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Series & Trilogias Literarias
Eu podia ouvir o rufar dos tambores. Mas não via nada além dos laços no corpete da mulher em pé à minha frente bloqueando a minha visão do cadafalso. Estava nessa corte fazia mais de um ano e havia presenciado centenas de festividades, mas nunca uma igual a essa.
Afastando-me um pouco para o lado e esticando o pescoço, consegui ver o condenado, acompanhado do padre, caminhando lentamente da Torre para o gramado, onde a plataforma de madeira o aguardava, o bloco de madeira colocado no centro, o carrasco vestido para o trabalho, a camisa sem mangas e o capuz preto sobre a cabeça. Parecia mais um espetáculo teatral amador do que um evento de verdade, e eu assistia como se a um entretimento da corte. O rei, sentado em seu trono, parecia distraído, como se revisse mentalmente seu discurso de perdão. Atrás dele, em pé, estava meu marido havia um ano, William Carey, meu irmão, George, e meu pai, Sir Thomas Bolena, todos muito sérios. Contraí meus pés em meus sapatos de seda e torci para o rei se apressar e conceder logo a clemência, de modo que todos pudéssemos comer o desjejum. Eu tinha somente 13 anos, e estava sempre com fome.
O duque de Buckinghamshire, lá longe, no cadafalso, tirou seu casaco grosso. Era um parente próximo o bastante para que eu o chamasse de tio. Viera ao meu casamento e me dera uma pulseira de ouro. Meu pai me disse que ele ofendera o rei de mil maneiras: tinha sangue real nas veias e mantinha um séquito grande demais de homens armados para desconforto de um rei ainda não perfeitamente seguro em seu trono; e o pior de tudo é que supostamente teria dito que o rei não tinha nenhum filho varão, que talvez nunca viesse a ter, e que provavelmente morreria sem um filho para sucedê-lo no trono.
Um pensamento desse tipo não deveria ser expresso em voz alta. O rei, a corte, a região toda sabia que um menino deveria nascer da rainha, e nascer logo. Insinuar o contrário era dar o primeiro passo no caminho que levava aos degraus de madeira do cadafalso, os quais o duque, meu tio, agora subia com firmeza, sem medo. Um bom cortesão nunca se refere a verdades intragáveis. A vida de uma corte tem de ser sempre alegre.
Tio Stafford foi à frente do tablado para dizer suas últimas palavras. Eu estava longe demais para ouvi-lo, e, de qualquer maneira, estava observando o rei, que esperava a deixa para avançar e oferecer seu perdão real. Esse homem no cadafalso, sob o sol do começo da manhã, tinha sido parceiro do rei no tênis, seu rival em torneios, seu amigo em centenas de rodadas de bebida e no jogo. Eram camaradas desde meninos. O rei estava lhe dando uma lição, uma lição pública eficaz, mas em seguida o perdoaria e todos poderíamos comer o desjejum.
A pequena figura ao longe virou-se para o seu confessor. Curvou a cabeça para a bênção e beijou o rosário. Ajoelhou-se diante do cepo e segurou-se nele com as duas mãos. Eu me perguntei como seria pôr a bochecha sobre a madeira encerada, lisa, sentir o cheiro do vento quente soprando do rio, ouvir o grito das gaivotas lá em cima. Mesmo sabendo que era uma encenação e não a realidade, devia ser estranho para o meu tio abaixar a cabeça e saber que o carrasco estava em pé atrás dele.
O carrasco ergueu o machado. Olhei para o rei. Estava atrasando demais a sua intervenção. Voltei a olhar para o tablado. Meu tio, cabeça abaixada, os braços abertos, sinal de seu consentimento, sinal de que o machado podia baixar. Olhei novamente para o rei, ele deveria se levantar agora. Mas continuou sentado, o belo rosto com a expressão severa. E enquanto eu o olhava, houve outro rufar de tambores subitamente silenciado, e então o baque surdo do machado, uma vez, de novo, e uma terceira vez: o som de cortar lenha. Incrédula, vi a cabeça de meu tio quicar na palha e um esguicho escarlate de sangue jorrar do pescoço estranhamente atarracado. O carrasco de capuz preto pôs seu grande instrumento de trabalho manchado de lado e levantou a cabeça da vítima pelo cabelo espesso encaracolado, para que todos víssemos a coisa estranha parecida com uma máscara: preta com a venda da testa ao nariz, e os dentes expostos em um último sorriso desafiador.
O rei levantou-se devagar e eu inocentemente pensei: “Meu Deus, como isso vai ser terrivelmente constrangedor. Agora é tarde demais. Deu tudo errado. Ele perdeu o momento certo de falar.”
Mas eu estava enganada. Não era tarde demais, ele não perdera o momento certo. Ele quisera que meu tio morresse diante da corte para que todos soubessem que havia um único rei, e que esse era Henrique. Só podia haver um único rei, Henrique. E haveria um filho varão nascido desse rei — e até mesmo insinuar o contrário significava uma morte desonrosa.
A corte retornou calmamente ao Palácio de Westminster em três barcaças remadas rio acima. Os homens na margem tiravam o chapéu e se ajoelhavam quando a barcaça real passava veloz com galhardetes agitados pelo vento e panos vistosos. Eu estava na segunda barcaça com as mulheres da corte, a embarcação da rainha. Minha mãe estava sentada ao meu lado. Em um raro momento de interesse, olhou-me de relance e comentou:
— Você está muito pálida, Maria, está enjoada?
— Não achei que ele seria executado — eu disse. — Pensei que o rei o perdoaria.
Apesar do chiado do barco e do ruído dos remadores, minha mãe inclinou-se e aproximou sua boca de minha orelha para garantir que ninguém nos ouviria.
— Então você é uma boba — disse ela, abruptamente. — E uma boba por expressar isso. Observe e aprenda, Maria. Não há lugar para erros na corte.
Primavera, 1522
— Irei à França amanhã e trarei sua irmã Ana para casa — disse-me meu pai na escadaria do Palácio de Westminster. — Ela vai ocupar um posto na corte da rainha Maria Tudor quando retornar à Inglaterra.
— Pensei que ela fosse ficar na França — disse. — Achei que se casaria com um conde francês ou algo assim.
Ele sacudiu a cabeça.
— Temos outros planos para ela.
Eu sabia que não adiantava perguntar quais eram esses planos. Teria de esperar e ver. Eu tinha o maior medo de que arranjassem um casamento melhor para ela do que o meu, de ter de seguir a bainha de seu vestido enquanto ela andava altiva à frente pelo resto da minha vida.
— Não fique com essa cara carrancuda — disse meu pai rispidamente.
Imediatamente, sorri-lhe meu sorriso bajulador.
— É claro, papai — disse obedientemente.
Ele balançou a cabeça aprovando, e curvei-me em reverência quando se foi. Ergui o corpo e fui devagar para o quarto de meu marido. Havia um pequeno espelho na parede e fiquei olhando minha imagem nele refletida. “Vai ficar tudo bem”, sussurrei para mim mesma. “Sou uma Bolena, o que não é pouca coisa, e minha mãe nasceu uma Howard, uma das famílias mais importantes da região. Sou uma Howard, sou uma Bolena”, mordi o lábio. “Mas ela também é.”
Sorri meu sorriso adulador e o bonito rosto refletido me sorriu de volta. “Sou a Bolena mais nova, mas não a menos importante. Sou casada com William Carey, um homem merecedor dos favores do rei. Sou a dama mais nova e a favorita da rainha. Ninguém vai tirar isso de mim. Nem mesmo ela.”
Ana e meu pai se atrasaram por causa das tormentas da primavera e me vi torcendo, puerilmente, para que a embarcação naufragasse e ela se afogasse. Ao pensar na sua morte, sentia uma angústia confusa, uma aflição genuína misturada com alegria. Não existia um mundo para mim sem Ana, e não havia mundo suficiente para nós duas.
De qualquer jeito, ela chegou sã e salva. Vi meu pai caminhando com ela da plataforma de desembarque para a trilha de cascalhos que levava ao palácio. Embora à janela do primeiro andar, podia ver o ondular de seu vestido, o corte elegante de seu manto, e um momento de pura inveja me dominou ao ver como se enrolava em seu corpo. Esperei até ela ficar fora de vista e corri para o meu assento na sala de audiências da rainha.
Planejei que ela deveria primeiro me ver muito à vontade nas salas ricamente atapetadas da rainha, e só depois eu me levantaria e a cumprimentaria, com maneiras adultas e graciosas. Mas quando as portas se abriram e ela entrou, fui tomada por uma afobação súbita de alegria e me ouvi gritando “Ana!” e correndo ao seu encontro, minha saia farfalhando. E Ana, que havia chegado com a sua postura altiva e dardejando seu olhar arrogante por toda parte, de repente deixou de ser a grande dama de 15 anos e abriu os braços para mim.
— Você cresceu — disse ela esbaforida, me abraçando forte, o rosto contra o meu.
— Consegui saltos realmente altos. — Aspirei seu perfume familiar. Sabonete e essência de rosas em sua pele quente, alfazema em suas roupas.
— Você está bem?
— Sim. E você?
— Bien sur! Como está indo? O casamento?
— Nada mal. Roupas bonitas.
— E ele?
— Muito importante. Sempre com o rei, é muito considerado.
— Você fez?
— Sim, há séculos.
— Doeu?
— Muito.
Afastou-se para ver minha expressão.
— Não demais — eu disse, mudando. — Ele é gentil. Sempre me dá vinho. É simplesmente chocante, verdade.
Seu escárnio se desfez e deu um risinho, seus olhos pestanejando.
— Como assim, chocante?
— Ele mija no urinol, onde eu possa ver!
Ela caiu na risada.
— Não!
— Bem, meninas — disse meu pai chegando por trás de Ana. — Maria, leve Ana e a apresente à rainha.
Imediatamente me virei e a conduzi pelo grupo de damas de honra, até onde estava a rainha, ereta em sua cadeira ao lado da lareira.
— Ela é severa — disse a Ana. — Não é como na França.
Catarina de Aragão avaliou Ana com um daqueles movimentos rápidos de seus olhos azul-claros e senti uma pontada de medo de que ela preferisse minha irmã a mim.
Ana fez uma mesura francesa perfeita e se ergueu como se o palácio lhe pertencesse. Falou com uma voz ondulante, com um sotaque sedutor, cada gesto seu sendo o gesto da corte francesa. Notei, com alegria, a reação gélida da rainha às maneiras elegantes de Ana. Levei-a para perto da janela.
— Ela odeia os franceses — eu disse. — Nunca a aceitará à sua volta se continuar assim.
Ana deu de ombros.
— Eles são os mais elegantes. Quer ela queira, quer não. Quem mais?
— Uma espanhola? — propus. — Se quiser fingir ser outra pessoa.
Ana riu.
— E usar aqueles capuzes? Parecem andar com um telhado enfiado na cabeça!
— Psiuuu! — eu disse, repreendendo-a. — Ela é uma bela mulher. A mais bela da Europa.
— Ela é uma velha — disse Ana cruelmente. — Veste-se como uma velha, com as roupas mais feias da Europa, e é da nação mais estúpida da Europa. Não temos tempo para a Espanha.
— Quem somos “nós”? — perguntei friamente. — Não os ingleses, por certo.
— Les Français! — replicou irritada. — Bien sur! Agora, sou só francesa.
— Nasceu e se criou na Inglaterra, como George e eu — respondi com firmeza. — E fui educada na corte francesa tanto como você. Por que sempre quer bancar a diferente?
— Porque todos têm de fazer alguma coisa.
— O que quer dizer?
— Toda mulher tem que ter algo que a distinga, que atraia os olhares, que a faça se tornar o centro das atenções. Vou ser francesa.
— Então pretende simular ser o que não é — repliquei, reprovando-a.
Seus olhos cintilaram para mim e me avaliaram de uma maneira que somente Ana sabia fazer.
— Não finjo nem mais nem menos do que você — disse calmamente. — Minha irmãzinha, minha irmã preciosa, minha irmã querida.
Olhei nos seus olhos, meu olhar mais claro em seus olhos escuros, e percebi que eu sorria o seu sorriso, que ela era um espelho sombrio para mim.
— Oh, é isso — eu disse, ainda me recusando a admitir a insinuação. — Oh, é isso.
— Exatamente — replicou ela. — Serei obscura, francesa, elegante e difícil, e você será doce, franca, inglesa e justa. Que par não formaremos. Que homem poderá resistir a nós duas?
Ri. Ela sempre conseguia me fazer rir. Olhei para baixo pela janela e vi o grupo de caçadores do rei retornando ao pátio do estábulo.
— Esse é o rei? Ele é tão bonito quanto dizem? — perguntou Ana.
— Ele é maravilhoso. É maravilhoso mesmo. Dança, monta e... oh!... nem sei como dizer!
— Ele está vindo para cá?
— É provável. Ele sempre vem vê-la.
Ana relanceou os olhos, com desprezo, para onde a rainha estava costurando com suas damas de companhia.
— Não imagino por quê.
— Porque ele a ama — respondi. — É uma linda história de amor. Ela se casou com o irmão dele, que morreu muito jovem, e então ela ficou sem saber o que fazer, aonde ir, e ele a tomou e a fez sua mulher e sua rainha. É uma história linda e ele continua a amá-la.
Ana ergueu as sobrancelhas formando um arco perfeito e relanceou os olhos pela sala. Todas as mulheres a serviço da rainha tinham escutado o grupo de caça retornando, e haviam ajeitado as saias de seus vestidos, e se arrumado nas cadeiras de modo a formarem um pequeno quadro para ser visto da entrada quando a porta fosse aberta e Henrique, o rei, no limiar, risse impetuosamente, como fazem os jovens.
— Vim surpreendê-las, pegá-las em flagrante!
— Como estamos surpresas! — disse a rainha carinhosamente. — E que prazer!
Os acompanhantes e amigos do rei o seguiram. Meu irmão George foi o primeiro, procurando, ao chegar no limiar da porta, Ana, mas reprimindo o prazer que sentia por trás de sua bela face aduladora. Fez uma mesura à rainha.
— Majestade! — E aproximou o rosto de seus dedos. — Passei o dia ao sol, mas só agora estou deslumbrado.
Ela sorriu, um sorriso ligeiro, cortês, enquanto seus olhos desciam para a sua cabeça baixa, seu cabelo preto cacheado.
— Pode cumprimentar sua irmã.
— Maria está aqui? — perguntou George com indiferença, como se não nos tivesse visto.
— Sua outra irmã, Ana — a rainha o corrigiu. Com um pequeno gesto de sua mão, cheia de anéis, fez sinal para que nós duas avançássemos. George lançou-nos uma reverência rápida sem sair de perto do trono.
— Ela mudou muito? — perguntou a rainha.
George sorriu.
— Espero que mude mais diante de um modelo como Sua Majestade.
A rainha deu uma risadinha.
— Encantador — disse ela agradecida, e fez sinal para que fosse até nós.
— Olá, Srta. Bela — disse ele a Ana. — Olá, Sra. Bela — disse para mim.
Ana olhou-o sob suas pestanas escuras.
— Gostaria de poder abraçá-lo — disse ela.
— Sairemos assim que der — decretou George. — Parece bem, Ana Maria.
— Estou bem — disse ela. — E você?
— Nunca estive melhor.
— Como é o marido da pequena Maria? — perguntou ela com curiosidade, observando William entrar e fazer uma mesura à rainha.
— Bisneto do terceiro conde de Somerset, e muito considerado pelo rei. — George contou de bom grado a única coisa que interessava: sua ascendência e sua proximidade com o trono. — Ela fez bem. Sabia que foi trazida de volta para se casar, Ana?
— Papai não disse com quem.
— Acho que irá para Ormonde — disse George.
— Uma condessa — disse Ana sorrindo triunfante para mim.
— Só que irlandesa — repliquei no mesmo instante.
Meu marido saiu detrás da cadeira da rainha, nos viu e ergueu uma sobrancelha diante do olhar intenso e provocador de Ana. O rei sentou-se ao lado da rainha e olhou em volta da sala.
— A irmã de minha querida Maria Carey veio para juntar-se a nós — disse a rainha. — Esta é Ana Bolena.
— Irmã de George? — perguntou o rei.
Meu irmão fez uma reverência.
— Sim, Majestade.
O rei sorriu para Ana. Ela fez uma reverência, a cabeça ereta e um ligeiro sorriso desafiador nos lábios. O rei não se sentiu atraído, gostava de mulheres fáceis, gostava de mulheres sorridentes. Não gostava de mulheres que o encaravam com olhos negros desafiadores.
— Está feliz por estar de novo com a sua irmã? — perguntou-me ele.
Fiz uma reverência acentuada e me ergui enrubescendo ligeiramente.
— É claro, Majestade — repliquei, com meiguice. — Que garota não ansiaria pela companhia de uma irmã como Ana?
Suas sobrancelhas se contraíram ligeiramente. Ele preferia o humor obsceno franco dos homens à sagacidade mordaz das mulheres. Olhou para mim e em seguida para a expressão levemente zombeteira de Ana, percebeu a piada e caiu na gargalhada. Estalou os dedos e estendeu a mão para mim.
— Não se preocupe, querida — disse ele. — Ninguém consegue eclipsar a noiva nos primeiros anos de beatitude do casamento. E tanto Carey quanto eu temos uma preferência pelas louras.
Todos riram, principalmente Ana, que tinha o cabelo escuro, e a rainha, cujo cabelo castanho-avermelhado tinha-se descolorido para castanho e grisalho. Seriam loucos se não tivessem rido da piada do rei. E eu também ri, com mais alegria do que eles, poderia afirmar.
Os músicos tocaram o acorde de abertura, e Henrique me puxou para si.
— Você é uma garota muito bonita — disse ele. — Carey me disse que gosta tanto de uma noiva jovem que só se deita com virgens de doze anos.
Foi difícil manter o queixo erguido e o sorriso nos lábios. Giramos na dança e ele sorriu para mim.
— Ele é um homem de sorte — disse cortesmente.
— Tem sorte de ter o seu favor — surpreendi-me, titubeando com o elogio.
— Tem mais sorte por ter o seu, eu diria! — e deu uma gargalhada repentina. Então, giramos, e vi o olhar rápido de aprovação de meu irmão e o que foi ainda mais agradável: o olhar invejoso de Ana quando o rei da Inglaterra passou por ela comigo em seus braços.
Ana penetrou furtivamente na rotina da corte inglesa e aguardou seu casamento. Ainda não conhecera seu futuro marido, e parecia que os argumentos sobre o dote e as cláusulas do contrato nunca se definiriam. Nem mesmo a influência do cardeal Wolsey, que tinha o dedo nesta como em qualquer outra torta na padaria que era a Inglaterra, conseguiu acelerar um acordo. Nesse meio-tempo, ela se divertia elegantemente como uma francesa, servia à irmã do rei com uma graça desinteressada, e gastava horas, diariamente, em fofocas, cavalgando e jogando comigo e com George. Tínhamos o mesmo gosto e a diferença de idade era pequena. Eu era o bebê de 14 anos, em relação aos 15 anos de Ana e os 19 anos de George. Nosso parentesco era o mais próximo, e ainda assim éramos quase estranhos. Eu tinha estado na corte francesa com Ana enquanto George aprendia seu ofício de cortesão na Inglaterra. Agora, reunidos, passamos a ser conhecidos como os três Bolena, e o rei, com frequência, quando estava em seus aposentos privados, nos chamava, e alguém era mandado correr o castelo de uma ponta à outra para nos buscar.
A nossa tarefa primordial era intensificar os muitos entretenimentos do rei: torneios, tênis, equitação, caça com falcões, dança. Ele gostava de viver em perene excitação e cabia a nós assegurar que nunca se entediasse. Mas às vezes, muito raramente, na hora quieta antes do jantar, ou se a chuva impedisse que caçasse, ia sozinho aos aposentos da rainha. Ela, então, largava a costura ou a leitura e nos dispensava com apenas uma palavra.
Se eu me demorasse, poderia vê-la sorrir para ele, de uma maneira como nunca sorria para ninguém, nem mesmo para a sua filha, a princesa Mary. E uma vez, quando entrei sem saber que o rei estava lá, o peguei sentado a seus pés como um amante, com a cabeça em seu colo, enquanto ela afastava carinhosamente seus cachos ruivos dourados de sua testa e os enrolava nos dedos, em que cintilavam o mesmo brilho dos anéis que ele lhe dera quando ainda era uma jovem princesa com o cabelo tão lustroso quanto o dele, e quando se tinha casado com ela contra a vontade de todos.
Saí na ponta dos pés, sem que me vissem. Era tão raro poderem ficar a sós que não quis quebrar o encanto. Fui procurar Ana. Estava caminhando no jardim frio com George, um ramo de galanto nas mãos e o manto bem enrolado em volta do corpo.
— O rei está com a rainha — disse ao me unir a eles. — Estão sozinhos.
Ana ergueu uma sobrancelha.
— Na cama? — perguntou curiosa.
Corei.
— É claro que não, são 2 da tarde.
Ana sorriu para mim.
— Deve ser uma esposa feliz se acha que não pode ir para a cama antes de a noite cair.
George estendeu seu outro braço para mim.
— Ela é uma esposa feliz — disse ele, por mim. — William estava dizendo ao rei que nunca tinha conhecido uma garota tão doce. Mas o que eles estavam fazendo, Maria?
— Estavam apenas sentados juntos — repliquei. Senti que não queria descrever a cena a Ana.
— Não vai ser desse jeito que vai gerar um filho — disse Ana asperamente.
— Silêncio! — George e eu dissemos ao mesmo tempo. Nós três nos aproximamos e baixamos a voz.
— Ela já deve estar perdendo a esperança — disse George. — Qual a sua idade agora? Trinta e oito? Trinta e nove?
— Só 37 — respondi com indignação.
— Ela ainda tem as regras mensais?
— Oh, George!
— Sim, tem — replicou Ana de maneira prosaica. — Mas de pouco lhe adiantam. A culpa é dela. Não se pode culpar o rei com o seu bastardo de Bessie Blount aprendendo a montar seu pônei.
— Ainda tem muito tempo — eu disse, defensivamente.
— Tempo para ela morrer e ele se casar de novo? — disse Ana pensativamente. — Sim. E ela não é forte, é?
— Ana! — pela primeira vez minha aversão por ela foi genuína. — Isso é imoral.
George olhou em volta mais uma vez para se certificar de que não havia ninguém por perto. Duas garotas Seymour caminhavam com a mãe, mas não lhes prestamos atenção. Sua família era a nossa principal rival, gostávamos de fingir que não os víamos.
— É imoral, mas é verdadeiro — disse ela insensivelmente. — Quem será o próximo rei, se ele não tiver um filho?
— A princesa Mary pode se casar — sugeri.
— Um príncipe estrangeiro para governar a Inglaterra? Isso nunca vai acontecer — disse George. — E não vamos suportar outra guerra pelo trono.
— A princesa Mary poderia se tornar rainha por direito, e não se casar — eu disse sem pensar. — Poderia ela própria governar.
Ana deu um suspiro de descrédito, sua respiração enfumaçando o ar frio.
— Oh, sim — disse com ironia. — Poderia montar com uma perna de cada lado e aprender a combater. Uma garota não pode governar um país como este, os grandes senhores a comeriam viva.
Paramos diante da fonte que ficava no centro do jardim. Ana, com a sua graça bem treinada, sentou-se na borda da fonte e olhou a água, alguns peixes dourados nadaram esperançosos na sua direção; ela tirou a luva bordada, e chapinhou a água com os dedos longos. Aproximaram-se, pequenas bocas abrindo-se para mordiscar o ar. George e eu a observamos enquanto ela observava sua própria imagem encrespada.
— O rei pensa nisso? — perguntou à sua imagem refletida.
— Constantemente — respondeu George. — Não há nada mais importante no mundo. Acho que é capaz de legitimar o menino de Bessie Blount e de declará-lo seu herdeiro se não houver descendentes da rainha.
— Um bastardo no trono?
— Ele não foi batizado Henrique Fitzroy à toa — replicou George. — Ele é reconhecido como o filho único do rei. Se Henrique viver tempo suficiente para manter o país seguro para ele, se ele conseguir com que os Seymour e nós, os Howard, concordemos, se Wolsey fizer com que a igreja o apoie e as potências estrangeiras... o que o deteria?
— Um menino, e é um bastardo — disse Ana pensativamente. — Uma menina de 6 anos, uma rainha idosa e um rei na flor da idade — ergueu os olhos para nós dois, desviando o olhar de seu próprio rosto pálido refletido na água. — O que vai acontecer? — perguntou. — Alguma coisa tem de acontecer. O que será?
O cardeal Wolsey enviou uma mensagem à rainha nos convidando para participar de um baile de máscaras, na terça-feira de carnaval, que ele ofereceria em sua casa, York Place. A rainha pediu que eu lesse a carta e minha voz tremeu de excitação com as palavras: um grande baile de máscaras, uma fortaleza chamada Chateau Vert e cinco damas para dançar com os cinco cavaleiros que sitiariam o forte.
— Oh! Majestade... — comecei a dizer e, então, me calei.
— Oh! Majestade, o quê?
— Só estava pensando se eu poderia ir — repliquei humildemente. — Assistir às folias.
— Acho que estava pensando em um pouco mais do que isso, não? — me perguntou com um brilho nos olhos.
— Estava pensando se não poderia ser uma das damas — admiti. — Parece que vai ser maravilhoso.
— Sim, poderá ser — disse ela. — Quantas damas o cardeal me pede?
— Cinco — respondi com calma. Pelo canto do olho, vi Ana se recostar e fechar os olhos por um instante. Eu sabia exatamente o que ela estava fazendo. Podia escutar sua voz mentalmente, tão alto quanto se estivesse gritando: “Me escolha! Me escolha! Me escolha!”
Deu certo.
— A Srta. Ana Bolena — disse a rainha pensativamente —, a rainha Maria da França, a condessa de Devon, Jane Parker, e você, Maria.
Eu e Ana trocamos um rápido olhar. Seríamos um quinteto estranhamente agrupado: a tia do rei, sua irmã a rainha Maria, a herdeira Jane Parker que provavelmente seria nossa cunhada, se o seu pai e o nosso concordassem com o seu dote, e nós duas.
— Iremos de verde? — perguntou Ana.
A rainha sorriu para ela.
— Oh, acho que sim — replicou. — Maria, por que não escreve ao cardeal dizendo que teremos muito prazer em comparecer, e pedindo que mande um mestre de folia para que possamos escolher as fantasias e planejar nossas danças?
— Eu faço isso — Ana levantou-se de sua cadeira e foi até a mesa onde estavam a pena, a tinta e o papel. — A caligrafia de Maria é tão ilegível que ele pode achar que enviamos uma recusa.
A rainha riu.
— Ah, a erudita francesa — disse amavelmente. — Então você escreverá ao cardeal, Srta. Bolena, em seu belo francês, ou deverá lhe escrever em latim?
O olhar de Ana não se alterou.
— Como preferir, Majestade — disse ela sem titubear. — Sou razoavelmente fluente nos dois.
— Diga-lhe que estamos ansiosas para desempenhar o nosso papel em seu Chateau Vert — disse a rainha suavemente. — É uma pena que não escreva em espanhol.
A chegada do mestre de folias, que veio nos ensinar os passos da dança, foi o sinal para a batalha selvagem combatida com sorrisos e as palavras mais doces para decidir quem representaria o quê na mascarada. No fim, a própria rainha interferiu e distribuiu os papéis sem mais discussões. Deu-me o papel de Gentileza; a irmã do rei, a rainha Maria, recebeu o melhor papel, o da Beleza; Jane Parker foi Constância.
— Bem, ela realmente se gruda — cochichou Ana para mim.
Ana recebeu o da Perseverança.
— Mostra o que ela pensa de você — cochichei de volta. Ana demonstrou humor e deu um risinho.
Seríamos atacadas por índias — na verdade, coristas da capela real — até sermos salvas pelo rei e seus amigos. Fomos avisadas de que o rei estaria disfarçado e que deveríamos tomar cuidado em não revelar o truque óbvio de uma máscara dourada amarrada em uma cabeça dourada, mais alta do que todos na sala.
Acabou sendo uma brincadeira maravilhosa, muito mais divertida do que eu esperava, muito mais um campo de jogos do que uma dança. George atirou pétalas de rosas em mim e se encharcou de água de rosas. As coristas não passavam de meninos que ficaram superexcitados e atacaram os cavaleiros, sendo balançados no alto e girados, depois largados no chão, tontos e rindo divertidos. Quando nós, as damas, saímos do castelo e dançamos com os cavaleiros misteriosos, foi o cavaleiro mais alto que veio dançar comigo, o rei em pessoa, e eu ainda sem fôlego por causa da batalha com George, e com pétalas de rosas no cabelo e frutas cristalizadas caindo das dobras de meu vestido, me vi rindo e lhe dando a mão, dançando com ele como se fosse um homem comum e eu não passasse de uma criada de cozinha em uma folia rural.
Quando o sinal para tirar as máscaras seria dado, o rei gritou:
— Vamos continuar! Vamos dançar um pouco mais! — e em vez de se virar e tomar outro par, me conduziu de novo, em uma dança campestre, em que ficávamos de mãos dadas, e vi seus olhos brilhando pela fresta de sua máscara dourada. Despreocupada e rindo, sorri de volta e deixei essa aprovação radiante penetrar minha pele.
— Invejo seu marido que, hoje à noite, quando seu vestido se soltar, será coberto de doces — disse ele à meia-voz, quando ficamos lado a lado, na dança, observando o casal no centro do círculo.
Não me ocorreu nenhuma resposta espirituosa, esses não eram os elogios formais de quando se fazia a corte. A imagem de um marido sendo coberto de doces era excessivamente doméstica, e excessivamente erótica.
— É claro que não tem o que invejar — repliquei. — É claro que tem tudo.
— Por que seria assim? — perguntou ele.
— Porque é o rei — falei, esquecendo-me de que não poderia reconhecê-lo em seu disfarce. — O rei de Chateau Vert — completei. — Rei por um dia. O rei Henrique é que deveria invejá-lo, pois derrubou um cerco em uma única tarde.
— E o que acha do rei Henrique?
Lancei-lhe meu olhar inocente.
— É o maior rei que este país já teve. É uma honra estar em sua corte e um privilégio estar perto dele.
— Você o amaria como homem?
Baixei os olhos e corei.
— Não ousaria pensar nisso. Ele nunca sequer me olhou.
— Oh, olhou sim — disse o rei com firmeza. — Pode ter certeza disso. E se ele olhar mais de uma vez, Srta. Gentileza, faria jus a seu nome e seria gentil com ele?
— Maje... — mordi o lábio e me impedi de dizer “Majestade”. Olhei em volta procurando Ana. Eu a queria, mais do que qualquer outra coisa, ao meu lado, e sua sabedoria a meu serviço.
— Foi chamada de Gentileza — lembrou-me ele.
Sorri, espreitando por minha máscara dourada.
— Sim — eu disse. — E acho que deveria ser gentil.
Os músicos encerraram a dança e aguardaram as ordens do rei.
— Tirar as máscaras! — disse e tirou a sua. Vi o rei da Inglaterra, arfei ligeira e esplendidamente, e vacilei.
— Ela está desmaiando! — gritou George. Foi perfeito. Caí nos braços do rei enquanto Ana, rápida como uma serpente, retirou minha máscara e — de maneira brilhante — arrancou o ornamento de minha cabeça de modo que meu cabelo dourado caísse como uma torrente sobre o braço do rei.
Abri os olhos, seu rosto estava bem próximo. Senti o perfume em seu cabelo, seu hálito em minha bochecha, observei seus lábios, ele estava perto o bastante para me beijar.
— Tem de ser gentil comigo — me lembrou.
— Você é o rei... — eu disse incrédula.
— E você prometeu ser gentil comigo.
— Não sabia que era Sua Majestade.
Ergueu-me delicadamente e me levou à janela. Abriu-a ele mesmo e o ar frio entrou. Joguei a cabeça e deixei meu cabelo agitar-se na corrente de ar.
— Desmaiou por medo? — perguntou ele, baixinho.
Olhei para baixo.
— Por prazer — sussurrei, tão doce quanto uma virgem na confissão.
Curvou a cabeça, beijou minha mão e, então, se levantou.
— Agora, vamos jantar! — gritou.
Olhei para Ana. Ela estava tirando sua máscara e me observando com uma expressão astuta, com o olhar Bolena, o olhar Howard que diz: o que aconteceu? Como posso tirar vantagem disso? Era como se sob sua máscara dourada houvesse outra bela máscara de pele, e só embaixo dessa estivesse a mulher de verdade. Quando olhei de volta para ela, me lançou um sorriso discreto, secreto.
O rei deu o braço à rainha, ela se levantou de sua cadeira, contente como se tivesse gostado de observar seu marido flertar comigo. Mas quando ele se virou para conduzi-la, ela parou e seus olhos azuis me encararam demorada e duramente, como se se despedissem de uma amiga.
— Espero que se recupere logo de seu desmaio, Sra. Carey — disse gentilmente. — Talvez devesse ir para seus aposentos.
— Acho que ela está tonta por falta de comida — interveio George, rapidamente. — Posso levá-la para jantar?
Ana adiantou-se.
— O rei assustou-a ao se revelar. Ninguém pensou nem por um instante que era Sua Majestade!
O rei riu deliciado, e a corte riu com ele. Só a rainha percebeu como nós três tínhamos contornado sua ordem de modo que, apesar de seu desejo, eu ficasse para jantar. Ela avaliou a força de nós três. Eu não era nenhuma Bessy Blount, que não tinha ninguém. Era uma Bolena, e os Bolena trabalhavam juntos.
— Então, venha e jante conosco, Maria — disse ela. As palavras convidavam, mas não havia nenhum afeto nelas.
Não havia lugar marcado, os cavaleiros do Chateau Vert e as damas, todos misturados informalmente ao redor da mesa. O cardeal Wolsey, na qualidade de anfitrião, sentou-se à frente do rei com a rainha como o terceiro ponto na mesa, e o resto de nós se espalhou como quis. George me pôs ao seu lado e Ana chamou meu marido para o seu, e distraiu-o, enquanto o rei, no lado oposto ao meu, me olhava fixo, e eu, prudentemente, olhava para outro lado. À direita de Ana estava Henry Percy de Northumberland, do outro lado de George estava Jane Parker, me observando atentamente, como se tentando descobrir o truque para ser uma garota desejável.
Comi pouco, apesar de haver empadões, carnes de qualidade e caça. Comi um pouco de salada, o prato preferido da rainha, bebi vinho e água. Meu pai veio à mesa durante a refeição e se sentou ao lado de minha mãe, que cochichou algo rapidamente em seu ouvido e percebi seu olhar passar rápido por mim, como um mercador de cavalos avaliando uma potranca. Sempre que eu erguia os olhos, me deparava com o rei me olhando. E mesmo desviando meu olhar, tinha consciência de que continuava com os olhos fixos em mim.
Quando terminamos, o cardeal propôs que fôssemos ao salão escutar um pouco de música. Ana estava ao meu lado e me fez descer a escada, de modo que quando o rei chegasse nós duas estivéssemos sentadas em um banco encostado na parede. Foi natural ele parar e me perguntar como me sentia agora. Foi natural eu e Ana nos levantarmos quando ele passou, natural ele se sentar no banco vazio e me convidar a me sentar a seu lado. Ana afastou-se e conversou com Henry Percy, protegendo o rei e a mim da visão da corte, especialmente do olhar sorridente da rainha Catarina. Meu pai levantou-se para falar com ela, enquanto os músicos tocavam. Foi tudo feito com descontração e naturalidade, e isso significou que eu e o rei estávamos quase ocultos em um salão cheio de gente, com a música em volume alto o bastante para abafar nossa conversa sussurrada, e cada membro da família Bolena posicionado para dissimular o que estava acontecendo.
— Sente-se melhor? — perguntou baixinho.
— Nunca me senti tão bem, Majestade.
— Vou montar amanhã — disse ele. — Gostaria de me acompanhar?
— Se Sua Majestade puder me dispensar — repliquei, sem querer arriscar desagradar a rainha.
— Pedirei à rainha para dispensá-la pela manhã. Direi que está precisando de ar fresco.
Sorri.
— Que excelente médico seria, Majestade. É capaz de formular o diagnóstico e prover a cura no espaço de um único dia.
— Deverá ser uma paciente obediente e fazer tudo o que eu aconselhar — avisou-me.
— Serei. — Baixei os olhos para meus dedos. Sentia seu olhar em mim. Eu flutuava, mais alto do que poderia ter imaginado.
— Ordenarei que fique na cama por dias seguidos — disse ele, a voz bem baixa.
Fixei por um breve momento aquele olhar intenso em meu rosto e me senti corar e me ouvi gaguejar no silêncio. A música interrompeu-se abruptamente.
— Toquem mais! — disse minha mãe.
A rainha Catarina olhou em volta procurando o rei e o viu sentado ao meu lado.
— Dançamos? — pediu ela.
Foi uma ordem real. Ana e Henry Percy assumiram seu lugar em um círculo, e os músicos começaram a tocar. Levantei-me e Henrique foi sentar-se ao lado de sua mulher e nos observar. George foi o meu parceiro.
— Cabeça erguida — cochichou quando pegou minha mão. — Parece um gato pingado.
— Ela está me observando — sussurrei de volta.
— É claro que está. O mais importante é que ele a está observando. E o mais importante de tudo, papai e tio Howard a estão observando, e esperam que se conduza como uma jovem que está sendo favorecida. Você sobe, Sra. Carey, e subimos todos juntos com você.
Ergui a cabeça e sorri para o meu irmão, como se eu estivesse despreocupada. Dancei com toda graça que consegui, curvei-me, virei-me e girei sob sua mão cautelosa. E quando ergui os olhos para o rei e a rainha, me deparei com os dois me observando.
Organizaram uma reunião de família na luxuosa casa de meu tio em Londres. Reunimo-nos em sua biblioteca, onde livros de capas escuras abafavam o ruído das ruas. Dois homens de libré foram posicionados do lado de fora para impedir qualquer interrupção e assegurar que ninguém parasse ou escutasse às escondidas. Discutiríamos negócios de família, segredos de família. Ninguém, a não ser um Howard, podia se aproximar.
Eu era o motivo e o tema da reunião. Eu era o centro ao redor do qual esses eventos girariam. Eu era o peão Bolena que deveria ser deslocado vantajosamente. Tudo estava concentrado em mim. Minha pulsação acelerou-se com a sensação da minha grande importância e com uma palpitação contraditória de ansiedade, de medo de decepcioná-los.
— Ela é fértil? — perguntou tio Howard à minha mãe.
— Suas regras são regulares e é uma garota sadia.
Meu tio aprovou balançando a cabeça.
— Se o rei a possui e ela concebe um bastardo, teremos então muito a ganhar.
Notei com uma espécie de concentração aterrorizada que a pele na bainha de suas mangas roçava a madeira da mesa, a riqueza de seu casaco assumindo o brilho das chamas da lareira atrás dele.
— Ela não pode mais dormir na cama de Carey. O casamento deve ser posto de lado enquanto o rei favorecê-la.
Dei um suspiro. Não consegui imaginar quem diria isso a meu marido. Além do mais, tínhamos jurado ficar juntos, que o casamento era para gerar filhos, que Deus havia nos unido e nenhum homem poderia nos separar.
— Eu não... — comecei.
Ana deu um puxão no meu vestido.
— Silêncio — sussurrou. As pequenas pérolas em seu capuz francês piscaram para mim como conspiradores de olhos espertos.
— Falarei com Carey — disse meu pai.
George pegou minha mão.
— Se você conceber um filho, o rei terá de ter certeza de que é dele e não de outro.
— Não posso ser sua amante — respondi em um sussurro.
— Não tem escolha. — Sacudiu a cabeça.
— Não posso fazer isso — eu disse em voz alta. Agarrei-me com força na mão confortadora de meu irmão e meus olhos percorreram a mesa comprida até meu tio, aguçado como um falcão de olhos pretos que não deixava passar nada.
— Senhor, lamento, mas gosto da rainha. É uma grande mulher e não posso traí-la. Prometi a Deus ser fiel a meu marido, como o trairia? Sei que o rei é o rei, mas não podem querer que eu faça isso. Absolutamente. Senhor, não posso fazer isso.
Não me respondeu. Tamanho era o seu poder que nem mesmo pensou em responder.
— O que devo fazer com uma consciência tão delicada? — perguntou ao silêncio que pairava sobre a mesa.
— Deixem comigo — disse Ana simplesmente. — Posso explicar a situação a Maria.
— Você é um tanto jovem para a tarefa de tutora.
Ela encarou-o confiante.
— Fui educada na corte mais elegante do mundo — disse ela. — E não fiquei ali à toa. Observei tudo. Aprendi tudo o que havia para ser visto. Sei o que é preciso aqui, e posso ensinar Maria a se comportar.
Ele hesitou por um momento.
— É melhor não ter estudado o flerte de maneira excessivamente íntima, Srta. Ana.
Sua serenidade era a de uma freira.
— É claro que não.
Senti meu ombro se erguer, como se a tivesse afastado.
— Não sei por que deveria fazer o que Ana diz.
Eu tinha desaparecido, apesar de ser o motivo da reunião. Ana roubara a atenção de todos.
— Bem, vou confiar em você para treinar sua irmã. Você também, George. Sabe como o rei é com mulheres, mantenha a sua atenção em Maria.
Balançaram a cabeça assentindo. Houve um breve silêncio.
— Falarei com o pai de Carey — ofereceu-se meu pai. — William já deve estar esperando por isso. Ele não é nenhum tolo.
Meu tio relanceou os olhos para Ana e George, que estavam ao meu lado, mais parecidos com carcereiros do que com amigos.
— Ajudem a sua irmã — ordenou. — Deem-lhe o que quer que precise para seduzir o rei. Quaisquer artifícios, quaisquer roupas que deva usar, qualquer habilidade que lhe falte deverá ser provida por vocês. Esperamos que vocês dois a levem à cama do rei. Não se esqueçam disso. A recompensa será valiosa. Mas se fracassarem, não haverá absolutamente nada para nós. Não se esqueçam.
Separar-me de meu marido foi estranhamente doloroso. Entrei em nosso quarto quando a criada estava arrumando minhas coisas para levá-las aos aposentos da rainha. Ele estava no meio do caos de sapatos e vestidos jogados na cama, e mantos sobre as cadeiras, caixas de joias por toda parte. E seu rosto jovem demonstrava seu choque.
— Vejo que está sendo favorecida, senhora.
Era um rapaz bonito, um homem que qualquer mulher teria escolhido. Eu acreditava que mesmo que o nosso casamento não tivesse sido arranjado por nossas famílias, teríamos gostado um do outro.
— Lamento — respondi sem jeito. — Sabe que tenho de fazer o que meu tio e meu pai mandam.
— Eu sei — replicou ele bruscamente. — Eu também tenho de fazer o que mandam.
Para meu alívio, Ana apareceu à porta, seu sorriso malicioso muito intenso.
— E então, William Carey? Que surpresa! — falou como se fosse a maior alegria ver seu cunhado no meio de minhas coisas e os escombros de seus planos de um bom casamento e um filho varão.
— Ana Bolena — fez uma breve mesura. — Veio ajudar sua irmã a progredir?
— É claro — seus olhos brilhavam. — Como temos de fazer. Nenhum de nós sofrerá se Maria for favorecida.
Ela sustentou o olhar destemidamente por um momento, e foi ele que desviou o seu para a janela.
— Tenho de ir — disse ele. — O rei convidou-me a acompanhá-lo. — Hesitou por um instante, depois atravessou o quarto até onde eu estava cercada por meu guarda-roupa disperso. Delicadamente pegou minha mão e a beijou.
— Estou triste por você. E estou triste por mim. Quando for mandada de volta para mim, daqui a um mês, talvez um ano, tentarei recordar este dia e sua aparência infantil, um tanto perdida no meio de todas estas roupas. Tentarei me lembrar de que você era inocente nesta trama; de que hoje, pelo menos, era mais uma garota do que uma Bolena.
A rainha percebeu que agora eu era uma mulher solteira, dividindo a cama com Ana no pequeno quarto fora de seus aposentos, sem fazer comentários. Suas maneiras comigo não se alteraram. Continuou cortês e falando com tranquilidade. Se quisesse que eu fizesse algo, como escrever um bilhete, cantar, tirar seu cachorrinho do quarto, ou enviar uma mensagem, pedia-me com a mesma educação de sempre. Porém nunca mais pediu que eu lesse a Bíblia para ela, nunca mais pediu que eu me sentasse a seus pés enquanto costurava, nunca mais me abençoou quando eu ia dormir. Deixei de ser a sua aia favorita.
Era um alívio ir dormir com Ana. Baixávamos o cortinado ao redor da cama, e ficávamos seguras para cochichar na escuridão sombrosa sem sermos escutadas, e era como na França quando éramos pequenas. Às vezes, George deixava os aposentos do rei e vinha ao nosso encontro, subindo na cama alta, equilibrando sua vela perigosamente na cabeceira, e distribuindo as cartas ou dados para jogarmos, enquanto as outras garotas nos quartos vizinhos dormiam, sem saber que um homem estava escondido em nossa câmara.
Não ficavam me dizendo como eu deveria fazer. Astuciosamente, esperaram que eu dissesse que estava além das minhas possibilidades fazer aquilo.
Eu não disse nada quando minhas roupas foram levadas de um extremo ao outro do palácio. Eu não disse nada quando a corte arrumou as malas e se mudou para o palácio preferido do rei, Eltham, em Kent, na primavera. Eu não disse nada quando meu marido cavalgou do meu lado e falou-me, amavelmente, do tempo e sobre meu cavalo, que era de Jane Parker, emprestado sob protesto, como sua contribuição à ambição da família. Mas quando fiquei com George e Ana a sós no jardim do Palácio de Eltham, eu disse:
— George, acho que não vou conseguir fazer isso.
— Fazer o quê? — perguntou em vão. Supostamente estávamos levando o cachorro da rainha, que havia sido carregado na sela durante a viagem, e depois de tantos solavancos, ficara nauseado, para dar uma volta.
— Vamos lá, Flo! Pegue! Pegue!
— Não posso estar com o rei e com o meu marido ao mesmo tempo — repliquei. — Não posso rir com o rei enquanto meu marido está observando.
— Por que não? — Ana jogou uma bola para Flo buscar. O cachorrinho olhou-a rolar sem demonstrar o menor interesse. — Oh, vai lá, coisinha idiota! — exclamou Ana.
— Porque acho que está errado.
— Sabe mais do que a sua mãe? — perguntou Ana rispidamente.
— É claro que não!
— Mais do que o seu pai? Seu tio?
Sacudi a cabeça.
— Estão planejando um grande futuro para você — disse Ana, solenemente. — Qualquer garota na Inglaterra daria a vida pela sua chance. Está a caminho de se tornar a favorita do rei da Inglaterra e fica com risinhos afetados se perguntando se pode rir de suas piadas? Você tem tanta cabeça quanto Flo. — Pôs a ponta da bota de montar sob o traseiro relutante de Flo e a empurrou delicadamente. Flo sentou-se, tão teimosa e infeliz quanto eu.
— Com cuidado — George alertou-a. Pegou minha mão fria e a colocou na dobra de seu braço. — Não é tão ruim quanto pensa — disse ele. — William está montando hoje com você para mostrar que dá seu consentimento, e não para que se sinta culpada. Ele sabe que o desejo do rei tem de ser satisfeito. Todos sabemos. William está feliz em consentir. Receberá favores que não seriam concedidos se não fosse você. Você está cumprindo o seu dever, fazendo sua família progredir. Ele se sente grato a você. Não está fazendo nada de errado.
Hesitei. Dos olhos castanhos e francos de George, olhei para o rosto de Ana, virado para o outro lado.
— Tem mais uma coisa — eu disse —, sendo forçada a confessar.
— O que é? — perguntou George. Os olhos de Ana seguiram Flo, mas eu sabia que a sua atenção estava em mim.
— Não sei como fazer — repliquei baixinho. — Entende? William faz uma vez por semana, ou quase isso, no escuro e rapidamente, e nunca gostei muito. Não sei o que se espera que eu faça.
George conteve uma risada, pôs o braço em volta dos meus ombros e me abraçou.
— Desculpe eu rir. Mas entendeu tudo errado. Ele não quer uma mulher que saiba o que fazer. Há dezenas delas nas casas de banho da cidade. Ele quer você. É de você que ele gosta. E vai gostar se você for um pouco tímida e um pouco insegura. É assim mesmo.
— Uau! — gritaram atrás de nós. — Os três Bolena!
Viramo-nos e lá estava o rei, ainda usando seu manto de viagem, e seu chapéu descontraidamente sobre a cabeça.
— Lá vamos nós — disse George fazendo uma mesura acentuada. Ana e eu nos curvamos juntas, em uma reverência.
— Não estão cansados da cavalgada? — perguntou o rei. A pergunta foi para todos, mas ele estava olhando para mim.
— De maneira nenhuma.
— Está montando uma bela égua, mas seu dorso é muito curto. Vou lhe dar um cavalo novo — disse ele.
— Sua Majestade é muito gentil — respondi. — É uma égua emprestada. Ficaria contente em ter um cavalo só meu.
— Escolha um nos estábulos — disse ele. — Venha, vamos dar uma olhada agora.
Estendeu o braço para mim e eu coloquei meus dedos delicadamente sobre o belo tecido de sua manga.
— Mal posso senti-la. — Pôs a mão sobre a minha e apertou-a forte. — Pronto, quero sentir que a tenho, Sra. Carey. — Seus olhos eram muito azuis e vivos, ele pegou no alto de meu capuz francês, depois em meu cabelo castanho dourado, alisou-o, e depois o meu rosto. — Realmente quero sentir que a tenho.
Senti a boca seca e sorri, apesar da sensação de estar sem fôlego, algo entre o medo e o desejo.
— Estou feliz por estar com o senhor.
— Está? — perguntou ele, de repente concentrado. — Está mesmo? Não quero nenhuma moeda falsa de você. Muitos a incitarão a estar comigo. Quero que venha por sua livre e espontânea vontade.
— Oh, Majestade! E não dancei com o senhor na festa do cardeal Wolsey sem nem mesmo reconhecê-lo!
Ele gostou da recordação.
— Sim, e quase desmaiou quando tirei a máscara e descobriu que era eu. Quem pensou que era?
— Não pensei. Sabia que estava sendo leviana. Achei que talvez fosse um estranho na corte, um estranho bonito, e foi tão bom dançar com o senhor.
Ele riu.
— Oh, Sra. Carey, um rosto tão doce e pensamentos tão maliciosos! Achou que um belo estranho tivesse vindo à corte e a escolhido para dançar!
— Não pretendi ser maliciosa — receei, por um momento, que fosse piegas demais até para seu gosto. — Simplesmente me esqueci de como devia me comportar quando me tirou para dançar. Tenho certeza de que nunca faria nada de errado. Houve apenas um momento em que eu...
— Em que você?
— Em que me esqueci — concluí baixinho.
Chegamos ao arco de pedra que dava nos estábulos. O rei parou sob o abrigo do arco e me virou para si. Senti-me viva em cada parte de meu corpo, das minhas botas de montaria, escorregadias sobre o pavimento de pedras arredondadas, até o meu olhar dirigido a seu rosto.
— Você se esqueceria de novo?
Hesitei, e então Ana surgiu e disse em tom jovial:
— Que cavalo Sua Majestade tem em mente para a minha irmã? Vai poder ver como ela é boa amazona.
Ele nos conduziu para dentro do estábulo, deixando-me por um instante. George e ele examinavam um cavalo, depois outro. Ana veio para o meu lado.
— Tem de mantê-lo avançando — disse ela. — Mantê-lo avançando, mas nunca deixar que pense que você está avançando. Ele quer sentir que é ele que está correndo atrás de você, não que você o está induzindo a isso. Quando lhe der a opção de avançar ou fugir, como há pouco, deve sempre fugir.
O rei virou-se e sorriu para mim enquanto George dizia a um cavalariço que conduzisse um belo cavalo baio para fora do estábulo.
— Não corra demais — avisou minha irmã. — Lembre-se de que ele tem de alcançá-la.
Nessa noite, dancei com o rei diante de toda a corte e, no dia seguinte, montei meu novo cavalo ao seu lado, quando saímos para caçar. A rainha, sentada à mesa elevada, observou-nos dançar e, quando saímos para cavalgar, acenou para ele da grande porta do palácio. Todos sabiam que ele estava me cortejando, todos sabiam que eu consentiria quando recebesse ordens para isso. A única pessoa que não sabia disso era o rei. Achava que o ritmo do namoro era ditado por seu próprio desejo.
O primeiro resultado foi algumas semanas depois, em abril, quando o meu pai foi designado tesoureiro da casa do rei, posto que lhe dava acesso, diariamente, à fortuna do rei, que ele poderia espoliar como achasse melhor. Meu pai veio ao meu encontro quando íamos jantar, afastou-me do séquito da rainha para uma conversa rápida, enquanto Sua Majestade ocupava seu lugar na cabeceira da mesa.
— Seu tio e eu estamos contentes com você — disse brevemente. — Escute seu irmão e sua irmã, eles me disseram que está indo muito bem.
Fiz uma mesura.
— Isso é só o começo — lembrou-me. — Tem de consegui-lo e segurá-lo, não se esqueça.
Retraí-me um pouco com essas palavras.
— Eu sei — repliquei. — Não me esqueço.
— Ele já fez alguma coisa?
Relanceei os olhos para o grande salão onde o rei e a rainha ocupavam seus lugares. Os trombeteiros estavam posicionados para anunciar a chegada da procissão de criados vindos da cozinha.
— Ainda não — respondi. — Somente olhares e palavras.
— E você responde?
— Com sorrisos — Não lhe contei que estava quase delirando de prazer por estar sendo cortejada pelo homem mais poderoso do reino. Não era difícil seguir o conselho de minha irmã e ficar sorrindo para ele. Não era difícil enrubescer e sentir vontade de fugir e me aproximar ao mesmo tempo.
Meu pai aprovou balançando a cabeça.
— Muito bem. Pode ir se sentar.
Fiz outra mesura e me apressei ao salão, logo à frente dos criados. A rainha olhou para mim um tanto rispidamente, como se me repreendesse, mas em seguida desviou o olhar para o lado, na direção do rosto de seu marido. A expressão dele estava fixa em mim, enquanto eu atravessava o salão para ocupar meu lugar à mesa, entre as damas de honra. Era uma expressão concentrada, estranha, como se, por um momento, ele não conseguisse enxergar nem escutar nada, como se o salão todo tivesse se desfeito e só visse a mim em meu vestido azul, com o capelo azul, meu cabelo louro para trás de meu rosto, e um sorriso trêmulo em meus lábios, como se eu percebesse seu desejo. A rainha percebeu o calor de seu olhar, apertou os lábios, sorriu seu sorriso esmaecido, e desviou o olhar.
Ele foi ao quarto da rainha nessa noite.
— Podemos ter um pouco de música? — perguntou ele.
— Sim, a Sra. Carey pode cantar para nós — disse ela amavelmente, fazendo sinal para que eu me aproximasse.
— A sua irmã Ana tem a voz mais doce — o rei ordenou, contrariando suas palavras. Ana lançou-me um olhar de soslaio rápido e triunfante. — Pode nos cantar uma de suas canções francesas, Srta. Ana? — pediu o rei.
Ana fez uma de suas reverências graciosas.
— O pedido de Sua Majestade é uma ordem — disse ela, com o sotaque francês um pouco mais pronunciado.
A rainha observou essa troca, percebi que se perguntava se o capricho do rei se deslocara para a outra garota Bolena. Mas ele a tinha excedido em esperteza. Ana sentou-se em um banco no meio do salão, o alaúde em seu colo, a voz doce — como disse ele, mais doce do que a minha. A rainha em sua poltrona de sempre, com os braços acolchoados e bordados e o espaldar almofadado em que ela nunca se recostava. O rei não se sentou na poltrona igual ao seu lado, mas veio até mim e se sentou no lugar que antes fora ocupado por Ana, e relanceou os olhos para a costura em minhas mãos.
— Um trabalho muito bonito — comentou.
— Camisas para os pobres — eu disse. — A rainha é boa para os pobres.
— É verdade — disse ele. — Como sua agulha trabalha rápido; eu acabaria dando um nó nessa linha. Como seus dedos são pequeninos e hábeis...
Sua cabeça estava inclinada sobre minhas mãos e me vi olhando para a base de seu pescoço e pensando como gostaria de tocar seu pelo espesso.
— Suas mãos devem ser a metade das minhas — disse ele casualmente. — Estenda-as e me mostre.
Enfiei a agulha na costura e estendi minha mão para lhe mostrar, as palmas para cima. Seus olhos não deixaram meu rosto quando pôs a sua mão, palma para baixo, em cima da minha, mas sem tocá-la. Senti o calor de sua mão sobre a minha, mas não consegui tirar os olhos de seu rosto. Seu bigode curvava-se um pouco ao redor de seus lábios. Eu me perguntei se o cabelo seria macio como os cachos escuros de meu marido, ou áspero como fio de ouro. Pareciam fortes e ásperos, seu beijo poderia deixar minha face vermelha, todos saberiam que tínhamos nos beijado. Debaixo das pequenas espirais de pelo, seus lábios eram sensuais e eu não consegui tirar meus olhos deles. Não consegui deixar de pensar sobre como seria tocá-los, que gosto teriam.
Sem pressa, foi chegando sua mão para perto da minha, como dançarinos se aproximando em uma pavana. Sua mão roçou na minha e senti o toque como uma mordida. Dei um pequeno pulo e vi seus lábios se curvarem quando sentiu que seu toque foi um choque para mim. A palma de minha mão e meus dedos frios se estenderam ao longo dos seus, os meus dedos se detendo quase no alto de suas juntas. Senti a sua pele quente, um calo em um dedo por causa da manobra de arqueiro, a palma áspera da mão de um homem que monta, joga tênis e caça e é capaz de segurar uma lança e uma espada um dia inteiro. Passei meus olhos de seus lábios para seu rosto como um todo, a atenção viva de seu olhar focalizada em mim como o sol através de um vidro incandescente, o desejo que se irradiava dele como calor.
— A sua pele é tão macia. — Sua voz estava baixa, como um sussurro. — E suas mãos pequeninas, como eu imaginava.
A desculpa para medir nossas mãos já se esgotara, mas permanecemos parados, palma de mão contra palma de mão, os olhos de um no rosto do outro. Então, bem devagar, irresistivelmente, sua mão fechou-se em volta da minha e a segurou, delicadamente, mas com firmeza.
Ana terminou uma canção e começou outra, sem mudar a tonalidade, sem mudar o registro, sem quebrar o encanto do momento.
Foi a rainha que interrompeu.
— Sua Majestade está distraindo a Sra. Carey — disse ela, com um risinho como se ver seu marido segurando a mão de outra mulher, 23 anos mais nova, fosse engraçado. — Seu amigo William não vai lhe agradecer por tornar sua esposa indolente. Ela prometeu embainhar essas camisas para as freiras do convento de Whitchurch e nem a metade está pronta.
Soltou-me e se virou para sua mulher.
— William me perdoará — disse ele negligentemente.
— Vou jogar cartas — disse a rainha. — Quer jogar comigo, meu marido?
Por um momento achei que ela vencera, afastando-o de mim por meio da afeição antiga entre os dois. Mas quando ele se levantou para fazer o que ela queria, relanceou os olhos para trás e me viu olhando para ele. Não calculei meu olhar — quase nada. Eu não passava de uma jovem olhando para um homem, com desejo no olhar.
— A Sra. Carey será minha parceira. Pode mandar chamar George e ter outro Bolena como parceiro? Poderíamos formar dois casais.
— Jane Parker jogará comigo — replicou a rainha, friamente.
— Você se saiu muito bem — disse Ana naquela noite. Estava sentada ao lado do fogo, em nosso quarto, escovando seu cabelo preto comprido, a cabeça pendendo um pouco para o lado, de modo que caísse como uma cascata perfumada sobre seu ombro. — A parte das mãos foi muito boa. O que estavam fazendo?
— Ele estava comparando o tamanho de nossas mãos — repliquei. Terminei de trançar meu cabelo louro, pus a touca de dormir e amarrei a fita branca. — Quando nossas mãos se tocaram, senti...
— O quê?
— Foi como se a minha pele estivesse queimando — sussurrei. — Verdade. Como se esse toque pudesse me queimar.
Ana me olhou cética.
— O que quer dizer?
As palavras escaparam de minha boca.
— Quero que ele me toque. Estou louca para que me toque. Que me beije.
Ana pareceu incrédula.
— Você o deseja?
Abracei a mim mesma e me deixei afundar no parapeito de pedra da janela.
— Oh, Deus, sim. Não me dei conta de que isso aconteceria. Mas sim, sim.
Ela fez uma careta, sua boca caiu.
— É melhor não deixar papai e mamãe saberem disso — avisou. — Mandaram que fizesse um jogo inteligente, e não que ficasse no mundo da lua como uma garota apaixonada ao crepúsculo.
— Não acha que ele me quer?
— Oh, no momento sim. Mas e daqui a uma semana? Daqui a um ano?
Ouvimos baterem à nossa porta e George apareceu.
— Posso entrar?
— Está bem — respondeu Ana com rispidez. — Mas não se demore. Vamos nos deitar.
— Eu também — disse ele. — Estive bebendo com papai. Vou para a cama e amanhã cedo, quando despertar sóbrio, me enforco.
Mal o ouvi, estava olhando pela janela e pensando no toque da mão de Henrique.
— Por quê? — perguntou Ana.
— Meu casamento será no ano que vem. Por que não me invejam?
— Todo mundo se casa menos eu — disse Ana, irritada. — Os Ormonde não deram em nada, e não têm mais nada para mim. Querem que me torne freira?
— Não seria uma má escolha — disse George. — Acha que me aceitariam?
— Em um convento? — peguei o espírito da conversa e me virei para gozá-lo. — Que bela abadessa não daria.
— Melhor do que a maioria — disse George animadamente. Fez menção de se sentar em um banco, mas errou e caiu no chão de pedra.
— Está bêbado — acusei.
— Estou. E amargurado. Há algo em minha futura mulher que me parece muito estranho — disse ele. — Algo um tanto... — procurou a palavra certa. — Rançoso.
— Besteira — disse Ana. — Ela trará um dote excelente e boas relações, é a favorita da rainha e o seu pai é respeitado e rico. Por que se preocupar?
— Porque ela tem a boca como a de uma armadilha para coelhos, e o olhar quente e frio ao mesmo tempo.
— Poeta — Ana riu.
— Sei o que George quer dizer — eu disse. — Ela é impetuosa e, de certa maneira, reservada.
— Apenas discreta — disse Ana.
George sacudiu a cabeça.
— Quente e fria ao mesmo tempo. Todos os humores em desordem. Vou levar uma vida de cão com ela.
— Oh, case-se com ela, vá para a cama com ela e a mande para o campo — disse Ana, com impaciência. — Você é homem, pode fazer o que quiser.
Pareceu mais animado ao ouvir isso.
— Poderia mandá-la para Hever — disse ele.
— Ou Rochford Hall. E o rei com certeza lhe dará uma propriedade em seu casamento.
George levou seu decantador à boca.
— Alguém quer um pouco?
— Eu quero — eu disse, pegando a garrafa e provando o vinho tinto frio e ácido.
— Vou para a cama — disse Ana com afetação. — Devia se envergonhar, Maria, bebendo antes de dormir. — Puxou as cobertas e se deitou. Inspecionou George e a mim enquanto ajeitava os lençóis em volta de seus quadris. — Vocês dois são fáceis demais — decretou.
George fez uma careta.
— Fomos avisados — disse-me alegre.
— Ela é muito severa — sussurrei com um respeito gozador. — Ninguém diz que passou metade de sua vida flertando na corte francesa.
— Mais espanhola do que francesa, acho eu — disse George, intencionalmente provocador.
— E solteira — cochichei. — Uma criada espanhola.
Ana deitou-se no travesseiro, curvou os ombros e puxou as cobertas.
— Não estou prestando atenção, por isso podem poupar seu fôlego.
— Quem a teria? — perguntou George. — Quem iria querê-la?
— Encontrarão alguém para ela — respondi. — Algum filho caçula ou algum squire falido. — Passei a garrafa a George.
— Vão ver — ouviu-se da cama. — Farei um casamento melhor do que vocês dois. E se não me providenciarem logo um, eu mesma tratarei disso.
George passou a garrafa de volta para mim.
— Acabe com ela — disse. — Para mim chega.
Terminei o resto do vinho e fui para o outro lado da cama.
— Boa noite — disse a George.
— Vou ficar um pouco aqui, ao lado do fogo — disse ele. — Vamos nos dar bem, não vamos, nós, os Bolena? Eu noivo, você a caminho da cama do rei e a pequena Mademoiselle Parfait livre no mercado, com tudo para ser atraente.
— Sim — eu disse. — Estamos indo bem.
Pensei nos olhos azuis intensos do rei em meu rosto, a maneira como iam do alto de minha cabeça até a bainha de meu vestido. Virei o rosto para o travesseiro para que nenhum deles me ouvisse.
— Henrique — sussurrei. — Majestade. Meu amor.
No dia seguinte, haveria um torneio nos jardins de uma casa um pouco distante do Palácio de Etham. Fearson House tinha sido construída no reinado passado por um dos muitos homens opressivos que tinham feito fortuna durante o governo do pai do rei, ele próprio um dos mais opressivos de todos. Era uma casa grande e imponente, um castelo sem muros nem fosso em volta. Sir John Lovick acreditava que a Inglaterra ficaria em paz para sempre e construiu uma casa que não seria defendida, quer dizer, que não poderia ser defendida. Os jardins a rodeavam como um tabuleiro enxadrezado de verde e branco: pedras, caminhos e orlas brancas ao redor de um aglomerado de hortos verdes de loureiros. Para além, o parque onde ele caçava corças, e entre o parque e os jardins, um belo gramado, conservado durante o ano inteiro para ser usado pelo rei para os torneios.
A tenda para a rainha e suas damas de companhia era de seda vermelho-cereja e branca, ela usava um vestido cereja combinando e parecia jovem e rosada sob a cor viva. Eu estava de verde, com o vestido que tinha usado na mascarada da terça-feira de carnaval, quando o rei me escolheu entre todas as outras. A cor fazia meu cabelo brilhar ainda mais dourado e meus olhos cintilavam. Fiquei ao lado da cadeira da rainha e sabia que qualquer homem que nos olhasse a acharia uma mulher bela, mas com idade bastante para ser minha mãe, enquanto eu tinha apenas 14 anos, uma mulher pronta para se apaixonar, para sentir desejo, uma mulher precoce, uma garota na flor da idade.
As três primeiras competições foram entre os homens de menor nível social da corte, querendo chamar a atenção ao arriscarem seus pescoços. Eram bastante habilidosos, houve algumas estocadas excitantes e um bom momento quando o homem menor tirou do cavalo um rival maior, o que fez o povo comum gritar vivas. O homenzinho desmontou e tirou seu elmo para agradecer os aplausos. Era bonito, magro e louro. Ana me cutucou e perguntou:
— Quem é?
— Apenas um dos garotos Seymour.
A rainha virou a cabeça.
— Sra. Carey, pergunte ao tratador de cavalos quando meu marido vai montar hoje e que cavalo escolheu?
Virei-me para cumprir sua ordem e percebi por que ela estava me afastando. O rei atravessava devagar a relva em direção ao nosso pavilhão, e ela me queria longe. Fiz uma mesura e me dirigi sem pressa à saída, de modo que desse tempo de ele me ver hesitando sob o toldo. Imediatamente, escusou-se de uma conversa e se apressou. Sua armadura era prateada brilhante, debruada de dourado. As tiras de couro que sustentavam o peitoral e as braçadeiras eram vermelhas e macias como veludo. Ele parecia mais alto, um herói que comandara guerras muitos anos atrás. O sol fazia o metal refletir muito brilho e tive de recuar para a sombra e pôr a mão nos olhos.
— Sra. Carey, no gramado Lincoln.
— Está todo brilhando — eu disse.
— Você deslumbraria mesmo no escuro mais profundo.
Eu não disse nada. Só fiquei olhando para ele. Se Ana ou George estivessem perto, teriam me inspirado alguma resposta. Mas a perspicácia me abandonara, tinha sido inteiramente dominada pelo desejo. Não consegui fazer nem dizer nada a não ser ficar olhando para ele, sabendo que minha face estava cheia de desejo. Ele também não falou nada. Ficamos ali, olhos nos olhos, interrogando um a face do outro como se pudéssemos entender o desejo do outro a partir do olhar.
— Tenho de vê-la a sós — disse ele, finalmente.
— Majestade, não posso.
— Não quer?
— Não me atreveria.
Respirou fundo, como se aspirasse a própria luxúria.
— Confie em mim.
Desviei os olhos de seu rosto, sem ver nada.
— Não me atrevo — repeti simplesmente.
Pegou minha mão e a levou aos lábios, e beijou-a. Senti o calor de seu hálito em meus dedos e, por fim, o roçar delicado de seu bigode.
— Oh, macio.
Ergueu os olhos de minha mão.
— Macio?
— O toque de seu bigode — expliquei. — Estive pensando como seria.
— Andou pensando como seria o toque de meu bigode? — perguntou.
Senti minhas bochechas esquentando.
— Sim.
— Se fosse beijada por mim?
Baixei os olhos para meus pés para não ver a intensidade de seus olhos azuis, e balancei quase imperceptivelmente a cabeça.
— Tem desejado ser beijada por mim?
Ergui os olhos.
— Majestade, tenho de ir — eu disse em desespero. — A rainha mandou-me fazer algo e deve estar se perguntando onde estou.
— Aonde mandou que fosse?
— Procurar o tratador de seu cavalo, para saber que cavalo escolheu e quando montará.
— Posso responder isso eu mesmo. Por que teria de sair para este sol escaldante?
Sacudi a cabeça.
— Não me incomoda fazer isso para ela.
Ele fez um gesto de impaciência.
— E só Deus sabe como tem criados suficientes para correr de lá para cá pela pista do torneio. Tem toda uma comitiva espanhola, enquanto eu, minha pequena quadra de torneio.
Pelo canto do olho, vi Ana passar pelo reposteiro de onde a rainha estava e se imobilizar ao se deparar comigo e o rei juntos.
Ele soltou-me com delicadeza.
— Vou vê-la e responder suas perguntas sobre meus cavalos. O que vai fazer?
— Entrarei em um instante — repliquei. — Preciso de um momento antes de voltar, sinto-me... — interrompi-me sem conseguir descrever o que estava sentindo.
Ele olhou para mim com ternura.
— É muito jovem para fazer esse jogo, não é? Bolena ou não. Estarão lhe dizendo o que fazer e a colocando no meu caminho, suponho.
Teria confessado a trama da família para eu atraí-lo se não fosse Ana esperando escondida na tenda. Com ela me observando, simplesmente sacudi a cabeça.
— Não é jogo para mim — olhei a distância, meus lábios estremeceram. — Juro que não é jogo para mim, Majestade.
Sua mão ergueu meu queixo e virou meu rosto para ele. Sem respirar por um momento, achei, com pavor e deleite, que me beijaria na frente de todo mundo.
— Tem medo de mim?
Sacudi a cabeça e resisti à tentação de virar meu rosto para a sua mão.
— Tenho medo do que pode acontecer.
— Entre nós? — sorriu, o sorriso confiante de um homem que sabe que a mulher que ele deseja está a apenas um momento de seus braços. — Nada de mau lhe acontecerá por me amar, Maria. Tem minha palavra, se prefere. Será minha amante, a minha pequena rainha.
Arfei ao ouvir a palavra.
— Dê-me seu lenço, quero usar sua prenda quando competir — disse ele de súbito.
Olhei em volta.
— Não posso dá-lo aqui.
— Dê-me — disse ele. — Mandarei George buscá-lo. Não o usarei ostensivamente. Vou pô-lo dentro do peitoral. Vou usá-lo no coração.
Assenti com a cabeça.
— Então, vai me dar sua prenda?
— Se assim quer — sussurrei.
— Quero muito — disse ele. Fez uma reverência e virou-se em direção à entrada da tenda da rainha. Minha irmã Ana tinha desaparecido como um fantasma prestativo.
Dei a todos alguns minutos e, então, voltei à tenda. A rainha lançou-me um olhar inquiridor, severo. Fiz uma mesura.
— Vi o rei chegando para responder à sua pergunta, Majestade, por isso voltei — eu disse graciosamente.
— Em primeiro lugar, deveria ter mandado uma criada — disse o rei abruptamente. — A Sra. Carey não devia ficar de lá para cá sob este sol. Está quente demais.
A rainha hesitou só por um momento.
— Desculpe — replicou. — Foi imprudente de minha parte.
— Não é a mim que deve pedir desculpas — disse ele intencionalmente.
Achei que ela recusaria sua observação, e pela tensão do corpo de Ana do meu lado, sabia que também ela estava aguardando para ver o que a princesa da Espanha e rainha da Inglaterra faria em seguida.
— Lamento se lhe causei um incômodo, Sra. Carey — disse a rainha, sem se abalar.
Não senti nenhum triunfo. Olhei, no lado de lá de uma tenda ricamente atapetada, para uma mulher com idade para ser minha mãe e só senti pena pela dor que lhe causaria. Por um momento, nem mesmo vi o rei, mas somente nós duas, destinadas a ser o sofrimento uma da outra.
— É um prazer servi-la, rainha Catarina — eu disse, e falei sério.
Por um instante, olhou para mim como se entendesse parte do que se passava na minha cabeça e, então, virou-se para seu marido.
— Seus cavalos estão prontos para hoje? — perguntou. — Está confiante, Majestade?
— Hoje, sou eu ou Suffolk — disse ele.
— Tomará cuidado, senhor? — disse ela baixinho. — Não há mal nenhum em perder para um cavaleiro como o duque. E seria o fim do reino se algo lhe acontecesse.
Foi um pensamento afetuoso, mas ele o recebeu contrariado.
— Realmente, seria, já que não temos um filho.
Ela se retraiu e vi a cor se esvair de sua face.
— Há tempo — disse ela, a voz tão baixa que mal a ouvi. — Ainda há tempo...
— Não muito — disse ele bruscamente e, virando-se. — Tenho de me aprontar.
Passou por mim sem nem um olhar de relance, embora eu, Ana e todas as outras damas de honra fizéssemos uma reverência profunda. Quando me levantei, a rainha estava olhando para mim, não como se eu fosse uma rival, mas como se eu continuasse a ser a favorita a seu serviço, capaz de lhe dar um pouco de conforto. Olhou para mim como se, por um momento, buscasse alguém que compreendesse a situação terrível de uma mulher neste mundo regido por homens.
George entrou na tenda e se ajoelhou perante a rainha com a sua graça espontânea.
— Majestade — disse ele. — Vim para ver a mulher mais formosa de Kent, da Inglaterra, do mundo.
— Oh, George Bolena, levante-se — disse ela, sorrindo.
— Morreria aos seus pés — ofereceu-se ele.
Ela bateu-lhe de leve na mão com seu leque.
— Não, mas pode me dizer as apostas no combate do rei, se quiser.
— Quem apostaria contra ele? É o melhor cavaleiro. Aposto cinco a dois contra o segundo combate. Os Seymour contra os Howard. Não tenho dúvida de quem será o vencedor.
— Apostaria nos Seymour? — perguntou a rainha.
— Obtiveram a sua bênção? Nunca — replicou George rapidamente. — Gostaria que apostasse em meu primo, Majestade. Então pode ter certeza de que vai ganhar, pode ter certeza de que está apostando em uma das melhores e mais leais famílias do país, e a sua probabilidade de vencer será imensa também.
Ela riu.
— É de fato um cortesão primoroso. Quanto quer perder para mim?
— Digamos, cinco coroas? — perguntou George.
— Apostado.
— Aceito a aposta — disse Jane Parker de súbito.
O sorriso de George desapareceu.
— Não poderia lhe oferecer isso, Srta. Parker — replicou ele cortesmente. — Pois tem toda a minha fortuna à sua disposição.
Era a linguagem da conduta entre namorados, o flerte constante nos círculos reais, que prosseguia dia e noite e que às vezes significava tudo, porém mais frequentemente não significava absolutamente nada.
— Queria apostar só duas coroas — Jane estava tentando fazer George continuar a conversa espirituosa e lisonjeira que ele dominava tão bem. Ana e eu a observávamos criticamente, não estando dispostas a ajudá-la com o nosso irmão.
— Se perco para Sua Majestade, e verá como ela me empobrecerá graciosamente, então não terei nada para ninguém mais — disse George. — Na verdade, sempre que estou com Sua Majestade não tenho nada para ninguém mais. Nem dinheiro, nem coração, nem olhos.
— Que vergonha! — interrompeu a rainha. — E diz isso para a sua noiva?
George fez-lhe uma mesura.
— Somos estrelas noivas circundando uma bela lua — disse ele. — A beleza maior ofusca tudo o mais.
— Oh, saia já daqui — disse a rainha. — Vá cintilar em outro lugar, minha estrelinha Bolena.
George fez uma reverência e foi para o fundo da tenda. Aproximei-me dele furtivamente.
— Me dê logo — disse concisamente. — Ele é o próximo.
Tinha uma faixa de seda branca debruando o decote de meu vestido. Passei-a pelos ilhoses verdes até soltá-la e a dei a George. Guardou-a rapidamente no bolso.
— Jane está vendo — falei.
Sacudiu a cabeça.
— Não tem importância. Está presa ao mesmo interesse, independentemente do que pense. Tenho de ir.
Assenti com a cabeça e voltei à tenda. Os olhos da rainha se detiveram brevemente nos ilhoses vazios na frente de meu vestido, mas não disse nada.
— Vão começar — disse Jane. — O combate do rei é o próximo.
Eu o vi ser auxiliado a montar, dois homens o sustentando, o peso de sua armadura quase o derrubando. Charles Brandon, duque de Suffolk, cunhado do rei, também estava preparado, e os dois passaram juntos diante da tenda da rainha. O rei baixou a lança para saudá-la e a manteve baixa enquanto passava pela tenda. Era uma saudação a mim. Com o visor de seu elmo levantado, pude ver que sorria para mim. Havia uma nesga branca no ombro de seu peitoral que percebi ser o lenço de meu vestido. O duque de Suffolk, que vinha atrás, baixou a lança para a rainha e balançou a cabeça, rigidamente, para mim. Ana, em pé atrás de mim, inspirou levemente.
— Suffolk a reconheceu — cochichou.
— Acho que sim.
— Reconheceu. Curvou a cabeça. Isso quer dizer que o rei falou de você para ele, ou para a sua irmã, a rainha Maria, e ela falou para Suffolk. Ele não está brincando. Não pode estar brincando.
Relanceei os olhos para o lado. A rainha estava olhando para a liça onde o rei tinha parado seu cavalo. O cavalo grande jogava a cabeça e movia-se de lado enquanto aguardava o som das trombetas. O rei estava tranquilo sobre a sela, um pequeno aro dourado ao redor de seu elmo, o visor baixado, a lança segura para a frente. A rainha inclinou-se para ver. Ouviu-se o som da trombeta e os dois cavalos arremessaram-se à frente quando as esporas foram pressionadas em seus flancos. Os dois homens de armaduras se precipitaram ruidosamente um para o outro, torrões de terra voando em estilhaços dos cascos dos cavalos. As lanças baixaram como flechas arremessadas em direção a um alvo, as flâmulas nos extremos de cada uma adejando quando o espaço entre eles se estreitou, e então o rei recebeu um golpe de raspão que aparou com seu escudo, mas seu ataque deslizou por baixo do escudo de Suffolk e atingiu o peitoral. O choque do golpe jogou Suffolk para trás e o peso da armadura fez o resto, lançando-o sobre as ancas e o derrubando com um baque estrondoso no chão.
Sua mulher levantou-se de um pulo.
— Charles! — Saiu correndo do pavilhão da rainha, erguendo as saias, correndo como uma mulher comum em direção a seu marido, que jazia imóvel sobre o gramado.
— É melhor eu ir também. — Ana correu atrás.
Procurei o rei nas liças. Seu escudeiro retirava a sua armadura pesada. Quando o peitoral foi tirado, meu lenço branco voejou até o chão. Ele não o viu cair. Desataram as grevas e as proteções dos braços, e, vestindo um manto, caminhou lepidamente até o corpo ominosamente inerte de seu amigo. A rainha Maria estava ajoelhada do lado de Suffolk, com a sua cabeça em seus braços. Seu escudeiro estava removendo a armadura pesada. Maria ergueu os olhos quando o seu irmão se aproximou. Ela sorria.
— Ele está bem — disse ela. — Só proferiu uma praga terrível contra Peter por tê-lo beliscado com uma fivela.
Henrique riu.
— Que Deus seja louvado!
Dois homens surgiram correndo com uma maca. Suffolk sentou-se.
— Posso andar — disse ele. — De modo algum serei carregado do campo sem estar morto.
— Venha — disse Henrique, e o pôs de pé. Um homem correu para o outro lado e os dois começaram a tirá-lo dali, seus pés arrastando e tropeçando para manter o passo.
— Fique aí — gritou Henrique para a rainha Maria, por cima do ombro. — Nós vamos deixá-lo bem, depois providenciaremos uma carroça ou algo assim e ele irá para casa.
Ela parou onde estava. O pajem do rei chegou correndo com meu lenço na mão, entregando-o a seu patrão. A rainha Maria estendeu o braço.
— Não o incomode agora — disse rispidamente.
O garoto se deteve com um escorregão, sem largar meu lenço.
— Sua Majestade deixou-o cair — disse ele. — Estava em seu peitoral.
Ela estendeu a mão com indiferença e ele entregou-lhe o lenço. Estava atenta a seu marido sendo ajudado a entrar na casa por seu irmão e Sir John Lovick apressando-se na frente, abrindo portas e gritando ordens para os criados. Distraída, ela retornou ao pavilhão da rainha com o meu lenço enrolado em sua mão. Avancei querendo tirá-lo dela, mas, então, não soube o que dizer.
— Ele está bem? — perguntou a rainha Catarina.
A rainha Maria sorriu.
— Sim. Está lúcido e nenhum osso fraturado. Seu peitoral quase não amassou.
— Posso ficar com isso? — perguntou a rainha Catarina.
A rainha Maria olhou meu lenço amarrotado.
— Ah, isto. O pajem do rei me deu. Estava em seu peitoral — Entregou-o. Estava cega e surda para qualquer outra coisa que não fosse seu marido. — Vou para junto dele — decidiu. — Ana, você e as outras podem ir para casa com a rainha depois do jantar.
A rainha deu sua permissão com um aceno da cabeça e a rainha Maria saiu rapidamente do pavilhão em direção à casa. A rainha Catarina observou-a ir, meu lenço em suas mãos. Sem pressa, como eu sabia que seria, examinou-o. A bela seda deslizou suavemente por seus dedos. Na bainha franjada, viu o verde vivo do bordado do monograma: MB. Devagar, de maneira acusadora, virou-se para mim.
— Acho que isto é seu — disse, com a voz grave e desdenhosa. Segurou-o com o polegar e o indicador, como se fosse um rato morto encontrado no fundo de um armário.
— Vá — sussurrou Ana. — Tem de pegá-lo. — Empurrou-me por trás e avancei.
A rainha deixou-o cair quando cheguei e o peguei no ar. Parecia um lamentável pedacinho de pano, algo com que se lava o chão.
— Obrigada — eu disse submissamente.
Durante o jantar, o rei mal olhou para mim. O acidente o deixara melancólico, uma característica de seu pai que seus cortesãos também aprendiam a temer.
A rainha não poderia ser mais agradável e divertida. Mas nem a conversa, nem sorrisos encantadores, nem música conseguiram levantar seu ânimo. Observava as palhaçadas do bobo da corte sem rir, escutava os músicos e bebia. A rainha não podia fazer nada para animá-lo, pois era, em parte, a razão de seu mau humor. Ele a olhava como se fosse uma mulher prestes a mudar de vida, ele via a Morte em seu ombro. Ela poderia viver mais doze anos, poderia viver mais vinte anos. A Morte estava, mesmo agora, ressecando suas regras, colocando linhas em seu rosto. A rainha encaminhava-se para a velhice e não tinha feito nem um só herdeiro para sucedê-los. Podiam realizar torneios, cantar, dançar, brincar o dia todo, mas se o rei não desse um garoto a Gales como príncipe, teria fracassado em seu dever fundamental, mais importante, com o reino. E um bastardo de Bessie Blount não serviria.
— Tenho certeza de que Charles Brandon vai se recuperar logo — falou a rainha, espontaneamente. Havia ameixas cristalizadas e vinho doce na mesa. Ela bebeu um gole, mas acho que não o apreciou, enquanto seu marido, sentado ao seu lado, tinha a expressão tão cansada e sombria que mais parecia seu pai, que nunca gostara dela. — Não deve achar que fez algo errado, Henrique. Foi um combate justo. E só Deus sabe como já levou golpes dele.
Ele virou-se em sua cadeira e olhou para ela. Ela olhou de volta e vi o sorriso se esvair de sua face diante da frieza de seu olhar. Ela não perguntou qual era o problema. Era velha demais e sensata demais para perguntar a um homem com raiva o que o estava perturbando. Em vez disso, sorriu, um sorriso terno, intrépido, e ergueu seu copo para ele.
— À sua saúde, Henrique — disse ela com seu sotaque cordial. — À sua saúde, e devo agradecer a Deus que não tenha sido você a ser ferido hoje. Antes disso, fui eu que fiquei correndo do pavilhão para as liças com o meu coração palpitando de medo. E apesar de lamentar por sua irmã, a rainha Maria, tenho de estar feliz por hoje não ter sido você o ferido.
— E agora esta — disse Ana no meu ouvido. — Esta foi magistral.
Deu certo. Henrique, seduzido pela ideia de uma mulher morta de medo por seu bem-estar, desfez sua expressão sombria, emburrada.
— Eu nunca lhe causaria um momento de inquietação.
— Meu marido, causou-me dias e noites de inquietação — disse a rainha Catarina, sorrindo. — Mas contanto que esteja bem e feliz e contanto que, depois de tudo, volte para casa, do que me queixaria?
— Aha — disse Ana baixinho. — Então, ela lhe dá permissão e sua ferroada está dada.
— O que quer dizer? — perguntei.
— Acorde — disse Ana com rispidez. — Não está vendo? Ela lhe tirou o mau humor e disse que ele pode tê-la, contanto que volte para casa depois.
Observei-o erguer o copo fazendo-lhe um brinde.
— E o que acontece depois? — perguntei. — Já que sabe tudo.
— Oh, ele tem você durante algum tempo — replicou com negligência. — Mas você não ficará entre os dois. Você não o conservará. Ela é velha, é verdade. Mas pode agir como se o adorasse e ele precisa disso. E quando ele era pouco mais que um menino, ela era a mulher mais bela do reino. É preciso muito para superar isso. Tenho dúvidas de se você é a mulher para isso. É muito bonita e está apaixonada por ele, o que é útil, mas não creio que uma mulher como você possa dominá-lo.
— E quem poderia? — perguntei, ofendida por seu menosprezo. — Você, suponho.
Ela olhou para os dois como se fosse um engenheiro medindo um muro. Não havia nada em sua expressão além de curiosidade e perícia profissional.
— Talvez — disse ela. — Mas seria um projeto difícil.
— É a mim que ele quer e não a você — lembrei-lhe. — Pediu-me uma prenda. Usou meu lenço sob seu peitoral.
— Deixou-o cair e o esqueceu — salientou Ana, com a sua precisão cruel de sempre. — De qualquer jeito, o que ele quer não é a questão. Ele é ganancioso e mimado. Pode-se fazer com que queira qualquer coisa. Mas você nunca será capaz de fazer isso.
— Por que não? — perguntei colericamente. — O que a faz pensar que poderia prendê-lo e eu não?
Ana olhou para mim com sua bela face tão amorosa quanto se tivesse sido esculpida no gelo.
— Porque a mulher que o dominar terá de ser alguém que não se esquece nem por um instante de que está ali por estratégia. Você está pronta para os prazeres da vida conjugal. Mas a mulher que controlar Henrique saberá que seu prazer está em controlar os pensamentos dele, a cada minuto do dia. Não será um casamento de luxúria, embora Henrique vá pensar que é isso que está tendo. Será um caso de perícia sem trégua.
O jantar acabou por volta das 5 horas do entardecer frio de abril. Os cavalos foram conduzidos para a frente da casa para que nos despedíssemos de nosso anfitrião e retornássemos ao Palácio de Eltham. Quando deixamos as mesas do banquete, vi os criados despejando as sobras de pães e carnes em grandes cestas que seriam vendidas com desconto à porta da cozinha. Havia um rastro de extravagância, desonestidade e desperdício que seguia o rei pelo país como o limo atrás de uma lesma. As pessoas pobres que tinham ido assistir ao torneio e permanecido para ver a corte jantar reuniam-se agora à porta da cozinha para recolher restos do banquete. Receberiam pedaços da refeição: sobras de pães e carnes, o pudim comido pela metade. Nada seria desperdiçado, os pobres levariam tudo. Eram tão econômicos quanto manter um porco.
Eram essas gratificações que tornavam uma ocupação na casa do rei uma alegria tão grande para os criados. Em cada posto ocupado, o criado podia fazer uma pequena trapaça, economizar um pouquinho. O criado de posto inferior na cozinha podia montar um pequeno negócio com as crostas das massas das tortas, com a gordura da carne, com o sumo dos molhos. Meu pai estava no alto dessa pilha de cortes, já que era quem fiscalizava a casa do rei: vigiava a porção que cada um pegava para seu negócio e pegava uma porção para si mesmo. Até mesmo o comércio da dama de companhia, que parece estar ali para ser companhia e fazer pequenos serviços à rainha, serve para seduzir o rei nas suas barbas, e lhe causar a dor maior que uma mulher pode causar a outra. Também ela tem seu preço. Também ela tem um trabalho secreto depois que o jantar termina e quando a companhia está olhando para o outro lado, e que negocia sobras de promessas e bombons esquecidos do jogo amoroso.
Fomos para casa quando a luz desaparecia do céu, tornando-o cinza e frio. Apertei bem meu manto em volta do corpo, mas mantive o capuz para trás de modo a ver o caminho à minha frente e o céu escurecendo lá em cima, e os pontinhos de estrelas se insinuando no céu cinza-claro. Estávamos na metade do caminho quando o cavalo do rei emparelhou-se com o meu.
— Passou um bom dia? — perguntou.
— Deixou cair o meu lenço — eu disse amuada. — Seu pajem entregou-o à rainha Maria que o deu à rainha Catarina. Ela entendeu na hora. Devolveu-me o lenço.
— E daí?
Devo ter pensado nas pequenas humilhações que a rainha Catarina suportava como parte de seu papel. Nunca se queixava de seu marido. Levava seus problemas a Deus e, ainda assim, em uma oração sussurrada bem baixinho.
— Eu me senti horrível — repliquei. — Para começar, nunca o deveria ter dado à Sua Majestade.
— Bem, agora já o tem de volta — disse ele sem simpatia. — Já que era tão precioso.
— Não se trata de ser precioso — insisti. — A questão é que ela soube, sem ter a menor dúvida, que era meu. Ela me devolveu o lenço na frente de todas as damas de honra. Largou-o e ele teria caído no chão se eu não o pegasse no ar.
— E o que isso muda? — perguntou, sua voz inflexível, seu rosto de súbito feio e sério. — Qual é a dificuldade? Ela nos viu falando e dançando juntos. Viu-me procurar sua companhia, ficamos de mãos dadas diante dela. Você não se queixou nem resmungou nessa hora.
— Não estou resmungando! — eu disse, ferida.
— Sim, está — disse ele direto. — Sem motivo e, se me permite, sem direito. Não é minha amante nem minha mulher. Não tenho de escutar queixas sobre o meu comportamento de ninguém mais. Sou o rei da Inglaterra. Se não gosta de como me comporto, a França é logo ali. Sim, pode retornar à corte francesa.
— Majestade... eu...
Esporeou seu cavalo, que começou a trotar e depois seguiu a meio galope.
— Boa noite — disse ele por cima do ombro e se afastou, seu manto adejando e a pena em seu chapéu ondeando. E me deixou sem eu ter nada o que lhe dizer, sem ter como chamá-lo de volta.
Não falei com Ana, embora ela me acompanhasse, em silêncio, dos aposentos da rainha até o nosso quarto e esperasse um relato completo de tudo o que tinha sido dito e feito.
— Não vou falar — repliquei obstinadamente. — Deixe-me em paz.
Ana tirou o capelo e se pôs a desfazer a trança de seu cabelo. Pulei para a cama, tirei meu vestido, pus a camisola e escorreguei para dentro dos lençóis sem escovar meu cabelo ou mesmo lavar o rosto.
— Você não vai dormir assim — disse Ana, escandalizada.
— Pelo amor de Deus — eu disse, com a cabeça no travesseiro —, me deixe em paz.
— O que ele...? — começou Ana vindo para o meu lado na cama.
— Não vou dizer. Portanto, não pergunte.
Ela assentiu balançando a cabeça, virou-se e apagou a vela.
O cheiro da fumaça do pavio queimado veio em minha direção. Seu cheiro era o cheiro da tristeza. No escuro, protegida do escrutínio de Ana, me virei de costas, olhei para o dossel acima, e refleti sobre o que aconteceria se o rei tivesse ficado irritado a ponto de nunca mais voltar a olhar para mim.
Meu rosto estava frio. Pus a mão nas bochechas e percebi que estavam molhadas de lágrimas. Esfreguei o rosto no lençol.
— O que foi agora? — perguntou Ana, sonolenta.
— Nada.
— Você o perdeu — disse tio Howard de maneira acusadora. Baixou os olhos para a comprida mesa de jantar de madeira no salão do Palácio de Eltham. Os criados estavam de guarda nas portas atrás de nós, não havia ninguém no hall exceto dois cães e um menino adormecido nas cinzas do fogo. Nossos homens de libré Howard estavam às portas no extremo mais distante. O palácio, o palácio do próprio rei, tinha-se tornado seguro para os Howard, de modo que podíamos conspirar em particular.
— Você o tinha em suas mãos e o perdeu. O que fez de errado?
Sacudi a cabeça. Era secreto demais para ser revelado ali, diante da superfície dura da mesa alta, para ser mostrado ao inflexível tio Howard.
— Quero uma resposta — disse ele. — Você o perdeu. Não a olha há uma semana. O que fez de errado?
— Nada — sussurrei.
— Tem de ter feito alguma coisa. No torneio, ele levou seu lenço sob o peitoral. Deve ter feito algo que o irritou depois disso.
Lancei um olhar reprovador a meu irmão George, a única pessoa que poderia ter contado a tio Howard sobre o lenço. Ele sacudiu os ombros e fez uma cara amargurada.
— O rei deixou-o cair e seu pajem o deu à rainha Maria — repliquei, com um nó de nervoso e aflição na garganta.
— E depois? — disse meu pai rispidamente.
— Ela deu-o à rainha. E a rainha o devolveu a mim — Olhei de um rosto a outro, todos inflexíveis. — Todos souberam o que significava — disse em desespero. — No caminho para casa, eu lhe disse que não tinha gostado de ele ter deixado que minha prenda fosse descoberta.
Tio Howard bufou, meu pai bateu na mesa. Minha mãe virou a cara, como se não suportasse olhar para mim.
— Pelo amor de Deus! — Tio Howard olhou fixo para minha mãe. — Você me garantiu que ela tinha sido educada apropriadamente. Metade de sua vida passada na corte francesa e choraminga com ele como se fosse uma pastora atrás de um monte de feno.
— Como pôde? — perguntou minha mãe simplesmente.
Enrubesci e deixei minha cabeça cair até ver o reflexo de minha própria cara infeliz na superfície polida da mesa.
— Não pretendi dizer a coisa errada — sussurrei. — Lamento.
— Não é tão grave — interferiu George. — Vocês estão sendo dramáticos demais. Ele não vai ficar com raiva por muito tempo.
— Ele emburra que nem urso — vociferou meu tio. — Acha que as garotas Seymour não estão dançando para ele neste exato momento?
— Nenhuma tão bonita como Maria — insistiu meu irmão. — Ele vai esquecer que ela disse algo inconveniente. Talvez até mesmo goste dela por isso. Demonstra que não é tão calculada, que há um pouco de paixão nisso tudo.
Meu pai assentiu, um pouco confortado, mas meu tio bateu na mesa com seus dedos compridos.
— O que devemos fazer?
— Leve-a daqui — falou Ana subitamente. Todos se voltaram para ela imediatamente, como acontece sempre com um orador tardio, mas a confiança em sua voz prendia a atenção.
— Levá-la? — perguntou ele.
— Sim. Mande-a para Hever. Diga-lhe que está doente. Deixe que pense que ela está morrendo de tristeza.
— E depois?
— E depois ele vai querê-la de volta. Ela poderá ordenar o que quiser. Tudo o que tem a fazer... — Ana deu seu sorriso malicioso. — Tudo o que ela tem a fazer quando regressar é se comportar tão bem que encante o príncipe mais instruído, mais sagaz, mais bonito da cristandade. Acha que ela pode fazer isso?
Houve um silêncio frio, minha mãe, meu pai, meu tio Howard e até mesmo meu irmão George, todos me inspecionando em silêncio.
— Eu também não — disse Ana de modo presunçoso. — Mas posso ensinar-lhe o suficiente para que consiga ir para a sua cama, e o que vai lhe acontecer depois, seja o que for, está nas mãos de Deus.
Tio Howard olhou firmemente para Ana.
— Pode ensiná-la a atraí-lo? — perguntou.
Ela ergueu a cabeça e lhe sorriu, a segurança em pessoa.
— É claro, por algum tempo — replicou ela. — Afinal, ele é apenas um homem.
Tio Howard riu diante da rejeição casual de seu sexo.
— Deve ter cuidado — incitou ele. — Nós, homens, não estamos onde estamos hoje por acidente. Escolhemos ocupar as posições de poder, apesar dos desejos das mulheres. E escolhemos usar essas posições para fazer leis que nos manterão ali para sempre.
— É verdade — concordou Ana. — Mas não estamos falando de política. Estamos falando de cativar o desejo do rei. Ela só precisa atraí-lo e segurá-lo por tempo suficiente para que lhe faça um filho varão, um bastardo Howard real. O que mais podemos querer?
— E ela pode fazer isso?
— Pode aprender — replicou Ana. — Está quase lá. E afinal ela foi escolhida por ele. — Encolheu ligeiramente os ombros, um sinal de que não considerava muito a escolha do rei.
Houve um silêncio. A atenção de tio Howard tinha-se voltado para mim e meu futuro como a égua reprodutora da família. Mas olhava para Ana como se a visse pela primeira vez.
— Não são muitas as donzelas de sua idade que pensam com tanta clareza.
Ela sorriu para ele.
— Sou uma Howard, como o senhor.
— Surpreende-me que não tente conquistá-lo você mesma.
— Pensei nisso — replicou francamente. — Qualquer mulher na Inglaterra, hoje, pensaria nisso.
— Mas? — provocou-a.
— Sou uma Howard — repetiu ela. — O que importa é que uma de nós seduza o rei. Não importa qual das duas. Se ele prefere Maria e ela gera um filho seu, então minha família se torna a primeira no reino. Sem rival. E podemos conseguir isso. Podemos manobrar o rei.
Tio Howard assentiu com a cabeça. Ele sabia que a consciência do rei era um animal domesticado, que gostava de viver em bando, mas propenso a interrupções obstinadas repentinas.
— Parece que temos de agradecer-lhe — disse ele. — Planejou a nossa estratégia.
Ela aceitou seu agradecimento não com uma reverência, o que teria sido gracioso. Em vez disso, virou sua cabeça como uma flor em seu caule, um gesto tipicamente arrogante.
— É claro que anseio por ver minha irmã como a favorita do rei. Isso é assunto meu tanto quanto de vocês.
Ele sacudiu a cabeça quando minha mãe mandou calar sua filha mais velha excessivamente confiante.
— Não, deixe-a falar — interferiu ele. — É tão arguta quanto qualquer um de nós. E acho que está certa. Maria deve ir para Hever e esperar o rei chamá-la.
— Ele vai chamar — disse Ana com segurança. — Ele vai chamar.
Senti-me um pacote, como um cortinado para a cama, ou pratos para a mesa, ou vasilhas de estanho para mesinhas no corredor. Eu seria embrulhada e despachada para Hever como isca para o rei. Eu não o veria antes de partir, não falaria com ninguém sobre a minha partida. Minha mãe disse à rainha que eu estava excessivamente cansada e pediu que eu fosse dispensada de seus serviços por alguns dias para que pudesse ir para casa e descansar. A rainha, coitada, achou que tinha triunfado. Achou que os Bolena estavam se retirando.
Não foi uma viagem longa, a distância era de pouco mais de 20 milhas. Paramos para comer à margem da estrada, comemos somente pão e queijo que era o que tínhamos levado. Meu pai poderia ter pedido a hospitalidade a qualquer casa importante no caminho, pois era reputado como um cortesão bastante considerado pelo rei, e poderíamos ter sido recebidos regiamente. Mas não quis interromper a viagem.
Na estrada sulcada e repleta de depressões, víamos aqui e ali uma roda de carroça quebrada, e seu viajante derrubado. Mas os cavalos andavam bem em solo seco e vez ou outra a viagem corria tão bem que guiávamos a trote largo. As margens da estrada estavam cobertas pelo branco do gesso natural e das grandes margaridas brancas, e o verde da relva do verão precoce vicejava. Nas sebes, as madressilvas se contorciam ao redor do crescimento explosivo do espinheiro e suas flores, nas raízes se espalhavam ervas-férreas purpúreas e a cardamina e suas flores graciosas brancas com nervuras purpúreas. Atrás das sebes, nos pastos luxuriantes, havia vacas gordas com a cabeça baixa, ruminando, e nos campos altos havia rebanhos de carneiros, volta e meia com um garoto vigiando-os da sombra de uma árvore. O solo comum fora das aldeias, lavrado em faixas em sua maior parte, oferecia uma bonita vista onde tinham sido plantadas em fileiras cebolas e cenouras, eretas como um cortejo desfilando. Nas aldeias em si, os jardins dos chalés eram um emaranhado de narcisos silvestres e ervas, legumes e prímulas, vagens silvestres projetando-se, e fileiras de cercas vivas de espinheiros em flor, com um lugar afastado para um porco, e um galo cantando no monturo do lado de fora da porta dos fundos. Meu pai cavalgava em silêncio, tranquilo e satisfeito, quando a estrada nos introduziu em nossa terra, colina abaixo, atravessando Edenbridge e campinas em direção a Hever. Os cavalos tornaram seus passos mais lentos à medida que o caminho se tornava mais difícil na via úmida, mas meu pai estava paciente, agora que nos aproximávamos da propriedade.
Tinha sido a casa do meu avô antes de ser a do meu pai, mas não pertencera à nossa família antes disso. Meu avô tinha sido um homem de recursos moderados que havia subido por mérito próprio em Norfolk, aprendiz de um vendedor de tecidos, e que acabou se tornando o prefeito de Londres. Apesar de nos aferrarmos à nossa linhagem Howard, ela era muito recente, e somente do lado de minha mãe, que tinha sido Elizabeth Howard, filha do Duque de Norfolk, um excelente partido para o meu pai. Ele a tinha levado para a nossa suntuosa casa em Rochford, Essex, e depois a Hever, onde ela se espantara com a pequenez do castelo e os exíguos e aconchegantes aposentos privados.
Ele se pôs, imediatamente, a reconstruí-lo para agradá-la. Primeiro colocou um teto sobre o salão, que havia sido aberto, com as vigas à mostra, ao estilo antigo. No espaço criado acima do salão, fez um conjunto de aposentos para nós, onde podíamos comer e gozar uma privacidade e conforto maiores.
Meu pai e eu chegamos aos portões do parque, o porteiro e sua mulher realizando acrobacias ao fazerem a reverência. Passamos por eles com um aceno, e subimos a estrada de terra até o primeiro rio, que era atravessado por uma pequena ponte de madeira. Minha égua não gostou de sua aparência, e empacou assim que ouviu o eco de seus cascos sobre a madeira oca.
— Tola — disse meu pai, e fiquei me perguntando se se referia a mim ou ao cavalo. Pôs seu cão de caça diante do meu e conduziu o caminho. Minha égua seguiu atrás, muito dócil quando viu que não havia perigo, e assim alcancei, atrás do meu pai, a ponte levadiça de nosso castelo, e aguardei os homens saírem do quartel da guarda para pegarem nossos cavalos e os conduzirem aos estábulos nos fundos.
Quando me baixaram da sela, minhas pernas estavam enfraquecidas por ter montado durante tanto tempo, mas segui meu pai até o lado de lá da ponte levadiça, à sombra da guarita, sob os medonhos dentes grossos da porta levadiça, penetrando no pequeno pátio acolhedor do castelo.
A porta da frente estava aberta, o despenseiro e os principais criados da casa saíram e fizeram uma mesura a meu pai, mais meia dúzia de criados atrás deles. Meu pai os examinou: alguns estavam com a libré completa, outros não, duas das criadas desamarravam rapidamente os aventais de tecido de juta usados sobre seus melhores aventais, expondo parte de sua roupa de baixo muito suja; o menino que cuidava da carne na grelha, espiando do canto do pátio, estava imundo com uma sujeira entranhada e seminu em seus trapos. Mau pai percebeu a desordem e desleixo geral, e balançou a cabeça.
— Muito bem — disse ele com cautela. — Esta é a minha filha Maria. Sra. Maria Carey. Prepararam quartos para nós?
— Oh, sim, senhor. — O camareiro fez uma reverência. — Está tudo pronto. O quarto da Sra. Carey está pronto.
— E o jantar? — perguntou meu pai.
— Também.
— Comeremos na sala privada. Amanhã, jantarei no salão, e poderão me ver. Diga-lhes que jantarei amanhã em público, mas que hoje não quero ser incomodado.
Uma das garotas se adiantou e fez uma mesura para mim.
— Posso mostrar-lhe seu quarto, Sra. Carey?
Com o consentimento de meu pai, a acompanhei. Atravessamos a ampla porta da frente e seguimos por um corredor estreito à esquerda. No final, uma escada pequenina em espiral nos levou para um bonito quarto no andar de cima, com uma pequena cama rodeada por um cortinado de seda azul-claro. As janelas davam para o fosso e o parque. Uma porta me levava a uma pequena galeria com uma lareira de pedra que era a sala de estar preferida de minha mãe.
— Quer se lavar? — perguntou a garota, sem jeito. Apontou uma jarra e bacia cheia de água fria. — Quer que traga um pouco de água quente?
Tirei minhas luvas de montar e as dei a ela.
— Sim — eu disse. Pensei por um instante no Palácio de Eltham e nas atenções servis constantes. — Traga-me um pouco de água quente e providencie para que subam minhas roupas. Quero trocar esta roupa de montaria.
Ela fez uma mesura e saiu do quarto descendo a pequenina escada de pedra. Deu para escutá-la murmurando para si mesma: “água quente, roupas”, para não se esquecer. Fui até a janela, ajoelhei no peitoril e olhei para fora.
Tinha passado o dia tentando não pensar em Henrique e na corte que eu deixara para trás, mas agora, com essa acolhida sem conforto, me dei conta de que não tinha perdido apenas o amor do rei, mas também o luxo que se tornara essencial para mim. Eu não queria voltar a ser a Srta. Bolena de Hever. Não queria ser a filha de um pequeno castelo em Kent. Tinha sido a jovem mais favorecida de toda a Inglaterra. Tinha ido para muito além de Hever, e não queria retroceder.
Meu pai não ficou por mais de três dias, tempo suficiente para ver o administrador da terra e os arrendatários que tinham urgência de falar com ele, tempo suficiente para resolver a disputa em relação ao posto na fronteira e mandar que sua égua favorita fosse levada para o garanhão, e então estava pronto para partir. Fiquei na ponte levadiça para me despedir dele e parecia triste de verdade, já que até mesmo ele notou ao montar.
— O que houve? — perguntou, de modo animador. — Não está sentindo falta da corte, está?
— Estou — repliquei com franqueza. Não havia como dizer-lhe que realmente sentia saudade da corte, mas que sentia muito mais, insuportavelmente, a falta de ver Henrique.
— A culpa foi exclusivamente sua — disse meu pai com firmeza. — Temos de confiar em seus irmãos para consertar isso para você. Se não conseguirem, só Deus sabe o que acontecerá com você. Terei de convencer Carey a aceitá-la de volta, e torcer para que a perdoe.
Riu alto ao ver minha cara chocada.
Aproximei-me do cavalo de meu pai e pus a mão no punho de sua luva que se apoiava nas rédeas.
— Se o rei perguntar por mim, vai lhe dizer que sinto muito se o ofendi?
Sacudiu a cabeça.
— Vamos fazer da maneira de Ana — disse ele. — Parece que sabe como manipular o rei. Tem de fazer o que lhe mandaram, Maria. Errou, agora tem de agir sob ordens.
— Por que tem de ser Ana a dizer o que deve ser feito? — perguntei. — Por que sempre a escuta?
Meu pai tirou sua mão de debaixo da minha.
— Porque ela tem a cabeça no lugar e sabe seu próprio valor — disse ele francamente. — Enquanto você se comportou como uma menina de 14 anos apaixonada pela primeira vez.
— Mas eu sou uma menina de 14 anos apaixonada pela primeira vez! — exclamei.
— Exatamente — disse ele inflexível. — Por isso escutamos Ana.
Não se deu ao trabalho de dizer adeus, simplesmente virou o cavalo, atravessou a galope a ponte levadiça, e prosseguiu em direção aos portões.
Levantei a mão para acenar, caso ele se virasse, mas não se virou. Cavalgou com as costas eretas, olhando em frente. Montou como um Howard. Nunca olhamos para trás. Não temos tempo para arrependimentos ou pensar duas vezes. Se um plano dá errado, elaboramos outro, se uma arma quebra em nossas mãos, pegamos outra. Se os degraus se desmoronam diante de nós, saltamos por cima e prosseguimos. Para os Howard é sempre caminhar para a frente e para cima, e meu pai estava retornando à corte, à companhia do rei sem se virar para olhar para trás, para mim.
No fim da primeira semana, eu tinha percorrido todas as trilhas que havia no jardim e explorado o parque em todas as direções a partir de minha base na ponte levadiça. Tinha iniciado uma tapeçaria para o altar da igreja de São Pedro em Hever e concluído 30 centímetros quadrados do céu, o que foi realmente muito maçante, já que era só azul. Tinha escrito três cartas a Ana e George, e as enviado por um mensageiro à corte em Eltham. Três vezes, ele retornou sem nenhuma resposta, exceto seus melhores votos.
No fim da segunda semana, mandei prepararem meu cavalo de manhã e passei a fazer longas cavalgadas sozinha. Estava irritada demais até mesmo para a companhia de uma criada calada. Tentei esconder meu humor. Agradecia à criada por qualquer serviço que fazia para mim. Sentava-me para jantar e baixava a cabeça quando o padre dizia a oração de graças, como se não sentisse vontade de me levantar e gritar frustrada que estava presa em Hever enquanto a corte mudava de Eltham para Windsor, sem mim. Fiz tudo o que podia para conter o ódio de estar tão longe da corte, e ser tão ignorada por todos.
Na terceira semana, tinha entrado em um desespero resignado. Não recebi notícias de ninguém e concluí que Henrique não queria o meu retorno, que o meu marido se revelava intratável e não queria uma mulher com a desonra de ter sido um flerte do rei — e não a sua amante. Uma mulher assim não contribuiria para o prestígio de um homem. O melhor, para uma mulher assim, era deixá-la no campo. Escrevi duas vezes para Ana e George na segunda semana, mas continuaram sem responder. Então, na terça-feira da terceira semana, recebi uma mensagem rabiscada por George.
Não se desespere — aposto que está se sentindo abandonada por todos nós. Ele fala de você constantemente e fico-lhe lembrando seus muitos encantos. Acho que mandará buscá-la em um mês. Certifique-se de estar com ótima aparência!
Geo
Ana pede que lhe diga que escreverá em breve.
A carta de George foi o único momento de alívio durante a minha longa espera. Quando teve início meu segundo mês de espera, o mês de maio, sempre o mês mais alegre na corte, quando a temporada dos piqueniques e excursões recomeçava, os dias me pareceram muito longos.
Não tinha com quem conversar, não tinha absolutamente ninguém com quem falar. Minha criada conversava comigo enquanto me vestia. Durante o café da manhã, eu me sentava na cabeceira da mesa e comia sozinha, falando somente com os requerentes que traziam negócios para meu pai gerir. Andava um pouco no jardim. Lia alguns livros.
Nas longas tardes, mandava trazerem meu cão e cavalgava por áreas cada vez maiores da região rural. Comecei a conhecer as veredas e desvios que se estendiam ao redor de minha casa, e passei até mesmo a reconhecer alguns dos arrendatários em suas pequenas fazendas. Aprendi seus nomes e comecei a refrear meu cavalo quando via um homem trabalhando nos campos e lhe perguntava o que estava plantando, e como estava indo. Era o melhor momento para os fazendeiros. O feno estava cortado, ressecando, esperando ser arremessado com o forcado em grandes montes e coberto com sapé para se manter seco para forragem no inverno. O trigo, a cevada e o centeio cresciam nos campos, em altura e abundância. Os bezerros engordavam com o leite de suas mães e o lucro da venda da lã neste ano foi computado em cada fazenda e chalé do condado.
Antes do trabalho essencial da colheita, havia um intervalo para o lazer, uma breve trégua no trabalho árduo do ano, quando os fazendeiros organizavam pequenos bailes e competições e esportes na área verde das aldeias.
Eu, que antes cavalgara na propriedade dos Bolena olhando sem ver nada à minha volta, conhecia agora toda a região em volta do muro da propriedade, os fazendeiros e a safra que estavam plantando. Quando me procuravam na hora do jantar e se queixavam de que um desses homens não estava lavrando bem a faixa de terra que cultivava por acordo com a sua aldeia, eu sabia imediatamente do que estavam falando porque passara nesse caminho um dia antes e tinha visto a terra tomada de ervas daninhas e urtigas, o único lote arruinado no meio dos campos comuns bem-cuidados. Era fácil para mim, enquanto jantava, avisar o arrendatário de que perderia a sua terra se não a usasse para plantar. Sabia quais fazendeiros cultivavam lúpulo e quais cultivavam vinhas. Fiz um acordo com um fazendeiro; combinamos que se ele conseguisse uma boa safra de uvas, eu pediria a meu pai que a enviasse a Londres para que um francês fosse chamado ao Castelo de Hever e ensinasse a arte de fazer vinho.
Não era nenhum sofrimento cavalgar pela região diariamente. Adorava estar ao ar livre, escutar o canto dos pássaros ao atravessar a floresta, sentir o perfume das madressilvas em flor que caíam em cascatas nas sebes em cada margem da trilha. Adorava a minha égua Jesmond, que o rei me dera, a sua ânsia de trotar largo, o meneio rápido e alerta de suas orelhas, seu relincho ao me ver entrando no estábulo com uma cenoura na mão. Adorava a exuberância das campinas à margem do rio, a maneira como tremeluziam branco e amarelo com suas flores, e o fulgor das papoulas vermelhas nos trigais. Adorava o descampado e os bútios no céu, sobrevoando em grandes círculos, ainda mais no alto do que as cotovias, antes de suas grandes asas os levarem para longe.
Era tudo um paliativo, era tudo uma maneira de eu passar o tempo, já que não podia estar com Henrique, não podia estar na corte. Porém cada vez mais sentia que se nunca mais retornasse à corte, poderia, pelo menos, me tornar um senhorio justo e eficiente. Os jovens fazendeiros mais empreendedores de fora de Edenbridge viam que havia um mercado para alfafa. Mas não conheciam ninguém que a plantasse, nem onde conseguir as sementes. Escrevi por eles a um fazendeiro na propriedade de meu pai, em Essex, e recebi sementes e orientação. Plantaram um campo enquanto estive lá e prometeram plantar outro quando constataram como a safra gostara do solo. E achei que, embora não passasse de uma mulher e jovem, tinha feito algo excelente. Sem mim, não teriam ido além de bater as mãos sobre a mesa no Hollybush e praguejar que um homem poderia ganhar algum dinheiro com as novas safras. Com a minha ajuda tinham sido capazes de experimentar, e se ganhassem muito dinheiro, seriam, então, mais dois homens progredindo neste mundo. E se a história do meu avô era algum exemplo, então ninguém poderia saber aonde poderiam chegar.
Estavam contentes. Quando fui ao campo para ver como o plantio estava se desenvolvendo, se aproximaram, batendo a lama de suas botas, para explicar como estavam lançando as sementes. Queriam um senhorio que se interessasse. Na ausência de outro, tinham a mim. E sabiam muito bem que se eu me interessasse pela safra, poderia ser convencida a ficar com uma parte. Teria dinheiro em algum lugar que pudesse investir e, por conseguinte, todos progrediríamos juntos.
Ri ao ouvir isso, olhando, de cima do meu cavalo, aqueles rostos bronzeados, castigados pelo tempo.
— Não tenho dinheiro.
— É uma dama nobre na corte — um deles protestou. Seus olhos fixos nas borlas em minhas botas de couro, na sela trabalhada, no luxo de meu vestido e no broche de ouro em meu chapéu. — Há muito mais em suas costas hoje do que ganho em um ano.
— Eu sei — repliquei. — É onde ele está. Nas minhas costas.
— Mas seu pai deve lhe dar dinheiro, ou seu marido — outro homem falou de modo persuasivo. — Melhor jogá-lo em seus próprios campos do que no carteado.
— Sou uma mulher. Nada disso é meu. Olhe para você. Está ganhando bem, e a sua esposa é uma mulher rica?
Ele deu um risinho à socapa, encabulado.
— Ela é a minha esposa. Vive tão bem quanto eu. Mas não possui nada seu.
— É o mesmo comigo — eu disse. — Vivo bem como meu pai, como meu marido, me visto como é apropriado a uma filha, a uma esposa. Mas não possuo nada. Nesse sentido, sou tão pobre quanto a sua mulher.
— Mas é uma Howard e eu não sou ninguém — observou.
— Sou uma mulher Howard. O que significa que posso ser uma das pessoas mais importantes na propriedade ou uma zé-ninguém como você. Tudo depende.
— Do quê? — perguntou ele, intrigado.
Pensei na expressão subitamente sombria de Henrique quando lhe desagradei.
— Da minha sorte.
Verão de 1522
Na metade de meu terceiro mês de exílio, junho, com o jardim de Hever repleto de rosas viçosas, seu perfume pairando no ar feito fumaça, recebi uma carta de Ana.
Pronto. Interrompi o caminho do rei e falei sobre você, disse que sentia uma saudade insuportável e que ansiava por estar com ele. Disse que você tinha desgostado sua família ao demonstrar tão francamente seu amor e que tinha sido mandada para longe para esquecê-lo. Tão oposta é a natureza masculina que ele ficou extremamente excitado ao imaginá-la em aflição. Mas o que importa é que já pode retornar à corte. Estamos em Windsor. Papai disse que pode ordenar meia dúzia de homens do castelo para escoltá-la e que venha imediatamente. Tem de chegar discretamente antes do jantar e vir direto para o meu quarto, e lhe direi como deve se conduzir.
O Castelo de Windsor, um dos castelos mais bonitos de Henrique, parecia, na colina verde, uma pérola cinza em um veludo, o estandarte do rei adejando no torreão, a ponte levadiça aberta, um ir e vir contínuo de carroças, mascates, carretas de cervejeiros. A corte sugava a fartura do campo onde quer que estivesse, e Windsor era experiente em suprir o apetite lucrativo do castelo. Entrei furtivamente por uma porta lateral e me dirigi aos aposentos de Ana, me esquivando de qualquer conhecido. Seu quarto estava vazio. Acomodei-me para esperar. Como imaginei, às 3 da tarde, ela chegou tirando o capelo. Deu um pulo ao me ver.
— Achei que era um fantasma! Que susto me deu.
— Disse para eu vir a seu quarto sem ninguém notar.
— Sim, queria lhe contar em que pé estão as coisas. Estava falando com o rei ainda agora. Estávamos assistindo ao torneio de lanças, a Lord Percy. Mon Dieu! Como está quente!
— O que ele disse?
— Lord Percy? Oh, é encantador.
— Não, o rei.
Ana sorriu, deliberadamente provocadora.
— Perguntava sobre você.
— E o que você disse?
— Deixe-me eu pensar. — Jogou o capelo na cama e soltou o cabelo, que caiu como uma onda escura em suas costas. Ela o levantou com uma mão para refrescar a nuca. — Não consigo me lembrar. Está quente demais.
Já conhecia o bastante da implicância de Ana para me deixar atormentar. Fiquei em silêncio na pequena poltrona de madeira ao lado da lareira e não virei a cabeça enquanto ela lavava o rosto e borrifava água em seus braços e pescoço. Depois prendeu de novo o cabelo, emitindo várias exclamações em francês e queixas do calor. Nada fez com que eu me virasse.
— Acho que agora me lembro — falou.
— Não tem importância — eu disse. — Eu o verei no jantar. Ele poderá me dizer o que quiser então. Não preciso de você.
Irritou-se com minhas palavras.
— Oh, não precisa! Como vai se comportar? Não sabe nem o que vai dizer!
— Eu soube o bastante para ter virado a sua cabeça, tê-lo deixado apaixonado a ponto de pedir meu lenço — observei com frieza. — Acho que sei o suficiente para falar com ele educadamente depois do jantar.
Ana recuou e me examinou.
— Está muito calma — foi tudo o que disse.
— Tive tempo para refletir — repliquei sem me alterar.
— E?
— Sei o que quero.
Ela esperou.
— Eu o quero — eu disse.
Ela balançou a cabeça.
— Você e todas as mulheres da Inglaterra. Nunca achei que seria original.
Dei de ombros para seu desdém.
— E sei que posso viver sem ele.
Ela apertou os olhos.
— Ficará arruinada, se William não aceitá-la de volta.
— Posso aguentar também isso — repliquei. — Gostei de estar em Hever. Gostei de sair a cavalo todos os dias e de caminhar pelos jardins. Fiquei por conta própria por quase três meses e nunca tinha ficado sozinha em toda a minha vida. Eu me dei conta de que não preciso da corte, nem da rainha, nem do rei, nem mesmo de você. Gostei de cavalgar e olhar a terra cultivada, gostei de conversar com os agricultores, zelar pela safra, ver como é o plantio.
— Quer ser fazendeira? — Ela riu, com escárnio.
— Eu seria feliz como fazendeira — repliquei com serenidade. — Estou apaixonada pelo rei — arfei —, oh, muito. Mas se tudo der errado, posso ser feliz vivendo em uma pequena fazenda.
Ana foi até o baú aos pés da cama e tirou um capelo. Observou-se no espelho, enquanto ajeitava o cabelo e o vestia. Imediatamente a sua aparência sombria, dramática, pareceu assumir uma elegância. Ela tinha consciência disso, é claro.
— Se eu estivesse em seu lugar, seria o rei ou nada para mim — disse ela. — Poria minha cabeça no tronco por uma chance com ele.
— Quero o homem. Não porque ele é rei.
Ela encolheu os ombros.
— São uma coisa só. Não pode desejá-lo como um homem comum e se esquecer da coroa em sua cabeça. Ele é o melhor. Não há homem mais importante do que ele no reino. Você teria de ir à França pelo rei Francis ou à Espanha pelo imperador para encontrar seus pares.
Sacudi a cabeça.
— Vi o imperador e o rei da França e não olharia duas vezes para nenhum dos dois.
Ana virou-se do espelho e baixou um pouco seu corpete para mostrar a curva de seus seios.
— Então, você é uma boba — replicou simplesmente.
Quando estávamos prontas, ela me levou aos aposentos da rainha.
— Ela a aceitará de volta, mas a acolhida não será calorosa — disse Ana por cima do ombro quando os soldados diante da porta da rainha nos saudaram e mantiveram a porta dupla aberta. Nós duas, as irmãs Bolena, entramos como se fôssemos donas da metade do castelo.
A rainha estava sentada no peitoril da janela, as janelas completamente abertas para o ar noturno mais fresco. O músico estava ao seu lado, cantando acompanhado de seu alaúde. Suas damas estavam à sua volta, algumas costurando, outras ociosas, aguardando a chamada para o jantar. Ela parecia perfeitamente em paz com o mundo, cercada de suas amigas, na casa de seu marido, olhando pela janela a pequena cidade de Windsor e, mais além, a curva cor de peltre do rio. Ao me ver, sua expressão não se alterou. Tinha sido muito bem treinada para não trair sua decepção. Sorriu-me ligeiramente.
— Ah, Sra. Carey — disse ela. — Está recuperada e retorna à corte?
Fiz uma reverência.
— Se for a vontade de Sua Majestade.
— Esteve na casa de seus pais durante todo esse tempo?
— Sim. No Castelo de Hever, Majestade.
— Deve ter descansado bem. Não há nada naquela parte do mundo a não ser ovelhas e vacas, estou certa?
Sorri.
— É terra cultivada — concordei. — Mas havia muito o que fazer, para mim. Gostei de sair cavalgando e de conversar com os homens que trabalhavam nos campos.
Por um instante, percebi que ficou intrigada com a ideia de terra, que depois de todos esses anos na Inglaterra, ela só via como um lugar para caçar e fazer piqueniques, e onde fazer expedições no verão. Mas se lembrava de por que eu me afastara da corte.
— Sua Majestade ordenou a sua volta?
Ouvi um silvo de alerta de Ana atrás de mim, mas o ignorei. Ocorreu-me um pensamento romântico, tolo: não queria olhar para essa boa mulher, encarar seus olhos francos, e mentir.
— O rei mandou me chamar, Majestade — respondi respeitosamente.
Ela balançou a cabeça e baixou os olhos para suas mãos cruzadas em seu colo.
— Então, você tem sorte — foi tudo o que disse.
Houve um breve silêncio. Eu queria muito lhe dizer que tinha me apaixonado por seu marido, mas que ela estava muito acima de mim. Era uma mulher cujo espírito tinha sido malhado e forjado até que só parecesse verdadeira. Em comparação ao resto de nós, era prata enquanto não passávamos de peltre, uma mistura comum de chumbo e estanho.
A grande porta dupla abriu-se.
— Sua Majestade, o rei! — anunciou o arauto e Henrique entrou.
— Vim para conduzi-la ao jantar — começou ele e, então, me viu, e se interrompeu. O olhar da rainha desviou de sua face pasma para a minha e de volta para ele.
— Maria — exclamou ele.
Esqueci-me até mesmo de fazer a reverência. Fiquei simplesmente olhando para ele.
Um sinal impaciente de alerta de Ana não me despertou. O rei atravessou o aposento e pegou minhas mãos e as levou ao peito. Senti a aspereza do gibão bordado sob meus dedos, a carícia de sua camisa de seda pelas aberturas.
— Meu amor — disse ele em um sussurro. — Bem-vinda de volta à corte.
— Obrigada...
— Disseram-me que foi afastada para aprender uma lição. Fiz bem em dizer que podia regressar sem aprender?
— Sim. Sim. Fez muito bem — gaguejei.
— Foi repreendida? — insistiu.
Ri brevemente e ergui os olhos, encarando seu olhar azul atento.
— Não. Ficaram um pouco irritados, mas isso foi tudo.
— Queria voltar à corte?
— Oh, sim.
A rainha levantou-se.
— Então, vamos jantar, senhoras — disse dirigindo-se a todas. Henrique lançou-lhe um olhar de relance por cima do ombro. Ela estendeu-lhe a mão, soberba como uma filha da Espanha. Ele virou-se para ela com o antigo hábito de dedicação e obediência, e não me ocorreu como recapturá-lo. Recuei para trás dela e me curvei para ajeitar a cauda de seu vestido, enquanto ela permaneceu ereta, majestosa, bela apesar de sua corpulência, do cansaço em seu rosto.
— Obrigada, Sra. Carey — disse ela gentilmente. E nos conduziu com sua mão pousada levemente no braço de seu marido. Ele inclinou a cabeça para ouvir alguma coisa que ela dizia, e não virou mais a cabeça para mim.
George me saudou no fim do jantar, indo para a mesa da rainha onde nós, as damas de honra, estávamos sentadas com vinho e doces à nossa frente. Trouxe-me uma ameixa cristalizada.
— Um doce para um doce — disse ele dando um beijo em minha testa.
— Oh, George — eu disse. — Obrigada por sua carta.
— Você estava me bombardeando com gritos desesperados — disse ele. — Recebi três cartas suas na primeira semana. Foi tão terrível assim?
— Na primeira semana, sim — repliquei. — Mas depois me acostumei. No fim do primeiro mês, já estava gostando da vida no campo.
— Bem, nós todos fizemos o máximo por você aqui — disse ele.
— Tio Howard está na corte? — perguntei, procurando em volta. — Não o estou vendo.
— Não, em Londres com Wolsey. Mas está a par de tudo o que está acontecendo, não se preocupe. Mandou lhe dizer que estará recebendo notícias suas e está confiante de que agora sabe como se comportar.
Jane Parker inclinou-se à frente do outro lado da mesa.
— Vai ser dama de honra? — perguntou a George. — Está sentado à nossa mesa e em um banco para mulheres.
George levantou-se sem pressa.
— Peço perdão, senhoras. Não quis ser um intruso.
Meia dúzia de vozes o assegurou de que não estava sendo um intruso. Meu irmão era um rapaz bonito e um frequentador popular dos aposentos da rainha. Ninguém, a não ser sua noiva amarga, fez objeção à sua presença em nossa mesa. Curvou-se sobre sua mão.
— Srta. Parker, obrigado por me lembrar que devo deixá-la — disse ele cortesmente, a sua irritação evidente por trás de suas palavras doces. Beijou-me com força nos lábios.
— Deus ajudou-a, pequena Mariana — sussurrou em meu ouvido. — Está carregando as esperanças da sua família.
Segurei sua mão antes que se fosse.
— Espere, George, queria lhe perguntar uma coisa.
— O quê?
Puxei sua mão para que se curvasse e eu pudesse sussurrar em seu ouvido.
— Acha que ele me ama?
— Oh — replicou ele, endireitando o corpo. — Oh, o amor.
— Acha?
Deu de ombros.
— O que isso significa? Escrevemos poemas sobre isso o dia todo, cantamos músicas sobre isso a noite toda, mas se existe realmente, não faço a menor ideia.
— Oh, George!
— Ele a quer, isso posso afirmar. Está disposto a enfrentar um certo grau de problema para tê-la. Se isso para você significa amor, a resposta é sim, ele a ama.
— Isso me basta — repliquei com satisfação. — Ele me quer e está disposto a enfrentar um certo grau de problema. Isso me parece amor.
Meu belo irmão fez uma mesura.
— Se assim quer, Maria. Se isso a satisfaz — ergueu-se e imediatamente deu um passo atrás. — Sua Majestade.
O rei estava diante de mim.
— George, não posso permitir que passe a noite conversando com a sua irmã, você é o mais invejado da corte.
— Sou — replicou George com seu charme adulador. — Duas irmãs belas, nenhuma preocupação no mundo.
— Acho que devíamos dançar um pouco — disse o rei. — Você conduziria a Srta. Bolena e eu, a Sra. Carey?
— Seria um prazer — disse George. Sem olhar em volta, estalou os dedos e, alerta como sempre, Ana surgiu ao seu lado.
— Vamos dançar — disse George, sem rodeios.
O rei deu um sinal e os músicos iniciaram uma música de dança folclórica, de modo que nos distribuímos formando um círculo de oito pessoas e começamos os passos harmoniosos para um lado e depois para o outro. No lado de lá do círculo, vi a cara querida e familiar de George; ao lado dele, o sorriso tranquilo de Ana. A sua expressão era a mesma de quando estudava um livro. Estava interpretando o humor do rei tão atentamente quanto se examinasse um saltério. Ela olhava dele para mim como se avaliasse a urgência de seu desejo. E apesar de nunca virar a cabeça, checava o humor da rainha, tentando ter uma ideia do que ela tinha visto e do que ela estava sentindo.
Sorri para mim mesma. Ana tinha encontrado seu par na rainha, pensei. Ninguém penetrava sob o verniz da filha de Espanha. Ana era uma súdita superior às outras, mas tinha nascido plebeia. A rainha Catarina tinha nascido princesa. Assim que aprendeu a falar, foi-lhe ensinado a ter cuidado com o que falava. Assim que aprendeu a andar, foi-lhe ensinado a dar passos com cautela e a falar gentilmente tanto com ricos quanto com pobres, pois nunca se sabe quando se vai precisar do rico e do pobre. A rainha Catarina tinha sido uma jogadora em uma corte altamente competitiva e opulenta antes mesmo de Ana nascer.
Ana podia olhar em volta e ver como a rainha estava suportando me ver perto do rei, nossos olhos fixos um no outro, o desejo inflamado entre nós. Ana podia olhar, mas a rainha nunca traía qualquer outra emoção a não ser um interesse polido. Batia palmas no fim das danças e uma ou duas vezes gritou parabéns. E então, de súbito, a música acabou, e Henrique e eu fomos deixados parados, sem músicos tocando, sem outros dançando à nossa volta e nos ocultando. Fomos deixados sós, expostos, ainda de mãos dadas, olhos nos olhos, em silêncio, presos um ao outro como se fôssemos ficar assim para sempre.
— Bravo — disse a rainha, a voz completamente firme e confiante. — Muito bonito.
— Ele vai mandar chamá-la — disse Ana nessa noite, quando nos despíamos no quarto. Ela tirou o vestido e o pôs com cuidado sobre o baú aos pés da cama, seu capelo no outro extremo, seus sapatos cuidadosamente colocados lado a lado sob a cama. Vestiu sua camisola e sentou-se diante do espelho para escovar seu cabelo.
Ela me deu a escova e fechou os olhos quando comecei os movimentos longos do alto da cabeça à cintura.
— Talvez esta noite, talvez amanhã de dia. Você irá.
— É claro que sim — afirmei.
— Mas não se esqueça de quem você é — avisou Ana. — Não deixe que a tenha em qualquer canto ou lugar escondido e de maneira apressada. Insista em aposentos apropriados, em uma cama apropriada.
— Certo — eu disse.
— É importante — me alertou ela. — Se ele achar que pode tê-la como uma prostituta, a terá e a esquecerá. Antes de mais nada, acho que devia esperar um pouco mais. Se achá-la fácil demais, só a terá uma ou duas vezes.
Peguei as madeixas macias e as trancei.
— Ai — queixou-se. — Está puxando.
— Você está resmungando — falei. — Deixe-me fazer à minha maneira, Ana. Não tenho me saído tão mal até agora.
— Ora — encolheu os ombros alvos e sorriu para o seu reflexo no espelho. — Qualquer uma pode atrair um homem. A questão é conservá-lo.
A batida na porta sobressaltou nós duas. Os olhos escuros de Ana moveram-se para o espelho, para a minha imagem refletida olhando para ela apática.
— O rei?
Eu já estava abrindo a porta.
Ali estava George, com seu gibão vermelho de camurça que tinha usado no jantar, a elegante camisa branca de linho, o gorro bordado com pérolas sobre seu cabelo escuro.
— Vivat! Vivat Mariana! — Entrou rápido e fechou a porta atrás de si. — Ele pediu que a convidasse a tomar um copo de vinho com ele. Que pedisse desculpas pela hora tardia, o embaixador veneziano só saiu agora. Só falaram de guerra com a França e ele partiu tomado de paixão pela Inglaterra, Henrique e St. George. Também é minha missão assegurá-la de que está livre para fazer a sua escolha. Pode tomar um copo de vinho e voltar para a sua cama. Tem de ser dona de si mesma.
— Alguma oferta? — perguntou Ana.
George ergueu as sobrancelhas de modo arrogante.
— Demonstre um pouco de elegância — repreendeu-a. — Ele não a está comprando abertamente. Ele a está convidando para um copo de vinho. Acertaremos o preço mais tarde.
Coloquei a mão na cabeça.
— Meu capelo! — exclamei. — Ana, depressa! Trance o meu cabelo.
Ela sacudiu a cabeça.
— Vá como está — disse ela. — Com o cabelo solto, caído nos ombros. Parece uma virgem na noite de núpcias. Estou certa, não estou, George? É isso o que ele quer.
Ele assentiu com um movimento da cabeça.
— Está adorável assim. Afrouxe um pouco seu corpete.
— Espera-se que ela seja uma dama.
— Só um pouquinho — propôs ele. — Os homens gostam de entrever o que estão comprando.
Ana desatou os cordões nas costas de meu corpete até que a parte da frente ficasse mais folgada. Puxou-o para baixo, na cintura, para que o decote ficasse mais atraente.
— Perfeito — disse George.
Ela recuou e me examinou tão criticamente quanto meu pai examinaria a égua que mandaria para o garanhão.
— Alguma coisa a mais?
George sacudiu a cabeça.
— Seria bom ela se lavar — decidiu Ana, de súbito. — Debaixo dos braços e a xoxota, pelo menos.
Eu teria apelado para George, mas ele estava assentindo com a cabeça, tão atento quanto um fazendeiro.
— Sim, seria. Ele tem horror a qualquer coisa malcheirosa.
— Vamos. — Ana indicou a jarra e a bacia.
— Vocês dois saiam — eu disse.
George virou-se para a porta.
— Vamos esperar lá fora.
— E o traseiro — disse Ana, ao se aproximar da porta. — Não faça pela metade, Maria. Tem de estar toda limpa.
A porta se fechando impediu que eu respondesse de uma maneira nada adequada a uma jovem dama. Lavei-me rapidamente com a água fria e me enxuguei. Passei um pouco da água de flor de Ana no pescoço, no cabelo e no alto das pernas. Depois, abri a porta.
— Está limpa? — perguntou Ana bruscamente.
Assenti balançando a cabeça.
Olhou-me ansiosamente.
— Então, vá. Resista um pouco, entende? Demonstre uma certa dúvida. Não caia simplesmente em seus braços.
Desviei meu rosto. Ela me pareceu insuportavelmente grosseira em relação a tudo aquilo.
— É natural a garota sentir um pouco de prazer — disse George, gentilmente.
— Não na cama dele — respondeu Ana agressivamente. — Ela não está lá para seu próprio prazer, mas para o dele.
Nem mesmo a ouvia. Tudo o que ouvia era o baque surdo do meu coração pulsando nos meus ouvidos, e a consciência de que ele tinha mandado me chamar, de que logo estaria com ele.
— Vamos — eu disse a George. — Vamos.
Ana virou-se para voltar ao quarto.
— Vou ficar esperando você — disse ela.
Hesitei.
— Talvez eu não volte esta noite.
Ela balançou a cabeça.
— Espero que não, mas vou esperar assim mesmo. Vou me sentar perto do fogo e observar o dia amanhecer.
Pensei, por um momento, nela mantendo vigília em seu quarto de solteira, enquanto eu me instalava confortavelmente e fazia amor na cama do rei da Inglaterra.
— Meu Deus, deve estar desejando que fosse você — eu disse com um prazer repentino.
Ela não titubeou.
— É claro. Ele é o rei.
— E quer a mim — falei, continuando a provocar.
George fez uma mesura e me ofereceu o braço, conduzindo-me pela escada estreita até o saguão diante da grande sala. Nós a atravessamos como um par de fantasmas interligados. Ninguém nos viu passar. Havia dois ajudantes de cozinha dormindo nas cinzas do fogo, e meia dúzia de homens cochilando com a cabeça sobre as mesas ao redor da sala.
Passamos pela mesa principal e as portas que davam início aos aposentos do rei. Havia uma escadaria ampla ricamente adornada por uma bela tapeçaria, as cores filtradas pelos fios de seda brilhantes ao luar. Havia dois guardas diante da sala de audiências, que se afastaram para me deixar passar, ao me verem com o cabelo dourado solto e o sorriso confiante na face.
A sala de audiências por trás da porta dupla foi uma surpresa. Só a conhecia lotada de gente. Era a essa sala que todos iam para ver o rei. Requerentes subornavam membros mais antigos da corte para que permitissem que ali permanecessem para o caso de o rei os notar, perguntar como estavam e o que desejavam dele. Essa grande sala abobadada sempre repleta de gente com sua roupa mais bonita, ansiando pela atenção do rei, estava agora silenciosa, escura. George apertou sua mão na ponta de meus dedos frios.
À nossa frente estavam as portas para os aposentos privados do rei. Dois guardas as protegiam com lanças cruzadas.
— Sua Majestade ordena a nossa presença — disse George concisamente.
Houve um breve repique quando as lanças colidiram, os dois homens apresentaram armas, fizeram uma mesura e abriram as portas.
O rei estava sentado diante do fogo, envolvido por um robe de veludo, adornado com pele. Ao ouvir a porta se abrir, levantou-se de um pulo.
Fiz uma reverência profunda.
— Mandou me chamar, Majestade?
Não conseguiu tirar os olhos de minha face.
— Mandei. E agradeço ter vindo. Queria ver... Queria falar... Queria ter um pouco... — interrompeu-se. — Eu queria você.
Aproximei-me um pouco mais. A essa distância ele poderia sentir o perfume de Ana, pensei. Joguei a cabeça e senti o peso do meu cabelo mudar de lado. Vi seus olhos irem do meu rosto ao meu cabelo, e ao meu rosto de novo. Ouvi a porta se fechar atrás de mim quando George saiu sem uma palavra. Henrique nem mesmo o viu sair.
— Sinto-me honrada, Majestade — murmurei.
Sacudiu a cabeça, não foi um gesto de impaciência, mas sim o gesto de um homem que não quer perder tempo.
— Quero você — disse de novo, o tom da voz sem se alterar, como se isso fosse tudo o que uma mulher precisasse saber. — Quero você, Maria Bolena.
Dei mais um pequeno passo na sua direção, inclinei-me para ele. Senti o calor de seu hálito e, depois, o toque de seus lábios em meu cabelo. Não me mexi, nem para a frente nem para trás.
— Maria — sussurrou ele, e a sua voz soou entrecortada de prazer.
— Majestade?
— Por favor, me chame de Henrique. Quero ouvir meu nome em sua boca.
— Henrique.
— Você não me quer? — sussurrou ele. — Como homem? Se eu fosse agricultor na terra de seu pai, você ia me querer? — Pôs a mão sob meu queixo e ergueu meu rosto para que pudesse olhar em meus olhos. Encontrei seu olhar azul. Cautelosamente, delicadamente, coloquei minha mão em seu rosto e senti a maciez de sua barba. Imediatamente ele fechou os olhos, virou o rosto e beijou minha mão.
— Sim — repliquei sem me importar que fosse tolice. Só conseguia imaginá-lo rei da Inglaterra. Ele não podia negar ser um rei assim como eu não podia negar ser uma Howard. — Se não fosse ninguém e eu não fosse ninguém, o amaria — sussurrei. — Se fosse um agricultor com um campo de lúpulos, eu o amaria. Se eu fosse uma garota que colhesse os lúpulos, me amaria?
Puxou-me para si, suas mãos quentes em meu corpete.
— Amaria — afirmou. — Eu a reconheceria em qualquer lugar como o meu verdadeiro amor. Quem quer que eu fosse, quem quer que você fosse, a reconheceria imediatamente como o meu amor verdadeiro.
Baixou sua cabeça e me beijou, primeiro com doçura, depois mais forte, o toque quente de seus lábios. Então, me levou pela mão à sua cama com dossel, deitou-me e pôs seu rosto no alto dos meus seios, acima do corpete que Ana, prestimosamente, havia afrouxado para ele.
Ao amanhecer, apoiei-me em meu cotovelo e olhei pela janela o céu clareando, e sabia que Ana também estaria esperando o sol. Ana estaria observando a luz ocupar o céu lentamente, sabendo que a sua irmã era amante do rei, e a segunda mulher mais importante da Inglaterra, logo depois da rainha. Eu me perguntei o que estaria pensando sentada no peitoril da janela, enquanto escutava os primeiros sons dos pássaros. Eu me perguntei como ela se sentiria, sabendo que o rei tinha escolhido a mim para realizar as ambições da família. Sabendo que era eu, e não ela, que estava em sua cama.
Na verdade, não precisei imaginar. Ela estaria sentindo aquele misto incômodo de emoções que ela sempre despertava em mim: admiração e inveja, orgulho e uma rivalidade furiosa, o anseio de ver uma irmã querida ter sucesso e o desejo apaixonado de ver a queda de uma rival.
O rei espreguiçou-se.
— Está acordada? — perguntou com metade do corpo sob as cobertas.
— Sim — respondi, instantaneamente alerta. Pensei se não deveria ir embora, mas então ele surgiu dos lençóis amarfanhados, e estava sorrindo.
— Bom dia, meu coração — disse ele. — Está se sentindo bem?
Eu me surpreendi sorrindo de volta, refletindo a sua alegria.
— Muito bem.
— Feliz?
— Feliz como nunca me senti na vida.
— Então venha cá — disse ele, abrindo os braços. Escorreguei pelos lençóis para seu abraço com perfume almiscarado, suas coxas fortes me pressionando, seus braços embalando meus ombros, sua face em meu pescoço.
— Oh, Henrique — eu disse. — Oh, meu amor.
— Oh, eu sei — disse ele sedutoramente. — Chegue mais para perto.
Só fui deixá-lo quando o sol já tinha-se levantado. Estava com pressa de voltar ao quarto antes que os criados aparecessem.
Henrique ajudou-me a pôr o vestido, amarrou os cordões na parte de trás do corpete, pôs seu manto em volta dos meus ombros para me proteger do frio da manhã. Quando abriu a porta, meu irmão George estava esperando no peitoril da janela. Ao ver o rei, pôs-se de pé, a boina na mão, e ao me ver, me sorriu com doçura.
— Acompanhe a Sra. Carey ao seu quarto — disse o rei. — Depois, mande o camareiro entrar, pode fazer isso, George? Quero começar cedo o dia de hoje.
George fez outra reverência e me ofereceu o braço.
— E me acompanhe à missa — disse o rei quando à porta. — Hoje, pode vir à minha capela privada, George.
— Obrigado. — George aceitou com uma graça indiferente a honra maior que um cortesão poderia receber. A porta da câmara privada fechou-se enquanto eu fazia uma mesura. Então, atravessamos com pressa a sala de audiências, depois o grande salão.
Tínhamos nos atrasado demais para evitar os criados inferiores. Os garotos encarregados de manter o fogo aceso arrastavam grandes cepos na sala. Outros varriam o chão, e os guardas que dormiram onde tinham jantado abriram seus olhos e bocejavam, amaldiçoando a força do vinho.
Cobri meu cabelo desgrenhado com o capuz do manto do rei, passamos pelo salão e subimos silenciosa e rapidamente a escada até os aposentos da rainha.
Ana abriu a porta assim que George bateu, e nos pôs para dentro. Estava pálida com a falta de sono, e seus olhos, vermelhos. Tive a visão deliciosa do tormento da inveja em minha irmã.
— E então? — perguntou bruscamente.
Relanceei os olhos para a colcha macia sobre a cama.
— Você não dormiu.
— Não consegui — disse ela. — E espero que tenha dormido apenas um pouco.
Esquivei-me de seu caftinismo.
— Ora — me disse George —, só queremos saber se está tudo bem com você, Maria. Papai, mamãe e tio Howard vão querer saber. É melhor se acostumar a falar sobre isso. Não é um assunto privado.
— É o assunto mais privado que existe.
— Não para você — disse Ana com frieza. — Portanto pare de bancar uma ordenhadora na primavera. Ele a possuiu?
— Sim — respondi.
— Mais de uma vez?
— Sim.
— Que Deus seja louvado! — exclamou George. — Ela conseguiu. E tenho de ir. Ele me convidou a acompanhá-lo à missa. — Atravessou o quarto e me abraçou forte. — Muito bem. Conversaremos depois. Agora tenho de ir.
Saiu batendo a porta com indiscrição. Ana fez um gesto de impaciência e foi até a cômoda que guardava nossas roupas.
— É melhor você usar o vestido creme — disse ela. — Não há por que parecer uma prostituta. Vou providenciar um pouco de água quente. Vai ter de tomar um banho. — Levantou a mão aos meus protestos. — Sim, vai ter, por isso não discuta. E lave o cabelo. Tem de estar imaculada, Maria. Não pareça uma mulher qualquer e relaxada sendo tão preguiçosa. Tire logo essa roupa, depressa, temos de ir à missa com a rainha em menos de uma hora.
Obedeci-lhe, como sempre.
— Mas está feliz por mim? — perguntei enquanto lutava para tirar o corpete e a anágua.
Vi sua face no espelho, a manifestação de inveja velada pelo movimento de seus cílios.
— Estou feliz pela família — disse ela. — Eu quase nunca penso em você.
O rei estava na galeria privada, inspecionando a capela, ouvindo as matinas, quando passamos para o compartimento contíguo da rainha. Com os ouvidos atentos, só consegui escutar o murmúrio do escriturário colocando os papéis na frente do rei, que os olharia de relance e assinaria, enquanto assistia ao padre na capela, embaixo, prosseguir a celebração da missa. O rei sempre tratava de seus negócios assistindo à missa da manhã, seguindo a tradição de seu pai, e muitos achavam que, assim, o trabalho era consagrado. Outros, inclusive meu tio, achavam que o rei estava com pressa de se livrar do trabalho, lhe dispensando apenas metade de sua atenção.
Ajoelhei-me sobre a almofada na sala particular da rainha, observando o tom marmóreo de meu vestido, tremeluzindo levemente, insinuando o contorno de minhas coxas. Eu ainda sentia o calor do rei na maciez entre minhas pernas. Ainda sentia seu gosto em minha boca. Apesar do banho que Ana insistira para que eu tomasse, ainda sentia o cheiro do suor de seu peito em meu rosto e meu cabelo. Quando fechei os olhos não foi em concentração para orar, mas em devaneio de sensualidade.
A rainha estava ajoelhada do meu lado, a face séria, a cabeça ereta sob o pesado capelo. Seu vestido estava um pouco aberto no pescoço, de modo que pudesse passar o dedo por dentro e sentir a camisa fina que sempre usava sobre a pele. Sua face sóbria estava cansada, sua cabeça curvada sobre o rosário, e a pele velha relaxada sobre o queixo e bochechas parecia exausta e empapuçada sob os olhos bem fechados.
A missa prosseguia parecendo interminável. Invejei Henrique pela distração oferecida pela papelada do reino. A atenção da rainha não se desviou nem por um instante, seus dedos jamais paravam sobre as contas do terço, seus olhos permaneceram fechados em oração. Somente quando o serviço terminou e o padre enxugou o cálice na toalha branca e levou-os embora, ela deu um suspiro longo, como se tivesse escutado algo que nenhum de nós tinha capacidade para ouvir. Virou-se e sorriu para todas nós, todas as suas damas, inclusive eu.
— Agora vamos quebrar nosso jejum — disse amavelmente. — Talvez o rei coma conosco.
Quando passamos por sua porta, me vi diminuindo o passo, sem acreditar que ele me deixaria passar sem me dirigir a palavra. Como se percebesse meu desejo, meu irmão George abriu a porta no momento exato em que eu me atrasava e disse em voz alta:
— Bom dia, minha irmã.
Na sala atrás dele, Henrique desviou os olhos rapidamente de seu trabalho e me viu, à porta, com o vestido creme que Ana escolhera para mim, com o adorno creme da cabeça puxando meu cabelo para trás de meu rosto jovem. Ele deu um breve suspiro de desejo e me senti corar e meu sorriso aquecer minha face.
— Bom dia, senhor. E bom dia para você, meu irmão — eu disse baixinho, meus olhos fixos em Henrique.
Henrique levantou-se e estendeu a mão para mim, como se me convidando a entrar. Conteve-se relanceando os olhos para seu escrevente.
— Tomarei o café com vocês — disse ele. — Diga à rainha que irei assim que terminar estes... estes... — Seu gesto vago indicava que não fazia ideia do que aqueles papéis tratavam.
Atravessou a sala, como uma truta ofuscada nadando em direção à luz da lanterna do pescador.
— E você, nesta manhã, está bem? — falou baixinho, para que só eu escutasse.
— Sim — lancei um rápido olhar malicioso à sua face atenta. — Um pouco cansada.
Seus olhos se agitaram.
— Não dormiu bem, meu coração?
— Nem por um instante.
— Não gostou da cama?
Hesitei, nunca fui tão habilidosa quanto Ana nesse tipo de jogo de palavras. Acabei não falando nada a não ser a absoluta verdade.
— Senhor, gostei muito.
— Dormiria lá de novo?
Em um momento delicioso, encontrei a frase certa.
— Oh, senhor, gostaria de não adormecer ali.
Jogou a cabeça para trás e riu. Pegou minha mão, virou-a e beijou-a na palma.
— Minha amada, só tem de ordenar — prometeu. — Sou seu servo em todos os sentidos.
Curvei a cabeça para ver sua boca pressionar minha mão. Não consegui desviar meus olhos de seu rosto. Levantou a cabeça e nos encaramos, um olhar demorado de desejo.
— Tenho de ir — eu disse. — A rainha deve estar se perguntando onde estou.
— Eu lhe obedecerei — disse ele. — Pode ter certeza.
Lancei-lhe um sorriso rápido, virei-me e corri pela galeria atrás das damas da rainha. Ouvia meus saltos batendo nas pedras, ouvia o farfalhar de meu vestido de seda. Sentia em cada parte de meu corpo alerta que era jovem, adorável e amada. Amada pelo rei da Inglaterra.
Ele foi para o desjejum e sorriu ao se sentar. Os olhos claros da rainha perceberam minha face rosada, o brilho de meu vestido creme, e se voltaram para longe. Mandou chamarem músicos para tocarem enquanto comíamos e seu tratador de cavalos para nos assistir.
— Vai caçar hoje, senhor? — perguntou-lhe amavelmente.
— Sim, vou. Algumas de suas damas gostariam de acompanhar a caça? — convidou o rei.
— Estou certa que sim — replicou ela com seu tom amável de sempre. — Mademoiselle Bolena, Srta. Parker, Sra. Carey? Têm a reputação de serem boas amazonas. Gostariam de montar com o rei hoje?
Jane Parker lançou um sorriso breve e malicioso para mim por meu nome ter sido o terceiro a ser mencionado. Ela não sabe, pensei, me afagando intimamente. Pode achar o quanto quiser que está triunfando, já que não sabe.
— Ficaríamos encantadas de cavalgar com o rei — replicou Ana baixinho. — Nós três.
No grande pátio diante dos estábulos, o rei montou o grande cavalo que usava para caçar enquanto um dos cavalariços me punha sobre a sela do cavalo que ele me dera. Prendi minha perna firmemente sobre a parte mais alta da sela e arrumei meu vestido de modo que caísse vistosamente até o chão. Ana me inspecionava sem perder um único detalhe, como sempre fazia, e fiquei contente quando a sua cabeça, coberta com um chapéu francês com uma pena graciosa, balançou discretamente aprovando. Chamou o cavalariço para levantá-la à sua sela e conduziu seu cavalo para o lado do meu e o firmou enquanto se inclinava.
— Se ele quiser levá-la para o bosque e possuí-la, terá de dizer não — sussurrou. — Tente não se esquecer de que é uma Howard e não uma prostituta qualquer.
— Se ele me quiser...
— Se ele a quiser, vai esperar.
O organizador da caçada soprou a corneta e todos os cavalos no pátio enrijeceram-se alvoroçados. Henrique, do outro lado, sorriu largo para mim como um menino animado, e sorri de volta. Minha égua, Jesmond, parecia uma mola enrolada, e quando o organizador da caça seguiu na frente sobre a ponte levadiça, galopamos rapidamente atrás dele, os cães como um mar malhado e branco ao redor dos cascos dos cavalos. Era um dia claro, mas não quente demais, uma brisa movia a relva da campina enquanto galopávamos para fora da cidade. Os preparadores de feno apoiados em suas foices nos observaram passar tirando o chapéu ao verem as cores vivas dos cavaleiros aristocratas, e se ajoelhando ao verem o estandarte do rei.
Relanceei os olhos para o castelo atrás. Uma folha de janela nos aposentos da rainha estava aberta e vi seu capelo escuro e seu rosto pálido nos olhando. Ela nos encontraria no jantar e sorriria para Henrique e para mim como se não nos tivesse visto cavalgando lado a lado, passando o dia juntos.
O latido dos cães mudou de tom de repente e, em seguida, silenciou. O organizador da caça soprou a corneta, o som longo e alto que significava que os cães tinham farejado alguma coisa.
— Arre! — gritou o rei esporeando o cavalo.
— Lá! — gritei. No fim da avenida de árvores que se abria à nossa frente, vi a silhueta de um grande cervo, seus cornos chatos em seu lombo quando se esquivou da caça. Imediatamente, os cães correram atrás dele, em silêncio, exceto pelo latido ocasional de excitação. Mergulharam na vegetação rasteira, paramos nossos cavalos e esperamos. Os caçadores galoparam ansiosamente para longe da caça, cruzando as picadas, esperando localizá-la. Então, um deles de repente se levantou em seus estribos, e soprou a corneta. Minha égua recuou excitada e girou na sua direção. Agarrei-me de qualquer jeito na sela e num punhado de crina, sem me importar com minha aparência, só preocupada em não ser derrubada de costas na lama.
O cervo fugiu e corria para salvar a vida pelo solo áspero e vazio à margem do bosque que levava aos prados úmidos e ao rio. Os cães dispararam atrás dele, e os cavalos atrás dos cães em uma corrida arriscada. Os cascos batiam à minha volta. Semicerrei os olhos quando torrões de lama espirraram em meu rosto. Abaixei-me bem sobre o pescoço de Jesmond, incitando-a a avançar. Senti meu chapéu ser arrancado de minha cabeça, e então vi uma sebe à minha frente, branca com a floração do verão. Senti as ancas fortes de Jesmond protuberantes debaixo de mim, e com um grande salto ela a transpôs, bateu de novo no solo do outro lado, recuperou-se e retomou seu galope mais veloz. O rei estava à minha frente, a sua atenção fixa no cervo de que estávamos nos aproximando. Eu sentia o ondular do meu cabelo que se soltava dos grampos e ria descuidadamente ao sentir o vento em meu rosto. As orelhas de Jesmond foram para trás para me ouvir rir, depois à frente quando nos deparamos com outra sebe com uma vala pequena e desagradável na frente. Viu-a no mesmo instante que eu, e só a examinou por um momento, dando imediatamente um belo pulo de gato: as quatro patas no alto transpondo-a. Senti o perfume de madressilvas esmagadas quando seus cascos cortaram o alto da sebe, e depois avançamos, cada vez mais rápido. À minha frente, o pontinho marrom que era o cervo mergulhou no rio e nadou rápido para a outra margem. O mestre da caça soprou a corneta para alertar os cães a não seguirem o animal pela água, mas sim retornarem para descerem a ribanceira e acompanharem a caça para pegá-la quando chegasse à margem. Mas estavam excitados demais para escutar. Os açoitadores avançaram, mas metade da matilha estava no rio perseguindo o cervo, alguns sendo levados pela correnteza, todos impotentes na água funda. Henrique parou o cavalo e observou o caos.
Receei que isso o deixasse irritado, mas ele jogou a cabeça para trás e riu como se deleitado com a astúcia do animal.
— Pois que se vá! — gritou para o animal. — Posso comer carne de cervo sem precisar cozinhá-lo! Tenho uma despensa cheia!
Todos à nossa volta riram como se ele tivesse feito um gracejo fantástico, e percebi que todos tinham receado que o fracasso da caça o deixasse de mau humor. Olhando para aqueles rostos, pensei, em um momento de clareza, em como éramos todos tolos ao tornarmos o humor desse único homem o centro de nossas vidas. Mas então ele sorriu para mim e eu soube que, pelo menos no meu caso, não havia escolha.
Viu meu rosto borrifado de lama e meu cabelo solto embaraçado.
— Parece uma camponesa — disse ele, e qualquer um perceberia o desejo em sua voz.
Tirei a luva e levei a mão à cabeça, torcendo em vão uma mecha de cabelo e a pondo para trás. Dei-lhe um sorriso de lado reconhecendo sua malícia, mas recusando-me a respondê-la.
— Oh, psiu — ordenei baixinho. Por trás de sua expressão atenta, vi Jane Parker ofegar como se tivesse engolido uma mutuca e percebi que ela tinha-se dado conta de que era melhor prestar atenção em suas maneiras conosco, os Bolena.
Henrique desceu do cavalo, deu as rédeas a seu cavalariço e se aproximou da cabeça de minha égua.
— Quer descer? — perguntou, sua voz quente e atraente.
Desenganchei meu joelho e escorreguei pelo flanco do cavalo para seus braços. Pegou-me com facilidade, pôs-me em pé, mas não me soltou. Diante de toda a corte, beijou-me em uma bochecha, depois na outra.
— Você é a rainha da caça.
— Poderíamos coroá-la com flores — propôs Ana.
— Sim! — Henrique gostou da ideia e, em um instante, metade da corte trançava guirlandas de madressilvas. Ganhei uma coroa com perfume de mel sobre meu cabelo castanho dourado.
As carroças vieram com as coisas para o jantar e armaram uma pequena tenda para cinquenta comensais, os favoritos do rei, e cadeiras e bancos para o restante, e quando a rainha chegou, a passo lento, em seu palafrém, me viu sentada ao lado esquerdo do rei e com uma coroa de flores.
No mês seguinte, a Inglaterra finalmente estava em guerra com a França, uma guerra declarada e formal. E Carlos, imperador da Espanha, mirou seu exército como uma lança no coração da França, enquanto o exército inglês aliado a ele partiu em marcha do forte de Calais em direção a Paris.
A corte deixou-se ficar perto do centro de Londres, ansiosa por notícias, mas então a peste do verão alcançou a cidade e Henrique, sempre temeroso da doença, ordenou que a mudança no verão deveria ter início imediatamente. Fugimos, mais do que nos mudamos, para Hampton Court. O rei deu ordens para que todo alimento fosse buscado na região vizinha, que nada viesse de Londres. Proibiu que mercadores, comerciantes e artesãos seguissem a corte, vindos das condições insalubres da capital. O palácio com água doce limpa deveria ser mantido a salvo da doença.
As notícias chegadas da França eram boas, e as notícias da capital eram ruins. O cardeal Wolsey organizou a partida da corte para o sul e depois, oeste, hospedando-se em grandes casas de homens importantes, sendo entretida com mascaradas, jantares, caça, piqueniques, torneios, e Henrique conduzia-se como um menino, distraído pela situação passageira. Todo cortesão que morava no caminho foi anfitrião do rei, como se isso significasse a maior alegria, em vez de despesas assustadoras. A rainha viajou com o rei, montando do seu lado através da bonita região rural, às vezes na liteira, quando cansada, e apesar de eu poder ser chamada à noite, ele se mostrava atencioso e amoroso com ela durante o dia. O sobrinho dela era o único aliado do exército inglês na Europa, a amizade de sua família significava vitória para o exército inglês. Mas a rainha Catarina era mais do que uma aliada para seu marido em tempo de guerra. Por mais que eu lhe agradasse, ele continuava a ser o seu menino — seu menino de ouro, perdoado e mimado. Podia chamar a mim ou qualquer outra garota a seu quarto sem perturbar a afeição estável, constante, entre os dois, que havia nascido da capacidade dela, muito tempo atrás, de amar esse homem que era mais tolo, mais egoísta, e menos príncipe do que ela era princesa.
Inverno de 1522
O rei manteve a corte em Greenwich para o Natal e durante doze dias e doze noites não houve nada além das festas e banquetes mais extravagantes e belos. Havia um mestre de folia — Sir William Armitage — e cabia a ele inventar algo novo todo dia. Seu programa diário obedecia a um padrão delicioso de algo para fazermos ao ar livre de manhã — uma regata para assistirmos, justas ou competição de arqueiros, brigas de ursos, de cachorros ou de galos, ou um show itinerante com acrobatas, comedores de fogo —, seguido de um grande almoço no salão, com bom vinho, ale ou cerveja e diariamente um pudim feito com marzipã esculpido, belo como uma obra de arte. À tarde haveria um passatempo: um jogo ou conversa, um pouco de dança ou mascarada. Todos recebíamos um papel para representar, uma fantasia para vestir, e tínhamos de ficar o mais alegre possível, para que o rei, nesse inverno, estivesse sempre rindo e a rainha nunca parasse de sorrir.
A campanha não concluída contra a França tinha-se encerrado com o tempo frio, mas todos sabiam que ao chegar a primavera haveria outra série de batalhas e Inglaterra e Espanha se uniriam de novo contra seu inimigo. O rei da Inglaterra e a rainha nascida na Espanha estavam unidos em todos os sentidos nesse Natal e uma vez por semana impreterivelmente jantavam a sós e ele dormia na cama dela.
Mas noite sim, noite não, também impreterivelmente, George iria ao quarto que eu dividia com Ana, bateria à porta e diria:
— Ele quer você. — E eu corria para o meu amor, para o meu rei.
Eu nunca ficava a noite toda. Havia embaixadores estrangeiros de toda parte da Europa enviados a Greenwich para o Natal e Henrique não trataria a rainha com tal desdém na frente deles. O embaixador espanhol, em particular, insistia na etiqueta, e era um amigo íntimo da rainha. Sabendo que papel eu representava na corte, não gostava de mim. E eu não gostaria de topar com ele saindo dos aposentos privados do rei, vermelha e desgrenhada. Era muito melhor eu escapar da cama quente do rei e correr de volta ao meu quarto, com George bocejando ao meu lado, horas antes de o embaixador chegar para assistir à missa.
Ana estava sempre acordada e me esperando, com ale aquecido e condimentado e o topo da lareira abafado para aquecer o quarto. Eu pulava para a cama e ela jogava uma coberta de lã ao redor de meus ombros e se sentava ao meu lado penteando meu cabelo embaraçado, enquanto George punha mais lenha no fogo e bebericava sua bebida.
— É um trabalho cansativo — disse ele. — Caio de sono quase toda tarde. Não consigo manter os olhos abertos.
— Ana me põe para dormir depois do jantar como se eu fosse uma criança — eu disse ressentida.
— O que quer? — perguntou Ana. — Ficar abatida como a rainha?
— Ela não parece muito bem — concordou George. — Estará doente?
— É só velhice, acho — respondeu Ana sem dar importância. — E o esforço de parecer feliz o tempo todo. Ela deve estar exausta. Henrique é muito exigente, não é?
— Não — respondi com um ar presunçoso, e nós três rimos.
— Ele falou em lhe dar um presente especial de Natal? — perguntou Ana. — Ou para George? Ou para qualquer um de nós?
— Não, não disse nada — repliquei.
— Tio Howard mandou um cálice de ouro lavrado com nosso brasão para você dar a ele — disse Ana. — Está bem guardado no armário. Vale uma fortuna. Só espero que tenhamos algum retorno.
Balancei a cabeça, sonolenta.
— Prometeu-me uma surpresa. — Imediatamente os dois ficaram alertas. — Quer me levar ao estaleiro amanhã.
Ana fez uma careta de desdém.
— Achei que ia falar de um presente. Temos de ir todos? A corte toda?
— Somente um pequeno grupo. — Fechei os olhos e comecei a me deixar levar pelo sono. Ouvi Ana se levantar da cama e andar pelo quarto, tirando roupas minhas do baú e as arrumando para o dia seguinte.
— Deve usar vermelho — disse ela. — Empresto meu manto vermelho guarnecido de penas de cisne. Vai fazer frio no rio.
— Obrigada, Ana.
— Oh, não pense que estou fazendo isso por você. Faço isso para a promoção da família. Nada disso é só por você.
Curvei os ombros diante da frieza de seu tom, mas estava cansada demais para retorquir.
Ouvi vagamente George pôr a taça na mesa e se levantar. Ouvi-o dar um beijo delicado na testa de Ana.
— Trabalho cansativo, mas pode compensar — disse ele calmamente. — Boa noite, Ana Maria. Deixo-a com as suas obrigações e parto para as minhas.
Ouvi o risinho sedutor de Ana.
— A prostituição em Greenwich é uma profissão nobre, meu irmão. Até amanhã.
O manto de Ana ficou lindo sobre meu traje vermelho de montaria. Também me emprestou o pequeno chapéu francês vermelho. Henrique, Ana, eu, George e o meu marido William, e mais umas seis pessoas, cavalgamos ao longo do rio em direção ao estaleiro onde estavam construindo o novo navio do rei. Fazia um dia claro de inverno, o sol lampejava na água, os campos nas duas margens estavam ruidosos com o som das aves aquáticas, os gansos vindos da Rússia suportando o inverno em nossas ribanceiras mais suaves. Em comparação a seus grasnidos contínuos, os gritos dos patos e narcejas e maçaricos soavam muito altos. Trotamos largo ao longo da margem do rio, minha égua ao lado do grande cavalo do rei, Ana e George ao nosso lado. Henrique parou o cavalo, depois prosseguiu a passo lento à medida que nos aproximávamos das docas.
O capataz apareceu ao ver o nosso grupo se aproximar, tirou o chapéu e fez uma mesura ao rei.
— Quis dar uma volta e ver como estavam — disse o rei sorrindo para ele.
— Sentimo-nos honrados, Majestade.
— Como vai o trabalho? — o rei desceu de sua sela e jogou as rédeas ao cavalariço. Virou-se, desceu-me do meu cavalo e pôs meu braço no seu, para me conduzir à doca seca.
— Então, o que acha dele? — perguntou-me ele, estreitando os olhos na direção do navio em construção sobre os grandes tambores de madeira. — Não acha que vai ficar lindo?
— Lindo e perigoso — repliquei olhando para a coberta dos canhões. — Com certeza os franceses não têm nada parecido.
— Nada — disse Henrique, orgulhoso. — Se eu tivesse três beldades desta no mar no ano passado, teria destruído a marinha francesa quando se safava no porto, e teria me tornado rei da Inglaterra e França de fato.
Hesitei.
— Dizem que o exército francês é muito forte — arrisquei dizer. — E Francis, muito resoluto.
— É um pavão — replicou irritado. — Só aparência. E Carlos de Espanha vai capturá-lo pelo sul, enquanto chego por Calais. Dividiremos a França entre nós dois — Henrique virou-se para o construtor naval. — Quando vai ficar pronta?
— Na primavera — respondeu o homem.
— O desenhista está aqui?
— Sim, está — respondeu com uma mesura.
— Quero um esboço seu, Sra. Carey. Importa-se de posar por um momento para que ele a retrate?
Corei de prazer.
— É claro que não, se assim deseja.
Henrique fez um sinal com a cabeça e o construtor gritou da plataforma para o cais embaixo e um homem veio correndo. Henrique ajudou-me a descer uma escada e a me sentar sobre uma pilha de tábuas recentemente serradas, enquanto um rapaz usando uma roupa de tecido grosseiro esboçava um rápido retrato meu.
— O que vai fazer com o quadro? — perguntei curiosa, tentando ficar quieta e manter um sorriso nos lábios.
— Espere e verá.
O artista pôs o papel de lado.
— É o suficiente.
Henrique estendeu-me a mão e me pôs de pé.
— Agora, meu coração, vamos para casa, jantar. Vou levá-la por um caminho ao redor da campina, uma bela cavalgada até o castelo.
Os cavalariços movimentavam os cavalos para que não sentissem frio. Henrique me pôs na sela e montou seu próprio cavalo. Olhou para trás para ver se estavam todos prontos. Lord Percy estava apertando a cilha de Ana. Ela lhe lançou seu sorriso insinuante. Então, todos partimos de volta a Greenwich enquanto o sol se punha amarelo pálido e creme no céu frio do inverno.
A ceia de Natal durou quase o dia todo e eu tinha certeza de que Henrique mandaria me chamar naquela noite. Em vez disso, comunicou que visitaria a rainha e eu tinha de estar entre as damas que ficavam com ela, esperando que ele acabasse de beber com seus amigos e fosse dormir nos aposentos dela.
Ana empurrou uma camisa para eu costurar e sentou-se ao meu lado, sobre a barra de meu vestido, de modo que eu só pudesse me levantar se ela deixasse.
— Deixe-me em paz — eu disse a meia-voz.
— Não fique com esta cara de infeliz — sussurrou. — Costure e sorria como se estivesse gostando de fazer isso. Nenhum homem vai desejá-la com essa cara emburrada.
— Mas passar a noite de Natal com ela...
Ana balançou a cabeça.
— Quer saber por quê?
— Quero.
— Uma adivinha miserável lhe disse que faria um filho hoje à noite. Ele espera que a rainha lhe dê um filho no outono. Deus, como os homens são tolos!
— Uma adivinha?
— Sim. Previu um filho varão se ele abandonasse todas as outras mulheres. Não é preciso dizer quem a pagou.
— O que quer dizer?
— O meu palpite é que encontraremos ouro dos Seymour em seu bolso, se a virarmos de cabeça para baixo e a sacudirmos bem. Mas agora é tarde demais. O mal está feito. Ele irá para a cama da rainha hoje à noite, e todas as seguintes até o Dia de Reis. Portanto é melhor fazer com que, sempre que passar por você, se lembre do que está perdendo.
Baixei bem a cabeça sobre a minha costura. Ana, observando-me, viu uma lágrima cair na bainha da camisa e eu borrá-la com o dedo.
— Sua boba — disse ela com rispidez. — Vai tê-lo de volta.
— Odeio imaginá-lo deitado com ela — sussurrei. — Será que ele a chama de “meu coração” também?
— Provavelmente — replicou Ana, bruscamente. — Nem todo homem tem espírito suficiente para variar a maneira de agir. Mas ele cumprirá o seu dever e voltará a olhar em volta. E se seus olhos se encontrarem e você sorrir, então será você de novo.
— Como poderei sorrir com o coração partido?
Ana deu um risinho.
— Oh, que rainha da tragédia! Pode sorrir quando o seu coração está partido porque é uma mulher, uma cortesã, e uma Howard. São três razões para ser a criatura mais dissimulada do mundo. Agora, silêncio... lá vem ele.
George entrou primeiro, lançou um sorriso rápido para mim e foi se ajoelhar aos pés da rainha. Ela deu-lhe a mão corando, vibrando de prazer pelo rei tê-la procurado. Henrique entrou ao lado do meu marido, William, e com a mão no ombro de Lord Percy. Passou por mim, e simplesmente acenou com a cabeça, embora eu e Ana fizéssemos uma profunda reverência. Foi direto para a rainha, beijou-a nos lábios e a conduziu à sua câmara privada. Suas criadas entraram junto, e logo saíram e fecharam a porta. O restante de nós foi deixado do lado de fora em silêncio.
William olhou em volta e sorriu para mim.
— É um prazer vê-la, minha boa esposa — disse cortesmente. — Continuará usando seus aposentos atuais por muito mais tempo? Ou vai me querer como companheiro de novo?
— Vai depender da ordem da rainha e do nosso tio — disse George, sem alterar a voz. Sua mão deslizou para seu cinto onde pendia sua espada. — Mariana não escolhe por si só, como sabe.
William não se deixou provocar. Deu-me um sorriso triste.
— Calma, George — disse ele. — Não preciso que me explique tudo isso. A essa altura, eu já devo ter compreendido.
Desviei os olhos. Lord Percy tinha levado Ana para um canto e ouvi seu risinho sedutor como resposta a alguma coisa que ele disse. Ela me viu observando e falou alto:
— Lord Percy está escrevendo sonetos para mim, Maria. Eu disse que seus versos não rimam.
— Ainda nem mesmo está terminado — protestou Percy. — Só falei o primeiro verso e já foi excessivamente crítica. “Bela dama — trata-me com soberbia...”
— Acho que é um bom começo — eu disse. — Como vai prosseguir, Lord Percy?
— Claramente não é um bom começo — interferiu George. — Iniciar uma corte com soberbia é o pior começo que poderia imaginar. Um começo mais delicado seria bem mais promissor.
— Um começo gentil seria certamente surpreendente, tratando-se de uma Bolena — disse William com uma farpa na voz. — Dependendo do cortejador, é claro. Mas pensando bem... um Percy de Northumberland poderia iniciar de maneira gentil.
Ana lançou-lhe um olhar que era tudo menos fraterno, mas Henry Percy estava tão absorto em seu poema que mal o ouviu.
— O verso seguinte, que ainda não tenho, prossegue com alguma coisa alguma coisa alguma coisa... minha angústia.
— Ah! para rimar com soberbia! — declarou George zombeteiro. — Acho que começo a entender.
— Mas tem de haver uma imagem que persiga por todo o poema — disse Ana a Henry Percy. — Se vai escrever um poema à sua amante, tem de compará-la com alguma coisa e, depois, torcer a comparação para alguma conclusão espirituosa.
— Como eu poderia? — perguntou Percy. — Não posso compará-la a nada. Você é você mesma. A que poderia compará-la?
— Oh, muito bonito! — disse George aprovando. — Eu diria, Percy, que a sua conversa é muito melhor do que a sua poesia. Se eu fosse você, ficaria de joelhos e sussurraria em seus ouvidos. Vai triunfar se insistir na prosa.
Percy sorriu largo e pegou a mão de Ana.
— Estrelas na noite — disse ele.
— Alguma coisa alguma coisa alguma coisa algum encanto — Ana replicou prontamente.
— Vamos beber um pouco de vinho — propôs William. — Acho que não acompanho uma sagacidade tão brilhante. Quem vai jogar dados comigo?
— Eu jogo — disse George antes que William me chamasse. — Qual será a aposta?
— Oh, algumas coroas — replicou William. — Odiaria tê-lo como inimigo por uma dívida de jogo, Bolena.
— Ou por qualquer outro motivo — disse meu irmão amavelmente. — Especialmente porque Lord Percy, aqui presente, nos escreveria um poema marcial sobre a luta.
— Não acho que alguma coisa alguma coisa alguma coisa é muito ameaçadora — observou Ana. — E isso é tudo que seus versos sempre dizem.
— Sou um aprendiz — replicou Percy com dignidade. — Um amante aprendiz, um poeta aprendiz, e está me tratando de maneira cruel. “Bela dama, trata-me com soberbia” é a pura verdade.
Ana riu e estendeu a mão para que ele a beijasse. William tirou dois dados do bolso e os rolou sobre a mesa. Servi-lhe vinho. Sentia-me estranhamente confortada servindo-o quando o homem que eu amava estava na cama com sua mulher, no quarto ao lado. Sentia-me posta de lado.
Jogamos até a meia-noite, e o rei não apareceu.
— O que acha? — perguntou William a George. — Se ele pretende passar a noite com ela, podemos muito bem ir para a cama.
— Estamos indo — disse Ana com determinação. Estendeu a mão de modo peremptório para mim.
— Tão cedo? — objetou Percy. — As estrelas aparecem à noite.
— E desaparecem ao amanhecer — replicou Ana. — Esta estrela precisa se ocultar no escuro.
Levantei-me para ir com ela. Meu marido olhou para mim por um instante.
— Dê-me um beijo de boa noite, esposa — ordenou.
Hesitei e, então, atravessei a sala. Esperava que eu desse um beijo frio em sua face, mas me curvei e o beijei nos lábios. Eu o senti responder quando o toquei.
— Boa noite, marido. Desejo-lhe Feliz Natal.
— Boa noite, esposa. Minha cama ficaria mais aquecida com você.
Assenti com a cabeça. Não havia o que dizer. Sem pensar, olhei de relance para a porta fechada dos aposentos privados da rainha, atrás da qual o homem que eu adorava dormia nos braços de sua mulher.
— Talvez, no fim, todos acabemos com nossas esposas — disse William.
— Certamente — disse George, de forma animada, juntando o que ganhara e colocando em sua boina, depois no bolso da jaqueta. — Pois seremos enterrados um ao lado do outro, independentemente das nossas preferências em vida. Imaginem o meu caso, transformando-me em pó com Jane Parker.
Até William riu.
— Quando vai ser? — perguntou Percy. — O dia feliz de seu casamento?
— Depois de meados do verão. Se eu conseguir conter minha impaciência por tanto tempo.
— Ela trará um dote generoso — observou William.
— E quem se importa com isso? — exclamou Percy. — Tudo o que importa é o amor.
— Falou um dos homens mais ricos do reino — observou meu irmão com ironia.
Ana estendeu a mão a Percy.
— Não lhe dê atenção, milorde. Concordo com o senhor. O amor é tudo o que importa. De qualquer maneira, é assim que penso.
— Não, não pensa — eu disse assim que a porta se fechou atrás de nós.
Ana deu-me um sorrisinho.
— Gostaria que tivesse se dado ao trabalho de ver com quem eu estava falando, e não o que eu estava dizendo.
— Percy de Northumberland? Fala de casamento por amor com Percy de Northumberland?
— Exatamente. Portanto pode sorrir afetadamente para o seu marido o quanto quiser, Maria. Quando eu me casar, farei muito melhor do que você.
Primavera de 1523
Nas primeiras semanas do novo ano, a rainha recuperou a sua juventude e floresceu como uma rosa em uma estufa, corada, sempre sorrindo. Pôs de lado sua camisa de crina que usava sempre sob o vestido e a pele enrugada em seu pescoço desapareceu como se afastada pela alegria. Não falava com ninguém sobre a causa dessas mudanças, mas a sua criada comentou com outra que uma de suas regras não tinha descido, e que a adivinha tinha acertado: a rainha conseguira engravidar.
Considerando-se sua história passada de a gravidez não conseguir vingar, era plenamente justificável ela se ajoelhar, o rosto voltado para a imagem da Virgem Maria, no pequeno genuflexório num canto de sua câmara privada. Ali era encontrada toda manhã, com uma mão sobre a barriga, a outra segurando o missal, os olhos fechados, a expressão enlevada. Milagres aconteciam. Talvez estivesse acontecendo um com a rainha.
As criadas fofocavam que sua roupa de cama voltara a estar limpa em fevereiro e começamos a achar que ela logo contaria ao rei. Ele já demonstrava ares de um homem esperando boas notícias, e passava por mim como se eu fosse invisível. Tinha de dançar diante dele e servir à sua mulher e aguentar os sorrisos maliciosos das mulheres e saber que de novo não passava de uma Bolena, e não era mais a favorita do rei.
— Não aguento mais isso — eu disse a Ana. Estávamos sentadas próximas à lareira nos aposentos da rainha. As outras estavam passeando com os cachorros, mas Ana e eu nos recusamos a sair. A névoa subia do rio e o dia estava muito frio. Eu tremia em um vestido todo forrado de pele. Não me sentia bem desde a noite de Natal, quando Henrique passara por mim na sala da rainha. Desde então não me mandava chamar.
— Está levando isso muito a sério — observou ela, contente. — É o que acontece quando se ama um rei.
— O que mais eu poderia fazer? — perguntei infeliz. Fui para perto da janela para ter mais luz para costurar. Fazia a bainha das camisas para os pobres, mas o fato de serem para trabalhadores velhos não significava que o trabalho poderia ser malfeito. Ela examinaria as costuras e se as achasse malfeitas me pediria, de maneira cortês, para refazê-las.
— Se ela der à luz a criança e for um menino, então o melhor seria você ter ficado com William Carey e começado a sua própria família — comentou Ana. — O rei ficará à disposição dela, e seu tempo terá chegado ao fim. Você passará a ser uma entre muitas.
— Ele me ama — eu disse sem muita certeza. — Não sou mais uma.
Olhei a distância, pela janela. A névoa partia do rio em grandes espirais, como pó debaixo da cama.
Ana riu de modo ríspido.
— Você sempre foi mais uma — disse friamente. — Há dezenas de nós, garotas Howard, todas com boa educação, todas instruídas, todas bonitas, todas jovens, todas férteis. Eles podem jogar uma por uma sobre a mesa e ver qual é a garota de sorte. Não perdem nada se são possuídas uma após a outra, e depois postas de lado. Há sempre mais uma garota Howard concebida, mais uma prostituta no berçário. Você foi uma entre tantas nascidas antes de você. Se ele não insistir em você, então voltará para William, e encontrarão outra garota Howard para seduzi-lo, e a dança recomeçará. Nunca perdem nada.
— Mas eu perdi algo! — gritei.
Ela jogou a cabeça para o lado e olhou para mim como se analisasse a realidade a partir da impaciência de uma paixão infantil.
— Sim. Talvez. Perdeu algo. Sua inocência, seu primeiro amor, sua confiança. Talvez seu coração esteja partido. Talvez nunca mais se remende. Pobre tola Mariana — disse ela baixinho. — Fazer tudo o que um homem manda para agradar outro homem e não ganhar nada para si a não ser o coração partido.
— E quem virá depois de mim? — perguntei, transformando minha dor em escárnio. — Quem você acha que será a próxima garota Howard que empurrarão para a cama do rei? Deixe-me adivinhar... a outra garota Bolena?
Lançou-me um olhar breve e hostil e, então, suas pestanas escuras baixaram.
— Não eu — replicou. — Tenho meus próprios planos. Não me arriscarei a ser possuída e largada.
— Você me disse para arriscar — lembrei-lhe.
— Isso foi para você — disse ela. — Eu não conduziria minha vida como leva a sua. Sempre faz o que lhe mandam fazer, casa-se com quem mandam, deita-se com quem mandam que deite. Não sou como você. Eu faço o meu próprio caminho.
— Eu posso fazer o meu próprio caminho.
Ana sorriu incrédula.
— Voltarei para Hever e viverei lá — eu disse. — Não vou permanecer na corte. Se for rejeitada, poderei ir para Hever. Pelo menos, isso não vai ser tirado de mim.
A porta do aposento da rainha abriu-se e olhei de relance as criadas retirando os lençóis da cama.
— É a segunda vez nesta semana que ela manda serem trocados — disse uma delas com irritação.
Ana e eu trocamos um olhar rápido.
— Estão manchados? — perguntou ela.
A criada olhou para ela de maneira insolente.
— Os lençóis da rainha? — perguntou. — Pede que eu mostre a roupa de cama da própria rainha?
Os dedos compridos de Ana penetraram em sua bolsa e uma moeda de prata trocou de mãos. O sorriso da criada foi de triunfo ao guardar a moeda no bolso.
— Nem uma única mancha — disse ela.
Ana acalmou-se e segurei a porta para as duas mulheres.
— Obrigada — disse a segunda criada, surpresa com a minha gentileza com criados. Balançou a cabeça para mim. — Malcheirosos com suor, coitada — disse ela.
— Como? — perguntei. Mal acreditei que estivesse me dando de graça uma informação pela qual um espião francês pagaria uma fortuna, e que todos os cortesãos da região estavam loucos para ter. — Está me dizendo que a rainha sofre de suores noturnos? Que está passando por uma mudança de ciclo?
— Se não agora, muito em breve — disse a criada. — Coitada.
Encontrei meu pai com George no salão, os dois juntos, enquanto os criados punham as grandes mesas montadas sobre cavaletes para o jantar. Fez sinal para que eu me aproximasse.
— Pai — eu disse, fazendo uma mesura.
Beijou-me friamente na testa.
— Filha — disse ele. — Queria falar comigo?
Por um momento gélido me perguntei se ele teria se esquecido do meu nome.
— A rainha não está grávida — eu disse. — As regras desceram hoje. Falharam das outras vezes por causa de sua idade.
— Deus seja louvado! — disse George exultante. — Eu apostava que era isso. Boas-novas.
— As melhores — disse meu pai. — As melhores para nós, as piores para a Inglaterra. Ela contou ao rei?
Sacudi a cabeça.
— Começou a sangrar hoje à tarde. Ainda não esteve com ele.
Meu pai balançou a cabeça.
— Então, soubemos antes dele. Quem mais sabe?
Dei de ombros.
— As criadas que mudaram os lençóis e quem as estiver pagando. Wolsey, suponho. Talvez os franceses tenham comprado uma criada.
— Então temos de nos apressar se quisermos ser os primeiros a lhe contar. Eu conto?
George sacudiu a cabeça.
— Íntimo demais — disse ele. — Que tal Maria?
— Isso a poria diante dele no exato momento de sua decepção — refletiu meu pai. — É melhor não.
— Ana, então — disse George. — Tem de ser um de nós a fazê-lo se lembrar de Maria.
— Ana pode fazer isso — concordou meu pai. — É capaz de fazer com que um gambá cheire a rato.
— Ela está no jardim — falei. — No ginásio de arco e flecha.
Nós três saímos para o sol primaveril que brilhava lá fora. Um vento frio soprava entre os narcisos amarelos que adejavam ao sol. Vimos o pequeno grupo de cortesãos, e Ana entre eles. Quando a vimos, ela se posicionava, mirava o alvo, puxava a corda e, então, o baque surdo de sua flecha exatamente no alvo. Houve alguns aplausos. Henry Percy andou até o alvo, retirou a flecha de Ana e a pôs em sua própria aljava, como se fosse guardá-la para si.
Ana estava rindo, estendendo a mão para receber sua flecha, quando nos viu. Imediatamente, dispensou sua companhia e veio até nós.
— Pai.
— Ana. — Beijou-a com mais ternura do que tinha me beijado.
— A rainha voltou a sangrar — disse George abruptamente. — Achamos que deve ser você a contar ao rei.
— E não Maria?
— Faria com que parecesse vulgar — disse meu pai. — Bisbilhotando com camareiras, observando-as esvaziar seus urinóis.
Por um momento achei que Ana diria que também não ia querer parecer vulgar, mas ela deu de ombros. Sabia que servir à ambição da família Howard sempre tinha um preço.
— E certifique-se de fazê-lo voltar a se interessar por Maria — disse meu pai. — Quando ele se voltar contra a rainha, terá de ser Maria quem o atrairá.
Ana assentiu com a cabeça e disse:
— É claro. — Somente eu percebi a rispidez em sua voz. — Maria vem em primeiro.
O rei foi ao quarto da rainha nessa noite, como sempre, sentando-se ao lado dela, perto do fogo. Nós três o observamos, certos de que ele se cansaria dessa paz doméstica. Mas a rainha era habilidosa em entretê-lo. Havia sempre um jogo de cartas ou dados, ela sempre lera os livros mais recentes e podia arriscar-se e defender uma opinião interessante. Havia sempre outros visitantes, eruditos ou viajados, homens que conversariam com o rei, havia sempre a melhor música, e Henrique gostava da boa música. Thomas More era o preferido dela e, às vezes, os três saíam andando pelo terraço do castelo e contemplavam o céu noturno. More e o rei falariam das interpretações da Bíblia e especulariam se chegaria um tempo em que seria permitida uma Bíblia em inglês que as pessoas comuns pudessem ler. E havia sempre mulheres bonitas. A rainha era sábia o bastante para encher a sala das mulheres mais belas do reino.
Essa noite não foi exceção, e ela o entreteve como se fosse um embaixador a quem ela tinha de favorecer. Conversavam os dois quando alguém pediu que cantasse, e ele cantou uma de suas composições. Pediu que uma dama cantasse a parte da soprano e Ana, relutante e modestamente, se apresentou e disse que tentaria. É claro que foi perfeita. Cantaram mais uma, satisfeitos consigo mesmos, e então Henrique beijou a mão de Ana e a rainha ordenou que servissem vinho aos dois cantores.
Não foi mais que um toque em sua mão e Ana o afastou um pouco da corte. Somente a rainha e nós, os Bolena, percebemos que o rei fora afastado. A rainha pediu a um dos músicos que tocasse outra ária, era sensata o bastante para não ser pega olhando quando seu marido começava mais um flerte. Lançou-me uma olhadela bem rápida, para ver como eu estava reagindo à visão de minha irmã de braço dado com o rei e lhe dei um sorriso insípido, inocente.
— Está se tornando uma bela cortesã, esposa — comentou William Carey.
— Estou?
— Quando chegou à corte, era uma mercadoria fresca, não polida pela corte francesa, mas agora o dourado parece estar penetrando em sua alma. É capaz de fazer uma coisa sem pensar duas vezes?
Por um momento quase me defendi, mas vi Ana falar algo ao rei que relanceou os olhos para a rainha. Ana pôs a mão delicadamente na manga dele e falou mais alguma coisa. Desviei o olhos de William, completamente surda para ele, e observei o homem que eu amava. Vi seus ombros largos se curvarem e caírem, como se metade de seu poder tivesse lhe abandonado. Olhou para a rainha como se ela o tivesse traído, seu rosto vulnerável como o de uma criança. Ana virou-se de modo a ficar protegida do restante da corte e George se adiantou para perguntar à rainha se podíamos dançar, com a intenção de desviar a atenção de Ana despejando tristeza no ouvido do rei.
Não suportei mais, esquivei-me de perto das garotas que pediam dança e fui até Henrique, empurrando Ana para me aproximar dele. Estava pálido, o olhar trágico. Peguei sua mão e disse apenas:
— Oh, meu querido.
Virou-se para mim imediatamente.
— Você também sabia? Todas as damas sabem?
— Acho que sim — disse Ana. — Não podemos culpá-la por não querer lhe contar, pobrezinha. Era a sua última esperança. Foi a sua última chance, senhor.
Senti seus dedos apertarem minha mão um pouco mais forte.
— A adivinha me disse...
— Eu sei — falei gentilmente. — Provavelmente recebeu algum dinheiro.
Ana desapareceu, e ficamos só nós dois.
— Deitei-me com ela, me esforcei tanto, esperava...
— Rezei por vocês — sussurrei. — Por vocês dois. Estava esperançosa de que teria um filho, Henrique. Por Deus, o que eu mais queria no mundo era que ela lhe desse um filho homem legítimo.
— Mas agora ela não pode mais. — Calou-se. Parecia uma criança mimada que não podia ter o que queria.
— Não, não pode mais — confirmei. — Acabou.
Largou minha mão abruptamente, e se afastou. As pessoas que dançavam se separaram para deixar que passasse. Dirigiu-se à rainha, que estava sentada sorrindo em sua corte, e disse, alto o bastante para todos ouvirem:
— Disseram-me que não está bem, senhora. Gostaria que tivesse me dito isso pessoalmente.
Ela olhou para mim imediatamente, seu olhar duro acusando-me de ter traído seu segredo mais íntimo. Sacudi a cabeça, de maneira a não deixar dúvida. Ela procurou Ana entre os que dançavam, a localizou, de mãos dadas com George. Ana devolveu-lhe o olhar imperturbavelmente.
— Lamento, Majestade — disse a rainha, com sua imensa dignidade. — Eu deveria ter escolhido uma hora mais conveniente para discutir isso com o senhor.
— Deveria ter escolhido falar de imediato — corrigiu-a ele. — Como não está bem, sugiro que dispense a sua corte e se despeça.
Aqueles que entenderam o que estava acontecendo cochicharam rapidamente entre si, se bem que a maioria ficasse olhando espantada para a explosão súbita de mau humor do rei e para o rosto pálido e resignado da rainha.
Henrique virou-se, estalou os dedos chamando seus amigos, George, Henry, William, Charles, Francis, como se chamasse seus cachorros, e saiu sem mais uma palavra. Gostei de ver George fazer a reverência mais profunda a ela. Ela não disse uma palavra, levantou-se e foi para a sua câmara privada.
Os músicos que tinham tocado a esmo e soado cada vez mais desagradáveis perceberam que a música acabara e olhavam em volta esperando receber ordens.
— Oh, vão embora — eu disse com uma impaciência repentina. — Não veem que não vai ter mais dança, não vai ter mais música hoje? Ninguém aqui precisa de música. Deus sabe como ninguém quer mais dançar.
Jane Parker olhou para mim surpresa.
— Achei que ficaria contente. O rei irritado com a rainha e você pronta para ser colhida como um pêssego amassado na sarjeta.
— E eu achei que teria juízo suficiente para não dizer uma coisa dessas — disse Ana sem rodeios. — Falar dessa maneira com a sua futura cunhada! É melhor que tenha cuidado ou não será bem-vinda nesta família.
Jane não recuou diante de Ana.
— Não há como romper um contrato de casamento. George e eu nos casaremos na igreja. É só uma questão de marcar a data. Podem me receber bem ou me odiar, Srta. Ana. Mas não podem me excluir. Fomos prometidos perante testemunhas.
— Oh, que importância tem isso? — gritei. — Nada disso tem importância! — Virei-me e corri para o meu quarto. Ana foi atrás de mim.
— O que houve? — perguntou. — O rei está irritado conosco?
— Não, embora devesse, já que fizemos um trabalho sórdido contando-lhe o segredo da rainha.
— Ah, sim — concordou Ana sem se abalar. — Mas não ficou com raiva?
— Não, está magoado.
Ana foi até a porta.
— Aonde vai? — perguntei.
— Mandar que tragam água — disse ela. — Vai se lavar.
— Oh, Ana — falei irritada. — Ele acabou de ouvir a pior notícia de sua vida. Está com o pior humor possível, não vai me chamar hoje. Amanhã me lavarei, se for preciso.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não vou arriscar — replicou ela. — Vai se lavar hoje.
Ela se enganou. Mas só por um dia. No dia seguinte, a rainha ficou a sós com suas damas em seu quarto e eu jantei na câmara privada com meu irmão, seus amigos, e o rei. Foi uma noite muito alegre, com música, dança, e jogo. E nessa noite, estive na cama do rei mais uma vez.
Dessa vez, eu e Henrique tornamo-nos praticamente inseparáveis. A corte sabia que éramos amantes, a rainha sabia, até mesmo as pessoas comuns que vinham de Londres para nos ver jantar sabiam. Eu usava seu bracelete de ouro em meu pulso, montava seu cavalo de caça. Usava um par de brincos de diamantes, tinha mais três vestidos novos, um deles tecido com ouro. E uma manhã, na cama, ele me disse:
— Nunca se perguntou o que aconteceu com aquele esboço seu que pedi para o artista fazer no estaleiro?
— Tinha-me esquecido dele — eu disse.
— Venha cá e me beije e direi por que mandei que a desenhasse — disse Henrique preguiçosamente.
Estava deitado de costas, a cabeça sobre os travesseiros. Já era tarde, naquela manhã, mas as cortinas continuavam fechadas, impedindo que os criados entrassem para acender o fogo, para trazer-lhe água quente, para esvaziar o urinol. Ergui-me na cama e me aproximei, meus seios redondos contra seu peito quente, meu cabelo caindo como um véu de ouro e bronze. Minha boca baixou até a sua, aspirei o perfume quente erótico de sua barba, senti o espetar macio dos pelos ao redor de sua boca. Meus lábios pressionaram os seus e senti, e ouvi, seu gemido de desejo ao beijá-lo com mais força.
Levantei a cabeça e sorri.
— Aí está o seu beijo — sussurrei roucamente, sentindo o meu desejo crescer com o dele. — Por que mandou o artista me desenhar?
— Vou lhe mostrar — prometeu. — Depois da missa, iremos até o rio e verá o meu navio novo e o seu retrato ao mesmo tempo.
— O navio está pronto? — perguntei. Relutei em deixá-lo ir, mas ele já afastava as cobertas e estava pronto para se levantar.
— Sim. Nós o veremos ser lançado na semana que vem — replicou. Abriu um pouco o cortinado da cama e gritou para um criado ir chamar George. Pus o vestido e o manto, Henrique estendeu a mão para me ajudar a descer da cama. Beijou-me na face.
— Vou comer o desjejum com a rainha — decidiu ele — e depois iremos ver o navio.
Era uma bela manhã. Eu usava um novo traje de montaria de veludo amarelo, feito para mim com uma peça de tecido que o rei me dera. Ana estava ao meu lado, usando um de meus vestidos. Senti uma alegria intensa, vendo-a usar minhas roupas antigas. Mas então, da maneira contraditória típica de irmãs, admirei o que havia feito com ele. Havia mandado encurtar e refazer à moda francesa, e estava elegante. Usava-o com um chapéu ao estilo francês feito com o material que poupara ao fazer a saia com menos roda. Henry Percy de Northumberland não tirava os olhos dela, mas ela flertava com o mesmo charme com todos os companheiros do rei. Éramos nove ao todo. Henrique e eu, lado a lado, na frente. Ana atrás de mim com Percy e William Norris. George e Jane, um casal dissonante, vinha a seguir, e Francis Weston e William Brereton vinham por último, rindo e contando piadas. Éramos precedidos de apenas dois cavalariços e seguidos por quatro soldados montados.
Cavalgamos pela margem do rio. A maré estava subindo e as ondas esparramavam-se na praia, a crista branca espumosa. As gaivotas, sobrevoando inesperadamente a terra, gritavam e voavam em círculos, suas asas prateadas no sol da primavera. As fileiras de cercas vivas vicejavam na vegetação primaveril, prímulas como nacos pálidos de manteiga nos pontos ensolarados nas ribanceiras. A trilha à margem do rio estava com a lama endurecida e os cavalos galopavam com facilidade. O rei cantou-me uma canção de amor de sua própria autoria, e ao escutá-la pela segunda vez, cantei com ele, e ele riu com a minha tentativa. Eu sabia que não tinha o talento de Ana. Mas isso não tinha importância. Nesse dia nada tinha importância, nada podia ter mais importância do que meu amado e eu juntos sob o sol, numa cavalgada a passeio, e ele estava feliz e eu estava feliz por vê-lo feliz.
Chegamos ao estaleiro mais cedo do que eu desejaria, e Henrique foi para o lado do meu cavalo, ergueu-me da sela e deu-me um beijo quando meus pés tocaram o chão.
— Meu coração — sussurrou. — Tenho uma surpresa para você.
Virou-me e levou-me para o lado, de modo que pudesse ver seu belo navio. Estava quase pronto para ser levado ao mar. Tinha a popa e a proa altas, típicas de um navio de guerra, construído para ser veloz.
— Olhe — disse Henrique vendo-me observar suas linhas, mas não o detalhe. Apontou para o nome entalhado e esmaltado em dourado, escrito com letras aneladas, nítidas, na proa enfeitada. Dizia: “Maria Bolena”.
Olhei surpresa por um momento, lendo meu nome sem entender. Ele não riu de minha cara espantada, observou minha surpresa se transformar em perplexidade e, depois, em compreensão.
— Deu-lhe meu nome? — perguntei. Minha voz tremia. Era uma honra grande demais para mim. Eu me sentia alguém jovem demais, pequena demais para que um navio, e um navio desse tipo, levasse meu nome. Agora, o mundo todo saberia que eu era a amante do rei. Não haveria como negar.
— Dei, meu coração — ele estava sorrindo. Esperou que eu estivesse encantada.
Pôs minha mão fria em seu braço e me levou para a frente do navio. Havia uma figura de proa, com um belo perfil, altivo, olhando para o Tâmisa, para o mar, para a França. Era eu, com meus lábios ligeiramente separados, como se eu fosse uma mulher que desejasse tal aventura. Como se eu não fosse o joguete da família Howard, mas sim uma mulher adorável e corajosa.
— Eu? — perguntei, minha voz um fio acima do ruído da água batendo na doca seca.
A boca de Henrique estava em meu ouvido, eu sentia seu hálito quente em meu pescoço frio.
— Você — replicou ele. — Tão bela. Está feliz, Maria?
Virei-me para ele e seus braços me envolveram, fiquei na ponta dos pés e pus meu rosto no calor de seu pescoço, sentindo o perfume de sua barba e de seu cabelo.
— Oh, Henrique — sussurrei. Não queria que visse o meu rosto, pois veria o terror, e não o prazer, crescendo ostensivamente, publicamente.
— Está feliz? — insistiu ele. Com a mão sob meu queixo, ergueu o meu rosto, para que pudesse me examinar como se eu fosse um manuscrito. — É uma grande honra.
— Eu sei. — Meu sorriso estremeceu. — Obrigada.
— E vai ser você a lançá-lo. Na semana que vem.
Hesitei.
— Não será a rainha?
Fiquei assustada em tomar seu lugar para lançar o navio mais recente e maior que ele já construíra. Mas evidentemente teria de ser eu. Como ela poderia lançar um navio com meu nome?
Ele a afastou como se não fossem marido e mulher há treze anos.
— Não — replicou ele sem rodeios. — A rainha, não. Você.
Consegui forças para sorrir e torci para ser convincente e ocultar a sensação aterrorizante de que eu tinha ido longe demais, rápido demais, e que o fim dessa estrada não era o tipo de alegria despreocupada que sentira nessa manhã, porém algo mais obscuro e mais assustador. Apesar de termos cavalgado cantando juntos, não éramos um casal de namorados. Se o meu nome estava no seu navio, se eu o lançasse na semana seguinte, então seria uma rival declarada da rainha da Inglaterra. Eu seria uma inimiga do embaixador espanhol, de toda a nação da Espanha. Seria uma força poderosa na corte, uma ameaça à família Seymour. Quanto mais alto ascendesse no favor do rei maiores os perigos que me rodeariam. Mas eu era uma mulher de apenas 15 anos. Não podia esbanjar ambição.
Como se percebesse minha relutância, Ana surgiu do meu lado.
— Concedeu uma grande honra à minha irmã, senhor — disse ela polidamente. — É um navio muito sofisticado, tão belo quanto a mulher cujo nome escolheu para ele. E um navio sólido, potente... como o senhor. Que Deus o abençoe e o envie contra nossos inimigos. Quem quer que sejam.
Henrique sorriu ao elogio.
— Está destinado a ser um navio de sorte — disse ele. — Com a face de um anjo na sua frente.
— Acha que ele combaterá os franceses neste ano? — perguntou George, pegando minha mão e dando um rápido e discreto beliscão em meus dedos para me lembrar de meu papel de cortesã.
Henrique assentiu com a cabeça, a expressão austera.
— Com certeza — replicou. — E se o imperador espanhol for meu aliado, obedeceremos ao meu plano de atacarmos o norte da França, enquanto ele ataca o sul. Assim refrearemos a arrogância de Francis. Nesse verão atacaremos, sem dúvida.
— Se pudermos confiar nos espanhóis — disse Ana de maneira cativante.
A expressão de Henrique ensombreceu-se.
— São eles que precisam mais de nós — disse. — Carlos não pode se esquecer disso. Não é uma questão de família, de parentesco. Se a rainha se desgostar comigo por algum motivo, terá de lembrar que primeiro de tudo é a rainha da Inglaterra, e segundo, princesa da Espanha. Deve a sua lealdade primeiro a mim.
Ana concordou balançando a cabeça.
— Eu odiaria ser tão dividida — disse ela. — Graças a Deus nós, Bolena, somos completamente ingleses.
— Apesar de seus vestidos franceses — disse Henrique com um lampejo súbito de humor.
Ana devolveu o sorriso.
— Um vestido é um vestido — disse ela. — Como o vestido de veludo amarelo de Maria. Mas o senhor, de todas as pessoas, sabe que por debaixo há um ser verdadeiro, com o coração unificado.
Ele virou-se para mim e sorriu quando olhei para ele.
— É um prazer recompensar um coração tão leal — disse ele.
Senti lágrimas em meus olhos e tentei contê-las para que não as visse, mas uma ficou em meus cílios. Henrique curvou-se e beijou-a.
— Menina doce — disse ele. — Minha pequena rosa inglesa.
A corte toda foi assistir ao lançamento do navio Maria Bolena, somente a rainha ficou afastada, alegando indisposição. O embaixador espanhol estava lá, para ver o navio deslizar para a água, e se sentiu alguma restrição em relação ao nome da nau, guardou para si mesmo.
Meu pai estava em um furor silencioso de irritação consigo mesmo, comigo, com o rei. A grande honra concedida a mim e à minha família tinha um preço. Rei Henrique era um monarca sutil em tais questões. Quando meu tio e meu pai agradeceram a honra de ter escolhido seu nome, ele agradeceu-lhes pela contribuição que tinha certeza de que desejariam fazer para equipar uma nau como essa, e que redundaria a seu favor, já que levaria o nome dos Bolena através dos mares.
— E então, os prêmios aumentam de novo — disse George animadamente ao observar o navio deslizar sobre os tambores em direção às águas salgadas do rio Tâmisa.
— Como podem ser mais altos? — perguntei do canto de minha boca sorridente. — Minha vida está em discussão.
Os estivadores, embriagados com o ale distribuído, agitaram suas boinas e gritaram vivas. Ana sorriu e acenou. George sorriu largo para mim. O vento agitou a pena em sua boina, despenteou seus cachos escuros.
— Agora está custando dinheiro a papai mantê-la favorecida pelo rei. Não é mais o seu coração e a sua felicidade em discussão, irmãzinha, mas sim a fortuna da família. Achamos que o estávamos manipulando como um tolo enamorado e ele estava nos manipulando como agiotas. Os prêmios estão aumentando. Nosso pai e nosso tio vão querer ver um retorno para esse investimento. Vai ver só como vão querer.
Afastei-me de George e procurei Ana. Ela estava a uma pequena distância da corte, Henry Percy a seu lado, como sempre. Estavam observando o navio ser rebocado pelas barcaças, lutando contra a correnteza, levando-o de volta ao longo do quebra-mar, amarrando-o de modo que estivesse aparelhado quando na água. O rosto de Ana estava com aquele brilho de alegria que adquiria sempre que flertava.
Virou-se e sorriu para mim.
— Ah, a rainha de hoje — disse ela zombeteira.
Fiz uma careta.
— Não me provoque. Basta George.
Henry Percy avançou, pegou minha mão e a beijou. Ao baixar o olhar para a sua cabeleira loura, percebi como minha estrela brilhava alto. Esse era Henry Percy, filho e herdeiro do duque de Northumberland. Não havia outro homem no reino mais promissor ou de fortuna maior. Era o filho do homem mais rico da Inglaterra, que ficava atrás apenas do rei, e estava me fazendo uma reverência e beijando minha mão.
— Ela não vai importuná-la — prometeu, aproximando-se sorrindo. — Pois a levarei para almoçar. Disseram-me que os cozinheiros de Greenwich estariam aqui ao amanhecer para prepararem tudo. O rei está indo, vamos acompanhá-lo?
Hesitei, mas a rainha, que sempre gerava o senso da formalidade, tinha sido deixada em Greenwich, em um quarto escuro, com uma dor no ventre e medo no coração. Não havia ninguém mais na zona portuária além dos homens e mulheres fúteis e ociosos da corte. Ninguém ligava para precedência, exceto no sentido de que os vencedores deveriam vir em primeiro.
— É claro — eu disse. — Por que não?
Lord Henry Percy ofereceu seu outro braço a Ana.
— Posso ter as duas irmãs?
— Acho que a Bíblia proíbe — disse Ana, de maneira provocante. — A Bíblia ordena que o homem escolha entre as irmãs e que fique com a sua primeira escolha. Qualquer outra coisa é pecado capital.
Lord Henry Percy riu.
— Tenho certeza de que consigo uma graça — disse ele. — O Papa certamente me concederia a dispensa. Com duas irmãs como estas, que homem seria obrigado a escolher?
Só cavalgamos de volta na hora do crepúsculo, quando as estrelas começavam a aparecer no céu cinzento claro da primavera. Cavalguei ao lado do rei, minha mão na sua, e deixamos os cavalos andarem a passo lento ao longo da trilha à margem do rio. Atravessamos a arcada do palácio e seguimos para a porta da frente. Então, ele parou o cavalo, desceu-me do meu e sussurrou em meu ouvido:
— Gostaria que fosse rainha por todos os dias, e não só por um dia em um pavilhão à margem de um rio, meu amor.
— O que ele disse? — perguntou meu tio.
Fui interrogada por ele como um prisioneiro perante um tribunal. Atrás da mesa na sala dos Howard estavam sentados tio Howard, duque de Surrey, meu pai e George. Nos fundos da sala, atrás de mim, Ana estava sentada ao lado de minha mãe. Eu, sozinha diante da mesa, era como uma criança em desgraça perante a geração mais velha.
— Disse que queria que eu fosse rainha por todos os dias — repliquei em voz baixa, odiando Ana por ter traído a minha confidência, odiando meu pai e meu tio por sua dissecação fria dos sussurros trocados entre amantes.
— O que acha que ele quis dizer?
— Nada — respondi aborrecida. — Apenas palavras de amante.
— Temos de ter uma recompensa por todos esses empréstimos — disse meu tio com irritação. — Falou algo no sentido de lhe dar uma terra? Ou alguma coisa para George? Ou para nós?
— Pode sugerir algo nesse sentido? — propôs meu pai. — Lembre-lhe que George está para se casar.
Olhei para George num apelo mudo.
— A questão é que ele está muito alerta a esse tipo de coisa — George apontou. — Todo mundo faz isso com ele o tempo todo. Toda manhã, quando vai de sua câmara privada para a missa, seu caminho é tomado de gente esperando para lhe pedir um favor. Eu diria que o que o atrai em Maria é ela não ser desse tipo. Acho que ela nunca lhe pediu nada.
— Ela tem diamantes que valem uma fortuna em suas orelhas — interferiu minha mãe, rispidamente. Ana concordou com a cabeça.
— Mas ela não os pediu. Ele deu porque quis dar. Gosta de ser generoso quando seu ato é inesperado. Acho que devemos deixar Maria agir por si mesma. Ela tem talento para amá-lo.
Mordi o lábio ao ouvir isso para me impedir de dizer alguma coisa. Eu realmente tinha talento para amá-lo. Talvez fosse o meu único. E essa família, essa rede poderosa de homens, estava usando o meu talento para amar o rei, como usava o de George na esgrima, ou o de meu pai para línguas, para favorecer os seus interesses.
— A corte vai se mudar para Londres na semana que vem — observou meu pai. — O rei se encontrará com o embaixador espanhol. Há pouca chance de ele fazer qualquer movimento em direção a Maria enquanto precisar da aliança com a Espanha para combater a França.
— Então é melhor trabalhar pela paz — recomendou meu tio ferozmente.
— E eu trabalho. Sou um defensor da paz — replicou meu pai. — Não sou?
Uma jornada da corte era sempre uma visão poderosa, um pouco uma feira rural, um dia de mercado, uma justa. Foi tudo providenciado pelo cardeal Wolsey, tudo na corte ou no campo era feito sob seu comando. Ele tinha estado ao lado do rei na Batalha de Spurs, na França, tinha sido esmoler no exército inglês e os homens nunca se deitaram tão secos à noite nem comeram tão bem. Tinha uma percepção para detalhes que o tornava atento a como a corte iria de um lugar para outro, uma percepção política que o inspirava em relação a onde pararíamos e qual lorde se sentiria honrado com uma visita durante a viagem de verão do rei, e era astuto o bastante para não importunar Henrique com nenhuma dessas coisas, de modo que o jovem rei só tivesse prazer, como se suprimentos e criados e organização caíssem do céu.
Era o cardeal que dirigia a hierarquia da corte na mudança. À nossa frente, iam os pajens carregando os estandartes com as flâmulas de todos os lordes da comitiva. Atrás deles havia um espaço para a poeira assentar, e então vinha o rei montando seu melhor cavalo de caça, com sua sela vermelha de couro, trabalhada em relevo e com toda a pompa digna da realeza. Acima dele, adejava seu próprio estandarte. Do seu lado, os amigos escolhidos para montarem com ele nesse dia: meu marido William Carey, o cardeal Wolsey e meu pai. Logo atrás vinha o restante dos companheiros do rei, mudando de lugar, se retardando ou avançando livremente. Ao redor deles, em uma formação com facilidade de movimentos, vinha a guarda pessoal do rei em seus cavalos com as lanças em posição de apresentar armas. Não serviam para protegê-lo — quem pensaria em fazer mal a esse rei? —, mas para manter afastado o povo que se aglomerava dando vivas e o observando boquiaberto, sempre que passávamos por uma cidade ou vilarejo.
Houve outras pausas antes da comitiva da rainha. Ela montava seu palafrém de sempre. Sentava-se ereta na sela, o vestido disposto deselegantemente em grandes pregas de tecido grosso, o chapéu de lado em sua cabeça, os olhos apertados contra o sol forte. Estava passando mal. Eu sabia porque estava do seu lado, de manhã, e escutara o gemido reprimido de dor quando montara em seu cavalo.
Atrás do séquito da rainha vinham os outros membros da casa, alguns montados, outros em carroças, alguns cantando ou bebendo ale para afastar a poeira da estrada de suas gargantas. Todos partilhávamos uma despreocupação de um dia festivo ou de férias quando a corte partiu de Greenwich para Londres, com uma nova temporada de festas e entretenimentos à nossa espera, e quem sabia o que poderia acontecer nesse ano?
Os aposentos da rainha em York Place eram pequenos e asseados, e só precisamos de alguns dias para desfazer a bagagem e pôr tudo em ordem. O rei a visitava toda manhã, como sempre, e seu séquito o acompanhava, inclusive Lord Henry Percy. Ele e Ana sentavam-se à janela, as cabeças bem próximas, trabalhando poemas de Lord Henry. Ele jurava que se tornaria um grande poeta se tivesse a orientação de Ana e ela jurava que ele nunca aprenderia nada, que era tudo um artifício para a fazer desperdiçar seu tempo e erudição com um tolo.
Eu achava um tanto corajoso uma garota Bolena, vinda de um castelo em Kent e um punhado de terras em Essex, chamar o duque de Northumberland de tolo, mas Henry Percy riu e disse que ela era uma professora excessivamente severa, e que um talento, um grande talento se revelaria, independentemente do que ela dissesse.
— O cardeal o está chamando — eu disse. Levantou-se, sem pressa, beijou a mão de Ana, e foi procurar o cardeal Wolsey. Ana juntou os papéis em que estavam trabalhando e os trancou em sua caixa.
— Ele não tem mesmo nenhum talento para poesia? — perguntei.
Ela encolheu os ombros com um sorriso.
— Não é nenhum Wyatt.
— É um Wyatt no namoro?
— Não é casado — disse ela. — E portanto ainda mais desejável a uma mulher sensível.
— Ele é muito, até mesmo para você.
— Não vejo por quê. Se o quero e ele me quer.
— Peça a papai que fale com o duque — aconselhei com sarcasmo. — Veja o que o duque diz.
Virou a cabeça para olhar pela janela. Os longos gramados de York Place estendiam-se quase ocultando o lampejo do rio aos pés do jardim.
— Não vou pedir a papai — replicou ela. — Achei que poderia acertar as coisas sozinha.
Eu ia rir, mas percebi que falava sério.
— Ana, não dá para acertar isso sozinha. Ele é apenas um jovem, você só tem 17 anos, não podem decidir isso sozinhos. Certamente seu pai tem alguém em mente para ele, e certamente nosso pai e nosso tio têm planos para você. Não somos independentes, somos mulheres Bolena. Temos de ser guiadas, de fazer o que nos mandam fazer. Veja o meu caso!
— Sim, você! — agrediu-me com uma explosão súbita de sua energia sombria. — Casou-se quando não passava de uma criança e, agora, é amante do rei. Menos inteligente do que eu! Menos instruída do que eu! Mas é o centro da corte e eu não sou nada. Tenho de ser a sua dama. Não posso lhe servir, Maria. É um insulto para mim.
— Nunca pedi que me... — gaguejei.
— Quem insiste para que se limpe e lave o cabelo? — perguntou furiosa.
— Você, mas...
— Quem a ajuda a escolher suas roupas e a ensina como agir com o rei? Quem a salvou mil vezes quando era tão idiota e desajeitada para saber como se comportar?
— Você. Mas Ana...
— E o que ganho com isso? Não tenho marido que receba uma terra como demonstração do favor do rei. Não tenho marido para ocupar cargo alto porque minha irmã é a amante do rei. Não ganho nada com isso. Por mais que você suba, não ganharei nada. Tenho de conseguir um lugar por mim mesma.
— Sim, tem — repliquei sem convicção. — Não nego. Eu só disse que acho que não vai conseguir ser duquesa.
— É você que vai decidir? — falou com escárnio. — Você que não passa da distração do rei enquanto ele não está empenhado no importante negócio de fazer um filho varão se puder, e guerrear se puder formar um exército?
— Não disse que devo decidir — sussurrei. — Só disse que acho que não vão deixar que seja duquesa.
— Quando estiver feito, estará feito — disse ela, jogando a cabeça. — E ninguém ficará sabendo até estar feito.
De súbito, como o bote de uma serpente, agarrou minha mão com fúria. Torceu meu braço para as minhas costas e segurou-me de modo que eu não pudesse me mover, somente gritar com dor:
— Ana! Pare! Está me machucando!
— Pois escute bem — sussurrou em meu ouvido. — Preste bem atenção no que vou dizer, Maria. Estou jogando o meu próprio jogo e não quero que você atrapalhe. Ninguém vai saber de nada até eu estar pronta para contar. Então, saberão de tudo tarde demais.
— Vai fazer com que ele a ame?
Largou-me abruptamente, e pus a mão em meu cotovelo e meu braço, que doíam bastante.
— Vou fazer com que se case comigo — disse ela sem rodeios. — E se deixar escapar qualquer coisa sobre isso, a mato.
Depois disso, passei a observar Ana com mais cuidado. Vi como lidava com ele. Tendo avançado durante todos os meses frios em Greenwich, agora, com o sol e a nossa chegada a York Place, recuou repentinamente. E quanto mais se afastava dele, mais ele a procurava. Quando ele entrava na sala, ela lançava-lhe um sorriso como uma flecha ao centro do alvo. Seu olhar era um convite, pleno de desejo. Mas então, desviava os olhos e não tornava a olhar para ele até o fim de sua visita.
Ele estava na comitiva do cardeal Wolsey e deveria esperar Vossa Eminência, enquanto o cardeal visitava o rei ou a rainha. Não havia nada para o jovem lorde fazer a não ser perambular pelos aposentos da rainha e flertar com quem falasse com ele. Estava claro que só tinha olhos para Ana, que passava por ele e dançava com outro, deixava cair sua luva e ele a devolvia, sentava-se ao seu lado, mas não falava com ele e devolvia seus poemas dizendo que não podia mais ajudá-lo.
Ela entrou no mais resoluto recolhimento, e o rapaz não sabia o que fazer para reconquistá-la.
Procurou-me.
— Sra. Carey, ofendi sua irmã sem saber?
— Não, acho que não.
— Ela antes sorria para mim de modo encantador, e agora me trata com frieza.
Refleti por um instante, era muito lenta nessas situações. Por um lado, havia a resposta verdadeira: estava agindo com ele como um pescador com um peixe no anzol. Mas sabia que Ana não queria que dissesse isso. Por outro lado, era a resposta que Ana queria que eu desse. Por um momento, olhei para a cara de bebê ansioso de Henry Percy com compaixão genuína. Depois, lancei-lhe um sorriso Bolena e dei-lhe uma resposta Howard.
— Na verdade, milorde, acho que ela tem medo de ser excessivamente gentil.
Vi a esperança se manifestar em sua cara infantil.
— Excessivamente gentil?
— Ela era muito gentil com o senhor, não era, milorde?
Balançou a cabeça.
— Oh, sim. Sou seu escravo.
— Acho que teve medo de gostar demais do senhor.
Inclinou-se à frente, como se para pegar as palavras de minha boca.
— Demais?
— Demais para que a sua mente ficasse em paz — repliquei baixinho.
Ele deu um pulo, dois passos para longe de mim e, então, voltou.
— Ela me deseja?
Sorri e virei um pouco a cabeça de modo que não percebesse meu enfado diante de sua ilusão. Ele não era de se dissuadir facilmente. Caiu de joelhos à minha frente e observou meu rosto atentamente.
— Diga-me, Sra. Carey — suplicou. — Há noites não durmo. Há dias não como. Sou uma alma em tormento. Diga-me se acha que ela me ama. Diga, pelo amor de Deus.
— Não posso. — E na verdade não podia. A mentira ficaria entalada na minha garganta. — Tem de perguntar a ela o senhor mesmo.
Levantou-se de um pulo, como uma lebre surgindo de uma samambaia com os cães a perseguindo.
— Vou perguntar! Vou perguntar! Onde ela está?
— Jogando boliche no jardim.
Não precisou de mais nada para abrir a porta impulsivamente e sair em disparada. Ouvi os saltos de suas botas soarem na escadaria de pedra até a porta que dava para o jardim. Jane Parker, que estava sentada no lado de lá da sala, ergueu os olhos.
— Fez mais uma conquista? — perguntou, fazendo uma ideia errada como sempre.
Lancei-lhe um sorriso tão venenoso quanto o dela.
— Algumas mulheres atraem o desejo. Outras não — respondi simplesmente.
Encontrou-a no gramado do boliche, perdendo com elegância e deliberadamente para Sir Thomas Wyatt.
— Comporei um soneto para a senhorita — prometeu Wyatt. — Por me conceder a vitória com tanta graça.
— Não, não, foi uma disputa justa — protestou Ana.
— Se tivesse dinheiro nisso, acho que estaria pegando minha bolsa — disse ele. — Os Bolena só perdem quando não há nada a ganhar com a vitória.
Ana sorriu.
— Na próxima vez, deverá apostar a sua fortuna — disse ela. — Está vendo? Acalmei-o com a sensação de segurança.
— Não tenho outra fortuna a oferecer senão o meu coração.
— Quer dar uma volta comigo? — interrompeu Henry Percy, a voz saindo muito mais alta do que pretendia.
Ana levou um pequeno susto, como se não o tivesse percebido ali.
— Oh, Lord Henry!
— A dama está jogando boliche — disse Sir Thomas.
Ana sorriu para os dois.
— Fui derrotada tão completamente que darei uma volta para planejar uma estratégia — disse ela, e deu o braço a Lord Henry Percy.
Ele afastou-a do boliche, descendo o caminho sinuoso que levava a um banco sob um teixo.
— Srta. Ana — começou ele.
— Está molhado demais para nos sentarmos?
Imediatamente ele tirou o belo manto do ombro e o abriu sobre o banco de pedra.
— Srta. Ana...
— Não, estou com muito frio — decidiu ela, e se levantou.
— Srta. Ana! — exclamou ele, um pouco mais impaciente.
Ana parou e lançou-lhe um sorriso sedutor.
— Senhor?
— Tenho de saber por que anda tão fria comigo.
Ela hesitou por um momento, depois fez um movimento coquete e virou o rosto, grave e encantador, para ele.
— Não pretendi ser fria — replicou baixinho. — Pretendi ser prudente.
— Com o quê? — exclamou ele. — Tenho vivido atormentado!
— Não pretendia atormentá-lo. Quis retrair-me um pouco, só isso.
— Por quê? — perguntou com um sussurro.
Ela olhou do jardim para o rio.
— Achei que seria melhor para mim — disse ela, com calma —, talvez para nós dois. Podemos nos tornar amigos íntimos demais para meu conforto.
Ele deu um passo para longe dela e logo retornou ao seu lado.
— Eu nunca lhe causaria um momento de desconforto — garantiu-lhe ele. — Se quisesse que eu prometesse que seríamos amigos e que nunca isso provocaria nenhum escândalo, eu teria prometido.
Virou seus olhos escuros e brilhantes para ele.
— Pode prometer que ninguém nunca diria que estávamos apaixonados?
Ele sacudiu a cabeça sem falar nada. É claro que não podia prometer o que a corte, louca por um escândalo, diria ou não.
— Pode prometer que nunca nos apaixonaríamos?
Ele hesitou.
— É claro que a amo, Srta. Ana — disse ele. — Cortesmente. Polidamente.
Ela sorriu como se tivesse gostado de ouvir isso.
— Sei que não passa de um flerte. Para mim, também. Mas é um jogo perigoso quando jogado entre um homem belo e uma donzela, quando há gente demais que logo diz que fomos feito um para o outro, que combinamos perfeitamente.
— Dizem isso?
— Quando nos veem dançar. Quando veem como olha para mim. Quando veem como sorrio para você.
— Dizem o que mais? — ficou completamente extasiado com essa imagem.
— Dizem que me ama. Dizem que o amo. Dizem que nos apaixonamos perdidamente enquanto achávamos que estávamos apenas brincando.
— Meu Deus! — exclamou diante da revelação. — Meu Deus, então é isso!
— Oh, senhor, o que está querendo dizer?
— Estou dizendo que tenho sido um tolo. Estou apaixonado por você há meses e o tempo todo achei que só estava me divertindo e que você me provocava, mas que tudo isso não significava nada.
Seu olhar o aqueceu.
— Para mim, sim — disse ela em um sussurro.
Seus olhos escuros fixaram-se nele, o garoto ficou pasmo.
— Ana — sussurrou ele. — Meu amor.
Os lábios dela se curvaram em um sorriso irresistível, convidando a um beijo.
— Henry — ofegou ela. — Meu Henry.
Deu um passo na direção dela, pôs a mão em sua cintura fina. Puxou-a para si e Ana cedeu, se aproximou de maneira sedutora. Ele baixou a cabeça quando ela se levantou, e a suas bocas se encontraram para seu primeiro beijo.
— Oh, diga — sussurrou Ana. — Diga agora, neste momento, Henry.
— Case-se comigo — disse ele.
— Está feito — disse Ana alegremente em nosso quarto naquela noite. Tinha mandado que trouxessem a banheira e entramos na água quente, uma depois da outra, e esfregamos as costas uma da outra e lavamos o cabelo uma da outra. Ana, tão fanática em relação a limpeza quanto uma cortesã francesa, foi dez vezes mais rigorosa do que o habitual. Inspecionou as unhas de minhas mãos e dos meus pés como se eu fosse um aluno sujo, deu-me o cotonete de marfim para limpar minhas orelhas, como se eu fosse sua filha, passou o pente fino à cata de lêndeas em cada cacho do meu cabelo, indiferente a meus choramingos de dor.
— E então? O que foi feito? — perguntei emburrada, pingando água no chão e me envolvendo em um lençol. Chegaram quatro criadas que se puseram a remover a água para baldes, de modo que a grande banheira de madeira fosse retirada do quarto. Os lençóis usados para guarnecerem a banheira estavam ensopados e pesados. Parecia tudo muito esforço para pouca recompensa. — Apesar de tudo, o que ouvi não passa de um flerte.
— Ele me pediu em casamento — disse Ana. Esperou as criadas saírem e enrolou o lençol mais apertado ao redor de seus seios e se sentou na frente do espelho.
Bateram na porta.
— Quem é agora? — perguntei exasperada.
— Sou eu — replicou George.
— Estamos tomando banho — eu disse.
— Oh, deixe que entre. — Ana se pôs a pentear seu cabelo escuro. — Ele pode desfazer estes nós.
George entrou e ergueu a sobrancelha ao ver a bagunça de água no chão e lençóis molhados, nós duas seminuas, e Ana com uma cabeleira cheia e molhada jogada sobre o ombro.
— É uma mascarada? São sereias?
— Ana insistiu para que nos banhássemos de novo.
Ana estendeu-lhe o pente e ele o pegou.
— Penteie meu cabelo — disse ela com seu sorriso de lado, malicioso. — Maria sempre puxa. — Obedientemente, ele foi para trás dela e começou a pentear seu cabelo escuro, uma mecha de cada vez. Penteou-a com cuidado, como se fosse a cria de sua égua. Ana fechou os olhos e deleitou-se com sua maneira de penteá-la. — Alguma lêndea? — perguntou ela, de repente alerta.
— Até agora nenhuma. — tranquilizou-a, tão íntimo quanto um cabeleireiro veneziano.
— Então, o que está feito? — perguntei voltando à declaração de Ana.
— Ele é meu — disse ela francamente. — Henry Percy. Disse que me ama, que quer se casar comigo. Quero que você e George sejam as testemunhas no contrato de casamento. Ele me dá uma aliança e, então, está feito e não poderá ser rompido, o mesmo que o casamento em uma igreja diante de um padre. E serei duquesa.
— Deus meu! — George se paralisou, o pente no ar. — Ana! Você tem certeza?
— E eu me enganaria nisso? — perguntou ela concisamente.
— Não — admitiu ele. — Duquesa de Northumberland! Meu Deus, Ana, você vai ser dona de quase todo o norte da Inglaterra.
Ela concordou balançando a cabeça e sorrindo para a sua imagem refletida no espelho.
— Deus meu! Seremos a família mais importante do país! Uma das mais importantes na Europa. Com Maria na cama do rei e você mulher do súdito mais importante, os Howard ficarão tão no alto que não poderão cair — interrompeu-se por um instante enquanto refletia sobre o próximo passo. — Meu Deus, se Maria engravidar do rei e tiver um filho varão, com Northumberland por trás, poderá assumir o trono. Eu poderia ser tio do rei da Inglaterra.
— Sim — disse Ana, com a voz macia. — Foi o que pensei.
Eu não disse nada, observando a expressão de minha irmã.
— A família Howard no trono — murmurou George. — Northumberland e Howard em aliança. Está decidido, não está? Quando os dois se unirem. Só se unirão por meio de um casamento e um herdeiro por quem lutar. Maria poderia gerar o herdeiro e Ana unir os Percy ao seu futuro.
— Você achou que eu nunca conseguiria — disse Ana, apontando um dedo para mim.
Assenti com a cabeça.
— Achei que estava almejando alto demais.
— Agora já sabe — me avisou. — O que almejo, alcanço.
— Agora sei — concordei.
— E ele? — George alertou-a. — E se o deserdarem? Em que bela posição você vai ficar, casada com um garoto que antes era herdeiro de um ducado e que agora caiu em desgraça e não possui mais nada.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não vão fazer isso. Ele é precioso demais para eles. Mas vocês têm de me ajudar, George. Você, papai e tio Howard. Se o pai dele achar que somos bons o bastante, o contrato se manterá.
— Farei todo o possível, mas os Percy são muito orgulhosos, Ana. Tinham-no destinado a Mary Talbot, até Wolsey ser contra a união. Não vão querê-la no lugar dela.
— É a fortuna dele que você quer? — perguntei.
— Oh, o título também — replicou Ana friamente.
— Falo sério. O que sente por ele?
Por um momento achei que ela poria a pergunta de lado com outra piada que faria com que a adoração infantil dele por ela parecesse nada. Mas ela jogou a cabeça, e o cabelo limpo passou pelas mãos de George como um rio escuro.
— Oh, sei que sou uma boba! Sei que ele não passa de um menino, e um menino tolo, mas quando está comigo, também me sinto uma menina. Como se fôssemos duas crianças apaixonadas e sem nada a temer. Ele faz com que me sinta inconsequente! Com que me sinta maravilhada! Com que me sinta apaixonada!
Foi como se o feitiço Howard da frieza tivesse sido quebrado, estilhaçado como um espelho, e tudo fosse real e vivo. Ri com ela e peguei suas mãos e olhei seu rosto.
— Não é maravilhoso? — perguntei. — Apaixonar-se? Não é a coisa mais maravilhosa?
Ela retirou as mãos.
— Oh, deixe disso, Maria. Você é tão criança. Mas sim! Maravilhoso? Sim! Mas não ria de mim, eu não conseguiria suportar.
George pegou uma mecha de seu cabelo, torceu-a no topo de sua cabeça e admirou seu rosto no espelho.
— Ana Bolena apaixonada — disse ele pensativamente. — Quem diria?
— Isso não aconteceria se ele não fosse o homem mais importante do reino depois do rei — lembrou-lhe ela. — Não me esqueço do que é conveniente para mim e minha família.
Ele assentiu.
— Eu sei disso, Ana Maria. Todos sabíamos que subiria muito. Mas um Percy! É muito mais do que imaginei.
Ela inclinou-se à frente como se interrogasse seu reflexo. Segurou o rosto.
— Este é o meu primeiro amor. O primeiro e único amor.
— Se Deus quiser, terá sorte e esse será seu último amor, assim como seu primeiro — disse George, de repente sóbrio.
Seus olhos escuros encararam os dele no espelho.
— Se Deus quiser — disse ela. — Não quero mais nada na minha vida além de Henry Percy. Eu me satisfarei com isso. Oh, George, não sei como dizer, mas se eu tiver Henry Percy e ficar com ele, ficarei muito satisfeita.
Henry Percy veio, a pedido de Ana, aos aposentos da rainha ao meio-dia do dia seguinte. Ela tinha escolhido a hora com cuidado. As damas de honra tinham ido à missa, e tínhamos os quartos só para nós. Henry Percy entrou e olhou em volta, surpreso com o silêncio e o vazio. Ana aproximou-se e pegou suas duas mãos. Por um momento, ele me pareceu menos cortejado que caçado.
— Meu amor — disse Ana, e ao ouvir a sua voz, o rosto do garoto se avivou e ele retomou a coragem.
— Ana — disse ele baixinho.
Sua mão tateou dentro do bolso de suas calças acolchoadas e tirou um anel. De minha posição na janela, vi o tremeluzir de um rubi, símbolo da mulher virtuosa.
— Para você — disse ele baixinho.
Ana pegou sua mão.
— Quer firmar nosso noivado neste momento, perante testemunhas? — perguntou ela.
Ficou um pouco nervoso.
— Sim, quero.
— Então, faça.
Ele relanceou os olhos para George e para mim, como se achasse que um de nós dois pudesse detê-lo.
George e eu sorrimos de maneira encorajadora, o sorriso Bolena: um par de serpentes agradáveis.
— Eu, Henry Percy, tomo você, Ana Bolena, para minha legítima esposa — disse ele, pegando a mão de Ana.
— Eu, Ana Bolena, tomo você, Henry Percy, para meu legítimo esposo — a sua voz mais firme do que a dele.
Ele buscou o terceiro dedo da mão esquerda dela.
— Com este anel, me entrego a você — disse ele com calma, e o colocou em seu dedo. Ficou muito largo e ela fechou o punho para firmá-lo.
— Com este anel, o aceito — replicou ela.
Ele baixou a cabeça e a beijou. Quando ela virou o rosto para mim, seus olhos estavam enevoados de desejo.
— Deixem-nos — disse ela, com a voz baixa.
Demos duas horas para eles e então ouvimos, no corredor de pedra, a rainha e suas damas retornando da missa. Batemos forte na porta no ritmo que significava “Bolena!”. Sabíamos que Ana, mesmo num sono satisfeito, escutaria. Mas quando abrimos a porta e entramos, ela e Henry Percy estavam compondo um madrigal. Ela estava tocando o alaúde e ele estava cantando a letra que tinham escrito juntos. Suas cabeças estavam bem próximas, para que pudessem enxergar a pauta na estante juntos. Mas exceto essa intimidade, estavam como tinham estado nos últimos três meses.
Ana sorriu para mim quando entramos na sala, acompanhados das damas da rainha.
— Escrevemos uma ária tão bonita que nos tomou a manhã toda — disse Ana com doçura.
— E como se chama? — perguntou George.
— “Com alegria, com alegria” — replicou Ana. — “Com alegria, com alegria seguiremos em frente”.
Nessa noite, foi Ana que deixou nosso quarto. Jogou um manto escuro sobre o vestido e foi para a porta quando o sino da torre do castelo bateu meia-noite.
— Aonde vai a esta hora da noite? — perguntei escandalizada.
Sua face pálida olhou para mim sob o capuz escuro.
— A meu marido — replicou simplesmente.
— Ana, não pode — eu disse espantada. — Vai ser pega e estará arruinada.
— Somos casados diante de Deus e testemunhas. Vale tanto quanto um casamento, não?
— Sim — repliquei de má vontade.
— Um casamento pode ser arruinado se não for consumado, não pode?
— Sim.
— Portanto vou consumá-lo rapidamente — disse ela. — Nem mesmo a família Percy poderá esquivar-se quando Henry e eu contarmos que nos casamos e deitamos juntos.
Ajoelhei-me na cama, implorando que não fosse.
— Mas Ana, e se alguém os vir?
— Não vão ver — disse ela.
— Quando os Percy souberem que vocês dois escaparam à meia-noite!
Ela encolheu os ombros.
— Não vejo que diferença faz o como e onde. Contanto que seja feito.
— Se não der em nada... — interrompi-me com o brilho de seus olhos. Com um passo largo atravessou o quarto e pôs as mãos na gola da minha camisola, torcendo-a no meu pescoço.
— É por isso que estou fazendo isso — sussurrou. — Você é uma tola. Para que não dê em nada. Para que ninguém possa dizer que não foi nada. De modo que está assinado e selado. Casado e consumado. Sem possibilidade de ser negado. Agora, dorme. Estarei de volta nas primeiras horas. Muito antes de amanhecer. Agora tenho de ir.
Concordei com a cabeça e não falei nada até sua mão estar na maçaneta da porta.
— Mas Ana, você o ama? — perguntei curiosa.
A curva do capuz cobria todo o seu rosto, menos o canto de seu sorriso.
— Sou uma tola em sentir isso, mas estou desejando que me toque.
Então, abriu a porta e se foi.
Verão de 1523
A corte celebrou o 1º de maio, a Festa da Primavera, com uma festança planejada e executada pelo cardeal Wolsey. As damas da corte da rainha saíram em barcaças, todas vestidas de branco, e foram surpreendidas por bandidos franceses vestidos de preto. Um grupo de resgate de ingleses nascidos livres, todos vestidos de verde, remaram para salvá-las, e houve uma luta alegre, com água jogada de baldes, e um bombardeio com bexigas de porcos cheias de água. A barcaça real, toda decorada com bandeiras verdes, tinha um canhão engenhoso que disparava pequenas bombas de água que derrubavam os bandidos franceses, os quais tinham de ser resgatados por barqueiros do Tâmisa, bem pagos para isso e impedidos de participar da luta.
A rainha estava toda molhada e riu, contente como uma garota, ao ver seu marido, com uma máscara e um chapéu de Robin Hood, jogar uma rosa para mim, sentada na barcaça ao seu lado.
Desembarcamos em York Place e fomos recebidas pelo próprio cardeal. Havia músicos escondidos nas árvores do jardim. Robin Hood, mais alto do que todos e com o cabelo dourado, conduziu-me na dança. O sorriso da rainha não hesitou em momento algum, nem quando o rei pôs minha mão em seu gibão verde, sobre o seu coração, e enfiei sua rosa em meu capelo, de modo que vicejasse em minha têmpora.
Os cozinheiros do cardeal tinham se superado. Além de pavão recheado, cisne, ganso e galinhas, havia pernil de cervo e quatro tipos de peixe assado, inclusive o seu favorito, carpa. Os doces na mesa eram um tributo à primavera, todos decorados com flores e buquês de marzipã, quase bonitos demais para serem destruídos e comidos. Depois de nos alimentarmos e o dia começar a esfriar, os músicos tocaram uma melodia misteriosa e nos conduziram pelos jardins escurecidos até o salão de York Place.
O salão estava transformado. O cardeal tinha ordenado que fosse enfaixado com tecido verde, preso em cada canto com grandes ramos de espinheiro. No centro da sala, estavam dois grandes tronos, para o rei e a rainha, com coristas do rei dançando e cantando na frente. Ocupamos nossos lugares e assistimos à mascarada das crianças. Depois nos levantamos e dançamos.
Divertimo-nos até a meia-noite, quando a rainha se levantou e fez sinal para que suas damas deixassem o salão. Eu acompanhava o séquito quando meu vestido foi pego pelo rei.
— Venha comigo, agora — insistiu Henrique.
A rainha virou-se para fazer a cortesia de despedida ao rei e o viu com a mão na bainha de meu vestido, e a mim, hesitando diante dele. Ela não hesitou, e fez sua reverência espanhola com dignidade.
— Boa noite, marido — disse ela, com a voz doce. — Boa noite, Sra. Carey.
Lancei-me como uma pedra em uma reverência a ela.
— Boa noite, Majestade — sussurrei com a cabeça baixa. Desejei que a reverência me curvasse mais, me afundando no chão, para debaixo do chão, para que ela não visse minha cara escarlate quando se erguesse.
Quando me levantei, ela tinha ido e ele a esquecera. Foi como se uma mãe tivesse deixado, finalmente, os jovens brincarem.
— Vamos dançar mais — disse ele alegremente. — E beber um pouco de vinho.
Olhei em volta. As damas tinham desaparecido com ela. George sorriu me tranquilizando.
— Não se aflija — disse a meia-voz.
Hesitei, mas Henrique, que tinha bebido, virou-se para mim com uma taça na mão.
— À rainha da Primavera! — disse ele.
E a sua corte, que teria repetido charadas em holandês se ele as tivesse recitado, replicou obedientemente:
— À rainha da Primavera! — e ergueram seus copos para mim.
Henrique pegou-me pela mão e me levou ao trono em que a rainha Catarina tinha se sentado. Fui com ele, mas senti que meus pés se arrastavam. Eu não estava preparada para me sentar em sua cadeira.
Delicadamente, incitou-me a subir os degraus. Virei-me e olhei para as caras inocentes das crianças embaixo, e para os sorrisos, não tão inocentes, da corte de Henrique.
— Vamos dançar para a rainha da Primavera! — disse Henrique e pegou uma garota e dançaram na minha frente, e eu, sentada no trono da rainha, observando seu marido dançar e flertar com sua parceira, sabia que estampava seu sorriso tolerante, como uma máscara em meu rosto.
No dia seguinte, Ana entrou correndo no nosso quarto, a cara pálida.
— Veja isto! — sussurrou e jogou o pedaço de papel na cama.
Querida Ana, não posso vê-la hoje. Milorde cardeal sabe de tudo e fui chamado para lhe dar explicações. Mas juro que não vou desapontá-la.
— Oh, meu Deus! — exclamei baixinho. — O cardeal sabe. O rei vai saber também.
— E daí? — perguntou Ana. — E daí se todos souberem? Foi um casamento decente, não foi? Por que não deveriam saber?
O papel tremia na minha mão.
— O que ele quis dizer com não desapontá-la? — perguntei. — Se é um compromisso que não pode ser desfeito, não há como ele traí-la. Isso não pode estar em questão.
Ana deu três passos rápidos até a parede do quarto, depois se virou, e voltou, rondando como um leão na Torre.
— Não sei o que ele quis dizer. O garoto é um tolo.
— Disse que o amava.
— Isso não quer dizer que não seja um tolo. — De súbito, tomou uma decisão. — Vou procurá-lo. Vai precisar de mim. Vai fraquejar sob a pressão deles.
— Não pode ir. Tem de esperar.
Abriu o armário e retirou seu manto.
Houve uma batida estrondosa na porta e nós duas gelamos. Em um só movimento, tirou o manto dos ombros, guardou-o batendo a porta do armário e sentou-se, serena, como se tivesse passado ali a manhã toda. Abri a porta. Era um criado com libré do cardeal Wolsey.
— A Srta. Ana está aí?
Abri a porta um pouco mais para que ele pudesse vê-la, contemplando pensativamente o jardim lá fora. A barcaça do cardeal com os estandartes vermelhos distintivos estava atracada no fim do jardim.
— Por favor, apresente-se ao cardeal na sala de audiências — disse ele.
Ana virou a cabeça e olhou para ele sem responder.
— Imediatamente — disse ele. — O cardeal disse para ir imediatamente.
Ela não se enfureceu com a arrogância da ordem. Sabia tanto quanto eu que, na medida em que o cardeal administrava o reino, uma palavra sua tinha o mesmo peso de uma palavra do rei. Foi até o espelho, olhou-se rapidamente. Beliscou as bochechas para lhes dar alguma cor, mordeu o lábio superior, depois o inferior.
— Devo ir também? — perguntei.
— Sim, caminhe do meu lado — disse ela a meia-voz. — Isso o lembrará que tem o ouvido do rei. E se o rei estiver lá... comova-o, se puder.
— Não posso exigir nada — falei enfaticamente.
Mesmo nesse momento de crise, lançou-me um sorriso rápido, complacente.
— Eu sei disso.
Seguimos o criado pelo salão até a sala de audiências de Henrique. Estava excepcionalmente deserta. Henrique estava caçando, seu séquito com ele. Os homens do cardeal, em sua libré vermelha, estavam à porta. Recuaram para que entrássemos, depois nos barraram o caminho de novo. Vossa Eminência queria se assegurar de que não seríamos interrompidos.
— Srta. Ana — disse ele ao vê-la. — Recebi uma notícia extremamente aflitiva hoje.
Ana permaneceu imóvel, as mãos cruzadas, a face serena.
— Lamento ouvir isso, Eminência — disse ela suavemente.
— Parece que meu pajem, Henry de Northumberland, abusou de sua amizade com a senhorita e da liberdade que lhe dei de frequentar os aposentos da rainha e de falar levianamente de amor.
Ana sacudiu a cabeça, mas o cardeal não deixou que falasse.
— Disse-lhe, hoje, que essas brincadeiras excêntricas não convêm a quem herdará os condados do norte e cujo casamento é assunto de seu pai, do rei, e meu. Ele não é um garoto de fazenda que pode derrubar a leiteira no feno e ninguém se importar. O casamento de um lorde de sua posição é uma questão política — fez uma pausa. — E o rei e eu somos quem fazemos a política neste reino.
— Ele pediu minha mão em casamento e eu lhe dei — disse Ana com firmeza. Dava para ver o “B” dourado que usava no colar alto de pérolas ao redor de seu pescoço pulsando com as batidas rápidas de seu coração. — Estamos comprometidos, milorde cardeal. Lamento se isso o desagrada, mas está feito. Não pode ser desfeito.
Lançou-lhe um olhar sombrio por debaixo de seu chapéu redondo.
— Lord Henry aceitou se submeter à autoridade de seu pai e do rei — disse ele. — Estou lhe contando isso por cortesia, Srta. Bolena, para que evite ofender aqueles acima da senhorita por vontade de Deus.
Ela ficou lívida.
— Ele nunca disse isso. Nunca disse que se submeteria à autoridade de seu pai ao invés de...
— À sua? Sabe, eu realmente me pergunto se foi assim mesmo. Na verdade, ele se submeteu. Toda essa pequena questão está nas mãos do rei e do duque.
— Ele está prometido a mim. Estamos noivos — disse ela com ferocidade.
— Foi um noivado de futuro — o cardeal decretou. — Uma promessa de casar no futuro, se possível.
— Foi de fato — replicou Ana sem se abalar. — Um compromisso diante de testemunhas, e consumado.
— Ah — uma mão rechonchuda foi erguida em advertência. O pesado anel do cardeal tremeluziu para ela como se para lembrar-lhe que aquele homem era o líder espiritual da Inglaterra. — Por favor, não sugira que isso pode ter acontecido. Seria imprudente demais. Se digo que o compromisso foi de futuro, assim foi, Srta. Ana. Eu não posso errar. Se uma dama vai para a cama com um homem em uma situação insegura como essa, ela é uma tola. Uma mulher que se entregou e depois se viu abandonada estaria completamente arruinada. Nunca mais se casaria.
Ana lançou um olhar rápido para mim, pelo canto do olho. Wolsey devia ter consciência da ironia de pregar as virtudes da virgindade a uma mulher que era irmã da adúltera mais notória do reino. Mas seu olhar não hesitou.
— Seria muito ofensivo de sua parte, Srta. Bolena, se a sua afeição por Lord Henry o persuadisse a me dizer uma mentira dessa.
Percebi sua luta para conter seu pânico.
— Milorde cardeal — disse ela, e sua voz tremeu ligeiramente —, eu seria uma boa duquesa de Northumberland. Eu me preocuparia com os pobres, eu faria com que houvesse justiça no norte. Protegeria a Inglaterra dos escoceses. Seria sua amiga para sempre. Estaria eternamente em dívida com Vossa Eminência.
Ele sorriu ligeiramente, como se não achasse o favor de Ana um suborno dos mais altos que já lhe tinham sido oferecidos.
— Seria uma duquesa encantadora — disse ele. — De Northumberland ou qualquer outro lugar, tenho certeza. O seu pai terá de tomar essa decisão. Será escolha dele onde se casará, e o rei e eu teremos alguma influência. Fique tranquila, minha filha em Cristo, cuidarei do seu desejo. Manterei em mente — e não se preocupou em ocultar o sorriso —, manterei em mente que quer ser duquesa.
Estendeu a mão e Ana teve de se adiantar, fazer uma mesura, beijar o anel, e então se retirar da sala.
Quando a porta se fechou atrás de nós, ela não disse uma palavra. Deu meia-volta e se dirigiu à escadaria de pedra, descendo para o jardim. Só falou quando tínhamos descido as trilhas sinuosas e alcançado um caramanchão de rosas, que se espalhava à volta de um banco de pedra, abrindo suas pétalas vermelhas e brancas à luz do sol.
— O que posso fazer? — perguntou ela. — Pense. Pense!
Eu ia dizer que não conseguia pensar em nada, mas ela não estava falando comigo. Estava falando consigo mesma.
— Posso levar a melhor com Northumberland? Fazer com que Maria fale sobre meu problema com o rei? — Sacudiu a cabeça por um momento. — Não dá para confiar em Maria. Ela estragaria tudo.
Reprimi indignada a minha negativa. Ana ficou de lá para cá no gramado, suas saias zunindo ao redor de seus sapatos de salto alto. Sentei-me no banco e a observei.
— Posso mandar George influenciar a decisão do rei? — deu outra volta. — Meu pai, meu tio. É seu interesse também me ver subir. Podem falar com o rei, influenciar o cardeal. Podem oferecer um dote que atraia Northumberland. Vão querer que eu me torne uma duquesa — balançou a cabeça com uma determinação repentina. — Têm de me apoiar — decidiu. — Vão ficar do meu lado. E quando Northumberland vier a Londres, lhe dirão que o compromisso está selado e que o casamento tem de se realizar.
A reunião de família foi convocada na casa Howard, em Londres. Meu pai e minha mãe estavam sentados à grande mesa, meu tio Howard entre eles. Eu e George, partilhando a desgraça de Ana, ficamos no fundo da sala. E era Ana que estava diante da mesa, como um prisioneiro diante de um tribunal. Não estava com a cabeça baixa, como eu sempre estava. Ela mantinha a cabeça erguida, uma sobrancelha ligeiramente erguida, e encarava meu tio como se fosse um igual.
— Lamento que tenha aprendido as práticas francesas além de sua maneira de vestir — disse meu tio grosseiramente. — Eu tinha avisado a você que não queria ouvir nada contra o seu nome. Agora soube que permitiu ao jovem Percy intimidades impróprias.
— Deitei-me com meu marido — replicou Ana sem se alterar.
Meu tio relanceou os olhos para a minha mãe.
— Se disser isso, ou algo parecido, mais uma vez, será açoitada e mandada para Hever e nunca mais trazida para a corte — minha mãe disse calmamente. — Prefiro vê-la morta aos meus pés a vê-la desonrada. Você envergonha a si mesma perante seu pai e seu tio ao dizer uma coisa dessas. Desgraça a si mesma. Torna-se odiosa para todos nós.
Sentada atrás de Ana, eu não podia ver seu rosto, mas via seus dedos em uma dobra de seu vestido, como um homem se afogando e se agarrando a qualquer coisa.
— Você irá para Hever até todo mundo ter esquecido esse erro desafortunado — decretou meu tio.
— Perdoe-me — disse Ana sarcasticamente. — Mas o erro desafortunado não é meu, mas sim de vocês. Lord Henry e eu estamos casados. Ele ficará do meu lado. O senhor e meu pai poderão pressionar seu pai, o cardeal e o rei para que tornem esse casamento público. Se fizerem isso, serei a duquesa de Northumberland e terão uma Howard no ducado mais importante da Inglaterra. Achava que esse ganho faria a luta valer a pena. Se sou duquesa e Maria gera um filho, ele será sobrinho do duque de Northumberland e o bastardo do rei. Poderemos colocá-lo no trono.
O olhar do meu tio fulminou-a.
— O rei executou o duque de Buckingham por muito menos há dois anos — disse ele com calma. — Meu próprio pai assinou a sentença de morte. Esse não é um rei despreocupado com herdeiros. Nunca, mas nunca mais falará dessa maneira, ou vai parar não em Hever, mas atrás dos muros de um convento pelo resto de seus dias. Falo sério, Ana. Não porei em risco a segurança desta família por sua tolice.
Chocou-a com sua fúria. Ana engoliu em seco e tentou se recompor.
— Não direi mais nada — sussurrou ela. — Mas poderia dar certo.
— Não — disse meu pai sem rodeios. — Northumberland não a aceitará. Wolsey não deixará que subamos tanto. E o rei fará o que Wolsey mandar.
— Lord Henry me prometeu — disse Ana apaixonadamente.
Meu tio sacudiu a cabeça e fez menção de se levantar. A reunião tinha-se encerrado.
— Esperem — disse Ana em desespero. — Podemos conseguir isso. Juro. Se ficarem do meu lado, então, Henry Percy também ficará, e o cardeal, seu pai e o rei terão de reconsiderar.
Meu tio não hesitou nem por um momento.
— Não vão. Você é uma tola. Não pode lutar contra Wolsey. Não há sequer um homem no país que seja páreo para Wolsey. E não vamos arriscar a ganhar a sua inimizade. Ele poria Maria para fora da cama do rei e a substituiria por uma Seymour. Tudo o que estamos lutando para fazer com Maria iria por água abaixo se a apoiássemos. Esta é a oportunidade de Maria, não a sua. Não queremos que a estrague. Nós a poremos fora do caminho no mínimo durante todo o verão, talvez por um ano.
Ela ficou em silêncio, atordoada.
— Mas eu o amo — disse por fim.
A sala ficou em silêncio.
— Amo — disse ela. — Eu o amo.
— Isso não significa nada para mim — disse meu pai. — O seu casamento é assunto da família e nós cuidaremos disso. Ficará em Hever por pelo menos um ano, e se dê por satisfeita. E se escrever para ele ou responder alguma carta sua, ou o vir novamente, irá para o convento. Está decidido.
— Bem, as coisas não acabaram tão mal — disse George com uma alegria forçada. Ele, Ana e eu andávamos em direção ao rio para pegar o barco de volta a York Place. Um criado de libré dos Howard seguia na nossa frente empurrando mendigos e vendedores ambulantes para abrir caminho, e outro seguia atrás para nos proteger. Ana andava feito às cegas, sem ver a desordem na rua apinhada de gente.
Havia gente vendendo produtos em carroças, pão, frutas, patos vivos, galinhas, recém-chegados do campo. Havia esposas gordas de Londres negociando produtos, mais rápidas e argutas do que os camponeses e camponesas lentos e cautelosos, que esperavam conseguir um preço justo por seus mantimentos. Havia mascates com livros de contos e pautas de músicas em suas bolsas, sapateiros com sapatos prontos tentando convencer as pessoas de que serviam para todo tipo de pé. Havia vendedores de flores e de agrião, havia pajens ociosos e limpadores de chaminé, havia os garotos que conduziam as tochas, sem nada para fazer até escurecer, e varredores de ruas. Havia criados indo e voltando do mercado, e do lado de fora de cada loja, a mulher do dono, gorducha, sentada no banco, sorrindo aos que passavam e insistindo para que entrassem e vissem sua mercadoria.
George nos fazia passar por essa tapeçaria de negócios como um furador determinado. Estava desesperado para levar Ana para casa antes que desabasse a tempestade de seu temperamento.
— Na verdade, foram muito bem, eu diria — falou com firmeza.
Chegamos ao píer e o criado chamou um barco.
— Para York Place — disse George.
A corrente estava a nosso favor e subimos o rio rapidamente, Ana olhando, sem ver, a praia nas duas margens ser coberta pela poeira da cidade.
Desembarcamos no quebra-mar de York Place e os criados dos Howard fizeram uma mesura e levaram o barco de volta ao centro. George conduziu Ana e a mim rapidamente ao nosso quarto e, finalmente, fechou a porta atrás de nós.
No mesmo instante, Ana virou-se e partiu para ele como um gato selvagem. Ele segurou seus pulsos e conseguiu afastar suas unhas de seu rosto.
— Foram muito bem! — ganiu para ele. — Muito bem! Perdendo o homem que amo, além da minha reputação? Quando arruinada, serei enterrada no campo até todos terem esquecido tudo a meu respeito? Muito bem! Quando o meu próprio pai não me apoia e minha própria mãe jura que prefere me ver morta? Está louco, seu tolo? Ficou maluco? Ou somente embotado, cego, seu idiota?
Ele segurou seus pulsos com mais força. Ela fez outra tentativa de arranhar seu rosto. Puxei-a para trás para que não pisasse nos pés dele com seus saltos altos. Cambaleamos os três, como bêbados em uma rixa, fui comprimida no pé da cama quando ela lutava comigo e George, mas consegui segurá-la pela cintura enquanto ele agarrava suas mãos para defender seu rosto. Parecia que lutávamos com algo pior do que Ana, com algum demônio que a tivesse possuído, que tinha possuído todos nós, os Bolena: a ambição — o diabo que nos levara àquele pequeno quarto provocara essa reação insana em minha irmã e essa luta selvagem entre nós três.
— Paz, pelo amor de Deus — gritou George para ela enquanto tentava evitar suas unhas.
— Paz! — gritou para ele. — Como posso ficar em paz?
— Porque perdeu — replicou ele simplesmente. — Não há por que lutar agora, Ana. Você perdeu.
Por um momento ela se paralisou, mas éramos muito prudentes para soltá-la. Encarou-o com um olhar demente e então jogou a cabeça para trás e deu uma risada selvagem.
— Paz! — gritou colericamente. — Meu Deus! Vou morrer pacificamente. Vão me deixar em Hever até eu morrer pacificamente. E nunca mais o verei!
Deu um grito sentido, a luta a abandonou e ela se abaixou. George largou seus pulsos e a abraçou. Ela pôs os braços em volta do seu pescoço e afundou o rosto em seu peito. Soluçava de tal modo, tão inarticulada de dor, que eu não entendia o que estava dizendo. Então, ao perceber o que repetia chorando, senti as lágrimas correrem por minha face.
— Oh, Deus, eu o amava, eu o amava, ele foi o meu único amor, o meu único amor.
Não perderam tempo. Fizeram suas malas, selaram seu cavalo e George deu ordens para a escoltarem até Hever no mesmo dia. Ninguém contou a Lord Henry Percy que ela tinha partido. Ele mandou-lhe uma carta. E minha mãe, que estava em todos os lugares, abriu-a e leu-a calmamente antes de jogá-la no fogo.
— O que dizia? — perguntei com calma.
— Amor eterno — replicou com repugnância.
— Não devemos lhe dizer que ela partiu?
Minha mãe encolheu os ombros.
— Ele vai saber logo. Seu pai vai vê-lo hoje de manhã.
Aprovei com a cabeça. Outra carta chegou ao meio-dia. O nome de Ana escrito com uma letra trêmula. Havia um borrão, talvez a mancha de uma lágrima. Minha mãe abriu-a, o rosto impassível, e fez exatamente como com a outra.
— Lord Henry? — perguntei.
Assentiu com a cabeça.
Levantei-me de meu lugar ao lado do fogo e sentei-me no vão da janela.
— Acho que vou sair — eu disse.
Ela virou a cabeça.
— Vai ficar aqui — disse rispidamente.
O velho hábito da obediência e deferência a ela exercia controle sobre mim.
— É claro, minha mãe. Mas não posso dar uma volta no jardim?
— Não — replicou ela direto. — Seu pai e seu tio determinaram que você ficará dentro de casa, até Northumberland ter cuidado de Henry Percy.
— Provavelmente não ficarei no caminho se passear pelo jardim — protestei.
— Pode enviar uma mensagem para ele.
— Nunca enviaria! — exclamei. — Está óbvio e todos podem ver que sempre, sempre faço o que mandam. Fizeram o meu casamento quando eu tinha 12 anos, senhora. Vocês o terminaram apenas dois anos depois, quando eu tinha 14 anos. Eu estava na cama do rei antes de completar 15 anos. Certamente sabe que sempre fiz o que a família me mandou fazer. Se não fui capaz de lutar por minha liberdade, é pouco provável que lute pela de minha irmã!
Balançou a cabeça.
— Neste mundo não há liberdade para as mulheres, lute ou não, como quiser. Veja aonde Ana chegou.
— Sim — repliquei. — A Hever. Onde, ao menos, ela é livre para sair.
Minha mãe pareceu surpresa.
— Parece com inveja.
— Gosto muito de lá — eu disse. — Às vezes acho que prefiro lá à corte. Mas vai partir o coração de Ana.
— Seu coração e seu espírito partirão se deixar de ter utilidade para a família — disse minha mãe friamente. — Deveria ter sido feito na infância. Achei que, na corte francesa, ensinariam a vocês duas os hábitos de obediência. Mas ao que parece, foram negligentes. Portanto terá de ser feito agora.
Bateram na porta e um homem maltrapilho surgiu, constrangido, no limiar.
— Uma carta para a Srta. Ana Bolena — disse ele. — É só para ela e o jovem senhor disse que eu a observasse ler.
Hesitei, olhei de relance para a minha mãe. Fez-me um sinal com a cabeça para que eu a lesse. Rompi o lacre com o timbre Northumberland e desdobrei o papel.
Minha esposa,
não cometerei perjuro se você cumprir as promessas que fizemos um ao outro. Não a abandonarei se não me abandonar. Meu pai está com raiva de mim, o cardeal também, e temo por nós. Mas se não nos separarmos, acabarão deixando que fiquemos juntos. Mande-me uma resposta, uma única palavra, diga que ficará do meu lado, e ficarei do seu.
Henry
— Ele disse que deveria ter uma resposta — disse o homem.
— Espere lá fora — disse minha mãe para o homem, e fechou a porta na sua cara. Virou-se para mim. — Escreva uma resposta.
— Ele conhece a letra dela — eu disse em vão.
Ela deslizou um pedaço de papel na minha frente, pôs uma caneta na minha mão e ditou a carta.
Lord Henry,
Maria está escrevendo por mim já que estou proibida de lhe escrever. É inútil. Não vão deixar que nos casemos e tenho de desistir de você. Não resista ao cardeal e a seu pai em meu favor, pois eu lhes disse que cedo. Foi apenas um compromisso de futuro e não obriga nenhum de nós dois a cumpri-lo. Eu o livro de sua meia promessa e estou liberta da minha.
— Vai partir o coração dos dois — observei, espalhando areia na tinta molhada.
— Talvez — replicou minha mãe com frieza. — Mas corações jovens se emendam com facilidade, e corações que são donos de metade da Inglaterra têm coisa melhor a fazer que palpitar por amor.
Inverno de 1523
Com Ana longe, eu era a única garota Bolena do mundo, e quando a rainha escolheu passar o verão com a princesa Mary, era eu que cavalgava com Henrique na frente da corte. Passamos um verão maravilhoso, montando, caçando e dançando todas as noites. Quando a corte retornou a Greenwich, em novembro, sussurrei-lhe que minhas regras tinham-se interrompido e que esperava um filho dele.
Imediatamente, tudo mudou. Recebi novos aposentos e uma dama. Henrique comprou-me um manto de pele espesso, eu não podia de jeito nenhum me resfriar. Parteiras, droguistas, adivinhas entravam e saíam dos meus aposentos, a todos sendo feita a mesma pergunta: “É menino?”
A maior parte deles respondia sim e era recompensada com uma moeda de ouro. Um ou dois excêntricos respondiam “não” e viam o rei fazer uma boca de desagrado. Minha mãe afrouxava os cordões de meu vestido e deixei de ir para a cama do rei à noite. Tinha de me deitar sozinha e rezar no escuro para estar carregando um filho varão.
A rainha observava meu corpo engordar com olhos sombrios de dor. Eu sabia que suas regras também tinham-se interrompido, mas não havia dúvida de que não tinha concebido. Ela sorriu durante toda a ceia do Natal e mascaradas e dança, e deu a Henrique os presentes mais generosos de que ele gostava. Depois do baile de máscaras do Dia de Reis, quando sua condição se tornou clara, ela pediu a Henrique para lhe falar a sós e, só Deus sabe onde, encontrou coragem para encará-lo e contar que não sangrava havia três meses e que agora era uma mulher estéril.
— Contou-me ela própria — disse Henrique indignado naquela noite. Eu estava em seu quarto, envolvida no meu manto de pele, uma caneca de vinho quente na mão, diante de um fogo ruidoso. — Contou-me sem sentir vergonha nem por um instante!
Eu não disse nada. Não cabia a mim dizer a Henrique que não era vergonha nenhuma uma mulher de quase 40 anos parar de sangrar. Ninguém melhor do que ele para saber que se suas orações a tivessem atendido, poderiam ter tido meia dúzia de filhos e todos varões. Mas ele tinha-se esquecido disso agora. O que o interessava era que ela lhe tinha negado o que deveria ter-lhe dado, e vi mais uma vez aquela indignação que o dominava com certo desapontamento.
— Pobre mulher — eu disse.
Lançou-me um olhar ressentido.
— Rica mulher — corrigiu-me. — Mulher de um dos homens mais ricos da Europa, não menos que a rainha da Inglaterra, e nada a fazer por isso a não ser gerar uma única criança, e uma menina.
Assenti com a cabeça. Não havia como argumentar com Henrique.
Inclinou-se sobre mim e pôs delicadamente a mão sobre a minha barriga.
— E se o meu filho estiver aqui, levará o nome de Carey — disse ele. — De que adiantará para a Inglaterra? De que adiantará para mim?
— Todo mundo saberá que é seu — repliquei. — Todo mundo sabe que pode fazer um filho comigo.
— Mas preciso de um filho legítimo — disse ele em tom grave, como se eu, a rainha ou qualquer outra mulher pudesse lhe dar um filho simplesmente querendo. — Tenho de ter um filho, Maria. A Inglaterra tem de ter um herdeiro gerado por mim.
Primavera de 1524
Ana escrevia-me uma vez por semana durante os longos meses de seu exílio, e lembrei-me das cartas desesperadas que tinha-lhe enviado quando fora banida da corte. Também me lembrei de que ela não tinha se dado ao trabalho de responder. Agora era eu que estava na corte e ela no escuro lá fora, e assumi um triunfo de irmã em minha generosidade respondendo com frequência, sem poupar notícias de minha fertilidade e de como o rei estava encantado comigo.
Nossa avó Bolena havia sido chamada a Hever para fazer companhia a Ana, e as duas, a jovem elegante vinda da corte francesa e a sábia mulher idosa que havia visto seu marido saltar do quase nada para a grandeza, brigavam como cão e gato dia e noite e tornavam a vida uma da outra um verdadeiro inferno.
Se eu não retornar à corte, vou enlouquecer.
Ana escreveu.
Vovó Bolena quebra avelãs com as mãos e deixa as cascas caírem por toda parte. São esmigalhadas ruidosamente sob nossos pés como lesmas. Ela insiste para que passeemos juntas pelo jardim diariamente, mesmo quando está chovendo. Acha que a água da chuva faz bem à pele e que por isso as inglesas têm a cútis inigualável. Olho para o seu couro velho, castigado pelo tempo, e concluo que é melhor eu ficar dentro de casa.
Ela cheira muito mal e não tem a menor consciência disso. Outro dia, mandei que preparassem um banho para ela e me disseram que aceitou sentar-se em um banco e ter seus pés lavados. Cantarola baixinho à mesa do jantar, sem nem mesmo perceber. Acha que deve manter a casa aberta à maneira antiga para que todos, dos mendigos de Tonbridge aos fazendeiros de Edenbridge, nos assistam a comer como se fôssemos o próprio rei com nada a fazer com o nosso dinheiro a não ser distribuí-lo.
Por favor, por favor, diga a tio Howard e a papai que estou pronta para retornar à corte, que farei o que mandarem, que não precisam temer nada de mim. Farei qualquer coisa para sair daqui.
Respondi imediatamente.
Poderá voltar para a corte em breve, tenho certeza, pois Lord Henry está noivo, contra a vontade, de Lady Mary Talbot. Dizem que chorava quando fez sua promessa. Partiu para defender a fronteira com a Escócia, com seus homens sob o estandarte de Northumberland. Os Percy têm de manter Northumberland seguro enquanto o exército inglês retorna à França, no verão, e, com os espanhóis como nossos aliados, concluir o trabalho que começaram no verão passado.
O casamento de George com Jane Parker acontecerá este mês, finalmente, e vou perguntar à mamãe se você poderá estar presente. Certamente ela não lhe recusará isso.
Estou bem, mas muito cansada. O bebê é muito pesado e quando tento dormir à noite, ele se mexe e chuta. Henrique está mais gentil do que nunca, e nós dois torcemos por um menino.
Queria que você estivesse aqui. Ele quer tanto um menino, que temo o que pode acontecer se for menina. Bem que poderia existir alguém que fizesse ser menino. Não me fale em aspargos, me obrigam a comê-los em todas as refeições.
A rainha me observa o tempo todo. Agora estou gorda demais para esconder, e todo mundo sabe que é o filho do rei. William não terá de suportar ninguém congratulando-o por nosso primeiro bebê. Todo mundo sabe e há uma espécie de muro do silêncio que é confortável para todos menos para mim. Há momentos em que me sinto uma tola: minha barriga andando à minha frente, ofegando nas escadas, e um marido que sorri para mim como se fôssemos estranhos.
E a rainha...
Queria não ter de rezar em sua capela toda manhã e toda noite. Eu me pergunto por que ela está rezando, já que não tem mais esperança. Queria que você estivesse aqui. Sinto saudades até de sua língua ferina.
Maria
George e Jane Parker finalmente se casariam, depois de atrasos infindáveis, na pequena capela em Greenwich. Ana teria permissão para assistir, sentada em um dos compartimentos altos, nos fundos, onde ninguém pudesse vê-la, mas não poderia comparecer ao banquete de casamento. O mais importante para nós foi que, como a cerimônia seria pela manhã, Ana chegaria um dia antes, e nós três, George, ela e eu, ficaríamos juntos da hora do jantar até o amanhecer.
Preparamo-nos para uma noite de conversa, como parteiras instaladas para um longo trabalho de parto. George providenciou vinho, ale e cerveja, consegui surrupiar pão, carne, queijo e frutas, na cozinha, com os cozinheiros felizes em fazer o prato cheio para mim, achando que minha fome era devida ao meu sétimo mês de gravidez.
Ana estava com seu traje de montaria. Parecia ter mais de 17 anos e estava mais bonita, a pele pálida.
— Andar na chuva com a velha bruxa — disse ela carrancuda. A tristeza lhe conferira uma serenidade que não existia antes. Como se tivesse aprendido uma lição difícil: que suas oportunidades não cairiam em seu colo como cerejas maduras. E perdeu o garoto que ela amava: Henry Percy.
— Sonho com ele — disse ela simplesmente. — Como queria não sonhar. É uma infelicidade fora de propósito. Estou farta disso. Parece estranho, não? Mas estou muito cansada de ser infeliz.
Relanceei os olhos para George. Ele observava Ana, sua expressão plena de simpatia.
— Quando vai ser o casamento dele? — perguntou Ana.
— No mês que vem — disse ele.
Ela deixou a cabeça pender.
— E então será o fim. A menos que ela morra, é claro.
— Se ela morrer, ele poderá se casar com você — eu disse esperançosamente.
Ana encolheu os ombros.
— Sua boba — disse ela abruptamente. — Não posso ficar esperando por ele até, um dia, Mary Talbot cair morta. Serei um bom partido quando tudo isso estiver esquecido, não serei? Especialmente se você der à luz um menino. Serei tia do bastardo do rei.
Sem pensar, pus as mãos protetoramente na frente de minha barriga, como se não quisesse que o bebê ouvisse que só seria querido se fosse um menino.
— Vai levar o nome de Carey — lembrei-lhe.
— E se nascer um menino forte, sadio e de cabelo dourado?
— Eu o chamarei de Henrique — sorri à ideia de um bebê sadio e louro em meus braços. — E não tenho dúvidas de que o rei fará algo muito bom para ele.
— E todos subiremos — George lembrou. — Como tias e tios do filho do rei, talvez um pequeno ducado ou um condado, quem sabe?
— E você, George? — perguntou Ana. — Está feliz, nesta noite tão imensamente feliz? Achei que estaria lá fora, bebendo até cair, e não sentado aqui com uma mulher gorda e outra de coração partido.
George serviu-se de vinho e olhou com tristeza para a sua taça.
— Uma mulher gorda e outra com o coração partido ajustam-se quase perfeitamente ao meu estado de espírito — disse ele. — Não poderia dançar nem cantar para salvar a minha vida. Ela é uma mulher venenosa, não é? Minha amada? Minha futura esposa? Digam-me a verdade. Não sou só eu, sou? Tem alguma coisa nela que faz a gente se retrair, não tem?
— Oh, besteira — eu disse francamente. — Ela não é tão maligna.
— Ela mexe com meus nervos, sempre mexeu — disse Ana asperamente. — Onde houver fofoca ou escândalo perigoso, ou alguém contando coisas de outro, ela aparece. Ouve tudo e observa todos, e está sempre pensando o pior de todo mundo.
— Sabia — disse George, taciturno. — Deus! Que esposa fui arranjar!
— Ela pode lhe fazer uma surpresa na noite de núpcias — disse Ana astutamente, bebendo seu vinho.
— Qual? — perguntou George rapidamente.
Ana ergueu uma sobrancelha por cima da taça.
— Ela é muito bem informada para uma virgem — replicou. — Muito entendida em assuntos de mulheres casadas. Mulheres casadas e prostitutas.
O queixo de George caiu.
— Não me diga que ela não é virgem! — exclamou ele. — Posso me dar bem nisso se ela não for virgem!
Ana sacudiu a cabeça.
— Nunca vi nenhum homem fazer nada além de uma reverência — disse ela. — Quem faria, pelo amor de Deus? Mas ela observa e escuta, e não se importa com o que pergunta ou vê. Eu a ouvi cochichando com uma das garotas Seymour sobre alguém que tinha se deitado com o rei, não você — disse-me logo. — Foi uma conversa excessivamente mundana sobre beijar com a boca aberta, deixando a língua lamber e coisas do gênero, se deveria se deitar em cima ou embaixo do rei, aonde as mãos deveriam ir, e o que poderia ser feito para lhe dar um prazer de que jamais ele se esqueceria.
— Ela conheceu aquelas práticas francesas? — perguntou George atônito.
— Ela fala como se sim — replicou Ana, sorrindo diante da perplexidade dele.
— Por Deus! — disse George, servindo-se de mais uma taça de vinho e me acenando com a garrafa. — Talvez eu vá ser um marido mais feliz do que esperava. Aonde suas mãos devem ir, hein? Aonde devem ir, hein, Srta. Ana Maria? Já que parece que ouviu essa conversa tanto quanto minha futura esposa?
— Oh, não me pergunte — replicou Ana. — Sou virgem. Pergunte a outro qualquer. Pergunte à mamãe, ao papai, ou ao tio. Pergunte ao cardeal Wolsey; ele tornou isso oficial. Sou virgem. Sou uma virgem ajuramentada, oficial. Wolsey, o arcebispo de York em pessoa, afirma que sou virgem. Não se pode ser mais virgem do que eu.
— Vou lhe contar tudo — disse George mais animado. — Vou escrever para Hever, Ana, e pode ler minha carta em voz alta para vovó Bolena.
George estava pálido como uma noiva na manhã de seu casamento. Só Ana e eu sabíamos que não era por causa de uma bebedeira na véspera. Não sorriu quando Jane Parker se aproximou do altar, mas ela estava radiante o bastante pelos dois.
Com minhas mãos apertadas sobre minha barriga, pensei em como já fazia tempo em que estivera diante de um altar e jurado renunciar a todos os outros e ser fiel a William Carey. Do outro lado, ele relanceou os olhos para mim com um leve sorriso, como se também estivesse pensando em como não havíamos previsto isso, quando apertamos as mãos cheios de esperança há apenas quatro anos. O rei Henrique estava na parte da frente da igreja, observando meu irmão receber a noiva e pensei em como minha família estava se dando bem com a minha barriga. O rei chegara atrasado ao meu casamento, e tinha ido mais por um dever com seu amigo William do que em honra aos Bolena. Mas estava na frente para os cumprimentos quando esse casal se virou do altar e percorreu o corredor central. E comigo, conduziu os convidados ao banquete. Minha mãe sorriu para mim como se eu fosse sua filha única, enquanto Ana saía, em silêncio, pela porta lateral da capela, montava seu cavalo e retornava a Hever acompanhada somente de um criado.
Pensei nela, sozinha, cavalgando para Hever, vendo o castelo do portão da casa de guarda, bonito como um brinquedo ao luar. Pensei na maneira como o caminho fazia uma curva através das árvores e chegava à ponte levadiça. Pensei no chocalhar da ponte sendo baixada e o som surdo dos cascos do cavalo delicadamente sobre as vigas de madeira. Pensei no cheiro úmido do fosso e na onda de cheiro da carne cozinhando no espeto quando se entrava no pátio. Pensei na lua iluminando o pátio e no contorno casual das pontas do espigão no céu noturno, e desejei de todo coração ser uma fazendeira em Hever e não uma pretensa rainha de uma corte dissimulada, que não passava de máscaras. Desejei de todo coração estar carregando no ventre um filho legítimo e poder me debruçar à janela e olhar minha terra, uma pequena propriedade rural, talvez, e saber que, um dia, seria tudo dele por direito.
Mas, em vez disso, eu era a afortunada Bolena, a Bolena abençoada pela sorte e favor do rei. Uma Bolena que não conseguia sequer imaginar as fronteiras da propriedade de seu filho, que nem sonhava com o quanto ele poderia ascender.
Verão de 1524
Ausentei-me da corte durante todo o mês de junho para me preparar para o parto. O quarto era escuro, as paredes cobertas por tapeçarias grossas, eu não veria nenhuma luz nem respiraria ar fresco até seis longas semanas depois do nascimento do bebê. Ficaria emparedada por dois meses e meio. Era cuidada por minha mãe e duas parteiras, assistidas por duas criadas e uma camareira. Do lado de fora do quarto, revezando-se dia e noite, havia dois droguistas de prontidão.
— Ana pode vir comigo? — perguntei à minha mãe, enquanto observava o quarto escurecido.
Franziu o cenho.
— Seu pai ordenou que permanecesse em Hever.
— Oh, por favor! — eu disse. — Vai ser tanto tempo, gostaria da sua companhia.
— Ela pode visitá-la — declarou minha mãe. — Mas não poderá estar presente no nascimento do filho do rei.
— Ou filha — lembrei-lhe.
Ela fez o sinal da cruz sobre a minha barriga.
— Se Deus quiser será um menino — sussurrou.
Não falei mais nada, satisfazendo-me em conseguir que Ana pudesse me visitar. Ela veio para ficar um dia, e ficou dois. Estava entediada em Hever, enfurecida com nossa avó Bolena, desesperada por sair, até mesmo para ficar dentro de um quarto escuro com uma irmã que passava seu tempo costurando camisolinhas para um bastardo real.
— Visitou a Home Farm? — perguntei.
— Não — replicou. — Passei direto.
— Eu me pergunto como estarão se saindo com a safra de morangos.
Ela encolheu os ombros.
— E a fazenda dos Peter? Foi ver a tosquia dos carneiros?
— Não — respondeu ela.
— Sabe que tipo de forragem tivemos neste ano?
— Não.
— Ana, o que diabos faz o dia todo?
— Leio — disse ela. — Pratico minha música. Compus algumas canções. Cavalgo todo dia. Ando pelo jardim. O que mais teria para fazer no campo?
— Eu saía para ver as fazendas — observei.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— São sempre iguais. A relva cresce.
— O que leu?
— Teologia — disse ela sem rodeios. — Ouviu falar em Martinho Lutero?
— É claro que sim — repliquei ofendida. — O suficiente para saber que é um herege e que seus livros estão proibidos.
Ana deu seu sorrisinho dissimulado.
— Ele não é necessariamente um herege — disse ela. — É uma questão de opinião. Tenho lido seus livros e de outros que pensam como ele.
— É melhor manter isso em segredo — eu disse. — Se papai ou mamãe souberem que tem lido livros proibidos, a mandarão de volta para a França, a qualquer lugar que a tire do caminho deles.
Ela encolheu os ombros.
— Ninguém presta a menor atenção em mim, fui praticamente eclipsada por sua glória. Só há uma maneira de chamar a atenção desta família: subir para a cama do rei. Você tem de ser uma prostituta para ser amada por esta família.
Cruzei as mãos sobre minha barriga intumescida e sorri para ela, quase indiferente à sua malícia.
— Não há por que me afligir por minha estrela ter-me trazido até aqui. Não há por que se fixar em Henry Percy e se desgraçar.
Por um momento a máscara de sua bela face caiu e percebi a saudade em seus olhos.
— Teve notícias dele?
Sacudi a cabeça.
— Se escrever para mim, não deixarão que a carta chegue a mim — eu disse. — Acho que continua combatendo os escoceses.
Ela estreitou os lábios para reprimir um gemido.
— Oh, Deus, e se foi ferido ou morto?
Senti o bebê se agitar e pus minhas mãos quentes sobre o corpete solto.
— Ana, ele não deve significar nada para você.
Pestanejou tentando ocultar o calor em seu olhar.
— Ele não é nada para mim — replicou.
— É agora um homem casado — eu disse com firmeza. — Vai ter de esquecê-lo se quiser voltar para a corte.
Ela apontou para a minha barriga.
— Esse é o problema — disse ela grosseiramente. — Tudo o que conseguem pensar nesta família é se está carregando o filho varão do rei. Escrevi a papai meia dúzia de vezes e ele mandou seu escrivão me responder uma vez. Ele não pensa em mim. Não se preocupa comigo. Só se preocupam, todos eles, com você e a sua barriga gorda.
— Logo ficaremos sabendo — eu disse. Tentava parecer serena, mas estava com medo. Se Henrique tivesse feito uma menina em mim e ela fosse forte e adorável, então se sentiria feliz o bastante para mostrar ao mundo que era potente. Mas ele não era um homem comum. Queria mostrar ao mundo que podia fazer um bebê saudável. Queria mostrar ao mundo que era capaz de fazer um menino.
Foi uma menina. Apesar de todos esses meses de esperanças e orações sussurradas, até mesmo missas especiais celebradas em Hever e na igreja de Rochford, foi uma menina.
Mas era a minha filhinha. Era uma trouxinha deliciosa com mãozinhas tão pequeninas que pareciam a palma das patinhas de uma rã, com olhos de um azul tão escuro que pareciam o céu de Hever à meia-noite. Tinha uma penugem de cabelo preto na coroa da cabeça, tão diferente do dourado avermelhado de Henrique como ninguém teria imaginado. Mas tinha a sua boca rosada adorável. Quando bocejava, parecia um rei, chateado por achar os elogios insuficientes. Quando chorava, espremia lágrimas de verdade por suas bochechas rosadas ultrajadas, como um monarca tendo seus direitos negados. Quando a alimentava, segurando-a nos braços e me maravilhando com o seu sugar potente e insistente em meu seio, ela inchava como um cordeirinho e adormecia como se fosse um beberrão refestelando-se do lado de um caneco de aguardente.
Eu a segurava no colo constantemente. Havia uma ama de leite para ela, mas eu argumentava que meus seios doíam tanto que ela tinha de sugá-los, e, astuciosamente, ficava com ela. Apaixonei-me por ela. Apaixonei-me completa e definitivamente por ela e não conseguia, nem por um momento, imaginar que teria sido melhor se fosse um menino.
Até mesmo Henrique se derreteu quando a viu ao me visitar. Levantou-a do berço e ficou maravilhado com a perfeição pequenina de seu rosto, suas mãos, seus pezinhos sob a bata bordada pesada.
— Vamos chamá-la de Elizabeth — disse ele embalando-a delicadamente.
— Posso escolher seu nome? — perguntei, com audácia.
— Não gosta de Elizabeth?
— Tenho outro nome em mente.
Ele encolheu os ombros. Era um nome de menina. Não tinha muita importância.
— Como quiser. Chame-a como quiser. É uma coisinha muito linda, não acha?
Deu-me uma bolsa de ouro e um colar de diamantes. Trouxe-me alguns livros, uma crítica de seu próprio trabalho de teologia, algumas obras pesadas que o cardeal Wolsey tinha recomendado. Agradeci e os pus de lado. Pensei em mandá-los para Ana e pedir que escrevesse uma sinopse de modo que eu pudesse blefar numa conversa.
Começamos a sua visita formalmente, sentados em cadeiras uma de cada lado da lareira, mas ele me levou para a cama, deitou-se do meu lado e me beijou delicada e docemente. Passado algum tempo, quis me possuir e tive de lembrar-lhe que não havia ido à igreja ainda. Eu não estava limpa. Timidamente, toquei em seu gibão e com um suspiro ele pegou minha mão e a pressionou contra seu membro. Eu quis que alguém me dissesse o que ele queria de mim. Mas então, ele mesmo guiou meu toque, e sussurrou em meu ouvido o que queria fazer, e depois de um tempo de seu movimento e de minhas carícias desajeitadas, deu um suspiro e se aquietou.
— É o bastante para você? — perguntei timidamente.
Virou-se e me sorriu.
— Meu amor, é um grande prazer ter você, mesmo assim, depois de tanto tempo. Quando for à igreja, não confesse isso. O pecado é todo meu. Mas você tentaria até um santo.
— E a ama? — pressionei-o.
Deu um risinho indulgente, preguiçoso.
— Claro. Ela é tão adorável quanto a mãe.
Levantou-se e ajeitou suas roupas. Deu-me aquele sorriso malicioso que ainda me encantava, apesar de metade de minha mente estar com o bebê em seu berço, e a outra metade na dor em meus seios pesados de leite.
— Terá seus aposentos perto dos meus, depois que for à igreja — prometeu-me. — Quero-a perto de mim o tempo todo.
Sorri. Foi um momento delicioso. O rei da Inglaterra me queria constantemente ao seu lado.
— Quero um menino de você — disse ele francamente.
Meu pai ficou com raiva de mim porque o bebê era menina — ou foi isso o que a minha mãe me disse —, informando-me de um mundo exterior que parecia muito remoto. Meu tio estava decepcionado, mas determinado a não demonstrá-lo. Eu balancei a cabeça como se me importando, mas sentia apenas um completo deleite por ela ter aberto os olhos naquela manhã e olhado para mim com uma espécie de intensidade luminosa que me deu certeza de que me tinha visto e sabia que eu era a sua mãe. Nem meu pai nem meu tio eram admitidos para me visitar, e o rei não repetiu a sua única visita. A sensação era a de que esse lugar era um refúgio para nós, uma sala secreta onde homens e seus planos e deslealdades não entravam.
George veio, infringindo as convenções com sua graça natural de sempre.
— Nada terrível demais está acontecendo aqui, está? — perguntou pondo sua bela cabeça na porta.
— Nada — repliquei, recebendo-o com um sorriso e oferecendo minha face para que a beijasse. Curvou-se sobre mim e me beijou profundamente na boca.
— Que delícia, minha irmã, uma jovem mãe, uma dúzia de prazeres de uma vez só. Beije-me de novo, como beija Henrique.
— Sai pra lá! — eu disse empurrando-o. — Veja o bebê.
Ele a espreitou dormindo em meus braços.
— Cabelo bonito. Como vai chamá-la?
Relanceei os olhos para a porta fechada, sabia que podia confiar em George.
— Quero que se chame Catarina.
— Bastante estranho.
— Não sei por quê. Sou sua dama.
— Mas é a filha do marido dela.
Dei um risinho, sem conseguir deixar de manifestar minha alegria.
— Oh, George, eu sei. Mas eu a admirei desde o momento em que comecei a servi-la. E quero mostrar que a respeito, independentemente do que aconteceu.
Ele permaneceu em dúvida.
— Acha que vai entender? Não vai achar que é algum tipo de zombaria?
Fiquei tão chocada que apertei um pouco Catarina.
— Ela não pode imaginar que triunfei sobre ela.
— Ora, por que está chorando? — perguntou George. — Não há motivo para chorar, Maria. Não chore, vai talhar o leite ou algo assim.
— Não estou chorando — repliquei, ignorando as lágrimas em minha face. — Não quero chorar.
— Então, pare — insistiu. — Pare, Maria. Mamãe vai chegar e todos vão me culpar por fazê-la chorar. Vão dizer que, antes de mais nada, eu não deveria estar aqui. Por que não espera até sair daqui e então poderá perguntar diretamente à rainha se ela gostaria da homenagem? É o que proponho.
— Sim — eu disse, me sentindo imediatamente mais animada. — Posso fazer isso e, depois, lhe explicar.
— Mas não chore — insistiu. — Ela é uma rainha, não vai gostar de lágrimas. Aposto que nunca a viu chorar apesar de estar com ela dia e noite há quatro anos.
Pensei por um momento.
— Não — respondi devagar. — Sabe, nesses quatro anos, nunca a vi chorar.
— Nem verá — disse ele com satisfação. — Não é uma mulher que se desintegra em angústia. É uma mulher determinada.
Minha única outra visita foi a de meu marido, William Carey. Chegou trazendo uma tigela de morangos que mandara vir de Hever.
— Um gosto de casa — disse ele gentilmente.
— Obrigada.
Relanceou os olhos para o berço.
— Disseram-me que é menina. Ela é forte, está bem?
— Sim — repliquei, um pouco incomodada com a indiferença de seu tom.
— E que nome vai lhe dar, além do meu? Presumo que ela levará o meu nome, não é uma Fitzroy ou algum outro atestado de que é uma bastarda real.
Contive minha língua e baixei a cabeça.
— Lamento se se sente ofendido, marido — disse humildemente.
— Então, que nome?
— Ela será Carey. Pensei em Catarina Carey.
— Como quiser, senhora. Ganhei cinco boas intendências de terras e a dignidade de cavaleiro. Agora sou Sir William e você é Lady Carey. Minha renda foi mais que duplicada. Ele lhe contou?
— Não — repliquei.
— Estou sendo altamente favorecido. Se tivesse nos obsequiado com um menino, eu poderia esperar por uma propriedade na Irlanda ou na França. Eu teria sido Lord Carey. Quem sabe quão alto um menino bastardo nos levaria?
Não respondi. O tom de William foi suave, mas as palavras tinham um quê mordaz. Na verdade, não estava pedindo que eu celebrasse a sua boa sorte em ser o corno mais famoso da Inglaterra.
— Sabe, eu tinha pensado em ser um grande homem na corte do rei — disse ele com amargura. — Quando percebi que gostava de minha companhia, quando minha estrela subia. Esperei ser alguma coisa como seu pai, um estadista que pudesse ter uma visão de todo o quadro, que desempenhasse seu papel discutindo nas grandes cortes da Europa, tendo sempre os interesses do país como máxima. Mas não, aqui estou eu recompensado dez vezes mais por não fazer nada, a não ser olhar para o outro lado, enquanto o rei leva a minha mulher para a cama.
Fiquei em silêncio, os olhos baixos. Quando ergui os olhos, ele estava sorrindo para mim, seu sorriso irônico, falso, triste.
— Ah, esposa — disse ele gentilmente —, não tivemos muito tempo juntos, tivemos? Não fizemos amor muito bem nem com muita frequência. Não aprendemos a ternura, nem mesmo o desejo. Tivemos muito pouco tempo.
— Lamento por isso, também — eu disse baixinho.
— Lamenta não termos feito amor?
— Senhor? — falei, genuinamente confusa pela súbita rispidez em sua voz.
— Foi insinuado polidamente por homens da sua família que, talvez, eu tenha sonhado tudo isso, e que nunca deitamos juntos. É o que você quer? Que eu negue tê-la possuído?
Levei um choque.
— Não! Sabe que a minha vontade não é consultada nesses assuntos.
— E não a mandaram dizer ao rei que fui impotente na nossa noite de núpcias e em todas as noites seguintes?
Sacudi a cabeça.
— Por que eu diria uma coisa dessa?
Sorriu.
— Para que o nosso casamento fosse anulado — sugeriu. — De modo a você ser uma mulher solteira. E o próximo bebê é Fitzroy e talvez Henrique possa legitimá-lo, o filho e herdeiro do trono. Portanto será mãe do próximo rei da Inglaterra.
Houve um silêncio. Percebi que o olhava apaticamente.
— Nunca vão querer que eu faça isso — sussurrei.
— Oh, vocês Bolena — disse ele em tom gentil. — O que vai lhe acontecer, Maria, se anulam o nosso casamento e a expõem? O casamento é destruído e você é declarada, sem contradição, prostituta, uma bonita e jovem prostituta.
Senti o rosto afoguear, mas mantive a boca fechada. Olhou-me por um momento e vi a raiva em sua expressão ser substituída por uma compaixão cansada.
— Diga o que tiver de dizer — aconselhou-me. — O que quer que a mandem dizer. Se a pressionarem a dizer que passei a nossa noite de núpcias fazendo malabarismo com sachês prateados e não penetrei você, pode dizer, pode jurar se for preciso. E será preciso. Vai enfrentar a inimizade da rainha Catarina e o ódio de toda a Espanha. Vou poupá-la do meu. Pobre menininha tola. Se neste berço estivesse um menino, acho que a obrigariam ao perjuro no momento em que fosse à igreja, para se livrar de mim e atrair Henrique.
Olhamos um para o outro por um momento.
— Então, você e eu somos as únicas pessoas no mundo inteiro que não lamentam ser uma menina — sussurrei. — Porque eu não quero mais do que tenho agora.
Deu seu sorriso adulador amargo.
— Mas e da próxima vez?
A corte prosseguiu sua mudança de meio de verão pelas estradas empoeiradas em direção a Sussex e Winchester, e daí para New Forest, para que o rei caçasse corças todos os dias, do amanhecer ao cair da tarde, e depois, o banquete com carne de caça toda noite. Meu marido foi com o rei, ao seu lado, rapazes juntos, nenhum pensamento de ciúmes quando a corte estava se mudando, os cães correndo à frente dos cavalos, latindo, e os falcões atrás, em sua carroça especial, com os treinadores cavalgando ao lado e cantando para mantê-los calmos. Meu irmão também estava lá, montando ao lado de Francis Weston, em um novo cavalo de caça, um animal grande e forte, que o rei lhe dera, como mais um símbolo de sua afeição por mim e minha família. Meu pai estava na Europa, como parte das infindáveis negociações entre Inglaterra, França e Espanha, tentando refrear as ambições de três monarcas jovens, gananciosos e brilhantes, todos usando de todos os meios para conquistar o título de maior rei da Europa. Minha mãe seguiu com a corte, com o seu próprio pequeno séquito de criados. Meu tio foi com seus próprios homens em libré Howard sempre com o olho atento e prudente em relação às ambições e pretensões da família Seymour. A família Percy estava lá, Charles Brandon e a rainha Maria, os ourives de Londres, os diplomatas estrangeiros: todos os grandes homens da Inglaterra abandonaram seus campos, suas fazendas, seus navios, suas minas, seu comércio e suas casas na cidade, para caçar com o rei, e nenhum deles sequer se atrevia a se retardar, para o caso de haver dinheiro ou terra distribuídos, favores concedidos, ou os olhos do rei, ao dançar, baterem em alguma filha ou esposa bonita, e uma posição ser ganha.
Graças a Deus, fui poupada nesse ano, e fiquei feliz em ficar longe, cavalgando lentamente pelas alamedas até Kent. Ana foi ao meu encontro no pátio do Castelo de Hever, sua expressão mais tenebrosa do que uma tempestade de verão.
— Deve estar louca — disse ela ao me receber. — O que está fazendo aqui?
— Quero passar o verão aqui com meu bebê. Preciso descansar.
— Não parece estar precisando descansar — inspecionou minha cara. — Você está linda — admitiu, de má vontade.
— Veja só ela — afastei o xale de renda branca do rosto de Catarina. Ela tinha dormido durante quase toda a viagem, embalada pelo balanço da liteira.
Ana relanceou os olhos, cortesmente.
— Uma graça — disse sem muita convicção. — Mas por que não a mandou com a ama de leite?
Dei um suspiro com a impossibilidade de convencê-la de que havia melhores lugares onde estar que não a corte. Entrei no hall e deixei a ama de leite pegar Catarina para trocar suas faixas.
— Depois a traga de volta — determinei.
Sentei-me em uma das cadeiras entalhadas à grande mesa do salão e sorri para Ana, à minha frente, impaciente como um inquisidor.
— Na verdade, não estou interessada na corte — disse sem me alterar. — Se tivesse um bebê, ia entender. É como se de repente eu entendesse o propósito da vida. Não é ascender no favor do rei nem ser introduzida na corte. Nem mesmo fazer a família subir. Tem coisa mais importante. Quero que ela seja feliz. Não quero que seja mandada embora assim que aprender a andar. Quero lhe dar carinho. Quero que estude sob a minha supervisão. Quero que cresça aqui, que conheça o rio, os campos, e os salgueiros nas campinas à margem do rio. Não quero que seja uma estranha em seu próprio país.
Ana parecia pasma.
— É só um bebê — disse ela simplesmente. — E há chances de ela morrer. Terá dezenas de outros. Vai ficar assim com todos eles?
Retraí-me ao ouvir isso, mas ela nem percebeu.
— Não sei. Não sabia que me sentiria assim com ela. Mas me sinto, Ana. É a coisa mais preciosa no mundo. Muito mais importante para mim do que qualquer outra coisa. Só penso em cuidar dela, em que esteja bem e saudável. Quando chora, é como uma faca em meu coração, não suporto nem mesmo a ideia dela chorando. E quero vê-la crescer. Não quero me separar dela.
— O que o rei diz? — perguntou Ana, indo direto ao ponto central para um Bolena.
— Não lhe contei isso — repliquei. — Ele se satisfez com a minha necessidade de me afastar durante o verão para descansar. Ele queria partir para caçar. Estava ansioso para ir. Não se importou muito.
— Não se importou muito?
— Não se importou nem um pouco — me corrigi.
Ana balançou a cabeça mordiscando os dedos. Eu quase via os cálculos de sua mente enquanto refletia sobre o que eu dizia.
— Muito bem, então — disse ela. — Se eles não insistem para que fique na corte, não serei eu a me preocupar. Só Deus sabe como é mais divertido para mim ter você aqui. Finalmente, poderá conversar com a velha e me poupar de sua fala interminável.
Sorri.
— Está sendo realmente muito desrespeitosa, Ana.
— Oh, sim, sim, sim — replicou impacientemente, puxando um banco. — Agora, me conte todas as novidades. Fale-me da rainha, quero saber o que Thomas More disse sobre o novo tratado da Alemanha. E quais são os planos para os franceses. Vai ter outra guerra?
— Desculpe — sacudi a cabeça. — Alguém comentou sobre isso outra noite, mas não prestei atenção.
Emitiu um som de impaciência e se pôs de pé.
— Está bem — disse ela irritada. — Fale-me da criança, já que é tudo por que se interessa, não? Fica sentada meio encurvada, prestando atenção nela o tempo todo, não fica? É ridículo. Pelo amor de Deus, endireite o corpo! A ama não a trará mais rápido por você parecer um cão de caça alerta.
Ri com a exatidão de sua descrição.
— É como estar apaixonada. Quero vê-la o tempo todo.
— Você está sempre apaixonada — disse Ana com irritação. — Parece numa grande bola de manteiga, sempre gotejando amor por um ou outro. Antes foi o rei e conseguimos nos dar bem. Agora é a filha dele, o que não vai nos adiantar nada. Mas você não liga. É sempre a mesma coisa: paixão, sentimento, desejo. Isso me deixa furiosa.
Sorri para ela.
— Porque você é só ambição — eu disse.
Seus olhos faiscaram.
— É claro. O que mais existe?
Henry Percy pairava entre nós, palpável como um fantasma.
— Não quer saber se o vi? — perguntei. Foi uma pergunta cruel e a fiz querendo ver dor em seus olhos, mas minha malícia não surtiu efeito. Sua expressão foi dura e fria, como se tivesse parado de chorar por ele e nunca mais fosse chorar por um homem.
— Não — replicou. — De modo que pode dizer-lhes que nunca mencionei seu nome. Ele desistiu, não desistiu? Casou-se com outra mulher.
— Achou que o tinha abandonado — protestei.
Olhou para longe.
— Se fosse um homem decente teria continuado a me amar — disse ela, a voz ríspida. — Se fosse o contrário, eu jamais teria me casado enquanto meu amante estivesse livre. Ele cedeu, deixou que eu partisse. Nunca o perdoarei. Está morto para mim. Posso estar morta para ele. Tudo o que quero é sair deste buraco e retornar à corte. Tudo o que me restou foi a ambição.
Ana, vovó Bolena, a pequena Catarina e eu nos resignamos a passar o verão juntas. Quando fiquei mais forte e a dor nas minhas partes íntimas aliviaram, voltei a sair a cavalo à tarde. Cavalgava por todo o vale e colinas do Weald.1 Observei os prados de feno tornarem-se verdes mais uma vez depois do primeiro corte, e os carneiros tornarem-se brancos e felpudos com a nova lã. Desejei a alegria dos ceifadores na colheita, quando iam para os trigais segar a safra e carregar o grão nas carroças, para levá-lo ao silo e ao moinho. Comemos lebre uma noite, depois que os segadores haviam despachado os cachorros atrás dos animais capturados. Vi as vacas separadas de seus bezerros, para desmamá-los, e senti meus próprios seios doerem de simpatia ao vê-las se aglomerarem na porteira, tentando romper as cercas espessas, se debatendo e jogando suas cabeças, mugindo por seus bebês.
— Elas esquecerão, Sra. Carey — disse o criador do gado. — Não chorarão por mais de alguns dias.
Sorri para ele.
— Gostaria que os deixassem com elas um pouco mais.
— Este é um mundo difícil para o homem e o animal — disse ele com firmeza. — Têm de deixá-los ir, senão como teria sua manteiga e queijo?
As maçãs cresciam redondas e rosadas no pomar. Fui à cozinha e pedi à cozinheira que nos preparasse bolos de maçã para o jantar. As ameixas cresciam suculentas, escuras, e as vespas de verão zumbiam ao redor das árvores, embriagando-se com o xarope. A atmosfera estava doce com as madressilvas e o perfume inebriante das frutas crescendo nos galhos. Queria que o verão nunca terminasse. Queria que minha filha nunca deixasse de ser tão pequena, tão perfeita, tão adorável. Seus olhos mudavam de cor, do azul escuro ao nascer ao índigo mais escuro, quase preto. Ela seria uma beldade de olhos escuros, como a tia de temperamento impetuoso.
Agora, sorria quando me via, e a testei várias vezes. Irritei-me com minha avó Bolena que afirmava que um bebê era cego até 2, 3 anos, e que eu estava perdendo tempo em me debruçar sobre o berço e cantar para ela, em abrir um tapete sob as árvores e me deitar com ela, em abrir seus dedinhos para fazer cócegas na palma de sua mão, e mordiscar seus dedinhos gordos dos pés.
O rei me escreveu uma vez descrevendo a caça e os animais que tinha matado. Parecia que não restaria uma corça viva na New Forest quando ele estivesse satisfeito. No fim da carta, disse que a corte retornaria a Windsor em outubro, e a Greenwich no Natal, e que esperava que eu estivesse lá, sem a minha irmã, é claro, e sem o nosso bebê, a quem mandava um beijo. Apesar da ternura do beijo à nossa filha, eu sabia que a alegria do verão com ela chegava ao fim, independentemente dos meus desejos. E como uma camponesa que tinha que deixar seu filho e voltar para o campo, estava na hora de eu voltar ao meu trabalho.
1. he Weald, região no sudeste da Inglaterra, que inclui os condados de Kent, Surrey e Essex, antes uma floresta, agora uma região agrícola. (N. da T.)
Inverno de 1524
Encontrei o rei alegre em Windsor. A caça tinha transcorrido bem, a companhia tinha sido excelente. Havia rumores sobre um flerte com uma das novas damas da rainha, uma tal de Margaret Shelton, uma prima Howard recém-chegada à corte, e outra história mais cômica do que verdadeira, sobre uma mulher que cercou o rei de tal maneira que ele, em desespero para se livrar dela, a possuiu atrás de uma moita e a deixou antes que ela ajeitasse o vestido. Ela ficou presa no chão até alguém passar e erguê-la de volta à sela. E a sua esperança de ocupar meu lugar acabou.
Havia histórias libidinosas de rodadas de bebida e meu irmão George tinha um machucado sobre o olho depois de uma rixa em uma taverna, e uma piada com um jovem pajem que se tinha embriagado com ele e havia sido mandado para casa em desgraça depois de lhe escrever uma dúzia de sonetos de amor, todos assinados Ganymede. De modo geral, todos os cavalheiros da corte tinham-se divertido e o próprio rei estava com excelente humor.
Ao me ver, ergueu-me e me abraçou e beijou com força, diante de toda a corte, mas graças a Deus a rainha não estava presente.
— Meu coração, senti saudades — disse ele exuberantemente. — Diga que também sentiu a minha falta.
Não consegui me conter e sorri para sua face ansiosa.
— É claro — repliquei. — E soube que Sua Majestade se divertiu muito.
Houve uma gargalhada dos amigos mais íntimos do rei e ele sorriu um tanto encabulado.
— O meu coração ansiava por você dia e noite — disse ele fazendo uma mesura galante afetada. — Consumi-me de anseio por vê-la. E você está bem? E a nossa filhinha?
— Catarina é muito bela e cresce sadia e forte — repliquei com uma ligeira ênfase em seu nome para lembrar-lhe. — Ela é muito bem-feita, uma verdadeira rosa Tudor.
Meu irmão George avançou e o rei me soltou para que ele pudesse me beijar na face.
— Bem-vinda à corte, minha irmã — disse ele jovialmente. — E como vai a princesinha?
Houve um momento de silêncio perplexo. O sorriso desapareceu bruscamente da face de Henrique. Olhei boquiaberta para George, pasma com o terrível erro que cometera. Virou-se rapidamente para o rei.
— Chamei a pequena Catarina de princesa porque ela é adulada como se fosse uma rainha em formação. Devia ver as roupas que Maria fez para ela, bordadas por ela mesma. E os lençóis em que a pequena imperatriz se recosta! Até mesmo seus cueiros têm as suas iniciais. Sua Majestade riria se a visse. É uma pequena tirana de Hever, tudo é feito para ela. É um verdadeiro cardeal. Uma papisa do berçário.
Foi uma recuperação maravilhosa. Henrique relaxou e riu ao pensar na ditadura do bebê e todos os cortesãos ecoaram instantaneamente a sua risada com risinhos afetados.
— É verdade? Você realmente faz todas as suas vontades assim? — perguntou-me o rei.
— É o meu primeiro bebê — desculpei-me. — Suas roupas serão aproveitadas para o próximo.
Foi uma observação perfeita. Imediatamente, Henrique pensou no próximo.
— Oh, sim — disse ele. — Mas o que a princesa fará com um rival no seu quarto?
— Espero que ela seja pequena demais para saber muito sobre isso — sugeriu George calmamente. — Ela terá um irmãozinho antes de completar 1 ano. São apenas meses de diferença entre Maria e Ana, não se esqueça. Somos uma linhagem fértil.
— Oh, George, que vergonha — disse minha mãe sorrindo. — Mas um menininho em Hever nos traria muita alegria.
— A mim também — disse o rei, olhando para mim com ternura. — Um menino seria uma grande alegria para mim.
Assim que meu pai chegou da França, houve outra conferência de família. Dessa vez, sentei-me em uma cadeira diante da mesa. Não era mais uma menina sendo guiada. Era uma mulher com o favor do rei. Não era mais seu peão. Era, no mínimo, a torre, um jogador na partida.
— Digamos que ela conceba de novo e que, dessa vez, seja um menino — disse meu tio baixinho. — Digamos que a rainha seja alertada por sua própria consciência para se retirar e deixá-lo livre para se casar de novo. Ele se sentiria tentado por uma amante grávida.
Por um instante, achei que tinha sonhado esse plano, mas então percebi que estava esperando por esse momento. Meu marido, William, tinha-me avisado, e isso ficara guardado em minha mente como uma ideia terrível demais para ser considerada.
— Já sou casada — observei.
Minha mãe encolheu os ombros.
— Por apenas alguns meses. Não deu tempo nem de ser consumado.
— Foi consumado — repliquei com firmeza.
Meu tio ergueu a sobrancelha para advertir minha mãe.
— Ela era jovem — disse minha mãe. — Como podia saber o que estava acontecendo? Ela pode jurar que nunca se completou.
— Não posso — falei para a minha mãe e, então, me virei para o meu tio. — Não me atreveria a fazer isso. Não posso tomar seu trono. Não posso tomar o seu lugar. Ela foi princesa três vezes consecutivas, e eu sou apenas uma garota Bolena. Juro que não posso fazer isso.
Foi o mesmo que nada para ele.
— Não precisa fazer nada fora do comum — disse ele. — Vai se casar com quem mandarmos, como na primeira vez. E ordenarei todo o resto.
— A rainha nunca irá se retirar — repliquei em desespero. — Disse isso ela mesma, ela própria me disse. Que morreria primeiro.
Meu tio empurrou a cadeira para trás e deu um passo para olhar pela janela.
— Ela está em uma posição forte neste momento — reconheceu. — Enquanto seu sobrinho for aliado da Inglaterra, ninguém pode perturbar esse acordo, muito menos Henrique, por um bebê que ainda não foi concebido. Mas no instante em que a guerra com a França for vencida, e o espólio dividido, ela não passará de uma mulher velha demais para ele, que nunca poderá lhe dar um herdeiro. Ela sabe, assim como todos nós, que terá de se afastar.
— Quando a guerra for vencida, talvez — disse meu pai preocupado. — Mas não podemos arriscar uma ruptura com a Espanha agora. Passei o verão todo tentando negociar essa aliança e consolidá-la.
— O que vem primeiro? — perguntou meu tio abruptamente. — O país ou a família? Pois não podemos usar Maria como devemos sem arriscar o bem-estar do país.
Meu pai hesitou.
— É claro, você não é parente consanguíneo — disse meu tio, maliciosamente. — É Howard somente pelo casamento.
— A família vem primeiro — replicou meu pai devagar. — Tem de ser assim.
— Por conseguinte talvez tenhamos de sacrificar a aliança com a Espanha contra a França — disse meu tio friamente. — Para nós, é mais importante nos livrarmos da rainha Catarina do que estabelecer a paz na Europa. É mais importante pôr a nossa garota na cama do rei do que salvar a vida de ingleses. Sempre há mais homens para serem soldados. Mas esta chance para nós, Howard, só acontece uma vez a cada século.
Primavera de 1525
Recebemos as notícias de Pavia em março. Um mensageiro a trouxe ao rei de manhã cedo, quando ainda não estava completamente vestido, e ele foi correndo como um menino até a rainha, um arauto correndo à sua frente para bater à porta de seus aposentos e gritar: “Sua Majestade está chegando!”, de modo que pudéssemos sair rápido de nossos quartos, ainda não vestidas apropriadamente. Somente a rainha estava composta, com um elegante vestido sobre sua camisola. Henrique bateu a porta entrando na sala e passando por nós, gorjeando como um aviário de tordos cegos, direto para a sua rainha. Nem sequer me olhou, embora eu estivesse deliciosamente em desordem, meu cabelo como uma nuvem dourada ao redor de meu rosto. Não foi para mim que Henrique correu com as melhores notícias que já recebera. Levou as notícias à sua rainha, à mulher que tornara inabalável a aliança com o seu país, a Espanha. Ele tinha-lhe sido infiel várias vezes, tinha sido desleal à sua política muitas vezes. Mas quando a política triunfou, nesse momento de intenso júbilo, foi a ela que levou a notícia, foi Catarina que mais uma vez reinou no seu coração.
Ele jogou-se a seus pés, pegou suas mãos e as cobriu de beijos. Catarina riu como uma menina e gritou com impaciência:
— O que foi? Diga-me! Diga-me! O que foi?
E Henrique não conseguia dizer mais nada a não ser:
— Pavia! Que Deus seja louvado! Pavia!
Ficou em pé de um pulo e dançou com ela pela sala, pulando como um menino. Seu séquito entrou correndo, ele havia tomado a dianteira na corrida para a rainha. George entrou aos tropeções com seu amigo Francis Weston, me viu e veio para o meu lado.
— O que diabos está acontecendo? — perguntei, ajeitando o cabelo e apertando minha saia na cintura.
— Uma grande vitória — replicou. — Uma vitória decisiva. O exército francês, ao que parece, foi praticamente destruído. A França está aberta para nós. Carlos de Espanha pode penetrar pelo sul, nós invadiremos pelo norte. A França acabou. Está destruída. Será o império espanhol até as fronteiras do reino inglês. Esmagamos o exército francês e somos os senhores incontestáveis da França, e governantes, juntos, da maior parte da Europa.
— Francis foi derrotado? — perguntei incrédula, pensando no ambicioso príncipe moreno que tinha sido rival do nosso rei dourado.
— Feito em pedaços — confirmou Francis Weston. — Que dia para a Inglaterra! Que triunfo!
Olhei para o rei e a rainha. Ele já não tentava dançar, tinha perdido o ritmo, mas a abraçava e beijava sua testa, seus olhos, seus lábios.
— Minha querida — disse ele. — Seu sobrinho é um grande general, ele nos deu um grande presente. Teremos a França a nossos pés. Serei rei da Inglaterra e França de fato e não só no título. Richard de la Pole está morto, a sua ameaça ao meu trono morreu com ele. O próprio rei Francis foi feito prisioneiro, a França foi destruída. Seu sobrinho e eu somos os maiores reis da Europa e a nossa aliança possuirá tudo. Tudo o que o meu pai planejou, a partir de você e sua família, foi-nos dado hoje.
A rainha estava radiante, os anos foram-lhe tirados por seus beijos. Estava rosada, seus olhos azuis cintilando, sua cintura flexível em suas mãos.
— Deus abençoe os espanhóis e a princesa espanhola! — gritou Henrique, de súbito, e todos os homens de sua corte responderam gritando a plenos pulmões.
George olhou de soslaio para mim.
— Que Deus abençoe a princesa espanhola — disse ele discretamente.
— Amém — eu disse, e consegui sorrir diante de seu ardor quando descansou a cabeça no ombro do rei e sorriu para a sua corte que a saudava com vivas. — Amém, e que Deus a conserve feliz como está neste momento.
Embriagamo-nos com a vitória, nesse amanhecer e nos quatro seguintes. Foi como as folias do Dia de Reis no meio de março. Dos telhados do castelo via-se o clarão das fogueiras acesas no caminho até Londres, e a própria cidade estava rubra contra o céu noturno, com fogo em cada esquina e homens assando nos espetos carcaças de vaca e cordeiro. Ouvíamos os sinos das igrejas repicando enquanto o país todo celebrava a derrota total do inimigo mais antigo da Inglaterra. Comemos pratos especiais que receberam nomes para marcar a ocasião: Pavão Pavia, Pudim Pavia, Delícia Espanhola e Manjar Branco Carlos. O cardeal Wolsey ordenou uma missa solene especial de celebração na St. Paul e todas as igrejas da região agradeceram a vitória em Pavia e ao imperador que a conquistara para a Inglaterra — Carlos de Espanha, o sobrinho querido da rainha Catarina.
Agora não havia mais dúvidas de quem se sentava à direita do rei. Foi a rainha que atravessou o salão usando vermelho e dourado, com a cabeça erguida e um pequeno sorriso nos lábios. Não alardeou a volta de seu favor. Assumiu-a como assumira seu eclipse: como natureza do casamento real. Agora que a sua estrela voltara a brilhar, caminhava tão orgulhosa quanto caminhara quando desfavorecida.
O rei apaixonou-se por ela de novo, em agradecimento por Pavia. Viu-a como a fonte de seu poder na França, como a fonte de sua alegria com a vitória. Henrique era, antes de tudo, uma criança mimada. Quando ganhava um belo presente, amava o doador.
Ele a amaria até o momento em que o presente o aborrecesse ou quebrasse ou deixasse de ser o que ele queria. E no fim de março, começaram a chegar sinais de que Carlos de Espanha poderia se revelar uma decepção.
O plano de Henrique tinha sido que dividiriam a França, entregando somente uma parte do espólio ao duque de Bourbon, tornando-se Henrique rei da França de fato, assumindo assim o título que o Papa lhe conferira anos atrás. Mas Carlos de Espanha não estava com pressa. Em vez de planejar a ida de Henrique a Paris para ser coroado rei da França, Carlos foi a Roma para a sua própria coroação como Imperador do Santo Império Romano. E o pior de tudo é que não demonstrou interesse pelo plano inglês de tomar a França toda. Tinha o Rei Francis como prisioneiro, mas planejava oferecer um preço de resgate, devolvê-lo ao trono destruído tão recentemente.
— Em nome de Deus, por quê? Por que ele faria isso? — vociferou Henrique ao cardeal Wolsey em uma explosão de raiva. Até mesmo os mais favorecidos no círculo íntimo do rei se retraíram. As damas da corte se amedrontaram visivelmente. Somente a rainha, em sua cadeira do lado do rei à mesa alta no salão, permaneceu impassível, como se o homem mais poderoso do país não estivesse tremendo de um acesso incontrolável de fúria a apenas alguns centímetros dela.
— Por que o cão louco espanhol nos trairia? Por que libertaria Francis? Ficou maluco? — virou-se para a rainha. — Seu sobrinho é louco? Está ele fazendo algum jogo duplo valioso? Está ele me enganando como o seu pai me enganaria? Corre um sangue vil e traidor nas veias desses reis espanhóis? O que responde, senhora? Ele escreve para a senhora, não escreve? O que disse na última carta? Que libertaria o nosso pior inimigo? Que ele é louco ou idiota?
Ela relanceou os olhos para o cardeal Wolsey para ver se ele intercederia, mas ele deixara de ser amigo da rainha depois da virada na situação. Permaneceu mudo e enfrentou seu olhar de apelo com uma serenidade diplomática.
Isolada, a rainha teve de enfrentar seu marido sem apoio.
— Meu sobrinho não me escreve sobre todos os seus planos. Eu não sabia que ele estava pensando em libertar o rei Francis.
— Espero que não! — gritou Henrique, aproximando o rosto do dela. — Pois, no mínimo, seria acusada de traição se soubesse que o pior inimigo que este país já teve seria libertado por seu sobrinho.
— Mas eu não sabia — disse com firmeza.
— E Wolsey me disse que ele está pensando em namorar a princesa Mary. A sua própria filha! O que pensa disso?
— Não sei — replicou ela.
— Com licença — disse Wolsey, em voz baixa. — Acho que Sua Majestade se esqueceu do encontro, ontem, com o embaixador espanhol. Certamente ele a alertou de que a princesa Mary seria rejeitada.
— Rejeitada! — Henrique pulou de sua cadeira, exaltado demais para ficar quieto. — E sabia disso, senhora?
A rainha levantou-se, como devia, quando seu marido estava em pé.
— Sim — replicou ela. — O cardeal está certo. O embaixador realmente mencionou que havia dúvidas em relação ao noivado da princesa Mary. Não falei nada porque só acreditaria nisso se ouvisse de meu sobrinho diretamente. E não ouvi.
— Receio que não haja nenhuma dúvida — interpelou o cardeal.
A rainha dirigiu-lhe um olhar firme, percebendo que ele a expusera à raiva de seu marido duas vezes e deliberadamente.
— Lamento que pense assim — disse ela.
Henrique deixou-se cair em sua cadeira, enfurecido demais para falar. A rainha permaneceu em pé e ele não a convidou a sentar-se. A renda do decote alto de seu vestido movia-se com a sua respiração regular, ela simplesmente tocava o rosário que pendia de sua cintura com seu indicador. Ela não perdeu a dignidade e o porte nem por um instante.
Henrique virou-se para ela, gélido de raiva.
— Sabe o que teremos de fazer se quisermos aproveitar essa oportunidade que Deus nos deu e que o seu sobrinho está prestes a jogar fora?
Ela sacudiu a cabeça em silêncio.
— Teremos de aumentar enormemente os impostos. Teremos de reunir outro exército. Teremos de montar outra expedição à França e combater outra guerra. E teremos de fazer isso sozinhos, sozinhos e sem apoio porque o seu sobrinho, o seu sobrinho, senhora, conquista uma das vitórias mais afortunadas que pode acontecer a um rei e depois a desperdiça, como se fosse uma brincadeira.
Nem mesmo então ela se moveu. Mas a sua paciência só fazia inflamá-lo ainda mais. Pulou de novo de sua cadeira e as pessoas arfaram quando ele se lançou sobre ela. Por um instante cheguei a pensar que bateria nela, mas era um dedo e não o punho que apontou para ela.
— Não ordenou que ele fosse leal a mim?
— Sim — disse ela quase sem abrir a boca. — Recomendei que não se esquecesse da nossa aliança.
Atrás dela, o cardeal Wolsey sacudiu a cabeça negando.
— Está mentindo! — gritou Henrique para a rainha. — É mais uma princesa espanhola do que uma rainha inglesa!
— Deus sabe que sou uma esposa fiel e uma mulher inglesa — replicou.
Henrique saiu precipitadamente e houve uma afobação repentina quando a corte se afastou para lhe dar passagem, fazendo reverências profundas. Seu séquito de cavalheiros fez uma reverência apressada à rainha e seguiu sua marcha impetuosa. Mas ele estacou à porta.
— Não me esquecerei disso — gritou para a rainha. — Não a perdoarei nem esquecerei o insulto de seu sobrinho a mim, tampouco esquecerei ou perdoarei seu comportamento, sua maldita traição.
Ela abaixou-se lentamente e perfeitamente em uma reverência régia e a manteve como uma dançarina até Henrique, depois de praguejar, sair às carreiras. Só então levantou-se e olhou pensativamente à sua volta, para todos nós que havíamos assistido à sua humilhação e que agora desviávamos os olhos dela, na esperança de que não pedisse nosso serviço.
No jantar, na noite seguinte, percebi os olhos do rei em mim quando entrei no salão, com uma gravidade afetada, atrás da rainha. Depois do jantar, quando arrumaram o espaço para dançar, ele veio até mim, passando pela rainha, quase lhe dando as costas, e me chamou para dançar.
Houve uma ligeira agitação quando ele me conduziu à pista de dança.
— A volta — disse Henrique por cima do ombro, e os outros dançarinos que tinham se preparado para dançar conosco recuaram e formaram um círculo só para observar.
Era uma dança completamente diferente, uma dança de sedução. Henrique não tirou seus olhos azuis do meu rosto, dançou na minha direção, bateu o pé e as mãos como se fosse me despir ali mesmo, na frente de toda a corte. Tirei da mente o pensamento da rainha me observando. Mantive a cabeça ereta e os olhos fixos nos do rei, e dancei na sua direção, com um balanço dos quadris e uma rotação da cabeça. Encaramos um o outro e ele me ergueu, me mantendo no ar. Aplaudiram, ele me baixou delicadamente, e senti minhas bochechas arderem com uma combinação de constrangimento, triunfo e desejo. Separamo-nos quando o pequeno tambor rufou, e voltamos a nos unir quando a dança nos levou de novo um para o outro. Mais uma vez ele me levantou e, dessa vez, me baixou escorregando, pressionada contra seu corpo. Eu o senti em cada polegada do meu corpo: seu peito, sua calça, suas pernas. Fizemos uma pausa, seu rosto tão perto do meu que, se se inclinasse à frente, me beijaria. Senti seu hálito no meu rosto e então ele disse:
— Minha câmara. Venha imediatamente.
Levou-me para a cama nessa noite e quase todas as noites que se seguiram, com o mesmo desejo. Eu deveria ter-me sentido feliz. Certamente minha mãe, meu pai, meu tio e mesmo George estavam felizes por eu voltar a ser a primeira escolha do rei e todos passarem a gravitar ao meu redor mais uma vez. As damas da rainha mostravam-se tão deferentes a mim quanto a ela. Embaixadores estrangeiros faziam reverências tão acentuadas como se eu fosse uma princesa, os cavalheiros do quarto do rei escreviam sonetos ao dourado do meu cabelo e à curva dos meus lábios. Francis Weston escreveu uma canção para mim e, aonde quer que eu fosse, havia pessoas prontas para me servir, me assistir, me fazer a corte e sempre, mas sempre, me dizer sussurrando que se eu pudesse mencionar uma coisinha ao rei, se sentiriam imensamente gratos a mim.
Seguia o conselho de George e sempre recusava pedir ao rei qualquer coisa, até para mim mesma, e desse modo ele se sentia à vontade comigo de uma maneira como não se sentia com ninguém mais. Criávamos um pequeno e estranho refúgio doméstico por trás da porta fechada de sua câmara privada. Jantávamos a sós, depois que o jantar tinha sido servido no salão. A nossa única companhia eram os músicos e talvez um ou dois amigos seletos. Thomas More levaria Henrique ao telhado para olhar as estrelas, e eu também iria, olhando o céu noturno escuro e pensando que as mesmas estrelas brilhavam em Hever, refulgindo pelas frestas estreitas para iluminar a face do meu bebê adormecido.
Minhas regras se suspenderam em março, e em junho, de novo. Contei a George, que pôs os braços em volta de mim e me puxou para si.
— Vou contar ao papai — disse ele. — E a tio Howard. Se Deus quiser, desta vez será menino.
Eu queria contar a Henrique eu mesma, mas decidiram que uma notícia de tal peso e tão promissora deveria ser dada ao rei por meu pai, para que os Bolena garantissem todo o crédito por minha fertilidade. Meu pai pediu uma audiência particular e o rei, achando que se tratava de algo relacionado às longas negociações de Wolsey com a França, recebeu-o levando-o ao vão de uma janela, longe dos ouvidos da corte, e o convidou a falar. Meu pai proferiu sorrindo uma pequena frase e Henrique olhou dele para mim, para onde eu estava sentada com as mulheres, e então ouvi seu grito de alegria. Atravessou a sala rapidamente e estava para me erguer do chão, quando se deteve com medo de me machucar. Então, pegou minhas mãos e as beijou.
— Meu coração! — exclamou. — A melhor notícia! A melhor que eu poderia ter recebido!
Relanceei os olhos em volta, para aquelas caras curiosas, e de novo para o rei.
— Majestade — eu disse cautelosamente —, estou tão contente em fazê-lo feliz.
— Não poderia me causar mais alegria — garantiu-me. Fez com que eu me levantasse e me levou para o lado. Todas as mulheres esticaram o pescoço e simultaneamente desviaram o olhar para longe, loucas para saber o que estava acontecendo e igualmente loucas para não dar a entender que estavam espiando. Meu pai e George se posicionaram na frente do rei e começaram a falar alto do tempo e de como a corte partiria em breve em sua viagem de verão, bloqueando a nossa conversa sussurrada.
Henrique colocou-me no vão da janela e pôs sua mão delicadamente em meu corpete.
— Não está muito apertado?
— Não — repliquei, sorrindo para ele. — Ainda está muito no começo, Majestade. Não dá nem para ver.
— Se Deus quiser, desta vez será um menino— disse ele.
Sorri, com toda a temeridade Bolena.
— Tenho certeza de que sim — eu disse. — Lembra que nunca falei assim com Catarina? Desta vez, tenho certeza. Tenho certeza de que será um menino. Talvez o chamemos de Henrique.
A recompensa por minha gravidez foi rápida para a minha família, naquele verão. Meu pai se tornou visconde Rochford e George, Sir George Bolena. Minha mãe tornou-se viscondessa e com direito a usar púrpura. Meu marido recebeu outra concessão de terra, aumentando mais sua propriedade.
— Acho que devo agradecer-lhe por isso, senhora — disse ele. Tinha escolhido sentar-se ao meu lado no jantar e me servir com as melhores partes das carnes. Erguendo os olhos para a mesa alta, vi Henrique me olhando, e sorri para ele.
— Fico feliz em lhe ser útil — eu disse, cortesmente.
Recostou-se na cadeira e sorriu para mim, mas seus olhos estavam opacos, olhos de bêbado, cheios de desgosto.
— E assim passamos mais um ano com você na corte e eu no séquito do rei, e nunca nos encontramos e raramente nos falamos. Você é uma concubina e eu, um monge.
— Não sabia que havia escolhido uma vida celibatária — comentei indulgentemente.
Ele teve a elegância de sorrir.
— Sou e não sou casado — salientou. — Onde terei herdeiros para minhas novas terras se não for com minha esposa?
Balancei a cabeça. Houve um breve silêncio.
— Sim, você tem razão. Desculpe — repliquei concisamente.
— Se o bebê for uma menina e o interesse dele se acabar, a mandarão de volta para casa, para mim. Voltará a ser minha mulher — comentou William sociavelmente. — Como acha que ficaremos? Nós e os dois bastardos?
Meus olhos o encararam.
— Não gosto de ouvi-lo falar dessa maneira.
— Cuidado — advertiu-me. — Estamos sendo observados.
Imediatamente minha face tornou-se vítrea com um sorriso vazio.
— Observados pelo rei? — perguntei tendo o cuidado de não olhar em volta.
— E por seu pai.
Peguei um pedaço de pão e o mordisquei, virei a cabeça como se não estivéssemos falando de nada importante.
— Não gosto que fale de minha Catarina dessa maneira — eu disse. — Ela tem o seu nome.
— E isso me obriga a amá-la?
— Acho que a amará se a vir — repliquei defensivamente. — É uma criança muito linda. Não vejo como não gostaria dela. Espero passar o verão com ela em Hever. Estará aprendendo a andar.
A expressão severa deixou seu rosto.
— É esse o seu maior desejo, Maria? Você, a amante do rei da Inglaterra? E o seu maior desejo é poder viver em um pequeno castelo senhorial e ensinar sua filha a andar?
Dei um risinho.
— Ridículo, não é? Mas sim. Tudo o que mais quero é estar com ela.
Ele sacudiu a cabeça.
— Maria, pode me punir — disse ele delicadamente. — Quando penso em como fui insultado por você e sinto raiva de você e dessa matilha de lobos que é a sua família, de repente percebo que todos nós estamos nos dando muito bem por sua causa. Nós todos estamos prosperando muito, e em meio a tudo isso, como um pedaço de pão macio mordiscado por patos, está você, sendo devorada viva por todos nós. Talvez você devesse ter-se casado com um homem que a amasse e a mantivesse e lhe dado um bebê que você mesma criasse, sem interrupção.
Sorri com a discrição.
— Não gostaria de ter-se casado com alguém assim? Às vezes, eu gostaria que sim. Gostaria que tivesse se casado com um homem que a amasse e a conservasse, independentemente das vantagens de passá-la para outro. E quando fico bêbado e triste, às vezes sinto vontade de ter sido esse homem.
Deixei o silêncio imperar até que algo distraísse a atenção de nossos vizinhos.
— O que está feito está feito — repliquei gentilmente. — Foi tudo decidido por mim antes que eu tivesse idade para pensar por mim mesma. Estou certa, milorde, que teve razão em fazer o que o rei queria.
— Exercerei meu poder para conseguir uma coisa — disse William. — Que ele consinta que passe o verão em Hever. Posso fazer pelo menos isso por você.
Ergui os olhos.
— Eu ficaria tão feliz — sussurrei. Senti meus olhos se encherem de lágrimas ao pensar que reveria Catarina. — Oh, milorde, eu ficaria muito feliz.
William cumpriu a sua palavra. Falou com meu pai, falou com meu tio e, finalmente, com o rei. E tive permissão para passar todo o verão em Hever, e desse modo ver Catarina e andar com ela nos pomares de maçãs de Kent.
George veio nos visitar duas vezes, sem avisar, cavalgando no pátio do castelo, sem chapéu e em manga de camisa, deixando as criadas excitadas de desejo e ansiedade. Ana o assediava com perguntas sobre o que estava acontecendo na corte, quem estava vendo quem, mas ele ficava calado e aborrecido, subindo, frequentemente, durante o calor do meio-dia, a escadaria de pedra até a pequena capela, ao lado de seu quarto, onde os reflexos da água do fosso embaixo dançavam no teto caiado. Então, se ajoelhava em silêncio e rezava ou devaneava.
Não combinava com sua esposa. Jane Parker nunca o acompanhava a Hever, ele não permitiria. Esses dias conosco não seriam maculados por seu olhar curioso, seu desejo avaro de escândalo.
— Ela é realmente um monstro — comentou à toa comigo. — Ela é tão ruim quanto eu temia.
Estávamos sentados no centro do jardim ornamental diante da entrada principal do castelo. À nossa volta, as cercas vivas e as plantas pareciam uma pintura, cada arbusto em seu lugar. Nós três estávamos relaxados sobre o banco de pedra na frente da fonte que tamborilava como calmante, como a chuva sobre o telhado, enquanto George descansava sua cabeça em meu colo e eu me recostava e fechava os olhos.
Ana, no extremo do banco, olhava para nós.
— O quanto é grave?
Ele abriu os olhos, com preguiça demais para se levantar. Levantou a mão e contou os pecados dela nos dedos.
— Um, ela é malvadamente ciumenta. Não consigo sair sem que me vigie e demonstra seu ciúme com escárnio.
— Escárnio? — perguntou Ana.
— Você sabe — replicou ele com impaciência. Adotou uma lamúria em tom de falsete. — “Se eu vir aquela mulher olhando de novo para o senhor, Sir George, saberei o que pensar do senhor! Se dançar com essa garota mais uma vez, Sir George, ela e o senhor vão me ouvir!”
— Oh — disse Ana. — Que detestável.
— Dois — disse ele, prosseguindo a lista. — Ela tem mão leve. Se tiver um xelim no meu bolso, e ela achar que não sentirei falta, ele desaparecerá. Qualquer ninharia deixada por perto, ela a surrupia como uma pega.
Ana estava encantada.
— Não! Verdade? Perdi uma fita dourada certa vez. Sempre achei que tinha sido ela.
— Três — prosseguiu ele. — E o pior de tudo. Ela me persegue na cama como uma cadela no cio.
Bufei com uma risada surpresa.
— George!
— É verdade — confirmou. — Ela me deixa em pânico.
— Você? — perguntou Ana debochadamente. — Achava que ficaria feliz.
Sentou-se e sacudiu a cabeça.
— Não é isso — replicou ele energicamente. — Se ela fosse sensual, eu não me importaria, contanto que mantivesse isso dentro de casa e não me envergonhasse. Mas não é assim. Ela gosta... — interrompeu-se.
— Oh, conte! — supliquei.
Ana calou-me franzindo o cenho.
— Psiu. Isso é importante. Do que ela gosta, George?
— Não é luxúria — disse ele, constrangido. — Sei lidar com a luxúria. E não é variedade. Eu também gosto do licencioso. Mas é como se quisesse exercer um certo poder sobre mim. Outra noite perguntou se eu não gostaria que fosse trazida uma criada. Ofereceu-se para trazer uma garota, e o que é pior: queria ver.
— Ela gosta de assistir? — perguntou Ana.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não, acho que ela gosta de arranjar as coisas. Acho que ela gosta de ouvir às escondidas, de espiar pelo buraco da fechadura. Acho que ela gosta de ser quem faz as coisas acontecerem e observar os outros fazendo. E quando eu respondi “não”... — interrompeu-se abruptamente.
— O que ela lhe ofereceu, então?
George corou.
— Ofereceu-se para me conseguir um garoto.
Ri escandalizada, mas Ana não riu.
— Por que ela lhe ofereceria isso, George? — perguntou calmamente.
Ele desviou os olhos.
— Há um cantor na corte — disse ele. — Um garoto tão doce, bonito como uma donzela, mas com a perspicácia de um homem. Eu não disse nem fiz nada. Mas ela me viu rir com ele uma vez e dar-lhe um tapinha no ombro. E para ela, tudo é luxúria.
— É o segundo garoto que ligam a você — observou Ana. — Não houve um pajem? Mandado para casa no verão passado?
— Não houve nada — disse George.
— E agora?
— Nada de novo.
— Um nada perigoso — disse Ana. — Um perigoso par de nadas. Frequentar prostitutas é uma coisa, mas pode ser enforcado por isso.
Ficamos em silêncio por um instante, um pequeno grupo escuro sob um céu azul de meados de verão. George sacudiu a cabeça.
— Não é nada — reiterou. — E isso é assunto meu. Estou farto das mulheres, de seu desejo e conversa feminina. Conhecemos todos os sonetos, todos os flertes e todas as promessas vazias. E um garoto é tão puro, tão límpido... — virou-se. — É uma fantasia. Não vou dar atenção a isso.
Ana olhou para ele, seus olhos se estreitaram pensando.
— É um pecado capital. É melhor esquecer essa fantasia.
Ele a encarou.
— Sei disso, Srta. Inteligente.
— E Francis Weston? — perguntei.
— O que tem? — replicou George.
— Estão sempre juntos.
George sacudiu a cabeça com impaciência.
— Estamos sempre a serviço do rei. Estamos eternamente esperando o rei. E tudo o que temos a fazer é flertar com as garotas da corte e conversar sobre escândalos com elas. Não é de admirar que eu esteja farto delas. A vida que levo me deixa farto da vaidade das mulheres.
Outono de 1525
Quando retornei à corte no outono, havia sido convocada uma reunião de família. Notei que, dessa vez, eu tinha uma das grandes cadeiras entalhadas, de braços e com uma almofada de veludo no assento. Nesse ano, eu era uma mulher jovem que talvez estivesse carregando no ventre o filho varão do rei.
Decidiram que Ana poderia retornar à corte na primavera.
— Ela aprendeu a lição — disse meu pai judiciosamente. — E com a estrela de Maria lá no alto, devemos ter Ana na corte. Ela deve se casar.
Meu tio concordou balançando a cabeça, e passaram para o tópico mais importante que tratava do que estaria se passando na cabeça do rei, já que o mesmo decreto que enobrecera meu pai também tinha tornado o filho de Bessie Blount duque. Henrique Fitzroy, um menino de 6 anos, era duque de Richmond e Surrey, conde de Nottingham e lorde supremo almirante da Inglaterra.
— É um absurdo — disse meu tio com firmeza. — Mas mostra como a sua mente está funcionando. Fará de Fitzroy o próximo herdeiro.
Fez uma pausa. Olhou em volta da mesa, para nós quatro: minha mãe, meu pai, George e eu.
— Isso nos mostra que está realmente desesperado. Deve estar pensando em um novo casamento. Esse ainda é o caminho mais seguro e mais rápido para um herdeiro.
— Mas se Wolsey intermediar esse novo casamento, ele nunca nos favorecerá — observou meu pai. — Por que o faria? Não é nosso amigo. Vai procurar uma princesa francesa ou portuguesa.
— Mas e se ela tiver um menino? — perguntou meu tio, me indicando com um movimento da cabeça. — Quando a rainha estiver fora do caminho? É uma garota bem-nascida, tanto quanto a mãe de Henrique. Grávida dele pela segunda vez. Há todas as chances do mundo de que esteja carregando seu filho varão. Se se casar com ela, terá um herdeiro. Imediatamente. Uma solução perfeita.
Fez-se silêncio. Olhei em volta da mesa e vi que todos balançavam a cabeça concordando.
— A rainha nunca partirá — eu disse simplesmente. Era sempre eu que os lembrava desse fato.
— Quando o rei não precisar mais de seu sobrinho, não precisará mais dela — disse meu tio brutalmente. — O Tratado de More, que deu tanto trabalho a Wolsey, abriu a porta para nós. A paz com a França significa o fim da aliança com a Espanha, e o fim da rainha. Quer queira, quer não, ela não passa de uma esposa indesejável.
Deixou o silêncio pairar na sala. Era franca traição o que fazíamos, e meu tio não temia nada. Olhou-me no rosto e senti o peso da sua vontade como um polegar pressionando minha testa.
— O fim da aliança com a Espanha e o fim da rainha — disse ele. — A rainha partirá, quer queira, quer não. E você ocupará seu lugar, quer queira, quer não.
Procurei reunir coragem, levantei-me e fui para trás da cadeira, para poder me apoiar em seu espaldar de madeira trabalhada.
— Não — e minha voz ressoou firme e forte. — Não, tio, lamento, mas não posso fazer isso. — Encarei seu olhar tão aguçado quanto o de um falcão, seus olhos escuros a que nada escapava. — Amo a rainha. Ela é uma grande dama e não posso traí-la. Não posso tomar o seu lugar. Não posso enxotá-la e assumir o lugar da rainha da Inglaterra. Seria subverter a ordem das coisas. Não me atreveria a fazer isso. Não posso.
Ele me deu aquele seu sorriso lupino.
— Estamos fazendo uma nova ordem — disse ele. — Um novo mundo. Fala-se no fim da autoridade do Papa, o mapa da França e da Espanha está sendo refeito. Tudo está mudando, e aqui estamos nós, bem na vanguarda da mudança.
— E se me recuso? — perguntei, com a voz fraca.
Lançou-me seu sorriso mais cínico, que deixava seus olhos frios feito carvão molhado.
— Não vai se recusar — replicou simplesmente. — O mundo não mudou tanto assim, ainda. Os homens continuam a dar as ordens.
Primavera de 1526
Ana, finalmente, foi autorizada a retornar à corte e me substituiu como dama da rainha, já que eu me sentia cada vez mais exausta. Essa gravidez foi difícil, as parteiras juravam que era porque eu estava carregando um menino grande e forte que estava consumindo a minha força. Certamente eu sentia seu peso quando andava por Greenwich, sempre ansiando por minha cama.
Deitada na cama, o peso do bebê pressionava minhas costas a ponto de meus pés serem tomados por câimbras que me faziam gritar no meio da noite, e Ana despertar atordoada, e se enfiar nos pés da cama para massagear meus dedos cerrados.
— Pelo amor de Deus, durma — disse ela irritada. — Por que se agita e se vira o tempo todo?
— Porque não encontro posição — repliquei bruscamente. — E se se preocupasse mais comigo e menos com você mesma, me conseguiria mais um travesseiro para as minhas costas e uma bebida, em vez de ficar deitada como uma almofada gorda.
Ela deu uma risadinha, sentou-se na cama e virou-se para olhar para mim. As brasas do fogo iluminavam o quarto.
— Está realmente se sentindo mal ou só fazendo cena?
— Realmente mal — repliquei. — Verdade, Ana, dói cada osso do meu corpo.
Deu um suspiro, levantou-se da cama, acendeu a vela nas brasas. Iluminou meu rosto.
— Está branca feito fantasma — disse ela jovialmente. — Parece velha o bastante para ser minha mãe.
— Estou com dor — respondi sem hesitar.
— Quer um pouco de ale quente?
— Sim, por favor.
— E outro travesseiro?
— Sim, por favor.
— E fazer xixi, como sempre?
— Sim, por favor. Ana, se você tivesse engravidado, saberia como a gente se sente. Juro que não é uma coisa fácil.
— Vejo que não — disse ela. — Basta olhar para você para ver que se sente como uma mulher de 90 anos. Só Deus sabe como manteremos o interesse do rei se isso continuar.
— Não preciso fazer nada — respondi irritada. — Todo esse tempo, ele só olha para a minha barriga.
Ana lançou o atiçador no fogo e colocou o ale ao lado da lareira em duas canecas.
— Ele brinca com você? — perguntou interessada. — Quando vai ao seu quarto depois do jantar?
— Nem uma vez sequer neste mês — repliquei. — A parteira disse que eu não devia.
— Conselho perfeito para a amante de um rei — murmurou Ana, com irritação, inclinando-se sobre o fogo. — Quem a terá pagado para dizer isso? Você é uma tola em lhe dar ouvidos. — Retirou o atiçador dos tições e o colocou dentro da jarra de ale, na qual chiou e o ferveu. — O que você disse ao rei?
— O bebê é mais importante do que qualquer outra coisa.
Ana sacudiu a cabeça e serviu o ale.
— Nós temos mais importância do que qualquer outra coisa — lembrou-me. — E nenhuma mulher jamais prendeu um homem dando-lhe filhos. Você tem de fazer as duas coisas, Maria. Não pode parar de agradá-lo só porque carrega um bebê dele.
— Não posso fazer tudo — respondi me queixando. Passou-me uma caneca e bebi um gole. — Ana, tudo o que realmente quero fazer é descansar e deixar o bebê se desenvolver forte dentro de mim. Tenho estado em cortes desde os meus 4 anos. Estou cansada de dançar, estou cansada de me regalar em banquetes, estou cansada de assistir a torneios, de dançar em mascaradas e me surpreender ao ver que o homem que parece ser exatamente o rei disfarçado é o rei de verdade. Se eu pudesse, voltaria para Hever amanhã mesmo.
Ana voltou para o meu lado na cama, com a caneca na mão.
— Bem, você não pode — disse ela simplesmente. — Você tem tudo por que lutar agora. Se a rainha for posta de lado, não se pode saber o quanto subirá. Você chegou muito longe. Agora tem de prosseguir.
Fiz uma pausa, olhando para ela por cima da minha caneca.
— Ouça — eu disse baixinho. — O meu coração não está aí.
Ela me devolveu o olhar.
— Talvez — replicou com franqueza. — Mas não é livre para escolher.
Foi um inverno frio, o que era pior para mim. Fechada dentro de casa, sem mais nada no que pensar a não ser uma dor estranha a cada dia, comecei a temer o parto. Carregara meu primeiro bebê em uma ignorância feliz, mas agora sabia que teria pela frente um mês de escuridão e clausura e, depois, a dor interminável com as parteiras ameaçando puxar o bebê de dentro de mim, enquanto eu me agarrava nos lençóis amarrados na cama, e gritava com terror e dor.
— Sorria — repreendia-me Ana quando o rei vinha aos meus aposentos, e as damas à minha volta se afobavam e pegavam seus alaúdes ou pequeno tambor. Eu tentava sorrir, mas a dor nas costas e a vontade de urinar constante fazia o sorriso desaparecer e eu me deixava cair sobre o banco.
— Sorria — dizia Ana a meia-voz. — E sente-se ereta, mulherzinha preguiçosa.
Henrique olhou para nós duas.
— Lady Carey, parece cansada — disse ele.
Ana intercedeu com um brilho nos olhos.
— Ela está carregando um fardo pesado — disse sorrindo. — E quem saberia disso melhor do que Sua Majestade?
Ele pareceu um pouco surpreso.
— Talvez — disse ele. — É muito solícita, senhora.
Ana não hesitou.
— Acho que qualquer mulher seria solícita com Sua Majestade — replicou ela com uma leve vivacidade. — A menos que tivesse um bom motivo para afastar-se rápido.
Ficou intrigado.
— E a senhora se afastaria rápido, Srta. Ana?
— Nunca rápido demais — replicou ela imediatamente.
Ele riu alto e as damas, inclusive Jane Parker, olharam para ver o que Ana tinha dito que o divertira. Ele deu um tapinha no meu joelho.
— Estou feliz por sua irmã estar de volta à corte — disse ele. — Ela nos manterá alegres.
— Muito alegres — repliquei com a voz mais doce que consegui.
Não comentei nada com Ana até estarmos a sós quando ela me despia no nosso quarto. Ela desatou os cordões apertados do meu corpete e dei um suspiro de alívio quando minha barriga intumescida se soltou. Cocei-a e vi os arranhões vermelhos deixados por minhas unhas e estiquei as costas tentando minorar a dor que não me deixava.
— O que acha que está fazendo com o rei? — perguntei de maneira mordaz. — Afastando-se rapidamente?
— Abra os olhos — disse ela concisamente. Ajudou-me a sair da minha saia e a vestir a camisola. Minha nova criada verteu água em uma jarra e, sob o escrutínio crítico de Ana, lavei-me o melhor que pude com a água fria.
— Os pés — mandou Ana.
— Não consigo ver meus pés, muito menos lavá-los.
Ana fez um sinal para que a bacia fosse trazida para o chão de modo que eu pudesse me sentar no banco enquanto a criada lavava meus pés.
— Estou fazendo o que me mandaram fazer — disse Ana friamente. — Achei que perceberia logo.
Fechei os olhos, me deleitando com a sensação de ter meus pés imundos molhados. Então percebi o tom de alerta em sua voz.
— Mandada por quem?
— Por nosso tio. Por nosso pai.
— A fazer o quê?
— Manter a cabeça do rei em você, mantê-lo comprometido com você. Manter você diante dele.
Balancei a cabeça.
— Sim, é claro.
— E se não der certo, flertar com ele eu mesma.
Ergui o corpo e prestei mais atenção.
— Nosso tio mandou que flertasse com o rei?
Ana assentiu com um movimento da cabeça.
— Quando ele lhe disse isso? Onde?
— Ele foi a Hever.
— Foi até Hever em pleno inverno para mandar você flertar com o rei?
Ela assentiu de novo com a cabeça, sem sorrir.
— Meu Deus, ele não sabia que você faria isso de qualquer maneira? Que você flerta como respira?
Ana riu contrafeita.
— Claramente não. Foi me dizer que a nossa missão primordial, minha e sua, é garantir que aonde quer que o rei vá se divertir durante o seu confinamento, e depois do parto, não seja nas anáguas de uma garota Seymour.
— E como vou impedir isso? — perguntei. — Estarei no quarto para o parto a metade do tempo.
— Exatamente. Terei de impedi-lo por você.
Refleti por um instante e fui dar direto no motivo de minha ansiedade na infância.
— E se ele gostar mais de você?
O sorriso de Ana foi tão doce como o veneno.
— E daí? Contanto que seja uma Bolena?
— É o que o tio Howard pensa? Não pensa nada em mim, parindo, enquanto minha irmã flerta com o pai do meu bebê?
Ana balançou a cabeça assentindo.
— Exatamente. Não pensa em você nem por um instante.
— Não quero que retorne à corte para ser a minha rival — eu disse emburrada.
— Nasci para ser sua rival — replicou simplesmente. — E você minha rival. Somos irmãs, não somos?
Saiu-se muito bem com aquele tipo de encanto que ninguém percebe ser intencional. Jogava cartas com o rei e jogava tão bem que só perdia por dois pontos. Cantava suas músicas e as preferia às escritas por qualquer outro homem. Encorajava Sir Thomas Wyatt e meia dúzia de outros a ficarem à sua volta, de modo que o rei aprendesse a pensar nela como a jovem mais atraente da corte. Aonde quer que fosse, havia riso, conversa e música — e ela se introduzira em uma corte ávida de entretenimento. Nos longos dias de inverno, todos os cortesãos tinham o dever de manter o rei entretido. Mas Ana era uma súdita sem par. Somente Ana conseguia permanecer o dia inteiro sendo fascinante, encantadora, desafiadora, sempre parecendo que estava sendo simplesmente ela mesma.
Henrique sentava-se comigo ou com Ana. Dizia que era um espinho entre duas rosas, uma papoula entre duas espigas de milho. Punha a mão atrás, na minha cintura, enquanto a observava dançar. Acompanhava a pauta que eu abria no meu colo enquanto ela cantava para ele. Apostava em mim quando eu jogava cartas com ela. Observava-a escolher os pedaços de carne em seu prato e colocá-los no meu. Era uma boa irmã, terna, não poderia ser mais atenciosa e mais meiga comigo.
— Você é a coisa mais baixa que vi — disse-lhe certa noite enquanto se penteava diante do espelho, trançando o cabelo.
— Eu sei — replicou com complacência, olhando sua imagem refletida no espelho.
Houve uma batida na porta e George apareceu.
— Posso entrar?
— Entre — disse Ana. — E feche a porta, tem uma corrente de ar vindo do corredor.
Obedientemente, George fechou a porta e mostrou um cântaro com vinho para nós duas.
— Alguém toma um copo de vinho comigo? Não, milady Fertilidade? Não, milady Primavera?
— Pensei que estivesse com Sir Thomas — observou Ana. — Ele disse que iria farrear hoje à noite.
— O rei me reteve — disse George. — Queria me perguntar sobre você.
— Sobre mim? — disse Ana, de repente alerta.
— Queria saber como reagiria a um convite.
Sem me dar conta, eu tinha aberto os dedos como garras sobre o lençol vermelho de seda.
— Que tipo de convite?
— Para a sua cama.
— E o que você respondeu? — perguntou Ana.
— Como me mandaram. Que você é virgem e a flor da família. Não irá para a cama sem se casar. Independentemente de quem convidar.
— E ele?
— Oh.
— Isso foi tudo? — insisti com George. — Ele só disse “Oh”?
— Sim. E desceu o rio na embarcação com Sir Thomas para visitar prostitutas. Acho que o tem na mão, Ana.
Ela levantou a camisola e subiu na cama. George observou seus pés descalços com um olhar de especialista.
— Muito bonitos.
— Também acho — disse ela complacente.
Fui para o quarto de parto em meados de janeiro. O que aconteceu enquanto fiquei enclausurada no escuro e no silêncio não precisava saber. Soube que houve uma justa e que Henrique levou uma prenda sob a veste usada sobre a armadura que não lhe foi dada por mim. Sobre o escudo usou o lema “Declarar, não me atrevo!” que intrigou metade da corte, que achou que era um elogio a mim, porém um elogio estranho que não deu certo já que não vi nem justa nem lema, trancada no silêncio escuro da câmara de parto, sem corte, sem músicos, somente um bando de velhas bebendo ale e esperando a sua hora: a minha hora, na verdade.
E havia aqueles que achavam que minha estrela brilhava lá no alto: “Declarar, não me atrevo!” era um sinal para a corte de que um filho e herdeiro poderia ser anunciado. Somente muito poucos pensaram em olhar do rei, combatendo com uma promessa ambígua no escudo, para a minha irmã, sentada do lado da rainha, seus olhos escuros nos cavaleiros, um imperceptível sorriso nos lábios, a cabeça virada quase inconscientemente.
Ela visitou-me nessa noite, e se queixou do abafamento e escuro do quarto.
— Eu sei — falei. — Mas dizem que tem de ser assim.
— Não sei por que tolera isso — disse ela.
— Pense um pouco — aconselhei-a. — Se insisto para que puxem as cortinas e abram as janelas e perco o bebê ou ele nasce morto, o que acha que a senhora nossa mãe vai me dizer? A raiva do rei seria doce em comparação.
Ana concordou com a cabeça.
— Não pode fazer nada errado.
— Não — eu disse. — Nem tudo é prazer quando se é a favorita do rei.
— Ele me quer. Está prestes a me dizer isso.
— Vai ter de recuar se eu tiver um menino — avisei-a.
Ela balançou a cabeça.
— Sei. Mas se for uma menina, me mandarão seguir adiante.
Recostei-me nos travesseiros, exausta demais para discutir.
— Avance ou recue, pouco me importa.
Olhou para a minha barriga imensa e redonda com uma curiosidade sem simpatia.
— Você está gorda. Ele devia ter dado seu nome a uma barcaça, e não a um navio de guerra.
Olhei para a sua cara viva e animada e o capelo sofisticado que prendia seu cabelo para trás de sua cútis macia.
— Quando lançarem serpentes, levarão seu nome — prometi. — Vá embora, Ana. Estou cansada demais para brigar com você.
Levantou-se imediatamente e se dirigiu à porta.
— Se ele me desejar e não a você, então terá de me ajudar como a ajudei — avisou-me.
Fechei os olhos.
— Se ele a desejar, poderei pegar meu bebê, se Deus quiser, e ir para Hever. E você poderá ficar com o rei, a corte, e um dia atrás do outro de inveja, rancor e fofocas, com a minha bênção. Mas não acho que ele seja do tipo que dê muitas alegrias à sua mulher.
— Oh, não serei sua mulher — disse ela com desdém. — Não acha que serei uma prostituta como você, acha?
— Ele nunca se casará com você — vaticinei. — E mesmo que se case, você deveria pensar duas vezes. Olhe para a rainha antes de querer seu trono. Veja o sofrimento em sua face e pergunte a si mesma se o casamento com o seu marido lhe trará alegria.
Ana parou antes de abrir a porta.
— Não se casa com um rei para se ter alegria.
Recebi mais uma visita em fevereiro. Meu marido, William Carey, veio me ver certa manhã bem cedo, quando eu comia meu desjejum de pão, presunto e ale.
— Não pretendia interromper seu desjejum — disse ele cortesmente, à porta.
Fiz sinal para a minha criada.
— Leve isto — senti-me em desvantagem, tão gorda e pesada em comparação à sua beleza esguia.
— Vim trazer-lhe os votos de felicidades do rei. Pediu-me que lhe dissesse que gentilmente me concedeu algumas intendências. Estou, mais uma vez, em dívida com a senhora.
— Fico feliz.
— Entendo por essa gentileza que dará meu nome à sua criança?
Mexi-me, um tanto sem jeito, na cama.
— Ele não me disse o que quer. Mas eu achava...
— Mais um Carey. Que família estamos formando!
— Sim.
Pegou minha mão e a beijou como se tivesse, de repente, se arrependido da provocação.
— Está pálida e parece cansada. Não foi fácil desta vez?
Senti as lágrimas em meus olhos com a sua gentileza inesperada.
— Não, não está sendo fácil desta vez.
— Está com medo?
Coloquei a mão na minha barriga.
— Um pouco.
— Terá as melhores parteiras do reino — lembrou-me.
Assenti com a cabeça. Não adiantava lhe dizer que eu tinha sido atendida pelas melhores parteiras do reino antes e que elas tinham passado três noites ao redor da cama, contando as histórias mais trágicas que uma mulher já escutou sobre a morte de bebês.
William virou-se para a porta.
— Direi à Sua Majestade que você está saudável e alegre.
Dei um sorriso fraco.
— Por favor, faça isso.
— Ele está muito interessado na sua irmã — comentou ele.
— Ela é uma mulher muito interessante.
— Não receia que ela tome o seu lugar?
Fiz um gesto indicando o quarto escuro, as cortinas pesadas, o calor do fogo e meu corpo disforme.
— Meu Deus, marido, qualquer mulher no mundo poderia tomar o meu lugar com a minha bênção nesta manhã.
Ele riu alto, balançando o chapéu para mim ao fazer a reverência, e saiu. Fiquei deitada em silêncio, observando o cortinado da cama oscilar devagarzinho no ar parado. Era fevereiro, meu bebê só era esperado para meados do mês. Parecia toda uma vida.
Graças a Deus, chegou antes. E graças a Deus foi um menino. Meu menininho nasceu no quarto dia de fevereiro. Um menino: o filho saudável reconhecido pelo rei. E os Bolena tinham tudo para entrar na disputa.
Verão de 1526
Mas não eu.
— O que, por Deus, tem de errado com você? — perguntou minha mãe. — Já faz três meses desde o parto e está tão branca como se tivesse contraído a peste. Está doente?
— Não paro de sangrar — procurei simpatia em seu rosto. Encontrei enfado e impaciência. — Tenho medo de sangrar até morrer.
— O que as parteiras disseram?
— Que vai parar logo.
Emitiu um som de impaciência.
— Você está tão gorda — queixou-se. — E tão... tão melancólica, Maria.
Ergui os olhos para ela e senti as lágrimas em meus olhos.
— Eu sei — repliquei com humildade. — Estou triste.
— Você deu um filho ao rei — minha mãe estava tentando me encorajar, mas dava para perceber a sua impaciência. — Qualquer mulher no mundo daria o braço direito para fazer o que você fez. Qualquer mulher no mundo teria saído da cama e estaria agora ao lado dele, rindo de seus gracejos, cantando suas músicas, cavalgando com ele.
— Onde está o meu filho? — perguntei direto.
Hesitou por um momento, confusa.
— Você sabe. Em Windsor.
— Sabe quando o vi pela última vez?
— Não.
— Há dois meses. Cheguei da igreja e ele tinha desaparecido.
Ela ficou impassível.
— Mas é claro que ele foi levado — disse ela. — É claro que tomamos providências para que fosse cuidado.
— Por outras mulheres.
— E que importância tem isso? — minha mãe ficou genuinamente sem entender. — Está sendo bem cuidado, e recebeu o nome do rei, Henrique — não conseguiu conter a exultação na voz. — Com tudo a seus pés!
— Sinto falta dele.
Por um instante, foi como se eu estivesse falando uma língua completamente diferente, incompreensível, russo ou árabe.
— Por quê?
— Sinto falta dele e de Catarina.
— E é por isso que está tão melancólica?
— Não estou melancólica. Estou triste. Estou tão triste que não tenho vontade de fazer nada, a não ser ficar na cama, o rosto nos travesseiros, e chorar e chorar.
— Por que está com saudades de seu filho? — minha mãe precisava da confirmação de tanto que a ideia lhe era estranha.
— Nunca sentiu falta de mim? — gritei. — Se não de mim, de Ana? Fomos tiradas de você quando éramos pouco mais que bebês, e mandadas para a França. Não sentiu saudades nossas na época? Outra pessoa nos ensinou a ler e escrever, outra pessoa nos levantou quando caímos, outra pessoa nos ensinou a montar nossos pôneis. Nunca pensou que talvez gostasse de ter visto seus filhos?
— Não — replicou simplesmente. — Não poderia ter encontrado um lugar melhor para vocês do que a corte real da França. Eu seria uma mãe medíocre se as tivesse mantido comigo.
Virei-me. Sentia as lágrimas em minha face.
— Se pudesse ver o seu bebê, ficaria feliz? — perguntou minha mãe.
— Sim — murmurei. — Oh, sim, mamãe, sim! Eu ficaria feliz se o visse de novo. E Catarina.
— Vou falar com o seu tio — disse ela, com má vontade. — Mas vai ter de ficar realmente feliz. Sorrir, rir, dançar com alegria, encher os olhos das pessoas. Tem de reconquistar o rei.
— Oh, ele se afastou tanto assim? — perguntei com sarcasmo.
Ela não pareceu se envergonhar, nem por um instante.
— Graças a Deus, Ana o traz pelo cabresto — disse ela. — Brinca com ele como se provocasse o cachorro da rainha.
— Por que não usá-la então? — perguntei com despeito. — Por que se preocupar comigo?
A rapidez de sua resposta me advertiu de que isso já havia sido decidido em um conselho de família.
— Porque você tem o filho do rei — respondeu simplesmente. — O bastardo de Bessie Blount tornou-se duque de Richmond, o nosso Henrique tem o mesmo direito. Não vai custar nada anular seu casamento com Carey e quase nada anular o casamento com a rainha. Queremos que ele se case com você. Ana foi a nossa isca, enquanto você estava de resguardo. Mas estamos apostando a nossa sorte em você.
Calou-se por um momento, como se esperasse que eu reagisse com alegria. Como eu não dissesse nada, ela voltou a falar, agora com mais rispidez.
— Por isso trate de se levantar, mande a criada escovar seu cabelo e apertar bem o corpete.
— Posso ir jantar porque não estou doente — repliquei severamente. — Dizem que o sangramento não é grave, e talvez não seja. Posso me sentar ao lado do rei e rir de suas piadas e pedir que cante. Mas não posso ficar alegre no meu coração, mãe. Está me entendendo? Não posso mais ser alegre. Perdi a alegria. E só eu sei como é se sentir assim, como é horrível.
Olhou-me com uma expressão determinada.
— Sorria — mandou.
Contraí os lábios e senti as lágrimas em meus olhos.
— Assim está bom — disse ela. — Fique assim e providenciarei para que veja seus filhos.
Meu tio foi aos meus aposentos depois do jantar. Olhou em volta com prazer, ainda não tinha visto como eu estava bem instalada desde que saíra da câmara de parto. Agora eu tinha uma câmara privada tão grande quanto a da rainha e quatro damas para me acompanharem. Tinha duas criadas e um pajem. O rei tinha prometido um músico só para mim. Atrás da minha câmara privada, havia o quarto que eu dividia com Ana, e uma pequena sala retirada, onde eu podia ler e ficar só. Eu ia para lá frequentemente, fechava a porta atrás de mim e chorava sem ninguém ver.
— Ele a está tratando muito bem.
— Sim, tio Howard — eu disse cortesmente.
— Sua mãe me disse que está sofrendo por causa de seus filhos.
Mordi o lábio para tentar conter as lágrimas.
— Por que, pelo amor de Deus, está com essa cara?
— Por nada — sussurrei.
— Então, sorria.
Mostrei-lhe a mesma cara de gárgula que satisfizera à minha mãe, ele me olhou asperamente, e balançou a cabeça.
— É o bastante. Não pense que vai ficar na preguiça e ser mimada só porque teve um menino. O bebê não terá nenhuma utilidade para nós se não der o próximo passo.
— Não posso obrigá-lo a se casar comigo — eu disse calmamente. — Ainda é casado com a rainha.
Ele estalou o dedo.
— Deus meu, mulher, não sabe nada mesmo? Isso nunca foi tão insignificante. Ele está a um passo da guerra com o sobrinho dela. Está quase formando uma aliança com a França, o Papa e Veneza contra o imperador espanhol. É tão ignorante que não sabia nem disso?
Sacudi a cabeça.
— Devia se importar em saber dessas coisas — disse ele rispidamente. — Ana sempre sabe. A nova aliança combaterá Carlos de Espanha e se começarem a vencer, Henrique se unirá a eles. A rainha é tia do inimigo de toda a Europa. Perdeu toda a sua influência sobre ele. É tia de um pária.
Sacudi a cabeça sem acreditar.
— Não faz muito tempo celebramos a batalha de Pavia, quando ela se tornou a salvadora da pátria.
Estalou os dedos.
— Já passou. Agora, é com você. Sua mãe disse que não está bem.
Hesitei. A impossibilidade de confiar em meu tio era evidente demais.
— Estou.
— Terá de estar de volta à cama do rei até o fim da semana, Maria. Fará isso ou nunca mais verá seus filhos. Entendeu?
Arfei levemente diante da crueldade da barganha, ele virou sua cara de falcão para mim e me encarou com seus olhos escuros.
— É isso ou nada.
— Não pode me proibir de ver meus filhos — sussurrei.
— Vai descobrir que posso.
— Tenho o favor do rei.
Sua mão bateu na mesa ecoando como um disparo de pistola.
— Não tem não! É isso o que estou dizendo! Não tem o favor do rei, e sem isso, não tem o meu. Volte para a cama dele e poderá fazer o que quiser. Poderá pedir que construa um quarto de criança para você, poderá embalar seus filhos no trono da Inglaterra. Poderá me banir! Mas fora da sua cama, você não é nada além de uma prostituta usada e tola, para quem ninguém liga.
Houve um silêncio total.
— Entendo — repliquei, tesa.
— Ótimo — afastou-se da lareira e baixou o gibão. — Vai me agradecer por isso no dia da sua coroação.
— Sim — eu disse. Senti minhas pernas cederem. — Posso me sentar?
— Não. Aprenda a ficar de pé.
Nessa noite, houve dança nas salas da rainha. O rei tinha levado seus músicos para tocar para ela. Ficou evidente para todos que, embora se sentasse ao seu lado, estava lá para se divertir observando suas damas de honra dançarem. Ana era uma delas. Estava usando um vestido azul-escuro, um vestido novo, com o capelo combinando. Usava o colar de pérolas com o “B” de ouro, como se quisesse alardear sua condição de mulher solteira.
— Dance — disse-me George, baixinho, sua boca no meu ouvido. — Estão todos esperando que dance.
— George, não me atrevo. Estou sangrando, posso desmaiar.
— Tem de se levantar e dançar — disse ele. Olhou para mim sorrindo. — Juro. Ou faz isso ou está perdida — estendeu a mão.
— Segure-me forte — eu disse. — Não deixe que eu caia.
— Vamos. Tem de ser assim.
Conduziu-me ao círculo de dançarinos. Percebi o olhar rápido de Ana na força com que George me segurava sob o cotovelo, e na palidez de meu rosto. No momento em que se virou de costas, percebi que teria ficado feliz se eu tivesse caído. Mas então, ela viu o olhar de nosso tio sobre nós, e o de nossa mãe, e deixou o lugar para mim no grupo de dançarinos, afastando-se com seu parceiro, Francis Weston. George, então, me conduziu em direção ao rei e sorri para Sua Majestade. Depois de duas danças, o rei se aproximou e disse a George:
— Vou tomar o seu lugar e dançar com a sua irmã, se ela não estiver cansada demais.
— Ela se sentirá honrada.
Sorri radiante.
— Eu dançaria a noite toda se Sua Majestade fosse o meu parceiro.
George fez uma reverência e se retirou. Eu o vi puxar Ana por seu vestido para uma parede da sala.
Eu e o rei nos demos as mãos, nos viramos de frente um para o outro e começamos a dançar. Os passos nos aproximavam, depois nos afastavam, sem seus olhos desviarem de mim.
Por baixo do meu corpete apertado, minha barriga doía, como se eu estivesse cheia de veneno. Sentia o suor escorrer entre meus seios enfaixados apertadamente. E mantinha o sorriso vivo sem alegria. Pensava que, se conseguisse estar a sós com Henrique, talvez o convencesse a me deixar ver meus filhos, em Hever, quando ele partisse no verão para caçar. Pensar no meu filho fez meus seios doerem, com o leite que tentava escorrer por baixo das faixas. Eu sorria como se estivesse cheia de alegria. Olhei para o outro lado do círculo de dançarinos, para o pai dos meus filhos, e sorri para ele, como se mal pudesse esperar para me deitar com ele por ele, e não pelo que pudesse fazer por mim.
Ana supervisionou meu banho naquela noite com uma eficiência maldosa, que fez com que quase me batesse com uma toalha fria e se queixasse da água suja de sangue.
— Deus meu, que nojo — disse ela. — Como ele vai suportar isso?
Envolvi-me com o lençol e penteei meu cabelo sozinha, antes que ela se lançasse sobre mim com o pente fino e o puxasse com o pretexto de me limpar.
— Talvez ele não me chame — eu disse. Estava tão cansada de dançar e ficar em pé por meia hora enquanto o rei fazia a despedida formal da rainha, que só pensava em cair na cama.
Bateram à porta.
— Ótimo — disse George, me vendo semidespida e lavada. — Ele quer você. Só precisa pôr um manto e vir.
— Pois então ele é um homem corajoso — disse Ana com despeito. — Vaza leite de seus seios, está sangrando, e por qualquer coisinha se desmancha em lágrimas.
George riu como um menino.
— Que Deus a abençoe, Ana Maria, você é a irmã mais doce que existe. Acho que ela acorda todo dia e agradece a Deus por ter alguém como você ao lado, para confortá-la e animá-la.
Ana teve a elegância de parecer magoada.
— E tenho uma coisa para o sangramento — disse ele. Tirou um chumaço de algodão do bolso. Olhei para aquilo desconfiada.
— O que é isso?
— Uma prostituta me ensinou. Empurra-se isso na vagina e o sangramento se interrompe por algum tempo.
Fiz uma careta.
— Não fica no caminho?
— Ela disse que não. Faça isso, Mariana. Tem de ir para a cama dele esta noite.
— Então, virem-se para lá — eu disse. George virou-se para a janela, eu fui para a cama e lutei com dedos inábeis para fazer o que tinha mandado.
— Deixe-me fazer — falou Ana, mal-humorada. — Só Deus sabe como faço qualquer coisa por você.
Enfiou o estofo dentro de mim, e o empurrou bem. Dei um gemido rouco de dor e George se virou um pouco.
— Não precisa assassinar a garota — disse ele com brandura.
— Tem de ficar bem lá dentro, não tem? — replicou Ana enrubescida e irritada. — Ela tem de ser tampada, não tem?
George ofereceu-me a mão. Cambaleei para fora da cama, tremendo de dor.
— Por Deus, Ana, se um dia tiver de deixar a corte, poderia se estabelecer como feiticeira — disse ele, brincando. — Já tem a delicadeza.
Ela fez cara feia para ele.
— Por que tão carrancuda? — perguntou ele, enquanto atava meu vestido e me calçava com os saltos altos vermelhos.
— Por nada — replicou ela.
— Oh! — disse ele, entendendo de súbito. — Agora entendo, Srta. Ana. Mandaram-na se retirar e deixá-lo para Maria. Você voltará a não ser nada além de uma dama da velha rainha, enquanto sua irmã ascende ao trono.
Olhou-o com raiva, a sua beleza eclipsada pela inveja.
— Tenho 19 anos — disse ela com amargura. — Metade da corte me acha a mulher mais bela do mundo. Todos sabem que sou a mais sagaz e mais elegante. O rei não tira os olhos de mim. Sir Thomas Wyatt foi para a França para fugir de mim. Mas a minha irmã, um ano mais nova, é casada e tem dois filhos do próprio rei. Quando será a minha vez? Quando vou me casar? Quem será o escolhido para mim?
Fez-se silêncio. George pôs a mão em sua face enrubescida.
— Oh, Ana Maria — replicou ele com ternura. — Não existe ninguém à sua altura. Nem o rei da França em pessoa ou o imperador da Espanha. Você é uma peça perfeita, completa. Seja paciente. Quando for a irmã da rainha da Inglaterra poderá escolher quem quiser. É melhor garantir que Maria ocupe uma posição em que possa lhe servir e, então, dispensar qualquer duque insignificante.
Ela deu um risinho a contragosto e ele baixou a cabeça e roçou sua face com seus lábios.
— É sim — garantiu ele. — Você é realmente perfeita. Nós todos adoramos você. Continue assim, pelo amor de Deus. Se alguém descobrir como você é realmente na privacidade, estaremos perdidos.
Ela recuou e teria lhe dado um tapa se ele não desviasse o rosto a tempo, rindo e fazendo sinal para eu ir com ele.
— Vamos, futura rainha! — disse ele. — Está pronta? Tudo preparado? — virou-se para Ana. — Ele pode ficar com o pau duro, não? Você não a apertou demais, como a quilha de um navio?
— É claro — replicou ela, com irritação. — Mas acho que vai lhe machucar como o diabo.
— Bem, não vamos nos preocupar com isso, vamos? — George sorriu para ela. — Afinal é a nossa fortuna que estamos mandando para a sua cama, não meramente uma garota. Vamos, criança! Tem trabalho a fazer por nós, os Bolena, e estamos contando com você!
Continuou falando enquanto atravessávamos o salão e subíamos a escadaria escura até as câmaras do rei. Ao entrarmos, o cardeal Wolsey estava com Henrique, e George me levou à janela, trouxe-me uma taça de vinho, e esperamos o rei e seu conselheiro de mais confiança encerrarem sua conversa em voz baixa.
— Provavelmente está contando as migalhas da cozinha — cochichou George, maliciosamente.
Sorri. As tentativas do cardeal de administrar a corte com menos desperdícios era uma fonte de permanente diversão para os cortesãos, inclusive minha família, cujo conforto e lucro vinham de explorar seu desregramento e extravagância.
Atrás de nós, o cardeal fez uma mesura e um sinal com a cabeça para seu pajem reunir seus papéis. Saudou-nos com a cabeça quando George me levou para me sentar à sua cadeira próxima à lareira.
— Boa noite. Majestade, senhora, sir — disse ele e saiu da sala.
— Bebe uma taça de vinho conosco, George? — perguntou o rei.
Lancei um rápido olhar de súplica a meu irmão.
— Obrigado, Majestade — replicou George e serviu vinho para o rei, para mim e para si mesmo. — Está trabalhando até tarde, sire?
Henrique agitou a mão negando.
— Sabe como é o cardeal — respondeu ele. — Incansável em seus deveres.
— Extremamente maçante — sugeriu George com impertinência.
O rei deu uma risada desleal.
— Extremamente maçante — concordou.
Mandou George embora às 11 horas e estávamos na cama à meia-noite. Acariciou-me delicadamente e elogiou meus seios cheios e a minha barriga redonda, e guardei suas palavras para que, quando minha mãe me criticasse por estar gorda e sem atrativos, eu pudesse responder que o rei gostava de mim dessa maneira. Mas não foi uma alegria para mim. De alguma maneira, quando me tiraram meus filhos, roubaram uma parte de mim também. Não podia amá-lo sabendo que não me daria ouvidos, sabendo que eu não tinha nem mesmo permissão para demonstrar minha tristeza. Era o pai dos meus filhos e, ainda assim, não se interessaria por eles até terem idade para serem usados como fichas do jogo da herança. Era meu amante havia anos e, ainda assim, tinha sido minha tarefa impedir que me conhecesse. Quando estava sobre mim, e se mexia dentro de mim, eu me sentia tão só quanto o navio com meu nome, solitário no mar.
Henrique adormeceu assim que se satisfez, respirando pesadamente, esparramado sobre mim, sua barba quente contra meu pescoço, seu hálito azedo em meu rosto. Eu podia ter gritado com seu peso e seu cheiro, mas fiquei quieta. Era uma Bolena. Não era nenhuma copeira vadia que não suportasse um pouco de desconforto. Fiquei quieta e pensei no luar sobre o Castelo de Hever, e desejei estar no meu pequeno quarto, no conforto da minha cama. Tive o cuidado de não pensar em meus filhos: a pequena Catarina em sua cama em Hever, ou Henrique em seu berço em Windsor. Não podia arriscar chorar quando estava na cama do rei. Tinha de estar preparada para lhe sorrir assim que ele despertasse.
Para a minha surpresa, mexeu-se às 2 da manhã.
— Acenda uma vela — disse ele. — Não consigo dormir.
Levantei-me da cama e senti doer cada osso do meu corpo do desconforto de ter ficado deitada imóvel sob seu peso. Aticei a lenha e acendi uma vela. Henrique sentou-se na cama e pôs as cobertas em volta de seus ombros nus. Cobri-me com meu manto e sentei-me do lado do fogo, esperando o seu próximo desejo.
Notei, com pavor, que ele não estava feliz.
— O que houve, milorde?
— Por que acha que a rainha não me deu um filho?
Fiquei tão surpresa com essa guinada de pensamento que não consegui responder rápido e suave como uma cortesã.
— Não sei. Lamento, sire. Agora é tarde demais para ela.
— Eu sei — replicou com impaciência. — Mas por que não aconteceu antes? Quando nos casamos eu era um jovem de 18 anos e ela tinha 23. Era linda, muito linda, não pode imaginar como. E eu era o príncipe mais belo da Europa.
— Ainda é — falei rapidamente.
Deu-me um sorriso breve, complacente.
— Não é Francis?
Neguei com a mão que fosse o rei francês.
— Nada em comparação ao senhor.
— Eu era viril — disse ele. — E potente. Todo mundo sabe disso. E ela engravidou logo. Sabe quanto tempo depois do casamento ela sentiu o bebê se mexer?
Neguei com a cabeça.
— Quatro meses! — disse ele. — Pense nisso. Eu a emprenhei no primeiro mês de casamento. Viu que potência?
Esperei.
— Natimorto — disse ele. — Era só uma menina. Natimorta em janeiro.
Desviei o olhar de seu rosto descontente para as chamas do fogo.
— Ela engravidou de novo — disse ele. — Dessa vez, um menino. Príncipe Henrique. Nós o batizamos, fizemos um torneio em sua homenagem. Nunca fui tão feliz em minha vida. Príncipe Henrique, meu nome, nome de meu pai. Meu filho. Nascido em 1° de janeiro. Em março, estava morto.
Esperei, me arrepiando ao pensar na possibilidade de meu Henrique, tirado de mim, morrer em três meses. O rei estava muito distante de mim, tinha retornado ao passado, a quando era jovem, não muito mais velho do que eu era agora.
— Outro estava a caminho antes de eu partir para combater a França — disse ele. — Abortado em outubro. Uma perda no outono. Tirou o brilho da vitória sobre os franceses. Tirou o brilho dela. Dois anos depois, na primavera, mais um natimorto, outro menino. Outro bebê que poderia ter sido o príncipe Henrique se tivesse sobrevivido. Mas não. Nenhum deles sobreviveu.
— O senhor tem a princesa Mary — lembrei-lhe em um sussurro.
— Ela veio em seguida — disse ele. — E tive certeza de que tínhamos rompido a cadeia. Achei... só Deus sabe como desejei isso, mas eu achava que tinha sido uma má sorte, ou alguma doença ou outra coisa no gênero que tivesse se esgotado. Que como tinha conseguido sustentar um bebê que sobrevivera, outros o seguiriam. Mas foram dois anos até ela conceber de novo depois de Maria. E foi uma menina, natimorta.
Respirei fundo, eu tinha ficado sem ar escutando essa história familiar. A relação terrível de mortes de bebês narrada por seu próprio pai foi tão dolorosa quanto a visão de sua mulher no genuflexório nomeando os perdidos em seu rosário.
— Mas eu sabia — disse Henrique levantando-se dos travesseiros e se virando para mim, sua expressão não mais de tristeza, mas cheia de raiva. — Eu sabia que era potente e fértil. Bessie Blount teve meu filho enquanto a rainha dava à luz outra criança morta. Bessie me deu um filho enquanto tudo o que tive da rainha foram pequenos cadáveres. Por que teve de ser assim? Por quê?
Sacudi a cabeça.
— Como posso saber, sire? É a vontade de Deus.
— Sim — disse ele com satisfação. — Exatamente. Tem razão, Maria. É o que é. É o que tem de ser.
— Deus não deveria ter-lhe desejado isso — eu disse, escolhendo as palavras com cuidado, estudando o seu perfil no escuro, ansiando pelo conselho de Ana. — De todos os príncipes do cristianismo, o senhor deveria ser seu favorito.
Virou-se para olhar para mim, seus olhos azuis com sua cor roubada pelo escuro.
— Então, o que poderia estar errado? — incitou-me.
Eu me vi arfando, a boca semiaberta como uma idiota no umbral de uma aldeia, tentando adivinhar o que ele queria que eu respondesse.
— A rainha?
Balançou a cabeça concordando.
— O meu casamento com ela foi amaldiçoado — disse ele simplesmente. — Deve ter sido isso. Amaldiçoado desde o começo.
Reprimi a minha negação instantânea.
— Ela era a mulher do meu irmão — disse ele. — Nunca deveria tê-la desposado. Fui avisado, mas eu era jovem e teimoso, e acreditei quando ela me disse que ele nunca a possuíra.
Eu estava prestes a lhe dizer que a rainha era incapaz de mentir. Mas pensei em nós, os Bolena, e em nossas ambições, e continuei calada.
— Não deveria ter-me casado com ela — disse ele. Repetiu isso uma, duas vezes e, então, seu rosto se enrugou como o de um menino chorando e estendeu os braços para mim e corri para o seu lado.
— Oh, Maria, viu como sou punido? Nossos dois filhos, e um deles um menino, e o Henrique de Bessie nasceram ilegítimos. Nenhum filho para me suceder no trono, a menos que tenha coragem e habilidade para lutar por seu direito. Ou a princesa Mary o assume e o mantém, e a Inglaterra terá de tolerar seu marido, seja lá quem for que eu consiga para ela. Oh, Deus! Vê como fui punido pelo pecado da mulher espanhola! Vê como fui traído! E por ela!
Senti lágrimas umedecerem meu pescoço, e o abracei e embalei como se fosse meu bebê.
— Ainda tem tempo, Henrique — sussurrei. — É jovem. Potente e viril. Se a rainha libertá-lo, ainda poderá ter um herdeiro.
Ele estava inconsolável. Soluçava feito uma criança e o embalei, sem tentar garantir-lhe nada, apenas acariciando-o, afagando-o, sussurrando “pronto, pronto, está tudo bem”, até suas lágrimas se exaurirem e ele adormecer, em meus braços, com as pestanas escuras por causa das lágrimas e sua boca de botão caída.
De novo, não dormi. Com sua cabeça pesando no meu colo, e meus braços sustentando-o ao redor de seus ombros, passei a noite me controlando para não adormecer. Dessa vez, minha mente trabalhou. Pela primeira vez, ouvi uma ameaça à rainha da boca de alguém que não era da minha família. Foi dita pelo rei, e isso era muito mais grave para ela do que qualquer outra coisa que tivesse acontecido antes.
Henrique espreguiçou-se antes do amanhecer, e me deitou com ele. Possuiu-me rapidamente, sem nem mesmo abrir os olhos, e voltou a dormitar. Acordou quando o camareiro entrou com a jarra de água quente para ele se lavar, e o pajem veio atiçar o fogo. Abri o cortinado da cama, vesti o manto e calcei meus sapatos vermelhos.
— Caça comigo hoje? — perguntou Henrique.
Aprumei o corpo, teso por ter segurado seu peso a noite toda, e sorri, como se não estivesse completamente exausta.
— Oh, sim! — repliquei, deleitada.
— Depois da missa — disse ele, me dispensando.
Saí. George estava me esperando na antecâmara, leal como sempre, balançando uma caixinha dourada cheia de ervas, e aspirando-a. Olhou minha cara intrigado quando surgi do quarto do rei.
— Problema? — perguntou.
— Não para nós.
— Ah, ótimo. Para quem? — perguntou animadamente, me dando o braço e me conduzindo pela escadaria, atravessando o salão.
— Vai guardar segredo?
Fez uma cara de dúvida.
— Conte e deixe que julgue por mim mesmo.
— Acha que sou completamente idiota? — perguntei irritada.
Deu-me seu sorriso mais sedutor.
— Às vezes. Agora, conte. Qual é o segredo?
— Henrique — repliquei — chorou à noite por achar que foi amaldiçoado por Deus a não ter filhos homens.
George se deteve.
— Amaldiçoado? Ele disse amaldiçoado?
Confirmei balançando a cabeça.
— Acha que Deus não lhe deu filhos porque se casou com a mulher de seu irmão.
Uma expressão de puro deleite iluminou o rosto de meu irmão.
— Venha — disse ele. — Venha já.
Descemos a segunda escadaria até a parte antiga do palácio.
— Não estou vestida.
— Não importa. Vamos ver tio Howard.
— Por quê?
— Porque o rei finalmente chegou aonde queríamos. Finalmente. Finalmente.
— Queremos que ache que foi amaldiçoado?
— Meu Deus, sim.
Parei e quis puxar meu braço, mas ele me segurou firme e me forçou a andar.
— Por quê?
— É tola como pensei — disse ele simplesmente, e bateu na porta de meu tio.
— É melhor que seja importante — disse meu tio em um tom ameaçador antes de a porta nos revelar. — Entrem.
George me empurrou para dentro e fechou a porta atrás de nós.
Meu tio estava sentado diante da lareira em sua câmara privada, uma caneca de ale do lado, papéis à sua frente, usando seu roupão forrado de pele. Ninguém mais estava circulando por ali. George relanceou os olhos em volta.
— É seguro falar?
Meu tio confirmou com a cabeça e esperou.
— Estou trazendo-a da cama do rei — disse ele. — O rei disse-lhe que não teve filhos por vontade de Deus. Diz que foi amaldiçoado.
O olhar inflexível de meu tio voltou-se para o meu rosto.
— Ele disse isso? Disse amaldiçoado?
Hesitei. Henrique tinha chorado em meus braços, tinha-me segurado como se eu fosse a única mulher no mundo que se compadecesse de seu sofrimento. Parte da sensação de traição deve ter-se manifestado em meu rosto porque meu tio riu secamente, chutou uma lenha para o fogo, e fez sinal para George me sentar no banco ao lado do fogo.
— Diga-me — falou com uma ameaça sutil. — Quer ver seus filhos em Hever, nesse verão? Diga-me se quer ver seu filho antes que comece a andar.
Assenti com a cabeça, tomei fôlego, e contei, palavra por palavra o que o rei me tinha dito no silêncio e privacidade de sua cama, o que eu tinha respondido, e como ele tinha chorado e adormecido. A face de meu tio parecia uma máscara mortuária de mármore. Não consegui interpretar nada. Então, ele sorriu.
— Pode escrever à ama de leite e mandá-la levar seu bebê para Hever. Vai visitá-lo daqui a um mês — disse ele. — Saiu-se muito bem, Maria.
Hesitei, mas ele fez sinal para que eu saísse.
— Pode ir. Ah, uma coisa. Vai caçar com Sua Majestade hoje?
— Sim — respondi.
— Se ele falar mais sobre isso, hoje ou qualquer outro dia, aja como agiu. Simplesmente continue assim.
Hesitei.
— Como?
— Encantadoramente idiota — disse ele. — Não o estimule. Temos eruditos para aconselhá-lo em teologia e advogados que podem aconselhá-lo sobre o divórcio. Você simplesmente continue sendo docemente idiota. Você faz isso muito bem.
Percebeu que me ofendi e sorriu para George.
— Ela é de longe a mais doce das duas — disse ele. — Você tinha razão. Ela é o degrau perfeito para a subida da nossa escada.
George assentiu com a cabeça e me levou rápido para fora do quarto.
Eu tremia com um misto de aflição por minha deslealdade e ódio por meu tio.
— Um degrau? — falei com veemência.
George me ofereceu seu braço, que aceitei, e apertou meus dedos trêmulos.
— É claro — replicou gentilmente. — É tarefa do nosso tio pensar na família sempre ascendendo. Todos nós não passamos de um degrau no caminho.
Quis me afastar, mas ele me segurou firme.
— Não quero ser um degrau! — exclamei. — Se eu pudesse ser algo, seria uma pequena proprietária de uma fazenda em Kent, com meus dois filhos dormindo na minha cama à noite, tendo como marido um homem bom que me amasse.
No pátio sombroso, George sorriu para mim, virou meu rosto para ele e beijou-me levemente nos lábios.
— Nós todos seríamos — replicou alegremente insincero. — No fundo, todos somos pessoas simples. Mas alguns são chamados para grandes feitos, e você é o Bolena mais importante na corte. Sinta-se feliz, Maria. Pense em como essa notícia vai deixar Ana chateada.
Cavalguei nesse dia com o rei em uma longa caçada, que nos levou por milhas ao longo do rio, perseguindo uma corça até os cães, por fim, a derrubarem na água. Eu estava quase chorando de exaustão quando retornamos ao palácio, sem tempo para descansar, já que, ao entardecer, haveria um piquenique à margem do rio, com músicos nos barcos e um quadro vivo das damas da rainha. O rei, a rainha, suas damas e eu observamos, da margem, as três barcaças subirem devagar o rio, uma bela canção trazida pela correnteza. Ana estava em uma delas, espalhando pétalas de rosas na água, posicionada na frente, como uma figura de proa, e percebi que Henrique não tirava os olhos dela. Havia outras damas no barco e que fizeram charme com suas saias ao serem ajudadas a desembarcar. Mas somente Ana tinha aquela maneira de andar deliciosamente consciente. Movia-se como se todos os homens do mundo estivessem olhando para ela. Andava como se fosse irresistível. E tal era o poder de sua convicção que todos os homens da corte a olhavam realmente, e a achavam irresistível. Quando a última nota da música ressoou e os cavalheiros que estavam na barcaça rival saltaram para a margem, houve uma certa precipitação na sua direção. Ana recuou na prancha e riu como se estivesse surpresa com o estouvamento dos rapazes da corte, e vi o sorriso nos lábios de Henrique ao escutar o arpejo de sua risada. Ana jogou a cabeça e afastou-se de todos eles, como se nenhum fosse bom o bastante para ela, e dirigiu-se para a rainha e o rei, e fez uma mesura.
— O quadro agradou a Suas Majestades? — perguntou ela, como se fosse uma oferenda sua e não uma dança ordenada pela rainha para entreter o rei.
— Muito bonito — disse a rainha sem entusiasmo.
Ana lançou um olhar ardente ao rei por baixo das pestanas semicerradas. Então, fez outra mesura, e foi sentar-se ao meu lado.
Henrique retomou sua conversa com sua mulher.
— Vou visitar a princesa Mary quando viajar no verão — disse ele.
A rainha ocultou a sua surpresa.
— Onde a encontraremos?
— Eu disse que eu vou vê-la — replicou ele friamente. — E ela irá aonde eu mandar.
Ela não recuou.
— Gostaria de ver a minha filha — insistiu. — Já faz muitos meses desde a última vez em que estive com ela.
— Talvez — disse Henrique — ela possa ir ao seu encontro onde você estiver.
A rainha concordou balançando a cabeça, percebendo que todos os membros da corte ouviam que ela não acompanharia o rei nesse verão.
— Obrigada — disse a rainha com dignidade. — O senhor é muito bom. Ela escreveu contando que está fazendo progresso no grego e no latim. Espero que a julgue uma princesa perfeita.
— O grego e o latim terão pouca utilidade para ela fazer filhos homens e herdeiros — respondeu o rei bruscamente. — Teria feito melhor se não tivesse se tornado uma erudita encurvada. O principal dever de uma princesa é ser mãe de um rei. Como bem sabe, senhora.
A filha de Isabella de Espanha, uma das mulheres mais inteligentes e instruídas da Europa, cruzou as mãos no colo, e olhou para os ricos anéis em seus dedos.
— Sim, eu sei.
Henrique ficou em pé com um pulo e bateu palmas. Os músicos se interromperam imediatamente e aguardaram suas ordens.
— Toquem uma contradança! — mandou. — Vamos dançar antes do jantar.
Logo iniciaram uma jiga contagiante e os cortesãos tomaram seus lugares. Henrique veio na minha direção, levantei-me para dançar com ele, mas simplesmente me sorriu e estendeu a mão a Ana. De olhos baixos, ela seguiu-o sem nem mesmo me relancear os olhos. Arrogantemente seu vestido roçou nos meus joelhos, como se eu devesse ter-me afastado para deixá-la passar. Então, ela se foi, e quando ergui os olhos, a rainha me olhava. Ela me olhava sem demonstrar nada, como eu olharia a rivalidade de pombos esvoaçando no pombal. Como se isso não importasse. Todos seriam comidos a seu tempo.
Eu estava ansiosa para a corte partir na viagem de verão, para eu poder ir a Hever ficar com meus filhos, mas nos atrasamos, pois o cardeal e o rei não chegavam a um acordo sobre aonde a corte deveria ir primeiro. O cardeal, em sérias negociações com os novos aliados da Inglaterra, França, Veneza e o Papa, contra a Espanha, queria que a corte ficasse perto de Londres, de modo que pudesse alcançar logo o rei se as conversações acabassem em guerra.
Mas havia praga na cidade e em todas as cidades portuárias, e Henrique tinha pavor de doenças. Queria se afastar para a região rural onde a água era doce e a multidão de suplicantes e mendigos, na desordem da cidade, não o seguiria. O cardeal argumentava o melhor que podia, mas Henrique, fugindo da morte e da doença, era inflexível. Iria até Gales para ver a princesa Mary, mas não ficaria perto de Londres.
Tive permissão para ir a qualquer lugar sem uma autorização expressa do rei e a companhia de George. Encontrei os dois jogando tênis sob o sol quente em uma quadra cercada. Enquanto eu assistia, George bateu bem a bola, que ricocheteou no telhado suspenso com um estrépito e voltou para a quadra, mas Henrique já estava preparado e a rebateu com força para um ângulo.
George reconheceu a jogada lançando a mão para cima, como um espadachim, e sacou de novo. Ana estava sentada do lado da quadra, à sombra, com algumas outras damas de honra, todas com a postura e quietas como estatuetas em uma fonte, todas elegantemente vestidas, todas esperando o favor do rei. Trinquei os dentes, reprimindo o desejo instantâneo de me sentar ao seu lado, de ofuscá-la. Em vez disso, permaneci nos fundos, esperando o rei terminar a partida.
Ele venceu, é claro. George chegou ao ponto decisivo e, então, perdeu, convincentemente. Todas as damas aplaudiram, o rei virou-se, corado e sorrindo, e me viu.
— Espero que não tenha apostado no seu irmão.
— Eu nunca apostaria contra Sua Majestade em qualquer jogo que exige habilidades — eu disse. — Sou prudente demais com a minha pequena fortuna.
Sorriu, pegou um lenço com seu pajem e enxugou o rosto rosado.
— Vim lhe pedir um favor — eu disse rapidamente, antes que alguém nos interrompesse. — Quero ver nosso filho e nossa filha, antes de a corte se mudar.
— Só Deus sabe aonde iremos — disse Henrique, o cenho franzido. — Wolsey não para de dizer...
— Se eu pudesse partir hoje, estaria de volta em uma semana — falei com calma. — E então viajaria com o senhor, aonde decidir ir.
Não queria que eu o deixasse. A sua boca perdeu o sorriso. Lancei um olhar rápido a George, pedindo que me ajudasse.
— E voltaria para nos dizer como o bebê está passando! — disse George. — E se é tão belo e forte quanto seu pai. A ama disse se é louro?
— Dourado como um Tudor — repliquei rapidamente. — Mas ninguém poderá me dizer que é mais belo do que seu pai.
Tínhamos pegado Henrique no limiar de seu humor, antes de ficar mal-humorado. O sorriso retornou.
— Ah, você é uma bajuladora, Maria.
— Gostaria muito de vê-lo bem cuidado antes de partir com Sua Majestade — eu disse.
— Oh, está bem — disse ele, de modo negligente. Seus olhos passaram de mim para Ana. — Vou descobrir algo o que fazer.
Todas as damas ao redor dela sorriram ao verem-no olhar na sua direção. As mais audaciosas jogaram a cabeça e viraram seus ombros, e coquetearam como pôneis treinados em uma arena. Somente Ana relanceou os olhos para ele e depois os desviou, como se a sua atenção fosse indiferente. Olhou ao longe e sorriu para Francis, e a virada de sua cabeça foi tão atraente quanto uma promessa sussurrada por uma mulher. Em um instante, Francis estava ao seu lado, pegando sua mão e a beijando.
Percebi a cara do rei se fechar e admirei o atrevimento de Ana. O rei pôs a toalha em volta do pescoço e abriu a porta da quadra. Imediatamente, todas as damas, surpresas, se puseram de pé, e fizeram uma reverência. Ana relanceou os olhos em volta, retirou, vagarosamente, sua mão da de Francis, e fez uma leve mesura.
— Chegou a assistir a alguma parte do jogo? — perguntou o rei abruptamente.
Ana ergueu o corpo e sorriu para ele como se a sua desaprovação não significasse nada.
— Assisti à metade — replicou ela negligentemente.
A cara dele se fechou.
— Metade, senhora?
— Por que eu assistiria a seu adversário, Majestade? Quando é Sua Majestade que está na quadra?
Houve um segundo de silêncio e, então, ele riu alto, e a corte, de maneira bajuladora, riu junto, como se não tivessem ficado sem ar diante de sua impertinência um segundo antes. Ana deu seu sorriso charlatão, fascinante.
— O jogo, então, não lhe fez sentido nenhum — disse Henrique. — Já que só assistiu à metade da partida.
— Vi todo o sol e nada da sombra — respondeu. — O dia e não a noite.
— Está me chamando de sol? — perguntou.
Ela lhe sorriu.
— Deslumbrante — sussurrou, e a palavra foi a mais íntima das lisonjas. — Deslumbrante.
— Chama-me de deslumbrante? — perguntou ele.
Ela abriu bem os olhos como se a sua incompreensão a surpreendesse.
— O sol, Majestade. O sol está deslumbrante hoje.