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Series & Trilogias Literarias
A IRMÃ DE ANA BOLENA / Parte II
Hever era uma pequena ilha cinza com torres no meio da exuberância do verde dos campos de Kent. Entramos no parque através de um portão negligentemente aberto no extremo leste e seguimos até o castelo com o sol se pondo atrás. Os telhados vermelhos desordenados flamejavam na luz dourada, a pedra cinza dos muros refletia nas águas quietas do fosso, parecendo dois castelos, um flutuando sobre o outro, como um mundo de sonhos da minha casa. Havia dois cisnes no fosso, bicos mordiscando um o outro, os pescoços arqueados formando um coração. Suas imagens refletiam quatro cisnes, o castelo tremeluzindo na água à sua volta.
— Bonito — disse George, impacientemente. — Dá até vontade de ficar aqui o tempo todo.
Ladeamos o fosso e atravessamos a ponte plana de tábuas sobre o rio. O bico de uma narceja precipitou-se dos juncos e seu ruído fez meu cavalo cansado se retrair. Tinham cortado o feno nos prados nas duas margens e o cheiro doce do verde pairava no ar do entardecer. Então escutamos um grito e dois homens do meu pai surgiram da guarita e se posicionaram na ponte levadiça, protegendo os olhos da luminosidade.
— São o jovem lorde e milady Carey — um dos soldados exclamou. Um garoto, atrás, virou-se e correu levando a notícia ao pátio. Reduzimos a marcha dos cavalos quando o sino tocou e os guardas surgiram às pressas, e os criados se amontoaram no pátio interno.
George lançou-me um olhar infeliz diante da ineficiência de nossos soldados, e estacou seu cavalo, de modo que eu pudesse atravessar, à sua frente, a ponte e a porta levadiça na entrada em arco. Todos corriam para o pátio, dos garotos que giravam o espeto na cozinha, maltrapilhos e sujos, à governanta, que estava abrindo as portas que davam para o salão e chamando com rispidez um criado que estava lá.
— Milorde, milady Carey — disse ela, chegando à frente. Seu auxiliar adiantou-se com ela, e os dois fizeram uma reverência. Um cavalariço pegou minhas rédeas e o capitão da guarda me ajudou a desmontar.
— Como está o meu bebê? — perguntei à governanta.
Ela apontou com a cabeça para a escadaria em um ângulo do pátio.
— Ali está ele.
Virei-me rápido, a ama de leite o trazia para o sol. Antes de mais nada tive de absorver seu crescimento. Eu o tinha visto pela última vez quando tinha apenas um mês de idade, e nascera pequeno. Agora, via suas bochechas redondas e rosadas. A ama mantinha a mão em concha sobre sua cabecinha loura, e senti uma pontada de ciúmes tão funda que quase passei mal ao ver sua grande mão rude e vermelha na cabeça do filho do rei, do meu filho. Ele estava enfaixado apertado, enrolado em bandagens, atado em sua prancha. Estendi os braços e a ama passou-o para mim, como uma travessa de comida.
— Ele está bem — disse ela, defensivamente.
Ergui-o para poder ver seu rosto. Suas mãozinhas e braços estavam atados do lado de seu corpinho, as faixas imobilizando até mesmo sua cabecinha. Somente seus olhos se moviam e me fixaram, examinando de minha boca aos meus olhos, depois o céu atrás de mim e os corvos girando ao redor da torre acima da minha cabeça.
— Ele é adorável — sussurrei.
George, desmontando preguiçosamente, jogou as rédeas para um cavalariço e olhou por cima do meu ombro. Imediatamente, os olhos azul-escuros se moveram para inspecionar o novo rosto.
— Parece-se com seu tio — disse George com satisfação. — Ótimo, marque bem minha cara, garoto. Podemos fazer a fortuna um do outro. Não é claramente um Tudor, Maria? É a cara do rei. Você foi perfeita.
Sorri olhando para as bochechas rosadas e o cabelo dourado, os fios lustrosos que escapavam da touca de renda, e os olhos azul-escuros que se fixavam ora em George, ora em mim, com uma confiança tranquila.
— É sim, não é?
— É estranho — disse George, baixando a voz, de modo que só eu escutasse. — Pense só nisso: podemos jurar lealdade a esta coisinha. Ele poderá, um dia, ser rei da Inglaterra. Poderá ser o homem mais importante da Europa, e você e eu dependermos totalmente dele.
Apertei minha mão na prancha e senti o corpinho quente atado forte a ela.
— Deus, por favor, mantenha-o seguro, qualquer que seja seu futuro — sussurrei.
— Mantenha-nos, a todos nós, em segurança — retrucou George. — Pois não será tarefa fácil colocá-lo no trono.
Pegou o bebê do meu colo e o deu à ama, como se estivesse impaciente para especular, e me conduziu à porta da frente. Estaquei. Lá estava uma menininha de 2 anos olhando para mim. Uma mulher segurava sua mãozinha com firmeza. Catarina, minha filha, olhava para mim como se eu fosse uma estranha.
Caí de joelhos sobre o pavimento de pedras do pátio.
— Catarina, sabe quem eu sou?
Seu rostinho pálido estremeceu, mas não se franziu.
— Minha mãe.
— Sim — eu disse. — Eu quis vir antes, mas não me deixaram. Senti saudades suas, minha filha. Queria tê-la comigo — ergueu os olhos para a criada que segurava a sua mãozinha. Um aperto em sua mão foi o sinal para que respondesse.
— Sim, mãe — replicou baixinho.
— Não se lembra de mim? — perguntei. O sofrimento na minha voz era evidente a qualquer um que a ouvisse. Catarina ergueu os olhos para a criada que segurava a sua mão, voltou a olhar para mim. Seu lábio tremeu, seu rosto se franziu, e irrompeu em lágrimas.
— Oh, Deus — disse George, aborrecido. Sua mão firme sob meu cotovelo forçou-me a levantar e a entrar na casa. Em seguida, empurrou-me para dentro do salão. O fogo estava aceso, apesar de ser meados de verão, e a grande poltrona diante da lareira estava ocupada por vovó Bolena.
— Como vai? — disse George sucintamente. Virou-se para a governanta, que havia seguido atrás de nós. — Saia. Vá tratar de seu serviço — mandou abruptamente.
— O que há com Maria? — perguntou minha avó.
— Calor, e sol — improvisou George. — E a cavalgada. Depois do parto.
— Só isso? — perguntou ela, acremente.
George me empurrou para uma cadeira, e acomodou-se ele também.
— Sede — replicou ele, intencionalmente. — Acho que ela está louca por um copo de vinho. Eu pelo menos estou, senhora.
A velha senhora sorriu radiante com a sua aspereza e indicou o pesado aparador atrás dela. George se levantou e serviu um copo para mim e outro para si próprio. Sorveu o seu de uma vez só e se serviu de novo.
Esfreguei meu rosto com as costas da mão e olhei em volta.
— Quero que Catarina seja trazida agora — eu disse.
— Esqueça — aconselhou-me George.
— Ela não me reconhece. Parece que se esqueceu de mim completamente.
— Por isso eu disse que esqueça.
Eu teria argumentado, mas ele insistiu.
— Ela deve ter sido tirada de seu quarto quando ouviram o sino, metida na sua melhor roupa e levada para baixo para receber você educadamente. Pobre criança, devia estar morrendo de medo. Nossa, Maria, não se lembra da confusão quando nos avisavam que papai e mamãe estavam chegando? Era pior do que ir à corte pela primeira vez. Você costumava vomitar de terror e Ana ficava pela casa vestida de sua melhor roupa dias seguidos. É sempre aterrorizador quando a sua mãe vem vê-la. Dê-lhe tempo para voltar a se sentir à vontade, e então, vá a seu quarto e converse com ela.
Assenti, reconhecendo seu bom-senso, e voltei a sentar-me.
— Está tudo bem na corte? — perguntou a velha senhora. — Como está o meu filho? E a sua mãe?
— Bem — respondeu George brevemente. — Papai ficou em Veneza no mês passado, trabalhando para a aliança. Assunto de Wolsey. Mamãe está bem, em serviço da rainha.
— A rainha está bem?
— Não vai viajar com o rei neste ano. Muito depreciada na corte.
A velha senhora balançou a cabeça, ao ouvir a história familiar de uma mulher caminhando excessivamente devagar para a morte. E o rei? Maria ainda é a sua favorita?
— Maria ou Ana — replicou George sorrindo. — Ele parece ter um fraco pelas garotas Bolena. Maria ainda é a favorita.
Minha avó voltou seu olhar vivo e arguto para mim.
— Você é uma boa garota — disse ela de maneira aprovadora. — Quanto tempo vai ficar aqui?
— Uma semana — respondi. — Foi tudo que me permitiram.
— E você? — perguntou, virando-se para George.
— Acho que ficarei alguns dias — disse ele sem dar muita importância. — Tinha-me esquecido de como Hever é bonito no verão. Devo ficar e levar Maria de volta.
— Vou passar o dia inteiro com as crianças — avisei.
— Tudo bem — replicou sorrindo. — Não vou precisar de companhia. Poderei escrever. Acho que me tornarei poeta.
Segui o conselho de George e só me aproximei de Catarina depois de subir a pequena escada em espiral até meu pequeno quarto, lavar o rosto com a água da bacia e olhar pelas janelas o parque escuro ao redor do castelo. Vi o piscar do olho de uma coruja e ouvi seu pio interrogador, e em seguida, a resposta de seu macho na floresta. Ouvi um peixe saltar no fosso, e vi as estrelas começarem a salpicar de pontos prateados o céu cinza-azulado. Então, e só então, fui ao quarto de minha filha.
Ela estava sentada diante do fogo, uma tigela de leite e pão no seu colo, a colher a caminho da boca, escutando a conversa da ama-seca com outra criada. Ao me verem, ficaram de pé com um pulo, e Catarina teria derrubado a tigela, se a babá não tivesse sido rápida em tirá-la dela. A outra criada desapareceu com um esvoaçar de seu vestido. A ama-seca sentou-se rapidamente ao lado de Catarina e fingiu estar observando minha filha comer e tomando cuidado para que não se aproximasse demais do fogo.
Sentei-me sem falar, até a confusão assentar e eu poder ver Catarina tomar a última colher de sua sopa. A ama-seca tirou a tigela de suas mãos e fiz-lhe um sinal com a cabeça para que saísse do quarto. Ela acatou sem dizer uma palavra.
Coloquei a mão dentro do meu bolso.
— Trouxe um presente para você — eu disse. Era uma glande em um cordão, esculpida com uma cara. A cúpula da glande formava o chapéu. Ela sorriu imediatamente e estendeu a mão para pegá-la. A palma de sua mão era rechonchuda, ainda como a de um bebê, os dedos pequenininhos. Pus a glande em sua mão e senti a maciez da pele.
— Vai lhe dar um nome? — perguntei.
Sua testa franziu ligeiramente. O cabelo castanho dourado tinha sido afastado do rosto e semioculto por sua touca de dormir. Toquei delicadamente na fita da touca, depois nos cachinhos sob a aba. Ela não se retraiu com o meu toque, completamente absorta pela glande.
— Como vou chamá-la? — seus olhos azuis reluziram para mim.
— Vem do carvalho. É uma glande — eu disse. — É a árvore que o rei quer que todos plantemos. Dá uma madeira forte para seus navios.
— Vou chamá-la de Carvalhinho — disse ela decidida. Claramente não tinha nenhum interesse no rei ou em seus navios. Moveu o cordão e a glande se sacudiu. — Está dançando — disse com satisfação.
— Quer se sentar no meu colo com Carvalhinho e ouvir uma história sobre a festa em que ele foi e dançou com todas as outras glandes? — perguntei.
Hesitou, por um momento.
— As avelãs também foram — acrescentei tentadoramente. — E as castanhas. Foi um grande baile na mata. Acho que as amoras estavam lá.
Foi o bastante. Levantou-se do banco, veio até mim, e a coloquei no colo. Estava mais pesada do que eu me lembrava: uma criança de carne e osso, não uma criança imaginada em que eu pensava toda noite. Senti seu calor e força. Apoiei a face em sua touca quente e senti os cachos roçarem meu nariz. Aspirei o perfume doce de sua pele, aquele maravilhoso perfume de bebê.
— Conte — ordenou e se acomodou para ouvir. E comecei a história da Folia na Mata.
Passamos uma semana maravilhosa: George, os bebês e eu. Caminhamos ao sol e fizemos piqueniques nas campinas onde a relva macia recomeçava a crescer pelos restolhos. Quando estávamos fora da vista do castelo, eu retirava as faixas de Henrique e deixava-o dar chutes no ar quente e se mover livremente. Jogava bola com Catarina, e brincava de esconde-esconde, uma brincadeira nada desafiadora em uma campina aberta, mas ela ainda estava na idade de acreditar que se se pusesse debaixo de um xale não seria vista. E George e Catarina apostavam corridas, nas quais ele cada vez mais ficava vergonhosamente em desvantagem. Primeiro teve de pular, depois, teve de engatinhar, e no fim da semana, só conseguia girar sobre as mãos, comigo segurando seus pés, para que ela pudesse ganhar, correndo sobre seus pezinhos instáveis.
Na noite em que teria de retornar à corte, não consegui jantar, de tanta tristeza. Não consegui lhe dizer que tinha de partir. Fugi na madrugada, feito um ladrão, e mandei a ama-seca lhe dizer que sua mãe retornaria assim que pudesse, que fosse uma boa menina e que cuidasse de Carvalhinho.
Cavalguei até o meio-dia completamente infeliz, e nem notei que chovera desde que havíamos partido até George dizer:
— Pelo amor de Deus, vamos sair desta chuva e comer alguma coisa.
Tinha parado diante de um mosteiro cujo sino começava a bater a nona. Desmontou e me ajudou a descer da sela.
— Chorou o caminho todo?
— Acho que sim — repliquei. — Não suporto pensar que...
— Então, não pense — disse ele rapidamente. Recuou enquanto um de nossos homens tocava o sino e nos anunciava ao porteiro. Quando o grande portão se abriu, George me introduziu no pátio, e subimos a escada para o refeitório. Tínhamos chegado cedo, havia somente dois monges colocando vasilhas e canecas de estanho para ale ou vinho sobre a mesa.
George estalou os dedos para um deles e mandou-o nos trazer correndo o vinho. Então, pressionou o copo de metal frio na minha mão.
— Beba — disse com firmeza. — E pare de chorar. Tem de estar na corte hoje à noite, e não pode chegar com a cara branca e os olhos vermelhos. Nunca mais a deixarão ir, se isso a enfear. Você não é uma mulher que pode fazer o que quer.
— Mostre-me uma única mulher no mundo que pode fazer o que quer — eu disse, com veemência e ressentimento. Ele riu.
— Não, não conheço nenhuma. Como fico feliz por eu e o bebê Henrique sermos homens.
Só chegamos a Windsor à noitinha e encontramos a corte se preparando para partir. Nem mesmo Ana teve tempo para me inspecionar. Estava excitada arrumando suas coisas e vi dois vestidos novos em seu baú.
— O que é isso?
— Presente do rei — disse ela sem rodeios.
Balancei a cabeça, sem falar nada. Ela me deu um sorriso de lado, depois, guardou os capelos combinando. Vi, como sem dúvida ela queria que eu visse, que um deles era coberto de pequenas pérolas. Fui até a janela e a observei colocar seu manto em cima de tudo e chamar a sua criada para fechar o baú. Quando a garota veio e o carregador levou tudo, Ana virou-se para mim de maneira desafiadora.
— E então?
— O que está acontecendo? — perguntei. — Vestidos?
Virou-se, as mãos cruzadas nas costas, acanhada como uma menina.
— Ele está me cortejando — replicou. — Abertamente.
— Ana, ele é meu amante.
Encolheu os ombros preguiçosamente.
— Você não estava aqui, estava? Resolveu passear em Hever, quis seus filhos mais do que a ele. Você não foi exatamente... — fez uma pausa — quente.
— E você é?
Sorriu, como se tivesse ouvido um gracejo.
— Há um certo calor no ar, neste verão.
Cerrei os dentes.
— Supostamente, você deveria mantê-lo interessado em mim e não o contrário.
Deu de ombros, novamente.
— Ele é homem. É mais fácil atrair seu interesse do que afastá-lo.
— Estou curiosa a respeito de uma única coisa — eu disse. Se palavras fossem facas, eu as teria lançado em sua cara sorridente, confiante. — Claramente, tem a sua atenção, já que ganhou esses presentes. Você ascendeu na corte. Você é a favorita.
Assentiu com a cabeça, sua satisfação pairando como o perfume quente de um gato acariciado.
— Claramente você faz isso apesar de ele ser reconhecidamente o meu amante.
— Mandaram-me fazer isso — replicou com insolência.
— Não mandaram que me suplantasse — eu disse rispidamente.
Ela deu de ombros, bancando a inocente.
— Não posso evitar que me deseje — disse ela com a voz meiga. — A corte está cheia de homens que me desejam. Eu os encorajo? Não.
— É comigo que está falando, não se esqueça — eu disse inflexivelmente. — Não com um desses seus tolos. Eu sei que encoraja todo mundo.
Deu-me o mesmo sorriso meigo.
— O que está querendo, Ana? Ser a sua amante? Quer tomar o meu lugar?
Imediatamente a alegria presunçosa em seu rosto foi substituída por uma introspecção.
— Sim, acho que sim. Mas é um risco.
— Risco?
— Se eu deixar que me possua, as chances são de que perca o interesse. É difícil segurá-lo.
— Não acho — marquei um ponto.
— Você não conseguiu nada. Não casou Bessy Blount com ninguém quando a deixou. Ela tampouco ganhou nada.
Mordi a língua de tal modo que senti o gosto de sangue na boca.
— Se é o que pensa, Ana.
— Acho que vou resistir. Até ele ver que não sou nenhuma Bessie Blount, e nenhuma Maria Bolena. Algo muito maior. Resistir até ele ver que tem de me fazer uma oferta, uma oferta muito grande.
Fiz uma pausa.
— Nunca conseguirá Henry Percy de volta, se é o que está pensando — avisei. — Ele não lhe dará Percy por seu favor.
Atravessou a sala com dois passos e agarrou meus pulsos, enfiando suas unhas neles.
— Nunca mais mencione o seu nome — sussurrou. — Nunca mais!
Soltei minhas mãos e a agarrei pelos ombros.
— Vou lhe dizer o que quiser — jurei. — Assim como você me diz o que quer. Você foi amaldiçoada, Ana, perdeu seu único amor e agora quer tudo o que não é seu. Quer qualquer coisa que seja minha. Sempre quis tudo que fosse meu.
Soltou-se de mim e abriu a porta.
— Deixe-me em paz — ordenou.
— Pode ir — eu a corrigi. — Este é o meu quarto, não se esqueça.
Por um momento, nos encaramos com fúria, obstinadas como gatos no muro do estábulo, cheias de ressentimentos e de algo mais sombrio, o antigo sentimento entre irmãs de que só há realmente espaço no mundo para uma garota. A sensação de que toda luta seria mortal.
Eu me afastei primeiro.
— Deveríamos estar do mesmo lado.
Bateu a porta.
— É o nosso quarto — estipulou.
As linhas entre mim e Ana foram nitidamente traçadas. Toda a nossa infância tinha sido uma questão de qual das duas seria a melhor garota Bolena, agora a rivalidade em nossa juventude seria representada no principal palco do reino. No fim do verão, uma de nós duas seria a amante reconhecida do rei; a outra seria a sua criada, a sua assistente, talvez o seu bufão.
Não havia como eu derrotá-la. Teria tramado contra ela, mas não tinha aliados, não tinha poder. Ninguém na minha família via alguma desvantagem em o rei ter-me na cama à noite e Ana em seu braço durante o dia. Para eles, era a situação ideal, a garota Bolena inteligente como sua conselheira e a garota Bolena fértil como sua amante.
Só eu via como isso lhe custava. À noite, depois de dançar e rir e chamar continuamente a atenção da corte para si, sentava-se diante do espelho, tirava o capelo, e eu via a sua face jovem extenuada.
George vinha com frequência ao nosso quarto trazendo um copo de vinho do Porto para cada uma de nós. Nós dois a colocávamos na cama, puxávamos o lençol até debaixo do seu queixo e a observávamos beber e a cor voltar lentamente à sua face.
— Só Deus sabe aonde ela está nos levando — murmurou ele para mim, certa noite em que a observávamos dormir. — O rei está louco por ela, a corte está louca por ela. O que, por Deus, ela está querendo?
Ana agitou-se em seu sono.
— Psiu — eu disse, fechando o cortinado em volta da cama. — Não a desperte. Não aguento mais um instante com ela. Realmente não consigo.
George ergueu seus olhos vivos para mim.
— Tão grave assim?
— Ela senta-se no meu lugar — repliquei.
— Oh, minha querida.
Virei minha cabeça.
— Tudo o que ganhei, ela tirou de mim — eu disse, minha voz carregada de ressentimento.
— Mas você já não o quer mais como antes, quer? — perguntou George.
Sacudi a cabeça.
— Mas isso não significa que quero ser posta de lado por causa de Ana.
Levou-me até a porta com a mão na minha cintura, descansando negligentemente em meus quadris. Beijou-me nos lábios como um amante.
— Você sabe que é a mais doce.
Sorri para ele.
— Sei que sou uma mulher melhor do que ela. Ela é gelo e ambição, e prefere ver qualquer um de nós na forca a abrir mão dessa sua ambição. Sei que ele tem em mim uma amante que o ama por si mesmo. Mas Ana o deslumbrou, deslumbrou a corte, deslumbrou até mesmo você.
— A mim não — replicou gentilmente.
— Nosso tio gosta mais dela — eu disse ressentida.
— Ele não gosta de ninguém. Está interessado em saber até onde ela pode ir.
— Todos nós nos perguntamos isso. E que preço está preparada para pagar. Especialmente se for eu a pagar.
— Não é uma dança fácil a que ela está conduzindo — reconheceu George.
— Eu a odeio — repliquei simplesmente. — Assistiria feliz à sua morte por ambição.
A corte visitaria a princesa Mary no Castelo de Ludlow e viajamos diretamente para o oeste por todo o verão. Ela tinha apenas 10 anos, mas parecia ter uma maturidade de alguém mais velho, instruída e educada no estilo formal estrito que sua mãe conhecera na corte espanhola. Ela tinha um padre e um grupo de tutores, uma dama de companhia e seus próprios criados em Gales, onde era princesa. Por isso esperávamos ver uma pequena mulher digna, uma menina prestes a se tornar mulher.
O que vimos foi alguém muito diferente.
Ela entrou no salão em que seu pai estava jantando e sofreu, ao caminhar da porta à mesa alta, o olhar de todos sobre ela. Era pequenina, do tamanho de uma menina de 6 anos, uma perfeita bonequinha com o cabelo castanho-claro sob o capelo e um rosto grave, pálido. Era tão graciosa quanto sua mãe ao chegar à Inglaterra, mas pequenina, uma criancinha.
O rei saudou-a com ternura, mas percebi o choque em sua expressão. Não a via fazia mais de seis meses, e esperava que tivesse crescido e desabrochado para ser uma mulher. Em vez disso, não seria, em um ano, uma princesa para se casar e ser enviada para a sua nova casa e, em dois ou três anos, estar apta a gerar filhos. Era uma criança, uma menininha magra, pálida e tímida.
Ele a beijou e ela sentou-se à sua direita, à mesa alta, e viu todos aqueles olhos nela. Quase não comeu. Não bebeu nada. Quando ele lhe falou, ela respondeu com monossílabos sussurrados. Sem dúvida era muito instruída. Todos os seus tutores, um por um, foram chamados para assegurar ao rei que ela falava o grego e o latim, sabia somar, e conhecia a geografia de seu principado e do reino. Quando tocaram música, dançou com graciosidade e leveza. Mas não parecia uma menina que se tornaria robusta, saudável e fértil. Parecia uma menina que desmaiaria facilmente, que se resfriaria fatalmente. Essa era a única herdeira legítima do trono do pai de Henrique, e não parecia forte o bastante para segurar o cetro.
George veio me buscar cedo nessa noite, no Castelo de Ludlow.
— Ele está com um humor terrível — avisou.
Ana agitou-se na cama.
— Não está satisfeito com a sua anãzinha?
— É incrível — falou George. — Mesmo sonolenta é doce como o veneno, Ana. Vamos, Maria, ele não pode ficar esperando.
Henrique estava em pé ao lado do fogo quando entrei, um pé sobre um toco de lenha, empurrando-o para a brasa rubra. Mal ergueu os olhos, quando cheguei, estendeu a mão, peremptoriamente, para mim, e corri para seus braços.
— Foi um golpe — disse ele baixinho em meu cabelo. — Achei que tinha crescido, que fosse quase uma mulher. Tinha pensado em casá-la com Francis ou, até mesmo, com o filho dele, e firmar uma aliança com a França. Uma menina não tem utilidade para mim, nenhuma. Muito menos uma que não pode nem mesmo se casar! — interrompeu-se, virou-se abruptamente e atravessou o quarto furioso. Cartas estavam distribuídas sobre a mesa, viradas, o jogo quase concluído. Com um movimento irado varreu-as e virou a mesa. Com o barulho, um guarda gritou do lado de fora:
— Majestade?
— Deixe-me em paz! — gritou ele de volta.
Voltou-se para mim.
— Por que Deus fez isso comigo? Por que acontece isso comigo? Nenhum filho, e com uma filha que parece que o próximo inverno a levará daqui? Não tenho herdeiro. Não tenho ninguém para me suceder. Por que Deus fez isso comigo?
Continuei calada e sacudi a cabeça, esperando entender o que ele queria.
— É a rainha, não é? — disse ele. — É o que está pensando. É o que eles todos estão pensando.
Eu não sabia se devia concordar ou discordar. Observei-o atentamente e mantive a calma.
— É este maldito casamento — disse ele. — Eu nunca deveria ter-me casado com ela. Meu pai não queria. Ele disse que ela poderia ficar na Inglaterra como uma princesa viúva, nossa por consagração. Mas achei... eu quis... — interrompeu-se. Não queria se lembrar de como a amara profunda e lealmente. — O Papa nos concedeu a dispensação, mas foi um erro. Não se pode dispensar sem a palavra de Deus.
Balancei a cabeça com gravidade.
— Não devia ter-me casado com a mulher do meu irmão. Simples assim. E como me casei fui amaldiçoado com a sua esterilidade. Deus não abençoou o falso casamento. A cada ano, ele vira as costas para mim, e eu deveria ter percebido isso antes. A rainha não é minha mulher, é a mulher de Arthur.
— Mas se o casamento não tivesse sido consumado... — comecei.
— Não faz diferença — replicou bruscamente. — E de qualquer maneira, foi.
Baixei a cabeça.
— Venha para a cama — disse ele, de repente cansado. — Não suporto mais isso. Tenho de me libertar do pecado. Tenho de mandar a rainha partir. Tenho de me purificar desse pecado terrível.
Obedientemente, fui para a cama, deixei o manto escorregar de meus ombros. Puxei os lençóis e me deitei. Henrique ajoelhou-se aos pés da cama e rezou com fervor. Escutei as palavras murmuradas e me vi rezando também: uma mulher impotente rezando por outra. Eu estava rezando pela rainha, agora que o homem mais poderoso da Inglaterra a culpava por tê-lo feito cometer um pecado mortal.
Outono de 1526
Retornamos a Londres, a Greenwich, um dos palácios mais queridos do rei, e ainda assim seu humor não melhorou. Ele passava grande parte do tempo com clérigos e conselheiros. Alguns acharam que estava preparando um novo livro, outro estudo de teologia. Mas eu, que tinha de ficar com ele a maioria das noites, enquanto escrevia e lia, sabia que estava lutando com as palavras da Bíblia, lutando para saber se era a vontade de Deus um homem casar-se com a esposa de seu irmão — portanto gostar dela — ou se era a vontade de Deus um homem rejeitar a viúva de seu irmão — pois olhar para ela com desejo era envergonhar seu irmão. Deus, nessa situação, era ambíguo. Diferentes passagens na Bíblia diziam coisas diferentes. Seria necessário um colégio inteiro de teólogos para decidir qual teria a precedência.
Para mim, parecia óbvio que um homem pudesse desposar a viúva de seu irmão, de modo que os filhos de seu irmão pudessem ser criados em um lar divino e uma boa mulher ser bem cuidada. Graças a Deus não me arrisquei a dar essa opinião nos concílios noturnos de Henrique. Havia homens discutindo em grego e latim, voltando a textos originais, consultando os pais da Igreja. A última coisa que queriam era o bom-senso de uma jovem extraordinariamente comum.
Eu não era útil para ele. Não podia ser útil para ele. Era Ana que tinha o cérebro de que ele precisava, só Ana tinha a capacidade de transformar um emaranhado teológico em piada e fazê-lo rir, mesmo quando ele quebrava a cabeça tentando decifrá-lo.
Caminhavam juntos todas as tardes, a mão dela em seu braço, suas cabeças tão próximas como a de dois conspiradores. Pareciam amantes, mas quando eu me deixava ficar do seu lado, ouvia Ana dizer: “Sim, mas São Paulo é bem claro a esse respeito...” E Henrique replicava: “Acha que é isso o que ele quer dizer? Sempre achei que se referia a outra passagem.”
George e eu caminhávamos atrás deles, aias maleáveis, e eu via quando Ana apertava o braço de Henrique para esclarecer um ponto ou sacudia a cabeça discordando.
— Por que ele simplesmente não manda a rainha partir? — perguntou George. — Nenhuma corte na Europa o condenaria. Todo mundo sabe que ele precisa ter um filho homem.
— Ele gosta de pensar bem de si mesmo — expliquei, observando a virada de cabeça de Ana e ouvindo sua risada baixa. — Ele não consegue expulsar uma mulher só porque ficou velha. Tem de descobrir uma maneira que mostre que é a vontade de Deus que ele a deixe. Tem de encontrar uma autoridade maior do que a de seus desejos.
— Meu Deus, se eu fosse rei como ele, obedeceria a meus desejos, sem me preocupar se fossem ou não a vontade de Deus — exclamou George.
— Isso é porque você é um Bolena voraz e ganancioso. Mas ele é um rei que quer fazer a coisa certa. Não consegue seguir adiante sem saber se Deus está do seu lado.
— E Ana o está ajudando — observou George maliciosamente.
— Que guardiã da consciência! — eu disse com despeito. — Sua alma imortal estará segura nas mãos dela.
Convocaram uma reunião de família. Eu já a esperava. Desde que tínhamos chegado de Ludlow, meu tio nos observava, a mim e Ana, com uma intensidade tácita. Tinha estado com a corte nesse verão, tinha visto como o rei passava os dias com Ana, como ele era irresistivelmente atraído para onde quer que ela estivesse. E como ele me chamava sempre que a noite caía. Meu tio estava desconcertado com o desejo do rei por nós duas. Não sabia como Henrique poderia ser manejado da melhor maneira para os Howard.
George, Ana e eu fomos dispostos diante da grande mesa na sala de meu tio. Ele sentou-se em frente, minha mãe ao seu lado em uma cadeira menor.
— O rei obviamente deseja Ana — começou meu tio. — Mas se ela simplesmente suplantar Maria como a favorita, não teremos avançado. Pior que isso, de fato. Pois ela nem mesmo é casada, e enquanto isso continuar, ninguém poderá tê-la, e quando terminar, ela não valerá mais nada.
Olhei para ver se minha mãe se retraía com essa discussão sobre a sua filha mais velha. Sua expressão era austera. Tratava-se de um negócio da família, não de sentimento.
— Então, Ana tem de se retirar — decretou meu tio. — Está atrapalhando Maria. Ela teve uma menina e um menino dele e não ganhamos nada além de algumas terras...
— Alguns títulos — murmurou George. — Algumas posições...
— Sim, não nego. Mas Ana está abrandando seu desejo por Maria.
— Ele não tem desejo por Maria — disse Ana com rancor. — Ele está habituado com ela. O que é diferente. O senhor é um homem casado, tio, deve saber disso.
Ouvi George arfar. Meu tio sorriu para Ana, e seu sorriso foi feroz.
— Obrigada, Srta. Ana — disse ele. — A sua sagacidade lhe cairia bem, se ainda estivesse na França. Mas como está na Inglaterra, tenho de lembrá-la que todas as mulheres inglesas fazem o que são mandadas fazer, e demonstram estar felizes enquanto obedecem.
Ana baixou a cabeça, e a vi corar de irritação.
— Você irá para Hever — disse ele abruptamente.
Ela sobressaltou-se.
— De novo não! Para fazer o quê?
— Você é uma carta selvagem, e não sei como jogá-la — disse ele com uma franqueza brutal.
— Se me deixar na corte, posso fazer o rei me amar — prometeu em desespero. — Não me mande de volta a Hever! O que tem lá para mim?
Ele levantou a mão.
— Não é para sempre — disse ele. — Só para o Natal. Está evidente que Henrique se sente muito atraído por você, mas não sei o que podemos fazer com isso. Não pode ir para a cama dele, não enquanto for virgem. Tem de se casar antes de se deitar com ele, e nenhum homem em seu juízo perfeito se casará com você enquanto for a favorita do rei. A situação é confusa.
Ela reprimiu sua resposta e fez uma ligeira mesura.
— Estou grata — falou entre os dentes. — Mas não entendo como me mandar para Hever para passar o Natal sozinha, longe da corte, longe do rei, vai contribuir para as minhas chances de servir a esta família.
— Vai tirá-la do caminho, para que não atrapalhe o objetivo do rei. Assim que ele se divorciar de Catarina, poderá se casar com Maria. Maria com seus dois saudáveis bebês. Pode assumir uma esposa e um herdeiro em uma única cerimônia. Você apenas desequilibra o quadro, Ana.
— E então vai me apagar dele? — perguntou ela. — Quem o senhor é agora? Holbein?
— Segure a língua — disse minha mãe rispidamente.
— Vou lhe conseguir um marido — prometeu meu tio. — Da França, se não for da Inglaterra. Depois que Maria for rainha da Inglaterra, poderá lhe conseguir um marido. Poderá escolher.
As unhas de Ana penetraram em suas mãos.
— Não quero um marido como presente dela! — afirmou. — Ela nunca será rainha. Já ascendeu até onde podia. Abriu as pernas e lhe deu dois filhos e ele continua sem ligar para ela. Será que não veem que ele só gosta dela quando a está cortejando? Ele é um caçador, gosta de caçar. Quando Maria foi capturada, o esporte se encerrou, e só Deus sabe como foi a mulher mais fácil de ser capturada. Ele está acostumado com ela. É mais uma esposa do que uma amante. Porém uma esposa sem honra, uma esposa sem respeito.
Ela tinha dito exatamente a coisa errada. Meu tio sorriu.
— Uma esposa? Oh, espero que sim. Portanto acho que descansaremos um pouco de você, e veremos se Maria consegue lidar com ele sem você aqui. Tem competido com Maria, e ela é a nossa favorita.
Fiz uma mesura com um sorriso doce para Ana.
— Sou a favorita — repeti. — E ela tem de desaparecer.
Inverno de 1526
Mandei presentes de Natal para meus filhos no baú de Ana. Para Catarina, uma casinha de marzipã, com o telhado de amêndoas assadas e janelas de algodão-doce. Pedi a Ana que a desse no Dia de Reis e que lhe dissesse que a sua mãe a amava e sentia saudades, e que voltaria em breve.
Ana caiu sobre a sela de seu cavalo tão deselegantemente quanto a mulher de um fazendeiro indo ao mercado. Não havia ninguém para olhá-la, não havia nenhum benefício em rir e ser graciosa.
— Só Deus sabe por que você não os desafia e parte, se ama tanto seus filhos — disse ela querendo que eu criasse problemas.
— Obrigada por seu bom conselho — eu disse. — Tenho certeza de que disse isso com a melhor das intenções.
— Bem, só Deus sabe o que acham que você faria sem mim para aconselhá-la.
— Só Deus sabe, realmente — repliquei animadamente.
— Há mulheres com que os homens se casam e há mulheres com que não — falou. — E você é o tipo de amante com que o homem não se preocupa em se casar. Com ou sem filhos.
Sorri para ela. Eu era tão lenta, tão menos sagaz do que Ana, que foi uma grande alegria quando, depois de algum tempo, surgiu uma resposta em minha mente morosa.
— Sim — repliquei. — Espero que tenha razão. Mas existe, sem dúvida, um terceiro tipo. O das mulheres com que os homens nunca se casam nem tomam como amantes. Mulheres que passam o Natal sozinhas. E esse parece ser o seu, minha irmã. Tenha um bom-dia.
Virei-me e deixei-a sem ter outra coisa a fazer a não ser um sinal com a cabeça para que os soldados que a acompanhariam partissem. Então, atravessaram o portão e tomaram a estrada para Kent. Quando partiu, alguns flocos de neve rodopiaram no ar.
Estava claro o que aconteceria com a rainha assim que se instalasse em Greenwich para os festejos do Natal. Seria negligenciada e ignorada, e todos na corte saberiam que tinha perdido o favor. Era algo vil de se ver, como uma coruja sendo atacada durante o dia por pássaros inferiores.
Seu sobrinho, o Imperador da Espanha, soube de parte do que estava acontecendo. Enviou outro embaixador à Inglaterra, o embaixador Mendoza, um advogado astuto em quem se podia confiar para representar a rainha junto ao rei, e mais uma vez promover a harmonia entre Espanha e Inglaterra. Vi meu tio conferenciar em segredo com o cardeal Wolsey, e imaginei que não facilitariam a missão do embaixador Mendoza.
Eu tinha razão. Durante a celebração do Natal, o novo embaixador não teve permissão para vir à corte, seus documentos não foram reconhecidos, não foi autorizado a fazer a reverência ao rei, nem mesmo a ver a rainha. Suas mensagens e cartas eram vigiadas, ela tampouco pôde receber os presentes sem que fossem inspecionados pelos camareiros reais.
Passou o Natal, chegou o Dia de Reis, e o embaixador espanhol continuou sem permissão para ver a rainha. Somente em meados de janeiro Wolsey interrompeu seu jogo de gato e rato, e reconheceu que o embaixador Mendoza era realmente um representante genuíno do Imperador da Espanha e podia levar seus papéis à corte e suas mensagens à rainha.
Eu estava nos aposentos da rainha quando um pajem chegou, enviado pelo cardeal, para dizer que o embaixador tinha pedido para vê-la. A cor voltou à sua face, ela se levantou de um pulo.
— Deveria mudar o vestido, mas não há tempo.
Fiquei atrás de sua cadeira, a única dama presente, as outras estavam no jardim com o rei.
— O embaixador Mendoza trará notícias de meu sobrinho — sentou-se em sua cadeira. — E sei que ele conseguirá uma aliança entre meu sobrinho e meu marido. Famílias não devem brigar. A aliança entre Espanha e Inglaterra é muito antiga. As coisas dão errado quando nos dividimos.
Assenti com a cabeça e a porta se abriu.
Não era o embaixador com seu séquito, trazendo presentes, cartas e documentos privados de seu sobrinho. Era o cardeal, o maior inimigo da rainha, e ele introduziu o embaixador como um charlatão conduziria um urso dançante. O embaixador estava aprisionado. Não podia falar com a rainha a sós, qualquer segredo que tivesse levado em sua bagagem havia sido pilhado fazia muito tempo. Esse não era o homem capaz de refazer a aliança do rei com a Espanha. Não era o homem que poderia recuperar o status da rainha na corte. Era um homem praticamente sequestrado pelo cardeal.
A mão da rainha, quando a estendeu para que ele a beijasse, estava firme como uma rocha. A sua voz soou doce e perfeitamente modulada. Saudou o cardeal com toda calma. Ninguém diria, por seu comportamento, que era a sua condenação que chegava naquele dia, com o embaixador emburrado e o cardeal sorridente. Ela percebeu nesse momento que seus amigos e sua família eram impotentes para ajudá-la. Estava terrivelmente, vulneravelmente, completamente só.
Houve uma justa no fim de janeiro, e o rei recusou-se a montar. George foi escolhido para levar o estandarte real. Venceu pelo rei, e ganhou um novo par de luvas de couro como agradecimento.
Nessa noite, encontrei o rei com um humor sombrio, envolvido em um robe espesso, diante da lareira de sua câmara, com uma garrafa de vinho pela metade do seu lado, e outra vazia nas cinzas, sua borra escoando em uma poça vermelha.
— Está bem, Majestade? — perguntei cautelosamente.
Ergueu os olhos e vi que seus olhos azuis estavam congestionados, seu rosto indolente.
— Não — replicou com calma.
— Qual é o problema? — falei com ele com tanta ternura e tão à vontade quanto falaria com George. Nessa noite, não parecia um rei do terror. Parecia um menino, um menino triste.
— Não competi na justa hoje.
— Eu sei.
— E não quero voltar a montar.
— Nunca mais?
— Talvez nunca mais.
— Oh, Henrique, por que não?
Ele fez uma pausa.
— Tive medo. Não é uma vergonha? Quando começaram a me vestir com a armadura, percebi que estava com medo.
Eu não soube o que dizer.
— A justa é uma coisa perigosa — disse ele com ressentimento. — Vocês, mulheres, nas plataformas, com suas prendas e apostas, ouvindo os arautos soarem as trombetas, não se dão conta. É vida ou morte, se for derrubado. Não é uma brincadeira.
Esperei.
— E se eu morrer? — perguntou francamente. — E se eu morrer? O que vai acontecer?
Por um momento terrível, achei que estava perguntando sobre a alma imortal.
— Ninguém sabe ao certo — repliquei honestamente.
— Não é isso — agitou a mão. — O que será do trono? O que será da coroa do meu pai? Ele uniu este país depois de anos de luta, ninguém acreditava que conseguiria fazer isso. Ninguém, a não ser ele, teria conseguido. E conseguiu. Teve dois filhos homens. Dois, Maria! Portanto, quando Arthur morreu, ainda havia eu para sucedê-lo. Tornou o reino seguro por sua obra no campo de batalha e na cama. Herdei um reino tão seguro quanto possível: fronteiras seguras, lordes obedientes, um tesouro repleto de ouro, e não tenho ninguém a quem legar isso.
Seu tom foi tão amargo que não havia nada que eu pudesse dizer. Baixei a cabeça.
— Esta questão do filho homem está me corroendo. Vivo em um terror profano de morrer antes de pôr um filho no trono. Não posso competir na justa, nem mesmo caçar com medo. Vejo uma cerca à minha frente e em vez de confiar na minha coragem e incitar meu cavalo a saltar, esse flash se apresenta a mim, e me vejo morto com o pescoço quebrado em uma vala e a coroa da Inglaterra pendendo em um espinheiro, e qualquer um podendo pegá-la. E quem a pegaria? Quem?
A agonia em seu rosto e em sua voz foi demais para mim. Peguei a garrafa e enchi de novo o seu copo.
— Tem tempo — eu disse, pensando em como meu tio gostaria que eu dissesse isso. — Sabemos que foi fértil comigo. Nosso filho Henrique é a sua cópia.
Abraçou-se em seu manto mais um pouco.
— Pode ir — disse ele. — George a está esperando para levá-la de volta ao quarto?
— Ele sempre espera — eu disse, surpresa. — Não quer que eu fique?
— Meu coração está muito sombrio hoje — disse ele francamente. — Tenho de enfrentar o prospecto de minha própria morte e isso não me deixa com disposição para brincar entre os lençóis com você.
Fiz uma mesura. À porta, me detive e olhei para o quarto. Ele não me viu sair. Continuava arqueado em sua cadeira, envolvido em seu manto, olhando fixo para as brasas, como se fosse enxergar seu futuro nas cinzas rubras.
— Poderia se casar comigo — eu disse baixinho. — Já temos dois filhos, um deles, um menino.
— O quê? — olhou para mim, seus olhos azuis enevoados com seu próprio desespero.
Sei que meu tio gostaria que eu pressionasse. Mas nunca fui uma mulher do tipo que pressiona dessa maneira.
— Boa noite — eu disse delicadamente. — Boa noite, doce príncipe — e deixei-o com sua própria treva.
Primavera de 1527
A perda do poder da rainha foi se tornando cada vez mais visível. Em fevereiro, a corte recebeu enviados da França. Não foram atrasados enquanto seus papéis eram examinados, foram recebidos com festins e banquetes, enfim, todo tipo de festas, e logo ficou claro que estavam na Inglaterra para providenciar o casamento da princesa Mary ou com o rei Francis da França ou com seu filho. A princesa Mary foi chamada de seu tranquilo retiro no Castelo de Ludlow e apresentada aos diplomatas e encorajada a dançar, tocar, cantar e comer. Meu Deus! Como fizeram essa criança comer! Como se fosse possível que crescesse diante de seus olhos a tempo de aumentar suas medidas durante os meses de negociações. Meu pai, de volta da França, estava em toda parte — aconselhando o rei, servindo de intérprete para os enviados, em conferência sigilosa com o cardeal sobre como poderiam refazer a aliança da Europa e, finalmente, tramando com meu tio como a família poderia avançar nesses tempos turbulentos.
Os dois decidiram que Ana deveria retornar à corte. As pessoas começavam a se perguntar por que ela teria ido embora. Meu pai queria que os diplomatas franceses a vissem. Meu tio parou-me na escada a caminho dos aposentos da rainha para dizer que Ana ia retornar.
— Por quê? — perguntei, o mais rispidamente que me atrevi. — Henrique falou comigo sobre o seu desejo de um filho outra noite mesmo. Se ela voltar, vai estragar tudo.
— Ele falou do seu filho? — perguntou-me abruptamente, e diante do meu silêncio, sacudiu a cabeça. — Não. Você não fez nenhum progresso com o rei, Maria. Ana tinha razão. Não avançamos nada.
Virei a cabeça e olhei pela janela. Sabia que estava emburrada.
— E aonde acha que Ana os levará? — falei com irritação. — Ela não vai agir para o bem da família, não vai fazer o que mandarem. Ela agirá para o seu próprio bem, suas terras, seus próprios títulos.
Ele concordou com a cabeça, passando a mão do lado do seu nariz.
— Sim, ela é uma mulher egoísta. Mas ele não para de perguntar por ela, ele a deseja como nunca desejou você.
— Teve dois filhos comigo!
As sobrancelhas escuras de meu tio se ergueram com a minha voz exaltada. Imediatamente, voltei a baixar a cabeça.
— Desculpe. O que mais posso fazer? O que Ana pode fazer que eu não fiz? Amei-o, deitei-me com ele, dei-lhe dois filhos. Nenhuma mulher pode fazer mais do que isso. Nem mesmo Ana, embora ela seja tão preciosa para todos.
— Talvez ela possa fazer mais — replicou ele, ignorando meu rancor irrelevante. — Se conceber uma criança dele imediatamente, talvez se case com ela. Está tão louco por ela que é capaz disso. Está louco por ela, está louco por um filho, os dois desejos podem se unir.
— E eu? — gritei.
Ele deu de ombros.
— Pode voltar para William — replicou, como se isso não tivesse a menor importância.
Alguns dias depois, Ana retornou à corte tão discretamente quanto tinha partido e, no mesmo dia, já era o centro das atenções de todos. Voltou a dividir o quarto comigo e a ser a minha acompanhante, e me vi atando os cordões de seu vestido quando acordávamos de manhã, e penteando seu cabelo à noite. Eu a servia exatamente como ela tinha me servido.
— Não receia que eu o tenha reconquistado? — perguntei com curiosidade, enquanto a penteava antes de nos deitarmos.
— Você não tem importância — disse ela com segurança. — Nem por um instante. Esta é a minha primavera, esse será o meu verão. Eu o terei na palma da minha mão. Nada o libertará do meu feitiço. Não importa o que você pode fazer, o que qualquer uma fizer. Ele está embriagado. Ele é meu.
— Somente durante a primavera e o verão? — perguntei.
Ana pareceu pensativa.
— Oh, quem pode segurar um homem por muito tempo? Ele está na crista da onda do seu desejo, posso mantê-lo lá. Mas no fim, a onda tem de quebrar. Ninguém fica apaixonado para sempre.
— Se quiser se casar com ele, terá de segurá-lo por muito mais tempo do que duas estações. Acha que consegue mantê-lo por um ano? Por dois?
Quase gargalhei ao perceber a confiança se esvair de seu rosto.
— Quando ele estiver livre para se casar, se chegar a ficar livre para isso, não a estará desejando mais, de qualquer maneira. Você estará em decadência, Ana. Estará quase esquecida. Uma mulher que já passou de seus melhores anos, que chegou à faixa dos 25 e continua solteira.
Deixou-se cair na cama, batendo no travesseiro.
— Não me deseje mal — disse ela com irritação. — Meu Deus, às vezes você parece uma bruxa velha. Qualquer coisa pode me acontecer. Vai ser você que decairá, porque é você que é preguiçosa demais para construir seu próprio destino. Mas acordo todo dia com uma determinação inabalável de traçar o meu próprio caminho. Tudo pode me acontecer.
Em maio, a negociação com o enviado francês estava praticamente encerrada. A princesa Mary se casaria ou com o rei francês ou com seu segundo filho assim que se tornasse mulher. Realizaram um grande torneio de tênis para celebrar e Ana foi designada para organizar as partidas, e estava fazendo uma relação de todos os tenistas da corte, colocando seus nomes em pequenas flâmulas. O rei encontrou-a cismando, com uma bandeirinha distraidamente pressionada no coração.
— O que tem aí, Srta. Bolena?
— A relação de jogadores — respondeu ela. — Tenho de combinar os cavalheiros de maneira justa, de modo que todos possam jogar e que possamos ter um verdadeiro vencedor.
— Eu me referia a isso na sua mão.
Ana sobressaltou-se.
— Eu me esqueci de que a estava segurando — replicou rapidamente. — É apenas um dos nomes. Eu os estou dispondo por ordem de partida.
— E quem é o cavalheiro que a senhorita segura tão firme?
Ela conseguiu corar.
— Não sei, não olhei o nome.
— Posso? — ele estendeu a mão.
Ela não lhe deu a bandeirinha.
— Não é nada. Simplesmente estava na minha mão enquanto eu ordenava os nomes. Vou pô-lo em seu lugar para que possa avaliar a ordem, Majestade.
Ele ficou alerta.
— Parece envergonhada, Srta. Bolena.
Ela inflamou-se ligeiramente.
— Não estou envergonhada de nada. Só não quero passar por tola.
— Tola?
Ana virou a cabeça.
— Por favor, deixe-me colocar este nome no lugar e poderá me aconselhar na ordenação.
Ele estendeu a mão.
— Quero saber qual é o nome na flâmula.
Por um momento terrível, achei que ela não estava encenando. Por um terrível momento, achei que ele estava para descobrir que ela estava trapaceando, tentando colocar nosso irmão, George, no melhor lugar. Ela ficou tão completamente confusa e aflita com a sua insistência em saber o nome que cheguei até mesmo a pensar que tivesse sido descoberta. O rei parecia um de seus melhores perdigueiros na pista certa. Ele sabia que ela estava escondendo alguma coisa e foi tomado por sua curiosidade e desejo.
— Eu ordeno que me mostre — disse ele com calma.
Com muita relutância, Ana pôs a pequena flâmula em sua mão, fez uma mesura, e se afastou. Não olhou para trás, mas quando ficou fora de vista, todos ouvimos seus saltos batendo no chão e sua saia farfalhando enquanto corria da quadra de tênis para o caminho de pedra que levava ao castelo.
Henrique abriu a mão e viu o nome na flâmula que ela tinha levado ao peito. Era o seu próprio nome.
O torneio de tênis de Ana levou dois dias para ser concluído e ela era vista em toda parte, rindo, organizando, arbitrando e marcando os pontos. No final, só faltavam quatro partidas: o rei contra o meu irmão George, meu marido William Carey contra Francis Weston, Thomas Wyatt, recentemente de volta da França, contra William Brereton, e uma partida entre dois joões-ninguém que aconteceria enquanto jantávamos.
— É melhor se certificar de que o rei não jogue com Thomas Wyatt — eu disse a Ana em voz baixa enquanto o nosso irmão George e o rei entravam na quadra.
— Por quê? — perguntou ela inocentemente.
— Porque há muita coisa envolvida nisso. O rei quer vencer diante dos enviados franceses e Thomas Wyatt quer vencer para impressionar você. O rei não vai aceitar ser derrotado em público por Thomas Wyatt.
Ela encolheu os ombros.
— Ele é um cortesão. Não vai se esquecer do jogo principal.
— Que jogo principal?
— Seja tênis seja justa seja arco e flecha seja flerte, o jogo principal é manter o rei feliz — disse ela. — É só para isso que estamos aqui, é só isso o que importa. E todos sabemos disso.
Inclinou-se à frente. Nosso irmão, George, estava posicionado, pronto para sacar, o rei estava alerta e preparado. Ela ergueu seu lenço branco e o deixou cair. George sacou, um bom saque, bateu no telhado e caiu fora do alcance de Henrique. Ele se arremessou para a bola e a devolveu. George, ágil e doze anos mais novo, deu uma cortada e a bola passou pelo rei, que levantou a mão admitindo o ponto.
O segundo saque foi fácil para o rei rebater, e a bola retornou suave sem George nem mesmo tentar alcançá-la. A partida crescia e diminuía, os dois homens correndo e rebatendo a bola com toda força que podiam, aparentemente sem clemência, sem favores. George perdia consistentemente, mas fazia isso tão cuidadosamente que qualquer um acharia que o rei jogava melhor. Na verdade, provavelmente fosse o melhor jogador em termos de habilidade e táticas. Só que George podia correr duas vezes mais que ele. Só que George era esguio e saudável, um jovem de 24 anos, enquanto o rei era um homem corpulento, um homem a caminho da meia-idade.
O fim do primeiro set se aproximava, quando George mandou uma bola alta. Henrique pulou para rebatê-la e fazer o ponto, mas caiu no chão e deu um grito terrível.
Todas as damas da corte gritaram, Ana ficou de pé imediatamente. George saltou sobre a rede e foi o primeiro a estar ao lado do rei.
— Oh, Deus, o que foi isso? — perguntou Ana.
A cara de George estava lívida.
— Chamem um médico — gritou. Um pajem disparou para o castelo, Ana e eu corremos ao portão da quadra, o empurramos e entramos.
Henrique estava vermelho e praguejando de dor. Estendeu o braço e segurou firme a minha mão.
— Maldição. Maria, livre-se dessa gente toda.
Virei-me para George.
— Afaste todo mundo.
Percebi o olhar rápido e constrangido que Henrique lançou a Ana e me dei conta de que a dor era menor do que a do ferimento de seu orgulho por ela vê-lo no chão com lágrimas sob suas pálpebras.
— Vá, Ana — eu disse baixinho.
Ela não discutiu. Retirou-se para o portão e esperou, com toda a corte, para saber o que tinha derrubado o rei no momento de sua jogada triunfante.
— Onde é a dor? — perguntei com urgência. O meu terror era que apontasse para o peito ou para a barriga, e que algo tivesse se rompido dentro dele, ou que o seu coração parasse de bater. Algo profundo e irreparável.
— Meu pé — disse ele, sufocando com as palavras. — Que besteira. Caí com ele de lado. Acho que quebrou.
— Seu pé? — o alívio quase me fez rir alto. — Meu Deus, Henrique, achei que estivesse morto.
Ergueu os olhos ao ouvir isso e riu largo franzindo a testa.
— Morto de tênis? Desisti de combater na justa por segurança, e acha que poderia ter morrido de tênis?
Eu estava sem ar de alívio.
— Morto de tênis! Não! Mas achei... foi tão súbito, e caiu tão rápido...
— E pela mão do seu irmão! — concluiu, e então, de repente, nós três estávamos dando gargalhadas, a cabeça do rei aninhada em meu colo. George segurando as suas mãos, e o rei dividido entre a dor cruciante de seu pé quebrado e a ideia ridícula de que os Bolena tivessem tentado assassiná-lo com o tênis.
Os enviados franceses iam partir, com seus tratados assinados, e teríamos um grande baile de máscaras como despedida. Aconteceria nos aposentos da rainha, sem o seu convite, sem nem mesmo ser esse o seu desejo. O mestre de folias simplesmente chegou e anunciou abruptamente que o rei tinha ordenado que a mascarada acontecesse em seus aposentos. A rainha sorriu como se fosse exatamente isso que ela quisesse e deixou-o tirar as medidas para os toldos, tapeçarias e cenário. As damas da rainha deveriam usar vestidos dourados ou prateados e dançar com o rei e seus companheiros que entrariam disfarçados.
Pensei em quantas vezes a rainha tinha fingido não reconhecer seu marido quando ele chegava disfarçado, em quantas vezes o tinha observado dançar com as damas, em quantas vezes ele havia me conduzido na frente dela e agora, ela e eu o observaríamos dançar com Ana. Nem uma pequena centelha de ressentimento atravessou seu rosto nem por um instante. Achou que escolheria os dançarinos, como sempre tinha feito, uma pequena condescendência, uma das muitas maneiras de controlar a corte. Mas o mestre de dança já tinha uma lista das damas que representariam os papéis. Tinham sido escolhidas pelo rei, e a rainha tinha ficado sem nada para fazer, era nada em seus próprios aposentos.
Levaram um dia todo preparando a mascarada, e a rainha acabou sem lugar onde ficar quando colocavam as tapeçarias nas paredes de madeira. Retirou-se para a sua câmara privada enquanto o resto de nós experimentava os vestidos e ensaiava as danças, excitadas demais para perceber que não escutaríamos a música com o barulho dos trabalhadores. A rainha foi se deitar cedo para escapar do barulho e da desordem, enquanto nós comíamos tarde no salão.
No dia seguinte, os enviados franceses foram almoçar, ao meio-dia, no salão. A rainha sentou-se à direita de Henrique, mas ele não tirou os olhos de Ana. As trombetas soaram e os criados entraram como soldados, todos no mesmo passo em suas librés, levando os pratos à mesa principal e, depois, às outras. Foi um banquete de proporções burlescas. Todo tipo de animal havia sido morto, estripado e cozinhado para demonstrar a riqueza do rei e de seu reino. O ápice do banquete foi o prato de aves com um pavão cozido, apresentado com todas as suas penas. Estava recheado com um cisne recheado, por sua vez, com uma cotovia. A tarefa do trinchante era conseguir uma fatia de cada ave sem afetar a beleza do prato. Henrique provou de tudo, mas vi Ana recusar tudo o que lhe era oferecido.
Henrique fez um sinal ao criado e sussurrou algo em seu ouvido. Mandou o coração do prato para Ana, a cotovia. Ela ergueu os olhos como se estivesse surpresa — como se não tivesse acompanhado cada gesto dele — e lhe sorriu, baixando a cabeça em agradecimento. Então, provou a carne. Quando ela pôs uma pequena fatia em sua boca sorridente, eu o vi estremecer de desejo.
Depois do jantar, a rainha e suas damas, inclusive Ana e eu, retiraram-se para seus quartos para trocarem de roupa. Ana e eu ajudamos uma a outra a amarrar apertado os cordões dos corpetes de nossos vestidos dourados, e Ana queixou-se de quando apertei.
— Cotovia em excesso — eu disse antipaticamente.
— Viu como ele me olhava?
— Todo mundo viu.
Puxou o capelo francês bem para trás, de modo que seu cabelo escuro aparecesse, e ajeitou o “B” dourado, que nunca tirava, ao redor do pescoço.
— O que você vê quando meu capelo é puxado assim para trás? — falou com a expressão convencida. — Um rosto sem rugas, cabelo lustroso e escuro sem um único fio grisalho — recuou um pouco do espelho e admirou o vestido dourado. — Vestida como uma rainha — disse ela.
Houve uma batida na porta e Jane Parker pôs a cabeça pela porta.
— Trocando segredos? — perguntou ela, ansiosamente.
— Não — repliquei inutilmente. — Apenas nos vestindo.
Ela abriu a porta e passou para dentro. Usava um vestido prateado, bem decotado e bem puxado para baixo para mostrar seus seios, e um capelo também prateado. Quando viu como Ana estava usando o capelo, foi imediatamente ao espelho e puxou também o seu para trás. Ana piscou o olho para mim.
— Ele a prefere a todas as outras — disse ela confidencialmente a Ana. — Qualquer um pode ver que a deseja.
— Realmente.
Jane virou-se para mim.
— Você não fica com ciúmes? Não é estranho se deitar com um homem que deseja a sua irmã?
— Não — respondi sem rodeios.
Nada detinha essa mulher. A sua especulação era como o rastro viscoso deixado por uma serpente.
— Eu acharia muito estranho. E depois, quando sai da cama dele, entra na cama com Ana, e as duas ficam lado a lado quase nuas. Ele deve desejar vir para cá e possuir as duas ao mesmo tempo!
Fiquei pasma.
— Esta é uma conversa indecente. Sua Majestade se sentiria insultado.
Ela deu um sorriso que se ajustaria mais a um bordel do que a um quarto de damas.
— É claro, há somente um homem que entra aqui, com as duas belas irmãs, tarde da noite. O meu marido. Sei que ele vem quase todas as noites. Certamente, ele nunca está na minha cama.
— Bom Deus, quem pode culpá-lo? — exclamou Ana francamente. — Eu preferiria dormir com um verme a tê-la sussurrando em meu ouvido a noite toda. Vá, Jane Parker, e leve a sua boca suja e a sua mente pior ainda ao seu devido lugar. Maria e eu vamos dançar.
Assim que os enviados franceses partiram, como se estivesse esperando por silêncio e discrição absoluta, o cardeal Wolsey criou um tribunal secreto e convocou testemunhas, promotores e réus. Ele era o juiz, é claro. Dessa maneira parecia ser Wolsey, somente Wolsey, agindo por princípios, e não por ordens. Dessa maneira o divórcio poderia ser ordenado pelo Papa e não pedido pelo rei. Surpreendentemente, o tribunal de Wolsey permaneceu secreto. Ninguém, exceto aqueles levados em silêncio rio abaixo a Westminster, sabiam dele. Nem minha mãe, sempre alerta ao que beneficiaria a família, nem tio Howard, mestre dos espiões. Nem eu, aquecida na cama do rei, nem Ana envolvida em sua confiança. E o mais importante, nem mesmo a rainha tinha conhecimento de seu julgamento. Durante três dias, julgaram o casamento de uma mulher inocente, e ela nem sequer sabia disso.
Pois o tribunal secreto de Wolsey, em Westminster, julgaria o próprio Henrique por coabitar ilegalmente com a mulher de seu irmão morto, Arthur: uma acusação tão grave e um tribunal tão absurdo, que devem ter-se beliscado ao fazerem o juramento de lealdade e verem o seu rei dirigir-se ao banco de réus, a cabeça penitentemente baixa, acusado de pecar por seu próprio lorde chanceler. Henrique confessou que tinha se casado com a mulher do seu irmão com base em uma dispensação papal equivocada. Disse que, na época, e depois, tivera “graves dúvidas”. Wolsey, inabalável, ordenou que a questão fosse apresentada a um núncio apostólico — seu lado imparcial — e o rei concordou, nomeou um advogado e se retirou. O tribunal reuniu-se em sessão por três dias e convocou teólogos para fornecerem provas de que era ilegítimo casar-se com a mulher de seu irmão morto. A rede de espionagem do meu tio finalmente soube do tribunal secreto quando houve o inquérito do bispo de Lincoln. Imediatamente, Ana, George e eu fomos chamados a seus aposentos em Windsor.
— Divorciado com que propósito? — perguntou, excitado.
Ana ficou quase sem fôlego com a notícia.
— Deve estar fazendo isso por mim. Deve estar pensando em afastar a rainha por mim.
— Ele lhe fez uma proposta? — perguntou meu tio, indo direto ao ponto.
Ela o encarou.
— Não. Como poderia? Mas aposto o que quiser que fará assim que estiver livre da rainha.
Meu tio balançou a cabeça, assentindo.
— Por quanto tempo consegue segurá-lo?
— Quanto tempo vai levar isso? — contrapôs Ana. — O tribunal está em sessão, vai pronunciar o julgamento, a rainha vai ser posta de lado, e o rei estará, por fim, livre. E voilà! Aqui estou eu!
Contra a vontade, ele riu de sua segurança.
— Voilà! Aí está você — concordou ele.
— Então concorda, serei eu — Ana negociou com ele. — Maria deve partir ou ficar quando eu pedir. A família vai me apoiar com o rei, quando eu precisar. O jogo será para me beneficiar. Não há escolha. Maria não será reintegrada, vocês não a promoverão. Sou a única garota Bolena que porão em evidência.
Meu tio olhou para o meu pai. Meu pai olhou de uma filha para a outra e encolheu os ombros.
— Duvido que seja uma das duas — disse ele sem rodeios. — Certamente ele vai almejar mais do que uma pessoa comum. Claramente não será Maria. Seu apogeu já passou, ele agora esfriou com ela.
Senti um arrepio durante toda a sua análise fria, sem amor. Mas meu pai nem mesmo olhou para mim. Tratava-se de negócios.
— Portanto não será Maria. Mas duvido muito que a sua paixão por Ana o faça preferi-la a uma princesa francesa.
Meu tio refletiu por um instante.
— Qual apoiaremos?
— Ana — aconselhou minha mãe. — Está louco por ela. Se ele conseguir se livrar de sua mulher ainda neste mês, acho que terá Ana.
Meu tio olhou da minha irmã para mim, como se escolhesse uma maçã para comer.
— Ana, então — disse ele.
Ana nem mesmo sorriu, apenas deu um suspiro de alívio.
Meu tio empurrou sua cadeira para trás e se pôs de pé.
— E eu? — perguntei sem jeito.
Todos olharam para mim, como se tivessem esquecido, por um momento, que eu estava lá.
— E eu? Devo ir para a sua cama, se me chamar? Ou devo me recusar?
Meu tio não decidiu. Foi nesse momento que senti a supremacia de Ana. Meu tio, o chefe de minha família, a fonte de autoridade em meu mundo, olhou para a minha irmã, esperando a sua decisão.
— Ela não pode se recusar — replicou ela. — Não queremos uma prostituta qualquer em sua cama, distraindo-o. Ele tem de ficar com Maria como amante, à noite, e continuar apaixonado por mim durante o dia. Mas tem de ser obtusa, Maria. Como uma esposa obtusa.
— Não sei se conseguirei fazer isso — repliquei com irritação.
Ana deu sua gargalhada sensual.
— Oh, você consegue — disse ela com um sorriso furtivo para o meu tio. — Você consegue parecer perfeitamente obtusa, Maria. Não se subestime.
Percebi meu tio reprimir um sorriso e minha face se inflamou de raiva. George inclinou-se para mim e senti o peso confortante de seu ombro, como se me fizesse lembrar que não me adiantaria nada protestar.
Ana ergueu a sobrancelha para o meu tio e ele balançou a cabeça, indicando-lhe que podia ir. Ela se encaminhou à porta, segui a bainha de seu vestido, o que sempre tivera pavor de um dia ter de fazer. Mantive os olhos baixos, enquanto ela nos conduzia para o sol lá fora, passando pelo local de arco e flecha, que dava para o jardim e os terraços em declive até o fosso, e então, a pequena cidade e o rio além. George tocou minha mão, mas mal senti seus dedos. Estava consumida pela raiva de ter sido posta de lado em prol da minha irmã. A minha própria família tinha decidido que eu seria a prostituta e ela, a esposa.
— Então, serei rainha — disse ela, com ar sonhador.
— Serei o cunhado do rei da Inglaterra — disse George, como se não acreditasse.
— E eu serei o quê? — falei com raiva. Não seria mais a favorita do rei, não seria o centro da corte. Perderia a posição por que lutara desde os 12 anos. Eu seria a prostituta do ano passado.
— Você será a minha dama de companhia — replicou Ana com doçura. — Será a outra garota Bolena.
Ninguém sabia até onde a rainha tinha conhecimento do revés que estava sendo preparado para ela. Era uma rainha de gelo e pedra nesses dias de primavera, enquanto o cardeal rebuscava as universidades da Europa à cata de provas contra uma esposa que era completamente inocente de qualquer pecado. Como se para desafiar as Parcas, a rainha começou a trabalhar mais uma toalha para o altar, um par para a que tinha trabalhado antes. As duas seriam um projeto que levaria anos, e envolveria todo um séquito de damas de honra, para ser concluído. Era como se tudo, até mesmo a sua costura, devesse demonstrar ao mundo que ela viveria e morreria como rainha da Inglaterra. Como poderia ser diferente? Nenhuma rainha havia sido posta de lado antes.
Ela tinha me pedido para ajudá-la a esboçar o céu azul acima dos anjos. Havia sido desenhado para ela por um artista florentino no novo estilo, com corpos redondos sensuais semiocultos pelas asas dos anjos e rostos expressivos, vivos, dos pastores ao redor da manjedoura. Olhar o desenho era tão bom quanto assistir a uma peça, as pessoas vívidas como se estivessem vivas. Fiquei feliz por não ser eu que tivesse de ter de acompanhar as pequeninas linhas detalhadas com a minha agulha. Muito antes de o céu estar terminado, Wolsey teria passado a sentença, o Papa confirmado, e ela estaria divorciada e em um convento, e as freiras costurariam os difíceis drapejados das asas emplumadas, enquanto nós, os Bolena, fechávamos a armadilha no rei solteiro. Terminei uma meada comprida de seda azul para um quadradinho mínimo de céu e levei minha agulha à janela estreita quando, de súbito, vi a cabeça castanha de meu irmão subir correndo os degraus à volta do fosso, e como logo ficou fora de vista, estiquei o pescoço tentando ver para onde ia.
— O que foi, Lady Carey? — perguntou a rainha, a voz inalterável.
— Meu irmão entrou correndo — repliquei. — Posso descer para vê-lo, Majestade?
— É claro — disse ela, calmamente. — Se forem notícias importantes, pode trazê-las diretamente a mim, Maria.
Saí do quarto e desci correndo, ainda segurando a agulha, até o salão.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Tenho de ver papai — disse ele. — O Papa foi capturado.
— O quê?
— Onde está papai? Onde ele está?
— Talvez com os escreventes.
George dirigiu-se imediatamente a seus escritórios. Corri atrás dele e segurei na sua manga, mas ele puxou o braço.
— Espere, George! Capturado por quem?
— Pelo exército da Espanha, e dizem que perderam o controle, que saquearam a Cidade Santa e capturaram Sua Santidade.
Parei por um momento, em choque.
— Vão soltá-lo — eu disse. — Não podem ser tão... — faltaram-me as palavras. George quase pulava na urgência de seguir em frente.
— Pense! — aconselhou-me. — O que significa o Papa ser capturado pelos exércitos da Espanha? O que isso implica?
Sacudi a cabeça.
— Que o Santo Padre está em perigo — respondi sem convicção. — Não se pode capturar o Papa...
George riu alto.
— Boba! — puxou-me pela mão escadaria acima até os escritórios. Bateu na porta e pôs a cabeça para dentro. — Meu pai está aqui?
— Com o rei — respondeu alguém. — Em sua câmara privada.
George deu meia-volta e desceu correndo. Levantei a saia comprida e corri, esbaforida atrás dele.
— Não entendo.
— Quem pode dar o divórcio ao rei? — perguntou, parando na curva da escada. Olhou para mim, seus olhos castanhos inflamados de excitação. Hesitei, alguns degraus acima, na escada circular.
— Somente o Papa — gaguejei.
— Quem domina o Papa?
— Carlos de Espanha, você disse.
— Quem é a tia de Carlos de Espanha?
— A rainha.
— Acha que o Papa concederá o divórcio agora?
Parei. George subiu os dois degraus e deu um beijo em minha boca aberta.
— Garota boba — disse afetuosamente. — Esta é uma notícia desastrosa para o rei. Ele nunca vai se livrar dela. Deu tudo errado, e para nós, os Bolena, também.
Agarrei sua mão antes que se fosse.
— Então por que está tão feliz? George! Se fomos arruinados, por que está tão feliz?
— Não estou feliz — riu ele. — Estou enlouquecido — quase gritou. — Por um momento, acreditei em nossa própria loucura. Comecei a acreditar que Ana seria a sua esposa e a próxima rainha da Inglaterra. Agora estou são de novo. Graças a Deus. Por isso rio. Agora, tenho de ir, tenho de contar ao nosso pai. Recebi a notícia por um barqueiro que subia o rio com uma mensagem para o cardeal. Papai vai gostar de saber antes, se eu puder encontrá-lo.
Deixei-o ir, em seu arrebatamento não havia como prendê-lo.
Ouvi suas botas batendo nos degraus de pedra e, então, o barulho de uma porta se abrindo no salão, o latido de um cão quando chutado para o lado, e então a porta sendo fechada com um rangido. Deixei-me cair no degrau em que me deixara, a agulha de bordar da rainha ainda na minha mão, me perguntando onde nós, os Bolena, estávamos agora, já que todo o poder havia voltado para a rainha.
George não tinha me dito se eu podia ou não contar à rainha e achei mais seguro não falar nada quando retornei a seus aposentos. Passei a mão no rosto, ajeitei o corpete do vestido, e me recompus antes de abrir a porta.
Ela já sabia. Percebi pela maneira como a toalha do altar havia sido deixada de lado e ela olhava pela janela, como se conseguisse ver até a Itália e seu jovem e vitorioso sobrinho que havia prometido reverenciá-la e amá-la, entrando triunfante em Roma. Quando cheguei, lançou-me um olhar de relance cauteloso, e reprimiu um risinho ao ver minha expressão atônita.
— Soube da notícia? — adivinhou ela.
— Sim. Meu irmão corria para contar ao meu pai.
— Isso vai mudar tudo. Tudo.
— Sei.
— E a sua irmã vai ficar em uma posição difícil, quando souber — disse ela com astúcia.
Um risinho irresistível me escapou.
— Ela se diz uma donzela à deriva! — eu disse com uma risada queixosa.
A rainha levou a mão à boca.
— Ana Bolena? À deriva?
Confirmei com a cabeça.
— Deu ao rei uma joia gravada com uma donzela em um barco à deriva!
A rainha pôs as juntas na boca.
— Psiu! Silêncio!
Ouvimos o barulho de pessoas no lado de fora do quarto e, com um movimento rápido, puxou para si a prancheta com o bordado, o ornamento triangular de seu pesado capelo inclinado sobre o seu trabalho, a face grave. Relanceou os olhos para mim e fez um sinal com a cabeça para que eu retomasse o meu trabalho. Olhei para a agulha e linha, que não largara nem por um instante, de modo que quando os guardas abriram a porta, a rainha e eu bordávamos, laboriosamente, em silêncio.
Era o rei em pessoa, sem acompanhantes. Ele entrou, me viu, deteve-se por um instante, e então se aproximou, como se tivesse ficado feliz em ter-me como testemunha para o que dissesse à sua esposa por tantos anos.
— Parece que o seu sobrinho cometeu o mais terrível de todos os crimes — disse sem preâmbulo algum, a voz carregada de raiva.
Ela ergueu a cabeça.
— Majestade — e fez uma reverência.
— Eu disse o mais terrível dos crimes.
— Por quê? O que ele fez?
— O seu exército capturou o Santo Padre, o aprisionou. Um ato de blasfêmia, um pecado contra São Pedro.
Uma pequena linha sulcou sua face cansada.
— Estou certa que o libertará e o devolverá imediatamente — disse ela. — Por que não o faria?
— Não fará isso porque sabe que se mantém o Papa em seu poder, tem todos nós em suas mãos! Sabe que somos meros instrumentos! Quer nos governar, controlando o Papa!
A cabeça da rainha tinha voltado ao seu trabalho, mas eu não consegui tirar os olhos de Henrique. Era um novo homem, um homem que eu não conhecia. A sua raiva era diferente. Estava friamente furioso. Nesse dia, ele tinha todo o poder de um homem adulto que havia sido tirano desde os 18 anos.
— Ele é um jovem muito ambicioso — concordou ela, com doçura. — Como você era na sua idade, eu me lembro.
— Não procuro comandar a Europa toda e destruir os planos de homens maiores! — disse ele com mordacidade.
Ela ergueu os olhos para ele e sorriu confiante como sempre.
— Não — concordou ela. — É quase como se ele fosse guiado divinamente, não?
Meu tio decretou que todos devíamos nos comportar como se não tivéssemos sido derrotados. Portanto como se nada tivesse dado errado para nós, como se os Bolena não tivessem sido derrubados, a risada, a música e os flertes continuaram nos aposentos de Ana. Ninguém os chamava mais de meus aposentos, embora tivessem sido dados a mim, mobiliados para mim. Assim como a rainha se tornara um fantasma, eu me tornara uma sombra. Ana tinha vivido e dormido na minha cama, mas agora ela era a substância, e eu, a sombra. Era Ana que pedia cartas, Ana que pedia o vinho, e Ana que erguia os olhos e dava aquele seu sorriso atraente e confiante quando o rei chegava.
Não me restava nada a fazer a não ser ficar em segundo lugar e sorrir. O rei podia deitar-se comigo à noite, mas durante o dia todo ele era de Ana. Pela primeira vez durante esse tempo todo que fui sua amante, eu me senti realmente uma prostituta, e era a minha própria irmã que me aviltava.
A rainha, deixada sozinha grande parte do tempo, continuava a trabalhar a toalha do altar, a passar horas no genuflexório, e a se encontrar constantemente com seu confessor, John Fisher, bispo de Rochester. Ele passava muitas horas com ela, e saía de sua câmara em silêncio, com a expressão grave. Costumávamos observá-lo descer a colina até seu barco, e ríamos de seu andar lento. Andava com a cabeça baixa, como se pesasse de pensamentos.
— Ela deve ter pecado como o diabo — disse Ana. Todos ouviram, aguardando a piada.
— Oh, por quê? — George provocou-a.
— Porque se confessa durante horas todos os dias — exclamou ela. — Só Deus sabe o que essa mulher deve ter feito. Ela se confessa por mais tempo do que eu como!
Houve risos vulgares e bajuladores, e Ana bateu palmas pedindo música. Casais se posicionaram para dançar. Fiquei à janela, observando o bispo se afastar do castelo e da rainha, e me perguntei o que, de fato, esses dois discutiam por tanto tempo. Será que ela sabia exatamente o que o rei estava planejando? Será que esperava virar a igreja, a igreja da Inglaterra, contra o rei?
Consegui passar pelos que dançavam e me dirigi aos aposentos da rainha. Como sempre, nesses tempos, estava em silêncio, a música não se infiltrava pelas janelas abertas, as portas estavam fechadas, quando antes ficavam escancaradas aos visitantes. Eu as abri e entrei.
A sala em que recebia estava vazia. A toalha do altar estava onde tinha deixado, aberta sobre bancos. O céu estava pela metade, nunca seria concluído se ninguém trabalhasse com ela. Eu me perguntei como ela conseguia bordar sozinha em um canto, vendo metros e metros de material vazio à sua frente. O fogo tinha se apagado na lareira, a sala estava fria. Tive um momento de verdadeira apreensão. Por um instante, pensei: e se ela foi levada? Era um pensamento maluco, pois quem pode prender uma rainha? Aonde uma rainha poderia ser levada? Mas por um instante, realmente pensei que o vazio e silêncio da sala só podiam significar uma única coisa: que Henrique tinha se enfurecido, e, de súbito, determinado a não esperar nem mais um momento, mandado seus soldados a levarem.
Então, ouvi um leve ruído. Era tão compadecido, que pensei que fosse o lamento de uma criança. Vinha de sua câmara privada.
Não parei para pensar. Havia um quê nesse choro sentido que não chamaria ninguém. Abri a porta e entrei.
Era a rainha. Sua cabeça estava nas belas cobertas sobre sua cama, seu capelo torto em sua cabeça. Estava ajoelhada como se fosse rezar, mas estava com as colchas na boca, e todo som que conseguia emitir era um gemido pungente, aterrador, de uma tristeza profunda. O rei estava em pé atrás dela, as mãos nos quadris, como um carrasco na Torre de Londres. Olhou por cima do ombro, quando a porta se abriu, e me viu. Mas não demonstrou ter-me reconhecido. Sua expressão estava impassível, inflexível, como um homem que estivesse para além de si mesmo.
— Portanto devo lhe dizer que o casamento foi realmente ilegítimo e deve ser e será anulado.
A rainha ergueu da cama o rosto manchado de lágrimas.
— Tivemos a dispensação.
— Um Papa não pode dispensar com a lei de Deus — replicou Henrique com firmeza.
— Não é a lei de Deus... — sussurrou ela.
— Não discuta comigo, senhora — interrompeu-a Henrique. Temia a inteligência dela. — Tem de saber que não será mais a minha esposa e minha rainha. Tem de abdicar.
Voltou sua face em lágrimas para ele.
— Não posso — disse ela. — Mesmo que eu quisesse. Sou sua esposa e sua rainha. Nada pode impedir isso. Nada pode desfazer isso.
Ele encaminhou-se à porta, desejando desesperadamente se afastar de sua agonia.
— Eu lhe contei para que ficasse sabendo por mim — disse ele à porta. — Não pode se queixar de que não fui franco. Disse-lhe que tem de ser assim.
— Eu o amei durante anos — gritou ela. — Eu lhe dei minha feminilidade. Diga-me, de que maneira o ofendi? O que cheguei a fazer que lhe causasse desgosto?
Ele já tinha quase saído, comprimi-me na parede, para que passasse, mas ele se deteve e virou-se por um momento.
— Tinha de ter-me dado um filho — replicou simplesmente. — Não fez isso.
— Eu tentei! Só Deus sabe como, Henrique! Eu tentei! Gerei um filho seu, e se ele não sobreviveu a culpa não foi minha. Deus quis o nosso pequeno príncipe no céu. A culpa não foi minha.
A dor em sua voz o abalou, mas ele se afastou.
— Tinha de ter-me dado um filho — repetiu ele. — Tenho de ter um filho homem para a Inglaterra, Catarina, sabe disso.
O rosto dela estava desolado.
— Tem de se resignar à vontade de Deus.
— Foi Deus que me incitou a isso — gritou Henrique. — Foi Deus que me avisou que devo abandonar este casamento falso, pecaminoso, e recomeçar. E se assim for, ter um filho. Eu sei disso, Catarina, e você...
— Sim? — disse ela, tão rápido quanto seu galgo ao farejar algo, e de repente toda a sua coragem se manifestou. — E eu? Um convento? Velhice? Morte? Sou a princesa da Espanha e rainha da Inglaterra. O que pode me oferecer no lugar disso?
— É a vontade de Deus — repetiu ele.
Ela riu ao ouvir isso, um som apavorante, tão selvagem quanto seu choro.
— É a vontade de Deus que se desvie de sua verdadeira esposa e se case com uma qualquer? Com uma prostituta? Com a irmã de sua prostituta?
Gelei, mas Henrique tinha-se ido, empurrando-me para o lado para passar.
— É a vontade de Deus e a minha vontade! — gritou da câmara externa, e ouvimos a porta bater.
Recuei, querendo impedir que soubesse que a tinha visto chorar, querendo que não tivesse me visto, aquela que chamou de prostituta. Mas ela levantou a cabeça e disse simplesmente.
— Ajude-me, Maria.
Em silêncio, fui até ela. Era a primeira vez em sete anos que a via pedir ajuda. Estendeu o braço para ser ajudada a se levantar, e vi que mal conseguia se sustentar. Seus olhos estavam congestionados por causa do pranto.
— Deve descansar, Majestade — eu disse.
— Não posso — replicou. — Ajude-me a me ajoelhar no genuflexório e me dê um rosário.
— Majestade...
— Maria — sua voz rouca por causa do choro. — Ele vai me destruir, vai deserdar nossa filha, vai arruinar o país, e vai mandar sua alma imortal para o inferno. Tenho de rezar por ele, por mim, e por nosso país. E depois, tenho de escrever a meu sobrinho.
— Majestade, nunca deixarão sua carta chegar a ele.
— Tenho como fazer que chegue.
— Não escreva nada que possa ser usado contra a senhora, Majestade.
Deteve-se ao ouvir isso, sentindo o medo em minha voz. E então, deu um sorriso amargo, que não chegou aos seus olhos.
— Por quê? — perguntou. — O que acha que pode ser pior do que isso? Não posso ser acusada de traição. Sou a rainha da Inglaterra, eu sou a Inglaterra. Não posso me divorciar, sou a esposa do rei. Enlouqueceu na primavera, e vai se recuperar no outono. Tudo o que tenho a fazer é ultrapassar o verão.
— O verão Bolena — eu disse, pensando em Ana.
— O verão Bolena — repetiu ela. — Não pode durar mais de uma estação. — Ela segurou firme a almofada de veludo com suas mãos manchadas pela idade e percebi que já não escutava nem via nada neste mundo. Estava perto do seu Deus. Saí sem fazer ruído, fechando a porta atrás de mim.
George estava me esperando, espreitando como um assassino.
— Nosso tio quer vê-la — disse ele sem rodeios.
— George, não posso ir. Dê uma desculpa qualquer.
— Vamos.
Pisei na faixa de luz que vinha da janela aberta e meus olhos piscaram ofuscados. Dava para ouvir alguém cantar e a risada despreocupada de Ana.
— Por favor, George, diga que não me encontrou.
— Ele sabe que estava com a rainha. Recebi ordens de esperar até você sair, independentemente da hora.
Sacudi a cabeça.
— Não posso traí-la.
George atravessou a sala, me segurou sob o cotovelo e me levou em direção à porta. Andou tão ligeiro que tive de correr para acompanhá-lo. E ao descermos a escadaria, eu teria caído se ele não me segurasse tão firme.
— Qual é a sua família? — perguntou com os dentes trincados.
— Bolena.
— Qual é o seu parentesco?
— Howard.
— Qual é a sua casa?
— Hever e Rochford.
— Qual é o seu reino?
— Inglaterra.
— Quem é o seu rei?
— Henrique.
— Então os sirva. Nessa ordem. Mencionei a rainha espanhola uma vez sequer nessa lista?
— Não.
— Lembre-se disso.
Lutei contra a sua determinação.
— George!
— Diariamente, abro mão de meus desejos por esta família — disse furioso a meia-voz. — Diariamente, me arraso de tanto servir a uma ou a outra irmã, e banco o alcoviteiro do rei. Diariamente, nego o meu próprio desejo, minha própria paixão, renego minha própria alma! Tornei minha vida um segredo para mim mesmo. Agora, venha.
Empurrou-me para dentro da sala privada de tio Howard sem bater. Meu tio estava sentado à sua mesa, o sol batendo forte em seus papéis, um ramalhete de rosas à sua frente. Ergueu os olhos quando entrei e seu olhar sagaz percebeu minha respiração acelerada e a aflição em minha face.
— Preciso saber o que se passou entre o rei e a rainha — disse ele sem rodeios. — Uma criada disse que você estava com eles.
Assenti com a cabeça.
— Eu a ouvi chorar e entrei.
— Ela chorou? — perguntou incrédulo.
Confirmei com a cabeça.
— Fale.
Fiquei calada por um momento.
Olhou para mim mais uma vez e o poder em seu olhar era imenso.
— Fale — repetiu.
— O rei disse-lhe que está tentando a anulação porque o casamento não é válido.
— E ela?
— Ela o censurou por causa de Ana, e ele não negou.
Uma chama intensa de alegria inflamou os olhos de meu tio.
— Como a deixou?
— Rezando — respondi.
Meu tio levantou-se e veio até mim. Calmamente, pegou minha mão e falou sem se alterar.
— Gosta de ver seus filhos no verão, não gosta, Maria?
Minha saudade de Hever, da pequena Catarina e do meu bebê me deixou desconcertada. Fechei os olhos por um momento e pude vê-los, senti-los em meus braços. Senti o cheiro doce do bebê de cabelo limpo e pele aquecida pelo sol.
— Se nos servir bem nisso, deixarei que vá a Hever por todo o verão, enquanto a corte estiver fora. Poderá passar o verão inteiro com seus filhos e ninguém a incomodará. Faça o seu trabalho e a dispensarei da corte. Mas terá de me ajudar, Maria. Tem de me dizer exatamente o que acha que a rainha está planejando.
Dei um suspiro.
— Ela disse que vai escrever a seu sobrinho. Disse que sabe como fazer a carta chegar às suas mãos.
Sorriu.
— Espero que descubra como ela envia as cartas a Espanha e que venha me contar. Faça isso e estará com seus filhos uma semana depois.
Reprimi meu senso de traição.
Ele voltou à sua mesa e aos seus papéis.
— Pode ir — disse com indiferença.
A rainha estava à mesa quando entrei.
— Ah, Lady Carey, pode acender outra vela para mim? Não estou conseguindo enxergar o que escrevo.
Acendi outra vela e a coloquei perto do papel. Vi que escrevia em espanhol.
— Pode chamar o Señor Felipez? — pediu. — Tenho um serviço para ele.
Hesitei, mas ela levantou a cabeça do papel e fez um leve movimento com a cabeça. Fiz uma mesura e fui à porta, onde um criado estava de guarda.
— Vá buscar o Señor Felipez — mandei.
Ele chegou em um instante. Era o encarregado da copa, um homem de meia-idade que tinha vindo da Espanha quando Catarina se casou. Tinha permanecido a seu serviço e apesar de casado com uma inglesa e ter filhos ingleses, nunca perdera o sotaque espanhol nem seu amor pela Espanha.
Eu o introduzi na sala e a rainha relanceou os olhos para mim.
— Deixe-nos — disse ela. Eu a vi dobrar a carta e lacrá-la com seu próprio timbre, a romã da Espanha.
Saí e me sentei no vão da janela, esperando como a espiã que eu era, até vê-lo sair, enfiando a carta em seu gibão e, então, cansada, fui procurar tio Howard e contar tudo.
O Señor Felipez deixou a corte no dia seguinte e meu tio me encontrou subindo o caminho sinuoso ao topo do Castelo de Windsor.
— Pode ir a Hever — disse ele brevemente. — Fez sua parte.
— Tio?
— Vamos pegar o Señor Felipez quando ele zarpar de Dover para a França — disse ele. — Longe o bastante da corte para que a rainha não saiba de nada. Teremos sua carta para seu sobrinho e isso será a sua ruína. Será a prova de traição. Wolsey está em Roma, a rainha terá de concordar com o divórcio para salvar a própria pele. O rei ficará livre para se casar de novo. Nesse verão.
Pensei na convicção da rainha de que se conseguisse se manter até o outono, estaria segura.
— Noivado no verão, casamento público e coroação quando todos retornarmos de Londres no outono.
Engoli em seco. O conhecimento indiferente de que minha irmã seria rainha da Inglaterra e eu a prostituta descartada do rei me gelou por dentro.
— E eu?
— Pode ir para Hever. Quando Ana for rainha, poderá voltar à corte e servi-la como dama de companhia. Ela vai precisar de sua família ao seu redor. Mas por enquanto seu trabalho está feito.
— Posso ir hoje? — foi tudo o que perguntei.
— Se tiver alguém que a leve.
— Posso pedir a George?
— Sim.
Fiz uma mesura e virei-me para subir a colina, andando mais rápido.
— Fez bem com Felipez — disse meu tio enquanto eu me afastava apressada. — Poupou-nos tempo. A rainha acha que a ajuda está a caminho, mas ela está só.
— Fico feliz em servir aos Howard — eu disse. Era melhor ninguém saber que eu teria enterrado os Howard, cada um deles, exceto George, na câmara mortuária da família sem nunca achar que tinha sido uma perda.
George tinha cavalgado com o rei e não estava disposto a montar de novo.
— Estou com a cabeça pesada. Joguei e bebi na noite passada. E Francis é impossível... — interrompeu-se. — Não vou partir para Hever hoje, Maria, eu não aguentaria.
Peguei suas mãos e o fiz olhar para mim. Sabia que tinha lágrimas em meus olhos e não fiz nada para reprimi-las.
— George, por favor, e se tio Howard mudar de ideia? Por favor, me ajude. Por favor, me leve aos meus filhos. Por favor, me leve a Hever.
— Oh, não chore — disse ele. — Não chore. Sabe que eu odeio isso. Vou levá-la. É claro que vou. Mande alguém preparar os cavalos e partiremos imediatamente.
Ana estava no quarto quando entrei às pressas para arrumar algumas coisas em uma bolsa e providenciar que um baú fosse despachado em uma carroça.
— Aonde está indo?
— Hever. Tio Howard autorizou.
— E eu, como fico? — perguntou.
Ao ouvir o tom desesperado de sua voz, a olhei mais atentamente.
— E você? Você tem tudo. O que, por Deus, quer mais?
Deixou-se cair no banco diante do espelho, apoiou a cabeça nas mãos e olhou a própria imagem.
— Ele está apaixonado por mim — disse ela. — Está louco por mim. Passo o tempo todo atraindo-o e o rechaçando. Quando dança comigo, sinto seu membro enrijecer. Ele está louco para me possuir.
— Então?
— Tenho de mantê-lo assim, como uma tigela de molho em uma fornalha a carvão. Tenho de cozinhá-lo em fogo baixo. Se ele ferver e transbordar o que será de mim? Morrerei escaldada. Se ele esfriar e enfiar o pau em outra, então terei uma rival. Por isso preciso de você aqui.
— Enfiar seu pau? — repeti a imagem grosseira.
— Sim.
— Vai ter de se virar sem mim — eu disse. — Tem somente algumas semanas. O tio disse que ficará noiva nesse verão e que se casará no outono. Fiz a minha parte e já posso ir.
Nem mesmo me perguntou que parte era aquela. Ana sempre tinha uma visão como uma lanterna com o visor fechado. Ela só iluminava em uma direção. Era sempre Ana, e então os Bolena, depois os Howard. Nunca teria precisado do catecismo que George me gritava, para me lembrar de minhas lealdades. Ela sempre sabia onde o seu interesse estava.
— Posso fazer isso por mais algumas semanas — disse ela. — E então, terei tudo.
Verão de 1527
Depois que George me deixou em Hever, não soube mais dele nem de Ana enquanto a corte viajava pela região rural inglesa nos dias ensolarados daquele verão perfeito. Não liguei. Tinha os meus filhos e minha casa só para mim, e ninguém me vigiando para ver se eu estava pálida ou com inveja. Ninguém cochichava com outro, protegendo-se com a mão na boca, que eu estava com a aparência melhor ou pior do que a minha irmã. Eu estava livre da observação constante da corte, estava livre da disputa constante entre o rei e a rainha. E o melhor de tudo, estava livre da competição invejosa entre mim e Ana.
Meus filhos estavam em uma idade em que o dia voava em pequenas atividades. Pescávamos no fosso com pedaços de toucinho em barbantes. As duas crianças se revezavam sobre a sela de meu cavalo. Fazíamos expedições atravessando a ponte levadiça para o jardim, para colher flores, ou indo ao pomar, colher frutas. Pedimos uma carroça com feno e peguei as rédeas eu mesma. Fomos para Edenbridge e, lá, bebemos ale. Observei-os se ajoelharem na missa, os olhos arregalados na hóstia. Eu os observava adormecer no fim do dia, a cor corada do sol, os longos cílios roçando as bochechas rechonchudas. Esqueci-me de que existiam coisas como corte, rei e favorita.
Então, em agosto, recebi uma carta de Ana. Foi trazida por seu cavalariço de confiança, Tom Stevens, nascido e criado em Tonbridge.
— De minha senhora, para ser entregue em mãos — disse ajoelhando reverentemente diante de mim na sala de jantar.
— Obrigada, Tom.
— E ninguém além da senhora pode lê-la — disse ele.
— Muito bem.
— E ninguém além da senhora a verá, pois manterei guarda até que termine de lê-la, a ponha no fogo, e nós dois a observemos queimar, milady.
Sorri, mas comecei a me sentir incomodada.
— Minha irmã está bem?
— Como um cordeirinho no prado.
Rompi o lacre e abri os papéis.
Fique feliz por mim, pois está feito e o meu destino, selado. Serei rainha da Inglaterra. Pediu-me em casamento nessa noite e jurou que estará livre em um mês, quando Wolsey representará o Papa. Mandei o tio e papai nos juntar imediatamente, dizendo que queria partilhar minha alegria com minha família, de modo a haver testemunhas e ele não poder se esquivar. Ganhei dele um anel que devo manter oculto nesse meio-tempo, mas é um anel de noivado e ele jurou ser meu. Tenho feito o possível e o impossível. Capturei o rei e selei o destino da rainha. Subverti a ordem. Nada mais será como antes para nenhuma mulher deste país.
Vamos nos casar assim que Wolsey enviar a mensagem de que seu casamento foi anulado. A rainha ficará sabendo no dia da cerimônia e não antes. Ela irá para um convento na Espanha. Não a quero no meu país.
Pode ficar feliz por mim e por nossa família. Não me esquecerei de que me ajudou, e vai encontrar uma verdadeira amiga e irmã em Ana, rainha da Inglaterra.
Coloquei a carta no colo e olhei para a brasa na lareira. Tom deu um passo à frente.
— Devo queimá-la agora?
— Vou lê-la mais uma vez — repliquei.
Ele recuou, mas não olhei para as garatujas excitadas em tinta preta. Não precisava ser lembrada do que ela tinha escrito. Seu triunfo estava em cada linha. O fim da minha vida como a favorita da corte inglesa tinha-se consumado. Ana tinha vencido e eu, perdido; uma nova vida começaria para ela. Seria, e já se intitulava assim, Ana, a rainha da Inglaterra. E eu seria nada.
— Então, finalmente — sussurrei para mim mesma.
Dei a carta a Tom e o observei empurrá-la para o centro das brasas rubras. Contorceram-se com o calor, tornaram-se marrons e, depois, enegreceram. Eu continuava lendo as palavras: Subverti a ordem. Nada mais será como antes para nenhuma mulher deste país.
Não precisava guardar a carta para me lembrar do tom. Ana triunfante. E tinha razão. Nada mais seria o mesmo para nenhuma mulher nesse país. A partir de agora, nenhuma esposa, por mais obediente, por mais amorosa que fosse, estaria segura. Pois todos saberiam que, se uma mulher como a rainha Catarina da Inglaterra podia ser posta de lado sem nenhum motivo, qualquer outra também poderia.
A carta irrompeu, de súbito, na chama amarela, e observei-a queimar até se tornar cinza macia. Tom usou um atiçador para torná-la pó.
— Obrigada — eu disse. — Na cozinha, lhe darão comida — tirei do bolso uma moeda de prata e lhe dei. Fez uma mesura e se retirou olhando as pequenas partículas de cinza branca flutuando na fumaça, subindo a chaminé até o céu noturno, que eu via pelo grande arco de tijolos e fuligem.
— Rainha Ana — eu disse, escutando bem as palavras. — Rainha Ana da Inglaterra.
Velava o sono matinal de meus filhos, quando ouvi um cavaleiro chegar. Desci correndo achando que era George. Mas o cavalo que entrara no pátio batendo ruidosamente seus cascos pertencia a meu marido, William. Sorriu ao perceber minha surpresa.
— Não me acuse de ser o arauto de más notícias.
— Ana? — perguntei.
Ele assentiu com a cabeça.
— Foi enganada.
Levei-o ao salão e o acomodei na poltrona de minha avó perto do fogo.
— Bem — eu disse, depois de verificar se a porta estava fechada e a sala vazia. — Conte.
— Lembra-se de Francisco Felipez, o criado da rainha?
Disse sim com a cabeça, mas sem confessar nada.
— Ele pediu salvo-conduto de Dover para a Espanha, mas era uma simulação. Levou uma carta da rainha a seu sobrinho e enganou o rei. Partiu de Londres em um navio especialmente contratado naquela manhã mesmo, com destino à Espanha. Quando perceberam que o tinham perdido, ele já tinha se ido. Entregou a carta da rainha a Carlos de Espanha, e foi um verdadeiro inferno.
Meu coração bateu acelerado. Pus a mão no pescoço como se assim o aquietasse.
— Que tipo de inferno?
— Wolsey continua na Europa, mas o Papa foi prevenido e não o terá como seu representante. Nenhum dos cardeais o apoiarão e até mesmo o acordo de paz abortou. Estamos de novo em guerra com a Espanha. Henrique enviou seu secretário a Orvietto, direto para a prisão do Papa, para lhe pedir que anule o casamento ele próprio, e autorize-o a se casar com qualquer mulher que desejar, mesmo uma de quem a irmã ele possuiu, mesmo uma que ele já possuiu. Ou uma prostituta ou a irmã de uma prostituta.
Fiquei sem ar.
— Quer permissão para se casar com uma mulher que já possuiu? Meu Deus, eu?
A risada ríspida de William ressoou alto.
— Ana. Está tomando providências para se deitar com ela antes do casamento. As garotas Bolena não se deram muito bem nisso, se deram?
Recostei-me na cadeira, e recuperei o fôlego. Não queria que meu marido escarnecesse de minha impudicícia.
— E então?
— E então tudo depende do Santo Padre que está repousando aos cuidados do sobrinho da rainha, no Castelo de Orvietto, e é muito, mas muito improvável, eu diria, e quem não?, que publique uma bula que legitime o comportamento mais lascivo que se possa conceber: dormir com uma mulher, dormir com a sua irmã, e se casar com uma delas. Muito menos um rei de quem a esposa legítima é uma mulher de reputação imaculada, e que possui um sobrinho que domina a Europa.
Ofeguei.
— Então a rainha venceu.
Ele assentiu com a cabeça.
— De novo.
— Como está Ana?
— Encantadora — replicou ele. — É a primeira a acordar de manhã. Ri e canta o dia todo, agradando aos olhos, divertindo a mente, acompanhando o rei à missa, cavalgando com ele o dia todo, caminhando com ele nos jardins, assistindo a ele jogar tênis, sentando-se ao seu lado enquanto seus escreventes leem a sua correspondência, lendo filosofia com ele e a discutindo como um teólogo, dançando a noite toda, coreografando as mascaradas, planejando entretenimentos, é a última a se deitar.
— Mesmo? — perguntei.
— Uma amante perfeita — disse ele. — Nunca para. Parece uma morta em pé.
Houve um silêncio. Ele acabou sua taça.
— Estamos onde estávamos antes — eu disse incrédula. — Nem um passo à frente.
Lançou-me seu sorriso afetuoso.
— Não, acho que está pior do que estava — disse ele. — Pois agora está solta no descampado e todos os caçadores conhecem a caça. Caiu o véu dos Howard. Todos agora sabem que vocês estão querendo o trono. Antes, pareciam estar atrás de riqueza e posições, como todos nós, só que um pouquinho mais predatórios. Agora, todos nós sabemos que almejam a maçã no galho mais alto da árvore. Todos passarão a odiá-los.
— Não a mim — eu disse com veemência. — Estou aqui.
Sacudiu a cabeça.
— Vai para Norfolk comigo.
Gelei.
— O que quer dizer?
— Que não tem nenhuma utilidade para o rei, mas para mim, sim. Casei-me com uma garota, e ela continua a ser a minha esposa. Virá comigo para a minha casa e viveremos juntos.
— As crianças...
— Virão conosco. Viveremos como eu quiser. Como eu quiser — repetiu.
Levantei-me, de repente estava com medo daquele homem, o homem com que me casara e me deitara, e nunca conhecera.
— Continuo tendo uma família poderosa — avisei-o.
— Deve ficar feliz por isso — disse ele. — Pois se não tivesse, eu a teria posto de lado há cinco anos, quando colocou, pela primeira vez, chifres na minha cabeça. Estes não são bons tempos para esposas, senhora. Acho que a senhora e sua família descobrirão que podem escorregar nessa mixórdia toda que armaram e cair.
— Não fiz nada além de obedecer à minha família e ao meu rei — minha voz estava firme, não queria que percebesse que estava com medo.
— E agora obedecerá a seu marido — disse ele, a voz sedosa. — Como estou feliz por ter recebido treinamento durante esses anos.
Ana,
William disse que nós, os Bolena, estamos perdidos e está me levando, com as crianças, para Norfolk. Por Deus, fale com o rei em meu nome, ou a tio Howard e papai, antes de eu ser levada embora e não poder mais retornar.
M.
Desci a pequena escada de pedras que levava ao gabinete de meu pai e de lá saí para o pátio. Chamei um dos homens que nos serviam e o mandei levar minha carta à corte, que deveria estar em algum ponto da estrada entre Beaulieu e Greenwich.
Bateu no chapéu e pegou a carta.
— Certifique-se de que chegue às mãos da Srta. Ana — eu disse. — É importante.
Jantamos no salão. William foi educado como sempre, o cortesão perfeito, contando uma série de notícias e mexericos sobre a corte. Vovó Bolena não podia ser confortada. Estava ressentida, mas não se atrevia a se queixar abertamente. Como dizer a um homem que ele não poderia levar a sua mulher e filhos para a sua casa?
Assim que trouxeram as velas, levantou-se.
— Vou para a cama — disse mal-humorada. William levantou-se e fez uma reverência quando ela saiu da sala.
Antes de voltar a se sentar, tirou uma carta do bolso do gibão. Reconheci minha letra imediatamente. Era a minha carta a Ana. Jogou-a na mesa à minha frente.
— Não foi muito leal — comentou.
Peguei-a.
— Não é muito cortês deter meus criados e ler minhas cartas.
Ele sorriu.
— Meus criados e minhas cartas — disse ele. — Você é a minha esposa. Tudo o que é seu, é meu. Tudo o que é meu, continua sendo meu. Inclusive as crianças e a mulher que têm meu nome.
Eu estava sentada no lado oposto e bati com as mãos na mesa. Respirei fundo para me acalmar. Lembrei a mim mesma que embora não passasse de uma mulher de 19 anos, por quatro anos e meio tinha sido a amante do rei da Inglaterra, e nascido e sido criada como uma Howard.
— Agora ouça bem, marido — falei com a voz firme. — O que passou, passou. É passado. Ficou muito feliz ao receber seu título, suas terras, sua riqueza e o favor do rei. E todos sabemos por que isso tudo foi-lhe concedido. Não me envergonho disso, o senhor não se envergonha. Qualquer pessoa na nossa posição se sentiria feliz, e tanto o senhor quanto eu sabemos que não é nenhuma sinecura conquistar e conservar o favor do rei.
William pareceu pego de surpresa pela minha franqueza repentina.
— Os Howard não serão derrubados por esse infortúnio de Wolsey. O erro de cálculo foi dele, não nosso. O jogo está longe de ser encerrado, e se conhecesse meu tio tanto quanto eu o conheço, não se apressaria em supor que foi derrotado.
William assentiu com a cabeça.
— Tenho certeza de que nossos inimigos estão bem próximos de nós, que os Seymour estão dispostos a tomar o nosso lugar a qualquer momento, que uma garota Seymour já está sendo preparada, em algum lugar da Inglaterra, para atrair o olhar do rei. É sempre assim. Sempre há um rival. Mas neste momento, esteja ele livre ou não para se casar com ela, a estrela de Ana está em ascendência, e todos nós, Howard, inclusive o senhor, marido, serviremos melhor a nosso propósito se apoiarmos sua subida.
— É como se ela estivesse patinando em gelo derretendo — disse ele abruptamente. — Está tendo que se esforçar demais. Está suando para se manter ao seu lado. Não relaxa nem por um instante. Qualquer um que observe com atenção é capaz de ver isso.
— Que importância tem quem percebe, se ele não?
William riu.
— Porque ela não pode manter isso. Ela o tem na mão, mas não conseguirá tê-lo para sempre. Pode segurá-lo até o outono, mas nenhuma mulher consegue isso para sempre. Nenhum homem pode ser dominado da maneira como ela terá de fazer. Ela poderia tê-lo segurado por algumas semanas, mas agora que Wolsey fracassou, podem ser meses. Anos, quem sabe.
Parei por um momento com a ideia de Ana envelhecer enquanto se diverte.
— O que mais ela pode fazer?
— Nada — disse ele com um sorriso voraz. — Mas você e eu podemos ir para a minha casa e começar a viver como um casal. Quero um filho que se pareça comigo, não um lourinho Tudor. Quero uma filha com meus olhos escuros. E você vai dá-los a mim.
Baixei a cabeça.
— Não serei censurada.
Ele encolheu os ombros.
— Vai suportar o tratamento que eu lhe dispensar. É minha esposa, não é?
— Sim.
— A menos que queira a anulação, já que casamento parece estar fora de moda. Prefere ser encerrada em um convento?
— Não.
— Então, vá para a minha cama — disse ele simplesmente. — Subo em um minuto.
Fiquei parada. Não tinha pensado nisso. Olhou-me por cima da borda da taça de vinho.
— O quê?
— Podemos esperar até chegarmos em Norfolk?
— Não — replicou ele.
Despi-me devagar, pensando em minha relutância. Tinha me deitado com o rei dezenas de vezes sem desejo, simplesmente obedecendo a seus desejos e o satisfazendo. Durante esse último ano todo, quando percebi que ele desejava Ana, tinha me forçado a abraçá-lo e sussurrar “querido”, ciente de que era uma prostituta — e o homem, um tolo por não distinguir a moeda falsa da verdadeira.
Não era mais a virgem de 13 anos que havia sido quando colocada na cama com esse homem, para consumar o casamento. Mas ainda não era uma mulher cínica o bastante para me preparar, sem pavor, para a cama com um homem que parecia quase um inimigo. William tinha contas a acertar comigo, e eu estava com medo dele.
Ele não teve pressa. Subi para a cama lentamente e fingi dormir quando a porta foi aberta e ele entrou. Eu o ouvi se movendo pelo quarto, se despindo e deitando-se ao meu lado. Senti o peso das cobertas se erguer quando as puxou para cobrir seus ombros nus.
— Não dormiu, dormiu?
— Não — admiti.
No escuro, suas mãos me buscaram e encontraram meu rosto, acariciaram meu pescoço até meus ombros, depois, minha cintura. Eu estava usando roupa de linho, mas deu para sentir a frieza de suas mãos pelo tecido fino. Ouvi sua respiração se acelerar um pouco. Puxou-me para si e cedi, abrindo-me pronta para ele como sempre fazia com Henrique. Por um momento, me detive e pensei que não sabia o que fazer com qualquer outro homem senão Henrique.
— Você não quer? — perguntou ele.
— É claro que quero. Sou sua esposa — repliquei, sem me abalar.
Temi que me pegasse em uma recusa, o que permitiria que me pusesse de lado, mas seu suspiro de decepção demonstrou que esperava, genuinamente, uma reação mais calorosa.
— Vamos dormir, então.
Fiquei tão aliviada que não ousei dizer nada, para não arriscar que mudasse de ideia. Fiquei deitada, completamente imóvel, até ele se virar de costas para mim, puxar as cobertas até os ombros, bater a cabeça nos travesseiros e ficar em silêncio. Então, e só então, soltei a barriga e limpei o sorriso Howard falso do rosto. Adormeci. Tinha sobrevivido mais uma noite, continuava em Hever, os Howard tinham por que lutar. Tudo poderia acontecer no dia seguinte.
Fomos acordados por uma batida na porta. Eu estava de pé e fora da cama antes de William acordar e pegar minha mão. Abri a porta e disse rispidamente:
— Silêncio. Meu senhor está dormindo — como se essa fosse a minha única preocupação e não que quisesse sair de sua cama o mais rápido possível.
— Mensagem urgente da Srta. Ana — disse o criado e entregou-me uma carta.
Tudo o que quis foi jogar um manto nos ombros e ler a carta longe de William, mas ele tinha acordado e se sentado na cama.
— Nossa querida irmã — disse ele com um sorriso debochado. — O que ela diz?
Não tive outra escolha senão abri-la e lê-la na sua frente, e rezar para que Ana estivesse pensando em outra pessoa, pela primeira vez em sua vida egoísta.
Irmã,
O rei e eu ordenamos que você e seu marido venham ao nosso encontro em Richmond, onde todos seremos felizes.
Ana
William estendeu a mão e passei-lhe a carta.
— Ela adivinhou que vinha procurá-la quando deixei a corte — observou. Não falei nada. — E então, com um pulo, está livre de mim — disse ele com amargura. — E voltamos à estaca zero.
Tinha falado exatamente o que eu estava pensando, mas por trás da dureza de seu tom, percebi sua mágoa. Chifres não são nada confortáveis de se usar, e ele os estava usando fazia quase cinco anos. Fui, devagar, até a cama. Estendi-lhe minha mão.
— Sou sua mulher legítima — eu disse gentilmente. — E nunca me esqueci disso, apesar de a vida ter-nos separado. Se chegarmos a viver realmente como casados, William, terá uma boa esposa em mim.
Olhou para mim.
— Quem fala é uma Howard que teme a mudança da maré e acha que a vida como Lady Carey seria uma aposta mais segura do que ser a outra garota Bolena quando a primeira é arruinada?
Sua conjetura foi tão precisa que tive de virar o rosto para evitar que visse a verdade em meus olhos.
— Oh, William — repliquei, de maneira reprovadora.
Puxou-me para si, e segurou meu rosto com o dedo sob meu queixo.
— Querida esposa — disse com sarcasmo.
Fechei os olhos para não encarar seu escrutínio e, então, para a minha surpresa, senti o calor de sua face e seus beijos ternos e delicados em meus lábios. Senti o desejo crescer em mim como uma primavera há muito esquecida. Pus minhas mãos em volta do seu pescoço e puxei-o mais para perto.
— Comecei mal ontem à noite — disse ele gentilmente. — Por isso não agora e não aqui. Mas talvez em breve, em outro lugar, não acha, querida esposa?
Sorri para ele, ocultando meu alívio de não ser levada para Norfolk.
— Em breve — concordei. — Sempre que quiser, William.
Outono de 1527
Em Richmond, Ana era rainha em tudo, menos no nome. Recebeu novos aposentos, vizinhos aos do rei, tinha damas de honra, uma dúzia de vestidos novos, joias, dois cavalos de caça, sentava-se do seu lado, em uma cadeira só para ela, quando discutia questões do país com seus conselheiros. Só no salão, quando a verdadeira rainha chegava para jantar, era removida para uma mesa comum, enquanto Catarina se sentava para jantar com toda a sua majestade.
Eu dormiria nos aposentos de Ana, em parte para manter as aparências e ninguém poder pensar que a companhia constante do rei significava que eram amantes, mas na verdade para ajudá-la a mantê-lo por perto. Ele estava louco para possuí-la, argumentando que já que estavam comprometidos, podiam deitar juntos. Ana usava de todos os artifícios que lhe ocorriam. Protestava alegando a sua virgindade, dizendo que nunca se perdoaria se cedesse antes de seu casamento, embora só Deus soubesse como o desejava. Dizia que nunca se perdoaria se não se apresentasse a ele, na noite de núpcias, virgem intocada — embora só Deus soubesse como o desejava. Dizia que se ele a amava tanto quanto dizia, amaria a pureza de sua alma — embora só Deus soubesse blá-blá-blá — e dizia que tinha medo, que tanto ansiava quanto se retraía, que precisava de tempo.
— Quanto tempo leva? — perguntou rispidamente para mim e George. — Pelo amor de Deus! Para um maldito escrevente ir a Roma, fazer um papel ser assinado e voltar? Quanto tempo leva?
Estávamos em nosso quarto nos fundos de sua câmara privada, o único local privado em todo o palácio. Em todos os outros lugares, estávamos em um show público ininterrupto. Todos observavam Ana, buscando um indício, por mais sutil, de que o rei estava perdendo o interesse ou de que ele, finalmente, a possuíra. Ela era examinada por centenas de olhos atentos a qualquer sinal de abandono ou gravidez. Havia dias que eu e George nos sentíamos seus guarda-costas e outros, como esse dia, que nos sentíamos seus carcereiros. Estava de lá para cá no pequeno espaço, sibilando entre a cama e a janela, incapaz de ficar quieta, de parar de murmurar.
George pegou suas mãos e a parou. Um olhar relanceado por cima de sua cabeça me avisou para agarrá-la por trás se tivesse um de seus acessos de fúria.
— Ana, acalme-se. Vamos ter de sair e assistir à regata a qualquer momento. Tem de se acalmar.
Ela estremeceu e, então, a raiva abandonou-a e seus ombros caíram.
— Estou tão cansada — sussurrou.
— Eu sei — disse ele com firmeza. — Mas isso pode se prolongar por muito tempo ainda, Ana. Está jogando pelo maior prêmio do mundo. Tem de se preparar para um jogo de habilidade demorado.
— Se pelo menos ela morresse! — explodiu de repente.
O olhar de George se dirigiu imediatamente para o chão.
— Cale-se. Quem sabe — disse ele. — Ou Wolsey pode consegui-lo. Talvez agora mesmo esteja subindo o rio, e você poderá estar se casando amanhã, e estar na cama do rei amanhã à noite e grávida na manhã seguinte. Fique calma, Ana. Tudo depende de você manter sua bela aparência.
— E o seu gênio — acrescentei calmamente.
— Atreve-se a me aconselhar?
— Ele não vai tolerar acessos de raiva — adverti. — Passou toda a sua vida de casado com Catarina e ela nunca elevou nem mesmo uma sobrancelha para ele, muito menos a voz. Deixará que se exceda porque está louco por você, mas não vai tolerar suas cenas.
Pareceu que estouraria de novo, mas então balançou a cabeça admitindo a sensatez do que eu disse.
— Sim, eu sei. Por isso preciso de vocês dois.
Paramos um pouco mais perto dela, George sem largar suas mãos. Pus as mãos em seus quadris e a segurei firme.
— Sei — disse George. — Estamos nisso juntos. É para todos nós, Bolena e Howard. Todos subiremos ou cairemos. Estamos todos aguardando e jogando a longa partida. Você tem de liderar a investida, Ana. Mas estamos todos atrás de você.
Ela assentiu com a cabeça e se virou para o grande espelho na parede, refletindo a luz dos jardins e o rio lá fora. Puxou o capelo para trás, ajeitou o colar de pérolas. Virou a cabeça e olhou de lado seu reflexo e experimentou aquele sorriso malicioso, promissor.
— Estou pronta — disse ela.
Demos passagem para ela, como se já fosse rainha. Quando saiu com sua cabeça erguida, George e eu trocamos uma rápido olhar de atores que abriram caminho para o protagonista da peça, e seguimos atrás dela.
Meu marido estava no barco real para assistir à regata, sorriu para mim e me deixou um espaço ao seu lado, no banco. George juntou-se aos jovens da corte, Francis Weston entre eles. Olhei de relance para ver se Ana estava sentada ao lado do rei. Pelo movimento de sua cabeça e seus olhares pelo canto do olho para ele, vi que estava em total controle de si mesma e dele, mais uma vez.
— Caminhe comigo nos jardins antes do jantar — disse meu marido baixinho em meu ouvido.
Fiquei imediatamente alerta.
— Por quê?
Riu.
— Oh, vocês Howard! Porque gosto da sua companhia, porque lhe pedi isso. Porque somos marido e mulher e devemos viver como marido e mulher a partir de agora.
Sorri com pesar.
— Não me esqueci disso.
— Quem sabe não aprende a antecipá-lo com prazer?
— Quem sabe — repliquei amavelmente.
Olhou para o rio onde o sol da tarde lampejava na água. Os barcos dos nobres, conduzidos por seus remadores de libré, se alinharam sob as ordens do iniciador da competição. Compunham uma visão colorida com os remos erguidos como trombetas, aguardando o sinal de partida. Todos olhavam para o rei, que pegou um lenço de seda vermelho e deu para Ana. Ela ficou em pé na borda da barcaça real e o segurou bem alto. Manteve a pose por um momento, consciente de todos os olhares nela. De onde eu estava sentada com William, a víamos de perfil, a cabeça jogada para trás, o capelo também puxado para trás, a pele clara afogueada de prazer, o vestido verde-escuro apertado ao redor de seus seios e sua cintura fina. Era a própria essência do desejo. Deixou cair o lenço vermelho e os barcos foram impulsionados pelos remos. Não voltou a se sentar do lado do rei, por um momento se esqueceu de bancar a rainha. Debruçou-se na amurada, de modo que pudesse ver o barco Howard ultrapassar o Seymour.
— Vamos, Howard! — gritou de repente. — Vamos!
Como se ouvissem seu grito acima de todos os outros na margem, os remadores apressaram seus movimentos e o barco arremessou-se à frente, de novo mais veloz do que o Seymour. Eu agora estava em pé, todos torcendo, a barcaça real equilibrada precariamente, enquanto a corte toda esquecia-se de sua dignidade e se amontoava de um lado, gritando por sua casa favorita. O próprio rei rindo como um menino, de novo com o braço em volta da cintura de Ana, se controlava para não gritar por um ou outro, mas claramente querendo que os Howard ganhassem, já que isso causaria prazer à garota em seus braços.
Tornaram-se mais velozes, os remos um borrão de água esguichada e luz e, na linha de chegada, passaram claramente com meio comprimento na frente dos Seymour. Houve um rufar de tambores e as trombetas soaram para dizer aos Seymour que estava tudo terminado para eles, que tínhamos vencido a regata, que tínhamos vencido a corrida para ser a primeira família no reino, e que era a nossa garota que estava nos braços do rei com olho no trono da Inglaterra.
O cardeal Wolsey regressou, não triunfante com a anulação no bolso, mas em desgraça, e descobriu que nem mesmo podia falar com Henrique a sós. O homem que tinha gerido tudo, da quantidade de vinho servido nos banquetes aos termos da paz com a França e a Espanha, teve de se apresentar diante de Ana e Henrique, lado a lado, como se fossem monarcas conjuntamente. A garota que ele tinha repreendido por impudicícia e por sonhar alto demais sentava-se à direita do rei da Inglaterra e olhava para ele com os olhos estreitados como se não estivesse muito impressionada com o que ele tinha a dizer.
O cardeal estava velho demais e era astuto demais para demonstrar qualquer surpresa. Fez uma bela reverência a Ana e proferiu seu relato. Ana sorriu equanimente e escutou com atenção, inclinada à frente, sussurrou algum veneno no ouvido do rei, e ouviu um pouco mais.
— Idiota! — explodiu em nosso pequeno quarto. Eu estava sentada na cama, meus pés fora do caminho. Ela andava rapidamente de lá para cá, da janela para o pé da cama, como um dos leões na Torre. Achei que deixaria uma marca no assoalho polido e poderíamos mostrá-la àqueles que gostam de lembranças e sinais. Poderíamos chamá-la de “O Martírio do Prazo de Ana”.
— É um tolo, e não chegamos a lugar nenhum!
— O que ele disse?
— Que é muito grave abandonar a tia do homem que controla o Papa e metade da Europa, e que, se Deus quiser, Carlos de Espanha será derrotado pela Itália e França quando entrarem em guerra, e que a Inglaterra deveria prometer apoio, mas não arriscar nenhum homem nem perder nenhuma flecha.
— Esperamos?
Ela pôs as mãos para cima e gritou:
— Esperar! Não! Vocês podem esperar! O cardeal pode esperar! Henrique pode esperar! Mas eu tenho de dançar sem sair do lugar, tenho de ser vista como fazendo progressos sem, na verdade, estar fazendo nenhum. Tenho de manter a ilusão de coisas acontecendo, tenho de fazer Henrique se sentir cada vez mais amado, tenho de fazer com que acredite que as coisas estão cada vez melhores porque ele é rei e, durante toda a sua vida, lhe disseram que teria o melhor. Prometeram-lhe creme, ouro e mel, não posso dar-lhe “esperar”. Como vou prosseguir? Como vou fazer isso?
Desejei que George estivesse ali.
— Você vai conseguir — eu disse. — Vai continuar como está indo. Tem-se saído extraordinariamente bem, Ana.
Rangeu os dentes.
— Estarei velha e exausta antes que isso termine.
Virei-a delicadamente para o grande espelho.
— Olhe — eu disse.
Ana sempre se sentia confortada com a visão de sua própria beleza. Fez uma pausa e respirou fundo.
— Você é brilhante como sempre — lembrei-lhe. — Ele está sempre dizendo que é a mais inteligente da corte e que, se fosse homem, a faria cardeal.
Deu um breve sorriso selvagem.
— Isso deve agradar a Wolsey.
Sorri de volta, meu rosto perto do seu no espelho, nós duas, como sempre, um contraste de aparência, vivacidade e expressão.
— Com certeza — eu disse. — Mas não há nada que ele possa fazer.
— Ele agora não pode nem mesmo ver o rei sem marcar uma audiência — tripudiou. — Providenciei isso. Não perambulam mais juntos para conversarem como faziam antes. Nada é decidido sem eu estar presente. Ele não pode vir ao palácio se encontrar com o rei sem avisá-lo e sem me avisar. Foi empurrado para fora do poder e eu estou dentro.
— Você se saiu muito bem — eu disse, as palavras me repugnando enquanto a acalmavam. — E você tem anos e anos à sua frente, Ana.
Inverno de 1527
William e eu passamos a uma rotina confortável, quase doméstica, embora girasse em torno dos desejos do rei e de Ana. Continuei a dormir na cama dela e, para todos os efeitos, a viver com ela nos aposentos que dividíamos. Ao mundo de fora, continuávamos sendo damas de honra da rainha, em nada diferentes das outras.
Mas da manhã à noite, Ana ficava com o rei, tão perto quanto uma esposa recém-casada, como a principal conselheira, como a melhor amiga. Vinha ao nosso quarto só para trocar de roupa ou se deitar para descansar enquanto ele estava na missa, ou quando queria cavalgar com seus cavalheiros. Ela, então, ficava em silêncio, como se caída morta de exaustão. Seu olhar fixava apático o dossel, os olhos escancarados sem ver nada. Respirava lenta e regularmente como se estivesse nauseada. Não falava absolutamente nada.
Quando estava nesse estado, aprendi a deixá-la só. Tinha de descansar, de alguma maneira, da incessante representação em público. Tinha de ser ininterruptamente encantadora, não somente para o rei, mas para todos que relanceassem os olhos na sua direção. Um instante em que parecesse menos radiante, e o boato correria a corte e a engolfaria, engolfando todos nós juntos.
Quando ela se levantava e ia para perto do rei, William e eu ficávamos juntos. Éramos quase estranhos e ele me cortejava. Era a coisa mais estranha, mais simples e mais doce que um marido distanciado já tinha feito a uma esposa errante. Mandava-me pequenos buquês de flores, às vezes ramos de folhas de azevinho e bagas vermelhas de teixo. Enviou-me uma pequena pulseira de ouro. Escrevia-me os poemas mais belos, louvando meus olhos cinza e meu cabelo louro, pedindo meu favor como se eu fosse a sua amada. Quando eu mandava prepararem meu cavalo para montar com Ana, encontrava um bilhete metido no couro do estribo envolvido por um papel dourado. Ele me cobria de pequenos presentes e cartas, e sempre que estávamos juntos em um banquete da corte ou no local para arco e flecha, ou assistindo a partidas de tênis, ele me sussurrava com o canto da boca:
— Vá ao meu quarto, esposa.
Eu ria afetadamente, como se fosse a sua nova amante e não sua esposa há muitos anos, e me retirava. Ele escapulia alguns momentos depois, para me encontrar no espaço exíguo de seu quarto no muro oeste do Palácio de Greenwich. Então, me tomava nos braços e dizia de maneira encantadora e promissora:
— Temos somente um momento, meu amor, uma hora no máximo, e será só para você.
Ele me deitava na cama, desatava meu corpete, acariciava meus seios, minha barriga, e me agradava de todas as maneiras possíveis, até eu gritar de prazer: “Oh, William! Oh, meu amor! Você é o melhor, é o melhor, o melhor!”
E nesse momento, com o sorriso do homem exaltado através dos tempos, ejaculava em mim e repousava em meu ombro com um suspiro estremecido.
Para mim, era desejo, e apenas uma pequena parte de cálculo. Se Ana fracassasse e nós, os Bolena, caíssemos com ela, eu ficaria bem feliz de ter um marido que me amasse, que tivesse uma bela herdade em Norfolk, título e riqueza. Além disso, as crianças tinham seu nome, e ele poderia ordenar que fossem para a sua casa no momento que assim desejasse. Eu teria dito ao diabo que ele era o melhor dos melhores, se isso mantivesse meus filhos comigo.
Ana estava feliz na celebração do Natal. Dançou como se nada pudesse impedir que dançasse dia e noite. Jogou como se pudesse perder a fortuna de uma rainha. Ela tinha um acordo comigo e com George. Nós devolvíamos o dinheiro imediatamente quando ficávamos a sós. Mas quando perdia para o rei, o seu dinheiro ganho com tanto esforço desaparecia na bolsa real e ela não o via nunca mais. E tinha de perder para ele sempre que jogavam: ele odiava quando outro o vencia.
Ele a cobria de presentes e honras, a conduzia em todas as danças. Ela era a rainha coroada em todas as mascaradas. Mas era Catarina que continuava a se sentar na cabeceira da mesa e a sorrir para Ana como se a honra fosse uma concessão sua, como se Ana fosse sua representante, com seu consentimento. E a princesa Mary, a princesinha magra e pálida, sentava-se ao lado de sua mãe e sorria para Ana, como se achasse uma enorme graça dessa bela pretendente ao trono.
— Deus, eu a odeio — disse Ana, enquanto era despida à noite. — É a imagem perfeita dos dois, aquela coisa com cara de lua.
Hesitei. Era inútil discutir com Ana. A princesa Mary tinha se transformado em uma menina de rara beleza, com a cara tão plena de caráter e determinação, que não se duvidava nem por um instante que era filha daquela mãe. Quando olhava para Ana e para mim no salão, era como se olhasse através de nós, como se não passássemos de chapas de vidro e tudo o que quisesse saber é o que poderia haver além. Não parecia nos invejar, tampouco nos considerar rivais para a atenção de seu pai, nem mesmo um perigo para a posição de sua mãe. Via-nos como duas mulheres fúteis, tão sem substância que o vento poderia nos soprar para longe com uma rajada misericordiosa.
Era uma menina sagaz de somente 11 anos porém capaz de fazer um trocadilho ou um gracejo em inglês, francês, espanhol ou latim. Ana era arguta e erudita, mas não tinha tido a orientação dessa princesinha, e a invejava também por isso. E a menina tinha a presença da mãe. Viesse Ana a se tornar ou não rainha, tinha nascido e sido criada para ser uma abocanhadora de privilégios e posição. A princesa Mary tinha nascido para direitos com que apenas sonhávamos. Tinha uma firmeza que jamais conseguiríamos aprender a ter. Tinha a elegância proveniente de sua absoluta confiança em sua posição no mundo. É claro que Ana a odiava.
— Ela não é nada — eu disse, confortando-a. — Deixe-me escovar seu cabelo.
Houve uma batida leve na porta e George deslizou para dentro do quarto antes mesmo de termos tempo de dizer “Entre”.
— Estou apavorado de ser visto por minha mulher — disse como desculpa. Mostrou uma garrafa de vinho para nós e três taças de estanho. — Ela esteve dançando e está excitada hoje. Quase ordenou que eu fosse para a sua cama. Se me vir entrando aqui, vai ficar uma fera.
— Ela deve ter visto. — Ana aceitou uma taça do vinho de George. — Nada escapa a essa mulher.
— Ela deveria ter sido espiã. Ia adorar ser espiã especializada em fornicação.
Dei uma risadinha e deixei que me servisse vinho.
— Não é difícil demais seguir sua pista. Você está sempre aqui.
— É o único lugar em que posso ser eu mesmo.
— Não é o bordel? — perguntei.
Sacudiu a cabeça.
— Não vou mais, perdi a vontade.
— Está apaixonado? — perguntou Ana com cinismo.
Para a minha surpresa, ele desviou o olhar e corou.
— Eu não.
— O que foi, George? — perguntei.
Ele sacudiu a cabeça.
— Algo e nada. Algo que não posso contar e nada que eu me atreva a fazer.
— Alguém da corte? — perguntou Ana, intrigada.
Levou um banco para perto da lareira e olhou gravemente para as brasas.
— Se eu contar, terão de jurar não contar a ninguém.
Concordamos com um movimento da cabeça, totalmente irmãs em nossa determinação de saber tudo.
— Mais do que isso, não poderão falar sobre isso nem mesmo uma com a outra quando eu sair. Não quero nenhum comentário pelas minhas costas.
Dessa vez, hesitei.
— Jurar nem mesmo falar disso entre nós?
— Sim, ou não direi mais nada.
Hesitamos, mas a curiosidade nos venceu.
— Está bem — disse Ana, falando por nós duas. — Juramos.
O rosto jovem e belo de George franziu-se e ele o escondeu na manga de sua jaqueta.
— Estou apaixonado por um homem — disse simplesmente.
— Francis Weston — completei imediatamente.
Seu silêncio confirmou meu palpite.
A cara de Ana foi de terror estupefato.
— Ele sabe?
Negou com a cabeça, ainda enterrada na manga de veludo ricamente bordada.
— Alguém mais sabe?
Sua cabeça castanha negou de novo.
— Não deverá nunca deixar passar qualquer sinal disso, nunca contar a ninguém — ordenou ela. — Esta tem de ser a primeira e última vez que falou disso a alguém, mesmo a nós duas. Tem de tirá-lo de seu coração e de sua mente, e nunca mais sequer voltar a olhar para ele.
Ergueu os olhos para ela.
— Sei que é impossível.
Mas seu conselho não foi para protegê-lo.
— Você me põe em perigo — disse ela. — O rei jamais se casará comigo se você nos envergonhar.
— É por isso? — perguntou ele com uma raiva súbita. — Isso é tudo o que importa? Não importa que eu esteja apaixonado e tenha caído em pecado. Não importa que eu nunca seja feliz, casado com uma cobra e apaixonado por um destruidor de corações, mas somente, somente, que a reputação da Srta. Ana Bolena não seja maculada.
Imediatamente, ela se lançou sobre ele, as mãos abertas como garras, e ele agarrou seus pulsos antes que seu rosto fosse arranhado.
— Olhe para mim! — sussurrou ela asperamente. — Não abri mão de meu único amor, não parti meu coração? Você então não me disse que o preço valia a pena?
Ele a mantinha afastada, mas ela não parava.
— Olhe para Maria! Não a tiramos de seu marido e a mim do meu? Agora é a sua vez de abrir mão de alguém. Tem de perder o grande amor de sua vida, como eu perdi o meu, como Maria perdeu o dela. Não fique se lamuriando para mim por causa de amor. Você assassinou o meu e nós o enterramos juntos, e agora ele desapareceu.
George estava lutando com ela, segurei-a por trás, puxando-a dele. De repente, a luta a abandonou e nós três ficamos parados, como mascarados formando um quadro: eu abraçada à sua cintura, ele agarrando seus pulsos, as mãos dela a milímetros do rosto dele.
— Deus meu, que família a nossa — disse ele espantado. — Deus meu, a que chegamos?
— É aonde vamos que interessa — disse ela asperamente.
George encarou-a e balançou a cabeça devagar, como um homem fazendo um voto.
— Sim — disse ele com um suspiro. — Não me esquecerei.
— Vai desistir de seu amor — declarou ela. — E nunca mais mencionará o seu nome.
De novo, o assentimento da derrota com um movimento da cabeça.
— E não se esquecerá de que nada tem mais importância do que isso, minha estrada para o trono.
— Não me esquecerei.
Senti-me estremecer e larguei sua cintura. Havia algo nessa promessa sussurrada que não se parecia com um pacto com Ana, mas uma promessa ao diabo.
— Não fale dessa maneira.
Os dois olharam para mim, os olhos castanho-escuros dos Bolena, os narizes retos e compridos, aquela boca pequena peculiar e impertinente.
— Não vale a vida em si — eu disse, tentando descontrair.
Nenhum dos dois sorriu.
— Vale — replicou Ana, simplesmente.
Verão de 1528
Ana dançou, montou, cantou, jogou, velejou no rio, fez piqueniques, andou pelos jardins, e encenou o quadro vivo como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. Foi definhando cada vez mais, as olheiras escurecendo cada vez mais, e começou a usar pó para esconder os olhos fundos. Eu afrouxava os cordões de seu vestido à medida que perdia peso e, então, tivemos de acolchoar seu vestido para seus seios parecerem tão cheios quanto antes.
Encontrou meus olhos no espelho, quando eu atava seu vestido, e pareceu, em cada detalhe, a irmã mais velha. Parecia anos mais velha do que eu.
— Estou tão cansada — falou em um sussurro. Até mesmo seus lábios estavam pálidos.
— Eu avisei — falei sem simpatia.
— Você teria feito o mesmo se tivesse sagacidade e beleza para prendê-lo.
Inclinei-me à frente de modo que o meu rosto ficasse próximo do seu e pudesse ver o viço em minha face e o brilho em meus olhos, a intensidade de minha cor do lado de sua própria fadiga.
— Não tenho argúcia nem beleza? — repeti.
Virou-se para a cama.
— Vou descansar — disse desajeitadamente. — Pode ir.
Eu a coloquei na cama e saí, descendo apressada a escadaria de pedras para os jardins. Fazia um dia lindo de sol forte, a luz reluzindo no rio. Os pequenos barcos atravessando o rio oscilavam para dentro e fora dos navios maiores que esperavam a maré subir para zarparem para o mar. Um vento leve trazia o cheiro de sal e aventura ao jardim bem-cuidado. Vi meu marido andando com dois homens no terraço de baixo e acenei para ele.
Imediatamente, pediu licença e veio em minha direção, pondo um pé na escada e erguendo os olhos para mim.
— E então, Lady Carey? Vejo que continua bela como sempre hoje.
— Como está, Sir William?
— Estou bem. Onde estão Ana e o rei?
— Ela está em seu quarto e o rei, cavalgando.
— Você está livre?
— Como um pássaro no céu.
Sorriu, aquele sorriso, seu sorriso secreto e consciente.
— Concede-me o prazer de sua companhia? Podemos dar uma volta?
Desci até ele, adorando a sensação de seus olhos em mim.
— Certamente.
Pôs minha mão em seu braço e caminhamos ao longo do terraço inferior, ele ajustando seu passo ao meu, se inclinado para mim, sussurrando em meu ouvido:
— É a coisa mais deliciosa, minha esposa. Precisamos andar por muito mais tempo?
Mantive o rosto para a frente, mas não consegui conter uma risadinha.
— Qualquer um que tenha me visto sair do palácio vai saber que não fiquei fora por mais de um instante.
— Oh, mas se está obedecendo a seu marido — salientou de maneira persuasiva. — Algo admirável em uma esposa.
— Se me ordenar — sugeri.
— Ordeno — disse ele com firmeza. — Estou realmente ordenando.
Acariciei o debrum de pele de seu gibão com as costas de minha mão.
— Então, o que posso fazer senão obedecer?
— Excelente — virou-se e me conduziu por uma das portas do pequeno jardim e no exato momento em que se fecharam atrás de nós, me abraçou e beijou. Depois me levou ao seu quarto, onde passamos a tarde fazendo amor, enquanto Ana, a afortunada garota Bolena, a garota Bolena favorita, sentia muito medo deitada em sua cama de solteira.
Nessa noite, houve entretenimento e dança. Ana, como sempre, foi a protagonista e eu, uma a mais entre outras. Ana estava mais pálida do que nunca, o rosto branco em um vestido prateado. Era de tal modo um fantasma de sua beleza anterior que até minha mãe notou. Chamou-me com um movimento de seu dedo de onde eu estava esperando para dizer minha fala na peça e dançar a minha dança.
— Ana está doente?
— Não mais do que sempre esteve — repliquei sem rodeios.
— Diga-lhe para descansar. Se perder a aparência, perderá tudo.
Concordei com a cabeça.
— Ela descansa, mãe — repliquei com cautela. — Deita-se, mas não há repouso para o medo. Agora tenho de ir e dançar.
Assentiu com um movimento da cabeça e me deixou ir. Rodeei o salão e fiz minha entrada na mascarada. Eu era uma estrela descendo do céu a oeste e abençoando a terra com a paz. Era uma espécie de referência à guerra na Itália e eu sabia as palavras em latim, mas não me dei ao trabalho de entender o que significavam. Vi Ana fazer uma careta e percebi que tinha pronunciado algo errado. Eu teria sentido vergonha se meu marido, William, não tivesse piscado para mim e reprimido o riso. Ele sabia que eu deveria ter decorado minha fala nessa tarde, quando estava na cama com ele.
A dança acabou e alguns cavalheiros entraram na sala usando máscaras e dominós e tomaram suas parceiras para a dança. A rainha ficou perplexa. Quem seriam? Ficamos todos perplexos, e ninguém mais que Ana, quando um homem corpulento, mais alto do que os outros, convidou-a a dançar com ele. Dançaram até a meia-noite e Ana riu de sua surpresa ao descobrir que era o rei. Continuava pálida como seu vestido no fim da noite, nem mesmo a dança havia corado sua face.
Fomos para o quarto juntas. Tropeçou na escada e quando a segurei, senti sua pele fria e úmida de suor.
— Ana, você está bem?
— Apenas cansada — replicou com a voz fraca.
Em nosso quarto, quando lavou o pó do rosto, vi que a sua pele estava da cor de um pergaminho. Estava tremendo, não quis se lavar nem pentear o cabelo. Caiu na cama e seus dentes começaram a bater. Abri a porta e mandei um criado ir correndo chamar George. Ele chegou ainda colocando o manto sobre sua camisa de dormir.
— Chame um médico — eu disse. — Isto é mais do que cansaço.
Olhou para além de mim, para Ana arqueada na cama, as cobertas puxadas até os ombros, a pele tão amarela quanto a de uma velhinha, os dentes batendo de frio.
— Meu Deus, o suor — disse ele, referindo-se à doença mais aterrorizadora depois da peste.
— Acho que sim — eu disse implacavelmente.
Olhou para mim com medo.
— O que será de nós se ela morrer?
A febre terçã chegou à corte como uma vingança. Meia dúzia dos que dançavam estava de cama. Uma garota já tinha morrido, a criada de Ana estava nauseada nos quartos que dividia com outras seis, e enquanto eu esperava que o médico mandasse os remédios para Ana, recebi uma mensagem de William dizendo para que não me aproximasse dele, e que tomasse um banho com essência de aloé na água, pois tinha contraído o suor e rezava a Deus que não o tivesse transmitido a mim.
Fui até sua câmara e falei com ele da porta. Tinha a mesma cor amarelada de Ana no rosto e também estava sob uma pilha de cobertores e tremendo de frio.
— Não entre — ordenou. — Não chegue mais perto.
— Está sendo tratado? — perguntei.
— Sim, e serei levado de carroça para Norfolk — disse ele. — Quero estar em casa.
— Espere alguns dias, até ficar melhor.
Olhou para mim, da cama, seu rosto contorcido por causa da doença.
— Ah, minha tola mulher criança — disse ele. — Não posso me dar ao luxo de esperar. Cuide das crianças em Hever.
— É claro que sim — repliquei, ainda sem entender.
— Acha que fizemos mais um bebê? — perguntou.
— Ainda não sei.
William fechou os olhos por um momento como se estivesse fazendo um pedido.
— O que tem de acontecer está nas mãos de Deus — disse ele. — Mas eu gostaria de ter feito um verdadeiro Carey em você.
— Vai ter muito tempo para isso — eu disse. — Quando você estiver melhor.
Deu-me um breve sorriso.
— Pensarei nisso, minha mulher — disse ele com ternura, apesar de seus dentes baterem. — E se eu me ausentar da corte durante algum tempo, cuide-se bem e de nossos filhos.
— É claro — eu disse. — Mas vai voltar assim que estiver melhor?
— Assim que me curar, voltarei — prometeu. — Vá para Hever e fique com as crianças.
— Não sei quando me deixarão ir.
— Vá hoje mesmo — aconselhou. — Haverá um tumulto quando souberem quantos contraíram a febre. É muito grave, meu amor. É muito grave em Londres. Henrique vai fugir como uma lebre. Guarde bem minhas palavras. Ninguém vai procurá-la por uma semana, e ficará segura com as crianças no campo. Procure George e faça com que a acompanhe. Agora, vá.
Hesitei por um instante, tentada a obedecer-lhe.
— Maria, é a última coisa que lhe peço, por isso só posso estar falando sério. Vá para Hever e cuide das crianças enquanto a corte estiver doente. Seria muito ruim para os bebês perderem pai e mãe para a febre.
— O que quer dizer? Você vai morrer?
Sorriu com esforço.
— É claro que não. Mas ficarei mais feliz na viagem para casa, se souber que está a salvo. Procure George e diga que eu a mandei ir e que ele a escoltasse em segurança.
Dei meio passo para dentro do quarto.
— Não chegue mais para perto! — gritou. — Vá!
Seu tom foi rude, dei meia-volta e saí do quarto meio chateada, fechei a porta atrás de mim com uma batida, para que soubesse que eu tinha sido ofendida.
Foi a última vez que o vi vivo.
George e eu estávamos em Hever por pouco mais de uma semana, quando Ana chegou, em uma carroça aberta, praticamente sozinha. Desmaiou de exaustão e nem eu nem George tivemos coragem de cuidar dela nós mesmos. Uma curandeira de Edenbridge foi chamada e a levou ao quarto da torre. Pediu porções enormes de comida e vinho, parte das quais, esperamos, foi realmente consumida por Ana. O país todo ou estava doente ou apavorado com a doença. Duas criadas deixaram o castelo para cuidar de seus pais em aldeias vizinhas e as duas morreram. Era uma doença assustadora e George e eu acordávamos toda manhã suando de terror e passávamos o resto do dia nos perguntando se estaríamos destinados a morrer.
O rei, aos primeiros sinais da doença, havia partido para Hunsdon. Isso tudo foi péssimo para os Bolena. A corte era um caos, a região dominada pela morte. O pior de tudo: a rainha Catarina estava bem, a princesa Mary estava bem, e as duas, com o rei, viajaram para passar fora todo o verão, como se fossem os únicos abençoados pelos céus, ilesos em um mar de doença.
Ana lutou pela vida, como tinha lutado pelo rei, uma batalha longa e obstinada, na qual reuniu toda a sua determinação para resistir às possibilidades praticamente invencíveis. Chegaram cartas de amor do rei, marcadas Hunsdon, Tittenhanger, Ampthill, recomendando um tratamento ou outro, jurando que não a tinha esquecido e que ainda a amava. Mas claramente o divórcio não progrediria enquanto não houvesse negócios sendo feitos, quando até mesmo o cardeal estava doente. Estava quase esquecido, e a rainha continuava sentada ao seu lado e a sua simpática princesinha era a sua melhor companhia e entretenimento. Tudo havia, de certa maneira, se paralisado para o verão e a sensação de Ana do tempo estar voando e o seu desespero não significavam nada para o homem cujo maior medo era a doença e que, miraculosamente, foi abençoado com a boa saúde no meio de um mar de desgraça.
Para nossa sorte, a sorte dos Bolena, a febre não chegou a Hever, e as crianças e eu ficamos a salvo nos campos e campinas verdes familiares. Recebi uma carta da mãe de William dizendo que ele tinha chegado em casa, como queria, antes de morrer. Era uma carta breve e fria que terminava me congratulando por agora voltar a ser uma mulher livre, como se achasse que meus votos matrimoniais nunca tivessem me refreado no passado.
Li a carta no jardim, em meu lugar preferido, olhando na direção do fosso e dos muros de pedra do castelo. Pensei no homem que eu tinha traído e que, nos últimos meses, tinha se tornado um amante e marido tão encantador. Sabia que nunca lhe tinha dado o que merecia. Tinha-se casado com uma criança e sido deixado por uma garota. E quando voltei para ele, como mulher, havia sido sempre com um elemento de cálculo em meu beijo.
Agora me dava conta de que a sua morte me deixara livre. Se conseguisse escapar de outro casamento, poderia comprar uma pequena herdade nas terras de minha família, em Kent ou Essex. Teria uma terra minha e safras que veria crescer. Poderia, finalmente, me tornar uma mulher independente, em vez de amante de um homem, esposa de outro, e irmã de um Bolena. Poderia criar meus filhos sob o meu próprio teto. Evidentemente, teria de persuadir um homem, Howard, Bolena ou o rei, a me dar uma pensão de modo que pudesse educar meus filhos e me alimentar, mas seria possível eu ganhar o bastante para levar uma vida modesta no campo, na minha própria pequena fazenda.
— Não pode estar realmente querendo ser uma ninguém — exclamou George quando delineei esse plano enquanto caminhávamos pela floresta. As crianças se escondiam atrás das árvores e nos atacavam de surpresa, enquanto andávamos devagar à frente delas. Fazíamos o papel de dois cervos. George usava galhos em seu chapéu para serem os cornos. Volta e meia ouvíamos o risinho irresistível de excitação do pequeno Henrique, ao se aproximar ruidosamente, acreditando-se invisível e não escutado. Não pude evitar pensar no entusiasmo de seu pai por disfarces e sua convicção de que confundia todos com esse estratagema tão simples. Agora, eu fazia a vontade de meu filho e fingia não ouvir sua corrida de uma árvore a outra, nem vê-lo ir da sombra para o mato.
— Você foi a favorita da corte — protestou George. — Por que agora não iria querer fazer um grande casamento? Nosso pai e nosso tio poderiam conseguir a nata da Inglaterra para você. Quando Ana se tornar rainha, você poderá ter um príncipe francês.
— Continua a ser trabalho de mulher, seja feito no salão ou na cozinha — eu disse causticamente. — Sei disso bem o bastante. Significa não ganhar nada para si mesma e que é tudo para seu marido ou senhor. Significa obedecer-lhe tão prontamente quanto um criado. Significa tolerar qualquer coisa que ele escolher fazer, e sorrir ao fazê-lo. Servi à rainha Catarina nesses últimos anos. Vi o que a vida foi para ela. Eu não seria uma princesa, nem mesmo por seu dote. Tampouco seria uma rainha. Eu a vi ser aviltada, humilhada, insultada, e tudo o que ela podia fazer era se ajoelhar em seu genuflexório, rezar por uma pequena ajuda, e se levantar e sorrir para a mulher que triunfava sobre ela. Isso não me parece tão atraente, George.
Catarina, atrás de nós, fez um farfalhar e agarrou meu vestido.
— Peguei! Peguei vocês!
George virou-se e a ergueu, jogou-a para o alto, depois a passou para mim. Ela agora estava pesada, uma menininha de 4 anos, de corpo rijo, cheirando a sol e folhas.
— Menina inteligente — eu disse. — É uma grande caçadora.
— E ela? — perguntou George. — Vai recusar-lhe uma importante posição no mundo? Ela será a sobrinha da rainha da Inglaterra. Pense nisso.
Hesitei.
— Se as mulheres pudessem ter mais — eu disse com anseio. — Se pelo menos as mulheres pudessem ter mais para si mesmas. Ser mulher, na corte, é como assistir eternamente a uma torta ser assada na cozinha. Todas aquelas coisas boas, e não se pode ter nada.
— E Henrique? — disse ele, de maneira provocadora. — O seu Henrique é o sobrinho do rei da Inglaterra, conhecido como seu filho. Se, Deus não permita!, Ana não gerar um varão, Henrique poderá reivindicar o trono da Inglaterra, Maria. Seu filho é filho de um rei, e pode ser seu herdeiro.
Não me entusiasmei com a ideia. Olhei temerosa a floresta em que meu menino leal se esforçava para nos acompanhar, cantarolando músicas de caça que ele mesmo tinha composto.
— Queira Deus que esteja a salvo — foi tudo o que eu disse. — Queira Deus que esteja a salvo.
Outono de 1528
Ana sobreviveu à doença e se fortaleceu no ar limpo de Hever. Quando saiu de sua câmara, continuei sem me sentar com ela, de tanto medo de transmitir a doença a meus filhos. Tentou ser espirituosa em relação aos meus receios, mas havia uma certa rispidez em sua voz. Tinha-se sentido traída pelo rei quando ele fugira da corte e mortalmente ofendida por ele passar o verão com a rainha Catarina e a princesa Mary.
Estava determinada a encontrá-lo assim que o tempo refrescasse e a febre terçã desaparecesse. Eu esperava ser omitida na corrida de Ana ao trono.
— Tem de voltar comigo — disse Ana.
Estávamos no nosso lugar preferido, próximo ao fosso do castelo. Ana estava sentada no banco de pedra, George esparramado na relva à sua frente. Eu estava sentada na relva, recostada no banco, vigiando meus filhos baterem, cerimoniosamente, os pezinhos na água. Era raso na ribanceira, mas eu não tirava os olhos deles.
— Maria! — a voz de Ana foi ríspida.
— Eu ouvi — falei sem virar a cabeça.
— Olhe para mim.
Relanceei os olhos para ela.
— Tem de voltar comigo, não vou conseguir sem você.
— Não vejo por quê...
— Eu vejo — disse George. — Ela vai precisar de uma companheira de quarto em quem possa confiar. Quando fechar a porta do quarto terá de saber que ninguém irá tagarelar para a rainha que ela está chorando nem contar a Henrique que está furiosa. Representa durante todos os dias de sua vida, precisa estar acompanhada de um grupo de atores itinerantes. Tem de ter algumas pessoas em volta que ela conhece, e que a conhecem. Não pode ser tudo só mascarada.
— Sim — disse Ana, surpresa. — É exatamente isso. Como sabe?
— Porque Francis Weston é um amigo para mim — replicou George francamente. — Preciso de alguém de quem não sou nem irmão, nem filho, nem marido.
— Nem amante — provoquei.
Sacudiu a cabeça.
— Só amigo. Mas sei como Ana precisa de você porque preciso dele.
— Bem, e eu preciso de meus filhos — eu disse obstinadamente. — E Ana sabe se virar muito bem sem mim.
— Estou pedindo como irmã — algo em sua voz fez com que olhasse para ela um pouco mais atentamente. Essa doença tinha lhe tirado um pouco da arrogância, por um momento pareceu uma mulher que precisava da ternura da irmã. Devagar, bem devagar, com um gesto desconhecido, Ana estendeu a mão para mim.
— Maria... Não posso fazer isso sozinha — sussurrou. — Quase morri da última vez. Sabia que algo se romperia dentro de mim, se eu tivesse de prosseguir. Agora, tenho de voltar à corte, e tudo começará mais uma vez.
— Não dá para conservar o rei sem tanto esforço?
Inclinou-se para trás e fechou os olhos. Por um momento, deixou de parecer a jovem mais determinada, mais brilhante em uma corte brilhante. Pareceu uma garota exausta que tinha chegado ao fundo de seu próprio medo.
— Não. A única maneira é ser a melhor que existe.
Toquei em sua mão e seus dedos seguraram os meus.
— Vou ajudar.
— Ótimo — disse ela baixinho. — Preciso realmente de você, sabe disso. Fique do meu lado, Maria.
De volta à corte, no Palácio de Bridewell, o jogo tinha mudado de novo. O Papa, finalmente cansado das exigências intermináveis da Inglaterra, estava enviando um teólogo italiano a Londres, o cardeal Campeggio, para decidir definitivamente a questão do casamento do rei. Longe de se sentir ameaçada, a rainha pareceu acolher bem a sua vinda. Estava com boa aparência. Havia um viço em sua pele por causa do sol do verão e ela estivera feliz na companhia de sua filha. O rei, abalado pelo pavor à infecção, tinha sido fácil de ser entretido. Tinham analisado juntos as causas da doença que varrera o país, planejado medidas para preveni-la, e composto orações especiais que ordenaram ser proferidas em todas as igrejas. Juntos tinham-se preocupado com a saúde do país que governavam fazia tanto tempo. Ana, embora nunca distante do pensamento do rei, perdeu parte de seu glamour quando passou a ser meramente mais um dos muitos doentes. Mais uma vez, a rainha tinha sido a amiga constante e confiável em um mundo perigoso.
Percebi a diferença nela no momento em que entramos em seu aposento no palácio. Usava um vestido novo de veludo vermelho-escuro, que se ajustava à cor quente de sua pele. Não parecia uma jovem — nunca mais seria uma jovem —, mas tinha uma postura confiante, que Ana jamais aprenderia.
Recebeu a mim e Ana com um sorriso sutil irônico. Perguntou sobre meus filhos, sobre a saúde de Ana. Se chegou a pensar, por um instante, que o país teria sido um lugar melhor se a febre tivesse levado minha irmã, como levara tantos outros, não deu nem sinal.
Teoricamente, continuávamos a ser suas damas de honra, apesar de a sala de audiências e a câmara privada, que nos haviam sido destinadas, serem quase tão grandes quanto seus aposentos. Suas damas saíam rapidamente de seus aposentos para os nossos, para as salas de audiências do rei. A disciplina da corte estava sendo derrubada, a sensação, agora, era que praticamente tudo podia acontecer. O rei e a rainha mantinham uma relação de cortesia. O delegado papal estava vindo de Roma, mas se retardando excessivamente. Ana estava de volta à corte, mas o rei passara um verão feliz sem ela, talvez sua paixão tivesse arrefecido.
Ninguém se atrevia a prever que rumo os eventos tomariam, portanto, havia um fluxo regular de pessoas chegando para prestar seus respeitos à rainha, e saindo de seus aposentos para os de Ana. Cruzavam com outro fluxo que apostava em outro cavalo. Dizia-se até mesmo que Henrique, no fim, voltaria para mim e nossos filhos crescidos. Não dei atenção, até saber que meu tio tinha rido com o rei falando de seu belo menino em Hever.
Eu sabia muito bem, assim como Ana, assim como George, que meu tio nunca fazia nada por acaso. Ana levou George e a mim à sua câmara privada e nos repreendeu.
— O que está acontecendo? — perguntou.
Sacudi a cabeça, mas George pareceu evasivo.
— George?
— É verdade que a sua estrela sobe e desce — replicou ele sem jeito.
— O que quer dizer? — perguntou friamente.
— Houve uma reunião de família.
— Sem mim?
George ergueu as mãos como um esgrimista derrotado.
— Fui convocado. Não falei. Não abri a boca.
Ana e eu nos lançamos sobre ele imediatamente.
— Reuniram-se sem a nossa presença? O que disseram? O que querem agora?
George se afastou um pouco.
— Está bem! Está bem! Não sabem para que lado saltar. Não sabem que caminho seguir. Não querem que Ana saiba para não se sentir ofendida. Mas agora que Maria, por sorte, ficou viúva, e ele perdeu o interesse em Ana nesse verão, estão pensando se não seria melhor mudarem para você de novo.
— Ele não perdeu o interesse! — exclamou Ana. — Não serei suplantada. — Voltou-se contra mim. — Sua cadela! Isso foi coisa sua!
Sacudi a cabeça.
— Não fiz nada.
— Voltou para a corte!
— Porque você insistiu. Mal olhei para o rei. Mal trocamos duas palavras.
Afastou-se de mim e afundou a cara na cama, como se não suportasse olhar para nenhum de nós dois.
— Mas você teve um filho dele — se lamuriou.
— É isso, exatamente — disse George delicadamente. — Maria teve um menino e, agora, está livre para se casar. A família acha que o rei pode inclinar-se para ela. E a sua dispensação aplica-se aos dois. Ele pode se casar com ela, se quiser.
Ana ergueu-se dos travesseiros, o rosto em lágrimas.
— Eu não o quero — eu disse exasperada.
— Isso não importa, importa? — replicou ela acidamente. — Se mandarem que avance, avançará e tomará o meu lugar.
— Como tomou o meu — lembrei-lhe.
Sentou-se na cama.
— Uma ou outra garota Bolena — seu sorriso foi tão amargo como se tivesse mordido um limão. — Uma de nós pode chegar a ser a rainha da Inglaterra, e ainda assim continuar não sendo nada para a nossa família.
Ana passou as semanas seguintes extasiando o rei, tudo outra vez. Afastou-o da rainha, até mesmo da sua filha. Aos poucos a corte começou a perceber que ela o havia reconquistado. Não existia ninguém além de Ana.
Eu observava a sedução com o distanciamento de uma viúva. Henrique deu uma casa em Londres só para Ana. Durham House, na rua Strand, seus próprios aposentos acima da liça, no Parque Greenwich, para a temporada do Natal. O conselho do rei decretou publicamente que a rainha não deveria se vestir com muita elegância nem sair para ser vista pelo povo. Era evidente para todos que se tratava somente de uma questão de tempo até o cardeal Campeggio decretar o divórcio. Henrique se casaria com Ana e eu poderia voltar para casa e para os meus filhos, e recomeçar minha vida.
Eu continuava a ser a principal confidente e companhia de Ana e um dia, em novembro, ela insistiu que eu, ela e George caminhássemos à margem do rio, que transbordara, no Palácio de Greenwich.
— Deve estar se perguntando o que será de você, agora que não tem marido — começou Ana. Sentou-se em um banco e olhou para mim.
— Achei que viveria com você enquanto precisasse de mim e depois voltaria a Hever — repliquei com cautela.
— Posso pedir ao rei que autorize isso — disse ela. — Será o meu presente.
— Obrigada.
— E posso pedir que a sustente — acrescentou ela. — William não lhe deixou quase nada, como sabe.
— Sei — eu disse.
— O rei costumava pagar uma pensão a William de 100 libras por ano. Posso conseguir que seja transferida para você.
— Obrigada — repeti.
— A questão é a seguinte — disse Ana, com ar indiferente, levantando a gola contra o vento frio. — Pensei em adotar Henrique.
— Pensou no quê?
— Pensei em adotar Henrique como filho meu.
Fiquei pasma, sem tirar os olhos dela.
— Nem mesmo gosta muito dele — eu disse, o primeiro pensamento tolo de uma mãe amorosa. — Nunca nem mesmo brinca com ele. George passou mais tempo com ele do que você.
Ana olhou a distância, como se para reunir paciência com a ajuda do rio e dos telhados desordenados na cidade além.
— Não. É claro. Não é por isso que quero adotá-lo. Não o quero porque gosto dele.
Devagar, comecei a refletir.
— Mas para que tenha um filho, o filho de Henrique. Para que tenha um filho Tudor. Se ele se casar com você, na mesma cerimônia ganha um filho.
Ela assentiu com a cabeça.
Virei-me, dei alguns passos, minhas botas de montaria triturando ruidosamente os pedregulhos congelados. Refletia furiosamente.
— E, é claro, assim afastaria meu filho de mim. Para que me torne menos desejável a Henrique. Com um mesmo ato, torna-se a mãe do filho do rei e destrói o meu direito à sua atenção.
George pigarreou, e se recostou na murada do rio, os braços cruzados sobre o peito, a face, o retrato da imparcialidade.
Voltei-me para ele.
— Você sabia?
Encolheu os ombros.
— Ela me contou depois que tinha feito. Fez isso assim que a família achou que você poderia atrair o rei de novo. Só contou a nosso pai e nosso tio depois que o rei concordou e estava tudo feito. Tio Howard achou uma manobra muito arguta.
Minha garganta ressecou, engoli em seco.
— Uma manobra arguta?
— E implica que você será sustentada — disse George imparcialmente. — Você aproxima seu filho do trono, concentra todos os benefícios em Ana. É um bom plano.
— É o meu filho! — mal consegui proferir as palavras, sufocando em minha dor. — Não está à venda como um ganso no mercado.
George aproximou-se e pôs a mão ao redor de meus ombros e me virou para ele.
— Ninguém o está vendendo, o estamos tornando um príncipe — disse ele. — Estamos reivindicando seus direitos. Ele poderá ser o próximo rei da Inglaterra. Deveria se sentir orgulhosa.
Fechei os olhos e senti o vento na pele fria do meu rosto. Achei que ia desmaiar ou vomitar, e mais do que qualquer outra coisa, ansiava por isso, cair, estando tão mal que me levariam imediatamente para Hever e lá me deixariam com meus filhos, para sempre.
— E Catarina? E minha filha?
— Pode ficar com Catarina. Ela é só uma menina — disse Ana, sem titubear.
— E se me recusar? — encarei os olhos escuros e francos de George. Confiava nele, embora tivesse me escondido isso.
Sacudiu a cabeça.
— Não pode se recusar. Ela fez tudo legalmente. Já está assinado e selado. Está feito.
— George — sussurrei. — É o meu filho. O meu filhinho. Sabe o que significa para mim.
— Vai continuar a vê-lo — disse George, tentando me consolar. — Será a sua tia.
Foi como um murro. Cambaleei, e teria perdido o equilíbrio se não fosse o braço de George. Virei-me para Ana, que estava calada, um sorriso ligeiro e complacente arqueando seus lábios.
— Quer tudo para você, não é? Tem o rei da Inglaterra à sua disposição, e ainda precisa ter o meu filho também. Você é como o cuco que come os filhotes dos outros no ninho. Até onde iremos por causa de sua ambição? Você será a morte de todos nós, Ana.
Ela desviou o rosto do ódio em minha face.
— Tenho de ser rainha — foi tudo o que disse. — E vocês todos têm de me ajudar. Seu filho Henrique pode desempenhar seu papel no progresso da nossa família e você, em troca, o ajudará a subir. Sabe que tem de ser assim, Maria. Somente um tolo resiste a como os dados caem.
— São dados viciados, quando jogo com você — eu disse. — Não me esquecerei disso, Ana. Em seu leito de morte, vou lembrá-la de que tirou meu filho de mim com medo de não ser capaz de gerar um.
— Posso gerar um filho! — disse ela, ferida. — Você gerou. Por que eu não geraria outro?
Ri de maneira triunfante.
— Porque está cada dia mais velha — eu disse malvadamente. — E o rei também. Como saber que você pode conceber? Fui tão fértil com ele que lhe dei dois filhos, um atrás do outro, um deles, o menino mais belo que Deus pôs na terra. Você nunca terá um menino como o meu Henrique, Ana. Você sabe, lá no fundo, que nunca terá um menino como ele. Tudo o que pode fazer é roubar o meu filho porque sabe que nunca conceberá um.
Ficou tão lívida que foi como se a febre tivesse retornado.
— Parem — disse George. — Parem com isso as duas.
— Nunca mais repita isso — falou ela. — Está me amaldiçoando. Não se atreva a repetir isso, senão você também cai, Maria. E George e todos nós. Não se atreva a repetir isso ou a enviarei para um convento e nunca mais verá nenhum de seus filhos.
Levantou-se de um pulo e foi embora agitando o brocado debruado de pele. Observei-a correr trilha acima até o palácio, e pensei em como era uma inimiga perigosa. Podia ir correndo a tio Howard, ao rei. Ana tinha a consideração de todos que podiam me dominar. E se quisesse o meu filho, se quisesse a minha vida, bastava que dissesse a qualquer um deles, e estaria feito.
George me deu a mão.
— Lamento — disse ele, sem graça. — Mas pelo menos seus filhos estarão em Hever e você poderá vê-los.
— Ela toma tudo — eu disse. — Sempre tomou tudo. Mas nunca a perdoarei por isso.
Primavera de 1529
Ana e eu estávamos no salão do mosteiro de Blackfriars, ocultas por uma cortina nos fundos. Não conseguimos nos afastar. Ninguém que tivesse um pretexto, por mais insignificante que fosse, para estar na corte, se ausentaria. Nunca tinha acontecido nada parecido na Inglaterra. Era o lugar que tinham escolhido para ouvirem as evidências a favor e contra o casamento do rei e da rainha da Inglaterra, uma audiência extraordinária, um evento extraordinário.
A corte estava no Palácio de Bridewell — do lado do mosteiro. O rei e a rainha se sentavam para jantar no salão de Bridewell toda noite, e todo dia se apresentavam à corte em Blackfriars e ouviam se seu casamento tinha sido válido em algum momento durante todos os seus longos e amorosos vinte anos.
Foi um dia terrível. A rainha estava usando um de seus vestidos mais elegantes. Tinha claramente decidido desafiar a ordem do conselho de que deveria se vestir com simplicidade. Usava o vestido novo de veludo vermelho com o corpete de brocado dourado. As mangas e bainha eram debruadas com uma bela pele negra de zibelina. Seu capelo vermelho-escuro emoldurava seu rosto, que não parecia cansado nem triste, como sempre nos dois últimos anos. Ela parecia veemente e animada, pronta para a batalha.
Quando pediram que o rei falasse, ele disse que teve dúvidas sobre a validade de seu casamento desde o começo, e foi interrompido pela rainha — como ninguém no mundo teria ousado fazer. Ela disse, e muito razoavelmente, que ele havia deixado suas dúvidas caladas por muito tempo. O rei elevou a voz e prosseguiu até o fim de seu discurso preparado de antemão, mas estava desnorteado.
Ele disse que havia reprimido suas dúvidas por causa do grande amor que sentia pela rainha, mas que não podia mais ignorar a sua angústia. Senti Ana, do meu lado, tremer como um cavalo refreado da caça.
— Que absurdo! — sussurrou ela com veemência.
Chamaram a rainha para responder à declaração do rei. O pregoeiro da corte disse seu nome uma, duas, três vezes, mas ela ignorou-o completamente, apesar de ele estar em pé ao lado do trono e gritar. Ela atravessou a corte, a cabeça bem ereta, e se dirigiu diretamente a Henrique, sentado em seu trono. Ajoelhou-se diante dele. Ana esticou o pescoço no canto da cortina.
— O que ela está fazendo? — perguntou. — Não pode fazer isso.
Eu ouvia a rainha apesar de estarmos no fundo da sala. Cada palavra era perfeitamente clara, embora seu sotaque fosse mais forte que nunca.
— Ai de mim, sir — disse ela gentilmente, quase intimamente —, como o ofendi? Deus e o mundo podem testemunhar que tenho sido uma esposa verdadeira, humilde e obediente. Nesses mais de vinte anos, fui sua esposa leal, e por mim teve vários filhos, embora tenha sido a vontade de Deus tirá-los deste mundo. E quando me teve pela primeira vez, eu era donzela, intocada pelo homem...
Henrique agitou-se em sua cadeira e olhou para o tribunal, implorando que a interrompessem, mas ela não tirou os olhos de seu rosto.
— Se isso é verdadeiro ou não, deixo para a sua consciência.
— Ela não pode fazer isso! — disse Ana incrédula. — Tem de chamar seus advogados para apresentarem provas. Não pode falar com o rei em público.
— Mas está falando — eu disse.
Fez-se um silêncio absoluto na sala, todo mundo escutando a rainha. Henrique, comprimido contra o espaldar de seu trono, estava pálido de constrangimento. Parecia uma criança mimada confrontada por um anjo. Peguei-me sorrindo, sorrindo largo, embora fosse a causa da minha família que estivesse afundando a cada palavra sua. Eu quase ria encantada porque Catarina de Aragão estava falando pelas mulheres do país, pelas boas esposas que não podiam ser postas de lado simplesmente porque seus maridos tinham sentido inclinação por outra, pelas mulheres que percorriam o caminho árduo entre a cozinha, o quarto, a igreja e o parto. Pelas mulheres que mereciam mais do que o capricho de seus maridos.
Catarina entregou sua causa a Deus e à lei, e houve um tumulto quando ela terminou de falar. Os cardeais bateram o martelo pedindo ordem, os escreventes gritaram e a excitação contagiou as pessoas que estavam do lado de fora da sala e nas ruas, do lado de lá dos portões gradeados do mosteiro, que repetiam as suas palavras umas para as outras e gritavam clamando apoio a Catarina, a legítima rainha da Inglaterra.
E Ana, ao meu lado, rindo e chorando ao mesmo tempo.
— Ela será a minha morte ou eu serei a dela! — jurou. — Que eu a veja morta, Deus, antes que ela seja o meu fim.
Verão de 1529
Esse deveria ter sido o verão do triunfo de Ana. O tribunal do cardeal Campeggio para julgar a questão do casamento estava finalmente em sessão, a sua decisão uma certeza, por mais convincente que a rainha tivesse sido. O cardeal Wolsey era amigo declarado e o principal defensor de Ana, o rei da Inglaterra continuava tão apaixonado quanto antes, e a rainha, depois de seu momento de triunfo, havia se retirado, sem nem mesmo se apresentar de novo ao tribunal.
Mas não houve alegria para Ana. Quando soube que eu estava arrumando minhas coisas para passar o verão em Hever, com meus filhos, entrou no quarto como se mordida pelo próprio diabo.
— Não pode me deixar enquanto os cardeais continuam reunidos. Preciso de você do meu lado.
— Ana, não tenho nenhuma utilidade. Não entendo metade disso, e o resto não faço questão de ouvir. Toda essa coisa sobre o que o príncipe Arthur disse depois de sua noite de núpcias, e todos esses mexericos de criados de séculos atrás. Não quero ouvir isso. Não fazem nenhum sentido para mim.
— E acha que eu quero ouvir? — perguntou.
Eu deveria ter ficado alerta com o arrebatamento de seu tom.
— Deve ouvir, pois está sempre na corte — repliquei razoavelmente. — Mas vão terminar logo, não vão? Dirão que a rainha foi casada com o príncipe Arthur, que o casamento foi consumado, e que a união dela com Henrique é inválida. Então, pronto. Para que precisa de mim aqui?
— Porque estou com medo! — explodiu de repente. — Estou com medo! Sinto medo o tempo todo! Não pode me deixar aqui sozinha, Maria. Preciso de você aqui.
— Ouça, Ana — eu disse persuasivamente. — O que tem a temer? A corte não está ouvindo a verdade nem a buscando. Está sob a ordem de Wolsey, que é o homem do rei. Está sob o controle de Campeggio, que recebeu ordens do Papa de encerrar a questão. Seu caminho está livre. Se não quer ficar aqui, no Palácio de Bridewell, então vá para a sua nova casa em Londres. Se não quer dormir sozinha, chame uma de suas seis damas. Se está com medo do rei com alguma garota nova na corte, ordene que a mande embora. Ele faz tudo o que você manda. Todo mundo faz o que você manda.
— Você não! — sua voz soou áspera e ressentida.
— Não preciso, sou apenas a outra garota Bolena. Sem dinheiro, sem marido, sem futuro, a menos que você ordene. Sem filhos, a menos que receba permissão para vê-los. Sem filho... — minha voz falhou por um momento. — Tenho autorização para ir vê-los, e irei, Ana. Não pode me impedir. Nenhuma força no mundo pode me impedir.
— O rei pode impedi-la — advertiu-me.
Virei meu rosto para ela e minha voz soou como ferro.
— Ouça bem, Ana. Se mandá-lo me proibir de ver meus filhos, me enforcarei com seu próprio cinto de ouro em seu novo palácio de Durham House e será amaldiçoada para sempre. Certas coisas são grandes demais para até mesmo você brincar com elas. Não pode me impedir de ver meus filhos nesse verão.
— Meu filho — enfatizou.
Tive de reprimir minha raiva, meu desejo de empurrá-la pela janela e deixá-la quebrar seu pescoço egoísta nas pedras do terraço. Respirei fundo, e recuperei o controle.
— Eu sei — eu disse calmamente. — Agora vou vê-lo.
Fui me despedir da rainha. Estava sozinha em seus aposentos silenciosos, bordando a imensa toalha de altar. Hesitei na entrada.
— Majestade, vim me despedir, vou passar o verão com meus filhos.
Ela ergueu os olhos. Nós duas sabíamos que eu não precisava mais pedir a sua permissão para me ausentar da corte.
— Você tem sorte em poder vê-los tantas vezes — disse ela.
— Sim — sabia que estava pensando na princesa Mary, que estava longe dela desde o Natal.
— Mas a sua irmã tomou seu filho — comentou.
Assenti com a cabeça. Não me fiei em minhas palavras.
— A Srta. Ana joga pesado. Quer o meu marido e também o seu filho. Quer uma união completa.
Não me atrevi a nem mesmo erguer os olhos, temi que visse o profundo ressentimento que havia neles.
— Estou feliz por passar o verão fora — eu disse com calma. — Sua Majestade é generosa em me poupar.
A rainha Catarina insinuou um sorriso.
— Sou tão bem servida — disse ela ironicamente — que mal sentirei a sua falta com essas pessoas todas que me cercam.
Fiquei sem jeito, sem saber o que dizer nesses aposentos silenciosos que eu tinha conhecido tão alegres e agitados.
— Espero servi-la de novo quando voltar à corte em setembro — eu disse.
Ela pôs a agulha de lado e olhou para mim:
— É claro que me servirá. Estarei aqui, sem a menor dúvida.
— Sim — concordei, traiçoeira até a raiz do cabelo.
— Você sempre foi cortês e uma boa servidora para mim — disse ela. — Mesmo quando mais nova e tola, sempre foi uma boa menina, Maria.
Engoli minha culpa.
— Gostaria de ter feito mais — eu disse, baixinho. — E houve vezes em que lamentei ser obrigada a servir a outros e não à Sua Majestade.
— Oh, refere-se a Felipez — disse ela com calma. — Querida Maria, eu sabia que você ia contar a seu tio, a seu pai ou ao rei. Quis que visse a carta e soubesse quem seria o mensageiro. Queria que vigiassem o porto errado. Queria que pensassem que o tinham pegado. Ele levou a mensagem a meu sobrinho. Escolhi você como meu Judas. Sabia que ia me trair.
Enrubesci, um rubor profundamente mortificado.
— Não posso pedir que me perdoe — sussurrei.
A rainha encolheu os ombros.
— Metade das minhas damas apresenta-se ao cardeal, ao rei ou à sua irmã diariamente — disse ela. — Aprendi a não acreditar em ninguém. Pelo resto da minha vida, saberei que não posso confiar em ninguém. Morrerei como uma mulher que se decepcionou com seus amigos. Mas não me decepcionei com meu marido. Ele está sendo mal aconselhado neste momento, ele está deslumbrado. Mas vai recuperar o juízo. Ele sabe que sou a sua esposa. Sabe que não terá outra esposa senão eu. Ele vai voltar para mim.
Levantei-me.
— Majestade, receio que não. Ele deu sua palavra à minha irmã.
— Não cabe a ele decidir — disse ela simplesmente. — Ele é um homem casado. Não pode prometer nada a outra mulher. A sua palavra é a minha palavra. Ele está casado comigo.
Eu não tinha mais o que dizer.
— Que Deus abençoe Sua Majestade.
Sorriu, um pouco triste, como se soubesse, assim como eu, que era um adeus. Ela não estaria na corte quando eu retornasse. Ergueu sua mão, me abençoando sobre a cabeça quando lhe fiz uma reverência.
— Que Deus lhe dê vida longa e alegria a seus filhos — disse ela.
Hever estava quente sob o sol e Catarina tinha aprendido a escrever o nome de nós todos, a soletrar seu livrinho e a cantar uma música em francês. Henrique, determinadamente ignorante, não conseguia se livrar da pronúncia errada, que o fazia trocar o “w” pelo “r”. Eu o teria corrigido com mais rigor, mas o achei um encanto. Chamava a si mesmo de “Henwy” e a mim, a sua “quewuida”, e só uma mãe com coração de pedra lhe diria que estava falando errado. Tampouco lhe disse que era sua mãe por graça divina, e que, por lei, era filho de Ana. Não consegui lhe dizer que me havia sido roubado, e que eu tinha sido obrigada a deixá-lo ir.
George ficou conosco no campo por duas semanas, tão aliviado quanto eu por estar longe da corte que esperava, como um cão ao redor da corça ferida, o momento em que a rainha se deprimiria. Nenhum de nós dois queria estar lá no momento em que o tribunal dos cardeais decretasse contra a rainha inocente e a expulsasse, em desgraça, do país que chamara de seu. Então, George recebeu uma carta de meu pai.
George,
Deu tudo errado. Campeggio anunciou, hoje, que não pode decidir sem o Papa. A corte foi adiada, Henrique está furioso e sua irmã, fora de si.
Vamos partir para a temporada do verão e a rainha será deixada para trás, em desgraça.
Você e Maria têm de vir e ficar comigo e Ana, só vocês conseguem controlar seu temperamento.
Bolena
— Não vou — eu disse, simplesmente.
Estávamos sentados juntos no salão depois do jantar. Vovó Bolena tinha ido para a cama, as crianças tinham adormecido rápido depois de um dia correndo, brincando de esconde-esconde e de pegar.
— Eu tenho de ir — disse George.
— Disseram que eu podia passar o verão com meus filhos. Eles me prometeram.
— Se Ana precisa de você...
— Ana sempre precisa de mim, sempre precisa de você. Sempre precisa de todos nós. Ela está tentando fazer algo impossível: tirar uma mulher de seu casamento, tirar a rainha do trono. É claro que ela precisa de um exército. Sempre se precisa de um exército para uma insurreição traiçoeira.
George relanceou os olhos em volta para ver se as portas estavam fechadas.
— Cuidado.
Encolhi os ombros.
— Estamos em Hever. É por isso que venho a Hever. Para poder falar. Diga-lhes que estou mal. Diga-lhes que talvez esteja com a febre. Diga-lhes que retornarei assim que estiver melhor.
— É o nosso futuro.
Dei de ombros.
— Perdemos. Todo mundo sabe disso, menos nós. Catarina ficará com o rei, como é justo que fique. Ana se tornará a sua amante. Nunca conseguiremos o trono da Inglaterra. Não nesta geração. Tem de torcer para Jane Parker lhe dar uma menina bonita. E poderá lançá-la nesse covil de lobos e ver quem a abocanha.
Riu ao ouvir isso.
— Partirei amanhã. Não podemos nos render.
— Perdemos — eu disse. — Não há vergonha em se render quando se está definitivamente derrotado.
Querida Maria,
George me disse que você não veio porque acha que a minha causa está perdida. Tome muito cuidado com a quem diz isso. O cardeal Wolsey vai perder a sua casa, terras e fortuna, vai ser deposto da presidência da chancelaria, será um homem arruinado porque fracassou na minha causa. Portanto não se esqueça de que também você trabalhará em minha causa e não tolerarei uma servidora não dedicada inteiramente.
Tenho o rei na palma da minha mão e não serei derrotada por dois velhos e sua falta de coragem. Falou cedo demais em minha derrota. Apostei minha vida em ser a rainha da Inglaterra. Eu disse que conseguiria, e vou conseguir.
Ana
Venha a Greenwich no outono, sem falta.
Outono de 1529
Tudo o que Ana ameaçou contra Wolsey se concretizou, e foi o nosso tio Howard, com o duque de Suffolk, o cunhado e amigo querido do rei, que tiveram o prazer de retirar o Sinete da Inglaterra do cardeal, que caiu em desgraça. Ficariam, também, com os ganhos de sua imensa fortuna.
— Eu disse que o derrubaria — disse Ana presunçosamente. Estávamos lendo à janela da sala de audiências de sua nova casa em Londres: Durham House. Esticando o pescoço, dava para ver o Palácio de York, onde o cardeal antes reinava supremo e ela havia cortejado Henry Percy.
Bateram à porta. Ana olhou para mim, para que eu atendesse por ela.
— Entre! — gritei.
Era um dos pajens do rei, um rapaz bonito de cerca de 20 anos. Sorri para ele, seus olhos oscilaram com a atenção.
— Sir Harold? — perguntei cortesmente.
— O rei pede à sua amada que aceite este presente — disse ele e prostrou-se com um joelho no chão, diante de Ana, estendendo-lhe uma pequena caixa.
Ela pegou-a e a abriu. Fez um som de satisfação ao ver seu conteúdo.
— O que é? — perguntei sem conseguir reprimir minha curiosidade.
— Pérolas — disse ela simplesmente. Virou-se para o pajem. — Diga ao rei que me sinto honrada com o seu presente. E que o usarei hoje, no jantar, para agradecer-lhe pessoalmente. Diga-lhe — sorriu como se fosse um gracejo privado — que saberá que tem uma amada gentil e não cruel.
O rapaz balançou a cabeça solenemente, levantou-se, fez uma profunda reverência a Ana e uma mesura galante a mim, e saiu da sala. Ana fechou a caixa e a jogou para mim. Olhei as pérolas, eram magníficas, presas em um cordão de ouro.
— O que a sua mensagem significa? — perguntei. — Que será generosa e não cruel.
— Não posso me entregar a ele — disse ela, tão rapidamente quanto um mascate que sabe o valor de um pêni. — Mas discutimos hoje de manhã porque ele queria me levar à sua câmara privada depois da missa e eu não fui.
— O que você disse?
— Perdi o controle — admitiu ela. — Falei que ele queria me tratar como uma prostituta e me desonrar e desonrar a si próprio, destruindo qualquer possibilidade de uma decisão adequada de Roma. Se alguém achasse que eu era sua prostituta, eu nunca suplantaria Catarina. Eu não seria melhor do que você.
— Perdeu o controle? — perguntei indo direto à pior parte. — O que ele fez?
— Retirou-se — replicou com pesar. — Saiu da sala como um gato escaldado. Mas viu o resultado? Não aguenta que eu fique descontente com ele. Eu o tenho na mão como um menino.
— No momento — a adverti.
— Oh, hoje à noite serei gentil como prometi. Vou me vestir, cantar e dançar só para ele.
— E depois do jantar?
— Vou deixar que me toque — disse ela, contrariada. — Vou deixar que acaricie meus seios e que ponha sua mão dentro de minha saia. Mas nunca tiro o vestido. Não me atrevo.
— Você o satisfaz?
— Sim — disse ela. — Ele insiste nisso e não vejo como evitar. Mas às vezes... — levantou-se do vão da janela e foi até o centro da sala. — Quando tira a calça e o põe na minha mão, eu o odeio. Sinto como um insulto ele me usar dessa maneira... — interrompeu-se, sem fala de tanta irritação. — Então ele goza e esguicha como uma baleia idiota, aquela gosma úmida... e penso — bateu o punho na palma da mão. — Penso, Deus, oh, Deus, preciso de um bebê e tudo aquilo é desperdiçado! Desperdiça-se na minha mão quando deveria ser no meu ventre! Pelo amor de Deus! Além de ser um pecado, é uma tal loucura!
— Sempre haverá mais — eu disse, sendo prática.
O olhar que me lançou foi obcecado.
— Não há mais de mim — disse ela. — Ele está louco para me tocar, mas está esperando há três anos. E se tivermos de esperar mais três? Como vou manter minha aparência? Como vou permanecer fértil? Ele pode permanecer vigoroso até 60 anos, mas e eu?
— Ele não pensa mal de você? — perguntei. — O que usa com ele são artifícios de prostitutas.
Ana sacudiu a cabeça.
— Tenho de fazer com que deseje meu toque. Tenho de mantê-lo avançando e afastá-lo ao mesmo tempo.
— Há outras coisas que você pode fazer — ofereci.
— Fale.
— Pode deixar que a observe.
— Observar fazer o quê?
— Deixe que a observe se tocar. Ele adora isso. Faz com que quase chore de luxúria.
Ela pareceu extremamente constrangida.
— Que vergonha.
Ri.
— Deixe que a observe se despir, tirando uma coisa de cada vez, bem devagar. Por último levante sua camisa de baixo e ponha os dedos em sua xoxota, abra-a para que a veja.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu não conseguiria fazer isso...
— E pode pô-lo na boca — reprimi minha risada ao vê-la se retrair.
— O quê? — olhou para mim com uma repugnância franca.
— Pode se ajoelhar diante dele e pôr na boca. Ele adora isso também.
— Fez isso com ele? — perguntou, com seu nariz franzido.
Olhei direto em seus olhos.
— Eu era a sua puta — repliquei. — E meu irmão tem suas intendências e meu pai é um homem rico por causa disso. Quando ele se deitava de costas, eu me deitava em cima e o beijava da sua boca até suas partes íntimas, lambendo-as como um gato bebe o leite. Então o punha na boca e o chupava.
A cara de Ana era um misto de curiosidade e asco.
— E ele gostava?
— Sim — repliquei brutalmente franca. — Adorava, dava-lhe mais prazer do que qualquer outra coisa. E pode ficar com essa cara de quem não suporta nem falar sobre isso, pode assumir esse ar arrogante como quiser. Mas se tiver de prendê-lo com artifícios de putas, é melhor aprendê-los e fazê-los bem.
Por um momento, achei que ia se enfurecer, mas continuou calada e balançou a cabeça.
— Tenho certeza de que a rainha nunca fez algo assim — disse ela com um ressentimento profundo.
— Não — eu disse, exercitando meu constante ressentimento por um breve instante. — Mas ela era a sua esposa querida, com quem se casou por amor. E eu e você somos apenas suas prostitutas.
Os truques que Ana aprendeu a fazer com o rei abrandaram-no, mas a tornaram mais irritável do que nunca. Um dia, abri a porta de seu quarto e ouvi sua voz colérica, aos berros.
Henrique estava de frente para a porta quando entrei, e o olhar que me lançou era quase suplicante. Olhei espantada enquanto Ana o insultava. Ela estava de costas para mim, e nem sequer ouviu a porta. A sua fúria a cegava e ensurdecia para qualquer outra coisa que não fossem suas próprias palavras vociferadas.
— E para descobrir que ela, ela!, continua a costurar suas camisas, e escarnece de mim com isso, ela as mostra para mim e pede que enfie a linha em sua agulha. Pede-me na frente de todas as damas que enfie a linha na agulha, como se eu fosse uma criada qualquer.
— Nunca lhe pedi...
— Ahn? O que acontece? Ela vai aos seus aposentos e rouba suas camisas à noite? O camareiro real as surrupia e as passa para ela? Você é sonâmbulo e as leva para ela acidentalmente?
— Ana, ela é minha esposa. Costura para mim há vinte anos. Eu não fazia ideia de que você faria objeções a isso. Mas lhe direi que não quero mais que costure para mim.
— Não fazia ideia de que eu me oporia? Por que não volta para a sua cama e vê se faço objeções a isso? Costuro tão bem quanto ela, na verdade muito melhor, já que não sou tão velha nem tão míope que precise de alguém para enfiar a linha na minha agulha. Mas você não manda suas camisas para mim. Você me desdenha... — sua voz falhou. — Diante de toda a corte, você me desdenha ao mandar suas camisas para ela — sua indignação aumentou. — Pode também dizer ao mundo: essa é a minha mulher, em quem confio, e essa é a minha amante, para a noite e para me divertir.
— Juro por Deus... — começou o rei.
— Juro por Deus que me magoou com isso, Henrique!
O tremor em sua voz o abateu. Ele abriu os braços, mas ela sacudiu a cabeça.
— Não, não vou correr para você para que enxugue minhas lágrimas com seus beijos e diga que isso não tem importância. Tem importância, me importa mais do que qualquer coisa.
Pôs as mãos nos olhos e passou por ele direto para a sua câmara privada, sem nem mesmo olhá-lo de relance. No silêncio que se seguiu, a ouvimos fechar a porta e girar a chave na fechadura.
O rei e eu olhamos um para o outro. Estava atônito.
— Juro por Deus que não tive a intenção de magoá-la.
— Por causa de algumas camisas?
— A rainha continua a costurar minhas camisas. Ana não sabia. E levou isso a mal.
— Oh — eu disse.
Henrique sacudiu a cabeça.
— Direi à rainha para não costurá-las mais.
— Acho que seria sensato — falei delicadamente.
— E quando ela sair, pode lhe dizer que estou muito angustiado por ter-lhe causado tanto sofrimento? E que isso não se repetirá?
— Sim — respondi. — Direi.
— Mandarei que um ourives lhe faça algo bonito — disse ele. — E quando estiver bem de novo, se esquecerá que esta briga aconteceu.
— Ela ficará bem assim que descansar — eu disse, esperançosa. — Evidentemente é difícil para ela a espera do dia em que poderão se casar. Ela o ama tanto.
Por um momento, pareceu o menino que havia se apaixonado por Catarina.
— Sim, é por isso que se enfurece assim. Porque me ama tanto.
— É claro — tranquilizei-o. A última coisa que eu queria era que Henrique percebesse como a ira de Ana era desproporcional aos fatos.
Ele pareceu terno outra vez.
— Eu sei. Tenho de ser paciente com ela. E é muito jovem, não sabe quase nada sobre o mundo.
Fiquei com a boca fechada pensando na menina que eu era quando minha família me entregou a ele, e como nunca tinham me permitido nenhum protesto, muito menos um ataque de nervos.
— Vou lhe mandar rubis — disse ele. — Uma mulher virtuosa, rubis, você sabe.
— Ela vai gostar — eu disse sem ter dúvidas.
Henrique deu-lhe rubis e ela o recompensou com mais do que um sorriso. Voltou ao quarto tarde da noite com o vestido todo amarfanhado e o capelo na mão. Eu tinha adormecido, nunca a esperava como ela fazia comigo. Puxou as cobertas e me acordou, mandando que abrisse seu vestido.
— Fiz o que mandou e ele adorou — disse ela. — E deixei que brincasse com meu pelo e com meus seios.
— Pelo visto, estão de bem de novo — eu disse. Desatei seu corpete e puxei sua anágua por sua cabeça.
— E papai vai se tornar conde — disse Ana com satisfação. — Conde de Wiltshire e Ormonde. Serei Lady Ana Rochford e George, Lord Rochford. Papai terá de retornar à Europa para tratar a paz, e Lord George, nosso irmão, irá com ele. Lord George se tornará um dos embaixadores favoritos do rei.
Ofeguei ao ouvir tantos favores.
— Um condado para papai?
— Sim.
— E George será Lord Rochford! Que importância, vai adorar! E embaixador!
— Como sempre quis.
— E eu? — perguntei. — O que me deu?
Ana caiu na cama, deixou que eu tirasse seus sapatos e meia.
— Você permanece Lady Carey — disse ela. — Simplesmente a outra garota Bolena. Não posso fazer tudo, você sabe.
Natal de 1529
A corte se reuniria em Greenwich e a rainha estaria presente. Receberia todas as honras e Ana não deveria ser vista.
— E agora? — perguntei a George. Sentei-me em sua cama enquanto ele se espreguiçava no vão da janela. Seu criado estava arrumando seus baús para a viagem a Roma e, volta e meia, ele gritava ao homem impassível:
— O manto azul não! Está com traças!
Ou:
— Odeio esse chapéu. Pode dá-lo a Maria, para o pequeno Henrique.
— E agora? — repetiu minha pergunta.
— Fui chamada aos aposentos da rainha e terei de viver em meu antigo quarto na sua ala do palácio. Ana ficará em seus aposentos, no local das justas, sozinha. Acho que mamãe vai ficar com ela, mas eu, e todas as damas de honra, teremos de servir à rainha e não a Ana.
— Não pode ser um mau sinal — disse George. — Ele está esperando muita gente de fora da cidade para observá-los comer durante os festejos do Natal. A última coisa que quer é que os mercadores e comerciantes digam que é devasso. Quer que todos pensem que escolheu Ana para o benefício da Inglaterra e não por lascívia.
Um pouco nervosa, relanceei os olhos para o criado.
— Não tem problema, com Joss — disse George. — É surdo, graças a Deus. Não é, Joss?
O homem não se virou.
— Oh, deixe-nos — disse George. O homem continuou, impassivelmente, a arrumar suas roupas.
— Ainda assim deve ter cuidado — eu disse.
George elevou a voz.
— Deixe-nos, Joss. Pode terminar depois.
O homem sobressaltou-se, olhou em volta, fez uma reverência a George e a mim, e saiu.
George veio para a cama e se esparramou do meu lado. Puxei sua cabeça para o meu colo e me acomodei recostada na cabeceira.
— Acha que acontecerá, um dia? — perguntei. — Parece que planejamos esse casamento há séculos.
Ele tinha fechado seus olhos escuros, mas agora os abriu e olhou para mim.
— Só Deus sabe — disse ele. — Só Deus sabe o que terá custado quando acontecer: a felicidade de uma rainha, a segurança do trono, o respeito do povo, a santidade da Igreja. Às vezes, me parece como se você e eu tivéssemos passado a vida trabalhando para Ana, e nem mesmo sei o que ganhamos com isso.
— Você é o herdeiro de um condado. Dois condados?
— Eu queria estar nas cruzadas e assassinar infiéis — disse ele. — Queria voltar para casa, para uma bela mulher, em um castelo, que me veneraria por minha coragem.
— E eu queria um campo de lúpulos e um pomar de maçãs, e um rebanho de carneiros — eu disse.
— Bobagem — disse ele, e fechou os olhos.
Adormeceu em poucos minutos. Segurei-o com cuidado, observando seu peito subir e descer, e então recostei minha cabeça no brocado que cobria a cabeceira, fechei os olhos, e caí no sono eu também.
Em meu sonho, ouvi a porta se abrir e, preguiçosamente, abri os olhos. Não era o criado de George, não era Ana nos procurando. Foi um girar de maçaneta furtivo e um abrir de porta dissimulado. Então, Jane, a mulher de George, agora Lady Jane Rochford, pôs a cabeça para dentro do quarto e olhou em volta, nos buscando.
Não deu um pulo ao nos ver na cama juntos, e eu — ainda sonolenta e paralisada por uma espécie de medo de sua dissimulação — também não me mexi. Mantive os olhos semicerrados e a observei.
Ela ficou bem quieta, não entrou nem foi embora, mas prestou atenção a cada detalhe: a cabeça de George em meu colo, minhas pernas abertas debaixo de meu vestido. Minha cabeça jogada para trás, meu capelo largado no peitoril da janela, meu cabelo solto, embaraçado em meu rosto adormecido. Observou-nos como se nos estudasse para pintar uma miniatura, como se estivesse cotejando provas. Depois, sorrateiramente como chegou, se foi.
Imediatamente sacudi George e tapei sua boca com minha mão.
— Psiu. Jane esteve aqui. Talvez ainda esteja do lado de fora do quarto.
— Jane?
— Pelo amor de Deus, Jane! Sua mulher Jane!
— O que ela queria?
— Não falou nada. Simplesmente entrou e olhou para nós dois dormindo juntos na cama, olhou tudo em volta e saiu de novo furtivamente.
— Não quis me acordar.
— Talvez — falei com dúvidas.
— Qual é o problema?
— Ela parecia... estranha.
— Ela sempre parece estranha — disse ele sem se preocupar. — Está sempre farejando algo.
— Exatamente — repliquei. — Mas quando nos viu, senti como... — interrompi-me, não achava as palavras certas. — Eu me senti suja — acabei dizendo. — Como se estivéssemos fazendo alguma coisa errada. Como se estivéssemos...
— O quê?
— Perto demais.
— Somos irmãos — exclamou George. — É claro que somos próximos.
— Estávamos na cama, dormindo juntos.
— É claro que dormíamos! — exclamou. — O que mais poderíamos estar fazendo na cama? Amor?
Dei um risinho.
— Ela me fez sentir como se não devesse estar no seu quarto.
— Mas devia — disse ele, com determinação. — Onde mais podemos conversar sem que metade da corte, inclusive ela, fique rondando e prestando atenção? Ela só está com ciúmes. Teria pagado para estar comigo na cama hoje à tarde, e pôr a cabeça no seu colo teria sido o mesmo que pô-la numa armadilha.
Sorri.
— Acha que ela não se importou?
— Claro que não — replicou ele preguiçosamente. — Ela é minha esposa. Sei lidar com ela. E do jeito que anda o casamento atualmente, posso deixá-la de lado e me casar com uma garota bonita.
Ana recusou-se terminantemente a passar o Natal em Greenwich se não fosse o centro das atenções. Embora Henrique tentasse repetidamente explicar que era para o bem dos dois, ela o censurou por preferir ter a rainha ao seu lado.
— Vou embora! — esbravejou ela. — Não ficarei aqui para ser insultada com o desprezo. Vou para Hever. Passarei o Natal lá. Ou talvez volte para a corte francesa. Meu pai está lá, poderia passar dias agradáveis na França, onde sempre fui muito admirada.
Ele ficou lívido, como se ela o tivesse apunhalado.
— Ana, meu amor, não fale assim.
Ela atacou-o.
— Seu amor? Mas nem mesmo me quer ao seu lado no Natal!
— Eu a quero ao meu lado no Natal e em todos os outros dias. Mas se Campeggio agora é quem informa o Papa, quero que todos pensem que estou deixando a rainha pelo motivo mais puro, pela melhor das razões.
— E eu sou impura? — perguntou, aproveitando o que ele dissera.
A perspicácia que ela tinha introduzido no flerte entre os dois estava sendo exercida sobre Henrique como arma. E ele continuava tão impotente agora quanto tinha sido então.
— Meu verdadeiro amor, você é um anjo para mim — disse ele. — E quero que o resto do mundo saiba disso. Eu disse à rainha que você seria a minha esposa, porque era o melhor que a Inglaterra podia oferecer. Eu lhe disse isso.
— Você discute sobre mim com ela? — gritou com um suspiro. — Oh, não! É um insulto atrás do outro. E ela talvez responda que não sou. Diz que quando eu era sua dama de honra não era nenhum anjo. Talvez diga que não sou digna de fazer suas camisas.
Henrique deixou a cabeça cair em suas mãos.
— Ana!
Ela afastou-se dele e virou-se para a janela. Mantive a cabeça baixa sobre o livro que, supostamente, estava lendo, e passava o dedo ao longo da linha de palavras, mas não via nada. Dissimuladamente, nós dois, o rei e sua antiga amante, a observávamos. A tensão em seus ombros a fez estremecer com alguns soluços e, então, seus ombros cederam, e ela virou-se de novo para ele. Seus olhos brilhavam com as lágrimas, sua raiva enrubescera sua face. Ela parecia excitada. Aproximou-se dele e pegou suas mãos.
— Perdoe-me — falou amorosamente. — Perdoe-me, meu amor.
Ele a olhou como se mal acreditasse em sua sorte. Abriu os braços. Ela deslizou para seu colo, e passou os braços em volta de seu pescoço.
— Perdoe-me — sussurrou.
Da maneira mais silenciosa possível, levantei-me e me dirigi à porta. Ana fez sinal com a cabeça para que eu saísse. Quando fechei a porta atrás de mim, a ouvi dizer:
— Mas irei a Durham House e vai me pagar por eu passar o Natal lá.
A rainha acolheu-me bem de volta aos seus aposentos, com um sorriso triunfante. Ela achava, pobre mulher, que a ausência de Ana significava o enfraquecimento de sua influência. Ela não tinha escutado, como eu, a lista de penitências que Ana impusera a seu amante por sua ausência da corte. Ela não sabia, como o resto da corte sabia muito bem, que a cortesia de Henrique durante o Natal era uma formalidade.
Mas não demorou a descobrir. Ele nunca jantava a sós com ela. Nunca falava com ela, a menos que alguém estivesse vendo. Nunca dançava com ela. Na verdade, escusava-se de quase todas as danças e simplesmente observava os outros dançarem. Havia algumas garotas novas na corte que eram rodopiadas por seus parceiros diante de seus olhos, uma nova herdeira Percy, uma nova garota Seymour. De todos os condados da Inglaterra, que conquistavam um lugar na corte, vinha uma garota para encantar o rei e tentar uma chance no trono. Mas nada distraía o rei. Sentado ao lado de sua esposa, parecia cansado, e pensava em sua amante.
Nessa noite, a rainha ajoelhou-se durante muito tempo em seu genuflexório, e as damas adormeceram em suas cadeiras, esperando que ela nos dispensasse e mandasse para a cama. Quando se levantou e se virou, só havia eu acordada.
— Meia dúzia de Pedro — disse ela, vendo o desleixo em relação a ela quando passava por um momento de tristeza.
— Lamento — eu disse.
— Ela estar ou não aqui não faz a menor diferença — disse ela com uma sabedoria desconsolada. Baixou a cabeça com o peso do capelo, eu avancei e retirei os grampos, e o tirei de sua cabeça. Seu cabelo agora estava bem grisalho. Achei que tinha envelhecido mais no último ano do que nos cinco anos anteriores.
— Não passa de uma paixão e ele vai superá-la — disse ela, mais para si mesma do que para mim. — Vai se cansar dela, como se cansou de todas as outras. Bessie Blount, você. Ana é só mais uma.
Não falei nada.
— Contanto que ele não peque contra a Santa Igreja, enquanto ela o enfeitiça — prosseguiu. — É a única coisa por que rezo, para que não peque. Sei que voltará para mim.
— Majestade — falei com calma —, e se não voltar? E se ele anular o casamento e se casar com ela? Tem aonde ir? Providenciou a sua segurança se tudo der errado?
A rainha Catarina voltou seus olhos azuis cansados para mim como se me visse pela primeira vez. Estendeu os braços, de modo que eu pudesse desatar a parte de cima de seu vestido, virou-se para que eu o fizesse deslizar por seus ombros. A sua pele estava irritada com sua camisa de crina. Não fiz nenhum comentário, ela não gostava que nós, damas de honra, víssemos.
— Não me preparo para a derrota — replicou simplesmente. — Seria trair a mim mesma. Sei que Deus o trará de volta para mim, e seremos felizes juntos novamente. Sei que a minha filha será rainha da Inglaterra, e será uma das melhores rainhas que já existiram. A sua avó foi Isabel de Castela. Ninguém pode duvidar que uma mulher é capaz de governar um reino. Ela será uma princesa de que todos se lembrarão, e o rei será Sir Coração Leal na minha morte, como foi na minha juventude.
Foi para a sua câmara privada e a camareira, que cochilava diante do fogo, deu um pulo e pegou seu capelo e vestido dos meus braços.
— Deus a abençoe — disse a rainha. — Pode mandar as outras irem para a cama agora. Esperarei todas aqui para irem comigo à missa da manhã. Você também, Maria. Gosto que minhas damas vão à missa.
Verão de 1530
Segui a estrada para Hever cercada de um exército irregular de homens que serviam aos Howard, e todos os outros viajantes na estrada abriam caminho quando passávamos. As sebes e a relva à margem da estrada já estavam cobertas de poeira, a primavera tinha sido sem chuvas, todos os sinais de que seria um ano ruim para a peste. Mas distante da estrada, o feno era bonito, já cortado e empilhado em alguns campos, e o trigo e a cevada já estavam da altura do joelho e começavam a se desenvolver. Os campos de lúpulos estavam verdes e a grama no pomar de maçãs estava repleta de pétalas brancas como neve.
Eu cantava de tão feliz por cavalgar pelos campos ingleses, para longe da corte, para perto dos meus filhos. Os homens eram comandados por um cavalheiro do séquito do meu tio, William Stafford, que cavalgou ao meu lado parte do caminho.
— A poeira é terrível — comentou ele. — Assim que estivermos fora da cidade, ordenarei aos homens que cavalguem atrás da senhora.
Lancei-lhe um olhar furtivo, de lado. Era um homem bonito, de constituição vigorosa e uma cara franca. Imaginei que fosse um Stafford arruinado com a execução do duque de Buckingham caído em desgraça. A sua aparência era certamente de alguém nascido e criado para algo mais.
— Agradeço-lhe por me escoltar. É importante para mim ver meus filhos.
— Achei que não haveria nada mais importante. Não tenho nem mulher nem filhos, mas se tivesse, não os abandonaria.
— Por que nunca se casou?
Deu-me um sorriso.
— Nunca amei uma mulher o bastante para isso.
Não havia nada de mais nisso; havia algo nisso. Tive vontade de lhe perguntar o que uma mulher deveria fazer para lhe agradar. Era um tolo por se mostrar tão exigente em relação a mulheres. A maioria dos homens se casaria com quem lhe trouxesse riqueza ou boas relações. Mas William Stafford não parecia um tolo.
Quando paramos para comer, ele me ajudou a desmontar e me segurou um instante, quando eu já estava no chão.
— Está tudo bem? — perguntou gentilmente. — Passou muito tempo na sela.
— Estou bem. Diga aos homens que não vamos demorar muito tempo. Quero chegar a Hever antes de escurecer.
Conduziu-me à hospedaria.
— Espero que tenham algo bom para lhe servir. Prometeram galinha, mas desconfio que deverá ser um ganso velho e esquelético.
Eu ri.
— Qualquer coisa, sou capaz de comer qualquer coisa com a fome que estou. Come comigo?
Por um momento, achei que diria sim, mas ele fez uma ligeira mesura e respondeu:
— Comerei com os homens.
Senti-me um pouco vexada com a sua recusa.
— Como preferir — eu disse friamente e entrei na sala de teto baixo da estalagem. Aqueci as mãos no fogo, e relanceei os olhos para a pequena janela. No pátio da estrebaria, ele observava os homens retirarem os arreios dos cavalos e secá-los antes de entrarem para comer. Achei-o um homem bonito. Uma pena não ser educado.
Nesse verão decidi que os cachos dourados de Henrique deveriam ser cortados e que Catarina deixaria de usar suas roupas curtas e passaria a usar vestidos decentes. Henrique também deveria passar a usar gibão e calça. Por mim, os deixaria mais um ano com suas roupas de bebê, mas vovó Bolena insistiu para que os dois abandonassem sua infância, e ela era bem capaz de escrever a Ana dizendo que eu não estava educando bem seu protegido.
O cabelo de Henrique era mais macio do que penas. Era cacheado, louro e comprido, caindo em seus ombros como anéis, emoldurando seu rostinho. Nenhuma mãe no mundo os veria serem cortados sem lágrimas nos olhos. Era o meu bebê e a última coisa que eu queria era que perdesse seus cachos e seu aspecto rechonchudo, a última coisa que eu queria era ver qualquer mudança na maneira como estendia os braços para ser pego no colo, a instabilidade de suas perninhas gordas.
Evidentemente, ele era a favor de tudo isso, e queria uma espada e seu próprio pônei. Queria ir à corte da França, como George, e aprender a lutar. Queria partir em cruzada e aprender a combater nas justas, queria crescer o mais rápido possível, enquanto eu queria mantê-lo em meus braços, o meu bebê para sempre.
William Stafford veio ao nosso encontro em nosso lugar preferido, no banco de pedra de frente para o fosso e o castelo. Henrique tinha passado a manhã correndo e, agora, estava adormecido, aninhado em meus braços, o polegar na boca. Catarina batia os pezinhos descalços na água do fosso.
Ele viu imediatamente as lágrimas em meus olhos, mas apenas hesitou e falou baixinho, para não acordar meu filho.
— Desculpe incomodá-la. Vim dizer-lhe que estamos retornando a Londres e perguntar se tem alguma mensagem para levarmos.
— Tenho algumas frutas e legumes para a minha mãe, na cozinha.
Balançou a cabeça e hesitou.
— Perdoe-me — disse sem jeito. — Posso ver que chorou. Tem algo que eu possa fazer? Seu tio deixou-a aos meus cuidados. É meu dever saber se alguém a ofendeu.
Reprimi o riso.
— Não. É só que Henrique vai ter de usar calça e eu adoraria que continuasse bebê. Não queria que ele ou a minha Catarina crescessem. Se eu tivesse marido, ele teria levado Henrique para cortar o cabelo sem a minha permissão. Mas tenho de providenciar isso eu mesma.
— Sente falta de seu marido? — perguntou com curiosidade.
— Um pouco — eu me perguntei até onde Stafford sabia que meu casamento não tinha sido realmente um casamento. — Não ficamos muito juntos — foi a resposta mais franca e discreta que consegui dar, e seu balançar de cabeça imparcial não deixou claro se tinha me entendido ou não.
— Refiro-me a agora — disse ele, demonstrando que era mais inteligente do que eu o tinha julgado. — Agora, que não tem mais o favor do rei. Agora seria o tempo em que esperaria ter mais um filho com seu marido, não? E começar de novo?
Hesitei.
— Acho que sim — relutei discutir meu futuro com alguém que não passava de um cavalheiro do séquito de meu tio, insignificante, para ser franca, pouco mais que um aventureiro comum.
— Não é uma situação muito confortável para uma mulher jovem, de 22 anos com dois filhos pequenos. Tem toda uma vida pela frente, e ainda assim, seu futuro está atrelado ao da sua irmã. Está na sombra dela. A senhora, antes favorita de todos.
Foi um sumário tão frio e exato de minha vida que me irritei diante da perspectiva que me abriu.
— É assim com as mulheres — eu disse, ferida com a franqueza. — Não escolhemos, posso lhe garantir. As mulheres são brinquedos da sorte. Se o meu marido tivesse sobrevivido, teria recebido grandes honras. Meu irmão é Lord George, meu pai é conde, e eu teria partilhado sua prosperidade. Mas como as coisas aconteceram, continuo a ser uma garota Bolena e uma Howard, não sou miserável. Tenho prospectos.
— É uma aventureira — disse ele —, como eu. Ou poderia ser. Enquanto a sua família está concentrada em Ana, e o futuro dela é tão incerto, pode fazer o seu próprio futuro. Pode fazer a sua própria escolha. Esqueceram-se de controlá-la por um momento. Nesse momento, pode ser livre.
Voltei a atenção para ele.
— É por isso que não se casou? Para que fosse livre?
Sorriu-me, um brilho de dentes brancos em seu rosto moreno.
— Oh, sim — replicou ele. — Não devo meu sustento a nenhum homem. Não devo obrigação a nenhuma mulher. Sou homem do seu tio, uso sua libré, mas não me considero seu servo. Sou um inglês nascido livre, eu faço o meu próprio caminho.
— É homem — eu disse. — Para a mulher é diferente.
— Sim — admitiu ele. — A menos que ela se case comigo. Então, poderíamos fazer o nosso próprio caminho juntos.
Ri baixinho, abracei mais o pequeno Henrique.
— Faria seu caminho com muito pouco dinheiro, se se casasse afrontando seu senhor e sem a bênção dos pais dela.
Stafford não ficou nem um pouco desconcertado.
— Há começos piores do que esse. Acho que preferia ter uma mulher que me amasse apostando em minha capacidade de cuidar dela a seu pai me segurando com um dote e um contrato.
— E o que ela ganharia?
Olhou-me direto nos olhos.
— O meu amor.
— E isso valeria o rompimento com a família dela? Com o seu senhor? Com seus parentes?
Desviou os olhos para onde as andorinhas faziam seus ninhos sob os torreões do castelo.
— Gostaria de uma mulher que fosse livre como um pássaro. Gostaria que uma mulher viesse a mim por amor, que me quisesse por amor, e não se importasse com mais nada além de mim.
— Teria uma tola como mulher — eu disse rispidamente.
Virou-se para mim e sorriu.
— Ainda bem que não encontrei uma mulher que eu quisesse — disse ele. — Pois assim não há tolo nenhum, em vez de dois.
Assenti com a cabeça. Achei que tinha triunfado na troca, mas a coisa ficou, de certa maneira, não resolvida.
— Espero permanecer solteira durante algum tempo — eu disse. E mesmo aos meus ouvidos, soei pouco convincente.
— Espero que sim — disse ele, de modo estranho. — Adeus, Lady Carey — fez uma mesura e estava para ir, quando disse: — E acho que vai descobrir que o seu filho continuará um menino, use calça curta ou comprida. Amei minha mãe até o dia de sua morte. Que Deus a tenha. E sempre fui o seu menino, por mais crescido ou desagradável que tenha me tornado.
Eu não deveria ter-me preocupado com a perda dos cachos de Henrique. Quando foram tosados, pude ver mais uma vez a forma arredondada delicada de sua cabeça, o pescoço vulnerável e macio. Deixou de parecer um bebê, e passou a ser o menininho mais atraente. Eu gostava de pôr minha mão em concha sobre sua cabeça e sentir o seu calor. Em suas roupas de adulto, parecia exatinho um príncipe e, contra a vontade, comecei a pensar que, um dia, ele ainda se sentaria no trono da Inglaterra. Era o filho do rei, tinha sido adotado pela mulher que talvez um dia assumisse o título de rainha da Inglaterra — porém mais do que tudo isso, ele era o menino mais principesco que eu já tinha visto. Ficava como seu pai, com as mãos nos quadris, como se fosse dono do mundo. Era o menino de temperamento mais doce, que vinha correndo quando sua mãe o chamava, acompanhando sua voz com a confiança de um falcão no assobio. Nesse verão, era uma criança preciosa, e quando vi o menino que era, e o rapaz que se tornaria, não sofri mais pelo bebê que tinha sido.
Mas aprendi que queria outro filho. A sua beleza de menino significava que eu tinha perdido meu bebê, mas pensei em como seria ter um filho que não fosse peão no jogo do trono, e sim desejado por ser ele próprio. Como seria ter um filho com um homem que me amasse e que ansiava para que o tivéssemos juntos. Esse pensamento fez com que eu retornasse à corte com o humor sombrio, silencioso.
William Stafford veio para me escoltar ao Palácio de Richmond e insistiu para que partíssemos cedo para que os cavalos descansassem ao meio-dia. Despedi-me das crianças com um beijo e saí para o pátio, onde Stafford me ergueu e pôs na sela. Eu estava chorando por deixá-los e, para meu constrangimento, uma lágrima caiu sobre sua face. Ele enxugou-a com a ponta do dedo, e em vez de limpar a mão na calça, pôs o dedo na boca e o lambeu.
— O que está fazendo?
Pareceu culpado no mesmo instante.
— Não devia ter deixado cair uma lágrima em mim.
— E não devia tê-la lambido — respondi exaltada.
Ele não respondeu nem se moveu imediatamente. Então, disse:
— O cavalo — virou-se e montou. A pequena cavalaria saiu do pátio do castelo, e acenei para meu filho e minha filha, ajoelhados no vão da janela de seu quarto para me ver partir.
Atravessamos a ponte levadiça com os cascos dos cavalos fazendo um ruído estrondoso sobre as tábuas ocas, e a estrada sinuosa e comprida até o fim do parque. William Stafford conduziu seu cavalo para o lado do meu.
— Não chore — disse ele abruptamente.
Olhei de lado para ele e desejei que fosse para perto de seus homens.
— Não estou chorando.
— Está — me contradisse. — E não posso escoltar uma mulher chorando durante o caminho todo até Londres.
— Não sou chorona — eu disse com uma certa irritação. — Mas tenho de deixar meus filhos e sei que só poderei revê-los daqui a um ano. Um ano! Acho que tenho o direito de ficar um pouco triste ao deixá-los.
— Não — disse ele, decidido. — E vou dizer por quê. A senhora me disse claramente que uma mulher tem de fazer o que a sua família mandar. A sua família ordenou que se separasse de seus filhos, até mesmo que entregasse seu filho à guarda de sua irmã. Lutar para consegui-los de volta faz mais sentido do que chorar. Escolheu ser uma Bolena e uma Howard, portanto pode muito bem ser feliz em sua obediência.
— Gostaria de cavalgar só — falei com frieza.
Imediatamente, esporeou seu cavalo e ordenou aos homens que iam à frente para seguirem atrás. Todos se moveram seis passos atrás de mim, e prossegui calada e solitária durante todo o longo trajeto até Londres, exatamente como tinha ordenado.
Outono de 1530
A corte estava em Richmond e Ana era só sorrisos depois de um verão feliz no campo com Henrique. Tinham caçado diariamente e ele a cobrira de presentes, uma sela nova para seu cavalo de caça, novo arco e flechas. Ele tinha encomendado uma bela sela de damas para que ela se sentasse atrás dele, as mãos dela em volta de sua cintura, a cabeça contra seu ombro, de modo que pudessem conversar sussurrando enquanto cavalgavam. Aonde quer que fossem, diziam-lhes que o país os admirava, apoiava seus planos. Em toda parte, eram recebidos com demonstrações de lealdade, poemas, mascaradas e quadros vivos. Todas as casas os recebiam com uma chuva de pétalas e ervas recém-espalhadas sob seus pés. Ana e Henrique eram assegurados a todo momento que formavam um casal perfeito com um futuro definido. Nada poderia dar errado para eles.
Meu pai, de volta da França, decidiu não dizer nada para não perturbar esse quadro.
— Se estão felizes juntos, devemos dar graças a Deus — comentou com meu tio. Estávamos assistindo a Ana no arco e flecha, no terraço acima do rio. Ela era uma arqueira hábil e estava apta a levar o prêmio. Havia somente uma única mulher, Lady Elizabeth Ferrers, que talvez suplantasse minha irmã.
— É uma mudança agradável — disse meu tio acremente. — Ela tem o gênio de um gato de estrebaria, essa sua filha.
Meu pai reprimiu um risinho.
— Ela puxou à mãe — disse ele. — Todas as garotas Howard atacam de uma maneira ou de outra assim que as olhamos. Você deve ter tido algumas brigas com sua irmã quando eram crianças.
Tio Howard pareceu indiferente e não encorajou a observação íntima.
— Uma mulher tem de saber o seu lugar — disse ele gelidamente.
Papai trocou um olhar rápido comigo. Os episódios regulares de tumultos na casa Howard eram famosos. Não era de admirar. Tio Howard tinha arranjado e mantido uma amante assim que sua mulher lhe dera filhos homens. Minha tia jurou que ela não tinha sido nada além de uma encarregada da roupa suja do quarto das crianças e que os dois só conseguiam ter relações se estivessem deitados sobre lençóis sujos. O ódio entre ela e seu marido era motivo constante de comentários na corte, e vê-lo conduzi-la em ocasiões formais, quando eram obrigados a manter a aparência de união, era como assistir a uma peça. Ele segurava a ponta dos dedos dela, que afastava a cabeça dele como se ele cheirasse a sua calça não lavada e golas sujas.
— Nem todos somos abençoados com o seu jeito com as mulheres — disse meu pai.
Meu tio lançou-lhe um olhar surpreso. Era o chefe da família há tanto tempo que estava acostumado à deferência. Mas agora o meu pai era conde por seus próprios méritos, e sua filha que, nesse exato momento, disparou uma flecha e a viu atingir o centro do alvo, poderia ser rainha.
Ana virou-se, sorrindo satisfeita, e Henrique, incapaz de ficar longe dela, levantou-se de um pulo e correu a beijá-la na boca, na frente de toda a corte. Todos sorriram e aplaudiram, Lady Elizabeth ocultou como pôde qualquer sensação de mal-estar por ter perdido para a favorita, e recebeu uma pequena joia do rei, enquanto Ana ganhou um adorno para a cabeça na forma de uma coroa de ouro.
— Uma coroa — disse meu pai, observando o rei estendê-la a ela.
Em um gesto íntimo e confiante, Ana retirou o capelo e ficou diante de todos nós com seu cabelo preto solto em madeixas espessas lustrosas. Henrique aproximou-se e pôs a coroa em sua cabeça. Houve um momento de silêncio absoluto.
A tensão foi rompida pelo bobo da corte que dançou atrás do rei e espiou Ana.
— Oh, Srta. Ana! — chamou. — A senhorita mirou no olho, mas atingiu outra parte do touro. Atingiu seus c...
Henrique virou-se para ele com uma gargalhada e tentou dar-lhe um murro, do qual o bobo se esquivou. A corte caiu na gargalhada e Ana, enrubescida, a pequena coroa reluzindo em seu cabelo preto, sacudiu a cabeça para o bobo, advertiu-o com um movimento do dedo e virou o rosto constrangido para o ombro de Henrique.
Eu partilhava o quarto com Ana no segundo melhor aposento que o Palácio de Richmond podia oferecer. Não eram os aposentos da rainha, mas vinham logo a seguir. Parecia haver uma norma tácita de que Ana podia requisitar aposentos e mobiliá-los tão ricamente quanto uma rainha, quase tão ricamente quanto o rei, mas ainda não tinha permissão para viver nos aposentos da rainha, embora esta nunca estivesse lá. Novos protocolos tinham de ser inventados o tempo todo nessa corte, que era diferente de todas as outras anteriores.
Ana estava esparramada na cama, sem se incomodar em amarrotar o vestido.
— Teve um bom verão? — perguntou-me negligentemente. — As crianças estão bem?
— Sim — respondi de maneira concisa. Nunca mais falei, voluntariamente, de meu filho com ela. Tinha perdido o direito de ser tia no momento em que reivindicou ser sua mãe.
— Você estava assistindo à competição de arco e flecha com nosso tio — disse ela. — Do que ele estava falando?
— De nada. Dizia que você e o rei estavam felizes.
— Eu lhe disse que quero ver Wolsey destruído. Ele virou-se contra mim. Está apoiando a rainha.
— Ana, ele perdeu a chancelaria, o que certamente é o bastante.
— Está se correspondendo com a rainha. Eu o quero morto.
— Mas ele era seu amigo.
Sacudiu a cabeça.
— Nós dois representamos um papel para agradar ao rei. Wolsey me mandava peixes de seu viveiro de trutas e eu lhe mandava pequenos presentes. Mas nunca me esqueci de como falou comigo sobre Henry Percy, e ele nunca se esqueceu de que sou uma Bolena, sem berço como ele. Tinha inveja de mim e eu, dele. Tornamo-nos inimigos no momento em que voltei da França. Ele nem mesmo me viu. Nem mesmo percebeu o poder que tenho. Ainda hoje não percebe. Mas na sua morte, vai entender. Tenho a sua casa, terei a sua vida.
— Ele é velho. Perdeu toda a sua fortuna e títulos, que eram seu motivo de orgulho e de alegria. Está retirado em sua sé em York. Se quer vingança, deixe-o decair. É uma grande vingança.
Ana sacudiu a cabeça.
— Ainda não. Não enquanto o rei continuar a gostar dele.
— O rei só pode amar você? Nem mesmo pode amar o homem que o protegeu e guiou como um pai durante anos?
— Sim. Ele não amará ninguém além de mim.
Fiquei surpresa.
— Passou a desejá-lo?
Ela riu na minha cara.
— Não. Mas farei com que não veja ninguém nem fale com ninguém a não ser eu e aqueles em que confio. E em quem posso confiar?
Sacudi a cabeça.
— Você... talvez. George, sempre. Papai, em geral. Mamãe, às vezes. Tio Howard, se lhe convier. Em minha tia, não, que passou para o lado de Catarina. Talvez o duque de Suffolk, mas não em sua mulher, Maria Tudor, que não suporta me ver subir tão alto. Alguém mais? Não. Talvez alguns homens sejam bondosos comigo. Meu primo, Sir Francis Bryan, talvez Francis Weston, por causa de sua amizade com George. Sir Thomas Wyatt ainda gosta de mim — ergueu mais um dedo em silêncio e nós duas pensamos em Henry Percy, tão longe em Northumberland, nunca vindo, deliberadamente, à corte, infeliz, vivendo no meio do nada com a mulher com que se casara sob protesto.
— Dez — disse ela calmamente. — Dez pessoas que me querem bem contra o mundo todo que ficaria feliz em me ver cair.
— O cardeal não pode mais fazer nada contra você. Ele perdeu todo o seu poder.
— Então é o momento em que está maduro para ser destruído. Agora que perdeu todo o seu poder e é um velho derrotado.
Houve uma certa conspiração tramada entre o duque de Suffolk e tio Howard, mas selada por Ana. Meu tio tinha provas de uma carta de Wolsey ao Papa, e Henrique, que tinha estado disposto a convocar de novo seu velho amigo a uma alta posição, virou-se mais uma vez contra ele e ordenou a sua prisão.
O lorde enviado para prendê-lo foi escolhido por Ana. Foi o gesto final de Ana contra o homem que a chamara de garota tola e sem berço. Henry Percy de Northumberland procurou Wolsey em York e lhe disse que era acusado de traição e deveria fazer a longa viagem de volta a Londres e ficar não no seu maravilhoso palácio de Hampton Court, que agora pertencia ao rei, não em sua bela casa em Londres, o Palácio de York, que agora se chamava Whitehall e pertencia a Ana. Em vez disso, iria como um traidor para a Torre e aguardaria o julgamento, como outros antes dele tinham aguardado e percorrido o curto caminho até o cadafalso.
Henry Percy deve ter sentido uma alegria cruel ao enviar a Ana o homem que os havia separado, agora doente de exaustão e desespero. Não foi culpa de Henry Percy Wolsey ter escapado de todos eles morrendo no caminho, e a única satisfação de Ana foi que o garoto que ela amara tinha sido quem havia dito ao homem que os separara que a sua vingança finalmente tinha acontecido.
Natal de 1530
A rainha foi ao encontro da corte em Greenwich para o Natal e Ana ofereceu a sua ceia rival no antigo palácio do cardeal morto. Era um segredo conhecido que o rei, depois de cear cerimoniosamente com a rainha, sairia furtivamente, pediria a barcaça real e seria conduzido à escada de Whitehall onde cearia de novo com Ana. Às vezes, levava alguns cortesãos seletos com ele, inclusive a mim, e então passávamos uma noite alegre à margem do rio, bem agasalhados do vento frio cortante, com as estrelas brilhando sobre nós quando voltávamos, às vezes uma grande lua iluminando o caminho.
Eu era de novo uma das damas de honra da rainha e fiquei chocada ao ver a mudança que ocorrera nela. Quando erguia a cabeça e sorria para Henrique, não conseguia mais concentrar alegria em seus olhos. Ele tinha eliminado a alegria que havia nela, talvez para sempre. Ela conservava a dignidade calma, a mesma confiança em si mesma como princesa da Espanha e rainha da Inglaterra, mas nunca mais irradiaria o brilho de uma mulher que sabe que seu marido a adora.
Um dia, estávamos juntas diante do fogo, em seu aposento, a toalha de altar aberta de uma ponta à outra da parte inferior da lareira. Eu trabalhava o céu azul, que continuava incompleto, e ela havia deixado o azul e se mudado para outra cor, o que raramente fazia. Achei que devia estar realmente cansada para abandonar uma tarefa incompleta. Geralmente, persistia, por mais que isso lhe custasse.
— Viu seus filhos no verão? — perguntou.
— Sim, Majestade — repliquei. — Catarina agora usa vestidos compridos e está aprendendo francês e latim, e o cabelo de Henrique foi cortado.
— Vai mandá-los para a corte francesa?
Não consegui ocultar a pontada de apreensão.
— Pelo menos não por enquanto. São ainda muito pequenos.
Sorriu para mim.
— Lady Carey, sabe que não se trata do quanto são jovens ou queridos. Têm de aprender seu dever. Como você fez, como eu fiz.
Curvei a cabeça.
— Sei que tem razão — eu disse baixinho.
— Uma mulher precisa saber a sua obrigação para que possa cumpri-la e viver na posição que Deus lhe reservou — disse a rainha. Sei que ela estava pensando em minha irmã, que não ocupava a posição que Deus lhe teria escolhido, mas sim uma posição gloriosa, conquistada por sua beleza e esperteza, e agora mantida por uma campanha inveterada.
Bateram à porta, era um dos homens de meu tio.
— Laranjas, um presente da duquesa de Norfolk — disse ele. — E um bilhete.
Levantei-me para receber a bela cesta com laranjas arrumadas com suas folhas verde-escuras. Havia uma carta lacrada com o selo de meu tio.
— Leia o bilhete — disse a rainha.
Coloquei a cesta sobre a mesa e abri o bilhete. Li em voz alta:
— “Majestade, tendo recebido um tonel de laranjas recém-colhidas de seu país natal, tomo a liberdade de enviar uma seleção delas com meus cumprimentos.”
— Que gentileza — disse a rainha calmamente. — Pode colocá-las em meu quarto, Maria? E escreva uma resposta à sua tia em meu nome, agradecendo.
Levantei-me e levei a cesta ao seu quarto. Prendi o salto do sapato no tapete à entrada e, ao tentar me equilibrar, derrubei as laranjas, que rolaram pelo chão como bolas de gude. Praguejei o mais baixo que pude e me apressei a recolocá-las na cesta antes que a rainha entrasse e visse o estrago que eu tinha feito de uma tarefa tão simples.
Então, percebi algo que me paralisou. No fundo da cesta, havia um pedacinho de papel amassado. Alisei-o. Estava preenchido com números pequenos, não havia palavras. Estava cifrado.
Fiquei ali, de joelhos, com as laranjas à minha volta, por um longo tempo. Então, as rearrumei lentamente de volta na cesta, que coloquei sobre uma arca baixa. Até mesmo recuei para admirá-las e mudar sua posição. Em seguida, guardei o papel no bolso e voltei à sala, para me sentar com a mulher a quem amava mais do que qualquer outra no mundo. Ao seu lado, bordei a tapeçaria e me perguntei que desastre em potencial eu tinha no bolso e o que faria com isso.
Não tive escolha. Do começo ao fim, não tive escolha. Era uma Bolena. Era uma Howard. Se não me ativesse à minha família, seria um joão-ninguém, sem meios de sustentar meus filhos, sem futuro e sem proteção. Levei o papel aos aposentos de meu tio e o coloquei sobre a mesa diante dele.
Precisou somente da metade de um dia para decifrá-lo. Não se tratava de uma conspiração muito complicada. Era apenas uma mensagem de esperança do embaixador espanhol, sussurrada à minha tia que a passara à rainha. Nada de uma conspiração efetiva. Era tramar no deserto. Não significava nada além de um conforto para a rainha e eu tinha sido o instrumento usado para lhe tirar esse conforto.
Essa notícia veio à tona nos aposentos de meu tio com uma grande briga, com ele chamando sua mulher de traidora do rei e dele próprio e, em seguida, ela recebendo uma repreensão do rei em pessoa. Fui ver a rainha. Estava em seu quarto, olhando pela janela o jardim congelado lá embaixo. Algumas pessoas envolvidas em peles caminhavam para o rio onde barcaças aguardavam para transportá-las à ceia de minha irmã em sua corte rival. A rainha, em silêncio, sozinha em seu aposento, observava-as partirem, o bobo fazendo travessuras ao seu redor, um dos músicos dedilhando o alaúde e cantando para elas.
Ajoelhei-me diante dela.
— Entreguei o bilhete da duquesa ao meu tio — confessei sem rodeios. — Achei-o na cesta de laranjas. Se não tivesse vindo à minha mão eu jamais o procuraria. Parece que sempre a traio, mas não é a minha intenção.
Relanceou os olhos para a minha cabeça baixa como se isso não tivesse muita importância.
— Não conheço ninguém que agiria de outra maneira — falou. — Deve se ajoelhar a seu Deus, não a mim, Lady Carey.
Não me levantei.
— Quero pedir seu perdão — eu disse. — É meu destino pertencer a uma família cujos interesses contrariam os seus. Se eu tivesse sido sua dama de honra em outro tempo, nunca teria tido motivos para desconfiar de mim.
— Se não tivesse sido tentada, não teria caído. Se não fosse seu interesse me trair, teria sido leal a mim. Saia, Lady Carey, não é melhor do que a sua irmã que persegue seus próprios fins como uma doninha, e nunca olha para os lados. Nada deterá os Bolena para conseguirem o que querem, eu sei disso. Às vezes, acho que nada a deterá, nem mesmo minha morte. E sei que a ajudará, por mais que me ame, por mais que eu a tenha amado quando era menina. Você estará atrás a cada passo que ela der.
— Ela é minha irmã — eu disse com veemência.
— E eu sou sua rainha — replicou, gelidamente.
Meus joelhos doíam sobre as tábuas do assoalho, mas não quis me mover.
— Ela tem a guarda de meu filho — eu disse. — E o meu rei na palma de sua mão.
— Saia — repetiu a rainha. — Logo o Natal terá terminado e não nos veremos até a Páscoa. Logo o Papa tomará a sua decisão e quando ele disser que tem de honrar seu casamento comigo, sua irmã dará o passo seguinte. O que acha que devo esperar? Acusação de traição? Veneno em minha comida?
— Ela não faria isso — sussurrei.
— Faria — disse a rainha sem rodeios. — E você a ajudaria. Saia, Lady Carey. Não quero vê-la de novo até a Páscoa.
Levantei-me e me dirigi à porta, de onde lhe fiz uma profunda reverência, tão profunda quanto faria a um imperador. Não lhe mostrei minha face coberta de lágrimas. Curvei-me, envergonhada. Saí, fechei a porta e a deixei sozinha, olhando, no jardim congelado, a corte rindo, partindo rio abaixo para honrar sua inimiga.
Os jardins estavam silenciosos com a maior parte da corte ausente. Enfiei minhas mãos geladas na pele de minhas mangas e andei em direção ao rio, a cabeça baixa, minhas bochechas gélidas com as lágrimas. De repente, um par de botas de cano longo parou à minha frente.
Ergui os olhos devagar. Pernas bonitas, se uma mulher se desse o trabalho de observar, gibão quente, manto de fustão marrom, a face sorridente: William Stafford.
— Não foi com a corte visitar sua irmã? — perguntou sem me saudar antes.
— Não — repliquei simplesmente.
Olhou mais atentamente minha face abatida.
— Seus filhos estão bem?
— Sim — repliquei.
— Então, o que foi?
— Fiz uma coisa má — repliquei, apertando os olhos por causa da luz do sol de inverno na água, olhando para o rio, para onde a corte alegre era conduzida.
Ele esperou.
— Descobri algo sobre a rainha e contei ao meu tio.
— Ele achou que foi uma má ação?
Ri.
— Oh, não. Até onde lhe diz respeito, ganhei um ponto com ele.
— O bilhete secreto da duquesa — adivinhou imediatamente. — Todo o palácio fala nisso. Ela foi banida da corte. Mas ninguém sabe como foi detectada.
— Eu... — comecei sem jeito.
— Ninguém ficará sabendo por mim — com familiaridade, pegou minha mão gelada, a pôs em seu braço e me levou a caminhar à margem do rio. O sol iluminou nossos rostos, minha mão entre seu braço e seu corpo se aqueceu.
— O que teria feito? — perguntei. — Já que guarda suas próprias opiniões e se orgulha tanto de ser dono de si.
Stafford lançou um olhar de lado deliciado.
— Não me atrevi a esperar que se lembrasse de nossas conversas.
— Não é nada — eu disse, ligeiramente desconcertada. — Não significa nada.
— É claro que não.
Refletiu por um momento.
— Acho que teria agido como você. Se tivesse sido seu sobrinho planejando uma invasão, teria sido essencial ler a mensagem.
Paramos nos limites dos jardins do palácio.
— Abrimos o portão e prosseguimos? — perguntou sedutoramente. — Poderíamos ir ao povoado e beber um caneco de ale e comer castanhas assadas.
— Não. Tenho de ir ao jantar hoje, apesar de a rainha ter me dispensado até a Páscoa.
Virou-se e caminhou ao meu lado, sem falar nada, mas com minha mão apertada e aquecida a seu lado. Parou à porta do jardim.
— Deixo-a aqui — disse ele. — Estava a caminho do pátio dos estábulos quando a vi. Meu cavalo estava mancando e quero ver se estão friccionando seu casco da maneira apropriada.
— Na verdade, não sei por que se atrasou por mim — falei com um certo tom provocador.
Encarou-me e senti minha respiração falhar.
— Oh, acho que sabe — replicou falando devagar. — Acho que sabe muito bem por que parei para vê-la.
— Sr. Stafford...
— Realmente detesto o cheiro do linimento que põem no casco — interrompeu-me. Fez uma mesura e desapareceu antes de eu ter tempo de rir ou protestar, ou até mesmo admitir que me havia pegado flertando com ele, embora eu esperasse enganá-lo.
Primavera de 1531
Com a morte do cardeal, a Igreja percebeu rapidamente que além de perder um de seus membros mais ricos, também perdera seu grande protetor. Henrique impôs à Igreja um tributo que esvaziou seu cofre e fez o clero se dar conta de que embora o Papa continuasse a ser seu líder espiritual, aqui na terra, seu líder estava bem mais próximo e era muito mais poderoso.
Nem mesmo o rei poderia ter conseguido isso sozinho. Por trás do ataque de Henrique à Igreja estavam os pensadores mais brilhantes da época, os homens em cujos livros Ana acreditava, que exigiam que a Igreja resgatasse sua pureza inicial. O povo da Inglaterra, ignorante em teologia, não estava preparado para apoiar seus padres ou seus mosteiros contra Henrique, quando ele falou sobre o direito do povo inglês a uma Igreja da Inglaterra. A Igreja em Roma parecia-se demais com uma Igreja de Roma: uma instituição estrangeira dominada, naquele momento, por um imperador estrangeiro. Seria muito melhor que a Igreja respondesse em primeiro lugar a Deus, e que fosse governada, como tudo o mais no país, pelo rei da Inglaterra. De que outra maneira ele poderia ser rei?
Ninguém fora da Igreja discutiu essa lógica. De dentro, somente o bispo Fisher, o antigo e obstinado fiel confessor da rainha, manifestou algum protesto quando Henrique se denominou chefe supremo da Igreja da Inglaterra.
— Não deveria permitir a sua presença na corte — disse Ana a Henrique. Estavam sentados no vão da janela, na sala de audiências do Palácio de Greenwich. Ela baixou só um pouco a voz, em deferência aos requerentes que esperavam para vê-lo e a corte à sua volta. — Ele está sempre entrando sorrateiramente nos aposentos da rainha, cochichando durante horas. Quem pode afirmar que ela está se confessando e ele orando? Quem sabe que conselhos ele está lhe dando? Quem sabe que segredos estão tramando?
— Não posso negar-lhe os ritos da Igreja — disse o rei, sensatamente. — Ela não conspiraria no confessionário.
— Ele é seu espião — disse Ana categoricamente.
O rei deu um tapinha em sua mão.
— Calma, meu coração — disse ele. — Sou o chefe supremo da Igreja da Inglaterra, posso determinar o meu próprio casamento. Está quase decidido.
— Fisher se manifestará contra nós — queixou-se. — E todos lhe darão ouvidos.
— Fisher não é o chefe supremo da Igreja — repetiu Henrique, saboreando as palavras. — Eu sou — olhou para um dos requerentes. — O que quer? Pode se aproximar.
O homem avançou segurando um pedaço de papel, uma briga sobre um testamento que o tribunal não tinha conseguido resolver. Meu pai, que levara o homem, ficou atrás e deixou-o fazer seu pedido. Ana saiu furtivamente do lado de Henrique e foi até papai, tocou em sua manga e sussurrou algo. Separaram-se e ela voltou sorrindo ao rei.
Eu distribuía as cartas para jogarmos. Procurei em volta um homem para ser o quarto jogador. Sir Francis Weston se adiantou e fez uma mesura para mim.
— Posso apostar meu coração? — perguntou.
George nos observava, sorrindo do flerte de Sir Francis, os olhos cheios de ternura.
— Não tem o que apostar — lembrei-lhe. — Jurou-me que o tinha perdido quando me viu com meu vestido azul.
— Recuperei-o quando dançou com o rei — disse ele. — Partido, mas recuperado.
— Não é um coração, mas uma velha flecha partida — observou Henrique. — Está sempre perdendo-a e indo recuperá-la de novo.
— Ela nunca acha seu alvo — disse Sir Francis. — Sou um mau arqueiro, em comparação à Sua Majestade.
— E também um péssimo jogador de cartas — disse Henrique esperançosamente. — Vamos apostar um xelim o ponto.
Algumas noites depois, o bispo Fisher sentiu-se mal, e quase morreu. Três homens que jantavam à sua mesa morreram envenenados, outros, em sua casa, também adoeceram. Seu cozinheiro tinha sido subornado para pôr veneno em sua sopa. Foi a sua boa sorte que o fez não querer a sopa nessa noite.
Não perguntei a Ana o que ela tinha dito a papai, nem o que ele tinha respondido. Não lhe perguntei se tinha algo a ver com a doença do bispo e a morte de três homens inocentes à sua mesa. Não era fácil pensar que sua irmã e seu pai eram assassinos. Mas me lembro da perversidade em sua cara quando jurou que odiava Fisher tanto quanto tinha odiado o cardeal. Agora, o cardeal tinha morrido de vergonha e o jantar de Fisher tinha sido envenenado. Senti que tudo aquilo, que havia se iniciado com um flerte de verão, tinha se tornado tenebroso demais e grande demais para eu querer conhecer qualquer segredo. O lema obscuro de Ana, “Assim será, doa a quem doer”, parecia uma praga que ela lançara nos Bolena e nos Howard, e no país.
A rainha foi o centro da corte na festa da Páscoa, como tinha predito. O rei jantou com ela todas as noites, sempre sorrindo, para que todos que tivessem vindo vê-los jantarem juntos voltassem para casa dizendo que era uma pena um homem no vigor de seus anos estar preso a uma mulher tão mais velha e de expressão tão grave. Às vezes, ela se retirava cedo e suas damas tinham de escolher ou acompanhá-la ou permanecer no salão. Eu sempre a acompanhava. Eu estava cansada dos mexericos e escândalos da corte, do despeito das mulheres e do encanto fugaz de minha irmã. E receava o que veria, se ficasse. Era uma corte menos confiável do que a que eu tinha conhecido, com tantas expectativas, quando eu era a única garota Bolena da Inglaterra e uma mulher recém-casada com grande esperança no meu marido e na minha vida com ele.
A rainha aceitava meu serviço sem comentários. Nunca mencionou minha traição. Só uma vez me perguntou se eu não preferia permanecer no salão, assistindo ao entretenimento ou dançando.
— Não — repliquei. Eu tinha apanhado um livro e ia me oferecer para lê-lo para ela quando se pôs a trabalhar a toalha de altar. O céu azul estava quase pronto. Era notável como tinha trabalhado rápido e com precisão. A toalha estava aberta como um vestido em seu colo, caindo no chão com um remoinho azul forte, e só faltava um último canto a ser bordado.
— Não gosta de dançar? — perguntou ela. — Logo você, uma viúva jovem? Não tem admiradores?
Sacudi a cabeça.
— Não, Majestade.
— Seu pai deve estar procurando um novo marido para você — disse ela, declarando o óbvio. — Ele falou com você?
— Não. E a situação... — não havia como concluir a frase de uma maneira mais apropriada. — A nossa situação está muito indefinida.
A rainha Catarina riu genuinamente.
— Não pensei nisso — admitiu ela. — Uma aposta arriscada para um jovem! Quem pode dizer o quanto poderá subir com você? Quem pode dizer de quão alto pode cair?
Sorri palidamente e lhe mostrei a lombada do livro.
— Quer que eu leia, Majestade?
— Acha que estou segura? — perguntou-me abruptamente. — Você me avisaria se a minha vida estivesse em perigo, não avisaria?
— Segura do quê?
— Do veneno.
Estremeci, como se a noite primaveril tivesse, de repente, se tornado úmida e fria.
— Estes são tempos obscuros — repliquei. — Muito obscuros.
— Eu sei — disse ela. — E começaram tão bem.
Só falou de seu medo do veneno para mim, mas suas damas repararam que ela dava um pouco de seu desjejum para seu galgo Flo, antes dela mesma comê-lo. Uma delas, uma garota Seymour — Jane —, comentou que ele estava engordando e que não era bom treinar um cachorro a comer na mesa. Alguém zombou dizendo que o amor do pequeno Flo era tudo o que restava para a rainha. Não falei nada. Gostaria que a rainha testasse sua comida com cada uma delas. Podíamos perder Jane Seymour, não faria muita falta.
Portanto quando trouxeram a notícia de que a princesa Mary estava doente, o meu primeiro pensamento, assim como o da rainha, foi que a sua filha, linda e inteligente, tivesse sido envenenada. Provavelmente por minha irmã.
— Diz que ela está muito doente — disse a rainha, lendo a carta do médico. — Meu Deus, diz que está doente há oito dias, que nada para no seu estômago.
Esqueci o protocolo real e peguei sua mão que tremia a ponto de o papel crepitar.
— Não pode ser veneno — sussurrei com urgência. — Envenená-la não beneficiaria ninguém.
— Ela é a minha herdeira — replicou a rainha, sua face tão branca quanto a carta. — Será que Ana a envenenou para me forçar a ir para um convento?
Neguei com a cabeça. Não sabia do que Ana agora era capaz.
— De qualquer maneira, tenho de vê-la — foi até a porta e a abriu. — Onde estará o rei?
— Vou procurá-lo — eu disse. — Deixe que eu vá. Não pode ficar de lá para cá no palácio.
— Não — disse ela, com um gemido de dor. — Não posso nem mesmo procurá-lo e pedir que me deixe ver nossa filha. O que farei se a mulher disser não?
Por um momento, não soube o que responder. A ideia da rainha da Inglaterra pedindo em desespero à minha irmã, que não tinha berço, que a deixasse ver a própria filha, uma filha que era a princesa, era algo inadmissível, até mesmo neste mundo de pernas para o ar.
— Ela não vai interceder, Majestade. O rei ama a princesa Mary, não vai querer que fique doente sem os cuidados de sua mãe.
Ana já sabia que a princesa estava doente. Ana sabia sempre de tudo, agora. O sistema de espionagem de meu tio, uma rede excelente, tinha recrutado um criado em cada casa da Inglaterra, e suas descobertas eram dedicadas ao serviço de minha irmã. Ana sabia que a princesa Mary estava doente de tristeza. A menina vivia sozinha com nenhuma outra companhia senão a dos criados e de seu confessor, passava horas de joelhos rezando a Deus para fazer seu pai voltar a amar sua mãe, a mulher dele. Estava doente de tristeza.
Naquela noite, quando o rei foi aos aposentos da rainha, tinha sua resposta preparada.
— Pode ir e ver a princesa, se quiser, e ficar por lá — disse ele. — Com a minha bênção. Com a minha gratidão. E adeus.
A cor abandonou a face da rainha, deixando-a com uma aparência doentia e cansada.
— Nunca o abandonaria, meu marido — sussurrou ela. — Estava pensando em nossa filha. Achei que gostaria de saber se ela está sendo bem-cuidada.
— É só uma menina — disse ele, com todo o desprezo do mundo na voz. — Não ficou tão impaciente para cuidar do nosso filho. Não foi uma enfermeira tão eficiente com o nosso filho, até onde me lembro.
Ela emitiu um suspiro de dor, mas ele prosseguiu.
— Então, vem jantar, senhora? Ou vai para perto da sua filha?
Ela se recompôs com esforço. Levantou-se, ereta em sua pequena estatura, aceitou o braço que ele oferecia, e ele a conduziu como uma rainha. Mas ela não conseguiu representar tão bem quanto ele. Olhou o salão e viu minha irmã à mesa com sua pequena corte à sua volta. Ana sentiu o olhar obscuro da rainha e ergueu os olhos. Lançou-lhe um sorriso radiante, confiante, e a rainha, percebendo seu prazer flagrante, soube a quem devia agradecer a crueldade do rei. Deixou a cabeça cair, esmigalhou uma fatia de pão, sem comê-la.
Nessa noite, muitos comentaram que um rei jovem e belo não deveria estar casado com uma mulher que parecia ter idade para ser sua mãe, além de parecer tão infeliz.
A rainha Catarina não abandonou a batalha até ser completamente derrotada. Qualquer mulher, exceto minha irmã, se envergonharia de ver a rainha reunir coragem para enfrentar seu marido. Apenas dias depois de saber que a princesa Mary estava doente, ela jantava com o rei privadamente, somente com a presença de suas damas de honra e os servidores pessoais do rei, dois embaixadores e Thomas Cromwell, que, na época, estava em todo lugar. Thomas More também estava lá, parecendo que gostaria de não estar.
Tinham levado as carnes e posto os pratos de frutas e o vinho doce. A rainha virou-se para o rei e pediu-lhe — como se fosse um pedido simples — que expulsasse Ana da corte. Chamou-a de uma “criatura impudente”.
Vi a cara de Thomas More e soube que eu tinha a mesma expressão pasma. Não acreditei que a rainha tivesse sido capaz de desafiar Sua Majestade em público. Que ela, cujo caso estava agora, nesse momento, sendo examinado pelo Papa em Roma, tivesse a coragem de enfrentar seu marido em sua própria câmara e, cortesmente, pedir que abandonasse sua amante. Não percebi por que estava fazendo isso e, então, compreendi. Era pela princesa Mary. Era para envergonhá-lo e forçá-lo a permitir que fosse ver a princesa. Estava arriscando tudo para poder ver sua filha.
O rosto de Henrique ficou escarlate de raiva. Baixei os olhos e rezei para que a raiva não se voltasse contra mim. Com a cabeça baixa, vi, pelo canto do olho, o embaixador Chapuys na mesma postura. Somente a rainha, as mãos agarrando os braços da cadeira para que não tremessem, mantinha a cabeça erguida e os olhos em seu rosto rubro, mantinha a expressão treinada de modo que a pergunta parecesse polida.
— Por Deus! — enfureceu-se Henrique. — Nunca vou expulsar Lady Ana da corte. Ela não fez nada que ofendesse a um homem honesto.
— Ela é sua amante — observou a rainha calmamente. — E isso é uma desonra a uma casa temente a Deus.
— Não! — o grito de Henrique tornou-se um rugido. Retraí-me; ele era tão aterrador quanto um urso açulado. — Não! Ela é uma mulher de virtude absoluta!
— Não — replicou a rainha, com calma. — Em pensamento e palavra, se não em ação, ela é impudica e atrevida, e não é companhia para uma mulher de bem ou para um príncipe cristão.
Ele levantou-se de um pulo, e nem assim ela se retraiu.
— O que diabos quer de mim? — gritou-lhe. O cuspe chegando à face dela. Ela não piscou nem se virou. Continuou sentada, como se fosse de pedra, e ele, uma aterrorizante maré cheia invadindo a costa.
— Quero ver a princesa Mary — replicou ela, com calma. — Só isso.
— Pois vá! — berrou ele. — Vá! Pelo amor de Deus! Vá! E nos deixe em paz. Vá e fique por lá!
A rainha Catarina sacudiu a cabeça bem devagar.
— Não o deixaria, nem mesmo por minha filha, apesar de o senhor partir o meu coração — disse ela, ainda com calma.
Fez-se um silêncio demorado e penoso. Ergui os olhos. Havia lágrimas em sua face, mas a expressão estava absolutamente serena. Ela sabia que acabara de renunciar a ver sua filha, mesmo que estivesse morrendo.
Henrique olhou para ela com um ódio absoluto, por um momento. A rainha virou a cabeça e acenou para um criado.
— Mais vinho para Sua Majestade — disse ela impassivelmente.
Irritado, o rei levantou-se de um pulo e empurrou sua cadeira para trás, que arranhou com um som feito um grito o piso de madeira. O embaixador, o lorde chanceler, e nós todos nos levantamos sem saber bem o que fazer. Henrique deixou-se cair de novo na cadeira, exausto. Afundou-se na cadeira, perdido. A rainha Catarina olhava para ele, parecia tão exaurida quanto ele com aquela discussão, mas não fora derrotada.
— Por favor — disse ela com muita calma.
— Não — replicou ele.
Uma semana depois, ela pediu de novo. Eu não estava presente, mas Jane Seymour me contou, com os olhos esbugalhados de horror, que a rainha não tinha cedido quando o rei se enfurecera.
— Como ela se atreveu? — perguntou.
— Por sua filha — respondi com rispidez. Olhei para o rosto jovem de Jane e pensei que, antes de ter meu filho, eu era tão tola quanto essa boboca. — Ela quer estar ao lado da sua filha — eu disse. — Você não pode entender.
Somente quando os médicos disseram que a princesa estava quase morrendo e perguntando diariamente quando a sua mãe ia chegar, Henrique liberou-a. Ordenou que a princesa fosse transportada de liteira ao Palácio de Richmond e que a rainha a encontrasse lá. Desci ao pátio das cavalariças para vê-la partir.
— Deus abençoe Sua Majestade e a princesa.
— Finalmente poderei estar com ela — foi tudo o que disse.
Balancei a cabeça e recuei para os cavalos passarem, o estandarte da rainha à frente, meia dúzia de cavaleiros atrás; em seguida, a rainha e duas de suas damas, depois a sua escolta. Então, desapareceram.
William Stafford estava no outro lado do pátio, observando-me me despedir.
— Por fim, ela poderá ver sua filha — atravessou o pátio a passos largos, afastando meu vestido da lama. — Dizem que a sua irmã jurou que a rainha não retornará à corte. Ela disse que a rainha ama tanto a sua filha que foi para junto dela e perdeu a coroa do reino em uma única viagem.
— Não sei de nada disso — repliquei resolutamente.
Riu, seus olhos castanhos brilhando para mim.
— Parece ignorar tudo, hoje. Não se regozija da subida de sua irmã à realeza?
— Não a esse preço — falei sem rodeios, me virei e me afastei dele.
Nem bem tinha dado meia dúzia de passos e ele estava ao meu lado.
— E a senhora, Lady Carey? Não a vejo há dias. Nunca me procura?
Hesitei.
— É claro que não.
Andou ao meu lado.
— Eu não espero o contrário — disse ele com uma gravidade repentina. — Posso brincar com a senhora, mas bem sei que está muito acima de mim.
— Estou — eu disse indelicadamente.
— Oh, eu sei — garantiu-me de novo. — Mas achei que gostávamos um do outro.
— Não posso mentir para o senhor — falei delicadamente. — É claro que não o procuro. O senhor serve a meu tio e eu sou filha do conde de Wiltshire...
— Uma honra muito recente — complementou calmamente.
Franzi o cenho, um pouco confundida com a interrupção.
— Se é uma honra concedida hoje ou se remonta há séculos, não faz a menor diferença — falei. — Sou filha de um conde e o senhor não é ninguém.
— Mas o que há, Maria? Afora a questão de títulos? Maria, bonita Maria Bolena, nunca procura por mim? Nunca pensa em mim?
— Nunca — repliquei sem rodeios, e deixei-o em pé sob a arcada que dava para o pátio das cavalariças.
Verão de 1531
A corte mudou-se para Windsor e a rainha levou a princesa Mary, ainda muito pálida e magra, para o castelo. O rei não conseguiu deixar de ser terno com sua única filha legítima. A sua atitude com sua mulher abrandava, depois endurecia de novo, dependendo de se estava com minha irmã ou à cabeceira de sua filha. A rainha, insone, orando e cuidando da princesa, nunca estava cansada demais para recebê-lo com um sorriso e uma mesura, era sempre uma estrela firme no firmamento da corte. Ela e a princesa passariam o verão descansando em Windsor.
Sorriu para mim quando entrei com um buquê de rosas.
— Achei que talvez a princesa Mary gostasse de tê-las à sua cabeceira — eu disse. — Seu perfume é agradável.
A rainha Catarina pegou o buquê de minha mão e cheirou as flores.
— Você é uma camponesa — disse ela. — Nenhuma de minhas outras damas pensaria em colher flores e trazê-las para dentro de casa.
— Meus filhos adoram levar flores para seus quartos — eu disse. — Fazem coroas e colares com margaridas. Quando dou meu beijo de boa noite em Catarina, frequentemente encontro em seu travesseiro ranúnculos que caíram de seu cabelo.
— O rei permitiu que vá para Hever enquanto a corte está fora?
— Sim — sorri com a sua compreensão exata da minha alegria. — Sim, e ficarei lá durante todo o verão.
— Então, nós duas estaremos juntas de nossos filhos. Vai retornar à corte no outono?
— Sim — prometi. — E voltarei a servi-la, se me quiser, Majestade.
— E então começamos tudo de novo — disse ela. — O Natal, quando sou uma rainha incontestada, e o verão, quando sou abandonada.
Balancei a cabeça entendendo.
— Ela o tem, não? — olhou pela janela que dava para o jardim e para o rio. A distância, dava para ver o rei e Ana, caminhando à margem do rio, antes de partirem na viagem de verão.
— Sim — repliquei direto.
— Qual é o seu segredo, qual acha que é?
— Acho que são muito parecidos — minha aversão aos dois se imiscuiu em meu tom. — Os dois sabem exatamente o que querem e nada os detém no caminho para consegui-lo. Os dois têm a capacidade de enxergar somente uma coisa. Por isso o rei é um grande desportista. Quando caça um cervo ele não vê mais nada a não ser o cervo. E Ana é igual. Treinou a si mesma a só perseguir seu próprio interesse. E agora, o desejo dos dois é o mesmo. O que os torna... — Fiz uma pausa, pensando na palavra certa — formidáveis.
— Eu posso ser formidável — disse a rainha.
Olhei-a de lado. Se não fosse rainha, eu a abraçaria.
— Quem melhor do que eu para saber disso? Eu a vi enfrentar o rei em um de seus acessos de furor, eu a vi enfrentar dois cardeais e o Conselho Privado. Mas a senhora serve a Deus e ama o rei, e ama sua filha. Não pensa só em si mesma, não pensa só “o que eu quero?”.
Ela sacudiu a cabeça.
— Seria o pecado do egoísmo.
Olhei para as duas figuras à margem do rio, as duas pessoas mais egoístas que eu conhecia.
— Sim.
Desci às cavalariças para me certificar de que minha bagagem tinha sido carregada e meu cavalo atrelado para partirmos na manhã seguinte, e encontrei William Stafford verificando as rodas da carroça.
— Obrigada — eu disse, um pouco surpresa por vê-lo ali.
Aprumou o corpo e lançou-me seu sorriso radiante.
— Vou escoltá-la. Seu tio não lhe disse?
— Tenho certeza de que ele mencionou outro.
Seu sorriso alargou-se.
— Seria outro. Mas não está em condições de montar amanhã.
— Por que não?
— Está embriagado.
— Bêbado hoje e não pode montar amanhã?
— Eu deveria ter dito que ele vai se embriagar.
Esperei.
— Amanhã, estará mal da bebedeira de hoje à noite.
— Pode prever o futuro?
— Posso prever que estarei servindo o vinho — falou reprimindo uma risada. — Não posso escoltá-la, Lady Carey? Sabe que farei com que chegue em segurança.
— É claro que sei — eu disse, um pouco aturdida. — É só que...
Stafford ficou calado, tive a impressão de que me escutava não somente com os ouvidos, mas com todos os sentidos.
— É só o quê? — incitou.
— Não quero feri-lo — eu disse. — Nunca será mais para mim do que um homem a serviço do meu tio.
— Mas o que impede de gostarmos um do outro?
— O problema mais grave com a minha família.
— E isso importa tanto assim? Não é melhor ter um amigo, um amigo de verdade, embora modesto, do que ser uma mulher solitária nobre que come na mão de sua irmã?
Virei-me. O pensamento de estar a serviço de Ana vexou-me, como sempre acontecia.
— Então, posso escoltá-la a Hever amanhã? — perguntou rompendo deliberadamente a magia.
— Se quiser — repliquei de maneira grosseira. — Um homem ou outro não faz diferença.
Reprimiu uma risada, mas não discutiu. Deixou-me ir, e me afastei querendo que ele corresse atrás de mim e me dissesse que não era o mesmo que qualquer outro homem, e que eu podia estar certa disso.
Subi ao meu quarto e encontrei Ana ajeitando seu chapéu de montaria diante do espelho, vibrando de excitação.
— Estamos indo — disse ela. — Saia e se despeça de nós.
Desci com ela a escadaria, tomando cuidado para não pisar na bainha de seu vestido de veludo vermelho.
Atravessamos as duas portas duplas imensas e demos com Henrique, já montado em seu cavalo, com o de Ana esperando inquieto ao seu lado. Percebi com horror que minha irmã tinha deixado o rei esperando enquanto ajeitava o chapéu.
Ele sorriu. Ela podia fazer tudo. Dois rapazes se adiantaram para ajudá-la a montar e ela fez um certo charme, por um momento, escolhendo qual dos dois teria o privilégio de pôr as mãos em concha sob sua bota.
O rei deu sinal para partirem. Ana olhou por cima do ombro e acenou para mim.
— Diga a rainha que já fomos — gritou ela.
— O quê? — perguntei. — Está se despedindo dela?
Ela riu.
— Não. Simplesmente partimos. Diga que fomos e que foi deixada sozinha.
Eu podia ter corrido atrás do cavalo dela, a derrubado da sela e a esbofeteado por aquela maldade. Mas fiquei onde estava, sorrindo para o rei e acenando para a minha irmã, e então, quando os cavaleiros, carroças, soldados e toda a criadagem passaram ruidosamente por mim, me virei e entrei devagar no castelo.
Deixei a porta bater às minhas costas. Estava tudo muito silencioso. As tapeçarias tinham sido retiradas das paredes, algumas das mesas tinham sido removidas do salão e o lugar ficara ocupado por ecos do silêncio. O fogo se apagara na lareira, não havia homens para pôr mais lenha no fogo e pedir ale. A luz do sol filtrava-se pelas janelas e lançava faixas amarelas no chão e partículas de pó dançavam na luz. Eu nunca tinha estado em um palácio real em que não escutasse nada. Era um lugar que estava sempre vivo com barulho, agitação, negócios e brincadeiras. Havia sempre criados repreendendo, e ordens sendo gritadas escadas abaixo, pessoas pedindo para serem recebidas ou pedindo algum favor, músicos tocando, cachorros latindo, e cortesãos flertando.
Subi aos aposentos da rainha, meus saltos batendo na laje. Bati na porta e as pontas dos meus dedos soaram extraordinariamente alto. Empurrei a porta e, por um momento, achei que a sala estava vazia. Então, a vi. Estava à janela, observando a estrada que seguia sinuosa do castelo. Via a corte que tinha sido a sua corte, conduzida pelo marido que fora seu marido, e todos seus amigos e criados, bens, móveis e, até mesmo, a roupa de cama, afastando-se do castelo, seguindo Ana Bolena em seu grande cavalo negro, deixando-a só.
— Ele foi — disse ela. — Sem nem mesmo se despedir de mim.
Balancei a cabeça.
— Ele nunca fez isso antes. Por pior que a situação estivesse, vinha pedir a minha bênção antes de partir. Às vezes, parecia um menino, o meu menino, que por mais que partisse sabia que sempre poderia voltar para mim. Sempre quis a minha bênção em qualquer viagem que fazia.
Um grupo de cavaleiros acompanhava o comboio da bagagem, insistindo para que se mantivessem próximos e em ordem. Ouvíamos o barulho das rodas. Nada lhe foi poupado.
Houve um ruído de botas na escadaria e uma batida na porta semiaberta. Fui atender. Era um dos homens do rei com uma carta com o selo real.
Ela virou-se imediatamente, a face iluminada de alegria e atravessou depressa a sala para pegá-la de sua mão.
— Eu sabia! Ele não partiu sem dizer nada. Escreveu para mim — disse ela. Levou a carta para a luz e rompeu o selo.
Eu a vi envelhecer enquanto a lia. A cor esvaiu-se de sua face e a luz abandonou seus olhos, e o sorriso deixou a sua boca. Sentou-se no vão da janela, e eu empurrei o homem para fora e fechei a porta na sua cara. Fui até ela e ajoelhei-me ao seu lado.
A rainha olhou para mim, mas não me viu, seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Tenho de deixar o castelo — sussurrou ela. — Ele está me mandando embora. Com ou sem cardeal, com ou sem Papa, está me banindo. Tenho um mês para partir, e minha filha também.
O mensageiro bateu à porta e cautelosamente pôs a cabeça para dentro. Levantei-me de um pulo e bateria a porta na sua cara por sua impertinência se a rainha não tivesse posto a mão na manga do meu vestido.
— Alguma resposta? — perguntou ele. Nem mesmo a chamou de Sua Majestade.
— Aonde quer que eu vá, permanecerei sendo sua esposa, e rezarei por ele — disse ela com firmeza. Levantou-se. — Diga ao rei que lhe desejo uma boa viagem, que lamento não ter me despedido dele, que se tivesse me dito que partiria tão cedo, eu teria assegurado que não partisse sem a bênção de sua mulher. E peça-lhe para me enviar uma mensagem dizendo se está bem de saúde.
O mensageiro acatou balançando a cabeça, lançou-me um rápido olhar de quem pede desculpas e saiu. Esperamos.
A rainha e eu fomos à janela. Vimos o homem em seu cavalo passar pelo comboio da bagagem que ainda descia a estrada sinuosa. Desapareceu. Ana e Henrique, talvez de mãos dadas, talvez cantassem, estavam longe, muito à frente na estrada para Woodstock.
— Nunca pensei que eu acabaria assim — disse ela com a voz fraca. — Nunca pensei que ele partiria sem se despedir de mim.
Foi um belo verão para as crianças e para mim. Henrique estava com 5 anos e sua irmã com 7, e decidi que cada um deveria ter um pônei. Mas não encontrei na região pôneis pequenos e dóceis o bastante para nós. Eu tinha mencionado essa ideia a William Stafford no caminho para Hever, portanto não fiquei completamente surpresa quando retornou, sem ser convidado, uma semana depois, com um pônei de cada lado de seu cavalo de pernas compridas.
As crianças e eu tínhamos caminhado pelo prado defronte ao fosso. Acenei para ele, que desviou do caminho e cavalgou ao longo do fosso, do nosso lado. Assim que Henrique e Catarina viram os pôneis, pularam de excitação.
— Espere — alertei-o. — Que fiquem onde estão. Não sei se queremos comprá-los.
— Está certa em ser cautelosa. Afinal sou um mascate — disse William Stafford, desmontando. Pegou minha mão e a levou aos lábios.
— Onde os encontrou?
Catarina pegou a rédea do pequeno pônei cinza e afagou seu nariz. Henrique estava atrás da minha saia, olhando o pônei castanho com um misto de intensa excitação e medo.
— Oh, a senhora sabe. Na entrada — replicou ele com displicência. — Posso mandá-los de volta, se não lhe agradaram.
Imediatamente, houve um grito de protesto de Henrique, sem sair de trás da minha saia.
— Não os mande de volta!
William Stafford apoiou-se em um joelho para ficar no nível do rosto excitado de Henrique.
— Venha cá — disse ele delicadamente. — Nunca será um cavaleiro se escondendo atrás da saia de sua mãe.
— Ele morde?
— Tem de alimentá-lo com a palma da mão — explicou William. — Assim ele não pode morder — abriu a mão de Henrique e mostrou como um cavalo come.
— Ele galopa? — perguntou Catarina. — Galopa como o cavalo da mamãe?
— Não tão veloz, mas galopa — respondeu William. — E pode saltar.
— Posso saltar com ele? — os olhos de Henrique estavam estatelados.
William aprumou o corpo e sorriu para mim.
— Primeiro tem de aprender a se sentar nele, andar a passo, trotar, andar a meio-galope. Então poderá prosseguir até justar e saltar.
— Vai me ensinar? — perguntou Catarina. — Vai, não vai? Fica conosco, aqui, neste verão, e nos ensina a montar?
O sorriso de William foi imodestamente triunfante.
— Bem, eu gostaria de ficar, é claro. Se sua mãe permitir.
Imediatamente as duas crianças se viraram para mim.
— Diga que sim! — implorou Catarina.
— Por favor! — insistiu Henrique.
— Mas eu posso ensiná-los a montar — protestei.
— Não a combater! — exclamou Henrique. — E você monta de lado. Preciso montar reto. Não é, senhor? Preciso montar reto porque sou menino e serei um homem.
William olhou para mim por cima da cabeça do meu filho.
— O que diz, Lady Carey? Posso ficar para o verão e ensinar seu filho a montar reto?
Não deixei que percebesse como me divertia.
— Oh, está bem. Pode pedir que lhe preparem um quarto, se quiser.
Toda manhã, William Stafford e eu caminhávamos por horas com as crianças sentadas em seus pôneis, do nosso lado. Depois do jantar, colocávamos as rédeas longas nos pôneis e os fazíamos andar a passo, trotar e andar a meio-galope em círculo, com as duas crianças agarradas como grude.
William era sempre paciente com elas. Fazia com que aprendessem mais um pouco a cada dia, e eu desconfiava que, ao mesmo tempo, controlava para que não aprendessem rápido demais. Queria que soubessem montar no fim do verão, mas não antes.
— Tem uma casa sua aonde ir? — perguntei, indelicadamente, quando voltávamos ao castelo, certo entardecer, cada um de nós levando um pônei. O sol se punha atrás dos torreões e o palácio parecia o de um conto de fadas, com as janelas tremulando uma luz rosada e o céu, atrás, pálido e riscado pelas nuvens.
— Meu pai mora em Northampton.
— É filho único? — perguntei.
Sorriu à pergunta-chave.
— Não, sou o segundo, o que não tem serventia, milady. Mas, se puder, vou comprar uma pequena fazenda em Essex. Pretendo ser o proprietário de uma pequena fazenda.
— E como vai ter dinheiro para isso? — perguntei, curiosa. — Não pode ganhar muito bem servindo a meu tio.
— Alguns anos atrás, servi em um navio e ganhei meu quinhão de recompensa. Tenho o bastante para começar. E então, acharei uma mulher que goste de viver em uma bonita casa em seus próprios campos e saiba que nada, nem o poder de príncipes nem a malícia de rainhas, pode afetá-la.
— Rainhas e príncipes sempre nos afetam — eu disse. — Senão não seriam príncipes e rainhas.
— Sim, mas podemos ser tão pequenos que não lhes interessamos — disse ele. — Nosso risco será o seu filho. Enquanto o virem como herdeiro do trono, nunca escaparemos de sua vigilância.
— Se Ana tiver um menino, abrirá mão do meu — eu disse, sem me dar conta de que tinha concordado com seus pensamentos, assim como acompanhava seu passo, ao seu lado.
Astuciosamente, ele não falou nada para me alertar.
— Melhor do que isso, ela vai querê-lo longe da corte. Ele poderia ficar conosco e o criaríamos como um nobre rural. Não é uma vida ruim para um homem. Talvez a melhor que exista. Não gosto da corte. E nesses últimos anos, nunca sabemos onde estamos.
Chegamos à ponte levadiça e ajudamos as crianças a desmontar. Catarina e Henrique correram para casa enquanto William e eu levávamos os pôneis ao estábulo. Dois garotos apareceram para pegá-los.
— Vem jantar? — perguntei casualmente.
— É claro — disse ele. Então, fez uma mesura e se foi.
Somente no meu quarto, ao me ajoelhar para rezar nessa noite e me pegar com a mente vagando, como sempre, percebi que permitira que ele falasse comigo como se eu fosse ser a mulher que gostaria da bonita casa em meus próprios campos e que desejaria William Stafford na minha cama de casada.
Querida Maria,
Passaremos o outono em Richmond e o inverno em Greenwich. A rainha nunca mais ficará sob o mesmo teto que o rei. Ela irá para a antiga casa de Wolsey, The More, em Hertfordshire, e o rei lhe dará uma corte só sua, lá, de modo que ela não possa se queixar de ser maltratada.
Você não a servirá mais, agora só servirá a mim.
O rei e eu estamos confiantes de que o Papa está apavorado com o que Henrique poderá fazer à Igreja na Inglaterra. Temos certeza de que decidirá a nosso favor assim que a corte se reunir de novo no outono. Estou me preparando para o casamento no outono e a coroação logo em seguida. Está tudo praticamente resolvido, doa a quem doer!
Nosso tio foi muito frio comigo e o duque de Suffolk virou-se contra mim. Henrique afastou-o de nós neste verão, e gostei de ele ter-lhe dado uma lição. Muita gente está me invejando e me vigiando. Quero você em Richmond quando eu chegar, Maria. Não deve procurar a rain... Catarina de Aragão em The More. E não pode ficar em Hever. Estou fazendo isso por seu filho tanto quanto por mim mesma, e você vai me ajudar.
Ana
Outono de 1531
No outono, quando retornei à corte, me dei conta de que a rainha, finalmente, tinha sido derrubada. Ana convencera Henrique de que não tinha mais sentido ele manter a aparência de bom marido. Podiam mostrar suas caras impudentes ao mundo e desafiar os que se opusessem a eles.
Henrique foi generoso. Catarina de Aragão vivia confortavelmente em The More, e entretinha embaixadores que a visitavam como se continuasse a ser uma rainha honrada e amada. Sua criadagem somava mais de duzentas pessoas, inclusive cinquenta damas de honra. Não eram a nata das jovens. Essas acorreram à corte do rei e se viram anexadas ao pessoal de Ana. Ana e eu nos divertimos colocando as jovens de que não gostávamos na corte da rainha. Dessa maneira nos livramos de meia dúzia das Seymour, e rimos ao pensarmos na cara de Sir John Seymour ao receber a notícia.
— Queria poder mandar a mulher de George para servir à rainha — eu disse. — Ele ficaria mais feliz se chegasse em casa e visse que ela tinha partido.
— Prefiro tê-la onde posso vê-la a mandá-la para um lugar onde possa criar mais problemas. Só quero pessoas insignificantes ao redor da rainha.
— Não pode continuar temendo-a. Você praticamente a destruiu.
Ana sacudiu a cabeça.
— Não estarei segura até que esteja morta — disse ela. — Assim como ela só estará segura comigo morta. Não se trata de um homem ou um trono, é como se eu fosse a sua sombra e ela a minha. Estamos presas uma à outra até a morte. Uma de nós duas tem de vencer completamente e nenhuma de nós duas terá certeza de ter vencido ou perdido até a outra estar morta e enterrada.
— Como ela poderia vencer? — perguntei. — Ele nem mesmo a vê.
— Você não sabe como o povo me odeia — sussurrou Ana, eu tinha aprendido a me inclinar para perto dela. — Agora, em viagem, vamos de uma casa para a outra, não paramos mais nas aldeias. O povo escutou os rumores de Londres e deixaram de me ver como a garota bonita que cavalga ao lado do rei. Agora me veem como a mulher que destruiu a felicidade da rainha. Se nos demoramos numa aldeia, o povo me xinga.
— Não!
Ela confirmou com a cabeça.
— E quando a rainha foi a Londres, e ofereceu um banquete, uma turba à porta do Palácio de Ely a abençoava e jurava que nunca dobraria os joelhos para mim.
— Um punhado de criados emburrados.
— E se for mais que isso? — perguntou Ana desoladamente. — E se o país todo me odiar? O que acha que o rei sente ao ouvi-los me vaiar e amaldiçoar? Acha que um homem como Henrique suporta ser amaldiçoado quando viaja? Um homem como Henrique, que se acostumou a ser louvado desde pequeno?
— Eles vão se acostumar — eu disse. — Os padres pregarão nas igrejas que você é a esposa dele, quando lhe der um filho eles mudarão imediatamente, e você se tornará a salvadora da pátria.
— Sim — disse ela. — Tudo depende disso, não? Um filho varão.
Ana tinha razão em temer a ralé. Logo antes do Natal partimos de Greenwich para jantar com os Trevelyan. Não era um passeio da corte. Ninguém sabia que iríamos. O rei jantaria privadamente com dois embaixadores da França e Ana quis ir para Londres. Fui com ela, com dois cavalheiros do rei e mais duas damas de honra. Fazia frio no rio e estávamos bem envolvidos em peles. Ninguém nas margens conseguiria ver nossos rostos quando o barco atracasse na escada dos Trevelyan e desembarcássemos.
Mas viram, e reconheceram Ana, e antes mesmo de começarmos a comer, um criado apareceu correndo e sussurrou a Lord Trevelyan que havia uma turba vindo em direção à casa. O rápido olhar de viés lançado a Ana nos revelou por que vinham. Ela levantou-se imediatamente, a face branca como suas pérolas.
— É melhor que se vá — disse Lord Trevelyan, com medo. — Não posso garantir a sua segurança aqui.
— Por que não? — perguntou ela. — Feche seus portões.
— Por Deus, são milhares deles! — sua voz foi áspera de medo. Estávamos, agora, todos de pé. — Não é uma gangue de garotos aprendizes, é uma turba e juram que a enforcarão nas vigas do teto. É melhor ir para o barco e retornar a Greenwich, Lady Ana.
Ela hesitou, por um momento, ouvindo a sua determinação de expulsá-la de sua casa.
— O barco está preparado?
Alguém saiu correndo gritando pelos barqueiros.
— É claro que pode repeli-los! — disse Francis Weston. — Quantos homens tem, Trevelyan? Podemos reuni-los e dar uma lição nessa ralé, e depois jantaremos calmamente.
— Tenho trezentos homens — começou ele.
— Então... vamos armá-los e...
— Eles são 8 mil, e o número aumenta a cada rua.
Fez-se um silêncio atônito.
— Oito mil? — falou Ana em um sussurro. — Oito mil marchando contra mim nas ruas de Londres?
— Depressa — disse Lady Trevelyan. — Pelo amor de Deus, vá para seu barco.
Ana pegou seu manto dado pela mulher e eu, o outro, que nem mesmo era meu. As damas que nos tinham acompanhado choravam de medo. Uma delas fugiu pela escadaria, com medo de estar no rio se nos perseguissem pela água. Ana saiu às pressas da casa e atravessou o jardim escuro. Pulou para dentro do barco e eu, atrás dela. Francis e William estavam conosco, o restante jogou os cabos para dentro do barco e o empurrou. Nem mesmo iriam conosco.
— Mantenham a cabeça baixa e coberta — gritou um deles.
— E baixem o estandarte real!
Foi um momento vergonhoso. Um dos barqueiros pegou sua faca e cortou as cordas que seguravam o estandarte real com medo de que o povo da Inglaterra visse a bandeira de seu próprio rei. Atrapalhou-se ao manuseá-la e a deixou cair na água. Observei-a afundar.
— Isso não tem importância agora! Remem! — gritou Ana, a face oculta nas peles.
Enfiei-me ao seu lado e nos seguramos uma na outra. Eu a senti tremer.
Vimos a turba quando entramos na correnteza agitada. Tinham acendido tochas e pudemos ver as chamas trêmulas refletidas no rio escuro. O cordão de luzes parecia não ter fim. Podíamos ouvi-los lançando pragas contra minha irmã. A cada grito violento, um bramido de aprovação, um bramido de ódio. Ana recolheu-se ainda mais no barco, agarrando-se a mim com mais força e tremendo de medo.
Os barqueiros remavam como possessos, sabiam que nenhum de nós sobreviveria a um ataque com aquele tempo. Se a turba soubesse que estávamos nas águas escuras do rio, lançariam as pedras do calçamento, desceriam as margens para nos alcançar, procurariam barcos para nos perseguir.
— Remem mais rápido! — dizia Ana em um sussurro ríspido.
Avançávamos de forma irregular, amedrontados demais para bater o tambor ou gritar o ritmo. Queríamos escapar da turba protegidos pela escuridão. Espiei pela borda do barco e vi as luzes fazerem uma pausa, hesitarem, como se perscrutassem o escuro, como se pudessem sentir, com a atenção sobrenatural de um animal selvagem, que a mulher que queriam abafava seus soluços de terror nas peles que a envolviam a apenas alguns metros deles.
Então, a procissão continuou para a casa de Trevelyan. Acompanhou a curva do rio, as tochas estendendo-se pelo que pareciam milhas. Ana endireitou o corpo e puxou o capuz para trás. Sua face estava aterrorizada.
— Acha que ele me protegerá disso? — perguntou impetuosamente. — Do Papa sim, especialmente porque já possui uma fração da Igreja. Da rainha, também, já que terá um filho e herdeiro. Mas de seu próprio povo, se vier me buscar, à noite, com suas tochas e cordas? Acha que ele ficará do meu lado?
O Natal em Greenwich, nesse ano, foi quieto. A rainha enviou uma bela taça de ouro ao rei e ele a devolveu com uma mensagem fria. Sentimos a sua ausência o tempo todo. Foi como se uma mãe querida estivesse ausente. Não que ela tivesse sido esfuziante, brilhante ou provocadora como Ana sempre, e cansativamente, era. Só que ela sempre estivera ali. Seu reinado fora tão longo que eram raras as pessoas que se lembravam da corte inglesa sem ela.
Ana foi determinadamente brilhante, encantadora e ativa. Dançou, cantou, deu ao rei um conjunto de dardos à moda biscainha e ele lhe deu um quarto cheio dos tecidos mais caros para seus vestidos. Deu-lhe a chave do quarto e a observou entrar e emitir uma exclamação de deleite diante das ricas peças de cores que oscilavam de um polo dourado a outro. Ele a cobriu de presentes, ele nos cobriu, a todos nós, Howard, de presentes. Deu-me uma bela blusa com uma gola de ferro forjado. Ainda assim, pareceu mais um velório do que um Natal. Todos sentiram falta da presença firme da rainha e se perguntaram o que ela estaria fazendo em sua bonita casa, que pertencera ao cardeal, que havia sido seu inimigo até o último momento, quando ele finalmente reuniu coragem para admitir que ela tinha razão.
Nada conseguiu elevar o ânimo das pessoas, embora Ana se esforçasse ao máximo para parecer feliz. À noite, do meu lado na cama e, até mesmo em seu sono, a ouvia murmurar, como uma mulher demente.
Certa noite, acendi uma vela e a ergui para vê-la. Seus olhos estavam fechados, as pestanas escuras roçando as maçãs de seu rosto alvo. Seu cabelo estava preso para trás sob uma touca de dormir tão alva quanto sua pele. A sombra sob seus olhos era violeta como o amor-perfeito, ela parecia frágil. E o tempo todo, seus lábios exangues, separados em um sorriso, murmuravam apresentações, gracejos, ditos espirituosos. De vez em quando, virava a cabeça, irrequieta, aquela virada de cabeça encantadora que ela fazia tão bem, e ria, um som terrível, sussurrado, de uma mulher tão compulsiva que, até mesmo, em seus sonhos mais profundos, tentava dar vida a uma celebração.
Começou a beber vinho de manhã. Dava cor à sua face e brilho aos seus olhos, atenuava a sua intensa fadiga e o nervoso. Uma vez, jogou uma garrafa para mim quando entrei em seus aposentos com tio Howard vindo atrás.
— Esconda-a — disse em um sussurro desesperado e virou-se para ele com a palma da mão na boca, para que não sentisse o cheiro de bebida em seu hálito.
— Ana, você tem de parar — eu disse quando ele saiu. — As pessoas a observam o tempo todo. Vão acabar percebendo e contando ao rei.
— Não posso parar — disse ela de maneira sinistra. — Não posso parar nada, nem por um instante. Tenho de prosseguir, sempre, como se fosse a mulher mais feliz do mundo. Vou me casar com o homem que amo. Vou ser a rainha da Inglaterra. É claro que sou feliz. É claro que sou perfeitamente feliz. Não existe mulher na Inglaterra tão feliz quanto eu.
George chegaria no Ano-Novo e Ana e eu decidimos recebê-lo com um jantar privado em seus suntuosos aposentos. Passamos o dia consultando os cozinheiros e encomendando o melhor que tinham, e à tarde ficamos sentadas à janela esperando seu barco aparecer com o estandarte Howard adejando. Eu o localizei primeiro, escuro no crepúsculo, e não falei nada a Ana. Escapuli do quarto e desci a escadaria correndo, para que quando George desembarcasse e surgisse na plataforma, eu estivesse só em seus braços e que fosse a mim que ele beijasse e dissesse: “Por Deus, irmã, como é bom estar em casa.”
Quando Ana viu que tinha perdido a chance de ser a primeira, não correu atrás de mim, mas aguardou para recebê-lo em seus aposentos, diante da imponente lareira em arco. Ele fez uma mesura, beijou sua mão e só então a abraçou. As mulheres foram dispensadas e éramos os três Bolena juntos de novo.
George contou todas as novidades durante o jantar e quis saber tudo o que havia acontecido em sua ausência da corte. Notei que Ana foi cautelosa em relação ao que contava. Não lhe disse que não podia ir a Londres sem uma guarda armada. Não contou que, na região rural, tinha que atravessar rapidamente as aldeias pacíficas em seu caminho. Não contou que na noite em que o cardeal Wolsey morreu, ela tinha criado e dançado em uma apresentação intitulada “Mandando o cardeal para o inferno”, que havia chocado todos a que assistiram por seu triunfo insosso sobre o amigo morto do rei e sua franca indecência. Não contou que o bispo Fisher continuava a se opor a ela e que quase tinha morrido envenenado. Ao não lhe contar essas coisas, eu soube, como na verdade já sabia, que ela se envergonhava da mulher em que se tinha transformado. Não queria que George soubesse o quão profundamente o cancro da ambição se espalhara dentro dela. Não queria que ele soubesse que não era mais a sua irmãzinha querida, mas sim uma mulher que aprendera a jogar tudo, inclusive sua alma mortal, na batalha para ser rainha.
— E você? — me perguntou George. — Como ele se chama?
Ana ficou estupefata.
— Do que está falando?
— Qualquer um pode ver, será que me enganei?, que Maria está viçosa como uma leiteira na primavera. Apostaria minha fortuna que ela está apaixonada.
Meu rosto ficou escarlate.
— Acho que está — disse meu irmão com uma profunda satisfação. — Quem é ele?
— Maria não tem amante — replicou Ana.
— Acho que ela está de olho em alguém sem a sua permissão — sugeriu George. — Acho que alguém a escolheu sem consultá-la, Sra. Rainha.
— É melhor que não — disse ela, sem o menor vestígio de um sorriso. — Tenho planos para Maria.
— Deus do céu, Ana Maria, até parece que já foi ungida.
Ela voltou-se contra ele.
— Quando for, saberei quem são meus amigos. Maria é minha dama de honra e gosto de manter o pessoal da casa como convém.
— Certamente, agora, ela pode escolher por si mesma.
Ana sacudiu a cabeça.
— Não se quiser o meu favor.
— Pelo amor de Deus, Ana! Somos uma família. Você só está onde está porque Maria recuou para lhe dar espaço. Não pode agora agir como uma princesa de sangue azul. Nós a colocamos onde está. Não pode nos tratar como súditos.
— Vocês são súditos — replicou simplesmente. — Você, Maria, até mesmo tio Howard. Expulsei minha própria tia da corte, expulsei o cunhado do rei da corte. Até mesmo a rainha, eu expulsei da corte. Alguém tem dúvida de que posso mandar quem eu quiser para o exílio? Não. Podem ter-me ajudado a estar onde estou...
— Ajudado! Nós simplesmente a colocamos onde está!
— Mas agora estou aqui, e serei rainha. E vocês serão meus súditos e me servirão. Serei rainha e mãe do próximo rei da Inglaterra. Portanto é melhor que não se esqueçam disso, George, pois não quero repeti-lo.
Ana levantou-se e foi em direção à porta. Ficou ali, esperando que alguém a abrisse para ela, e como nenhum de nós dois a abriu, teve de fazê-lo ela mesma. No limiar, virou-se.
— E não me chame mais de Ana Maria — disse ela. — E não a chame de Mariana. Ela é Maria, a outra garota Bolena. E eu sou Ana, futura rainha Ana. Há um mundo de diferença entre nós duas. Não partilhamos um nome. Ela é quase um joão-ninguém e eu serei rainha.
Saiu com o andar pomposo e não se deu ao trabalho de fechar a porta atrás de si. Ouvimos seus passos em direção ao seu quarto de dormir. Ficamos em silêncio, ouvindo a porta do quarto bater.
— Deus do céu — disse George, profundamente sentido. — Que bruxa — levantou-se e fechou a porta para evitar a corrente de ar frio. — Desde quando ela está assim?
— Seu poder cresce a cada dia. Ela se acha intocável.
— E é?
— Ele está profundamente apaixonado. Eu diria que está segura, sim, está.
— E ele ainda não a possuiu?
— Não.
— Deus do céu, o que fazem?
— Tudo, menos o ato em si. Ela não se atreve a permitir.
— Deve estar deixando ele louco — disse George com uma satisfação nada animada.
— E ela também — eu disse. — Quase toda noite, ele a beija, toca, e ela faz tudo com ele, com seu cabelo e boca.
— Ela fala assim com todo mundo? Como falou comigo?
— Muito pior. E isso está lhe custando seus amigos. Charles Brandon agora está contra ela, tio Howard está farto dela. Discutiram abertamente pelo menos duas vezes desde o Natal. Sente-se tão segura do amor do rei que não precisa de nenhuma outra proteção.
— Não vou tolerar isso — disse George. — Vou falar com ela.
Mantive a expressão de irmã preocupada, mas meu coração vibrou à ideia de uma ruptura entre Ana e George. Se eu tivesse George do meu lado, teria realmente uma vantagem em qualquer luta para reaver a guarda de meu filho.
— E fale a verdade. Não há mesmo ninguém que a atraiu? — perguntou ele.
— Um joão-ninguém — repliquei. — Não contaria a ninguém, só a você, George, por isso guarde segredo.
— Juro — disse ele, pegando minhas mãos e me puxando para perto. — Juro por minha honra. Está apaixonada?
— Oh, não! — repliquei, retraindo-me só em pensar nisso. — É claro que não. Mas ele me corteja, e é bom ter um homem demonstrando interesse por nós.
— Achei que a corte estava cheia de homens que demonstravam interesse por você.
— Oh, escrevem poemas e fazem juras de amor. Mas ele... ele é um pouco mais... real.
— Quem é?
— Ninguém importante — repeti. — Portanto não pense mais nele.
— É uma pena que não possa simplesmente se deitar com ele — disse George, com uma sinceridade fraterna.
Não respondi. Estava pensando no sorriso íntimo, sedutor, de William Stafford.
— Sim — eu disse baixinho. — Uma pena, mas não posso.
Primavera de 1532
George, ignorando a mudança de estado de espírito do povo, convidou Ana e a mim para cavalgar com ele à margem do rio e jantar na pequena taverna. Esperei que Ana recusasse, que lhe dissesse que não era seguro para ela cavalgar sozinha. Mas ela não disse nada. Pôs um vestido escuro, o que nunca acontecia, o chapéu bem puxado para baixo para ocultar sua face, e dispensou o colar distintivo com o “B” dourado.
Feliz por estar de volta a Inglaterra e poder montar com suas irmãs, George não notou o traje e comportamento discretos de Ana. Mas quando paramos na taverna, a velha desmazelada que nos serviria olhou Ana pelo canto do olho e saiu. Dali a pouco, o dono da casa apareceu enxugando as mãos no avental e comunicou que o pão e o queijo que ele ia nos trazer tinham estragado e que não havia mais nada em sua casa que pudéssemos comer.
George ia se enfurecer contra o homem se não fosse Ana a contê-lo com a mão em seu braço e dizer que não tinha importância, que iriam ao mosteiro próximo e comeriam lá. Deixou-se guiar por ela e comemos bem. O rei, agora, era objeto de terror de todas as abadias e mosteiros da região. Somente os criados, menos astutos politicamente do que os monges, olharam com desconfiança para Ana e para mim, e especularam, aos cochichos, qual seria a antiga prostituta e qual a nova.
No caminho de volta para casa, o sol frio nas nossas costas, George esporeou o cavalo e veio para o meu lado.
— Então, todo mundo sabe — disse ele direto.
— De Londres ao extremo do país — eu disse. — Não sei até onde as notícias se espalharam.
— E não vejo ninguém jogando o chapéu para o alto e gritando “salve!”.
— Não, não verá nada disso.
— Achei que uma bela garota inglesa agradaria ao povo. Ela é muito bonita, não é? Acena ao passar, dá esmolas, e tudo o mais?
— Faz tudo isso — repliquei. — Mas as mulheres gostam, obstinadamente, da antiga rainha. Dizem que se o rei da Inglaterra abandona uma esposa fiel e honesta por um capricho, então nenhuma mulher está segura.
George ficou em silêncio por um momento.
— Fazem mais do que cochichar?
— Fomos surpreendidos por um tumulto em Londres. E o rei diz que não é seguro para ela ir lá. Ela é odiada, George, e dizem todo tipo de coisas a seu respeito.
— Coisas?
— Que é uma bruxa e que enfeitiçou o rei com uma bruxaria. Que é uma assassina e que, se pudesse, envenenaria a rainha. Que o tornou impotente com todas as outras mulheres para que se case com ela. Que secou os filhos no útero da rainha, e trouxe a esterilidade ao trono da Inglaterra.
George empalideceu ligeiramente e sua mão na rédea se cerrou como o antigo sinal contra bruxaria — o polegar entre o indicador e o médio, para fazer o sinal da cruz.
— Dizem isso publicamente? O rei pode ficar sabendo?
— Evita-se que o pior chegue a seu conhecimento, mas alguém fatalmente lhe contará mais cedo ou mais tarde.
— Ele não vai acreditar em nada disso, vai?
— Ele próprio diz parte disso. Diz que é um homem possuído. Diz que ela o enfeitiçou e que não consegue pensar em outra mulher. São palavras de amor, mas quando propagadas... podem ser perigosas.
George concordou com a cabeça.
— Ela deveria fazer mais boas ações e não ser tão execravelmente... — interrompeu-se buscando a palavra certa — sensual.
Olhei para a frente. Mesmo sobre o cavalo, mesmo quando montando apenas com a sua família, Ana balançava-se na sela de uma maneira que dava vontade de pegá-la pela cintura.
— Ela é uma Bolena e uma Howard — falei francamente. — Por baixo do nome pomposo, somos todas cadelas no cio.
William Stafford, que esperava no portão do Palácio de Greenwich quando chegamos, tocou em seu chapéu para mim e percebeu meu sorriso secreto. Quando desmontamos e Ana seguiu na frente, ele ficou à entrada e me levou para o lado.
— Eu a estava esperando — disse ele, sem me cumprimentar.
— Percebi.
— Não gosto que cavalgue sem mim, a região não é segura para as garotas Bolena.
— Meu irmão tomou conta de nós. Foi bom sair sem um séquito.
— Oh, posso lhe oferecer isso. Posso oferecer simplicidade em abundância.
Ri.
— Obrigada.
Manteve a mão em meu braço para que eu não me afastasse.
— Quando o rei e sua irmã se casarem, você terá de se casar com alguém que escolherem.
Olhei para seu rosto franco, bronzeado.
— E daí?
— E daí que se quer se casar com um homem com uma pequena fazenda bonita e campos ao seu redor, tem de se apressar e fazer isso antes do casamento da sua irmã. Quanto mais tarde decidir, mais difícil será.
Hesitei. Afastei-me de seu toque e me virei. Sorri de lado.
— Mas ninguém me pediu em casamento — expliquei graciosamente. — Terei de me resignar a ser uma viúva até o fim da minha vida. Ninguém pediu a minha mão.
Pela primeira vez, ele não soube o que dizer.
— Mas pensei... — começou. Uma risada de prazer me escapou. Fiz-lhe uma reverência profunda e segui para o palácio. Ao subir a escadaria, relanceei os olhos para trás e o vi jogar seu chapéu no chão e chutá-lo, e entendi a alegria que toda mulher sente quando põe um belo homem para correr.
Não o revi durante uma semana, embora eu perambulasse pelo pátio das cavalariças, pelo jardim e à margem do rio, onde ele pudesse me encontrar. Um dia, quando o séquito de meu tio passou, os observei, mas não o vi entre os duzentos homens de libré Howard. Sabia que estava agindo como uma boba, mas achei que não havia mal nenhum em procurar um homem bonito e provocá-lo.
Não o vi por mais uma semana, depois mais outra. Meu tio e eu assistíamos ao rei e a Ana jogarem boliche em uma manhã quente de abril, quando eu perguntei casualmente:
— Ainda tem aquele homem... William Stafford a seu serviço?
— Oh, sim — respondeu meu tio. — Mas dispensei-o por um mês.
— Não está na corte?
— Está querendo se casar, me disse. Foi falar com seu pai e comprar uma casa para a sua futura mulher.
Senti o chão se mover.
— Pensei que já fosse casado — falei, procurando o comentário mais seguro a fazer.
— Oh, não, um namorador terrível — disse meu tio, a metade de sua atenção em Ana e o rei. — Uma das damas da corte ficou louca por ele, achou que se casariam, estava disposta a abrir mão da corte para viver com ele e uma galinhada. Já imaginou?
— Bobagem — minha boca estava ressecada. Engoli em seco.
— Não tenho dúvida de que esse tempo todo esteve comprometido com alguma camponesa — disse meu tio. — Esperando que ela tenha idade suficiente, aposto. Está de licença para se casar e, depois, voltará para o meu serviço. É um bom homem, confiável. Acompanhou-a a Hever, não?
— Duas vezes — repliquei. — E conseguiu os pôneis para as crianças.
— Ele é bom nessas coisas — disse meu tio. — Ele pode ir longe. Talvez o coloque para administrar minhas cavalariças, o promova a treinador de cavalos — fez uma pausa e, de repente, voltou seu olhar para mim como um farol. — Não flertou com você, flertou?
O olhar que lhe devolvi foi de absoluta indiferença.
— Um homem a seu serviço? É claro que não.
— Ótimo — disse meu tio, sem se afetar. — Ele é danado, basta dar uma chance, por menor que seja.
— Ele não terá chance comigo — eu disse.
Ana e eu estávamos prontas para deitar, já com nossas camisas de dormir, e as criadas dispensadas, quando ouvimos a batida familiar à porta.
— Só pode ser George — disse Ana. — Entre.
O nosso belo irmão surgiu com uma jarra de vinho em uma mão e, na outra, três taças.
— Vim adorar no santuário da beleza — estava bêbado.
— Pode entrar — eu disse. — Estamos lindas.
Fechou a porta atrás de si com um chute.
— Muito mais à luz de velas — disse, nos examinando. — Deus do céu, Henrique deve ficar louco ao pensar que teve uma de vocês e quer a outra, e não pode ter nenhuma.
Ana nunca gostava de ser lembrada de que o rei tinha sido meu amante.
— Ele é sempre muito atencioso comigo.
George girou os olhos para mim.
— Vinho?
Todos bebemos uma taça e George pôs mais lenha na lareira. Ouvimos um som do outro lado da porta. George, de repente lépido, se pôs à porta e a abriu. Ali estava Jane Parker, que acabara de endireitar o corpo, antes curvado para olhar pelo buraco da fechadura.
— Minha querida esposa! — disse George, com a voz melosa. — Se me quer na sua cama, não precisa ficar se esgueirando pelos aposentos de minhas irmãs. Basta me dizer.
Ela corou até a raiz do cabelo e olhou para Ana, na cama, seu vestido expondo seu ombro, e eu de camisola, sentada próxima à lareira. Havia algo na maneira como olhava para nós três que fazia com que me retraísse. Sempre fazia com que eu sentisse vergonha, como se estivesse fazendo algo errado. E era como se fosse conivente. Parecia querer saber segredos obscenos e compartilhá-los.
— Estava passando e escutei vozes — disse sem graça. — Receei que alguém estivesse incomodando Lady Ana. Eu estava para bater e ver se Lady Ana estava bem.
— Ia bater com a orelha?— perguntou George intrigado. — Com o nariz?
— Oh, deixe disso, George — falei de súbito. — Não há nada de errado, Jane. George veio tomar um copo de vinho conosco e nos desejar boa noite. Estará no seu quarto em um instante.
Ela não pareceu nada grata com a minha intervenção.
— Ele pode vir ou não, como quiser — disse ela. — Pode passar a noite toda aqui, se isso lhe der prazer.
— Retire-se — disse Ana simplesmente. Falou como se não fosse se rebaixar a discutir com Jane.
George fez uma mesura e, obediente e habilmente, fechou a porta na cara de Jane. Virou-se e, sem se importar que ela escutasse, riu alto.
— Que cobra! — gritou. — Oh, Maria, não devia entrar no jogo dela. Siga o exemplo de Ana. “Retire-se.” Deus do céu! Foi incrível! “Retire-se.”
Voltou à lareira e nos serviu vinho. Deu a primeira taça para mim e a segunda para Ana. Então, ergueu a sua para fazer um brinde.
Ana não ergueu a sua e não sorriu.
— Na próxima vez — observou —, você me servirá primeiro.
— O quê? — perguntou ele, confuso.
— Quando servir o vinho, a primeira taça será para mim. Quando abrir a porta do meu quarto, pergunte se posso recebê-lo. Vou ser rainha, George, e tem de aprender a me servir como rainha.
Ele não se irritou como quando chegara da Europa. Nesse curto espaço de tempo, tinha percebido o poder de Ana. Ela não se importava em discutir com seu tio ou qualquer outro homem na corte que poderia ter sido seu aliado. Não se importava se a odiassem, contanto que o rei comesse em sua mão, e era capaz de destruir o homem que quisesse.
George pôs a taça no aparador da lareira e ficou de quatro na cama, com o rosto quase encostado ao dela.
— Minha querida rainhazinha — murmurou ele.
A expressão de Ana se suavizou com a sua intimidade.
— Minha princesinha — sussurrou ele. E delicadamente, beijou seu nariz, depois seus lábios. — Não se impaciente comigo — pediu. — Todos sabemos que é a primeira mulher no reino, mas seja amável comigo, Ana. Seremos muito mais felizes se for gentil comigo.
Contra a vontade, ela sorriu.
— Deve me mostrar respeito irrestrito — advertiu-o.
— Me deitarei debaixo dos cascos de seu cavalo — prometeu ele.
— E nunca tomar liberdades.
— Antes morrer.
— Então poderá vir aqui e serei amável com você — disse ela.
Ele inclinou-se à frente e beijou-a de novo. Ela fechou os olhos e sorriu, separando os lábios. Observei-o chegá-la mais para perto e seu dedo passar pelo ombro dela e acariciar seu pescoço. Observei, fascinada e horrorizada, seus dedos penetrarem seu cabelo escuro macio e puxarem sua cabeça para trás, para seu beijo. Então, ela abriu os olhos com um leve suspiro.
— Chega — e o empurrou delicadamente para fora da cama. George retornou a seu lugar ao lado da lareira, e todos fingimos que não tinha passado de um beijo de irmão.
No dia seguinte, Jane Parker estava tão confiante quanto sempre. Sorriu para mim, fez uma reverência a Ana e lhe estendeu seu manto quando saía para passear com o rei à margem do rio.
— Achei que estaria descontente hoje, milady.
Ana aceitou o manto.
— Por quê?
— As notícias — disse Jane.
— Que notícias? — perguntei, para que Ana não parecesse curiosa.
Jane respondeu, mas observando Ana.
— A condessa de Northumberland está se divorciando de Henry Percy.
Ana oscilou por um instante e ficou lívida.
— Oh! — gritei, para desviar a atenção para mim. — Que escândalo! Por que se divorciaria dele? Que ideia! Ela está cometendo um grande erro.
Ana tinha se recomposto, mas Jane a tinha observado.
— Pois é — disse Jane, com uma voz sedosa. — Ela diz que seu casamento nunca foi válido. Diz que havia um pré-contrato. Diz que, o tempo todo, ele estava casado com Lady Ana.
Ana ergueu a cabeça e sorriu para Jane.
— Lady Rochford, a senhora realmente me trouxe a notícia mais extraordinária. E escolheu o momento mais estranho para transmiti-la. Na noite passada estava ouvindo furtivamente à minha porta e agora está repleta de más notícias como um cachorro morto tomado por larvas. Se a condessa de Northumberland é infeliz em seu casamento, tenho certeza de que todos lamentamos por ela — houve um murmúrio das damas de honra, ávidas mais de curiosidade do que de simpatia. — Mas se ela quer alegar que Henry Percy estava comprometido comigo, simplesmente não é verdade. De qualquer maneira, o rei está esperando e a senhora está me atrasando.
Ana atou seu manto e saiu rápido do quarto. Duas ou três de suas damas a seguiram, como deviam todas ter feito. As outras cercaram Jane Parker, para saberem mais.
— Jane, estou certa que o rei vai querer vê-la servindo Lady Ana — eu disse maldosamente.
Imediatamente, ela teve de ir, acompanhou Ana e as outras seguiram atrás.
Suspendi levemente minhas saias e corri o mais rápido possível para os aposentos de meu tio.
Ele estava à sua mesa, apesar de ser o começo da tarde. Um escrivão estava ao seu lado, redigindo um memorando que ele ditava. Meu tio franziu o cenho quando me viu pela porta entreaberta. Fez sinal para que eu entrasse e esperasse.
— O que foi? — perguntou. — Estou ocupado. Acabo de saber que Thomas More está insatisfeito com a atitude do rei em relação à rainha. Não esperava que aprovasse, mas achei que sua consciência reprimiria sua opinião. Daria mil coroas para não ter Thomas More abertamente contra nós.
— É outra coisa — eu disse direto. — Mas importante.
Meu tio deu sinal para o escrivão sair.
— Ana? — perguntou.
Assenti com um movimento da cabeça. Agora, se tratava de um problema de família e Ana era a nossa mercadoria. Meu tio percebeu, antes de eu falar, que, se tinha corrido a seus aposentos logo no começo da tarde, é porque havia uma crise em nosso comércio.
— Jane acabou de dizer que a condessa de Northumberland vai pedir o divórcio de Henry Percy — eu disse rapidamente. — Jane disse que ela alega que havia um pré-contrato com Ana.
— Maldição — praguejou meu tio.
— O senhor sabia?
— É claro que eu sabia que ela tinha o divórcio em mente. Achei que alegaria abandono, crueldade, sodomia, ou algo no gênero. Achei que nós a tínhamos demovido da ideia do pré-contrato.
— Nós?
Franziu o cenho para mim.
— Nós. Não importa quem, importa?
— Não.
— E como Jane soube? — perguntou com irritação.
— Oh, Jane sabe de tudo. Estava escutando atrás da porta de Ana ontem à noite.
— O que ela poderia ter ouvido?
— Nada — repliquei. — George estava lá e não fazíamos mais do que conversar e beber uma taça de vinho.
— Só George? — perguntou.
— Quem mais poderia estar lá?
— É o que estou perguntando.
— Não duvida da castidade de Ana.
— Ela passa a vida armando ciladas para os homens.
Nem mesmo eu deixaria passar essa injustiça.
— Ela arma armadilhas para capturar o rei, como ordenou.
— Onde ela está agora?
— No jardim, com o rei.
— Vá até ela agora mesmo e mande que negue tudo com Henry Percy. Nenhum compromisso, de tipo algum, nenhum pré-contrato. Apenas um garoto e uma garota inexperientes e inconsequentes na primavera. Um pajem interessado em uma dama de honra. Nada além disso, e nunca sendo retribuído por ela. O interesse era somente dele. Entendeu?
— Há quem não pense assim — adverti-o.
— Foram todos comprados — disse ele. — Exceto Wolsey, e está morto.
— Ele pode ter falado com o rei na época, antes de alguém imaginar que se apaixonaria por Ana.
— Ele está morto — disse meu tio, com satisfação. — Não pode repetir isso. E todos farão de tudo para assegurar ao rei que Ana é casta como a Virgem Maria. Henry mais do que qualquer outro. É só essa mulher dele, tão desesperada para se livrar do casamento, que é capaz de arriscar qualquer coisa.
— Por que ela o odeia tanto?
Ele deu uma gargalhada.
— Deus do céu, Maria, você é a tola mais encantadora. Porque ele se casou com Ana, e ela sabe disso. Porque ele estava apaixonado por Ana, e ela sabe disso. E porque perder Ana o deixou em profunda melancolia, sendo um homem arruinado desde então. Não é de admirar que ela não queira ser sua mulher. Agora vá procurar sua irmã e minta como nunca. Abra bem esses seus belos olhos e minta por nós.
Encontrei o rei e Ana à margem do rio. Ela lhe falava com seriedade, e ele tinha a cabeça inclinada, como se não pudesse perder uma única palavra. Ela ergueu os olhos ao me ver.
— Maria pode lhe dizer — falou ela. — Era minha companheira de cama quando eu não passava de uma nova garota na corte.
Henrique olhou para mim e percebi a mágoa em seu rosto.
— A condessa de Northumberland — explicou Ana — está espalhando calúnias sobre mim para se livrar de um casamento de que está farta.
— O que ela pode dizer?
— O velho mexerico. Que Henry foi apaixonado por mim.
Sorri para o rei com toda confiança e ternura que consegui.
— É claro que foi, Majestade. Não se lembra de como era quando Ana chegou na corte? Todos estavam apaixonados por ela. Inclusive Henry Percy.
— Falam de um noivado — disse Henrique.
— Com o conde de Ormonde? — respondi rapidamente.
— Não aceitaram o dote nem o título — disse Ana.
— Refiro-me a você e Henry Percy — insistiu ele.
— Não houve nada — disse ela. — Um garoto e uma menina na corte, um poema, a troca de algumas palavras, absolutamente nada.
— Ele me escreveu três poemas — eu disse. — Foi o pajem mais ocioso que o cardeal teve. Estava sempre escrevendo poemas para todo mundo. É uma pena que tenha se casado com uma mulher sem senso de humor. Mas graças a Deus ela não tinha nenhum amor pela poesia, senão teria fugido muito mais cedo!
Ana riu, mas não conseguimos convencer Henrique.
— Ela diz que havia um pré-contrato — insistiu ele. — Que vocês dois estavam noivos.
— Já lhe disse que não estávamos — Ana o contradisse com um quê de impaciência na voz.
— Mas por que ela diria isso se não é verdade? — perguntou Henrique.
— Para se livrar de seu marido! — respondeu Ana, com rispidez.
— Por que escolheu essa mentira e não outra qualquer? Por que não disse que ele tinha se casado com Maria? Já que ela também recebia poemas seus?
— Aposto que dirá — falei furiosa, querendo atrasar a explosão de Ana. Mas a fúria crescia nela e não conseguiria reprimi-la. Ela puxou sua mão do braço do rei.
— O que está insinuando? — perguntou ela. — O que está pensando de mim? Está dizendo que sou impura? Quando estou aqui e juro que nunca, mas nunca olhei para outro homem? E agora, você, de todas as pessoas no mundo, me acusa de ter sido casada! Logo você! Quem me escolheu e cortejou tendo uma esposa? Qual de nós dois acha que tem mais possibilidade de ser bígamo? Um homem com uma esposa guardada em uma bela casa em Hertfordshire, bajulada por uma corte só sua, visitada por todos, uma rainha no exílio, ou a garota que no passado recebeu um poema escrito para ela?
— Meu casamento é inválido! — gritou Henrique para ela. — Como todos os cardeais em Roma sabem!
— Mas aconteceu! Como todo homem, mulher e criança em Londres sabe. Só Deus sabe quanto gastou! Você se sentia muito feliz então! Mas nada aconteceu para mim, nenhuma promessa foi feita, nenhuma aliança foi dada, nada, nada, nada! E me atormenta com esse nada.
— Por Deus! — gritou ele. — Vai me escutar?
— Não! — gritou ela, sem controle. — Você é um tolo e estou apaixonada por um tolo, por isso sou ainda mais tola. Não vou escutá-lo, mas você vai escutar todo verme maldoso que cuspir veneno em seu ouvido!
— Ana!
— Não! — e se afastou dele.
Em dois passos largos e rápidos ele a alcançou. Ela soltou-se e bateu nos ombros acolchoados de sua jaqueta. Metade da corte hesitou ao ver o rei ser atacado. Ninguém sabia o que fazer. Henrique agarrou suas mãos e as prendeu para trás, segurando-a de modo que seu rosto ficasse próximo do seu, como se estivessem fazendo amor, o corpo dela pressionado contra o dele, sua boca próxima o bastante para morder ou beijar. Percebi a expressão de lascívia ávida na face dele assim que a teve perto.
— Ana — repetiu ele, agora com um tom de voz diferente.
— Não — repetiu ela, mas estava sorrindo.
— Ana.
Ela fechou os olhos, jogou a cabeça para trás e deixou que ele beijasse seus olhos e seus lábios.
— Sim — sussurrou ela.
— Deus do céu — disse George em meu ouvido. — É assim que ela o provoca?
Confirmei balançando a cabeça, enquanto ela se virava em seus braços e se punham a andar juntos, quadril contra quadril, o braço dele em volta de seus ombros, e o dela na cintura dele. Pareciam estar indo para a cama, e não caminhando à margem do rio. Seus rostos estavam iluminados de desejo e satisfação, como se a briga tivesse sido uma tormenta, como a tormenta do ato do amor.
— Sempre a fúria, depois as pazes?
— Sim — repliquei. — Em vez da fúria do ato de fazer amor, não acha? Os dois gritam, vociferam, e acabam tranquilos, um nos braços do outro.
— Ele deve adorá-la — disse George. — Ela voa para ele e ele a aconchega. Meu Deus, nunca tinha visto isso tão claramente. Ela é uma prostituta ardente, não? Sou seu irmão, e a possuiria agora. Ela é capaz de enlouquecer um homem.
Concordei com um movimento da cabeça e disse:
— Ela sempre cede, mas sempre no mínimo dois minutos tarde demais. Ela sempre provoca e instiga a situação até seu limite.
— É um jogo danado de perigoso de se fazer com um rei que tem o poder absoluto.
— O que mais ela pode fazer? — perguntei. — Tem de segurá-lo de alguma maneira. Tem de ser um castelo que ele sitia repetidamente. Tem de manter a excitação de alguma maneira.
George pôs minha mão em seu braço e seguimos o casal real.
— E a condessa de Northumberland? — perguntou ele. — Nunca conseguirá a anulação com base em que Henry Percy foi casado com Ana?
— É melhor ela esperar enviuvar — repliquei cruamente. — Não podemos deixar que nada macule a reputação de Ana. A condessa será casada para sempre com um homem que sempre amará outra. Teria feito melhor se nunca tivesse se tornado condessa, mas se casado com um homem que a amasse.
— Passou a defender o amor? — perguntou. — Esse é um conselho do joão-ninguém?
Ri, como se não desse importância.
— O joão-ninguém desapareceu — eu disse. — Bons ventos o levem. Ele não tem a menor importância, como previ.
Verão de 1532
O joão-ninguém William Stafford retornou ao serviço de meu tio em junho. Procurou-me para dizer que estava de volta à corte e que me escoltaria até Hever quando eu estivesse pronta para partir.
— Já pedi a Sir Richard Brent que me acompanhasse — eu disse friamente. Tive o prazer de vê-lo ficar surpreso.
— Pensei que me permitiria ficar e montar com as crianças.
— É muita gentileza de sua parte — repliquei gelidamente. — Talvez no próximo verão — virei-me e me afastei antes que lhe ocorresse dizer algo que me detivesse. Senti seu olhar às minhas costas e achei que, de certa maneira, havia revidado por ter flertado comigo e me tratado como boba, já que o tempo todo planejava se casar com outra.
Sir Richard ficou somente alguns dias, o que foi um alívio para nós dois. Ele não gostava de mim no campo, onde me distraía com meus filhos e me interessava pelos arrendatários. Preferia-me na corte, onde eu não tinha mais nada a fazer a não ser flertar. Para seu alívio, mal disfarçado, foi chamado pelo rei para ajudar a planejar a viagem real.
— Lamento ter de deixá-la — disse ele enquanto esperava que trouxessem seu cavalo até onde estávamos, perto do fosso, sob o sol. As crianças jogavam gravetos na água, de um lado da ponte levadiça, e esperávamos para vê-los flutuar. Eu ria, observando-as.
— Levarão uma eternidade — eu disse. — Não é uma correnteza forte.
— William fez barcos a vela para nós — disse Catarina, sem tirar o olho do galho. — Seguirão sempre na direção do vento.
Minha atenção voltou ao meu admirador desolado.
— Sentiremos sua falta, Sir Richard. Por favor, dê minhas recomendações à minha irmã.
— Eu lhe direi que o campo se ajusta à senhora como veludo verde envolvendo um diamante — disse ele.
— Obrigada — repliquei. — Sabe se a corte inteira irá para a França?
— Os nobres, o rei e Lady Ana, e suas damas de honra — disse ele. — E tenho de providenciar que todas as escalas na Inglaterra estejam preparadas para essa viagem.
— Tenho certeza de que não encontrariam outro cavalheiro tão competente para tal missão — eu disse.
— Posso levá-la de volta — ofereceu-se.
Coloquei a mão sobre a cabeça quente de Henrique.
— Ficarei mais um pouco — repliquei. — Gosto de passar o verão no campo.
Não tinha pensado em como voltaria à corte, sentindo-me tão feliz com as crianças, tão aquecida pelo sol de Hever, tão em paz em meu pequeno castelo, sob o céu de minha casa. Mas no fim de agosto, recebi uma mensagem sucinta de meu pai dizendo que George iria me buscar no dia seguinte.
A ceia foi triste. Meus filhos estavam pálidos e os olhos esbugalhados diante do prospecto da separação. Dei-lhes o beijo de boa-noite e me sentei ao lado da cama de Catarina, esperando-a adormecer. Demorou. Catarina forçava seus olhos ficarem abertos, sabendo que quando adormecesse, a noite viria, e no dia seguinte eu teria ido embora. Mas depois de uma hora, não conseguiu mais ficar acordada.
Ordenei às criadas que arrumassem minhas coisas e providenciassem para que fossem colocadas na carroça grande. Ordenei que o despenseiro embalasse cidra e cerveja para meu pai, e maçãs e outras frutas, que seriam um presente elegante para o rei. Ana tinha pedido alguns livros e fui separá-los na biblioteca. Um era em latim e levei um tempão decifrando o título para ter certeza de que pegara o certo. O outro era de teologia, em francês. Guardei-os com cuidado com a minha caixinha de joias. Em seguida, fui para a cama e chorei com o rosto no travesseiro porque o verão com meus filhos tinha sido abreviado.
Montei e esperei George, com a carroça carregada e pronta. Então, vi a coluna de homens vindo em direção à ponte levadiça. Mesmo a distância, percebi que não era George, mas sim ele.
— William Stafford — eu disse sem sorrir. — Esperava meu irmão.
— Eu a ganhei — disse ele. Tirou o chapéu e sorriu para mim. — Venci-o no carteado e ganhei o direito de vir buscá-la.
— Então, meu irmão faltou à promessa — eu disse, de modo reprovador. — E não sou um objeto pessoal para ser colocado sobre uma mesa de jogo em uma taverna comum.
— Uma taverna muito incomum — disse ele de maneira desnecessariamente provocadora. — Depois de perdê-la, perdeu um belo diamante e a dança com uma garota bonita.
— Quero partir agora — falei rispidamente.
Ele fez uma reverência, enfiou o chapéu na cabeça e fez sinal para os homens darem a volta.
— Dormimos em Edenbridge, a noite passada, portanto estamos descansados para partir — disse ele.
Meu cavalo andou a passo ao lado do seu.
— Por que não vieram para cá?
— Frio demais — respondeu simplesmente.
— Mas como? Sempre teve um dos melhores quartos quando ficou aqui!
— Não me refiro ao castelo. Não há nada de errado com o castelo.
Hesitei.
— Refere-se a mim.
— Gélida — confirmou. — E não faço ideia do que fiz para ofendê-la. Num momento, estávamos falando das alegrias da vida no campo, e no momento seguinte, a senhora se tornou um floco de neve.
— Não faço a menor ideia do que está falando — eu disse.
— Brrr — disse ele e mandou a coluna avançar no trote.
Manteve o trote punitivo até o meio-dia, e então, ordenou uma parada. Ergueu-me para descer da sela e abriu um portão que dava para um campo à margem do rio.
— Trouxe comida para nós — disse ele. — Vamos dar uma volta enquanto a preparam.
— Estou cansada demais para andar — repliquei em vão.
— Então, sente-se — abriu seu manto no solo sob a sombra de uma árvore.
Não pude discutir. Sentei-me em seu manto e me recostei na amistosa aspereza do tronco, olhando o rio cintilante. Alguns patos chapinhavam na água, e mais distante, nos juncos, o movimento furtivo de um par de galinholas. Deixou-me por algum tempo e quando retornou trazia duas canecas de estanho de ale. Deu-me uma e bebeu um gole da sua.
— E então? — disse ele, como um homem se acomodando para conversar. — Então, Lady Carey, por favor, diga-me o que fiz para ofendê-la.
Estava na ponta da minha língua dizer-lhe que não tinha me ofendido de maneira nenhuma, pois como não havia nada entre nós, nada poderia ser perdido.
— Não — disse ele, rapidamente, como se visse isso tudo em meu rosto. — Sei que a provoquei, mas não quis importuná-la. Achei que tínhamos começado a nos entender.
— Estava flertando comigo abertamente.
— Flertando não, estava cortejando-a — corrigiu-me. — E se desaprovar minha atitude, farei tudo para parar, mas tenho de saber por quê.
— Por que se afastou da corte? — perguntei abruptamente.
— Fui ver meu pai, queria o dinheiro que ele tinha me prometido quando eu me casasse, e queria comprar uma fazenda em Essex. Contei-lhe tudo sobre isso.
— Está planejando se casar?
Por um momento fez uma carranca e, então, sua face se iluminou.
— Com ninguém mais! — gritou ele. — O que achou? Com você! Garota tonta! Com você! Apaixonei-me por você desde a primeira vez que a vi e tenho quebrado a cabeça para encontrar um lugar em que construir uma casa boa o bastante para você. Quando percebi como gostava de Hever, achei que se lhe oferecesse uma mansão senhorial, uma bonita fazenda, talvez pensasse a respeito. Talvez me levasse em consideração.
— Meu tio disse que estava comprando uma casa para se casar com uma garota — falei ofegando.
— Você! — gritou de novo. — A garota é você. Sempre você. Ninguém mais a não ser você.
Virou-se para mim e, por um instante, achei que ia me puxar para si. Estendi minha mão para impedi-lo. Ele perguntou imediatamente:
— Não?
— Não — respondi sem firmeza.
— Sem um beijo? — disse ele.
— Nenhum beijo — repliquei, tentando sorrir.
— E não para a pequena casa de fazenda? Dá para o sul e está abrigada no flanco de uma colina. A terra é toda boa ao seu redor, é um edifício bonito, metade forrado de madeira e telhado de colmo, estábulos em um pátio nos fundos. Uma horta, um pomar com um riacho no fundo. Um paddock para a sua égua e pasto para as suas vacas.
— Não — falei, cada vez mais incerta.
— Por que não? — perguntou.
— Porque sou uma Howard e uma Bolena, e você é ninguém.
William Stafford não se retraiu com minha grosseria.
— Você também seria uma ninguém se se casasse comigo — disse ele. — Há um grande conforto nisso.
Sacudi a cabeça.
— Não posso fugir de quem eu sou.
— E onde se sente mais feliz? — perguntou sabendo a resposta. — No inverno, quando está na corte, ou no verão, quando está com seus filhos em Hever?
— Não poderíamos ficar com as crianças em sua fazenda — eu disse. — Ana os levaria. Não deixaria o filho do rei ser criado por dois joões-ninguém no fim do mundo.
— Até ela ter seu próprio filho. A partir de então, não vai querer vê-lo nunca mais — disse ele astutamente. — Terá outras damas de honra, a sua família procurará outras garotas Howard. Desligue-se do mundo deles e, em três meses, será esquecida. A escolha é sua, meu amor. Não precisa ser a outra garota Bolena pelo resto da sua vida. Pode ser uma e única Senhora Stafford.
— Não sei fazer as coisas — eu disse, a voz fraca.
— Como o quê?
— Fazer queijo. Depenar galinhas.
Devagar, como se não quisesse me assustar, ajoelhou-se ao meu lado. Pegou minha mão irrequieta e levou-a aos lábios. Virou-a, abriu-a de modo a poder beijar a palma, o pulso, cada dedo.
— Eu ensino você a depenar galinhas — disse com delicadeza. — E seremos felizes.
— Eu não disse sim — sussurrei, fechando os olhos ao sentir seus beijos em minha pele e o calor de sua respiração.
— E não disse não — concordou ele.
No Castelo de Windsor, Ana estava em sua sala de audiências cercada de costureiros, costureiras e vendedores de aviamentos. Grandes peças de ricos tecidos estavam jogadas sobre as cadeiras e espalhadas nos vãos das janelas. O lugar parecia mais um ateliê de costura em um dia festivo do que os aposentos da rainha, e, por um momento, pensei na administração da casa pela rainha Catarina, que se chocaria até o fundo da alma com a riqueza extravagante das sedas e veludos e tecidos dourados.
— Vamos partir para Calais em outubro — disse Ana, duas costureiras alfinetando dobras e dobras de material à sua volta. — É melhor você encomendar alguns vestidos.
Hesitei.
— O que foi? — perguntou abruptamente.
Eu não queria falar na frente dos comerciantes e das damas de honra. Mas não tive escolha.
— Não posso arcar com vestidos novos — repliquei baixinho. — Sabe como meu marido me deixou, Ana. Tenho apenas uma pequena pensão e o que papai me dá.
— Ele pagará — disse ela com segurança. — Pegue na arca meu vestido de veludo vermelho e o de corpete prateado. Pode mandar ajustá-los para você.
Sem pressa, fui à sua câmara privada e ergui a tampa pesada de uma de suas arcas de roupas.
Apontou para uma das costureiras.
— A Sra. Clovelly pode descosê-lo e deixá-lo novo para você — disse ela. — Mas que fique na moda. Quero que a corte francesa nos veja, todas nós, muito elegantes. Não quero nada fora de moda e espanhol em minhas damas.
Fiquei diante da mulher enquanto ela tirava minhas medidas.
Ana relanceou os olhos em volta.
— Podem sair, todas vocês — disse ela abruptamente. — Todas, menos a Sra. Clovelly e a Sra. Simpter.
Esperou até todas terem saído.
— A situação está se agravando — disse ela em voz bem baixa. — Por isso voltamos antes. Não podemos mais viajar. Em todo lugar, houve problemas.
— Problemas?
— O povo xingando. Em uma aldeia, meia dúzia de garotos jogou pedras em mim. E o rei ao meu lado!
— Apedrejaram o rei?
Confirmou com a cabeça.
— Em outro povoado, não pudemos nem entrar. Tinham feito uma fogueira na praça e queimavam minha efígie.
— O que o rei disse?
— Primeiro, ficou furioso, quase mandou soldados invadirem e darem uma lição no povo. Mas a mesma conduta se repetiu em todos os outros povoados. Eram muitos. E se o povo lutasse contra os soldados do rei? O que aconteceria?
A costureira me girou com um toque delicado em meu quadril. Eu me movia como ela mandava, sem saber o que estava fazendo. Eu tinha sido criada na paz estável do reinado de Henrique. Não conseguia conceber ingleses se sublevando contra o rei.
— O que o nosso tio diz disso?
— Que devemos dar graças a Deus de ter somente o duque de Suffolk como inimigo, pois quando o rei é apedrejado e insultado em seu próprio reino, segue-se logo uma guerra civil.
— Suffolk é nosso inimigo?
— Declarado — respondeu concisamente. — Diz que se eu custei ao rei a Igreja, não perderá ele também o país?
Virei-me mais uma vez e a costureira balançou a cabeça.
— Posso levar os vestidos e reformá-los? — perguntou ela com um sussurro.
— Leve-os — repliquei.
Ela recolheu seu material, sua bolsa de costura, e saiu. A costureira que fazia a bainha do vestido de Ana deu o último ponto e cortou a linha.
— Meu Deus, Ana — eu disse. — É assim em toda parte?
— Em toda parte — replicou, apreensiva. — Viraram as costas para mim em uma aldeia, em outra, me vaiaram. Quando passávamos na estrada, garotos maltrapilhos gritavam contra mim. As garotas que conduziam os gansos cuspiam na estrada à minha frente. Quando atravessávamos um mercado, as mulheres nas barracas jogavam peixes fedorentos e legumes apodrecidos no nosso caminho. Quando nos hospedávamos em uma casa ou um castelo, uma ralé nos seguia, nos insultando e tínhamos de trancar os portões para que não entrassem— sacudiu a cabeça. — Foi pior do que um pesadelo. Quando nossos anfitriões saíam para nos receber, desanimavam ao ver metade de seus arrendatários na estrada, gritando contra o rei legítimo. Em toda porta que chegávamos, deixávamos uma esteira de infelicidade. Não podemos ir a Londres, e agora não podemos tampouco ir ao campo. Escondemo-nos em nossos próprios palácios, onde o povo não nos alcança. E chamam Catarina de a Bem-Amada.
— O que diz o rei?
— Que não vamos esperar a decisão de Roma. Assim que o arcebispo Warham morrer, nomearemos o novo arcebispo, que nos casará. Simplesmente no casaremos, quer Roma assim decrete, quer não.
— E se Warham demorar a morrer? — perguntei, nervosa.
Ana riu de maneira dissonante.
— Oh, não é o que parece! Está velho e passou de cama quase todo o verão. Vai morrer logo e, então, Henrique vai nomear Cranmer e ele nos casará.
Sacudi a cabeça sem acreditar.
— Tão fácil assim? Depois de todo esse tempo?
— Sim — replicou ela. — E se o rei fosse mais adulto e menos menino, poderia ter se casado comigo cinco anos atrás e já poderíamos ter cinco filhos, todos homens. Mas tinha de convencer a rainha de que estava agindo certo, tinha de fazer o país ver que estava agindo certo. Tinha de ser visto fazendo a coisa certa, independentemente da verdade. Ele é um tolo.
— É melhor que não diga isso a mais ninguém, além de mim — a adverti.
— Todo mundo sabe — disse ela obstinadamente.
— Ana — eu disse —, é melhor conter a língua e seu temperamento. Ainda pode cair, mesmo agora.
Sacudiu a cabeça.
— Ele vai me dar um título e uma fortuna que ninguém vai poder tirar de mim.
— Que título?
— Marquesa de Pembroke.
— Marquesa por casamento?
— Não — seu rosto iluminou-se de orgulho. — Não um título conferido a uma mulher que se casa com um marquês, mas um título por mérito próprio. Marquesa. Serei marquesa, e ninguém poderá tirar isso de mim. Nem mesmo o próprio rei.
Fechei os olhos em um surto de pura inveja.
— E a fortuna?
— Serei dona dos solares de Coldkeynton e Hanworth, em Middlesex, e terras em Gales. Tudo me renderá cerca de mil libras por ano.
— Mil libras? — repeti, pensando em minha pensão anual de cem libras.
Os olhos de Ana brilharam.
— Serei a mulher mais rica da Inglaterra, e a mais nobre — disse ela. — Rica por mérito próprio, nobre por mérito próprio. Depois, serei rainha.
Riu ao perceber como o seu triunfo era doloroso para mim.
— Deve ficar feliz por mim.
— Oh, estou.
Na manhã seguinte, o pátio estava em grande confusão, o rei ia caçar e todo mundo tinha de ir com ele. Os cavalos estavam sendo tirados dos estábulos e os cães aguardavam em um canto, reunidos pelos organizadores da caçada, mas sem pararem de se agitar de um canto para outro, bufando e uivando de excitação. Cavalariços corriam de lá para cá, com correias e fivelas, ajudando seus senhores a montar. Garotos das cavalariças lustravam ainda mais as ancas e pescoços dos cavalos. O cavalo negro de Henrique, arqueando o pescoço e batendo as patas no solo, estava do lado do cepo de apoio aguardando o rei.
Procurei William Stafford por toda parte, até sentir o mais delicado toque em minha cintura e uma voz quente em meu ouvido dizer:
— Tive de cumprir uma incumbência, corri o caminho todo de volta.
Virei-me e o vi. Estava quase em seus braços. Estávamos tão próximos que, se ele se movesse uma polegada à frente, nossos corpos se tocariam, de cima a baixo. Fechei os olhos por um momento, com desejo ao sentir seu perfume, e quando os abri, me deparei com seus olhos cheios de desejo por mim.
— Pelo amor de Deus, afaste-se — eu disse sem convicção.
A contragosto, soltou uma mão e deu um passo para trás.
— Por Deus, tenho de me casar com você — disse ele. — Maria, estou fora de mim. Nunca fiquei assim em toda a minha vida. Não suporto mais um minuto sem tê-la em meus braços.
— Psiiuu — sussurrei. — Ponha-me na sela.
Achei que montada, fora do seu caminho, a fraqueza em meus joelhos e a tonteira não teriam tanta importância. Não sei como, consegui me sentar na sela, enganchei minha perna na sua parte mais alta e ajeitei minha roupa de montaria, para que caísse como deveria. Ele puxou a bainha, e pôs a mão em concha sob meu pé. Ergueu os olhos para mim, a expressão determinada.
— Tem de se casar comigo — disse ele, simplesmente.
Relanceei os olhos em volta, para a riqueza da corte, as penas adejando nos chapéus, os veludos e sedas — todos vestidos como um príncipe, mesmo para um dia sobre a sela.
— Esta é a minha vida — falei, tentando explicar. — Esta tem sido a minha casa desde que era pequena. Primeiro, a corte francesa e, depois, aqui. Nunca vivi em uma casa comum, nunca fiquei num mesmo quarto por um ano inteiro. Sou uma cortesã de uma família de cortesãos. Não posso me tornar uma esposa camponesa em um estalar de seus dedos.
As cornetas soaram e o rei, sorrindo, atravessou a porta do castelo com Ana ao seu lado. O olhar rápido de Ana abarcou o pátio, e puxei rapidamente meu pé da mão de William, e olhei de volta, com um sorriso agradavelmente inocente. O rei foi ajudado a montar. Sentou-se pesadamente em sua sela, e ali ficou por um momento. Quando pegou as rédeas, sinal de que estava pronto, todos aqueles ainda em pé montaram e disputaram as melhores posições na cavalgada, os cavalheiros tentando ficar perto de Ana, as damas seguindo, como casualmente, ao lado do rei.
— Não vem? — perguntei.
— Quer que eu vá?
Devagar, os cavaleiros deixavam o pátio, se acotovelando e aguardando na passagem em arco.
— É melhor não. Meu tio virá, hoje, e ele vê tudo.
William recuou e vi a luz se apagar em seus olhos.
— Como quiser.
Daria tudo para saltar de meu cavalo e, com um beijo, trazer seu sorriso de volta ao seu rosto. Mas ele fez uma mesura, e recuou, recostando-se no muro, e nos observou partir. Nem mesmo me chamou para perguntar quando me veria de novo. Deixou-me ir.
Outono de 1532
Ana foi entronizada como marquesa de Pembroke em uma cerimônia de coroação, na sala de audiências do rei no Castelo de Windsor. Ele sentou-se em seu trono ladeado por meu tio e Charles Brandon, duque de Suffolk, recém-perdoado e de volta à corte para assistir ao triunfo de Ana. Suffolk sorria de maneira tão amarga que parecia estar chupando limão, e meu tio dividido entre a alegria pela riqueza e prestígio de sua sobrinha e seu ódio crescente por sua arrogância.
Ana usava um vestido de veludo vermelho, guarnecido com pele branca de arminho. Seu cabelo, escuro e sedoso como a crina de um cavalo de corrida, estava solto sobre seus ombros, como uma garota no dia de seu casamento. Lady Mary, a filha do duque, segurava o manto cerimonial, e as outras damas de Ana — Jane Parker, eu, e mais uma dúzia —, vestidas com a nossa melhor roupa, a acompanhamos, ficando atrás em um silêncio servil, enquanto o rei prendia o manto cerimonial em volta de seus ombros e punha uma pequena coroa de ouro em sua cabeça.
No banquete, George e eu sentamos lado a lado e olhamos nossa irmã ao lado do rei.
Ele não perguntou se eu estava com inveja. A resposta era óbvia demais para merecer uma pergunta.
— Não conheço outra mulher que fosse capaz disso — disse ele. — Está decidida, exclusivamente, a ocupar o trono.
— Nunca quis isso — eu disse. — A única coisa que eu sempre quis, desde a infância, é não ser negligenciada.
— Bem, pode esquecer — disse George, com uma franqueza fraterna. — Agora será negligenciada pelo resto de sua vida. Nós dois seremos o mesmo que nada. Tudo o que eu conquistar será visto como um presente dela. E você nunca se comparará a ela. Ela é a única Bolena que o mundo conhecerá ou de que se lembrará. Você será um joão-ninguém para sempre.
Foi a expressão “joão-ninguém”. Ao ouvi-la, a amargura me abandonou e sorri.
— Sabe, há uma certa alegria em ser um ninguém.
Dançamos até tarde e, então, Ana mandou todas as damas de honra para a cama, menos eu.
— Vou estar com ele — disse ela.
Não precisou explicar o que queria dizer.
— Tem certeza? — perguntei. — Ainda não se casaram.
— Cranmer será nomeado a qualquer momento — disse ela. — Irei à França como sua consorte e Henrique insistiu para que me tratem como rainha. Deu-me o título de marquesa e terras, não posso continuar me recusando.
— Deus meu! Você quer! — de repente, compreendi a sua impaciência. — Você o ama, finalmente?
— Oh, não! — exclamou com impaciência, como se isso fosse irrelevante. — Mas o afastei durante tanto tempo, que ele está quase enlouquecendo, e eu também. Às vezes, fico tão excitada com o seu desejo, suas provocações e toques, que sou capaz de fazer isso com o cavalariço. E tenho a sua promessa, já posso me ver no trono. Quero fazer agora. Quero que seja hoje à noite.
Derramei água para ela na bacia e aqueci um lençol para que se enxugasse.
— O que vai usar?
— O vestido que usei para dançar — disse ela. — E a pequena coroa. Irei até ele como uma rainha.
— Seria melhor que George a levasse.
— Ele está vindo, já lhe contei.
Acabou de se lavar e se enxugou com o lençol. Seu corpo à luz do fogo e das velas era belo como o de um animal selvagem. Bateram à porta.
— Deixe-o entrar — disse ela.
Hesitei. Estava fechando a saia, mas exceto isso, estava nua.
— Vá — disse ela com obstinação.
Dei de ombros e abri a porta. George recuou com a visão de sua irmã, o cabelo escuro caindo sobre seus seios nus.
— Pode entrar — disse ela, sem se importar. — Estou quase pronta.
Ele lançou-me um olhar chocado e interrogativo e entrou. Deixou-se cair em uma cadeira ao lado do fogo.
Ana, segurando o corpete bordado sobre seus seios e barriga, virou-se para que ele atasse os cordões. Ele ficou em pé e passou os cordões pelos orifícios, cruzando-os. A cada inserção do cordão, sua mão roçava a pele dela, e a vi fechar os olhos de prazer com a carícia contínua. A expressão de George era sombria, cumpria sua ordem com uma carranca.
— Mais alguma coisa? — perguntou ele. — Quer que amarre seus sapatos? Dê lustre em suas botas?
— Não quer me tocar? — escarneceu ela. — Sou boa o bastante para o rei.
— É boa o bastante para o bordel — disse ele, brutalmente. — Ponha o manto, se vai mesmo vir.
— Mas sou desejável — disse ela, enfrentando-o.
George hesitou.
— Por que diabos me pergunta? Metade da corte babava hoje à noite. O que quer mais?
— Eu quero todo mundo — replicou ela, sem sorrir. — Quero que diga que sou a melhor, George. Quero que você diga isso aqui, na frente de Maria.
Ele deu seu risinho dissimulado.
— Oh, a velha rivalidade — disse ele bem devagar. — Ana, marquesa de Pembroke, você é a garota mais rica e desejável da família. Eclipsou nós dois com seu êxito. Em breve, vai eclipsar seus honrados pai e tio em termos de orgulho e posição. O que mais quer?
Ela tinha ficado afogueada com seu elogio, mas diante dessa pergunta, pareceu, de súbito, assustada, como se se recordasse das imprecações das peixeiras e os gritos de “Prostituta!” dos comerciantes do mercado.
— Quero que todo mundo saiba disso — disse ela.
— Posso levá-la ao rei? — perguntou George pragmaticamente.
Ana pôs a mão em seu braço e percebi que ele enrijeceu com a sua virada de cabeça e sorriso de lado.
— Não prefere me levar para o seu quarto?
— Se eu quisesse ser decapitado por incesto... sim.
Ela deu sua risada sexy.
— Muito bem. Ao rei. Mas lembre-se, George, você é meu cortesão, como qualquer outro.
Ele fez uma reverência e a conduziu para fora do quarto. Eu os ouvi atravessarem a sala de audiências e, então, descer a escada. Esperei até ouvir a porta ao pé da escada se fechar. Achei que a vontade de Ana de ser a primeira com todo mundo deveria ser realmente forte, já que tinha parado para atormentar seu irmão na noite em que se deitaria com o rei.
Ela voltou ao raiar do dia, segurando seu manto apertado em volta do corpo, exatamente como eu fazia. George a trouxe e, juntos, a despimos e a colocamos na cama. Ela estava cansada demais para falar.
— Então, está feito — eu disse quando seus olhos se fecharam.
— Várias vezes, creio eu — disse ele. — Esperando do lado de fora, adormeci na cadeira, e fui despertado umas duas vezes pelos gritos e arquejos dos dois. Queira Deus que saia um herdeiro disso.
— E tem certeza de que ele se casará com ela? Não vai se cansar dela agora que a possuiu?
— Não antes de seis meses. E agora que ela também tem prazer e não precisa rechaçá-lo o tempo todo, talvez se torne mais doce com ele e, queira Deus, conosco também.
— Se for ainda mais doce com você, estará na sua cama tanto quanto na do rei.
George espreguiçou-se e bocejou, e sorriu com preguiça para mim.
— Ela estava excitada — disse ele. — E poderia ter descontado em qualquer um. Estava excitada e, depois de esfriar, queira Deus que tenha um bebê na barriga, uma aliança no dedo, e uma coroa na cabeça. Vivat Ana! E doa a quem doer... está feito.
Deixei Ana dormindo e achei que veria William Stafford se fosse aos aposentos de meu tio a essa hora da manhã. O castelo estava agitado, as alamedas para a cozinha estavam apinhadas de carroças trazendo lenha e carvão da floresta, frutas e legumes do mercado, e carne, leite e queijo das fazendas. Nos aposentos de meu tio, a criadagem se alvoroçava tomando as providências para o dia que se iniciava. As criadas tinham acabado de varrer e limpar a sala de audiências e os ajudantes de cozinha estavam colocando a lenha na lareira e sopravam o borralho para acendê-la.
Os cavalheiros de meu tio estavam alojados em meia dúzia de pequenos quartos para além do salão, seus guardas dormiam na sala de guarda. William poderia estar em qualquer lugar. Atravessei a sala de audiências e cumprimentei com um movimento de cabeça dois cavalheiros que eu conhecia, e tentei parecer que estava querendo ver meu tio ou minha mãe.
A porta da câmara privada de meu tio abriu-se e George surgiu apressado.
— Oh, ótimo — disse ao me ver. — Ana ainda está dormindo?
— Estava quando a deixei.
— Vá acordá-la. Diga-lhe que o clero submeteu-se ao rei ou, pelo menos, parte significativa do clero que nos deu a vitória, mas Thomas More anunciou que abdicou de seu posto. O rei ficará sabendo durante a missa, quando receberá a carta de More, mas ela deve se precaver. O rei vai ficar ressentido.
— Thomas More? — repeti. — Mas achei que estava do nosso lado.
Meu irmão impacientou-se com a minha ignorância.
— Ele prometeu ao rei nunca comentar publicamente a dissolução do casamento. Mas está óbvio o que ele acha, não está? É advogado, um lógico, é improvável que se deixe convencer pela distorção da verdade que acontece em mil universidades na Europa.
— Mas ele não queria a reforma da Igreja? — perguntei. Não era a primeira vez que estava à deriva no mar da política, que era o elemento natural da minha família.
— Reforma, e não fazê-la em pedaços e que fosse presidida pelo rei — replicou rapidamente. — Quem, melhor do que Thomas More, para saber que o rei não se ajusta ao papel de Papa? Conhece-o desde pequeno. Nunca aceitaria Henrique como herdeiro de São Pedro — meu irmão deu uma risada breve. — É uma ideia absurda.
— Absurda? Achei que a apoiávamos.
— É claro que sim — disse ele. — Na medida em que significa que Henrique pode determinar seu próprio casamento, que pode se casar com Ana. Mas só um tolo acreditaria que isso pode se fundamentar na lei, na moralidade ou no bom-senso. Ouça, Maria, não se preocupe. Ana sabe disso tudo. Simplesmente vá, acorde-a e conte-lhe que More está abdicando e que o rei ficará sabendo nesta manhã, e que ela tem de ficar calma. Foi o que o meu tio disse. Ana tem de estar calma.
Virei-me para fazer o que mandou e, nesse exato instante, William Stafford entrou na sala meneando os ombros em seu gibão. Parou ao me ver, e fez uma reverência.
— Lady Carey — disse ele. Fez uma mesura a meu irmão. — Lord Rochford.
— Vá — mandou meu irmão e me empurrou de leve. Ignorou William. — Conte-lhe.
Não tive outra alternativa a não ser sair às pressas da sala sem nem mesmo tocar na mão de William e lhe desejar bom-dia.
Ana e o rei ficaram fechados durante quase toda a manhã, considerando o que a abdicação de Thomas More significaria para eles. Meu pai e meu tio estavam com eles, e Cranmer e o secretário Cromwell, todos os homens ligados à causa de Ana, todos convictos de que o rei deveria assumir o poder e lucro da Igreja da Inglaterra. Ana e o rei apareceram para jantar, parecendo em grande harmonia, e ela sentou-se à sua direita, como se já fosse rainha.
Depois do jantar, os dois foram para a sua câmara privada e todo mundo foi dispensado. George ergueu a sobrancelha para mim com um leve sorriso e sussurrou:
— Contanto que resulte em um pequeno príncipe... hein, Maria? — em seguida, foi jogar cartas com Francis Weston e mais outros dois. Saí para o jardim, sentei-me ao sol e olhei o rio, o tempo todo sentindo falta de William Stafford.
Como se o tivesse chamado, ali surgiu ele, de repente, à minha frente.
— Estava me procurando, hoje de manhã? — perguntou.
— Não — repliquei, mentindo como uma boa cortesã. — Procurava meu irmão.
— De qualquer maneira, eu a procurava — disse ele. — E fico contente em encontrá-la. Muito contente, minha amada.
Movi-me no banco e indiquei que podia se sentar ao meu lado. No instante em que ficou tão perto, meu coração disparou. O seu perfume, aquele cheiro viril, doce e quente, que pairava ao redor de seu cabelo e de sua barba castanha macia. Peguei-me inclinando-me para o seu lado, e logo endireitei o corpo.
— Devo ir com seu tio a Calais — disse ele. — Talvez possa estar a seu serviço durante a viagem.
— Obrigada — eu disse.
Houve um breve silêncio.
— Lamento o que aconteceu no pátio das cavalariças — eu disse. — Tive medo que Ana nos visse juntos. Enquanto ela tiver a guarda de meu filho, não me atrevo a ofendê-la.
— Entendo — replicou William. — Foi no exato momento... em que segurei sua bota de montar. Eu não queria largá-la.
— Não posso ser sua amante — eu disse bem baixinho. — Claramente não.
Ele concordou com um movimento da cabeça.
— Mas estava procurando por mim hoje de manhã?
— Estava — sussurrei, finalmente com franqueza. — Não consegui ficar nem mais um minuto sem vê-lo.
— Fiquei de lá para cá neste jardim e à porta das câmaras da marquesa o dia todo, com esperança de vê-la — disse ele. — Fiquei por aqui durante tanto tempo que pensei em pegar uma pá e fazer alguma coisa útil enquanto esperava.
— Jardinar? — eu disse com uma risada ao pensar na cara de Ana se eu comunicasse que estava apaixonada pelo jardineiro. — Não ajuda muito.
— Não — replicou, também achando graça. — Fiquei rondando os quartos das mulheres como um alcoviteiro, o que é um pouco melhor. Maria, o que vamos fazer? Qual é o seu desejo?
— Não sei — repliquei, falando nada mais que a verdade. — Sinto como se estivesse passando por uma espécie de loucura e que se tivesse um amigo de verdade, ele me prenderia até ter passado.
— Acha que vai passar? — perguntou, como se fosse um ponto de vista interessante que não tivesse considerado.
— Oh, sim — eu disse. — É uma simples atração, não é? Só que aconteceu com nós dois ao mesmo tempo. Se tivesse me sentido atraída por você e não tivesse sido correspondida, eu andaria no mundo da lua e lhe lançaria olhares lânguidos por um tempo, e depois superaria.
Sorriu ao ouvir isso.
— Eu teria gostado. De qualquer maneira, não pode fazer isso?
— Vamos rir disso tudo mais tarde.
Esperei que contestasse. Na verdade, estava contando com que argumentasse que era um amor de verdade, um amor imortal, e que me convencesse de que eu deveria obedecer ao meu coração a qualquer preço.
Mas ele assentiu.
— Uma simples atração, então? Nada mais?
— Oh — eu disse surpresa.
William levantou-se.
— Em quanto tempo espera se recuperar? — perguntou em tom coloquial.
Levantei-me e fiquei perto dele. Sentia-me atraída como se cada osso do meu corpo precisasse de seu toque, independentemente do que minha boca dissesse.
— Pense um pouco — disse ele, com brandura. Sua boca estava tão perto do meu ouvido que sua respiração agitou o anel de cabelo que escapara de meu capelo. — Você poderia ser o meu amor, poderia ser a minha mulher. Poderíamos ter Catarina, não? Eles não a tirariam de você. E assim que Ana tiver seu próprio filho, lhe devolverá Henrique, o nosso menino.
— Ele não é o nosso menino — eu disse, mantendo o bom-senso com dificuldade, diante dessa torrente de persuasão em voz baixa.
— Quem lhe comprou seu primeiro pônei? Quem lhe fez seu primeiro barco a vela? Quem lhe ensinou a ver a hora pela posição do sol?
— Você — admiti. — Mas ninguém, além de você e eu, levaria isso em consideração.
— Talvez ele.
— Não passa de uma criança, não tem voz. E Catarina nunca terá voz ativa. Será mais uma garota Bolena que será mandada para onde quiserem que vá.
— Então, rompa o padrão por você, e salvaremos também as crianças. Não passe nem mais um dia sendo apenas a outra garota Bolena. Seja a Sra. Stafford, a única e amada Sra. Stafford, dona de seus campos e sua pequena casa de fazenda, e que está aprendendo a fazer queijo e depenar uma galinha.
Ri e ele imediatamente pegou minha mão e pressionou o polegar na palma. Sem querer, meus dedos se fecharam. Ficamos, por um momento, de mãos dadas, sob o sol quente e pensei, como uma garota apaixonada: “Isto é o paraíso.”
Ouvimos passos e larguei a sua mão como se me queimasse, e me virei rapidamente. Graças a Deus, era George e não a espiã de sua mulher. Olhou do meu rosto enrubescido para a expressão impassível de William e ergueu a sobrancelha.
— Irmã?
— William acaba de me dizer que minha égua machucou a quartela — eu disse ao acaso.
— Apliquei-lhe um cataplasma — disse William rapidamente. — Lady Carey pode ter um dos cavalos do rei, enquanto Jesmond se recupera. Não levará mais de um ou dois dias.
— Ótimo — disse George. William fez uma mesura e nos deixou.
Deixei-o ir. Não tive coragem, nem mesmo sendo George, a quem confiaria qualquer outro segredo, de chamá-lo de volta. William se afastou, seus ombros um pouco tesos de ressentimento.
George acompanhou o meu olhar.
— Percebo certa lascívia na adorável Lady Carey, estou certo? — perguntou negligentemente.
— Pode ser — reconheci.
— Esse é o ninguém que não significa nada?
Sorri com pesar.
— Sim.
— Não — disse ele simplesmente. — Ana tem de estar imaculada até o dia de seu casamento, especialmente agora que se deita com o rei. Nós todos estamos expostos. Se sente atração por esse homem, reprima-a, minha irmã, pois até Ana se casar, temos de ser castos como anjos, e ela o serafim principal.
— Não sou do tipo que rolaria no feno com ele — protestei. — A minha reputação é tão boa quanto a de qualquer um. Certamente melhor do que a sua.
— Então mande-o parar de olhá-la como se quisesse comê-la viva — disse George. — O homem parece completamente estupidificado.
— Parece? — eu disse impulsivamente. — Oh, George, parece?
— Que Deus nos ajude — replicou ele. — Lenha na fogueira. Sim, receio que sim. Diga-lhe para guardar isso até Ana se casar e se tornar rainha da Inglaterra e, então, você escolherá quem quiser.
Houve uma briga explosiva na câmara privada de Ana. George e eu, ao chegarmos de um passeio a cavalo, nos paralisamos na sala de audiências e olhamos em volta, os cavalheiros de Henrique e as damas de honra de Ana, todos mantendo a aparência perfeita de não estarem escutando, enquanto se esforçavam para não perder nem uma única palavra pela porta espessa. Ouvi o grito de raiva de Ana suplantando o som de descontentamento de Henrique.
— Do que adiantam para ela agora? Do quê? Ou ela virá à corte, de novo, para o Natal? Vai se sentar no meu lugar e serei rebaixada já que me possuiu?
— Ana, pelo amor de Deus!
— Não! Se me amasse, eu não precisaria ter pedido! Como posso ir à França sem usar as joias de rainha? O que significará você me levar à França como uma marquesa com nada mais do que um punhado de diamantes?
— São tudo menos um punhado...
— Não são as joias da coroa!
— Ana, algumas delas foram compradas para ela por meu pai, para o seu primeiro casamento, não têm nada a ver comigo...
— Têm tudo a ver com você! São joias da Inglaterra, dadas à rainha. Se vou ser rainha, tenho de tê-las. Se ela é a rainha, então pode ficar com elas. Escolha!
Todos ouvimos o berro irritado de Henrique.
— Pelo amor de Deus, mulher, o que tenho de fazer para agradá-la? Recebeu todas as honras que uma mulher poderia desejar! O que quer agora? Tirar-lhe o vestido? Tirar o capelo de sua cabeça?
— Tudo isso e mais! — gritou Ana de volta.
Henrique abriu a porta com força, todos nos pusemos a conversar com animação, assustados com a sua presença brusca, e então fizemos a reverência.
— Eu a verei no jantar — disse ele, gelidamente por cima do ombro, para Ana.
— Não verá não — disse ela bem alto. — Pois há muito terei partido. Jantarei na estrada e comerei o desjejum em Hever. Não me tratará com desdém.
Virou-se imediatamente para ela e a porta oscilou atrás dele. Todos nos esforçamos para ouvir o que não podíamos ver.
— Não vai me deixar.
— Não serei meia rainha — disse ela com veemência. — Ou terá a mim por inteiro ou não terá. Ou me ama ou não me ama. Ou serei toda sua ou não serei de ninguém. Não terei meias medidas com você, Henrique.
Ouvimos o farfalhar de seu vestido quando ele a apertou contra si e seu suspiro de deleite.
— Terá todos os diamantes da Torre, terá os diamantes dela e também seu barco — prometeu ele, com a voz rouca. — Terá o desejo do seu coração, já que me deu o meu.
George se adiantou e fechou a porta.
— Alguém quer jogar cartas? — perguntou animado. — Acho que teremos de esperar por algum tempo.
Houve uma agitação de risadas contidas e alguém conseguiu dois baralhos e, outro, dois dados. Mandei o pajem chamar correndo os músicos, para que fizessem um barulho que abafasse quaisquer suspiros indiscretos que viessem da câmara privada de Ana. Ocupei-me da melhor maneira possível em garantir que a corte se entretivesse enquanto minha irmã e o rei faziam amor. Fiz tudo o que podia, de modo que não tive tempo para pensar na rainha e sua mudança para uma casa menos confortável, sabendo por um mensageiro do rei que ela tinha sido obrigada a entregar as joias reais, seus anéis, pulseiras e colares, e cada prova de amor que ele lhe dera, porque minha irmã queria usá-los na França.
Foi uma expedição enorme, a maior já empreendida pela corte de Henrique desde a viagem a Field of the Cloth of Gold.2 E foi, em todos os aspectos, tão extravagante e ostentosa quanto o evento lendário tinha sido. Tinha de ser — Ana estava determinada a sobrepujar tudo o que Catarina tinha visto e feito. Portanto, atravessamos a Inglaterra de Hanbury a Dover, como imperadores. Soldados montados nos precederam para afastar da estrada qualquer descontentamento. Mas a importância da expedição e o número de cavalos, carruagens, carroças, soldados, guarda pessoal, criados, vivandeiros e a beleza das damas a cavalo e seus acompanhantes assombrou a maior parte da região rural, deixando-a em um silêncio perplexo.
A travessia do Canal foi tranquila. As damas foram para baixo, Ana retirou-se a seu camarote e dormiu quase toda a viagem. Os cavaleiros estavam no convés, abrigados em seus mantos de montaria, atentos a outros navios no horizonte, partilhando jarras de vinho quente. Subi ao tombadilho e apoiei-me na amurada. Observei o movimento das ondas rolando para baixo da proa e ouvi o estalar do madeiramento.
Uma mão quente cobriu a minha, gelada.
— Está se sentindo bem? — William Stafford sussurrou em meu ouvido. — Não está nauseada?
Virei-me para ele e sorri.
— De jeito nenhum, graças a Deus. Todos os marinheiros dizem que é uma travessia tranquila.
— Queira Deus que seja assim — disse ele com veemência.
— Oh! Meu cavaleiro errante! Não me diga que está nauseado.
— Um pouco — replicou defensivamente.
Quis tomá-lo em meus braços. Por um momento, pensei no teste de amor ao descobrirmos que nosso amado não é perfeito. Nunca pensei que me sentiria atraída por um homem que sofria de enjoo do mar, e no entanto, ali estava eu, desejando buscar vinho temperado para ele e aquecê-lo.
— Venha sentar-se — relanceei os olhos em volta. Passávamos tão despercebidos quanto qualquer um passaria nessa corte que era um manancial de mexericos e difamação. Levei-o a uma pilha de velas enroladas e o acomodei contra o mastro, de modo que pudesse se recostar. Apertei seu manto à sua volta com o mesmo cuidado que dispensaria ao meu filho Henrique.
— Não me deixe — disse ele, com uma voz tão queixosa que, por um instante, achei que estava brincando comigo, mas sua expressão era de uma inocência tão límpida que toquei sua face com meus dedos frios.
— Só vou buscar um pouco de vinho quente para nós — fui à cozinha, onde esquentavam vinho e ale e serviam nacos de pão. Quando voltei, William se ergueu de modo que eu pudesse me sentar ao seu lado. Segurei o copo enquanto ele comia o pão, depois dividimos o vinho, gole por gole.
— Está melhor?
— É claro que sim. Posso fazer alguma coisa por você?
— Não, não — repliquei rapidamente. — Fico feliz que esteja melhor. Quer que eu busque mais vinho?
— Não — disse ele. — Obrigado. Acho que gostaria de dormir.
— Consegue dormir encostado no mastro?
— Não, acho que não.
— E se deitar na vela?
— Acho que rolaria.
Relanceei os olhos em volta. Quase todo mundo tinha se dirigido a sotavento e estava ou cochilando ou jogando. Estávamos praticamente a sós.
— Devo segurá-lo?
— Eu gostaria — disse ele baixinho, como se estivesse mal demais para falar.
Trocamos de lugar, fiquei encostada no mastro e ele pôs sua cabeça querida, de cabelo encaracolado, em meu colo, os braços em volta da minha cintura, e fechou os olhos.
Fiquei ali, acariciando seu cabelo e admirando a maciez de sua barba castanha e o roçar de suas pestanas na maçã de seu rosto. Sua cabeça estava quente e pesada em meu colo, seus braços apertados em volta da minha cintura. Senti aquela total satisfação que sempre sentia quando estávamos perto um do outro. Era como se o meu corpo tivesse ansiado por ele a vida inteira, independentemente de em que minha mente estivesse pensando, e que, por fim, o tivesse para mim.
Joguei a cabeça para trás e senti o ar marinho frio nas maçãs de meu rosto. O balanço do barco era soporífero, o rangido emudecido e o silêncio do vento nas escotas e nas velas. O ruído foi se enfraquecendo cada vez mais até eu adormecer.
Despertei com o calor de seu toque, sua cabeça se aninhando na minha virilha, esfregando-se em minhas coxas, suas mãos explorando dentro do meu manto, acariciando meus braços, minha cintura, meu pescoço, meus seios. Quando, sonolenta, abri os olhos a essa sensação, ele ergueu a cabeça e beijou meu pescoço nu, minha bochecha, minhas pálpebras e, depois, apaixonadamente, minha boca. Sua boca era quente e doce e vagarosa, sua língua deslizou entre meus lábios e me excitou. Senti vontade de comê-lo, de bebê-lo, quis que me beijasse e me derrubasse na prancha do convés e me possuísse ali, naquele instante, e nunca mais me soltasse.
Quando afrouxou a força da sua mão e fez menção de me largar, fui eu que pus minhas mãos atrás de sua cabeça e puxei sua boca, de novo, para a minha, foi o meu desejo que nos fez prosseguir, não o seu.
— Tem uma cabine? Uma cama? Algum lugar aonde irmos? — perguntou-me ofegando.
— As damas ocupam toda a acomodação e cedi minha cama.
Emitiu um gemido de desejo frustrado, em seguida passou a mão pelo cabelo e riu de si mesmo.
— Deus meu! Pareço um pajem perplexo com uma xoxota! — disse ele. — Estou trêmulo de desejo.
— Eu também. Oh, Deus! Eu também — eu disse.
William levantou-se.
— Espere aqui — ordenou, e desapareceu. Voltou com um copo de ale que me ofereceu primeiro, e depois bebeu, ele mesmo, um grande gole.
— Maria, temos de nos casar — disse ele. — Ou será a única responsável por eu enlouquecer.
Ri.
— Oh, meu amor.
— Sim, sou — disse ele com ardor.
— É o quê?
— Sou o seu amor. Repita.
Por um momento achei que poderia recusar, mas estava farta de negar a verdade.
— Meu amor.
Sorriu como se isso fosse o bastante, por enquanto.
— Venha cá — disse ele, abrindo seu manto como uma asa e me levando à amurada. Obedientemente, fui para o seu lado, ele pôs o braço e seu manto quente de montaria em volta dos meus ombros, e me segurou bem perto de si. Sob o abrigo de seu manto, deslizei minha mão ao redor de sua cintura e, só com as gaivotas como testemunhas, descansei a cabeça em seu ombro, e ficamos assim, balançando, quadril com quadril, ao movimento do navio por um longo e tranquilo tempo.
— E lá está a França — disse ele, finalmente.
Olhei em frente e vi a forma escura da terra e, gradativamente, o cais e os mastros dos barcos, os muros e o castelo da fortaleza inglesa de Calais.
Com relutância, ele me soltou.
— Eu a encontrarei assim que nos instalarmos.
— Eu o procurarei.
Separamo-nos. Pessoas vieram para o convés, admirando-se da tranquilidade da travessia e olhando para o istmo que se estreitava cada vez mais até Calais.
— Sente-se bem, agora? — perguntei, afastada dele, sentindo a frieza de minha vida cotidiana tomar o lugar da intimidade apaixonada.
Por um momento, William teve a elegância de parecer confuso.
— Oh, o meu enjoo do mar. Tinha me esquecido.
De súbito, me dei conta de que tinha sido enganada.
— Você não se sentiu mal? Não! Não se sentiu! Foi tudo um truque para eu me sentar ao seu lado, abraçá-lo enquanto dormia.
Ficou deliciosamente envergonhado e deixou a cabeça cair como um menino repreendido, e então vi seu sorriso radiante.
— Mas me diga, minha Lady Carey — desafiou-me. — Teve as seis horas mais felizes de sua vida? Ou não?
Contive a língua. Parei e pensei. Devia ter havido em minha vida uma dúzia de momentos felizes. Tinha sido a amada de um rei, tinha sido reivindicada por um marido amoroso e tinha sido a irmã mais bem-sucedida em anos. Mas as seis horas mais felizes?
— Sim — repliquei simplesmente, consentindo-lhe tudo. — Essas foram as seis horas mais felizes da minha vida.
Atracamos em um cais ruidoso e agitado. O capitão do porto, os marinheiros e estivadores vieram ver o rei e Ana desembarcarem e os saudarem quando pisassem solo inglês na França. Em seguida, todos subimos para assistir à missa na capela de St. Nicholas, com o governador de Calais, que fez muito estardalhaço, tratando Ana como se já tivesse sido coroada rainha. Porém, independentemente do que o governador dissesse e fizesse para acalmá-la na sua busca ansiosa de afirmação, o rei da França não era tão submisso e Henrique teve que deixar Ana em Calais, quando foi se encontrar com Francis.
— Como é tolo — Ana resmungou, olhando, pela janela do Castelo de Calais, Henrique cavalgando à frente de sua guarda pessoal sem seu chapéu para curvar a cabeça em reverência à multidão, virando-se, depois, em sua sela, para acenar para o castelo, na esperança de que ela o estivesse observando.
— Por quê?
— Devia ter sabido que a rainha da França não se encontraria comigo. Ela é uma princesa espanhola, como Catarina. Assim permitiu que a rainha de Navarra também se recusasse a me ver. Não deveria ter-lhe perguntado, pois isso lhe deu a chance de se recusar.
— Ela disse por que não? Sempre foi tão gentil conosco, quando éramos pequenas.
— Disse que o meu comportamento era um escândalo — replicou Ana concisamente. — Deus meu, como essas mulheres dão-se ares de grande importância quando estão casadas e seguras. Até parece que nenhuma delas lutou para pegar um marido.
— Então, não vamos ver o rei Francis?
— Não podemos encontrá-lo oficialmente — disse Ana. — Não há nenhuma mulher para me receber — bateu os dedos no peitoril da janela. — Catarina foi recebida pela rainha da França em pessoa, e todos contam como foram amáveis uma com a outra.
— Bem, você ainda não é a rainha, como sabe — falei imprudentemente.
O olhar que me lançou foi como gelo.
— Sim — replicou. — Eu sei. Tenho notado isso nos últimos seis anos. Tive pouco tempo para tomar consciência, obrigada. Mas serei. E quando voltar à França como rainha, farei com que lamente ter me insultado, e quando Margarida de Navarra tentar casar suas filhas com meus filhos, não me esquecerei de que me chamou de um escândalo — olhou duro para mim. — E não me esquecerei de que você está sempre pronta a me lembrar de que ainda não sou rainha.
— Ana, eu só estava dizendo...
— Portanto devia ficar calada e tentar pensar antes de falar — vociferou.
Henrique convidou o rei Francis da França ao forte inglês de Calais e, durante dois dias, nós, damas de honra, com Ana na frente, tivemos de nos contentar em espiar, pela janela do castelo, o rei francês, avistando, de sua lendária bela aparência, nada além de seu cocuruto. Esperei que Ana ficasse em estado de fúria absoluta por ter sido excluída, mas mostrou-se sorridente e reservada, e toda noite, quando Henrique vinha ao seu quarto, era recebido com um humor tão agradável, que tive certeza de que ela estava planejando alguma coisa.
Ela nos pôs para ensaiar uma dança especial que seria conduzida por ela, e depois incluiria todos os comensais sentados, que seriam chamados a dançar conosco. Era óbvio que estava planejando penetrar no banquete do rei com o rei da França e dançar com ele.
Algumas das damas mais jovens se perguntavam como ela se atrevia a contrariar as convenções, mas eu sabia que Henrique aprovaria seus planos. A sua surpresa quando ela entrasse seria tanto uma contrafação quanto a perplexidade que a rainha Catarina tinha aprendido a demonstrar quando seu marido entrava em seus aposentos com seus disfarces. Senti-me velha e cansada do mundo ao pensar em como tínhamos fingido durante anos não reconhecê-lo e agora Ana jogaria os mesmos jogos, e a corte continuaria tendo de admirá-los.
Apesar das exigências de eu cavalgar com Ana de manhã e dançar, com ela e as damas de honra, à tarde, achava tempo ao meio-dia para andar pelas ruas de Calais e, em uma pequena cervejaria, me encontrar com William Stafford. Ele me punha para dentro, longe dos olhares curiosos nas ruas, e colocava uma caneca de ale à minha frente.
— Tudo bem, meu amor? — me perguntava.
Eu sorria para ele.
— Sim. E com você?
Ele assentia com a cabeça.
— Amanhã, terei de sair com seu tio. Soube de alguns cavalos que podem lhe interessar. Mas os preços são absurdos. Cada fazendeiro francês está decidido a espoliar um lorde inglês nesta temporada, com medo de que nunca mais voltemos.
— Ele disse que talvez o fizesse treinador de seu cavalo. Isso seria muito bom para nós, não? — eu disse ansiosamente. — Ficaria mais fácil nos vermos se se encarregasse de meu cavalo, e poderíamos cavalgar juntos.
— E nos casarmos, é claro — disse ele, mexendo comigo. — O seu tio ficaria encantado se seu mestre de cavalos se casasse com a sua sobrinha. Não, meu amor, não acho que seria uma coisa boa para nós — tocou minha face. — Não quero vê-la todos os dias por acaso. Quero vê-la todo dia e noite porque somos casados e vivemos na mesma casa.
Fiquei calada.
— Vou esperar por você — disse ele baixinho. — Sei que ainda não está pronta.
Olhei para ele.
— Não é que não o ame. São as crianças e a minha família, e Ana. Mais do que tudo, é Ana. Não sei como deixá-la.
— Por que ela precisa de você? — perguntou surpreso.
Dei uma risada.
— Deus meu! Não! Porque ela não me deixará ir. Precisa que eu esteja perto, para que saiba que está segura — interrompi-me sem saber como lhe explicar a longa e determinada rivalidade entre nós duas. — Qualquer triunfo seu é reduzido pela metade, se eu não estiver lá para vê-lo. E tudo o que dá errado para mim, qualquer desprezo ou humilhação, ela percebe rapidamente, e é ainda mais rápida em se vingar. Oh! Mas no fundo do seu coração, está cantando de júbilo por saber que sofri um golpe.
— Ela parece um demônio — disse ele, leal a mim.
Dei um risinho.
— Gostaria de concordar — admiti. — Mas na verdade, é o mesmo comigo. Tenho tanta inveja dela quanto ela de mim. Mas a vi subir e subir. Nunca farei melhor do que ela agora. Passei a aceitar esse fato. Sei que ela conquistou e prendeu o rei, do que eu não fui capaz. Mas também sei que, na verdade, eu não queria. Depois de ter o meu filho, tudo o que eu queria era estar com meus dois filhos, longe da corte. O rei é tão...
— Tão? — incitou.
— É tão desejoso. Não somente de amor, mas de tudo. É como uma criança, e quando tive uma criança, uma criança de verdade, descobri que não tinha paciência com um homem que queria ser distraído como uma criança. Quando percebi que o rei Henrique era tão egoísta quanto seu próprio filhinho, deixei de amá-lo. Só conseguia olhar para ele com impaciência.
— Mas não o deixou.
— Não se deixa o rei. É ele que nos deixa.
William balançou a cabeça, reconhecendo a verdade disso.
— Mas quando ele me deixou por Ana, o perdi sem lamentar. E hoje, quando danço ou janto ou caminho e converso com ele, cumpro meu papel de cortesã. Deixo que pense que é o homem mais encantador do mundo, e olho para ele, sorrio, e lhe dou todos os motivos para acreditar que ainda estou apaixonada por ele.
O braço de William envolveu minha cintura e me segurou com força.
— Mas não está — especificou.
— Solte-me — sussurrei. — Está me apertando com muita força.
Apertou um pouco mais.
— Oh, está bem — eu disse. — Não, é claro que não. Estou cumprindo a minha missão como garota Bolena, como uma cortesã Howard. É claro que não o amo.
— E não ama ninguém? — perguntou negligentemente, apertando mais forte.
— Ninguém — repliquei, provocando-o.
Um dedo sob meu queixo forçou-me a levantar o rosto e seus olhos castanhos e brilhantes me examinaram como ele visse minha alma.
— Um ninguém — acrescentei.
Seu beijo foi tão leve em minha boca quanto o roçar de uma pena quente.
Nessa noite, Henrique e Francis tiveram um jantar privativo em Staple Hall. As damas de honra, com Ana à frente, escaparam do castelo, com os mantos sobre os vestidos finos e os capuzes cobrindo o penteado. Reunimo-nos na sala do lado de fora da câmara, tiramos o manto e ajudamos umas às outras a vestir as túnicas e máscaras douradas, e os capuzes também dourados. Não havia nenhum espelho na sala, de modo que não pude ver como estava, mas as outras à minha volta reluziam ouro, e eu sabia que também brilhava. Ana, em particular, seus olhos escuros reluzindo nas frestas da máscara dourada com a forma de um falcão, parecia magnífica e selvagem, seu cabelo escuro caindo nos ombros sob o véu dourado do capuz.
Esperamos o sinal e, então, entramos para dançar. Henrique e o rei Francis não tiraram os olhos dela. Dancei com Sir Francis Weston, que sussurrou propostas espantosas em meu ouvido, em francês, sob o pretexto óbvio de que pensava que eu era uma dama francesa que receberia de bom grado esses convites, e vi George escolhendo outra dama, com pressa de evitar ter de dançar com sua mulher.
A dança terminou, Henrique virou-se para uma das dançarinas e tirou seu véu, depois, prosseguiu, formalmente, retirando a máscara de cada uma das damas, até finalmente, retirar a de Ana.
— Ah, a marquesa de Pembroke — disse o rei Francis, demonstrando surpresa. — Quando a conheci, era a Srta. Ana Bolena, a garota mais bonita da minha corte então, assim como é a mulher mais bela da corte do meu amigo Henrique.
Ana sorriu e virou a cabeça para Henrique e sorriu para ele.
— Houve uma única garota que podia se comparar à sua beleza, a outra garota Bolena — disse o rei Francis, procurando por mim. O momento de triunfo de Ana dissolveu-se abruptamente, e ela fez um sinal para que eu avançasse como se desejasse estar me mostrando o cadafalso.
— Minha irmã, Majestade — disse ela. — Lady Carey.
Francis beijou minha mão.
— Enchanté — sussurrou sedutoramente.
— Vamos dançar de novo! — disse Ana de repente, irritada como eu sabia que estaria com qualquer atenção dispensada a mim. Imediatamente, os músicos tocaram um acorde e, o restante da noite, a corte se divertiu e todos se esforçaram ao máximo para que Ana ficasse feliz.
Essa noite encerrou a visita formal à França e passamos o dia seguinte nos preparando para a viagem de volta. O vento estava contrário e tivemos de permanecer em Calais, mandando perguntar toda manhã ao capitão do navio se poderia zarpar naquele dia ou no dia seguinte. Ana e Henrique caçaram e se entretiveram tão bem quanto se estivessem na Inglaterra, na verdade, melhor ainda, pois não havia ninguém para vaiá-la na rua, ou gritar-lhe “prostituta!” quando ela passava a cavalo. E com o atraso, eu e William ficamos livres para nos ver.
Cavalgávamos toda tarde em uma praia na parte oeste da cidade, que se estendia até onde a vista alcançava. Às vezes, os cavalos partiam a galope na areia dura à beira da água, e afrouxávamos as rédeas. Depois, seguíamos para as dunas, e William me tirava da sela, abria seu manto no chão, e nos deitávamos, abraçados, nos beijando com sussurros, até eu quase chorar de desejo.
Houve muitas tardes em que me senti tentada a desatar os cordões de sua calça e deixar que me possuísse, sem cerimônia, como uma camponesa sob o sol sedutor, com somente os gritos das gaivotas nos distraindo. Ele me beijava até machucar minha boca, meus lábios incharem e racharem, e à noite, quando tinha de jantar sem ele, com as outras damas, ao tocar com meus lábios o copo frio para beber, continuava a sentir os machucados causados por sua mordida apaixonada. Ele tocava em todas as partes do meu corpo, sem pejo. Seus dedos desatavam meu corpete nas costas para que escorregasse até meus quadris, e acariciava meus seios nus. Curvava sua cabeça de cabelo castanho e me sugava até eu gritar de prazer, e achar que o prazer cresceria até eu não mais suportá-lo nem por um momento. Então, afundava a cabeça em minha barriga e mordia meu umbigo com força, de modo que eu me retraísse com dor e o empurrasse, e pensasse que estava gritando e lutando, em vez de suspirando.
Abrigava-se com meu manto e ficava deitado ao meu lado, sem se mover, por longos momentos, até minha fome dele se arrefecer um pouco. Então, me virava e encostava seu corpo esguio em minhas costas, soltava meu cabelo e o levantava, de modo que pudesse mordiscar minha nuca e se comprimir contra mim. Eu sentia a dureza de seu membro apesar de meu vestido e anágua, e sabia que eu pressionava de volta como uma prostituta, como se lhe implorasse que completasse o ato, e o fizesse sem a minha permissão, pois eu não podia dizer “sim”. E só Deus sabia como não diria “não”.
Ele se arremessava contra mim, e eu respondia com mais pressão, ansiando pelo que aconteceria em seguida. Seu movimento se tornava mais rápido e eu me excitava até chegar a um ponto em que não podia mais parar, quisesse ou não — e então, antes de eu ter alcançado o meu prazer, antes de quase tocar pele com pele, fazia uma pausa, dava um suspiro e de novo se deitava ao meu lado. Puxava-me e beijava minhas pálpebras, e me abraçava até eu parar de tremer.
Todos os dias em que o vento soprou na direção da terra e os navios permaneceram ancorados, cavalgamos para as dunas e fizemos amor, que não era fazer amor, mas sim o namoro mais apaixonado. E todo dia, eu torcia, contra a vontade, que fosse o dia em que eu sussurraria “sim” ou que ele me forçaria a isso. Mas todo dia, ele parava um minuto, um segundo antes de eu consentir, e me envolvia em seus braços e me confortava, como se eu sofresse de dor e não de desejo — e houve muitos dias em que eu não saberia distinguir um do outro.
No décimo segundo dia, quando puxávamos os cavalos das dunas em direção à praia, William, de súbito, se deteve e olhou para cima.
— O vento mudou.
— O quê? — perguntei, de maneira idiota. Ainda estava tonta de prazer. Não sabia nem que existia um vento. Mal tinha consciência da areia sob minhas botas de montar, da arrebentação na praia, do calor do sol quente da tardinha em minha bochecha esquerda.
— Está soprando da terra — respondeu. — Poderão zarpar.
Descansei a mão no pescoço de meu cavalo.
— Zarpar? — repeti.
Virou-se e viu minha cara de espanto, e riu para mim.
— Oh, meu coração, você está longe, não está? Lembra-se de que não partimos para a Inglaterra porque o vento não era favorável? Pois é. O vento mudou. Vamos partir amanhã.
As palavras, por fim, foram entendidas.
— E o que vamos fazer?
Pôs as rédeas de seu cavalo em volta do braço e aproximou-se do meu, para me erguer para a sela.
— Zarpar, suponho — pôs as mãos em concha sob minha bota e me lançou na sela. Reconheci, em meu corpo, a dor do desejo não satisfeito, de mais desejo, de mais um dia de desejo, o décimo segundo dia de desejo insatisfeito.
— E depois? — insisti. — Não podemos nos encontrar assim em Greenwich.
— Não — concordou, divertido.
— Como vamos nos encontrar?
— Poderá me ver no pátio das cavalariças, ou a procurarei no jardim. Sempre conseguimos, não? — montou em seu cavalo, com leveza. Não estava tremendo como eu.
Eu não encontrei as palavras certas.
— Não quero vê-lo dessa maneira.
William ajustou a correia do estribo, franzindo o cenho ligeiramente, depois aprumou o corpo e me lançou um sorriso cortês, e distante.
— Posso escoltá-la a Hever no verão — ofereceu-se.
— Faltam sete meses! — exclamei.
— Sim.
Aproximei meu cavalo do dele, não acreditava na sua indiferença.
— Não quer me encontrar todas as tardes?
— Sabe que quero.
— Então, como vai ser?
Deu-me um sorriso de certa maneira provocador.
— Acho que não poderá ser — disse ele gentilmente. — Há muitos inimigos dos Howard que logo a acusariam de comportar-se levianamente. Há espiões demais no séquito de seu tio, para que eu não seja descoberto em pouco tempo. Temos tido sorte, tivemos doze dias e foi muito bom. Mas não acho que se repetirão na Inglaterra.
— Oh.
Virei a cabeça de minha égua e senti o sol aquecer minhas costas. As ondas quebravam na praia e o animal, agitando-se um pouco, contraía-se ligeiramente, quando borrifavam seus machinhos e joelhos. Eu não consegui aquietá-la, não conseguia me controlar.
— Acho que não poderei continuar servindo a seu tio — William emparelhou seu cavalo com o meu.
— O quê?
— Acho que irei para a fazenda e experimentarei ser fazendeiro. Está tudo lá, me aguardando. Estou cansado da corte. Não me ajusto a essa vida. Sou muito independente para servir a um senhor, mesmo de uma família importante como a sua.
Endireitei, um pouco, meu corpo. O orgulho Howard ajudou. Pus os ombros para trás e levantei o queixo.
— Como quiser — eu disse, tão fria quanto ele.
Ele assentiu com a cabeça e atrasou um pouco seu cavalo. Dirigimo-nos aos muros da cidade como uma dama e sua escolta. Os amantes arrebatados das dunas tinham ficado para trás, agora éramos a garota Bolena e o homem dos Howard retornando à corte.
A porta da fortaleza continuava aberta, ainda não tinha escurecido, e cavalgamos lado a lado pelas ruas calçadas de pedras até o castelo. Os portões estavam abertos, a ponte baixada, fomos direto para o pátio das cavalariças. Havia homens lavando os cavalos e os enxugando com tufos de palha. O rei e Ana tinham retornado meia hora antes, e seus cavalos estavam sendo conduzidos de modo que esfriassem antes de serem alimentados e lavados. Não havia espaço para uma conversa privada.
William tirou-me da sela, e com o toque de suas mãos em minha cintura, seu corpo contra o meu, fui tomada de um desejo repentino e ardente por ele, tão intenso que dei um gritinho de dor.
— Está bem? — perguntou, pondo-me no chão.
— Não! — repliquei furiosa. — Não estou bem. Sabe que não estou.
Por um instante, também ele perdeu a serenidade. Pegou minha mão e me puxou de maneira grosseira para si.
— Está se sentindo agora como venho me sentindo há meses — disse com a voz baixa e apaixonada. — Sente-se agora como me sinto dia e noite desde que a vi pela primeira vez, e como espero continuar me sentindo pelo resto da minha vida. Pense nisso, Maria. E me procure. Mande me chamar quando souber que não pode viver sem mim.
Torci minha mão e a soltei dele e me afastei. Esperei que viesse atrás de mim, mas não veio. Andei tão devagar, que se ele tivesse sussurrado meu nome, eu teria escutado, e me virado. Afastei-me, embora meus pés se arrastassem a cada passo. Atravessei a arcada para a porta do castelo, embora cada polegada do meu corpo gritasse que queria ficar com ele.
Quis ir para o meu quarto e chorar, mas quando entrei no salão, George levantou-se de uma cadeira e disse:
— Estava esperando por você. Por onde andava?
— Cavalgava — respondi simplesmente.
— Com William Stafford — acusou-me.
Viu meus olhos vermelhos e o tremor de minha boca.
— Sim. E daí?
— Oh, Deus — disse George, com simpatia. — Meu Deus, não, sua putinha tola. Vá se lavar e tirar essa expressão da cara. Qualquer um pode adivinhar o que andou fazendo.
— Não fiz nada! — exclamei com uma veemência repentina. — Nada! E me fez muito bem!
Hesitou.
— Não faz diferença. Apresse-se.
Fui para o quarto e joguei água nos olhos e esfreguei o rosto com uma toalha. Quando entrei na sala de audiências de Ana, havia meia dúzia de damas jogando cartas, e George esperando, muito sombrio, no vão da janela.
Relanceou os olhos, prudentemente, pela sala, pôs minha mão em seu braço e me conduziu à galeria de retratos que ocupava a extensão do salão, mas que estava vazia nessa hora do dia.
— Foram vistos — disse ele. — Não achava que se sairia disso ilesa, achava?
— Disso o quê?
Ele se interrompeu, olhou para mim com uma gravidade que nunca vira antes.
— Não seja insolente — advertiu. — Foi vista saindo das dunas com a cabeça em seu ombro e a mão dele ao redor de sua cintura, seu cabelo solto ao vento. Não sabe que tio Howard tem espiões em toda parte? Não achou que fatalmente seriam descobertos?
— O que vai acontecer? — perguntei, com medo.
— Nada, se parar por aqui. Por isso sou eu que a estou avisando e não nosso tio ou nosso pai. Eles não querem saber. Até onde diz respeito a você, eles não sabem. Fica somente entre mim e você, e não precisa ir adiante.
— Eu o amo, George — eu disse calmamente.
Baixou a cabeça e percorreu a galeria, me arrastando pela mão em seu braço.
— Isso não faz a menor diferença para pessoas como nós. Você sabe disso.
— Não durmo, não como, não faço outra coisa a não ser pensar nele. À noite, sonho com ele, passo o dia esperando para vê-lo, e quando o vejo, o meu coração se agita e penso que vou desmaiar de desejo.
— E ele? — perguntou George, envolvendo-se contra a vontade.
Virei a cabeça para que não visse a dor repentina em meu rosto.
— Achava que sentia o mesmo. Mas hoje, quando o vento mudou, ele disse que retornaríamos à Inglaterra e que não poderíamos nos ver como nos víamos na França.
— Bem, ele tem razão — disse George, brutalmente. — E se Ana tivesse feito o seu trabalho, nem você nem meia dúzia de outras damas teria ficado à toa na França, flertando com homens de seu séquito.
— Não é isso — irritei-me. — Ele não é um homem do meu séquito. Ele é o homem que eu amo.
— Lembra-se de Henry Percy? — perguntou de repente.
— É claro.
— Estava apaixonado. Mais do que isso, estava noivo, mais do que isso, casou-se. E isso o salvou? Não. Enfurnou-se em Northumberland, casado com uma mulher que o detesta, ainda apaixonado, inconsolável, desesperançado. Pode escolher. Ou se apaixona e fica inconsolável, ou tira o melhor proveito que puder disso.
— Como você? — eu disse.
— Como eu — replicou inflexivelmente. Involuntariamente, seu olhar dirigiu-se ao extremo da galeria onde Sir Francis Weston estava inclinado sobre o ombro de Ana, acompanhando uma pauta de música. Sir Francis percebeu nosso olhar e ergueu os olhos. Pela primeira vez se esqueceu de sorrir para mim, olhou para meu irmão e houve uma profunda intimidade nesse olhar.
— Nunca obedeço ao meu desejo, nunca o consulto — disse George implacável. — Coloquei minha família em primeiro lugar, o que me custa uma pulsação do meu coração a cada dia de minha vida. Não faço nada que possa causar a Ana um constrangimento. Nós, os Howard, não temos direito ao amor. Antes de mais nada, somos cortesãos. Nossa vida é na corte. E o amor verdadeiro não tem lugar na corte.
Sir Francis deu um breve sorriso distante quando George não o reconheceu, e voltou sua atenção à música.
George apertou meus dedos frios em seu braço.
— Tem de parar de vê-lo — disse ele. — Tem de dar a sua palavra de honra.
— Não posso dar palavra de honra, pois não tenho honra — eu disse friamente. — Fui casada e traí meu marido com o rei. Voltei para ele e ele morreu antes de eu ter a chance de lhe dizer que poderia amá-lo. E agora, quando encontro um homem a quem me entregaria de corpo e alma, você pede que eu dê minha palavra de honra de que não o verei mais. E eu dou. Honra. Não restou honra em nós três Bolena, nenhuma.
— Bravo — disse George. Pegou-me em seus braços e me beijou na boca. — E coração partido lhe assenta bem. Está deliciosa.
Zarpamos no dia seguinte. Procurei William no convés e quando o vi, ele tendo o cuidado de não olhar para mim, desci com as outras damas e me enrosquei em uma toca de almofadas. Mais que tudo, eu queria dormir a metade do ano que restava até ir a Hever ver meus filhos.
2. Local do encontro histórico entre os reis Francis I, da França, e Henrique VIII, de 7 a 24 de junho de 1520, com o objetivo de aprofundar os laços entre os dois países. (N. do E.)
Inverno de 1532
A corte celebrou o Natal em Westminster e Ana foi o centro de toda a atividade. O mestre de folias encenou uma mascarada atrás da outra, com ela sendo aclamada rainha da Paz, rainha do Inverno, rainha do Natal. Foi chamada de tudo, menos de rainha da Inglaterra, e todos sabiam que o título se seguiria muito em breve. Henrique levou-a à Torre de Londres e ela teve o melhor do tesouro da Inglaterra, como se fosse uma princesa de sangue azul.
Agora, os aposentos dela e de Henrique eram contíguos. Impudentemente, retiravam-se, à noite, para um ou outro quarto, e apareciam juntos pela manhã. Ele comprou-lhe um robe de cetim preto forrado de pele para receber aqueles que vinham ao seu quarto. Fui liberada de minha função de acompanhante e companheira de cama, e me vi sozinha, à noite, pela primeira vez desde pequena. Foi um prazer poder me sentar próxima à pequena lareira e saber que Ana não irromperia na sala em um acesso de fúria. Mas descobri que estava solitária. Passei longas noites devaneando diante do fogo, e muitas tardes frias, olhando pela janela a chuva do inverno cinza. A luz do sol e as dunas de Calais pareciam ter acontecido há milhões de anos. Senti que me transformava em gelo, exatamente como o granizo nos telhados.
Procurei William Stafford entre os homens de meu tio e me disseram que ele tinha ido à sua fazenda ver a colheita dos nabos e a matança dos animais velhos. Pensei nele, percorrendo sua propriedade, pondo tudo em ordem, tratando de coisas reais, enquanto eu permanecia na corte, enredada em mexericos e difamações, pensando em nada além do prazer de duas pessoas egoístas e indolentes e em como entretê-las.
No meio do Dia de Reis, Ana me procurou e perguntou quais os sinais de que uma mulher tinha engravidado. Contamos os dias de suas regras, e calculamos que deveriam ocorrer em uma semana. Ela já estava determinada a se sentir nauseada pelas manhãs e incapaz de comer a gordura da carne, mas eu lhe disse que ainda era cedo para saber.
Ela contava os dias. Às vezes, percebia-a imobilizada e sabia que estava se sugestionando a estar grávida.
Chegou o dia em que deveria sangrar, e, nessa noite, pôs a cabeça pela porta do meu quarto e disse em triunfo:
— Estou limpa. Quer dizer que vou ter um bebê?
— Um dia não quer dizer nada — repliquei com pouca amabilidade. — Tem de esperar, pelo menos, um mês.
Passou-se um dia, depois outro. Ela não falou a Henrique de suas esperanças, mas imaginei que ele sabia contar como qualquer outro homem. Os dois começaram a parecer um casal se equilibrando no ar, como dançarinos na corda bamba em uma feira. Ele não se atrevia a lhe perguntar, mas me procurou e perguntou se as regras de Ana tinham falhado.
— Somente por uma ou duas semanas, Majestade — repliquei respeitosamente.
— Devo mandar buscar uma parteira? — perguntou.
— Ainda não — aconselhei. — É melhor esperar o segundo mês.
Pareceu ansioso.
— Eu não deveria me deitar com ela.
— Talvez seja apenas muito delicado — aconselhei.
Franziu o cenho, preocupado, e achei que seu desejo do bebê lhe tiraria toda a alegria da relação sexual antes mesmo de se casarem.
Em janeiro, ficou claro que Ana não menstruava havia um mês e ela disse ao rei que achava que talvez tivesse concebido um filho seu.
Era comovente vê-lo. Tinha sido casado por tanto tempo com uma mulher estéril, que a ideia de uma esposa fértil lhe parecia uma terra arável úmida em um agosto seco. Juntos, ficavam muito quietos, estranhos um ao outro. Tinham discutido apaixonadamente, tinham sido amantes ardentes, e agora queriam ser amigos. Ana queria repousar, ficar tranquila, tinha horror de que algo perturbasse o processo que se desenvolvia em segredo no interior de seu corpo. Henrique queria estar sempre ao seu lado, como se a sua presença pudesse dar prosseguimento ao que tinha iniciado. Queria abraçá-la e caminhar ao seu lado, e poupá-la de qualquer esforço, por menor que fosse.
Ele tinha visto muita gravidez culminar com mulheres chorando e decepções. Tinha celebrado alguns partos e tido a alegria roubada por mortes inexplicáveis. Agora, achava que a fertilidade de Ana o absolvia completamente. Deus o amaldiçoara por ter se casado com a mulher de seu irmão e, agora, Deus retirava a maldição fazendo a sua futura mulher (a sua primeira mulher, na consciência adaptável de Henrique) tão fértil que só precisara de poucos meses deitando-se com ele para conceber. Tratava-a com uma imensa ternura e respeito, e apressou-se a aprovar uma nova lei, de modo que pudessem se casar legalmente na nova Igreja inglesa.
Aconteceu em sigilo quase absoluto em Whitehall, a casa de Ana em Londres, casa de seu falecido adversário, o cardeal. As duas testemunhas do rei foram seus amigos Henry Norris e Thomas Heneage, e William Brereton acompanhou-o. George e eu recebemos ordens de fazer com que parecesse que Ana e o rei estavam jantando em sua câmara privada. Achamos que a maneira mais agradável de cumprir a ordem seria encomendando um excelente jantar para quatro que fosse servido na própria câmara do rei. A corte, vendo pratos suntuosos irem e virem, concluiu que se tratava de um jantar privado para os Bolena e o rei. Foi uma vingança mesquinha para mim, me sentar na cadeira de Ana e comer de seu prato, enquanto ela se casava com o rei da Inglaterra, mas foi divertido. Para dizer a verdade, experimentei também seu robe de seda preta, enquanto ela estava longe, e George jurou que me caía muito bem.