom displicente. Excepto, é claro, a nossa rainha da beleza que anda por aí a monte.
- Encolhendo os ombros, acrescentou: - Vou buscar um casaco e dar uma volta. Sou adepto da boa condição física e em todo o fim-de-semana, a não ser uns passeios, não pratiquei qualquer exercício. O ginásio daqui é do piorio.
- Na tua opinião há algo nesta cidade, hotel ou nas pessoas com quem falaste que não seja do piorio? - inquiriu Jean, sem se preocupar com o tom contundente com que falara.
- Quase nada - replicou Robbie todo risonho -, a não seres tu, é claro, Jeannie. Lamento ver que ficaste um pouco incomodada quando referimos que Mark andou pendurado em Laura durante o fim-de-semana. Para que saibas, percebi que Mark também estava de olho em ti. Torna-se difícil compreender o tipo, mas há uma data de psiquiatras que são mais malucos que os próprios doentes. Se Mark destravou o carro que matou o irmão, pergunto-me se consciente ou inconscientemente foi uma acção deliberada. No fim de contas, tratava-se do carro novo do irmão, uma prenda da mamã e do papá por concluir o secundário em Stonecroft. Pensa no assunto.
Depois de lhe lançar uma piscadela de olho e um aceno com a mão, dirigiu-se para os elevadores. Furiosa e humilhada por o colega ter interpretado de forma tão correcta a reacção dela aos comentários a respeito de Laura e Mark, Jean encaminhou-se para a recepção. A empregada de serviço era Amy Sachs, uma mulher baixinha com voz suave, cabelo curto que começava a ficar grisalho e óculos enormes encavalitados na ponta do nariz.
- Não, garanto-lhe que não tivemos notícias da Sr.a Wilcox afiançou a Jean. - Mas chegou um fax para si, Dr.a Sheridan. - Virando-se, estendeu a mão para um envelope que se encontrava na prateleira por trás do balcão.
Jean sentiu a boca seca. Embora dissesse para consigo que se devia acalmar e lê-lo no quarto, deu consigo a rasgar o envelope.
Este incluía uma mensagem composta de onze palavras: OS LÍRIOS QUE APODRECEM SÃO BEM PIORES QUE AS ERVAS DANINHAS.
Os lírios que apodrecem, reflectiu Jean. Lírios murchos.
- Há algum problema, Dr.a Sheridan? - inquiriu ansiosa a empregada tímida. - Espero que não sejam más notícias.
- Quê? Oh... não... está tudo bem, obrigada.
Como se caminhasse num sonho, Jean subiu as escadas, entrou no quarto, abriu a bolsa e vasculhou a carteira à procura do número do telemóvel de Sam. Quando o ouviu responder em tom conciso ”Sam Deegan”, reparou que eram quase dez horas e que ele já poderia estar a dormir.
- Sam, se calhar, acordei-o...
- Não, não acordou - interrompeu-a ele. -Jean, que foi? Alguma notícia da Laura?
- Não, é Lily. Outro fax.
- Leia-mo.
Jean obedeceu com voz trémula.
- Sam, é uma citação de um soneto de Shakespeare. Refere-se a lírios murchos. Sam, a pessoa que o enviou está a ameaçar matar a minha filha - Jean ouviu a própria voz alterar-se num assomo de histeria ao mesmo tempo que gritava: - Que posso eu fazer para a deter? Que posso eu fazer?
CAPÍTULO TRINTA E SETE
Por essa altura, ela já devia ter recebido o fax. Ignorava por que sentia deleite em infernizar a vida de Jean, sobretudo agora que decidira matá-la. Porque havia de revolver a faca ameaçando Meredith, ou Lily, como Jean chamava à rapariga? Ao longo de quase vinte anos, o seu conhecimento secreto da existência de Lily e a dos seus pais adoptivos constituíra um daqueles factos que pareciam supérfluos, como as prendas que não podem ser devolvidas mas que nunca saem da prateleira.
Fora apenas no ano anterior, quando conhecera os pais dela num almoço e percebera quem eram que fizera questão de travar amizade com eles. Em Agosto chegara mesmo a convidá-los para passarem um fim-de-semana prolongado na sua companhia e trazerem Meredith, que se encontrava em casa de férias. Ocorrera-lhe então surripiar um qualquer objecto que comprovasse o ADN da jovem.
A oportunidade de lhe roubar a escova fora-lhe servida de bandeja. Encontravam-se todos na piscina e quando a rapariga, depois de dar uns mergulhos, penteava o cabelo, o telemóvel dela tocara. Lily atendera e afastara-se para falar mais à vontade. Ele enfiara à socapa a escova na algibeira e depois misturara-se com os outros convidados. No dia seguinte enviara a Jean a escova e a primeira mensagem.
O poder sobre a vida e a morte - até então exercera-o em cinco das raparigas que costumavam almoçar à mesma mesa e também em muitas outras mulheres, escolhidas ao acaso. Interrogou-se quanto tempo demorariam a encontrar o corpo de Helen Whelan. Teria sido um erro enfiar o mocho na algibeira do casaco dela? Até então deixara o seu símbolo escondido, discreto, despercebido. Tal como acontecera no mês anterior, quando metera um deles numa das gavetas da cozinha da casa da piscina onde aguardara que Alison aparecesse.
Dentro de casa, as luzes estavam apagadas. Retirou da algibeira os óculos de visão nocturna, colocou-os, enfiou a chave na fechadura da porta das traseiras e entrou. Fechou e trancou a porta, percorreu a cozinha até à escada dos fundos e em seguida subiu os degraus sem fazer ruído.
Laura encontrava-se no quarto que fora o seu antes da família se mudar para a Concord Avenue, tinha ela dezasseis anos. Amarrara-lhe as mãos e os pés e colocara-lhe uma mordaça na boca. Jazia deitada em cima da cama e o vestido dourado cintilava no escuro.
Não se apercebeu que ele entrara no quarto, e quando o Mocho se inclinou ouviu-a soltar um arquejo de pavor.
- Laura, voltei - sussurrou-lhe. - Não estás contente? A mulher encolheu-se, tentando esquivar-se-lhe.
- Eu ssssoooooouu um mmmooocchhho eeeee wvwviwwo numa numa numa árvore - murmurou ele. - Achavas muita graça quando me imitavas, não achavas? E agora, Laura? Ainda achas graça? Achas?
Através dos óculos de visão nocturna, detectou-lhe o terror nos olhos. Enquanto Laura sacudia a cabeça de um lado para o outro, a garganta dela emitia sons que pareciam os de um cachorro a ganir.
- Deste a resposta errada, Laura. Tu achas que tem graça. Todas vocês, raparigas, acham que tem graça. Mostra-me que achas que tem graça. Mostra-me.
A mulher começou a sacudir a cabeça para baixo e para cima. Num movimento rápido, ele arrancou-lhe a mordaça.
- Não levantes a voz, Laura - sussurrou. - Ninguém te ouve e se gritares, tapo-te a cara com esta almofada. Estás a perceber?
- Por favor - murmurou Laura. - Por favor...
- Não, Laura, não quero que digas ”por favor. Quero que me imites, que recites a minha deixa na peça e quero ouvir-te rir.
Eu... eu sssooooouuu um mocho eeee vvvviiiivivooo nnnn-nuuuummma áááárvore.
Ele aquiesceu com ar de aprovação.
Linda menina. És muito boa a imitar. Agora finge que estás à mesa a almoçar com as raparigas e que te pões a dar risadinhas abafadas, a relinchar, a cacarejar e a rir. Quero ver como é que vocês todas ficavam divertidas depois de troçarem de mim.
- Não consigo... desculpa...
Ele ergueu a almofada e manteve-a suspensa sobre a cabeça dela.
Desesperada, Laura começou a rir, emitindo sons esganiçados, estrídulos e histéricos que lembravam balidos.
Ah... ah... ah... - exclamou, com os olhos marejados de lágrimas. - Por favor...
Ele tapou-lhe a boca com a mão.
- Estiveste quase para dizer o meu nome. Proíbo-te. Só podes chamar-me ”O Mocho”. Tens de praticar os guinchos das raparigas quando ficavam histéricas de riso. Agora vou desatar-te as mãos e deixar-te comer. Trouxe-te sopa e um pão. Não fui tão bonzinho? Depois deixo-te ir à casa de banho.
Depois disso - prosseguiu ele -, quando estiveres de novo segura e toda deitadinha, vou ligar do meu telemóvel para o hotel. Vais dizer à recepcionista que estás com amigos, que não tens planos definitivos e vais pedir que mantenham o quarto reservado. Laura, estás a compreender-me?
- Sim - respondeu ela em tom quase inaudível.
- Se tentares por alguma via pedir socorro, morres de imediato. Estás a compreender?
- S-i-m.
- Linda menina.
Decorridos vinte minutos, o sistema informático de atendimento de chamadas da Casa Glen-Ridge respondia a alguém que premira ”3 para reservas.
O telefone da recepção tocou. A empregada levantou o auscultador e identificou-se:
- Recepção, daqui fala Amy. - Soltou um arquejo e acrescentou: - Senhora Wilcox, que prazer em ouvi-la! Estávamos todos tão preocupados consigo. Oh, os seus amigos vão ficar contentíssimos por saber que ligou. Claro que lhe mantemos a reserva do quarto. Tem a certeza de que se sente bem?
O Mocho cortou a ligação.
- Laura, portaste-te muito bem. A tua voz revelava alguma tensão, mas suponho que é natural. Talvez consigas tornar-te actriz. Tapando-lhe a boca com a mordaça, acrescentou: - Depois volto. Tenta dormir um pouco. Consinto-te que sonhes comigo.
CAPÍTULO TRINTA E OITO
Jake Perkins sabia que o empregado que o enxotara do Glen-Ridge acabava o turno às oito horas da noite. Isso significava que depois dessa hora podia voltar ao hotel e sondar Amy Sachs, a recepcionista, a fim de saber se havia novidades.
Depois de jantar com os pais, que se mostraram empolgados com o que se passava no hotel, reviu os apontamentos que entregaria no Post. Decidira aguardar até à manhã seguinte e depois ligaria para a redacção do jornal. Por essa altura já decorrera um dia após o desaparecimento de Laura Wilcox.
Às dez horas voltou ao Glen-Ridge, e entrou no átrio deserto do hotel.
Um avião bem podia voar por aqui sem embater em ninguém, pensou enquanto se dirigia para a recepção. Quem fazia o atendimento era Amy Sachs.
Amy simpatizava com ele e o jovem sabia-o. Na Primavera anterior, quando fizera para Stonecroft a cobertura de um almoço, dissera-lhe que ele lhe fazia lembrar o irmão mais novo.
- A única esperança é que Danny tem quarenta e seis anos e tu dezasseis - declarara, rindo-se em seguida. - Ele sempre quis trabalhar para a Imprensa, e de certo modo acho que conseguiu. É dono de uma empresa de camionagem que faz a distribuição dos jornais.
Jake interrogara-se quantas pessoas perceberiam que debaixo da fachada tímida e ansiosa-por-agradar, Amy escondia um bom humor muito refinado e uma perspicácia muito contundente.
- Olá, Jake - cumprimentou-o ela, esboçando um sorriso tímido.
- Olá, Amy. Pensei passar por cá e ver se já tem notícias de Laura Wilcox.
- Nem uma palavra. - Nesse momento, tocou o telefone e ela levantou o auscultador. - Recepção, daqui fala Amy - sussurrou.
Jake reparou na mudança de expressão que transpareceu no rosto da amiga e ouviu-a dizer ofegante:
- Oh, Senhora Wilcox...
O rapaz debruçou-se sobre o balcão e fez um gesto a Amy, indicando-lhe que afastasse o auscultador para que ele também pudesse ouvir. Ainda ouviu a voz de Laura a informar que se encontrava com amigos, não tinha planos definitivos e que agradecia que lhe mantivessem a reserva do quarto.
Nem parecia ela, reflectiu. Estava perturbada e falou com voz trémula.
A conversa durara apenas vinte segundos. Depois de Amy desligar, ela e Jake entreolharam-se.
- Onde quer que ela esteja, não está a divertir-se - observou ele de chofre.
- Se calhar está com uma ressaca - observou Amy. - No ano passado, li na revista People um artigo a seu respeito em que afirmavam que fora internada numa clínica de desintoxicação, devido a problemas com o álcool.
- Talvez seja essa a explicação - concordou Jake, encolhendo os ombros. Lá se vai o meu furo jornalístico, pensou. - Amy, aonde acha que ela foi? - inquiriu. - Você esteve de serviço todo o fim-de-semana. Reparou se ela andava por aí com alguém em particular?
Amy Sachs franziu o sobrolho, fazendo deslocar os óculos enormes.
- Vi-a umas quantas vezes de braço dado com o Dr. Fleischman
- replicou. - E domingo de manhã, ele foi o primeiro a confirmar a saída e a pagar a conta, antes mesmo do almoço em Stonecroft. Talvez a deixasse nalgum sítio a recuperar da ressaca e esteja ansioso por voltar para ela.
Abrindo uma gaveta e retirando um cartão, Amy acrescentou:
- Prometi ao Sr. Deegan, àquele detective, que lhe telefonava se recebêssemos notícias da Sr.a Wilcox.
- Já estou de saída - respondeu Jake. - Até logo, Amy. Dirigiu-lhe um aceno com a mão, encaminhando-se para a porta da frente, enquanto ela se preparava para fazer a ligação. No exterior, permaneceu no passeio, indeciso, começando a dirigir-se para o carro, deu meia volta e encaminhou-se de novo para a recepção.
- Conseguiu falar com o Sr. Deegan? - inquiriu.
- Consegui. Disse-lhe que ela ligou. Respondeu-me que eram boas notícias e para eu o informar quando ela viesse buscar a bagagem.
- É isso que eu receio. Amy, dê-me o número do telefone do Sam Deegan.
- Porquê? - redarguiu ela, parecendo alarmada.
- Porque acho que Laura Wilcox não estava bêbeda mas sim assustada, e acho que o Sr. Deegan o devia saber.
- Se alguém descobre que o deixei ouvir o telefonema, ainda me põem na rua.
- Não, não põem. Eu digo que quando a ouvi mencionar o nome dela agarrei no auscultador e o virei para também poder ouvir. Amy, já morreram cinco amigas de Laura. Se a estão a reter contra vontade, talvez não lhe reste muito tempo.
Depois de falar com Jean, Sam Deegan acabara de pousar o telefone quando atendeu a chamada da recepcionista do Glen-Ridge. A sua primeira reacção fora de que Laura Wilcox era uma mulher de um egoísmo incrível que faltara à cerimónia fúnebre em memória da amiga, deixara os outros amigos preocupados e ao não cancelar a viagem até ao aeroporto obrigara o motorista da limusina a perder tempo e a gastar gasolina para nada. Mas até essa reacção se diluiu perante o facto perturbador de que havia algo de suspeito na história mal alinhavada que contara à recepcionista e de que esta última afirmara que Laura parecia nervosa ou bêbeda.
O telefonema subsequente de Jake Perkins veio reforçar tal impressão, em especial porque o rapaz foi categórico ao declarar que achava que Laura Wilcox parecia assustada.
- Concorda com a Sr.a Sachs de que eram dez e meia exactas quando ela telefonou para o hotel? - perguntou-lhe Sam.
- Eram dez e meia em ponto - confirmou Jake. - Sr. Deegan, está a pensar em localizar a chamada? Quero dizer, se ela ligou do telemóvel consegue localizar a zona em que a chamada foi feita, não é verdade?
- Sim, é verdade - replicou Sam, irritado. Aquele rapazola tinha a mania que sabia tudo, mas como só tentava ser útil, Sam deu-lhe algum desconto.
- Tenho muito gosto em permanecer no terreno e transmitir-lhe o que for surgindo - declarou Jake, agora em tom alegre. Pensar que Laura Wilcox podia correr perigo e que ele estava a colaborar na investigação para lhe descobrir o paradeiro, dava-lhe uma sensação de importância.
- Então faça isso - replicou Sam. Com relutância acrescentou: - E obrigado, Jake.
Sam premiu o botão de fim de chamada do telemóvel e balançou as pernas para fora da cama. Sabia que, pelo menos, nas próximas horas nem se colocava a questão de conseguir dormir. Tinha de informar Jean que Laura contactara com o hotel e precisava de conseguir uma ordem judicial, que lhe permitisse examinar o descritivo das chamadas telefónicas do hotel. Sabia que o Glen-Ridge tinha identificador de chamadas. Depois de obter o número de telefone, ia intimar a empresa de telecomunicações para que esta descobrisse o nome do subscritor e o local da antena que enviara a chamada.
O juiz Hagen de Goshen, no Condado de Orange, era talvez o magistrado mais próximo com autorização para emitir a ordem. Ao ligar para o gabinete do delegado distrital para obter o número de telefone de Hagen, Sam percebeu que a inquietação que sentia a respeito de Laura era tão grande que preferia interromper o sono de um juiz famoso pela sua rabugice a aguardar pela manhã seguinte para tentar descobrir o paradeiro da mulher desaparecida.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
Receando não ouvir alguma chamada quando se fosse deitar, Jean regulara o volume do telemóvel para o máximo. Sam sugerira que quem quer que a andava a contactar a respeito de Lily talvez fosse mais longe ao ponto de lhe ligar.
- Agarre-se à ideia de que toda esta situação pode ter como único objectivo extorquir-lhe dinheiro - afirmara. - Há alguém que quer que você acredite que Lily corre perigo. Esperemos que o passo seguinte seja falar consigo. Se o fizer, conseguimos localizar a chamada.
As palavras dele tinham-na tranquilizado um pouco. -Jean - acrescentara -, se se deixar paralisar pela preocupação, você irá converter-se na sua pior inimiga. Afirmou-me que não revelara a ninguém que tinha uma filha, e que em Chicago a conheciam pelo apelido de solteira da sua mãe. No entanto, alguém descobriu e isso pode ter acontecido há pouco tempo, ou há dezanove anos e meio quando a bebé nasceu. Quem sabe? Tem de se ajudar a si mesma. Tente recordar-se se viu alguém no consultório do Dr. Connors, talvez uma enfermeira ou uma recepcionista que tenha adivinhado o motivo por que você se encontrava ali, e que foi suficientemente bisbilhoteira para descobrir que lhe tinham levado a bebé. Não se esqueça que graças ao best-seler que escreveu tornou-se uma celebridade. Nas entrevistas que deu, houve alusão ao novo contrato que assinou com a sua editora. O meu palpite é que existe alguém com acesso a Lily que decidiu fazer chantagem, ameaçando a sua filha. De manhã, vou encontrar-me com o pároco de St. Thomas. Enquanto isso, Jean, vá elaborando uma lista de todas as pessoas com quem travou amizade na época, em especial alguém que pudesse ter acesso à sua ficha.
O sereno raciocínio de Sam teve o condão de dissipar o pânico que se agigantava dentro de Jean. Depois de se despedir dele, sentou-se à secretária, munida de caneta e bloco de notas, e na primeira página escreveu: CONSULTÓRIO DO DR. CONNORS.
Lembrou-se que a enfermeira do Dr. Connors era uma mulher na casa dos cinquenta, bem-disposta e de constituição robusta. Peggy. Era assim que se chamava. O último nome do apelido era irlandês e começava por um K. Kelly... Kennedy... Keegan.
Hei-de lembrar-me. Eu sei que sim, pensou.
Já era um começo.
O tocar estrídulo do telemóvel sobressaltou-a. Pegou no relógio e viu as horas. Eram quase onze.
E Laura, pensou. Se calhar, voltou.
A informação de Sam de que Laura telefonara à recepcionista devia tranquilizá-la, mas Jean detectou uma certa preocupação na voz do detective.
- Não tem a certeza de que ela se encontra bem, pois não? perguntou.
- Ainda não, mas pelo menos telefonou.
O que significa que ainda está viva, pensou Jean, e é isso que Sam está a querer dizer. Escolhendo as palavras com cuidado, indagou:
- Acha que Laura não consegue voltar para cá por um motivo qualquer?
-Jean, telefonei-lhe para a tranquilizar a respeito de Laura, mas o facto é que também me sinto apreensivo, já que as duas pessoas que ouviram o telefonema confirmaram que ela parecia aflita. Você e Laura são as únicas duas raparigas de mesa do almoço que ainda estão vivas. Até conhecermos ao certo o paradeiro dela e com quem se encontra, você precisa de ter muito, muito cuidado.
CAPÍTULO QUARENTA
Sabia que ele a ia matar. Era só uma questão de tempo. Facto incrível, depois dele sair, adormecera. A claridade escoava-se através das persianas corridas, de modo que devia ser de manhã.
E segunda-feira ou terça?, interrogou-se Laura enquanto tentava não despertar por completo.
No sábado à noite, quando tinham ali chegado, ele servira champanhe e fizera-lhe um brinde. De seguida, declarara:
- Daqui a pouco é a Noite das Bruxas. Queres ver a máscara que eu comprei?
E fora então que a colocara. Imitava a cabeça de um mocho, com uns olhos enormes e grandes pupilas negras no centro das quais se viam duas íris de um amarelo doentio, rodeadas de tufos de penugem acinzentada que se fundiam no castanho-escuro à volta do bico adunco e da boca estreita.
Desatei a rir, declarou Laura, porque julguei que era o que ele esperava que eu fizesse. Mas então pressenti que algo lhe acontecera... estava mudado. Mesmo antes de tirar a máscara e me agarrar as mãos, eu sabia que caíra numa armadilha.
Ele arrastara-a escadas acima, atara-lhe os pulsos aos tornozelos e tapara-lhe a boca com uma mordaça, tendo o cuidado de a deixar folgada para que não asfixiasse. Depois amarrara-lhe uma corda à volta da cintura e atara esta à estrutura da cama.
- Nunca leste o Mommie Dearesfí - perguntou ele. - Joan Crawford costumava amarrar os filhos à cama para os impedir de se levantarem à noite. Chamava-lhe ”sono seguro”.
Depois obrigara-a a recitar a deixa do mocho na árvore, a deixa da peça escolar. Forçara-a a repeti-la vezes sem conta, e em seguida a imitar as raparigas que se sentavam na mesma mesa ao almoço e que se riam dele.
- Todas vocês se riram de mim - afirmara. - Laura, desprezo-te. Ver-te revolve-me o estômago.
Quando se fora embora, colocara de propósito o telemóvel dele em cima do armário, dizendo:
- Laura, pensa só. Se conseguisses chegar àquele telefone, podias ligar a pedir ajuda. Mas não o faças. Se tentares livrar-te das cordas, elas esticam. Acredita na minha palavra.
Mesmo assim Laura experimentara fazê-lo, e agora os pulsos e os tornozelos latejavam-lhe de dor. Sentia a boca ressequida. Tentou humedecer os lábios. Tocou com a língua no tecido áspero da meia com a qual ele lhe tapara a boca, e experimentou o travo amargo da bílis que lhe subia à garganta. Se vomitasse, asfixiava.
Oh, meu Deus, ajuda-me por favor, pensou, entrando em pânico ao mesmo tempo que se esforçava por refrear as náuseas.
Da primeira vez em que ele voltara a aparecer, havia alguma claridade no quarto.
Deve ser sábado à tarde, calculara. Ele desamarrou-me os pulsos e deu-me sopa e um pãozinho. E deixou-me ir à casa de banho. Depois regressou muito mais tarde. Estava tão escuro que devia ser noite. Foi quando me obrigou afazer o telefonema. Porque é que está a fazer isto comigo? Porque é que não me mata simplesmente e fica o assunto resolvido?
Sentia a cabeça mais desanuviada. Quando tentou mover os pulsos e os tornozelos, o latejar doloroso converteu-se numa dor excruciante. Noite de sábado. Manhã de domingo. Noite de domingo. Agora devia ser segunda-feira de manhã. Olhou fixamente para o telemóvel. Não havia maneira de o alcançar. Se ele a deixasse voltar a telefonar, deveria arriscar-se e gritar o nome dele?
Imaginou a almofada abafando-lhe o grito mesmo antes deste lhe escapar da garganta, colando-se-lhe às narinas e à boca, sufocando-a até à morte.
Não posso, pensou Laura. Não posso. Se não o perturbar, talvez alguém se aperceba que estarei metida em sarilhos e me tente encontrar. Conseguem localisar as chamadas feitas de telemóveis. Eu sei que conseguem. São capazes de descobrir o dono deste telefone.
A esperança de que tal acontecesse era a única hipótese que lhe restava, mas dava-lhe muito pouco alívio.
Jean, pensou. Ele também a pretende matar. Dizem que uma pessoa consegue projectar os pensamentos. Vou tentar enviar os meus a Jean.
Fechou os olhos e imaginou a amiga tal como a vira ao jantar, envergando o vestido comprido azul-real. Sob a mordaça, pôs-se a mover os lábios e a dizer em voz alta:
- Jean, estou com ele. Foi ele quem matou as outras raparigas e vai matar-nos. Jean, ajuda-me. Ele trouxe-me para a minha antiga casa. Jean, encontra-me! - E começou a murmurar repetidas vezes o nome dele.
- Proíbo-te de dizeres o meu nome.
Não o ouvira voltar. Laura, apesar de ter a boca amordaçada, soltou um grito que rasgou o silêncio do quarto que fora o seu durante os primeiros dezasseis anos da sua vida.
CAPÍTULO QUARENTA E UM
Na segunda-feira de manhã, perto do amanhecer, Jean conseguiu por fim mergulhar num sono pesado mas bem merecido, povoado de imagens vagas e indefinidas de premência e desamparo que de imediato a despertaram. Mas quando ficou completamente acordada, sobressaltou-se ao reparar que eram quase nove e meia.
Ainda pensou em pedir que lhe servissem o pequeno-almoço no quarto, mas rejeitou a ideia pois considerava aquele espaço acanhado e deprimente, ainda mais carregado devido às cores sombrias das paredes, colcha e cortinas das janelas, que a faziam ansiar pela sua confortável casa em Alexandria. Há dez anos, numa venda de propriedades, adquirira uma casa com setenta anos estilo federal, de dois pisos, que durante quarenta anos pertencera ao mesmo dono, um eremita que a mantivera suja, negligenciada e em desordem. Mas apaixonara-se por ela. Os amigos tentaram dissuadi-la, afirmando-lhe que um empreendimento daqueles constituía um poço sem fundo de dificuldades financeiras, mas admitiam agora que estavam errados.
Além das caganitas de rato, do papel de parede a cair, da alcatifa manchada, dos lavatórios a pingar, e do fogão e frigorífico imundos, reparara também nos tectos altos, nas enormes janelas, nos quartos amplos e na vista espectacular para o Potomac que estava então oculto pelos ramos desordenados de árvores nunca podadas.
A compra da casa e a substituição do telhado deixaram-na sem um cèntimo, pelo que efectuara ela própria as pequenas reparações: esfregar, lavar, pintar e substituir o papel de parede. Até tivera um bónus inesperado quando ao retirar a alcatifa rasgada pusera a descoberto o soalho de parquet.
Trabalhar naquela casa foi para mim uma terapia, pensou enquanto tomava duche, lavava o cabelo e o secava com a toalha. Durante a minha infância e adolescência era num sítio assim que eu sonhava viver. A mãe era alérgica a flores e a plantas. Sorriu inconscientemente ao recordar a estufa que ficava do lado oposto à cozinha, onde todos os dias desabrochavam novas flores.
Aplicara em toda a casa as cores que considerava alegres e quentes: amarelos, azuis, verdes e vermelhos. Os amigos metiam-se com ela por não ter escolhido nem um único tom bege. O adiantamento que recebera por conta do seu último contrato permitira-lhe revestir com lambrins a biblioteca e o escritório, e também remodelar a cozinha e as casas de banho. A casa era o seu paraíso, o seu refúgio, o testemunho da concretização dos seus sonhos. E como não se situava longe de Mount Vernon, por brincadeira baptizou-a de Mount Vernon Jr.
Encontrar-se naquele hotel, e mesmo colocando de parte a sua necessidade de descobrir Lily, fê-la conjurar as reminiscências dolorosas de todos os anos que vivera em Cornwall. Fê-la sentir-se de novo a rapariguinha cujos pais eram o alvo da chacota da cidade.
Fê-la recordar-se de como se sentira tão desesperadamente apaixonada por Reed, e como após a sua morte tivera de calcar fundo o desgosto e escondê-lo de toda a gente.
Ao longo destes anos interroguei-me se cometi um erro ao desistir de Lily, pensou. O meu regresso aqui fez me compreender que sem a ajuda dos meus pais, seria impossível eu mantê-la e tratá-la como deve ser.
Enquanto secava e escovava o cabelo, percebeu que acreditava na suposição de Sam Deegan quando este afirmara que as ameaças em relação a Lily tinham apenas a ver com dinheiro.
- Jean - declarara -, pense no que lhe vou dizer. Haverá alguma pessoa com motivos para a querer magoar? Alguma vez ficou com um emprego que outra pessoa desejava? Alguma vez, como dizem os miúdos, ”foi bera” com alguém?
- Nunca - respondera ela com toda a sinceridade.
Sam tinha, de algum modo, conseguido persuadi-la de que a pessoa que andava a assediá-la em breve a contactaria para lhe extorquir dinheiro.
Mas se é por causa de dinheiro, pensou Jean, acho que alguém daqui soube que eu estava grávida e descobriu o paradeiro de quem adoptou a minha menina. E dado que houve muita conversa e publicidade à volta do convívio e que me apontaram como sendo uma das homenageadas, tal pessoa concluiu ser a altura certa para me contactar.
Olhou-se ao espelho e reparou que estava pálida. Durante o dia, por norma, maquilhava-se pouco, mas nesse momento avivou as faces com um pouco de blush e escolheu um tom de batom um pouco mais escuro do que o habitual.
Trouxera várias mudas de roupa para a eventualidade de ficar em Cornwall por mais algum tempo, e naquele dia decidiu vestir uma camisola de gola alta cor de uva e umas calças em tom cinzento-escuro.
A determinação em empreender acções para localizar o paradeiro de Lily aligeirou-lhe o fardo opressivo de se sentir de mãos e pés atados para o fazer. Colocou os brincos e deu um retoque final ao cabelo. Pousou então a escova sobre o toucador, e percebeu que esta era igual em tamanho e formato à que recebera pelo correio juntamente com os fios de cabelo de Lily.
Foi nesse momento que lhe veio à mente o nome da enfermeira que trabalhara no consultório do Dr. Connors: Peggy Kimball.
Num gesto precipitado, Jean abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira e retirou a lista telefónica. Ao folheá-la rapidamente deparou com vários apelidos Kimball, porém, decidiu experimentar primeiro o que indicava ”Kimball, Stephen e Margaret”. Já eram horas decentes para telefonar. Atendeu-a o gravador de chamadas e ouviu uma voz de mulher dizer: ”Olá. Peggy e Steve não se encontram de momento. Depois do sinal queira deixar uma mensagem e o seu número de telefone que depois ligamos-lhe.”
Será que ao fim de vinte anos consegues recordar-te de uma voz ou será que desejas apenas lembrar-te dessa voz?, interrogou-se Jean, escolhendo as palavras com mil cuidados: ”Peggy. Daqui fala Jean Sheridan. Se era enfermeira no consultório do Dr. Connors há vinte anos, é da maior importância que eu fale consigo. Peço-lhe o especial favor de me ligar para o número que lhe indico, logo que lhe seja possível. Os meus agradecimentos.”
Folheou então a lista até à palavra ”C”. Se ainda fosse vivo o Dr. Edward Connors teria agora, pelo menos, setenta e cinco anos. Provavelmente a sua mulher teria perto disso. Sam Deegan pretendia falar dela ao pároco de St. Thomas, mas talvez o seu nome ainda constasse da lista. O médico vivera em Winding Way e havia uma Sr.a Dorothy Connors nessa rua. Esperançada, Jean marcou o número. Atendeu a voz cristalina de uma mulher idosa. Alguns minutos depois quando desligou o telefone, Jean combinara com a Sr.a Dorothy Connors visitá-la nessa manhã às onze e trinta.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS
Na segunda-feira de manhã, às dez e meia, Sam Deegan encontrava-se no gabinete de Rich Stevens, o delegado distrital do Condado de Orange, a comunicar-lhe o desaparecimento de Laura Wilcox e a ameaça que pairava sobre Lily.
- À uma da madrugada de hoje, dei ordem para me facultarem o descritivo das chamadas telefónicas da Casa Glen-Ridge - declarou. - Tanto a recepcionista como aquele miúdo de Stonecroft garantiram que foi Laura Wilcox a autora do telefonema, mas ambos também foram unânimes em afirmar que ela parecia perturbada. Os registos do hotel indicam que se tratou de um número com o indicativo 917, pelo que já sabemos que usou um telemóvel para efectuar a ligação. O juiz ficou muito irritado por eu lhe ter interrompido o sono na noite passada.
”Já entreguei a intimação para divulgarem o nome e a morada do subscritor, mas tenho de esperar pelas nove horas que é a altura em que a empresa de telecomunicações abre ao público.
- A partir dos registos descobriu alguma coisa? - inquiriu Stevens.
- O tipo de informação que me leva a crer que Laura Wilcox corre perigo. O telemóvel é daqueles que se compram com cem minutos de chamadas grátis e que depois deixam de ser operacionais.
- Do género dos que os traficantes de droga e os terroristas usam - replicou Stevens.
- Ou, neste caso, um presumível raptor. A localização da célula é em Beacon no Condado Dutchess e bem sabe que abrange uma vasta área. Já falei com os nossos técnicos e disseram-me que existem mais duas centrais eléctricas em Woodbury e New Windsor. Se ocorrer mais alguma chamada, podemos fazer a triangulação da mesma e assinalar a localização da sua origem. Também o podíamos fazer no caso do telemóvel se manter activado, mas infelizmente tal não aconteceu.
- Nunca deixo o meu telemóvel ficar com a bateria descarregada - observou Stevens.
- Eu também não e o mesmo acontece com a maioria das pessoas. Esse é mais um dos motivos que levam a crer que Laura Wilcox foi obrigada a fazer a chamada. Pois se possui telefone próprio registado em seu nome, porque não havia de usá-lo e por que motivo não está agora a utilizá-lo?
Em seguida expôs as medidas que pretendia tomar:
- Quero obter o cadastro de todos os finalistas que compareceram à reunião - declarou -, tanto homens como mulheres. A maioria já não vinha cá há vinte anos. Talvez desenterremos qualquer coisa do passado de um deles, descubramos que alguém tem um historial de violência ou foi internado em algum reformatório. Quero que sejam contactados os familiares das cinco mulheres que morreram e que se costumavam sentar ao almoço na mesma mesa, a fim de verificar se existe algo de suspeito nos óbitos. Também estamos a tentar contactar os pais de Laura. Estão a fazer um cruzeiro.
- Cinco mulheres de uma única mesa de almoço e uma sexta desaparecida - observou Stevens, incrédulo. - Se não existir nada de suspeito é porque passou despercebido. Se eu fosse a si, começava pela última. É tão recente que se a Polícia de Los Angeles estiver ao corrente do que aconteceu às outras mulheres, talvez reconsiderem o facto de terem classificado a morte de Alison Kendall como devida a afogamento. Vou pedir os relatórios policiais sobre todos os casos.
- A secretária de Stonecroft vai enviar a lista dos finalistas que compareceram à reunião, assim como a lista das outras pessoas que se encontravam no jantar - respondeu Sam. - Possuem os endereços e os números de telefone de todos os finalistas e, pelo menos, de algumas das pessoas da cidade que compareceram. Claro que houve pessoas que pagaram mesa e não forneceram nomes, de modo que precisamos de tempo extra para descobrir quem são. - Exausto, Sam não conseguiu reprimir um bocejo.
A sensação de perigo iminente que transmitiu ao delegado distrital foi tão premente que Rich Stevens se absteve de sugerir ao seu investigador veterano que tirasse algumas horas para dormir. Em vez disso, declarou:
- Sam, ponha alguns dos outros detectives a efectuar os trâmites iniciais. Aonde é que vai agora?
Sam esboçou um sorriso pesaroso.
- Tenho uma entrevista marcada com um padre - replicou e espero que seja ele a confessar-se.
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS
A descoberta do corpo de Helen Whelan constituiu para a imprensa um furo jornalístico. O desaparecimento, quarenta e oito horas antes, da popular professora merecera uma ampla cobertura, mas agora a confirmação do seu assassínio assumia o cariz de uma história que merecia figurar nas primeiras páginas, já que também deixara em estado de alarme as pequenas cidades do vale do Hudson.
O facto do seu cão ter sido barbaramente atacado e da trela ainda se encontrar enrolada à volta do pulso da vítima quando o corpo fora descoberto, veio dar voz à hipótese de um assassino fortuito ou em série, que poderia andar a monte por aquela localidade que, por norma, constituía um manancial de história e de tradição.
Ao longo da noite de domingo, o Mocho mergulhara num sono intermitente. Após a primeira visita que fizera às dez e meia a Laura, conseguira repousar durante algumas horas. Depois a visita de madrugada dera-lhe a satisfação de a reduzir a um farrapo trémulo e lamuriento que lhe suplicava misericórdia - misericórdia que ela lhe negara quando andavam na escola, lembrara-lhe. Após a segunda visita, tomara um duche prolongado, na esperança de que a água quente lhe aliviasse a dor horrível que lhe latejava no braço. A ferida resultante da dentada do cão ameaçava infectar. Ainda parara na velha farmácia onde costumava ir em miúdo, mas saíra de imediato. Estivera quase para comprar água oxigenada, pomadas bactericidas e ligaduras, mas ocorrera-lhe que os polícias não eram forçosamente estúpidos e que teriam, provavelmente, notificado as farmácias locais para observarem se alguém comprara esse tipo de produtos farmacêuticos.
Optou por recorrer a uma das grandes cadeias de supermercados e comprou artigos para a barba, pasta de dentes, vitaminas, bolachas de água e sal, biscoitos salgados, gasosas e depois, num momento de inspiração, acrescentara cosméticos, um creme nutritivo, uma loção hidratante e um desodorizante. Só então é que atirara para o meio dos produtos aquilo que lhe fazia falta, ou seja, água oxigenada, ligaduras e pomadas.
Esperava não estar a ficar com febre. Sentia o corpo quente e a cara afogueada. Na ânsia de encher o carrinho de compras com toda aquela tralha inútil que serviria de camuflagem, esquecera-se de incluir aspirinas. Mas podia comprá-las em qualquer lado sem nenhum risco.
A toda a hora as pessoas têm dores de cabeça, pensou, sorrindo para si mesmo.
Aumentou o volume do televisor. Estavam a mostrar imagens da cena do crime. Observou com atenção como esta parecia coberta de lama. Não se recordava do local ser tão lamacento. O que poderia significar que as marcas dos pneus do carro que alugara tinham ficado ali incrustadas. Seria mais sensato guardá-lo na garagem da casa onde ia prorrogando o prazo da morte de Laura. Alugaria outro veículo preto de preço módico, tamanho médio e discreto. Desse modo, se por qualquer motivo alguém começasse a bisbilhotar e verificasse os carros do grupo presente na reunião, o seu estaria safo.
Enquanto o Mocho escolhia um casaco do armário, surgiu no ecrã uma notícia de última hora: ”O jovem repórter da Academia Stonecroft em Cornwall-on-Hudson, revela que o desaparecimento da actriz Laura Wilcox pode estar relacionado com o que ele designou por ”O Assassino Em Série da Mesa do Almoço”.
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO
- Monsenhor, considero não ser de mais realçar-lhe o carácter urgente do nosso pedido - dizia Sam Deegan a monsenhor Robert Dillon, pároco da igreja de St. Thomas of Canterbury. Encontravam-se no gabinete da sacristia. O monsenhor, um homem magro com o cabelo prematuramente grisalho e óculos sem aros que lhe iluminavam os olhos cinzentos e inteligentes, encontrava-se sentado à secretária, com os faxes que Jean recebera espalhados à sua frente. Numa cadeira oposta à secretária, Sam voltara a guardar num saco de plástico a escova de Lily.
- Como pode verificar, o último fax sugere que a filha da Dr.a Jean Sheridan corre um risco sério. O nosso objectivo é tentar localizar a cédula de nascimento original, mas nem sequer temos a certeza se foi lavrada aqui ou em Chicago onde a bebé nasceu - prosseguiu Sam.
Enquanto falava, percebeu que se era inútil fazer com que o sacerdote lhe concedesse uma breve trégua e não se mostrasse renitente. Monsenhor Dillon não contava mais que quarenta anos. Era óbvio que há vinte anos, quando Lily fora provavelmente baptizada naquela igreja, não se encontrava lá e, claro, também havia a hipótese de os pais adoptivos registarem a bebé com o apelido deles e o novo nome de baptismo.
- Entendo a urgência e estou certo de que compreende por que devo mostrar-me cauteloso - replicou monsenhor Dillon em tom arrastado. - Mas, Sam, o principal problema é que deixou de ser obrigatório as pessoas registarem os filhos nas semanas ou meses posteriores ao nascimento. Antigamente, um bebé era baptizado seis semanas após o parto. Agora já gatinham quando vêm receber o sacramento. Não aprovamos tal costume, mas o facto é que existe e já vigorava há vinte anos. Trata-se de uma paróquia muito grande e muito dinâmica, e aqui são baptizados não só os próprios paroquianos como também os netos destes.
- Compreendo, mas se pudesse começar a partir dos três meses anteriores ao nascimento de Lily, talvez isso nos permitisse pelo menos tentar localizar os bebés do sexo feminino. Quando se trata de adopções, a maioria das pessoas faz questão de guardar sigilo, não é?
- Regra geral, não, sentem é orgulho em ser pais adoptivos.
- Então, a menos que sejam os próprios pais adoptivos os autores dos faxes endereçados à Dr.a Jean Sheridan, acho que iam querer que os informassem que a filha se encontra possivelmente em perigo.
- Sim, iam. Vou mandar a minha secretária compilar a lista, mas precisa de compreender que antes de lha entregar, tenho de me avistar pessoalmente com as pessoas incluídas na mesma, e explicar-lhes apenas que nesta altura há uma rapariga adoptada que talvez corra perigo.
- Monsenhor, isso é capaz de levar tempo, precisamente aquilo que nos falta - protestou Sam.
- O padre Arella pode colaborar comigo. Vou mandar a secretária fazer os telefonemas e enquanto falo com um dos visados, ela avisa o seguinte para estar atento à minha chamada. Não demora assim tanto.
- E aqueles que não conseguir contactar? Monsenhor, esta jovem de dezanove anos pode correr um sério perigo.
Monsenhor Dillon pegou no fax e o rosto toldou-se-lhe de preocupação.
- Sam, conforme afirmou, essa última mensagem é assustadora, mas precisa de entender por que motivo temos de ser cautelosos. A fim de nos salvaguardarmos quanto a possíveis questões do foro judicial, arranje um mandato. Desse modo ficávamos em condições de lhe divulgar de imediato os nomes. Mas sugiro-lhe que me permita contactar com o maior número possível de famílias.
- Obrigado, monsenhor. Por ora, não lhe roubo mais tempo. Levantaram-se ambos.
- Ocorreu-me que o autor dos faxes aprecia Shakespeare - observou monsenhor Dillon. - Não há por aí muita gente que se lembrasse de uma citação tão obscura para descrever os lírios.
- Também me ocorreu, monsenhor. - Sam fez uma pausa e acrescentou: - E esqueci-me de lhe fazer logo no início a seguinte pergunta: algum dos padres que foi destacado para aqui aquando do presumível baptizado da filha da Jean ainda trabalha para a diocese?
- O padre Doyle era o pároco assistente e já morreu há alguns anos. Monsenhor Sullivan era na época o pároco, mas mudou-se para a Florida com a irmã e o cunhado. Posso dar-lhe o último endereço que temos dele.
- Ficava-lhe grato.
- Está mesmo aqui na gaveta do arquivo. Vou já dar-lho. - O sacerdote abriu a gaveta, retirou um dossiê, estudou-o e anotou num pedaço de papel um nome, um endereço e um número de telefone. Estendeu-o a Sam e acrescentou: - A viúva do Dr. Connors é nossa paroquiana. Se quiser, posso telefonar-lhe a solicitar-lhe que o receba. Talvez se lembre de alguma coisa a respeito da adopção.
- Obrigado, mas não é necessário. Mesmo antes de vir para cá falei com Jean Sheridan. Ela encontrou a morada da Sr.a Connors na lista telefónica e por esta altura é bem capaz de já ir a caminho para se encontrar com ela.
Quando se encaminhavam para a porta, monsenhor Dillon deteve-se.
- Sam - disse - ocorreu-me agora uma coisa. A Alice Sommers também é nossa paroquiana. Você é o investigador que continuou a trabalhar no caso da filha?
- Sou.
- Ela falou-me a seu respeito. Espero que esteja ciente de que a reconfortou bastante saber que não desistiu de tentar localizar o assassino de Karen.
- Fico satisfeito em saber que a ajudei. Alice Sommers é uma mulher muito corajosa.
Ao chegarem junto à porta, monsenhor Dillon observou:
- Fiquei em estado de choque quando esta manhã ouvi na rádio que tinham encontrado o corpo da mulher que andava a passear o cão. O seu departamento está envolvido neste caso?
- Estamos, sim.
- Pelo que entendi, à semelhança de Karen Sommers, parece que se tratou de um homicídio aleatório e que também foi esfaqueada até à morte. Sei que não vai considerá-lo plausível, mas acha que existem hipóteses de haver alguma relação entre os dois assassínios?
- Monsenhor, Karen Sommers morreu fez agora vinte anos - replicou Sam com circunspecção. Não pretendia revelar-lhe que tal suposição lhe revolvia a mente, sobretudo porque as feridas resultantes das facadas se localizavam exactamente na mesma região do tórax.
- É melhor eu deixar a parte da investigação a seu cargo - disse monsenhor, abanando a cabeça. - Foi só uma ideia que me ocorreu, mas como está tão envolvido no caso Sommers, achei que lho devia referir. - Abriu a porta da entrada, apertou a mão de Sam e acrescentou: - Sam, que Deus o abençoe. Vou ver se nos conseguimos despachar a coligir os nomes, e logo que os tiver entrego-lhos.
- Obrigado, monsenhor. Veja se reza por Lily e, já agora, lembre-se de Laura Wilcox.
- A actriz?
- Sim. Receamos que também esteja metida em apuros. Desde a noite de sábado que ninguém mais a viu.
Monsenhor Dillon ficou a observar Sam enquanto este se afastava. Laura Wilcox esteve na reunião em Stonecroft, pensou incrédulo. Ter-lhe-á acontecido também alguma coisa? Deus do Céu, mas que se passa aqui?
Cheio de fervor, dirigiu uma prece silenciosa a Deus, rogando-lhe que velasse por Laura e Lily. Em seguida, voltou para o gabinete e ligou à secretária.
- Janet, agradeço que interrompa tudo o que estiver a fazer, e me arranje as cédulas de baptismo de há dezanove anos, do período compreendido entre Março e Junho inclusive. Logo que o padre Arella voltar, diga-lhe que tenho uma incumbência para ele e que cancele os planos que fez para o dia de hoje.
- Claro, monsenhor. - Janet desligou o telefone e olhou com tristeza para a sanduíche de queijo fundido e bacon, e para o bule de café que tinham acabado de pousar sobre a sua secretária. Empurrou a cadeira para trás, levantou-se e, entredentes, resmungou mal-humorada: - Santo Deus, pelo tom da voz dele até parece que é uma questão de vida ou de morte.
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO
Dorothy Connors era uma frágil septuagenária, e Jean reparou de imediato que a idosa sofria de artrite reumatóide. Movia-se com lentidão e tinha os nós dos dedos todos inchados. Rugas de dor sulcavam-lhe o rosto e usava o cabelo branco muito curto, talvez porque levantar os braços lhe exigia um enorme esforço, assim pensou Jean.
A casa dela ficava numa das cobiçadas propriedades com vista para o Hudson. Convidou Jean a acompanhá-la até à sala de estar soalheira onde, conforme explicou, passava quase todo o tempo em que se mantinha acordada.
Ao referir-se ao marido, os seus olhos vivos e castanhos reluziram.
- Edward foi o homem, marido e médico mais encantador que existiu à face da terra - declarou. - Aquele incêndio pavoroso, e a perda do consultório e de todos os arquivos é que lhe provocaram o enfarte.
- Sr.a Connors, expliquei-lhe ao telefone que tenho vindo a receber ameaças que dizem respeito à minha filha, que tem agora dezanove anos e meio. Ando num frenesim a tentar descobrir o paradeiro dos seus pais adoptivos, a fim de os alertar para o facto de ela poder correr perigo. Cresci nesta cidade. Por favor, ajude-me. O Dr. Connors falou-lhe a meu respeito? Não me admira que o fizesse. A minha mãe e o meu pai com as suas zaragatas em público eram o alvo de chacota da cidade, e só permaneceram juntos até me enxotarem para a faculdade. Foi por isso que o seu marido compreendeu que eu não podia esperar nenhuma ajuda deles. Forjou a história de eu ir trabalhar um ano para Chicago e justificar assim a minha ausência. Até foi ele quem assistiu pessoalmente o parto da bebé na sala de urgências da clínica.
- Sim, ele fez isso em relação a inúmeras raparigas. Queria ajudá-las a preservar a privacidade. Jean, há cinquenta anos não era fácil para uma rapariga ter um bebé fora do matrimónio. Sabia que a actriz Ingrid Bergman foi denunciada no Congresso quando deu à luz um filho ilegítimo? Os padrões de comportamento mudam... para melhor ou para pior, você é que decide. Hoje em dia a maioria das pessoas não liga absolutamente nada ao facto de uma mãe solteira gerar um filho e o criar, porém, o meu marido era antiquado. Há vinte anos fazia absoluta questão de salvaguardar a privacidade das jovens grávidas que recorriam aos seus serviços, até mesmo de mim. Até você mo dizer nunca soube que era doente dele.
- Mas sabia o que se passava com os meus pais. Dorothy Connors fitou Jean durante um longo instante.
- Sabia que tinham problemas - respondeu. - Também os via na igreja e conversei imensas vezes com eles. Minha querida, o que eu acho é que você apenas se recorda dos maus momentos. Os seus pais também eram pessoas atraentes e inteligentes, que tiveram o azar de não se dar bem.
Jean sentiu-se atingida pelo remoque e, facto estranho, percebeu que ficara na defensiva.
- Que não foram talhados um para o outro isso posso-lhe eu garantir - replicou, esperando que a voz não traísse a cólera que experimentava. - Sr.a Connors, ficaria muito satisfeita se em breve me permitisse visitá-la de novo, mas agora não me posso demorar. A minha filha talvez corra perigo de vida. Bem vejo como é ciosa em relação à memória do Dr. Connors, mas se sabe quem é a família de acolhimento que ele arranjou à minha filha, a sua obrigação é ser honesta para comigo e para com ela.
-Juro-lhe por tudo o que há de mais sagrado que Edward nunca falava comigo a respeito das doentes na sua situação, e que nunca o ouvi mencionar o seu nome.
- Ele não guardava nenhum arquivo em casa, e todos os que se encontravam no consultório desapareceram?
- Sim, desapareceram todos. O edifício ficou completamente destruído e chegaram a suspeitar de fogo posto, mas nunca ficou provado. De certeza que não escapou ficheiro nenhum.
Como se tornava evidente que Dorothy Connors não podia ajudá-la, Jean levantou-se.
- Lembrei-me que quando recorria ao Dr. Connors a enfermeira que trabalhava no consultório chamava-se Peggy Kimball. Deixei-lhe uma mensagem e só espero que ela me ligue, pois talvez saiba qualquer coisa - disse. - Obrigada, Sr.a Connors. Por favor, não se levante. Eu descubro onde é a saída.
Estendeu a mão a Dorothy Connors e ficou chocada ao reparar que o rosto da outra mulher assumira uma expressão que só podia qualificar-se de extremo alarme.
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS
À uma hora, Mark Fleischman entrou no quarto que reservara na Casa Glen-Ridge, descarregou a bagagem, telefonou a Jean mas não obteve resposta, desceu e encaminhou-se para a sala de jantar. Ficou surpreendido e agradado ao avistar Jean sentada a uma mesa de canto sozinha, e com passadas rápidas foi ao seu encontro.
- Estás à espera de alguém ou gostavas de ter companhia? perguntou-lhe, notando que a expressão sombria que lhe toldava o rosto dava lugar a um sorriso caloroso.
- Mark, que surpresa! Claro que te podes sentar. Acabei de mandar vir o almoço e ninguém tenciona fazer-me companhia.
- Então considera-te acompanhada - respondeu ele, sentando-se na cadeira oposta. - Por engano deixei no porta-bagagem a pasta com o telemóvel lá dentro, e por isso só na noite passada quando arrumava as coisas é que ouvi a tua mensagem. Hoje logo de manhã, liguei para o hotel e a recepcionista informou-me que Laura ainda não voltara, e que a Polícia andava a verificar o descritivo das chamadas. Foi quando decidi alterar os meus planos de trabalho e regressar. Apanhei um avião e depois aluguei um carro.
- Foi muito simpático da tua parte - respondeu Jean em tom sincero. - Estamos raladíssimos por causa de Laura. - E fez-lhe um breve resumo dos acontecimentos desde que ele se fora embora na véspera, depois do almoço de despedida.
- Disseste que voltaste para o hotel acompanhada por Sam Deegan, o homem com quem na noite passada estavas a tomar uma bebida, e que quando soubeste que Laura desaparecera ele deu início a uma investigação? - perguntou Mark.
- Sim - replicou Jean, notando a curiosidade estampada no rosto do amigo e o seu desejo de saber antes de mais por que motivo Sam Deegan a acompanhara. - Sam veio comigo porque eu ia dar-lhe uma coisa que a nossa amiga Alice Sommers estava interessada em ver.
Alice está interessada em ver osfaxes, disse para consigo, por isso não é bem uma mentira.
Ao fitar Mark e ao ler-lhe a preocupação estampada nos olhos, sentiu desejo de desabafar com ele a respeito de Lily, perguntar-lhe se, como psiquiatra, considerava as ameaças genuínas ou se se tratava de alguém a fazer chantagem com ela.
- Estão prontos para escolher a ementa? - chilreou a empregada.
- Sim, obrigada.
Decidiram-se ambos por uma sanduíche mista e um chá.
- Café ao pequeno-almoço, chá ao almoço e para iniciar o jantar um copo de vinho - observou Mark. - Notei que também gostas da rotina, Jeannie.
- Acho que sim.
- Este fim-de-semana reparei numa data de coisas a teu respeito e fizeram-me recordar os anos que passámos em Stonecroft.
- O quê, por exemplo?
- Bom, na escola sempre foste muito esperta. E também muito calada. E lembro-me de seres muito meiguinha... nisso não mudaste. Depois ocorreu-me uma coisa que aconteceu no nosso ano de caloiros, quando eu andava mesmo em baixo e tu foste amorosa comigo.
- Não me lembro.
- Não vou entrar em pormenores, mas a verdade é que foste, e também admirava a maneira como mantinhas a cabeça erguida quando andavas incomodada por causa dos teus pais.
- Nem sempre - replicou Jean, sentindo-se retrair no íntimo, ao lembrar-se das vezes que desatava a chorar na aula por causa da tensão que as zaragatas entre os pais lhe provocavam.
Foi como se me lesse a mente, reparou, enquanto Mark prosseguia: - Um dia quando estavas desanimada tentei que aceitasses o meu lenço, mas tu limitaste-te a abanar a cabeça e com um lenço de papel todo ensopado puseste-te a esfregar energicamente os olhos. Nessa altura, quis ajudar-te e quero fazê-lo agora. A vinda do aeroporto, ouvi na rádio que aquele fedelho armado em repórter que andou atrás de nós durante a reunião falou aos meios de comunicação daquilo que designou como: ”O Assassino Em Série da Mesa do Almoço.” Mesmo que não estejas preocupada com a hipótese, eu estou. E desaparecendo Laura, das raparigas apenas restas tu.
- Quem me dera que as preocupações que tenho fossem só por minha causa - replicou Jean.
- Então o que te preocupa? Vá, Jean, conta lá. Formei-me para detectar a tensão nas pessoas, e a pessoa que eu vi sob tensão foste tu naquela noite quando falavas com Sam Deegan, que me disseste agora tratar-se de um detective do gabinete do delegado distrital.
O empregado de mesa apareceu e encheu-lhe os copos com água, permitindo a Jean alguns instantes de reflexão.
Lembro-me de Mark insistir para que aceitasse o lenço, pensou. Sentia-me tão furiosa comigo mesma por estar a chorar e ao mesmo tempo danada com ele por reparar. Nessa altura quis ajudar-me e também o quer fazer agora. Devo falar-lhe a respeito de Uly?
Viu que ele a observava e soube que estava à espera de a ver desabafar.
Quer que me abra com ele. Devo fazê-lo? - pensou, retribuindo-lhe o olhar. E daqueles homens que tem bom aspecto, com ou sem óculos. Possui uns olhos castanhos encantadores, com aquelas pintinhas amarelas que lembram o Sol.
Encolhendo os ombros, franziu o sobrolho.
- Fazes-me lembrar um professor que tive na faculdade que, quando fazia alguma pergunta, se punha a olhar fixamente para o aluno até este dar a resposta - respondeu.
- É exactamente o que estou a fazer, Jean. Um dos meus doentes chama-lhe o meu olhar sábio de mocho.
O empregado aproximou-se da mesa trazendo as sanduíches.
- Já trago o vosso chá - anunciou risonho.
Jean aguardou até que lhe servissem o chá e, de seguida, declarou baixinho:
- O teu olhar sábio de mocho convenceu-me, Mark. Acho que vou contar-te a respeito de Lily.
CAPÍTULO QUARENTA E SETE
Chegado ao escritório, a primeira medida que Sam Deegan tomou foi ligar ao delegado distrital de Los Angeles e solicitar-lhe que o pusesse em contacto com Carmen Russo, a investigadora que chefiara o inquérito à morte de Alison Kendall.
- O veredicto foi morte acidental por afogamento, e não vimos motivos para o pôr em causa - informou-o Carmen Russo. - As amigas dela foram unânimes em declarar que todas as manhãs bem cedo ela ia dar umas braçadas. A porta que dava para a casa estava aberta, mas não faltava nada. O conjunto de jóias valiosas continuava em cima do toucador. Na carteira, havia quinhentos dólares em dinheiro e vários cartões de crédito. Era uma mulher extremamente metódica. Por toda a casa não se via um único objecto fora do lugar, nem no jardim, nem tão-pouco na casa da piscina. Excepto o facto de estar morta, encontrava-se de perfeita saúde, possuía um coração forte e não revelava a presença de álcool nem de drogas.
- Algum indício de violência? - indagou Sam.
- Uma pequena equimose no ombro, mais nada. Sem provas, não há fundamentos que sugiram que se tratou de homicídio. Claro que tirámos fotografias, mas depois entregámos o corpo.
- Sim, bem sei. As cinzas dela foram enterradas aqui, no talhão da família - replicou Sam. - Carmen, obrigado - agradeceu, reparando que estava relutante em desligar. - O que se está a passar em casa dela? - acrescentou.
- Os pais dela vivem em Palm Springs e a idade já começa a pesar-lhes. Pelo que ouvi dizer, continuam a pagar à empregada de Alison para que trate da casa até arranjarem forças para se deslocarem até cá e proceder à venda do imóvel. Dinheiro não lhes faltará. Localizada como está, a casa vale bem uns milhões de dólares.
Desmoralizado, Sam desligou o telefone. O instinto gritava-lhe que Alison Kendall não morrera de causas naturais. Ao salientar que as cinco mulheres da mesma turma de Stonecroft que tinham morrido se sentavam à mesma mesa de almoço, Jake Perkins acertara em algo, isso podia Sam garantir. Mas dado que a morte de Alison Kendall não levantara suspeitas, como é que ele ia ter sorte a tentar estabelecer um padrão de homicídio em relação às outras quatro que tinham morrido ao longo de um período de quase vinte anos?
Ouviu o telefone tocar - era Rich Stevens, o delegado distrital.
- Sam, graças ao linguarudo do Perkins, fomos obrigados a convocar uma conferência de imprensa e fazer algumas declarações. Venha até cá para juntos combinarmos o que devemos dizer.
Decorridos cinco minutos, já no gabinete de Stevens, puseram-se a discutir a melhor forma de rechaçar a investida dos meios de comunicação.
- Acreditamos na possível existência de um assassino em série. Temos de fazer com que o tipo se sinta a salvo - argumentou Sam. Vamos contar-lhes as coisas como são. Que a morte de Alison Kendall foi consequência de um afogamento acidental, que mesmo sabendo que as outras quatro mulheres que em tempos tinham sido amigas chegadas tinham morrido, a Polícia de Los Angeles não descobriu nada de suspeito quanto ao óbito de Alison. Que Laura Wilcox telefonou para o hotel a informar que não tinha planos definitivos. Que o facto dela parecer nervosa não passa de uma mera conjectura por parte de uma recepcionista do hotel. Que ela é adulta com direito à sua privacidade e deve ser tratada como tal. Que andamos a proceder a averiguações quanto à morte das outras mulheres que anos atrás se sentavam à mesma mesa ao almoço, mas que se torna evidente que os acidentes que lhes roubaram a vida... ou, no caso de Gloria Martin, o ter-se suicidado... não indicam nenhum padrão que sugira a hipótese de um assassino em série.
- Acho que um comunicado desses nos faz parecer bastante simplórios - observou sem rodeios Rich Stevens.
- Eu quero que passemos por papalvos - ripostou Sam. Quero que quem anda por aí a monte nos considere uma cambada de imbecis. Caso Laura ainda se encontre viva, antes de termos uma hipótese de a salvar não me interessa que o tipo entre em pânico.
Ouviu-se uma pancada na porta. Era um dos jovens investigadores novatos da equipa que sem esconder a excitação, declarou:
- Chefe, examinámos os dossiês pessoais dos finalistas de Stonecroft que compareceram à reunião e somos capazes de ter descoberto algo a respeito de um deles... o Joel Nieman.
- Que tem ele? - inquiriu Stevens.
- Quando andava no último ano interrogaram-no por causa do cacifo de Alison Kendall, que fora arrombado. Tinham retirado os parafusos das dobradiças de modo que quando ela abriu a porta, esta caiu-lhe em cima, deitando-a ao chão e provocando-lhe uma ligeira concussão.
- Porque é que foi interrogado? - indagou Sam.
- Porque o tipo ficou muito aborrecido com um artigo que ela escrevera para o jornal da escola. A peça anual dos finalistas era o Romeu e julieta. Nieman fazia o papel de Romeu e Kendall escreveu algo muito mauzinho sobre o facto de ele não ser capaz de se lembrar das deixas. O tipo, que se orgulhava de citar Shakespeare de cor, andou pela escola toda a dizer o que é que gostaria de lhe fazer se pudesse. Depois contou a toda a gente que o problema tivera a ver com alguns segundos de terror do palco, e não com o facto de se esquecer das deixas. Logo a seguir a isso, ela apanhou com a porta do armário em cima.
”E há também outra coisa - acrescentou o jovem detective. O tipo possui um génio dos diabos e depois de umas quantas rixas em bares já foi parar à cadeia. No ano passado, arriscou-se a ser processado por causa de umas trafulhices contabilísticas e a mulher está quase todo o tempo ausente, tal como agora.
Eu e monsenhor Dillon reparámos no facto do sujeito que anda a contactar Jean por causa de Uly ter citado um soneto obscuro de Shakespeare, reflectiu Sam.
Levantando-se, declarou:
- ”Romeu, ó Romeu, onde estás tu, Romeu?”
Vendo Rich Stevens e o jovem investigador fitarem-no embasbacados, acrescentou:
- É exactamente o que vou tentar descobrir de imediato. Depois veremos quantas mais frases de Shakespeare será o Joel Nieman capaz de nos recitar.
CAPÍTULO QUARENTA E OITO
Às seis e meia, o Mocho voltou à casa e subiu lentamente as escadas. Desta vez, Laura pressentiu a sua presença ou calculou que ele a iria visitar, pois quando entrou no quarto e fez incidir a luz sobre ela, verificou que ela tremia.
- Viva, Laura - sussurrou. - Ficaste contente com o meu regresso?
Respirava emitindo sons ásperos e cavos. Reparou que ela tentava encolher-se comprimindo-se contra o colchão.
- Laura, não me respondeste. Ora vamos lá afrouxar-te a mordaça. Melhor do que isso, vou tirar-ta. Trouxe-te alguma coisa para comeres. Então conta-me, ficaste contente por eu regressar?
- Si-sim, fiquei contente - sussurrou ela.
- Laura, estás a gaguejar. Surpreendes-me, tu, que ridicularizas as pessoas que gaguejam. Mostra-me como as ridicularizas. Não, deixa lá. Não me posso demorar. Trouxe-te uma sanduíche com manteiga de amendoim e compota, e um copo de leite. Na preparatória costumavas comer isso todos os dias, lembras-te?
- Sim... sim.
- Fico contente por te lembrares. É importante não esquecermos o passado. Agora vou deixar-te usar a casa de banho. Depois podes comer a sanduíche e beber o leite.
Com um gesto brusco empurrou-a para uma posição de sentada, e desamarrou as cordas que lhe manietavam os pulsos. O movimento foi tão rápido que Laura balançou-se e estendeu a mão. Inadvertidamente, aflorou o braço do Mocho.
Ele soltou um arquejo de dor e cerrou o punho, preparando-se para a agredir, mas depois conteve-se.
- Não podias saber que eu tinha o braço inflamado. Não devo virar-me contra ti. Mas nunca mais me toques no braço. Entendido?
Laura aquiesceu com a cabeça.
- Levanta-te. Depois de ires à casa de banho, deixo-te sentar na cadeira e comer.
Com passos cautelosos e vacilantes, Laura obedeceu. A claridade da noite que se escoava para dentro da casa de banho permitiu-lhe entrever as torneiras do lavatório e abri-las. Com um gesto apressado, borrifou a cara e as mãos com água e alisou o cabelo.
Se ao menos conseguisse permanecer viva, pensou. Têm de andar à minha procura. Por favor, meu Deus, permite que eles andem à minha procura.
Viu a maçaneta da porta girar e a voz dele chegou-lhe aos ouvidos.
- Laura, chegou a hora.
Chegara a hora! Seria que ele a ia matar naquele momento? Deus do Céu... por favor...
A porta abriu-se e o Mocho apontou para a cadeira junto ao toucador. Em silêncio, Laura avançou até esta, arrastando os pés, e sentou-se.
- Vá lá - insistiu ele. - Começa a comer. - Pegando na lanterna, apontou-lha para o pescoço a fim de poder observar-lhe a expressão do rosto sem a encadear. Ficou satisfeito por ver que começara de novo a chorar.
- Laura, estás cheíinha de medo, não estás? E aposto que te interrogas como é que eu sabia que me ridicularizavas. Deixa-me contar-te a história. Fez este fim-de-semana vinte anos, alguns de nós viemos das respectivas faculdades passar uns dias a casa e certa noite combinámos sair juntos. Ora bem, como tu sabes, nunca fiz parte do rebanho, do círculo mais selecto. Para falar com franqueza, nem de longe. Por um motivo qualquer fui convidado para a festa e tu estavas lá. Laura, a rainha da beleza. Nessa noite, sentaste-te ao colo do Dick Gormley, a tua última conquista, a nossa estrela de basebol da altura. Eu sentia o meu coração em fanicos, Laura, tal a maluquice que ainda tinha por ti.
”É claro que Alison também se encontrava na festa - prosseguiu. - Completamente bêbeda. Chegou-se ao pé de mim. Nunca gostei dela. Aqui para nós, receava a língua dela... era uma víbora quando nos escolhia como alvo. Lembrou-me que nesse início do último ano do secundário, eu tivera o desplante de te pedir para saíres comigo. ”Tu...”, disse ela com um arquejo trocista e desatando a rir. ”O Mocho a pedir a Laura para sair.” Em seguida, a Alison demonstrou-me como me imitavas quando andávamos no preparatório e fazíamos a peça. ”Eu sou uuuuuummmm... mo... ccchhhooooo... e... e... vivo... numa... numa...”
Laura, a imitação que fizeste da minha pessoa deve ter sido estupenda. Alison garantiu-me que as raparigas que almoçavam contigo à mesma mesa desatavam aos guinchos e às gargalhadas sempre que se lembravam da cena. E depois contaste-lhes que eu era tão imbecil que antes de fugir do palco até molhara as calças. Até isso lhes contaste.
Enquanto falava ia observando Laura, que mordiscava a sanduíche. Viu-a então deixá-la tombar no colo.
- Desculpa... - balbuciou ela.
- Laura, ainda não compreendeste que estes vinte anos que viveste te foram emprestados. Eu explico. Na noite da festa, também eu me embriaguei. Fiquei tão bêbedo que até me esqueci que mudaras de casa. Nessa noite, vim até aqui para te matar. Sabia que a tua família escondia a chave suplementar debaixo do tapete de imitação de pele de coelho, que havia no pátio das traseiras. Os novos proprietários também a guardavam aí. Entrei nesta casa e subi até este quarto. Avistei as madeixas de cabelo na almofada e julguei que eras tu. Laura, quando esfaqueei Karen cometi um erro. Era a ti que eu matava, Laura. Era a ti que eu estava a matar!
Na manhã seguinte - prosseguiu - acordei com a sensação vaga de que me encontrara aqui. Depois descobri o que acontecera e percebi que me tornara famoso. - Ao evocar a recordação, o Mocho começou a falar com uma voz trémula de excitação. - Não conhecia Karen Sommers. Ninguém sonharia sequer em relacionar-me com ela, mas o erro libertou-me. Compreendi nessa manhã que detinha o poder sobre a vida e a morte. E desde então passei a exercê-lo. Desde então, Laura. Sobre mulheres de todo o país.
Levantou-se. Os olhos de Laura mostravam-se dilatados de pavor; mantinha a boca escancarada e a sanduíche jazia-lhe no colo. Inclinando-se para ela, acrescentou:
- Agora preciso de ir, mas pensa em mim, Laura. Pensa como tens sido afortunada por beneficiares de um bónus de vinte anos de vida.
Atou-lhe as mãos com movimentos bruscos e selvagens, amordaçou-lhe a boca, arrastou-a para fora da cadeira, atirou-a para cima da cama e amarrou-lhe a corda comprida à volta do corpo.
- Começou neste quarto e aqui terminará, Laura - declarou. Está prestes a desenrolar-se o último capítulo. Adivinha como será.
Dizendo isto, foi-se embora. No exterior, via-se o clarão da Lua, e da cama Laura conseguiu entrever em cima do toucador os contornos esbatidos do telemóvel.
CAPÍTULO QUARENTA E NOVE
Às seis e meia, Jean encontrava-se no quarto do hotel quando recebeu por fim o tão ansiado telefonema. Era de Peggy Kimball, a enfermeira que trabalhara para o Dr. Connors quando ela era doente deste.
- Sr.a Sheridan, deixou-me uma mensagem que parecia muito urgente - declarou Peggy com vivacidade. - Que se passa?
- Peggy, conhecemo-nos há vinte anos. Fui doente do Dr. Connors e ele tratou da adopção sigilosa da minha bebé. Preciso de falar consigo sobre isso.
Durante um longo momento, Peggy Kimball permaneceu em silêncio. Aos ouvidos de Jean chegaram vozes de crianças vindas do pátio das traseiras.
- Lamento, Sr.a Sheridan - replicou, por fim, a enfermeira com uma entoação peremptória na voz. - Simplesmente não posso falar das adopções que o Dr. Connors teve a seu cargo. Se pretende localizar a sua filha, deve recorrer aos meios legais para o fazer.
Jean percebeu que a mulher fazia menção de desligar.
-Já contactei com o Sam Deegan, um investigador do gabinete do delegado distrital - apressou-se a responder. - Recebi três faxes cujo teor nos leva a crer que constituem uma ameaça à segurança da minha filha. Precisamos de avisar os pais adoptivos para que redobrem as precauções em relação a ela. Por favor, Peggy. Naquela altura foi tão bondosa para comigo. Por favor, ajude-me agora. Suplico-lhe.
Foi interrompida por um grito alarmado de Peggy:
- Tommy, estou-te a avisar. Não atires com esse prato! Jean ouviu o ruído de louça a estilhaçar-se
- Oh, Deus do céu! - exclamou Peggy Kimball, dando um suspiro. - Olhe, Sr.a Sheridan, estou a tomar conta dos meus netos e neste momento é-me impossível falar.
- Peggy, posso encontrar-me consigo amanhã? Então mostro-lhe os faxes que recebi a ameaçar a minha filha. Pode tirar informações a meu respeito. Sou decana e professora de História na Universidade de Georgetown. Vou dar-lhe o número de telefone do reitor da faculdade e também o contacto de Sam Deegan.
- Betsy, Tommy, não se aproximem desse copo! Espere lá... Por acaso não é a Jean Sheridan que escreveu o Livro a respeito da Abigail Adams?
- Sou, sim.
- Esta agora! Adorei. Sei tudo a seu respeito. Vi-a no programa Today com a Katie Couric. Vocês podiam ser irmãs. Amanhã de manhã ainda está no Glen-Ridge?
- Sim.
- Trabalho no hospital, na ala dos recém-nascidos. O Glen-Ridge fica em caminho. Receio não poder ajudá-la, mas por volta das dez quer beber uma chávena de café comigo?
- Adorava - disse Jean. - Peggy, obrigada, obrigada.
- Quando chegar ao átrio, ligo-lhe - respondeu apressadamente Peggy Kimball, e de seguida acrescentou em tom de alarme:
- Betsy, estou a avisar-te. Não puxes o cabelo ao Tommy! Oh, meu Deus! Desculpe lá, Jean, isto aqui está a ficar uma confusão. Vemo-nos amanhã.
Jean pousou lentamente o auscultador.
Devo parecer masoquista, pensou, e louca, mas de certa forma invejo Peggy Kimball. Invejo-a por ter problemas normais comuns às pessoas normais. Pessoas que se preocupam com os netos e têm de limpar bebés sujos, comida derramada e pratos quebrados. Pessoas que podem avistar-se com as filhas e tocar-lhes, dizer-lhes que guiem com cuidado e que estejam em casa por volta da meia-noite.
Encontrava-se sentada à secretária do quarto do hotel quando a enfermeira telefonara. Espalhadas diante de si, viam-se as listas que tentara compilar e que se referiam sobretudo aos nomes das pessoas com quem na clínica travara amizade, mas também aos dos professores da Universidade de Chicago com quem nos tempos livres tirara cursos extracurriculares.
Pôs-se a massajar as têmporas, na esperança de que o latejar que prenunciava uma dor de cabeça desaparecesse. Dali a uma hora, às sete e meia, a pedido de Sam, iam jantar juntos numa sala privada do mezanino do hotel.
Os convivas somos eu, Cárter, Gordon, Mark e Robby, pensou, e, claro está, Jack, o presidente da malfadada reunião. Que pretende Sam conseguir ao nos voltar a reunir a todos de novo?
Percebeu que desabafar com Mark constituíra uma bênção. Lembrava-se da expressão que se lhe estampara nos olhos quando dissera:
- Estás a querer dizer que no dia da formatura, com dezoito anos, enquanto subias ao palco para receber a medalha de História e uma bolsa de estudo para Bryn Mawr, sabias que esperavas um bebé e que o tipo que amavas jazia numa urna?
- Não espero elogios nem censuras por causa disso - respondera-lhe.
- Jean, pelo amor de Deus! Não te estou a censurar nem a elogiar - replicara ele. - Mas deve ter sido um calvário. Eu costumava ir até West Point para correr e vi-te uma ou duas vezes com Reed Thornton, mas não fazia a mínima ideia de que se tratava de mais do que uma simples amizade. Depois da cerimónia de formatura o que fizeste?
- Almocei com a minha mãe e o meu pai. Foi um almoço bastante festivo. Agora que tinham cumprido o seu dever de cristãos podiam divorciar-se, sem pesos na consciência. Depois de sairmos do restaurante, segui para West Point. O funeral de Reed decorrera naquela manhã, e depositei na campa dele as flores que os meus pais me tinham oferecido na cerimónia de formatura.
- E passado pouco tempo avistaste-te pela primeira vez com o Dr. Connors?
- Na semana a seguir.
- Jeannie - observara Mark -, achei sempre que, tal como eu, eras uma sobrevivente, mas não consigo imaginar o que deves ter sofrido, sozinha e numa altura daquelas.
- Não estou sozinha. Acho que na época alguém teve conhecimento ou descobriu.
Aquiescendo com a cabeça, Mark replicou:
- Li muita coisa a respeito da tua vida profissional, mas como anda a tua vida pessoal? Há ou houve alguém especial com quem possas ter desabafado?
Ocorreu a Jean a resposta que dera:
- Mark, lembra-te das palavras do poema de Robert Frost: ”Mas eu tenho promessas a honrar E milhas a percorrer antes que o sono me embale...” De certo modo é o que sinto. Até agora, quando tinha vontade de falar de Lily, não havia uma única pessoa com quem quisesse desabafar a respeito dela. Tenho uma vida muito preenchida. Adoro a minha profissão, adoro escrever. Tenho imensos amigos, tanto homens como mulheres. Mas vou ser-te franca. Senti sempre que na minha existência havia algumas pontas soltas que eu precisava de unir, a sensação de que a minha vida ficaria em suspenso. Impõe-se que termine algo antes de poder pôr isto para trás das costas. Acho que começo a entender a razão para tal. Ainda me interrogo se não devia ter ficado com a bebé, e agora que a minha filha talvez necessite de mim sinto-me tão impotente. Queria que o tempo recuasse para eu ter a oportunidade de ficar com ela.
Reparara então na expressão do rosto de Mark, que parecia querer dizer: Ou será que forjaste todo este cenário porque necessitas de a ver? Ele até poderia ter gritado a pergunta. Mas ouvira-o replicar:
-Jean, é claro que deves prosseguir com os teus esforços e fico contente por Sam Deegan te estar a ajudar, pois é óbvio que lidas com um indivíduo desequilibrado. No entanto, como psiquiatra, aviso-te que deves proceder com muito tacto. Se por causa dessas ameaças veladas conseguires o acesso a ficheiros confidenciais, é possível que te estejas a intrometer na vida de uma jovem que não está preparada nem deseja conhecer-te.
- Achas que sou eu que ando a enviar faxes a mim própria, não achas? - respondeu Jean, estremecendo ao lembrar-se em como ficara tão furiosa quando percebera que algumas pessoas tinham chegado a essa conclusão.
- Claro que não - replicara Mark prontamente. - Mas responde-me a isto. Se neste preciso instante recebesses uma chamada e te pedissem que te encontrasses com Lily, tu ias?
- Ia, claro.
- Jean, presta atenção ao que te vou dizer. Alguém que, não sabemos como, tomou conhecimento da existência de Lily, pode estar deliberadamente a causar-te uma situação de extrema ansiedade para que fiques vulnerável e vás a correr atirar-te para os braços da tua filha. Jean, precisas de ter cautela. Laura desapareceu e as outras raparigas que se sentavam àquela mesa morreram.
Dizendo isto, foi-se embora.
Jean levantou-se. Dali a quarenta minutos, tinha de descer para o jantar. Pensou que uma aspirina talvez lhe aliviasse os primeiros sintomas da dor de cabeça, e que um banho quente a revigoraria.
Às sete e dez quando se preparava para sair da banheira, o telefone tocou. Ficou indecisa sem saber se devia deixá-lo tocar, e de seguida agarrou numa toalha e precipitou-se para o quarto.
- Está?
- Olá, Jeannie! - exclamou uma voz bem-disposta. Laura! Era Laura.
- Laura, onde estás?
- Num sítio a divertir-me imenso. Jeannie, diz a esses polícias para pegarem nos casacos e irem-se embora. Nunca me diverti tanto na vida. Em breve telefono-te. Adeus, queriducha.
CAPÍTULO CINQUENTA
Na segunda-feira à tarde, Sam foi ao escritório de Joel Nieman em Rye, Nova Iorque, a fim de o interrogar.
Nieman, depois de o deixar pendurado quase meia hora na recepção, convidou-o a entrar na sua suite particular de luxo que, decididamente, era de grande categoria. O sujeito revelou uns modos que mal disfarçavam o seu aborrecimento por aquela interrupção.
Cá para mim não se parece nada com Romeu, pensou Sam enquanto observava as feições rechonchudas e o cabelo castanho arruivado de Nieman.
Este, quando questionado, negou com ar displicente a insinuação de que durante o convívio combinara sair com Laura.
- Ouvi na rádio aquele disparate do assassino da mesa do almoço - replicou. - Acho que quem o divulgou foi Perkins, o tal repórter da escola. Deviam mandá-lo para a Sibéria para ver se cresce. Oiça, eu andava na mesma turma que aquelas raparigas. Conhecia-as todas. É um absurdo essa ideia de haver alguma relação entre as mortes. Não vamos mais longe, veja o caso de Catherine Kane. Quando andávamos no primeiro ano da faculdade o carro dela caiu ao Potomac. Cath teve sempre a mania de conduzir toda desarvorada. Se examinar a quantidade de multas por excesso de velocidade que apanhou em Cornwall quando andava no último ano do secundário, vai perceber o que eu quero dizer.
- É possível - replicou Sam -, mas não acha que é coincidência a mais o relâmpago atingir a mesma árvore, não duas mas cinco vezes?
- Claro que foi bastante macabro ocorrer a morte de cinco raparigas que se sentavam à mesma mesa, mas se eu lhe apresentasse o tipo que faz a manutenção dos nossos computadores, ele contava-lhe que fez agora uns trinta anos a mãe e a avó morreram no mesmo dia vítimas de um ataque cardíaco fulminante. No dia a seguir ao Natal. Talvez verificassem que tinham gasto balúrdios nos presentes e ficassem desvairadas. Podia acontecer, não acha?
Sam fitou Joel Nieman com uma indisfarçável aversão, mas pressentindo simultaneamente que sob aquela exibição de desdém havia muito pouco à-vontade.
- Soube que na manhã de sábado, a sua mulher abandonou a reunião porque partia em viagem de negócios.
- É verdade.
- Na noite de sábado depois do jantar do grupo, encontrava-se sozinho em casa, Sr. Nieman?
- Com efeito, encontrava-me. Aquelas reuniões saudosistas fazem-me sono.
O tipo não é daqueles que com a mulher ausente fica em casa sozinho, pensou Sam. E arriscou um tiro no escuro.
- Sr. Nieman, viram-no deixar o parque de estacionamento com uma mulher dentro do carro.
Arqueando o sobrolho, Joel Nieman retorquiu:
- Ora, talvez fosse com uma mulher, mas garanto-lhe que não era nenhuma à beira de se tornar quarentona. Sr. Deegan, se me está a tentar sacar alguma coisa porque Laura saiu com um tipo qualquer e desapareceu, sugiro-lhe que ligue ao meu advogado. E agora, se me dá licença, tenho uma série de telefonemas para fazer.
Sam levantou-se e dirigiu-se para a porta com o passo arrastado de quem obviamente não está com pressa. Ao passar pela estante, deteve-se e olhou para a prateleira do meio.
- Sr. Nieman - observou -, tem aqui uma bela colecção de Shakespeare.
- Sempre apreciei o Bardo.
- Ouvi dizer que em Stonecroft quando andava no último ano do secundário fez o papel de Romeu.
- É verdade.
Escolhendo com todo o tacto as palavras, Sam inquiriu: -Alison Kendall não fez uma crítica à sua actuação?
- Afirmou que eu me esquecera das deixas. Não foi isso que aconteceu. Tive um ou dois instantes de medo do palco e ponto final!
- Poucos dias depois da peça, Alison sofreu um acidente na escola, não foi?
- Lembro-me disso. A porta do cacifo caiu-lhe em cima. Os rapazes foram todos interrogados. Sempre achei que também deviam perguntar às raparigas, pois a maioria não a suportava. Olhe, isto não nos leva a parte nenhuma. Disse e repito, punha as mãos no fogo em como as mortes das outras quatro raparigas da mesa foram acidentes. Não há nenhum padrão que as relacione. Por outro lado, Alison era uma miúda maldosa. Espezinhava as pessoas. Pelo que li a respeito dela, nunca mudou, por isso entendo por que motivo há quem tenha concluído que no dia em que se afogou andou a nadar tempo de mais.
Dirigiu-se para a porta e sem rodeios, abriu-a.
- ”Vamo-nos deitar que os convidados querem ir-se embora” declarou. - Também é de Shakespeare.
Sam esperou ter o profissionalismo suficiente para não deixar transparecer no rosto o que pensava a respeito de Nieman e a forma displicente como este falara da morte de Alison Kendall.
- Há também um provérbio dinamarquês segundo o qual ao fim de três dias o peixe e os convidados fedem - observou.
Em especial convidados mortos, pensou.
- Benjamim Franklin é que tornou essa frase famosa - apressou-se Joel Nieman a responder.
- Está familiarizado com as citações de Shakespeare a respeito de lírios murchos? - inquiriu Sam. - É porque há uma no mesmo estilo.
Nieman soltou uma gargalhada que mais parecia um ganido irritante e triste.
- ”Os lírios podres cheiram pior que as ervas daninhas” - recitou. - É uma frase de um dos seus sonetos. É claro que conheço. Com efeito, vem-me com frequência à cabeça. A minha sogra chama-se Lily.
Sam saiu de Rye rumo à Casa Glen-Ridge a uma velocidade que considerava excessiva, permitindo ao ponteiro do velocímetro girar para valores elevados. Solicitara aos homenageados e a Jack Emerson para se encontrarem com ele às sete e meia, para jantar. O instinto gritara-lhe aos altos berros que um dos cinco homens - Cárter Stewart, Emerson, Gordon, Amory, Mark Fleischman ou Robby Brent - constituía a chave para o desaparecimento de Laura. Agora, depois de interrogar Joel Nieman, já não tinha tanta certeza.
Com efeito, Nieman admitira que na noite do jantar não fora sozinho para casa. Em Stonecroft haviam-no considerado o principal suspeito do incidente com o cacifo. Quase fora parar à cadeia por agredir um homem por causa de uma zaragata num bar. Não fizera nenhuma tentativa para ocultar a satisfação que sentia por Alison Kendall ter morrido.
No mínimo, Joel Nieman está a precisar de uma investigação mais exaustiva, reflectiu Sam.
Eram exactamente sete e trinta quando o detective entrou na Casa Glen-Ridge. Quando se dirigia para a sala privada, passou por Jake Perkins, que estava esparramado numa das cadeiras do átrio. Ao vê-lo, o rapaz levantou-se de um pulo.
- Sr. Deegan, há novidades? - replicou em tom alegre. Mesmo que houvesse, eras o último a saber, pensou Sam, conseguindo, no entanto, não deixar transparecer na voz como ficara incomodado.
- Nada a relatar, Jake - retorquiu. - Porque não vai para casa?
- Vou daqui a pouco. Oh, lá vem a Dr.a Sheridan. Gostava que ela me concedesse um minutinho.
Jean estava a sair do elevador. Mesmo àquela distância Sam reparou que havia nela algo que lhe sugeriu aflição. Era a maneira como cruzava rapidamente o átrio e se dirigia para a sala de jantar. Aquela sensação de ameaça iminente levou-o a estugar o passo e ir no seu encalço.
Encontraram-se junto à porta da sala de jantar.
- Sam, recebi notícias de... - começou Jean a dizer. Mas reparando em Jake Perkins, calou-se.
Contudo, Perkins ouvira.
- Dr.a Sheridan, de quem é que recebeu notícias? De Laura WiIcox? - perguntou-lhe.
- Ponha-se a mexer - interveio Sam com firmeza. Pegando no braço de Jean, puxou-a para dentro da sala de jantar e com um gesto brusco fechou a porta.
Cárter Stewart, Gordon Amory, Jack Emerson, Mark Fleischman e Robby Brent já lá se encontravam. Tinham montado um pequeno bar e os cinco homens encontravam-se à volta deste, de copos na mão. Ao ouvirem a porta dar um estalido viraram-se, mas ao repararem na expressão do rosto de Jean, renunciaram às saudações que pretendiam dirigir-lhe.
- Laura acabou de me telefonar - anunciou ela. - Laura acabou de me telefonar.
Ao longo do jantar, o alívio inicial que todos sentiram foi dando lugar à incerteza.
- Quando ouvi a voz de Laura fiquei em estado de choque referiu Jean. - Mas antes que eu lhe pudesse perguntar o que quer que fosse, desligou.
- Parecia nervosa ou transtornada? - inquiriu Jack Emerson.
- Não. Parecia, sim, muito animada. Mas não me deu a oportunidade de lhe fazer uma única pergunta.
- Tens a certeza de que falaste com Laura? - indagou Gordon Amory, verbalizando a pergunta que Sam sabia ter atravessado a mente de todos.
- Eu acho que era - respondeu Jean num tom arrastado. Mas se me pedissem para afirmar sob juramento que se tratava de Laura, era-me impossível fazê-lo. Parecia ela, mas... - Hesitando, acrescentou: - Tenho um casal de amigos na Virginia que ao telefone possuem a mesma voz. Estão casados há cinquenta anos e o timbre contínua idêntico. Quando eu digo ”Olá, Jane”, David ri-se e responde: ”Tenta de novo.” É claro que passados uns instantes de conversa consigo distinguir-lhes as diversas entoações. Passou-se algo do género com o telefonema de Laura. A voz era a mesma, mas talvez não fosse exactamente a dela. Não falámos o tempo suficiente para eu confirmar.
- Embora a questão seja esta: se o telefonema veio de Laura e ela sabia que a consideravas desaparecida, porque é que não foi um pouco mais específica quanto aos seus planos? - inquiriu Gordon Amory. - Não me admirava nada que aquele fedelho do Perkins, só para manter o furo jornalístico, tentasse uma palhaçada do género. Durante vários anos, Laura apareceu numa série televisiva. Possui uma voz peculiar. Quem sabe se um estudante chamado Perkins não andou a imitá-la, armado em actor dramático.
- Sam, que acha? - inquiriu Mark Fleischman.
- Se quer saber a resposta de um polícia, então digo-lhe que não fiquei satisfeito, independentemente de ter sido ou não Laura Wilcox a autora do telefonema.
- Também concordo - replicou Fleischman aquiescendo com a cabeça.
Cárter Stewart ia cortando o bife com gestos enérgicos.
- Há outro factor que deve ser tido em conta - interveio. Laura é uma actriz em declínio. Soube, por acaso, que dentro de pouco passará a fazer parte do número dos sem-abrigo.
Passou o olhar pela mesa e assumiu um ar satisfeito ao ver a expressão de surpresa estampada na cara dos outros.
- O meu agente telefonou - acrescentou. - O L. A. Times de hoje publicou na secção de negócios um pequeno escândalo. As Finanças vão penhorar a casa de Laura para pagamento de uma dívida dela ao fisco.
Fez uma pausa, levou o garfo à boca e prosseguiu:
- O que significa que Laura é capaz de estar desesperada. Para uma actriz, a publicidade é a sua imagem de marca. Boa publicidade, má publicidade, na verdade vai dar tudo no mesmo. Faz o que for necessário para que o nome dela continue a figurar nos cabeçalhos. Talvez esta fosse a estratégia de Laura.. Desaparecimento misterioso. Telefonema misterioso. Para vos ser franco, acho que todos nós estamos a desperdiçar tempo ao preocuparmo-nos por causa dela.
- Nunca me passou pela cabeça que te ralasses com o que lhe acontecesse, Cárter - observou Robby Brent. - Acho que à excepção de Jean, a única pessoa que talvez se preocupe realmente é o nosso presidente, Jack Emerson. Estou certo ou estou errado, Jack?
- Que quer dizer? - questionou Sam em voz alta. Robby esboçou um sorriso inocente.
- Esta manhã, eu e Jack encontrámo-nos para ir ver alguns imóveis nos quais talvez me interesse investir ou, pelo menos, colocar a hipótese de investimento no caso do preço não ser exorbitante. Quando cheguei a casa dele, Jack estava ao telefone e enquanto esperava que ele enfiasse o barrete a uns quantos papalvos, pus-me a examinar a colecção de fotografias que ele tem na sala de estar. Numa fotografia de Laura havia uma dedicatória toda lamechas com a data de há duas semanas. ”Amor, beijos e chi-corações para o meu colega de turma preferido.” E isso leva-me a perguntar, Jack. Quantos chi-corações e beijos te deu ela ao longo do fim-de-semana e quantos mais te anda a dar?
Por um instante, Jean julgou que Jack Emerson fazia intenção de agredir Robby Brent. Emerson levantou-se de um pulo, bateu com ambas as mãos na mesa e fitou demoradamente Robby. Depois, num esforço notório para se controlar, cerrou os dentes e voltou a sentar-se lentamente na cadeira.
- Se não fosse termos uma senhora entre nós - disse baixinho - usava o tipo de linguagem que faz o teu género, meu desgraçado, meu canalha. Talvez enriquecesses à custa de meter a ridículo pessoas que singraram na vida, mas pelo que me toca, continuas a ser o mesmo atrasado e palerma que eras quando andávamos em Stonecroft, e não conseguias encontrar o caminho para a casa de banho.
Jean, consternada com toda aquela agressividade grosseira, percorreu com os olhos a sala a fim de confirmar que nenhum empregado se encontrava presente e presenciara o assomo de cólera de Jack Emerson. Quando os seus olhos se detiveram na porta, reparou que esta estava entreaberta. Não restavam dúvidas quanto à identidade da pessoa que, com o ouvido colado à porta, bebia cada palavra da conversa.
Ela e Sam entreolharam-se. O detective levantou-se e declarou:
- Se me dão licença, acho que dispenso o café. Preciso de localizar uma chamada telefónica.
CAPÍTULO CINQUENTA E UM
Peggy Kimball era uma mulher com cerca de sessenta anos e formas generosas que irradiava entusiasmo e inteligência. Possuía cabelo grisalho naturalmente ondulado e uma pele que, salvo as rugas à volta da boca e dos olhos, era aveludada. Jean ficou de imediato com a impressão de se tratar de uma pessoa sem papas na língua a quem dificilmente aldrabavam.
Ambas recusaram a ementa e mandaram vir café.
- Só há uma hora é que a minha filha foi buscar os miúdos - declarou Peggy - e às sete, ou seriam seis e meia?, comi cereais e bebi cacau com eles. - Sorrindo, acrescentou: - Ao telefone, ontem à noite, deve ter pensado que era uma casa de malucos, não?
- Dou aulas a uma turma do primeiro ano de faculdade - replicou Jean. - Às vezes penso que os alunos parecem mais agarotados que os bebés que começam a aprender a andar, e pode crer que conseguem tornar-se mais barulhentos.
A empregada apareceu e serviu-lhes café. Peggy Kimball fitou os olhos de Jean e o seu ar brincalhão desvaneceu-se.
-Jean, recordo-me de si - declarou. - O Dr. Connors tratou de inúmeras adopções para ajudar raparigas na sua situação. Eu sentia pena de si pois era das poucas que ia sempre sozinha ao consultório. A maioria das jovens fazia-se acompanhar por um dos pais ou por um adulto que se preocupava com elas, às vezes até o pai da criança, que por norma não passava também de um adolescente assustado.
- Isso já lá vai - replicou Jean baixinho -, mas agora encontramo-nos aqui porque sou uma adulta preocupada com a rapariga de dezanove anos que é minha filha, e que talvez precise de ajuda.
Sam Deegan ficara com os faxes originais, mas ela tirara fotocópias destes bem como do relatório do ADN, que confirmava que os fios de cabelo encontrados na escova pertenciam a Lily. Retirou-os da mala e mostrou-os à enfermeira.
- Peggy, imagine que se tratava da sua filha - disse. - Não ficava transtornada? Não considerava tudo isto uma ameaça? - acrescentou, fitando a outra mulher nos olhos.
- Sim, achava.
- Peggy, sabe quem foi que adoptou a Lily?
- Não, não sei.
- Deve ter havido um advogado para tratar da papelada. Sabe qual foi o advogado ou o escritório de advogados a quem o Dr. Connors recorreu?
Peggy hesitou e em seguida declarou lentamente:
- Jean, duvido que no seu caso houvesse um advogado implicado.
Está com medo de me contar algo, pensou Jean.
- Peggy - insistiu em voz alta -, poucos dias antes da menina nascer, o Dr. Connors apanhou um avião para Chicago e foi ele que assistiu o parto e levou a minha Lily, horas depois da bebé nascer. Sabe se ele registou o nascimento em Chicago ou aqui?
A enfermeira olhou pensativa para a chávena de café que segurava e depois voltou a fitar Jean.
- Quanto ao seu caso em particular, não sei, Jean, mas tenho conhecimento de que às vezes o Dr. Connors preenchia a cédula de nascimento já em nome dos pais adoptivos, como se tivesse sido a mulher a mãe biológica.
- Mas isso é ilegal! - protestou Jean. - Não tinha o direito de o fazer!
- Concordo que não, mas o Dr. Connors possuía um amigo que sabia que era adoptado, e passou a maior parte da vida adulta a tentar localizar a família biológica. Embora os pais adoptivos o amassem profundamente e o tratassem tal qual os filhos biológicos, para ele tornou-se uma obsessão. O Dr. Connors afirmava que fora uma pena terem-lhe dito que era adoptado.
- Está então a insinuar que talvez não exista a certidão de nascimento original e nenhum advogado implicado? Lily é capaz de acreditar que as pessoas que a adoptaram são os pais biológicos dela!
- É possível, sobretudo porque o Dr. Connors apanhou um voo para Chicago a fim de ser ele a assistir ao parto. Ao longo dos anos mandou várias raparigas para aquela clínica de Chicago, o que regra geral significava que na cédula de nascimento não incluía o nome da mãe biológica. Jean, precisa de entender mais uma coisa. É possível que o nascimento da Lily não tivesse sido obrigatoriamente registado nem aqui nem em Chicago. Talvez o fizessem em Connecticut ou em Nova Jérsia como um ”parto em casa”, por exemplo. O Dr. Connors era bem conhecido na localidade por tratar de adopções particulares.
Inclinou-se sobre a mesa e, num gesto impulsivo, agarrou na mão de Jean.
- Jean - disse -, na altura falou comigo. Lembro-me de dizer que queria que a sua bebé fosse feliz e amada, e que desejava que crescesse na companhia de uma mãe e de um pai que se adorassem um ao outro, e que também considerassem a menina o seu raio de Sol. Estou certa de que referiu a mesma coisa ao Dr. Connors. Quem sabe se, de certo modo, ele achou que respeitava o seu desejo ao poupar a Lily o desejo de a descobrir.
Jean sentiu que lhe fechavam com estrépito enormes portas metálicas na cara.
- Só que agora tenho de a encontrar - disse com lentidão, com as palavras a embargarem-se-lhe na garganta. - Tenho de a encontrar. Peggy, insinuou que o Dr. Connors não tratava de todas as adopções da mesma forma.
- Não, não tratava.
- Então quer dizer que para algumas recorria a um advogado?
- Recorria, sim. Chamava-se Craig Michaelson. Ainda exerce, mas há alguns anos mudou-se para Highland Falis. Estou certa de que sabe onde fica a localidade.
Highland Falis era a cidade mais próxima de West Point.
- Sim, sei onde fica - replicou Jean.
Peggy bebeu um último gole de café e declarou:
- Preciso de ir... daqui a meia hora, começo o meu turno no hospital. Quem me dera ter-lhe sido útil, Jean.
- Talvez fosse - replicou Jean. - Mantém-se a questão de alguém ter descoberto a existência de Lily, e quem sabe se não aconteceu quando eu estava grávida. Havia mais alguém a trabalhar no consultório do Dr. Connors que pudesse ter acesso aos ficheiros?
- Não - replicou Peggy. - O Dr. Connors guardava-os fechados a sete chaves.
A empregada trouxe o talão da conta, Jean assinou-o e as duas mulheres encaminharam-se para o átrio. Jack Emerson encontrava-se sentado numa cadeira junto ao balcão da recepção, com um jornal no colo. Acenou com a cabeça a Jean enquanto esta se detinha à porta para se despedir de Peggy, e quando passou por ele a caminho do elevador, deteve-a.
- Jean, há mais alguma notícia da Laura?
- Não.
Jean sentiu-se curiosa com a presença de Jack Emerson no hotel. Por certo que depois daquela zaragata horrível da véspera, ele não desejava esbarrar com Robby Brent. Em seguida, as palavras do homem levaram-na a interrogar-se se ele lhe conseguia ler os pensamentos.
- Quero pedir desculpa pela discussão que tive na noite passada com Robby - declarou Emerson. - Espero que tenhas percebido que foi uma insinuação reles da parte dele. Não pedi a Laura que me desse a fotografia. Escrevi-lhe a solicitar que aceitasse ser uma das homenageadas da reunião e ela enviou-ma juntamente com um bilhetinho a confirmar a sua presença. É bem possível que mandasse pelo correio milhares dessas fotografias publicitárias e em todas elas escrevesse a mesma dedicatória dos chi-corações, beijos e amor.
Será que Jack Emerson está a pôr-me aprova a verse engulo a explicação da fotografia da sala de estar?, interrogou-se Jean. Não o podia asseverar.
- É possível que tenhas razão - respondeu em tom displicente.
- Bom, agora se me dás licença, estou com pressa. - Fez uma pausa, sentindo a curiosidade espicaçá-la. - Parece que estás à espera de alguém - acrescentou.
- Afinal Gordie, isto é Gordon, sempre me pediu para o levar a ver algumas propriedades. Não gostou de nenhuma fotografia das que lhe mostraram ontem lá no clube. Tenho exclusivos de uns quantos locais que dariam uma sede excelente.
- Boa sorte. Oh, aí vem o elevador. Até logo, Jack.
Jean dirigiu-se apressada para o elevador e aguardou que algumas pessoas saíssem. A última foi Gordon Amory.
- Já soubeste mais notícias de Laura? - inquiriu este ao passar por ela.
- Não.
- Está bem. Mantém-me informado.
Jean entrou no elevador e carregou no botão para o seu piso. Craig Michaelson, pensou. Mal chegue ao quarto, vou ligar-lhe.
Peggy Kimball, depois de sair do hotel, entrou no carro e apertou o cinto de segurança. Franzindo o sobrolho, tentou lembrar-se de quem era o homem que no átrio cumprimentara Jean Sheridan.
É claro, pensou. É Jack Emerson, o tipo da imobiliária que há dez anos, depois do nosso edifício ter ardido, comprou o imóvel.
Meteu a chave na ignição e ligou-a.
Jack Emerson, reflectiu com desprezo. Na altura correu o boato de que se calhar tinha alguma coisa a ver com o incêndio. Não só queria a propriedade como também se soube que conhecia o prédio como a palma da mão. Quando andava no secundário, ganhava dinheiro para custear as despesas trabalhando umas tardes por semana com a equipa que fazia a limpeza do prédio. Será que isso aconteceu na altura em que Jean começou a consultar o Dr. Connors?, interrogou-se Peggy. Fazíamos sempre com que as marcações para estas raparigas coincidissem com o fim da tarde para que não se encontrassem com as outras doentes. Quem sabe se Emerson não a viu e somou dois mais dois?
Começou a fazer marcha-atrás para sair do parque de estacionamento.
Jean queria que a informasse de todas as pessoas que trabalhavam no consultório, reflectiu. Talvez valha a pena referir-lhe Jack Emerson, embora eu fosse jurar que nem ele nem mais ninguém tiveram alguma vez acesso àqueles ficheiros.
CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS
O resultado da intimação assinada por Sam Deegan para a empresa de telecomunicações lhe facultar o descritivo das chamadas recebidas, a fim de apurar o local de origem do telefonema de Laura para Jean, foi idêntico ao da noite anterior. A segunda chamada de Laura provinha do mesmo tipo de telemóvel - daqueles que podem ser comprados com cem minutos de telefonemas grátis e não exigem o nome do subscritor.
Na manhã de terça-feira, às onze e cinquenta, Sam encontrava-se no gabinete do delegado distrital a fim de lhe comunicar o ponto da situação.
- O telemóvel que a Wilcox usou no domingo à noite não era o mesmo - declarou a Rich Stevens. - Este foi comprado no Condado de Orange, com o indicativo 845. Eddie Zarro anda pela área de Cornwall a investigar as lojas que os vendem. Claro que foi desactivado, tal como o que Laura utilizou para na tarde de domingo entrar em contacto com a recepção de Glen-Ridge.
Fazendo girar uma caneta entre os dedos, o delegado replicou:
- Jean Sheridan não ficou cem por cento certa de estar a falar com Laura Wilcox?
- Não, não ficou.
- E a enfermeira... qual é o nome dela, Peggy Kimball?,... declarou a Jean que a adopção que o Dr. Connors efectuara para a bebé dela fora ilegal?
- É o que a Sr.a Kimball acha.
- O pároco de St. Thomas já deu notícias a respeito das certidões de baptismo?
- Até agora não conseguiram nada. Tiveram muita sorte porque conseguiram contactar com pessoas que naquele período de três meses tinham baptizado os filhos, mas não conseguiram descobrir nenhum caso de pais que admitissem que o filho era adoptado. Monsenhor Dillon, o pároco, é um homem esperto. Telefonou a antigos paroquianos que ali viveram há vinte anos. Conheciam famílias que adoptaram crianças, mas nenhuma destas era uma rapariga que hoje teria dezanove anos e meio.
- Monsenhor Dillon continua a tratar do assunto?
Sam pôs-se a esfregar a cabeça e voltou a lembrar-se que Kate costumava dizer-lhe que aquilo enfraquecia as raízes do cabelo. Concluiu ser sintomático da fadiga que sentia a lembrança de Kate dar de repente lugar à de Alice Sommers. Parecia que em vez de dois dias já não estava com ela há duas semanas. Contudo, desde a madrugada de quinta-feira quando Helen Whelan fora dada como desaparecida que tudo saíra dos eixos.
- Sam, monsenhor Dillon continua a investigar os arquivos? insistiu Rich Stevens.
- Desculpe lá, Rich. Parece que por um instante andei a divagar. A resposta é sim, e também contactou algumas das paróquias dos arredores e pediu-lhes para fazerem uma investigação por conta própria e serem discretas. Se houver alguma coisa, monsenhor Dillon comunica-nos e podemos emitir uma intimação para ter acesso aos ficheiros.
- E Jean Sheridan já localizou o Dr. Craig Michaelson, o advogado que tratou de algumas das adopções do Dr. Connors?
- Vai encontrar-se com ele às duas horas.
- Sam, que pretende fazer a seguir?
Interrompeu-os o toque do telemóvel de Sam. Tirou-o da algibeira, olhou para o número e de repente a expressão de fadiga desvaneceu-se-lhe do rosto.
- É Eddie Zarro - declarou, enquanto premia o botão para falar. - Eddie, o que é que descobriste? - inquiriu.
O delegado distrital viu Sam ficar boquiaberto.
- Deves estar a gozar. Céus, sinto-me tão idiota! Porque é que não me lembrei disso, e o que é que será que essa doninha fedorenta anda a tramar? Certo. Encontro-me contigo no Glen-Ridge. Só espero que ele hoje não decida ir dar uma volta.
Sam fechou o telemóvel e encarou o chefe.
- Na noite passada, alguns minutos depois das sete, alguém comprou numa loja da rua principal em Cornwall um telemóvel carregado com cem minutos de chamadas. O empregado recorda-se perfeitamente do homem que efectuou a compra pois já o viu na televisão. Era Robby Brent.
- O comediante? Acha que Laura Wilcox estava com ele?
- Não, chefe, não acho. O empregado da loja ficou a observar Brent depois deste sair, e viu-o deter-se no passeio e fazer um telefonema. De acordo com ele, foi à hora exacta em que Jean Sheridan recebeu a chamada que supostamente era de Laura Wilcox.
- Quer dizer que julga... Sam interrompeu-o.
- De acordo com alguns padrões, Robby Brent é comediante, mas segundo os padrões de toda a gente é um imitador de primeira água. A minha suposição é de que se tratou do tipo que telefonou a Jean Sheridan a imitar Laura Wilcox. Parto de imediato para Glen-Ridge, vou descobrir aquele palerma e obrigá-lo a explicar-me o que anda a tramar.
- Faça isso - disse Rich Stevens. - E é bom que tenha uma boa desculpa, caso contrário espeto-lhe com um processo por obstrução a uma investigação policial.
CAPÍTULO CINQUENTA E TRÊS
Quanto tempo decorrera? Laura tinha a impressão de haver pairado dentro e fora de algo que era mais do que o torpor do sono. Quanto tempo se passara desde que o Mocho ali estivera? Não o podia saber. Na noite anterior, por volta da altura em que calculava que ele iria aparecer, sucedera qualquer coisa. Ouvira ruídos nas escadas e depois uma voz - uma voz que conhecia.
- Não! - exclamara essa voz, gritando em seguida o nome que ela fora proibida até de sussurrar.
Fora Robby Brent quem gritara, e parecia aterrorizado.
Seria que na noite anterior o Mocho atacara Robby Brent?
Acho que sim, concluiu Laura, enquanto se esforçava por mergulhar de novo no sono e ver-se num mundo onde não era obrigada a lembrar-se que o Mocho podia voltar a qualquer instante, e que numa dessas vezes pegava na almofada, colocava-lha sobre a cara, comprimia-a e...
Que acontecera a Robby? Na noite anterior pouco depois de ouvir-lhe a voz, o Mocho aparecera e dera-lhe alguma comida. Estava zangado, tão zangado que a voz lhe tremia quando contara que Robby Brent a imitara a falar.
- Passei o jantar todo a interrogar-me se descobriras uma maneira de chegar ao telefone, mas o meu bom senso disse-me, é claro, que se conseguisses fazê-lo, ligavas à Polícia e não a Jean, a dizer que te encontravas bem. Laura, desconfiei de Brent, mas estava lá aquele bisbilhoteiro do rapazola armado em repórter e julguei que o miúdo tramara alguma. Robby foi tão estúpido, Laura, tão estúpido. Seguiu-me até aqui. Deixei a porta aberta e ele entrou. Oh, Laura, o tipo foi tão estúpido.
Terei sonhado?, interrogou-se Laura, sentindo-se confusa. Foi imaginação minha?
Ouviu um clique. Seria a porta? Fechou firmemente os olhos enquanto o pânico lhe percorria o corpo.
- Acorda, Laura. Levanta a cabeça para mostrares que ficaste satisfeita por eu estar de volta. Preciso de conversar contigo e quero sentir que te preocupas com tudo o que te digo. - A voz do Mocho tornou-se brusca, estridente. - Robby desconfiou de mim e tentou armar-me uma cilada. Não sei quando é que baixei as defesas, mas já o despachei. Eu contei-te. Agora Jean está muito próxima da verdade, Laura, mas eu sei como agir para a despistar e levá-la a cair na armadilha. Tu queres ajudar-me, não queres?
Não queres? - repetiu, alterando a voz.
- Sim - murmurou Laura tentando fazer-se ouvir através da mordaça.
O Mocho pareceu acalmar.
- Laura, sei que tens fome. Comprei-te umas coisas para comeres. Mas antes preciso de te falar de Lily, a filha de Jean, e explicar-te por que motivo andaste a enviar mensagens ameaçadoras a Jean a respeito dela. Recordas-te de teres enviado essas mensagens, não te recordas, Laura?
Jean? Uma filha? Laura fitou-o com ar espantado.
O Mocho acendeu a pequena lanterna e pousou-a virada para Laura na mesinha-de-cabeceira. A luz diluía-se-lhe pelo pescoço e penetrava nas trevas que a rodeavam. Erguendo a cabeça, verificou que ele a fitava, sem esboçar um movimento. Depois levantou os braços,
- Lembro-me - replicou Laura soletrando as palavras a fim de que ele as pudesse ouvir.
Ele deixou então tombar lentamente os braços para os lados. Laura fechou os olhos e o alívio deixou-a sem forças. Quase fora o fim dela, pois não respondera com a necessária rapidez.
- Laura - sussurrou ele. - Ainda não compreendeste que eu sou uma ave de rapina. Quando fico perturbado, há só uma maneira de me impor. Não me tentes com a tua obstinação. Agora vou dizer-te o que fazemos.
Laura sentiu a garganta ressequida. A mordaça comprimia-lhe a língua. Sob o entorpecimento das mãos e dos pés, o latejar de dor intensificava-se à medida que cada músculo se retesava de pavor. Fechou os olhos, lutando por se concentrar.
- Jean... a filha dela... enviei-lhe mensagens.
Quando abriu os olhos, a lanterna apagou-se. Já não o sentiu pairar sobre si. Ouviu a porta dar um clique. Fora-se embora.
Algures perto dela chegou-lhe o aroma ténue do café que ele se esquecera de lhe dar.
CAPÍTULO CINQUENTA E QUATRO
O escritório de Craig Michaelson, advogado, localizava-se na Old State Road, a apenas dois quarteirões a seguir ao motel onde Jean e o cadete Reed Thornton haviam passado as suas poucas noites juntos. Ao aproximar-se do motel, Jean abrandou e pestanejou para reprimir as lágrimas.
A imagem de Reed que guardava na memória era tão vívida, e as reminiscências dos tempos passados juntos tão intensas! Sentiu que se entrasse sorrateira no quarto 108, Reed estaria lá à sua espera, com o seu cabelo louro e olhos azuis, os braços robustos que a cingiam e a fizeram experimentar uma felicidade que ao longo dos seus dezoito anos de existência nunca imaginara possível.
- ”Sonho com Jeannie...”
Durante muito tempo após a morte de Reed, acordara com a melodia da canção a ressoar-lhe no cérebro.
Estávamos tão apaixonados, recordou. Ele era o Príncipe Encantado e eu a Gata borralheira. Era bondoso, esperto, com uma maturidade que transcendia bastante os seus vinte e dois anos. Adorava a vida militar e encorajou-me a tornar-me escritora. Arreliava-me afirmando que quando fosse general, eu ia escrever a sua biografia. Quando lhe comuniquei que estava grávida, ficou preocupado pois sabia qual seria a reacção do pai à perspectiva de um casamento antes de tempo. Mas depois disse-me, ”Vamos ter de alterar os nossos planos, Jeannie, nada mais. Os casamentos precoces não são propriamente alheios à minha família. O meu avô casou-se no dia em que jurou bandeira em West Point, e a minha avó tinha apenas dezanove anos.”
- Mas disseste-me que os teus avós se conheciam desde bebés salientara ela. - É muito diferente. Vão encarar-me como uma universitária pindérica que engravidou só para conseguir casar contigo.
Tapando-lhe a boca com a mão, Reed declarara com firmeza:
- Não quero ouvir conversas dessas. Os meus pais, quando te conhecerem, vão adorar-te. A propósito, é melhor começares já a pensar em apresentar-me aos teus.
Quando conhecesse os pais de Reed tencionava ir estudar para Bryn Maur, pensou Jean. Mas depois a minha mãe e o meu pai divorciaram-se. Se os pais dele os tivessem conhecido em separado, talvez os apreciassem e não era forçoso que ficassem ao corrente dos seus problemas.
Se Reed fosse vivo.
Ou mesmo se morresse novo, se isso tivesse acontecido depois de nos casarmos, eu teria podido ficar com Lily. Reed era filho único. Os pais deles podiam zangar-se por nos casarmos, mas de certeza que iam adorar ter uma neta.
Todos nós desperdiçámos anos preciosos de vida, reflectiu Jean sentindo uma pontada de dor, ao mesmo tempo que carregava no pedal e passava veloz pelo motel.
O escritório de Craig Michaelson ocupava um andar inteiro de um edifício que Jean sabia não existir quando ela e Reed namoravam. Possuía uma apelativa sala de entrada com paredes revestidas de lambrins e cadeiras amplas, forradas com um tecido a imitar tapeçaria antiga. Jean concluiu que, pelo menos, na aparência a firma de Michaelson parecia ser próspera.
Não sabia muito bem o que a esperava. Durante o trajecto de Cornwall para Highland Falis concluíra que se Michaelson estivera implicado no sistema ilegal de registos de nascimento, então devia ser um charlatão e com toda a certeza se mostraria na defensiva.
Depois de aguardar dez minutos, o próprio Craig Michaelson veio à sala e conduziu-a pessoalmente ao seu gabinete. Era um homem alto com cerca de sessenta anos, constituição robusta e ombros ligeiramente arqueados. Possuía uma cabeleira farta, mais grisalha-escura do que prateada que levava a pensar que acabara de vir do barbeiro.
Vestia um fato cinzento-escuro de bom corte e uma gravata com um discreto padrão azul e cinzento. Tudo na sua aparência, assim como nos móveis e quadros de bom gosto existentes no escritório, sugeriam um homem reservado e conservador.
Jean percebeu que não podia asseverar se seria este o pior cenário possível. Se Craig Michaelson não estivesse implicado na adopção de Lily, então as buscas que efectuava para descobrir o paradeiro da filha iriam de novo desembocar num beco sem saída.
Enquanto relatava ao advogado a existência de Lily e lhe mostrava as cópias dos faxes e o relatório do ADN, não desviou os olhos dele. Em seguida, fez-lhe um resumo dos seus antecedentes pessoais, sublinhando com relutância a sua notoriedade académica, as honras e os prémios que recebera e o facto de graças ao livro de sua autoria se ter tornado um best-seller, o seu êxito financeiro ser um assunto do domínio público.
Michaelson apenas desviou os olhos do rosto dela quando se pôs a examinar os faxes. Jean percebeu que ele a avaliava, tentando concluir se o que lhe contava era verdade ou se não passava de um rematado embuste.
- Através de Peggy Kimball, a enfermeira do Dr. Connors, fiquei a saber que algumas das adopções efectuadas pelo doutor foram ilegais - referiu. - O que eu preciso de saber e que lhe suplico que me diga é o seguinte. O senhor tratou pessoalmente da adopção da minha filha ou sabe quem a adoptou?
- Dr.a Sheridan, permita-me que comece por lhe dizer que nunca participei numa adopção que não correspondesse rigorosamente ao espírito da lei. Se alguma vez o Dr. Connors contornou a lei, fê-lo sem o meu conhecimento ou envolvimento.
- Se não tratou da adopção da minha filha, está então a querer dizer-me que ela foi registada com o meu nome como sendo a mãe e com o nome de Carroll Reed Thornton como sendo o pai?
- Estou a afirmar-lhe que todas as adopções à minha responsabilidade foram legais.
Anos passados a leccionar estudantes - uma pequena percentagem dos quais tinham sido apologistas da hipocrisia e das meias verdades - tinham dado a Jean o traquejo para farejar tais práticas sempre que as detectava. E de momento era esse o caso.
- Dr. Michaelson, uma rapariga de dezanove anos e meio pode correr perigo. Se foi o senhor a tratar da adopção, conhece quem a adoptou. Podia agora tentar protegê-la. Para falar com franqueza, sou de opinião de que o senhor tem o dever moral de tentar protegê-la.
Foi uma afirmação errada. Os olhos de Craig Michaelson, escondidos por trás de uns óculos de armação prateada, assumiram uma expressão gélida.
- Dr.a Sheridan, a senhora pediu-me que a recebesse hoje. Apareceu aqui contando-me uma história em relação à qual só posso confiar na sua palavra para confirmar se é ou não verídica. Praticamente insinuou que no passado eu, talvez, tivesse desrespeitado a lei e exige-me agora que a infrinja a fim de a ajudar. Há vias legais que permitem o acesso aos ficheiros. Devia dirigir-se ao gabinete do delegado distrital, a fim de solicitar junto do tribunal a abertura desses ficheiros. Posso garantir-lhe que é a única forma da senhora efectuar esta investigação. Conforme salientou, é provável que quando esperava o bebé alguém a visse no consultório do Dr. Connors e, sabe-se lá como, esse alguém tivesse tido acesso à sua ficha. Também ressalvou que o móbil pode apenas ter a ver com dinheiro. Para lhe ser franco, acho que tem razão. Alguém sabe quem é a sua filha e calcula que a senhora é capaz de lhe pagar para ficar calado.
Dizendo isto levantou-se.
Jean permaneceu por um instante sentada.
- Dr. Michaelson - declarou -, possuo um óptimo instinto e ele está a dizer-me que foi o senhor, a tratar da adopção da minha filha e que talvez o tenha feito por vias ilegais. Também me diz que quem quer que me anda a escrever, e que se encontrou suficientemente perto de Lily para lhe roubar a escova, é perigoso. Vou recorrer ao tribunal e tentar que me facultem os ficheiros. Porém, fica em aberto a questão de que nesse entretanto pode acontecer algo à minha filha, e esse algo pode ser causado pelas precauções que o senhor está agora a tomar. Se assim for, e eu o vier a descobrir, não me responsabilizo pelo que lhe farei.
Jean não conseguiu refrear as lágrimas que lhe rolavam dos olhos. Virou costas ao advogado e saiu precipitadamente do gabinete, sem se preocupar que a telefonista e diversas pessoas que se encontravam na sala de espera a olhassem atónitas quando passou por elas. Ao chegar ao carro, abriu com ímpeto a porta, entrou e escondeu o rosto nas mãos.
E então ficou gelada. Ouviu a voz de Laura, tão nítida como se ela se encontrasse ali, a suplicar-lhe:
- Jean, ajuda-me! Por favor, Jean, ajuda-me!
CAPÍTULO CINQUENTA E CINCO
Craig Michaelson, de rosto contraído pela preocupação, ficou a observar da janela da frente do gabinete enquanto Jean Sheridan se precipitava para o carro.
Ela é honesta, pensou. Não se trata de nenhuma mulher obcecada em encontrar afilha, que forjou uma história disparatada. Devo avisar o Charles e a Gano? Se acontecer alguma coisa a Meredith, isso irá destroçá-los.
Não ia, nem podia, revelar-lhes a identidade de Jean Sheridan mas, pelo menos, podia dar conhecimento a Charles das ameaças contra a filha adoptiva. Caberia a este a decisão de contar a Meredith ou tentar protegê-la. Se a história a respeito da escova fosse verídica, talvez Meredith se lembrasse onde se encontrava quando a deixara esquecida em algum lado ou a perdera. Podia constituir uma forma de tentar localizar o autor dos faxes.
Jean Sheridan declarou que se acontecesse alguma coisa a filha, algo que eu podia ter evitado, não seria responsável pelos seus actos contra mim, ocorreu-lhe. O Charles e a Gano teriam uma reacção idêntica.
Tendo tomado a decisão, Craig Michaelson dirigiu-se para a secretária e levantou o auscultador. Nem precisava de verificar o número.
Que coincidência mais estranha., pensou enquanto discava o número. Jean Sheridan não mora longe do Charles e da Gano. Ela vive em Alexandria e eles em Chevy Chase.
Ao primeiro toque, atenderam.
- Gabinete do general Buckley - anunciou uma voz decidida...
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