SÓ QUANDO PÔS AS MÃOS NO VOLANTE é que percebeu que estavam manchadas de sangue. Sentiu as palmas pegajosas contra o revestimento de couro. Mas ignorou o sangue quando engrenou a marcha atrás e, precipitadamente, recuou no acesso para carros. Ouviu o ruído da gravilha a ser projetada pelos pneus em todas as direções.
Tinham uma longa viagem pela frente. Olhou de relance para o banco de trás. Sam estava a dormir, enrolado num cobertor. Devia ter-lhe colocado o cinto de segurança, mas não teve coragem de acordá-lo. Teria simplesmente de conduzir com o maior cuidado possível e aliviou imediatamente a pressão sobre o acelerador.
Era verão e a noite já começara a clarear. Naquela época do ano, a escuridão acabava praticamente antes de ter começado. Contudo, naquela noite parecia não ter fim. Tudo mudara. Os olhos castanhos de Fredrik fitavam rigidamente o teto e ela percebeu que não havia nada que pudesse fazer. Tinha de salvar-se a si mesma e de salvar Sam. Não podia pensar no sangue. Não podia pensar em Fredrik.
Havia apenas um lugar para onde poderia ir.
Seis horas mais tarde chegaram ao seu destino. Fjällbacka começava a despertar. Estacionou o carro perto do edifício da Guarda Costeira, ponderando por um momento como conseguiria levar tudo. Sam ainda estava a dormir. Tirou uma embalagem de lenços de papel do porta-luvas e limpou as mãos o melhor que pôde. Foi difícil retirar todo o sangue. Depois tirou as malas do porta bagagem e arrastrou-as rapidamente para Badholmen, a ilha com a plataforma de mergulho onde o barco estava atracado. Temia que Sam pudesse acordar, mas tinha trancado o carro para que o rapazinho não pudesse sair e cair à água. Com esforço, arrumou a bagagem a bordo e destrancou o cadeado que impedia o barco de ser roubado. Então regressou ao carro a correr, aliviada ao ver que Sam estava a dormir tão calmamente como quando o deixara. Pegou nele e levou-o, ainda envolto no cobertor, até o barco. Quando subiu a bordo, para não escorregar, manteve os olhos fixos nos pés. Cuidadosamente, colocou Sam no convés e depois rodou a chave na ignição. O motor tossiu, mas pegou à primeira. Embora não conduzisse uma lancha há muito tempo, tinha certeza de conseguir manobrá-la. Fez o barco recuar no lugar de atracação e depois começou a dirigir-se para fora do cais.
O sol brilhava, mas ainda não tivera tempo de aquecer o ar. Sentiu a tensão dissipar-se lentamente e o horror da noite perdeu um pouco do seu domínio sobre ela. Quando olhou para Sam perguntou-se se o que acontecera o marcaria para o resto da vida. Uma criança de cinco anos era um ser frágil. Quem sabe o que poderia ter sido destruído dentro dele? Faria tudo o que estivesse ao seu alcance para que o filho recuperasse completamente daquele trauma. Afastaria o mal com um beijo, como quando Sam caiu da bicicleta e arranhou o joelho.
A rota através do mar era-lhe familiar. Conhecia cada ilha, cada skerry*. Manobrou a lancha na direção de Väderöbad, afastando-se cada vez mais da costa. As ondas foram ficando cada vez maiores e o casco do barco batia contra a superfície do mar depois de galgar cada vaga. Gostava da sensação dos salpicos da água salgada no rosto, permitindo-se fechar os olhos por alguns segundos. Quando os abriu novamente pôde ver Gråskär ao longe. O coração saltou-lhe no peito. Era o que acontecia sempre que via a ilha e avistava o pequeno chalé e o farol, branco e orgulhoso contra o céu azul. Ainda estava muito longe para ver a cor da casa, porém, na sua mente, imaginou o cinzento- claro da fachada e o branco dos caixilhos da porta e das janelas. Pensou também nas malvas rosas que cresciam ao longo da parede mais abrigada do vento. Aquele era o seu refúgio, o seu paraíso. A sua ilha: Gråskär.
Não havia um único banco da igreja de Fjällbacka que não estivesse ocupado e a capela-mor transbordava de flores. Coroas, buquês e belas fitas de seda com palavras de despedida gravadas.
Patrik quase não conseguia olhar para o caixão branco que estava no meio de um mar de flores. Reinava um silêncio assustador no interior da grande igreja de pedra. Nos funerais de pessoas de idade ouvia-se quase sempre um zumbido de vozes. Eram trocados comentários como “Ela tinha tantas dores que foi uma bênção” e outros do gênero. E todos ansiavam pelo café que seria servido na igreja depois da cerimônia. Mas hoje, nada disso se passava. Todos permaneciam em silêncio, com um aperto no coração e um sentimento não verbalizado de injustiça. Aquilo não devia ter acontecido.
Patrik aclarou a garganta e percorreu o teto com o olhar, piscando os olhos para tentar afastar as lágrimas. Apertou a mão de Erica. O fato que usava era áspero e picava, e Patrik aliviou o colarinho da camisa para se refrescar. Sentia-se a sufocar.
Os sinos na torre começaram a repicar e o som ecoou pelas paredes. Muitos dos presentes na igreja tiveram um sobressalto e olharam para o caixão. A pastora Lena saiu da sacristia e caminhou até o altar. Fora Lena quem os casara naquela mesma igreja. O casamento parecia ter acontecido noutro tempo, noutra realidade. Na altura havia exaltação no ar, reinavam a alegria e a luz. Agora, a pastora parecia sorumbática. Patrik tentou interpretar a sua expressão. Também estaria a pensar que tudo aquilo estava errado? Ou estaria plenamente convicta de que havia algum significado por detrás do que tinha acontecido?
As lágrimas vieram-lhe novamente aos olhos e Patrik limpou-as com as costas da mão. Erica passou-lhe discretamente um lenço. Os últimos acordes do órgão extinguiram-se, seguindo-se alguns segundos de silêncio antes de Lena começar a falar. A voz da pastora estremeceu um pouco, mas depois foi ganhando firmeza.
— A vida pode mudar num instante. Mas Deus está conosco. Hoje e sempre.
Patrik viu os lábios de Lena moverem-se, mas depressa deixou de ouvir. Não queria ouvir o que ela tinha para dizer. A ténue fé religiosa que o tinha acompanhado ao longo da vida, desde criança, tinha agora partido para sempre. Não era possível encontrar qualquer sentido no que tinha acontecido. Apertou novamente a mão de Erica.
— É com orgulho que informo que estamos cumprindo o prazo. Dentro de pouco mais de duas semanas, o Hotel Badis será reaberto em Fjällbacka com todo o esplendor.
Erling W. Larson fez um sorriso rasgado enquanto olhava para cada membro do conselho municipal, como se esperasse aplausos. Teve de contentar-se com alguns acenos de aprovação.
— Trata-se de um verdadeiro triunfo para a região — esclareceu. — A renovação completa do que podemos, com toda a propriedade, considerar um ícone histórico inestimável. Ao mesmo tempo, podemos agora oferecer às pessoas um moderno e competitivo centro de bem-estar. Ou spa, que talvez seja uma palavra mais correta para o descrever. — Com as mãos, Larson esboçou no ar um sinal de aspas para aquela palavra que era estranha para muitos suecos. — Faltam apenas uns retoques finais, convidar várias empresas para experimentar os serviços antes da abertura e, claro, tratar dos preparativos para uma festa de inauguração em grande.
— Isso são ótimas notícias. Mas tenho algumas questões a colocar. — Mats Sverin, que tinha assumido o cargo de chefe do departamento financeiro do município há um par de meses, abanou a caneta para atrair a atenção de Erling.
Erling, que detestava tudo o que tivesse que ver com trabalho administrativo e relatórios financeiros, fingiu não perceber. Dando apressadamente a reunião por terminada, retirou-se para o seu espaçoso gabinete.
Depois do fiasco de seu reality show**, ninguém esperava que Erling recuperasse o prestígio perdido, mas ali estava ele, a promover um projeto ainda maior que estava prestes a tornar-se um sucesso. Pessoalmente, nunca tivera dúvidas, nem mesmo no auge da onda de críticas negativas que choveram sobre ele. Era um vencedor nato.
Claro que aquilo tinha deixado as suas marcas e fora por isso que passara uma temporada no centro de bem-estar de Ljuset, na região de Dalecarlian, na Suécia, para recuperar. Tinha sido uma sucessão de acontecimentos auspiciosos, porque se não tivesse ido para lá nunca teria conhecido Vivianne. Aquele encontro marcara um ponto de viragem na sua vida, tanto a nível profissional como pessoal. Vivianne tinha-o conquistado como nenhuma outra mulher, e era a visão dela que Erling estava agora a materializar.
Não resistiu à tentação de pegar no telefone e ligar-lhe. Era a quarta vez que o fazia nesse dia, mas o som da voz de Vivianne fazia sempre vibrar cada fibra do seu corpo. Prendeu a respiração enquanto ouvia o sinal de chamada.
— Olá, meu amor — disse Erling quando Vivianne atendeu. — Era só para saber como estavas.
— Erling — respondeu Vivianne naquele tom de voz especial que o fazia sentir-se como um adolescente apaixonado —, estou tão bem como estava quando ligaste há uma hora.
— Ótimo — disse ele, sorrindo timidamente. — Só queria ter certeza de que estava tudo bem.
— Eu sei, e é por isso que te amo. Mas ainda temos tanta coisa para fazer antes da inauguração. E não queres que eu tenha de trabalhar à noite, pois não?
— De maneira nenhuma, meu amor. — Erling resolveu não voltar a telefonar a perturbá-la. As noites que passavam juntos eram sagradas. — Okay. Continua a trabalhar que eu vou fazer o mesmo. — Erling enviou beijos ruidosos pelo bocal antes de desligar o telefone. Depois recostou-se na cadeira, cruzou as mãos atrás da cabeça e permitiu-se alguns minutos de pausa para sonhar com as delícias que a noite traria.
O ar estava abafado dentro do chalé. Nathalie abriu todas as portas e janelas para deixar que o vento forte arejasse todas as divisões. A corrente de ar derrubou um vaso, mas Nathalie conseguiu agarrá-lo no último segundo antes de se estatelar no chão.
Sam estava deitado no pequeno quarto ao lado da cozinha. Chamavam-lhe sempre o quarto de hóspedes, apesar de ter sido o quarto dela quando era criança. Os pais dormiam no primeiro andar. Nathalie foi ver como estava o filho, aconchegando-lhe os ombros com um xaile. A seguir pegou na chave grande e enferrujada que estava sempre pendurada num prego na parte de trás da porta de entrada e saiu para as rochas. O vento fustigava-lhe a roupa e, de costas para a casa, contemplou o horizonte. Na ilha só havia mais uma construção: o farol. A minúscula cabana de pesca que havia lá em baixo, junto ao cais, era tão pequena que quase não contava.
Nathalie caminhou até o farol. Gunnar devia ter lubrificado a fechadura, pois a chave girou com uma facilidade surpreendente. A porta rangeu quando a abriu. Só teve de dar alguns passos antes de começar a subir as estreitas escadas íngremes, segurando-se ao corrimão enquanto avançava.
A vista era tão bonita que a deixou sem fôlego. Produzia sempre aquele efeito nela. Numa direção apenas se via o mar e o horizonte distante; noutra, o arquipélago espraiava-se a seus pés, com todas as ilhas, rochas e skerries. Há anos que o farol não era utilizado. Atualmente permanecia como um monumento evocativo de tempos idos. A lâmpada tinha-se extinguido e as placas de metal e os parafusos enferrujavam lentamente por estarem expostos à água salgada e ao vento. Quando era pequena, Nathalie adorava ir para ali brincar, naquele espaço confinado que lhe parecia um quarto de brinquedos muito acima do solo. A única mobília que ali cabia era uma cama, onde os faroleiros podiam descansar durante os longos turnos de trabalho, e uma cadeira para se sentarem a vigiar as águas.
Nathalie deitou-se na cama. Um cheiro a mofo emanou da colcha, mas os sons em redor eram os mesmos de quando era criança: os gritos das gaivotas, as ondas a bater nas rochas e o gemido do próprio farol. Tudo tinha sido tão simples naquele tempo. Os pais receavam que Nathalie se fosse aborrecer na ilha, uma vez que era filha única. Mas não precisavam de ter-se preocupado. Nathalie adorava estar ali. E não tinha estado sozinha. Mas isso não lhes podia ter contado.
Mats Sverin suspirava e remexia os papéis empilhados na secretária à sua frente. Estava num daqueles dias em que não conseguia parar de pensar nela. Não conseguia parar de interrogar-se. Nesses dias, o trabalho rendia pouco. Mas agora eram menos frequentes. Tinha começado a esquecer-se; pelo menos queria pensar que assim era. Ainda podia ver o rosto dela de forma muito clara na sua mente e, em certo sentido, estava grato por isso. Ao mesmo tempo, desejava que a imagem começasse a diluir-se e desaparecesse.
Tentou voltar a centrar a atenção no trabalho. Nos dias bons gostava muito do seu trabalho. Era um desafio mergulhar nas finanças do município, com a constante necessidade de encontrar um equilíbrio entre as considerações políticas e o que era razoável em termos de mercado. Desde que ali trabalhava que gastava grande parte do tempo no Projeto Badis. Mats estava satisfeito por o velho edifício do hotel estar finalmente a ser restaurado. Como a maioria dos moradores de Fjällbacka, tanto aqueles que ainda viviam na cidadezinha como os que se tinham mudado para outras paragens, cada vez que passava pela bela estrutura lamentava o facto de a terem deixado degradar-se tanto. Mas agora o Badis tinha recuperado a sua grandiosidade.
Mats esperava que as promessas bombásticas de Erling sobre o enorme sucesso que o empreendimento iria ser fossem mais do que palavras ocas; porém, estava cético. O projeto já tinha implicado enormes despesas só com a remodelação do edifício, e o plano de negócios proposto era baseado em cálculos demasiado otimistas. Tentara em várias ocasiões apresentar o seu ponto de vista sobre a situação, mas sem sucesso. E, embora tivesse visto e revisto os números sem encontrar nada de errado — além da enorme despesa acumulada —, tinha uma sensação desagradável de que algo não batia certo.
Olhou para o relógio e viu que estava na hora do almoço. Há muito que não tinha grande apetite, mas sabia que precisava de comer. Era quinta-feira e isso significava panquecas e sopa de ervilhas no restaurante Källaren. Com algum esforço, talvez conseguisse comer alguma coisa.
Apenas os amigos mais íntimos e familiares iriam estar presentes no funeral. As outras pessoas desapareceram silenciosamente na direção oposta, encaminhando-se para o centro da cidade. Erica segurava com força a mão de Patrik. Caminhavam atrás do caixão, e cada passo era como uma punhalada a trespassar-lhe o coração. Tentara convencer Anna a não passar por aquele martírio, mas a irmã insistira em fazer um funeral apropriado. O desejo de Anna de que tudo fosse feito como devia ser tinha-a despertado temporariamente da apatia em que mergulhara, pelo que Erica desistira de tentar convencê-la a mudar de ideias. Em vez disso, ajudara a tomar todas as providências necessárias para que Anna e Dan pudessem enterrar o filho.
Numa questão, porém, Erica recusara-se a ceder. Anna queria que todas as crianças estivessem presentes no funeral, mas Erica decidiu que os mais novos deviam ficar em casa. Apenas as duas mais velhas, as filhas de Dan, Belinda e Malin, estavam presentes. Kristina, a mãe de Patrik, estava a tomar conta de Lisen, Adrian, Emma e Maja. E dos gêmeos, claro. Erica temera que aquilo se viesse a revelar areia de mais para a camioneta da sogra, mas Kristina tinha-lhe assegurado com toda a calma que não teria qualquer problema em manter as crianças sob controle durante as duas horas que o funeral ia durar.
Erica sentiu um aperto no coração quando olhou para a cabeça quase calva de Anna, à sua frente. Os médicos haviam sido forçados a rapar quase todo o cabelo da irmã para lhe poderem perfurar o crânio de forma a aliviar a pressão que podia provocar danos cerebrais permanentes, se não fosse tratada de imediato. Uma penugem começava a despontar, mas era mais escura do que antes.
Ao contrário de Anna, gravemente ferida, e da condutora do outro carro, que tivera morte imediata, Erica tinha escapado com ferimentos miraculosamente superficiais. Apenas sofrera uma forte concussão e partira algumas costelas. Tinha sido realizada uma cesariana de emergência e os gêmeos nasceram com um peso ligeiramente abaixo do normal, mas eram fortes e saudáveis, e dois meses depois foi-lhes dada alta.
Erica quase irrompeu em lágrimas quando desviou o olhar da penugem na cabeça da irmã para o pequeno caixão branco. Além de ter sofrido ferimentos graves na cabeça, Anna também partira a pélvis. Fora igualmente alvo de uma cesariana de emergência, mas os ferimentos do bebê eram tão extensos que os médicos tinham dado pouca esperança a Anna e a Dan. Com apenas uma semana, o recém-nascido exalara o seu último suspiro.
O funeral fora adiado porque Anna continuara internada no hospital. Só no dia anterior é que, finalmente, lhe tinham dado alta. E agora já estavam a enterrar o filho, uma criança que teria tido uma vida repleta de amor. Erica viu Dan pôr a mão no ombro de Anna enquanto colocava cuidadosamente a cadeira de rodas da mulher ao lado da sepultura. Anna afastou a mão de Dan. Era assim que reagia desde o acidente. Era como se a dor fosse tão imensa que não a conseguia repartir com mais ninguém. Dan, por outro lado, precisava de partilhar o que estava a sentir, embora não com qualquer pessoa. Tanto Patrik como Erica haviam tentado falar com ele, e todos os amigos tinham feito o que podiam. Mas Dan não queria falar da sua dor a ninguém a não ser a Anna. Mas a mulher não estava em condições de corresponder ao seu apelo.
Erica considerava a reação de Anna perfeitamente compreensível. Conhecia muito bem a irmã e estava plenamente consciente de tudo aquilo por que ela já passara. A vida tinha sido madrasta para a irmã e a morte do bebê era uma provação tal que poderia acabar por ser a gota de água. Por mais que compreendesse a situação de Anna, Erica desejava com todas as suas forças que isso não acontecesse. Anna precisava de Dan mais do que nunca e Dan precisava de Anna. Mas, por enquanto, limitavam-se a estar para ali, lado a lado, como dois estranhos, enquanto o pequeno caixão era lentamente descido para a terra.
Erica esticou o braço e pousou a mão no ombro da irmã. Anna não a afastou.
Cheia de energia por causa da inquietação, Nathalie começou a limpar a casa. Arejá-la ajudou, mas o cheiro a mofo continuava impregnado nas cortinas e nas roupas de cama. Atirou tudo para um grande cesto de roupa suja que carregou até o cais. Equipada com detergente para roupa e o velho esfregão para soalhos que estava lá em casa desde que se lembrava, arregaçou as mangas e começou o árduo trabalho de lavar a roupa à mão. De vez em quando olhava de relance para cima, em direção ao chalé, para se certificar de que Sam não tinha despertado e não saía de casa. Estava a dormir há demasiado tempo. Talvez por causa do choque. Nesse caso, o melhor seria deixá-lo dormir. Mais uma hora, decidiu, depois acordaria Sam e trataria de fazer qualquer coisa para ele comer.
De repente, Nathalie deu-se conta de que não devia haver muita comida em casa. Pendurou a roupa na corda e foi dar uma vista de olhos à despensa. Tudo o que encontrou foi uma lata de sopa de tomate Campbell e uma lata de salsichas em cerveja Bullens. Não se atreveu a olhar para as datas de validade, mas aquele gênero de enlatados durava uma eternidade. Enfim, teriam de contentar-se com aquilo, ela e Sam.
Não estava tentada a ir à cidade. Sentia-se segura ali. Não queria falar com ninguém. Queria que a deixassem em paz. Com a lata de sopa na mão, Nathalie fez uma pausa para ponderar como devia agir. Só havia uma solução. Teria de telefonar a Gunnar. Cuidava-lhe da casa desde a morte dos pais e sem dúvida que poderia pedir-lhe ajuda. O telefone fixo já não funcionava, mas tinha rede no celular, por isso marcou o número.
— Sverin.
O nome suscitava tantas memórias que Nathalie teve um sobressalto. Demorou alguns segundos a recompor-se o suficiente para falar.
— Estou? Quem fala?
— Olá. Sou eu, Nathalie.
— Nathalie! — exclamou Signe Sverin.
Nathalie sorriu. Sempre adorara Signe e Gunnar, e o sentimento era mútuo.
— Minha querida, és mesmo tu? Estás a ligar de Estocolmo?
— Não, estou aqui na ilha. — Para sua surpresa, Nathalie sentiu as palavras a ficarem-lhe presas na garganta. Tinha dormido apenas algumas horas e a fadiga devia tê-la deixado hipersensível. Aclarou a garganta e acrescentou: — Cheguei ontem.
— Mas, minha querida, devias ter-nos avisado para podermos ter ido aí fazer a limpeza. A casa deve estar uma desgraça e...
— Não se preocupe com a limpeza — disse Nathalie, interrompendo a torrente verbal de Signe. Tinha-se esquecido de que era muito tagarela e que falava muito depressa. — Mantiveram tudo impecável por aqui. E fez-me bem limpar algumas coisas e lavar a roupa.
Signe resfolegou.
— Bem, ao menos podias ter-nos pedido ajuda. Agora não temos nada para fazer, Gunnar e eu. Nem sequer temos netos com quem nos ocuparmos. Mas Matte regressou de Gotemburgo e mudou-se para cá. Conseguiu um emprego na Câmara Municipal de Tanum.
— Que bom para vocês. Porque foi que Matte decidiu fazer isso? — Nathalie imaginou Matte. Louro, bronzeado e sempre alegre.
— Para dizer a verdade, não sei. Foi tudo muito rápido. Matte teve um acidente e, depois, tive a impressão de que... Não, não é nada. Não ligues a uma velha que fala de mais. Então, qual é a tua ideia, Nathalie? Podemos fazer alguma coisa por ti? E tens o pequerrucho contigo? Gostava muito de vê-lo.
— Sim, claro, Sam está aqui. Só que não está a sentir-se muito bem.
Nathalie calou-se. Nada a faria mais feliz do que apresentar Signe ao filho. Mas não até que se instalassem na ilha; não até se aperceber se os acontecimentos recentes o tinham afetado.
— Por isso é que pensei em pedir a sua ajuda. Não temos muita comida por aqui e não quero obrigar Sam a levantar-se para podermos ir...
Antes que pudesse terminar a frase, Signe interrompeu-a.
— Mas é claro que temos todo o gosto em ajudar. De qualquer maneira, Gunnar vai sair com o barco esta tarde e eu posso fazer-te as compras. Basta dizer o que precisas.
— Depois posso pagar a Gunnar em dinheiro, se não se importar de comprar-me a comida.
— De maneira nenhuma. Isso não é problema, minha querida. Então, que devo adicionar à minha lista de compras?
Nathalie podia imaginar Signe a pôr os óculos de leitura, fazendo-os deslizar para baixo até a ponta do nariz enquanto procurava papel e caneta. Agradecida, Nathalie enumerou tudo o que lhe ocorreu que poderiam vir a precisar. Incluindo uma embalagem de rebuçados para Sam. Caso contrário, as coisas poderiam complicar-se no sábado. Estava sempre atento aos dias da semana e, no domingo, começava logo a contar os que faltavam para a próxima embalagem de rebuçados do sábado seguinte.
Quando terminou o telefonema, Nathalie ponderou acordar Sam. Mas algo lhe disse que devia deixá-lo dormir mais uma hora.
Ninguém estava a fazer nada de produtivo na delegacia. Ostentando uma sensibilidade que não era vulgar nele, Bertil Mellberg tinha perguntado a Patrik se queria que os colegas participassem no funeral. Patrik limitara-se a abanar a cabeça. Só tinha regressado ao trabalho há alguns dias e toda a gente andava em bicos de pés em torno dele. Até Mellberg.
Paula e o superintendente tinham sido os primeiros agentes a chegar ao local do acidente. Quando avistaram os dois carros, irreconhecíveis de tão amolgados, julgaram que ninguém sobrevivera à colisão. Espreitaram por uma das janelas e reconheceram imediatamente Erica. Pouco antes Patrik tinha sido transportado de ambulância da delegacia para o Hospital e, escassa meia hora depois, a mulher estava morta ou, pelo menos, gravemente ferida. Os médicos não tinham sido capazes de especificar qual era a extensão dos ferimentos de Erica e os bombeiros pareciam ter demorado uma eternidade a desencarcerar os passageiros.
Martin e Gösta estavam ocupados com outro caso e só souberam do acidente e do colapso de Patrik várias horas mais tarde. Nessa altura, dirigiram-se para o hospital de Uddevalla e passaram a noite inteira a calcorrear os corredores. Patrik estava nos Cuidados Intensivos e tanto Erica como a irmã, Anna, que seguia sentada ao seu lado no carro, foram operadas de urgência.
Mas agora Patrik estava de volta ao trabalho. Felizmente, não fora um ataque cardíaco como a princípio se suspeitara. Em vez disso, tinha sofrido um espasmo vascular. Depois de quase três meses de baixa, os médicos tinham-no autorizado a regressar ao trabalho, embora com ordens rígidas para evitar o stress. Como se isso fosse possível, pensava Gösta. Com gêmeos recém-nascidos em casa e tendo em conta o que acontecera à irmã de Erica, o diabo em pessoa ficaria estressado.
— Achas que devíamos ter ido à mesma? — perguntou Martin, mexendo o café. — Patrik pode ter dito que não era preciso, mas no fundo talvez quisesse que fôssemos ao funeral.
— Não, acho que Patrik estava a ser sincero. — Gösta coçou Ernst, o cão da delegacia, atrás da orelha. — Tenho certeza de que há muita gente na igreja. Somos mais úteis por aqui.
— Como é que podes dizer uma coisa dessas? Não ouvimos um pio de ninguém durante todo o dia.
— É a bonança antes da tempestade. Em julho vais ter saudades de um dia sem bêbados, assaltos ou chatices do gênero.
— Isso é verdade — retorquiu Martin. Sempre fora o novato da delegacia, mas já não se sentia assim tão principiante. Já tinha alguns anos de experiência na Polícia e participara em várias investigações que, no mínimo, tinham sido muito difíceis. Também já era pai e sentiu-se crescer vários centímetros quando Pia deu à luz a filha de ambos.
— Viste o convite que recebemos? — Gösta pegou num biscoito Ballerina e começou a rotina habitual de separar meticulosamente a parte superior de baunilha da base de chocolate.
— Que convite?
— Parece que vamos ter a honra de fazer de cobaias naquele sítio novo que estão a construir em
Fjällbacka.
— Estás a falar do Hotel Badis? — Martin despertou um pouco.
— Exato. O novo projeto de Erling. Esperemos que corra melhor do que aquele absurdo do Tanum
Sempre a Abrir.
— A mim parece-me muito bem. Muitos tipos riem-se da ideia de fazer uma limpeza facial, mas eu fiz uma em Gotemburgo e foi um espetáculo. Durante várias semanas a minha pele ficou tão suave como o rabinho de um bebê.
Gösta lançou um olhar enojado ao colega. Uma limpeza facial? Só por cima do seu cadáver. Ninguém ia espalhar-lhe uma data de muco na cara.
— Bem, vamos esperar para ver o que nos oferecem. Tenho esperança de que seja alguma comezaina fina. Talvez um bufete de sobremesas.
— Duvido — disse Martin, sorrindo. — Normalmente, em sítios desses, preocupam-se mais em pôr as pessoas em forma do que em enchê-las de comida.
Gösta pareceu ofendido. O seu peso era exatamente o mesmo de quando terminara o ensino secundário. Com um suspiro, serviu-se de outro biscoito.
Quando chegaram a casa, reinava o caos. Maja e Lisen estavam aos pulos no sofá, Emma e Adrian brigavam por causa de um DVD e os gêmeos berravam a plenos pulmões. A mãe de Patrik parecia estar com vontade de se atirar de um penhasco a qualquer momento.
— Graças a Deus que chegaram — exclamou Kristina quando entregou um bebê choroso a Patrik e outro a Erica. — Não sei o que deu a estas crianças. Parecem malucas. E eu tentei dar o biberão aos bebês, mas sempre que dava a um, o outro começava a chorar e então o primeiro distraía-se, deixava de beber o leite e também começava a chorar... — Kristina calou-se, tentando recuperar o fôlego.
— Sente-se, mãe — disse Patrik. Depois foi buscar um biberão para Anton, o gêmeos que tinha nos braços. O rosto do rapazinho estava vermelho como um tomate e chorava tão alto quanto o seu pequeno corpo permitia.
— Podes trazer também um biberão para Noel? — perguntou Erica enquanto tentava consolar o filho que berrava.
Anton e Noel ainda eram tão pequenos. Não eram como Maja, que fora grande e robusta desde o início. No entanto, já se podia dizer que eram enormes em comparação com o tamanho que tinham quando nasceram. Como pássaros minúsculos, haviam ocupado incubadoras separadas, os bracinhos ligados a vários tubos. Eram lutadores, diziam as enfermeiras no hospital. E rapidamente ganharam peso, revelando quase sempre muito apetite. Mas Erica e Patrik não podiam deixar de preocupar-se com eles.
— Obrigada. — Erica pegou no biberão que o marido lhe entregou e sentou-se numa poltrona com Noel ao colo. O bebê começou a beber avidamente o preparado. Patrik sentou-se na outra poltrona com Anton, que parou de chorar tão rapidamente como o irmão. Erica pensou que havia vantagens concretas no facto de não ter sido capaz de amamentar. Dessa forma, ela e Patrik podiam partilhar a responsabilidade em relação aos bebês. Isso não tinha sido possível com Maja, que parecia ter estado colada ao seu peito vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
— Como correu? — perguntou Kristina. Levantou Maja e Lisen do sofá e disse-lhes para irem lá para cima brincar no quarto de Maja. Emma e Adrian já se tinham escapulido para o primeiro andar, pelo que as duas meninas não precisaram de ser mais persuadidas.
— Correu bem. Não sei que mais hei de dizer — respondeu Erica. — Mas estou preocupada com Anna.
— Eu também. — Patrik mudou cautelosamente de posição para ficar mais confortável. — É como se Anna se tivesse isolado de Dan. Está a mantê-lo à distância.
— Eu sei. Tentei falar com ela. Mas depois de tudo o que passou... — Erica abanou a cabeça. Era tão terrivelmente injusto. Durante anos, Anna tinha tido uma vida que só podia ser descrita como o inferno, mas nos últimos tempos parecia ter finalmente encontrado alguma paz de espírito. E estava tão feliz com o bebê que ela e Dan esperavam. O que aconteceu foi incrivelmente cruel.
— Emma e Adrian parecem estar a lidar relativamente bem com a situação. — Kristina lançou um olhar de relance para o andar de cima, de onde se ouviam os risos alegres das crianças.
— Sim, penso que sim — disse Erica. — Neste momento acho que estão simplesmente muito felizes por ter outra vez a mãe em casa. Não tenho certeza se já interiorizaram plenamente o que aconteceu.
— Parece-me que tens razão — respondeu Kristina, olhando em seguida para o filho. — Então e tu? Não devias ficar em casa mais algum tempo até estares completamente recuperado? Ninguém vai agradecer-te por te matares a trabalhar na delegacia. O que aconteceu foi um alerta.
— Por acaso, neste momento, por lá deve estar tudo mais calmo do que por aqui — disse Erica, apontando para os gêmeos com a cabeça. — Mas eu também já lhe disse a mesma coisa.
— Sabe bem estar de volta ao trabalho, mas eu fico em casa se quiseres mesmo que fique — afirmou Patrik. Pousou o biberão vazio na mesa de café e encostou Anton ao ombro para o filho arrotar.
— Não, podes ir à vontade. Por agora está tudo controlado.
Erica estava a ser sincera. Quando Maja nasceu, tinha sentido que andava às voltas, mergulhada num espesso nevoeiro, mas agora tudo era diferente. Talvez as circunstâncias que rodearam o nascimento dos gêmeos não lhe deixassem espaço para ficar deprimida. Também ajudou terem desenvolvido uma rotina enquanto estiveram no hospital. Dormiam e comiam a horas certas, e sempre juntos. Erica não estava minimamente preocupada com a possibilidade de não conseguir cuidar dos bebês. Depois de ter estado tão perto de perdê-los, estava feliz por cada segundo que passava com eles.
Fechou os olhos, inclinou-se para a frente e pressionou o nariz contra o topo da cabeça de Noel. Por um momento, a penugem do filho fê-la pensar em Anna, por isso fechou os olhos ainda com mais força. Esperava conseguir encontrar uma maneira de ajudar a irmã, porque naquele momento sentia- se completamente impotente. Respirou fundo, inspirando o aroma reconfortante de Noel.
— Meu querido bebê — murmurou Erica. — Meu querido bebêzinho.
— Então, como está indo o trabalho? — Signe tentou fazer a pergunta num tom despreocupado enquanto empilhava rolo de carne, ervilhas, puré de batata e molho cremoso num prato. Uma enorme porção.
Desde que Matte tinha voltado para Fjällbacka que quase não tocava na comida, mesmo que a mãe lhe fizesse os pratos preferidos sempre que jantava com eles. Signe dava tudo para saber se o filho comeria o que quer que fosse quando estava sozinho no seu apartamento. Estava magro como um fuso. Graças a Deus que pelo menos parecia melhor, agora que todos os vestígios da agressão tinham desaparecido. Quando foram vê-lo ao Hospital de Sahlgrenska, Signe não tinha sido capaz de conter um grito de espanto. Matte fora brutalmente espancado. Tinha o rosto tão inchado que Signe mal conseguia dizer se era realmente o filho que estava deitado naquela cama.
— Está a correr bem.
Signe deu um pulo ao ouvir a voz de Matte. A resposta a sua pergunta demorou tanto que Signe esqueceu que a tinha feito. Matte mexeu no puré com o garfo e, em seguida, espetou um pedaço de bolo de carne. Signe percebeu que estava a prender a respiração ao vê-lo levar o garfo à boca.
— Para de olhar assim para o rapaz enquanto ele está a comer — murmurou Gunnar, que já estava a repetir.
— Desculpa — disse Signe, abanando a cabeça. — É que fico... fico tão contente por ver-te comer alguma coisa.
— Não estou prestes a morrer de fome, mãe. Estás a ver? Estou a comer. — Em jeito de desafio, Matte encheu o garfo de comida e enfiou-a rapidamente na boca antes que caísse.
— Não estão a dar-te demasiado trabalho no escritório, pois não?
Signe recebeu novo olhar irritado de Gunnar. Sabia que o marido pensava que estava a ser superprotetora, que devia deixar o filho em paz. Mas não conseguia evitá-lo. Matte era o único filho que tinha e, desde aquele dia de dezembro, quando ele nasceu, quase há quarenta anos, que Signe acordava regularmente a meio da noite com a camisa de noite encharcada em suor e a cabeça repleta de pesadelos sobre as coisas terríveis que poderiam ter-lhe acontecido. Nada na vida era mais importante para Signe do que vê-lo feliz. Sempre sentira isso. E sabia que Gunnar era tão dedicado ao filho como ela. Mas o marido estava mais escudado para calar os pensamentos nefastos que o amor por um filho sempre acarreta.
Ela, por outro lado, estava constantemente ciente de que podia perder tudo numa questão de segundos. Quando Matte era bebê, Signe sonhara que o filho tinha um problema cardíaco, por isso convenceu os médicos a fazerem-lhe um exame completo, que revelou que Matte era perfeitamente saudável. Durante o primeiro ano de vida da criança, Signe não dormia mais de uma hora seguida, porque ia-se deixando ficar até ter certeza de que Matte ainda estava a respirar. Quando era mais crescido, e até entrar para a escola, Signe cortava-lhe a comida em bocadinhos para que não lhe ficasse presa na garganta e ele não se engasgasse. Também tinha pesadelos com carros a passarem por cima do seu corpinho delicado.
Quando Matte entrou na adolescência, os sonhos pioraram: Matte em coma alcoólico, Matte a conduzir bêbado, Matte envolvido em brigas... Às vezes, Signe dava tantas voltas na cama que acordava Gunnar. Um pesadelo febril a seguir a outro, até que se obrigava a sentar-se à espera de que Matte voltasse para casa, o olhar fixo na janela mas também no telefone. O coração dava um salto sempre que ouvia alguém na rua a aproximar-se.
As noites eram um pouco mais calmas depois de Matte se ter mudado lá de casa. O que foi bastante estranho, porque os medos de Signe deveriam ter aumentado por já não ter controle sobre o filho. Mas Signe sabia que Matte não iria correr riscos desnecessários. Era uma pessoa cautelosa — isso, pelo menos, tinha-lhe conseguido ensinar. Matte também era bondoso e nunca lhe passaria pela cabeça fazer mal a ninguém. Na mente de Signe, isso significava que também ninguém o tentaria magoar a ele.
Sorriu ao recordar todos os animais que Matte tinha trazido para casa ao longo dos anos. Feridos, abandonados ou apenas a precisarem de ser reconfortados. Três gatos, dois ouriços que tinham sido atingidos por um carro e um pardal com uma asa ferida. Para não falar da cobra que Signe encontrou por acaso quando estava prestes a guardar a roupa interior de Matte, acabada de engomar, numa gaveta do quarto do filho. Depois desse episódio, Matte teve de jurar-lhe que deixaria todos os répteis entregues à sua sorte, por mais feridos ou abandonados que pudessem estar. Relutantemente, Matte concordou.
Signe ficou surpreendida por o filho não se ter tornado veterinário ou médico. Mas Matte parecia gostar das aulas na faculdade de Economia e, ao que sabia, ele tinha realmente jeito para os números. Também parecia gostar do trabalho na câmara municipal. No entanto, havia algo nele que a preocupava. Não sabia ao certo o que era, mas os pesadelos tinham recomeçado. Acordava todas as noites banhada em suor, com fragmentos de imagens na cabeça. Sabia que algo não estava bem, mas o silêncio era a única resposta às perguntas que lhe fazia com tato. E por isso é que decidira concentrar os seus esforços em fazer com que Matte comesse. Provavelmente, tudo ficaria bem se ao menos engordasse uns quilos.
— Não queres mais um bocadinho? — sugeriu Signe quando Matte pousou o garfo. Ainda restava no prato do filho metade da enorme porção que lhe tinha servido.
— Já chega, Signe — repreendeu Gunnar. — Deixa o rapaz sossegado.
— Não faz mal — disse Matte, retribuindo-lhes um sorriso pálido.
O menino da mamãe. Matte não queria que Signe fosse repreendida por sua causa, embora ela soubesse, pelos quarenta anos que já tinha passado com o marido, que Gunnar ladrava mais do que mordia. Na verdade, seria difícil encontrar um homem mais amável. Signe sabia que o problema era dela, que se preocupava demasiado.
— Desculpa, Matte. Claro que não precisas de comer mais. — Signe dirigia-se ao filho pela alcunha que tinha desde que começara a falar, quando ainda não conseguia pronunciar o nome corretamente. Chamava Matte a si próprio e toda a gente tinha passado a fazer o mesmo. — Adivinha quem está cá de visita? — prosseguiu alegremente Signe, pegando nos pratos e começando a levantar a mesa.
— Não faço ideia.
— Nathalie.
Matte teve um sobressalto e olhou para a mãe.
— Nathalie? A minha Nathalie? Gunnar deu uma risada.
— Sabia que isso te ia despertar. Sempre tiveste uma queda por ela.
— Ei, para com isso.
De repente, Signe imaginou Matte adolescente. Uma madeixa a cair-lhe sobre os olhos enquanto lhe contava, a balbuciar, que tinha uma namorada.
— Hoje levei-lhe alguns mantimentos — disse Gunnar. — Nathalie está na Ilha dos Espíritos.
— Oh, não lhe chames isso. — Signe estremeceu. — O nome da ilha é Gråskär.
— Quando chegou Nathalie? — perguntou Matte.
— Ontem, acho eu. E trouxe o miúdo com ela.
— Quanto tempo vai lá ficar?
— Disse que não sabe. — Gunnar pôs uma pitada de rapé sob o lábio superior e recostou-se com satisfação na cadeira.
— Ela estava... estava na mesma? Gunnar assentiu.
— Claro, claro que estava exatamente na mesma, a nossa pequena Nathalie. Exatamente na mesma. Por acaso pareceu-me que tinha um olhar um bocado triste, mas talvez fosse imaginação minha. Talvez tenham discutido lá em casa, não faço ideia.
— Não especules sobre esses assuntos — repreendeu-o Signe. — Viste o miúdo?
— Não. Nathalie foi me encontrar no cais e eu não demorei muito. Por que não vais lá cumprimentá-la? — perguntou Gunnar, virando-se para Matte. — Tenho certeza de que ia ficar contente por receber uma visita lá na Ilha dos Espíritos. Desculpa, quis dizer Gråskär — acrescentou, lançando um olhar irritado a Signe.
— Isso não passa de um monte de antigas superstições sem sentido. Acho que não devemos incentivar essas coisas — disse Signe, e um sulco profundo apareceu-lhe entre as sobrancelhas.
— Nathalie acredita nisso — afirmou calmamente Matte. — Sempre disse saber que eles estavam lá.
— Que queres dizer com “eles”? — Por mais que preferisse mudar de assunto, Signe tinha curiosidade em ouvir o que Matte ia dizer.
— Os mortos. Nathalie dizia que às vezes os via e os ouvia, mas que não eram malintencionados. Tinham simplesmente ficado por lá.
— Que horror. Bem, agora acho que está na altura da sobremesa. Fiz pudim de ruibarbo. — Signe levantou-se abruptamente. — Apesar de dizer uma data de disparates, numa coisa o teu pai tem razão: Nathalie ia ficar contente se a fosses visitar.
Matte não disse nada. Parecia estar Ionge, perdido em seus pensamentos.
*Pequeno recife rochoso. (N. do T)
**O Estranho, Camilla Läckberg. (N. do T)
FJÄLLBACKA, 1870
EMELIE ESTAVA APAVORADA. NUNCA TINHA VISTO O MAR, MUITO MENOS NAVEGADO NO QUE PARECIA SER UM BARCO MUITO INSTÁVEL. AGARRAVA-SE COM FORÇA À BORDA. SENTIA-SE A SER ARREMESSADA PARA A FRENTE E PARA TRÁS PELAS ONDAS, SEM A MAIS PEQUENA HIPÓTESE DE OFERECER RESISTÊNCIA OU DE CONTROLAR O PRÓPRIO CORPO. PROCUROU O OLHAR DE KARL, MAS O MARIDO TINHA UMA EXPRESSÃO RESOLUTA, FITANDO O QUE OS ESPERAVA LÁ AO LONGE.
AS PALAVRAS AINDA LHE ECOAVAM NOS OUVIDOS. PROVAVELMENTE, NÃO PASSAVAM DE DIVAGAÇÕES SUPERSTICIOSAS DE UMA VELHA, MAS NÃO CONSEGUIA DEIXAR DE PENSAR NELAS. A MULHER PERGUNTARA- LHES PARA ONDE IAM QUANDO ESTAVAM A CARREGAR O PEQUENO VELEIRO COM OS SEUS PERTENCES NO PORTO DE FJÄLLBACKA.
— PARA GRÅSKÄR — RESPONDERA ALEGREMENTE EMELIE. — KARL, O MEU MARIDO, É O NOVO FAROLEIRO DA ILHA.
A MULHER NÃO PARECEU IMPRESSIONADA. EM VEZ DISSO, RESFOLEGOU E, ESBOÇANDO UM SORRISO ESTRANHO, DISSE:
— GRÅSKÄR? AH, ESTOU A VER. NINGUÉM LHE CHAMA GRÅSKÄR POR ESTES LADOS.
— AI NÃO? — EMELIE TEVE A SENSAÇÃO DE QUE NÃO DEVIA PERGUNTAR, MAS A CURIOSIDADE FOI MAIS FORTE DO QUE ELA. — ENTÃO COMO É QUE LHE CHAMAM?
A PRINCÍPIO, A VELHA NÃO RESPONDEU. DEPOIS, BAIXOU A VOZ PARA RESPONDER:
— POR AQUI CHAMAMOS ILHA DOS ESPÍRITOS.
— ILHA DOS ESPÍRITOS? — O RISO NERVOSO DE EMELIE RESSOOU PELAS ÁGUAS NA NEBLINA MATINAL. — QUE ESTRANHO. POR QUÊ?
OS OLHOS DA VELHA BRILHARAM QUANDO FALOU.
— PORQUE SE DIZ QUE AQUELES QUE MORREM LÁ NUNCA DEIXAM A ILHA.
ENTÃO, A MULHER RODOU NOS CALCANHARES E DEIXOU EMELIE PARA ALI ESPECADA, NO MEIO DE TODOS OS SACOS E MALAS, COM UM TERRÍVEL NÓ NO ESTÔMAGO EM VEZ DA ALEGRIA E EXPETATIVA QUE A PREENCHIAM ESCASSOS MOMENTOS ANTES.
E AGORA PARECIA ESTAR PRESTES A ENFRENTAR A MORTE A QUALQUER MOMENTO. O MAR ERA TÃO VASTO, TÃO INDOMÁVEL, E PARECIA ESTAR A ATRAÍ-LA PARA O SEU SEIO. EMELIE NÃO SABIA NADAR. SE ALGUMA DAS VAGAS —, QUE PARECIAM ENORMES, APESAR DE KARL LHE TER DITO QUE NÃO PASSAVAM DE PEQUENAS ONDAS, — VIRASSE O BARCO, EMELIE ACREDITAVA QUE SERIA PUXADA PARA BAIXO, PARA AS PROFUNDEZAS. AGARROU-SE COM MAIS FORÇA À BORDA, CRAVANDO OS OLHOS NO CHÃO, OU NO CONVÉS, COMO KARL INSISTIA EM CHAMAR-LHE.
— OLHA, GRÅSKÄR.
O TOM DE KARL EXIGIA QUE EMELIE OLHASSE, POR ISSO RESPIROU FUNDO E ERGUEU OS OLHOS, OLHANDO PARA ONDE O MARIDO ESTAVA A APONTAR. A PRIMEIRA COISA QUE LHE OCORREU FOI QUE A ILHA ERA MUITÍSSIMO BONITA. O CHALÉ, EMBORA PEQUENO, PARECIA BRILHAR À LUZ DO SOL E AS ROCHAS CINZENTAS REFULGIAM. VIU QUE CRESCIAM MALVAS NUMA DAS EXTREMIDADES DA CASA E FICOU SURPREENDIDA POR CONSEGUIREM DAR-SE NUM CENÁRIO TÃO ÁRIDO. A OESTE, A COSTA ERA MUITO ÍNGREME, COMO SE AS FALÉSIAS TIVESSEM SIDO CORTADAS AO MEIO. MAS NAS OUTRAS DIREÇÕES AS ROCHAS INCLINAVAM-SE GRADUALMENTE PARA O MAR.
DE REPENTE, AS ONDAS JÁ NÃO PARECIAM TÃO TEMÍVEIS. EMELIE CONTINUAVA A DESEJAR SENTIR TERRA FIRME DEBAIXO DOS PÉS, MAS GRÅSKÄR JÁ A TINHA ENCANTADO. ENTÃO, EMPURROU AS PALAVRAS DA VELHA SOBRE A ILHA DOS ESPÍRITOS PARA OS RECANTOS MAIS LONGÍNQUOS DA MENTE. UM SÍTIO TÃO BELO NÃO PODIA ESCONDER NENHUM MAL.
TINHA-OS OUVIDO DURANTE A NOITE. Os mesmos sussurros, as mesmas vozes que recordava da infância. Quando acordou, o relógio indicou-lhe que eram três da manhã. A princípio, Nathalie não soube o que a tinha feito despertar. Mas depois ouviu-os. Estavam a falar lá em baixo. Uma cadeira arranhou o chão. De que falariam os espíritos uns com os outros? Acerca de factos que tinham acontecido antes de morrerem? Ou sobre o que estava a acontecer agora, muitos anos depois?
Nathalie estava consciente da presença deles na ilha desde que se conseguia lembrar. A mãe tinha- lhe contado que, quando ainda era bebê, Nathalie começava subitamente a rir-se e a abanar os braços como se visse coisas que mais ninguém podia ver. À medida que foi crescendo, tornou-se cada vez mais consciente deles. Uma voz, algo que entrevia ao passar, a sensação de que havia mais alguém lá em casa. Mas eles não queriam fazer-lhe mal. Sabia-o nessa época e sabia-o agora. Permaneceu acordada durante muito tempo, ouvindo-os, até que as suas vozes acabaram por a embalar, fazendo com que voltasse a adormecer.
Quando a manhã chegou, Nathalie recordou os sons como nada mais do que um sonho distante. Preparou o pequeno-almoço para ela e para Sam, mas o filho recusou-se a comer os seus cereais preferidos.
— Por favor, meu querido, só uma colherada. Só um bocadinho, não? — Nathalie tentava persuadi- lo, mas não conseguiu que Sam comesse o que quer que fosse. Com um suspiro, largou a colher. — Sabes muito bem que tens de comer — disse, acariciando-lhe a face.
Sam não proferira uma única palavra desde que tudo acontecera. Mas Nathalie empurrou a preocupação para um canto distante da mente. Precisava de dar tempo ao filho e não podia pressioná-lo; tinha simplesmente de estar disponível para ele à medida que Sam processava as memórias, armazenando-as e substituindo-as por outras. E não havia melhor lugar para fazer isso do que ali, em Gråskär, longe de tudo, ao pé das falésias, do sol e do mar salgado.
— Sabes que mais, vamos esquecer o pequeno-almoço e, em vez disso, vamos dar um mergulho. — Nathalie não teve resposta e limitou-se a pegar nele e a levá-lo lá para fora, para o sol. Ternamente, despiu-o e levou-o até o mar, como se Sam fosse um bebê de um ano e não um rapazinho de cinco. A água estava um bocado fria, mas Sam não esboçou qualquer protesto enquanto Nathalie avançava mar adentro e ao mesmo tempo pressionava a cabeça do filho contra o peito para o proteger. Aquele era o melhor remédio. Ficariam ali até que a tempestade amainasse. Até que tudo voltasse ao normal.
— Pensava que só vinhas segunda-feira — disse Annika, olhando para Patrik por cima dos óculos para computador. O colega tinha parado à porta do gabinete de Annika, que era também a recepção da delegacia.
— Erica expulsou-me. Argumentou que estava fartinha de ver a minha carantonha lá em casa. –
Patrik tentou esboçar um sorriso, mas a recordação do dia anterior ainda estava muito presente, pelo que o riso não se refletiu no olhar.
— Compreendo-a perfeitamente — respondeu Annika, mas a sua expressão era tão melancólica como a de Patrik. A morte de uma criança afetava toda a gente. Desde que Annika e o marido, Lennart, tomaram conhecimento de que em breve teriam em casa a muito aguardada menina chinesa que haviam adotado, ela era ainda mais sensível quando se tratava de crianças que passavam mal ou que eram maltratadas.
— Tem acontecido alguma coisa por aqui? — perguntou Patrik.
— Não, nem por isso. Só o habitual. Aquela velhota, a senhora Strömberg, telefonou pela terceira vez esta semana a dizer que o genro está a tentar matá-la. E uns miúdos foram detidos por furto na Hedemyr ’s.
— Ou seja, uma atividade do caraças.
— Exato. O grande tema de conversa do momento é o convite que recebemos para ir experimentar todas as maravilhas que aquele hotel novo tem para oferecer. O Badis.
— Parece-me tentador. Acho que devia oferecer-me para esse trabalho em particular.
— Seja como for, é bom ver a transformação que o Badis sofreu — disse Annika. — O edifício parecia prestes a desmoronar-se a qualquer momento.
— Sim, está excelente. Mas duvido que vá ser rentável. Deve ter custado uma fortuna restaurá-lo. E achas que as pessoas vão mesmo querer ir fazer um spa no Badis?
— Se não quiserem, Erling vai estar em maus lençóis. Tenho uma amiga que trabalha na Câmara que me disse que investiram grande parte do orçamento municipal no projeto.
— Pois calculo que sim. E fala-se muito por aí, em Fjällbacka, da festa que estão a planear para a inauguração. Isso também não vai ficar barato.
— Toda a delegacia foi convidada, caso não tenhas ouvido. Por isso, vamos ter todos de vestir-nos a rigor.
— Saíram todos? — perguntou Patrik, mudando de assunto. Não estava particularmente interessado em vestir-se a rigor para uma festa chique.
— Todos menos Mellberg. Deve estar no gabinete, como é costume. Nada mudou, embora Mellberg afirme que regressou ao trabalho antes de a licença acabar porque a delegacia estava à beira do colapso sem ele aqui. Pelo que a Paula me contou, tiveram de encontrar um infantário antes que Leo começasse uma carreira como lutador de sumo. Ao que parece, a gota de água foi quando um dia a Rita chegou a casa mais cedo e encontrou Bertil a enfiar hambúrgueres no liquidificador para dar a Leo. Rita foi direita ao emprego e pediu ao chefe para a deixar trabalhar em part-time nos meses seguintes.
— Estás a gozar?
— Não, é tão certo como eu me chamar Annika. Portanto, agora vamos ter de lidar com ele a tempo inteiro. Pelo menos, Ernst está feliz com isso. Mellberg deixou-o aqui na delegacia enquanto estava em casa com Leo, e o pobre cão parecia que estava a definhar. Passava o tempo todo a ganir no cesto.
— Bem, suponho que é bom saber que nada mudou — disse Patrik. Dirigiu-se para o gabinete e respirou fundo antes de entrar. Talvez o trabalho o fizesse esquecer os tristes acontecimentos do dia anterior.
Nunca mais se ia levantar. Ia simplesmente ficar ali na cama a olhar fixamente pela janela para o céu, que às vezes era azul, outras, cinzento. Por um momento, até desejou estar outra vez no hospital. As coisas tinham sido muito mais simples por lá. Tão calmas e pacíficas. Toda a gente tão carinhosa e atenciosa, falando em voz baixa e ajudando-a a comer e a lavar-se. Ali, em casa, havia demasiados ruídos a perturbá-la. Podia ouvir as crianças a brincar e os seus gritos reverberavam pela casa. De vez em quando iam espreitá-la, de olhos muito abertos. Era como se estivessem a exigir alguma coisa dela, como se quisessem algo que ela não podia dar-lhes.
— Anna, estás a dormir?
Era a voz de Dan. Teria gostado de fingir que estava a dormir, mas sabia que Dan não se deixaria enganar.
— Não.
— Preparei-te uma refeição. Sopa de tomate com pão torrado e queijo de cabra. Pensei que talvez quisesses descer para comer conosco. As crianças estão a perguntar por ti.
— Não.
— Não queres comer ou não vais descer?
Anna podia ouvir a frustração na voz de Dan, mas não se importava. Não se importava com nada. Não havia nada além de um enorme vazio dentro dela. Não havia lágrimas nem tristeza nem raiva.
— Não.
— Tens de comer. Tens de... — a voz se quebrou e Dan pôs a bandeja na mesa de cabeceira de
Anna com um estrondo, fazendo com que um pouco de sopa de tomate se entornasse.
— Não.
— Eu também perdi um filho, Anna. E as crianças perderam um irmão. Precisamos de ti. Nós...
Anna ouviu-o à procura de palavras. Mas, no seu cérebro, apenas havia espaço para uma palavra. Uma única palavra que se tinha alojado dentro do vazio. Desviou o olhar.
— Não.
Passado um momento, Anna ouviu Dan a sair do quarto. Virou-se para voltar a olhar pela janela.
Preocupava-a que o filho parecesse tão distante.
— Meu querido Sam. — Nathalie embalou-o nos braços, acariciando-lhe o cabelo. Sam ainda não tinha emitido um único som. Ocorreu-lhe que talvez o devesse ter levado a um médico, mas rapidamente descartou a ideia. Ainda não estava preparada para deixar alguém entrar no mundo deles. Se Sam tivesse simplesmente um pouco de paz e sossego, em breve voltaria a ser como era.
— Queres dormir uma sesta, meu amor?
Sam não respondeu, mas Nathalie levou-o para a cama e deitou-o. Depois fez café, verteu um pouco numa chávena com leite e saiu para se ir sentar no cais, saboreando o calor do sol no rosto. Fredrik adorava o sol. Na verdade, venerava-o. Estava sempre a protestar acerca do frio que se fazia sentir na Suécia e de como era raro o sol brilhar.
Porque teria pensado nele de repente? Tinha empurrado todos aqueles pensamentos para o fundo da sua mente. Já não tinha mais lugar nas suas vidas. Fredrik, com as suas exigências constantes e a sua necessidade de controlar tudo e todos. Sobretudo de a controlar a ela — e a Sam.
Ali, em Gråskär, não havia qualquer vestígio dele. Fredrik nunca tinha estado na ilha; era toda dela. Nunca quisera lá ir. “Que um raio me fulmine se me vou alguma vez enfiar na porra de um rochedo”, dissera das poucas vezes que lhe pedira para ir a Gråskär. Nathalie estava contente por
Fredrik se ter recusado a ir. A ilha não tinha sido manchada pela sua presença. Era um lugar puro, que lhes pertencia apenas aos dois, a ela e a Sam.
Firmou as mãos em torno da chávena de café. Os anos tinham passado tão depressa. O tempo tinha voado e, no fim, ficara atolada. Não tinha escapatória, não havia qualquer possibilidade de fuga. Não tinha mais ninguém além de Fredrik e de Sam. Para onde haveria de ter ido?
Pelo menos agora estavam finalmente livres. Sentiu a brisa salgada acariciar-lhe o rosto. Tinham conseguido. Ela e Sam. Quando o filho estivesse recuperado, poderiam viver a sua própria vida.
Nathalie estava em casa. Depois do jantar com os pais, Matte passara a noite inteira a pensar nela. Nathalie, com os longos cabelos louros e as sardas no nariz e nos braços. Nathalie, que cheirava a mar e a verão. Depois daqueles anos todos, ainda podia sentir o calor dela nos seus braços. Era verdade o que diziam: nunca se esquece o primeiro amor. E aqueles três verões em Gråskär só poderiam ser descritos como mágicos. Tinha ido vê-la sempre que podia e, juntos, tinham-se apropriado daquela pequena ilha.
Mas de vez em quando Nathalie assustava-o. O seu riso límpido parava abruptamente e então Nathalie parecia desaparecer numa escuridão onde não podia alcançá-la. Nunca conseguia explicar os sentimentos que se apoderavam dela, por isso acabou por aprender a deixá-la em paz sempre que aquilo acontecia. Durante o último verão, a escuridão ensombrara-a mais frequentemente e Nathalie tinha-se afastado lentamente dele. Em agosto, ao acenar-lhe para se despedir quando Nathalie embarcava no comboio para Estocolmo com a sua bagagem, Matte soube que estava tudo acabado.
Desde então, nunca mais tinham falado um com o outro. No ano seguinte, quando os pais dela faleceram, um a seguir ao outro, Matte tentou telefonar-lhe, mas apenas conseguiu chegar ao gravador de chamadas. Nathalie nunca lhe devolveu o telefonema. E o chalé de Gråskär permaneceu vazio. Matte sabia que os pais iam lá ocasionalmente para cuidar da casa e que, de vez em quando, Nathalie lhes enviava dinheiro para pagar os seus esforços. Mas nunca voltara à ilha e, com o tempo, as recordações que tinha dela foram-se desvanecendo.
Agora, Nathalie tinha regressado. Sentado à secretária, Matte olhava o vazio. As suas suspeitas sobre o financiamento do projeto do spa estavam a ficar cada vez mais fortes e havia assuntos a resolver. Mas a recordação de Nathalie insistia em intrometer-se. Quando o sol da tarde começou a afundar-se atrás do edifício da câmara municipal de Tanumshede, Matte recolheu todos os documentos que tinha à frente. Precisava de ver Nathalie. Com uma passada resoluta, saiu do gabinete, fazendo uma pausa para trocar algumas palavras com Erling antes de se dirigir ao carro. A mão tremia-lhe quando rodou a chave na ignição e ligou o motor.
— Chegaste tão cedo, amor!
Vivianne foi cumprimentar Erling, dando-lhe um beijo ao de leve na face. Erling não resistiu a agarrá-la, envolvendo com os braços a cintura da mulher para puxá-la para mais perto dele.
— Então, então, tem calma. Temos de conservar a nossa energia para mais logo. — Vivianne pôs-lhe as mãos no peito para mantê-lo afastado.
— Tens certeza disso? Ultimamente, à noite, tenho-me sentido tão cansado. — Erling voltou a puxá- la para si. Para seu grande desapontamento, Vivianne escapou-se e virou-se, começando a dirigir-se para o escritório.
— Vais mesmo ter de esperar. Tenho tanta coisa para fazer que não ia conseguir descontrair. E tu sabes como as coisas correm quando não estou descontraída.
— Okay, tudo bem.
Cabisbaixo, Erling observou-a a afastar-se. Claro que podiam esperar até mais tarde, mas há mais de uma semana que adormecia no sofá. Acordava todas as manhãs e dava por si deitado sob um cobertor com que Vivianne o tinha tapado com ternura e com uma das almofadas do sofá debaixo da cabeça. Não conseguia compreender aquilo. O mais certo era estar a trabalhar de mais. Devia mesmo começar a delegar mais tarefas nos outros.
— Mas trouxe uma guloseima para nós — disse Erling em voz alta.
— És um querido. O que é?
— Camarão dos irmãos Olsson e uma excelente garrafa de chablis.
— Que maravilha. Estou despachada por volta das oito horas; era ótimo se tivesses tudo pronto a essa hora.
— Claro, meu amor — murmurou Erling.
Pegou nos sacos de compras e levou-os para a cozinha. Aquilo ainda lhe provocava alguma estranheza. Quando estava casado com Viveca, era a mulher quem cozinhava. Mas desde que Vivianne se tinha mudado para lá, fizera com que essa responsabilidade recaísse sobre ele. Por mais voltas que desse à cabeça, Erling não percebia como aquilo tinha acontecido.
Suspirou profundamente enquanto guardava as compras no frigorífico. Então pensou no que lhe estava reservado à noite e o seu estado de espírito elevou-se. Ia certificar-se de que Vivianne ficava bem descontraída. Isso compensaria certamente o tempo que teria de perder na cozinha.
Erica respirava com dificuldade enquanto caminhava por Fjällbacka. Ter estado grávida de gêmeos e depois ter sido submetida a uma cesariana não tinha sido particularmente benéfico para o peso nem para a forma física. Mas essas coisas pareciam-lhe agora incrivelmente insignificantes. Ambos os filhos eram saudáveis. Tinham sobrevivido, e a gratidão que sentia todas as manhãs, quando começavam a chorar às seis e meia, era tão grande que ainda lhe trazia lágrimas aos olhos.
Anna tivera um destino muito pior e, pela primeira vez, Erica não fazia ideia de como aproximar- se da irmã. O relacionamento entre ambas nunca fora fácil, porém, desde crianças, Erica tinha sido a única pessoa a cuidar de Anna, soprando nas suas feridas e arranhões, limpando-lhe as lágrimas. Desta vez as coisas eram diferentes. A ferida não era um simples arranhão, antes um buraco profundo na alma da irmã. Erica tinha a sensação de que a única atitude que podia tomar era observar, impotente, como a força vital de Anna a ia abandonando. Como haveria de ajudá-la a sarar aquela ferida? O filho de Anna tinha morrido e, por mais triste que Erica estivesse, não conseguia esconder a alegria que sentia pelos facto de os seus próprios filhos terem sobrevivido. Depois do acidente, Anna não suportava olhar para ela. Erica tinha ido ao hospital e sentara-se ao lado da cama da irmã. Mas Anna não a olhara nos olhos uma única vez.
Depois de Anna ter ido para casa, Erica não conseguira ir visitá-la. Tinha apenas telefonado algumas vezes a Dan. O amigo parecia ao mesmo tempo deprimido e resignado. Mas Erica não podia adiar a visita por mais tempo. Tinha pedido a Kristina para ir lá a casa tomar conta dos gêmeos e de Maja. Anna era sua irmã. Erica era responsável por ela.
A mão parecia de chumbo quando bateu à porta. Ouviu a barulheira das crianças no interior e, passado um momento, Emma abriu a porta.
— Tia Erica! — gritou alegremente. — Onde estão os bebês?
— Estão em casa, com Maja e a avó. Erica deu uma palmadinha no rosto de Emma. Era tão parecida com Anna em criança.
— A mamãe está triste — disse Emma, erguendo os olhos para Erica. — Está sempre a dormir e o papá diz que é porque está muito triste. Está triste porque o bebê que tinha na barriga decidiu ir para o céu em vez de vir viver aqui conosco. E eu percebo por que, porque Adrian é sempre tão barulhento e Lisen está sempre a provocar-me. Mas eu ia ser muito boazinha para o bebê. Muito boazinha.
— Eu sei que ias, minha querida. Mas pensa como o bebê deve estar divertido, lá em cima aos pulos naquelas nuvens todas.
— Como se estivesse a saltar em montes e montes de trampolins gigantes? — O rosto de Emma iluminou-se.
— É isso mesmo. Como se estivesse a saltar em montes de trampolins.
— Ah, como eu queria ter montes de trampolins grandes — disse Emma. — Só temos um, minúsculo, no jardim. Só há espaço para um de cada vez e Lisen consegue ser sempre a primeira, e eu nunca tenho vez. — Emma virou-se e dirigiu-se à sala de estar, ainda resmungando para si mesma.
Só então é que Erica se apercebeu do que Emma tinha dito. Chamara papá a Dan. Erica sorriu. Na verdade, aquilo não a surpreendeu, porque Dan adorava os filhos de Anna e estes tinham-no adorado desde o início. O filho que Dan e Anna esperavam teria unido ainda mais a família. Erica engoliu em seco enquanto seguia Emma para a sala de estar. Era como se tivesse ali explodido uma bomba.
— Desculpa a confusão — disse Dan, envergonhado. — Não consigo dar conta do recado. Parece que o dia não tem horas suficientes.
— Percebo bem o que queres dizer. Devias ver como está a nossa casa. — Erica parou à entrada da sala, olhando para o teto. — Posso ir lá acima?
— Claro, força — Dan esfregou a cara com a mão. Parecia tristíssimo e completamente exausto.
— Eu vou contigo — disse Emma. Mas Dan agachou-se e, em voz baixa, convenceu-a a deixar Erica ir ter com Anna sozinha.
O quarto de Dan e de Anna ficava ao cimo das escadas, à direita. Erica ergueu a mão, mas depois absteve-se de bater à porta, abrindo-a antes cautelosamente. Anna estava deitada com o rosto virado para a janela. O sol de fim de tarde incidia-lhe na cabeça, fazendo brilhar o couro cabeludo e a penugem que começava a despontar. Erica sentiu uma pontada no coração. Sempre fora mais como uma mãe para Anna, mas isso mudara ao longo dos últimos anos e a ligação entre ambas evoluíra para um relacionamento normal entre duas irmãs. No entanto, de um golpe, estavam de volta aos seus antigos papéis. Anna, jovem e vulnerável; Erica, preocupada e protetora.
A respiração de Anna era calma e regular. Emitiu um leve gemido e Erica percebeu que a irmã estava a dormir. Avançou em bicos de pés até a cama e sentou-se cuidadosamente na borda, para não a acordar. Suavemente, pôs a mão na anca da irmã. Quer Anna gostasse quer não, pretendia ficar a seu lado. Eram irmãs. E amigas.
— Papai chegou! — anunciou Patrik em voz alta, ficando em seguida à espera da reação esperada. Ouviu dois pezinhos a martelar o chão e, no segundo seguinte, viu Maja virar a esquina em alta velocidade, direitinha a ele.
— Papaaaai! — a menina beijou-lhe repetidamente o rosto, como se Patrik tivesse regressado de uma viagem à volta do mundo e não apenas de mais um dia de trabalho.
— Olá, meu amor. Como está a menina pequenina do papá? — Patrik deu-lhe um grande abraço, enterrando o nariz no pescoço da filha e inalando aquele aroma especial de Maja, que fazia sempre com que o coração lhe desse um salto no peito.
— Pensava que só ias trabalhar a meio tempo. — A mãe de Patrik limpou as mãos a um pano da louça enquanto lhe lançava o mesmo olhar que Patrik recordava de quando era adolescente e chegava a casa mais tarde do que tinha prometido.
— Soube tão bem regressar ao trabalho que fiquei mais um bocado. Mas vou fazer as coisas com calma. De momento, não temos nada urgente em mãos.
— Bem, tu é que sabes. Mas tens de ouvir o teu corpo. O que te aconteceu deve ser levado a sério.
— Okay, okay. — Patrik esperava que a mãe parasse com aquela conversa. Não precisava mesmo de preocupar-se. Patrik não se conseguia esquecer do terror que o tinha dominado na ambulância, a caminho do Hospital de Uddevalla. Pensou que ia morrer, estava completamente convencido disso. Imagens de Maja, de Erica e dos dois bebês que nunca ia conseguir ver davam-lhe voltas e mais voltas na mente, fundindo-se com a dor que sentia no peito.
Só quando acordou nos Cuidados Intensivos é que se apercebeu de que tinha sobrevivido, de que aquela tinha sido a forma de o corpo lhe dizer para levar a vida com mais calma. Mas depois fora informado do acidente de viação e uma nova dor tinha-se apoderado dele. Quando o levaram numa cadeira de rodas para ver os gêmeos, o primeiro impulso de Patrik ao chegar à porta do quarto foi dar meia-volta e desaparecer dali. Eram tão pequenos e indefesos. Os peitos minúsculos subiam e desciam com tal esforço... De vez em quando, um espasmo fazia-lhes estremecer os corpos. Não conseguia acreditar que algo tão pequeno pudesse sobreviver; não queria aproximar-se, não queria tocar-lhes. Se o fizesse, não tinha certeza se conseguiria dizer-lhes adeus.
— Onde estão os teus irmãos? — perguntou Patrik a Maja. Ainda estava com a filha ao colo e Maja tinha os braços bem apertados em torno do seu pescoço.
— Estão a dormir. Mas fizeram uma grande porcaria nas fraldas. Uma grande porcaria. A avó limpou tudo. Cheirava mesmo mal. — Maja franziu o nariz.
— Têm sido uns anjinhos — assegurou Kristina, cujo rosto se iluminou. Cada um bebeu quase dois biberões e depois adormeceram sem o mais pequeno problema. Bem, depois de sujarem as fraldas, como disse Maja.
— Vou num instante vê-los lá acima — disse Patrik. Desde que os gêmeos tinham tido alta do hospital e ido para casa, tinha-se habituado a não os perder de vista por muito tempo. Enquanto estava na delegacia, sentira um desejo tremendo de vê-los.
Subiu as escadas até o quarto. Erica e Patrik não tinham querido separar os dois meninos, por isso dormiam na mesma caminha. Naquele momento, estavam tão perto um do outro que os seus narizes se tocavam. O braço de Noel estava estendido sobre Anton, como se estivesse a protegê-lo. Patrik perguntou a si próprio quais seriam os seus papéis. Noel parecia um pouco mais exigente e era mais ruidoso do que Anton, que mostrava estar sempre satisfeito. Enquanto tivesse comida suficiente e o deixassem dormir quando estava cansado, nunca protestava e não lhe ouviam nada a não ser uma tagarelice de contentamento. Noel, por outro lado, emitia protestos sonoros se alguma coisa não lhe agradasse. Não gostava que o vestissem nem que lhe mudassem a fralda. O pior de tudo era tomar banho. A julgar pelos berros, o bebê parecia pensar que a água constituía um perigo de morte.
Patrik deixou-se ficar durante bastante tempo debruçado sobre o berço dos filhos. Noel e Anton estavam a dormir profundamente, as pálpebras a estremecer levemente. Perguntou a si próprio se estariam a sonhar a mesma coisa.
Nathalie estava sentada nos degraus à luz do sol, que se desvanecia enquanto observava o barco a aproximar-se. Sam já tinha adormecido. Lentamente, levantou-se e avançou até o cais.
— Peço autorização para ir a terra!
A voz de Matte soava familiar, embora diferente. Nathalie percebeu que o amigo tinha passado por muito desde a última vez que tinham estado juntos. De início teve vontade de gritar:
“Não, não venhas a terra! Tu já não pertences aqui.” Em vez disso, pegou no cabo que Matte lhe lançou e, com mão experimentada, fez um nó duplo para amarrar o barco. No segundo seguinte, o amigo já estava no cais. Nathalie tinha-se esquecido de como era alto. Estava habituada a ser da mesma altura da maioria dos homens, mas sempre tinha conseguido encostar a cabeça contra o peito de Matte. Fredrik estava sempre a provocá-la por causa disso, de ser pelo menos dois centímetros mais alta que ele. Nathalie via-se forçada a usar sapatos rasos sempre que iam juntos a algum lado.
Não penses em Fredrik agora. Não penses...
Nathalie deu por si nos braços de Matte. Não sabia muito bem como aquilo tinha acontecido, nem quem dera o primeiro passo. De repente, os braços dele estavam em torno dela e a sua camisola áspera arranhava-lhe a face. Sentiu-se segura, envolta no seu abraço, e inspirou aquele cheiro familiar, um cheiro que não sentia há muitos anos. O cheiro de Matte.
— Olá, Nathalie. — Matte abraçou-a ainda com mais força, como se estivesse a tentar impedi-la de cair, e conseguiu-o. Nathalie queria ficar assim para sempre, tocando tudo o que lhe havia pertencido há muito tempo mas que tinha desaparecido no caos da escuridão e do desespero. Por fim, Matte soltou-a e afastou-a um pouco enquanto lhe estudava o rosto, como se a estivesse a ver pela primeira vez.
— Estás na mesma — disse. Mas Nathalie podia ver nos seus olhos que não era verdade. Não era a mesma, era outra pessoa. Isso era evidente no seu rosto, nas linhas gravadas em redor dos olhos e da boca, e Nathalie sabia que Matte se tinha dado conta da mudança. Adorava-o por fingir o contrário. Matte fora sempre muito bom nisso, em fingir que bastava fechar os olhos com força suficiente para que as coisas más se fossem embora.
— Anda — convidou Nathalie, estendendo-lhe a mão. Matte apertou-a e, em seguida, caminharam até a casa.
— A ilha também parece estar na mesma. — O vento apoderou-se da voz de Matte, transportando-a pelas falésias.
— Sim. Nada mudou por aqui. — Nathalie queria dizer mais, mas Matte entrou. Teve de baixar-se ao transpor a porta e, então, o momento passou. Fora sempre assim com Matte. Nathalie conseguia lembrar-se de palavras que tinha guardado dentro de si e que queria dizer-lhe, mas as palavras recusavam-se a sair, deixando-a muda. E entristecendo-o. Nathalie sabia disso, que Matte ficava triste por o excluir sempre que a escuridão se apoderava dela.
Agora também não podia deixá-lo entrar, mas podia permitir-lhe que ficasse ali com ela, na casa. Pelo menos por um tempo. Precisava da sua presença calorosa. Tinha estado congelada durante tanto tempo.
— Queres um chá? — perguntou, tirando um tacho do armário sem esperar pela resposta do amigo. Tinha de manter-se ocupada para não revelar que estava a tremer.
— Sim, vem mesmo a calhar. Onde está o teu filhote? Que idade é que já tem? Nathalie lançou-lhe um olhar inquiridor.
— Os meus pais já me fizeram o relato todo — disse Matte com um sorriso.
— Tem cinco. E já está a dormir.
— Ah! — Matte parecia desapontado, o que lhe acalentou o coração. Aquilo era importante para ela. Muitas vezes se interrogara como as coisas teriam sido se houvesse tido Sam com Matte, em vez de com Fredrik. Embora nesse caso não fosse Sam, mas outro filho diferente. E isso era impossível de imaginar.
Estava contente por Sam estar a dormir. Não queria que Matte o visse como estava. Mas, assim que Sam se sentisse melhor, apresentaria a Matte o seu tesouro, cujos olhos castanhos eram sempre tão travessos. Quem lhe dera que aquele olhar traquina voltasse, para poderem passar os três algum tempo juntos. Estava ansiosa por isso.
Permaneceram sentados em silêncio durante algum tempo, bebericando o chá quente. Era curioso sentirem-se como estranhos, saber que tinham deixado que o passar do tempo os conduzisse àquele estado. Depois começaram a falar. Não foi fácil, porque já não eram as mesmas pessoas. Lentamente, caíram num ritmo familiar que fora só deles, conseguindo eliminar tudo o que os anos tinham interposto entre os dois.
Quando Nathalie lhe pegou na mão e o conduziu ao primeiro andar, pareceu-lhe a coisa mais natural do mundo. Depois de terem feito amor, Nathalie adormeceu com os braços de Matte em torno dela e a sua respiração no ouvido. Lá fora podia ouvir o som das ondas a embater nas rochas.
Vivianne tapou Erling com um cobertor. O comprimido para dormir tinha-o posto fora de combate, como era costume. Erling tinha começado a interrogar-se por que adormecia todas as noites no sofá e Vivianne sabia que tinha de ter cuidado, mas já não conseguia estar deitada ao seu lado, sentir o corpo dele a tocar no seu. Era impossível.
Foi até a cozinha e deitou as cascas de camarão no lixo. Depois passou os pratos por água e pô-los na máquina de lavar louça. Ainda havia vinho na garrafa, pelo que deitou um pouco num copo lavado e voltou para a sala de estar.
Já faltava tão pouco... Mas Vivianne começava a ficar nervosa. Nos últimos dias, parecia que a ficção que tão cuidadosamente tinham construído podia desmoronar-se. Bastava que uma pequena peça saísse do lugar para que tudo desse para o torto. Vivianne sabia-o. Quando era mais nova, desfrutava de um certo prazer perverso em correr riscos. Adorava a sensação de estar à beira do abismo. Mas agora já não. Era como se, quanto mais velha ficava, mais forte se tornasse o anseio por segurança, o desejo de recostar-se na cadeira e não ter de pensar. E tinha certeza de que Anders pensava o mesmo. Eram parecidíssimos e sabiam no que o outro estava a pensar sem precisarem de dizer uma palavra que fosse. Anders sempre fora assim.
Vivianne levou o copo aos lábios, mas parou por um momento quando sentiu o cheiro do vinho. O aroma fê-la recordar acontecimentos que tinha jurado esquecer. Havia sido há tanto tempo. Nessa altura era uma pessoa diferente, alguém que nunca poderia voltar a ser sob nenhuma circunstância. Agora era Vivianne.
Sabia que precisava de Anders para não voltar a cair, deslizando para dentro daquele buraco negro das recordações que a faziam sentir-se maculada e frágil.
Dando uma última olhada para Erling deitado no sofá, pegou o casaco e saiu. Erling dormia profundamente. Não notaria sua falta.
FJÄLLBACKA, 1870
QUANDO KARL SE DECLAROU, EMELIE SENTIU QUE ESTAVA NO SÉTIMO CÉU. NUNCA PENSOU QUE UMA SITUAÇÃO DAQUELAS PUDESSE REALMENTE ACONTECER, POR MAIS QUE TIVESSE SONHADO. DURANTE OS CINCO ANOS QUE TRABALHOU COMO CRIADA NA QUINTA DOS PAIS DE KARL, ADORMECIA MUITAS VEZES COM A IMAGEM DO ROSTO DELE NOS SEUS PENSAMENTOS. MAS KARL ERA COMPLETAMENTE INALCANÇÁVEL E EMELIE SABIA DISSO. AS ÁSPERAS REPREENSÕES DE EDITH TINHAM AFUGENTADO OS SEUS ÚLTIMOS SONHOS. O FILHO DO DONO DA QUINTA NÃO IA CASAR-SE COM A CRIADA. NEM QUE ELA ENGRAVIDASSE.
KARL NUNCA LHE TINHA TOCADO. MAL FALAVA COM ELA DAS POUCAS VEZES QUE ESTAVA DE FOLGA DO SEU TRABALHO NO NAVIO FAROL E IA A CASA DE VISITA. LIMITAVA-SE A TRATÁ-LA EDUCADAMENTE, SAINDO DO SEU CAMINHO QUANDO EMELIE PRECISAVA DE PASSAR. NO MÁXIMO, PERGUNTAVA-LHE COMO ESTAVA, MAS NUNCA TINHA DADO QUALQUER SINAL DE SENTIR O MESMO QUE EMELIE SENTIA. EDITH TINHA-LHE CHAMADO TOLA, DIZENDO-LHE PARA TIRAR AQUELAS IDEIAS DA CABEÇA E PARAR DE SER TÃO SONHADORA.
MAS OS SONHOS PODEM TORNAR-SE REALIDADE E AS PRECES PODEM SER OUVIDAS. UM DIA, KARL TINHA APARECIDO E PEDIRA PARA FALAR COM ELA. EMELIE FICOU ASSUSTADA, PENSANDO QUE HAVIA FEITO ALGUM DISPARATE E QUE KARL LHE IA DIZER PARA ARRUMAR OS SEUS PERTENCES E DEIXAR A QUINTA. EM VEZ DISSO, KARL OLHARA PARA O CHÃO. UMA MADEIXA DO SEU CABELO ESCURO CAÍRA-LHE SOBRE OS OLHOS E EMELIE TEVE DE CONTER-SE PARA NÃO ESTENDER A MÃO E PÔ-LA NO LUGAR. GAGUEJANDO, KARL PERGUNTOU-LHE SE EMELIE ESTARIA DISPOSTA A ENCARAR A POSSIBILIDADE DE CASAR COM ELE. EMELIE MAL PÔDE ACREDITAR NO QUE OUVIA. DEU POR SI A MIRÁ-LO DE ALTO A BAIXO PARA VER SE KARL ESTAVA A BRINCAR. MAS KARL CONTINUOU A FALAR, AFIRMANDO QUE QUERIA QUE ELA FOSSE SUA MULHER E QUE PODERIAM CASAR NO DIA SEGUINTE. OS PAIS DELE E O PASTOR JÁ TINHAM SIDO INFORMADOS, POR ISSO, SE EMELIE ACEITASSE A SUA PROPOSTA, TUDO PODIA SER TRATADO SEM MAIS DEMORAS.
EMELIE HESITOU POR UM MOMENTO, MAS DEPOIS SUSSURROU UM “SIM”. KARL INCLINARA-SE E AGRADECERA-LHE, AO MESMO TEMPO QUE RECUAVA PARA SAIR DO QUARTO. EMELIE FICOU ALI DURANTE MUITO TEMPO, SENTINDO O CALOR A ESPALHAR-SE PELO PEITO. AGRADECEU A DEUS POR TER OUVIDO AS PRECES QUE SILENCIOSAMENTE REPETIRA TODAS AS NOITES. E DEPOIS DESATOU A CORRER AO ENCONTRO DE EDITH.
MAS EDITH NÃO REAGIU COMO EMELIE ESPERARA, COM SURPRESA E TALVEZ UM POUCO DE INVEJA. EM VEZ DISSO, FRANZIU A TESTA, JUNTANDO AS SOBRANCELHAS ESCURAS, AO MESMO TEMPO QUE ABANAVA A CABEÇA E ADVERTIA EMELIE, DIZENDO-LHE PARA TER CUIDADO. EDITH OUVIRA CONVERSAS ESTRANHAS, VOZES ALTAS E BAIXAS POR DETRÁS DE PORTAS FECHADAS DESDE QUE KARL TINHA CHEGADO A CASA DE FOLGA DO NAVIO FAROL. KARL APARECERA DE FORMA INESPERADA. PELO MENOS, NENHUMA DAS PESSOAS QUE TRABALHAVA NA QUINTA SOUBERA DE ANTEMÃO QUE O FILHO MAIS NOVO ESTAVA A CAMINHO DE CASA. E ISSO NÃO ERA HABITUAL, DISSERA EDITH. MAS EMELIE NÃO ESTAVA A OUVI-LA. INTERPRETANDO AS PALAVRAS DA AMIGA COMO UM SINAL DE QUE ESTAVA COM CIÚMES DA FELICIDADE QUE A ESPERAVA, VIROU DECIDIDAMENTE AS COSTAS A EDITH E RECUSOU-SE A VOLTAR A FALAR COM ELA. NÃO QUERIA SABER DAQUELA CONVERSA ESTÚPIDA E DAQUELAS COSCUVILHICES. IA CASAR COM KARL.
TRANSCORRERA UMA SEMANA DESDE ENTÃO E O CASAL JÁ TINHA PASSADO UM DIA E UMA NOITE NO SEU NOVO LAR. EMELIE DAVA POR SI A ANDAR POR ALI DE UM LADO PARA O OUTRO A CANTAROLAR. ERA MARAVILHOSO TER A SUA PRÓPRIA CASA. CLARO QUE ERA PEQUENA, MAS ERA ADORÁVEL NA SUA SIMPLICIDADE E EMELIE TINHA ANDADO OCUPADÍSSIMA A VARRER E A LIMPAR DESDE O DIA EM QUE CHEGARAM. AGORA, TUDO BRILHAVA E CHEIRAVA MARAVILHOSAMENTE A SABÃO PERFUMADO. EMELIE E KARL AINDA NÃO TINHAM PASSADO MUITO TEMPO JUNTOS, PORÉM, DAÍ EM DIANTE HAVERIA MUITAS OPORTUNIDADES PARA ISSO. KARL TEVE DE TRABALHAR DURAMENTE PARA ORGANIZAR TUDO. JULIAN, QUE ERA O ASSISTENTE DO FAROLEIRO, TAMBÉM JÁ CHEGARA E, NA PRIMEIRA NOITE, ELE E KARL TINHAM-SE REVEZADO NO FAROL.
EMELIE NÃO SABIA MUITO BEM O QUE PENSAR DE PARTILHAR A ILHA COM AQUELE HOMEM. JULIAN MAL TINHA FALADO COM ELA DESDE QUE DESEMBARCARA EM GRÅSKÄR. DEDICAVA-SE SOBRETUDO A OLHAR PARA ELA, UM OLHAR QUE EMELIE NÃO APRECIAVA DE TODO. MAS O MAIS CERTO ERA FAZÊ-LO POR SER TÍMIDO. NÃO DEVIA SER FÁCIL TER DE VIVER, ASSIM DE REPENTE, COM UMA DESCONHECIDA NUM LUGAR TÃO PEQUENO. SABIA QUE JULIAN CONHECIA KARL DOS TEMPOS QUE PASSARAM JUNTOS NO NAVIO FAROL, MAS IA DEMORAR ALGUM TEMPO A ACOSTUMAR-SE A ELA. E O QUE NÃO FALTAVA NA ILHA ERA TEMPO. EMELIE CONTINUOU A ANDAR DE UM LADO PARA O OUTRO NA COZINHA. NÃO IA DAR A KARL QUALQUER MOTIVO PARA SE ARREPENDER DE A TER ESCOLHIDO PARA SUA MULHER.
NATHALIE ESTENDEU A MÃO PARA MATTE, como sempre fizera naquele tempo. Era como se apenas tivesse passado um dia desde a última vez em que tinham estado deitados, juntos. Mas agora eram adultos. O corpo dele era mais anguloso e peludo, e Matte tinha cicatrizes que não existiam antes, tanto externa como internamente. Nathalie tinha-se deixado ficar ali deitada durante muito tempo, com a cabeça apoiada no peito dele e a correr o dedo pelas formas daquelas cicatrizes. Queria perguntar-lhe como as arranjara; porém, no seu coração, sabia que as coisas estavam ainda muito frágeis para se arriscar a fazer perguntas sobre o que acontecera durante os anos que tinham passado sem se verem.
Agora, o outro lado da cama estava vazio. Nathalie tinha a boca seca e sentia-se exausta. Solitária. Passou a mão sobre o lençol e a almofada, mas Matte tinha-se ido embora. Era como se Nathalie tivesse descoberto que perdera parte do próprio corpo durante a noite. Mas então sentiu uma centelha de esperança. Talvez Matte estivesse lá em baixo. Prendeu a respiração e pôs-se à escuta, mas não ouviu um único som. Envolvendo-se no cobertor, pôs os pés no soalho gasto. Avançou cautelosamente em bicos de pés até a janela que dava para o cais e olhou lá para fora. O barco dele tinha partido. Matte fora-se embora sem dizer adeus. Deslizou para o chão com as costas encostadas à parede e sentiu o princípio de uma dor de cabeça. Precisava de beber alguma coisa.
Vestiu-se lentamente. Era como se não tivesse pregado olho a noite inteira, embora soubesse que tinha dormido. Adormecera nos braços de Matte e dormira tão profundamente como há muito não dormia. Contudo, sentia a cabeça a latejar.
No térreo reinava o silêncio. Nathalie foi ver Sam e deu com ele acordado, embora estivesse deitado na cama e sem fazer o mais leve ruído. Sem dizer uma palavra, pegou nele e levou-o até a mesa da cozinha. Acariciou-lhe o cabelo antes de pôr água ao lume para fazer café. Tinha tanta sede. Precisava de água. Bebeu dois grandes copos antes que a sensação de secura na garganta desaparecesse. Limpou a boca com as costas da mão. O cansaço era maior, mais notório, agora que estava saciada. No entanto, Sam precisava de comer e ela também. Movendo-se mecanicamente, cozinhou alguns ovos, fez um sanduíche para si e preparou flocos de aveia para Sam.
Em seguida lançou um olhar furtivo à cômoda na entrada. Não lhe restava muito dinheiro. Era importante racioná-lo bem. Mas o cansaço que sentia e a memória do barco solitário no cais motivaram-na a dar os poucos passos que a separavam da entrada e a abrir a última gaveta da cômoda. Ansiosamente, enfiou as mãos por baixo da roupa, mas os dedos não encontraram o que procuravam. Voltou a procurar e depois tirou toda a roupa da gaveta. Nada. Talvez não o tivesse posto naquela gaveta. Abriu as duas outras gavetas e esvaziou o conteúdo para o chão. Nada. O pânico apoderou-se dela e, de repente, compreendeu porque é que a sua mão encontrara apenas uma cama vazia quando acordou. Agora compreendia porque é que Matte se tinha ido embora. E também porque não se tinha despedido.
Deixou-se cair no chão e enrolou-se na posição fetal, abraçando os joelhos. Da cozinha ouviu a água fervente a transbordar.
— Deixa o rapaz sossegado. — Gunnar não tirou os olhos do Bohusläningen3 quando repetiu o que andara a dizer o dia inteiro.
— Mas talvez ele queira vir jantar aqui hoje. Ou amanhã, já que é domingo. Não achas? — insistiu Signe.
Gunnar suspirou atrás do seu jornal.
— De certeza que Matte tem outras coisas para fazer no fim de semana. Ele já é crescidinho. Se quiser vir, provavelmente telefona ou aparece por cá. Não podes continuar a persegui-lo desta maneira. Além disso, Matte jantou cá no outro dia.
— Mesmo assim, acho que vou dar um toque. Para saber se está tudo bem. — Signe estendeu a mão para o telefone, mas Gunnar inclinou-se para a frente para a deter.
— Deixa-o estar — contestou Gunnar com firmeza.
Signe afastou a mão. Doía-lhe o corpo todo, tais eram as ganas de ligar para o celular de Matte, para ouvir a voz do filho e certificar-se de que estava tudo bem. Depois da tareia que lhe tinham dado Signe tornara-se mais preocupada do que nunca. O incidente tinha confirmado o que sempre soubera — que o mundo era um lugar perigoso para Matte.
De um ponto de vista lógico, Signe sabia que devia descontrair-se; mas de que adiantava isso quando cada fibra do seu corpo gritava que tinha de protegê-lo? Matte já era crescido. Signe sabia-o. Ainda assim, não conseguia deixar de se preocupar.
Signe escapuliu-se para o corredor para telefonar de lá. Quando ouviu a mensagem de Matte no gravador de chamadas, desligou o telefone. Por que o filho não atendia o celular?
— Não sei o que fazer.
Erica deixou-se cair na cadeira. Estavam a ter um raro momento de paz no meio do caos. As três crianças estavam a dormir, por isso Erica e Patrik podiam sentar-se à mesa da cozinha, a comer sanduíches quentes e a conversar sem serem constantemente interrompidos. Mas Erica não estava a conseguir aproveitar o momento. Não conseguia parar de pensar em Anna.
— Não podes fazer grande coisa a não ser estar disponível quando precisar de ti. E, afinal de contas, Anna tem Dan. — Patrik esticou-se do outro lado da mesa para pôr a mão sobre a mão de Erica.
— E se Anna me odiar? — perguntou Erica com voz desmaiada, à beira das lágrimas.
— Por que te odiaria?
— Porque eu tenho dois bebês e ela não tem nenhum.
— Mas a culpa não foi tua. Foi apenas... Não sei bem como dizer. O destino, talvez. — Patrik acariciou-lhe a mão.
— O destino? — Erica lançou-lhe um olhar de dúvida. — Anna sofreu bastante nas mãos do destino. Estava finalmente começando a a ser feliz e estávamos ficando tão próximas... Agora... vai me odiar. Eu sei que vai.
— Como é que foi ontem, quando foste vê-la?
Estiveram tão ocupados que ainda não tinham tido oportunidade de conversar. A chama da vela que Patrik acendera começou a tremeluzir e o rosto de Erica ora ficava iluminado ora ficava na sombra.
— Anna estava dormindo. Sentei na cama dela por um tempo. Parecia tão indefesa.
— E Dan?
— Parecia desesperado. Dá para ver que carrega um fardo muito pesado, mesmo que finja que está tudo bem. Emma e Adrian não param de fazer perguntas. Dan disse que não sabe o que responder.
— Tua irmã vai superar esta fase. Já demonstrou no passado que é uma pessoa muito forte. — Patrik soltou a mão de Erica e pegou o garfo e a faca.
— Não tenho assim tanta certeza. Quanto pode um ser humano aguentar antes de ficar completamente desfeito? Receio que Anna tenha atingido seu limite — a voz de Erica quebrou.
— Vamos ter de esperar para ver. E ajudá-la, se precisar de nós. — Patrik apercebeu-se de como aquelas palavras que ficaram a pairar no ar soavam ocas. Mas não lhe ocorria mais nada para dizer. Sabia tanto o que fazer quanto Erica. Como se defendiam as pessoas contra o destino? Como conseguia alguém seguir em frente depois de perder um filho?
Naquele momento, dois gritos vindos do primeiro andar fizeram ambos dar um pulo. Juntos, subiram para acudir aos gêmeos. Aquele era o destino deles. Sentiram-se culpados e gratos ao mesmo tempo.
— ERA DO ESCRITÓRIO DE MATTE. Ontem não apareceu e hoje também não. E não telefonou para informar por que faltaria. – De telefone na mão, Gunnar parecia congelado no lugar.
— E não atendeu o celular durante o fim de semana todo – disse Signe.
— Vou dar um salto a casa dele para ver o que se passa.
Gunnar já estava a caminho da porta, pegando no casaco de passagem. Então é assim que Signe se sente, pensou. O medo corria-lhe pelo peito como um animal selvagem. Era assim que devia ter-se sentido todos aqueles anos.
— Eu vou contigo – disse Signe com firmeza, e Gunnar sabia que de nada adiantava argumentar. Assentiu e, em seguida, esperou impacientemente que a mulher vestisse o casaco.
Fizeram toda a viagem até o apartamento de Matte em silêncio. Gunnar seguiu por estradas secundárias, sem passar pelo meio de Fjällbacka. Em vez disso, passaram pelas Sete Colinas, para onde as crianças iam andar de trenó no inverno. Matte também o tinha feito quando era menino. Gunnar engoliu em seco. Tinha de haver uma explicação lógica. Talvez estivesse com febre e não se tivesse lembrado de telefonar a dizer que estava doente. Ou talvez... Gunnar não conseguia pensar noutro assunto. Matte era sempre tão consciencioso em relação a tudo. Teria telefonado para o escritório se não estivesse capaz de ir trabalhar.
O rosto de Signe estava pálido quando se sentou ao lado do marido no lugar do morto. Olhava fixamente em frente, segurando a mala que colocara no colo. Gunnar interrogou-se porque estaria a agarrá-la com tanta força, mas teve a sensação de que, naquele momento, a mala era a tábua de salvação de Signe.
Estacionaram à frente do prédio de Matte. Entrada B. Gunnar queria correr, mas para não afligir
Signe, tentou agir com calma e forçou-se a caminhar a um ritmo normal.
— Tens as chaves? – perguntou Signe, que se tinha adiantado ao marido e já abrira a porta do prédio.
— Estão aqui. – Gunnar mostrou-lhe as chaves que Matte lhes havia dado.
— Tenho certeza de que Matte está em casa, por isso vais ver que não vamos precisar dela. Vais ver que nos vai abrir a porta, e depois...
Gunnar escutava a tagarelice incoerente de Signe, que subia rapidamente as escadas. Matte morava no último andar e estavam ambos com falta de ar quando chegaram à porta do apartamento. Gunnar teve de conter-se para não enfiar imediatamente a chave na fechadura.
— Primeiro vamos tocar a campainha. Se Matte estiver em casa vai ficar chateado se entrarmos assim sem mais nem menos. Talvez esteja acompanhado e seja por causa disso que não tem ido trabalhar.
Signe já estava tocando a campainha. Ouviram-na soar no interior. Signe insistiu. E tocou novamente. Depois puseram-se os dois à escuta, à espera de ouvirem passos a aproximar-se, os passos do Matte a dirigirem-se à porta. Mas tudo permaneceu em silêncio.
— Acho que é melhor abrir a porta. – Signe lançou um olhar urgente ao marido.
Gunnar assentiu, pôs-se à frente da mulher e começou a procurar a chave no chaveiro. Encontrou a chave certa, introduziu-a na fechadura, rodou-a e rodou também a maçaneta. A porta não se mexeu. Confuso, percebeu que a porta estava aberta e que acabara de trancá-la. Olhou para Signe. Podiam ver o pânico nos olhos um do outro. Porque teria a porta ficado destrancada se Matte não estava em casa? E, se Matte estava em casa, porque é que não tinha ido à porta?
Gunnar rodou novamente a chave e ouviu o estalido da fechadura. Com os dedos a tremer descontroladamente, abriu a porta.
Assim que pôs os olhos no vestíbulo percebeu que Signe tinha razão.
Estava indisposta. Como nunca tinha estado em toda a sua vida. O cheiro de vômito enchia-lhe as narinas. Não se lembrava bem, mas pensava ter vomitado num balde que estava ao lado do colchão. Via tudo através de uma névoa. Nathalie tentou mover-se cautelosamente. Doía-lhe o corpo todo. Semicerrou os olhos. Doeram-lhe quando tentou ver que horas eram. Que dia seria? E onde estava Sam?
Pensar em Sam deu-lhe força suficiente para se sentar. Estava deitada num colchão ao lado da cama do filho. Sam dormia. Conseguiu por fim focar suficientemente os olhos para consultar o relógio. Passava pouco da uma da tarde, o que significava que Sam estava a dormir uma sesta. Acariciou-lhe a cabeça.
De alguma forma, Nathalie devia ter conseguido cuidar dele, apesar da febre. Os instintos maternais tinham-se revelado suficientemente fortes. O alívio inundou-a, tornando a dor mais suportável. Olhou em redor. Havia uma garrafa de água pousada na cama de Sam e havia pedaços de fruta, um bocado de queijo e biscoitos espalhados pelo chão. Parecia ter-se assegurado de que o filho teria comida e água à disposição.
Havia realmente um balde ao lado do colchão e o cheiro vindo dele era repugnante. Devia ter-se apercebido de que estava muito maldisposta e levara o balde para o quarto. Devia ter vomitado tudo o que comera porque tinha o estômago vazio.
Levantou-se lentamente. Não queria acordar Sam, pelo que se forçou a não gemer muito alto. Por fim conseguiu pôr-se de pé, mas as pernas tremiam-lhe. Era importante comer e beber alguma coisa. Não tinha fome, mas o estômago roncava de protesto. Pegou no balde, tendo o cuidado de não olhar lá para dentro enquanto o levava para fora do quarto. Servindo-se do ombro para empurrar a porta de entrada da casa, estremeceu de surpresa quando saiu para o ar frio. O tempo devia ter arrefecido enquanto estivera doente.
Sentou-se cautelosamente no cais e, desviando os olhos, despejou o conteúdo do balde no mar. Pegou numa corda e amarrou-a à pega. Depois baixou o balde e lavou-o com água do mar.
O vento açoitava-lhe o cabelo enquanto regressava a casa, os braços abraçando o peito. O corpo inteiro gritava de protesto por causa do esforço e Nathalie podia sentir o suor a escorrer-lhe pela pele. Enojada, despiu toda a roupa e lavou-se antes de vestir uma camiseta lavada e um fato de treino. Com mãos trémulas, fez uma sanduíche, serviu-se de um copo de sumo e sentou-se à mesa da cozinha. Foi preciso comer vários bocados antes que a comida lhe soubesse a alguma coisa, mas depois comeu rapidamente mais duas sanduíches. Aos poucos foi sentindo a vida a regressar-lhe ao corpo.
Nathalie olhou novamente de relance para o relógio, verificando a pequena janela que mostrava a data. Depois de fazer alguns cálculos mentais, concluiu que devia ser terça-feira. Tinha estado doente durante quase três dias. Três dias perdidos, repletos de todo o tipo de sonhos. O que fora ao certo que tinha sonhado? Tentou fixar as imagens que lhe rodopiavam na mente. Havia uma que se repetia. Nathalie abanou a cabeça, mas o movimento provocou-lhe náuseas. Comeu um bocado de uma quarta sanduíche e o estômago acalmou-se. Uma mulher. Havia uma mulher nos seus sonhos e havia algo no rosto dela. Nathalie franziu a testa. Havia algo muito familiar naquela mulher. Sabia que a tinha visto antes, embora não conseguisse recordar-se de onde fora.
Levantou-se. Sem dúvida que se lembraria, mais cedo ou mais tarde. Mas o sonho deixara-lhe uma sensação que se recusava a desfazer-se. A mulher parecia tão triste... Com o mesmo sentimento de tristeza, Nathalie entrou no quarto para ver como estava Sam.
Patrik não tinha dormido bem. A preocupação de Erica com Anna tinha-o infetado e acordara várias vezes durante a noite com pensamentos sombrios sobre como a vida podia mudar rapidamente. A sua própria experiência recente tinha-o feito perder um pouco o pé. Talvez fosse positivo que já não encarasse a vida como um facto consumado, porém, ao mesmo tempo, uma sensação insistente de desconforto tinha-se instalado dentro dele. Dava por si a comportar-se de um modo muito mais superprotetor do que antes. Não gostava de ver Erica a afastar-se de carro com as crianças. Para ser franco, teria preferido que Erica não conduzisse de todo. E sentir-se-ia muito mais seguro se a mulher e os filhos nunca mais voltassem a sair de casa, permanecendo sempre lá dentro, bem protegidos de qualquer perigo.
Claro que Patrik percebia que tais pensamentos não eram nem saudáveis nem racionais. Mas tinha estado muito perto de perder a própria vida, bem como Erica e os gêmeos. A família estivera a segundos de desaparecer completamente.
Agarrou a borda da secretária, forçando-se a respirar calmamente. Às vezes sentia-se completamente dominado pelo pânico; pensava que talvez tivesse de aprender a viver com ele. E ia conseguir, porque, apesar de tudo, ainda tinha a sua família.
— Como é que vai isso? – perguntou Paula, aparecendo de repente à porta. Patrik respirou fundo uma vez mais.
— Tudo bem. Só estou um bocado cansado, nada mais. Os biberões durante a noite, sabes como é – acrescentou, tentando sorrir.
Paula entrou e sentou-se.
— Ah, pois. – A colega olhou-o nos olhos com uma expressão que revelava que não engolia as respostas evasivas e os sorrisos amarelos de Patrik. – O que eu queria saber era como é que tu estavas.
— Tenho altos e baixos – admitiu Patrik com relutância. – Acho que vou demorar um pouco a voltar ao normal. Mesmo que agora já esteja tudo bem. Tirando a irmã de Erica, claro.
— Como está ela?
— Péssima.
— Vai demorar o seu tempo.
— Pois é, julgo que sim. Mas Anna fechou-se completamente na sua concha. Nem sequer quer falar com Erica.
— E achas que isso é assim tão estranho? – perguntou Paula em voz baixa.
Patrik sabia que a colega tinha a capacidade de ir direta ao cerne da questão. Costumava dizer que as pessoas tinham de ouvir, e não necessariamente o que queriam ouvir. E normalmente tinha razão.
— Tu e Erica têm dois filhos que sobreviveram ao acidente. Anna perdeu o bebê. Não me parece assim tão estranho que queira isolar-se da irmã.
— É exatamente isso o que assusta Erica. Mas o que é que havemos de fazer?
— Nada. Pelo menos por enquanto. Anna tem a sua própria família, tem um marido que é o pai do bebê. Têm de reencontrar-se antes de Erica poder voltar a entrar na vida dela. Por mais duro que possa parecer, por enquanto Erica tem de manter-se afastada. Isso não significa que desista de Anna. Vai estar sempre disponível para o caso de a irmã precisar dela.
— Eu compreendo isso, mas não sei como explicá-lo a Erica. – Patrik respirou fundo outra vez. A pressão no peito tinha abrandado um pouco enquanto falava com Paula.
— Acho que... – começou a dizer Paula, mas foi interrompida por alguém que batia à porta.
— Desculpem – disse Annika com o rosto corado. – Acabamos de receber um telefonema de
Fjällbacka. Um homem foi encontrado morto no seu apartamento. Levou um tiro.
De início, ninguém disse nada. Depois, Paula e Patrik entraram em ação e, um minuto depois, estavam a dirigir-se para a garagem. Nas suas costas ouviram Annika a bater à porta dos gabinetes de Gösta e de Martin, que teriam de levar o outro carro-patrulha. Segui-los-iam mais tarde.
— Isto é fantástico! – Erling olhou em redor, deleitado com tudo o que via no interior do novo spa Badis antes de se virar para Vivianne. – Não ficou nada barato, mas, se pensarmos na prosperidade do município, vale cada coroa investida. Acho que vai ser um grande sucesso. E, tendo em conta o dinheiro que aqui investiste, vamos ter um belo lucro depois de cobrirmos as despesas. Não estás a pagar demasiado aos funcionários, pois não? – Erling lançou um olhar de desconfiança a uma jovem vestida de branco que passava.
Vivianne deu-lhe o braço para o conduzir a uma das mesas.
— Não te preocupes. Temos tido muito cuidado com as despesas. Anders sempre foi extremamente agarrado. Foi graças a ele que lucramos tanto no spa de Ljuset e foi por isso que pudemos investir neste projeto.
— Sim, ainda bem que podemos contar com Anders – Erling sentou-se à mesa da sala de jantar para tomar um café. – É verdade, Matte conseguiu contactar-te? A semana passada referiu que havia uns assuntos que queria verificar contigo e com Anders.
Erling esticou o braço para alcançar um pãozinho, mas depois de lhe dar uma dentada voltou a pô- lo no prato.
— Que é isto?
— Pãezinhos de espelta.
— Ah! – exclamou Erling, optando por ficar-se pelo café.
— Não, Matte não me disse nada. Se calhar não era importante. Tenho certeza de que vai aparecer ou telefonar-me quando tiver oportunidade.
— Por acaso, isto é um bocado estranho. Matte não apareceu ontem no escritório, e não telefonou a justificar-se. E não o vi por lá esta manhã antes de vir para cá.
— Não deve haver motivo para preocupações – disse Vivianne, alcançando um pãozinho.
— Posso juntar-me aos pombinhos ou querem ficar a sós? – Anders tinha aparecido sem que Erling e Vivianne se apercebessem. Ambos tiveram um sobressalto, mas depois Vivianne sorriu e puxou uma cadeira para que o irmão pudesse sentar-se ao lado dela.
Como sempre, Erling ficou espantado com as parecenças entre ambos. Eram os dois louros, tinham olhos azuis e bocas semelhantes, com os lábios em forma de arco. Mas, enquanto Vivianne era enérgica e extrovertida, com o que Erling chamaria um carisma magnético, o irmão era introvertido e calado. O contabilista típico, pensou Erling quando o conheceu durante a sua estada em Ljuset. Não é que achasse que isso fosse uma característica negativa. Com tanto dinheiro em jogo, era reconfortante ter um especialista em números como Anders a tratar das finanças.
— Sabes de Mats? Erling diz que tinha umas perguntas para nos fazer – disse Vivianne, virando-se para Anders.
— Sim, passou por lá à pressa na sexta-feira à tarde. Por quê? Erling aclarou a garganta.
— Bem, é que no final da semana passada Mats mencionou que tinha algumas dúvidas. Anders assentiu.
— Como eu disse, ele passou por lá e conseguimos esclarecer uma série de questões.
— Ah, ótimo. É bom saber que está tudo em ordem – rematou Erling, sorrindo alegremente.
UM HOMEM E UMA MULHER IDOSOS estavam à porta da entrada principal, abraçados como que a consolar-se um ao outro. Patrik presumiu que eram os pais do falecido. Tinham sido eles a encontrar o cadáver. Patrik e Paula saíram do carro-patrulha e foram ao seu encontro.
— Patrik Hedström, da polícia de Tanum. Foram os senhores que nos telefonaram? – perguntou, embora já soubesse a resposta.
— Sim, fomos nós. – As faces do homem estavam lavadas em lágrimas. A mulher mantinha a cara pressionada contra o peito do marido.
— É o nosso filho – disse sem olhar para os agentes. – Está... lá em cima...
— Vou subir para dar uma vista de olhos.
O homem fez menção de acompanhá-lo, mas Patrik deteve-o.
— Acho que é melhor esperarem os dois aqui. A ambulância vai chegar a qualquer momento e os paramédicos vão cuidar dos senhores. A minha colega Paula vai ficar convosco enquanto não aparecerem.
Patrik fez um gesto a Paula, que afastou suavemente o casal da entrada do prédio. Depois, Patrik entrou no edifício e subiu ao terceiro andar, onde encontrou uma porta escancarada. Não precisou de entrar no apartamento para saber que o homem deitado de bruços no chão do vestíbulo estava morto. Um grande buraco era visível na parte de trás da cabeça da vítima. Sangue seco e massa encefálica salpicavam o chão e as paredes. Aquele era, obviamente, o local do crime, e não adiantava fazer nada até que Torbjörn Ruud e a sua equipe de técnicos forenses inspecionassem o apartamento. Patrik decidiu que mais valia descer e ter uma conversa com os pais da vítima.
Quando saiu do edifício, Patrik dirigiu-se apressadamente ao casal. Os pais da vítima estavam ao lado de Paula e conversavam com a equipe da ambulância, que tinha acabado de chegar. Um cobertor tinha sido posto sobre os ombros da mulher, que chorava tanto que estremecia. Patrik optou por começar pelo marido, que parecia mais composto, embora também estivesse a chorar.
— Somos precisos lá em cima? – perguntou um dos tripulantes da ambulância, apontando para o edifício.
Patrik abanou a cabeça.
— Não, pelo menos por enquanto. Os técnicos forenses estão a caminho.
Por um momento, ninguém falou. O único som que se ouvia era o choro de partir o coração da mulher. Patrik aproximou-se do marido.
— Será que posso dar-lhe uma palavrinha?
— Queremos ajudar o máximo que pudermos. Não compreendemos quem poderá ter... – a voz do homem sumiu-se, mas depois de lançar um olhar à mulher seguiu Patrik até o carro-patrulha. A mulher não parecia consciente do que estava a acontecer à sua volta.
Sentaram-se no banco traseiro do carro.
— Na porta do apartamento lê-se “Mats Sverin”. Mats é vosso filho?
— Sim, apesar de sempre lhe termos chamado Matte.
— E o senhor chama-se? – Patrik tomava notas enquanto falavam.
— Gunnar Sverin. A minha mulher chama-se Signe. Mas porque... Patrik pôs a mão sobre o braço do homem para acalmá-lo.
— Vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para apanhar quem quer que tenha feito uma coisa destas. Acha que podia responder a algumas perguntas?
Gunnar assentiu.
— Quando foi a última vez que viu o seu filho?
— Na quinta-feira à noite. Matte foi jantar conosco. Tem feito isso muitas vezes desde que regressou a Fjällbacka.
— A que horas saiu de vossa casa na quinta-feira?
— Acho que foi para casa de carro pouco depois das nove.
— Souberam alguma coisa do vosso filho desde então? Falaram com ele ao telefone ou tiveram algum outro tipo de contacto?
— Não, nada. Signe preocupa-se muito com ele e ligou-lhe durante todo o fim de semana, mas nunca conseguiu falar com Matte. E eu... eu disse-lhe que ela estava a ser uma chata, a preocupar-se sem razão, e que devia parar de incomodar o rapaz. – As lágrimas vieram-lhe novamente aos olhos. Envergonhado, Gunnar limpou-as à manga do casaco.
— Portanto, ninguém atendeu o telefone do apartamento do vosso filho? E Mats não atendeu o celular, certo?
— Sim, fomos sempre parar ao gravador de chamadas.
— E isso não era habitual?
— Não, acho que não. Signe telefona-lhe vezes sem conta, na minha opinião, mas Matte tem a paciência de um santo. – Gunnar limpou novamente os olhos à manga do casaco.
— Foi por isso que vieram cá hoje?
— Sim e não. Signe estava a ficar muito preocupada. E eu também, embora tenha fingido que não estava. Mas depois recebi um telefonema da câmara municipal a dizer que Matte não tinha aparecido no emprego... E isso não é dele, nada mesmo. O nosso filho sempre foi muito consciencioso acerca de chegar a horas e essas coisas. Nesse aspeto saiu a mim.
— Que emprego tinha na câmara municipal?
— Era chefe do departamento financeiro. Conseguiu o emprego há dois meses depois de ter voltado para Fjällbacka. Teve sorte em conseguir aquela vaga. Não há muitos empregos para licenciados em Economia.
— Porque é que o vosso filho se mudou para Fjällbacka? Onde vivia antes?
— Em Gotemburgo – disse Gunnar, respondendo primeiro à segunda pergunta. – Na verdade não sabemos porque foi que Matte resolveu mudar-se para cá. Mas esteve envolvido num incidente terrível, não muito tempo antes de ter vindo. Foi agredido por um bando na cidade e passou várias semanas no hospital. Esse tipo de coisas pode fazer com que uma pessoa reavalie a sua vida. Seja como for, Matte mudou-se para cá, e isso deixou-nos muito felizes. Sobretudo Signe, claro. Ficou exultante.
— A polícia de Gotemburgo conseguiu apanhar o bando que o agrediu?
— Não. A polícia nunca os chegou a apanhar. Matte não fazia ideia de quem eles eram e também não teria sido capaz de identificá-los. Foi brutalmente agredido. Quando Signe e eu fomos vê-lo ao Hospital de Sahlgrenska quase não reconhecemos o nosso filho.
Patrik desenhou um ponto de exclamação na página ao lado da sua nota sobre a agressão. Precisava de descobrir mais sobre aquilo o mais depressa possível. Teria de entrar em contacto com os colegas de Gotemburgo.
— E o senhor e a sua mulher não têm ideia de ninguém que quisesse fazer mal a Matte? Algum indivíduo ou indivíduos que pudessem ter tido contas a ajustar com ele?
Gunnar abanou enfaticamente a cabeça.
— Matte nunca discutia com ninguém. Toda a gente gostava dele. E ele gostava de toda a gente.
— E como estavam as coisas a correr no novo emprego?
— Acho que Matte estava a gostar. Por acaso parecia um pouco preocupado quando estivemos com ele na quinta-feira, mas foi apenas uma vaga impressão com que fiquei. Talvez estivesse a sentir-se sobrecarregado. Seja como for, Matte nunca mencionou ter discutido com ninguém. Pelo que sei, Erling, o chefe dele, às vezes é um bocado difícil, mas Matte dizia que era inofensivo e que sabia como lidar com ele.
— E quando o vosso filho estava a viver em Gotemburgo? Consegue adiantar-me alguma coisa acerca da vida dele por lá? Amigos, namoradas, colegas de trabalho?
— Não, não posso dizer que saibamos grande coisa. Matte não falava muito da sua vida pessoal. Signe tentava sacar-lhe alguma coisa, em relação a garotas e isso, mas Matte nunca entrava em pormenores. Há uns anos ainda nos ia falando dos amigos, de vez em quando. Mas desde que começou a trabalhar no último emprego que teve em Gotemburgo que parecia afastar-se do convívio e dedicar todo o tempo ao trabalho. Matte era assim, deixava-se absorver pelo trabalho.
— Então e o que aconteceu quando regressou a Fjällbacka? Não entrou em contacto com nenhum dos velhos amigos que tinha por aqui?
Gunnar voltou a abanar a cabeça.
— Não, Matte não parecia de todo interessado em fazer isso. Além de que já cá vivem poucos amigos dele. Muitos mudaram-se. Mas Matte parecia querer estar sozinho. E isso preocupava Signe.
— Seu filho não tem namorada?
— Acho que não. Mas é claro que nós nem sempre sabemos essas coisas.
— Nunca levou ninguém a vossa casa? – perguntou Patrik com surpresa. Interrogou-se sobre que idade teria Matte. Quando Gunnar lhe disse, percebeu que Mats Sverin era da mesma idade de Erica.
— Não, Matte nunca levou ninguém lá a casa, o que na verdade não quer dizer nada – acrescentou o velho como se tivesse lido os pensamentos de Patrik.
— Muito bem. Mas, caso se recorde de alguma coisa que possa ajudar-nos pode ligar-me para este número. – Patrik entregou o cartão de visita a Gunnar. – Seja o que for. Também vamos ter de falar com a sua mulher. E vamos precisar de falar novamente consigo. Espero que compreendam.
— Claro – respondeu Gunnar, guardando o cartão de Patrik.
Espreitou pela janela para olhar para Signe, que parecia ter parado de chorar. Os médicos deviam ter-lhe dado um sedativo.
— Lamento muito a vossa perda – disse Patrik. Então, o silêncio instalou-se entre ambos. Não havia muito mais a dizer.
Quando saíram do carro, Torbjörn Ruud e a sua equipe de técnicos forenses pararam no estacionamento. Agora, o meticuloso processo de recolha de provas ia começar.
Olhando para trás, era difícil a Nathalie entender porque não tinha adivinhado as intenções de Fredrik. Mas talvez isso não tivesse sido assim tão fácil. Exteriormente, Fredrik parecia muito polido e cortejara-a com tanto ardor que, inicialmente, Nathalie ria-se dele. Isso apenas o tinha incitado e Fredrik redobrou os esforços até ela ter acabado por ceder. Mimou-a, levou-a em viagens ao exterior, onde tinham ficado em hotéis de cinco estrelas, ofereceu-lhe champanhe e enviou-lhe tantos ramos de flores que praticamente não cabia mais nada no apartamento. Merecia luxo, dissera Fredrik. E Nathalie acreditou nele. Era como se apelasse a uma parte dela que sempre existira. Uma insegurança e um desejo de ouvir que era especial, que merecia mais do que as outras pessoas. De onde tinha vindo todo aquele dinheiro? Nathalie não conseguia recordar-se de alguma vez ter feito essa pergunta.
O vento soprava com mais força, mas Nathalie deixou-se ficar onde estava, sentada no banco do lado sul da casa. Embora o café tivesse arrefecido, continuou a bebericá-lo. As mãos que envolviam a chávena tremiam. Ainda sentia as pernas bambas e o estômago continuava às voltas. Sabia que aquilo ia continuar por um tempo. Não era nada de novo.
Lentamente, tinha sido arrastada para o mundo de Fredrik, um mundo repleto de festas, de viagens e de pessoas e coisas bonitas. E Fredrik tinha uma bela casa. Fora morar com ele quase imediatamente, mais do que desejosa de deixar para trás seu apertado estúdio em Farsta. Como poderia continuar a viver ali depois de passar tantos dias e noites na casa enorme de Fredrik, no abastado subúrbio de Djursholm, em Estocolmo, onde tudo era novo, branco e caro?
Quando soube o que Fredrik fazia na vida e como obtinha o seu dinheiro já era tarde de mais. A sua vida estava entrelaçada com a dele. Tinham os mesmos amigos, usava o anel que lhe tinha dado e já não tinha um emprego, porque Fredrik queria que ficasse em casa e se certificasse de que tudo corria bem na frente doméstica. Mas a triste verdade é que Nathalie não tinha ficado realmente muito perturbada quando descobriu. Limitara-se a encolher os ombros, firmemente convencida de que Fredrik pertencia às esferas mais altas de um negócio desprezível; de que o namorado estava tão alto que não seria atingido pela porcaria que havia lá no fundo. Além disso, tudo aquilo lhe despertava uma certa excitação. Sentia um pontapé de adrenalina ao saber o que estava a acontecer à sua volta.
Exteriormente, era óbvio que nada daquilo era evidente. No papel, Fredrik era importador de vinho, o que em parte era verdade. A sua empresa obtinha um pequeno lucro todos os anos e Fredrik adorava visitar a vinha que comprara na Toscana. Planeava lançar a sua própria marca de vinho, um dia. Essa era a fachada que apresentava ao mundo e nunca ninguém a questionou. Às vezes, Nathalie sentava-se à mesa, a jantar com convidados das classes altas e importantes parceiros de negócios e admirava-se como era fácil enganá-los, como engoliam prontamente tudo o que Fredrik dizia. Aceitavam que as enormes quantias de dinheiro que giravam à sua volta provinham das importações. Mas talvez isso fosse apenas aquilo em que preferiam acreditar. Como ela tinha feito.
Tudo mudou quando Sam nasceu. Foi Fredrik quem insistiu que deviam ter um filho. Fredrik queria um rapaz. Nathalie tinha as suas dúvidas. Ainda se envergonhava ao recordar como receara que a gravidez lhe pudesse arruinar a figura e que ter um filho a impedisse de fazer almoços de três horas com as amigas e dedicar os dias a fazer compras. No entanto, quando Fredrik insistira, Nathalie relutantemente concordara.
Assim que a parteira lhe pôs Sam nos braços, toda a sua vida mudou. Nada mais importava. Fredrik teve finalmente o filho que tanto esperara, mas viu-se atirado para segundo plano, tal era a dedicação de Nathalie ao bebê. Fredrik não era o gênero de homem que tolerasse ser destronado do primeiro lugar do pódio, e os seus ciúmes de Sam manifestaram-se de uma forma estranha. Proibiu a mulher de amamentar o bebê e, contra a sua vontade, contratou uma ama para cuidar de Sam. Determinada a não ser afastada daquela forma, Nathalie encarregou Elena de passar a ferro e de aspirar a casa, o que lhe permitia passar mais horas no berçário com Sam. Nada poderia interpor-se entre eles. Anteriormente, Nathalie tinha-se comportado como uma mulher estragada com mimos, mas agora mostrava uma nova confiança no seu papel como mãe de Sam.
Porém, no momento em que pegou em Sam na maternidade, a sua vida começou também a desmoronar-se. A violência já se tinha manifestado antes, quando Fredrik estava bêbado ou sob o efeito de drogas. E Nathalie acabava cheia de nódoas negras que lhe doíam durante vários dias ou com o nariz a sangrar. Nada pior do que isso.
Mas, depois de Sam nascer, a sua existência transformou-se num inferno. Naquele momento, o vento forte, combinado com as memórias, trouxe-lhe lágrimas aos olhos. As mãos tremiam tanto que entornou um bocado de café sobre as calças. Pestanejou para livrar-se tanto das lágrimas como das imagens. O sangue. Tinha havido tanto sangue. Uma recordação sobrepunha-se à outra, como dois negativos a fundirem-se num só. Sentia-se confusa. E assustada.
Abruptamente, Nathalie levantou-se. Precisava estar perto de Sam. Precisava do filho.
— Sim, este é verdadeiramente um dia triste. – Erling estava de pé à cabeceira da mesa de conferências, olhando para os colegas com uma expressão sombria.
— Como é que foi acontecer uma coisa destas? – A secretária, Gunilla Kjellin, assoou o nariz a um lenço. Lágrimas escorriam-lhe pelas faces.
— O agente que ligou não me adiantou grande coisa, mas percebi que Mats foi vítima de algum tipo de crime.
— Estás a dizer que alguém o assassinou? – perguntou Uno Brorsson, recostando-se na cadeira. Como era habitual, arregaçara as mangas da camisa axadrezada de flanela.
— Como acabei de dizer, ainda não sei mais pormenores, mas conto que a polícia nos vá mantendo informados.
— Será que isto vai afetar o projeto? – Uno repuxou o bigode, como fazia sempre que estava perturbado.
— Não vai mudar nada. Quero assegurar-vos isso a todos. Matte investiu muitas horas no Projeto Badis e teria sido o primeiro a dizer que devemos seguir em frente. Tudo vai continuar exatamente de acordo com o plano e eu vou assumir pessoalmente a chefia do departamento financeiro até que consigamos encontrar um substituto para Mats.
— Como é que consegue estar já a falar de um substituto? – disse Gunilla, soluçando ruidosamente.
— Pronto, pronto, Gunilla. – Erling não sabia o que fazer perante tal explosão emocional que, mesmo sob aquelas circunstâncias, lhe parecia altamente imprópria. – Temos uma responsabilidade para com o município, para com os cidadãos e para com todos os que puseram o seu coração e a sua alma não só neste projeto mas em tudo o que estamos a fazer para garantir que a comunidade prospere. – Erling fez uma pausa, ao mesmo tempo surpreendido e satisfeito com a forma como tinha conseguido dar voz aos pensamentos. Depois, prosseguiu: – Por mais trágico que seja a vida de um jovem ter terminado prematuramente, não podemos simplesmente parar tudo. The show must go on, como se diz em Hollywood.
Reinava o silêncio na sala de conferências e aquela última frase soara tão bem a Erling que não pôde deixar de repeti-la. Endireitou os ombros, encheu o peito de ar e, com um forte sotaque da Suécia Ocidental, disse:
— The show must go on, meus amigos. The show must go on.
Completamente atarantados, Gunnar e Signe estavam sentados frente a frente à mesa. Estavam assim desde que um dos agentes lhes tinha simpaticamente dado boleia para casa. Gunnar teria preferido ele próprio conduzir, mas os agentes tinham feito questão. Por isso, o carro do casal ainda estava no estacionamento e Gunnar teria de ir até lá para o recuperar. Mas claro que assim poderia aproveitar para subir e visitar...
Gunnar arfou em busca de ar. Como poderia ter-se esquecido tão rapidamente? Como poderia esquecer-se por um segundo que fosse que Matte estava morto? Tinham-no visto para ali deitado de bruços sobre o tapete listrado que Signe lhe tecera. Deitado de bruços com um buraco na nuca. Como poderia esquecer a visão de todo aquele sangue?
— Queres que faça café? – Gunnar forçou-se a quebrar o silêncio. A única coisa que ouvia era o seu próprio coração e daria tudo para parar de ouvir aquelas batidas constantes que o faziam perceber que estava vivo e a respirar, ao passo que o filho estava morto.
— Vou buscar-te uma chávena. – Gunnar levantou-se, embora Signe não tivesse respondido. Continuava sob os efeitos do sedativo e estava para ali, imóvel, com um olhar vazio no rosto e as mãos cruzadas sobre o oleado que cobria a mesa.
Gunnar movia-se mecanicamente: colocou o filtro, deitou a água, abriu a embalagem de café, contou as colheradas e depois carregou no botão. Ouviu-se imediatamente um assobio e um borbulhar.
— Queres comer alguma coisa com o café? Que tal uma fatia de pão de ló? – A voz de Gunnar soava estranhamente normal. Dirigiu-se ao frigorífico e retirou de lá o pão de ló que Signe tinha feito no dia anterior. Cuidadosamente, retirou a película aderente, pousou o bolo na tábua de corte e cortou duas grossas fatias. Pô-las em pratos, colocando um deles à frente de Signe, o outro no seu lugar à mesa. Signe não reagiu, mas Gunnar não deixou que isso o preocupasse de momento. Ouvia apenas o martelar no interior do peito, brevemente abafado pelo barulho dos pratos e a chiadeira da máquina de café.
Quando o café ficou pronto, Gunnar estendeu a mão para retirar duas chávenas do armário. Os hábitos diários dos dois pareciam ter-se tornado mais arreigados com o passar dos anos e cada um tinha a sua chávena preferida. Signe tomava sempre o café numa delicada chávena branca com rosas a adornar a borda, ao passo que Gunnar preferia uma chávena de cerâmica resistente que comprara numa viagem de autocarro a Gränna. Café simples com um cubo de açúcar para ele, café com leite e dois cubos de açúcar para Signe.
— Aqui está – anunciou Gunnar, pondo a chávena de Signe ao lado do prato com a fatia de bolo.
A mulher não se mexeu. Gunnar sentiu o café queimar-lhe a garganta quando deu um golo demasiado grande e tossiu até a sensação de ardor diminuir. Deu uma dentada no bolo, mas este parecia inchar-lhe dentro da boca, formando uma grande bola de açúcar, ovos e farinha. Então,
Gunnar sentiu a bílis subir-lhe pela garganta e percebeu que tinha de livrar-se daquela massa, que estava a ficar cada vez maior.
Passou a correr por Signe na direção da casa de banho, onde se pôs de joelhos, inclinando-se sobre a sanita. Viu café, bocados de bolo e bílis a serem lançados na água que estava sempre verde por causa do desinfetante que Signe insistia em fixar num dos lados do interior da sanita de porcelana.
Quando o estômago estava praticamente vazio, Gunnar ouviu novamente o som do seu próprio coração. Bum, bum, bum. Inclinou-se mais uma vez para a frente e vomitou. Na cozinha, o café de Signe ia arrefecendo na chávena branca decorada com rosas.
Era de noite quando terminaram o trabalho no apartamento de Mats Sverin. Embora ainda houvesse luz lá fora, a agitação do dia tinha começado a esmorecer e o número de pessoas que passavam na rua diminuíra.
— O cadáver acaba de chegar ao laboratório forense – relatou Torbjörn Ruud.
O chefe da equipe de técnicos forenses parecia cansado quando foi ter com Patrik, de celular na mão. Patrik já tinha trabalhado com Torbjörn e a sua equipe em várias investigações de homicídio e nutria um enorme respeito pelo homem de barba grisalha.
— Quanto tempo acha que demorarão a fazer a autópsia? – perguntou Patrik, massajando a ponta do nariz. Começava a sentir os efeitos do que estava a revelar-se um dia muito longo.
— Não sei. Vai ter de perguntar a Pedersen.
— Qual é a sua avaliação preliminar? – Patrik estremeceu com o vento frio que açoitava o pequeno relvado à frente do prédio. Aconchegou-se mais no blusão.
— Não é nada complicado, pelo que posso ver. Um ferimento de bala na nuca. Um tiro, que o matou instantaneamente. A bala ainda está dentro do crânio. O invólucro que encontramos indica que se tratou de uma pistola de nove milímetros.
— Encontraram alguma prova no apartamento?
— Recolhemos impressões digitais em todas as divisões, assim como algumas amostras de fibras. Isso vai dar-nos algo por onde pegar, assim que tivermos um suspeito.
— Desde que o suspeito tenha realmente deixado impressões digitais ou fibras – disse Patrik. As provas técnicas eram muito úteis, porém, pela sua experiência, sabia que era necessária uma grande dose de sorte para solucionar um caso de homicídio. As pessoas entravam e saíam, e podiam muito bem ter sido amigos ou familiares a deixar vestígios no apartamento. Se o assassino estivesse entre eles, a polícia seria confrontada com um conjunto completamente diferente de problemas no momento de tentar relacionar o autor com o local do crime.
— Não é um pouco cedo de mais para uma visão tão pessimista? – perguntou Torbjörn, dando-lhe uma cotovelada no braço.
— Desculpe – retorquiu Patrik com um sorriso. – Devo estar a ficar cansado.
— Tem tido cuidado consigo, certo? Ouvi dizer que esteve às portas da morte, por assim dizer. Uma pessoa pode demorar um pouco a recuperar de uma coisa dessas.
— Não gosto muito dessa frase: “estar às portas da morte” – murmurou Patrik. – Mas tem razão. Foi definitivamente um aviso.
— Bem, fico contente por estar a prestar atenção. Ainda não é propriamente um velho decrépito e esperamos que continue na polícia por muitos e muitos anos.
— Que acha das provas que recolheu até agora? – perguntou Patrik, tentando desviar a conversa do tema da sua saúde.
— Como eu disse, recolhemos umas coisas. Agora vai ser tudo enviado para o laboratório. Os resultados vão demorar algum tempo, mas eles devem-me uns favores, por isso, com um pouco de sorte, vou conseguir acelerar o processo.
— Ficaríamos muito gratos se obtivéssemos os resultados o mais depressa possível – Patrik estava enregelado. Estava demasiado frio para junho e o tempo continuava imprevisível. Naquele momento, parecia que estavam no início da primavera, mas durante o dia tinha estado tanto calor que ele e Erica puderam sentar-se no jardim sem ter de vestir uma camisola ou um casaco.
— Então e vocês? O Patrik e os seus colegas fizeram algum progresso? Alguém ouviu ou viu alguma coisa? – Torbjörn acenou com a cabeça na direção do prédio.
— Já batemos a todas as portas, mas até agora apenas com resultados limitados. Um dos vizinhos pensa ter ouvido um barulho na madrugada de sábado, só que estava a dormir quando o barulho o despertou, por isso não tem certeza do que era. Fora isso, nada. Mats Sverin parecia ser uma pessoa muito recatada, pelo menos quando estava em casa. Como cresceu em Fjällbacka e os pais ainda cá moram, a maioria das pessoas sabia quem ele era e estava ciente de que trabalhava na câmara municipal e isso, mas ninguém parece tê-lo verdadeiramente conhecido. Limitava-se a cumprimentar os vizinhos quando se cruzava com eles, nada mais.
— Pelo menos, a coscuvilhice está viva e de saúde em Fjällbacka – disse Torbjörn. – Com sorte, pode ser que produza algumas pistas.
— Talvez. Por enquanto, a noção que temos é que Mats Sverin vivia como um eremita, mas amanhã vamos tentar desencantar novas pistas.
— Vá para casa e descanse. – Torbjörn deu uma palmadinha amigável nas costas de Patrik.
— Obrigado, é isso mesmo que vou fazer – mentiu Patrik. Já tinha telefonado a Erica a dizer que ia chegar tarde a casa. A equipe de investigação ainda precisava de elaborar uma estratégia. E depois de algumas horas de sono estaria de volta à delegacia de manhã cedo. Sabia que devia ter aprendido a lição depois do que tinha acabado de passar, mas o trabalho estava em primeiro lugar. Era mais forte do que ele.
Erica fitava os toros a arder na lareira. Tentara não soar preocupada quando Patrik telefonou. Embora estivesse sempre a dizer a si mesma que o marido estava com muito melhor aspeto, outra vez com um pouco de cor no rosto, e mesmo sabendo que aquele era um daqueles momentos em que precisava de ficar a trabalhar até mais tarde, preocupava-a que Patrik parecesse ter esquecido a promessa de não se esforçar demasiado.
Perguntava a si própria quem seria a vítima. Patrik não lhe tinha querido adiantar muito ao telefone. Apenas dissera que um homem fora encontrado morto em Fjällbacka. Erica estava ansiosa por saber mais. Como escritora, uma curiosidade aguçada era essencial. Queria sempre descobrir a história por detrás das pessoas e dos acontecimentos. A seu tempo, tinha certeza de que ficaria a saber tudo. Mesmo que Patrik se recusasse a contar-lhe, a notícia não tardaria a espalhar-se. Essa era ao mesmo tempo a vantagem e a desvantagem de viver numa cidade pequena como Fjällbacka.
Sempre que pensava em todo o apoio que tinha recebido depois do acidente vinham-lhe as lágrimas aos olhos. Toda a gente oferecera ajuda, desde amigos íntimos a pessoas que mal conhecia. Alguns tomaram conta de Maja e da casa, outros haviam deixado comida à porta quando ela e Patrik finalmente chegaram do hospital. E, no hospital, tinham-se praticamente afogado com todas aquelas flores, caixas de bombons e brinquedos para as crianças. Tudo enviado por pessoas da cidade. Em Fjällbacka era assim, todos se uniam para ajudar quem precisava.
Naquela noite, porém, Erica sentia-se sozinha. O seu primeiro impulso depois de falar com Patrik fora telefonar a Anna. Sentiu uma pontada no coração, como era habitual, ao aperceber-se de que não o podia fazer e, lentamente, voltou a pousar o telefone sem fios na mesa.
As crianças dormiam no andar de cima. O fogo crepitava na lareira e, lá fora, caía a noite. Durante os últimos meses, Erica sentira-se assustada muitas vezes, mas nunca sozinha. Pelo contrário, pois estava constantemente rodeada por outras pessoas. Mas não naquela noite.
Quando ouviu os bebês a chorar no primeiro andar, levantou-se rapidamente. Ia demorar algum tempo a dar o biberão aos gêmeos e a fazer com que voltassem a adormecer, mas pelo menos isso ia impedi-la de se preocupar com Patrik.
— Tem sido um dia longo, mas pensei que devíamos perder algum tempo a comparar notas e a elaborar um plano antes de irmos todos para casa descansar.
Patrik olhou para os outros. Todos pareciam cansados mas concentrados. Há muito que tinham desistido da ideia de se reunirem em qualquer outra divisão que não a cozinha da delegacia. E, nessa noite, Gösta tinha-se mostrado invulgarmente atencioso, certificando-se de que todos tinham uma chávena de café quente.
— Martin, importas-te de resumir o que descobrimos depois da ronda que fizemos pela vizinhança?
— Fomos a todos os outros apartamentos e conseguimos encontrar a maioria dos inquilinos em casa. Há apenas alguns com quem ainda precisamos de conversar. É óbvio que o nosso primeiro objetivo tem sido descobrir se alguém ouviu barulhos vindos do apartamento de Mats Sverin. Vozes altas, tiros ou qualquer outro tipo de agitação. Mas, quanto a esse ponto, viemos praticamente de mãos a abanar. A única pessoa que pode ter ouvido alguma coisa é o homem que mora no apartamento ao lado do da vítima. Chama-se Leandersson. Foi acordado na madrugada de sábado por um barulho que pode ter sido um tiro, mas a memória que tem desse ruído é muito vaga. Apenas se lembra de ter sido despertado por alguma coisa.
— E ninguém viu pessoas a entrar ou a sair? – perguntou Mellberg. Annika tomava notas furiosamente enquanto os outros falavam.
— Ninguém se recorda de alguém ter visitado Sverin desde que ele lá morava.
— E há quanto tempo é que Sverin lá morava?
— O pai disse que ele só se mudou de Gotemburgo para Fjällbacka há pouco tempo. Estou a pensar ter outra conversa com os pais amanhã, quando estiverem um pouco mais calmos. Depois peço-lhes uma data mais precisa – respondeu Patrik.
— Portanto, não obtivemos nenhuma informação útil com a ronda pela vizinhança – concluiu Mellberg, olhando para Martin como que a responsabilizá-lo por isso.
— Não, realmente não – respondeu Martin, olhando para o chefe. Apesar de ainda ser a pessoa mais nova da delegacia, Martin tinha perdido o respeito tímido que nutria por Mellberg quando entrara para a polícia de Tanumshede.
— Vamos avançar. – Patrik voltou a assumir o controle da reunião. – Falei com o pai, mas a mãe estava em estado de choque, por isso não tive coragem de falar com ela. Como referi, pretendo ir até casa deles para termos uma conversa mais prolongada. Espero descobrir muito mais, apesar de o pai,
Gunnar Sverin, afirmar que nenhum deles faz ideia de quem pudesse querer fazer mal ao filho. Aparentemente, Mats não se dava com ninguém desde que se mudou para Fjällbacka, apesar de ser de lá. Gostava que alguém fosse falar com os colegas de trabalho dele amanhã. Paula e Gösta, será que podem tratar disso?
Os colegas entreolharam-se e assentiram.
— Martin, tu vais continuar a tentar apanhar os vizinhos com quem ainda não falamos. Ah, e esqueci-me de dizer que Gunnar mencionou que o filho foi vítima de uma agressão violenta em Gotemburgo pouco antes de se ter mudado para Fjällbacka. Eu próprio vou investigar isso.
Em seguida, Patrik virou-se para o chefe. Tornara-se rotina certificar-se de que a interferência, muitas vezes prejudicial, de Mellberg numa investigação era a mínima possível.
— Bertil – disse solenemente Patrik. – Precisamos de si aqui na delegacia na sua qualidade de chefe da polícia. O Bertil é a pessoa mais indicada para lidar com os média e não há nenhuma forma de sabermos quando vai aparecer uma pista importante.
Mellberg animou-se imediatamente.
— Claro. Absolutamente. Tenho um excelente relacionamento com os média e muita experiência a lidar com eles.
— Magnífico! – exclamou Patrik sem qualquer vestígio de sarcasmo. – Portanto, todos temos tarefas para amanhã. Annika, vamos enviar-te os nossos relatórios, porque precisamos de alguém que reúna todas as informações.
— Estarei por aqui – retorquiu Annika, fechando o bloco de notas.
— Ótimo. Agora vamos todos para casa ter com as nossas famílias e dormir umas horas.
Enquanto dizia aquelas palavras, Patrik sentiu um desejo intenso de estar em casa, com Erica e com os filhos. Já era tarde e sentia-se exausto. Dez minutos mais tarde, estava a caminho de Fjällbacka.
FJÄLLBACKA, 1870
KARL AINDA NÃO LHE TINHA TOCADO DAQUELA MANEIRA E EMELIE SENTIA-SE CONFUSA. NÃO SABIA MUITO SOBRE AQUELES ASSUNTOS, MAS ESTAVA CIENTE DE QUE SE PASSAVAM CERTAS COISAS ENTRE UM HOMEM E UMA MULHER QUE AINDA NÃO TINHAM ACONTECIDO ENTRE ELES.
DESEJOU QUE EDITH ALI ESTIVESSE E QUE NÃO SE TIVESSEM SEPARADO EM CIRCUNSTÂNCIAS TENSAS QUANDO DEIXARA A QUINTA. SE ASSIM FOSSE, TERIA CONSEGUIDO FALAR COM ELA SOBRE TUDO AQUILO OU, PELO MENOS, PODERIA TER-LHE ESCRITO A PEDIR CONSELHOS. PORQUE UMA MULHER NÃO PODIA DE TODO AVENTURAR-SE A FALAR SOBRE AQUELE GÉNERO DE ASSUNTOS COM O MARIDO. ERA ALGO QUE SIMPLESMENTE NÃO SE FAZIA. NO ENTANTO, EMELIE ACHAVA QUE REALMENTE ERA TUDO UM POUCO ESTRANHO.
A SUA ALEGRIA INICIAL EM RELAÇÃO A GRÅSKÄR TAMBÉM TINHA DIMINUÍDO. O SOL DO OUTONO TINHA SIDO SUBSTITUÍDO POR VENTOS FORTES QUE FAZIAM COM QUE O MAR SE ESMAGASSE CONTRA OS ROCHEDOS. AS FLORES TINHAM MURCHADO, DE MODO QUE NOS CANTEIROS APENAS RESTAVAM TALOS ENFEZADOS. E O CÉU PARECIA ESTAR SEMPRE ESCONDIDO POR DETRÁS DE UMA ESPESSA CAMADA CINZENTA. EMELIE PASSAVA A MAIOR PARTE DO TEMPO DENTRO DE CASA. AO AR LIVRE ESTREMECIA DE FRIO, POR MAIS CAMADAS DE ROUPA QUE VESTISSE. POR DENTRO, A CASA ERA TÃO PEQUENA QUE PARECIA QUE AS PAREDES ESTAVAM LENTAMENTE A FECHAR-SE SOBRE ELA.
ÀS VEZES APANHAVA JULIAN A OLHAR PARA ELA COM RAIVA, MAS SEMPRE QUE O OLHAVA NOS OLHOS, O HOMEM DESVIAVA O OLHAR. AINDA NÃO TINHA TROCADO UMA ÚNICA PALAVRA COM ELA, E EMELIE NÃO CONSEGUIA PERCEBER PORQUE JULIAN ERA TÃO HOSTIL. TALVEZ LHE RECORDASSE UMA MULHER QUE O TRATARA MAL. PELO MENOS, JULIAN PARECIA GOSTAR DOS SEUS COZINHADOS. TANTO ELE COMO KARL COMIAM COM PRAZER, E EMELIE TINHA DE RECONHECER QUE ERA HABILIDOSA A PREPARAR PRATOS DELICIOSOS COM O POUCO QUE HAVIA, QUE NAQUELA ÉPOCA DO ANO SE RESUMIA SOBRETUDO A CAVALA. TODOS OS DIAS KARL E JULIAN SAÍAM NO BARCO E GERALMENTE REGRESSAVAM COM UMA GRANDE QUANTIDADE DAQUELES PEIXES PRATEADOS. EMELIE FRITAVA ALGUNS PARA O JANTAR E SERVIA-OS COM BATATAS. SALGAVA OS RESTANTES PARA QUE DURASSEM TODO O INVERNO, POIS TINHA OUVIDO QUE SE APROXIMAVAM DIAS AINDA MAIS FRIOS.
SE AO MENOS KARL LHE DIRIGISSE UMA PALAVRA AMIGA DE VEZ EM QUANDO... ISSO FARIA COM QUE A VIDA NA ILHA PARECESSE MUITO MAIS FÁCIL. MAS O MARIDO NUNCA A OLHAVA NOS OLHOS, NUNCA LHE DAVA UMA PALMADINHA CARINHOSA QUANDO PASSAVA POR ELA. ERA COMO SE ELA NÃO EXISTISSE, COMO SE KARL MAL PERCEBESSE QUE TINHA UMA MULHER. NADA TINHA CORRIDO COMO EMELIE IMAGINARA E, DE VEZ EM QUANDO, OUVIA AS PALAVRAS DE ADVERTÊNCIA DE EDITH A ECOAR-LHE NA MENTE, QUANDO LHE DISSERA PARA TER CUIDADO.
EMELIE AFASTAVA SEMPRE TAIS PENSAMENTOS ASSIM QUE SURGIAM. A VIDA ALI ERA DIFÍCIL, MAS NÃO TENCIONAVA PROTESTAR. AQUELAS ERAM AS CARTAS QUE LHE TINHAM SIDO DADAS E 1ERIA DE FAZER O MELHOR USO POSSÍVEL DELAS. FOI O QUE A MAE LHE ENSINARA ANTES DE MORRER E ERA ESSE 0 CONSELHO QUE PRETENDIA SEGUIR. NADA ACONTECIA COMO AS PESSOAS PENSAVAM.
MARTIN ODIAVA FAZER A RONDA PELA VIZINHANÇA. Trazia-lhe memórias da infância, quando tinha sido forçado a andar de porta em porta a vender bilhetes de lotaria, meias e outras idiotices para conseguir dinheiro para excursões escolares. Contudo, era uma parte necessária do trabalho, aquilo de andar a subir e a descer escadas de prédios e a bater a todas as portas. Felizmente, tinha lidado com a maioria dos vizinhos da vítima no dia anterior. Olhou de relance a lista que sacara do bolso para ver quem faltava e decidiu começar pelo candidato mais promissor: o terceiro inquilino, que morava no mesmo andar de Mats Sverin.
A placa na porta anunciava: Grip. Martin olhou para o relógio antes de tocar a campainha. Eram apenas oito da manhã, por isso esperava apanhar o inquilino – ou inquilina – antes que saísse para o trabalho. Como ninguém abriu a porta, Martin suspirou e, em seguida, voltou a carregar na campainha. O som estridente feriu-lhe os ouvidos, mas continuava a não haver resposta. Estava prestes a dirigir-se ao andar de baixo quando ouviu o barulho de uma fechadura a ser destrancada nas suas costas.
— Sim? – a voz soou mal-humorada.
Martin apressou-se a regressar à porta do apartamento.
— Sou da polícia. Martin Molin.
A corrente de segurança estava presa, mas Martin vislumbrou uma barba espessa pela abertura da porta. E um nariz muito vermelho.
— Que deseja?
Saber que Martin era da polícia não parecia ter atenuado a hostilidade do Sr. Grip.
— Morreu um homem naquele apartamento – Martin apontou para a porta de Mats Sverin, que agora estava selada com fita da polícia.
— Pois, já ouvi dizer – a barba movia-se para cima e para baixo à entrada do apartamento. – Que tem isso que ver comigo?
— Posso entrar por alguns minutos? – perguntou Martin no tom de voz mais agradável que conseguiu convocar.
— Para quê?
— Para poder fazer-lhe algumas perguntas.
— Eu não sei de nada.
O homem começou a fechar a porta, mas Martin instintivamente enfiou o pé na abertura.
— Ou temos uma breve conversa aqui e agora ou vamos ter de perder toda a manhã, pois terei de levá-lo para a delegacia e interrogá-lo lá. – Martin sabia muito bem que não tinha autoridade para obrigar Grip a ir até a delegacia, mas arriscou. Talvez o velhote não soubesse isso.
— Está bem. Entre – respondeu Grip, retirando a corrente de segurança e abrindo a porta.
Martin deu um passo e entrou, uma decisão que lamentou mal sentiu o fedor.
— Anda cá, meu desgraçado! Não vais lá para fora.
Martin vislumbrou algo peludo e, em seguida, o homem lançou-se para a frente e pegou no gato pela cauda. A criatura miou em protesto, mas depois permitiu que o homem lhe pegasse e o levasse para dentro de casa.
Enquanto a porta se fechava atrás dele, Martin tentou respirar pela boca para não vomitar. O lugar era abafado e cheirava a lixo, mas o cheiro predominante era a urina de gato. Não demorou muito a entender por quê. Martin ficou na entrada da sala e olhou. Havia gatos por todo o lado – deitados, sentados e em movimento. Contou-os rapidamente e calculou que havia pelo menos quinze animais. Num apartamento que não devia ter mais de quarenta metros quadrados.
— Sente-se – resmungou Grip, afugentando alguns gatos do sofá. Martin sentou-se cautelosamente na beira do sofá.
— Okay, o que é que quer saber? Não tenho o dia todo. Esta bicharada mantém-me muito ocupado. Um gato gordo e ruivo saltou para o colo do velho, enroscou-se e começou a ronronar. Tinha o pelo emaranhado e feridas nas patas traseiras.
Martin aclarou a garganta.
— Ontem, o seu vizinho, Mats Sverin, foi encontrado morto no apartamento dele. Por isso queremos saber se quem mora no prédio viu ou ouviu algo de anormal nos últimos dias.
— Não tenho nada que ver ou ouvir coisa nenhuma. Eu meto-me na minha vida e espero que todos os outros vizinhos façam o mesmo.
— Quer dizer que não ouviu nenhum barulho no apartamento do seu vizinho? Ou que não reparou em estranhos nas escadas? – insistiu Martin.
— Como acabei de dizer, eu meto-me na minha vida. – O velho acariciou o pelo emaranhado do gato.
Martin fechou o bloco de notas, decidido a desistir.
— Já agora, qual é o seu nome completo?
— O meu nome é Gottfrid Grip. E suponho que gostaria de saber como se chamam todos os outros, certo?
— Todos os outros? – perguntou Martin, olhando em redor. Havia outras pessoas a viver naquele apartamento?
— Esta chama-se Marilyn. – Gottfrid apontou para o gato que tinha ao colo. – Não gosta de mulheres. Bufa sempre que vê uma.
Martin reabriu obedientemente o bloco de notas e anotou palavra por palavra o que o velho estava a dizer. Se não servisse para mais nada, o seu relatório faria certamente os colegas darem umas boas gargalhadas.
— Aquele cinzento é o Errol, o branco com as patas castanhas chama-se Humphrey, e tenho cá o Cary, a Audrey, a Bette, a Ingrid, a Lauren e o James – Grip continuou a despejar os nomes dos gatos enquanto apontava para cada um à vez e Martin apontou os nomes de todos. Ia ter uma história e tanto quando voltasse para a delegacia.
A caminho da porta, Martin deteve-se por um momento.
— Portanto, nem o senhor nem os seus gatos ouviram nem viram nada?
— Nunca disse que os gatos não viram nada. Só disse que eu não vi nada. Mas aqui a Marilyn viu um carro no sábado de manhã bem cedo quando estava sentada à janela da cozinha. Ficou ali bufando que nem uma maluca.
— Marilyn viu um carro? De que marca era o carro que a gata viu? – perguntou Martin, mesmo que a pergunta soasse estranha.
Grip lançou-lhe um olhar de desprezo.
— Acha realmente que os gatos sabem distinguir as marcas dos carros? Está maluco? – Grip bateu com o dedo na testa e abanou a cabeça, rindo-se. Quando Martin saiu para o corredor, Grip fechou a porta atrás dele e recolocou a corrente de segurança.
— Erling está? – perguntou Gösta, batendo ao de leve no batente da porta da primeira sala do corredor. Gösta e Paula tinham chegado à câmara municipal de Tanumshede.
Gunilla teve um sobressalto. Estava sentada de costas para a porta.
— Oh, pregaram-me um valente susto – disse, agitando nervosamente as mãos.
— Peço desculpa, não queria fazer isso – disse Gösta. – Estamos à procura de Erling.
— É por causa de Mats? – O lábio inferior da secretária começou a tremer. – É tão horrível – Gunilla pegou numa embalagem de lenços de papel e serviu-se de um para limpar as lágrimas que lhe vieram aos olhos.
— Sim, é por causa dele – respondeu Gösta. – Queremos falar com todos vós, mas gostaríamos de começar por Erling, se estiver por cá.
— Está no gabinete. Eu levo-vos lá.
Levantou-se e, depois de se assoar ruidosamente, acompanhou-os a um gabinete mais ao fundo do corredor.
— Erling, tem visitas – anunciou Gunilla, afastando-se para o lado.
— Olá, como estão? Há quanto tempo, não é? – disse acaloradamente Erling, levantando-se e apertando a mão a Gösta.
Depois olhou para Paula e pareceu rebuscar febrilmente a memória.
— Petronella, certo? Este meu cérebro é como uma máquina bem oleada. Nunca me esqueço de nada.
— Por acaso, chamo-me Paula – disse a agente, estendendo a mão para o cumprimentar.
Por um momento, Erling pareceu ter ficado levemente envergonhado, mas depois encolheu os ombros.
— Estamos aqui para lhe fazer algumas perguntas sobre Mats Sverin – explicou Gösta. Sentou-se numa das cadeiras reservadas às visitas à frente da secretária de Erling, o que fez com que Paula e Erling o imitassem.
— Sim, é horrível – disse Erling com uma careta estranha. – Toda a gente no escritório está muito abalada e, como é natural, queremos todos saber o que aconteceu. Têm alguma novidade para nós?
— Por enquanto não sabemos grande coisa – referiu Gösta, abanando a cabeça. – Só posso confirmar o que lhe foi dito ontem, quando lhe telefonamos. Sverin foi encontrado morto no apartamento dele e estamos a investigar a sua morte.
— Mats foi assassinado?
— Isso é algo que não podemos confirmar nem desmentir.
Gösta apercebeu-se do formalismo das suas palavras, mas sabia que ouviria das boas de Hedström se revelasse demasiadas informações, o que poderia prejudicar a investigação.
— Precisamos da sua ajuda – prosseguiu Gösta. – Pelo que sei, Sverin não veio trabalhar na segunda nem na terça-feira. Foi quando o Erling contactou os pais dele. Sverin costumava faltar ao trabalho?
— Pelo contrário. Acho que não tirou um único dia de folga desde que começou a trabalhar aqui. Tanto quanto me lembro, Mats nunca se ausentou por nenhum motivo. Nem sequer para ir ao dentista. Era pontual, dedicado, e muito consciencioso. Por isso é que fiquei preocupado quando não apareceu nem nos telefonou a avisar que não vinha.
— Há quanto tempo trabalhava aqui? – perguntou Paula.
— Há dois meses. Foi realmente uma sorte encontrar alguém como Mats. O anúncio de emprego tinha sido publicado há cinco semanas e já tínhamos entrevistado vários candidatos, mas nenhum deles tinha as qualificações que procurávamos. Quando Mats respondeu ao anúncio, receamos que tivesse habilitações a mais, mas ele garantiu-nos que era exatamente o emprego que desejava. Parecia particularmente interessado em voltar para Fjällbacka. E quem pode culpá-lo? É a pérola da costa. – Erling abriu as mãos.
— Sverin não deu nenhuma razão especial para querer regressar a Fjällbacka? – perguntou Paula, inclinando-se para a frente.
— Não, a não ser que queria fugir do stress de Gotemburgo e ter melhor qualidade de vida. E isso é precisamente o que a nossa cidade tem para oferecer. Paz, sossego e muita qualidade de vida. – Erling enunciou cuidadosamente cada sílaba, como se estivesse numa apresentação destinada a promover a cidade.
— Portanto, Sverin não disse nada sobre a sua situação pessoal? – Gösta começava a impacientar- se.
— Mats não falava da sua vida privada. Eu sabia que era de Fjällbacka e que os pais ainda moram lá. Mas, além disso, não me lembro de alguma vez ter falado da sua vida fora do escritório.
— Sverin esteve envolvido num incidente muito desagradável, pouco antes de se mudar de Gotemburgo. Foi atacado e espancado de tal maneira que foi parar ao hospital. Alguma vez mencionou isso? – perguntou Paula.
— Não, nunca – respondeu Erling, surpreendido. – Realmente, Mats tinha várias cicatrizes na cara, mas disse que as calças tinham ficado presas na roda da bicicleta e que por isso tinha caído.
Gösta e Paula trocaram olhares de perplexidade.
— Quem foi que o agrediu? Foi a mesma pessoa que... – Erling quase sussurrou aquelas perguntas.
— De acordo com os pais, foi um ato de violência gratuita. Não achamos que tenha qualquer ligação com a morte de Sverin, mas não podemos descartar essa hipótese – respondeu Gösta.
— Quer dizer que Sverin nunca falou dos anos que passou em Gotemburgo? – insistiu Paula. Erling abanou a cabeça.
— Apenas posso repetir o que já lhes disse. Mats nunca falava sobre ele próprio. Era como se a sua vida tivesse começado quando começou a trabalhar aqui.
— Não achava isso um pouco estranho?
— Por acaso, não. Julgo que ninguém pensava muito nisso. Mats não era de todo antissocial. Ria-se, dizia piadas e juntava-se às conversas sobre programas de televisão e temas de que se costuma falar durante as pausas para café. Julgo que nunca ninguém reparou realmente que Mats não falava dele. Só agora, depois do que aconteceu, é que isso me ocorreu.
— Sverin estava a fazer um bom trabalho? – perguntou Gösta.
— Mats era um excelente chefe do departamento financeiro. Como eu disse, era consciencioso, metódico e meticuloso no seu trabalho. São todas qualidades desejáveis em alguém que está encarregado das questões financeiras, sobretudo num órgão tão politicamente sensível como o nosso.
— Não tem qualquer razão de queixa dele? – perguntou Paula.
— Nenhuma. Mats era extremamente talentoso na sua profissão. E tem sido um recurso inestimável para o Projeto Badis. Já entrou em campo no final do jogo, mas rapidamente se inteirou de tudo e nos ajudou a seguir em frente.
Gösta olhou para Paula, que abanou a cabeça. De momento não tinham mais perguntas, mas Gösta não pode deixar de pensar que Mats Sverin parecia tão anônimo e sem rosto como antes de terem começado a conversa com o seu chefe. E não conseguia deixar de se perguntar o que poderiam encontrar quando começassem finalmente a esgravatar.
A pequena casa dos Sverin situava-se à beira-mar, em Mörhult. O tempo estava mais quente, um dia magnífico de início de verão, pelo que Patrik deixou o casaco no carro. Telefonara antecipadamente a dizer que ia aparecer e, quando Gunnar abriu a porta, Patrik olhou pelo corredor até a cozinha e viu que a mesa tinha sido posta para o café. Era assim que se recebiam pessoas ali na costa. Havia sempre café e biscoitos para as visitas, fosse a ocasião alegre ou triste. Ao longo dos muitos anos que já contava na polícia, Patrik tinha engolido incontáveis litros de café ao visitar os habitantes locais.
— Entre. Vou só ver se consigo que Signe... – Sem terminar a frase, Gunnar virou-se e preparou-se para subir as escadas.
Patrik permaneceu onde estava, resolvendo esperar no vestíbulo. Mas, como Gunnar tardava, decidiu ir até a cozinha. Toda a casa parecia envolta em silêncio, de modo que Patrik tomou a liberdade de entrar na sala de estar. Era uma divisão agradável, bonita e arrumada, com elegantes móveis antigos e bibelôs por toda a parte, como era costume nas casas dos idosos. Pela sala havia fotografias emolduradas do filho. Ao olhar para elas, Patrik foi capaz de acompanhar a vida de Mats desde a infância até a idade adulta. Tinha um ar atraente, um rosto simpático. Parecia feliz. A julgar pelas fotografias, Mats Sverin tivera uma infância agradável.
— Signe já desce.
Patrik estava tão imerso nos seus pensamentos que a voz de Gunnar quase o fez deixar cair a fotografia emoldurada que tinha na mão.
— Tem fotografias muito boas do seu filho. – Cuidadosamente, Patrik recolocou a moldura na mesa e seguiu Gunnar até a cozinha.
— Sempre gostei de tirar fotografias, por isso acumulamos muitas ao longo dos anos. E agora fico contente por isso. Quer dizer, fico contente por termos uma recordação de Matte. – Envergonhado, Gunnar começou a mexer nos pratos e a encher as chávenas de café.
— Quer açúcar ou leite? Ou as duas coisas?
— Pode ser simples, obrigado – Patrik sentou-se numa das cadeiras brancas da cozinha. Gunnar pôs-lhe uma chávena à frente e depois sentou-se do outro lado da mesa.
— Mais vale começarmos. Tenho certeza de que Signe já não deve demorar – disse Gunnar, lançando um olhar preocupado na direção das escadas. Não se ouvia um único ruído no andar de cima.
— Como está a sua mulher?
— Desde ontem que não diz nada. O médico disse que vinha cá vê-la mais logo. Signe limita-se a ficar deitada na cama, mas acho que não pregou olho a noite inteira.
— Parece que receberam muitas flores – disse Patrik , apontando para o balcão, onde grandes buquês tinham sido colocados em todo o tipo de recipientes a servir de jarras.
— Têm sido todos tão simpáticos. Ofereceram-se para vir até cá, mas nem por sombras tenho forças para ter muita gente em casa. – Gunnar deixou cair um cubo de açúcar na chávena e começou a mexer o café. Depois pegou num biscoito e mergulhou-o no café antes de lhe dar uma dentada. Parecia estar com dificuldade em engolir e teve de tomar um pouco de café para ajudar a empurrar o pedaço de biscoito.
— Ah, já chegaste. – Gunnar virou-se para olhar para Signe quando a mulher entrou na cozinha.
Não a tinham ouvido descer as escadas. Gunnar levantou-se e dirigiu-se para a mulher. Gentilmente, pôs-lhe o braço em torno dos ombros e conduziu-a à mesa como se Signe fosse uma pessoa muito idosa. Na verdade, a mulher parecia ter envelhecido vários anos desde o dia anterior.
— O médico não deve demorar. Bebe um bocado de café e come um biscoito. Tens de pôr qualquer coisa no estômago. Queres uma sanduíche?
Signe abanou a cabeça. Era a primeira vez que reagia, confirmando que tinha ouvido o que o marido dissera.
— Lamento muito – disse Patrik, não resistindo a pôr a mão sobre a mão de Signe. A mulher não a afastou, mas também não reagiu ao gesto. A mão estava mole, sem vida. – Quem me dera não ter de perturbar-vos num momento como este, tão pouco tempo depois do que aconteceu.
Como era costume, Patrik estava a ter dificuldade em encontrar as palavras certas. Desde que tinha sido pai que achava mais difícil do que nunca lidar com as pessoas que tinham perdido um filho, mesmo que já fosse adulto. Que poderia dizer a alguém a quem tinham arrancado o coração? Porque era assim que imaginava que as pessoas se deviam sentir.
— Nós compreendemos que tem de fazer o seu trabalho – disse Gunnar. – E é óbvio que queremos que encontre a pessoa que... fez isto a Matte. Se houver alguma maneira de ajudarmos, pode contar conosco.
Gunnar tinha-se sentado ao lado da mulher e depois aproximou ainda mais a cadeira dela, num gesto protetor. Signe não tinha tocado no café.
— Bebe um bocadinho – disse, erguendo a chávena até os lábios da mulher. Relutante, Signe bebeu uns golinhos de café.
— Já falamos sobre isto ontem, mas será que me podiam falar um pouco mais de Mats? Podem partilhar comigo o que quiserem, por mais insignificante que vos possa parecer.
— Matte foi sempre tão simpático, mesmo em bebê – disse Signe. A voz soou seca e áspera, como se não falasse há muito tempo. – Dormia a noite inteira, logo desde o início, e nunca nos deu nenhum problema. Mas eu preocupava-me com ele, sempre me preocupei. Estava sempre a pensar que ia acontecer uma coisa terrível.
— E tinhas razão. Devia ter-te dado ouvidos – disse Gunnar, cravando os olhos na mesa.
— Não, tu é que tinhas razão – contestou Signe, olhando para o marido. Parecia ter repentinamente despertado do seu estupor. – Desperdicei tanto tempo e tanta felicidade com as minhas preocupações, ao passo que tu estavas sempre contente e grato pelo que tínhamos, e por Matte. É impossível uma pessoa preparar-se para uma coisa destas. Eu passei a minha vida inteira a preocupar-me com tudo e mais alguma coisa, mas nunca fui capaz de me preparar para isto. Devia ter sido mais feliz. – Signe calou-se por um momento. E depois continuou: – Que deseja saber? – pegou a xícara para beber seu café sem esperar que tivessem de persuadi-la.
— Mats foi para Gotemburgo quando saiu de vossa casa?
— Sim, depois de acabar a secundária matriculou-se na faculdade de Economia. Teve notas excelentes na secundária – respondeu Gunnar, obviamente orgulhoso do filho.
— Mas vinha frequentemente a casa aos fins de semana – acrescentou Signe. Falar sobre o filho parecia estar a ter um efeito positivo nela. Agora tinha um pouco mais de cor nas faces e os olhos estavam mais límpidos.
— Claro que nos últimos anos não vinha com tanta frequência. Mas, naqueles primeiros tempos, Matte vinha a casa quase todos os fins de semana – disse Gunnar, assentindo.
— E os estudos continuaram a correr-lhe bem? – Patrik tinha decidido cingir-se a assuntos que fariam com que Signe e Gunnar se sentissem calmos e descontraídos.
— Sim, também teve muito boas notas na faculdade – respondeu Gunnar. – Nunca percebi como é que Matte tinha tão boa cabeça para os livros. A mim é que não saiu, de certeza – acrescentou com um sorriso e, por um momento, pareceu esquecer por que estavam a falar acerca daquilo. Mas não tardou a cair na realidade e o sorriso desvaneceu-se.
— Então e o que fez o vosso filho depois de terminar a licenciatura?
— O primeiro trabalho dele foi para aquela empresa de auditoria, não foi? – Signe franziu a testa e virou-se para Gunnar.
— Sim, acho que sim, mas vejam lá que não consigo lembrar-me do nome da empresa. Era uma coisa americana. Só esteve lá uns anos. Aquilo não tinha muito que ver com ele. Matte disse que o trabalho envolvia demasiadas tarefas com números e muito poucas com pessoas.
— E onde é que Mats trabalhou depois disso? – perguntou Patrik. O café tinha arrefecido, mas continuou a beber pequenos golos.
— Trabalhou em vários sítios. Tenho certeza de que consigo descobrir-lhe os nomes, se quiser, mas durante os últimos quatro anos foi responsável pelas finanças de uma organização sem fins lucrativos chamada Refúgio.
— Que faz essa organização?
— É um grupo que apoia mulheres que fugiram de situações de violência doméstica, ajudando-as a reconstruir as suas vidas. Matte adorava esse trabalho. Quase não falava noutra coisa.
— Porque é que Mats saiu dessa organização?
Gunnar e Signe entreolharam-se e Patrik percebeu que os pais de Mats Sverin também já se tinham interrogado acerca disso.
— Bem, acho que teve alguma coisa que ver com a agressão. Deixou de sentir-se seguro em Gotemburgo – disse Gunnar.
— Mas afinal também não estava seguro aqui – afirmou, por seu turno, Signe.
Pois não, pensou Patrik, não estava mesmo nada seguro. Independentemente do que tivesse motivado Mats Sverin a deixar Gotemburgo, a violência tinha acabado por encontrá-lo.
— Quanto tempo esteve no hospital depois da agressão?
— Três semanas, creio – respondeu Gunnar. – Foi um choque quando o fomos lá visitar.
— Mostra-lhe as fotos – disse Signe baixinho.
Gunnar levantou-se e foi à sala de estar. Regressou com uma pequena caixa nas mãos.
— Na verdade não sei porque as guardamos. Não são propriamente o tipo de fotos que gostemos de mostrar a alguém. – Os dedos calejados de Gunnar desapareceram na caixa e retiraram cuidadosamente as fotografias.
— Posso ver? – Patrik estendeu a mão e Gunnar entregou-lhe o pequeno maço. – Meu Deus! – exclamou, não conseguindo conter-se ao ver as fotografias de Mats Sverin deitado na cama do hospital. O que viu não tinha qualquer semelhança com o jovem que aparecia em todas as fotografias da sala de estar. Tinha o rosto e a cabeça completamente inchados. E a pele tinha adquirido vários tons de vermelho com reflexos azulados.
— É verdade – disse Gunnar, desviando o olhar.
— Disseram que Matte podia ter morrido. Mas teve sorte, apesar de tudo. – Signe pestanejou para afastar as lágrimas.
— Pelo que sei, nunca apanharam os agressores, pois não?
— Nunca – disse Signe. – Acha que isto pode estar relacionado com o que aconteceu a Matte? O meu filho não conhecia de nenhum lado aqueles malvados que o agrediram. Fizeram-lhe aquilo porque Matte disse a um deles para não urinar à porta do prédio dele. Nunca os tinha visto. Porque haveriam de... – disse com voz estridente.
Gunnar acariciou-lhe o braço para a acalmar.
— Eles ainda não sabem nada. A polícia só quer descobrir o máximo possível – disse-lhe o marido.
— Exatamente – concordou Patrik. – Ainda não temos nenhuma resposta. Precisamos de construir o quadro mais completo possível de Mats e da sua vida – acrescentou, virando-se para olhar para Signe. – O seu marido disse que, tanto quanto sabem, atualmente Mats não tinha namorada. Será que não tinha mesmo?
— Não. Ou, se tinha, não queria que se soubesse. Para ser franca, já tinha quase perdido a esperança de ter um neto – disse Signe. Mas quando se apercebeu do que tinha dito, e de que agora já não havia esperança de vir a acontecer, começou a chorar.
Gunnar apertou-lhe a mão.
— Acho que havia alguém em Gotemburgo – prosseguiu Signe por entre soluços. – Matte nunca nos disse isso taxativamente, mas eu tinha a sensação de que havia uma mulher. E às vezes sentia cheiro a perfume nas roupas dele, quando nos vinha visitar. E era sempre o mesmo perfume.
— Mas o seu filho nunca mencionou um nome? – perguntou Patrik.
— Não, nunca, apesar de Signe não conseguir resistir e o ter interrogado várias vezes acerca disso – respondeu Gunnar, sorrindo.
— Bem, não percebo porque é que isso tinha de ser um segredo assim tão grande. Porque é que não a trazia cá a casa um fim de semana para que pudéssemos conhecê-la? Nós sabemos comportar-nos, se fizermos um esforço.
Gunnar abanou a cabeça.
— Como pode ver, este era um assunto bastante sensível.
— Tem a sensação de que essa mulher, quem quer que possa ter sido, continuou a fazer parte da vida de Mats depois de ele ter regressado a Fjällbacka?
— Hum... – Gunnar olhou para Signe.
— Não, não continuou – disse enfaticamente Signe. – Uma mãe sabe ver essas coisas. Quase podia jurar que Matte não tinha namorada.
— Acho que Matte nunca conseguiu esquecer Nathalie – interrompeu Gunnar.
— Como assim? Isso foi há muito tempo. Eles eram apenas crianças.
— Isso não importa. Havia algo de especial em Nathalie. Sempre pensei assim e acho que Matte... Tu viste como ele reagiu quando lhe disse que ela tinha voltado, não foi?
— Sim, mas que idade tinham eles naquela altura? Dezassete? Dezoito?
— Continuo a achar que tenho razão – insistiu teimosamente Gunnar. – E Matte ia lá visitá-la.
— Desculpem-me – disse Patrik, entrando na conversa. – Mas quem é Nathalie?
— Nathalie Wester. Ela e Matte cresceram juntos. Por acaso andaram na mesma turma da sua mulher. Tanto Matte como Nathalie.
Gunnar parecia um pouco envergonhado por admitir que conhecia Erica, mas Patrik não ficou surpreendido. Quase toda a gente se conhecia em Fjällbacka, mas as pessoas interessavam-se particularmente por Erica, pois os seus livros eram muito populares.
— Nathalie ainda vive cá?
— Não, mudou-se há muitos anos. Foi para Estocolmo e, desde aí, perderam o contacto. Mas
Nathalie tem uma ilha aqui perto. Chama-se Gråskär.
— E acha que Mats foi visitá-la à ilha?
— Pode não ter tido tempo para lá ir – respondeu Gunnar. – Mas pode telefonar a Nathalie e perguntar-lhe diretamente – acrescentou, levantando-se para ir buscar uma nota que estava afixada na porta do frigorífico. – Este é o número de celular dela. Não sei quanto tempo pensa ficar na ilha. Está lá com o filho.
— Nathalie vai muitas vezes à ilha?
— Não, na verdade ficamos um pouco surpreendidos. Quase não ia lá desde que se mudou para Estocolmo. A última vez foi há muitos anos. Mas a ilha pertence-lhe. O avô paterno comprou-a e Nathalie é a única descendente que resta, já que não tem irmãos. Temos-lhe tomado conta da casa, mas se não fizerem nada depressa em relação ao farol, não se vai aproveitar nada.
— O farol?
— Sim, há um antigo farol do século XIX na ilha. E um chalé. No passado, era onde o faroleiro vivia com a família.
— Parece ser uma vida solitária – Patrik bebeu o que restava do seu café frio, incapaz de conter uma careta.
— Solitária ou maravilhosa e tranquila. Tudo depende de como se olha para ela – disse Signe. – Mas não seria capaz de passar lá uma única noite sozinha.
— Não eras tu que estavas sempre a dizer que isso era apenas um monte de disparates e histórias de velhas? – perguntou Gunnar.
— Como assim? – A curiosidade de Patrik foi imediatamente despertada.
— Costumam chamar a Gråskär a Ilha dos Espíritos. Segundo a lenda, o nome surgiu porque aqueles que morrem por lá nunca deixam a ilha – disse Gunnar.
— Quer dizer que há lá fantasmas?
— Isso não passa de conversa fiada – resfolegou Signe.
— Bem, não importa. Vou telefonar a Nathalie. Muito obrigado pelo café e pelos biscoitos, e por se terem disponibilizado a responder às minhas perguntas. – Patrik levantou-se e arrumou a cadeira.
— Foi bom podermos falar sobre ele – disse suavemente Signe.
— Importam-se de me emprestar isto por algum tempo? – Patrik apontou para as fotografias do hospital. – Prometo não as estragar.
— Força, leve-as – disse Gunnar, entregando-lhe as fotografias. – Temos uma máquina fotográfica digital, por isso tenho as fotos no meu computador.
— Obrigado – disse Patrik, enfiando cuidadosamente as fotografias na pasta.
Signe e Gunnar acompanharam-no à porta. Quando entrou no carro, Patrik viu passar-lhe pela mente todas as imagens de Mats Sverin: em criança, quando era adolescente, e depois adulto. Decidiu ir almoçar a casa. Sentia um impulso irresistível de dar um beijo aos gêmeos.
— Como está hoje este malandrinho do seu avozinho?
Mellberg também tinha ido almoçar a casa e, assim que entrou, tirou Leo dos braços de Rita e começou a levantá-lo no ar, fazendo o neto dar gritinhos de alegria.
— É sempre a mesma coisa! Quando o avô chega a casa, já não queres saber da avó para nada. – Rita franziu a testa, mas depois despontou-lhe um sorriso na cara e deu a ambos um beijo na face.
Havia uma ligação especial entre Bertil e Leo, já que Bertil tinha estado presente no momento do nascimento do bebê, e ninguém ficava mais feliz com isso do que Rita. No entanto, ficou aliviada quando Bertil fora convencido a voltar a trabalhar a tempo inteiro. Parecera boa ideia tê-lo em casa a preencher o lugar de Paula, porém, por mais que adorasse aquele seu herói improvável, Rita não tinha ilusões quanto à sua capacidade de discernimento, que às vezes era, no mínimo, questionável.
— Que é o almoço? – Mellberg pousou cuidadosamente o menino na cadeirinha e atou-lhe o babete ao pescoço.
— Galinha com o meu molho caseiro de que tu tanto gostas.
Mellberg cantarolou de prazer. Em toda a sua vida nunca tinha comido nada mais exótico do que cabrito cozido com molho de endro, batatas e cenouras, mas Rita conseguira mudar tudo isso. Fazia um molho tão forte que quase lhe arrancava o esmalte dos dentes, mas Mellberg adorava aquilo.
— A noite passada chegaste tarde a casa. – Rita pôs um prato na mesa com um pouco de comida sem picante que tinha feito para Leo, e Bertil começou a alimentar o neto.
— Sim, estamos outra vez a trabalhar a todo o vapor. Paula e os outros andam por aí a investigar, mas Hedström salientou, com razão, que era preciso alguém ficar na delegacia para lidar com a mídia. E ninguém está mais apto do que eu para assumir essa grande responsabilidade. – Mellberg pôs demasiada comida na boca de Leo, mas o rapazinho livrou-se logo de metade da porção, que lhe escorreu pelo queixo.
Rita reprimiu um sorriso. Era óbvio que Patrik tinha novamente conseguido dar a volta ao chefe. Gostava de Hedström. Ele sabia como lidar com Bertil: com paciência, diplomacia e um certo grau de bajulação que o levava a fazer exatamente o que ele queria. Rita fazia o mesmo, de modo a garantir que a sua vida em conjunto corria sem problemas.
— Coitadinho. Parece que andas mesmo muito ocupado – disse Rita, pondo galinha no prato de Mellberg, juntamente com uma porção generosa de molho.
Leo tinha acabado de comer, por isso Mellberg lançou-se ao seu prato. Depois de se ter servido duas vezes, o superintendente recostou-se na cadeira e deu uma palmadinha na barriga.
— Delicioso. E sei exatamente o que seria perfeito para sobremesa. Que achas, Leo, meu menino? – Mellberg levantou-se e dirigiu-se ao frigorífico.
Rita sabia que devia impedi-lo, mas não teve coragem. Deixou-o retirar do congelador três grandes barras de gelado Magnum que alegremente distribuiu pelos três. Leo quase desapareceu por detrás do enorme gelado. Se Bertil continuasse a alimentá-lo daquela maneira, o rapazinho não tardaria a ganhar em largura o que tinha em altura. Nesse dia, porém, Rita decidiu não se preocupar com isso.
FJÄLLBACKA, 1870
CHEGOU-SE UM POUCO MAIS PARA PERTO DE KARL. O MARIDO ESTAVA DEITADO NA CAMA DO LADO DA PAREDE, EM CEROULAS E CAMISA. DAÍ A DUAS HORAS TERIA DE LEVANTAR-SE PARA RENDER JULIAN NO FAROL. CAUTELOSAMENTE, EMELIE PÔS-LHE A MÃO NA PERNA, ACARICIANDO-LHE A COXA COM OS DEDOS TRÉMULOS. NÃO LHE CABIA A ELA TOMAR A INICIATIVA DAQUELA MANEIRA, MAS HAVIA ALGO QUE NÃO ESTAVA BEM. PORQUE É QUE KARL NUNCA LHE TOCAVA? O MARIDO NEM SEQUER FALAVA COM ELA. APENAS MURMURAVA UM AGRADECIMENTO PELA COMIDA ANTES DE SE LEVANTAR DA MESA. ALÉM DISSO, PARECIA ESTAR SEMPRE A OLHAR ATRAVÉS DELA, COMO SE FOSSE FEITA DE VIDRO E QUASE NÃO A VISSE. PARECIA QUE ERA INVISÍVEL.
E KARL TAMBÉM PASSAVA MUITO POUCO TEMPO EM CASA. DURANTE A MAIOR PARTE DAS HORAS DE VIGÍLIA ESTAVA NO FAROL OU A TRABALHAR NO BARCO. OU ENTÃO ESTAVA NO MAR. EMELIE PASSAVA O DIA INTEIRO COMPLETAMENTE SOZINHA NO CHALÉ E ACABAVA RAPIDAMENTE O TRABALHO DOMÉSTICO. DEPOIS FICAVA COM MUITAS HORAS PARA PREENCHER E COMEÇOU A PENSAR QUE PODERIA ENLOUQUECER. SE TIVESSE UM BEBÊ, TERIA ALGUÉM PARA LHE FAZER COMPANHIA E OUTRAS TAREFAS COM QUE OCUPAR O TEMPO. ASSIM NÃO SE IMPORTARIA QUE KARL TRABALHASSE DE SOL A SOL E NÃO SE IMPORTARIA QUE NUNCA FALASSE COM ELA. SE AO MENOS TIVESSEM UM FILHO...
MAS, DEPOIS DE TER VIVIDO NA QUINTA, EMELIE SABIA QUE TINHAM DE ACONTECER CERTAS COISAS ENTRE UM HOMEM E UMA MULHER ANTES QUE A MULHER FICASSE GRÁVIDA. COISAS QUE AINDA NÃO TINHAM ACONTECIDO. FOI POR ISSO QUE PÔS A MÃO NA PERNA DE KARL E A FEZ DESLIZAR PELO INTERIOR DA COXA DO MARIDO. O CORAÇÃO MARTELAVA-LHE O PEITO DE NERVOSISMO E DE EXCITAÇÃO QUANDO ENFIOU SUAVEMENTE A MÃO PELA ABERTURA DAS CUECAS DE KARL.
KARL SENTOU-SE NA CAMA COM UM SOBRESSALTO.
— QUE ESTÁS A FAZER? – A EXPRESSÃO DO MARIDO ERA MAIS SOMBRIA DO QUE ALGUMA VEZ TINHA VISTO E KARL AFASTOU-LHE BRUSCAMENTE A MÃO.
— EU... EU PENSEI QUE... – EMELIE NÃO CONSEGUIA ENCONTRAR AS PALAVRAS CERTAS. COMO DEVERIA EXPLICAR O ÓBVIO? ATÉ KARL DEVIA PERCEBER QUÃO ESTRANHO ERA ESTAREM CASADOS HÁ QUASE TRÊS MESES E NUNCA SE TER APROXIMADO DELA. EMELIE SENTIU OS OLHOS MAREJADOS DE LÁGRIMAS.
— MAIS VALE DORMIR NO FAROL. NÃO VOU TER PAZ POR AQUI. – KARL PASSOU POR ELA AOS EMPURRÕES, VESTIU-SE E DESCEU APRESSADAMENTE AS ESCADAS.
EMELIE SENTIU-SE COMO SE TIVESSE LEVADO UMA ESTALADA NA CARA. ATÉ AGORA KARL TINHA-A SIMPLESMENTE IGNORADO, MAS AQUELA FORA A PRIMEIRA VEZ QUE LHE TINHA FALADO NAQUELE TOM DE VOZ. DURO, FRIO E DESDENHOSO. E OLHARA-A COMO SE ELA FOSSE UMA CRIATURA REPUGNANTE QUE RASTEJARA PARA FORA DO SEU ESCONDERIJO DEBAIXO DE UMA PEDRA.
COM AS LÁGRIMAS A ESCORRER-LHE PELO ROSTO, EMELIE ARRASTROU-SE ATÉ À JANELA E OLHOU LÁ PARA FORA. O VENTO SOPRAVA COM FORÇA POR TODA A ILHA E KARL TEVE DE LUTAR CONTRA AS RAJADAS ENQUANTO SE DIRIGIA PARA O FAROL. ABRIU BRUSCAMENTE A PORTA E ENTROU. DEPOIS, EMELIE VIU-O APARECER À JANELA DA TORRE, ONDE O FEIXE DE LUZ O TRANSFORMOU NUMA SOMBRA.
VOLTOU PARA A CAMA E CHOROU. A CASA RANGIA E GEMIA, QUASE COMO SE PUDESSE ERGUER-SE A QUALQUER MOMENTO E VOAR SOBRE AS ILHAS, EM DIREÇÃO AO CÉU CINZENTO. MAS AQUILO NÃO A ASSUSTAVA. PREFERIRIA VOAR PARA LONGE, PARA QUALQUER LUGAR QUE FOSSE, A FICAR ALI.
SENTIU ALGO A ACARICIAR-LHE A FACE NO MESMO SÍTIO ONDE AS PALAVRAS DE KARL A TINHAM ATINGIDO COMO SE LHE TIVESSE BATIDO. EMELIE SENTOU-SE, SOBRESSALTADA. NÃO ESTAVA ALI NINGUÉM. PUXOU AS COBERTAS ATÉ AO QUEIXO E OLHOU PARA OS CANTOS ESCUROS DA SALA. NÃO VIU NADA. VOLTOU A DEITAR- SE. PROVAVELMENTE ERA APENAS A SUA IMAGINAÇÃO. E O MESMO SE PASSAVA COM TODOS OS OUTROS RUÍDOS QUE OUVIRA DESDE QUE CHEGARA À ILHA. SEM MENCIONAR AS PORTAS DO ARMÁRIO, QUE ÀS VEZES ENCONTRAVA ABERTAS, EMBORA TIVESSE A CERTEZA DE AS TER FECHADO. E COM O AÇUCAREIRO, QUE DE ALGUMA FORMA SE MUDARA DA MESA DA COZINHA PARA A BANCADA. DEVIA TER INVENTADO TUDO AQUILO. SÓ PODIA SER A SUA IMAGINAÇÃO, A PAR COM O ISOLAMENTO DA ILHA, A PREGAR-LHE PARTIDAS.
OUVIU UMA CADEIRA A ARRANHAR O CHÃO NO ANDAR DE BAIXO. EMELIE SENTOU-SE, CONTENDO A RESPIRAÇÃO. AS PALAVRAS DA VELHA ECOARAM-LHE NOS OUVIDOS, AS PALAVRAS QUE CONSEGUIRA MANTER AO LARGO DURANTE OS ÚLTIMOS MESES. NÃO QUERIA IR LÁ A BAIXO, NÃO QUERIA SABER O QUE PODERIA LÁ ENCONTRAR, O QUE TINHA ESTADO ALI NO QUARTO A ACARICIAR-LHE A FACE.
TREMENDO, EMELIE PUXOU AS COBERTAS SOBRE A CABEÇA, ESCONDENDO-SE DE TERRORES DESCONHECIDOS COMO UMA CRIANÇA. E ASSIM FICOU, BEM DESPERTA, ATÉ AMANHECER. MAS NÃO OUVIU MAIS NENHUM RUÍDO.
— QUE PENSAS DISTO TUDO? – perguntou Paula. Depois de terem comprado o almoço no supermercado Konsum, Paula e Gösta tinham-se sentado a comer na cozinha da delegacia.
— É realmente estranho – respondeu Gösta, comendo mais uma garfada do seu peixe gratinado. – Ninguém parece saber nada sobre a vida pessoal de Sverin. E no entanto toda a gente o tem em grande estima e diz que era uma pessoa muito aberta e sociável. Acho que não faz qualquer sentido.
— Também acho. Como é que alguém, tirando o que se refere a trabalho, pode manter tudo em segredo? Era natural que revelasse alguma coisa durante o café ou o almoço, não te parece?
— Bem, ao princípio tu também não falavas lá muito da tua vida. Paula corou.
— Tens razão. E acho que já percebi o que se passa. Eu mantinha-me calada porque havia uma coisa que não queria que as pessoas soubessem. Não fazia ideia de como vocês reagiriam se soubessem que eu vivia com uma mulher. Portanto, a questão é: que está Mats Sverin a tentar esconder?
— Isso é o que temos de descobrir.
Paula sentiu algo a roçar-lhe a perna. Ernst farejara a comida e agora estava sentado aos seus pés, esperando que lhe calhasse alguma coisa em sorte.
— Desculpa lá, meu rapaz, não sou a pessoa certa para pedires esmola. Só tenho aqui salada.
Ernst não se mexeu, mas mirou-a com olhar suplicante. Paula percebeu que teria de mostrar-lhe o que estava a comer. Tirou um pedaço de alface da tigela de plástico e estendeu-a. A cauda de Ernst bateu ansiosamente contra o chão, mas depois de cheirar a alface olhou desapontado para Paula e afastou-se. Em seguida foi ter com Gösta, que pegou num biscoito e o deu discretamente ao cão.
— Sabes que não estás a fazer-lhe nenhum favor – disse Paula. – O bicho vai ficar gordo e pode até adoecer se tu e Bertil não pararem de dar-lhe essas guloseimas. Se a mãe não o levasse a dar aqueles grandes passeios, o cão já teria morrido há muito tempo.
— Eu sei. Mas quando ele olha para mim daquela maneira não consigo... Paula fitou Gösta com severidade.
— Esperemos que Martin ou Patrik tenham conseguido uma pista ou outra – disse Gösta, mudando rapidamente de assunto. – Porque, neste momento, não sabemos nadinha mais do que sabíamos ontem.
— Podes crer. – Paula fez uma pausa e depois prosseguiu: – É horrível pensar numa coisa daquelas. Ser-se morto a tiro na própria casa. Logo no sítio onde uma pessoa se sente mais segura.
— Cá para mim, foi alguém que Sverin conhecia. A porta não tinha sido forçada, por isso deve ter deixado a pessoa entrar sem problemas.
— Isso piora as coisas – disse Paula. – Caramba, ser-se morto em casa por alguém que se conhece...
— Não tem necessariamente de ser um amigo ou um conhecido. Nos últimos tempos tem vindo muita coisa nos jornais sobre pessoas que tocam a campainha a pedir para se servirem do telefone e que depois roubam a casa. – Gösta espetou o garfo no último pedaço de peixe gratinado.
— Sim, mas o alvo desses ladrões são normalmente pessoas idosas. Não uma pessoa nova e forte como Mats Sverin.
— É verdade, mas isso não significa que devamos descartar a hipótese.
— Vamos ter de esperar para ver o que Martin e Patrik descobriram. – Paula pousou os talheres e levantou-se. – Queres um café?
— Sim, se faz favor – respondeu Gösta, que deu sub-repticiamente outro biscoito a Ernst e foi recompensado com uma lambidela na mão.
— Ah, estava mesmo a precisar disto. – Erling gemia alto na estreita mesa de massagens.
Os dedos de Vivianne massajavam-lhe habilmente os músculos das costas e Erling sentiu a tensão a desaparecer gradualmente. Não era fácil lidar com todas as responsabilidades associadas ao seu cargo.
— Esta massagem é um dos serviços que vamos oferecer? – perguntou com a cara enfiada no buraco da mesa de massagens.
— Isto é uma massagem tradicional, por isso é claro que será um dos nossos serviços. Além disso, temos massagem tailandesa e um tratamento com pedras quentes. Os clientes também podem escolher entre uma massagem corporal parcial e uma massagem total. – Vivianne continuava a massajar-lhe as costas enquanto falava com voz calma, quase hipnótica.
— Excelente. Isso é excelente.
— Mais tarde ofereceremos outros tratamentos no spa para além do pacote básico. Massagens com sal e algas, luminoterapia, tratamentos faciais com algas e por aí fora. Vamos ter uma linha completa de serviços. Mas isto já tu sabes, porque vinha no prospeto.
— Pois sei, mas continua a ser música para os meus ouvidos. E quanto ao pessoal? Já estão todos a bordo? – Erling começava a sentir-se sonolento com a massagem, a iluminação suave e a voz tranquilizadora de Vivianne.
— O pessoal já está quase completamente formado. Encarreguei-me pessoalmente dessa parte. Trouxemos para cá algumas pessoas fantásticas, novas, entusiásticas e ambiciosas.
— Excelente. Isso é excelente – repetiu Erling, soltando depois um profundo suspiro de satisfação. – Vai ser um enorme sucesso. Tenho certeza – acrescentou, fazendo uma careta quando Vivianne lhe pressionou um ponto sensível nas costas.
— Tens aqui uns nós dos grandes – disse-lhe Vivianne enquanto continuava a pressionar a zona.
— Isso dói! – exclamou Erling, que subitamente ficou completamente desperto.
— É preciso sentirmos dor para nos livrarmos da dor. – Vivianne pressionou ainda mais e Erling não conseguiu conter um lamento.
— Porque estás tão tenso? – perguntou.
— Deve ser por causa do que aconteceu a Mats – respondeu Erling com dificuldade. As costas doíam-lhe tanto que sentiu lágrimas nos olhos. A polícia foi fazer perguntas ao escritório esta manhã. Aquilo foi uma coisa medonha.
Vivianne parou abruptamente de massajar.
— Que gênero de perguntas?
Grato por ter deixado de sentir dor, pelo menos temporariamente, Erling deu um longo suspiro.
— Sobretudo acerca de Mats e de como era o comportamento dele no trabalho. Perguntaram-me o que sabíamos sobre ele e se desempenhava bem o cargo.
— Que foi que lhes disseste? – Vivianne recomeçara a massajar-lhe as costas mas, felizmente, estava a trabalhar uma zona diferente.
— Bem, não havia muito a dizer. Mats era tão reservado... Nunca chegamos verdadeiramente a conhecê-lo. Mas hoje à tarde estive a passar as contas em revista e tenho de dizer que era realmente meticuloso. Como fez um ótimo trabalho, não vou ter muita dificuldade em assumir a chefia das finanças da autarquia até conseguirmos encontrar um substituto.
— Tenho certeza de que vais fazer um excelente trabalho. – Vivianne estava agora a massajar-lhe a nuca de uma forma que lhe deixava a pele toda arrepiada. – Então e Mats não deixou nenhum ponto de interrogação?
— Não, pelo que pude ver estava tudo completamente em ordem. – À medida que os dedos de
Vivianne continuavam o seu trabalho, Erling sentiu-se novamente sonolento.
Dan estava sentado à mesa da cozinha e olhava pela janela. A casa estava mergulhada em silêncio. As crianças tinham ido para a escola ou para o infantário. Àquela hora, Dan já costumava estar na escola, mas era o seu dia de folga. Teria preferido estar a trabalhar. Nos últimos tempos, o estômago começava a doer-lhe assim que iniciava a viagem de regresso a casa, porque tudo ali lhe recordava o que tinham perdido. Não apenas o bebê, mas também a vida que tinha partilhado com Anna. Bem no fundo do seu ser, Dan tinha começado a pensar que tudo aquilo podia ter desaparecido para sempre e não sabia o que fazer. Não costumava sentir-se tão completamente desamparado como agora, e detestava aquela sensação.
Sofria por Emma e por Adrian. Os filhos de Anna não conseguiam perceber porque é que a mãe se recusava a sair da cama, porque não falava com eles nem os beijava ou porque nem sequer levantava os olhos quando lhes iam mostrar os desenhos que tinham feito. As crianças sabiam que Anna tinha tido um acidente de carro e que o irmão tinha ido para o céu, mas não podiam compreender porque é que isso fazia com que a mãe estivesse sempre deitada, imóvel, constantemente a olhar pela janela. E nada do que Dan fizesse ou dissesse poderia compensar o vazio que eles sentiam. Emma e Adrian gostavam dele, mas amavam a mãe.
Emma tornava-se mais retraída a cada dia que passava, enquanto Adrian ficava mais agressivo. Ambos estavam a reagir à sua maneira. Dan conversara com os professores no infantário por causa de Adrian ter começado a bater e a morder nas outras crianças. E a professora de Emma telefonara para falar acerca das mudanças que a menina estava a atravessar, pois tinha passado de animada e alegre a taciturna, incapaz de dizer uma palavra que fosse durante as aulas. Que havia de fazer? As crianças precisavam de Anna, não dele.
Pelo menos conseguia confortar as suas três filhas. Iam ter com ele com as suas perguntas e em busca de abraços. Andavam tristes e perturbadas, mas não como Emma e Adrian. Além disso, as filhas ficavam com a mãe, Pernilla, semana sim, semana não, e em casa da ex-mulher conseguiam escapar à tristeza que pairava como um fardo pesado sobre a sua existência.
Pernilla havia dado uma grande ajuda. O divórcio tinha tido os seus problemas, porém desde o acidente Pernilla estava a ser fantástica. Era em grande parte devido a ela que Lisen, Belinda e Malin estavam a lidar tão bem com o sucedido. Emma e Adrian não tinham mais ninguém a quem recorrer. Claro que Erica tentara ajudar, mas já tinha trabalho suficiente a cuidar dos gêmeos e não dispunha de muito tempo para os sobrinhos. Dan compreendia isso e estava grato pelos esforços de Erica.
Ou seja, Dan, Emma e Adrian tinham sido deixados sozinhos com o medo paralisante acerca do que ia acontecer a Anna. Às vezes, Dan perguntava a si próprio se Anna ia passar o resto da vida a olhar pela janela. Os dias transformar-se-iam em semanas e estas em anos, com Anna para ali, pura e simplesmente a envelhecer. Dan sabia que eram os seus pensamentos obscuros que o faziam sentir-se assim. Os médicos tinham dito que Anna sairia gradualmente daquele estado depressivo, mas que isso demoraria o seu tempo. O problema era que Dan não acreditava neles. Haviam passado vários meses desde o acidente e parecia que Anna derivava cada vez para mais longe.
Lá fora, uns chapins debicavam as bolas de sebo que as filhas tinham insistido em pendurar para os pássaros, apesar de ser quase verão. Dan observava-os com inveja, pensando como deviam ser tranquilas as vidas daqueles animais, preocupados apenas com as necessidades básicas: comer, dormir e reproduzirem-se. Sem emoções, sem relacionamentos complicados. Sem tristeza.
Então, Dan pensou em Matte. Erica tinha-lhe telefonado a contar o que acontecera. Dan conhecia bem os pais dele. Tinha ido muitas vezes pescar de barco com Gunnar e costumavam trocar histórias. Gunnar sempre falara do filho com muito orgulho. Dan também sabia quem era Matte porque tinham andado na mesma escola, embora Mats tenha estado na turma de Erica e não na dele. Mas nunca tinham sido amigos. Gunnar e Signe deviam estar a sofrer horrivelmente. Aquele pensamento fê-lo encarar a própria dor a uma nova luz. Se já se sentia tão mal por perder um filho que nunca chegara a conhecer, muito pior devia ser para Gunnar e Signe terem perdido um filho que tinham acompanhado ao longo da vida e visto tornar-se um homem.
De repente, os chapins levantaram voo. Não se afastaram juntos, antes espalhando-se para todas as direções. No segundo seguinte, Dan viu o que tinha causado aquela partida tão abrupta. O gato do vizinho tinha entrado no quintal e estava agora a olhar para a árvore. Desta vez não tivera sorte.
Dan levantou-se. Não podia ficar ali o dia todo. Tinha de tentar falar novamente com Anna, incitá- la a erguer-se do mundo dos mortos e voltar para o mundo dos vivos. Lentamente, subiu as escadas.
— Como foi, Martin? – perguntou Patrik ao mesmo tempo que se recostava na cadeira. Tinham- se reunido mais uma vez na cozinha para debater a investigação.
Martin abanou a cabeça.
— Não tenho muito a relatar. Falei com a maioria das pessoas que não conseguimos encontrar ontem, mas ninguém viu ou ouviu nada. A não ser, talvez...
— O quê? – perguntou Patrik. A atenção de todos fixou-se em Martin.
— Não sei se isto tem alguma utilidade. O velhote não bate muito bem da bola.
— Desembucha.
— Okay. Há um homem chamado Grip que mora no mesmo andar de Sverin. Como eu disse, parece um bocado maluco. – Martin bateu na testa. – E o tipo tem uma data de gatos malcheirosos no apartamento... – Martin respirou fundo. – Grip disse que um dos gatos viu um carro no sábado de manhãzinha. Mais ou menos à mesma hora em que o outro vizinho, Leandersson, foi despertado por um barulho que pode ter sido um tiro.
Gösta deu uma gargalhada.
— O gato dele viu um carro?
— Deixa lá ouvir, Gösta – disse Patrik. – Vá lá, Martin, continua. Que mais disse o velhote?
— Mais nada. Claro que eu não o levei a sério, pois o homem parecia mesmo maluco.
— As crianças e os loucos dizem sempre a verdade – murmurou Annika enquanto continuava a tomar notas.
Martin encolheu os ombros, desanimado.
— Não tenho mais nada a relatar.
— Bom trabalho – afirmou Patrik, procurando encorajar o colega. – As rondas pela vizinhança das vítimas nunca são fáceis. As pessoas ou exageram o que podem ter ouvido ou então não repararam em nada de nada.
— Sim, este trabalho seria sem dúvida muito mais fácil sem testemunhas – murmurou Gösta.
— Então e vocês os dois? – Patrik virou-se para Gösta e Paula, que estavam sentados ao lado um do outro à mesa da cozinha.
Paula abanou a cabeça.
— Nós também não temos muito a relatar. Mats Sverin não parece ter tido vida própria fora do emprego, a acreditarmos nos colegas. Mas não souberam dizer-nos grande coisa. Sverin nunca mencionou quaisquer interesses além do trabalho, nem amigos ou namoradas. No entanto, descreveram-no como simpático e sociável. Não bate mesmo nada certo.
— Sverin disse-lhes alguma coisa sobre os anos que passou em Gotemburgo?
— Não, nem uma palavra. – Gösta abanou a cabeça. – Como Paula disse, parece que nunca falava de nada além do trabalho e de coisas mais gerais, enfim, de assuntos normais.
— Os colegas estavam a par da agressão? – perguntou Patrik, que se levantou e começou a servir café a todos.
— Não propriamente – respondeu Paula. – Mats disse-lhes que tinha tido um acidente de bicicleta e que passou uns tempos no hospital por causa disso. E é óbvio que não é verdade.
— E no emprego, havia algum problema nessa frente? – Patrik voltou a pousar a cafeteira na bancada.
— Sverin parece ter sido muito bom no que fazia. Mostraram-se todos muito satisfeitos com o desempenho dele. Ao que parece, sentiam que tinha sido um grande golpe de sorte terem conseguido contratar um economista experiente de Gotemburgo. Além disso, Sverin conhecia bem a região. – Gösta ergueu a chávena e bebeu um golo, queimando a língua. – Porra, está quente!
— Então não há nenhuma pista que possamos seguir?
— Não, pelo menos pelo que descobrimos até agora – disse Paula, parecendo agora tão abatida quanto Martin.
— Bem, acho que é tudo por enquanto. Sem dúvida que voltaremos a ter oportunidade de falar com os colegas dele. Eu tive uma conversa com os pais de Mats praticamente com os mesmos resultados. É óbvio que ele também não se abria muito com eles. Mas descobri que uma das antigas namoradas dele está a viver em Gråskär, no arquipélago, e Gunnar pensa que Mats planeava ir visitá-la. Portanto, preciso de entrar em contacto com ela. – Dito isto, Patrik pôs as fotografias tiradas no Hospital de Sahlgrenska em cima da mesa. – E consegui isto dos pais de Mats.
As fotografias foram passando de mão em mão.
— Jesus! – exclamou Mellberg. – O homem levou uma valente tareia.
— Sim. A julgar pelas fotos, temos aqui um caso de agressão agravada. É claro que pode não ter nada que ver com o homicídio, mas ainda assim acho que devemos investigar melhor o que aconteceu. Temos de solicitar os registos hospitalares de Sverin e ver o que diz o relatório da polícia. Também devíamos falar com os funcionários da organização em que Mats trabalhava nessa altura. É interessante que a missão deles seja ajudar mulheres vítimas de violência doméstica. Talvez encontremos algum motivo para o que aconteceu. O ideal era irmos a Gotemburgo conversar com todos pessoalmente.
— Isso é realmente necessário? – perguntou Mellberg. – Não há indícios de que tenha sido assassinado por causa do que aconteceu em Gotemburgo. É mais provável o homicídio estar relacionado com algo que possa ter ocorrido aqui.
— Tendo em conta o pouco que conseguimos descobrir até agora, e o secretismo em que Sverin parece ter envolvido a sua vida, acho que se justifica plenamente uma ida a Gotemburgo.
Mellberg franziu a testa enquanto refletia. Demorou algum tempo a decidir-se.
— Bem, se o Hedström insiste – acabou por concordar. – Mas espero que consiga alguns resultados. Porque parece-me que amanhã vai estar fora a maior parte do dia.
— Vamos dar o nosso melhor – retorquiu Patrik. – Estava a pensar levar a Paula comigo – acrescentou.
— E nós, que fazemos enquanto estiverem fora? – perguntou Martin.
— Tu e Annika têm de procurar nos registos públicos referências a Mats Sverin. Haverá algum casamento ou divórcio secreto na vida dele? Será que tem filhos? Terá bens? Cadastro? Tentem encontrar o que quer que seja.
— Okay, vamos tratar disso – afirmou Annika, lançando um olhar de relance a Martin.
— E, Gösta... – Patrik fez uma pausa. – Telefona a Torbjörn e descobre quando podemos entrar no apartamento de Sverin para dar uma vista de olhos por lá. Tenta pressioná-lo um bocado para acelerar as coisas com o relatório técnico. Com tão pouco por onde pegar, precisamos dos resultados o mais depressa possível.
— Certo – respondeu Gösta sem grande entusiasmo.
— Bertil, o senhor vai continuar aqui a defender o forte, okay?
— Absolutamente – disse Mellberg, endireitando-se na cadeira. – Estou pronto para o ataque.
— Ótimo. Então amanhã recomeçamos todos a investigar. – Patrik levantou-se para assinalar que a reunião estava terminada. Parecia exausto.
Nathalie teve um sobressalto. Algo a tinha despertado. Adormecera no sofá e estava a sonhar com Matte. Ainda podia sentir o calor do seu corpo, a sensação de tê-lo dentro dela. E conseguia ouvir a sua voz, que era tão familiar, tão reconfortante. Mas, aparentemente, Matte não sentia o mesmo por ela, e Nathalie conseguia perceber por quê. Matte amara a Nathalie de outros tempos. A pessoa em que se tinha tornado desapontara-o.
Já não tremia e as articulações tinham parado de doer-lhe. No entanto, continuava a sentir-se inquieta. Aquilo provocava-lhe um formigueiro nos braços e nas pernas, levando-a a deambular pela casa enquanto Sam olhava para ela com os olhos muito abertos.
Se ao menos tivesse conseguido explicar-lhe porque é que tudo tinha corrido tão mal. Contara parte da história a Matte enquanto estiveram sentados na cozinha a conversar. Confidenciou-lhe tudo o que teve coragem de dizer em voz alta. Mas não foi capaz de proferir as palavras que descreviam
as piores humilhações. As coisas que tinha sido obrigada a fazer e que tinham mudado a sua essência.
Sabia que já não era a mesma pessoa. E Matte notara-o. Tinha visto como estava arruinada e podre por dentro.
Nathalie sentou-se. Estava com dificuldade em respirar. Puxou os joelhos até o queixo e pôs os braços em torno das pernas. Estava tudo tão silencioso. Porém, de repente ouviu um baque contra o chão. Uma bola. A bola de Sam. Viu a bola rolar lentamente na sua direção. Sam não tocara em nenhum dos seus brinquedos desde que tinham chegado à ilha. Ter-se-ia levantado e recomeçado a brincar? O coração de Nathalie encheu-se de esperança, até se aperceber de que isso não era possível. A porta do quarto de Sam ficava à sua direita e a bola tinha vindo da cozinha, da esquerda.
Lentamente, Nathalie levantou-se e foi até a cozinha. Por um momento ficou assustada com as sombras que se moviam pelas paredes e pelo teto, mas o medo desapareceu tão rapidamente como tinha surgido. Uma enorme sensação de calma desceu sobre ela. Não havia ali ninguém que quisesse fazer-lhe mal. Tinha certeza disso, embora não conseguisse explicar por quê.
Ouvindo uma risadinha vinda de um canto escuro da cozinha, Nathalie olhou de relance nessa direção e vislumbrou-o. Um rapaz. Mas, antes que pudesse ver melhor, o rapaz moveu-se e correu até a porta da frente. Sem pensar, Nathalie seguiu-o. Abriu a porta e sentiu uma rajada de vento no rosto, mas sabia que o rapaz queria que ela o seguisse.
Estava a correr na direção do farol. De vez em quando olhava para trás, como se quisesse certificar-se de que Nathalie vinha atrás dele. O vento despenteava o cabelo louro do rapaz, as mesmas rajadas que, de tão fortes, quase a deixavam sem fôlego enquanto corria.
Custou-lhe abrir a pesada porta do farol, mas fora por ali que o rapaz passara, por isso Nathalie tinha de entrar. Subiu a correr as escadas íngremes, ouvindo o rapaz a andar lá em cima, e ouviu as suas risadinhas.
Porém, quando chegou ao topo do farol viu que a divisão circular estava vazia. Quem quer que fosse o rapaz, tinha desaparecido.
— Como estão a correr as coisas na delegacia? – Erica chegou-se a Patrik quando se sentaram no sofá.
O marido tinha chegado a casa à hora do jantar e os filhos já estavam a dormir. Com um bocejo, Erica esticou as pernas e pousou-as na mesa de café.
— Estás cansada? – perguntou Patrik sem responder à pergunta de Erica. Acariciou-lhe o braço, mantendo os olhos fixos na televisão.
— Exausta.
— Porque é que não te vais deitar, amor? – convidou Patrik, dando-lhe distraidamente um beijo na face.
— Era o que devia fazer, mas não quero – respondeu Erica, olhando de relance para o marido. – Preciso de algum tempo como adulta, contigo e com as notícias no Rapport, para contrabalançar todas aquelas fraldas sujas, os babygrows bolsados e a tagarelice dos bebês.
Patrik virou-se para encará-la.
— Mas está tudo bem?
— Claro – respondeu Erica. – Não é nada comparado com a fase em que Maja era bebê. Mas às vezes é muita coisa ao mesmo tempo.
— No outono eu tomo conta deles para que possas recomeçar a escrever.
— Eu sei. E, antes disso, temos as férias de verão, o que vem mesmo a calhar. Foi um dia muito agitado, só isso. E o que aconteceu a Matte é mesmo horrível. Não o conhecia muito bem, mas andamos juntos na escola e também na secundária. – Erica fez uma pausa e depois continuou: – Então, como está a correr a investigação? Não respondeste à minha pergunta.
— Não temos feito grandes progressos – Patrik suspirou. – Falamos com os pais de Mats e com alguns colegas dele do trabalho, mas parece que era um solitário. Ninguém consegue dizer-nos nada sobre ele. Ou era a pessoa mais chata do mundo, ou então...
— Ou então o quê? – perguntou Erica.
— Ou então há coisas que ainda não descobrimos.
— Bem, eu não achava nada que Matte fosse chato quando andávamos na escola. Parecia até bastante extrovertido e otimista. E era muito popular. Uma daquelas pessoas que estavam destinadas a ter sucesso na vida, independentemente do que escolhessem vir a fazer.
— Também andaste com a namorada dele na escola, não foi? – inquiriu Patrik.
— Com Nathalie? Sim, andei. Mas ela... – Erica procurou as palavras certas. – Dava a impressão de que se julgava melhor do que nós. Não encaixava muito bem na turma. Não me interpretes mal, Nathalie era muito popular e ela e Matte formavam o casal perfeito. Mas sempre tive a sensação de que Matte... Como é que hei de dizer isto? Matte seguia-a para todo o lado como um cachorrinho, todo contente a abanar a cauda e felicíssimo à mais pequena atenção por parte dela. Julgo que ninguém ficou surpreendido quando Nathalie decidiu mudar-se para Estocolmo e deixou Matte para trás. Ele ficou arrasado, pelo que me apercebi, mas até ele deve ter calculado que aquilo ia acontecer. Nathalie não era garota que alguém conseguisse segurar. Percebes o que quero dizer? Isto faz algum sentido?
— Sim, percebo perfeitamente.
— Porque é que me estás a fazer perguntas sobre Nathalie? Era namorada de Matte na secundária. E, embora deteste admiti-lo, isso já foi há muito, muito tempo.
— Nathalie está cá.
Erica olhou para Patrik com espanto.
— Em Fjällbacka? Há anos que Nathalie não vem cá.
— Bem, de acordo com os pais de Mats, Nathalie e o filho estão naquela ilha da família dela.
— A Ilha dos Espíritos? Patrik assentiu.
— Parece que é assim que lhe chamam, mas acho que os pais de Mats me disseram o verdadeiro nome.
— Gråskär – disse Erica. – Embora a maioria das pessoas por aqui lhe chame Ilha dos Espíritos. Diz-se que os mortos...
— ... Nunca deixam a ilha – Patrik terminou a frase e sorriu. – Sim, também já ouvi falar dessa superstição.
— Porque é que tens tanta certeza de que é apenas superstição? Uma vez passei a noite na ilha com os meus colegas e pelo menos metade do grupo saiu de lá convencida de que havia realmente fantasmas. A ilha tinha uma atmosfera incrivelmente assustadora e, depois de tudo o que vimos e ouvimos, nenhum de nós quis voltar a passar lá a noite.
— Não ponho muita fé em fantasias de adolescentes.
Erica acotovelou-o.
— Não sejas desmancha-prazeres. Uns quantos fantasmas sempre animam um bocado a vida.
— Sim, podemos ver o assunto por esse prisma. Seja como for, tenho de ter uma conversa com a Nathalie. Os pais de Mats pensam que ele estava a planear ir visitá-la, mas não sabem ao certo se chegou a ir até lá. Apesar de terem sido namorados há muito tempo, Mats pode ter-lhe contado alguma coisa da vida dele... – Patrik parecia estar a pensar em voz alta.
— Eu vou contigo – afirmou Erica. – Diz-me quando queres ir e podemos pedir à tua mãe para tomar conta das crianças. Nathalie não te conhece – acrescentou Erica antes de Patrik poder objetar. – Pelo menos Nathalie e eu andamos juntas na escola, apesar de nunca termos sido amigas. Se eu também for, talvez fique mais predisposta a falar.
— Okay – concordou Patrik com relutância. – Mas amanhã tenho de ir a Gotemburgo, por isso não podemos ir antes de sexta-feira.
— Perfeito – disse Erica com satisfação, aconchegando-se nos braços do marido.
FJÄLLBACKA, 1870
— ESTAVA BOM? – PERGUNTAVA EMELIE DEPOIS DE CADA REFEIÇÃO, MESMO SABENDO QUE A RESPOSTA SERIA SEMPRE A MESMA. UM GRUNHIDO DE KARL E OUTRO DE JULIAN. A ALIMENTAÇÃO ERA UM POUCO MONÓTONA NA ILHA, MAS EMELIE NÃO TINHA CONTROLO SOBRE ISSO. A MAIOR PARTE DO QUE PUNHA NA MESA VINHA DAS PESCARIAS DOS DOIS HOMENS E CONSISTIA QUASE SEMPRE EM CAVALA E SOLHA. ALÉM DISSO, COMO AINDA NÃO LHE TINHAM PERMITIDO QUE OS ACOMPANHASSE NAS SUAS VIAGENS A FJÄLLBACKA, QUE FAZIAM DUAS VEZES POR MÊS, AS COMPRAS NO MERCADO DEIXAVAM SEMPRE MUITO A DESEJAR.
— OLHA, KARL, ESTAVA AQUI A PENSAR... – EMELIE POUSOU OS TALHERES, SEM SEQUER PROVAR A COMIDA.
— SERÁ QUE DESTA VEZ PODIA IR COM VOCÊS A FJÄLLBACKA? JÁ NÃO VEJO NINGUÉM HÁ MUITO TEMPO E IA SER UMA GRANDE ALEGRIA PARA MIM PASSAR UMAS HORAS NA VILA.
— ISSO ESTÁ FORA DE QUESTÃO – DISSE JULIAN COM AQUELA EXPRESSÃO SEVERA COM QUE SEMPRE OLHAVA PARA ELA.
— ESTAVA A FALAR COM KARL – RETORQUIU CALMAMENTE EMELIE, EMBORA POR DENTRO ESTIVESSE EM PÂNICO. ERA A PRIMEIRA VEZ QUE SE ATREVIA A CONFRONTÁ-LO.
JULIAN RIU E OLHOU PARA KARL.
— OUVISTE ISTO? SERÁ QUE TENHO MESMO DE ATURAR ESTAS CONVERSAS DE UMA MULHER?
KARL FITAVA O PRATO COM AR CANSADO.
— NÃO PODEMOS TE LEVAR CONOSCO – DISSE, TENDO FICADO CLARO QUE CONSIDERAVA O ASSUNTO ENCERRADO. MAS A SOLIDÃO TINHA COMEÇADO A BULIR COM OS NERVOS DE EMELIE, POR ISSO NÃO CONSEGUIU SE CONTER.
— POR QUE NÃO? HÁ MUITO ESPAÇO NO BARCO E EU PODIA FAZER AS COMPRAS NO MERCADO PARA NÃO ESTARMOS SEMPRE COMENDO CAVALA E BATATA. NÃO SERIA BOM?
O ROSTO DE JULIAN FICOU BRANCO DE RAIVA. MANTINHA OS OLHOS FIXOS EM KARL, QUE DE REPENTE SE LEVANTOU DA MESA.
— NÃO VENS CONOSCO E NÃO SE FALA MAIS NISSO! – KARL VESTIU O CASACO E SAIU PARA O VENDAVAL QUE AÇOITAVA A ILHA. A PORTA BATEU ATRÁS DELE.
TINHA SIDO ASSIM DESDE A NOITE EM QUE EMELIE TOCARA KARL NA CAMA, TENTANDO ATRAÍ-LO PARA UMA RELAÇÃO MAIS ÍNTIMA. A INDIFERENÇA DO MARIDO TINHA SIDO SUBSTITUÍDA POR UMA ATITUDE QUE SE ASSEMELHAVA MAIS AO MANIFESTO DESDÉM DE JULIAN. KARL IRRADIAVA UMA ANIMOSIDADE QUE EMELIE NÃO CONSEGUIA COMPREENDER NEM ALTERAR. TERIA REALMENTE FEITO UMA COISA ASSIM TÃO TERRÍVEL? SERIA ASSIM TÃO REPUGNANTE E NOJENTA? TENTOU RECORDAR O QUE SENTIU QUANDO KARL A PEDIRA EM CASAMENTO. A PROPOSTA SURGIRA DE FORMA INESPERADA, MAS PARECERA-LHE QUE HAVIA ALGUM CALOR E DESEJO NA VOZ DELE. OU TERIA IMAGINADO ISSO POR CAUSA DOS SEUS PRÓPRIOS SENTIMENTOS E SONHOS? EMELIE OLHOU PARA BAIXO, PARA A MESA.
— JÁ VISTE O QUE FIZESTE? ESTÁS CONTENTE? – JULIAN ATIROU RUIDOSAMENTE OS TALHERES NO PRATO.
— POR QUE ME TRATAS ASSIM? QUE MAL TE FIZ? – EMELIE NÃO SABIA COMO TINHA CONVOCADO A CORAGEM, MAS SENTIA QUE TINHA PURA E SIMPLESMENTE DE PROFERIR AS PALAVRAS QUE LHE ANDAVAM A ATORMENTAR TANTO A ALMA.
JULIAN NÃO RESPONDEU. LIMITOU-SE A FITÁ-LA COM AQUELA EXPRESSÃO SOMBRIA DELE. DEPOIS LEVANTOU-SE E SEGUIU KARL PARA FORA DE CASA. POUCOS MINUTOS DEPOIS, EMELIE VIU O BARCO SAIR DO CAIS E DIRIGIR-SE PARA FJÄLLBACKA. NA VERDADE, EMELIE SABIA PERFEITAMENTE PORQUE É QUE NÃO A DEIXAVAM ACOMPANHÁ-LOS. A PRESENÇA DE UMA MULHER NÃO ERA DESEJADA NA TABERNA DE ABELA, EM FLORÖ, QUE ERA AONDE OS DOIS HOMENS OBVIAMENTE IAM PARAR NAS SUAS VIAGENS À VILA. ESTARIAM DE VOLTA ANTES DO ANOITECER, POIS REGRESSAVAM SEMPRE A TEMPO DE CUMPRIREM OS TURNOS NO FAROL.
A PORTA DO ARMÁRIO FECHOU-SE E EMELIE DEU UM SALTO NA CADEIRA. NÃO ACHAVA QUE AQUILO TIVESSE ACONTECIDO COM INTENÇÃO DE ASSUSTÁ-LA, MAS TINHA-A ASSUSTADO. A PORTA DA FRENTE ESTAVA FECHADA, POR ISSO UMA RAJADA DE VENTO NÃO PODIA TER SIDO A CAUSA. EMELIE FICOU MUITO QUIETA, ESCUTANDO E OLHANDO EM REDOR. NÃO ESTAVA MAIS NINGUÉM EM CASA. AO AGUÇAR BEM O OUVIDO, CONSEGUIU CAPTAR UM SOM ABAFADO E DISTANTE. O SOM DE ALGUÉM A RESPIRAR, LEVE E REGULAR, EMBORA FOSSE IMPOSSÍVEL DIZER DE QUE DIREÇÃO VINHA. ERA QUASE COMO SE A PRÓPRIA CASA ESTIVESSE A RESPIRAR. EMELIE TENTOU DESCOBRIR O QUE AQUELA PESSOA DESCONHECIDA PODERIA QUERER DELA. MAS, DE REPENTE, O SOM DESAPARECEU E A CASA VOLTOU A MERGULHAR NO SILÊNCIO.
OS PENSAMENTOS DE EMELIE REGRESSARAM A KARL E A JULIAN. COM UM APERTO NO CORAÇÃO, COMEÇOU A LAVAR OS PRATOS. APESAR DE SER BOA DONA DE CASA, NADA DO QUE FAZIA PARECIA SATISFATÓRIO. SENTIA-SE TERRIVELMENTE SÓ. AO MESMO TEMPO, NÃO ESTAVA SOZINHA. TORNAVA-SE CADA VEZ MAIS DIFÍCIL IGNORAR A PRESENÇA DELES NA ILHA. EMELIE OUVIA COISAS, SENTIA COISAS, COMO AQUILO QUE OUVIRA HÁ MOMENTOS. E JÁ NÃO TINHA MEDO. ELES NÃO QUERIAM FAZER-LHE MAL.
QUANDO SE INCLINOU SOBRE OS PRATOS, COM AS LÁGRIMAS A ESCORRER PARA A ÁGUA SUJA, EMELIE SENTIU UMA MÃO NO OMBRO. UMA MÃO RECONFORTANTE. NÃO SE VIROU. SABIA QUE SE O FIZESSE NÃO IA VER NINGUÉM.
PAULA ESTENDEU OS BRAÇOS NA CAMA e a mão tocou por acaso no cabelo de Johanna. Deixou ficar a mão, embora isso a fizesse sentir-se desconfortável. Nos últimos meses, sentiam uma sensação estranha quando se tocavam. Já não era algo natural; era como se tivessem de fazer um esforço para se expressarem fisicamente. Tinham feito amor, mas fora muito estranho.
Na verdade, aquilo já acontecia há mais tempo. Se Paula quisesse ser completamente franca consigo própria, começara quando Leo nasceu. Ambas tinham ansiado por ele e lutado para o ter. Pensaram que ter uma criança fortaleceria a relação. Em certo sentido foi o que aconteceu, mas não completamente. Paula não achava que tivesse mudado muito como pessoa; Johanna, por outro lado, tinha-se entregado de alma e coração ao papel de mãe. E, ultimamente, começara a agir como se fosse, de alguma forma, superior. Parecia que Paula já não contava, ou pelo menos que Johanna contava mais, já que fora ela quem tinha dado à luz. Era a mãe biológica de Leo, que não possuía quaisquer genes de Paula. Tudo o que podia dar a Leo era o amor que sentia por ele desde que surgira no útero de Johanna. Um amor que tinha crescido mil vezes depois de Leo ter nascido e de o ter segurado nos braços. Sentia que era tanto mãe de Leo quanto Johanna. O problema é que Johanna não partilhava esse sentimento, embora se recusasse a admiti-lo.
Paula podia ouvir a mãe atarefada na cozinha enquanto falava com Leo. Tinham realmente muita sorte. Rita era uma pessoa madrugadora e não se importava nada de levantar-se cedo para que Paula e Johanna pudessem ficar mais algum tempo na cama. E agora que a investigação do homicídio estava a fazer com que fosse difícil Paula trabalhar apenas em part-time, Rita tinha entrado voluntariamente em cena para ajudar. Para espanto de todos, Bertil também se mostrara pronto para dar o seu apoio. Mas, ultimamente, Johanna começara a criticar a forma como Rita cuidava do filho. Na sua opinião, só ela sabia como cuidar de Leo.
Com um suspiro, Paula rodou as pernas para fora da cama e apoiou os pés no chão. Johanna mexeu-se, mas não acordou. Paula inclinou-se e afastou uma madeixa de cabelo do rosto de Johanna. Sempre pensara que o relacionamento delas era tão forte e estável. Mas já não era assim. E aquele pensamento assustava-a. Se perdesse Johanna, também perderia Leo. Johanna nunca ficaria em Tanumshede e Paula não conseguia imaginar-se a mudar-se dali. Gostava de viver naquela pequena cidade; o trabalho corria-lhe bem e tinha um ótimo relacionamento com os colegas. A única coisa que não a fazia feliz era a forma como as coisas tinham mudado entre si e Johanna.
Apesar de tudo, estava ansiosa por ir com Patrik a Gotemburgo. O caso Sverin tinha-lhe despertado a curiosidade. Queria saber tudo o que houvesse para saber acerca de Mats. O instinto dizia-lhe que tinham de examinar o seu passado, e tudo aquilo que ocultara sobre a sua vida, se quisessem saber quem lhe tinha enfiado uma bala na nuca.
— Bom dia – disse Rita quando Paula entrou na cozinha.
Leo estava sentado na sua cadeirinha. Estendeu os braços na direção de Paula, que ergueu a criança, abraçando-a com força.
— Bom dia – disse, sentando-se à mesa com Leo ao colo.
— Queres o pequeno-almoço?
— Sim, se faz favor. Estou superesfomeada.
— Eu já trato disso – Rita pôs um ovo estrelado num prato e colocou-o à frente de Paula.
— Estragas-nos com mimos, mãe – impulsivamente, Paula pôs um braço em torno da cintura de Rita e apoiou a cabeça contra o corpo quente da mãe.
— Eu gosto de mimar-vos, minha querida. Sabes bem disso. – Rita retribuiu-lhe o abraço e, em seguida, beijou o topo da cabeça de Leo.
Ernst entrou na cozinha a saltitar e, com expressão esperançosa, sentou-se no chão ao lado de Paula e de Leo. Antes que alguém pudesse reagir, Leo atirou o ovo estrelado a Ernst, que o engoliu inteiro, feliz da vida. Satisfeito por ter alimentado o seu cão favorito, Leo bateu palmas de alegria.
— Ah, meu malandro! – disse Rita com um suspiro. – Este cão está a ficar tão gordo que não me surpreenderia se tivesse uma morte precoce.
Voltou a virar-se para o fogão e partiu outro ovo para dentro da frigideira.
— Então, como é que vocês se estão a dar? – perguntou Rita em voz baixa, sem olhar para a filha.
— Como assim? – perguntou Paula, embora soubesse muito bem aonde a mãe queria chegar.
— Tu e Johanna. Está tudo bem?
— Sim, está tudo bem. Andamos as duas muito ocupadas no trabalho ultimamente, é só isso. – Paula olhou para Leo para que a expressão não traísse o que realmente lhe ia na alma se Rita se virasse de repente.
— Só tenho andado a cismar se... – Rita não teve tempo para terminar a frase.
— Então, há para aqui alguma coisa que se coma? – Mellberg entrou na cozinha em cuecas. Coçou preguiçosamente a barriga e sentou-se à mesa.
— Estava a dizer à mãe que ela nos estraga com mimos – afirmou Paula, aliviada por poder mudar de assunto.
— Ah, pois, isso é verdade – disse Mellberg, olhando cobiçosamente para o ovo a estrelar na frigideira.
Rita lançou um olhar inquiridor a Paula, que assentiu.
— Prefiro pão com queijo.
Rita pôs o ovo num prato. Ernst, que observava cada movimento, foi sentar-se aos pés de
Mellberg. Se tivesse sorte, talvez lhe calhasse outro ovo.
— Tenho de ir andando – disse Paula depois de engolir um grande pedaço de pão com queijo. – Hoje vou a Gotemburgo com Patrik.
Mellberg assentiu.
— Boa sorte. Passa-me esse miúdo e deixa-me pegar nele um bocadinho – disse, estendendo a mão para Leo, que não se opôs a ser transferido para o colo de Mellberg.
Pelo canto do olho, quando ia a sair da cozinha, Paula viu Leo, rápido como um relâmpago, a atirar o segundo ovo a Ernst. Aquele era mesmo o dia de sorte do cão.
Depois de pousar os gêmeos no chão, em cima de um cobertor macio, Erica dirigiu-se para o sótão. Não queria deixá-los sozinhos por mais do que alguns minutos, pelo que praticamente subiu os degraus íngremes a correr. Quando chegou ao cimo das escadas, teve de parar por um momento para recuperar o fôlego.
Depois de vasculhar um pouco, Erica localizou a caixa que procurava. Cautelosamente, desceu as escadas do sótão às arrecuas, equilibrando a caixa pesada nos braços. Os bebês não pareciam ter sentido a sua falta, por isso sentou-se no sofá e pôs a caixa no chão ao seu lado. Começou então a tirar objetos do interior e a colocá-los em cima da mesa de café. Perguntou a si própria quando teria sido a última vez que tinha olhado para tudo aquilo. Anuários escolares, álbuns de fotografias, cartas e postais antigos começaram rapidamente a empilhar-se sobre a mesa. Estava tudo coberto de pó e as cores originais tinham-se desvanecido. De repente, Erica sentiu-se velha.
Poucos minutos mais tarde, encontrou o que procurava. Um anuário escolar e um álbum de fotografias. Recostou-se nas almofadas do sofá enquanto os folheava. As fotografias dos alunos no anuário eram todas a preto e branco. Alguns dos rostos tinham uma cruz por cima, outros um círculo à volta, consoante Erica tivesse gostado ou detestado a pessoa em causa. Também havia observações rabiscadas, aqui e ali. “Giro”, “doce” e “idiota” eram alguns dos rótulos que utilizara sem grandes delicadezas. Não se orgulhava muito dos seus anos de adolescência e, quando chegou à página com a fotografia da sua turma, Erica corou. Meu Deus, tinha mesmo tido aquele aspeto? Não podia acreditar no estilo de cabelo e nas roupas que usava na altura. Obviamente que havia uma boa razão para não olhar para aquelas fotografias há muito tempo.
Respirou fundo e lançou-lhes um olhar mais atento. A julgar pelo penteado, a fotografia devia ter sido tirada durante sua fase Farrah Fawcett. Tinha o cabelo comprido e fazia chapinha para levantar as pontas. Os óculos eram tão grandes que escondiam metade da cara e Erica enviou um agradecimento silencioso a quem quer que tenha inventado as lentes de contacto.
De repente, o estômago comprimiu-se. Havia tanta ansiedade ligada àqueles anos na escola secundária. A sensação de que não encaixava, de exclusão. A busca constante por algo que lhe permitisse ser admitida no círculo das garotas que eram consideradas legais e modernas. Erica tinha-se esforçado. Copiava-lhes os penteados, a maneira de vestir e empregava o mesmo calão das garotas da turma – das mais populares, claro. Raparigas como Nathalie. Mas nunca tinha conseguido. Também não pertencera às que se viam ao fundo. Não era uma daquelas alunas que estavam constantemente a ser intimidadas, daquelas que sabiam que eram de tal forma marginalizadas que não valia sequer a pena tentar entrar no grupo. Não, Erica tinha pertencido às massas invisíveis. Só os professores lhe tinham prestado alguma atenção, oferecendo-lhe encorajamento e aprovação. Mas isso não tinha sido grande consolo. Afinal de contas, quem é que queria ser uma marrona? Quem queria ser Erica quando podia ser Nathalie?
Olhou para Nathalie na fotografia da turma. Estava sentada à frente, com as pernas cruzadas de forma descontraída. Todos os outros se esforçavam por posar para a máquina, mas Nathalie parecia ter-se apenas sentado displicentemente na cadeira sem sequer se ter incomodado em mudar de posição para a fotografia. No entanto, era claramente o centro das atenções. O cabelo louro dava-lhe pela cintura. Era liso e brilhante, sem franja. Às vezes usava-o puxado para trás, num rabo de cavalo despretensioso. Nathalie parecia fazer tudo sem esforço. Era o original e todas as outras não passavam de meras cópias.
Na fotografia, Matte estava atrás de Nathalie. Tinha sido tirada antes de terem começado a namorar, porém, agora que já o sabia, era óbvio que iam acabar juntos. Porque Matte não olhava para a máquina fotográfica como os outros colegas. Em vez disso, o fotógrafo apanhara-o a olhar de relance para Nathalie, a contemplar os seus belos cabelos compridos. Erica recordou-se de ter pensado que Matte estava apaixonado por Nathalie, mas naquela época todos os rapazes andavam doidos por ela. Não havia qualquer razão para Matte ter sido uma exceção.
— Que bonito que ele era – murmurou Erica, estudando a fotografia. Não conseguia recordar-se de ter tido aquele pensamento na altura, provavelmente por estar tão encantada com Johan. Andava no mesmo ano, mas Johan era de outra turma e Erica tinha nutrido um amor platônico por ele durante toda a secundária. Mas agora podia ver que Matte era muito giro. Tinha o cabelo louro ligeiramente despenteado e desgrenhado e uma expressão séria bastante atraente. Era um pouco magricela, mas todos os rapazes eram assim naquela idade. Erica não tinha recordações claras de Matte durante aqueles anos de escola. Não pertencera ao mesmo grupo. Matte era um dos rapazes mais populares, embora nunca se vangloriasse do facto. Não era como alguns dos outros que também eram considerados fixes. Esses falavam demasiado alto, eram arrogantes e andavam sempre muito preocupados consigo próprios e com o seu status naquele pequeno mundo onde eram reis. Matte, por seu lado, parecia fundir-se discretamente no grupo.
Erica pôs o anuário de lado e pegou no álbum. Estava repleto de fotografias de viagens escolares, celebrações de fim de ano e algumas festas em que os pais a tinham deixado participar. Nathalie aparecia numa série de fotografias. Sempre no centro da ação, como se a lente da máquina fotográfica a procurasse. Meu Deus, era mesmo bonita, pensou Erica, dando depois por si a desejar, maldosamente, que Nathalie fosse agora um pouco obesa e usasse um corte de cabelo simples e sem estilo como o de uma senhora de meia-idade. Havia algo nela que despertava desejo e ciúmes ao mesmo tempo. Todas as garotas queriam ser como Nathalie e a segunda melhor coisa que podiam desejar era serem incluídas no seu círculo de amigas. Erica não fora nem uma coisa nem outra. Também não aparecia em nenhuma das fotografias. Afinal de contas, era ela quem segurava a máquina e nunca ninguém lha tinha tirado e dito que também devia ficar na fotografia. Erica era invisível, escondida por detrás das lentes enquanto tirava avidamente instantâneos de todas as cenas das quais ansiava fazer parte.
Incomodava-a ainda estar tão dominada pela amargura. Não conseguia compreender como é que as memórias daquele período tinham o poder de diminuí-la e de a fazer-se sentir como a garota que fora em tempos e não como a mulher em que se tornara. Era uma escritora bem-sucedida, casada, com três filhos maravilhosos, uma bela casa e excelentes amigos. No entanto, os velhos ciúmes tinham vindo à tona e Erica sentiu novamente o desejo de pertencer ao grupo, acompanhado pela terrível dor de saber que isso nunca aconteceria, que nunca seria suficientemente boa, por mais que tentasse.
Deitados no cobertor, os gêmeos começaram a choramingar. Aliviada por ser forçada a voltar ao presente, Erica levantou-se e foi ter com os filhos, deixando o anuário e o álbum de fotografias sobre a mesa. Decerto Patrik também lhes quereria dar uma vista de olhos.
— Por onde começar? – Paula lutava contra o enjoo. Tinha começado a sentir-se maldisposta quando chegaram a Uddevalla e a sensação tinha vindo a piorar.
— Queres parar um pouco? – Patrik olhou de relance para o rosto da colega, que tinha assumido uma perturbadora tonalidade esverdeada.
— Não, além disso estamos quase a chegar – respondeu Paula, engolindo em seco.
— Estava a pensar que devíamos começar pelo Hospital de Sahlgrenska – disse Patrik, conduzindo pelo meio do trânsito denso de Gotemburgo com uma expressão determinada. – Recebemos autorização para consultar os registos médicos de Mats e eu telefonei ao médico que tratou dele quando esteve lá internado, a dizer que estamos a caminho.
— Ótimo – disse Paula, tentando controlar as náuseas.
Dez minutos mais tarde viraram para o estacionamento do hospital e Paula saiu do carro mal este parou. Encostou-se à porta, respirando fundo várias vezes até as náuseas diminuírem. No entanto, permaneceu uma vaga sensação de desconforto. Paula sabia que não ia sentir-se melhor até que pusesse alguma comida no estômago.
— Estás pronta? Ou precisas de mais alguns minutos? – perguntou Patrik. Mas Paula viu que o colega estava tão impaciente para começar que até estava a mudar o peso do corpo de um pé para o outro.
— Já estou bem. Vamos. Sabes o caminho? – Paula acenou com a cabeça em direção ao vasto complexo hospitalar.
— Acho que sim – respondeu Patrik, encaminhando-se para a entrada principal.
Depois de se enganarem duas vezes, os dois inspetores estavam por fim a bater à porta do gabinete de Nils-Erik Lund, o médico responsável por Mats durante as semanas que passara no hospital.
— Entrem – disse alguém, e Patrik e Paula obedeceram. O médico levantou-se e contornou a secretária para os cumprimentar. – São da polícia, não são?
— Sim, falamos ao telefone de manhã cedo. Chamo-me Patrik Hedström e esta é a minha colega, Paula Morales.
Trocaram as cortesias habituais antes de se sentarem.
— Já encontrei as informações que julgo poderem ser-vos úteis – disse o Dr. Lund, empurrando uma pasta sobre a secretária.
— Obrigado. Então, do que é que se recorda de Mats Sverin?
— Tenho milhares de doentes todos os anos, por isso é impossível lembrar-me de todos. Mas, depois de analisar os registos, consegui refrescar a memória – o médico repuxou a barba branca desgrenhada. – O doente chegou cá com lesões extensas. Tinha sido espancado, provavelmente por mais de um indivíduo. Vão ter de pedir mais pormenores à polícia.
— É o que vamos fazer – disse Patrik. – Mas não se iniba em dizer-nos o que pensa. Qualquer informação que possa fornecer-nos pode revelar-se útil.
— Muito bem – disse o Dr. Lund. – Não vou incomodá-los com terminologia médica, depois podem ler o processo, mas a vítima tinha recebido golpes e pontapés na cabeça que provocaram hemorragia cerebral, assim como fratura de uma série de ossos da face, inchaços, danos nos tecidos subjacentes e uma extensa descoloração da pele. Também teve ferimentos na barriga, duas costelas quebradas e ruptura do baço. Os ferimentos eram muito graves, por isso achamos que era necessário operá-lo imediatamente. Também lhe fizemos raios X para determinar a gravidade da hemorragia cerebral.
— Acredita que os ferimentos faziam com que a vítima corresse perigo de vida? – perguntou Paula.
— O doente estava em estado crítico e estava inconsciente quando deu entrada no hospital. Tendo concluído que a hemorragia cerebral não exigia cirurgia, concentramos a nossa atenção nos ferimentos abdominais. Havia o risco de as costelas partidas perfurarem os pulmões, o que seria bastante grave.
— E conseguiram estabilizar a vítima?
— Atrevo-me a dizer que a situação foi resolvida de forma impecável. Foi uma operação rápida e eficaz, graças a um excelente trabalho de equipa.
— Mats Sverin contou-vos o que lhe tinha acontecido? Falou acerca da agressão? – perguntou Patrik.
O Dr. Lund repuxou a barba enquanto tentava recordar-se. Era de admirar que ainda lhe restasse alguma barba, pensou Patrik, tendo em conta como estava sempre a repuxá-la.
— Não, não me recordo de o ter feito.
— Parecia estar assustado? Teve a sensação de que se sentia ameaçado ou que estava a tentar esconder alguma coisa?
— Que eu me lembre, não. Mas como eu disse, tudo aconteceu há alguns meses e entretanto já passaram por aqui muitos doentes. Vão ter de perguntar isso aos agentes que estavam encarregados da investigação.
— Sabe se Sverin recebeu visitas enquanto aqui esteve internado?
— É possível que tenha recebido, mas realmente não faço a mais pequena ideia.
— Muito bem, resta-nos agradecer o tempo que nos disponibilizou – concluiu Patrik, levantando-se.
— São estas as cópias? – perguntou, apontando para a pasta que estava em cima da secretária.
— Sim, podem levá-las – disse o Dr. Lund, levantando-se também. A caminho da saída, Patrik teve repentinamente uma ideia.
— Vamos aproveitar para fazer uma visita a Pedersen? Saber se já tem alguma coisa para nós?
— Parece-me bem – respondeu Paula, assentindo. Seguiu Patrik, que agora já parecia saber por que corredores avançar. Ainda estava indisposta e com certeza que uma visita à morgue não ia ajudá-la a melhorar.
De que adiantava continuar a viver? Signe tinha-se arrastado para fora da cama para tratar do pequeno-almoço e mais tarde tratara do almoço. Nem ela nem Gunnar tinham apetite. Signe aspirou todo o rés-do-chão, lavou a roupa de cama e fez o café que ninguém bebeu. Tinha feito tudo o que sempre fazia, mas sentia-se tão morta como Matte. Movia simplesmente o corpo pela casa, um corpo sem um objetivo, sem vida.
Sentou-se no banco da cozinha. O tubo do aspirador caiu no chão, mas nenhum dos dois reagiu. Gunnar estava sentado à mesa, onde passou o dia. Pareciam ter trocado de papéis. No dia anterior, tinha sido Gunnar quem andara pela casa, pois Signe tivera grande dificuldade em fazer com que os músculos colaborassem com o cérebro entorpecido. Agora era Gunnar quem estava para ali sentado, enquanto Signe tentava preencher o vazio no seu coração com uma atividade febril.
Signe fitou a nuca de Gunnar, reparando, como tantas vezes no passado, que Matte tinha herdado o mesmo remoinho no cabelo junto da gola da camisa. Agora, aquela característica nunca seria transmitida ao menino louro que Signe tantas vezes imaginara nos seus devaneios. Claro que também poderia ter sido herdado por uma menina. Não importava se era menino ou menina; qualquer um teria sido bem-vindo. Se lhe tivesse sido dado um neto para criar, um neto a quem oferecer doces antes do jantar e demasiados presentes no Natal. Uma criança com os olhos de Matte e a boca de outra pessoa. Porque isso era algo que Signe sempre desejara, perguntando a si própria como seria a namorada que Matte levaria lá a casa. Será que Matte encontraria alguém como a mãe, ou antes alguém que fosse exatamente o oposto? Não podia negar que tivera muita curiosidade em saber, mas prometera ser simpática para quem quer que ela fosse. Não queria ser uma daquelas sogras horrorosas que estavam sempre a meter-se na vida das noras. E teria estado pronta para tomar conta da criança sempre que fosse necessário.
Mas, com o passar dos anos, Signe tinha começado a perder as esperanças. De vez em quando ocorria-lhe que Matte podia não estar interessado em mulheres. Teria demorado algum tempo a habituar-se à ideia e teria lamentado não ter nenhum neto, mas poderia ter aceitado a situação. Tudo o que Signe queria era que o filho fosse feliz. Mas Matte nunca tinha levado ninguém lá a casa, e agora as esperanças tinham-se desvanecido para sempre. Não haveria nenhuma criança de cabelos claros com um remoinho na nuca, nenhum neto a quem pudesse dar um doce às escondidas antes do jantar. Nenhuma montanha de presentes de Natal demasiado caros e que estariam desfeitos poucas semanas depois. Nada, exceto o vazio. Os anos estendiam-se à frente deles como uma estrada deserta. Olhou de relance para Gunnar, imóvel à mesa da cozinha. Porque haveriam de continuar a viver? Porque é que ela haveria de continuar a viver?
— Querias ter ido a Gotemburgo, não era? – Annika ergueu os olhos do ecrã do computador e olhou demoradamente para Martin. Era o seu protegido na delegacia e tinham estabelecido um vínculo especial.
— Sim – admitiu Martin. – Mas este trabalho que estamos a fazer também é importante.
— Queres saber porque é que Patrik levou a Paula com ele? –perguntou Annika.
— Não interessa. Patrik pode levar quem quiser – retorquiu Martin algo carrancudo. Antes de Paula ter começado a trabalhar na delegacia, tinha sido quase sempre a primeira escolha de Patrik. Para ser franco, o motivo era que, naquela altura, não havia outra alternativa, mas Martin não podia negar que aquilo o magoava.
— Patrik acha que Paula tem andado um pouco deprimida nos últimos tempos, por isso quer que ela tenha mais alguma coisa em que pensar.
— A sério? Não tinha reparado – disse Martin, sentindo uma pontada de culpa. – Que tem a Paula?
— Não faço ideia. Ela não é propriamente uma pessoa muito faladora. Mas acho que Patrik está a fazer o mais acertado. Ela nem parece a mesma.
— Bem, só a ideia de ter de viver na mesma casa com Mellberg seria suficiente para dar cabo de mim.
— Podes crer – disse Annika com uma risada. Depois ficou outra vez séria. – Mas não me parece que seja esse o problema. Vamos ter de deixá-la em paz até lhe apetecer falar. Pelo menos agora já sabes porque foi que Patrik quis que Paula fosse com ele.
— Obrigado por me dizeres. – Martin não podia deixar de sentir-se envergonhado por ter reagido de modo tão imaturo. O importante era que o trabalho fosse feito e não quem era designado para o fazer.
— Vamos então começar? – perguntou Martin, esticando as costas. – Era excelente se já soubéssemos mais alguma coisa acerca de Sverin quando eles chegarem.
— Vamos a isso – disse Annika, começando a teclar.
— Costumas pensar nele? – Anders bebeu um golo de café. Estava a almoçar com Vivianne no restaurante Lilla Berith, um hábito quase diário para poderem livrar-se da barulheira das obras no Badis por algum tempo.
— Em quem? – perguntou Vivianne, embora soubesse exatamente a quem Anders se referia. Anders reparou como os nós dos dedos de Vivianne ficaram brancos quando agarrou a chávena de café.
— Em Olof.
Sempre o tinham chamado pelo nome próprio. Ele insistira nisso e outra coisa não lhes teria parecido natural. Não merecia outra designação.
— Claro. De vez em quando. – Vivianne olhou para o pedaço de relva ao cimo da rua Galärbacken. A cidade tinha começado a ganhar vida. Havia mais pessoas na rua e parecia que Fjällbacka estava lentamente a descongelar, a esticar os membros e a preparar-se para a enchente de turistas. Era uma transformação drástica relativamente ao torpor que tomava conta da pequena cidade durante o resto do ano.
— Então, e o que é que achas?
Vivianne virou-se para Anders, lançando-lhe um olhar penetrante.
— O que é que te deu para começares a falar de Olof assim de repente? Olof já não existe. Não tem qualquer importância.
— Não sei bem – retorquiu Anders. – Tem qualquer coisa que ver com Fjällbacka. Não sei por que, mas sinto-me seguro aqui. Suficientemente seguro para pensar nele.
— Não te acomodes demasiado. Não vamos ficar aqui muito mais tempo – disse bruscamente Vivianne, lamentando imediatamente o tom de voz que empregou. Estava zangada com Olof, não com Anders. Mas tinha ficado chateada por Anders ter começado a falar dele. De que adiantava? Respirou fundo e decidiu responder à pergunta. Anders sempre a apoiara, sempre fora com ela a todo o lado. Vivianne dependia dele e o mínimo que podia fazer era dar-lhe uma resposta.
— Penso no quanto o odeio. – Sentiu os maxilares a cerrarem-se. – Penso no quanto Olof destruiu, no quanto me tirou a mim e a nós. Não é também nisso que pensas?
De repente, Vivianne sentiu medo. Sempre haviam partilhado o ódio por Olof. Fora o que os mantivera unidos, a razão pela qual não tinham seguido cada um para seu lado e haviam atravessado juntos os bons e os maus momentos. Sobretudo os maus.
— Não sei – disse Anders, virando-se para olhar para o mar. – Talvez esteja na altura de...
— Na altura de quê?
— De perdoar.
Lá estavam elas. As palavras que não queria ouvir, aquilo em que não queria sequer pensar. Perdoar a Olof? Depois de Olof lhes ter roubado a infância, de os ter transformado em adultos que se agarravam um ao outro como vítimas de um naufrágio? Olof fora a força motriz por detrás de tudo o que tinham feito, de tudo o que continuavam a fazer.
— Fartei-me de pensar nisso nos últimos tempos – prosseguiu Anders. – Não podemos continuar assim. Estamos a fugir, Vivianne. Mas estamos a fugir de algo de que nunca poderemos escapar, porque está aqui dentro – acrescentou, apontando para a têmpora ao mesmo tempo que a fitava com um olhar penetrante e resoluto.
— O que é que estás a tentar dizer ao certo? Estás a começar a ter medo? – Vivianne sentiu as lágrimas a aflorarem-lhe os olhos. Anders estava a pensar abandoná-la? Traí-la como Olof tinha feito?
— É como se andássemos sempre em busca do pote de ouro no fim do arco-íris, acreditando que, se conseguíssemos encontrá-lo, Olof desapareceria. Mas nós nunca vamos encontrá-lo. Porque ele não existe.
Vivianne fechou os olhos. Recordou-se muito claramente da sujidade, dos cheiros, das pessoas que iam e vinham sem que Olof estivesse lá para protegê-los. Olof, que os odiava. Dissera-lhes isso muito claramente, que nunca deviam ter nascido, que os tinha tido como castigo para os seus pecados. Que eram repugnantes, feios e estúpidos. E que tinham sido eles e apenas eles a causa da morte da mãe.
Vivianne abriu repentinamente os olhos. Como é que Anders podia estar a falar em perdão? Ele, que se tinha interposto tantas vezes entre os dois, protegendo o corpo dela com o seu próprio corpo e sofrendo o impacto dos golpes.
— Não quero falar de Olof – afirmou com voz tensa pelo esforço de tentar conter-se. O terror subjugava-a. Que importava que Anders falasse em perdão se isso era uma coisa que nunca poderia acontecer?
— Eu adoro-te, mana – Anders acariciou-lhe suavemente a face. Mas Vivianne não o estava a ouvir. As memórias sombrias rugiam-lhe muito alto nos ouvidos.
— Bem, não estava nada à espera de visitas! – exclamou Tord Pedersen, o patologista forense, olhando para os dois inspetores por cima dos óculos.
— Pois, acredito. Pensamos que seria boa ideia se a montanha fosse a Maomé, para variar – retorquiu Patrik com um sorriso, dando um passo em frente para o cumprimentar. – Esta é a minha colega, Paula Morales. Estivemos no Hospital de Sahlgrenska a fazer algumas perguntas sobre Mats Sverin. E depois resolvemos vir até cá para saber como estão a correr as coisas.
— Receio que a vossa visita seja um pouco prematura – disse Pedersen, abanando a cabeça.
— Quer dizer que ainda não tem nada para nós?
— Só tive tempo de fazer um exame preliminar.
— E qual é a sua opinião? – perguntou Paula. Pedersen riu-se.
— Pensava que já era suficiente ter Patrik sempre à perna.
— Peço desculpa – disse Paula. Porém, pela expressão dela, Pedersen percebeu que, mesmo assim, estava à espera de uma resposta.
— Venham comigo. Vamos até o meu gabinete. – O patologista forense abriu uma porta à esquerda. Seguiram Pedersen e sentaram-se à frente da sua secretária. O patologista sentou-se do outro lado e cruzou as mãos.
— Com base num exame externo, posso dizer-vos que a única lesão óbvia é o ferimento de bala na nuca. No entanto, a vítima apresenta outras feridas cicatrizadas que parecem relativamente recentes e que provavelmente foram provocadas por uma agressão ocorrida há alguns meses.
Patrik assentiu.
— Foi por causa disso que fomos ao hospital falar com o médico. Há quanto tempo estava Sverin morto?
— Diria que há pouco mais de uma semana. A autópsia dir-nos-á mais.
— Tem alguma ideia da arma que foi utilizada? – perguntou Paula, inclinando-se para a frente.
— A bala ainda está alojada na cabeça da vítima, mas devemos ter uma resposta para a sua pergunta assim que a retirarmos. Quer dizer, desde que esteja num estado de conservação razoável.
— Mas o senhor já deve ter visto inúmeros ferimentos de bala – insistiu Paula. – Não pode arriscar um palpite? – Paula omitiu deliberadamente o invólucro vazio e o que significava. Queria ouvir a opinião pessoal de Pedersen.
— Outra agente que se recusa a desistir – disse Pedersen com uma risada, parecendo quase deleitado. – Se prometerem encarar isto como um mero palpite, diria que estamos a lidar com uma pistola de nove milímetros. – Pedersen ergueu um dedo em sinal de advertência. – Mas isto é só um palpite e eu posso estar enganado.
— Nós compreendemos – disse Patrik. – Quando vai realizar a autópsia, para que possamos dar uma vista de olhos à bala?
— Deixe-me cá ver... – Pedersen virou-se para o computador e carregou no rato. – A autópsia está agendada para a próxima segunda-feira. Por isso terão o meu relatório na quarta-feira.
— Não nos consegue isso mais cedo?
— Receio que não. Andamos terrivelmente ocupados no mês passado. As pessoas têm morrido como moscas, sabe-se lá por quê. Além disso, dois dos nossos funcionários tiveram de meter baixa de repente por tempo indeterminado. Parece que estavam esgotados. Esta profissão pode ter esse efeito em certas pessoas – era óbvio que Pedersen não se incluía nessa categoria.
— Okay, acho que não há nada a fazer. Por favor dê-me uma apitadela assim que tiver novidades. E suponho que a bala será enviada o mais depressa possível para a balística, não é?
— Claro – afirmou Pedersen, parecendo um pouco ofendido. – Podemos estar com pouco pessoal de momento, mas continuamos a desempenhar o nosso trabalho com profissionalismo.
— Eu não quis dizer o contrário. – Patrik ergueu as mãos. – Estou apenas impaciente, como de costume. Telefone-me quando o relatório estiver pronto e prometo que não o chateio mais.
— Certíssimo – Pedersen levantou-se para se despedir. Parecia que ainda faltavam décadas para quarta-feira.
— Está então a dizer que já podemos entrar no apartamento? – Gösta parecia invulgarmente ansioso.
— E que vamos receber o seu relatório amanhã? Isso é excelente. Hedström vai gostar de saber isso.
Gösta sorriu quando desligou o telefone. Torbjörn Ruud acabara de dizer-lhe que tinham terminado a inspeção técnica e que a polícia podia agora revistar o apartamento de Mats Sverin à vontade. Gösta teve uma inspiração repentina. Seria um disparate ficar para ali sentado a girar os polegares à espera de que Patrik e Paula regressassem. Por mais que girar os polegares fosse um dos seus passatempos preferidos, enervava-o que fosse sempre Patrik a tomar todas as decisões. Sobretudo porque ele e Bertil eram os agentes mais experientes da delegacia. Gösta tinha de admitir ter um leve desejo de vingar-se de Patrik. Embora não fosse adepto de se esforçar muito no emprego, seria um prazer mostrar àqueles jovens convencidos como o trabalho devia ser feito. Gösta tomou uma decisão rápida e apressou-se até o gabinete de Mellberg. Na sua ânsia, esqueceu-se de bater à porta e, quando a abriu, deu com Bertil a despertar do que parecia ter sido uma sesta muito agradável.
— Que diabo? – Mellberg olhou em redor, atarantado, e Ernst levantou-se da sua almofada, de orelhas em pé.
— Desculpa. Pensei...
— Pensaste o quê? – gritou Mellberg, endireitando o ninho de cabelo que tinha resvalado enquanto dormia.
— Bem, sabes, acabei de falar ao telefone com Torbjörn Ruud...
— E? – Mellberg ainda estava com um ar zangado, mas Ernst já voltara a enroscar-se na sua almofada.
— Torbjörn disse que já podíamos ir ao apartamento.
— Ao apartamento de quem?
— De Mats Sverin. Eles já acabaram o trabalho por lá. Quer dizer, a equipe forense. E eu pensei... – Gösta começava a arrepender-se da sua decisão. Afinal talvez não tivesse sido um golpe de gênio. – Pensei...
— Vai direto ao assunto, porra!
— Bem, Hedström está sempre em pulgas para que se faça tudo o mais depressa possível, de preferência ontem. Por isso estava a pensar que podíamos ir lá os dois fazer a nossa própria inspeção ao local do crime. Em vez de esperarmos por Hedström.
O rosto de Mellberg iluminou-se. Estava a começar a perceber o que Gösta tinha em mente e a ideia agradou-lhe.
— Acho muito bem! Seria uma pena adiarmos isso para amanhã. E quem tem mais experiência do que nós para pôr esta investigação a andar? – disse Mellberg, exibindo um amplo sorriso.
— Era exatamente o que eu estava a pensar – disse Gösta, sorrindo também. – Está na altura de mostrar a esses jovens o que o pessoal da velha-guarda é capaz.
— Brilhante, meu amigo.
Mellberg levantou-se e dirigiu-se para a garagem. Os dois veteranos estavam prestes a entrar em ação.
Nathalie estava outra vez a dar-lhe banho. Deitou-lhe a água do mar aquecida pelo sol sobre o corpo, molhou-lhe o cabelo e tentou evitar que lhe entrasse água para os olhos. Sam não parecia estar a gostar, mas também não parecia detestar. Repousava tranquilamente nos braços dela e deixava-se lavar.
Nathalie sabia que, mais cedo ou mais tarde, Sam despertaria do seu torpor. O cérebro do filho estava a tentar processar o que tinha acontecido – uma experiência pela qual ninguém deveria ter de passar, sobretudo uma pessoa tão nova. Uma criança de cinco anos não devia ser separada do pai, mas Nathalie não tivera escolha. Fora essencial fugir; era a única saída. Porém, ela e Sam tinham pago um preço muito alto.
Sam adorava Fredrik. Não tinha visto, como Nathalie vira, o seu outro lado, nem tinha passado pelo que ela passou. Para Sam, Fredrik era um herói, incapaz de cometer erros. Idolatrava o pai, e fora sobretudo por isso que tinha sido tão difícil para ela tomar aquela decisão. Se é que se podia falar de decisão, porque não tinha tido mesmo escolha.
Apesar de tudo, doía-lhe que Sam tivesse perdido o pai. Independentemente do que Fredrik lhe tivesse feito a ela, sempre significara muito para Sam. Não tanto quanto ela, porém Fredrik era importante para o filho. E agora Sam nunca mais o voltaria a ver.
Nathalie retirou o filho da água e pousou-o na toalha que tinha estendido no cais. O pai sempre lhe dissera que o sol era bom para o corpo e para a alma, e os raios quentes pareciam realmente estar a ter um efeito restaurador. As gaivotas voavam em círculos por cima deles e Nathalie pensou que Sam poderia gostar de observá-las quando estivesse a sentir-se melhor.
— Meu filhinho querido – Nathalie acariciou-lhe o cabelo. Sam ainda era tão pequeno, tão indefeso. Parecia que ainda tinha sido ontem que era bebê e lhe cabia facilmente nos braços. Afinal de contas, talvez devesse levá-lo ao médico, mas os seus instintos maternais diziam o contrário. Sam estava seguro ali. Não precisava de hospitais nem de medicamentos, precisava de paz e de tranquilidade, e do carinho da mãe. Isso faria com que voltasse a ficar bem.
Estremeceu. Um vento frio começara a varrer o cais e Nathalie temeu que Sam pudesse constipar- se. Levantou-se com esforço, segurando-o nos braços, e caminhou em direção à casa. Empurrou a porta com o pé e levou-o para dentro.
— Tens fome? – perguntou Nathalie enquanto vestia o filho.
Sam não disse uma palavra, mas Nathalie sentou-se numa cadeira e começou a dar-lhe cornflakes. A seu tempo, Sam voltaria para ela. O mar, o sol e o seu amor sarariam a sua alma ferida.
Erica tentava dar um passeio todas as tardes, antes de ir buscar Maja ao infantário. Os bebês precisavam de ar fresco e Erica tinha necessidade de fazer algum exercício. Manobrar o carrinho de bebê dos gêmeos era um bom treino e, na viagem de regresso, com Maja de pé na plataforma, era um verdadeiro desafio empurrar o carrinho aquele caminho todo até casa.
Nesse dia, em vez de ir diretamente pela rua Galärbacken, Erica decidiu tomar o caminho mais longo, passando pelo Badis e pela fábrica de compotas de Lorentz. No cais, por baixo do Badis, Erica parou e protegeu os olhos com a mão para poder ver melhor o velho edifício, cuja fachada, recém-pintada de branco, resplandecia à luz do sol. Ficou contente por ver o hotel restaurado. Além da igreja, o hotel termal era a caraterística dominante na silhueta da cidade e a primeira coisa em que as pessoas reparavam quando chegavam a Fjällbacka de barco. Durante anos, o edifício tinha-se vindo a deteriorar até parecer prestes a desmoronar-se. Agora, era novamente o orgulho de Fjällbacka.
Erica suspirou de prazer e depois riu-se, envergonhada por ficar tão emocionada ao ver as madeiras reluzentes e a pintura de um edifício antigo. Mas era mais do que isso. Tinha tantas boas recordações do Badis. Para Erica, como para a maioria dos habitantes de Fjällbacka, aquele edifício ocupava um lugar especial no coração. O Badis fazia parte da história coletiva e agora tinha sido restaurado para o presente e para o futuro. Não admirava que aquilo lhe puxasse ao sentimento.
Erica recomeçou a empurrar o carrinho, enchendo-se de coragem para o longo e íngreme caminho colina acima, passando pela estação de tratamento de águas residuais e pelo campo de minigolfe. De repente, um carro abrandou e parou ao lado dela. Erica fez uma pausa, espreitando para dentro do carro para ver quem era o condutor. Uma mulher saiu e Erica reconheceu-a de imediato, embora nunca a tivesse visto. Os coscuvilheiros locais tinham andado ocupadíssimos a espalhar rumores acerca daquela mulher desde que se mudara para a região há alguns meses. Só podia ser Vivianne Berkelin.
— Olá! – disse alegremente a mulher, aproximando-se de Erica de mão estendida. – É Erica Falck, não é?
— Sim, sou – disse Erica com um sorriso enquanto apertavam as mãos.
— Tenho andado para ir visitá-la. Li todos os seus livros e adoro-os.
Erica sentiu-se corar, o que sempre acontecia quando recebia elogios pelos seus livros. Ainda não se tinha habituado ao facto de tanta gente ter lido algo que escrevera. Mas, depois de estar de licença de maternidade durante vários meses, era refrescante encontrar alguém que a encarava como escritora e não como a mãe de Noel, Anton e Maja.
— Admiro mesmo quem tenha a paciência de se sentar e escrever um livro inteiro.
— Se tivermos umas costas resistentes, a coisa faz-se bem – disse Erica, dando uma gargalhada. Vivianne irradiava um entusiasmo contagiante e Erica sentiu-se tomada por uma emoção que a princípio não conseguiu identificar. Então percebeu o que era. Queria que Vivianne gostasse dela.
— Ficou fantástico – disse Erica, virando-se para o Badis.
— Sim, estamos incrivelmente orgulhosos dele. – Vivianne olhou na mesma direção. – Gostava que lhe fizesse uma visita guiada?
Erica olhou de relance para o relógio. Tinha planeado ir buscar Maja um pouco mais cedo, mas a filha adorava estar no infantário, portanto não haveria mal nenhum em ir buscá-la à hora habitual. Além disso, Erica estava mortinha para saber se o interior do edifício estava tão bonito como a fachada.
— Seria excelente. Mas não sei como vou conseguir levar o carrinho até lá acima – disse, olhando para a escadaria íngreme.
— Não se preocupe, eu ajudo-a. – Vivianne dirigiu-se para os degraus sem esperar por uma resposta.
Cinco minutos mais tarde, as duas mulheres tinham manobrado o carrinho dos gêmeos até a entrada e Erica cruzava agora a porta a empurrá-lo. Na entrada, fez uma pausa, abrindo muito os olhos ao olhar em redor. Os móveis antigos e gastos tinham desaparecido todos, mas o caráter original do Badis permanecera. Enquanto inspecionava, as memórias da discoteca de verão, quando era adolescente, vieram à tona, mas agora tudo parecia muito novo e fresco. Parou o carrinho junto à parede e ergueu Noel. Estava prestes a levantar a alcofa de Anton quando ouviu Vivianne dizer baixinho:
— Posso pegar nele?
Erica assentiu e Vivianne inclinou-se, pegou suavemente em Anton e pô-lo nos braços. Os gêmeos estavam habituados a andar ao colo de tantas pessoas diferentes que nunca protestavam quando um desconhecido pegava neles. O bebê olhou para Vivianne, lançando-lhe um sorriso.
— És mesmo muito giro – tagarelou Vivianne enquanto lhe despia cuidadosamente o casaco e lhe tirava o chapéu.
— Tem filhos? – perguntou Erica.
— Não, nunca tive essa sorte – respondeu Vivianne, desviando o olhar. – Quer tomar um chá? – perguntou enquanto carregava Anton para a sala de jantar.
— Preferia um café, se tiver. Não sou grande apreciadora de chá.
— Normalmente, não recomendamos que as pessoas envenenem o organismo com cafeína, mas vou abrir uma exceção e ver se consigo encontrar café decente.
— Obrigada. – Erica seguiu Vivianne. O café era o que a fazia andar para a frente. Bebia tanto que o mais certo era ter café em vez de sangue a fluir-lhe nas veias. – Toda a gente tem os seus vícios e a cafeína não é dos piores.
— Eu não tenho tanta certeza disso – afirmou Vivianne, mas preferiu não se alongar sobre o assunto. Provavelmente sentiu que as suas palavras cairiam em saco roto.
— Volto já. Porque é que não se senta aqui? Depois já vamos conhecer os cantos à casa. – Vivianne desapareceu por uma porta basculante que, calculou Erica, conduzia à cozinha.
Por um momento interrogou-se como é que Vivianne iria conseguir fazer o café enquanto segurava o bebê. Erica tinha aprendido a fazer quase tudo servindo-se apenas de uma mão, mas isso requeria prática. Afastou o pensamento. Se precisasse de ajuda, Vivianne certamente a chamaria.
Depois de servir o café, Vivianne sentou-se à sua frente. Erica reparou que as mesas e as cadeiras também eram novas. Apesar de serem elegantes e modernas, encaixavam perfeitamente no ambiente tradicional. Todos os móveis tinham sido escolhidos por alguém com bom gosto. A vista das janelas, que se alinhavam na parede que dava para o exterior do edifício, era espetacular. Todo o arquipélago de Fjällbacka se espraiava diante delas.
— Quando é a inauguração? – Erica pegou num biscoito com aspeto algo estranho e imediatamente lamentou a escolha. Fosse do que fosse, não tinha açúcar suficiente; era demasiado saudável para se poder qualificar como um biscoito.
— Daqui a cerca de uma semana. Desde que esteja tudo pronto a tempo – respondeu Vivianne com um suspiro quando molhou um biscoito numa caneca de chá. Provavelmente era chá verde, pensou Erica, olhando com prazer para a sua bebida escura como breu.
— Vem à festa, não vem? – perguntou Vivianne.
— Adorava vir. Recebi o convite, mas ainda não decidimos. Não é fácil encontrar uma baby-sitter para três crianças.
— Tente vir. Seria ótimo. É verdade, no sábado, o seu marido e os colegas vêm cá para dar uma vista de olhos em primeira mão. Vamos deixá-los experimentar todos os serviços que oferecemos.
— A sério? – perguntou Erica com uma risada. – Patrik não me contou isso. Acho que nunca pôs os pés num spa, por isso deve ser uma experiência interessante para ele.
— Esperemos que sim. – Vivianne acariciou a cabeça de Anton. – Como está a sua irmã? Espero que não se importe por perguntar, mas eu soube do acidente.
— Não faz mal. – Erica não gostou nada que os olhos se marejassem de lágrimas. Engoliu em seco e conseguiu controlar a voz. – Para ser franca, Anna não está muito bem. Já passou por muita coisa na vida.
Pela cabeça de Erica passou a imagem do primeiro marido de Anna. Havia tanta coisa que não podia explicar, embora houvesse algo naquela mulher que fazia com que desejasse abrir-se com ela. E, de repente, deu por si a contar a história toda a Vivianne. Normalmente nunca falava da vida de Anna, mas sentiu instintivamente que Vivianne compreenderia. Quando acabou, as lágrimas escorriam-lhe pelas faces.
— Realmente, a sua irmã não teve uma vida fácil. E precisava daquela criança – disse Vivianne baixinho, expressando exatamente o que Erica tinha pensado tantas vezes. Anna merecia aquele bebê. Merecia ser feliz.
— Não sei o que fazer. Ela não parece ver-me quando estou com ela. É como se estivesse noutro sítio, muito longe. E tenho medo de que não consiga voltar.
— A sua irmã não foi para lado nenhum. – Vivianne fez Anton saltitar no joelho. – Anda a procurar refugiar-se num sítio onde nada de mal lhe possa acontecer. Anna sabe que a Erica está lá. O melhor que tem a fazer é ir visitá-la e tocar-lhe. Esquecemo-nos de como é importante que nos toquem, mas todos precisamos disso para sobreviver. Por isso toque-lhe e diga ao marido para fazer o mesmo. Muitas vezes cometemos o erro de não querer incomodar as pessoas que estão a sofrer. Achamos que precisam de paz e sossego e de ser deixadas sozinhas. Nada poderia estar mais longe da verdade. Os seres humanos são animais de manada e precisamos de sentir a manada à nossa volta, precisamos da proximidade, do calor e do toque das outras pessoas. Por isso, certifique-se de que Anna está cercada pela sua manada. Não deixe que fique sozinha no quarto dela. Não permita que escape para esse lugar onde pode não haver qualquer sofrimento, mas onde também não há quaisquer outras emoções. Obrigue-a a sair desse lugar.
Erica ficou em silêncio por um momento. Estava a pensar no que Vivianne lhe tinha dito e percebeu que tinha razão. Não deviam ter deixado Anna afastar-se deles. Deviam ter-se esforçado mais.
— E não se sinta culpada – acrescentou Vivianne. – A dor da sua irmã não tem nada que ver com a sua alegria.
— Mas Anna deve sentir que... – disse Erica, e agora as lágrimas corriam mais do que nunca. – Deve sentir que eu tenho tudo, ao passo que ela não tem nada.
— A sua irmã sabe que o que aconteceu às duas não está relacionado. A haver algo a interpor-se entre ambas é o seu sentimento de culpa e não qualquer inveja ou raiva que Anna possa sentir por seus bebês terem sobrevivido. Isso são tudo coisas da sua mente.
— Como pode ter tanta certeza? – Erica queria acreditar em Vivianne, mas não se atrevia. Aquela mulher nunca tinha visto a irmã, portanto, como podia dizer o que Anna estava a pensar ou a sentir? Ao mesmo tempo, havia uma aura de verdade nas suas palavras.
— Não consigo explicar como é que sei. Sei, simplesmente. Eu compreendo as pessoas. Tem de confiar em mim – disse Vivianne com firmeza. E, para sua surpresa, Erica percebeu que confiava realmente nela.
Pouco tempo depois, a caminho do infantário, Erica sentiu-se despreocupada como há muito não se sentia. Livrara-se do que a andava a impedir de voltar a aproximar-se de Anna. Tinha-se libertado daquela sensação de impotência.
FJÄLLBACKA, 1871
POR FIM, O GELO INSTALARA-SE. TINHA CHEGADO TARDE NAQUELE INVERNO, SÓ APARECENDO EM FEVEREIRO. EM CERTO SENTIDO, AQUILO FAZIA COM QUE EMELIE SE SENTISSE MAIS LIVRE. UMA SEMANA DEPOIS, O GELO SERIA SUFICIENTEMENTE ESPESSO PARA SE ANDAR SOBRE ELE E, PELA PRIMEIRA VEZ DESDE QUE CHEGARA À ILHA, SERIA POSSÍVEL IR A TERRA SOZINHA, SE QUISESSE FAZÊ-LO. ENVOLVERIA UMA LONGA CAMINHADA, ASSIM COMO UM CERTO GRAU DE RISCO, POIS DIZIA-SE QUE, POR MAIS ESPESSO QUE FOSSE O GELO, EXISTIAM FENDAS TRAIÇOEIRAS ONDE A CORRENTE FLUÍA MAIS DEPRESSA. NO ENTANTO, ERA POSSÍVEL.
POR OUTRO LADO, FAZIA-A SENTIR-SE MAIS CONFINADA, PORQUE KARL E JULIAN JÁ NÃO PODIAM FAZER AS SUAS VIAGENS REGULARES A FJÄLLBACKA. COMEÇARA A TEMER O REGRESSO DE AMBOS, QUANDO VINHAM BÊBADOS E AGRESSIVOS, PORÉM, PELO MENOS, A AUSÊNCIA DELES PERMITIA-LHE ALGUM ESPAÇO PARA RESPIRAR. AGORA PASSAVAM MAIS TEMPO AO PÉ DELA E A ATMOSFERA ERA OPRESSIVA. EMELIE TENTAVA SER AGRADÁVEL E TRATAR DAS SUAS TAREFAS DOMÉSTICAS SEM OS PERTURBAR. KARL AINDA NÃO LHE TINHA TOCADO E EMELIE NÃO TENTARA MAIS AVANÇOS. FICAVA DEITADA NA CAMA EM SILÊNCIO ABSOLUTO, PRESSIONANDO O CORPO CONTRA A PAREDE FRIA DO QUARTO. MAS O MAL JÁ ESTAVA FEITO. A AVERSÃO DE KARL POR ELA NÃO DIMINUÍRA E EMELIE SENTIA-SE CADA VEZ MAIS SOZINHA.
AGORA, AS VOZES ERAM MAIS ALTAS E COMEÇAVA A VER MAIS DO QUE O BOM SENSO LHE DIZIA SER POSSÍVEL, MAS EMELIE SABIA QUE AQUILO NÃO ERA APENAS FRUTO DA SUA IMAGINAÇÃO. OS ESPÍRITOS DAVAM-LHE UMA SENSAÇÃO DE ALÍVIO. ERAM A SUA ÚNICA COMPANHIA NAQUELA ILHA DESERTA E A TRISTEZA DELES ESTAVA EM SINTONIA COM A SUA. A VIDA NÃO LHES TINHA CORRIDO COMO PLANEARAM. COMPREENDIAM-SE UNS AOS OUTROS, MESMO QUE OS SEUS DESTINOS ESTIVESSEM SEPARADOS PELO MAIS FORTE DOS MUROS: A MORTE.
KARL E JULIAN NÃO REPARAVAM NELES DA MESMA FORMA QUE EMELIE. MAS DE VEZ EM QUANDO OS DOIS HOMENS PARECIAM POSSUÍDOS POR UM MAL-ESTAR QUE NÃO CONSEGUIAM EXPLICAR. NESSAS OCASIÕES, EMELIE PODIA VER O MEDO NOS SEUS ROSTOS, E ISSO DEIXAVA-A SECRETAMENTE FELIZ. JÁ NÃO VIVIA PELO AMOR QUE SENTIA POR KARL, QUE NÃO ERA O HOMEM QUE JULGARA. NO ENTANTO, AGORA AQUELA ERA A SUA VIDA E NÃO HAVIA NADA QUE PUDESSE FAZER QUANTO A ISSO. APENAS PODIA REGOZIJAR-SE COM O MEDO DELE E CONFORTAR-SE COM OS ESPÍRITOS. OS ESPÍRITOS FAZIAM-NA SENTIR-SE UMA ELEITA. ERA A ÚNICA QUE SABIA QUE EXISTIAM. ERAM OS SEUS ESPÍRITOS.
PORÉM, DEPOIS DE ESTAREM RODEADOS DE GELO HÁ MAIS DE UM MÊS, EMELIE COMEÇOU A APERCEBER-SE DE QUE O MEDO TAMBÉM ERA EVIDENTE NO SEU PRÓPRIO ROSTO. O AMBIENTE TORNARA-SE MAIS TENSO. JULIAN APROVEITAVA TODAS AS OPORTUNIDADES PARA GRITAR COM ELA E DESCARREGAR NELA A FRUSTRAÇÃO POR ESTAR CONFINADO À ILHA. KARL OLHAVA-A COM FRIEZA E OS DOIS HOMENS ESTAVAM CONSTANTEMENTE A SUSSURRAR ENTRE SI. COM OS OLHOS FIXOS NELA, SENTAVAM-SE NO BANCO DA COZINHA COM AS CABEÇAS JUNTAS E MURMURAVAM. EMELIE NÃO CONSEGUIA OUVIR O QUE DIZIAM, MAS SABIA QUE NÃO ERA BOA COISA. ÀS VEZES APANHAVA TRECHOS DA CONVERSA QUANDO KARL E JULIAN PENSAVAM QUE NÃO PODIAM SER OUVIDOS. NOS ÚLTIMOS TEMPOS FALAVAM MUITO SOBRE A CARTA QUE KARL TINHA RECEBIDO DOS PAIS POUCO ANTES DE O GELO SE TER INSTALADO. AS VOZES AGITAVAM-SE QUANDO FALAVAM ACERCA DA CARTA, MAS EMELIE NÃO CONSEGUIA DESCOBRIR O QUE PODERIA DIZER. E, VERDADE SEJA DITA, TAMBÉM NÃO QUERIA VERDADEIRAMENTE SABER. A RAIVA NAS PALAVRAS DE JULIAN E O TOM RESIGNADO DA VOZ DE KARL DAVAM-LHE ARREPIOS NA ESPINHA.
EMELIE TAMBÉM NÃO COMPREENDIA PORQUE É QUE OS SOGROS NUNCA OS IAM VISITAR NEM PORQUE É QUE ELA E KARL NUNCA IAM VÊ-LOS. A CASA ONDE NASCERA FICAVA APENAS A UMA HORA DE VIAGEM DE FJÄLLBACKA. SE SAÍSSEM DE MANHÃ BEM CEDO, PODERIAM ESTAR DE REGRESSO À ILHA MUITO ANTES DE ESCURECER. MAS EMELIE NUNCA SE ATREVEU A ABORDAR O ASSUNTO. SEMPRE QUE RECEBIA UMA CARTA DOS PAIS, KARL FICAVA MAL-HUMORADO DURANTE VÁRIOS DIAS. AQUELA ÚLTIMA CARTA TINHA PROVOCADO UMA REAÇÃO PIOR DO QUE NUNCA. MAS, COMO ERA HABITUAL, EMELIE FORA RELEGADA PARA SEGUNDO PLANO, INCAPAZ DE COMPREENDER O QUE ESTAVA A ACONTECER À SUA VOLTA.
— BELA CASA — DISSE GÖSTA, varrendo o apartamento com os olhos. Embora estivesse satisfeito consigo próprio por ter tomado a iniciativa, tinha o estômago às voltas só de pensar na reação de Hedström.
— O mais certo é ser gay — afirmou Mellberg. Gösta suspirou.
— Em que é que baseias essa suposição?
— Só os gays é que têm apartamentos tão limpos e arrumados como este. Os homens de verdade têm sempre alguma porcaria, aqui e ali. E não têm, definitivamente, cortinas nas janelas — o superintendente franziu a testa enquanto apontava para as cortinas brancas como a neve. — Além disso, toda a gente disse que o tipo nunca teve nenhuma namorada.
— Eu sei, mas... — Gösta suspirou de novo e desistiu de tentar argumentar. Mellberg podia ter nascido com duas orelhas, como toda a gente, mas raramente as usava para ouvir.
— Se passares revista ao quarto, eu encarrego-me da sala de estar. Okay? — Mellberg começou a tirar livros das prateleiras.
Gösta assentiu e deu uma olhadela à sala. Era um tanto impessoal. Um sofá bege, uma mesa de centro de madeira escura com um tapete claro por baixo, uma televisão num suporte e uma estante com uma pequena seleção de livros. Pelo menos metade eram livros técnicos sobre economia e contabilidade.
— Que tipo estranho — disse Mellberg. — Não tem quase nada.
— Talvez gostasse de viver com pouca tralha — contrapôs Gösta, e depois dirigiu-se ao quarto.
Era tão limpo e ordenado como a sala de estar. Uma cama com a cabeceira branca, uma mesa de cabeceira, vários armários pintados de branco e uma cômoda.
— Há aqui uma mulher numa fotografia — gritou Gösta a Mellberg enquanto pegava numa pequena fotografia que estava encostada ao candeeiro da mesa de cabeceira.
— É boazona? Deixa-me ver. — Mellberg entrou no quarto.
— Bem, talvez bonita seja uma descrição melhor.
Mellberg olhou para a fotografia e fez uma careta para indicar que não ficara particularmente impressionado. Voltou para a sala, deixando Gösta onde estava, com a fotografia na mão a perguntar- se quem seria aquela mulher. Devia ter significado algo para Mats Sverin. Parecia ser a única fotografia em todo o apartamento e Sverin tinha-a no quarto.
Gösta recolocou a fotografia na mesa de cabeceira e começou a vasculhar a cômoda e os guarda- fatos. Apenas encontrou roupa, nada de natureza mais pessoal. Não havia diários, cartas antigas ou álbuns de fotografias. Embora tivesse inspecionado meticulosamente todos os recantos, passado algum tempo teve de admitir que não havia nada de interesse. Era quase como se Sverin nunca tivesse existido antes de se mudar para o apartamento. A única coisa que contradizia isso era a fotografia da mulher.
Gösta voltou à mesa de cabeceira e pegou novamente na fotografia. Achava que a mulher era muito bonita. Esbelta e delicada, com longos cabelos louros que o vento agitava em torno do rosto no momento em que a fotografia fora tirada. Semicerrou os olhos e aproximou mais a fotografia enquanto estudava cada pormenor. Estava à procura de alguma pista que pudesse dizer-lhes quem era ou pelo menos onde a fotografia fora tirada. Nada tinha sido escrito no verso e a única coisa que se podia ver por detrás da mulher eram uns arbustos. Porém, quando olhou outra vez, reparou de repente que na margem direita da fotografia se podia ver uma mão. Alguém estava a querer ficar ou sair do campo de visão do fotógrafo. Era uma mão pequena. A fotografia estava demasiado tremida para ter certeza absoluta, mas parecia-lhe a mão de uma criança. Gösta pousou-a novamente. Mesmo que estivesse certo, na verdade aquilo não dizia grande coisa. Virou-se e começou a dirigir-se para a saída do quarto, mas depois mudou de ideia. Regressou à mesa de cabeceira, pegou na fotografia e guardou-a no bolso.
— Não valia mesmo a pena termos vindo — resmungou Mellberg. Estava de joelhos a espreitar para debaixo do sofá. — Afinal de contas, talvez tivesse sido preferível deixar que fosse Hedström a revistar isto. Acho que foi mesmo um completo e absoluto desperdício do nosso tempo.
— Ainda não procuramos na cozinha — disse Gösta, fingindo não ouvir as queixas de Mellberg.
Gösta começou a abrir as gavetas e os armários da cozinha, mas não encontrou nada de interesse. Os pratos pareciam ter sido comprados na IKEA e nem o frigorífico nem a despensa estavam particularmente bem abastecidos.
Gösta virou-se e encostou-se à bancada. De repente, avistou algo em cima da mesa da cozinha. Havia um cabo meio enrolado que ia desembocar numa tomada na parede. Pegou no cabo para um olhar mais atento. Era um cabo de computador.
— Sabemos se Sverin tinha um computador portátil? — perguntou em voz alta. Não obteve resposta, mas podia ouvir passos a marchar em direção à cozinha.
— Porque perguntas? — disse Mellberg.
— Porque há aqui um cabo de computador e ninguém mencionou nada sobre um computador portátil.
— Deve estar no escritório dele.
— Mas não seria natural que os colegas o referissem quando Paula e eu estivemos lá? Deviam perceber que estaríamos interessados em ver o portátil dele.
— E perguntaram-lhes? — Mellberg ergueu uma sobrancelha.
Gösta teve de admitir que não haviam perguntado. Tinham-se esquecido completamente de pedir autorização para inspecionar o computador de Sverin. Presumivelmente, o aparelho ainda estava na câmara municipal. De repente, Gösta sentiu-se um idiota, para ali de cabo na mão, por isso soltou-o.
— Mais logo vou passar pela Câmara — disse, saindo da cozinha.
— Meu Deus, como detesto esperar. Porque é que tudo tem de demorar tanto tempo? — murmurou Patrik com irritação quando virou para o estacionamento em frente à delegacia de Gotemburgo.
— Se o relatório estiver pronto na próxima quarta-feira, até terá sido muito rápido — disse Paula. Conteve a respiração, pois Patrik por pouco não atingia um poste.
— Se calhar tens razão — disse Patrik quando saiu do carro. — Mas não fazemos ideia de quanto tempo vamos demorar a obter os resultados do laboratório forense. Sobretudo os resultados da análise da balística. Se houver correspondência nos arquivos, precisamos da informação agora, não daqui a duas semanas.
— É inevitável. Além disso, não há nada que possamos fazer — disse Paula, encaminhando-se para a entrada.
Tinham telefonado a dizer que estavam a caminho, mas mesmo assim a recepcionista pediu-lhes para se sentarem e esperar. Dez minutos mais tarde, apareceu um homem musculoso e incrivelmente alto que avançou apressadamente na direção deles. Patrik calculou que devia ter quase dois metros de altura. Quando se levantou para o cumprimentar, Patrik sentiu-se como um anão em comparação com o polícia de Gotemburgo. A diferença era ainda mais notória em relação a Paula, que era tão baixa que praticamente só chegava à cintura do homem.
— Bem-vindos. Chamo-me Walter Heed. Falamos ao telefone.
Patrik e Paula apresentaram-se e foram diligentemente escoltados para fora da área de recepção. Aqueles sapatos deviam ser feitos por encomenda, pensou Patrik, olhando fascinado para os pés de
Walter. Eram como pequenos barcos. Paula acotovelou o colega. Envergonhado, Patrik fez um esforço para olhar em frente.
— Entrem. Este é o meu gabinete. Querem um café?
Ambos assentiram e Walter foi logo tirar três cafés da máquina de venda automática do corredor.
— Precisam então de informações acerca de um caso de agressão, não é? Patrik limitou-se a assentir em resposta.
— Tenho aqui o processo, mas não tenho certeza de conseguir dizer-vos grande coisa.
— Será que podia fazer-nos um breve resumo dos factos? — perguntou Paula.
— Claro. Ora bem, deixem-me cá ver... — Walter abriu a pasta e passou rapidamente os olhos por alguns documentos. Aclarou a garganta. — Mats Sverin regressou tarde ao apartamento na Erik Dahlbergsgatan. Não tinha certeza do momento exato, mas pensava que não devia passar muito da meia-noite. Tinha saído para jantar com alguns amigos. Depois do incidente, a memória da vítima estava bastante nebulosa, porque sofreu golpes violentos na cabeça e havia falhas no que conseguia recordar. — Walter ergueu os olhos da pasta e continuou o seu relatório sem voltar a consultar o processo. — Tudo o que conseguimos sacar-lhe foi que um grupo de jovens estava à porta do prédio onde morava. Quando Sverin repreendeu um deles por estar a urinar, atacaram-no. Mas Sverin não conseguiu dar-nos uma descrição clara do grupo, nem sequer dizer-nos quantos eram. Falamos várias vezes com Mats Sverin depois de ter recobrado a consciência, porém, infelizmente, não conseguimos saber muito mais. — Walter suspirou quando fechou a pasta.
— E isso foi o mais longe que conseguiram avançar na investigação? — perguntou Patrik.
— Sim. Havia muito pouco por onde pegar. E nenhuma testemunha. Mas... — o agente hesitou e depois bebeu um golo de café.
— Mas o quê?
— É apenas especulação da minha parte... — Walter voltou a hesitar.
— Agradecemos tudo o que nos consiga adiantar — disse Paula.
— Bem, fiquei sempre com a sensação de que Sverin sabia mais do que estava a dizer. Não tenho nenhuma prova, mas quando estávamos a falar com ele, parecia estar a conter-se.
— Quer dizer que sabia quem o tinha atacado? — perguntou Patrik.
— Não faço ideia se sabia ou não. — Walter abriu as mãos. — Como eu disse, tive apenas a sensação de que estava a ocultar informações. Mas sabem tão bem como eu que há muitas razões para a vítima optar por permanecer em silêncio.
Patrik e Paula assentiram.
— Gostava de ter dedicado mais tempo ao caso e desenterrar mais informações. Mas nós simplesmente não temos recursos para isso e acabamos por ter de pôr o caso na gaveta. Percebemos que não íamos avançar a não ser que surgisse alguma pista nova.
— Podemos dizer que foi exatamente o que aconteceu agora — disse Patrik.
— Acham que há alguma ligação entre a agressão e o homicídio?
Patrik cruzou as pernas e demorou alguns segundos a analisar a pergunta antes de responder.
— Nesta fase estamos a tentar manter tudo em aberto. Mas é certamente uma possibilidade. É uma coincidência interessante que Sverin tenha sido agredido apenas alguns meses antes de ter sido encontrado morto a tiro.
— É verdade. Bem, se houver alguma coisa que possamos fazer para ajudar, estejam à vontade. — Walter levantou-se, desenrolando o corpo altíssimo. — A nossa investigação continua em aberto e talvez consigamos ajudar-nos uns aos outros.
— Com certeza — disse Patrik, apertando-lhe a mão. — Podemos ficar com uma cópia do vosso processo?
— Já vos tinha feito uma cópia de tudo — respondeu Walter, entregando a Patrik um maço de documentos. — Sabem o caminho para a saída?
— Claro. Já agora... — Patrik virou-se quando estavam prestes a sair do gabinete. — Estávamos a pensar fazer uma visita à organização onde Sverin trabalhava. Pode indicar-nos o caminho? — Walter pegou num pedaço de papel e anotou a morada.
Walter deu-lhes algumas indicações e depois despediu-se.
— Isto não foi muito produtivo — constatou Paula quando estavam novamente sentados no carro.
— Não digas isso. O colega foi muito corajoso ao admitir que a vítima estava a ocultar informações. Precisamos de saber mais sobre a agressão a Sverin. Talvez a mudança para Fjällbacka tenha sido uma tentativa frustrada de fugir de algo em Gotemburgo.
— Ah, então é por isso que vamos começar pelo anterior emprego de Sverin — concluiu Paula, apertando o cinto de segurança.
Patrik fez o carro recuar no estacionamento e Paula fechou os olhos quando o colega quase abalroou um Volvo 740 azul que, por algum motivo inexplicável, não vira pelo retrovisor. Da próxima vez Paula faria questão de ser ela a conduzir. Os seus nervos não iam aguentar a condução de Patrik por muito mais tempo.
As crianças corriam de um lado para o outro no pátio. Madeleine fumava cigarro atrás de cigarro, mesmo sabendo que devia parar. Mas ali, na Dinamarca, parecia que toda a gente fumava.
— Mamãe, posso ir a casa de Mette? — a filha, Vilda, estava à sua frente com o cabelo despenteado e as faces rosadas de tanto ar fresco e atividade.
— Claro que podes — respondeu, beijando Vilda na testa.
Uma das melhores coisas daquele prédio era o facto de o amplo pátio estar sempre cheio de crianças, que estavam constantemente a entrar e a sair das casas umas das outras, como uma grande família. Madeleine sorriu e acendeu outro cigarro. Era estranho sentir-se tão segura. Não se sentia assim há tanto tempo que mal conseguia recordar-se de como era. Já estavam a morar ali, em Copenhagen, há quatro meses e os dias pareciam passar a um ritmo tranquilo. Madeleine até parara de se baixar quando passava por janelas. Agora passava por elas bem erguida, mesmo quando as cortinas estavam abertas.
Eles tinham tratado de tudo. Não era a primeira vez, mas agora as coisas eram diferentes. Tinha falado pessoalmente com eles, explicara porque é que ela e os filhos tinham de desaparecer novamente. E eles tinham compreendido. Na noite seguinte, recebeu instruções para fazer as malas e dirigir-se ao carro que os esperava com o motor a trabalhar.
Tinha decidido não olhar para trás. Nem por um instante duvidara de ter tomado a decisão certa, mas às vezes não conseguia afastar a dor. Aparecia-lhe nos sonhos, acordando-a, e Madeleine ficava deitada na cama a fitar a escuridão. E então via-o — o homem em quem não podia permitir-se pensar.
O cigarro queimou-lhe os dedos e Madeleine praguejou, atirando a beata ao chão. Kevin lançou- lhe um olhar atento. Estava tão perdida nos seus próprios pensamentos que não reparara que o filho se sentara ao seu lado no banco. Estendeu a mão para lhe acariciar o cabelo e Kevin não protestou. Era um menino tão sério. O seu menino grande. Apesar de ter apenas oito anos, já tinha passado por tanta coisa.
À sua volta ouviram gritos alegres ecoando por entre os prédios. Já reparara que algumas palavras dinamarquesas tinham entrado sorrateiramente no vocabulário dos filhos. Aquilo divertia-a e assustava-a ao mesmo tempo. Deixar para trás o passado, as pessoas que haviam sido, implicava uma sensação de perda. Com o tempo, as crianças perderiam o seu próprio idioma, perderiam o sueco com sotaque de Gotemburgo. Mas Madeleine estava disposta a fazer esse sacrifício. Agora estavam em casa e não teriam de voltar a mudar-se. Poderiam ficar ali e esquecer o que tinham deixado para trás.
Acariciou o rosto de Kevin. Com o tempo, o filho voltaria a ser uma criança como as outras. E isso faria com que tudo tivesse valido a pena.
Maja apareceu a correr e lançou-se nos braços de Erica, como sempre fazia quando a mãe ia buscá-la ao infantário. Depois de dar um abraço e um beijo molhado à mãe, a menina estendeu as mãos para tentar acariciar os irmãos que estavam no carrinho.
— Parece que alguém gosta muito dos seus irmãos — disse Ewa, que estava à porta da sala de Maja e marcava os nomes das crianças na lista à medida que os familiares as iam buscar.
— Sim, pelo menos a maior parte das vezes. Mas de vez em quando leva uma palmadinha ou outra — disse Erica, acariciando a face de Noel.
— Não é invulgar uma criança reagir quando chegam irmãos mais novos e deixa de receber todas as atenções dos pais — Ewa inclinou-se sobre o carrinho para dizer olá aos gêmeos.
— Claro. É perfeitamente compreensível, mas as coisas têm corrido surpreendentemente bem.
— E eles dormem a noite toda? — Ewa fez cócegas aos bebês e recebeu dois sorrisos desdentados em troca.
— São os dois uns dorminhocos. O único problema é que Maja acha que é uma chatice quando estão a dormir e às vezes, quando não estamos de olhos nela, escapa-se até lá acima e acorda-os.
— Estou mesmo a ver! Maja é uma menina muito destemida e empreendedora.
— No mínimo!
Os gêmeos começaram a contorcer-se no carrinho e Erica olhou em redor para ver onde estava a filha.
— Deve estar no escorrega. — Ewa acenou com a cabeça na direção do parque infantil. — É o sítio preferido dela.
E tinha razão. Naquele preciso momento, Erica viu Maja a descer pelo escorrega com um sorriso rasgado no rosto. A filha precisou de alguma persuasão, mas lá acabou por se apoiar na plataforma do carrinho para se irem embora.
— Para casa? — perguntou Maja. Erica tinha virado à direita em vez de virar à esquerda, como sempre fazia quando se preparavam para regressar a casa.
— Não, vamos visitar a tia Anna e o tio Dan — respondeu, sendo recompensada por um grito de júbilo da filha.
— Brincar com Lisen. E Emma. Adrian não — anunciou Maja com firmeza.
— Ah não? Por que não queres brincar com Adrian?
— Adrian é um menino.
Não parecia haver necessidade de mais explicações; era óbvio que aquela seria a única informação que conseguiria de Maja. Suspirou. A divisão entre meninos e meninas começava assim tão cedo? A escolha do que uma criança devia ou não fazer, o que usava e com quem brincava? Erica sentiu-se culpada, interrogando-se se teria contribuído para isso ao ceder às exigências da filha no sentido de que todos os seus presentes fossem cor-de-rosa e estilo princesa. Todo o guarda-roupa de Maja estava repleto de roupa cor-de-rosa, porque era a única cor que estava disposta a usar, caso contrário fazia uma birra. Seria errado deixá-la tomar as suas próprias decisões?
Erica afastou os pensamentos. De momento, não tinha energia para aquelas questões. Além disso, estava a empregar todas as suas forças para empurrar o pesado carrinho. Parou por um momento na rotunda antes de prosseguir, dirigindo-se para a esquerda pela rua Dinglevägen. Podia ver a casa de Dan e de Anna em Falkeliden, porém, de repente, parecia muito mais distante do que o habitual. Por fim, Erica chegou ao destino, mas o último troço a subir a colina quase tinha acabado com ela e, durante algum tempo, deixou-se simplesmente ficar à entrada, tentando recuperar o fôlego. A pulsação acabou por desacelerar o suficiente para que Erica conseguisse tocar a campainha e, poucos segundos depois, a porta abriu-se.
— Maja! — gritou Lisen. — E os bebês! — A garota virou-se e gritou para dentro de casa:
— Erica está aqui. E Maja e os bebês! São tão queridos!
Erica não pôde deixar de se rir com o entusiasmo de Lisen, que se afastou para deixar Maja entrar.
— O teu papá está em casa?
— Papá! — berrou Lisen em resposta à pergunta de Erica. Dan apareceu no vestíbulo, vindo da cozinha.
— Ah, que bom ver-vos — disse, estendendo os braços para dar um abraço a Maja. A menina gostava muito de Dan.
— Entrem, entrem. — Dan pousou Maja, que rapidamente desatou a correr para ir ter com as outras crianças. Pelo barulho, estavam a ver um programa infantil na televisão.
— Desculpa estar sempre a aparecer sem avisar — disse Erica enquanto pendurava o casaco. Ergueu as alcofas para fora do carrinho e seguiu Dan, que avançava à sua frente para a cozinha.
— Estamos muito satisfeitos por ter companhia — disse Dan, esfregando o rosto. Parecia terrivelmente cansado e abatido.
— Acabei de fazer café — acrescentou, olhando para Erica para ver se a amiga estava interessada.
— Desde quando é que precisas de perguntar? — respondeu Erica com um sorriso irônico. Pousou os gêmeos numa manta que tinha tirado do saco de fraldas dos bebês.
Depois sentou-se à mesa da cozinha e Dan instalou-se à sua frente após servir duas chávenas de café. Nenhum dos dois falou durante algum tempo. Conheciam-se tão bem que o silêncio nunca era desconfortável. Curiosamente, o marido da irmã já tinha sido seu namorado. Mas fora há tanto tempo, que Erica mal se conseguia recordar. O relacionamento entre ambos tinha evoluído para uma amizade calorosa e Erica não podia ter desejado melhor marido para a irmã.
— Hoje tive uma conversa interessante — acabou por dizer Erica.
— Ah foi? — inquiriu Dan, bebericando o café. Era um homem de poucas palavras, e além disso sabia que Erica não precisava de grande incentivo para prosseguir.
Erica contou-lhe como tinha encontrado Vivianne por acaso e o que a mulher tinha dito de Anna.
— Deixamos que a Anna se afastasse de toda a gente quando devíamos ter feito o contrário.
— Não tenho assim tanta certeza disso — afirmou Dan, levantando-se para voltar a encher as chávenas. — Parece que não acerto uma.
— Pois eu acho que Vivianne tem razão. Tenho certeza. Não podemos deixar que a Anna fique simplesmente para ali deitada na cama a desperdiçar a sua vida. Se for preciso, temos de obrigá-la a ouvir-nos.
— Talvez, quem sabe — retorquiu Dan, embora parecesse cético.
— Pelo menos, vale a pena tentarmos — insistiu Erica. Baixou-se para dar uma olhadela aos gêmeos. Estavam ambos deitados na manta a abanar as mãozinhas e os pezinhos no ar. Pareciam tão contentes que Erica voltou a recostar-se na cadeira.
— Tudo vale a pena, mas... — Dan calou-se, como se não se atrevesse a dizer em voz alta o que estava a pensar, com medo de que pudesse tornar-se realidade. — Mas e se nada ajudar? E se Anna já tiver desistido?
— Anna não desiste — afirmou Erica. — Está a atravessar uma fase má, mas não vai desistir. Tens de acreditar nisso. Tens de acreditar em Anna.
Erica fitou Dan, forçando-o a olhá-la nos olhos. Anna não ia desistir, mas precisava de ajuda para dar os primeiros passos. E eles iam dar-lhe essa ajuda.
— Podes ficar de olho nos bebês? Vou lá acima ter com ela.
— Claro, eu tomo conta destes minorcas — disse Dan com um sorriso sincero. Levantou-se e depois sentou-se no chão ao lado de Anton e de Noel.
Erica já estava a sair da cozinha. Subiu as escadas e abriu silenciosamente a porta do quarto. Anna estava deitada exatamente na mesma posição desde a última vez em que Erica ali estivera: de lado, a olhar fixamente pela janela. Erica não disse uma palavra, limitando-se a deitar-se ao lado dela e a pressionar o corpo contra o da irmã. Pôs o braço em volta de Anna e puxou-a para mais perto de si, sentindo o seu calor a envolver a irmã.
— Eu estou aqui, Anna — sussurrou. — Tu não estás sozinha. Eu estou aqui.
Os alimentos que Gunnar trouxera começavam a escassear, mas Nathalie hesitava em voltar a telefonar aos pais de Matte. Não queria pensar nele, no desapontamento que Matte devia ter sentido.
Nathalie pestanejou para afastar as lágrimas e decidiu esperar pelo dia seguinte para telefonar-lhes. Tinham o suficiente para se aguentarem um pouco mais, ela e Sam. O filho não comia muito. Continuava a alimentá-lo como se fosse um bebê, enfiando-lhe bocados de comida na boca, embora a criança os deitasse fora logo em seguida.
Estremeceu, envolvendo o corpo com os braços. Apesar de não estar muito frio lá fora, era como se o vento que soprava em toda a ilha penetrasse as paredes da casa, as roupas grossas que usava, a pele e os ossos. Vestiu mais uma camisola grossa, uma que o pai usava sempre que ia pescar de barco, mas de nada adiantou. Era como se o frio viesse de dentro dela.
Os pais não teriam gostado de Fredrik. Nathalie soube-o mal o tinha conhecido, mas afastara esse pensamento. Os pais já haviam morrido, deixando-a sozinha; por isso, porque haveriam de ter o direito de influenciar a sua vida? Era isso que sentia há muito tempo: que os pais a tinham abandonado.
O pai morrera primeiro. Um dia, sofreu um ataque cardíaco em casa e caiu para nunca mais se levantar. Teve morte imediata, dissera o médico, tentando consolá-los. Três semanas depois, a mãe recebeu a sua sentença de morte. Um cancro no fígado. Sobreviveu durante meio ano mais e depois morreu durante o sono. Pela primeira vez em vários meses, estava com uma expressão pacífica, quase feliz, no rosto. Nathalie sentara-se ao lado dela quando morreu, pegando-lhe na mão e tentando sentir o que devia sentir: dor e perda. Em vez disso, só sentia raiva. Como podiam deixá-la sozinha daquela maneira? Precisava deles. Com eles sentia-se segura; sempre pudera regressar para os seus braços depois de fazer algo estúpido, algo que os fazia abanar a cabeça e dizer suavemente: “Mas, Nathalie, não se estava mesmo a ver que isto ia acontecer?” Quem iria olhar por ela agora? Quem iria controlar o seu lado selvagem?
Sentara-se no leito de morte da mãe e, num segundo, tornara-se órfã. Mas Nathalie não teve a mesma sorte de Annie, a menina órfã de um dos filmes preferidos da sua infância. Enquanto Annie tinha sido adotada por um milionário bondoso, Nathalie ficara entregue à sua própria sorte, sem ninguém que a impedisse de tomar decisões impulsivas e estúpidas ou de esticar a corda até o limite, sabendo perfeitamente que ia dar mau resultado. E, assim, Nathalie começara a namorar com Fredrik — algo que teria levado os pais a terem uma conversa séria com ela, tentado convencê-la a deixá-lo, a afastar-se da vida que a conduziria ao abismo. Mas os pais não estavam lá. Tinham-na abandonado e, bem no fundo do seu ser, Nathalie continuava furiosa com isso.
Sentou-se no sofá e puxou os joelhos para cima, envolvendo as pernas com os braços. Matte tinha conseguido aplacar aquela raiva. Por algumas horas, por uma tarde e uma noite, fugazes, e pela primeira vez desde a morte dos pais, ela não se sentira sozinha. Mas Matte tinha-se ido embora. Inclinou a cabeça sobre os joelhos e chorou. Continuava a ser a mesma pequena Nathalie abandonada que sempre fora.
— Erling está?
— Está no gabinete. Pode ir lá e bater à porta. — Gunilla ergueu-se um pouco da cadeira para indicar a porta fechada de Erling.
— Obrigado. — Gösta seguiu pelo corredor. Estava mortificado por ter de regressar para corrigir um erro. Não teria sido necessário se se tivesse lembrado de perguntar pelo computador de Mats quando ali estivera com Paula. Mas isso não tinha ocorrido a nenhum dos dois na primeira visita à câmara municipal.
— Entre! — disse imediatamente Erling quando ouviu baterem à porta. Gösta abriu-a e entrou.
— Se a polícia continuar a aparecer aqui a este ritmo, podemos dispensar a segurança. — Erling fez o seu melhor sorriso de político e apertou entusiasticamente a mão a Gösta.
— Pois bem, é que tenho uma suspeita que preciso de confirmar — murmurou Gösta quando se sentou.
— Pergunte. Faremos tudo o que pudermos para ajudar a polícia.
— Tem que ver com o computador de Mats Sverin. Acabamos de revistar o apartamento dele e julgamos que tinha um computador portátil. Estará aqui?
— O computador de Mats? Não faço a mais pequena ideia. Deixe-me ir ver.
Erling levantou-se e saiu para o corredor, entrando imediatamente no gabinete vizinho. Regressou num ápice.
— Não, não está lá. Terá sido roubado? — Erling parecia nervoso quando voltou a sentar-se atrás da secretária.
— Não sabemos. Mas gostávamos de o localizar.
— Já encontraram a pasta dele? — perguntou Erling. — É castanha, de pele. Andava sempre com ela e sei que muitas vezes guardava lá o portátil.
— Não, não encontramos nenhuma pasta.
— Isso não é nada bom. Se o computador e a pasta tiverem sido roubados, há informações confidenciais que podem cair em mãos erradas.
— Que gênero de informações?
— Estava a dizer que, como é óbvio, não gostaríamos de ver dados acerca das finanças municipais por aí espalhados à toa, sem qualquer tipo de controle. São dados públicos, não têm nada de secreto, porém, mesmo assim gostamos de saber como e onde são divulgados; e, com a Internet, nunca se sabe onde as coisas podem ir parar.
— Lá isso é verdade — disse Gösta.
Não podia deixar de sentir-se desapontado por o computador portátil não estar na câmara municipal. Que lhe teria acontecido? Será que Erling tinha razões para temer que tivesse sido roubado? Ou será que Mats o tinha guardado noutro sítio que não o apartamento?
— Bem, seja como for, obrigado pela sua ajuda — agradeceu Gösta, levantando-se. — Tenho certeza de que vamos voltar a falar. E se o computador ou a pasta aparecerem, por favor contacte-nos logo, está bem?
— Com certeza — respondeu Erling, seguindo Gösta até o corredor. — Importava-se de fazer o mesmo? É muito preocupante pensar que algo que pertence ao município desapareceu assim sem mais nem menos. Sobretudo neste momento. O Projeto Badis é o maior empreendimento em que alguma vez embarcamos — Erling parou abruptamente. — Espere lá. Quando Mats saiu do gabinete, na sexta-feira, mencionou que havia algumas discrepâncias que o preocupavam. Ia falar disso com Anders Berkelin, que é o responsável pelas finanças do Badis. Podia perguntar-lhe se ele sabe alguma coisa acerca do computador. Pode ser um tiro no escuro, mas temos realmente grande urgência em recuperá-lo.
— Vamos falar com Berkelin e, assim que encontrarmos o computador, avisamo-lo.
Gösta suspirou ao deixar o edifício da câmara municipal. Parecia que aquele caso ia envolver muito trabalho, demasiado trabalho. E a temporada de golfe já começara há algum tempo.
As instalações da associação Refúgio estavam localizadas num discreto complexo de escritórios em Hisingen. Patrik passara pela entrada sem dar conta, porém, depois de dar algumas voltas, acabou por encontrá-la.
— Eles sabem da nossa vinda? — perguntou Paula quando saiu do carro.
— Não. Decidi não os avisar.
— Que queres saber desta organização? — indagou Paula, acenando para o nome impresso na placa à entrada.
— Ajuda mulheres vítimas de violência doméstica, fornecendo-lhes abrigo quando precisam de fugir. Daí o nome: Refúgio. Também as apoiam enquanto ainda estão a morar com os agressores, ajudando-as, assim como aos filhos, a sair dessa situação insustentável. Annika disse que não conseguiu descobrir muito mais do que isso. Parecem trabalhar com a máxima discrição.
— É perfeitamente compreensível — disse Paula, carregando no botão ao lado do nome na placa. — Mas isto não é exatamente um sítio fácil de encontrar, presumo que não recebam as mulheres aqui.
— Não. Provavelmente têm um espaço noutro lado qualquer.
— Sim? Refúgio... — crepitou uma voz no interfone e Paula lançou a Patrik um olhar inquiridor. Patrik aclarou a garganta.
— Chamo-me Patrik Hedström. Eu e a minha colega somos da polícia de Tanum. Gostaríamos de entrar e fazer algumas perguntas — disse, fazendo uma pausa. — Trata-se de Mats Sverin.
Silêncio. Em seguida, ouviram um zumbido e a porta abriu-se. O escritório ficava no segundo andar, por isso foram pelas escadas. Patrik reparou que a porta dos escritórios da associação Refúgio era diferente das outras portas do edifício. Mais sólida, de aço e com uma fechadura de alta segurança. Tocaram a outra campainha e ouviram o crepitar de outro interfone.
— Sou eu, Patrik Hedström.
Alguns segundos depois a porta foi destrancada.
— Peço desculpa. Temos sempre a maior cautela com as visitas — disse da entrada uma mulher aparentando ter quarenta anos, com umas calças de ganga coçadas e uma camisola branca. Estendeu a mão. — Leila Sundgren. Sou a diretora do Refúgio.
— Patrik Hedström. E esta é a minha colega, Paula Morales. Cumprimentaram-se cortesmente.
— Entrem. Podemos ir falar para o meu gabinete. Disse que vieram por causa de Matte? — Notava- se um ligeiro nervosismo na voz de Leila.
— Vamos esperar até chegarmos ao seu gabinete — disse Patrik.
Leila assentiu e conduziu-os a uma pequena mas bem iluminada divisão. As paredes estavam cobertas de desenhos de crianças e a secretária estava arrumada, ao contrário da de Patrik. Todos se sentaram.
— Quantas mulheres apoiam por ano? — perguntou Paula.
— Damos alojamento a cerca de trinta. A procura é enorme. Pode parecer uma gota no oceano, mas infelizmente os nossos recursos são muito limitados.
— Como é que a organização é financiada? — Paula estava genuinamente interessada, por isso Patrik recostou-se na cadeira e deixou que fosse a colega a fazer as perguntas.
— Obtemos dinheiro de duas fontes: contribuições da Segurança Social e doações individuais. Mas, como mencionei, o dinheiro é escasso e desejamos sempre poder fazer mais.
— Quantos funcionários têm?
— Temos três funcionários pagos, além de um número variável de voluntários. Deixem-me enfatizar que os salários não são substanciais. Todas as pessoas que aqui trabalham aceitam receber salários muito inferiores em comparação com o que recebiam nos seus empregos anteriores. Não estamos aqui pelo dinheiro.
— Mats Sverin era um dos funcionários pagos? — interrompeu Patrik.
— Sim. Foi contratado como chefe do departamento financeiro. Trabalhou aqui durante quatro anos e fez um ótimo trabalho. No caso de Matte, o salário era risível, tendo em conta o que ganhava antes. Era um elemento dedicadíssimo da nossa equipa. E não foi preciso muito para convencê-lo a participar nesta experiência.
— Experiência? — interpelou-a Patrik.
Leila fez uma pausa, como se precisasse de um momento para formular o que queria dizer.
— O Refúgio é uma organização única — disse por fim. — Normalmente, não há homens em organizações de apoio a vítimas de violência doméstica. Até vou mais longe: é mesmo tabu um homem trabalhar neste gênero de organizações. Mas quando Mats aqui trabalhava, tivemos o mesmo número de homens e de mulheres na equipe — duas mulheres e dois homens — e isso era exatamente o que eu tinha em mente quando lancei o Refúgio. Mas nem sempre tem sido fácil.
— Como assim? — perguntou Paula. Aquilo era uma novidade para ela; nunca tivera qualquer contato com organizações de apoio a vítimas de violência doméstica.
— É uma questão extremamente polêmica e cada ponto de vista tem os seus defensores ferrenhos. Há os que insistem que os homens não devem ser incluídos por pensarem que as mulheres precisam de uma zona sem homens depois de tudo o que sofreram. Outros, como eu, acham que isso não resolve nada. Acredito que os homens têm um papel a desempenhar nestes grupos de apoio a mulheres. Afinal de contas, há homens em todo o mundo e mantê-los afastados cria uma falsa sensação de segurança. Além disso, é crucial mostrar que existe outro gênero de homens para além daqueles com que as mulheres vítimas de violência doméstica tiveram de lidar nas suas vidas. É importante mostrar que existem homens bons. É por isso que fui contra a corrente e optei por sermos a primeira organização de apoio à vítima a ter funcionários de ambos os sexos. — Leila fez uma pausa. — É claro que para isso os homens a admitir têm de ser alvo de uma verificação completa do seu passado. Precisamos de ter total confiança neles.
— E tinham confiança em Mats? — perguntou Patrik.
— Matte era amigo do meu sobrinho. Passaram muito tempo juntos durante uns dois anos, por isso estive com ele em muitas ocasiões. Disse-me que andava insatisfeito com o emprego e que estava à procura de algo diferente. Quando ouviu falar do trabalho do Refúgio, ficou entusiasmadíssimo e conseguiu convencer-me de que era a pessoa certa para o lugar. Matte queria mesmo ajudar as pessoas e aqui teve essa oportunidade.
— Por que foi embora? — perguntou Patrik, perscrutando Leila. Registou uma cintilação nos olhos da interlocutora, mas no segundo seguinte já tinha desaparecido.
— Matte queria seguir em frente e, depois de ter sido agredido, começou a pensar em voltar para casa. Não é de estranhar. Matte ficou gravemente ferido. Sabem disso, não sabem?
— Sim. Falamos com o médico no Hospital de Sahlgrenska — confirmou Patrik. Leila respirou fundo.
— Porque vieram cá fazer perguntas sobre Matte? Ele já se foi embora há vários meses.
— Alguém falou com ele depois de se ter ido embora? — perguntou Patrik, ignorando a pergunta de Leila.
— Não. Não nos dávamos fora do trabalho, de modo que perdemos o contacto depois de ele ter partido. Mas agora gostava realmente de saber porque estão a fazer todas estas perguntas — disse Leila, erguendo ligeiramente a voz e de mãos cruzadas sobre a secretária.
— Mats foi encontrado morto anteontem. Deram-lhe um tiro. Leila arfou.
— Não é possível.
— Receio que seja — disse Patrik. O rosto de Leila ficara branco e Patrik ponderou se devia ir buscar-lhe um copo de água.
A diretora do Refúgio engoliu em seco, tentando recompor-se, mas a voz estremeceu quando perguntou:
— Por quê? Têm alguma ideia do motivo?
— De momento, desconhecemos a identidade do autor do crime. — Patrik ouviu-se, como de costume, a empregar gíria da polícia, o que fazia quando a situação se tornava emocionalmente pesada.
— Há alguma ligação com... — Leila estava demasiado abalada para completar a frase.
— Por enquanto não sabemos — respondeu Paula. — Estamos simplesmente a tentar descobrir mais sobre Mats. Para saber se havia alguém na vida dele que tivesse algum motivo para matá-lo.
— Como diretora de uma organização deste gênero — disse Patrik —, presumo que esteja habituada a receber ameaças.
— Sim, estamos — confirmou Leila. — Embora as ameaças sejam geralmente dirigidas às mulheres e não a nós. Além disso, Matte tratou principalmente da vertente financeira da organização, por isso só contatava com algumas mulheres. E, como eu disse, já se foi embora há mais de três meses. Não consigo ver como é que...
— Não se recorda de nenhum incidente quando Mats estava aqui a trabalhar? Houve alguma situação que lhe tenha chamado a atenção, alguma ameaça dirigida especificamente à pessoa de Mats?
Patrik julgou novamente vislumbrar uma cintilação nos olhos de Leila, mas foi tão breve que presumiu tê-la imaginado.
— Não, por acaso não. Matte trabalhava sobretudo nos bastidores. Tratava dos livros de contabilidade. De débitos e créditos.
— Que contato tinha Mats com as mulheres que procuram a ajuda da sua organização? — perguntou Paula.
— Muito pouco. Tratava sobretudo de assuntos administrativos. — Leila estava atordoada pela notícia da morte de Mats e fitava Patrik e Paula com ar atônito.
— Sendo assim, julgo que, de momento, não temos mais perguntas — disse Patrik, colocando um dos seus cartões de visita na organizada secretária de Leila. — Se a Leila ou alguém da organização se recordar de alguma coisa, não hesitem em ligar-me.
Leila assentiu e pegou no cartão.
— Com certeza.
Depois despediram-se e a pesada porta de aço fechou-se por detrás deles.
— Que te parece? — perguntou Patrik em voz baixa enquanto desciam as escadas.
— Acho que ela está a esconder alguma coisa — respondeu Paula.
— Também me parece.
Patrik tinha urna expressão sombria no rosto. Iam ter de investigar melhor o Refugio.
FJÄLLBACKA, 1871
UM CLIMA ESTRANHO PAIROU SOBRE A CASA DURANTE TODO O DIA. KARL E JULIAN REVEZARAM-SE NO FAROL; PORÉM, QUANDO NÃO ESTAVAM A TRABALHAR, EVITAVAM-NA. NENHUM DOS DOIS A OLHAVA NOS OLHOS.
OS OUTROS TAMBÉM PARECIAM SENTIR ALGO SINISTRO NO AR. ESTAVAM MAIS PRESENTES DO QUE O HABITUAL, APARECENDO DE REPENTE PARA LOGO DESAPARECEREM COM A MESMA RAPIDEZ. AS PORTAS BATIAM E, DO ANDAR DE CIMA, EMELIE OUVIU PASSOS, QUE CESSARAM MAL SUBIU AS ESCADAS. QUERIAM DIZER-LHE ALGUMA COISA. EMELIE SABIA-O, EMBORA NÃO CONSEGUISSE DESCOBRIR O QUE PUDESSE SER. SENTIU VÁRIAS VEZES A RESPIRAÇÃO DE ALGUÉM CONTRA A SUA FACE E ALGUÉM A TOCAR-LHE NO OMBRO OU NO BRAÇO. O TOQUE NA PELE FORA LEVE COMO UMA PENA, MAS ASSIM QUE DEIXOU DE O SENTIR PENSOU QUE DEVIA TÊ-LO IMAGINADO. NO ENTANTO, EMELIE SABIA QUE ERA REAL — TÃO REAL QUANTO A SENSAÇÃO DE QUE TINHA DE FUGIR DALI.
EMELIE FITAVA O GELO COM NOSTALGIA. TALVEZ DEVESSE AVENTURAR-SE A ATRAVESSÁ-LO. ASSIM QUE O PENSAMENTO LHE OCORREU, SENTIU UMA MÃO NAS COSTAS QUE PARECIA ESTAR A EMPURRÁ-LA EM DIREÇÃO À PORTA DA FRENTE. ERA O QUE PRETENDIAM DIZER-LHE? QUE DEVIA SAIR DALI ENQUANTO AINDA PODIA? FALTAVA-LHE A CORAGEM. DEAMBULOU SEM RUMO PELA CASA. LIMPAVA, ARRUMAVA E TENTAVA NÃO PENSAR. ERA COMO SE A AUSÊNCIA DAQUELES MALÉFICOS RELANCES DOS DOIS HOMENS FOSSE MAIS AGOIRENTA E ASSUSTADORA DO QUE OS PRÓPRIOS OLHARES.
POR TODA A PARTE, EM SEU REDOR, OS OUTROS TENTAVAM CHAMAR-LHE A ATENÇÃO. QUERIAM OBRIGÁ-LA A OUVIR. MAS, POR MAIS QUE TENTASSE, EMELIE NÃO CONSEGUIA COMPREENDER. SENTIA MÃOS A TOCAR- LHE, OUVIA PASSOS A SEGUI-LA IMPACIENTEMENTE PARA ONDE QUER QUE FOSSE, MAS OS SUSSURROS AGITADOS, TODAS AQUELAS PALAVRAS EMARANHADAS UMAS NAS OUTRAS, ERAM IMPOSSÍVEIS DE DECIFRAR.
AO ANOITECER, EMELIE DEU POR SI A TREMER DESCONTROLADAMENTE. SABIA QUE KARL NÃO DEMORARIA A COMEÇAR O PRIMEIRO TURNO NO FAROL E TINHA DE APRESSAR-SE A FAZER O JANTAR. SEM PENSAR, PREPAROU O PEIXE SALGADO. QUANDO ESCORREU A ÁGUA DAS BATATAS, AS MÃOS TREMIAM-LHE TANTO QUE QUASE SE ESCALDOU.
SENTARAM-SE À MESA E, DE REPENTE, EMELIE OUVIU UM BARULHO ENSURDECEDOR VINDO DO ANDAR DE CIMA. O RUÍDO AUMENTOU DE VOLUME, TORNOU-SE MAIS INSISTENTE. KARL E JULIAN NÃO PARECIAM OUVI- LO, MAS AGITAVAM-SE COM INQUIETAÇÃO NO BANCO DA COZINHA.
— TRAZ A AGUARDENTE — DISSE KARL COM VOZ ROUCA. ACENOU COM A CABEÇA NA DIREÇÃO DO ARMÁRIO ONDE GUARDAVAM AS BEBIDAS.
EMELIE NÃO SABIA O QUE FAZER. APESAR DE SER COSTUME REGRESSAREM DA TABERNA DE ABELA BÊBADOS QUE NEM CACHOS, RARAMENTE BEBIAM EM CASA.
— JÁ TE DISSE PARA TRAZERES A AGUARDENTE! — ROSNOU KARL, E EMELIE LEVANTOU-SE RAPIDAMENTE. ABRIU O ARMÁRIO E PEGOU NA GARRAFA, QUE ESTAVA QUASE CHEIA. POUSOU-A NA MESA E DEPOIS TIROU DOIS COPOS DO ARMÁRIO.
— TRAZ UM COPO PARA TI — DISSE JULIAN. OS OLHOS DO HOMEM BRILHAVAM DE TAL MANEIRA QUE EMELIE SENTIU UM ARREPIO NA ESPINHA.
— NÃO SEI BEM SE... — BALBUCIOU. EMELIE RARAMENTE TOCAVA EM ÁLCOOL. ESPORADICAMENTE JÁ BEBERA UM BOCADINHO DE AGUARDENTE, MAS NÃO ERA COISA QUE APRECIASSE.
IRRITADO, KARL LEVANTOU-SE E TIROU UM COPO DO ARMÁRIO, BATEU COM ELE NA MESA À FRENTE DE EMELIE, E ENCHEU-O ATÉ À BORDA.
— NÃO QUERO... — DISSE COM VOZ EMBARGADA, SENTINDO-SE TREMER MAIS DO QUE NUNCA. NINGUÉM TINHA TOCADO NA COMIDA. LENTAMENTE, LEVOU O COPO AOS LÁBIOS E BEBEU UM GOLINHO.
— BEBE TUDO ATÉ AO FIM — DISSE KARL, QUE SE TORNOU A SENTAR E SERVIU IGUAL PORÇÃO DE AGUARDENTE PARA SI E PARA JULIAN. — BEBE ISSO TUDO. JÁ!
DO ANDAR DE CIMA, O BARULHO ERA CADA VEZ MAIS ENSURDECEDOR. EMELIE PENSOU NO MANTO DE GELO QUE SE ESTENDIA ATÉ FJÄLLBACKA. O GELO TERIA SIDO CAPAZ DE CONDUZI-LA A UM LUGAR SEGURO SE LHES TIVESSE DADO OUVIDOS, SE SE TIVESSE ATREVIDO. MAS AGORA ESTAVA ESCURO E JÁ NÃO ERA POSSÍVEL ESCAPAR. DE REPENTE, SENTIU UMA MÃO NO OMBRO, UM BREVE TOQUE A DIZER-LHE QUE NÃO ESTAVA SOZINHA.
EMELIE ERGUEU O COPO ATÉ À BOCA E BEBEU A AGUARDENTE DE UM TRAGO. NÃO TINHA ESCOLHA, ERA UMA PRISIONEIRA. NÃO SABIA POR QUE, MAS ERA ASSIM. ERA A PRISIONEIRA DAQUELES DOIS HOMENS.
KARL E JULIAN ESVAZIARAM OS COPOS QUANDO VIRAM QUE EMELIE TINHA ACABADO O SEU. ENTÃO, JULIAN PEGOU NA GARRAFA E ENCHEU-LHE NOVAMENTE O COPO ATÉ À BORDA. O LÍQUIDO EXTRAVASOU E ENTORNOU-SE PARA CIMA DA MESA. NÃO TINHAM DE DIZER UMA PALAVRA QUE FOSSE; EMELIE SABIA O QUE TINHA DE FAZER. ENQUANTO ENCHIAM OS SEUS COPOS, KARL E JULIAN MANTINHAM OS OLHOS FIXOS NELA, E EMELIE APERCEBEU-SE DE QUE, ACONTECESSE O QUE ACONTECESSE, SERIA FORÇADA A ERGUER O COPO UMA E OUTRA VEZ.
PASSADO ALGUM TEMPO, TODA A COZINHA PARECIA RODOPIAR E EMELIE SENTIU-OS A DESPIREM-NA. DEIXOU QUE O FIZESSEM. O ÁLCOOL TORNARA-LHE OS MEMBROS PESADOS E ERA INCAPAZ DE OFERECER QUALQUER TIPO DE RESISTÊNCIA. ENQUANTO A BARULHEIRA LÁ EM CIMA AUMENTAVA A TAL PONTO QUE O SOM LHE ENCHIA A CABEÇA, KARL DEITOU-SE EM CIMA DELA. ENTÃO VEIO A DOR E A ESCURIDÃO. JULIAN AGARROU-A PELOS BRAÇOS E A ÚLTIMA COISA QUE EMELIE VIU FORAM OS SEUS OLHOS. ESTAVAM REPLETOS DE ÓDIO.
AQUELA MANHÃ DE SEXTA-FEIRA estava excecionalmente ensolarada. Erica virou-se na cama e pôs o braço em torno de Patrik. O marido tinha chegado tarde a casa. Erica já tinha ido para a cama e só conseguira murmurar um sonolento “olá” antes de voltar a adormecer. Mas agora estava acordada e sentia um enorme desejo por ele, pelo seu corpo e por aquela intimidade que tão raramente existira durante os últimos meses. Às vezes, Erica perguntava a si própria quando a recuperariam. Aqueles anos estavam a passar demasiado depressa. Toda a gente lhe dissera que os primeiros anos das crianças eram particularmente complicados, que podiam causar muitos estragos a um casamento e que podia ser difícil para uma mulher e o seu marido sentirem-se próximos um do outro. Agora que estava no meio de tudo aquilo, Erica concordava, mas apenas em parte. Claro que as coisas tinham sido difíceis quando Maja era bebê. Mas a sua relação com Patrik não tinha piorado desde que os gêmeos nasceram. Depois do acidente, a ligação entre eles tornara-se mais forte do que nunca e Erica sabia que nada poderia separá-los. Mas tinha saudades da intimidade. Porém, era algo a que, pura e simplesmente, não conseguiam dar a volta, com todas as fraldas que tinham de ser mudadas, as refeições que tinham de ser preparadas e as viagens constantes ao infantário que Maja frequentava.
Patrik estava deitado de costas para ela. Erica aproximou-se mais do marido. Era uma das raras manhãs em que tinha acordado naturalmente e não porque havia uma criança a chorar. Pressionou mais o corpo contra o de Patrik, deslizando a mão pela cueca do marido. Começou lentamente a acariciá-lo e sentiu sua reação. Patrik ainda não se tinha mexido, mas Erica podia ouvir o ritmo da sua respiração a alterar-se e sabia que o marido estava acordado. A respiração de Patrik acelerou. Erica estava a gostar da sensação de calor que se espalhava pelo seu corpo. Patrik virou-se para olhar para ela. Quando se olharam nos olhos, Erica sentiu um formigueiro no estômago. Delicadamente, Patrik começou a beijar-lhe o pescoço. Erica soltou um leve gemido quando esticou o pescoço para que Patrik conseguisse chegar àquele ponto por detrás da orelha que era tão sensível.
As mãos começaram a explorar os corpos e Patrik tirou a cueca. Erica despiu rapidamente a T- shirt com que dormia e, com uma risadinha, despiu as cuecas.
— Há quanto tempo — murmurou Patrik enquanto continuava a mordiscar-lhe a parte de trás do pescoço, fazendo-a contorcer-se de prazer.
— Hum, acho que precisamos de um pouco mais de prática — Erica correu as pontas dos dedos pela coluna vertebral de Patrik, que a virou de costas. Estava prestes a deitar-se em cima dela quando ouviram um som familiar vindo do quarto do outro lado do corredor.
— Buaaá! — Um som estridente logo seguido de outro e, pouco depois, o ruído de pezinhos no corredor. Maja estava à entrada do quarto com o polegar na boca e a boneca preferida debaixo do braço.
— Os bebês estão chorando — disse a criança, franzindo a testa. — Levanta, mamãe. Levanta, papai.
— Pronto, pronto, já vamos, pequenina — com um suspiro pesado, Patrik levantou-se da cama. Vestiu rapidamente umas calças de ganga e uma camiseta e dirigiu-se para o quarto dos gêmeos depois de lançar um breve olhar apologético a Erica.
Os prazeres amorosos iam ficar por ali. Erica vestiu o fato de treino, que estava no chão ao lado da cama, e depois desceu as escadas atrás de Maja, dirigindo-se à cozinha para preparar o pequeno- almoço e os biberões dos gêmeos. O corpo ainda estava morno, mas o formigueiro no estômago tinha desaparecido.
Mas quando ergueu os olhos e viu Patrik a descer as escadas com um bebê acabado de acordar em cada braço, voltou a senti-lo. Amava muito aquele homem.
— Não descobrimos nada particularmente útil — disse Patrik quando todos estavam presentes. — Por outro lado, há algumas novas questões para as quais precisamos de obter respostas.
— Quer dizer que não descobriram mais nada acerca da agressão? — perguntou Martin, parecendo desapontado.
— Não, de acordo com a polícia não houve testemunhas da agressão. A única coisa que tinham para avançar na investigação era a declaração do próprio Mats Sverin afirmando desconhecer o grupo de jovens que o agrediu.
— Não pareces muito convencido — afirmou Martin.
— Falamos acerca disso na viagem de regresso — afirmou Paula. — Ambos tivemos a sensação de que há algo mais nesta história, por isso temos de continuar a explorá-la.
— Têm certeza de que não é uma perda de tempo? — perguntou Mellberg.
— Não posso garantir nada, mas achamos que vale a pena continuar a investigar — respondeu Patrik.
— Que foi que descobriram no antigo emprego de Sverin? — perguntou Gösta.
— Também não descobrimos nada com grande interesse. Pelo menos, não diretamente. Mas também pretendemos continuar a investigar. Falamos com a diretora da organização, que pareceu ficar perturbada ao saber da morte de Mats. Mas, ao mesmo tempo, não ficou... Como é que hei de dizer isto?
— Não pareceu muito surpreendida — completou Paula.
— Mais um dos seus pressentimentos? — perguntou Mellberg, suspirando pesadamente. — Lembre-se de que esta delegacia tem recursos limitados. Não podemos correr em todas as direções e fazer o que nos apetece. Pessoalmente, acho que é um desperdício de energia continuar a farejar a vida da vítima em Gotemburgo. A minha longa experiência na polícia ensinou-me que a resposta se encontra frequentemente muito mais perto. Por exemplo, já investigamos os pais como deve ser? Acredito que esteja a par das estatísticas: a maioria dos homicídios são cometidos por um parente ou alguém próximo da vítima.
— Sim, claro, mas neste caso não considero que Gunnar e Signe Sverin estejam no topo da nossa lista de candidatos. — Patrik teve de conter-se para não revirar os olhos.
— Não me parece que os pais devam ser riscados da lista assim do pé para a mão. Nunca se sabe os segredos que uma família pode esconder.
— É verdade, mas neste caso em particular não concordo. — Patrik cruzou os braços quando se encostou à bancada da cozinha e rapidamente mudou de assunto. — Martin e Annika descobriram alguma coisa?
— Não, parece estar tudo em ordem. Não há nada de extraordinário acerca de Mats Sverin nos registos públicos. Nunca casou e não consta que tenha filhos. Depois de se ter mudado de Fjällbacka teve três moradas diferentes em Gotemburgo. A última foi na Erik Dahlbergsgatan. O contrato de arrendamento do apartamento em que morava ainda estava em nome dele, mas Sverin tinha-o subalugado a outro inquilino. Tinha dois empréstimos: um para pagar os estudos e outro para pagar o carro. Pagava ambas as prestações a tempo e horas. Tinha um Toyota Corolla há quatro anos — Martin fez uma pausa para consultar as notas. — Os registos do percurso laboral de Sverin coincidem com as informações que já tínhamos. Nunca foi condenado por qualquer tipo de crime. E isto foi o máximo que conseguimos descobrir. A julgar pelos registos públicos, Sverin parece ter levado uma vida absolutamente normal, sem nada de extraordinário a relatar.
Annika assentiu. Tinham esperado descobrir mais, mas aquilo fora tudo o que conseguiram desenterrar.
— Okay, pelo menos sabemos isso — afirmou Patrik. — Mas ainda temos de revistar o apartamento de Sverin. Quem sabe o que podemos encontrar por lá.
Gösta aclarou a garganta. Patrik lançou-lhe um olhar inquiridor.
— Sim?
— Bem, sabes... — começou Gösta a dizer.
Patrik franziu a testa. Nunca era bom sinal quando Gösta pigarreava.
— Que estás a tentar dizer? — Não tinha certeza se queria realmente saber, já que o colega estava obviamente a ter grande dificuldade em desembuchar. Quando Gösta lançou um olhar suplicante a Mellberg, Patrik sentiu um aperto no estômago. Gösta e Bertil não eram uma boa combinação.
— O que se passa é que... Torbjörn telefonou-nos ontem quando estavam em Gotemburgo. — Gösta calou-se, engolindo em seco.
— Sim? — repetiu Patrik. Teve de se conter para não dar um passo em frente e obrigar o homem a deitar as palavras cá para fora.
— Torbjörn disse-nos que já podíamos revistar o apartamento. E nós sabemos como tu detestas perder tempo. Por isso, Bertil e eu pensamos que era boa ideia ir lá dar uma vista de olhos.
— Como? — Patrik agarrou-se à borda da bancada, forçando-se a respirar calmamente. Ainda se recordava demasiado bem da sensação de pressão no peito e sabia que não se podia deixar perturbar sob nenhuma circunstância.
— Não há qualquer razão para reagir dessa forma — disse Mellberg. — Caso se tenha esquecido, eu sou o chefe desta delegacia. O que significa que sou seu superior. A decisão de revistar o apartamento foi minha.
Embora Patrik soubesse que Bertil tinha razão, o facto não tornava a constatação mais fácil de suportar. Mellberg podia ser oficialmente o chefe da polícia, porém, na realidade, Patrik tinha assumido esse papel desde que o superintendente chegara à delegacia, depois de ter sido transferido de Gotemburgo.
— Que descobriram? — perguntou Patrik passado um momento.
— Não muito — admitiu Mellberg.
— O apartamento parecia mais uma residência temporária do que um lar — disse Gösta. — Quase não havia objetos pessoais. Na verdade, diria que não havia mesmo nenhum.
— Isso parece um pouco estranho — disse Patrik.
— O computador portátil de Sverin desapareceu — acrescentou Mellberg, enquanto coçava Ernst atrás da orelha.
— O computador portátil de Sverin?
A irritação de Patrik cresceu. Porque não tinha pensado nisso? Claro que Mats Sverin teria de ter um computador portátil e essa devia ter sido uma das primeiras coisas que devia ter perguntado aos técnicos forenses. Amaldiçoou-se a si próprio em silêncio.
— Como podem ter certeza de que o portátil desapareceu? — indagou. — Talvez esteja no escritório. Talvez Sverin não tivesse computador em casa.
— Ao que parece, Sverin só tinha um computador — disse Gösta. — E nós encontramos um cabo de um portátil na cozinha dele. Além disso, Erling confirmou que Sverin tinha um portátil que utilizava no trabalho e que, habitualmente, o levava para casa quando saía.
— Quer dizer que voltaram a falar com Erling? Gösta assentiu.
— Fui lá ontem, depois de termos acabado de revistar o apartamento. Erling parecia preocupado por o computador ter desaparecido.
— Será que o assassino o levou? E, em caso afirmativo, por quê? — refletiu Martin. — Já agora, alguém encontrou o celular de Sverin? Ou será que também desapareceu?
Patrik praguejou novamente. Mais um pormenor que lhe tinha escapado.
— Talvez haja algo no computador de Sverin que possa revelar um motivo para o crime ou quem é o assassino — disse Mellberg. — Se conseguirmos localizar o computador, teremos o caso encerrado.
— Não vamos precipitar-nos — disse Patrik. — Não fazemos a mais pequena ideia de onde possa estar o computador ou de quem o possa ter levado. Mas temos de encontrá-lo a todo o custo, assim como o celular de Sverin. Até lá, não vamos tirar conclusões precipitadas.
— Se alguma vez o encontrarmos — disse Gösta. Em seguida, o rosto iluminou-se. — Erling disse que Sverin estava preocupado com alguma coisa nas contas. Ia encontrar-se com um homem chamado Anders Berkelin, que está encarregado das finanças do Badis. Talvez Berkelin tenha o computador. Estavam a trabalhar juntos no projeto, por isso é possível que Sverin tenha deixado o computador com ele.
— Gösta, tu e Paula vão falar com Berkelin. Martin e eu vamos ao apartamento. Quero dar uma olhadela por lá. E devemos receber o relatório de Torbjörn ainda hoje, não é?
— Exatamente — respondeu-lhe Annika.
— Muito bem. E o Bertil fica a tomar conta das operações aqui na delegacia, certo?
— Obviamente — disse Mellberg. — E não se esqueceram do que vai acontecer amanhã, pois não?
— Amanhã? — Todos se viraram para o chefe com ar inquiridor.
— O evento VIP no Badis. Fomos convidados, lembram-se? Temos de estar lá às onze da manhã.
— Será que temos mesmo tempo para isso numa altura destas? — perguntou Patrik. — Pensava que tinha sido cancelado, uma vez que temos coisas mais importantes em que pensar neste momento.
— O que é melhor para a cidade e arredores tem sido sempre a nossa prioridade — disse Mellberg, levantando-se. — Nós somos exemplo para a comunidade e a nossa participação em projetos locais é da máxima importância. Portanto, conto com todos no Badis amanhã de manhã, às onze.
Um murmúrio resignado percorreu a cozinha. Todos sabiam que era inútil discutir com Mellberg. Além disso, um par de horas gastas em massagens e em todo o tipo de mimos para o corpo e a alma podiam fazer milagres e repor a energia que todos precisavam para trabalhar.
— Malditas escadas — protestou Gösta, parando a meio da subida.
— Podíamos antes ter ido pelo outro lado e estacionado à frente do Badis — disse Paula, fazendo uma pausa para esperar pelo colega.
— Porque é que não disseste isso antes? — Gösta respirou fundo algumas vezes antes de continuar. Ainda não conseguira jogar partidas de golfe suficientes para ficar em forma. Relutantemente, também tinha de reconhecer que a idade começava a deixar as suas marcas.
— Patrik não apreciou particularmente a vossa ida ao apartamento. — Tinham evitado falar do assunto durante o caminho, mas Paula acabara por não resistir durante mais tempo.
Gösta resfolegou.
— Se bem me lembro, Hedström não é o chefe da delegacia. — Paula não respondeu, e depois de um momento de silêncio Gösta suspirou. — Okay, talvez não tivesse sido muito boa ideia ir lá sem falar primeiro com Patrik. Às vezes nós, os da velha-guarda, temos dificuldade em aceitar que agora é a nova geração que deita as cartas. Temos a experiência e a antiguidade do nosso lado, mas isso não parece significar nada.
— Acho que te subestimas, Gösta. Patrik tem sempre coisas positivas a dizer sobre ti. Já em relação a Mellberg, bem...
— A sério? — Gösta parecia agradavelmente surpreendido e Paula esperava que o colega não percebesse que estava a mentir. Gösta não contribuía grandemente para o trabalho coletivo e Patrik não era particularmente elogioso em relação ao colega. Mas Gösta era um polícia razoável e uma pessoa bem-intencionada. Não viria mal nenhum ao mundo se lhe desse um incentivo.
— Mellberg é realmente uma personagem e peras — disse Gösta, parando novamente quando chegaram ao cimo da longa escadaria. — Ora vamos lá então ver como é esta gente. Já ouvi muita coisa acerca do projeto e acho que não era qualquer pessoa que teria coragem de associar-se a Erling — acrescentou, abanando a cabeça. Depois, voltou as costas ao Badis e contemplou o mar. Mais um belo dia de início de verão. Quase não havia ondulação na baía que banhava Fjällbacka. Aqui e ali via-se alguma vegetação, mas as rochas cinzentas dominavam a paisagem. — Tudo o que posso dizer é que isto tem uma vista espetacular — disse Gösta, invulgarmente filosófico.
— É uma maravilha, não é? O Badis está mesmo num sítio imbatível. É de estranhar terem permitido que se degradasse durante tanto tempo.
— Foi uma questão de dinheiro. Dado o estado em que estava o edifício, deve ter custado milhões a restaurar. E não acho mal que o tenham feito. Agora a pergunta é: que parte da fatura é que vamos ter de pagar nos nossos impostos?
— Agora já pareces mais o velho Gösta a falar. Estava a começar a ficar preocupada. — Paula sorriu e dirigiu-se para a entrada. Estava impaciente por começar a trabalhar.
— Está aqui alguém? — Depois de entrarem, chamaram várias vezes e, passados alguns minutos, um homem alto e incaraterístico veio recebê-los. Tinha o cabelo louro com um corte certinho e os óculos de marca eram tão discretos como o proprietário, que também tinha um aperto de mão firme. Ocorreu a Paula que iria ter dificuldade em reconhecê-lo caso se deparasse com ele na rua.
— Falamos consigo ao telefone — disse Paula depois de feitas as apresentações. Sentaram-se a uma das mesas da sala de jantar, onde havia documentos espalhados ao lado de um computador portátil.
— Que belo escritório — elogiou Paula, olhando em redor.
— Também tenho um cubículo lá atrás — disse Anders Berkelin, gesticulando vagamente com a mão.
— Mas trabalho melhor aqui. Sinto-me menos apertado. Quando o Badis reabrir, provavelmente vou ter de rastejar de volta para o meu buraco. — Berkelin sorriu, mas apenas na medida certa, nem muito nem pouco.
— Queriam então fazer-me umas perguntas sobre Mats, não era? — Berkelin fechou o portátil e olhou para eles. — O que aconteceu foi terrível.
— Sim, parece que toda a gente gostava de Mats Sverin — disse Paula, abrindo o bloco de notas. — Trabalhavam juntos no projeto Badis desde o início?
— Não, só depois de Mats ter sido contratado pela câmara municipal há alguns meses. Antes disso, as coisas andavam um pouco confusas por lá, por isso tivemos de encarregar-nos da maior parte do trabalho. Mats parece ter caído do céu.
— Mas Sverin deve ter demorado algum tempo a adaptar-se. Um projeto como este deve ser uma coisa muito complicada.
— Bem, na verdade não é assim tão complicado. Há dois patrocinadores. A autarquia e nós dois — eu e a minha irmã. Dividimos as despesas de forma igual e também vamos partilhar os lucros.
— E quanto tempo calcula que vá decorrer até o empreendimento ser rentável? — perguntou Paula.
— Tentamos ser o mais realistas possível nos nossos cálculos. De nada adianta fazer castelos no ar, por assim dizer. Calculamos sejam necessários quatro anos até que o Projeto Badis atinja o break- even — respondeu Berkelin, empregando o termo inglês.
— Break-even? — disse Gösta.
— O momento em que o diferencial entre as despesas e as receitas for igual a zero — esclareceu Paula.
— Ah, pois — murmurou Gösta, envergonhado pela sua falta de familiaridade com a língua inglesa. Apanhava uma série de termos nos torneios de golfe a que assistia no canal de desporto, mas não lhe serviam de muito fora do mundo daquele desporto.
— Que tipo de trabalho partilhava com Mats? — perguntou Paula.
— Eu e a minha irmã encarregamo-nos de todas as questões práticas do empreendimento. Coordenamos a remodelação, contratamos o pessoal; em suma, montamos o negócio. E depois cobramos à autarquia a sua parte das despesas. Mats estava encarregado de supervisionar os livros de contabilidade e de verificar se as faturas eram pagas. Além disso, mantínhamos um diálogo constante acerca das despesas e dos lucros do projeto. A autarquia também tem grande influência no projeto. — Anders puxou os óculos para cima. Era difícil ver-lhe os olhos por detrás das lentes.
— E havia divergências entre vós? — Paula tomava notas enquanto conversavam e uma página já estava quase cheia de rabiscos ilegíveis.
— Depende do que entende por divergências. — Anders cruzou as mãos sobre a mesa. — Não concordávamos em tudo, mas Mats e eu apreciávamos um diálogo positivo e construtivo, mesmo que nem sempre estivéssemos cem por cento de acordo.
— E mais ninguém tinha problemas com ele? — perguntou Gösta.
— Por causa do projeto? — Anders parecia achar a ideia absurda. — Não, absolutamente. Nada além das diferenças de opinião que tínhamos acerca de alguns pormenores. Nada que fosse tão grave a ponto de... Não, definitivamente — acrescentou Berkelin, abanando vigorosamente a cabeça.
— De acordo com Erling Larson, Mats ia passar por aqui na sexta-feira para falar sobre um assunto que o preocupava. Chegou a fazer isso? — perguntou Paula.
— Sim. Mats veio e ficou aqui muito pouco tempo. Cerca de meia hora. Mas eu acho que é exagero afirmar que estava preocupado. Havia alguns números que não batiam e as projeções precisavam ser ligeiramente ajustadas. Enfim, nada de extraordinário. Acertamos tudo rapidamente.
— Há aqui alguém que possa confirmar o que acabou de dizer?
— Não, na hora só eu estava aqui. Mats já apareceu tarde. Por volta das cinco. Acho que veio diretamente do trabalho.
— Lembra-se de Sverin ter o laptop com ele?
— Mats andava sempre com o laptop, por isso tenho quase certeza de que sim. Sim, trouxe. Lembro que trouxe a pasta.
— E não o deixou aqui? — perguntou Paula.
— Não, se tivesse eu teria reparado. Por quê? O laptop dele desapareceu? — Anders lançou-lhes um olhar nervoso.
— Ainda não sabemos — respondeu Paula. — Mas, se aparecer, agradecemos que entre imediatamente em contato conosco.
— Claro. Mas, como eu disse, Mats não deixou mesmo aqui. E ficaríamos muito preocupados se realmente tivesse desaparecido. Contém informações confidenciais do projeto Badis — Berkelin voltou a puxar os óculos para cima.
— Compreendo. — Paula levantou-se e Gösta tomou isso como um sinal para fazer o mesmo. — Ligue-me caso se recorde de alguma coisa — acrescentou, entregando o seu cartão de visita a Anders, que o guardou numa carteira para cartões que tirou do bolso.
— Pode ficar descansada — disse, mantendo os olhos azuis fixos nos dois agentes enquanto estes se dirigiam para a porta.
E se eles encontrassem Sam ali? Por estranho que pudesse parecer, aquele pensamento ainda não lhe tinha ocorrido. Nathalie considerara Gråskär um lugar seguro e só agora se apercebia de que poderiam encontrá-la ali, se quisessem.
Os tiros ainda estavam bem frescos na sua memória. Tinham ecoado no silêncio da noite e depois tudo ficara novamente em silêncio. E Nathalie fugira, levando Sam e deixando o caos e a devastação para trás. Tinha deixado Fredrik.
As pessoas com quem Fredrik tinha negócios poderiam facilmente localizá-la. Ao mesmo tempo, sabia que não tinha alternativa a não ser ir para a ilha e esperar até ser encontrada ou esquecida. Eles sabiam que era fraca. Aos olhos deles, não fora mais do que um acessório de Fredrik, uma bela joia, uma sombra que discretamente se assegurava de que os copos deles estavam sempre cheios e a caixa de charutos nunca estava vazia. Para eles, Nathalie não era real e agora isso poderia ser-lhe benéfico. Não havia qualquer razão para perseguir sombras.
Nathalie saiu para a luz do sol, tentando convencer-se de que estava segura. Mas as dúvidas permaneciam. Contornou a casa e, depois de dobrar a esquina, contemplou o mar, as ilhas mais além e, mais longe ainda, a península. Um dia podia aparecer um barco e, depois, ela e Sam seriam caçados como ratos numa armadilha. Nathalie sentou-se no banco, ouvindo-o ranger sob o seu peso. O vento e o sal tinham desgastado a madeira e o velho banco inclinava-se, rendido, contra a parede da casa. Havia muitas coisas na ilha que precisavam de ser consertadas. Por outro lado, algumas das flores continuavam a dar-se nos canteiros. Era das malvas que melhor se recordava. Quando era pequena e a mãe cuidava carinhosamente das flores, as malvas preenchiam todo o canteiro das traseiras. Agora, apenas alguns talos solitários haviam despontado e ainda não se sabia que cor as flores teriam. As rosas ainda não tinham florescido, mas Nathalie esperava que as suas preferidas, as rosa-claro, tivessem sobrevivido. Todas as ervas aromáticas que a mãe plantara tinham perecido há muito. Apenas algumas farripas de cebolinho testemunhavam o facto de em tempos ter vingado ali uma pequena horta, tão deliciosamente perfumada sempre que Nathalie passava as mãos pelas ervas aromáticas.
Levantou-se e olhou pela janela. Sam estava deitado de lado, com o rosto virado para a parede. Dormia muito de manhã e Nathalie não tinha qualquer motivo para o despertar. Talvez o filho precisasse de dormir e de sonhar, para assim poder curar as suas mazelas.
Vagarosamente, voltou a sentar-se. A agitação que sentira foi-se lentamente acalmando com o som constante do mar a bater nas rochas. Estavam na ilha de Gråskär, ela era uma sombra e ninguém iria encontrá-los. Estavam seguros.
— A minha mãe não pode ir hoje? — Patrik parecia desapontado. Estava a falar ao celular e descreveu demasiado depressa a curva apertada perto de Mörhult.
— Amanhã à tarde? Bem, que remédio. Então vamos ter de lá ir amanhã. Até logo. Beijinhos. Patrik terminou a chamada e Martin lançou-lhe um olhar interrogativo.
— Estava a pensar levar Erica comigo quando fosse falar com a ex-namorada de Sverin, Nathalie
Wester. De acordo com os pais, Mats estava a planear ir visitá-la, mas não sabem se chegou a ir.
— Não podes telefonar-lhe a perguntar?
— Sim, acho que podia fazer isso. Mas costumo conseguir melhores resultados se falar com a pessoa cara a cara. Além disso, quero falar com tantas pessoas que conheciam Mats quanto for possível, mesmo que já não tenham contacto com ele há muito tempo. O tipo é um mistério. Preciso de saber mais acerca dele.
— E porque queres que Erica vá contigo? — Martin saiu com alívio do carro no estacionamento, à frente do prédio.
— Erica andou com ela na escola. E também com Mats.
— Ah, pois. Já tinha ouvido dizer. Realmente é boa ideia Erica ir contigo. Assim pode ser que
Nathalie se sinta mais à vontade.
Subiram as escadas e pararam à porta do apartamento de Mats Sverin.
— Espero que Mellberg e Gösta não tenham feito muitos estragos — disse Martin.
— A esperança é a última a morrer. — Patrik não tinha ilusões de que os colegas tivessem sido particularmente cuidadosos. Pelo menos, de certeza que Mellberg não tinha sido. Gösta, por outro lado, conseguia às vezes estar à altura e revelar-se bastante competente.
Contornaram cautelosamente as manchas de sangue seco no vestíbulo.
— Alguém vai ter de limpar isto — disse Martin.
— Receio que tenham de ser os pais de Mats a fazê-lo. Espero que consigam encontrar alguém para ajudá-los. Ninguém devia ter de limpar o sangue do próprio filho.
Patrik entrou na cozinha.
— Aqui está o cabo do computador de que Gösta falou. Gostava de saber se Gösta e Paula já encontraram o portátil. O mais certo era terem telefonado se o tivessem encontrado — Patrik estava a pensar em voz alta.
— Porque é que Sverin o haveria de ter deixado no Badis? — interrogou-se Martin. — Não, aposto que quem levou o portátil foi a pessoa que o matou.
— Seja como for, parece que Torbjörn e a sua equipe tiraram impressões digitais do cabo. Se tiverem ficado boas, talvez isso nos dê uma pista.
— Um assassino negligente, queres tu dizer?
— Felizmente parece haver muitos que se enquadram nessa categoria.
— Mas aparentemente estão a ficar cada vez mais cuidadosos, desde que começaram a aparecer aquelas séries sobre peritos forenses e investigações em locais de crime. Parece que agora qualquer ladrão de meia-tigela sabe o básico sobre impressões digitais e ADN.
— Lá isso é verdade, mas sempre haverá idiotas no mundo.
— Então esperemos estar a lidar com um idiota neste caso — Martin voltou para o vestíbulo e continuou até a sala de estar. — Já percebi o que Gösta queria dizer — acrescentou em voz alta.
Patrik ficou onde estava, no meio da cozinha.
— Sobre o quê?
— Sobre isto parecer uma residência temporária. É muito impessoal. Nada revela o que quer que seja acerca de Sverin. Não há fotografias nem bibelôs. E só há livros técnicos na prateleira.
— Como eu disse: o tipo é um mistério. — Patrik entrou na sala de estar.
— Hum, talvez fosse apenas uma pessoa muito reservada. Porque é que isso é assim tão misterioso? Algumas pessoas são mais reservadas do que outras e não acho assim tão estranho que Sverin não falasse de namoradas ou de assuntos pessoais no escritório.
— Mas o problema não é só esse — disse Patrik, percorrendo lentamente a sala. — Sverin não parece ter tido nenhum amigo. O apartamento é extremamente impessoal, como tu próprio disseste. E Sverin não contou a ninguém a tareia diabólica que levou...
— Não tens provas dessa última afirmação, pois não?
— Não, não tenho. Mas há algo que não bate certo. Além disso, Sverin foi encontrado morto a tiro à entrada do próprio apartamento. Quer dizer, não é coisa que aconteça a qualquer pessoa. A aparelhagem e a televisão ainda cá estão, por isso, se fosse um roubo, o ladrão era muito estúpido ou muito preguiçoso.
— O portátil desapareceu — lembrou Martin enquanto abria uma gaveta da mesa da televisão.
— Sim, mas... quanto a isso, tenho um pressentimento. — Patrik entrou no quarto e começou a olhar em redor. Tudo o que Martin tinha dito era verdade. Não havia nenhuma prova a sustentar a agitação que sentia no estômago e que lhe dizia que debaixo da superfície havia uma outra camada que tinham de trazer para a luz do dia se quisessem saber o que realmente acontecera a Mats Sverin.
Passaram uma hora a revistar tudo meticulosamente, apenas para chegar à mesma conclusão a que Gösta e Mellberg tinham chegado no dia anterior. Não havia ali nada. Era como se as divisões daquele apartamento fizessem parte da exposição de uma loja da IKEA. O problema é que até essas divisões eram mais personalizadas do que a casa de Mats Sverin.
— Vamos? — perguntou Patrik com um suspiro.
— Sim. Não há muito mais que possamos fazer por aqui. Esperemos que Torbjörn tenha encontrado alguma coisa com interesse.
Patrik trancou a porta do apartamento. Esperara encontrar uma pista que pudesse seguir. Até agora apenas tinha suspeitas vagas, e nem mesmo ele achava que lhes servissem de muito.
— Almoçamos no Lilla Berith? — perguntou Martin quando entraram no carro.
— Parece-me bem — respondeu Patrik sem entusiasmo enquanto recuava para sair do estacionamento.
Vivianne abriu a porta da sala de jantar sem fazer barulho e foi ter com Anders. O irmão não olhou para cima. Movia rapidamente os dedos pelo teclado do computador.
— Que queria a polícia? — perguntou, sentando-se à frente de Anders na cadeira onde Paula estivera sentada. Ainda estava morna.
— Fizeram perguntas sobre Mats e sobre o trabalho que fizemos juntos. Perguntaram se o computador portátil dele estava aqui. — Anders não ergueu os olhos do computador.
— Que foi que lhes disseste? — perguntou Vivianne, inclinando-se sobre a mesa.
— O mínimo possível. Disse-lhes que tínhamos uma boa relação de trabalho e que o portátil dele não estava aqui.
— Será que... — Vivianne hesitou. — Será que isso nos vai afetar de alguma forma? Anders abanou a cabeça e, pela primeira vez, olhou para a irmã.
— Se nós não deixarmos, não. Mats esteve cá na sexta-feira. Falamos durante uns minutos e resolvemos alguns assuntos. Quando acabamos, Mats foi-se embora e nenhum de nós o voltou a ver desde então. É tudo o que a polícia precisa de saber.
— Fazes com que tudo pareça tão simples — disse Vivianne. Sentia a apreensão a crescer dentro dela. Apreensão e perguntas que não se atrevia a fazer.
— E é simples — disse laconicamente Anders, não deixando que a voz revelasse qualquer emoção. Mas Vivianne conhecia muito bem o irmão. Sabia que, apesar daquele olhar firme dos seus olhos azuis por detrás dos óculos, Anders estava preocupado. Por mais que tentasse não o demonstrar.
— Será que isto vale a pena? — acabou por perguntar Vivianne. Anders olhou para a irmã com surpresa.
— Era disso que eu estava a tentar falar contigo no outro dia, mas tu não quiseste ouvir-me.
— Eu sei. — Vivianne ergueu a mão e enrolou uma madeixa de cabelo louro em torno do indicador. — Na verdade não tenho dúvidas; só queria que estivesse tudo terminado para que pudéssemos finalmente ter um pouco de paz e sossego.
— Achas que alguma vez vamos ter paz e sossego? Talvez estejamos tão lixados que nunca encontremos o que procuramos.
— Não digas isso — afirmou irritadamente Vivianne. — Anders tinha proferido as palavras proibidas que às vezes lhe vinham à mente em momentos de fraqueza; as palavras que a assaltavam quando estava deitada na cama, no escuro, quase a adormecer. — Não vamos dizer isso ou pensar numa coisa dessas — repetiu com firmeza. — Já passamos por tudo e mais alguma coisa nesta vida, tivemos de lutar por tudo, nunca nos deram nada de mão beijada. Nós merecemos isto — acrescentou, e levantou- se tão abruptamente que fez com que a cadeira tombasse com estrondo. Ela não a endireitou, encaminhando-se, em vez disso, para a cozinha em passo apressado. Precisava de ocupar o cérebro para que não começasse a empreender noutros assuntos. Com as mãos trémulas, começou a vasculhar o frigorífico e a despensa para se certificar de que tinham tudo o que era preciso para a pré-abertura do Badis no dia seguinte.
Mette, que vivia no apartamento ao lado, tinha sido muito simpática e oferecera-se para tomar conta das crianças por um par de horas. Madeleine não tinha planos específicos. Ao contrário da maioria das pessoas, a sua vida não era preenchida por todas as obrigações e tarefas que tanto desejava que fizessem parte dos seus dias. Precisava simplesmente de algum tempo para si própria.
Passeava pela Strøget, a rua de pedestre de Copenhagen, em direção à praça Kongens Nytorv. Todas as lojas estavam repletas de atraentes artigos de verão. Roupa, fatos de banho, chapéus, sandálias, bijuteria e brinquedos para a praia. Tudo o que as pessoas normais, com vidas normais, podiam comprar sem sequer se aperceberem da sorte que tinham. Isso não queria dizer que Madeleine fosse ingrata. Pelo contrário, estava extremamente feliz por estar numa cidade estrangeira que conseguia oferecer-lhe algo que não tinha há anos: segurança. Normalmente, saber que estavam a salvo era suficiente; porém, de vez em quando, como nesse dia, Madeleine ansiava desesperadamente poder apenas ser como todas as outras pessoas. Não queria ter luxos ou comprar montes de coisas inúteis que depois mais não faziam do que atulhar os armários, mas teria gostado de poder adquirir pequenas coisas para o dia a dia, de entrar numa loja e comprar um fato de banho porque ia com as crianças à praia no fim de semana. Ou ir a uma loja de brinquedos e comprar uma capa de edredom com o Homem Aranha para Kevin, porque pensava que o filho poderia dormir melhor se partilhasse a cama com o seu super-herói preferido. Em vez disso, tinha de vasculhar os bolsos para encontrar coroas dinamarquesas suficientes para apanhar o autocarro até o centro da cidade. Não havia nada de normal nisso, mas pelo menos estava segura. Mesmo que até agora apenas o seu cérebro estivesse certo disso — não o seu coração.
Entrou numa loja da Illum e foi direita à pastelaria com o seu maravilhoso aroma a pão, bolos e chocolate. Quase se babou ao avistar os Wienerbrød com chocolate no meio. Madeleine e os filhos não passavam fome, embora os vizinhos devessem ter-se apercebido de que a situação da família não era famosa, porque às vezes lhes levavam o jantar, com a desculpa de que tinham feito demasiada comida. Mas Madeleine teria gostado de aproximar-se do balcão, apontar para os Wienerbrød e dizer ao empregado: “Três dos que têm chocolate, se faz favor.” Ou, melhor ainda: “Seis Wienerbrød com chocolate, por favor.” Assim poderiam realmente empanturrar-se, cada um deles devorando avidamente dois bolos. Depois, sentindo-se um pouco cheios, lamberiam o chocolate dos dedos. Isso seria um verdadeiro prazer, sobretudo para Vilda. A filha sempre adorara chocolate. Até gostava dos bombons recheados com licor de cereja que vinham nas caixas de bombons Aladdin, aqueles que mais ninguém queria comer. Vilda devorava-os com um sorriso encantado. Ele nunca se esquecia de levar chocolates para Vilda e Kevin.
Afastou aqueles pensamentos. Não devia pensar nele. Se o fizesse, a ansiedade aumentaria tanto que não seria capaz de respirar. Apressou-se para a saída da loja e continuou em direção a Nyhavn. Assim que viu a água, sentiu que já respirava mais facilmente. Fixou o olhar no horizonte quando passou pela bela zona do antigo porto, onde as esplanadas estavam agora cheias de clientes e os orgulhosos proprietários dos barcos ao longo das docas se atarefavam a varrê-los e a poli-los. Do outro lado do mar ficavam a Suécia e a cidade de Malmö. Dali saíam barcos quase de hora a hora, mas a viagem também podia ser feita de carro ou de comboio, através da ponte. A Suécia ficava tão perto e ao mesmo tempo tão longe... Talvez nunca mais regressassem. Sentiu um aperto na garganta ao pensar nisso. Ficara surpreendida com as saudades que tinha da terra natal. Na verdade, não tinha ido muito longe, e a Dinamarca era enganosamente semelhante à Suécia. Mas havia tantas coisas diferentes... Além disso, os amigos e a família não estavam lá. E não havia forma de saber se voltaria a vê-los.
Virou costas ao mar, encolheu os ombros e regressou lentamente ao centro da cidade. Estava perdida nos seus pensamentos quando sentiu uma mão no ombro. O pânico apoderou-se instantaneamente dela. Tê-la-iam encontrado? Ele tinha-a encontrado? Com um grito, Madeleine virou-se, preparada para bater, arranhar e morder. Disposta a tudo. Um homem com expressão alarmada estava a olhar para ela.
— Não queria assustá-la. — O homem idoso e corpulento estava tão atarantado com a reação de Madeleine que parecia prestes a ter um ataque cardíaco. — Deixou cair o lenço e não me ouviu quando a chamei.
— Desculpe, peço imensa desculpa — balbuciou Madeleine. Então, começou a chorar, o que alarmou ainda mais o homem.
Sem dizer mais nada, desatou a correr até a paragem mais próxima para apanhar o autocarro para casa. Tinha de voltar para junto dos filhos. Tinha de sentir os braços deles em torno do pescoço e os seus corpos mornos pressionados contra o seu. Essa era a única coisa que a fazia sentir-se segura.
— O relatório da Torbjörn já chegou — disse Annika assim que Patrik e Martin transpuseram a porta da delegacia.
Patrik estava tão cheio que mal conseguia respirar. Tinha comido demasiado esparguete ao almoço no Lilla Berith.
— Onde está? — perguntou, passando apressadamente pela recepção e abrindo bruscamente a porta que dava para o corredor.
— Na tua secretária — respondeu Annika.
Patrik apressou-se na direção do gabinete com Martin na sua cola.
— Senta-te — disse Patrik, apontando para a cadeira à frente da secretária. Tombou pesadamente na sua cadeira e começou a ler os documentos que Annika ali deixara.
Martin parecia ter vontade de arrancar as folhas das mãos do colega.
— O que diz? — perguntou dois minutos depois. Mas Patrik limitou-se a acenar com a mão, indicando- lhe que esperasse, e continuou a leitura. Depois do que pareceu uma eternidade, pousou o relatório, com ar desapontado.
— Nada? — indagou Martin.
— Bem, pelo menos nada de novo. — Patrik suspirou, recostou-se e cruzou as mãos atrás da cabeça. Por um momento, nenhum dos dois falou.
— Não há nenhuma pista? — Quando Martin fez a pergunta já sabia qual seria a resposta.
— Podes ler o relatório, mas não me parece. Curiosamente, as únicas impressões digitais que encontraram dentro do apartamento eram de Mats Sverin. Havia outras na maçaneta da porta de entrada e na campainha. Presumivelmente, algumas são de Signe e de Gunnar. E ainda recolheram um terceiro conjunto de impressões digitais na maçaneta, mas do lado de dentro, e essas poderão pertencer ao assassino. Se assim for, podemos utilizá-las para vincular um eventual suspeito ao local do crime. Mas, como essas impressões digitais não constam da nossa base de dados, por enquanto não nos servem para nada.
— Pois é, pena. Vamos ter de esperar que haja novidades no relatório da autópsia que Pedersen nos vai enviar na quarta-feira — concluiu Martin.
— Bem, não sei que novidades poderão ser essas. Isto parece ter sido muito simples. Alguém deu um tiro na nuca a Sverin e depois foi-se embora. O autor do crime nem sequer parece ter entrado no apartamento, à exceção do vestíbulo. Ou, se entrou, teve o cuidado de apagar todos os vestígios.
— Isso vem no relatório? Que as maçanetas foram limpas? — Martin parecia um pouco mais esperançoso.
— Boa ideia, mas não me parece que... — Patrik não terminou a frase, pois estava novamente a folhear o relatório. Depois de ter passado os olhos pelas páginas, abanou a cabeça. — Parece que não. Havia impressões digitais de Sverin em todas as superfícies onde seria de esperar: maçanetas, puxadores de armários, bancada da cozinha, etc. Nada parece ter sido deliberadamente limpo.
— O que indica realmente que o assassino nunca passou do vestíbulo.
— Exato. Infelizmente, isso significa que continuamos a não conseguir estabelecer se Mats conhecia ou não quem o assassinou. Quem quer que tenha tocado a campainha podia ser uma pessoa que Sverin conhecia ou alguém completamente desconhecido.
— Mas Sverin sentia-se suficientemente seguro para virar as costas a quem quer que tenha deixado entrar no apartamento.
— Não tenho tanta certeza disso. Sverin pode ter tentado fugir da pessoa que estava à entrada.
— Lá isso é verdade — concordou Martin. Fez uma pausa e depois disse: — Então e agora, que fazemos?
— Essa é a questão, não é? — Patrik endireitou as costas e passou a mão pelo cabelo. — A busca ao apartamento não produziu nenhum resultado. As conversas que tivemos com quem conhecia Sverin não nos deram nenhuma pista. E o relatório técnico também não. Além disso, é improvável que Pedersen chegue a alguma conclusão significativa. Por isso perguntas bem: que vamos nós fazer agora?
Patrik não costumava estar tão desanimado, mas a falta de pistas naquele caso estava a protelar a investigação. Devia haver alguma coisa secreta na vida de Mats Sverin que justificasse o seu homicídio. Porque não era qualquer pessoa que levava um tiro na cabeça. Nem era qualquer pessoa que era assassinada na própria casa. Tinha de ter havido um motivo e Patrik recusava-se a desistir enquanto não descobrisse qual fora.
— Gostava que fosses comigo a Gotemburgo na segunda-feira. Temos de fazer nova visita à associação Refúgio — disse Patrik.
O rosto de Martin iluminou-se.
— Claro, com todo o gosto — afirmou enquanto se levantava. Patrik quase sentiu vergonha ao ver como o colega ficara feliz por ter sido convidado a acompanhá-lo. Apercebeu-se de que o andara a ignorar um pouco.
— Leva o relatório — disse quando Martin se dirigia para a porta. — É melhor que também o leias, para o caso de me ter escapado algum pormenor importante.
— Okay. — Martin pegou avidamente no relatório.
Depois de Martin sair do gabinete, Patrik sorriu para si mesmo. Ao menos tinha feito uma pessoa feliz.
As horas passavam com uma lentidão insuportável. Gunnar e Signe deambulavam pela casa em silêncio. Não tinham nada a dizer um ao outro, não se atreviam a abrir a boca com medo de soltar o grito aprisionado dentro deles.
Gunnar tinha tentado fazer com que Signe comesse alguma coisa. Sempre fora Signe a preocupar-se com ele e com Matte, dizendo-lhes que não estavam a alimentar-se como devia ser. Agora era Gunnar quem fazia as sanduíches e as cortava em pequenos pedaços, tentando convencê-la a comê-los. Signe fazia o melhor que podia, mas Gunnar podia ver como a comida lhe parecia inchar na boca sem que a mulher a conseguisse fazer descer pela garganta. Por fim, Gunnar não aguentou mais, já não suportava ver a sua própria expressão espelhada no rosto do outro lado da mesa da cozinha.
— Vou sair e dar uma vista de olhos ao barco. Não demoro — disse. Signe nem parecia ouvi-lo. Movendo-se lentamente, Gunnar vestiu o casaco. Caíra a tarde e o Sol estava baixo no céu.
Perguntou a si próprio se alguma vez voltaria a sentir alegria ao ver um pôr-do-sol. Se alguma vez voltaria a sentir o que quer que fosse.
O caminho que tomou através de Fjällbacka era-lhe bastante familiar, mas ao mesmo parecia-lhe muito diferente. Já nada era como dantes. Mesmo o simples ato de caminhar. Aquele movimento que achara tão natural parecia-lhe agora forçado e artificial, como se tivesse de dizer ao cérebro para pôr um pé à frente do outro. Arrependeu-se de não ter ido de carro. A viagem a pé até Mörhult ainda era relativamente longa e Gunnar reparou que as pessoas com quem se cruzava pelo caminho estavam a olhar para ele. Algumas até mudavam de passeio quando pensavam que não as estava a ver, para não terem de lhe falar. Provavelmente não faziam ideia do que haviam de lhe dizer. E Gunnar não saberia que respostas dar, se lhe perguntassem alguma coisa; por isso, talvez fosse melhor que o tratassem como se fosse um leproso.
O barco estava atracado em Badholmen. Tinham aquele lugar no cais há muitos anos e Gunnar virou automaticamente à direita para atravessar a pequena ponte de pedra. Estava completamente perdido no seu próprio mundo e não se apercebeu de nada até quase ter chegado ao cais. O barco tinha desaparecido. Olhou em redor, aturdido. Devia estar ali. Estava sempre no mesmo sítio. Um pequeno barco a motor de madeira com uma capota de lona azul. Gunnar percorreu todo o cais até o final do pontão. Talvez tivesse atracado no lugar errado por algum motivo que não conseguia compreender. Ou talvez se tivesse soltado e derivado para o meio dos outros barcos. No entanto, o mar estava calmo, e Matte era muito cuidadoso e amarrava sempre o barco corretamente. Gunnar voltou para o lugar vazio. Depois pegou no celular.
Patrik tinha acabado de entrar em casa quando recebeu a chamada de Annika. Entalou o celular entre a orelha e o ombro direito para conseguir falar enquanto pegava em Maja, pois a filha saltitava ansiosamente ao seu lado com os braços estendidos.
— Desculpa, Annika, disseste que o barco desapareceu? — Patrik franziu a testa. — Sim, estou em casa, mas posso ir até lá dar uma vista de olhos. Não, não há problema nenhum. Vou já tratar disso.
Pousou Maja no chão para poder carregar no botão para terminar a chamada. Depois deu a mão à filha e dirigiu-se à cozinha, onde Erica estava a preparar dois biberões, incitada pelos dois bebês. Os gêmeos estavam deitados nas respetivas alcofas, em cima da mesa. Patrik inclinou-se, deu a cada um dos filhos um beijo e depois foi dar outro à mulher.
— Olá. Com quem estavas a falar? — perguntou Erica, colocando os biberões no micro-ondas.
— Com Annika. Tenho de sair outra vez, mas não me demoro. Parece que o barco de Gunnar e Signe foi roubado.
— A sério? — Erica virou-se para olhar para Patrik. — Quem é que seria capaz de fazer uma maldade dessas?
— Não faço ideia. De acordo com Gunnar, Mats terá sido a última pessoa a servir-se dele. Se é que chegou a ir visitar Nathalie, claro. Parece estranho que só tenha desaparecido o barco deles.
— Então vai lá — disse Erica, beijando-o na boca.
— Não demoro mesmo nada — respondeu Patrik, dirigindo-se para a porta. Apercebeu-se demasiado tarde de que o mais certo era que Maja fizesse uma pequena birra ao vê-lo sair apressadamente logo depois de ter chegado a casa. Sentindo-se culpado, disse a si próprio que Erica saberia sem dúvida como lidar com a situação. Além disso, não demoraria nada.
Gunnar estava à espera dele em Badholmen, do outro lado da ponte de pedra.
— Não percebo o que aconteceu ao nosso barco — disse, levantando um pouco o boné para coçar a cabeça.
— Não pode ter-se desprendido e andar agora à deriva, ou pode? — perguntou Patrik, seguindo Gunnar até o lugar vazio.
— Não sei dizer-lhe o que aconteceu. Só sei é que o barco não está aqui — contrapôs Gunnar, abanando a cabeça. — Matte tinha sempre tanto cuidado a amarrá-lo. Foi uma coisa que lhe ensinei quando era pequeno. E, ultimamente, não temos tido mau tempo, quanto mais tempestades, por isso não acredito que o barco se tenha soltado das amarras. — Gunnar abanou novamente a cabeça, ainda mais enfaticamente. — Alguém o deve ter roubado. Mas não consigo perceber para que quereriam um barco tão velho como o nosso.
— Hum, bem, acho que ainda valeria umas coroas. — Patrik agachou-se. Percorreu o cais com o olhar e depois voltou a erguer-se. — Vou redigir um relatório quando regressar à delegacia. Mas podemos começar por falar com a Guarda Costeira. Para estarem atentos quando saírem com os barcos para fazer as rondas.
Sem dizer mais nada, Gunnar seguiu atrás de Patrik quando este começou a atravessar a ponte. Em silêncio, os dois homens percorreram a curta distância que separava os barcos dos escritórios da Guarda Costeira. Não parecia estar lá ninguém e, quando Patrik tentou abrir a porta, constatou que estava trancada. Mas então reparou que havia movimento a bordo do MinLouis, a mais pequena das embarcações da Guarda Costeira. Aproximou-se e bateu na janela. Um homem apareceu à popa e Patrik reconheceu Peter, que os tinha ajudado naquele fatídico dia no mar, quando uma garota que participava no reality show Tanum Sempre a Abrir foi assassinada.
— Olá, como é que vai isso? Posso ajudar-vos em alguma coisa? — Peter sorriu-lhes e limpou as mãos a uma toalha.
— Estamos à procura de um barco desaparecido — explicou Patrik, apontando para o lugar vazio no cais. — É o barco de Gunnar. Não está lá e não sabemos o que lhe aconteceu. Será que podias procurá-lo quando saísses com o barco?
— Claro. Eu soube o que aconteceu — disse Peter baixinho, acenando com a cabeça a Gunnar. — Os meus sentimentos. Com certeza que terei todo o gosto em ajudar. Achas que o barco se poderá ter soltado das amarras sozinho? Se assim for, não pode ter ido muito longe. E provavelmente derivaria em direção a terra e não ao mar.
— Não, julgamos que foi roubado — disse Patrik.
— Há pessoas muito maldosas. — Peter abanou a cabeça. — É um barco a motor de madeira, não é, Gunnar? Com uma capota de lona azul ou verde?
— Sim. É azul. E diz Sophia na popa. — Gunnar virou-se para Patrik. — Quando era novo estava apaixonado por Sophia Loren. E, quando conheci Signe, achei que se parecia exatamente com ela. Por isso é que lhe dei o nome Sophia.
— Okay. Pelo menos agora sei o que procurar. Daqui a pouco já começo as minhas rondas e prometo procurar o Sophia.
— Obrigado — disse Patrik, que depois olhou para Gunnar e perguntou: — Tem certeza de que Mats foi a última pessoa a servir-se do barco?
— Bem, na verdade não posso ter certeza absoluta disso. — Gunnar hesitou. — Mas Matte disse que queria ir visitar Nathalie à ilha, por isso presumi que...
— Quando foi a última vez que viu o barco?
Peter tinha regressado à cabina do MinLouis para continuar a verificar o equipamento, pelo que
Gunnar e Patrik estavam sozinhos no cais.
— Deve ter sido na quarta-feira. Mas devíamos perguntar a Nathalie. Ainda não falou com ela?
— Estamos a planear ir lá amanhã. Nessa altura pergunto-lhe.
— Certo — disse inexpressivamente Gunnar. Depois teve um sobressalto. — Meu Deus, isso quer dizer que Nathalie ainda não sabe. Não nos lembramos de lhe telefonar. Nós não...
Patrik pôs-lhe a mão no ombro para acalmá-lo.
— Os senhores têm tido mais em que pensar. Eu conto-lhe quando formos à ilha. Não se preocupe. Gunnar assentiu.
— Posso dar-lhe boleia para casa? — perguntou Patrik.
— Sim, agradeço-lhe muito — respondeu Gunnar com um suspiro de alívio. Depois seguiu Patrik até o carro. Nenhum dos dois falou durante todo o caminho para Mörhult.
FJÄLLBACKA, 1871
O GELO COMEÇOU A QUEBRAR. O SOL DE ABRIL COMEÇAVA LENTAMENTE A DERRETER A NEVE E, NAS ILHAS, PEQUENOS TUFOS DE VERDE AVENTURAVAM-SE PARA FORA DAS FENDAS. EMELIE TINHA APENAS UMA VAGA RECORDAÇÃO DO QUE ACONTECERA. LEMBRAVA-SE DO TETO A RODOPIAR, DA DOR E DE VISLUMBRES DOS ROSTOS DELES. MAS ÀS VEZES VOLTAVA A SENTIR AQUELE TERROR DE FORMA TÃO VÍVIDA QUE TINHA DE ARFAR EM BUSCA DE AR.
NENHUM DELES TINHA FALADO DO INCIDENTE. NÃO ERA NECESSÁRIO. TINHA OUVIDO JULIAN DIZER A KARL QUE TALVEZ AGORA O PAI JÁ ESTIVESSE SATISFEITO. NÃO ERA DIFÍCIL PERCEBER QUE TODO O EPISÓDIO TINHA TIDO QUE VER COM A CARTA QUE CHEGARA, MAS ISSO NÃO DIMINUÍA NEM UM POUCO A VERGONHA E A HUMILHAÇÃO QUE EMELIE SENTIA. TINHA SIDO PRECISO QUE O SOGRO AMEAÇASSE KARL PARA ELE CUMPRIR OS SEUS DEVERES CONJUGAIS. SEM DÚVIDA QUE O VELHO COMEÇARA A INTERROGAR-SE PORQUE É QUE ELA E KARL NÃO TINHAM FILHOS.
DE MANHÃ, EMELIE ACORDARA SENTINDO-SE RÍGIDA E ENREGELADA. ESTAVA DEITADA NO CHÃO, COM O PESADO VESTIDO DE LÃ PRETO E A COMBINAÇÃO BRANCA SUBIDOS ATÉ À CINTURA. PUXOU-OS RAPIDAMENTE PARA BAIXO, MAS A CASA ESTAVA VAZIA. NÃO HAVIA LÁ MAIS NINGUÉM. COM A CABEÇA A LATEJAR E A BOCA SECA, EMELIE LEVANTARA-SE A CUSTO. SENTIU UMA DOR ENTRE AS PERNAS E, DEPOIS DE TER SAÍDO DE CASA E DE SE TER SENTADO NA LATRINA, VIU O SANGUE QUE TINHA SECADO NO INTERIOR DAS COXAS.
MUITAS HORAS DEPOIS, KARL E JULIAN REGRESSARAM DO FAROL, AMBOS AGINDO COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO. EMELIE TINHA PASSADO O DIA INTEIRO A ESFREGAR FRENETICAMENTE O SOALHO DA CASA COM SABÃO E UMA ESCOVA. NADA TINHA INTERROMPIDO O SEU TRABALHO. ATÉ OS ESPÍRITOS SE MANTIVERAM ESTRANHAMENTE SILENCIOSOS. DEPOIS COMEÇARA A PREPARAR A REFEIÇÃO DA NOITE PARA QUE ESTIVESSE PRONTA ÀS CINCO, MAS MAL PARECIA CONSCIENTE DOS SEUS MOVIMENTOS ENQUANTO DESCASCAVA AS BATATAS E FRITAVA O PEIXE. APENAS UM LEVE TREMOR NAS MÃOS, QUANDO OUVIRA OS PASSOS DOS DOIS HOMENS A APROXIMAREM-SE DA PORTA, TRAIU AS EMOÇÕES QUE SE AGITAVAM NO SEU SEIO. KARL E JULIAN ENTRARAM, DESPIRAM OS PESADOS CASACOS NO VESTÍBULO E SENTARAM-SE À MESA SEM LHE PRESTAR QUALQUER ATENÇÃO. E FOI ASSIM QUE OS DIAS DE INVERNO PASSARAM. COM MEMÓRIAS OBSCURAS DO QUE TINHA ACONTECIDO E O FRIO A ESTENDER UM TAPETE BRANCO CONGELADO SOBRE A ÁGUA.
MAS AGORA O GELO COMEÇAVA A RACHAR E, DE VEZ EM QUANDO, EMELIE SAÍA E IA SENTAR-SE NO BANCO AO LADO DA CASA, ERGUENDO O ROSTO PARA O SOL. ÀS VEZES DAVA POR SI A SORRIR, PORQUE AGORA TINHA A CERTEZA. DE INÍCIO DUVIDARA, UMA VEZ QUE NÃO CONHECIA MUITO BEM O PRÓPRIO CORPO, MAS POR FIM DEIXOU DE TER DÚVIDAS. ESTAVA ESPERANÇOSA. A NOITE QUE RECORDAVA COMO UM PESADELO TROUXERA UMA COISA BOA. IA TER UM BEBÊ. ALGUÉM DE QUEM CUIDAR, ALGUÉM COM QUEM PODERIA PARTILHAR A VIDA NA ILHA.
EMELIE FECHOU OS OLHOS E PÔS A MÃO NA BARRIGA. 0 SOL CONTINUAVA A AQUECER-LHE AS FACES. SENTIU ALGUÉM APROXIMAR-SE E SENTAR-SE AO LADO DELA, MAS QUANDO EMELIE ABRIU OS OLHOS, NÃO HAVIA NINGUÉM ALI. VOLTOU A FECHAR OS OLHOS E SORRIU. ERA TAO BOM TER COMPANHIA.
O SOL DA MANHÃ ERGUIA-SE ACIMA DA LINHA do horizonte, mas Nathalie nem reparava. Estava no cais e olhava fixamente para as ilhas e para Fjällbacka, mais ao fundo.
Não queria visitas. Não queria que invadissem o mundo que ela e Sam tinham criado ali na ilha. Pertencia-lhes a eles e a mais ninguém. Mas, quando a polícia telefonara, não pôde negar-se a deixá- los desembarcar. Além disso, tinha um problema e precisava de ajuda. Já quase não havia comida e não tinha coragem para telefonar aos pais de Matte. Já que ia ter visitas, decidira pedir-lhes para lhe trazerem alguns mantimentos, apenas o essencial. Sentira-se algo descarada ao pedir aquilo a alguém que não conhecia, mas na verdade não tinha alternativa. Sam ainda não estava suficientemente recuperado para fazer a viagem até Fjällbacka e, se não pusessem alguma coisa no frigorífico e na despensa, em breve morreriam à fome. Não pensava permitir aos agentes irem além do cais. A ilha era dela, a ilha era dela e de Sam.
Matte era a única pessoa que tinha acolhido ali com gosto. Nathalie continuou a olhar para o mar e os olhos encheram-se de lágrimas. Ainda conseguia sentir os braços de Matte em torno dela, ainda sentia na pele os beijos que lhe dera. O cheiro dele, que parecia tão familiar, embora tivesse mudado, sendo agora o de um adulto e não o de um rapaz. Nathalie não soubera o que o futuro poderia trazer, o que aquele reencontro poderia significar para as vidas de ambos. Porém, por algumas horas tinha deixado em aberto uma possibilidade. Abrira uma janela e deixara entrar um pouco de luz na escuridão em que vivera durante tanto tempo.
Nathalie limpou as lágrimas com as costas da mão. Não podia dar-se ao luxo de se render ao desejo e à dor. Estava a agarrar-se à vida com quanta força tinha e não podia afrouxar o aperto. Matte tinha-se ido embora, mas Sam ainda estava ali. E Nathalie tinha de protegê-lo. Nada nem ninguém, nem mesmo Matte, era mais importante. Proteger o filho era a sua missão, a única que tinha na vida. Agora que havia outras pessoas a caminho do seu mundo, precisava de concentrar-se nisso.
Algo mudara. Nunca a deixavam em paz. Anna ainda conseguia sentir o corpo de alguém contra o seu. Alguém estava a respirar ao seu lado, irradiando calor e energia. Não queria que lhe tocassem. Tudo o que queria era desaparecer na terra de sombras, desolada mas segura, onde já morava há muito tempo. Tudo o que havia fora dela era demasiado doloroso; a pele e a alma tinham ficado demasiado sensíveis depois de todos os golpes que ela sofrera. Já não aguentava mais, era tão simples como isso.
E eles não precisavam dela. Apenas trazia desgraça a quem a rodeava. Emma e Adrian tinham sido submetidos a desgostos por que nenhuma criança deveria ter de passar e era-lhe insuportável ver a tristeza nos olhos de Dan por causa da perda do filho.
De início pareciam compreender. Tinham-na deixado sozinha, permitido que ficasse simplesmente deitada na cama. Às vezes tentavam falar-lhe, mas desistiam tão facilmente que não era difícil perceber que sentiam o mesmo que ela. Que fora ela a causa da sua dor e que seria melhor para todos se se limitasse a ficar para ali deitada.
Contudo, depois da última visita de Erica, alguma coisa tinha mudado. Anna sentira o corpo da irmã junto do seu, sentira o calor de Erica a arrastá-la para longe das sombras, a puxá-la para mais perto da vida, a tentar fazê-la regressar. Erica não tinha dito muita coisa. O corpo da irmã falara por si, fazendo com que o calor se espalhasse através das articulações que sentia frias e congeladas, embora estivesse deitada debaixo de um cobertor. Anna tentara resistir, concentrando-se num ponto escuro bem no fundo do seu ser, um ponto que não podia ser tocado por um corpo quente.
Quando o calor do corpo de Erica desapareceu, foi substituído por outro. Fora mais fácil resistir ao corpo de Dan. A energia do marido estava tão repleta de dor que praticamente só veio reforçar a sua própria tristeza, e Anna não teve de fazer grande esforço para permanecer nas sombras. A energia das crianças era a mais difícil de manter à distância. O corpinho macio de Emma pressionado contra as suas costas, os braços que a cingiam pela cintura. Anna foi obrigada a convocar todas as suas forças para lutar contra aquela energia. E depois viera Adrian, mais pequeno e menos confiante do que Emma, embora a sua energia fosse a mais forte de todas. Não tivera de abrir os olhos para saber quem tinha vindo deitar-se junto dela. Apesar de estar deitada de lado, imóvel, com os olhos fixos no céu do lado de fora da janela, sabia de quem era o calor que a contagiava.
Queria que a deixassem em paz, deitada na cama sem ser perturbada. A ideia de que poderia não ter força suficiente para combater aquelas energias fez com que o terror se apoderasse dela.
Agora era Emma quem ali estava. O corpo da filha agitava-se ligeiramente. Devia ter adormecido, porque, da terra das sombras, Anna apercebia-se de que a respiração da filha mudara, tornando-se cada vez mais profunda. Então, Emma mudou de posição e aconchegou-se mais, como um animal em busca de conforto. Anna podia sentir que estava novamente a ser resgatada das sombras, em direção à luz que lhe penetrava em cada recanto do corpo. Tinha de manter-se concentrada naquele ponto, o ponto escuro dentro dela.
A porta do quarto abriu-se. Anna sentiu a cama a abanar quando alguém se enrolou aos seus pés. Uns bracinhos cingiram-lhe as pernas com muita força, como se nunca as quisessem soltar. O calor de Adrian infiltrou-se nela, fazendo com que lhe fosse cada vez mais difícil permanecer nas sombras. Conseguia resistir ao calor de um dos filhos de cada vez, mas não dos dois ao mesmo tempo, uma vez que as suas energias se combinavam e se tornavam muito mais poderosas. Lentamente, Anna sentiu-se a perder o controle à medida que era arrastada para a realidade daquele quarto, para a realidade da vida.
Com um suspiro profundo, virou-se. Olhou para o rosto adormecido da filha, para aqueles traços familiares que não tinha sido capaz de encarar durante tanto tempo. E, pela primeira vez, caiu num sono profundo, com uma mão em concha sobre o rosto da filha e com a ponta do nariz pressionada contra Emma. Adrian também tinha adormecido, enroscado aos seus pés como um cachorrinho. A força que exercia sobre as suas pernas afrouxou lentamente à medida que relaxava. E ali ficaram, os três, adormecidos.
Erica chorava de riso quando entraram no barco.
— Estás dizendo que tomaste banho de algas? — Limpou os olhos com as costas da mão e depois deu nova gargalhada, tendo um ataque de soluços ao ver a expressão ofendida de Patrik.
— E então? Os homens também não podem ter uns mimos de vez em quando? Pelo que me tens dito, já experimentaste muitas coisas estranhas. Lembro perfeitamente de teres contado, não há muito tempo, que te besuntaram de lama e te enrolaram em plástico num spa. — Patrik fez o barco recuar para fora do cais em Badholmen.
— Sim, mas... — Erica sucumbiu a novo ataque de riso.
— Acho que estás sendo muito preconceituosa e antiquada — disse Patrik, olhando a mulher. — Um banho de algas é realmente uma coisa super-saudável para um homem. Tira as toxinas do corpo e, como os homens têm obviamente mais dificuldade em livrar-se dessas coisas, mais ainda se justifica o tratamento.
Erica agarrava a barriga, tão dominada pelo riso que nem conseguia falar. Patrik decidiu ignorar a mulher e concentrar-se em manobrar o barco para fora do porto. É claro que exagerava um pouco para brincar com Erica, mas a verdade é que ele e os colegas tinham realmente apreciado os tratamentos termais do Badis.
A princípio Patrik estava extremamente cético em enfiar-se numa banheira cheia de algas. Mas depois constatou que aquilo não cheirava tão mal como imaginara e a água estava agradavelmente morna. Quando se sentou e se inclinou para a frente, enquanto as costas eram massajadas com algas, Patrik converteu-se. E não podia negar que a pele parecia nova quando saiu da banheira. Mais macia, mais suave e com um novo brilho. Mas quando estava a contar tudo aquilo a Erica, a mulher começara a dar gargalhadas histéricas. Até a mãe, que tinha ido tomar conta de Maja e dos gêmeos, se tinha rido do seu entusiástico relato.
O vento soprava agora com mais força. Patrik fechou os olhos, sentindo as rajadas contra o rosto. Não havia muitos outros barcos no mar, porém, daí a escassas semanas haveria dezenas a entrar e a sair do porto.
Erica parou finalmente de rir e a sua expressão tornou-se séria. Abraçou Patrik quando ele se sentou ao leme e encostou-lhe a cabeça ao ombro.
— Como é que Nathalie reagiu quando lhe telefonaste?
— Não ficou lá muito satisfeita — respondeu Patrik. — Não parecia muito interessada em receber visitas. Mas quando lhe disse que, se preferisse, podia ir à delegacia falar conosco, decidiu que era melhor irmos nós à ilha.
— Disseste-lhe que eu ia contigo? — Uma onda fez o barco de madeira inclinar-se e Erica abraçou- se mais firmemente à cintura de Patrik.
— Sim. Disse-lhe que éramos casados e que tu também gostarias de a rever. Não houve grande reação da parte dela, mas pareceu-me que não se importava que viesses.
— Que esperas descobrir quando falarmos com Nathalie? — Erica soltou Patrik e foi sentar-se junto dele no banco.
— Para ser franco, não faço ideia. Ainda não sabemos se Mats foi visitá-la na sexta-feira. Acho que é isso que quero descobrir. E também temos de contar-lhe o que lhe aconteceu.
Patrik corrigiu o rumo para deixar passar uma lancha que ia na direção deles a toda a velocidade.
— Idiotas — rosnou Patrik, olhando irritadamente para o barco quando este passou demasiado perto.
— Não podias ter-lhe perguntado pelo telefone? — Erica também fitava o barco que se afastava rapidamente. Não reconheceu os ocupantes. Um grupo de jovens no final da adolescência. Provavelmente uma primeira leva de turistas, do gênero dos que em breve encheriam Fjällbacka.
— Sim, podia ter feito isso. Mas prefiro fazer as minhas perguntas cara a cara. Assim obtenho resultados mais produtivos. O que quero, realmente, é formar uma imagem mais clara de quem era Mats. Por enquanto, o teu ex-colega parece mais uma daquelas figuras de cartão em tamanho real, plana e unidimensional. Parece que ninguém sabe nada sobre ele, nem mesmo os pais. O apartamento onde vivia parece um quarto de hotel. Quase não há objetos pessoais. E depois há a questão da agressão... Preciso de saber mais sobre isso.
— Mas, pelo que percebi, Matte e Nathalie não falaram durante anos.
— Isso é o que os pais dele dizem, mas não sabemos ao certo se foi o que aconteceu. Seja como for, Nathalie parece ter sido uma pessoa importante na vida de Mats e, se foi realmente visitá-la, talvez lhe tenha contado algo que nos possa ser útil. Nathalie pode ter sido uma das últimas pessoas a vê-lo com vida.
— Okay, já percebi a ideia — disse Erica, embora parecesse ter dúvidas. Tinha resolvido ir com Patrik por pura curiosidade. Estava ansiosa por saber como os anos tinham mudado Nathalie e em que gênero de pessoa se tornara.
— Aquilo deve ser Gråskär — disse Patrik, semicerrando os olhos. Erica esticou o pescoço para escrutinar a ilha que se aproximava.
— Sim, é mesmo. O farol é maravilhoso. — Erica protegeu os olhos com a mão para ver melhor.
— Acho que não estou lá muito interessado no aspeto da ilha — afirmou Patrik, embora não fizesse ideia do que o levara a dizer aquilo. Mas depois teve de concentrar-se para atracar o barco no pequeno cais.
Uma mulher alta e esbelta encontrava-se ali à espera deles. Estendeu a mão para o cabo que Erica lançou para terra.
— Olá — disse Nathalie, estendendo a mão para os ajudar a desembarcar.
É lindíssima, embora seja demasiado magra, pensou Patrik ao pegar na mão de Nathalie. Os ossos eram claramente visíveis sob a pele e, embora parecesse ser uma pessoa naturalmente elegante, devia ter perdido bastante peso recentemente, porque as calças de ganga lhe estavam demasiado largas e tinha de usar o cinto bem apertado para as prender.
— O meu filho não está a sentir-se bem. Está a dormir ali em casa, por isso estava a pensar que podíamos tomar um café e conversar aqui no cais — Nathalie apontou para um cobertor que estendera sobre as pranchas de madeira.
— Tudo bem, por mim não há qualquer problema — disse Patrik, sentando-se. — Espero que não seja nada grave.
— Não, está só constipado. Têm filhos? — Nathalie sentou-se à frente de Patrik e de Erica e começou a servir café de uma garrafa térmica. O cais estava relativamente protegido do vento, o sol brilhava e o ar estava quente. Era um lugar agradável para se tomar um café.
— Oh, sim, sem dúvida — respondeu Erica com uma risada. — Temos Maja, que está quase a fazer dois anos, e Noel e Anton, que são gêmeos e já têm quase quatro meses.
— Deves ter muito trabalho com eles — Nathalie sorriu, mas o sorriso não lhe alcançou os olhos. Passou a Erica um prato de biscoitos.
— Receio que isto seja tudo o que tenho para vos oferecer.
— Ah, é verdade — disse Patrik, levantando-se. — Trouxe-lhe as compras.
— Muito obrigada. Espero não lhe ter dado muito trabalho. Como Sam está doente, optei por não ir com ele à cidade fazer compras. Da última vez, Signe e Gunnar ajudaram-me, mas não queria estar sempre a incomodá-los.
Patrik tinha saltado para o barco e estava agora a pousar dois sacos cheios de mantimentos do supermercado Konsum no cais.
— Quanto lhe devo? — Nathalie pegou na carteira, que estava pousada ao lado dela.
— Ficou tudo em mil coroas, não foi nada barato — disse Patrik, desculpando-se. Nathalie extraiu duas notas de quinhentas coroas da carteira e entregou-as.
— Obrigada — voltou a dizer.
Patrik limitou-se a assentir e sentou-se em cima do cobertor.
— Uma pessoa deve sentir-se muito isolada por aqui — disse Patrik, contemplando a pequena ilha. O farol elevava-se sobre eles, lançando a sua longa sombra sobre as rochas.
— Não, eu adoro — disse Nathalie, bebendo um golo de café. — Há anos que não vinha cá e Sam nunca tinha visto a ilha. Pensei que estava na altura de a conhecer.
— Por que agora? — perguntou Erica, esperando não parecer demasiado intrometida.
Nathalie não olhou para ela. Em vez disso, fixou os olhos num ponto distante no horizonte. As pequenas rajadas de vento que os atingiam despenteavam-lhe o cabelo comprido, que ela afastava impacientemente do rosto.
— Tenho uns assuntos em que pensar, por isso pareceu-me natural vir até aqui, onde não há mais nada além de pensamentos e tempo.
— E fantasmas, ao que consta! — disse Erica, alcançando um biscoito. Nathalie não se riu.
— Estão a pensar porque é que chamam Ilha dos Espíritos a Gråskär, não é?
— Sim. Mas tu já deves ter descoberto se há alguma verdade nos rumores. Lembro-me de termos aqui passado a noite uma vez quando eu andava na secundária. Ficamos todos muito assustados. Achas que se justifica chamarem-lhe Ilha dos Espíritos?
— Talvez.
Era óbvio que Nathalie não queria continuar a falar acerca daquilo, por isso Patrik respirou fundo antes de abordar o assunto que não podia ser adiado por mais tempo. Quando explicou calmamente o que tinha acontecido, Nathalie começou a tremer. Olhou para Patrik, incrédula. Não disse uma palavra, mas estava a tremer descontroladamente, como se pudesse quebrar-se em mil pedaços diante dos olhos deles.
— Ainda não sabemos exatamente quando Mats foi morto, por isso estamos a tentar descobrir o máximo possível acerca dos seus últimos dias. Gunnar e Signe disseram que ele estava a planear vir aqui vê-la na sexta-feira.
— Sim, Matte esteve cá. — Nathalie virou-se para olhar para a casa. Patrik teve a sensação de que o fazia sobretudo para que não lhe visse a expressão.
Quando se virou para encará-los, Nathalie ainda parecia atordoada, mas tinha parado de tremer. Erica inclinou-se impulsivamente para frente para pôr a mão na mão de Nathalie. Havia nela uma fragilidade e uma vulnerabilidade que lhe despertou os instintos protetores.
— Foste sempre muito simpática — disse Nathalie, retirando depois a mão sem olhar para Erica.
— Portanto, na sexta-feira passada... — insistiu cautelosamente Patrik.
Nathalie teve um sobressalto, dando a sensação de que um véu lhe descera sobre os olhos.
— Matte chegou ao final da tarde. Não sabia que ele vinha. Há anos que não o via.
— Quando foi a última vez que se encontraram? — perguntou Erica, incapaz de resistir a olhar de relance para a casa. Receava que o filho de Nathalie pudesse acordar e saísse. Como também tinha filhos, sentia que se tinha tornado mãe de todas as crianças do mundo.
— Despedimo-nos quando me mudei para Estocolmo. Tinha dezanove anos, julgo. Foi há uma vida — disse Nathalie, rindo-se. Uma risada breve e amarga.
— E mantiveram o contacto?
— Não. Bem, talvez alguns postais no início. Mas ambos sabíamos que não era boa ideia. Por que prolongar a dor, fingindo que estava tudo na mesma? — Nathalie afastou novamente algumas madeixas de cabelo louro do rosto.
— De quem foi a decisão de se separarem? — perguntou Erica, incapaz de conter a curiosidade. Tinha-os visto juntos tantas vezes, tinha vislumbrado a luz dourada que parecia irradiar de ambos. O casal de ouro.
— Na verdade nunca chegamos a utilizar a palavra separação. Mas eu decidi ir-me embora. Não podia ficar aqui. Precisava de ver o mundo. Ver coisas, fazer coisas, conhecer novas pessoas. — Nathalie deu outra risada. De novo aquele riso amargo, que nem Erica nem Patrik compreendiam.
— Ora bem, na sexta-feira passada, quando Mats veio cá, como foi que a Nathalie reagiu? — perguntou Patrik, querendo continuar o interrogatório, embora não tivesse certeza de que fosse levar a algum lado. Nathalie parecia tão frágil. Pensou que podia parti-la ao meio se dissesse alguma coisa errada. E, em última análise, aquilo poderia não ter nada que ver com o caso.
— Fiquei surpreendida. Mas Signe já me tinha dito que Matte tinha regressado a Fjällbacka, por isso pensei que talvez pudesse aparecer por cá.
— Foi uma boa surpresa? — perguntou Erica, estendendo a mão para a garrafa térmica para voltar a encher a chávena.
— A princípio, não. Bem, não sei. Não sou muito dada à nostalgia. Matte pertencia ao passado. Ao mesmo tempo... — Nathalie parecia perder-se nos próprios pensamentos. — Ao mesmo tempo, talvez nunca o tenha deixado. Não sei. Seja como for, deixei-o entrar em casa.
— Aproximadamente que horas eram quando Mats chegou? — perguntou Patrik.
— Hum... julgo que chegou por volta das seis. Não tenho certeza. O tempo não é muito importante por aqui.
— Quanto tempo ficou? — Patrik mudou de posição, fazendo uma careta. O corpo não gostava de estar sentado numa superfície tão dura por muito tempo. Estava ansioso por outro belo banho de algas morno.
— Matte foi-se embora algumas horas depois, nessa mesma noite — a dor estava tão claramente gravada no rosto de Nathalie como se a tivesse manifestado aos gritos.
De repente, Patrik sentiu-se desconfortável. Que direito tinha de fazer aquelas perguntas? Que direito tinha de andar a bisbilhotar uma coisa que devia ser do foro privado, algo que tinha acontecido entre duas pessoas que em tempos se tinham amado? Mas obrigou-se a prosseguir. Imaginou o corpo deitado de borco no vestíbulo, com um buraco enorme na cabeça, uma poça de sangue no chão e a parede salpicada de sangue. Enquanto o assassino andasse a monte, a polícia tinha mesmo de bisbilhotar. Os homicídios e o direito à privacidade eram duas coisas que não combinavam.
— Quer dizer que não faz ideia das horas a que Mats se foi embora? — perguntou suavemente Patrik. Nathalie mordeu o lábio. Tinha os olhos brilhantes por causa das lágrimas.
— Não, Matte saiu enquanto eu estava a dormir. Pensei que... — Nathalie engoliu em seco várias vezes, parecendo estar a tentar manter a compostura, como se não quisesse perder o controle à frente deles.
— Tentou ligar-lhe? Ou telefonou a Signe e a Gunnar a perguntar-lhes? — insistiu Patrik.
O Sol tinha-se deslocado lentamente enquanto conversavam e as longas sombras do farol foram-se aproximando.
— Não — Nathalie recomeçou a tremer.
— Será que Mats lhe disse alguma coisa enquanto cá esteve, algo que possa dar-nos uma pista? Algo que nos possa revelar quem o poderia querer ver morto?
Nathalie abanou a cabeça.
— Não, não posso acreditar que alguém pudesse querer fazer mal a Matte. Ele era... Bem, tu sabes, Erica. Matte estava exatamente na mesma. Era gentil, atencioso, carinhoso. Era exatamente a mesma pessoa de antigamente — olhou para baixo, passando a mão pelo cobertor.
— Pois, nós sabemos que toda a gente gostava de Mats e que era muito boa pessoa — disse Patrik. — Ao mesmo tempo, há certas partes da vida dele que queríamos conhecer melhor. Por exemplo, Mats foi vítima de uma agressão pouco antes de regressar a Fjällbacka. Contou-lhe alguma coisa sobre isso?
— Não muito. Eu vi as cicatrizes e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Mas Matte apenas comentou que tinha estado no lugar errado à hora errada e que tinha sido atacado por um bando de garotos.
— Falou-lhe do emprego que teve em Gotemburgo? — Patrik tivera esperança de saber mais informações sobre a agressão que pudessem explicar a sensação desconfortável que sentia. Não teve essa sorte. Só havia becos sem saída.
— Matte disse que adorava esse emprego, mas que o achava extenuante. Ter de falar com todas aquelas mulheres que tinham sido agredidas e que estavam tão desgraçadas... — a voz sumiu-se e Nathalie virou-se novamente para olhar para a casa.
— Mats contou-lhe mais alguma coisa que devamos saber? Sentia-se ameaçado por alguém em particular?
— Não. Só disse que aquele emprego tinha significado muito para ele. Mas que acabara por desgastá-lo. Matte já não tinha forças para continuar a fazer aquilo. Por isso, depois de ter estado no hospital, decidiu regressar a Fjällbacka.
— Permanentemente, ou só por algum tempo?
— Acho que não sabia. Disse-me que estava a viver um dia de cada vez. A tentar curar o corpo e a alma.
Patrik assentiu e, em seguida, hesitou antes de fazer a pergunta seguinte.
— Contou-lhe se havia alguma mulher na vida dele? Ou mais do que uma?
— Não, e eu também não lhe perguntei. Matte também não me fez perguntas acerca do meu marido. Quem amávamos nesse momento ou quem tínhamos amado no passado não tinha importância naquela noite.
— Compreendo — disse Patrik. — É verdade, o barco desapareceu — acrescentou como quem não quer a coisa.
Nathalie pareceu confusa.
— Que barco?
— O barco de Signe e de Gunnar. O que Mats utilizou para vir até aqui.
— Desapareceu? Quer dizer que foi roubado?
— Não sabemos. Não estava amarrado no cais quando Gunnar foi até lá para ver se estava tudo em ordem.
— Matte deve tê-lo levado para ir para casa — disse Nathalie. — De que outro modo chegaria a Fjällbacka?
— Quer dizer que veio mesmo até cá na lancha. Ninguém lhe terá dado boleia?
— Quem faria isso? — perguntou Nathalie.
— Não sei. Tudo o que sabemos ao certo é que o barco desapareceu e não fazemos ideia de onde possa estar.
— Bem, Matte utilizou-o para vir até aqui e também deve ter regressado a Fjällbacka nele. — Nathalie voltou a passar a mão sobre o cobertor.
Patrik olhou para Erica, que estava estranhamente calada enquanto ouvia a conversa.
— Acho que está na hora de irmos — disse, levantando-se. — Obrigado por ter concordado em encontrar-se conosco, Nathalie. Lamentamos muito a sua perda.
Erica também se levantou.
— Gostei de voltar a ver-te, Nathalie.
— Eu também, Erica — disse Nathalie, abraçando-a desajeitadamente.
— Espero que o teu filho melhore. Telefona-nos se precisares de alguma coisa ou se pudermos ajudar-te de alguma maneira. Se a constipação dele piorar, podemos mandar cá o médico para que o veja.
— Se precisar de alguma coisa, eu telefono — Nathalie seguiu-os até o barco. Patrik ligou o motor e estava prestes a partir quando parou abruptamente.
— Lembra-se se Mats trazia uma pasta?
Nathalie franziu a testa enquanto pensava. Em seguida, o rosto iluminou-se.
— Uma pasta castanha. De pele?
— Exatamente — disse Patrik. — Também desapareceu.
— Esperem aqui. — Nathalie rodou nos calcanhares e correu até a casa. Poucos minutos depois saiu com um objeto na mão. Quando se aproximou do cais, Patrik viu o que era. A pasta. Conteve a respiração.
— Matte esqueceu-se aqui dela. Não lhe mexi. Espero não ter causado nenhum problema por não ter dito nada — disse, ajoelhando-se no cais para poder entregar a pasta a Patrik.
— Não, estamos muito contentes por a ter encontrado. Obrigado. — Patrik já só pensava no que a pasta poderia conter.
Depois de se terem afastado do cais e tomado o rumo de Fjällbacka, Patrik e Erica viraram-se para acenar a Nathalie, que retribuiu o aceno. A sombra do farol já se estendia até o cais. Parecia que ia engoli-la de um trago.
— PODEMOS SAIR E PROCURAR UM POUCO? — Gunnar estava no cais e custava-lhe falar com voz firme.
Peter ergueu os olhos do que estava a fazer e parecia prestes a dizer que não. Mas então acabou por ceder.
— Okay, podemos fazer uma pequena viagem ao largo. Mas hoje é domingo e não posso demorar muito a chegar a casa.
Gunnar permaneceu em silêncio, olhando em frente, os olhos como dois buracos negros. Com um suspiro, Peter entrou na cabina para ligar o motor. Ajudou Gunnar a subir a bordo, deu-lhe um colete salva-vidas e, com mãos treinadas, conduziu o barco para fora do porto. Depois de terem percorrido alguns metros, reduziu a velocidade.
— Por onde quer começar? Nós já procuramos nesta zona mas não vimos nada.
— Não sei — Gunnar espreitou pelo para-brisas. Não podia limitar-se a ficar em casa à espera. Não suportava ver Signe sentada imóvel na sua cadeira na cozinha. Tinha deixado de cozinhar, de fazer bolos e de varrer. Tinha deixado de fazer todas as coisas que faziam dela a pessoa que era. Então e ele? Quem era ele, agora que Matte tinha morrido? Não fazia ideia. A única coisa que sabia com toda certeza era que precisava de algum objetivo naquela vida que sentia ter perdido todo o significado.
Tinha de encontrar o barco. Isso era algo que poderia fazer, algo que o levaria para longe de casa, para longe do silêncio e de tudo o que lhe lembrava o filho, para longe da casa onde Matte tinha crescido. A pegada no cimento do acesso para carros que Gunnar tinha feito quando Matte tinha cinco anos. A marca de dentes bem visível na cômoda do vestíbulo, que ali ficara depois de Matte ter entrado em casa a correr demasiado depressa, escorregando no tapete e batendo com toda a força com os dentes da frente na gaveta, deixando duas mossas inconfundíveis na madeira. Todas essas pequenas coisas que mostravam que Matte ali tinha estado, que Matte tinha sido deles.
— Siga em direção a Dannholmen — disse Gunnar. Na verdade, não fazia ideia de onde deveriam procurar o barco. Não havia nada que lhes dissesse que poderia ser encontrado naquela direção. Mas era um lugar tão bom como qualquer outro para começarem as suas buscas.
— Então, como estão as coisas a correr lá em casa? — perguntou cautelosamente Peter enquanto se concentrava em manobrar o barco. De vez em quando, lançava um olhar em redor para ver se a corrente tinha arrastado a lancha para alguma margem.
— Tudo bem, obrigado — disse Gunnar.
Era mentira, porque as coisas não estavam mesmo nada bem. Mas que haveria de dizer? Como poderia descrever o vazio que preenchia um lar depois da perda de um filho? Às vezes ficava surpreendido ao constatar que ainda respirava. Como poderia continuar a viver e a respirar quando Matte tinha desaparecido para sempre?
— Está tudo bem — repetiu.
Peter limitou-se a assentir. Era assim que todos reagiam. As pessoas não faziam a mais pequena ideia do que dizer. Proferiam as frases obrigatórias, as palavras que eram esperadas delas em tal situação e tentavam ser simpáticas. Ao mesmo tempo, agradeciam à sua boa estrela não terem sido elas a sofrer tal perda. Gratos por os próprios filhos, os seus entes queridos, estarem vivos. Era assim e não havia volta a dar. Era uma reação natural nos seres humanos.
— O barco não podia ter-se soltado das amarras, pois não? — Gunnar não tinha certeza se estava a falar com Peter ou consigo mesmo.
— Não me parece. Se isso tivesse acontecido, teria ido à deriva para o meio dos outros barcos. Não, acho que alguém o deve ter levado. O valor dos barcos de madeira antigos tem vindo a subir, por isso talvez tenham encomendado o serviço a alguém. Se for esse o caso, não vamos encontrá-lo por aqui. Os ladrões costumam levá-los para um sítio onde possam ser içados para fora da água e depois levados num reboque para barcos.
Peter virou à direita, passando por Småsvinningarna.
— Vamos até Dannholmen. Depois vamos ter de dar meia-volta e regressar. Senão a minha família vai começar a ficar preocupada.
— Certo — disse Gunnar. — Podemos procurar mais um bocado amanhã? Peter olhou para Gunnar.
— Claro. Apareça por volta das dez e vamos outra vez procurá-lo. Mas só se não houver nenhuma chamada de emergência.
— Ótimo. Lá estarei — disse Gunnar enquanto continuava a escrutinar as ilhas.
Mette tinha-os convidado para jantar, como era frequente, fingindo que era a vez dela, embora Madeleine nunca retribuísse os convites. Entrava no jogo, mas sentia uma pontada de humilhação porque nunca podia convidar Mette. Imaginava-se a dizer-lhe casualmente: “Queres ir lá jantar a casa hoje à noite com os teus filhos? Não vou fazer nada de extraordinário.” Mas não podia fazê-lo. Não podia dar-se ao luxo de convidar Mette e os três filhos para jantar. A comida mal chegava para ela e para Kevin e Vilda.
— De certeza que não há problema? — perguntou quando se sentava à mesa da movimentada cozinha de Mette.
— Claro que não. Tenho de fazer muita comida para os meus três porquinhos, por isso, mais três não vão fazer nenhuma diferença. — Mette repuxou ternamente o cabelo do filho do meio, Thomas.
— Não faças isso, mamãe — disse Thomas, irritado, mas Madeleine percebia que a criança gostava daqueles mimos.
— Queres um bocadinho de vinho? — Sem esperar pela resposta da vizinha, Mette serviu-lhe um copo de vinho tinto de uma embalagem com uma pequena torneira.
Mette virou-se e mexeu as panelas no fogão. Madeleine bebeu um golo de vinho.
— Estão de olho nos pequenos? — perguntou Mette em voz alta para a outra divisão. Duas vozes responderam “sim”. Os dois filhos mais novos de Mette, uma menina de dez anos e Thomas, que tinha treze, estavam a tomar conta de Kevin e de Vilda, que se pegavam a eles como ímanes. O filho mais velho, um rapaz de dezassete anos, já raramente parava em casa.
— O mais certo é que os meus filhos estejam a chatear os teus — disse Madeleine, bebendo mais um pouco de vinho.
— Nada disso. Eles adoram-nos, sabes muito bem disso. — Mette limpou as mãos à toalha, serviu-se de um copo de vinho e sentou-se frente a Madeleine.
Em termos de aparência, não podia haver duas mulheres menos parecidas, pensou Madeleine, imaginando brevemente as duas como se fosse uma observadora imparcial. Ela era baixa e loura, com uma constituição mais de criança do que de mulher. Mette parecia aquela famosa estátua de pedra representando uma mulher voluptuosa que Madeleine recordava das aulas de Educação Visual. Alta e curvilínea, com um cabelo ruivo, forte, que parecia ter vida própria. Os olhos verdes estavam sempre a brilhar, embora Mette também já tivesse tido contratempos na vida e o mais natural fosse que aquele brilho se tivesse extinguido há muito tempo. Mette parecia ter propensão para escolher homens fracos que rapidamente se tornavam dependentes dela e depois se limitavam a ficar para ali a pairar, cheios de exigências, como filhotes com a boca muito aberta à espera de comida. Mette acabava por fartar-se, como tinha dito a Madeleine. Mas não demorava muito até que o próximo pássaro bebê fosse parar à sua cama. Por isso é que cada um dos filhos tinha um pai diferente e, se não fosse pelo facto de todos terem herdado o cabelo ruivo de Mette, seria impossível dizer que eram irmãos.
— Então, como te estão a correr as coisas, minha querida? — perguntou Mette, fazendo o copo rodar entre os dedos.
Madeleine sentiu-se congelar. Embora Mette lhe tivesse confiado tudo, partilhando abertamente a sua vida e os seus defeitos, Madeleine nunca tinha ousado fazer o mesmo. Estava tão habituada a viver no medo, sempre com receio de dizer demasiado... Por essa razão, mantinha toda a gente a uma distância segura. Ou melhor, quase toda a gente.
Mas, naquele momento, num domingo à noite, na cozinha com Mette, com as panelas a borbulhar no fogão e o vinho a aquecê-la por dentro, não conseguiu conter-se. Começou a contar a sua história. Quando as lágrimas lhe afloraram aos olhos, Mette chegou a cadeira para mais perto dela e abraçou- a. Na segurança do abraço de Mette, contou-lhe tudo. Mesmo sobre ele. Apesar de se ter mudado para outro país, de ter agora outra vida, ele continuava muito perto.
FJÄLLBACKA, 1871
O ÓDIO QUE KARL SENTIA POR ELA PARECIA CRESCER, COMO CRESCIA O BEBÊ QUE EMELIE CARREGAVA NO VENTRE. E AGORA APERCEBIA-SE DE QUE ERA REALMENTE ÓDIO O QUE O MARIDO SENTIA, APESAR DE NÃO COMPREENDER O QUE O MOTIVAVA. QUE TINHA ELA FEITO? SEMPRE QUE OLHAVA PARA ELA, OS OLHOS DE KARL ESTAVAM REPLETOS DE REPUGNÂNCIA. AO MESMO TEMPO, EMELIE PENSAVA CONSEGUIR VER O DESESPERO NO SEU OLHAR. ERA COMO O OLHAR DE UM ANIMAL CAPTURADO. COMO SE TIVESSE SIDO CAÇADO E NÃO CONSEGUISSE LIBERTAR-SE, COMO SE FOSSE TÃO PRISIONEIRO QUANTO ELA. MAS, POR ALGUMA RAZÃO, KARL VIRARA A SUA RAIVA CONTRA ELA, APARENTEMENTE COMO SE A ENCARASSE COMO O SEU CARCEREIRO. A ATITUDE DE JULIAN NÃO MELHORAVA A SITUAÇÃO. O CARÁTER SOMBRIO DAQUELE HOMEM PARECIA INFLUENCIAR KARL, CUJA INDIFERENÇA INICIAL, QUE A PRINCÍPIO PODERIA TER SIDO CONFUNDIDA COM UMA AMABILIDADE DISTRAÍDA, TINHA AGORA DESAPARECIDO COMPLETAMENTE. EMELIE ERA O INIMIGO.
GRADUALMENTE, EMELIE TINHA-SE HABITUADO ÀS PALAVRAS DURAS DE AMBOS. KARL E JULIAN QUEIXAVAM-SE DE TUDO O QUE FAZIA. A COMIDA ESTAVA DEMASIADO QUENTE OU DEMASIADO FRIA. AS PORÇÕES ERAM MUITO PEQUENAS OU EXCESSIVAS. A CASA NÃO ESTAVA SUFICIENTEMENTE LIMPA, E A ROUPA NUNCA ERA LAVADA OU REMENDADA AO GOSTO DELES. NUNCA APROVAVAM NADA. NO ENTANTO, EMELIE PODIA BEM COM AS CRÍTICAS DOS DOIS; DESENVOLVERA UMA ARMADURA CONTRA ELAS. AS AGRESSÕES FÍSICAS, PORÉM, CUSTAVAM-LHE MAIS A ACEITAR. NO PASSADO, KARL NUNCA BATERA, MAS DEPOIS DE EMELIE LHE TER DITO QUE ESTAVA GRÁVIDA, A SUA VIDA NA ILHA MUDOU. FOI FORÇADA A APRENDER A VIVER COM A DOR DAS BOFETADAS E DOS SOCOS. E KARL TAMBÉM PERMITIA QUE JULIAN LHE LEVANTASSE A MÃO. FICOU CHOCADA. NÃO ERA AQUELA A NOTÍCIA QUE TANTO AGUARDAVAM?
SE NÃO FOSSE PELO FILHO QUE ESPERAVA, EMELIE TER-SE-IA ATIRADO AO MAR. O GELO JÁ TINHA DESAPARECIDO HÁ MUITO TEMPO E O VERÃO ESTAVA A CHEGAR AO FIM. SEM OS PONTAPÉS QUE SENTIA NO VENTRE A INSTÁ-LA A CONTINUAR A VIVER, A DAR-LHE FORÇA, EMELIE TER-SE-IA DIRIGIDO SEM HESITAR À ESTREITA COSTA DA ILHA E ENTRADO NA ÁGUA, DEIXANDO-SE LEVAR PELAS PERIGOSAS CORRENTES ATÉ AO HORIZONTE, PARA QUE DEPOIS O MAR A ENGOLISSE. MAS A CRIANÇA DAVA-LHE TANTA ALEGRIA... DEPOIS DE CADA PALAVRA RÍSPIDA, DE CADA GOLPE, EMELIE REFUGIAVA-SE NA VIDA QUE CRESCIA DENTRO DELA. O BEBÊ ERA A SUA TÁBUA DE SALVAÇÃO. A MEMÓRIA DAQUELA NOITE EM QUE A CRIANÇA FORA CONCEBIDA ERA ALGO QUE EMPURRARA PARA UM CANTO LONGÍNQUO DA MENTE. AQUILO JÁ NÃO TINHA QUALQUER IMPORTÂNCIA. A CRIANÇA MOVIA-SE DENTRO DO SEU VENTRE, A SUA CRIANÇA.
DEPOIS DE TER ESFREGADO O SOALHO DE MADEIRA COM SABÃO, EMELIE LEVANTOU-SE COM GRANDE ESFORÇO. TODOS OS TAPETES ESTAVAM PENDURADOS LÁ FORA, A AREJAR COM A BRISA DO MAR. LAVARA-OS BEM LAVADOS NA PRIMAVERA. DURANTE TODO O INVERNO, EMELIE GUARDARA AS CINZAS DA LAREIRA PARA AJUDAR NA LAVAGEM. PORÉM, POR CAUSA DA GRAVIDEZ E DO CANSAÇO QUE SENTIU DURANTE TODA A PRIMAVERA E VERÃO, RESOLVERA SIMPLESMENTE AREJAR OS TAPETES. A CRIANÇA DEVERIA NASCER EM NOVEMBRO. TALVEZ TIVESSE FORÇAS PARA OS LAVAR NA ALTURA DO NATAL, SE TUDO CORRESSE BEM.
EMELIE ALONGOU AS COSTAS DORIDAS E ABRIU A PORTA DA FRENTE. CONTORNOU A CASA E DEPOIS PERMITIU-SE FAZER UMA PAUSA E DESCANSAR POR UM MOMENTO. AQUELE SÍTIO DA ILHA ENCHIA-A DE ORGULHO E ALEGRIA: O JARDIM QUE TINHA TÃO CUIDADOSAMENTE CULTIVADO NAQUELE AMBIENTE AUSTERO E DESOLADO. ANETO, SALSA E CEBOLINHO FORAM CRESCENDO ENTRE AS MALVAS E AS DICENTRAS. O PEQUENO JARDIM ERA TÃO DOLOROSAMENTE BELO NO MEIO DAQUELE CENÁRIO CINZENTO E ESTÉRIL, QUE EMELIE SENTIA UMA PONTADA DE CADA VEZ QUE DOBRAVA A ESQUINA E O AVISTAVA. AQUELE PEQUENO PEDAÇO DE TERRA ERA SEU, TINHA-O CRIADO SOZINHA. TUDO O RESTO NA ILHA PERTENCIA A KARL E A JULIAN. OS DOIS HOMENS ESTAVAM SEMPRE EM MOVIMENTO. QUANDO NÃO ESTAVAM A FAZER OS SEUS TURNOS NO FAROL OU A DORMIR, MARTELAVAM, CONSTRUÍAM E SERRAVAM. NÃO ERAM PREGUIÇOSOS — EMELIE TINHA DE ADMITI-LO —, MAS TODA AQUELA ATIVIDADE TINHA ALGO DE FRENÉTICO, O MODO COMO LUTAVAM RESOLUTAMENTE CONTRA O VENTO E A ÁGUA DO MAR QUE IMPIEDOSAMENTE DESTRUÍAM TUDO O QUE TINHAM ACABADO DE CONSERTAR.
— A PORTA ESTÁ ABERTA. — KARL DOBROU A ESQUINA, ATURDINDO-A DE TAL MODO QUE EMELIE LEVOU A MÃO À BARRIGA. — QUANTAS VEZES JÁ TE DISSE PARA FECHARES A PORTA? É ASSIM TÃO DIFÍCIL DE PERCEBER?
ESTAVA ZANGADO. EMELIE SABIA QUE O MARIDO TINHA ESTADO A FAZER O TURNO DA NOITE NO FAROL E A FADIGA TORNAVA-LHE OS OLHOS MAIS ESCUROS DO QUE ERAM NA REALIDADE. ASSUSTADA, ENCOLHEU-SE DIANTE DO SEU OLHAR.
— DESCULPA, PENSEI QUE...
— PENSASTE? ÉS UMA ESTÚPIDA. NEM SEQUER ÉS CAPAZ DE FECHAR A PORTA. NÃO FAZES MAIS NADA A NÃO SER PERDER TEMPO, EM VEZ DE FAZERES O QUE DEVIAS. JULIAN E EU TRABALHAMOS QUE NEM ESCRAVOS, DIA E NOITE, ENQUANTO TU DESPERDIÇAS O TEU TEMPO NISTO — KARL DEU UM PASSO EM FRENTE E, ANTES QUE EMELIE PUDESSE REAGIR, ARRANCOU PELA RAIZ UMA MALVA QUE ESTAVA A DESPONTAR.
— NÃO, KARL! NÃO FAÇAS ISSO! — EMELIE NÃO PAROU PARA PENSAR. TUDO O QUE PODIA VER ERA O TALO PENDENTE DO PUNHO FECHADO DO MARIDO, COMO SE KARL ESTIVESSE LENTAMENTE A ESTRANGULÁ-LO. AGARROU-LHE O BRAÇO E TENTOU TIRAR-LHE A FLOR.
— QUE ESTÁS TU A FAZER, MULHER? — ROSNOU KARL.
TINHA O ROSTO PÁLIDO E EMELIE VIU AQUELA ESTRANHA MISTURA DE ÓDIO E DESESPERO NOS OLHOS DELE QUANDO KARL ERGUEU A MÃO PARA LHE BATER. ERA COMO SE ELE ESTIVESSE À ESPERA DE QUE O GOLPE FOSSE ALIVIAR O SEU TORMENTO, PORÉM FICAVA SEMPRE DESAPONTADO. SE AO MENOS EMELIE SOUBESSE O MOTIVO DA AGONIA DO MARIDO E PORQUE PARECIA SER ELA A SUA CAUSA.
DESSA VEZ, EM VEZ DE RECUAR, EMELIE ENCHEU-SE DE CORAGEM E VIROU O ROSTO PARA RECEBER A BOFETADA QUE SABIA ESTAR A CAMINHO. MAS A MÃO DE KARL PAROU NO AR. EMELIE OLHOU PARA ELE COM SURPRESA E DEPOIS SEGUIU O OLHAR ESGAZEADO DO MARIDO, QUE ESTAVA CRAVADO NO MAR E EM FJÄLLBACKA, MAIS AO FUNDO.
— VEM AÍ ALGUÉM... — DISSE EMELIE.
JÁ VIVIA NAQUELA ILHA HÁ QUASE UM ANO E NUNCA TINHAM TIDO VISITAS. ALÉM DE KARL E DE JULIAN, EMELIE NÃO TINHA VISTO UMA ALMA DESDE O DIA EM QUE ENTRARA NO BARCO QUE A LEVARIA A GRÅSKÄR.
— PARECE QUE É O PASTOR. — KARL BAIXOU A MÃO QUE SEGURAVA A MALVA. OLHOU PARA A FLOR, COMO QUE A PERGUNTAR-SE COMO LHE TINHA IDO PARAR À MÃO. ENTÃO DEIXOU-A CAIR E LIMPOU NERVOSAMENTE AS MÃOS ÀS CALÇAS.
— POR QUE É QUE HAVERIA O PASTOR DE VIR AQUI?
EMELIE REPAROU NO MEDO NOS OLHOS DO MARIDO E, POR UM MOMENTO, NÃO PÔDE DEIXAR DE TER PRAZER NISSO. MAS DEPOIS AMALDIÇOOU-SE POR SE SENTIR ASSIM. KARL ERA O SEU MARIDO E A BÍBLIA DIZIA QUE A MULHER DEVIA HONRAR O SEU MARIDO. INDEPENDENTEMENTE DO QUE FIZESSE, DE COMO A TRATASSE, EMELIE TINHA DE OBEDECER ÀQUELE MANDAMENTO.
O BARCO QUE TRANSPORTAVA O PASTOR APROXIMOU-SE. QUANDO ESTAVA APENAS A ALGUMAS CENTENAS DE METROS DO CAIS, KARL ERGUEU A MÃO PARA O SAUDAR E DESCEU PARA RECEBER O VISITANTE. O CORAÇÃO DE EMELIE MARTELAVA-LHE O PEITO. SERIA BOM OU MAU O PASTOR TER APARECIDO DE FORMA TÃO INESPERADA? PÔS A MÃO PROTETORA SOBRE A BARRIGA. TAMBÉM SENTIA O MEDO A AGITAR-SE ALI DENTRO.
PATRIK ESTAVA ABORRECIDO POR NÃO TER conseguido fazer muita coisa no dia anterior. Embora fosse domingo, tinha ido à delegacia e elaborado um relatório sobre o barco desaparecido. Depois verificara se fora posto à venda no site Blocket ou nalguma outra lista de anúncios classificados online. Mas não encontrou nada. Mais tarde falou com Paula e pediu-lhe para passar em revista o conteúdo da pasta de Sverin. Dera uma rápida vista de olhos ao interior, só para se certificar de que o computador portátil estava lá, junto com um punhado de documentos. Pela primeira vez tinham tido a sorte do seu lado naquela investigação. A pasta também continha um celular.
Na segunda-feira de manhã, ansioso por fazer progressos nesse mesmo dia, Patrik convocou Martin e depois encaminharam-se os dois para o carro, para fazerem a viagem até Gotemburgo.
— Por onde começamos? — perguntou Martin. Seguia no lugar do morto, como de costume, embora tivesse dado o seu melhor para tentar persuadir Patrik a deixá-lo conduzir.
— Pelos escritórios da Segurança Social, acho eu. Liguei para lá na sexta-feira e disse-lhes que devíamos chegar por volta das dez da manhã.
— Então e o Refúgio? Já tens mais perguntas para fazer à diretora?
— Espero que consigamos descobrir um pouco mais acerca deles na Segurança Social. Com sorte, talvez nos possam dar uma pista.
— E a ex-namorada de Sverin? Ele disse-lhe alguma coisa? — Martin não tirava os olhos da estrada, agarrando-se instintivamente à pega por cima da porta quando Patrik fez uma manobra arriscada para ultrapassar um camião TIR.
— Não. Ficamos na mesma. Mas já foi bom ter-nos dado a pasta, claro. E isso pode vir a revelar-se uma descoberta produtiva, mas não saberemos até Paula examinar todo o conteúdo. Não vamos mexer no portátil, uma vez que não fazemos ideia da senha. Vamos ter de enviá-lo aos peritos informáticos.
— Como é que Nathalie reagiu à morte de Sverin?
— Ficou muito abalada. Vê-se que é uma mulher muito fragilizada. Mas não é uma pessoa fácil de decifrar.
— Não é aqui que saímos? — Martin apontou para uma saída e Patrik praguejou enquanto virava o volante tão bruscamente que o veículo que seguia atrás quase os abalroou.
— Caramba, Patrik — disse Martin, pálido como cera.
Dez minutos mais tarde chegaram ao edifício da Segurança Social e foram imediatamente conduzidos ao gabinete do diretor, que se apresentou como Sven Barkman. Após as cortesias habituais, todos se sentaram a uma mesa de conferências redonda. Barkman era um homem baixo e franzino, com um rosto delgado. Uma pera enfatizava-lhe ainda mais o queixo proeminente. Patrik imaginou imediatamente o Professor Girassol de As Aventuras de Tintin, pois a semelhança era impressionante. Mas a voz do homem não correspondia ao seu aspeto, o que surpreendeu os dois agentes. Barkman tinha uma voz grave e profunda que parecia encher a sala. Poderia ter sido um bom cantor, e, quando Patrik olhou em redor, confirmou essa impressão. Uma série de fotografias, certificados e prêmios testemunhavam que...
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