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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A IRMANDADE DO ANEL / J. R. R. Tolkien
A IRMANDADE DO ANEL / J. R. R. Tolkien

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

                       A RESPEITO DE HOBBITS

Este livro relaciona-se muito com hobbits, e o leitor pode encontrar nas suas páginas muito do carácter e um pouco da história desses seres. Poderão encontrar-se mais informações na selecção do Livro Vermelho da Marca Ocidental, publicado com o título de O Hobbit. Essa estória foi extraída dos primeiros capítulos do Livro Vermelho, escrito pelo próprio Bilbo, o primeiro hobbit a tornar-se famoso no mundo em geral, e a que ele chamou Ida e Volta, pois contavam a história da sua viagem ao Leste e do seu regresso: uma aventura que posteriormente envolveu todos os hobbits nos grandes acontecimentos dessa era aqui relatados.

Muitos, no entanto, desejarão saber mais desse povo extraordinário, desde o princípio, enquanto outros talvez não possuam o livro primitivo. Para tais leitores se coligem aqui algumas notas dos pontos mais importantes da tradição dos Hobbits e se recorda resumidamente a primeira aventura.

Os Hobbits são um povo discreto, mas muito antigo, que já foi mais numeroso do que é hoje. Porque amam a paz, o sossego e a boa terra lavrada, o seu habitat preferido era uma região bem organizada e bem cultivada. Não compreendiam nem compreendem, não gostavam nem gostam, de engenhos mais complicados do que um fole de ferreiro, uma azenha ou um tear manual, embora fossem hábeis no manejo de ferramentas. Já nos tempos antigos eram, por norma, desconfiados da «Gente Grande», como nos chamam, e agora evitam-nos com pavor e estão a tornar-se difíceis de encontrar. São finos de ouvido e vivos de visão e, embora tenham propensão para a obesidade e não se apressem desnecessariamente, são não obstante ágeis e ligeiros de movimentos. Possuem desde o princípio a arte de desaparecer rápida e silenciosamente, quando se aproximam desajeitadamente indivíduos grandes, que não desejam encontrar, arte que aperfeiçoaram ao ponto de aos Homens parecer mágica. Mas, na realidade, os Hobbits nunca estudaram magia de qualquer espécie e a sua fugacidade deve-se exclusivamente a uma arte profissional que a hereditariedade e a prática, de par com uma estreita amizade com a terra, tornaram inimitável por raças maiores e mais canhestras.

É que são criaturas pequenas, mais pequenas do que os Anões: isto é, menos robustas e vigorosas, mesmo quando não são, realmente, muito mais baixas. A sua altura é variável e oscila entre 0,60 m e 1,20 m pelas nossas medidas. Agora é raro atingirem os 0,90 m, mas dizem que têm minguado e que antigamente eram mais altos. Segundo reza o Livro Vermelho, Bandobras Took (Touro Rugidor), filho de Isengrim II, media 1,35 m e era capaz de montar um cavalo. De acordo com todos os registos hobbitianos, só foi ultrapassado em altura por dois famosos indivíduos antigos; mas este livro trata desse curioso pormenor.

 

 

 

 

Quanto aos Hobbits do Shire, a que se referem estas narrativas, no tempo em que viviam em paz e prosperidade eram um povo alegre. Vestiam-se de cores vivas, com grande preferência pelo amarelo e pelo verde, mas raramente usavam sapatos, pois os seus pés tinham rijas solas coriáceas e apresentavam-se envoltos em cabelo basto e encaracolado, muito semelhante ao da cabeça, que era em geral castanho. Por isso, o único ofício pouco praticado entre eles era o de sapateiro. No entanto, tinham dedos compridos e hábeis e sabiam fazer muitas outras coisas úteis e graciosas. Regra geral, o seu rosto era mais bonacheirão do que bonito: largo, de olhos brilhantes, faces vermelhas e boca sempre pronta a rir, a comer e a beber. E riam, comiam e bebiam com frequência e vontade, pois gostavam de gracejos simples e seis refeições por dia (quando se podiam dar a esse luxo). Eram hospitaleiros e ficavam encantados com festas e presentes, que davam liberalmente e liberalmente aceitavam.

É evidente que, a despeito de posterior desavença, os Hobbits são aparentados connosco, muito mais chegados a nós do que os Elfos e até mesmo do que os Anões. Em tempos remotos, falavam as línguas dos Homens - à sua maneira, claro - e gostavam ou não gostavam das mesmas coisas que os Homens. Mas já não se pode descobrir qual é, exactamente, a nossa relação com eles. A origem dos Hobbits situa-se no Princípio dos Tempos, cuja memória se perdeu e esqueceu. Só os Elfos ainda conservam quaisquer anais desse tempo desaparecido, mas as suas tradições relacionam-se quase inteiramente com a sua própria história, na qual os homens aparecem raramente e os Hobbits nem sequer são mencionados. No entanto, é evidente que os Hobbits viveram sossegadamente na Terra Média muitos, muitos anos antes de outros povos terem consciência da sua existência. E, como o mundo está cheio de estranhas e incontáveis criaturas, aquela gente pequenina parecia ter muito pouca importância. Mas, no tempo de Bolbo e Frodo, seu herdeiro, tornaram-se de súbito, embora não por sua vontade, simultaneamente importantes e famosos e causaram perturbação nos conselhos dos Sábios e dos Grandes.

Esse tempo, a Terceira Era da Terra Média, já passou há muito e a forma de todas as terras modificou-se; mas as regiões onde os Hobbits então viviam eram sem dúvida as mesmas onde hoje ainda subsistem: o Noroeste do Velho Mundo, a leste do mar. Os Hobbits do tempo de Bilbo não conservavam qualquer conhecimento da terra da sua origem. O amor do saber (além da tradição genealógica) estava longe de ser geral, entre eles; mas ainda restavam alguns, nas antigas famílias, que estudavam os seus próprios livros e coligiam informações de tempos antigos e terras distantes por intermédio dos Elfos, dos Anões e dos Homens. Os seus próprios registos só começavam após a instalação no Shire e as suas lendas mais antigas dificilmente remontavam a épocas mais antigas do que a dos Tempos Errantes. Torna-se claro, no entanto, com base nessas lendas e na evidência das suas palavras e dos seus costumes peculiares, que, como muitos outros povos, os Hobbits tinham, no passado distante, progredido para ocidente. As suas lendas mais antigas parecem deixar entrever uma época em que habitavam nos vales altos de Anduin, entre a Grande Floresta Verde e as Montanhas Nebulosas. Já não se sabe ao certo por que motivo empreenderam, mais tarde, a difícil e perigosa travessia das montanhas, para Eriador. Os seus anais falam da multiplicação dos Homens na Terra e de uma sombra que se abateu na floresta e a escureceu a tal ponto que passou a chamar-se Floresta Tenebrosa.

Antes da travessia das montanhas, os Hobbits já se tinham dividido em três raças um tanto ou quanto diferentes: Harfoots, Stoors e Fallohides. Os Harfoots eram mais escuros de pele, mais pequenos e baixos, glabros e de pés nus; tinham mãos e pés perfeitos e ágeis e preferiam as terras altas e as encostas dos montes. Os Stoors eram mais entroncados, de constituição mais forte, tinham pés e mãos maiores e preferiam terras planas e margens de rios. Os Fallohides eram mais claros de pele e também de cabelo e mais altos e esbeltos do que os outros; amavam árvores e florestas.

Os Harfoots relacionaram-se muito com anões, em tempos antigos, e viveram longo tempo no sopé das montanhas. Foram os primeiros a partir para ocidente e erraram por Eriador até ao Cume do Tempo, enquanto os outros permaneciam na Terra Erma. Constituíam a variedade de hobbit mais normal e representativa e, de longe, a mais numerosa. Eram os mais inclinados para se fixarem num lugar e foram os que durante mais tempo conservaram o hábito ancestral de viver em túneis e buracos.

Os Stoors demoraram-se mais tempo nas margens do Grande Rio Anduin e receavam menos os Homens. Demandaram o Ocidente depois dos Harfoots e acompanharam o curso do Águas Barulhentas para sul, onde muitos deles permaneceram longo tempo entre Tharbad e as margens da Terra das Dunas, antes de progredirem de novo para norte.

Os Fallohides, de todos os menos numerosos, eram um ramo nórdico. Mais cordiais com os Elfos do que os outros hobbits, tinham mais habilidade para línguas e canções do que para trabalhos manuais e preferiam de longa data a caça à agricultura. Atravessaram as montanhas a norte de Rivendell e desceram o rio Hoarwell. Em Eriador não tardaram a reunir-se às outras raças que os tinham precedido, mas, em virtude de serem um tanto ou quanto mais temerários e arrojados, encontravam-se com frequência à frente de clãs de Harfoots e Stoors, como seus chefes ou comandantes. Até no tempo de Bilbo ainda se notava entre as famílias importantes, como os Tooks e os Senhores da Bucklândia, a forte ascendência fallohídica.

Nas terras ocidentais de Eriador, entre as Montanhas Nebulosas e as Montanhas da Meia-Lua, os Hobbits encontraram tantos homens como elfos. Na realidade, ainda lá habitava um resto dos Dúnedains, os reis dos Homens que tinham vindo, por mar, da Ocidentalidade; mas estavam a extinguir-se rapidamente e as terras do Reino do Norte estavam a tornar-se incultas e ermas. Havia espaço, e de sobra, para os que chegavam, e os Hobbits não tardaram a instalar-se em comunidades organizadas. Na sua maioria, os seus povoados primitivos tinham desaparecido e sido esquecidos havia muito, no tempo de Bilbo. Mas um dos primeiros a tornar-se importante ainda subsistia, embora reduzido em tamanho: ficava em Bree e na Chetwood circundante, cerca de 65 km a leste do Shire.

Foi, indubitavelmente, nos primeiros tempos que os Hobbits aprenderam as suas letras e começaram a escrever à maneira dos Dúnedains, que por sua vez tinham aprendido a arte muito antes, com os Elfos. Nesse tempo também esqueceram as línguas que porventura tinham usado antes e passaram a falar só a Língua Comum, o Westron, como se chamava, que era corrente em todas as terra dos reis, de Arnor a Gondor, e em todas as costas do mar, de Belfalas a Lune. No entanto, conservaram algumas palavras suas, assim como os seus nomes dos meses e dos dias e uma grande quantidade de nomes próprios do passado.

Mais ou menos por essa altura, a lenda ligada aos Hobbits torna-se pela primeira vez história, com a contagem dos anos. Pois foi no ano 1601 da Terceira Era que os irmãos fallohides Marcho e Blanco partiram de Bree e, depois de obterem a devida permissão do grande rei de Fornost1[1 Segundo os anais de Gondor, tratava-se de Argeleb 11, 20.º da linhagem nórdica, que terminou com Arvedui trezentos anos depois.], atravessaram o acastanhado rio Baranduin com um grande acompanhamento de hobbits. Atravessaram pela Ponte de Arcos de Pedra, que tinha sido construída no tempo do domínio do Reino do Norte, e ocuparam, para nela habitarem, toda a terra que se seguia, entre o rio e as Colinas Distantes. A única coisa que se lhes exigia era que mantivessem em bom estado a Ponte Grande e todas as outras pontes e estradas, facilitassem o caminho aos mensageiros do rei e o reconhecessem.

Assim começou o «Calendário do Shire», pois o ano da travessia do Brandevinho (como os Hobbits passaram a chamar ao Branduin) tornou-se o ano I do Shire, e todas as datas posteriores passaram a ser determinadas a partir daí2 [2 Assim, os anos da Terceira Era do calendário dos Elfos e dos Dúnedains calcula-se acrescentando mil e seiscentos anos às datas do calendário shirense.]. Os Hobbits Ocidentais apaixonaram-se, acto contínuo, pela sua nova terra e por lá ficaram, e não tardaram a sair, uma vez mais, da história dos Homens e dos Elfos. Enquanto houve um rei, foram nominalmente seus súbditos; mas, na realidade, eram dirigidos pelos seus próprios chefes e não se metiam absolutamente nada nos assuntos do mundo exterior. Até à última batalha travada em Fornost com o Senhor dos Feiticeiros de Angmar, enviaram alguns arqueiros em auxílio do soberano, ou pelos menos assim o alegaram, embora nenhuma história dos Homens registe o facto. Mas o Reino do Norte acabou nessa guerra, e depois os Hobbits ocuparam a terra como sua e escolheram entre os seus próprios chefes um barão para assumir a autoridade do rei desaparecido. Viveram durante mil anos pouco atormentados por guerras e prosperaram e multiplicaram-se após a Peste Negra (ano 37 do C. do S.), até à tragédia do Longo Inverno e da fome que se lhe seguiu. Pereceram então muito milhares, mas os Tempos de Privação (1158-60) já tinham passado havia muito à data desta narrativa, e os Hobbits estavam de novo habituados à abundância. A terra era rica e generosa e, embora estivesse havia muito maninha quando a tinham ocupado, antes fora bem amanhada e o rei tivera lá, em tempos idos, muitas quintas, trigais, vinhedos e florestas.

Ocupava uma extensão de 40 léguas das Colinas Distantes à Ponte do Brandevinho e de 50 léguas dos urzais do lado norte aos pântanos do lado sul. Os Hobbits chamaram-lhe o Shire, como sendo a região em que se exercia a autoridade do seu barão e uma zona de vida bem organizada. E aí, nesse aprazível canto do mundo, dedicaram-se à bem organizada tarefa de viver e preocuparam-se cada vez menos com o mundo exterior, onde negras coisas se movimentavam, até se convencerem de que a paz e a abundância eram norma da Terra Média e o direito de toda a gente sensata. Esqueceram, ou ignoraram, o pouco que alguma vez tinham sabido dos Guardiões e os esforços dos que tornavam possível a longa paz do Shire. Estavam, de facto, protegidos, mas havia muito que tinham deixado de se lembrar disso.

Nunca, em período algum, os hobbits de qualquer espécie tinham sido aguerridos ou lutado entre si. Nos tempos antigos, tinham, evidentemente, sido obrigados a lutar para subsistirem num mundo difícil; mas no tempo de Bilbo isso constituía história muito antiga. A última batalha, travada antes de esta narrativa começar, e na realidade a única jamais travada adentro das fronteiras do Shire, era anterior à memória dos vivos: tinha sido a Batalha dos Campos Verdes, no ano 1147 do C. do S., na qual Bandobras Took pusera em debandada uma invasão de orcs. Até o clima se tornara mais ameno e os lobos, que outrora tinham descido, esfaimados, do Norte, nos agrestes Invernos brancos, não passavam já de motivo de histórias contadas pelos avós. Por isso, embora existissem ainda algumas armas no Shire, eram utilizadas na sua maioria como trofeús, penduradas por cima das chaminés ou nas paredes ou então reunidas no museu de Michel Delving. Chamava-se ao museu a «Casa Mathom», pois os Hobbits davam o nome de mathom a todas as coisas para as quais não tinham utilidade imediata mas de que não desejavam desfazer-se. As suas habitações tinham tendência para ficar atravancadas de mathoms e muitos dos presentes que passavam de mão em mão eram desse género.

Apesar de tudo, a paz e o sossego tinham permitido àquele povo continuar a ser curiosamente resistente. Se as coisas chegassem a tal ponto, verificar-se-ia que eram difíceis de atemorizar ou matar. Talvez fossem tão irredutivelmente amigos de coisas boas porque podiam, quando necessário, passar sem elas e sobreviver aos maus tratos do desgosto, dos inimigos ou do tempo de uma maneira que surpreendia quantos os não conheciam bem e não viam mais do que os seus ventres e as suas caras de bem alimentados. Embora dificilmente brigassem e não matassem nenhum ser vivo por desporto, eram denonados, quando em apuros, e, se a necessidade a tal obrigava, ainda sabiam manejar as armas. Disparavam bem com o arco, pois possuíam uma visão aguda e tinham boa pontaria. Mas isso não acontecia só com arcos e flechas: se um hobbit se baixava para apanhar uma pedra, o melhor que o visado tinha a fazer era ocultar-se rapidamente, como muito bem sabiam, por experiência própria, todos os animais que entravam onde não deviam.

Todos os hobbits tinham, primitivamente, vivido em buracos no solo - ou assim julgavam - e era em tais abrigos que ainda se sentiam mais à vontade; mas, com o correr do tempo, tinham sido obrigados a adoptar outras formas de residência. Na realidade, no Shire contemporâneo de Bilbo, regra geral eram só os hobbits mais ricos ou mais pobres que respeitavam o antigo costume. Os mais pobres continuavam a viver em tocas do tipo mais primitivo, simples buracos, na verdade, apenas com uma janela ou até sem nenhuma. Quanto aos abastados, esses construíam versões mais luxuosas das simples escavações de antanho. Mas não era fácil encontrar locais adequados para esses túneis grandes e ramificados (smials, como lhes chamavam). Por isso, nas planícies e nas áreas baixas, os Hobbits começaram a construir acima do solo, à medida que se foram

multiplicando. Efectivamente, até nas regiões montanhosas e nas aldeias mais antigas, como Hobbiton ou Tuckborough, ou na principal cidade do Shire - Michel Delving, nas Colinas Brancas -, havia agora muitas casa de madeira, tijolo ou pedra. Estas eram particularmente preferidas por moleiros, ferreiros, cordoeiros e carpinteiros, pois era hábito antigo dos Hobbits construir barracões e oficinas, mesmo quando tinham buracos para residir.

Dizia-se que o hábito de construir casas de quintal e celeiros tivera origem entre os habitantes do Paul, junto do Brandevinho. Os hobbits dessa região, o Farthing Oriental, eram indivíduos corpulentos e de pernas pesadas, que usavam botas de anão quando o solo estava lamacento. Sabia-se que a maior parte do seu sangue era stoor, como aliás o comprovava a penugem que muitos deixavam crescer no queixo. Nenhum harfoot ou fallohide tinha o mínimo vestígio de barba. Na realidade, os do Paul - e da Bucklândia, a leste do rio, que posteriormente ocuparam - chegaram na sua maioria ao Shire vindos do Sul distante e ainda conservavam muitos nomes peculiares e muitas palavras estranhas que não se encontravam em nenhum outro ponto do Shire.

É provável que a arte de construir, como aliás muitas outras, tenha sido aprendida com os Dúnedains. Mas também é possível que os Hobbits a tenham aprendido directamente com os Elfos, professores dos Homens nos seus primórdios: os elfos da Alta Estirpe ainda não tinham renunciado à Terra Média, e, nesse tempo, continuavam a habitar nos Portos Cinzentos, para ocidente, e noutros lugares ao alcance do Shire. Nos Montes das Torres, para lá dos pântanos ocidentais, ainda se viam três torres élficas de tempos imemoriais. Brilhavam muito ao longe, ao luar, e a mais alta era a que ficava mais distante, isolada no cume de um monte verde. Os hobbits do Farthing Ocidental diziam que se podia ver o mar do alto dessa torre; mas, que se soubesse, nunca nenhum hobbit a escalara. Aliás, poucos hobbits tinham jamais visto o mar ou nele navegado, e menos ainda tinham regressado para contar a aventura. Na sua maioria, os Hobbits consideravam até mesmo os rios e os pequenos barcos com profunda apreensão e só um número muito reduzido sabia nadar. À medida que a idade do Shire foi aumentando, foram falando cada vez menos com os Elfos, ganharam-lhes medo e tornaram-se desconfiados daqueles que com eles lidavam - e o mar tornou-se uma palavra de medo entre eles, um símbolo de morte, e aprenderam a voltar o rosto aos montes ocidentais.

A arte da construção poderá ter sido aprendida com os Elfos ou com os Homens, mas os Hobbits exerciam-na à sua maneira. Não tinham simpatia por torres; as suas casas eram em geral compridas, baixas e confortáveis. As de tipo mais antigo não passavam, até, de imitações construídas de smials, com telhado de erva seca, palha ou placas de turfa e com paredes um tanto ou quanto abauladas. Essa fase pertencia, no entanto, aos primeiros tempos do Shire, e a construção hobbitiana modificara-se havia muito, aperfeiçoada com engenhos aprendidos por intermédio dos Anões ou descobertos por eles próprios. A característica principal subsistente da arquitectura hobbitiana era uma preferência por janelas redondas e até mesmo por portas redondas.

As casas e os buracos dos hobbits do Shire eram com frequência grandes e habitados por grandes famílias. (Bilbo e Frodo Baggins eram, como solteiros, um caso muito excepcional, como aliás lhes acontecia em muitos outros aspectos, como, por exemplo, a sua amizade com os Elfos.) Às vezes, como no caso dos Tooks dos «Grandes Smials» ou dos Brandybucks da «Mansão Brandy», muitas gerações de parentes viviam juntas, em (relativa) paz, numa residência ancestral de múltiplas ramificações. Aliás, todos os hobbits eram tribalistas e tinham grande cuidado em estar ao par do seu parentesco. Elaboravam grandes e complicadas árvores genealógicas com inúmeros ramos. Nas relações com os Hobbits é importante ter em mente quem é parente de quem e em que grau. Seria impossível incluir neste livro uma árvore genealógica que incluísse sequer os membros mais importantes destas narrativas. As árvores genealógicas do fim do Livro Vermelho da Marca Ocidental constituem por si só um pequeno livro, e só os Hobbits as não acham tremendamente enfadonhas. Os Hobbits encantavam-se com tais coisas, se eram exactas: adoravam ter livros cheios de coisas que já sabiam, ali bem explicadinhas e sem quaisquer contradições.

 

A RESPEITO DE ERVA-DE-CACHIMBO

Há outra coisa relacionada com os antigos hobbits que deve ser mencionada, pois trata-se de um hábito surpreendente: absorviam ou inalavam, através de cachimbos de barro ou madeira, o fumo das folhas a arder de uma planta a que chamavam erva-de-cachimbo ou folha, provavelmente uma variedade de Nicotiana. Uma grande dose de mistério envolve a origem deste costume peculiar - ou «arte», como os Hobbits preferiam chamar-lhe. Tudo quanto se conseguiu descobrir a tal respeito, na antiguidade, foi compilado por Meriadoc Brandybuck (mais tarde Senhor da Bucklândia), e, como ele e o tabaco do Farthing Meridional representam um papel na narrativa que se segue, devem citar-se as suas observações na introdução da Tradição Herbórea do Shire, da sua autoria:

Esta [diz] é a única arte que podemos certamente reivindicar como nossa própria invenção. Desconhece-se quando os Hobbits começaram a fumar; todas as lendas e histórias de família se lhe referem como coisa natural e habitual. Há séculos e séculos que a gente do Shire fuma várias plantas, umas mais amargas e outras mais suaves. Mas todos os relatos são unânimes num pormenor: que Tobold Corneteiro, de Longbottom, no Farthing Meridional, foi o primeiro a cultivar a erva-de-cachimbo no seu jardim, no tempo de Isengrim II, por volta do ano 1070 do calendário do Shire. A melhor qualidade de cultivo caseiro ainda provém desse distrito, especialmente as variedades agora conhecidas como Folha Longbottom, Velho Toby e Estrela do Sul.

Não existe qualquer registo do modo como o velho Toby descobriu a planta, pois ele recusou-se a dizê-lo até ao dia da sua morte. Era muito entendido em plantas, mas pouco dado a viagens. Consta que na sua juventude ia com frequência a Bree, mas por certo nunca se afastou do Shire mais do que isso. Assim,

é muito possível que tenha tomado conhecimento da planta em Bree, onde agora, pelo menos, ela se dá bem nas encostas do lado sul do monte. Os hobbits breenses alegam terem sido os primeiros verdadeiros fumadores de erva-de-cachimbo. É claro que eles alegam ter feito tudo antes do povo do Shire, a quem se referem como «colonizadores», mas neste caso penso que a sua reivindicação é provavelmente verdadeira. E, certamente, foi a partir de Bree que a arte de fumar a erva genuína se propagou em séculos recentes aos Anões e outras gentes - caminhantes, feiticeiros ou errantes - que passavam, num sentido ou noutro, por aquela antiga encruzilhada. O ponto de nascimento e centro de tal arte deve, pois, encontrar-se na velha estalagem de Bree, o Garrano Empinado, pertencente à família Carrapiço desde tempos imemoriais.

Não obstante, observações que fiz nas minhas muitas viagens ao Sul convenceram-me de que a planta propriamente dita não é oriunda do nosso lado do mundo, e veio para norte do Anduin inferior, para onde, suspeito, foi inicialmente levada, por mar, pelos homens da Ocidentalidade. Cresce abundantemente em Gondor e é lá mais suculenta e maior do que no Norte, onde nunca se encontra em estado selvagem e só floresce em lugares quentes e abrigados, como Longbottom. Os homens de Gondor chamam-lhe galenas doce e só a apreciam pela fragrância das suas flores. Dessa terra deve ter sido levada pelo Caminho Verde acima, durante os longos séculos decorridos entre a chegada de Elendil e o nosso próprio tempo. Mas até mesmo os Dúnedains de Gondor nos concedem o crédito de termos sido nós, os Hobbits, os primeiros a metê-la em cachimbos. Nem sequer os Feiticeiros pensaram nisso primeiro do que nós - embora certo feiticeiro que conheci se dedicasse à arte havia muito tempo e se tenha tornado tão perito nela como em todas as outras coisas que decidiu fazer.

 

O ORDENAMENTO DO SHIRE

O Shire foi dividido em quatro partes, os Farthings já referidos: Setentrional, Meridional, Oriental e Ocidental. Estes, por sua vez, foram subdivididos em certo número de tribos que ainda conservam os nomes de algumas das antigas famílias principais, embora, no tempo em que esta narrativa se situa, esses nomes já não se encontrassem somente nas terras respectivas. Quase todos os Tooks viviam ainda na Tooklândia, mas não acontecia o mesmo com muitas outras famílias, como por exemplo os Bagginses ou os Boffins. Além dos Farthings, havia as Marcas Oriental e Ocidental: a Bucklândia (I108) e a Marca Ocidental, acrescentada ao Shire em 1462 do C. do S.

Nesse tempo, o Shire praticamente não tinha «governo» nenhum.

Na sua maioria, as famílias tratavam dos seus próprios assuntos. Produzir alimentos e comê-los ocupava-lhes a maior parte do tempo. Noutros aspectos, eram, geralmente, generosas e sem ganância, conformadas e moderadas, de tal sorte que as propriedades, as quintas, as oficinas e os pequenos estabelecimentos tendiam a permanecer imutáveis durante gerações.

Existia, evidentemente, a antiga tradição relativa ao grande rei de Fornost - ou Norbury, como lhe chamavam -, para norte do Shire. Mas já não havia rei nenhum ia quase para mil anos, e até as ruínas da Norbury Real estavam cobertas de vegetação. No entanto, os Hobbits ainda diziam, ao referir-se a gente selvagem e coisas más (como os «trolls»), que não davam ouvidos ao rei, pois eles atribuíam ao antigo soberano todas as suas leis essenciais - e, geralmente, respeitavam-nas de sua livre vontade, visto serem As Normas (segundo diziam) simultaneamente antigas e justas.

É verdade que a família Took era proeminente havia muito tempo: o cargo de Barão passara para ela (dos Oldbucks) alguns séculos atrás e o chefe Took usara sempre esse título, desde então. O Barão era o presidente do foro do Shire e o capitão das tropas do Exército Nacional, mas, como isso eram coisas que só existiam em épocas de emergência, que já não ocorriam, o baronato passara a ser apenas uma dignidade nominal. A família Took ainda merecia, sem dúvida, um respeito especial, pois continuava a ser numerosa e riquíssima e capaz de engendrar em todas as gerações indivíduos fortes, de hábitos peculiares e até mesmo temperamento aventureiro. Estas últimas qualidades, porém, eram agora mais toleradas (entre os ricos) do que de modo geral aprovadas. Subsistia, no entanto, o costume de chamar ao chefe da família «O Took» e de acrescentar ao seu nome, se necessário, um número: como Isengrim II, por exemplo.

O único funcionário oficial autêntico do Shire, na época, era o prefeito de Michel Delving (ou do Shire), eleito de sete em sete anos na Feira Franca das Colinas Brancas, no Lithe, isto é, em fins de Junho. O seu único dever, como prefeito, quase se resumia a presidir a banquetes oferecidos nos feriados do Shire, que eram frequentes. Mas os cargos de chefe dos Correios e da Polícia estavam adstritos à Prefeitura, de modo que ele dirigia tanto o Serviço de Mensageiros como a Vigilância. Estes eram os únicos serviços do Shire - e os Mensageiros eram os mais numerosos e mais atarefados dos dois. Nem todos os hobbits eram letrados, longe disso, mas os que eram escreviam constantemente a todos os seus amigos (e a um número escolhido de parentes) que viviam a uma distância que não pudesse ser percorrida a pé, numa tarde.

Shirriffs era o nome que os Hobbits davam à sua polícia - ou à organização mais parecida com uma polícia que possuíam. Claro que não usavam uniforme (essas coisas eram completamente desconhecidas), e a única coisa que os distinguia era uma pena no boné. Na prática, eram mais guardas de quintas do que polícias, pois preocupavam-se mais com o descaminho de animais do que de pessoas. Em todo o Shire existiam apenas doze: três em cada Farthing, para Trabalho Interno. Um corpo mais numeroso, mas que variava consoante as necessidades, tinha a seu cargo a «ronda das fronteiras» e evitar que forasteiros de qualquer espécie, grandes ou pequenos, provocassem distúrbios.

No tempo em que esta narrativa começa, os fronteiriços, como lhes chamavam, tinham sido muito aumentados. Havia muitas notícias e muitas queixas de terem sido vistas pessoas e criaturas estranhas a rondar nas proximidades das fronteiras e no interior delas, primeiro indício de que nem tudo estava inteiramente como deveria estar e sempre estivera, excepto em contos e lendas antigas. Poucos ligavam importância ao sinal, e nem mesmo Bilbo tinha ainda qualquer ideia do que ele prenunciava. Tinham passado sessenta anos desde que partira para a sua memorável viagem, e era velho, até mesmo para os padrões etários dos Hobbits, que atingiam frequentemente os 100 anos. Tornava-se evidente que muito restava ainda da considerável riqueza que ele trouxera da viagem. Quanto, era no entanto coisa que ele não revelava a ninguém, nem mesmo a Frodo, o seu «sobrinho» favorito. E continuava a guardar segredo do anel que achara.

 

DO ACHADO DO ANEL

Como se conta em O Hobbit, bateu um dia à porta de Bilbo o Grande Feiticeiro Gandalf, o Cinzento, e treze anões a acompanhá-lo: nada menos do que Thorin Escudo-de-Carvalho, descendente de reis, e os seus doze companheiros de exílio. Com eles partiu Bilbo - para seu próprio grande e duradouro espanto - numa manhã de Abril, corria então o ano de 1341 do C. do S., em busca do grande tesouro dos reis dos Anões escondido sob a Montanha, abaixo de Erebor, em Dale, muito para leste. A busca foi coroada de êxito e o dragão que guardava o tesouro destruído. No entanto, e apesar de, antes de tudo ser vencido, ter sido travada a batalha dos Cinco Exércitos, Thorin ter sido morto e terem sido cometidas muitas proezas de renome, o assunto dificilmente teria interessado à história posterior, ou merecido mais do que uma anotação nos anais da Terceira Era, não fora um «acidente» de percurso. O grupo foi atacado por orcs num desfiladeiro alto das Montanhas Nebulosas, ao seguir para a Terra Erma, e sucedeu que Bilbo se perdeu durante algum tempo nas negras minas dos Orcs, profundamente abertas sob as montanhas, e, ao tactear em vão no escuro, tocou num anel que se encontrava caído no solo de um túnel e meteu-o na algibeira. Tudo pareceu então um simples achado.

Ao tentar descobrir a saída, Bilbo desceu às raízes das montanhas, até não poder avançar mais: ao fundo do túnel havia um lago frio, longe da luz, e numa ilha de rocha existente no meio da água vivia Gollum. Era uma pequena criatura horrenda, que conduzia uma barquito a remar com os pés grandes e espalmados, tinha luminosos olhos claros e apanhava, com os dedos compridos, peixes cegos que comia crus. Aliás, comeria qualquer ser vivo, até mesmo um orc, se conseguisse apanhá-lo e estrangulá-lo sem luta. Possuía um tesouro secreto que fora parar-lhe às mãos havia longos séculos, quando ainda vivia na luz: um anel de ouro que tornava quem o usasse invisível. Era a única coisa que amava, o seu «precioso», e Gollum falava-lhe, mesmo quando não estava com ele. Tinha-o escondido, em segurança, num buraco da sua ilha, a não ser quando andava à caça ou a espiar os orcs das minas.

Talvez tivesse atacado Bilbo imediatamente, se o anel estivesse consigo quando se encontraram; mas não estava e o hobbit empunhava uma faca élfica, que lhe servia de espada. Por isso, para ganhar tempo, Gollum desafiou Bilbo para o jogo das adivinhas: se ele perguntasse uma adivinha que Bilbo não soubesse decifrar, matá-lo-ia e comê-lo-ia; mas se o Bilbo o vencesse, então ele faria o que Bilbo pretendia, isto é, conduzi-lo a uma saída dos túneis.

Como estava perdido nas trevas, sem esperança, e não podia avançar nem recuar, Bilbo aceitou o desafio, e perguntaram um ao outro muitas adivinhas. No fim, Bilbo ganhou o jogo, mais por sorte (segundo pareceu) do que por esperteza, pois, ao esgotar todas as adivinhas, perguntou, quando a sua mão tocou no anel que achara e de que se esquecera: Que tenho na algibeira? Gollum não lhe soube responder, apesar de exigir autorização para fazer três tentativas.

É certo que as autoridades diferem quanto a se esta última adivinha seria uma simples pergunta e não uma adivinha, segundo as regras rigorosas do jogo. No entanto, todas concordam em que, depois de a aceitar e tentar adivinhar a resposta, Gollum ficou obrigado a cumprir a sua promessa. E Bilbo insistiu com ele para que a cumprisse, pois acudiu-lhe ao pensamento que a viscosa criatura poderia ser falsa, apesar de tais promessas serem consideradas sagradas e todos, tirando os seres mais perversos, recearam quebrá-las. Mas, depois de passar séculos nas trevas, o coração de Gollum estava preto e abrigava a perfídia. Esgueirou-se e regressou à sua ilha - da qual Bilbo não sabia nada -, que não ficava longe, na água escura. Ali, pensou, estava o seu anel. Sentia-se esfaimado e furioso e pensou que, quando tivesse consigo o seu «precioso», não teria medo de arma nenhuma.

Mas o anel não estava na ilha. Perdera-o. Desaparecera. O guincho que soltou provocou um calafrio pela espinha de Bilbo abaixo, embora este ainda não compreendesse o que acontecera. Mas Gollum encontrara finalmente, ainda que demasiado tarde, a solução da adivinha. Que tem ele nas algibeiras? - gritou. A luz dos seus olhos parecia uma chama verde, quando retrocedeu velozmente para assassinar o hobbit e recuperar o seu «precioso». Bilbo apercebeu-se no último instante do perigo que corria, e fugiu às cegas pelo corredor que seguia na direcção oposta à da água. E mais uma vez a sorte o salvou. Enquanto corria, meteu a mão na algibeira, e o anel introduziu-se-lhe sorrateiramente no dedo. Foi assim que Gollum passou por ele sem o ver e foi guardar a saída, com receio de que o «ladrão» se escapasse. Cautelosamente, Bilbo seguiu-o, a ouvi-lo praguejar e falar sozinho a respeito do seu «precioso». Graças a essa conversa, Bilbo acabou por compreender a verdade, e recuperou a esperança, nas trevas: ele próprio encontrara o maravilhoso anel e, com ele, uma probabilidade de escapar aos Orcs e a Gollum.

Por fim, chegaram a uma paragem diante de uma abertura invisível, que levava às portas inferiores das minas, do lado oriental das montanhas. Gollum acocorou-se aí, de tocaia, a farejar e a escutar, e Bilbo sentiu-se tentado a matá-lo com a sua espada. Mas a compaixão deteve-o, e, embora conservasse o anel, no qual residia a sua única esperança, não o utilizou para matar mais facilmente a desgraçada criatura, em desvantagem. Por fim, encheu-se de coragem, saltou por cima de Gollum, nas trevas, e fugiu pelo corredor abaixo, perseguido pelos gritos de ódio e desespero do seu inimigo: Ladrão, ladrão! Baggins! Odiamos-te para sempre!

Curiosamente, não foi esta a história que Bilbo começou por contar aos seus companheiros. O que lhes contou foi que Gollum prometera dar-lhe um presente, se ganhasse o jogo; mas, quando Gollum fora buscá-lo à sua ilha, descobrira que o tesouro - um anel mágico que lhe tinham dado havia muito tempo, no seu aniversário - desaparecera. Bilbo calculara que se tratava do mesmo anel por ele encontrado e que, como ganhara o jogo, já lhe pertencia por direito. Mas, como se encontrava em apuros, não dissera nada a esse respeito e obrigara Gollum a indicar-lhe a saída, como prémio, em substituição do presente. Foi esta mesma versão que Bilbo registou nas suas memórias, e parece que nunca a modificou, pessoalmente, nem mesmo depois de se ter reunido o Conselho de Elrond. Evidentemente que continuou a aparecer no original do Livro Vermelho, assim como em várias cópias e extractos do mesmo. Mas muitas cópias contêm o relato verdadeiro (como alternativa), proveniente sem dúvida de apontamentos de Frodo ou Samwise, pois ambos vieram a saber a verdade, embora nenhum deles pareça ter querido apagar fosse o que fosse que tivesse sido escrito pela própria mão do velho hobbit.

Gandalf, porém, desconfiou da primeira história de Bilbo assim que a ouviu, e continuou a sentir grande curiosidade a respeito do anel. Com o tempo, e à custa de muitas perguntas que, temporariamente, perturbaram a sua amizade, o feiticeiro, que parecia considerar a verdade importante, conseguiu arrancar a história autêntica a Bilbo. Embora o não dissesse a Bilbo, também considerou importante, e perturbador, verificar que o bom hobbit não contara a verdade desde o princípio, o que era absolutamente contrário aos seus hábitos. Apesar de tudo, a ideia do «presente» não era uma mera invenção hobbitiana. Como o próprio Bilbo confessou, tinha-lhe sido sugerida pelas palavras que ouvira a Gollum, pois este chamara de facto ao anel, repetidamente, o seu «presente de aniversário». Gandalf também considerou esse pormenor estranho e suspeito. Mas, como se verá por este livro, só passados muitos, muitos anos, descobriu a verdade.

Pouco mais se torna necessário dizer aqui das posteriores aventuras de Bilbo. Com a ajuda do anel, escapou aos orcs que guardavam as portas e reuniu-se aos seus companheiros. Utilizou muitas vezes o anel na sua busca, principalmente para ajudar os seus amigos, mas enquanto pôde não lhes revelou o segredo. Depois de regressar a casa, nunca mais falou dele a ninguém, a não ser a Gandalf e a Frodo, e mais ninguém do Shire sabia da sua existência - ou, pelo menos, assim ele supunha. Só a Frodo mostrou a narrativa da sua viagem, que estava a escrever.

Pendurou a espada - Ferrão - por cima da chaminé e, quanto à sua maravilhosa cota de malha, presente dos anões do tesouro do dragão, emprestou-a a um museu - na realidade, à Casa Mathom de Michel Delving. Guardou, porém, numa gaveta, no Fundo do Saco, a velha capa e o capuz que utilizara nas suas viagens; o anel, preso por fina corrente, permaneceu na sua algibeira.

Regressou a casa, no Fundo do Saco, em 22 de Junho, no seu 52.º ano de vida (1342 do C. do S.), e no Shire não aconteceu nada de muito notável até o Sr. Baggins iniciar os preparativos para festejar o seu 111.º aniversário (1401 do C. do S.). É nessa altura que esta história começa.

 

NOTA SOBRE OS ANAIS DO SHIRE

No fim da Terceira Era, o papel desempenhado pelos Hobbits nos grandes acontecimentos que conduziram à inclusão do Shire no Reino Unificado despertou neles um interesse mais disseminado pela sua própria história, e muitas das suas tradições, até então principalmente orais, foram coligidas e registadas por escrito. As maiores famílias preocuparam-se também com os acontecimentos do reino em geral e muitos dos seus membros estudaram as suas antigas histórias e lendas. Em fins do século I da Quarta Era já existiam no Shire várias bibliotecas onde se encontravam muitos livros e registos históricos.

As maiores colecções do género encontravam-se provavelmente nas Torres Inferiores, nos Grandes Smials e no Município de Brandy. Esta narrativa do fim da Terceira Era baseia-se principalmente no Livro Vermelho da Marca Ocidental. Essa importantíssima fonte da história da Guerra do Anel foi assim chamada por ter sido guardada durante muito tempo nas Torres Inferiores, residência dos Lourinhos, Guardiões da Marca Ocidental3 [3 Ver apêndice B: anais 1451, 1462 e 1482 e nota do fim do apêndice C. - Cf. vol. III - «0 Regresso do Rei».]. Foi, primitivamente, o diário particular de Bilbo, que ele levou consigo para Rivendell. Frodo levou-o de novo para o Shire, juntamente com muitas folhas soltas de apontamentos, e em 1420-1 do C. do S. preencheu quase todas as páginas com o seu relato da guerra. Mas, reunidos a ele e conservados com ele, provavelmente numa só caixa vermelha, estavam os três grandes volumes, encadernados em couro vermelho, que Bilbo lhe deu como presente de despedida. A esses quatro volumes juntou-se, na Marca Ocidental, um quinto contendo comentários, genealogias e vário outro material respeitante aos hobbits, membros da Irmandade.

O Livro Vermelho original não foi preservado, mas fizeram-se muitas cópias, especialmente do primeiro volume, para uso dos descendentes dos filhos do Mestre Samwise. A cópia mais importante, contudo, conta uma história diferente. Foi conservada nos Grandes Smials, mas escrita em Gondor, talvez a pedido do bisneto de Peregrino, e completada em 1592 do C. do S. (ano 172 da IV era). o seu escriba meridional acrescentou a seguinte nota: «Findegil, Escriba do Rei, concluiu esta obra no ano 172 da IV era. É uma cópia exacta, em todos os pormenores, do Livro do Barão existente em Minas Tirith. Esse livro, era uma cópia do Livro Vermelho de Periannath, feita a pedido do Rei Elessar, e foi-lhe levada pelo Barão Peregrino quando ele se retirou para Gondor, no ano 64 da IV era.»

O Livro do Barão foi, portanto, a primeira cópia que se fez do Livro Vermelho, e continha muitas coisas que mais tarde foram omitidas ou se perderam. Em Minas Tirith foram-lhe feitas muitas anotações e correcções, sobretudo de nomes, palavras e citações nas línguas élficas. Foi-lhe também acrescentada uma versão abreviada das partes de A História de Aragorn e Arwen, que são independentes da narrativa da guerra. Diz-se que a história completa foi escrita por Barahir, neto do camareiro Faramir, algum tempo depois do passamento do Rei. Mas a importância principal da cópia de Findegil reside no facto de só ela conter o conjunto das Traduções do Élfico, de Bilbo. Verificou-se serem esses três volumes uma obra de grande competência e saber em que, entre 1403 e 1418, ele utilizou todas as fontes ao seu alcance em Rivendell tanto vivas como escritas. Mas, como foram pouco utilizadas por Frodo, em virtude de respeitarem quase inteiramente aos Tempos Antigos, não volta a aludir-se a eles aqui.

Como Meriadoc e Peregrino se tornaram chefes das suas grandes famílias, mantendo ao mesmo tempo as suas relações com Rohan e Gondor, as bibliotecas de Fiveleira e da Espada Comprida continham muito material que não se encontrava no Livro Vermelho. Na Mansão de Brandy havia muitas obras relacionadas com Eriador e a história de Rohan. Algumas delas foram feitas ou iniciadas pelo próprio Meriadoc, embora, no Shire, ele fosse principalmente recordado graças à sua Tradição Herbórea do Shire e pelo seu Cômputo dos Anos, no qual discutia a relação existente entre os calendários do Shire e de Bree e os de Rivendell, Gondor e Rohan. Escreveu também um breve tratado, Vocábulos e Nomes Antigos do Shire, no qual evidencia especial interesse em revelar o parentesco, digamos, de certas palavras shirenses, como mathom, e antigos elementos de nomes de lugares com a língua de Rohirrim.

Os livros de Grandes Smials tinham menos interesse para a gente do Shire, embora fossem mais importantes relativamente à História em geral. Nenhum deles foi escrito por Peregrino, mas ele e os seus sucessores coligiram muitos manuscritos escritos por escribas de Gondor - principalmente cópias ou resumos de histórias ou lendas relacionadas com Elendil e os seus herdeiros. Só aqui, no Shire, viria a encontrar-se abundante material de interesse para a história de Númenor e do advento de Sauron. Foi provavelmente nos Grandes Smials que se coligiu A História dos Anos4 [4 Apresentado, em forma muito reduzida, no apêndice B, até ao fim da Terceira Era (Cf. vol. III - «O Regresso do Rei»).] com o auxílio de material reunido por Meriadoc. Embora as datas indicadas sejam frequentemente conjecturais, em especial no tocante à II era, merecem atenção. É provável que Meriadoc tenha obtido auxílio e informação em Rivendell, que visitou mais de uma vez. Apesar de Elrond ter partido, os seus filhos permaneceram muito tempo em Rivendell, juntamente com alguns dos Elfos Superiores. Diz-se que Celeborn foi viver para lá depois da partida de Galadriel: mas não existe qualquer registo do dia em que, finalmente, ele se acolheu aos Portos Cinzentos, e com ele desapareceu a última memória viva dos Tempos Antigos da Terra Média.

 

UMA FESTA MUITO ESPERADA

Quando o Sr. Bilbo Baggins, do Fundo do Saco, anunciou que celebraria em breve o seu 111.º aniversário com uma festa de grande magnificência, falou-se muito e houve muita excitação em Hobbiton.

Bilbo era muito rico e não menos excêntrico e havia sessenta anos que era o espanto do Shire, desde o seu extraordinário desaparecimento e o seu inesperado regresso. As riquezas que trouxera das suas viagens tinham-se entretanto tornado uma lenda local, e, dissessem os idosos o que dissessem, era crença popular que o monte do Fundo do Saco estava cheio de túneis atestados de tesouros. Mas, ainda que isso não fosse razão suficiente para o tornar famoso, havia também o seu prolongado vigor, que a todos maravilhava. O tempo ia passando, mas parecia produzir pouco efeito no Sr. Baggins. Aos 90 anos, tinha sido praticamente o mesmo que aos 50. Aos 99, haviam começado a dizer que estava bem conservado, mas teriam andado mais perto da verdade se dissessem que não estava nada mudado. Alguns abanavam a cabeça e pensavam ser aquilo demasiado bom, um exagero; parecia injusto que alguém possuísse (aparentemente) juventude perpétua e também (supostamente) riqueza inexaurível.

- Terá de pagar - diziam. - Não é natural e nada de bom virá de tal coisa!

Mas, por enquanto, ainda não acontecera nada de mal e, como o Sr. Baggins era generoso com o seu dinheiro, a maioria das pessoas perdoava-lhe de bom grado as suas excentricidades e a sua grande sorte. Mantinha boas relações com os seus familiares (tirando, evidentemente, os Bagginses de Vila do Saco) e contava com muitos admiradores dedicados entre os hobbits de famílias pobres e sem importância. Mas não teve amigos íntimos enquanto alguns dos seus primos mais novos não começaram a crescer.

O mais velho desses primos, e o favorito de Bilbo, era o jovem Frodo Baggins. Aos 99 anos, Bilbo adoptou Frodo como seu herdeiro e levou-o para o Fundo do Saco, para viver com ele, destruindo assim, finalmente, as esperanças dos Bagginses de Vila do Saco. Por coincidência, Bilbo e Frodo faziam anos no mesmo dia: 22 de Setembro. «Acho melhor passares a viver aqui comigo, meu rapaz», disse Bilbo, um dia. «Assim poderemos festejar juntos, agradavelmente, os nossos aniversários.» Nessa altura, Frodo estava ainda na casa dos 20, esse período irresponsável entre a infância e a maioridade, que começava para os Hobbits aos 33 anos.

Passaram mais doze anos, durante os quais os Bagginses deram, anualmente, festas de aniversário conjuntas e muito animadas, no Fundo do Saco. Agora, porém, depreendia-se que se estava a preparar algo de verdadeiramente excepcional, para aquele Outono. Bilbo ia completar 111 anos, número muito curioso e idade muito respeitável para um hobbit (o próprio Velho Took só chegara aos 130), e Frodo completaria 33 anos, trinta e três, também um número importante e o início da sua maioridade.

As línguas começaram a não ter descanso em Hobbiton e À Beira-d'Água, e a nova do iminente acontecimento espalhou-se por todo o Shire. A história e a personalidade do Sr. Bilbo Baggins voltaram a ser o tópico principal de todas as conversas e as pessoas mais idosas verificaram, de súbito, que existia um grande - e para elas muito agradável - interesse pelas suas reminiscências.

Ninguém tinha público mais atento do que o velho Ham Gamgee, geralmente conhecido por Velhote. Instalava-se n'O Ramo de Hera, uma pequena estalagem da estrada de À Beira-d'Água, e falava com certa autoridade, pois tratara da horta do Fundo do Saco durante quarenta anos e, antes disso, ajudara o velho Holman a fazer o mesmo trabalho. Agora que por sua vez estava a ficar velho e com as articulações emperradas, o trabalho era feito principalmente pelo seu filho mais novo, Sam Gamgee. Tanto o pai como o filho tinham relações muito cordiais com Bilbo e Frodo. Moravam no Monte, propriamente dito, na Travessa do Saco Furado, 3, logo abaixo do Fundo do Saco.

- O Sr. Bilbo, é um cavalheiro muito simpático e bem falante, como eu sempre afirmei - declarava o Velhote com absoluta verdade, pois Bilbo era muito cortês com ele, tratava-o sempre por «Mestre Hamfast» e consultava-o amíude acerca da cultura de vegetais: na questão dos tubérculos, sobretudo das batatas, o Velhote era reconhecido por toda a vizinhança (incluindo ele próprio) como a maior autoridade.

E esse tal Frodo, que vive com ele? - perguntou o velho Noakes, de À Beira-d'Água. - O seu apelido é Baggins, mas dizem que é mais de cinquenta por cento Brandybuck. Não consigo entender que um Baggins de Hobbiton tivesse ido procurar mulher na Bucklândia, onde as pessoas são tão esquisitas.

- E não admira que sejam esquisitas - comentou o Avozinho Dois Pés (vizinho do lado do Velhote) -, pois vivem do lado mau do rio Brandevinho e mesmo à beira da Floresta Velha. É um sítio escuro e mau, se metade das histórias que contam são verdadeiras.

- Tem razão, Avô! - concordou o Velhote. - Não que os Brandybucks da Bucklândia vivam na Floresta Velha, não; mas parece que são uma raça esquisita, realmente. Entretêm-se com barcos, naquele enorme rio, e isso não é natural. Pouco admira, portanto, cá na minha ideia, que daí surjam aborrecimentos. Mas, seja lá como for, o Sr. Frodo é um jovem hobbit tão simpático quanto seria para desejar. E muito parecido com o Sr. Bilbo, e não só no aspecto. No fim de contas, o pai dele era um Baggins. O Sr. Drogo Baggins, um hobbit decente e respeitável, do qual nunca houve muito que dizer, até se afogar.

- Se afogar? - perguntaram diversas vozes.

Claro que já tinham ouvido aquele boato, e outros ainda mais sinistros, mas os hobbits têm a paixão das histórias de família, e por isso estavam dispostos a ouvir tudo outra vez.

- Bem, é o que dizem - respondeu o Velhote. - Sabem, o Sr. Drogo casou com a pobre Menina Primula Brandybuck, que era prima direita, do lado materno (a mãe dela era a filha mais nova do Velho Took), do nosso Sr. Bilbo, de quem o Sr. Drogo era segundo primo. Por isso, o Sr. Frodo é primo direito e segundo primo dele, de primeiro grau, para um lado e outro como se costuma dizer. O Sr. Drogo estava a passar uns tempos na Mansão de Brandy com o sogro, o velho Mestre Gorbadoc, como fazia com frequência desde que casara (gostava muito de comer e o velho Gorbadoc tinha uma mesa muito farta), e foi andar de barco no rio Brandevinho. Ele e a mulher afogaram-se, e o Sr. Frodo, coitadinho, era ainda uma criança.

- Ouvi dizer que foram para a água depois do jantar, ao luar - observou o velho Noakes -, e que foi o peso de Drogo que afundou o barco.

- E eu ouvi dizer que ela o empurrou para a água e ele a puxou atrás de si - disse o Amarelento, que era o moleiro de Hobbiton.

- Não deves acreditar em tudo o que ouves, Amarelento - redarguiu-lhe o Velhote, que não gostava muito do moleiro. - Não há razão nenhuma para andar por aí a falar de empurrar e puxar. Os barcos são uma coisa traiçoeira até para aqueles que se sentam neles quietinhos; não é preciso procurar outros motivos. O que interessa é que o Sr. Frodo ficou órfão e abandonado, por assim dizer, entre aqueles esquisitos bucklandeses, e foi criado na Mansão Brandy, que, segundo consta, é uma autêntica coelheira. O velho Mestre Gorbadoc nunca lá tinha menos de uns duzentos familiares. O Sr. Bilbo não podia ter feito gesto mais bonito do que trazer o rapaz, para viver entre gente decente.

»Creio, no entanto, que isso foi um golpe muito desagradável para os Bagginses de Vila do Saco. Julgavam que iam herdar o Fundo do Saco, daquela vez que o Sr. Bilbo partiu e se pensou que morrera; mas depois ele regressou e ordenou-lhes que saíssem, e continuou a viver, a viver, sem parecer um dia mais velho, abençoado seja! De repente, apresenta um herdeiro e trata de todos os papéis, como deve ser! Agora, os Bagginses de Vila do Saco nunca verão o interior do Fundo do Saco, ou pelo menos assim é de esperar.»

- Ouvi dizer que lá em cima há uma boa maquiazinha bem guardada - observou um desconhecido, um visitante que viera de Michel Delving, no Farthing Ocidental, para tratar de negócios. - Segundo consta, o cimo do vosso monte está cheio de túneis atestados de baús com ouro, prata e pedras preciosas. Foi o que ouvi dizer.

- Então ouviu mais do que eu posso confirmar - declarou o Velhote. - Não sei nada a respeito de pedras preciosas. O Sr. Bilbo é um mãos-largas com o seu dinheiro, do qual parece não ter falta, mas não sei nada de túneis nenhuns. Vi o Sr. Bilbo quando ele regressou, há coisa de uns sessenta anos, era eu um rapaz. Não trabalhava há muito tempo como aprendiz do velho Holman (que era primo do meu pai), mas ele mandou-me lá para cima, para o Fundo do Saco, a fim de o ajudar a evitar que as pessoas entrassem no jardim e pisassem tudo, enquanto decorria o leilão. De repente, no meio daquilo tudo, o Sr. Bilbo apareceu pelo Monte acima, com um pónei, algumas malas muito grandes e uns dois baús. Não duvido que estivessem principalmente cheios de riquezas que ele arranjara em locais estrangeiros, onde, segundo dizem, há montanhas de ouro; mas, de qualquer modo, não era coisa que chegasse para encher túneis. O meu rapaz, o Sam, deve estar mais bem informado do que eu a esse respeito. Anda muito lá pelo Fundo do Saco. É louco por histórias dos tempos antigos e escuta todas quantas o Sr. Bilbo conta. Foi o Sr. Bilbo quem lhe ensinou as letras... sem qualquer má intenção, notem, e eu espero que daí não venha mal nenhum, também.

»Elfos e dragões!, costumo dizer-lhe. Couves e batatas estão mais indicadas para ti e para mim. Não te metas nos assuntos dos teus superiores, ou ainda acabas por te meter nalgum sarilho tão grande que não saberás sair dele, digo-lhe. E podia dizê-lo também a outros ... » - acrescentou, a olhar para o desconhecido e para o moleiro.

Mas o Velhote não convenceu os seus ouvintes. A lenda da riqueza de Bilbo estava tão firmemente enraizada na mente das gerações de hobbits mais jovens que era praticamente impossível convencê-los. - Ah, mas é muito provável que ele tenha estado a aumentar o que começou por trazer! - argumentou o moleiro, exprimindo assim a opinião comum. - Ele sai frequentemente de casa. E reparem na gente estranha que o visita: anões que chegam de noite, e aquele velho mágico vagabundo, o Gandalf, e todos os outros... Podes dizer o que te apetecer, Velhote, mas o Fundo do Saco é um sítio esquisito a sua gente ainda o é mais.

- E tu podes dizer o que quiseres a respeito de coisas de que percebes tanto como de barcos, Amarelento - replicou o Velhote, a sentir pelo moleiro uma antipatia ainda maior do que a habitual. - Se aquilo é ser esquisito, então dava-nos jeito um pouco mais de esquisitice, por estas bandas. Há alguns, não muito longe, que não ofereceriam uma caneca de cerveja a um amigo, nem que vivessem num buraco com paredes de ouro. No Fundo do Saco, porém, fazem as coisas como deve ser. O nosso Sam diz que toda a gente vai ser convidada para a festa e haverá prendas... notem bem... haverá prendas para todos. E será ainda este mês!

Esse mês era Setembro, e decorria tão agradável, de tempo, quanto se poderia desejar. Passado um dia ou dois, correu o boato (provavelmente iniciado pelo sabedor Sam) de que haveria fogo-de-artifício - e, melhor ainda, fogo-de-artifício como não se via no Shire ia quase para um século, desde a morte do Velho Took.

Os dias foram passando, e o Dia foi-se aproximando. Certo anoitecer, chegou a Hobbiton uma carroça de aspecto estranho, carregada de volumes ainda mais estranhos, e subiu penosamente a encosta, a caminho do Fundo do Saco. Os hobbits espreitaram, boquiabertos e assustados, pelas portas iluminadas por candeeiros. A carroça era conduzida por gente estranha, que entoava estranhas canções: anões de comprida barba e grande capuz. Alguns deles ficaram no Fundo do Saco. No fim da segunda semana de Setembro, outro carro atravessou À Beira-d'Água, vindo da direcção da Ponte de Brandevinho, em plena luz do dia. Conduzia-o um velho, sozinho. Usava chapéu azul pontiagudo, comprida capa cinzenta e cachecol prateado, e tinha barba branca e comprida e sobrancelhas farfalhudas, espetadas sob a aba do chapéu. Garotos hobbits correram atrás do carro através de toda a Hobbiton e pela encosta acima. O carro transportava um carregamento de fogo-de-artifício, como eles tinham acertadamente desconfiado. O velho começou a descarregar, à porta de Bilbo: grandes volumes de fogo-de-artifício de todas as espécies e formatos, todos eles com uma Gw grande e vermelha e um carácter rúnico: P.

Tratava-se, claro, do sinal de Gandalf, e o velho era o próprio Gandalf, o Feiticeiro, cuja fama, no Shire, se devia principalmente à sua perícia com fogos, fumos e luzes. O seu verdadeiro trabalho era muito mais difícil e perigoso, mas a gente do Shire nada sabia a tal respeito. Para ela, Gandalf era apenas uma das «atracções» da festa. Daí a excitação dos hobbitezinhos. «G de Grande!», gritaram, e o ancião sorriu. Conheciam-no de vista, embora ele só aparecesse em Hobbiton ocasionalmente e nunca se demorasse muito; mas nem eles nem nenhum dos adultos - a não ser os mais velhos - tinham assistido alguma vez a uma das suas demonstrações de fogo-de-artifício, que pertenciam a um passado lendário.

Quando o velho, ajudado por Bilbo e alguns anões, acabou de descarregar o carro, Bilbo distribuiu algumas moedas; mas, para grande decepção dos mirones, não foi lançado nem um pauzinho de fogo-de-artifício, não estoirou nem um estalido, para amostra.

- Agora vão-se embora, andem! - disse-lhes Gandalf. - Terão fogo-de-artifício com fartura no momento próprio.

Entrou em casa com Bilbo, e a porta fechou-se. Os pequenos hobbits ficaram um momento a fitá-la, em vão, e depois abalaram, a pensar que o dia da festa nunca mais chegava.

No Fundo do Saco, Bilbo e Gandalf estavam sentados junto da janela aberta de uma pequena sala que dava para oeste e para o jardim.

Estava um entardecer luminoso e tranquilo. As flores brilhavam, vermelhas e douradas: bocas-de-leão e girassóis, e nastúrcios que trepavam pelas paredes de turfa e espreitavam pelas janelas redondas.

- Que bonito e cheio de cor está o seu jardim! - elogiou Gandalf.

- É verdade - concordou Bilbo. - Gosto muito dele, e de todo o querido Shire, mas acho que estou a precisar de umas férias.

- Tenciona, então, ir para a frente com o seu plano?

- Tenciono. Tomei a minha decisão meses atrás e não a modifiquei.

- Muito bem. Não vale a pena dizer mais nada. Cumpra o seu plano... todo o seu plano, note... e eu espero que correrá tudo pelo melhor, para si e para todos nós.

- Também o espero. De qualquer modo, tenciono divertir-me na quinta-feira a pregar a minha partidinha.

- Pergunto a mim mesmo quem lhe achará graça - comentou Gandalf, a abanar a cabeça.

- Veremos - respondeu Bilbo.

No dia seguinte, voltaram a subir mais carros pela encosta acima. Isso poderia ter dado origem a alguns protestos resmungados por não se «comprar localmente», mas nessa mesma semana começaram a vir do Fundo do Saco encomendas de toda a espécie de provisões, utensílios e artigos de luxo possíveis de encontrar em Hobbiton, À Beira-d'Água ou em qualquer ponta das imediações. As pessoas entusiasmaram-se, foram riscando os dias que passavam do calendário e começaram a esperar ansiosamente a passagem do carteiro,

na esperança de receberem convites.

E, com efeito, os convites não tardaram, aos montes, e o Posto dos Correios de Hobbiton ficou congestionado, e o Posto dos Correios, de À Beira-d'Água ficou literalmente submerso, e convocaram-se carteiros voluntários para ajudar. Passou a ver-se uma enfiada constante deles a subir o Monte, transportando centenas de variações corteses de Obrigado. Irei, com certeza.

No portão do Fundo do Saco apareceu o seguinte letreiro: PROIBIDA A ENTRADA, A NÃO SER PARA TRATAR DE ASSUNTOS DA FESTA. Mas até mesmo aqueles que tinham, ou alegavam ter, assuntos da festa a tratar, raramente eram admitidos. Bilbo estava muito atarefado: a escrever convites, a descarregar as respostas já recebidas, a embrulhar prendas e a tratar de certos preparativos pessoais. Desde que

Gandalf chegara, deixara de ser visto.

Uma manhã, quando acordaram, os hobbits encontraram o grande campo a sul da porta principal de Bilbo cheio de cordas e traves para armar tendas e pavilhões. Tinham aberto uma entrada especial no aterro de acesso à estrada, com degraus e um grande portão branco. As três famílias de hobbits da Travessa do Saco Furado, vizinha do campo, estavam intensamente interessadas e eram geralmente invejadas. Gamgee Velhote até deixou de fingir que trabalhava na sua horta.

As tendas começaram a ser montadas. Havia um pavilhão particularmente grande, tão grande que a árvore existente no campo ficava dentro dele e se erguia, toda orgulhosa, a um lado, à cabeceira da mesa principal. Pendiam lanternas de todos os ramos da árvore. Mais prometedora ainda (para a mentalidade hobbitiana) era a enorme cozinha ao ar livre, montada no canto norte do campo. Um exército de cozinheiros, de todas as estalagens e casas de pasto de quilómetros em redor, veio engrossar o número de anões e outras pessoas estranhas instaladas no Fundo do Saco. A excitação atingiu o auge.

Depois, o tempo enevoou-se. Precisamente na quarta-feira, véspera da festa. Reinou uma ansiedade intensa. Até que o dia de quinta-feira, 22 de Setembro, dealbou finalmente. O Sol nasceu, as nuvens dissiparam-se, desfraldaram-se bandeiras e a paródia começou.

Bilbo Baggins chamava-lhe uma festa, mas na realidade tratava-se de uma variedade de divertimentos concentrados no grande acontecimento. Tinha sido convidada praticamente toda a gente. Alguns, muito poucos, foram esquecidos, por acaso, mas, como apareceram do mesmo modo, o pormenor não teve importância. Foram igualmente convidadas muitas pessoas de outras partes do Shire, e até estavam presentes algumas de fora das fronteiras. Bilbo recebeu, em pessoa, os convidados (e anexos) junto do novo portão branco. Deu prendas a todos e mais alguns - estes últimos eram os que tinham saído pelas traseiras e entrado de novo pelo portão. Os Hobbits davam prendas a outras pessoas no dia do seu próprio aniversário. Em regra, porém, não eram muito dispendiosas nem tão profusas como nesta ocasião. Bem vistas as coisas, não era um mau sistema. Na realidade, em Hobbiton e À Beira-d'Água todos os dias havia alguém que fazia anos, e, portanto, todos os hobbits daquelas bandas tinham uma boa probabilidade de receber pelo menos uma prenda, pelo menos uma vez por semana. Mas nunca se cansavam.

Nesta ocasião, os presentes eram extraordinariamente bons. As crianças ficaram tão encantadas com eles, que por momentos quase se esqueceram de comer. Havia brinquedos como nunca tinham visto antes, todos bonitos, e alguns até obviamente mágicos. Muitos deles tinham sido encomendados com um ano de antecedência, percorrido a longa distância da Montanha e do Vale até ali e eram produto genuíno dos Anões.

Depois de todos os convidados terem sido recebidos e se encontrarem, finalmente, do lado de dentro do portão, houve canções, danças, música, jogos e, claro, comes e bebes. Havia três refeições oficiais: almoço, merenda e jantar (ou ceia). Mas o almoço e a merenda distinguiram-se principalmente pelo facto de, nessas alturas, todos os convidados estarem sentados e a comer juntos, ao passo que no resto do tempo só se viam magotes de pessoas a comer e a beber -continuamente, desde o petisco das onze da manhã até às seis e meia da tarde, quando o fogo-de-artifício começou.

O fogo-de-artifício estava a cargo de Gandalf: fora não só trazido por ele, mas também concebido e feito por ele - e foi igualmente ele que se encarregou dos efeitos especiais, do fogo preso e do lançamento dos foguetes. Houve também uma generosa distribuição de cartuchinhos de fogo, estalinhos, chuva de estrelas, tochas, velas-de-anões, fontes élficas, silvos de gnomos e trovões. Tudo soberbo. A arte de Gandalf melhorava com a idade.

Houve foguetes que se desfizeram num bando de aves cintilantes, a gorjear docemente. Houve árvores verdes com tronco de fumo escuro: as suas folhas abriram-se como toda uma Primavera a desabrochar num momento e os seus ramos luminosos deixavam cair flores cintilantes, que desapareciam com um perfume suave quando pareciam ir tocar no rosto levantado dos estupefactos hobbits. Houve bandos de borboletas que voavam, a reluzir, para as árvores; houve colunas de fogos coloridos que subiam e se transformavam em águias, ou barcos à vela, ou bandos de cisnes a voar; houve uma trovoada vermelha e um aguaceiro amarelo; houve uma floresta de lanças prateadas que subiram subitamente no ar, com um grito semelhante ao do exército em combate, e caíram no rio Água com um silvo, como uma centena de serpentes em brasa. E houve também uma última surpresa, em honra de Bilbo, a qual assustou extraordinariamente os hobbits, como Gandalf pretendera: as luzes apagaram-se e subiu uma grande mancha de fumo. O fumo adquiriu a forma de uma montanha, ao longe, e começou a brilhar, no cume, e a cuspir chamas verdes e rubras. Nisto, irrompeu dela um dragão vermelho-dourado, que, embora não fosse de tamanho natural, tinha um aspecto terrivelmente natural: jorrava-lhe fogo das faces e os seus olhos coruscavam. Ouviu-se um rugido, e o dragão silvou três vezes por cima da cabeça da multidão. Baixaram-se todos, e muitos até se estenderam ao comprido no chão. O dragão passou como um comboio rápido, deu uma cambalhota e explodiu ensurdecedoramente por cima de À Beira-d'Água.

- Foi o sinal para a ceia! - exclamou Bilbo.

O medo e os susto dissiparam-se imediatamente, e os hobbits caídos levantaram-se de um pulo. Houve uma esplêndida ceia para todos - isto é, para todos menos para os que tinham sido convidados para o jantar de família especial, que decorreu no grande pavilhão da árvore. O número de convites fora limitado a doze dúzias (quantidade a que os hobbits também chamavam uma grosa, embora a expressão não fosse considerada apropriada para uso do povo) e os convidados escolhidos entre todas as famílias com as quais Bilbo e Frodo eram aparentados, além de alguns amigos especiais, ainda que sem laços de parentesco (como Gandalf). Tinham sido incluídos nesse número muitos hobbits jovens, que estavam presentes com autorização dos pais - os Hobbits eram benévolos com os filhos no tocante a deixá-los deitar-se tarde, sobretudo quando isso lhes dava ensejo de comer uma refeição grátis. Eram precisas muitas provisões para criar jovens hobbits.

Estavam presentes muitos Bagginses e Boffins e também muitos Tooks e Brandybucks; vários Lagartas (parentes da avó de Bilbo Baggins) e Rechonchudos (parentes do seu avô Took) e uma variedade de Tocas, Bolgers, Espartilhos, Tocas de Texugo, Bons Corpos, Corneteiros e Pés Magnificos1 [Por norma, têm-se traduzido todos os apelidos, em parte devido ao seu interesse e em parte por serem uma identificação genuína, umas vezes decorrente de alcunhas antigas, outras de profissões, cargos, características pessoais, etc. E também porque, não se passando a história em Inglaterra ou em qualquer país de língua inglesa, não se justificava a manutenção desses nomes em inglês. Mas há casos em que a tradução é impossível - Bagginses, Boffins, etc. -, e daí a aparente incoerência. (N. da T.)]. Alguns eram parentes muito afastados de Bilbo e outros era até a primeira vez que iam a Hobbiton, em virtude de viverem em remotos cantos do Shire. Os Bagginses de Vila do Saco não foram esquecidos, e Otho e a sua mulher, Lobélia, estavam presentes. Não gostavam de Bilbo e detestavam Frodo, mas o cartão de convite era tão imponente, escrito com tinta dourada, que tinham achado impossível recusar. Além disso, o seu primo, Bilbo, havia muitos anos que se especializava na boa cozinha e a sua mesa desfrutava de excelente reputação.

Todos os cento e quarenta e quatro convidados esperavam um agradável festim, embora receassem o discurso pós-prandial do seu anfitrião (que era inevitável). Era muito capaz de lhe intercalar passagens daquilo a que chamava poesia e até, com um copinho ou dois, de aludir às absurdas aventuras da sua misteriosa viagem. Os convidados não ficaram decepcionados: foi, de facto, um festim muito agradável, um banquete deveras absorvente: suculento, abundante, variado e prolongado. Nas semanas seguintes, a aquisição de provisões desceu quase a zero, em todo o distrito; mas, como as compras de Bilbo tinham esgotado os stocks da maioria das lojas, adegas e armazéns num raio de vários quilómetros, isso não teve muita importância.

Depois do festim (mais ou menos) foi a vez do discurso. Mas nessa altura a maior parte dos convivas encontrava-se num estado de espírito tolerante, naquela fase deliciosa a que chamavam «atestar os cantinhos». Bebericavam as suas bebidas preferidas e mordiscavam as suas guloseimas preferidas, e tinham esquecido os seus receios. Estavam dispostos a ouvir tudo e a aplaudir a cada ponto final e parágrafo.

Minha querida gente, começou Bilbo, que se levantou do seu lugar. «Escutai! Escutai! Escutai!», gritaram os outros, mas continuaram a repetir a palavra em coro, como se relutassem em seguir o seu próprio conselho.

Bilbo deixou o seu lugar e subiu para cima de uma cadeira, debaixo da árvore iluminada. A luz da lanterna reflectiu-se no seu rosto sorridente e os botões dourados do seu colete de seda bordado reluziram. Assim todos podiam vê-lo de pé, a agitar uma das mãos no ar e com a outra na algibeira das calças.

Meus queridos Bagginses e Boffins, recomeçou, e meus queridos Tooks e Brandybucks, Lagartas e Rechonchudos, Corneteiros e Bolgers, Espartilhos e Bons Corpos, Tocas de Texugo e Pé Magnífico... Pés Magníficos!», gritou um hobbit idoso do fundo do pavilhão - chamava-se, claro, Pé Magnífico, e bem o merecia: os seus pés eram grandes, excepcionalmente cabeludos e estavam ambos em cima da mesa.

Pés Magníficos, prosseguiu Bilbo. E também meus queridos Bagginses de Vila do Saco, cujo regresso ao Fundo do Saco saúdo. Hoje é o dia do meu 111.º aniversário: completo hoje 111 anos! «Viva! Viva! Que se repita por muitos e bons!», gritaram os convidados, a bater alegremente nas mesas.

Bilbo estava a ser esplêndido. Era daquele tipo de discurso que gostavam: curto e óbvio.

Espero que estejam todos a divertir-se tanto como eu. Aplausos ensurdecedores. Gritos de Sim! (e Não!). Barulho de gaitas e cornetas, flautas e outros instrumentos musicais. Estavam, como já se disse, muitos jovens hobbits presentes. Estoiraram muitas bombinhas-surpresas musicais. Na sua maioria, tinham escrita a palavra VALE, que não dizia grande coisa à maior parte dos Hobbits; no entanto, todos eles concordaram que eram bombinhas maravilhosas. Continham instrumentos pequenos, mas de um fabrico perfeito e com um som delicioso. Por sinal, a um canto, alguns jovens Tooks e Brandybucks, julgando que o tio Bilbo tinha terminado (pois era evidente que já dissera tudo quanto era necessário), improvisaram uma orquestra e começaram a tocar uma alegre música de dança. O jovem Everard Took e a Menina Melilot Brandybuck subiram para uma mesa e, com campainhas na mão, começaram a dançar Repica a Campainha, que era uma dança bonita, mas muito vigorosa.

Mas Bilbo ainda não terminara. Tirou uma corneta da mão de um jovem que se encontrava perto e soprou três vezes, com força. O barulho diminuiu.

Não os demorarei muito!, gritou, e a assistência aplaudiu. Quis reuni-los todos com um Objectivo!

Houve um não-sei-quê na maneira como pronunciou as palavras que os impressionou. Fez-se quase silêncio e um ou dois Tooks arrebitaram as orelhas.

Na verdade, com Três Objectivos! Primeiro, para lhes dizer que sou tremendamente amigo de todos e que cento e onze anos é muito pouco tempo para viver entre hobbits tão excelentes e admiráveis. Uma grande explosão aprovadora.

Não conheço metade dos presentes nem metade do que gostaria de conhecer, e estimo menos de metade dos presentes metade do que gostaria de estimar. Foi uma tirada inesperada e um tanto ou quanto difícil. Ouviram-se algumas palmas dispersas, mas a maior parte dos convidados não se manifestou, a tentar perceber se o que fora dito tinha sido um cumprimento ou não.

Segundo, para festejar o meu aniversário. Novos aplausos. Devo dizer antes o Nosso aniversário, pois também é o aniversário do meu sobrinho e herdeiro, Frodo. Ele atinge hoje a maioridade e recebe a sua herança. Algumas palmas formais dos mais velhos e alguns gritos vibrantes de «Frodo! Frodo! Alegre Frodo!» dos mais novos. Os Bagginses de Vila do Saco fizeram uma carranca e perguntaram a si mesmos o que significaria «recebe a sua herança».

Juntos, perfazemos os dois 144 anos. O número de convidados foi escolhido para corresponder a esse extraordinário total: uma grosa, se me permitem a expressão. Não houve aplausos. Aquilo era ridículo. Muitos dos convidados, e em especial os Bagginses de Vila do Saco, sentiram-se insultados, como se só tivessem sido convidados para perfazer o número requerido, como mercadorias num fardo. «Uma grosa, deveras! Expressão vulgar!»

É também, se me é permitido aludir a história antiga, o aniversário da minha chegada, de barril, a Esgaroth, no lago Comprido - embora nessa ocasião se me tivesse apagado da memória que era o dia dos meus anos. Então tinha 51 e os aniversários não pareciam tão importantes como agora. O banquete foi excelente, mas eu lembro-me de ter tido uma grande constipação e só conseguir dizer, fanhosamente: «Munto ob'igado.» Agora repito-o mais correctamente: Muito obrigado por terem vindo à minha festazinha. Obstinado silêncio. Receavam todos que estivesse iminente alguma canção ou alguns versos, e começaram a ficar enfadados. Por que não se calava e os deixava beber à sua saúde? Mas Bilbo não cantou nem declamou. Fez uma pausa e depois concluiu:

Terceiro e último: desejo fazer uma PARTICIPAÇÃO. Disse a última palavra tão sonora e inesperadamente que todos os que ainda se podiam endireitar se endireitaram. Lamento participar-lhes que - embora, como já disse, cento e onze anos seja muito pouco tempo para viver entre vocês - isto é o FIM. Parto. Vou partir AGORA. ADEUS!

Desceu da cadeira e desapareceu. Brilhou uma luz ofuscante, um clarão, e todos os convidados pestanejaram. Quando abriram os olhos, Bilbo não se via em parte alguma. Cento e quarenta e quatro hobbits estupefactos deixaram-se cair para trás, nos lugares, mudos de espanto. O velho Odo Pé Magnífico tirou os pés de cima da mesa e bateu com eles no chão. Seguiu-se um silêncio absoluto, até que, de repente, depois de respirarem diversas vezes fundo, todos os Bagginses, Boffins, Tooks, Brandybucks, Lagartas, Rechonchudos, Tocas, Bolgers, Espartilhos, Tocas de Texugo, Bons Corpos, Corneteiros e Pés Magníficos começaram a falar ao mesmo tempo.

Segundo o consenso geral, a partida tinha sido de muito mau gosto e os convidados precisavam de mais comida e, mais bebida para se refazerem do choque e do desagrado. «É doido. Eu sempre o disse», foi provavelmente o comentário que mais se ouviu. Até os Tooks (com algumas - poucas - excepções) consideraram absurdo o comportamento de Bilbo. Por enquanto, de resto, estavam quase todos convencidos de que seu desaparecimento não passara de uma brincadeira ridícula.

Mas o velho Rory Brandybuck não estava tão certo disso como os outros. Nem a idade nem o enorme jantar lhe tinham toldado o entendimento, e ele disse à sua nora, Esmeralda: «Há algo de esquisito nisto, minha querida! Estou convencido de que o doido do Baggins partiu outra vez. Velho idiota! Mas para que nos havemos de preocupar com isso? Não levou as vitualhas com ele!» E pediu ruidosamente a Frodo que mandasse servir mais vinho. Frodo era o único dos presentes que não dissera nada. Durante alguns momentos deixara-se ficar, silencioso, ao lado da cadeira vazia de Bilbo e ignorava todos os comentários e todas as perguntas. Gostara da partida, claro, apesar de ter estado no seu segredo, e só com dificuldade contivera o riso, perante a indignidade surpresa dos convidados. Ao mesmo tempo, no entanto, sentia-se profundamente perturbado, pois apercebera-se de súbito de que amava ternamente o velho hobbit. Na sua maioria, os convidados continuaram a comer, a beber e a discutir as excentricidades, passadas e presentes, de Bilbo Baggins; mas os Bagginses de Vila do Saco já tinham partido, furiosos. Frodo perdeu todo o interesse na festa. Deu ordem para servirem mais vinho, e depois levantou-se, despejou silenciosamente o seu copo, à saúde de Bilbo, e saiu do pavilhão.

Quanto a Bilbo Baggins, enquanto proferia o seu discurso, estivera a apalpar o anel de ouro na algibeira: o seu anel mágico, de cuja existência guardara segredo durante tantos anos. Ao descer da cadeira, enfiou-o no dedo, e nunca mais nenhum hobbit o voltou a ver em Hobbiton.

Dirigiu-se, a andar muito depressa, para o seu buraco e parou um momento a escutar, sorridente, a barulheira que reinava no pavilhão e os sons de alegria e boa disposição que vinham de outras partes do campo. Depois entrou. Despiu a roupa da festa, dobrou-a e embrulhou o colete bordado em papel de seda, antes de o guardar. Em seguida vestiu apressadamente algumas peças de vestuário velhas e amarrotadas e pôs à cintura um gasto cinto de couro, do qual pendia uma espada curta, metida numa bainha de velho couro preto. De uma gaveta fechada à chave, que cheirava a bolas de naftalina, tirou uma velha capa e um capuz. Tinham estado fechados à chave como se fossem muito valiosos, mas a verdade é que estavam tão remendados e desbotados que dificilmente se adivinharia a sua cor primitiva, que devia ter sido verde-escura. Além do mais, eram demasiado grandes para ele. Em seguida dirigiu-se ao seu escritório e tirou de um grande cofre-forte um embrulho envolto em panos velhos e um manuscrito com uma capa de couro, e também um sobrescrito grande e volumoso. Pôs o livro e o embrulho numa mala pesada, que esperava ali perto, já quase cheia. Depois meteu o anel, e a bonita corrente, no sobrescrito, que fechou e endereçou a Frodo. Primeiro colocou-o na prateleira da chaminé, mas, com um gesto brusco, tirou-o de lá e meteu-o na algibeira. Nesse momento, a porta abriu-se e Gandalf entrou, muito depressa.

- Olá! - exclamou Bilbo. - Já tinha perguntado a mim mesmo se não apareceria.

- Folgo em encontrá-lo visível - redarguiu o feiticeiro, e sentou-se numa cadeira. - Desejava apanhá-lo para trocarmos algumas palavras, antes de partir. Acha, suponho, que correu tudo esplendidamente e de acordo com os planos?

- Acho, sim - respondeu Bilbo. - Embora aquele clarão tenha sido surpreendente. A mim assustou-me, quanto mais aos outros! Um acrescentozinho da sua lavra, suponho?

- Sem dúvida. Você conservou o anel durante todos estes anos, e por isso pareceu-me necessário dar aos seus convidados qualquer coisa que parecesse explicar o seu súbito desaparecimento.

- E estragasse a minha brincadeira. É um velho intrometido - declarou Bilbo, a rir -, mas, claro, calculo que sabe o que fez, como de costume.

- Sim, costumo saber o que faço. Mas não estou muito certo, no tocante a toda esta história, que chegou agora ao seu ponto final. Fez a sua partidinha, assustou ou ofendeu a maioria dos seus parentes e deu a todo o Shire motivo de conversa para alguns dias... ou, mais provavelmente, para muitos dias. Tenciona ir mais longe?

- Tenciono, sim. Sinto necessidade de umas férias, de umas férias muito grandes, como já lhe disse. Provavelmente serão umas férias permanentes, pois não espero regressar. Na realidade, não tenciono regressar, e já tomei todas as providências necessárias.

»Estou velho, Gandalf. Não o pareço, mas começo a senti-lo, cá no fundo de mim. Bem conservado, dizem! - resmungou. - Sinto-me fino, assim a modos que estendido, se entende o que quero dizer... Olhe, como pouca manteiga que foi estendida numa fatia de pão muito grande. Isso não pode estar certo. Preciso de uma mudança, ou qualquer coisa.»

Gandalf olhou-o curiosa e atentamente.

- Não, de facto não parece que esteja certo, realmente - concordou, pensativo. - No fim de contas, creio que o seu plano deve ser o melhor.

- De qualquer modo, tomei a minha decisão. Quero voltar a ver montanhas, Gandalf... montanhas! E depois encontrar um sítio qualquer onde possa descansar. Em paz e sossego, sem uma quantidade de parentes a bisbilhotar e uma enfiada de visitantes maçadores a puxar o cordão da campainha. Talvez consiga encontrar um lugar qualquer onde possa terminar o meu livro. Pensei num fim bonito, para ele: e depois viveu muito feliz até ao fim dos seus dias.

Gandalf riu-se.

- Espero que assim aconteça. Mas ninguém lerá o livro, seja como for que acabe.

- Oh, talvez leiam, em anos futuros! O Frodo já leu uma parte, até onde está escrito. Olhará pelo Frodo, não olhará?

- Sim, olharei... sempre que os meus olhos estejam livres para isso.

- Claro que ele iria contigo, se eu lhe pedisse. Por sinal, até se ofereceu para ir, uma vez, pouco antes da festa. Mas, na realidade, não o deseja. E as montanhas, também. Mas ele ainda está apaixonado pelo Shire, pelas florestas, pelos campos e pelos pequenos rios. Deve sentir-se bem, aqui. Deixo-lhe tudo, claro, tirando algumas ninharias. Espero que seja feliz, quando se habituar a estar sozinho. Já é tempo de ser senhor de si mesmo.

- Deixa-lhe tudo? - perguntou Gandalf - O anel também? Lembre-se de que concordou que lho deixaria.

- Bem... sim, suponho que sim - gaguejou Bilbo.

- Onde está ele?

- Num sobrescrito, já que quer saber - respondeu Bilbo, impaciente. - Ali, na prateleira... Não, está aqui, na minha algibeira. - Hesitou. - Não é estranho? - murmurou suavemente, como se falasse sozinho. - No entanto, no fim de contas, por que não? Por que não há-de continuar onde está?

Gandalf fitou-o de novo com muita atenção e com um brilho especial nos olhos.

- Acho, Bilbo, que o devia deixar cá - disse, calmamente. - Não quer?

- Bem, sim... e não. Agora que chegou a altura, confesso que me desagrada separar-me dele. E, francamente, não vejo razão para me separar. Por que quer que eu o faça? - perguntou, numa voz curiosamente diferente, carregada de desconfiança e aborrecimento. - Está sempre a serrazinar-me por causa do anel, mas nunca me importunou a respeito das outras coisas que arranjei na viagem.

- Pois não, mas a respeito do anel tinha de serraziná-lo. Queria saber a verdade. Era importante. Os anéis mágicos são... bem, são mágicos. E raros e curiosos, também. Pode-se dizer que me sentia profissionalmente interessado pelo seu anel. E ainda sinto. Gostaria de saber onde ele está, quando você partir para viajar de novo. Além disso, acho que já o tem há bastante tempo. Ou me engano muito, Bilbo, ou não precisará mais dele. Bilbo corou e os olhos brilharam-lhe, coléricos. O seu rosto bondoso endureceu.

- Porquê? - gritou. - E que lhe interessa a si saber o que faço com as minhas próprias coisas? O anel é meu. Fui eu que o achei. Pertence-me.

- Sim, sim... - concordou Gandalf. - Não há necessidade nenhuma de se zangar.

- Se estou zangado, a culpa é sua - replicou Bilbo. - É meu, já lhe disse. Muito meu! O meu precioso. Sim, o meu precioso.

O rosto de feiticeiro manteve-se grave e atento e só uma pequena cintilação dos seus olhos profundos denunciou que estava assustado, alarmado, até.

- Já lhe deram esse nome, antes - observou. - Mas não foi você.

- Mas agora dou-lho eu. E por que não? Mesmo que o Gollum tenha dito o mesmo, em tempos... Agora não é dele, mas sim meu. E conservá-lo-ei, pronto!

Gandalf levantou-se e falou severamente:

- Será um idiota, se fizer isso, Bilbo. Torna evidente, a cada palavra que diz, que o anel exerce demasiado domínio sobre você. Abandone-o! Depois poderá partir e ser livre!

- Farei o que quiser e me apetecer - redarguiu Bilbo, obstinadamente.

- Então, então, meu querido hobbit! - protestou Gandalf - Temos sido amigos, durante toda a sua longa vida, e deve-me alguma coisa. Ande, faça o que prometeu: prescinda dele!

- Se quer o meu anel para si, diga-o! - gritou Bilbo. - Mas não o terá, não o terá porque desde já lhe digo que não me separarei do meu precioso. - A sua mão pousou, como que num gesto instintivo, no punho da sua pequena espada.

Os olhos de Gandalf cintilaram.

- Não tarda a ser a minha vez de me zangar - ameaçou. - Se volta a dizer isso, zango-me mesmo... e então verá Gandalf, o Cinzento, sem disfarce algum! - Deu um passo na direcção do hobbit e pareceu tornar-se muito alto e ameaçador; a sua sombra encheu a pequena sala.

Bilbo recuou até à parede, a respirar com dificuldade e a apertar o sobrescrito na algibeira. Ficaram um momento a fitar-se, frente a frente, e o ar da sala dir-se-ia vibrar. Os olhos de Gandalf não se desviaram dos do hobbit. As mãos deste descontraíram-se, lentamente, e ele começou a tremer.

- Não sei o que lhe deu, Gandalf - murmurou. - Nunca o vi assim. Mas afinal porquê? O anel é meu, não é? Achei-o, e Gollum ter-me-ia matado, se eu o não tivesse conservado. Não sou nenhum ladrão, apesar do que ele disse.

Nunca lhe chamei tal coisa - replicou Gandalf. - E eu também o não sou. Não estou a tentar roubá-lo, e sim ajudá-lo. Gostaria que confiasse em mim, como dantes. - Virou-se, a sombra dissipou-se e ele pareceu reduzir-se de novo à estatura de um velho grisalho, curvado e preocupado.

Bilbo passou a mão pelos olhos.

- Peço desculpa. Mas senti-me tão esquisito... No entanto, de certo modo, seria um alívio não me preocupar mais com ele. Tem-me pesado tanto no espírito, ultimamente... Às vezes até me deu a impressão de ser como um olho, a olhar para mim. E, imagine, estou sempre com vontade de o pôr no dedo e desaparecer... ou a recear que não esteja em segurança e a tirá-lo da algibeira para me certificar. Tentei fechá-lo à chave, mas verifiquei que não conseguia descansar sem o ter na algibeira. Não sei porquê! Além disso, não sou capaz de me decidir.

- Então confie em mim, pois a minha decisão está tomada - aconselhou Gandalf. - Parta e deixe-o ficar. Deixe de o possuir. Dê-o a Frodo e eu velarei por ele.

Bilbo permaneceu ainda um momento tenso e indeciso. Depois suspirou.

- Está bem - acedeu, a custo. - Assim farei. - Encolheu os ombros e sorriu, triste. - No fim de contas, o objectivo desta festa era, realmente, esse: dar montes de prendas de aniversário e, de certo modo, tornar mais fácil o acto de o dar também, ao mesmo tempo. Verdade seja que, no fim, não facilitou nada, mas seria uma pena desperdiçar todos os preparativos que fiz. E estragaria a partida que pretendi pregar.

- Realmente, destruiria a única utilidade que sempre encontrei em toda essa história da festa, - declarou Gandalf.

- Pronto, fica para o Frodo, como tudo o mais. - Bilbo respirou fundo. - E agora tenho de ir andando, se não quero correr o risco de ter de aturar alguém. Já disse adeus, e não suportaria ter de o fazer de novo. - Pegou na mala e dirigiu-se para a porta.

- Ainda tem o anel na algibeira - lembrou-lhe o feiticeiro.

- É verdade, pois tenho! - exclamou Bilbo. - Assim como o meu testamento e todos os outros documentos. O melhor será dar-lho a si e depois você entrega-o em meu nome. Será mais seguro.

- Não, não me dê o anel - discordou Gandalf. - Ponha-o na prateleira da chaminé. Estará lá em segurança, até o Frodo chegar. Eu esperarei por ele.

Bilbo tirou o sobrescrito da algibeira, mas, quando ia pô-lo junto do relógio, a sua mão recuou, num movimento brusco, e o sobrescrito caiu ao chão. Sem lhe dar tempo a apanhá-lo, o feiticeiro inclinou-se, apanhou-o e colocou-o na prateleira. Um espasmo de cólera desfigurou de novo, momentaneamente, o rosto do hobbit. Mas logo a seguir deu lugar a uma expressão de alívio e a uma gargalhada.

- Pronto, acabou-se! - exclamou. - E agora vou-me embora!

Saíram para o vestíbulo, onde Bilbo escolheu, no bengaleiro, a sua bengala preferida. Depois assobiou, e apareceram três anões, vindos de diferentes quartos onde tinham estado atarefados.

- Está tudo pronto? - perguntou-lhes Bilbo. - Tudo embrulhado e rotulado?

- Tudo - responderam-lhe.

- Então partamos! - ordenou, e transpôs a porta principal.

Estava uma bela noite, com o céu negro salpicado de estrelas. Bilbo olhou para cima, a aspirar o ar.

- Que divertido! Que divertido partir de novo, fazer-me outra vez à Estrada com os anões! É isto que tenho realmente desejado, há anos! Adeus! - disse, a olhar para a velha casa, e fez uma vénia à porta. - Adeus, Gandalf!

- Adeus, por agora, Bilbo. Cuide de si. Já tem idade para isso, e talvez, também, juízo suficiente.

- Cuide de mim! Quero lá saber! Não se preocupe comigo. Nunca me senti tão feliz como neste momento, e isso é dizer muito! Mas chegou a altura, sinto que estou finalmente a ser arrebatado - acrescentou, e depois cantou docemente no escuro, como para consigo mesmo:

A Estrada vai sempre, sempre, em frente,

A partir da porta onde começou.

Muito, muito, ao longe a Estrada desaparece

E eu tenho de continuar, se puder,

A pisá-la com pés ansiosos

Até se juntar a algum caminho mais largo

Onde muitas veredas e missões se juntam.

E para onde sigo depois? Não sei.

 

Parou um momento, silencioso. Depois, sem acrescentar qualquer outra palavra, voltou costas às luzes e às vozes dos campos e das tendas e, seguido pelos três companheiros, entrou no jardim e trotou pelo carreiro comprido e inclinado abaixo. Ao fundo, saltou a vedação, num ponto baixo, meteu pelos prados e mergulhou na noite como um roçagar de vento na erva.

Gandalf ficou um momento a segui-lo com o olhar, às escuras.

- Adeus, meu querido Bilbo... até ao nosso próximo encontro! - murmurou baixinho, e voltou para dentro.

Frodo chegou pouco depois e encontrou-o sentado às escuras, absorto nos seus pensamentos.

- Ele já foi? - perguntou.

- Já - respondeu-lhe Gandalf. - Partiu, finalmente.

- Desejaria... quero dizer, até esta noite esperei que não passasse de uma brincadeira. Mas, no meu coração, sabia que ele tencionava, realmente, partir. Teve sempre o hábito de brincar com coisas sérias. Tenho pena de não ter voltado para dentro mais cedo, para me despedir dele.

- Creio que, no fim, ele preferiu esgueirar-se sem ser visto - disse Gandalf. - Não te atormentes. Ele estará bem... agora. Deixou um sobrescrito para ti. Está ali.

Frodo tirou o sobrescrito da prateleira da chaminé e olhou-o, mas não o abriu.

- Creio que encontrarás aí o seu testamento e todos os outros documentos - explicou o feiticeiro. - Agora és o senhor do Fundo do Saco. Suponho que também encontrarás um anel de ouro.

- O anel! - exclamou Frodo. - Ele deixou-mo? Mas porquê? No entanto, talvez venha a ser útil.

- Talvez sim, ou talvez não - sentenciou Gandalf. - No teu lugar, não me serviria dele. De qualquer modo, guarda segredo da sua existência e vela para que esteja em segurança! Agora vou-me deitar.

Frodo achou que, como senhor do Fundo do Saco, era seu penoso dever despedir-se dos convidados. Entretanto, tinham-se espalhado pelo campo todo zunzuns de estranhos acontecimentos, mas Frodo limitou-se a dizer que sem dúvida tudo se esclareceria de manhã. Cerca da meia-noite chegaram as carruagens para levar as pessoas importantes. Partiram uma por uma, cheias de hobbits saciados, mas muito descontentes. De acordo com o que fora combinado, apareceram jardineiros que levaram, em carrinhos de mão, aqueles que, inadvertidamente, tinham ficado para trás.

A noite passou, devagar. O Sol nasceu. Os hobbits levantaram-se tarde. A manhã avançou. Chegou gente e começou (de conformidade com as ordens recebidas) a retirar os pavilhões, as mesas e as cadeiras; as colheres, as facas, as garrafas e os pratos; os vasos de arbustos coloridos, as migalhas e o papel das bombinhas-surpresa; as malas, as luvas e os lenços esquecidos, e a comida que sobrara (muito pouca coisa). Depois chegou mais gente (esta sem ter recebido ordens): Bagginses, Boffins, Bolgers, Tooks e outros convidados que viviam ou se tinham hospedado perto. Cerca do meio-dia, quando até os que melhor tinham comido já se tinham levantado, encontrava-se no Fundo do Saco uma grande multidão - que não fora convidada, mas não era inesperada.

Frodo estava no patamar, a sorrir, mas com um ar muito fatigado e preocupado. Deu as boas-vindas aos visitantes, embora pouco mais tivesse a dizer-lhes do que já dissera. A sua resposta a todas as perguntas foi simplesmente a seguinte: «O Sr. Bilbo Baggins partiu, tanto quando me é dado saber, definitivamente. » Convidou alguns dos visitantes a entrar, pois Bilbo deixara «recados» para eles.

No vestíbulo amontoava-se uma grande variedade de embrulhos, volumes e pequenas peças de mobiliário. Cada um deles tinha presa uma etiqueta, algumas delas deste género:

Para ADELARD TOOK, para SI MESMO, do Bilbo - num chapéu-de-chuva. Adelard levara muitos sem etiqueta.

Para DORA BAGGINS, em memória de uma LONGA correspondência, com a ternura do Bilbo - num grande cesto de papéis. Dora era irmã de Drogo e a parente feminina mais velha de Bilbo e Frodo; tinha 99 anos e durante mais de meio século gastara resmas e resmas de papel a escrever bons conselhos.

Para MILO TOCAS, esperando que lhe seja útil, do B. B. - numa caneta e num tinteiro de ouro. Milo nunca respondia a cartas.

Para uso de ANGÉLICA, do tio Bilbo - num espelho redondo e convexo. Angélica era uma jovem Baggins e saltava demasiado aos olhos que se considerava bonita.

Para a colecção de HUGO ESPARTILHO, de um contribuinte - numa estante (vazia). Hugo tinha o vício de pedir livros emprestados, e, quanto a devolvê-los, ainda era pior do que o comum.

Para LOBELIA BAGGINS DE VILA DO SACO, como PRESENTE - numa caixa de colheres de prata. Bilbo estava convencido de que ela se apoderara de muitas das suas colheres, enquanto ele estivera ausente na anterior viagem. Lobélia sabia-o muito bem. Quando chegou, mais tarde, percebeu imediatamente o gracejo, mas não deixou de levar as colheres.

Isto é apenas uma pequena amostragem dos presentes reunidos. A residência de Bilbo fora ficando muito atravancada, no decurso da sua longa vida. Aliás, era tendência dos buracos dos Hobbits ficarem atravancados, o que se devia em grande parte ao hábito de dar tantos presentes de aniversário. Claro que os presentes de aniversário nem sempre eram novos; havia mesmo um ou dois velhos mathoms de utilidade já esquecida, que tinham circulado por todo o distrito. Mas Bilbo oferecera geralmente prendas novas e guardara as que recebera. Agora, o velho buraco estava a ficar um pouco menos atravancado.

Cada um dos vários presentes de despedida tinha uma etiqueta escrita pessoalmente por Bilbo, e diversos tinham qualquer significado especial ou constituíam uma brincadeira. Mas, claro, a maioria das coisas destinava-se a quem delas precisava e as receberia com agrado. Os hobbits mais pobres, e em especial os da Travessa do Saco Furado, foram muito beneficiados, nesse aspecto. O Gamgee Velhote recebeu duas sacas de batatas, uma pá nova, um colete de lã e um frasco de unguento para as articulações emperradas. O velho Rory Brandybuck, como gratidão pela sua hospitalidade, recebeu uma dúzia de garrafas de Old Winyard: um vinho tinto muito forte, do Farthing Meridional, já completamente maduro, pois fora engarrafado pelo pai de Bilbo. Depois de beber a primeira garrafa, Rory perdoou completamente a Bilbo e considerou-o um tipo formidável.

Havia muito de tudo para Frodo. E, claro, ficavam em seu poder todos os tesouros principais, assim como os livros, os quadros e mobiliário mais do que suficiente. Não se via, no entanto, nenhum indício nem nenhuma menção de dinheiro ou jóias: nem uma moeda, nem uma continha de vidro foram deixadas a ninguém.

Frodo passou uma tarde muito atormentada. Sem se saber como, espalhou-se num ápice o boato falso de que todo o recheio da residência estava a ser distribuído gratuitamente, e, num abrir e fechar de olhos, a casa encheu-se de gente que não tinha lá nada a fazer, mas que foi impossível impedir de entrar. Arrancaram-se e trocaram-se etiquetas, e não tardaram a estoirar as zaragatas. Algumas pessoas tentaram fazer trocas e negócios no vestíbulo e outras esgueirar-se com pequenas coisas que lhes não eram destinadas e fosse com o que fosse que parecesse não ter dono ou não estar vigiado. O caminho de acesso ao portão ficou congestionado de carros de mão e carrocinhas puxadas a braço.

No meio da confusão, chegaram os Bagginses de Vila do Saco. Frodo retirara-se por momentos e deixara o seu amigo Merry Brandybuck a vigiar as coisas. Quando Otho disse ruidosamente que queria falar com Frodo, Merry inclinou-se, cortesmente, e respondeu:

- Sentiu-se indisposto e está a descansar.

- O que quer dizer é que está escondido - declarou Lobélia. - De qualquer modo, queremos falar com ele e falaremos. Vá dizer-lho!

Merry deixou-os um bocado à espera, no vestíbulo, e eles tiveram tempo de descobrir o seu presente de despedida: as colheres. Claro que isso lhes não apaziguou o mau génio. Por fim, foram conduzidos ao escritório. Frodo estava sentado a uma mesa, com uma quantidade de papéis à frente, e parecia indisposto - pelo menos por ver os Bagginses de Vila do Saco. Levantou-se, a brincar com qualquer coisa que tinha na algibeira, e falou com toda a cortesia.

Os Bagginses de Vila do Saco, em contrapartida, foram ofensivos. Começaram por oferecer-lhe maus preços de pechincha (entre amigos) por várias coisas valiosas e sem etiqueta. Quando Frodo lhes respondeu que as únicas coisas valiosas que dali sairiam seriam as especialmente assinaladas por Bilbo, declararam que toda aquela história lhes parecia muito escura.

- Só há uma coisa clara quanto a mim - afirmou Otho -, tu estás a ficar muitíssimo beneficiado. Insisto em ver o testamento.

Otho teria sido o herdeiro de Bilbo, se este não tivesse adoptado Frodo. Leu o testamento cuidadosamente e rosnou. Infelizmente, estava tudo muito claro e correcto (segundo os costumes jurídicos dos hobbits, que, entre outras coisas, exigem a assinatura a tinta vermelha de sete testemunhas).

- Outra vez intrujado! - disse à mulher. - E depois de esperar sessenta anos! Colheres? Bagatelas! - Estalou os dedos debaixo do nariz de Frodo e saiu a bater com os pés.

Mas Lobélia não era pessoa de quem se livrassem facilmente. Pouco depois, Frodo saiu do escritório, para ver como iam as coisas, e encontrou-a a investigar cantos e nichos e a bater nos soalhos. Acompanhou-a firmemente à porta, depois de lhe ter tirado diversos objectos pequenos (mas muito valiosos) que tinham ido parar, não se sabia como, dentro da sua sombrinha. Pela cara que fez, dir-se-ia que estava a pensar numa frase de despedida verdadeiramente esmagadora; mas a única coisa que encontrou para dizer, ao virar-se no patamar, foi:

- Há-de lamentar este dia, meu jovem! Por que não partiu também? Não é daqui, não é um Baggins... você é um... um... Brandybuck!

- Ouviste aquilo, Merry? Parece-me que foi um insulto - comentou Frodo, ao fechar a porta.

- Foi um cumprimento - redarguiu Merry Brandybuck. - E como tal, claro, inverídico.

Depois percorreram todo o buraco e expulsaram três jovens hobbits (dois Boffins e um Bolger) que estavam a abrir buracos nas paredes de uma das adegas. Frodo também teve uma escaramuça com o jovem Sancho Pé Magnífico (neto do velho Odo Pé Magnífico), que iniciara uma escavação na copa maior, onde lhe parecera ouvir um eco. A lenda do ouro de Bilbo excitava tanto a curiosidade como a esperança, pois o ouro lendário (misteriosamente obtido, se não positivamente mal ganho) pertence, como toda a gente sabe, a quem o achar - a não ser que a busca seja interrompida.

Quando conseguiu dominar Sancho e expulsá-lo, Frodo deixou-se cair numa cadeira do vestíbulo.

- São horas de encerrar a loja, Merry - disse. - Fecha a porta à chave e não a voltes a abrir a ninguém, hoje, nem que tragam um aríete.

Depois foi reanimar-se com uma tardia chávena de chá.

Mal se sentara quando ouviu bater suavemente à porta principal. «O mais provável é ser outra vez a Lobélia», pensou. «Deve ter-se lembrado de qualquer coisa verdadeiramente feia e voltou atrás para ma dizer. Paciência, pode esperar.»

Continuou a beber o seu chá. O bater repetiu-se, com muito mais força, mas ele não fez caso. De súbito, a cabeça do feiticeiro apareceu à janela.

- Se não me deixas entrar, Frodo, arrebento com a tua porta e faço-a sair pelo outro lado do monte!

- Meu caro Gandalf! Um momentinho! - gritou Frodo, e saiu a correr para ir abrir a porta. - Entre, entre! Pensei que fosse a Lobélia.

- Nesse caso, perdoo-te. Vi-a há bocado, a conduzir uma charrete na direcção de A Beira-d'Água, com uma cara capaz de azedar leite acabado de ordenhar.

- A mim já ela azedou! Palavra, por pouco não experimentei o anel do Bilbo, tanto desejei desaparecer!

- Não faças isso! - recomendou Gandalf, enquanto se sentava. - Tem cuidado com esse anel, Frodo! Por sinal, foi em parte por causa dele que vim dizer-te uma última palavra.

- De que se trata?

- Que sabes tu já?

- Somente o que Bilbo me disse. Ouvi a sua história: como o achou e como o utilizou. Quero dizer, na sua viagem.

- Muito gostaria de saber qual das histórias!

- Oh, não foi a que ele contou aos Anões e escreveu no seu livro! - asseverou Frodo. - Contou-me a história autêntica pouco depois de eu ter vindo viver para cá. Disse-me que o senhor o serrazinara até ele lha contar, e por isso era melhor eu ficar também a conhecê-la. «Não quero segredos entre nós, Frodo», afirmou. «Mas o que te contar não deve passar daqui. De qualquer modo, é meu.»

- Isso é interessante - comentou Gandalf. - E então, que pensaste do caso?

- Se quer referir-se àquela invenção do «presente», enfim, pensei que a história era muito mais verosímil, e não compreendi que pudesse haver necessidade de a modificar. De qualquer modo, isso não estava nada de acordo com a maneira de ser de Bilbo, e eu achei muito estranho.

- Também eu. Mas podem acontecer coisas estranhas a pessoas que possuem tais tesouros... se os utilizam. Que isso te sirva de aviso, para seres muito cauteloso. O anel pode ter outros poderes além de permitir ao seu possuidor desaparecer, quando lhe apetece.

- Não compreendo - confessou Frodo.

- Nem eu. Mas comecei a pensar a sério no anel, em especial a partir da noite passada. Não há, porém, motivo para preocupações. No entanto, se seguires o meu conselho, usá-lo-ás muito raramente ou nunca. Rogo-te que, pelo menos, o não uses de modo que dê origem a conversas ou levante suspeitas. Repito: guarda segredo dele e conserva-o em segurança!

- Está a ser muito misterioso! Que receia?

- Como não tenho a certeza, não digo mais nada. Talvez saiba dizer-te alguma coisa quando regressar. Vou partir imediatamente; por isso, vim dizer-te adeus, por agora. - Levantou-se.

- Imediatamente! - exclamou Frodo. - Mas eu pensava que ficaria pelo menos uma semana! Estava a contar com a sua ajuda.

- Eu também tencionava ficar... mas tive de mudar de ideias. Talvez me demore um bom bocado, mas de qualquer maneira virei ver-te assim que puder. Não te surpreendas, quando me vires. Aparecerei à socapa... Não serão já muitas as vezes que voltarei a visitar o Shire às claras. Descobri que me tornei muito impopular; dizem que sou um aborrecimento e perturbo a paz. Algumas pessoas até me acusam, mesmo, de ter feito desaparecer Bilbo... ou pior! Se queres saber, consta que existe um conluio entre nós dois para nos apoderarmos da sua fortuna.

- Algumas pessoas! - exclamou Frodo. - Claro, refere-se ao Otho e à Lobélia. É abominável! Eu dar-lhes-ia o Fundo do Saco e tudo o mais, se o Bilbo voltasse e me levasse com ele por aí fora, a calcorrear o país! Gosto muito do Shire, mas, não sei porquê, começo a ter pena de não ter ido também. Pergunto a mim mesmo se voltarei a vê-lo.

- Também eu - confessou Gandalf. - Isso e muitas outras coisas. Bem, adeus por agora. Cuida de ti e espera-me, sobretudo nas ocasiões em que te pareça menos provável eu aparecer. Adeus!

Frodo acompanhou-o à porta. Gandalf acenou-lhe uma última vez e afastou-se com uma passada surpreendente, o que não impediu Frodo de pensar que o velho feiticeiro parecia extraordinariamente curvado, quase como se transportasse um grande peso. Anoitecia, e o seu vulto envolto na capa desapareceu rapidamente no crepúsculo. Frodo não voltou a vê-lo durante muito tempo.

 

A SOMBRA DO PASSADO

As conversas não esmoreceram em nove dias, nem sequer em noventa e nove. O segundo desaparecimento do Sr. Bilbo Baggins foi discutido em Hobbiton, e mesmo em todo o Shire, durante um ano e um dia, e foi recordado durante muito mais tempo. Tornou-se uma história que se contava à lareira aos pequenos hobbits e, por fim, o Baggins Louco, que costumava desaparecer com um estampido e um clarão e reaparecer com malas de ouro e pedras preciosas, transformou-se numa personagem lendária favorita e continuou a viver muito depois de terem sido esquecidos todos os acontecimentos verdadeiros.

Entretanto, porém, a opinião geral da vizinhança era que Bilbo, que sempre fora um tanto ou quanto chalado, acabara por endoidecer por completo e se sumira no desconhecido. Aí caíra certamente nalgum charco ou num rio e encontrara um fim trágico, mas de modo algum precoce. Atribuíram-se as culpas, principalmente, a Gandalf.

- Se ao menos aquele demónio do feiticeiro deixar o jovem Frodo em paz, talvez ele assente e ganhe algum juízo - diziam.

E, segundo todas as aparências, o feiticeiro deixou realmente Frodo em paz e este assentou, mas se ganhou juízo... enfim, não se notava muito. Por sinal, até começou logo a merecer a fama de excentricidade que pertencera a Bilbo. Recusou-se a pôr luto e, no ano seguinte, ofereceu uma festa em honra do 112.º aniversário de Bilbo, a que chamou «Festim de 112 arráteis». O nome, porém, não foi bem escolhido, pois os convidados foram vinte e houve diversas refeições em que nevou comida e choveu bebida, como os Hobbits diziam.

Algumas pessoas ficaram escandalizadas. Mas Frodo manteve o costume de festejar o aniversário de Bilbo ano após ano, até todos se habituarem. Não acreditava, afirmava, que Bilbo tivesse morrido. Encolhia os ombros quando lhe perguntavam: «Onde está ele, então?»

Vivia sozinho, como Bilbo vivera, mas tinha muitos amigos, especialmente entre os hobbits mais novos (na sua maioria descendentes do Velho Took), que em crianças tinham sido amigos de Bilbo e visitas frequentes do Fundo do Saco. Folco Boffin e Fredegar Bolger eram dois deles, embora os seus amigos mais íntimos fossem Peregrino Took (vulgo Pippin) e Merry Brandybuck (o seu verdadeiro nome era Meriadoc, mas as pessoas raramente se lembravam disso). Frodo calcorreava o Shire com eles, mas as mais das vezes vagueava sozinho, e, com grande espanto da gente sensata, era visto, de quando em quando, muito longe de casa a caminhar nos montes e nas florestas à luz das estrelas. Merry e Pippin desconfiavam de que, por vezes, visitava os Elfos, como Bilbo fizera.

Com o correr do tempo, as pessoas começaram a reparar que Frodo também evidenciava sinais de estar «bem conservado»: exteriormente, mantinha a aparência de um robusto e enérgico hobbit, acabado de chegar à idade adulta. «Há pessoas que têm a sorte toda», comentavam. Mas foi só quando Frodo se abeirou da idade, geralmente mais sóbria, dos 50 anos que começaram a achar o facto estranho.

Quanto a Frodo, depois do primeiro abalo, achou que ser senhor de si mesmo e o Sr. Baggins do Fundo do Saco era muito agradável. Durante alguns anos, sentiu-se muito feliz e pouco se preocupou com o futuro. Mas, quase sem que se apercebesse, o desgosto de não ter ido com Bilbo crescia firmemente nele. Às vezes, sobretudo no Outono, dava consigo a pensar nas terras selvagens e nos seus sonhos apareciam visões estranhas de montanhas que nunca vira. Começou a dizer, de si para consigo: «Talvez eu próprio atravesse o Rio, um dia.» Ao que a outra metade do seu cérebro respondia sempre: «Ainda não.»

As coisas foram correndo assim, até a década dos 40 anos chegar ao fim e se aproximar o seu 50.º aniversário: 50 anos era uma idade que lhe parecia de certo modo significativa (ou ominosa); pelo menos fora nessa idade que a aventura se atravessara, repentinamente, no caminho de Bilbo. Frodo começou a sentir-se inquieto e a achar os velhos caminhos demasiado batidos. Consultava mapas e ficava a pensar no que existiria para lá dos seus limites - os mapas feitos no Shire apresentavam especialmente espaços brancos, para além das fronteiras. Adquiriu o hábito de se afastar cada vez para mais longe e, cada vez com maior frequência, sozinho. Merry e os seus outros amigos observavam-no, ansiosos. Viram-no muitas vezes caminhar e conversar com os estranhos viandantes que por essa época começaram a aparecer no Shire.

Corriam boatos de que aconteciam coisas estranhas no mundo exterior. Como, entretanto, Gandalf não aparecia nem enviava qualquer recado havia diversos anos, Frodo tentava colher todas as notícias que podia. Elfos, que raramente entravam no Shire, começaram a ser vistos rumo ao Ocidente, através das florestas, ao anoitecer - passavam, mas não voltavam; abandonavam a Terra Média e deixavam de se preocupar com os seus problemas. E viam-se também anões na estrada, em números fora do vulgar. A antiga Estrada Leste-Oeste atravessava o Shire até ao fim, nos Portos Cinzentos, e os Anões tinham-na sempre utilizado para se dirigirem às suas minas, nas Montanhas Azuis. Eram, aliás, para os Hobbits, a principal fonte de notícias de terras distantes - se eles as queriam: em regra, os Anões falavam pouco, e os Hobbits não perguntavam mais. Mas agora Frodo encontrava frequentemente anões desconhecidos, de países longínquos, que iam procurar refúgio no Ocidente. Pareciam perturbados e alguns falavam em sussurros do Inimigo e da Terra de Mordor.

Os Hobbits só conheciam esse nome através de lendas do sombrio passado, como uma sombra escondida no fundo da sua memória; mas mesmo assim era ominoso e inquietante. Ao que parecia, a força má existente na Floresta Tenebrosa tinha sido expulsa pelo Conselho Branco, mas, afinal, para reaparecer, mais poderosa ainda, nas antigas fortalezas de Mordor. A Torre Negra fora reconstruída, dizia-se. A partir daí, o poder alastrava num grande raio a toda a volta, e no extremo Leste e no Sul havia guerras e crescia o medo. Os Orcs multiplicavam-se de novo nas montanhas; andavam trolls à solta, mas trolls que já não eram estúpidos, e sim astutos, e estavam munidos de armas terríveis, e murmurava-se que existiam criaturas ainda mais terríveis do que todas essas, mas que não tinham nome.

Claro que pouco de tudo isto chegava aos ouvidos dos hobbits comuns. Mas até os mais surdos e mais amigos de ficar em casa começavam a ouvir estranhas histórias. E aqueles cujos negócios os levavam até às fronteiras viam estranhas coisas. A conversa que, certa noite de Primavera do 50.º ano de Frodo, se travava n'O Dragão Verde, em À Beira-d'Água, provava que até no aconchegado coração do Shire já corriam boatos, embora, na sua maioria, os Hobbits ainda se rissem deles.

Sam Gamgee estava sentado a um canto, junto da lareira, e defronte dele encontrava-se Ted Amarelento, o filho do moleiro. Diversos outros hobbits escutavam a sua conversa:

- Ouvem-se estranhas coisas hoje em dia, verdade seja - disse Sam.

- Pois ouvem, quando se dá ouvidos - admitiu Ted. - Mas, se quiser ouvir contos de lareira e histórias infantis, posso ouvi-los em casa.

- Claro que podes, e eu até acho que nalgumas delas há mais verdade do que imaginamos - concordou Sam. - Mas quem inventou as histórias? Os dragões, por exemplo...

- Não, muito obrigado - interrompeu Ted. - Ouvi falar deles quando era garoto, mas agora não tenho motivo nenhum para acreditar na sua existência. Em À Beira-d'Água só há um dragão, e é o verde! - acrescentou, a brincar, e provocou uma gargalhada geral.

- Pois sim - admitiu Sam, a rir com os outros. - Mas que me dizes desses homens-árvores, desses gigantes, como se lhes pode chamar? Dizem que viram um maior do que uma árvore não há muito tempo, para lá dos Pântanos do Norte.

- Dizem, quem?

- O meu primo Hal, por exemplo. Ele trabalha para o Sr. Boffin, em Além-Monte, e vai caçar ao Farthing Setentrional. Viu um.

- Diz que viu, talvez. O teu Hal anda sempre a dizer que vê coisas: e talvez veja coisas que não existem.

- Mas este era do tamanho de um olmo e andava... dava passadas de sete metros cada uma, mais coisa menos coisa.

- Então aposto que não era coisa nenhuma. O mais certo é ele ter visto um olmo.

- Mas já te disse que este andava! Além disso, não há olmos nos Pântanos do Norte.

- Se não há, o Hal não pode ter visto um! - A assistência riu-se e bateu palmas, como se pensasse que Ted marcara um ponto.

- Seja como for - insistiu Sam -, não podes negar que outros, além do nosso Halfast, viram gente estranha atravessar o Shire... Atravessar, nota; há mais que foram mandados para trás, nas fronteiras. Os fronteireiros nunca tiveram tanto trabalho na vida deles.

»E ouvi dizer que há elfos a seguir para ocidente. Dizem que vão para os portos que ficam para lá, depois das Torres Brancas. - Sam fez um gesto vago com o braço: nem ele nem nenhum dos presentes sabia a que distância ficava o mar, para além das torres velhas, depois das fronteiras do Shire; mas uma tradição antiga dizia que para esses lados existiam os Portos Cinzentos, dos quais, às vezes, partiam à vela barcos elfos, que nunca mais voltavam.

»Navegam, navegam, navegam pelo mar fora, vão para ocidente e deixam-nos», acrescentou Sam, quase como se cantasse, ao mesmo tempo que abanava triste e solenemente a cabeça.

Mas Ted riu-se.

- Bem, isso não é novidade nenhuma, se acreditarmos nas histórias antigas. De resto, não vejo em que nos possa interessar, a ti ou a mim. Deixa-os navegar! O que te garanto é que não viste nenhum. Nem tu, nem ninguém do Shire.

- Bem, não sei... - murmurou Sam, pensativamente.

Estava convencido de que, uma vez, vira um elfo na floresta, e tinha esperança de ver mais, qualquer dia. De todas as lendas de que ouvira falar na infância, o que sempre o impressionara mais profundamente tinham sido os fragmentos de contos e histórias meio esquecidas, a respeito dos Elfos, que os Hobbits sabiam.

- Há algumas pessoas, até mesmo nestas bandas, que conhecem o Povo Belo e têm notícias deles - afirmou. - O Sr. Baggins, por exemplo, para quem trabalho. Disse-me que eles estão a navegar, e ele sabe algumas coisas a respeito dos Elfos. E o velho Sr. Bilbo ainda sabia mais. Quantas conversas tive com ele, quando era garoto!

- Ora, são ambos chalados! - comentou Ted. - Pelo menos o velho Bilbo era chalado, e o Frodo vai por esse andar. Se foi nessa fonte que obtiveste as tuas notícias, nunca te faltarão fantasias. Bem, amigos, vou andando para casa. À vossa saúde! - Despejou a caneca e saiu ruidosamente.

Sam ficou sentado e não disse mais nada. Tinha muito em que pensar. Para começar, havia muito que fazer no jardim do Fundo do Saco e no dia seguinte teria um dia muito atarefado, se o tempo melhorasse. A relva estava a crescer muito depressa... Mas Sam tinha mais em que pensar além da jardinagem. Passados momentos, suspirou, levantou-se e saiu.

Estavam em princípios de Abril e o céu clareava, depois de forte chuva. O Sol pusera-se e o crepúsculo frio e pálido dissolvia-se serenamente na noite. Atravessou Hobbiton e, subiu o Monte a caminho de casa, à luz das primeiras estrelas, a assobiar suave e melancolicamente.

 

Foi precisamente nessa altura que Gandalf reapareceu, depois da sua longa ausência. Depois da festa, estivera ausente três anos, findos os quais fizera a Frodo uma breve visita: olhara-o bem e partira de novo. No ano ou dois que se seguiram apareceu com relativa frequência, chegando inesperadamente depois do crepúsculo e partindo sem avisar antes de nascer o Sol. Não falava dos seus assuntos nem das suas viagens e parecia principalmente interessado em pequenas notícias a respeito da saúde de Frodo e do que ele fazia.

Até que, subitamente, as suas visitas cessaram. Havia mais de nove anos que Frodo o não via nem tinha notícias dele, e começara já a pensar que o feiticeiro nunca mais voltaria e perdera todo o interesse pelos Hobbits. Mas, nesse anoitecer, quando Sam caminhava para casa e o crepúsculo se dissolvia, ouviu-se a outrora familiar pancada na janela do escritório.

Frodo recebeu o seu velho amigo com surpresa e grande contentamento. Fitaram-se bem, um ao outro.

- Tudo bem, não é verdade? - perguntou Gandalf. - Tens o mesmo aspecto de sempre, Frodo.

- Também o senhor - respondeu Frodo, mas, intimamente, pensou que Gandalf parecia mais velho e mais preocupado.

Insistiu com ele para que lhe desse notícias suas e do vasto mundo, e não tardaram a embrenhar-se numa conversa que se prolongou pela noite fora.

Na manhã seguinte, depois de tomarem um pequeno-almoço tardio, o feiticeiro estava sentado com Frodo junto da janela aberta do escritório. Ardia um fogo vivo na lareira, mas o sol estava quente e o vento soprava do Sul. Tinha tudo um ar fresco e o verde novo da Primavera brilhava nos campos e nas pontas dos ramos das árvores.

Gandalf recordava uma Primavera, havia quase oitenta anos, em que Bilbo saíra do Fundo do Saco sem levar sequer um lenço consigo. O cabelo do feiticeiro talvez estivesse mais branco do que então, a sua barba mais comprida e as suas sobrancelhas mais hirsutas, talvez o seu rosto estivesse mais enrugado pelos cuidados e pela sabedoria; mas os seus olhos conservavam o mesmo brilho e ele fumava e expelia anéis de fumo com a energia e o deleite de sempre.

Naquele momento fumava em silêncio, pois Frodo estava sentado muito quieto, absorto em pensamentos. Até à luz matinal, sentia a presença da sombra negra das notícias que Gandalf trouxera. Por fim, quebrou o silêncio:

- A noite passada começou a contar-me estranhas coisas acerca do meu anel, Gandalf. Mas depois calou-se e alegou que era melhor deixar esses assuntos para a luz do dia. Não acha conveniente acabar de mo dizer agora? Disse que o anel era perigoso muito mais perigoso do que eu imagino. Em que sentido?

- Em muitos sentidos - respondeu o feiticeiro. - Tem muito mais poder do que eu próprio ousei pensar, ao princípio, tanto poder que acabaria por vencer completamente alguém de raça mortal que o possuísse. Seria ele que passaria a possuí-lo.

»Em Eregion, há muito tempo, fizeram-se anéis élficos, anéis mágicos, como vocês lhes chamam, e que eram, claro, de vários tipos: uns mais potentes e outros menos. Os anéis menos potentes foram apenas meras experiências, até a arte de os fazer se desenvolver por completo, e os ferreiros élficos consideravam-nos meras bagatelas.

No entanto, na minha opinião, eram perigosos para os mortais. Mas os Grandes Anéis, os Anéis do Poder, quanto a esses não havia dúvida: eram mesmo perigosos.

»um mortal que possua um dos Grandes Anéis, Frodo, não morre, mas também não se desenvolve nem obtém mais vida; limita-se a continuar vivo até que, por fim, cada minuto é um enfado. E, se utiliza frequentemente o anel para se tornar invisível, desaparece: no fim torna-se permanentemente invisível e vive no crepúsculo sob o olhar da potência negra que domina os Anéis. Sim, mais cedo ou mais tarde... Mais tarde se acaso é forte ou bem intencionado, mas nem a força nem as boas intenções durarão sempre... Mais cedo ou mais tarde, dizia eu, a potência negra devorá-lo-á.»

- Que assustador! - exclamou Frodo.

Seguiu-se outro longo silêncio. Do jardim vinha o barulho da tesoura de Sam Gamgee a aparar a relva.

 

- Há quanto tempo sabe isso? - perguntou, por fim, Frodo. - E que sabia Bilbo?

- Tenho a certeza de que Bilbo não sabia mais do que te disse - respondeu Gandalf. - Ele certamente nunca transferiria para ti uma coisa que pensasse constituir um perigo, apesar de eu lhe ter prometido que olharia por ti. Pensava que o anel era muito bonito e muito útil, num aperto, e achava que, se alguma coisa não estava certa ou era estranha, a culpa devia ser dele próprio. Disse-me que o anel estava a «pesar-lhe no espírito» e preocupava-se constantemente com ele; mas não suspeitava de que a culpa disso fosse do anel. No entanto, já descobrira que o objecto merecia que se atentasse nele. Não parecia ter sempre o mesmo tamanho ou o mesmo peso; minguava ou crescia de modo estranho e, subitamente, podia dançar num dedo onde estivera justo.

- Sim, ele avisou-me desse pormenor na sua última carta - confirmou Frodo. - Por isso, tenho-o sempre suspenso da corrente.

- Muito sensato da tua parte - declarou Gandalf. - Mas Bilbo nunca relacionou a sua longa vida com o anel. Assumiu pessoalmente todo o crédito desse facto, de que muito se orgulhava. No entanto, estava a tornar-se agitado e inquieto. Fino e esticado, como disse. Sinal de que o anel estava a obter controlo sobre ele.

- Há quanto tempo sabe tudo isso? - perguntou novamente Frodo.

- Há quanto tempo sei? Sei muitas coisas que só os Sábios sabem, Frodo. Mas se te referes ao que «sei a respeito deste anel», bem, talvez se possa dizer que ainda não sei. É necessário proceder a um último teste, mas eu já não duvido do que conjecturo.

»Quando comecei a conjecturar? - perguntou baixinho, a procurar na memória. - Ora deixa-me ver... Foi no ano em que o Conselho Branco expulsou a potência negra da Floresta Tenebrosa, pouco antes da Batalha dos Cinco Exércitos, que Bilbo achou o seu anel. Uma sombra envolveu-me então o coração, embora eu ainda não soubesse o que receava. Perguntei muitas vezes a mim mesmo como conseguira Gollum tornar-se possuidor de um Grande Anel, pois de que o era não havia dúvida... isso, pelo menos, foi claro para mim desde o princípio. Depois ouvi a estranha história que o Bilbo contava, de como o 'ganhara', e não pude acreditar. Quando, por fim, lhe arranquei a verdade, compreendi logo que ele tentara fazer valer os seus direitos de posse do anel de modo que não restassem dúvidas. De maneira muito semelhante à de Gollum, ao aludir ao seu presente de aniversário. As mentiras eram tão parecidas que não me tranquilizaram nada. Pareceu-me evidente que o anel possuía um poder pernicioso, que começava a exercer-se imediatamente sobre o seu possuidor. Foi a primeira verdadeira advertência que tive de que nem tudo estava bem. Disse muitas vezes ao Bilbo que o melhor era não usar tais anéis, mas ele não gostava e não tardava a zangar-se. Pouco mais estava na minha mão. Não lho podia tirar sem fazer um mal maior, e, de qualquer modo, não tinha esse direito. Só me restava estar atento e esperar. Talvez pudesse ter consultado Saruman, o Branco, mas houve sempre qualquer coisa que me conteve.

- Quem é Saruman? - perguntou Frodo. - Nunca tinha ouvido falar dele.

- É possível que não tenhas - redarguiu Gandalf. - Os Hobbits não lhe dizem, ou não lhe diziam respeito. No entanto, ele é grande entre os Sábios, é o chefe da minha ordem e o presidente do Conselho. O seu saber é profundo, mas o seu orgulho cresceu na mesma proporção e ele não gosta de interferências. A tradição dos anéis élficos, grandes e pequenos, é do seu pelouro. Estuda-a há muito tempo, à procura dos segredos perdidos do seu fabrico. Mas, quando os anéis foram debatidos no Conselho, aquilo que se dignou revelar-nos do seu saber a tal respeito desmentiu os meus receios. Por isso, a minha dúvida adormeceu... mas inquieta. E eu continuei atento e à espera.

»Por outro lado, parecia correr tudo bem com o Bilbo. E os anos foram passando. Sim, foram passando, mas dir-se-ia não deixarem vestígios nele. Bilbo não apresentava quaisquer sinais de envelhecimento. A sombra voltou a envolver-me o coração, mas pensei: «No fim de contas, ele provém de uma família longeva, da parte da mãe. Ainda há tempo. Espera!»

»E esperei. Até àquela noite em que ele partiu desta casa. Nessa altura, disse e fez coisas que me encheram de um medo que nenhumas palavras de Saruman poderiam jamais apaziguar. Sabia, finalmente, que estava em acção algo sinistro e terrível. Depois disso passei a maior parte dos anos decorridos a procurar a verdade.

- Não tinha sido feito nenhum mal permanente, pois não? - perguntou Frodo, cheio de ansiedade. - Ele ficaria bom, com o tempo, não ficaria? Quero dizer, poderia descansar em paz?

- Sentiu-se imediatamente melhor. Mas neste mundo só há um Poder que sabe tudo a respeito dos anéis e dos seus efeitos; e, tanto quanto suponho, não existe neste mundo nenhum Poder que saiba tudo a respeito dos Hobbits. Entre os Sábios, sou o único que se interessa pela cultura hobbitiana, um ramo de conhecimento obscuro mas cheio de surpresas. São capazes de ser macios como manteiga, mas às vezes são duros como raízes de árvores velhas. Acho possível que alguns fossem capazes de resistir aos anéis muito mais tempo do que a maioria dos Sábios imaginaria. Não creio, por isso, que precises de te preocupar com o Bilbo.

»É verdade que ele possuiu o anel durante muitos anos, e o utilizou: portanto, naturalmente, seria preciso muito tempo para a influência recebida se desvanecer... antes, por exemplo, de ele poder voltar a ver o anel sem perigo. Por outro lado, é possível que pudesse continuar a viver anos completamente feliz: que parasse como era quando se separou dele. Sim, porque, no fim, ele separou-se do anel de sua livre vontade, o que é importante. Confesso que deixei de me preocupar com o caro Bilbo a partir do momento em que ele prescindiu do objecto. É por ti que me sinto responsável.

»Desde que Bilbo partiu, tenho andado profundamente preocupado contigo e com todos esses encantadores, absurdos e indefesos hobbits. Seria um duro golpe para o mundo se o Poder Negro dominasse o Shire, se todos os amáveis, alegres e estúpidos Bolgers, Corneteiros, Boffins, Espartilhos e os restantes, para não mencionar os ridículos Bagginses, fossem escravizados.

Frodo sentiu um calafrio.

- Mas porque havíamos nós de ser escravizados? - perguntou. - E por que havia ele de querer tais escravos?

- Para dizer a verdade - respondeu Gandalf -, creio que até agora... até agora, nota bem... ignorou por completo a existência dos Hobbits. Deviam sentir-se gratos. Mas essa segurança acabou-se. Ele não precisa de vocês... tem servos muito mais úteis... mas não voltará a esquecê-los. E os Hobbits agradar-lhe-iam muito mais como escravos miseráveis do que como criaturas felizes e livres. A maldade e a vingança são realidades, existem!

- Vingança? - repetiu Frodo, admirado. - Vingança de quê? Continuo sem compreender o que tem isso tudo a ver com o Bilbo, comigo e com o nosso anel.

- Tem tudo a ver com vocês - afirmou Gandalf. - Ainda ignoras qual é o verdadeiro perigo, mas acabarás por conhecê-lo. Eu próprio não estava certo a esse respeito, quando aqui estive da última vez. Mas agora chegou a altura de falar. Empresta-me o anel um momento.

Frodo tirou-o da algibeira dos calções, onde estava preso a uma corrente que lhe pendia do cinto. Soltou-o e estendeu-o devagar ao feiticeiro. O anel pareceu de súbito muito pesado, como se ele ou Frodo sentissem relutância em permitir que Gandalf tocasse.

Gandalf ergueu-o no ar. Parecia feito de ouro puro e sólido.

- Vês algumas marcas nele? - perguntou.

- Não. Não tem nenhumas - respondeu Frodo. - É perfeitamente liso e nunca apresenta qualquer risco ou sinal de uso.

- Pois bem, então olha!

Para espanto e angústia de Frodo, o feiticeiro atirou-o repentinamente para um canto ígneo do lume. Frodo soltou um grito e estendeu a mão para a tenaz, mas Gandalf deteve-o.

- Espera! - ordenou, em voz autoritária, e lançou-lhe um olhar rápido, sob as sobrancelhas hirsutas.

Aparentemente, não se operou nenhuma mudança no anel. Decorrido um bocado, Gandalf levantou-se, fechou as persianas da janela e correu as cortinas. A sala ficou escura e silenciosa, embora o ruído da tesoura de Sam, agora mais próximo da janela, ainda se ouvisse, abafado, no jardim. O feiticeiro ficou um momento parado, a olhar para o lume; depois inclinou-se, tirou o anel do brasido com a tenaz e pegou-lhe logo. Frodo soltou uma exclamação ansiosa.

- Está completamente frio - tranquilizou-o Gandalf. - Pega-lhe!

Frodo recebeu-o na trémula palma da mão. Parecia mais grosso e pesado do que nunca.

- Levanta-o e olha-o de perto! - ordenou-lhe Gandalf.

Frodo obedeceu e viu que linhas finíssimas corriam ao longo do anel, tanto na parte interna como na externa: linhas de fogo que pareciam formar letras de uma caligrafia leve e harmoniosa. As letras brilhavam penetrantemente, mas ao mesmo tempo pareciam distantes, como se estivessem a luzir a grande profundidade.

- Não consigo ler as letras de fogo - disse Frodo, em voz trémula.

- Pois não, mas eu consigo. As letras são élficas, de um estilo antigo, mas a língua é a de Mordor, que não pronunciarei aqui. No Idioma Comum, diz aproximadamente o seguinte:

Um anel para todos dominar, um anel para os encontrar,

Um anel para a todos prender e nas trevas reter.

»São apenas dois versos duma estrofe da velha tradição elven:

Três anéis para os Reis Elfos debaixo do Céu,

Sete para os Senhores dos Anões nos seus palácios de pedra,

Nove para os Homens Mortais condenados a morrer,

Um para o Senhor das Trevas no seu negro trono

Na Terra de Mordor onde moram as Sombras.

Um anel para a todos dominar, um anel para os encontrar,

Um anel para a todos prender e nas trevas os reter

Na Terra de Mordor onde moram as Sombras.

 

Fez uma pausa, e depois disse, devagar, em voz profunda:

- Este é o Anel-Mestre, o Um Anel para a todos dominar. É o Anel que ele perdeu há muito, muito tempo e causou grande enfraquecimento do seu poder. Deseja veementemente recuperá-lo... mas não deve recuperá-lo.

Frodo ficou calado e imóvel. O medo parecia estender uma grande mão, como uma nuvem negra a subir no Oriente e a crescer para o tragar.

- Este anel! - gaguejou. - Mas como... como veio parar às minhas mãos?

- Ah, essa é uma longa, muito longa história! - respondeu-lhe Gandalf. - O seu início remonta aos Anos Negros, de que já só se lembram os mestres historiadores. Se eu ta contasse toda, ainda aqui estaríamos sentados quando fosse Inverno em vez de Primavera.

»Mas a noite passada falei-te de Sauron, o Grande, Senhor das Trevas. Os boatos que tens ouvido são verdadeiros: ele ressurgiu, de facto, abandonou a sua prisão na Floresta Tenebrosa e regressou à sua antiga fortaleza na Torre Negra de Mordor. Desse nome, até vocês, hobbits têm ouvido falar, como uma sombra a pairar à volta das histórias antigas. Sempre, após uma derrota e uma trégua, a Sombra assume outra forma e volta a crescer.»

- Quem me dera que não fosse preciso acontecer, o mesmo desta vez! - murmurou Frodo.

- Também a mim - respondeu Gandalf. «Quem dera!», Pensam todos quantos vivem para ver semelhantes tempos. Mas não está na sua mão decidir. A única coisa que temos de decidir é o que faremos com o tempo que nos é dado. E, Frodo, o nosso tempo já começa a parecer negro. O Inimigo está a tornar-se rapidamente muito forte. Penso que os seus planos ainda não estão maduros, longe disso, mas estão a amadurecer. Vamos ter dificuldades. Creio, de resto, que teríamos grandes dificuldades, mesmo sem esta sinistra ocorrência.

»Ao Inimigo ainda falta uma coisa para lhe dar força e saber suficientes para vencer toda a resistência, derrubar as últimas defesas e cobrir todas as terras com uma segunda escuridão. Falta-lhe o Anel Um.

»Aos Três, os mais belos de todos, os Senhores dos Elfos esconderam-nos dele e a sua mão nunca lhes tocou, nem os maculou. Os Senhores dos Anões possuíram sete, mas ele recuperou três e os dragões encarregaram-se dos outros. Os Nove, deu-os aos Homens Mortais, orgulhosos e grandes, e com isso os seduziu. Há muito tempo que caíram sob o domínio do Um e se tornaram Espectros do Anel, sombras dominadas pela grande Sombra, os seus mais terríveis servidores. Há muito tempo. Há muitos anos que os Nove desapareceram. Mas, quem sabe? À medida que a Sombra volta a crescer, é possível que também eles reapareçam. Mas, chega, não falemos de tais coisas, nem mesmo à luz matinal do Shire.

»A situação, agora, é a seguinte: aos Nove, chamou-os a si; aos Sete também, ou então foram destruídos; os Três continuam escondidos, mas isso já o não incomoda. Só precisa do Um, pois ele próprio fez esse anel, é seu, e deixou que se transferisse para ele uma grande parte do seu poder primitivo, para que pudesse dominar todos os outros. Se o recuperar, então mandará de novo em todos eles, onde quer que estejam, até mesmo nos Três, e tudo quanto foi feito com eles será destruído e ele ficará mais forte do que nunca.

»É esta a terrível ocorrência, Frodo. Ele estava convencido de que o Um perecera, de que os Elfos o tinham destruído, como deveria ter acontecido. Mas agora sabe que ele não pereceu, que foi encontrado. Por isso, procura-o, procura-o, e todo o seu pensamento se concentra nisso. É a sua grande esperança e o nosso grande medo.»

- Mas porquê, por que não foi destruído?! - gritou Frodo. - E como se explica que o Inimigo o tenha perdido, se era tão forte e o anel tão precioso para ele? - Apertou o anel na mão, como se já estivesse a ver dedos negros a estenderem-se para se apoderarem dele.

- Foi-lhe tirado - respondeu Gandalf. - Há muito tempo, os Elfos tinham mais força para lhe resistir e nem todos os homens estavam desavindos com eles. Os Homens da Ocidentalidade foram em seu auxílio. Este é um capítulo da História antiga que talvez fosse bom recordar, pois então também o sofrimento e as trevas estavam a acastelar-se; mas havia grande coragem e fizeram-se grandes proezas que não foram completamente em vão. Um dia, talvez eu te conte a história toda, ou a ouças contar toda a alguém que a sabe melhor.

»Mas, por agora, como precisas sobretudo de saber como essa coisa te foi parar às mãos, e isso já é uma grande história, escuta o que te contarei. Foram Gil-galad, rei dos Elfos, e Elendil, da Ocidentalidade, que derrubaram Sauron, embora a proeza tenha custado a vida a ambos. Isildur, filho de Elendil, cortou o anel da mão de Sauron e ficou com ele para si. Depois Sauron foi derrotado e o seu espírito fugiu e ficou escondido longos anos, até a sua sombra assumir de novo forma na Floresta Tenebrosa.

»Mas o anel perdeu-se. Caiu ao Grande Rio Anduin e desapareceu. Isildur marchava para norte, ao longo da margem oriental do rio, e perto dos Campos Alegres saíram-lhe ao caminho orcs das montanhas que chacinaram quase toda a sua gente. Ele atirou-se à água, mas o anel escorregou-lhe do dedo, enquanto nadava, e os Orcs viram-no e mataram-no, com setas.»

Gandalf fez uma pausa.

- Foi aí, nos charcos negros existentes nos Campos Alegres, que o anel saiu do conhecimento e da lenda. Até mesmo a história que contei só de poucos é conhecida, e o Conselho dos Sábios nada mais conseguiu descobrir. Mas eu, finalmente, posso continuá-la, creio.

»Muito depois disso, mas mesmo assim há muito, muito tempo, vivia nas margens do Grande Rio, na orla da Terra Erma, um pequeno povo destro de mãos e silencioso de pés. Suponho que pertenciam ao tipo dos Hobbits, e eram aparentados com os pais dos pais dos Stoors, pois amavam o rio, nadavam frequentemente nele e faziam pequenos barcos de juncos. Havia entre eles uma família de grande reputação, pois era maior e mais rica do que a maioria e governava-a uma avó severa e entendida nas antigas tradições e na cultura do povo. O indivíduo mais curioso e com espírito mais ávido de saber dessa família chamava-se Sméagol. Interessavam-no as raízes e os começos, mergulhava em charcos fundos, escavava sob as árvores e as plantas e abria túneis em montes verdes. De tal modo, que deixou de olhar para cima, para o cume dos montes, para as folhas das árvores e para as flores que abriam no ar: a sua cabeça e os seus olhos andavam sempre virados para baixo.

»Tinha um amigo parecido com ele chamado Déagol, de olhar mais vivo, mas menos inteligente e forte. Uma vez, meteram-se num barco e desceram os Campos Alegres, onde havia grandes extensões de íris e juncos em flor. Quando chegaram, Sméagol saiu do barco e foi farejar nas imediações da margem, mas Déadol deixou-se ficar sentado no barco, a pescar. De súbito, um grande peixe prendeu-se-lhe no anzol e, sem que Déagol tivesse tempo para compreender o que lhe acontecia, foi arrastado para a água, mesmo para o fundo. Aí largou a linha, pois pareceu-lhe ver qualquer coisa a brilhar no leito do rio. Conteve a respiração e apanhou o objecto.

»Depois emergiu, a soprar água, com algas nos cabelos e um punhado de lodo na mão, e nadou para a margem. E, maravilha, quando sacudiu o lodo da mão viu que tinha na palma um belo anel de ouro, que brilhava e reluzia ao sol de tal maneira, que o seu coração se alegrou! Mas Sméagol estivera a observá-lo, escondido atrás de uma árvore, e, enquanto Déagol admirava, encantado, o anel, ele aproximou-se-lhe pela retaguarda, devagarinho...

»'Passa para cá isso, Déagol, meu querido', pediu Sméagol, por cima do ombro do amigo.

»'Porquê?', perguntou-lhe Deágol.

»'Porque é o dia dos meus anos, meu querido, e eu quero-o', respondeu-lhe Sméagol.

»'Não me interessa, já te dei uma prenda, mais até do que podia. Eu é que achei isto, e vou ficar com ele.'

»'Ah, vais, meu querido, vais?', redarguiu Sméagol, e, deitando as mãos ao pescoço de Déagol, estrangulou-o, porque o ouro lhe parecia tão bonito e reluzente. Depois pôs o anel no dedo.

»Nunca ninguém descobriu o que acontecera a Déagol, pois foi assassinado longe de casa e o seu cadáver astuciosamente escondido. Mas Sméagol regressou sozinho e descobriu que ninguém da sua família o conseguia ver, quando tinha o anel posto. Ficou muito satisfeito com a descoberta, e teve o cuidado de a ocultar. Serviu-se dessa característica do anel para descobrir segredos, cujo conhecimento utilizava depois para fins perversos e maus. Tornou-se vivo de olho e de ouvido para tudo quanto era prejudicial. O anel dera-lhe poder de acordo com a sua estatura. Não admira que se tenha tornado muito impopular e que passasse a ser repelido pela família toda (quando visível). Davam-lhe pontapés e ele mordia-lhes os pés. Passou a roubar e a resmungar sozinho, com uma espécie de som gorgolejante na garganta. Por isso, chamavam-lhe Gollum, amaldiçoavam-no e mandavam-no para longe. A avó, desejosa de paz, expulsou-o da família e pô-lo fora do seu buraco.

»Vagueou, solitário, a chorar um pouco por causa da crueldade do mundo, e viajou pelo rio acima, até chegar a uma corrente que descia das montanhas. Decidiu seguir por esse caminho. Com dedos invisíveis, apanhava peixes em charcos fundos e comia-os crus. Num dia de muito calor, quando se inclinava para um charco, sentiu como que uma queimadura na nuca e a luz ofuscante reflectida pela água fez-lhe doer os olhos húmidos. Ficou admirado, pois quase se esquecera do Sol. Então, pela última vez, olhou para cima e sacudiu o punho fechado ao astro.

»Mas, ao baixar os olhos, viu muito ao longe os cumes das Montanhas Nebulosas, dos quais vinha a corrente. E pensou, de súbito: Deve ser mais fresco e ensombrado debaixo daquelas montanhas. o Sol não me poderá vigiar, lá. As raízes daquelas montanhas devem ser mesmo raízes. E devem lá estar ocultos grandes segredos, que nunca foram descobertos desde o princípio.'

»Por isso, viajou de noite para as terras altas e encontrou uma pequena caverna da qual saía a corrente escura. Infiltrou-se como um verme no coração dos montes e desapareceu sem deixar vestígio. O anel mergulhou com ele nas sombras, e nem mesmo aquele que o fez conseguiu saber nada a seu respeito, quando o seu poder recomeçou a crescer.»

- Gollum! - exclamou Frodo. - Gollum? Quer dizer que se trata do mesmo Gollum. que Bilbo encontrou? Que horror!

- Acho que é uma história triste - redarguiu o feiticeiro - e que podia ter acontecido a outros, até mesmo a certos hobbits que tenho conhecido.

- Não posso acreditar que Gollum fosse relacionado com hobbits, nem mesmo remotamente! - afirmou Frodo, com certa veemência. - Que ideia tão abominável!

- Mas verdadeira, apesar de tudo - replicou Gandalf - Sei mais do que os próprios hobbits acerca da sua origem, e até mesmo a história do Bilbo sugere a existência de parentesco. No fundo do espírito e das recordações de ambos havia muitas coisas assaz similares. Compreenderam-se extraordinariamente bem um ao outro, muito melhor do que um hobbit compreenderia, digamos, um anão ou um orc, ou até mesmo um elfo. Pensa, por exemplo, nas adivinhas que ambos sabiam.

- É verdade - admitiu Frodo. - No entanto, muita outra gente sabe adivinhas, além dos hobbits, e de género muito semelhante. E os Hobbits não fazem batota, ao passo que a intenção de Gollum foi fazer batota, desde o princípio. Ele pretendia apenas apanhar o pobre Bilbo desprevenido. Ouso até dizer que deve ter agradado à sua perversidade iniciar um jogo que poderia vir a proporcionar-lhe uma vítima fácil mas que, por outro lado, em nada o molestaria, mesmo que perdesse.

- Devo admitir que tudo isso é verdade - concordou Gandalf - mas suponho que existiu mais qualquer coisa de que ainda te não apercebeste. Nem o próprio Gollum estava completamente destruído. Demonstrou ser mais resistente do que até mesmo um dos Sábios poderia ter imaginado... mais resistente, talvez, do que um hobbit. Havia um cantinho do seu espírito que ainda era seu e pelo qual a luz entrava, como luz a entrar nas trevas por uma fresta: luz do passado. Creio que foi verdadeiramente agradável para ele ouvir de novo uma voz amável que lhe levava recordações do vento e das árvores, do sol na relva e de outras coisas semelhantes e esquecidas.

»Mas isso, claro, só serviria para, no fim, tornar a sua parte má ainda mais furiosa. A não ser, evidentemente, que pudesse ser dominada. Que pudesse ser curada. - Gandalf suspirou. - Infelizmente, porém, há pouca esperança de isso lhe poder acontecer. Mas pouca não significa nenhuma, apesar de ele ter possuído o anel durante tanto tempo, quase desde que se lembra. Lembremo-nos de que não o usava muito, havia muito tempo, pois naquele negrume raramente precisava disso. Com certeza nunca se 'desvanecera'. Continuava rijo. Contudo, aquela coisa devorava-lhe o espírito, claro, e o tormento tornara-se quase insuportável.

»Afinal, todos os 'grandes segredos' existentes debaixo das montanhas tinham-se revelado apenas noite vazia: não havia mais nada para descobrir, mais nada que valesse a pena fazer; só lhe restavam a repugnante comida que devorava furtivamente e as recordações ressentidas. Era um desgraçado. Detestava a escuridão, mas ainda detestava mais a luz. Odiava tudo, e o anel mais do que qualquer outra coisa.»

- Que quer dizer? - perguntou Frodo. - O anel era, com certeza, uma coisa preciosa para ele, a única que lhe interessava, não acha? Se o odiava assim, por que não se livrara dele, ou não partia e o abandonava?

- Já devias ter começado a compreender, Frodo, depois de tudo quanto ouviste. Ele odiava-o e amava-o, do mesmo modo que se odiava e amava a si próprio. Quanto a livrar-se dele, não podia: não lhe restava qualquer livre vontade na matéria.

»Um Anel de Poder olha por si mesmo, Frodo. Pode escorregar e cair traiçoeiramente, ele próprio, mas o seu portador nunca o abandona. Quando muito, encara a ideia de o transferir para o cuidado de qualquer outra pessoa, mas mesmo isso só acontece numa fase inicial, quando o anel começa a impor-se. Tanto quanto eu saiba, em toda a história dos seus portadores, o Bilbo foi o único a ir além de encarar a ideia de o abandonar, o único que o abandonou, de facto. Mas precisou de todo o meu auxílio para o conseguir, e mesmo assim nunca se teria limitado a deixá-lo pura e simplesmente ou a deitá-lo fora. Era o próprio anel que decidiu, Frodo, e não Gollum. Foi o anel que o deixou.»

- Mesmo a tempo de Bilbo o encontrar? - perguntou Frodo. Um orc não teria sido mais adequado?

- Não é caso para brincadeira - admoestou Gandalf - E muito menos da tua parte. Foi o acontecimento mais estranho de toda a história do anel, até agora: a chegada de Bilbo precisamente naquela ocasião e o acaso de lhe ter posto a mão em cima, às cegas, nas trevas.

»Houve mais do que uma força em acção, Frodo. O anel tentava regressar às mãos do seu dono. Escorregara da mão de Isildur e atraiçoara-o; depois, quando surgira uma oportunidade, fora achado pelo pobre Déagol, que foi assassinado; finalmente passara a pertencer a Gollum e devorara-o, a bem dizer. Gollum já lhe não servia para nada, era demasiado pequeno e mesquinho. E, enquanto o anel permanecesse na sua posse, ele nunca voltaria a sair do seu charco escuro. Por isso, agora que o seu dono despertou mais uma vez e está a irradiar o seu negro pensamento da Floresta Tenebrosa, abandonou Gollum... mas foi achado pela pessoa menos indicada que seria possível imaginar: Bilbo, do Shire!

»Atrás de tudo havia, pois, mais qualquer coisa em acção, algo que ultrapassava quaisquer desígnios do fabricante do anel. A maneira mais simples que encontro para explicar o sucedido é a seguinte: Bilbo estava destinado a encontrar o anel, mas não pelo fabricante deste. Sendo assim, tu também estavas destinado a tê-lo. Olha que pode ser um pensamento encorajador.»

- Mas não é - afirmou Frodo. - Não é, e eu não estou certo de compreender o que quer dizer, Gandalf. Como soube tudo quanto me contou acerca do anel e acerca de Gollum? Sabe realmente tudo isso, ou continua a conjecturar?

Gandalf olhou para Frodo, e os seus olhos cintilaram.

- Já sabia muito e aprendi muito - respondeu. - Mas não te vou relatar tudo quanto fiz. A história de Elendil, de Isildur e do Anel Um é conhecida de todos os Sábios. As palavras reveladas pelo fogo no teu anel provaram, só por si, que é o Anel Um, independentemente de qualquer outra evidência.

- Quando descobriu isso? - interrompeu-o Frodo.

- Agora, nesta sala, claro - respondeu o feiticeiro, asperamente. - Mas já esperava descobri-lo. Voltei de sinistras viagens e longa procura para fazer essa experiência definitiva. É a última prova, e agora tornou-se tudo muito claro. Imaginar o papel de Gollum e ajustá-lo devidamente na lacuna da história exigiu muito pensar. Posso ter começado por conjecturar a respeito de Gollum, mas agora não estou a conjecturar: sei. Vi-o.

- Viu Gollum?! - perguntou Frodo, estupefacto.

- Vi. Era obviamente o que havia afazer, se possível. Levei muito tempo a tentar, mas por fim consegui.

- Então que aconteceu depois de Bilbo lhe escapar? Sabe?

- Não com muita clareza. O que te contei foi o que Gollum se dispôs a dizer... embora, claro, de maneira diferente da utilizada por mim. Gollum é um mentiroso, e torna-se necessário joeirar as suas palavras. Por exemplo, ele chamou ao anel o seu «presente de aniversário», e daí não arrancou. Disse que o recebera da avó, que tinha uma quantidade de coisas bonitas desse género. Uma história ridícula, naturalmente. Não tenho quaisquer dúvidas de que a avó de Sméagol era uma matriarca, uma pessoa importante, à sua maneira, mas dizer que ela possuía muitos anéis élficos é um absurdo, e quanto a dá-los... uma mentira. Mas uma mentira com um grão de verdade.

»O assassínio de Déagol tem atormentado Gollum, que inventou uma defesa e a repetiu, vezes e vezes, ao seu 'precioso', enquanto rilhava ossos nas trevas, ao ponto de ele próprio quase acreditar. Era o seu aniversário. Déagol devia ter-lhe dado o anel. Era evidente que o anel aparecera como aparecera porque se destinava a ser um presente. Era o seu presente de aniversário, etc., etc.

»Aturei-o o mais que pude, mas a verdade era desesperadamente importante, e, no fim, tive de ser ríspido. Preguei-lhe um susto valente e arranquei-lhe a história verdadeira, bocadinho a bocadinho, juntamente com muita lamúria e muitos rosnidos. Considerou-se incompreendido e injustamente tratado. Mas, quando me contou finalmente a sua história, até ao fim do jogo das adivinhas e à fuga de Bilbo, recusou-se a dizer fosse o que fosse mais, a não ser por meio de sinistras insinuações. Sentia outro medo qualquer, maior ainda do que o inspirado por mim. Afirmou, a resmungar, que havia de recuperar o que era seu, de se vingar. As pessoas veriam se ia permitir que lhe dessem pontapés, que o empurrassem para um buraco e depois o roubassem! Agora Gollum tinha bons amigos, amigos bons e muito fortes. Eles ajudá-lo-iam. Baggins haveria de pagar o que fizera! Este era o seu principal pensamento. Odiava Bilbo e amaldiçoava o seu nome. Mais: sabia donde ele viera.»

- Mas como descobriu ele isso? - indagou Frodo.

- Bem, quanto ao nome, o próprio Bilbo lho disse, muito estupidamente. Depois disso, não foi difícil descobrir qual era o seu país, quando Gollum saiu. Oh, sim, ele saiu! O desejo de reaver o anel foi mais forte que o medo dos Orcs ou até da luz. Passado um ano ou dois, abandonou as montanhas. Compreendes, embora o desejo do anel ainda o dominasse, a verdade é que o próprio anel já o não devorava. Começou a reviver um pouco. Sentia-se velho, terrivelmente velho, mas menos tímido e devoradoramente esfaimado.

»Ainda receava e odiava a luz, a luz do Sol e da Lua, e creio que continuará sempre a receá-la e a odiá-la. Mas tornou-se astuto. Compreendeu que se podia esconder da luz do dia e do luar e avançar rápida e silenciosamente pela calada da noite, guiando-se pelos frios olhos claros, e apanhar e devorar pequenas criaturas assustadas ou desprevenidas. Os novos alimentos e o novo ar tornaram-no mais forte e mais ousado. Acabou por ir parar à Floresta Tenebrosa, como seria de esperar.»

- Foi aí que o encontrou? - perguntou Frodo.

- Vi-o lá, mas antes disso ele andara por muito longe, a seguir a pista de Bilbo. Foi difícil saber alguma coisa por intermédio dele com alguma certeza, pois interrompia constantemente o que dizia com pragas e ameaças. «Que tinha ele nas algibeiras?», perguntava. «Eu não disse, não, precioso. Batoteireco! Não foi uma pergunta leal. Foi ele que fez batota primeiro, foi ele! Desrespeitou as regras. Devíamos tê-lo esborrachado, pois devíamos, precioso. E esborracharemos, precioso!»

»Esta é uma amostra da sua conversa, e eu suponho que te chega, que não queres ouvir mais. Tive de aturá-lo assim dias e dias. Mas, através das insinuações que fez de mistura com os rosnidos, deduzi que os seus pés almofadados tinham acabado por levá-lo a Esgaroth e até às ruas do Vale, secretamente à escuta e à espreita. Bem, a notícia dos grandes acontecimentos propagou-se muito através da Terra Erma e muitos tinham ouvido o nome de Bilbo e sabiam a sua proveniência. Não fizéramos segredo nenhum da nossa viagem de regresso à casa dele, no Ocidente. Os ouvidos apurados de Gollum não tardariam a ouvir o que ele queria.»

- Então por que não continuou a perseguir Bilbo? - perguntou Frodo. - Por que não veio ao Shire?

- Ah, chegamos ao que interessa! - exclamou Gandalf. - Creio que Gollum tentou vir, que se pôs a caminho e viajou para ocidente até ao Grande Rio. Mas depois arrepiou caminho. Tenho a certeza de que não foi a distância que o assustou. Não, foi qualquer outra coisa que o desviou. É assim que pensam os meus amigos, os que o perseguiram a meu pedido.

»Primeiro seguiram-lhe o rasto os Elfos da floresta; trabalho fácil para eles, pois nessa altura o seu rasto ainda estava fresco. Levou-os através da Floresta Tenebrosa e depois de novo para trás, embora nunca tenham conseguido alcançá-lo. A floresta estava cheia de rumores a respeito dele, de histórias terríveis, até mesmo entre os animais e as aves. Os Homens da floresta diziam que andava por ali um novo terror qualquer, um fantasma que bebia sangue. Trepava às árvores à procura de ninhos; entrava rastejante em tocas à procura de crias e esgueirava-se pelas janelas à procura de berços.

»Mas, na orla ocidental da Floresta Tenebrosa, o rasto mudou de direcção. Desviou-se para sul, saiu do alcance visual dos Elfos da floresta e perdeu-se. Foi então que cometi um grande erro. Sim, Frodo, e nem sequer foi o primeiro; mas receio que tenha sido o pior de todos. Deixei ficar as coisas como estavam, deixei-o em paz. Nessa altura tinha muito mais em que pensar e ainda confiava no saber de Saruman.

»Bem, isso foi há anos. Desde então, paguei o meu erro com muitos dias negros e perigosos. O rasto estava frio havia muito tempo, quando o reatei depois da partida de Bilbo daqui. E a minha busca teria sido vã, não fora a ajuda que recebi de um amigo: Aragorn, o maior viajante e caçador desta era do mundo. Juntos, procurámos Gollum em toda a extensão da Terra Erma, sem esperança e sem êxito. Mas, finalmente, quando eu desistira da perseguição e voltara a minha atenção para outros lugares, Gollum foi encontrado. O meu amigo regressou de grandes perigos trazendo consigo a desgraçada criatura.

»Não disse o que andara a fazer; limitou-se a chorar e a chamar-nos cruéis, com muito gollum na garganta. E, quando insistimos, lamuriou e encolheu-se, esfregou as mãos compridas e lambeu os dedos como se eles lhe doessem, como se recordasse alguma antiga tortura. Receio, no entanto, que não haja dúvida possível: lenta e furtivamente, passo a passo, quilómetro a quilómetro, percorrera um longo caminho para sul, até chegar, enfim, à Terra de Mordor.»

Abateu-se sobre a sala um pesado silêncio. Frodo ouvia o bater do seu coração. Até no exterior parecia tudo silencioso. Não se ouvia sequer o barulho da tesoura de Sam.

- Sim, a Mordor! - exclamou Gandalf - Ai de nós, Mordor atrai todas as coisas perversas, e o Poder Tenebroso estava a exercer toda a força da sua vontade para lá as reunir. O Anel do Inimigo também deixara a sua marca, tornara-o presa fácil do apelo. E então falava-se, ainda em segredo, da nova sombra do Sul e do seu ódio ao Ocidente. Ali estavam os seus excelentes novos amigos, que o ajudariam a vingar-se!

»Desgraçado idiota! Naquela terra aprenderia muito, aprenderia demasiado, o que não seria nada bom para o seu bem-estar. Mais cedo ou mais tarde, quando espreitasse ou escutasse nas fronteiras, seria apanhado e levado... para interrogatório. Receio que tenha sido isso que aconteceu. Quando o encontraram, já lá estava havia muito tempo e iniciara até o caminho de regresso. Com qualquer mau fito na ideia. Mas isso não interessa muito agora. A sua pior maldade está feita.

»Sim, infelizmente! Por intermédio dele, o Inimigo ficou a saber que o Um foi reencontrado. Sabe onde Isildur caiu. Sabe onde Gollum encontrou o seu anel. Sabe que se trata de um Grande Anel, pois deu longa vida. Sabe que não é um dos Três, pois esses nunca foram perdidos e não toleram nenhum mal. Sabe que não é nenhum dos Sete nem dos Nove, pois a sorte desses é conhecida. Sabe, pois, que é o Um. E, suponho, ouviu finalmente falar de hobbits e do Shire.

É possível que ande neste momento a tentar localizar o Shire, se o não localizou já. Na verdade, Frodo, receio que até já pense que o apelido de Baggins, que durante tanto tempo passou despercebido, se tornou importante. »

- Mas isso é terrível! - exclamou Frodo. - É muito pior do que o pior que eu tinha imaginado, baseado nas suas insinuações e advertências. Ó Gandalf, melhor dos amigos, que hei-de fazer? Sim, pois agora tenho realmente medo. Que hei-de fazer? Que pena o Bilbo não ter apunhalado a vil criatura, quando teve ensejo disso!

- Pena? Foi precisamente a pena que lhe deteve a mão. Pena e Compaixão: não ferir sem necessidade. E foi bem recompensado, Frodo. Podes ter a certeza de que o mal o marcou tão pouco, e de que acabou por se libertar, porque iniciou desse modo a sua posse do anel. Com compaixão.

- Desculpe - murmurou Frodo. - Mas a verdade é que estou assustado e não sinto pena nenhuma de Gollum.

- Nunca o viste.

- Não, nem quero ver! - afirmou Frodo. - Não o compreendo. Pretende dizer que o senhor e os Elfos o deixaram continuar a viver depois de todos esses horríveis actos? Agora, pelo menos, é tão mau como um orc e igualmente um inimigo. Merece a morte.

- Merece a morte! Acho que sim. Muitos dos que vivem merecem a morte. E alguns dos que morrem merecem a vida. Podes dar-lha? Então não te mostres tão empenhado em distribuir a morte como julgamento. Pois nem os mais sábios conseguem ver todos os fins. Não tenho muita esperança de que Gollum possa ser curado antes de morrer, mas, no entanto, essa possibilidade existe. E ele está ligado ao destino do anel. O coração diz-me que ainda tem de representar um papel qualquer, para bem ou para mal, antes do fim. E, quando isso acontecer, a compaixão de Bilbo poderá influenciar o destino de muitos, e em especial o teu. De qualquer modo, não o matámos; é muito velho e muito desgraçado. Os Elfos da floresta têm-no preso, mas tratam-no com toda a bondade que conseguem encontrar nos seus sensatos corações.

- Mesmo assim - objectou Frodo -, mesmo que Bilbo não tenha lido capaz de matar Gollum, ao menos que não tivesse conservado o anel. Desejaria que nunca o tivesse achado e que eu o não tivesse recebido dele! Por que me deixou ficar com ele? Por que me não obrigou a deitá-lo fora ou a destruí-lo?

- Por que não te obriguei? Por que te deixei? - repetiu o feiticeiro. - Não prestaste atenção a tudo quanto estive a dizer? Estás a falar sem pensar. Quanto a deitá-lo fora, isso teria sido, evidentemente, um erro. Esses anéis têm o pendor de serem achados e em más mãos poderia ter feito grande mal. Pior ainda: poderia ter caído nas mãos do Inimigo. Cairia com certeza, pois esse é o Um, e ele está a exercer toda a sua força para o encontrar ou atrair para si.

»Claro que foi perigoso para ti, meu querido Frodo, e isso tem-me, preocupado profundamente. Mas era tanto o que estava em jogo, que tive de correr algum risco... embora, mesmo quando me encontrava muito longe, não tenha havido um único dia em que o Shire não tenha estado guardado por olhos vigilantes. Desde que não o usasses, não me parecia que o anel pudesse exercer sobre ti qualquer efeito duradouro, nem no sentido do mal nem no do tempo. E deves lembrar-te de que, há nove anos, quando te vi pela última vez, pouco sabia ainda, com certeza.»

- Mas porque não destruí-lo, como o senhor disse que deveria ter sido feito há muito tempo? - gritou Frodo. - Se me tivesse avisado ou sequer mandado um recado, eu teria dado cabo dele.

- Terias? E como farias isso? Alguma vez experimentaste?

- Não. Mas suponho que poderíamos destruí-lo à martelada ou derretê-lo.

- Experimenta! - ordenou Gandalf. - Experimenta agora!

 

Frodo tirou de novo o anel da algibeira e observou-o. Agora parecia liso e intacto, sem que se visse qualquer marca ou sinal. O ouro era muito belo e puro, e Frodo admirou a riqueza e a beleza da sua cor, a perfeição da sua redondez. Era um objecto admirável e absolutamente precioso. Tirara-o da algibeira com a intenção de o atirar para o ponto mais quente do lume, mas verificou que não seria capaz disso, a não ser com grande luta. Sopesou o anel na mão, hesitante, e esforçou-se por recordar tudo quanto Gandalf lhe dissera. Depois, com um grande esforço de vontade, fez um movimento, como se fosse deitá-lo fora... mas descobriu que afinal o metera na algibeira.

Gandalf riu-se, sinistramente.

- Estás a ver? Já tu mesmo, Frodo, não podes abandoná-lo facilmente nem serias capaz de lhe causar danos. E eu não posso «obrigar-te». A não ser pela força, o que destruiria o teu espírito. Mas para destruir o anel a força é inútil. Mesmo que pegasses numa pesada marreta e lhe batesses com toda a força, não lhe farias nenhuma mossa. Não pode ser desfeito pelas tuas mãos nem pelas minhas.

»Claro que a tua pequena lareira nem ouro vulgar derreteria. Esse anel já passou por ela sem uma beliscadura, e sem aquecer, sequer. Não há no Shire forja que fosse capaz de o modificar. Nem sequer as bigornas e os fornos dos Anões o conseguiriam. Tem-se dito o fogo dos dragões poderia derreter e consumir os Anéis do Poder, mas já não existe no mundo nenhum dragão cujo fogo seja suficientemente quente para isso. Nem nunca existiu nenhum, nem mesmo Ancalagon, o Negro, que fosse capaz de molestar o Um, o Anel Dominador, pois esse foi feito pelo próprio Sauron.

»Só há uma maneira: procurar as Fendas da Condenação, nas profundezas de Orodruin, a Montanha de Fogo, e atirar para lá o anel. Se realmente desejas destruí-lo, claro, e pô-lo para sempre fora do alcance do Inimigo.» .

- Desejo realmente destruí-lo! - afirmou Frodo. - Ou... enfim, mandá-lo destruir, pois não nasci para buscas perigosas. Quem me dera nunca ter visto o anel! Por que me veio parar às mãos? Por que fui escolhido?

- Não existe resposta para tais perguntas - redarguiu Gandalf.

- Podes ter a certeza, no entanto, de que não foi por qualquer mérito que outros não possuam. Pelo menos não foi por força ou sabedoria. Mas foste escolhido, e portanto deves utilizar a força, a coragem e a inteligência que possuis.

- Mas tenho tão pouco de qualquer dessas coisas! O senhor é sábio e poderoso: não aceita o anel?

- Não! - respondeu Gandalf, e levantou-se de um pulo. - Com o poder do anel, o meu poder tornar-se-ia demasiado grande e terrível. E o anel adquiriria sobre mim um poder ainda maior e mais implacável. - Os seus olhos coruscavam, e dir-se-ia que um fogo interior lhe iluminava o rosto. - Não me tentes! Não me tentes, porque não desejo tornar-me como o Senhor das Trevas! Embora o

caminho do anel para o meu coração seja pela compaixão, pela fraqueza e pelo desejo de força para fazer bem... Não me tentes! Não me atrevo a recebê-lo, nem mesmo que seja para o guardar em segurança, sem ser usado. O desejo de ceder ao seu poder seria demasiado grande para as minhas forças, tal a necessidade que virei a ter dele. Esperam-se grandes perigos.

Foi à janela e afastou as cortinas e abriu os postigos. A luz do sol entrou de novo na sala, a jorros. Sam passou, no carreiro exterior, a assobiar.

- E agora - disse o feiticeiro, virando-se de novo para Frodo - a decisão é tua. Mas eu ajudar-te-ei sempre. - Pousou a mão no ombro do hobbit e acrescentou: - Ajudar-te-ei a transportar este fardo enquanto tiveres de o transportar. Mas precisamos de fazer qualquer coisa, em breve. O Inimigo não pára.

Seguiu-se um longo silêncio. Gandalf voltou a sentar-se e a fumar o seu cachimbo, como que absorto em pensamentos. Os seus olhos pareciam fechados, mas observavam Frodo atentamente, através das pálpebras semicerradas. Frodo olhou fixamente para as brasas vermelhas da lareira, até elas lhe encherem por completo a visão e ter a sensação de estar a olhar para fundos poços de fogo. Estava a pensar nas lendárias Fendas da Condenação e no terror da Montanha de Fogo.

- Bem! - exclamou Gandalf, por fim. - Em que estás a pensar? Já decidiste o que farás?

- Não! - respondeu Frodo, voltando a si das trevas e descobrindo, surpreendido, que não estava escuro e que pela janela via o jardim inundado de sol. - Ou talvez... sim. Segundo deduzi do que me disse, julgo que devo conservar o anel e guardá-lo, pelo menos por enquanto, a despeito do que ele me possa fazer.

- O que ele te poderá fazer será lento... lento para o mal... se o guardares com esse propósito - respondeu-lhe Gandalf.

- Assim espero. Mas também espero que o senhor consiga arranjar outro guardião melhor, em breve. Entretanto, parece que constituo um perigo, um perigo para todos quantos vivem perto de mim. Não posso conservar o anel e ficar aqui, portanto. Tenho de partir do Fundo do Saco, de deixar o Shire e tudo o mais e partir. - Frodo suspirou. - Gostaria de salvar o Shire, se pudesse... apesar de ter havido ocasiões em que considerei os seus habitantes indizivelmente estúpidos e enfadonhos e até tenha pensado que um terramoto ou uma invasão de dragões talvez lhes fizesse bem. Mas já não tenho esses sentimentos. Agora acho que, enquanto o Shire existir, seguro e acolhedor, as minhas vagueações serão mais suportáveis; saberei que, algures, existe um ponto de apoio firme, ainda que os meus pés não possam apoiar-se nele.

»Claro que, às vezes, tenho pensado em partir, mas sempre imaginei isso como uma espécie de férias, uma série de aventuras como as de Bilbo, ou melhores ainda, que terminariam em paz. Isto agora, porém, significará um exílio, uma fuga de perigo para perigo, de um perigo que nunca deixará de me perseguir, que arrastarei atrás de mim. E acho que terei de partir sozinho, se quero que isso suceda e salvar o Shire. No entanto, sinto-me muito pequeno, muito desenraizado e... enfim, desesperado. O Inimigo é tão forte e terrível!»

Não o disse a Gandalf, mas, enquanto falava, incendiou-lhe o coração um grande desejo de seguir Bilbo - de seguir Bilbo e até, talvez, reencontrá-lo. Era um desejo tão grande, que se sobrepôs ao medo: quase seria capaz de sair imediatamente dali para fora e correr pela estrada abaixo sem chapéu, como Bilbo fizera, numa manhã semelhante, havia muito tempo.

- Meu querido Frodo! - exclamou Gandalf. - Os Hobbits são, realmente, umas criaturas extraordinárias, como já tenho dito. Uma pessoa pode aprender tudo a seu respeito num mês, mas, mesmo ao fim de um século de conhecimento, eles ainda nos conseguem surpreender, de repente. Dificilmente esperaria uma resposta dessas, nem mesmo de ti. Mas Bilbo não se enganou ao escolher o seu herdeiro, embora com certeza lhe não passasse pela cabeça como isso viria a ser importante. Receio que tenhas razão. O anel não poderá continuar escondido no Shire muito mais tempo, e, para teu próprio bem, assim como para o de outros, terás de partir e de deixar para trás o apelido de Baggins. Baggins não será uma apelido seguro fora do Shire nem nos ermos. Vou dar-te um nome de viagem: quando

partires, parte como Sr. Underhill.

»Mas não creio que precises de ir sozinho. Isto é, se conheceres alguém em quem possas confiar e que esteja disposto a acompanhar-te... e que tu estejas disposto a levar contigo para perigos desconhecidos, claro. Mas, se procurares um companheiro de viagem, tem cuidado na escolha! E tem cuidado com o que disseres, até mesmo aos teus amigos mais íntimos! O Inimigo tem muitos espiões e muitas maneiras de ouvir!»

De súbito, Gandalf inclinou-se, como que à escuta. Frodo apercebeu-se de que reinava um grande silêncio, tanto no interior como no exterior. Gandalf aproximou-se, devagarinho, de um dos lados da janela e depois saltou para o parapeito e estendeu um braço comprido. Ouviu-se um guincho e a cabeça encaracolada de Sam Gamgee apareceu, suspensa por uma orelha.

- Sim, senhor, sim, senhor, pelas minhas barbas! - exclamou Gandalf. - És Sam Gamgee, não és? Que estavas tu a fazer, hem?

- Bendito seja, Sr. Gandalf, meu senhor! - exclamou Sam, atrapalhado. - Não estava a fazer nada! Quero dizer, estava só a aparar a bordadura de relva debaixo da janela, se me compreende... - Pegou na tesoura e mostrou-a, como prova.

- Não compreendo, não - respondeu Gandalf, ameaçador. - Há já um bom bocado que deixei de ouvir o barulho da tua tesoura. Há quanto tempo estavas à escuta?

- À escuta, senhor? Com sua licença, mas não o compreendo. No Fundo do Saco não há nada que escutar, toda a gente sabe...

- Não sejas parvo! Que foi que ouviste e por que te puseste à escuta? - Os olhos de Gandalf coruscavam e as suas sobrancelhas estavam espetadas como cerdas.

- Sr. Frodo, meu patrão! - gritou Sam, a tremer todo. - Não deixe que ele me faça mal, meu senhor! Não consinta que me transforme em qualquer coisa que não seja natural! O meu velho pai sofreria tanto! Não tive nenhuma má intenção, juro pela minha honra que não tive!

- Ele não te fará mal - tranquilizou-o Frodo, a fazer um grande esforço para não desatar a rir, apesar de, pessoalmente, estar assustado e um tanto ou quanto intrigado. - Ele sabe, tão bem como eu, que não tiveste qualquer má intenção. Mas sobe e responde imediatamente às suas perguntas!

- Bem, senhor - disse Sam, ainda a tremer um bocadinho -, ouvi muitas coisas que não entendi bem, a respeito de um inimigo, de anéis, do Sr. Bilbo, de dragões, de uma montanha de fogo e... e de elfos, senhor. Ouvi porque não pude deixar de ouvir, se o senhor, percebe o que quero dizer. Valha-me Deus, mas gosto tanto de histórias desse género! E até acredito nelas, diga o Ted o que disser. Elfos, senhor, gostaria tanto de os ver! Pode levar-me para ver os Elfos, quando o senhor partir?

Gandalf desatou, de súbito, a rir.

- Anda cá dentro! - gritou, e, estendendo ambos os braços, levantou o espantado Sam, com tesoura, pontas de relva e tudo, passou-o pela janela e colocou-o no chão. - Levar-te para veres os Elfos, hem? - repetiu, a observar Sam atentamente, mas com um sorriso a brincar no rosto. - Ouviste, então, que o Sr. Frodo vai partir?

- Ouvi sim, senhor. E foi por isso que soltei aquela exclamação sufocada, que o senhor parece ter ouvido. Eu bem quis evitá-la, mas estava tão transtornado que me saltou cá para fora.

- Não pode deixar de ser, Sam - disse Frodo, tristemente, pois acabava de ter consciência de que fugir do Shire o obrigaria a despedidas mais dolorosas do que o simples dizer adeus aos confortos familiares do Fundo do Saco. - Tenho mesmo de partir. Mas - olhou fixamente para Sam -, como és realmente meu amigo, guardarás segredo absoluto disso. Compreendes? Se o não guardares, se deixares escapar nem que seja uma palavra do que ouviste aqui, então espero que Gandalf te transforme num sapo malhado e encha o jardim de cobras.

Sam caiu de joelhos, a tremer.

- Levanta-te, Sam! - ordenou-lhe Gandalf. - Lembrei-me de uma coisa melhor, de uma coisa que te calará a boca e te dará o merecido castigo por teres escutado: irás com o Sr. Frodo!

- Eu, senhor?! - gritou Sam, e levantou-se de um salto, como um cão convidado para um passeio. - Eu vou ver os Elfos e tudo! Viva! - gritou, e depois desfez-se em lágrimas.

 

TRÊS SÃO COMPANHIA

- Tens de ir pela calada e em breve - disse Gandalf.

Tinham passado duas ou três semanas e Frodo continuava sem dar qualquer sinal de se preparar para partir.

- Bem sei. Mas é difícil fazer as duas coisas - objectou. - Se desaparecer, como o Bilbo, a história espalhar-se-á por todo o Shire, num abrir e fechar de olhos.

- Claro que não deves desaparecer! - concordou Gandalf. - Isso não conviria, de maneira nenhuma! Eu disse em breve, e não instantaneamente. Se conseguires pensar numa maneira de te esgueirares do Shire sem isso se tornar do conhecimento geral, valerá a pena uma curta demora. Mas não deves adiar muito.

- Que tal no Outono, ou depois do nosso aniversário? - sugeriu Frodo. - Creio que nessa altura já teria tido tempo de fazer certos preparativos.

Para dizer a verdade, sentia uma grande relutância em partir, agora que chegara a altura de passar das palavras às obras. Havia alguns anos que o Fundo do Saco lhe não parecia uma residência tão agradável, e ele queria aproveitar ao máximo o seu último Verão no Shire. Sabia que, quando o Outono chegasse, pelo menos uma parte do seu coração pensaria com mais agrado em viajar, como sempre acontecia nessa estação. Na realidade, decidira intimamente partir no dia do seu 50.º aniversário - e no 128.º de Bilbo. Não sabia porquê, mas parecia-lhe o dia apropriado para sair de casa e segui-lo. Seguir Bilbo era a principal ideia do seu cérebro e a única coisa que tornava suportável a perspectiva de partir. Pensava o mínimo possível no anel e aonde ele poderia levá-lo, no fim. Mas não confiou todos os seus pensamentos a Gandalf, embora fosse sempre difícil dizer o que o feiticeiro deduzia.

Gandalf olhou para Frodo e sorriu.

- Muito bem, acho que isso servirá... mas não deverá ser mais tarde. Começo a ficar muito inquieto. Entretanto, tem cuidado e não deixes escapar nenhuma indicação do teu destino! E vê lá se o Sam Gamgee também não fala. Se ele falar, palavra que o transformo mesmo num sapo!

- Quanto ao meu destino, seria difícil denunciá-lo, pois eu próprio ainda não tenho nenhuma ideia clara a esse respeito.

- Não sejas absurdo! Não estou a recomendar-te que não deixes a tua morada nos Correios! Mas vais deixar o Shire, e isso não deverá, ser conhecido enquanto não estiveres muito longe. E deves partir pelo menos para começar, sem que a tua direcção seja conhecida, quer sigas para norte ou sul, quer para oeste ou, leste.

- Tenho andado tão absorto com a ideia de deixar o Fundo do Saco e de me despedir, que nunca, sequer pensei na direcção que seguirei. Para onde irei? E por onde me orientarei? Que irei procurar? O Bilbo foi à procura de um tesouro e voltou; eu, tanto quanto me é dado entender, irei para perder um e não voltarei.

- Mas tu não podes ver muito longe, e eu tão-pouco - declarou Gandalf. - A tua missão poderá ser encontrar os Trovões do Dia do Juízo, mas também é possível que tal missão compita a outros; não sei. De qualquer modo, ainda não estás preparado para essa longa estrada.

- Ah, pois não! - apressou-se Frodo a concordar. Mas, entretanto, que rumo devo seguir?

- O rumo do perigo. Mas não muito temerariamente nem muito directamente - respondeu o feiticeiro.- Se queres que te dê um conselho, segue para Rivendell. Essa viagem não deverá ser excessivamente perigosa, embora a Estrada seja menos fácil do que já foi e tenha tendência para piorar à medida que o ano for avançando.

- Rivendell! - exclamou Frodo. - Muito bem! Partirei para leste, rumo a Rivendell. Levarei o Sam a visitar os Elfos. Ele ficará encantado! - Falava em tom ligeiro, mas, o seu coração enchera-se de súbito de um grande desejo de ver a casa de Elrond Hakfelven e respirar o ar desse vale fundo, onde muito do Povo Belo ainda vivia em paz.

 

Certo anoitecer de Verão, chegou ao Ramo de Hera e ao Dragão Verde uma notícia surpreendente. Os gigantes e outros portentos das fronteiras do Shire foram esquecidos em favor de assuntos mais importantes: o Sr. Frodo ia vender o Fundo do Saco, ou melhor, até já o vendera... aos Bagginses de Vila do Saco!

- E por uma continha calada - disseram alguns.

- Pelo preço da chuva -- disseram outros.

- Isso é mais provável, sendo a Srª Lobélia a compradora - foi a opinião da maioria. (Otho morrera alguns anos antes, com a idade madura, mas decepcionada, de 102 anos.)

O motivo exacto que levava o Sr. Frodo a vender o seu bonito buraco era ainda mais controverso do que o preço. Alguns defendiam a teoria - confirmada pelos acenos de cabeça e pelas insinuações do próprio Sr. Baggins - de que o dinheiro de Frodo se estava a acabar: deixaria Hobbiton e iria viver modestamente do rendimento da venda na Bucklândia, entre os seus parentes Brandybucks. «Tão

longe quanto possível dos Bagginses de Vila do Saco», acrescentavam alguns. Mas a ideia da incomensurável fortuna dos Bagginses do Fundo do Saco implantara-se tão funda e firmemente, que muitos tinham dificuldade em acreditar nisso, mais dificuldade ainda do que em acreditar em qualquer outra razão ou sem razão que a sua fantasia pudesse sugerir - e a de muitos sugeria uma conjura sinistra e ainda por desvendar de Gandalf. Embora o feiticeiro se mantivesse muito calado e não aparecesse durante o dia, todos sabiam que estava «escondido no Fundo do Saco». Mas coadunasse-se ou não uma partida com os desígnios da feitiçaria de Gandalf, dum facto não restavam dúvidas: Frodo Baggins regressava à Bucklândia.

- Sim, mudar-me-ei este Outono - confirmava ele. - Merry Brandybuck está à procura de um buraquinho confortável para mim, ou talvez de uma casinha.

Na realidade, com a ajuda de Merry, já escolhera e comprara uma pequena casa na Cova dos Grilos, na região que ficava para lá da Fiveleira. Dizia a todos, menos a Sam, que tencionava instalar-se lá permanentemente. A decisão de partir rumo a leste é que lhe sugeria a ideia: a Bucklândia ficava nas fronteiras orientais do Shire e, como ele lá vivera em criança, o seu regresso parecia pelo menos crível.

Gandalf permaneceu no Shire mais de dois meses. Até que, em certo anoitecer de fins de Junho, pouco depois de o plano de Frodo estar finalmente decidido, anunciou, de súbito, que partiria na manhã seguinte:

- Por pouco tempo, espero - acrescentou. - Vou para além das fronteiras meridionais, a fim de obter algumas notícias, se puder. Estou ocioso há mais tempo do que deveria.

Embora falasse em tom ligeiro, Frodo achou-lhe um aspecto preocupado.

- Aconteceu alguma coisa?

- Bem, não... Mas ouvi algo que me inquietou e que precisa de ser investigado. Se me parecer necessário que partas imediatamente, voltarei sem demora ou, pelo menos mandarei recado. Entretanto, cinge-te ao teu plano, mas tem mais cuidado do que nunca, em especial com o anel. Permite que insista, mais uma vez: não o uses!

Partiu ao alvorecer.

- Posso voltar de um dia para o outro - disse. O mais tardar, estarei cá para a festa de despedida. Acho que, no fim de contas, podes precisar da minha companhia na Estrada.

Ao princípio, Frodo sentiu-se muito inquieto e perguntou muitas vezes a si mesmo que teria Gandalf sabido; mas a sua inquietação foi diminuindo, e, graças ao excelente tempo, esqueceu momentaneamente os seus problemas. O Shire raramente tivera um Verão tão belo ou um Outono tão rico: as árvores estavam carregadas de maçãs, escorria mel das colmeias e o trigo estava alto e tinha as espigas bem cheias.

O Outono já vinha a caminho quando Frodo recomeçou a preocupar-se com Gandalf. Corria Setembro, e continuava a não haver notícias dele. O aniversário e a mudança aproximavam-se, e ele não aparecia nem mandava recado. Começou a reinar grande azáfama no Fundo do Saco. Alguns amigos de Frodo apareceram, para ficarem com ele e ajudá-lo a fazer as malas: Fredegar Bolger e Folco Boffin e, claro, os seus amigos especiais Pippin Took e Merry Brandybuck. Todos juntos, viraram a casa de pernas para o ar.

Em 20 de Setembro, partiram para a Bucklândia, pela Ponte de Brandevinho, dois carros cobertos carregados de móveis e outras coisas que Frodo não vendera e se destinavam à sua nova casa. No dia seguinte, Frodo sentiu-se verdadeiramente inquieto e esteve sempre à espera de Gandalf. Quinta-feira, dia do seu aniversário, nasceu bonita e clara como acontecera havia muitos anos, para a grande festa de Bilbo. Mas Gandalf continuava sem aparecer. À noite, Frodo deu o seu banquete de despedida: coisa pequena, apenas um jantar para si e para os seus quatro ajudantes. No entanto, estava tão preocupado, que não se sentia com disposição para festas. A ideia de que muito em breve teria de se separar dos seus jovens amigos pesava-lhe no coração. Nem sabia como lhes daria a notícia.

Em contrapartida, porém, os quatro jovens hobbits estavam muito bem dispostos, e, apesar da ausência de Gandalf, a festa não tardou a animar-se deveras. Na sala de jantar já só havia a mesa e as cadeiras, mas a comida era boa e o vinho excelente (o vinho de Frodo não fora incluído na venda feita ao Bagginses de Vila do Saco).

- Aconteça o que acontecer ao resto das minhas coisas quando os B. de V. do S. lhe deitarem as garras, pelo menos arranjei boa casa para isto! - exclamou Frodo, enquanto despejava o copo: era a última gota de Old Winyard.

Depois de cantarem muitas canções e de falarem de muitas coisas que tinham feito juntos, brindaram ao aniversário de Bilbo e beberam à sua saúde e à de Frodo, juntamente, de acordo com o costume do segundo. Depois saíram um pouco, para tomarem ar e admirarem, as estrelas antes de se deitarem. A festa de Frodo terminara, e Gandalf não aparecera.

Na manhã seguinte, estiveram atarefados a carregar o resto da bagagem noutro carro. Merry encarregou-se disso e partiu no carro com o Gorducho (isto é, com Fredegar Bolger).

- É conveniente ir alguém à frente, para aquecer a casa antes de tu chegares - explicou Merry. - Voltamos a ver-nos... depois de amanhã, se não adormeceres no caminho!

Folco foi para sua casa depois do almoço, mas Pippin deixou-se ficar. Frodo estava inquieto e preocupado, esperando em vão ouvir um som que anunciasse a chegada de Gandalf. Resolveu esperar até ao cair da noite. Depois disso, se Gandalf tivesse grande necessidade dele, poderia ir à Cova dos Grilos, onde talvez até chegasse primeiro do que ele, pois Frodo ia a pé. O seu plano - para seu prazer e para ver o Shire uma última vez, tanto como por qualquer outra razão - previa que fosse a pé de Hobbiton ao ferry de Fiveleira, sem grande pressa.

- Servirá para me treinar um pouco, também - disse, enquanto se via a um espelho empoeirado, no vestíbulo meio vazio.

Havia muito tempo que não fazia uma boa caminhada, a sério, e a imagem que o espelho lhe devolveu pareceu-lhe muito balofa.

Depois do almoço, e com grande contrariedade de Frodo, apareceram os Bagginses de Vila do Saco: Lobélia e o seu filho ruivo, Lotho.

- Finalmente nossa! - exclamou Lobélia, quando entrou.

Não era cortês nem rigorosamente verdade, pois a venda do Fundo do Saco só entrava em vigor depois da meia-noite. Mas talvez Lobélia merecesse perdão, atendendo a que esperara pelo Fundo do Saco mais setenta e sete anos do que a princípio supusera, e já tinha 100 anos. De qualquer modo, fora verificar se não teria sido levada alguma coisa que tivesse pago. E queria as chaves. Precisou de muito tempo para se convencer, pois munira-se de um inventário completo, e conferiu-o, objecto por objecto. No fim, foi-se embora com Lotho e uma chave, tendo-lhe Frodo prometido que deixaria a outra em casa dos Gamgees, na Travessa do Saco Furado. Rosnou e deu perfeitamente a entender que considerava os Gamgees muito capazes de saquearem o buraco durante a noite. Frodo não lhe ofereceu chá.

Tomou o seu com Sam Gamgee e Pippin, na cozinha. Fora oficialmente anunciado que Sam iria para a Bucklândia para «servir o Sr. Frodo e olhar pelo seu jardinzito», coisa que o Velhote aprovou, embora o não consolasse da perspectiva de ter Lobélia como vizinha.

- A nossa última refeição no Fundo do Saco! - exclamou Frodo, quando empurrou a cadeira para trás.

Deixaram a louça para Lobélia lavar. Pippin e Sam puseram as correias nas três mochilas e empilharam-nas no alpendre. Depois, Pippin foi dar um último passeio no jardim. Sam desapareceu.

O Sol pôs-se. O Fundo do Saco parecia triste, soturno e descuidado. Frodo percorreu as salas familiares e viu a luz crepuscular desvanecer-se nas paredes e as sombras saírem, sorrateiras, dos cantos. Escurecia lentamente, no interior. Saiu, foi até ao portão do fundo do carreiro e depois percorreu uma pequena distância pela Estrada do Monte abaixo. Quase esperava ver Gandalf aparecer, em grandes passadas, através do crepúsculo.

O céu estava limpo e as estrelas cada vez mais luminosas.

- Vai estar uma bonita noite - disse, em voz alta. - É um bom começo. Apetece-me andar, já não suporto mais estar aqui parado. Vou partir, e Gandalf que vá ter comigo depois.

Virou-se, para retroceder, mas ouviu vozes do outro lado da esquina, ao fundo da Travessa do Saco Furado, e parou. Uma das vozes era, com certeza, do Velhote; a outra era estranha e um tanto ou quanto desagradável.

Não conseguiu perceber o que dizia, mas ouviu as respostas, muito esganiçadas, do Velhote. O ancião parecia irritado:

- Não, o Sr. Baggins foi-se embora. Partiu esta manhã e o meu filho Sam foi com ele. Pelo menos as coisas dele já foram todas... Sim, já lhe disse que vendeu tudo e partiu... Porquê? Ora essa, isso não é da minha conta nem da sua!... Para onde? Não é segredo nenhum. Mudou-se para Fiveleira, ou qualquer sítio parecido, lá para longe... É, sim, é um bocado. Eu próprio nunca me afastei tanto daqui. São uns indivíduos estranhos, os da Bucklândia... Não, não posso dar nenhum recado. Boas-noites!

Soaram passos pelo monte abaixo. Frodo perguntou vagamente a si mesmo por que lhe parecera um alívio tão grande o facto de os passos não soarem pelo monte acima. «Creio que estou farto de perguntas e curiosidade acerca do que faço e não faço», pensou. «São todos tão curiosos!» Sentiu-se tentado a ir perguntar ao Velhote quem era o indivíduo que o interrogara a seu respeito. Mas reflectiu (bem ou mal, sabia-se lá), e regressou rapidamente ao Fundo do Saco.

Pippin estava sentado na sua mochila, no alpendre. Não havia sinais de Sam. Frodo transpôs a porta às escuras.

- Sam! - chamou. - Sam! São horas.

- Vou já, senhor! - foi a resposta, vinda lá muito de dentro, à qual se seguiu o próprio Sam, a limpar a boca: estivera a despedir-se do barril da cerveja, na adega.

- Está tudo pronto, Sam? - perguntou-lhe Frodo.

- Sim, senhor. Agora estou capaz de aguentar um bocado.

Frodo fechou a porta redonda à chave e entregou esta a Sam:

- Vai a correr levar isto a tua casa, Sam! Depois atalha pela travessa e encontra-te connosco o mais depressa que puderes no portão da azinhaga a seguir aos prados. Esta noite não atravessamos a aldeia. Há muitas orelhas à escuta e muitos olhos de atalaia.

Sam partiu, a toda a velocidade.

- Bem, vamo-nos finalmente embora! - exclamou Frodo.

Puseram as mochilas e pegaram nos cajados e depois contornaram a esquina para o lado ocidental do Fundo do Saco.

- Adeus! - despediu-se Frodo, a olhar para as janelas desertas e às escuras.

Acenou com a mão e depois virou-se e (seguindo sem saber as passadas de Bilbo) estugou o passo atrás de Peregrino, pelo carreiro do jardim abaixo. Saltaram o ponto baixo da cerca, ao fundo, e meteram pelos campos, confundindo-se com a escuridão como um sussurrar da relva.

Ao fundo do Monte, do seu lado ocidental, chegaram ao portão que abria para um azinhaga estreita. Pararam aí e ajustaram as correias das mochilas. Pouco depois apareceu Sam, a trotar apressado e com a respiração ofegante. A mochila pesada erguia-se-lhe, alta, nos ombros e ele enfiara na cabeça um saco de feltro comprido e informe, a que chamava «chapéu». Na escuridão, assemelhava-se muito a um anão.

- Apostava que puseste na minha mochila as coisas mais pesadas - protestou Frodo. - Sinto grande pena dos caracóis e de todos quantos têm de transportar a casa às costas.

- Talvez eu possa levar mais umas coisas. A minha mochila está bastante leve - prontificou-se Sam, estoicamente, mas fugindo à verdade.

- Não, não podes, Sam! - interveio, categórico, Pippin. - Faz-lhe bem. Aliás, ele não leva nada além do que nos mandou pôr na mochila. Tem andado preguiçoso, ultimamente, e quando tiver andado um bocado e expulsado a preguiça sentirá menos o peso.

- Tenham dó de um pobre e velho hobbit! - exclamou Frodo, a rir. - Tenho a certeza de que, por este andar, estarei magrinho como uma vara de salgueiro quando chegar à Bucklândia. Mas eu estava a dizer tolices. Desconfio de que já transportas mais do que a tua parte, Sam, e hei-de ver isso quando voltarmos a arrumar as mochilas. - Pegou de novo no cajado. - Bem, como todos gostamos de andar no escuro, vamos deixar alguns quilómetros para trás antes do nos deitarmos.

Seguiram um bocado pela azinhaga, para ocidente. Depois deixaram-na, viraram à esquerda e meteram de novo, silenciosamente, pelos campos. Caminhavam em fila indiana ao longo de sebes vivas e da orla de bosques e a noite caía, negra, à sua volta. Com as suas capas escuras, eram tão invisíveis como se usassem todos anéis mágicos. Visto serem todos hobbits e tentarem avançar em silêncio,

não faziam quaisquer ruídos que pudessem ser ouvidos por outros hobbits. Até mesmo os seres selvagens dos campos e das florestas mal davam pela sua passagem.

Decorrido algum tempo, atravessaram o Água, a ocidente de Hobbiton, por uma estreita ponte de pranchas. Nesse ponto, a corrente não era mais do que sinuosa fita preta, ladeada por amieiros, inclinados. Dois a 3 km mais a sul, atravessaram apressadamente a grande estrada que partia da Ponte de Brandevinho. Já se encontravam na Tooklândia e, desviando-se para sueste, puseram-se a caminho da Região do Monte Verde. Quando começavam a subir as primeiras encostas, olharam para trás e viram os candeeiros de iluminação de Hobbiton, a piscar muito ao longe no suave vale do Água, que não tardou a desaparecer nas pregas da terra escurecida e a que se seguiu À Beira-d'Água, ao lado da sua lagoa cinzenta. Quando já só se viam, muito ao longe, as luzes da última quinta, a espreitar por entre as árvores, Frodo virou-se e agitou a mão, num adeus.

- Pergunto a mim mesmo se voltarei a ver aquele vale - disse, baixinho.

Depois de caminharem cerca de três horas, descansaram. A noite estava clara, fresca e estrelada, mas dos rios e dos prados fundos subiam pelas encostas farrapos de névoa. Bétulas de copa rala, que um vento leve agitava por cima da cabeça deles, desenhavam uma rede preta no céu claro. Comeram uma ceia muito frugal (pelo padrão hobbitiano) e continuaram a caminhada. Não tardaram a chegar a uma estrada estreita, que subia e descia e se transformava num risco cinzento, na escuridão: era a estrada para Woodhall e Stock e para o Ferry da Fiveleira. Subia da estrada principal, no vale do Água, e serpenteava pela periferia dos Montes Verdes até à Ponta Boscosa, um canto agreste do Farthing Oriental.

Passados momentos, mergulharam num carreiro profundamente aberto entre árvores altas, cujas folhas secas roçavam umas nas outras e murmuravam na noite. Estava muito escuro. Ao princípio, em virtude de já se encontrarem muito longe de ouvidos curiosos, conversaram ou trautearam baixinho uma canção, em coro. Depois caminharam em silêncio, e Pippin começou a ficar para trás. Por fim, quando começaram a subir uma encosta íngreme, ele parou e bocejou.

- Tenho tanto sono, que não tardo a cair na estrada - confessou. - Vocês tencionam dormir em pé? É quase meia-noite.

- Julgava que gostavas de caminhar no escuro - comentou Frodo. - Mas a pressa não é grande. O Merry espera-nos a qualquer hora do dia, depois de amanhã, o que nos deixa ainda quase dois dias inteiros. Pararemos no primeiro lugar apropriado.

- O vento sopra do oeste - disse Sam. - Se chegarmos ao outro lado do monte, encontraremos de certeza um lugar abrigado e aconchegado. Se a memória me não falha, há um pinhal mesmo em frente. - Sam conhecia bem a região num raio de trinta quilómetros de Hobbiton, mas esse era o limite da sua geografia.

Logo a seguir ao cimo do monte encontraram realmente um pequeno pinhal. Deixaram a estrada e penetraram na escuridão densa e fragrante de resina das árvores. Procuraram gravetos e pinhas para fazer uma fogueira, que em breve crepitava alegremente aos pés de um grande pinheiro, e sentaram-se um bocado à volta dela, até começarem a cabecear. Depois, cada um no seu ângulo das raízes da grande árvore, embrulharam-se nas capas e nos cobertores, e não tardaram a adormecer profundamente. Não ficou ninguém de guarda; nem Frodo receava qualquer perigo, por enquanto, pois ainda se encontravam no coração do Shire. Quando o lume se apagou, aproximaram-se diversos animais, que os observaram. Uma raposa que atravessava o bosque, a tratar da sua vida, parou diversos minutos, a farejar.

«Hobbits!», pensou. «Que mais nos faltará? Tenho ouvido contar que se passam estranhas coisas nesta terra, mas raramente me constou que um hobbit dormisse fora de casa, debaixo de uma árvore. E logo três! Há algo de muito estranho atrás disto... » Tinha toda a razão, mas nunca descobriu o que era.

A manhã nasceu, pálida e húmida. Frodo, que foi o primeiro a acordar, descobriu que uma raiz lhe fizera um buraco nas costas e que tinha o pescoço rígido. «Viajar a pé por prazer! Por que não vim de carro?», pensou, como era seu costume habitual, ao princípio de uma expedição. «E todas as minhas ricas camas de penas vendidas aos Bagginses de Vila do Saco! A eles é que estas raízes fariam bem!» Espreguiçou-se e chamou:

- Acordem, hobbits! Está uma bonita manhã.

- Onde está a boniteza? - perguntou Pippin, a espreitar só com um olho por cima da orla do cobertor. - Sam, prepara o pequeno-almoço para as nove e meia! Já aqueceste a água para o banho?

Sam levantou-se de um pulo, um bocadinho remeloso.

- Não, senhor, não aqueci! - respondeu.

Frodo arrancou os cobertores a Pippin e depois rebolou-o no chão e dirigiu-se para a orla da floresta. Ao longe, no Oriente, o Sol emergia, vermelho, da densa névoa que cobria o mundo. Nimbadas de dourado e encarnado, as árvores outonais pareciam vogar, sem raízes, num mar sombrio. Um pouco abaixo de Frodo, à esquerda, a estrada descia, íngreme, e desaparecia numa concavidade.

Quando voltou para junto dos outros, Sam e Pippin tinham, acendido uma boa fogueira.

- Água! - gritou Pippin. - Onde está a água?

- Não trago água nas algibeiras - respondeu-lhe Frodo.

- Pensávamos que tinhas ido procurá-la - disse Pippin, atarefado a dispor a comida e as chávenas. - Se não foste, é melhor ires agora.

- Também podes vir e trazer todas as garrafas - redarguiu-lho Frodo. - Há um regato no sopé do monte.

Encheram as garrafas e a pequena chaleira de acampamento numa cascatazinha que caía da altura de pouco mais de 1 m num afloramento de rocha cinzenta. A água estava gelada, e eles bufaram e sopraram enquanto lavavam a cara e as mãos.

Terminado o pequeno-almoço e postas de novo as correias nas mochilas, as dez horas já tinham passado e o dia começava a ficar bonito e quente. Desceram a encosta e atravessaram o regato no ponto onde ele mergulhava debaixo da estrada, subiram a encosta seguinte e subiram e desceram outro contraforte dos montes. Nessa altura, as capas, os cobertores, a água, a comida e o restante equipamento transformara-se num pesado fardo.

A caminhada daquele dia prometia ser trabalho quente e cansativo. No entanto, percorridos alguns quilómetros, a estrada deixou de subir e descer: subiu por um aterro íngreme, numa espécie de ziguezague exaustivo, e depois preparou-se para descer pela última vez. Viram à sua frente as terras baixas, tendo aqui e ali pequenos maciços de arvoredo que mergulhavam ao longe numa espécie de névoa florestal castanha. Estavam a olhar para a Ponta Boscosa, na direcção do rio Brandevinho. A estrada serpenteava à frente deles como um bocado de fio.

- Aquela estrada nunca mais acaba - comentou Pippin. - Não posso continuar sem descansar. Já é mais do que tempo de almoçarmos.

Sentou-se no aterro, à beira da estrada, e olhou para a névoa de leste, para lá da qual ficava o rio e o lado do Shire ponde passara toda a sua vida. Sam estava de pé, a seu lado, com os olhos redondos muito abertos: olhava, através de terras que nunca vira, para um novo horizonte.

- Vivem elfos naquelas florestas? - perguntou.

- Que eu saiba, não - respondeu-lhe Pippin.

Frodo estava silencioso, a olhar também para leste, ao longo da estrada, como se nunca a tivesse visto. De súbito, em voz alta, mas como se falasse consigo próprio, disse, devagar:

A Estrada avança sempre, sempre,

A partir da porta onde começou.

Agora a Estrada chegou muito longe

E tenho de segui-la, se puder,

De percorrê-la com pés fatigados

Até se fundir noutro caminho maior,

Onde se encontram muitos caminhos e missões

E depois, para onde? Não sei dizer.

- Isso faz lembrar um pouco o versejar do velho Bilbo - comentou Pippin. - Ou é uma das tuas imitações? De qualquer modo, não parece nada encorajador.

- Não sei - respondeu Frodo. - Veio-me à cabeça, como se estivesse a fazer os versos; mas é possível que os tenha ouvido há muito tempo. E não há dúvida de que me recorda muito Bilbo nos últimos anos, antes de ele partir. Dizia muitas vezes que só havia uma estrada, que era como um grande rio: a sua nascente ficava a cada porta e todos os caminhos eram seus afluentes. «É uma coisa perigosa sairmos da nossa porta, Frodo», costumava dizer. «Entramos na Estrada e, se não dominamos os nossos passos, nunca se sabe para onde podemos ser arrastados. Já reparaste que este é o próprio caminho que atravessa a Floresta Tenebrosa e que, se o deixares, poderá levar-te para a Montanha Solitária ou até mesmo para lugares mais distantes e piores?» Costumava dizer isto no carreiro existente defronte da porta principal do Fundo do Saco, sobretudo depois de ter dado um longo passeio.

- Bem, a Estrada, a mim, não me vai arrastar para lado nenhum, pelo menos nesta hora mais próxima - declarou Pippin, enquanto tirava a mochila.

Os outros seguiram-lhe o exemplo, encostaram as mochilas ao aterro e estenderam as pernas para a estrada. Depois de descansarem, comeram um bom almoço e, a seguir, descansaram mais um bocado.

O Sol começava a descer e a luz da tarde iluminava a terra quando desceram a encosta. Até àquela altura, não tinham encontrado vivalma na estrada. Efectivamente, esta não era muito utilizada, pois dificilmente poderiam passar por ela carroças e havia pouco trânsito para a Ponta Boscosa. Caminhavam de novo havia cerca de uma hora, ou mais, quando Sam parou um momento, como se escutasse. Encontravam-se em terreno plano e a estrada, depois de muito ziguezaguear, estendia-se a direito, em frente, através de pastos com algumas árvores altas aqui e ali, postos avançados das florestas próximas.

- Ouço um pónei ou um cavalo na estrada, atrás de nós - disse Sam.

Olharam para trás, mas a curva da estrada não os deixou ver muito longe.

- Pergunto a mim mesmo se será Gandalf que nos segue - disse Frodo; mas, enquanto falava, teve o pressentimento de que não se tratava disso, e invadiu-o o desejo inesperado de se esconder do cavaleiro que aí vinha. - Talvez não tenha grande importância - explicou, como quem se desculpa -, mas preferia não ser visto na estrada por ninguém. Estou farto de tudo quanto faço ser observado e discutido. E se for Gandalf - acrescentou, como se a ideia lhe ocorresse de repente -, poderemos fazer-lhe uma pequena surpresa, para o castigar de se ter atrasado tanto. Vá, escondamo-nos!

Os outros dois correram rapidamente para a esquerda e atiraram-se para um pequeno buraco, que não ficava longe da estrada, e onde se estenderam ao comprido. Frodo hesitou um segundo: a curiosidade ou qualquer outro sentimento debatia-se com o seu desejo de se esconder. O som dos cascos aproximou-se. No último momento, Frodo atirou-se para uma extensão de erva alta, atrás de uma árvore que sombreava a estrada. Depois levantou a cabeça e espreitou cautelosamente por cima de uma das grandes raízes.

Da curva da estrada emergiu um cavalo preto - não se tratava de nenhum pónei hobbit, e sim de um cavalo adulto, plenamente desenvolvido - montado por um homem corpulento que parecia encolhido na sela, envolto numa grande capa preta com capuz, sob a qual só se lhe viam as botas apoiadas nos estribos altos. O seu rosto estava envolto em sombras e invisível.

Quando chegou à árvore e ficou ao nível de Frodo, o cavalo parou. O vulto que o montava permaneceu imóvel, de cabeça inclinada, como se escutasse. Do interior do capuz saía um ruído que lembrava alguém a fungar, como se quisesse captar um rasto esquivo. A cabeça virou-se de um lado para o outro da estrada.

Apoderou-se de Frodo um medo súbito e irracional de ser descoberto, e pensou no anel. Quase não ousava respirar, mas o desejo de o tirar da algibeira tornou-se tão forte que começou a aproximar a mão, devagarinho. Sentia que lhe bastaria enfiar o anel no dedo para ficar em segurança. O conselho de Gandalf pareceu-lhe absurdo.

Bilbo usara o anel. «E eu ainda estou no Shire», pensou, ao tocar com a mão na corrente da qual pendia o anel. Nesse momento, o cavaleiro endireitou-se e sacudiu as rédeas. O cavalo começou a andar devagar, ao princípio, e depois lançou-se num trote rápido. Frodo rastejou para a berma da estrada e seguiu o cavaleiro com o olhar, até deixar de o ver, ao longe. Não juraria, mas pareceu-lhe que, de repente, antes de deixar de o ver, o cavalo virara e penetrara no meio das árvores do lado direito.

«Bem, aquilo parece-me muito estranho e perturbador», pensou Frodo, enquanto ia ter com os companheiros. Pippin e Sam tinham ficado estendidos na erva e não tinham visto nada; por isso, Frodo descreveu-lhes o cavaleiro e o seu estranho comportamento.

- Não sei explicar porquê, mas tive a certeza de que ele me procurava ou farejava. Assim como tive a certeza de que não queria que ele me descobrisse. Nunca tinha visto nem sentido nada semelhante no Shire.

- Mas que poderá um dos da Gente Grande ter a ver connosco? - perguntou Pippin. - E que anda a fazer nestas bandas?

- Andam por aí alguns homens - respondeu-lhes Frodo. - Creio até que no Farthing Meridional tiveram problemas com Gente Grande. Mas nunca ouvi falar de ninguém como este cavaleiro. Donde terá vindo?

- Com sua licença - interveio, inesperadamente, Sam -, mas eu sei donde ele veio. Este cavaleiro negro veio de Hobbiton, a não ser que haja mais do que um. E sei também para onde ele vai.

- Que queres dizer? - perguntou-lhe Frodo, vivamente, a olhá-lo cheio de espanto. - Por que não falaste antes?

- Só agora me lembrei, senhor. As coisas passaram-se assim: quando ontem à noitinha voltei ao nosso buraco com a chave, o meu velho disse-me: Olá, Sam! Julguei que tivesses partido com o Sr. Frodo esta manhã. Esteve aí um sujeito desconhecido a perguntar pelo Sr. Baggins do Fundo do Saco, e acaba de se ir embora há bocadinho. Mandei-o para Fiveleira. Não que me agradasse a sua maneira de falar. Pareceu muito aborrecido quando lhe disse que o Sr. Baggins tinha deixado a velha casa para sempre. Soltou um silvo que me causou um destes calafrios!... Perguntei então ao Velhote: Que género de sujeito era? E ele respondeu-me: um hobbit. Era alto e assim a modos que preto e inclinou-se para mim. Calculo que era um dos da Gente Grande de terras estrangeiras. Tinha uma fala esquisita.

»Não me pude demorar a ouvir mais nada, porque o senhor estava à espera, e não liguei muita importância ao caso. 0 meu pai está a ficar velho e bastante cego e já devia ser quase noite quando o tal sujeito subiu a encosta e o encontrou a tomar ar ao fundo da nossa travessa. Espero que ele não tenha feito mal nenhum... nem eu, senhor.»

- Não podemos censurar o Velhote, de maneira nenhuma - redarguiu Frodo. - Na verdade, eu próprio o ouvi falar com um desconhecido que parecia estar a perguntar por mim e estive quase a ir ter com ele para que me dissesse quem era. Foi pena não o ter feito, assim como foi pena tu não me teres falado do caso antes. Talvez tivesse tido mais cuidado na estrada.

- Mas é possível que não exista qualquer relação entre este cavaleiro e o desconhecido do Velhote - observou Pippin. - Saímos de Hobbiton em segredo, e não vejo como ele poderia ter-nos seguido.

- E, quanto ao farejar, senhor? - perguntou Sam. - O Velhote, disse que era um tipo preto.

- Estou arrependido de não ter esperado por Gandalf- murmurou Frodo. - Mas talvez só tivesse piorado as coisas...

- Queres dizer que sabes ou calculas alguma coisa acerca deste, cavaleiro? - Indagou Pippin, a quem não tinham escapado as palavras murmuradas pelo amigo.

- Não sei e prefiro não calcular - respondeu-lhe Frodo.

- Está bem, meu primo! Podes guardar os teus segredos, por enquanto, se te apetece ser misterioso. Entretanto, que vamos fazer? Cá por mim, vinha a calhar um petisco, para aconchegar, mas, não sei porquê, suponho que seria melhor afastarmo-nos daqui. O que disseste de cavaleiros farejantes de nariz invisível transtornou-me.

- Sim, acho melhor seguirmos viagem - concordou Frodo -, mas não pela estrada, não vá o cavaleiro voltar para trás ou aparecer outro. Precisamos de avançar um bom bocado, hoje. A Bucklândia ainda está a quilómetros de distância.

 

Quando reataram a caminhada, as árvores projectavam na erva sombras compridas e estreitas. Desta vez seguiram à distância de uma pedrada da berma esquerda da estrada e sempre que possível de modo a não serem vistos dela. Mas essas cautelas atrasavam-nos, pois a erva era densa e tufosa, o solo irregular e as árvores começavam a agregar-se mais, em maciços.

O Sol escondera-se, vermelho, do outro lado dos montes, atrás deles, e o crepúsculo avizinhou-se antes de voltarem à estrada, no fim da comprida planura pela qual ela correra, em linha recta, ao longo de alguns quilómetros. Nesse ponto, a estrada virava para a esquerda e descia para as terras baixas do Yale, a caminho de Stock. Mas à direita havia uma azinhaga que serpenteava através de uma mata de velhos carvalhos, na direcção de Woodhale.

- É este o caminho para nós - disse Frodo.

A pouca distância da bifurcação da estrada chegaram a uma enorme árvore: ainda estava viva e tinha folhas nos pequenos ramos que tinham brotado à volta dos cotos dos galhos havia muito caídos; mas estava oca e podia-se entrar nela por uma grande fresta existente do lado contrário à estrada. Os hobbits assim fizeram e sentaram-se no chão de folhas mortas e madeira podre. Descansaram e tomaram uma refeição ligeira, enquanto conversavam em voz baixa e escutavam, de vez em quando.

O crepúsculo descera quando voltaram à azinhaga. O *** vento do ocidente suspirava nos ramos das árvores, cujas folhas murmuravam. Pouco depois, a noite começou a cair, suave mas firmemente. Brilhou uma estrela por cima das árvores, no Oriente a escurecer, à frente deles. Caminhavam ao lado uns dos outros e em passo certo, para manterem o ânimo. Passado algum tempo, à medida que as estrelas se iam tornando mais numerosas e mais brilhantes, o sentimento de inquietação abandonou-os, e deixaram de estar atentos ao ruído de cascos. Começaram a cantarolar baixinho, como é hábito dos Hobbits quando caminham, especialmente quando se aproximam de casa, à noite. Na maioria dos casos, trata-se então de uma canção de jantar ou de uma canção de ir para a cama; mas estes hobbits trauteavam uma canção de caminhar (embora não isenta, claro, de menções a jantar e a cama). Bilbo Baggins escrevera os versos, adaptando-os a uma melodia tão velha como os montes, e ensinara-os a Frodo enquanto passeavam nas veredas do Vale da Água e falavam de Aventura:

Na lareira, o lume arde, rubro

E debaixo do telhado há uma cama;

Mas nossos pés ainda não estão cansados

E depois da curva talvez ainda encontremos

Uma árvore inesperada ou uma pedra erecta

Que ninguém mais viu além de nós.

 

Árvore e flor, e folha e erva,

Deixai-as, passar! Deixai-as passar!

Monte e água debaixo do céu

Por eles passai, por eles passai!

 

Depois da curva talvez ainda esperem

Uma estrada nova ou um secreto portão, E embora hoje passemos por eles,

Talvez aqui voltemos amanhã

E sigamos pelas veredas ocultas

Que conduzem à Lua ou ao Sol.

 

Macieira, espinheiro, nogueira e abrunheiro,

Deixai-os passar! Deixai-os passar!

Areia e pedra, e lagoa e valezinho,

Passai muito bem! Passai muito bem!

A casa está atrás, o mundo em frente

E são muitos os caminhos a pisar

Através das sombras até à noitinha,

Até se acenderem todas as estrelas.

Então, com o mundo atrás e a casa à frente,

Regressaremos ao lar e ao leito.

Névoa e crepúsculo, e nuvem e sombra,

Dissipar-se-ão! Dissipar-se-ão!

Lareira e luz, e carne e pão,

E depois... cama! E depois... cama!

 

A canção terminou.

- E agora... cama! E agora... cama! - cantou Pippin, muito alto.

- Caluda! - recomendou Frodo. - Parece-me ouvir outra vez cascos.

Estacaram repentinamente, e ficaram tão silenciosos como sombras de árvores, a escutar. Soavam de facto cascos na azinhaga, alguma distância atrás, mas lentos e contra o vento. Rápida e silenciosamente, os hobbits abandonaram o caminho e correram para a escuridão mais cerrada, debaixo dos carvalhos.

- Não nos afastemos demasiado! - recomendou Frodo. - Não quero ser visto, mas quero ver se é outro cavaleiro negro.

- Muito bem - concordou Pippin. - Mas não te esqueças do farejar!

O barulho dos cascos aproximou-se. Não tiveram tempo de encontrar melhor esconderijo do que a escuridão geral, debaixo das árvores. Sam e Pippin encolheram-se atrás de um grande tronco, enquanto Frodo retrocedia alguns metros, devagarinho, na direcção da azinhaga, que se mostrava cinzenta e pálida, uma linha de luz a esbater-se através do bosque. Em cima, no céu escuro

muitas estrelas, mas não havia Lua.

O som dos cascos emudeceu. Enquanto olhava, Frodo viu qualquer coisa escura atravessar o espaço mais claro entre duas árvores e parar. Pareceu-lhe a sombra preta de um cavalo, conduzido por outra sombra preta mais pequena. Esta imobilizou-se perto do ponto onde eles tinham abandonado o caminho e oscilou de lado para lado. Frodo julgou ouvir farejar. A sombra inclinou-se para o chão e depois começou a rastejar na sua direcção.

Invadiu-o de novo o desejo de pôr o anel; mas desta vez foi mais forte do que antes. Tão forte que, sem praticamente se aperceber do que estava a fazer, a sua mão tacteava na algibeira. Mas nesse, momento ouviu-se um som que parecia uma mistura de canto e riso.

Soaram vozes claras no ar iluminado pelas estrelas. A sombra preta endireitou-se e recuou. Saltou para o cavalo quase invisível e pareceu desaparecer na escuridão do outro lado da azinhaga. Frodo respirou de novo.

- Elfos! - exclamou Sam, num murmúrio rouco. - Elfos, senhor! - E teria saído do abrigo das árvores e desatado a correr na direcção das vozes, se os outros o não tivessem puxado para trás.

- É verdade, são elfos - confirmou Frodo. - As vezes, encontramo-los na Ponta Boscosa. Não vivem no Shire, mas na Primavera e no Outono saem das suas terras, para além dos Montes das Torres, e vão até lá. E muito grato me sinto por isso! Vocês não viram, mas aquele cavaleiro negro parou aqui mesmo e rastejava direito a nós quando a canção começou. Assim que ouviu as vozes, porém, escapou-se.

- E os elfos? - perguntou Sam, tão excitado que nem se preocupava com o cavaleiro. - Não podemos ir vê-los?

- Escuta! Vêm para este lado - respondeu-lhe Frodo. - Basta que esperemos.

O som da canção aproximou-se. Uma voz límpida erguia-se agora acima das outras. Cantava na doce língua élfica, que Frodo conhecia pouco e os outros nada. No entanto, o som misturava-se com a melodia e parecia formar-lhes no cérebro palavras que só parcialmente compreendiam. A canção que Frodo ouviu foi:

Branca como a neve! Ó clara Senhora!

Ó Rainha d'além dos Mares Ocidentais!

Ó luz que nos alumias, a nós que erramos

Pelo mundo de árvores entrelaçadas!

 

Gilthoniel! Ó Elbereth!

Claros são teus olhos e luminoso é teu hálito!

Branca como a neve! Cantamos-te

Numa terra distante, do outro lado do mar.

 

Ó estrelas que no Ano Sem Sol

Com luminosa mão ela semeou

Em ventosos campos agora luzentos e claros,

Vemos desabrochar as tuas flores de prata!

 

Ó Elbereth! Gilthoniel!

Ainda recordamos, nós que vivemos

Nesta terra distante sob as árvores,

A luz das tuas estrelas nos Mares Ocidentais!

 

A canção terminou.

- São elfos superiores! Disseram o nome de Elbereth! - exclamou Frodo, estupefacto. - No Shire vê-se pouca dessa gente, que é a mais bela de todas. São poucos os que restam, agora, na Terra Média, a leste do Grande Mar. É deveras uma estranha coincidência!

Os hobbits sentaram-se na berma do caminho. Os elfos não tardaram a aparecer, a descer a azinhaga na direcção do vale. Passaram devagar, e os hobbits viram a luz das estrelas a cintilar-lhes no cabelo e nos olhos. Não levavam qualquer luz, mas, ao caminharem, parecia rodear-lhes os pés uma luz difusa, como o luar acima dos cumes dos montes, antes de a Lua nascer. Tinham-se calado e, quando o último elfo passou, virou-se, olhou na direcção do hobbits e riu-se.

- Salve, Frodo! - saudou. - Andam cá por fora a horas tardias ou ter-se-ão perdido?

Depois chamou os outros, em voz alta, e o grupo todo parou e reuniu-se à sua volta.

- Isto é realmente maravilhoso! - exclamaram. - Três hobbits numa floresta, à noite! Não víamos coisa que se parecesse desde que Bilbo partiu. Que significa isto?

- O significado disto, gente bela - respondeu Frodo -, é simplesmente o facto de, ao que parece, seguirmos o mesmo caminho que vocês. Gosto de caminhar à luz das estrelas, mas aceitaria de bom grado a vossa companhia.

- Nós, porém, não precisamos de outra companhia, são tão enfadonhos! - Riram-se. - E como sabem que seguimos o mesmo caminho, se ignoram para onde vamos?

- E como sabem o meu nome? - perguntou Frodo, por sua vez.

- Sabemos muitas coisas. Vimos-te muitas vezes com Bilbo, embora tu talvez nos não tenhas visto.

- Quem são e quem é o seu chefe? - inquiriu Frodo.

- Sou Gildor - respondeu o chefe deles, o elfo que primeiro saudara Frodo. - Gildor Inglorion, da Casa de Finrod. Somos exilados. A maior parte dos nossos familiares partiu há muito tempo e nós próprios só nos demoraremos aqui um pouco, antes de regressarmos pelo Grande Mar. No entanto, alguns dos nossos ainda residem em paz em Rivendell. E agora, Frodo, dize-nos o que andas a fazer, pois vemos em ti uma sombra de medo.

- Ó Sábios! - intrometeu-se Pippin, ansiosamente. - Fale-nos dos Cavaleiros Negros!

- Dos Cavaleiros Negros? - repetiram os elfos, em voz baixa. Por que nos interrogas acerca dos Cavaleiros Negros?

- Porque dois deles nos alcançaram hoje... ou um nos alcançou duas vezes - respondeu Pippin. - Ainda há bocadinho se escapuliu, quando se aproximavam.

Os elfos não responderam logo, mas falaram suavemente entre si, na sua língua. Por fim, Gildor voltou-se para os hobbits:

- Não falaremos disso aqui - declarou. - Agora achamos melhor virem connosco. Não é nosso costume, mas desta vez levá-los-emos pelo nosso caminho e, se quiserem, pernoitarão connosco.

- O Gente Bela! Não ousava esperar tanta sorte! - respondeu Pippin.

Sam emudecera.

- Agradeço-te sinceramente, Gildor Inglorion - disse Frodo, e inclinou-se. - Elen síla lúmenn'omentielvo, uma estrela brilha na hora do nosso encontro - acrescentou, na língua dos Elfos Superiores.

- Cuidado, amigos! - recomendou Gildor, a rir. - Não mencionem segredos nenhuns! Está aqui um conhecedor da Língua Antiga. Bilbo foi um bom mestre. Salve, amigo dos Elfos! - exclamou, e inclinou-se também diante de Frodo. - Agora vem com os teus amigos e junta-te ao nosso grupo. Será melhor caminharem no meio, para não se perderem. Talvez se sintam cansados antes de pararmos.

- Porquê? Para onde vão? - perguntou Frodo.

- Por esta noite, vamos para as florestas dos montes acima de Woodhall. São alguns quilómetros, mas no fim poderão descansar e ficarão com a caminhada de amanhã mais curta.

Recomeçaram a andar em silêncio, passando como sombras e luzes fracas, pois os Elfos (ainda mais do que os Hobbits) sabiam, quando queriam, caminhar sem qualquer ruído, sem que se lhes ouvissem sequer os passos. Pippin não tardou a sentir-se sonolento, e cambaleou uma ou duas vezes, mas um elfo alto, que se encontrava a seu lado, estendeu um braço e evitou que caísse. Sam caminhava ao lado de Frodo, como num sonho, com uma expressão que era um misto de medo e de estupefacta alegria.

 

Os bosques de ambos os lados tornaram-se mais densos; as árvores eram agora mais jovens e menos espaçadas e, à medida que a azinhaga descia para uma prega dos montes, começaram a aparecer muitas moitas cerradas de aveleiras, nas encostas íngremes de ambos os lados. Por fim, os elfos saíram do caminho. Uma vereda verde, quase invisível, atravessava os maciços da direita, e por ela seguiram, a ziguezaguear pelas encostas arborizadas acima até ao cimo de um dos contrafortes dos montes, que sobressaía na terra baixa do vale do rio. De súbito, desembocaram da sombra das árvores e encontraram à sua frente um grande espaço de erva que a noite tornava cinzenta. As florestas avançavam de três lados, mas a leste o solo descia, muito íngreme, e as copas das árvores escuras do fundo da encosta ficavam debaixo dos pés deles. Ao longe, distinguiam-se as terras baixas, penumbrentas e planas sob as estrelas. Mais perto, brilhavam algumas luzes na aldeia de Woodhall.

Os elfos sentaram-se na erva e conversaram baixinho, como se tivessem deixado de se importar com os hobbits. Frodo e os companheiros embrulharam-se em capas e cobertores, e a sonolência apoderou-se deles.

A noite avançou, e as luzes do vale apagaram-se. Pippin adormeceu, com um montículo verde a servir de almofada.

Muito alto, no Oriente distante, apareceram Remmirath, as Estrelas Reticuladas, e, lentamente, acima das névoas, surgiu a rubra.

Uns andavam de um lado para o outro com taças e a servir bebidas, enquanto outros traziam travessas e pratos carregados de comida.

- Isto é fraco passadio - disseram aos hobbits -, pois estamos instalados nos bosques, longe das nossas mansões. Mas, se alguma vez forem nossos hóspedes lá, tratá-los-emos melhor.

- A mim parece-me suficientemente bom para uma festa de aniversário! - afirmou Frodo.

Posteriormente, Pippin lembrou-se pouco, do que comera ou bebera, porque o seu cérebro estava cheio da luz dos rostos dos elfos e do som das suas vozes, tão variadas e belas, que tinha a sensação de sonhar acordado. Lembrava-se, no entanto, de ter comido pão cujo sabor ultrapassava o de um bom cacete branco para alguém que morria de fome; e de frutos doces como bagas silvestres e mais sumarentos do que os frutos tratados dos pomares. Lembrava-se também de ter bebido uma taça de uma bebida fragrante, fresca como uma fonte cristalina e dourada como uma tarde de Verão.

Sam nunca conseguiu descrever por palavras, nem visualizar claramente para si próprio, o que sentiu ou pensou naquela noite, embora ela lhe ficasse na memória como um dos principais acontecimentos da sua vida. O mais que conseguiu dizer que se aproximasse dos seus sentimentos foi:

- Bem, senhor, se eu conseguisse cultivar maçãs como aquelas considerar-me-ia um jardineiro. Mas o que me ficou no coração foi o canto, se compreende o que quero dizer.

Frodo comia, bebia e conversava deliciado; mas o seu cérebro prestava atenção, principalmente às palavras ditas. Sabia um bocadinho da língua élfica e escutava avidamente. De vez em quando, falava aos que o serviam e agradecia-lhes na sua língua. Eles sorriam e comentavam, a rir:

- Aqui está uma jóia entre os Hobbits!

Passados momentos, Pippin adormeceu profundamente e levaram-no para um caramanchão, debaixo das árvores. Aí deitaram-no numa cama macia, onde dormiu o resto da noite. Sam recusou-se a abandonar o amo. Depois de levarem Pippin, sentou-se enroscado aos pés de Frodo, onde por fim começou a cabecear e adormeceu.

Frodo ficou muito tempo acordado, a conversar com Gildor.

 

Falaram de muitas coisas, antigas e modernas, e Frodo interrogou muito Gildor a respeito de acontecimentos do vasto mundo que existia fora do Shire. As notícias eram na sua maioria tristes e de mau presságio: de trevas crescentes, das guerras dos Homens e da fuga dos Elfos. Por fim, Frodo fez a pergunta que estava mais perto do seu coração:

- Diz-me, Gildor, viste Bilbo alguma vez, desde que ele nos deixou?

Gildor sorriu.

- Vi. Duas vezes. Despediu-se de nós aqui mesmo. Mas voltei a vê-lo outra vez, muito longe daqui.

Não disse mais nada a respeito de Bilbo, e Frodo ficou silencioso.

- Não me perguntas nem me dizes muito a respeito de ti mesmo, Frodo - observou Gildor. - Mas eu já sei um bocadinho e consigo ler mais no teu rosto e nos pensamentos que inspiram as tuas perguntas. Vais deixar o Shire, e, contudo, duvidas que consigas encontrar o que procuras, ou realizar o que pretendes, ou que possas alguma vez regressar. Não é isso?

- É - admitiu Frodo. - Mas pensava que a minha partida era um segredo conhecido apenas por Gandalf e pelo meu fiel Sam. - Olhou para Sam, que ressonava baixinho.

- Não será por nosso intermédio que o segredo chegará conhecimento do Inimigo - afirmou Gildor.

- Inimigo? Então sabes por que motivo deixo o Shire?

- Ignoro por que razão o Inimigo te persegue, mas, por muito estranho que isso me pareça, apercebo-me de que realmente te persegue. E aviso-te de que o perigo está agora tanto à tua frente como atrás de ti e também de ambos os lados.

- Referes-te aos cavaleiros? Receei que fossem servidores do Inimigo. Quem são os Cavaleiros Negros, Gildor?

- Gandalf não te disse nada?

- A respeito de tais criaturas, não.

- Então acho que não me compete dizer-te mais... não vá o terror impedir-te de prosseguir a tua viagem. Parece-me que partiste mesmo a tempo... se é que ainda vais a tempo. Agora deves apressar-te e não deves parar nem voltar para trás, pois o Shire já não constitui nenhuma protecção para ti.

- Não imagino nenhuma informação que possa ser mais aterradora do que as tuas insinuações e advertências - disse Frodo. Sabia que o perigo esperava à minha frente, claro; mas não contava encontrá-lo no nosso próprio Shire. Já não pode um hobbit ir do Água para o Rio em paz?

- Não é o vosso próprio Shire, Frodo. Outros aqui moraram antes dos Hobbits, e outros aqui morarão de novo quando já não houver hobbits. O vasto mundo está a toda a volta de vocês; podem isolar-se dentro do Shire, mas não poderão manter eternamente o mundo do lado de fora.

- Bem sei... No entanto, pareceu-me sempre tão seguro e familiar! Que posso fazer agora? O meu plano era abandonar secretamente o Shire e seguir para Rivendell; mas ainda nem cheguei à Bucklândia, e todos os meus passos já são seguidos.

- Acho que devias continuar a obedecer a esse plano - aconselhou Gildor. - Não creio que a Estrada seja demasiado difícil para a tua coragem. Mas se queres conselhos mais explícitos, deves pedi-los a Gandalf. Desconheço a razão da tua fuga, e por isso ignoro por que meios os teus perseguidores te atacarão. Gandalf deve saber essas coisas. Suponho que o verás antes de sair do Shire...?

- Espero que sim, mas essa é outra coisa que me preocupa. Esperei Gandalf durante muitos dias. Ele tinha ficado de ir a Hobbiton pelo menos há duas noites, mas não apareceu. Pergunto a mim mesmo o que terá acontecido. Deverei esperar por ele?

Gildor ficou um momento calado.

- Essa notícia não me agrada - declarou, por fim. - O atraso de Gandalf não é bom presságio. No entanto, costuma-se dizer: Não te intrometas nos assuntos dos feiticeiros, pois eles são subtis e zangam-se facilmente. Tu é que terás de escolher entre ir e esperar.

- Também se costuma dizer: Não procures os Elfos para te aconselhar, pois eles dir-te-ão sim e não.

- Diz-se isso? - perguntou Gildor, a rir. - Os Elfos raramente dão conselhos irreflectidos. Aconselhar é um dom perigoso, mesmo de sábio para sábio, e todos os caminhos podem ter mau fim. Mas que esperavas tu? Se não me disseste tudo quanto te respeita, como poderia eu escolher melhor do que tu? Mas, já que pedes conselho, vou dar-to em nome da amizade. Acho que devias partir imediatamente, sem demora. E se Gandalf não aparecer antes de partires, então também te aconselho o seguinte: não vás sozinho. Leva contigo amigos de confiança e que a tal estejam dispostos. Pronto, devias sentir-te grato, pois não dou conselhos destes de bom grado. Os Elfos têm os seus próprios trabalhos e os seus próprios sofrimentos e pouco se preocupam com a maneira de proceder dos Hobbits ou de quaisquer outras criaturas da terra. Os nossos caminhos raro se cruzam com os deles, propositadamente ou por obra do acaso. Neste nosso encontro pode ter havido mais do acaso; mas o propósito não se me apresenta claro e receio dizer demasiado.

- Sinto-me profundamente agradecido - afirmou Frodo -, mas gostaria que me dissesses claramente o que são os Cavaleiros Negros. Se seguir o teu conselho, provavelmente não verei Gandalf durante muito tempo; por isso, acho que devia saber qual é o perigo que me persegue.

- Não te basta saber que são servos do Inimigo? - redarguiu-lhe Gildor. - Foge deles! Não lhes digas nada! São terríveis! Não me perguntes mais nada. O meu coração adivinha que, antes de tudo terminar, tu, Frodo, filho de Drogo, saberás mais dessas coisas terríveis do que Gildor Inglorion. Que Elbereth te proteja!

- Mas aonde hei-de ir buscar coragem? - insistiu Frodo. - É disso que principalmente necessito.

- A coragem veio no momento em que Gildor acabava de falar.

- Agora dormirei - disse, e o elfo conduziu-o a um caramanchão ao lado de Pippin.

Frodo atirou-se para uma cama e mergulhou imediatamente num sono sem sonhos.

 

UM ATALHO PARA OS COGUMELOS

De manhã, Frodo acordou refeito. Estava deitado num caramanchão formado por uma árvore cujos ramos se entrelaçavam e pendiam para o chão, e a sua cama era de fetos e erva, fofa, macia e estranhamente fragrante. O sol brilhava através das folhas trémulas e ainda verdes da árvore. Levantou-se, de um pulo, e saiu.

Sam estava sentado na erva, perto da orla da floresta, e Pippin, de pé, observava o céu e o tempo. Não restava qualquer vestígio dos elfos.

- Deixaram-nos fruta, bebida e pão - anunciou Pippin. - Vai tomar o teu pequeno-almoço. O pão sabe quase tão bem como na noite passada. Por mim, não te teria deixado nenhum, mas o Sam insistiu...

Frodo sentou-se ao lado de Sam e começou a comer.

- Qual é o programa para hoje? - perguntou-lhe Pippin.

- Caminhar até à Fiveleira o mais depressa possível - respondeu-lhe Frodo, e dedicou a sua atenção à comida.

- Achas que voltaremos a ver esses cavaleiros? - quis saber, Pippin, alegremente; à luz matinal, nem a perspectiva de ver um bando inteiro deles parecia alarmá-lo muito.

- Sim, provavelmente - respondeu Frodo, a quem a recordação de tal assunto não agradou. - Espero, no entanto, que consigamos atravessar o rio sem que eles nos vejam.

- Descobriste alguma coisa a respeito deles por intermédio de Gildor?

- Pouca coisa... só insinuações e charadas - redarguiu Frodo evasivamente.

Perguntaste-lhe acerca do farejar?

- Não discutimos isso - disse Frodo, com a boca cheia.

- Deviam ter discutido. Tenho a certeza de que é muito importante.

- Nesse caso, tenho a certeza de que Gildor se teria recusado a explicar o facto - respondeu Frodo, asperamente. - E agora deixa-me um bocado em paz! Não me apetece responder a uma enfiada de perguntas enquanto estou a comer. Quero pensar!

- Céus! - exclamou Pippin. - Ao pequeno-almoço? - E afastou-se para a orla do relvado.

A luminosa manhã - traiçoeiramente luminosa, na sua opinião não expulsava o medo da perseguição do cérebro de Frodo, que meditava nas palavras de Gildor. Chegou-lhe aos ouvidos a voz alegre de Pippin, que corria e cantava na turfa verde.

«Não poderia fazer isso!», pensou. «Uma coisa é trazer os meus jovens amigos num passeio pelo Shire, até sentirmos fome e cansaço e a cama e a comida se tornarem agradáveis; outra, e muito diferente, seria levá-los comigo para o exílio, onde a fome e o cansaço poderiam não ter cura. E ainda restaria saber se eles estariam dispostos a isso. A herança é só minha. Acho que nem o Sam devo levar.»

olhou para Sam Gamgee e descobriu que ele o estava a observar.

- Então, Sam, que me dizes? Deixarei o Shire o mais depressa que puder... Efectivamente, acabo até de decidir que nem sequer ficarei um dia na Cova dos Grilos, se isso puder ser evitado.

- Muito bem, senhor!

- Ainda estás resolvido a ir comigo?

- Ainda.

- Vai ser muito perigoso, Sam. Até já é perigoso. O mais certo nenhum de nós voltar.

- Se o senhor não voltar, então é certo que eu não voltarei - redarguiu Sam. - Não o abandones!, disseram-me eles. Abandoná-lo?!, respondi-lhes. Não tenciono abandoná-lo nunca. Irei com ele, nem que a sua ideia seja subir à Lua. E se algum desses Cavaleiros Negros tentar detê-lo, terá de se avir comigo, afirmei. Eles riram-se.

- Eles quem? E de estás a falar?

- Os elfos, senhor. Conversámos um bocado, a noite passada, e como eles pareciam saber que o senhor ia partir, não vi necessidade de o negar. Gente maravilhosa, os Elfos, senhor! Maravilhosa!

- Tens razão. Continuas a gostar deles, agora que os viste mais de perto?

- Parecem-me um bocado acima do meu gostar e não gostar, por assim, dizer - respondeu Sam, devagar. - O que penso deles parece não importar nada. São completamente diferentes do que eu esperava... assim a modos que tão velhos e tão jovens, tão alegres e tão tristes...

Frodo olhou, surpreendido, para Sam, quase como se esperasse ler qualquer sinal exterior da estranha modificação que parecia ter-se operado nele. Nem a voz parecia a do velho Sam Gamgee, que ele julgara conhecer. Mas quem ali estava sentado parecia o velho Sam Gamgee, com a diferença de que o seu rosto estava invulgarmente sério.

- Sentes alguma necessidade de deixar o Shire agora... agora que o teu desejo de os ver se realizou?

- Sinto, sim, senhor. Não sei como explicar o que se passa, mas desde a noite passada sinto-me diferente. Tenho a impressão de que, de certo modo, consigo antever as coisas. Sei que vamos percorrer uma estrada muito longa, para as trevas, mas também sei que não posso voltar para trás. O que quero agora não é ver elfos, nem dragões, nem montanhas... para falar verdade, nem sei bem o que quero. Mas tenho de fazer uma coisa antes do fim, e isso fica em frente e não no Shire. É uma coisa que tenho mesmo de fazer, se o senhor me compreende.

- Não compreendo completamente, mas compreendo que Gandalf me escolheu um bom companheiro. Estou satisfeito por isso. Iremos juntos.

Frodo acabou o pequeno-almoço em silêncio. Depois levantou-se, olhou para longe e chamou Pippin.

- Tudo pronto para partirmos? - perguntou, quando o amigo se aproximou, a correr. - Temos de partir imediatamente. Dormimos até tarde e temos de percorrer muitos quilómetros.

- O que queres dizer é que tu dormiste até tarde; eu levantei-me muito antes. Além disso, só estamos à espera de que acabes de comer e pensar.

- Já acabei de fazer as duas coisas e vou pôr-me a caminho do ferry de Fiveleira o mais depressa possível. Não tenciono perder tempo a voltar à estrada que deixámos a noite passada: vou atalhar a direito, a partir daqui mesmo.

- Nesse caso, terás de voar - declarou Pippin. - Não se atalha a direito, a pé, em lugar nenhum desta região.

- Pelo menos poderemos atalhar mais a direito do que pela estrada - insistiu Frodo. - O ferry fica a leste de Woodhall e a estrada curva para a esquerda: pode-se ver uma curva para norte, ali em cima. Contorna o extremo norte do Paul, para desembocar no passadiço da ponte, acima de Stock. Mas isso fica quilómetros fora do nosso caminho. Podemos poupar um quarto da caminhada se seguirmos a direito para o ferry, daqui mesmo.

- Quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos - sentenciou Pippin. - O terreno é difícil, aqui, e há brejos e toda a espécie de problemas no Paul. Eu conheço esta região. Se estás preocupado com os Cavaleiros Negros, não me parece que seja pior encontrá-los numa estrada do que numa floresta ou num campo.

- É menos fácil encontrar pessoas nas florestas e nos campos - redarguiu Frodo. - E se alguém pensa que vai encontrar uma pessoa na estrada, são maiores as probabilidades de a procurar na estrada e não fora dela.

- Está bem, está bem! - rendeu-se Pippin. - Seguir-te-ei por todos os pântanos e valas. Mas custa! Estava a contar passar pelo Poleiro Dourado, em Stock, antes do pôr do Sol. Tem a melhor cerveja do Farthing Oriental... ou costumava ter, pois há muito tempo que não a provo.

- Está decidido - disse Frodo. - Quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos, mas quem se mete em estalagens mete-se em trabalhos ainda maiores. E perde tempo. Custe o que custar, temos de te afastar do Poleiro Dourado. Queremos chegar a Fiveleira antes de escurecer. Que dizes, Sam?

- Irei por onde o senhor quiser - respondeu Sam (apesar de secretos receios e de uma profunda pena de não provar a melhor cerveja do Farthing Oriental).

- Nesse caso, se vamos ter de andar pelo meio de pântanos e urzais, toca a andar! - declarou Pippin.

Já estava quase tanto calor como na véspera, mas começavam a encastelar-se nuvens vindas do Ocidente. Era muito possível que chovesse. Os hobbits desceram a trote um barranco íngreme e verde, e mergulharam no denso arvoredo que existia em baixo. O seu caminho tinha sido escolhido de modo que Woodhall ficasse à sua esquerda e atalhassem obliquamente através das matas que se sucediam ao longo do lado oriental do monte, até chegarem às planícies que se lhe seguiam. Depois poderiam seguir a direito para o ferry, por terreno aberto, se não contassem com algumas valas e vedações. Frodo calculava que tinham de percorrer uns 28 km em linha recta.

Não tardou a descobrir que o arvoredo era mais denso e emaranhado do que lhe parecera. Não havia carreiros no solo, e eles não podiam avançar muito depressa. Quando conseguiram chegar ao fundo do barranco, encontraram um regato que corria dos montes, na retaguarda, para um leito profundamente escavado e com lados íngremes, escorregadios e cheios de silvas. Ainda por cima atravessava, muito inconvenientemente, a linha por eles escolhida. Não podiam saltar-lhe por cima nem atravessá-lo sem ficar molhados, arranhados e enlameados. Pararam, sem saber que fazer.

- Primeiro obstáculo! - exclamou Pippin, a sorrir torvamente.

Sam Gamgee olhou para trás. Através de uma abertura nas arvores vislumbrou o cimo do grande barranco que tinham descido.

- Olhem! - exclamou, e agarrou no braço de Frodo.

Olharam todos. Lá muito em cima, na beira do barranco, viram um cavalo recortado no céu o que seguiam. As margens do regato afundaram-se, quando ele chegou a terreno nivelado, alargou e se tornou menos fundo, a caminho do, Paul e do rio.

- Mas este é o regato Stock! - exclamou Pippin. - Se queremos tentar reatar o nosso rumo temos de o atravessar imediatamente e virar para a direita.

Vadearam o regato e apressaram-se a atravessar um largo espaço cheio de juncos e sem árvores, do outro lado. Chegaram de novo a uma cintura florestal: carvalhos altos, na maioria, e, aqui e ali, um olmo ou um freixo. O terreno era relativamente plano e pouco o submato; mas as árvores erguiam-se tão juntas umas às outras que não os deixavam ver muito, em frente. Súbitas rabanadas de vento atiraram as folhas para cima e do céu carregado começaram a cair pingos de chuva. Depois, o vento amainou e a chuva engrossou. Foram avançando o mais depressa que podiam por extensões de erva e espessas acumulações de folhas mortas, enquanto a chuva tamborilava e escorria em toda a sua volta. Seguiam calados, mas não deixavam de olhar para trás e de lado para lado.

Passada meia hora, Pippin disse:

- Espero que não tenhamos virado demasiado para sul e não estejamos a andar no sentido do comprimento desta mata! Não é uma faixa muito larga... Calculo que não deve ter mais de quilómetro e meio no seu ponto mais largo... e a esta hora já a devíamos ter atravessado.

- Não será bom começarmos a andar em ziguezagues - observou Frodo. - Isso não remediará nada. Continuemos como até aqui! Acho que ainda não me apetece caminhar a descoberto.

Percorreram talvez mais uns 3 km. Depois, o sol voltou a brilhar, através das nuvens esfarrapadas, e a chuva abrandou. Passava do meio dia e eles acharam que era mais do que tempo de almoçarem. Pararam debaixo de um olmo cujas folhas, embora já muito amarelecidas, ainda eram bastas. O solo junto ao tronco estava relativamente seco e abrigado. Quando foram para preparar a refeição, descobriram que os elfos lhes tinham enchido as garrafas de uma bebida líquida, dourada-clara, que cheirava a mel de muitas flores e era maravilhosamente restauradora. A breve trecho estavam a rir e a estalar os dedos, desdenhosos, à chuva e aos Cavaleiros Negros. Estavam convencidos de que não tardariam a deixar para trás os últimos poucos quilómetros.

Frodo encostou-se ao tronco da árvore e fechou os olhos. Sam e Pippin, sentados perto, começaram a trautear e depois a cantar, docemente:

Hô! Hô! Hô! à garrafa eu vou

Sarar o coração e afogar a mágoa.

Pode chover, pode chover e ventar;

Muitos quilómetros podem faltar;

as deito-me debaixo de uma árvore

E deixo as nuvens passar, passar...

Hô!Hô!Hô!, recomeçaram, mais alto. Mas, de súbito, calaram-se e Frodo levantou-se de um pulo. O vento trouxe um prolongado lamento, como o grito de alguma criatura diabólica e solitária. Um lamento que subiu, desceu e terminou numa nota alta e penetrante. Enquanto eles permaneciam imóveis, como que petrificados, respondeu-lhe outro grito, mais ténue e afastado, mas não menos arrepiante. Depois houve silêncio, interrompido somente pelo murmúrio do vento nas folhas.

- Que lhes parece que foi aquilo, hem? - perguntou Pippin, finalmente, a esforçar-se por falar em tom ligeiro, mas com a voz um pouco trémula. - Se foi um pássaro, nunca o tinha ouvido antes no Shire.

- Não foi pássaro nem animal - afirmou Frodo. - Foi um chamamento ou um sinal... Havia palavras naquele grito, embora eu não conseguisse apreendê-las. Mas nenhum hobbit tem uma voz assim.

Não se falou mais do assunto. Estavam todos a pensar nos Cavaleiros, mas nenhum se lhes referiu. Sentiam-se tão relutantes em permanecer ali como em seguir viagem. Mas, mais cedo ou mais tarde tinham de atravessar o descampado para o ferry, e melhor seria que o fizessem o mais depressa possível e à luz do dia. Por isso, passados momentos tinham as mochilas às costas e estavam de novo a caminhar.

 

A floresta terminou de repente, passado pouco tempo. Estendiam-se diante deles grandes prados e puderam confirmar que, efectivamente, se tinham desviado de mais para sul. Para lá das planícies, distinguiam o monte baixo da Fiveleira, do outro lado do rio, mas agora encontrava-se à sua esquerda. Saíram sorrateiramente do abrigo das árvores e começaram a atravessar o descampado, o mais rapidamente possível.

Ao princípio sentiram-se receosos, longe da protecção da floresta. Muito atrás deles erguia-se o lugar elevado onde tinham tomado o pequeno-almoço. Frodo quase esperava ver o vulto pequeno e longínquo de um cavaleiro na serrania, recortado a negro no céu; mas não viu nem sinais de nenhum. O Sol, a fugir das nuvens que se desfaziam, descia para os montes que tinham deixado para trás voltava a brilhar, radioso. O medo abandonou-os, embora ainda se sentissem intranquilos. Mas a terra foi-se tornando gradualmente menos agreste e mais bem ordenada, e não tardaram a chegar aos campos e prados bem cuidados, com cercas, cancelas e diques para irrigação. Parecia tudo sereno e pacífico, um canto sossegado e normal do Shire. O ânimo dos hobbits aumentava a cada passo. A linha do rio foi ficando mais próxima e os Cavaleiros Negros começaram a parecer fantasmas das florestas já deixadas muito para trás.

Passaram pela beira de um grande nabal e chegaram a um robusto portão, para lá do qual uma azinhaga com sulcos de rodas corria entre sebes baixas e bem tratadas, na direcção de um maciço de árvores distante. Pippin parou.

- Conheço estes campos e este portão! - exclamou. - Bamfurlong, a terra do velho fazendeiro Lagarta. A quinta dele fica ali, naquelas árvores.

- Uma complicação atrás de outra! - exclamou Frodo, que pareceu quase tão assustado como se Pippin tivesse acabado de dizer que a azinhaga era a fenda que conduzia à caverna do dragão.

Os outros olharam-no, surpreendidos.

- Que há de mal no velho Lagarta? - perguntou Pippin. - É um bom amigo de todos os Brandybucks. Claro que é um terror para quantos lhe invadem a propriedade e tem cães ferozes, mas, no fim de contas, esta gente daqui está perto da fronteira e precisa de estar mais precavida.

- Bem sei - concordou Frodo. - Mas, mesmo assim - acrescentou, a rir, envergonhado -, tenho um medo pavoroso dele e dos seus cães. Há anos e anos que evito a sua quinta. Ele apanhou-me diversas vezes lá dentro sem autorização, à procura de cogumelos, quando eu era rapazola e vivia na Mansão Brandy. Na última ocasião, bateu-me e depois foi-me mostrar aos cães. «Olhem, meus amigos», disse-lhes, «quando este jovem tunante voltar a pôr os pés na minha terra, podem comê-lo. Agora ponham-no lá fora, andem!» Os cães perseguiram-me até ao ferry. Nunca mais me refiz do susto, embora esteja convencido de que os animais sabiam o que faziam e não me tocariam, realmente.

Pippin riu-se.

- Bem, é altura de fazerem as pazes... sobretudo se tencionas viver na Bucklândia. O velho Lagarta é um tipo fixe, desde que lhe deixem os cogumelos em paz. Metamos pela azinhaga, pois assim não estaremos a invadir-lhe a propriedade. Se o encontrarmos, eu falarei. Ele é amigo do Merry, com o qual eu costumava cá vir com frequência, em tempos.

Seguiram pela azinhaga até verem os telhados de colmo de uma grande casa e de instalações agrícolas a espreitar entre as árvores, em frente. Os Lagartas e os Pés Balofos de Stock, assim como a maioria dos habitantes do Paul, residiam em casas. A de Lagarta era solidamente construída de tijolo e cercada por um muro alto, com um largo portão de madeira a abrir para a azinhaga.

De súbito, ao aproximarem-se mais, soou um ladrar assustador e uma voz forte gritou:

- Agarra! Colmilho! Lobo! Vamos, rapazes!

- Olá! Olá! Quem são os senhores e que desejam? - perguntou. Boas-tardes, Sr. Lagarta - cumprimentou Pippin.

O lavrador observou-o com mais atenção.

Olhem, é o Menino Pippin... ou melhor, o Sr. Peregrino Took! - exclamou, enquanto a carranca zangada se transformava num sorriso. - Há muito tempo que não o via por cá. É uma sorte para si eu conhecê-lo, sabe? Preparava-me para soltar os cães contra quaisquer desconhecidos, pois hoje têm-se passado certas coisas estranhas. Claro que, de vez em quando, aparece por estas bandas gente

esquisita. Estamos muito perto do rio... - disse, a abanar a cabeça. - Mas confesso que nunca tinha posto os olhos num indivíduo tão estranho. Não atravessará as minhas terras segunda vez sem autorização, se eu o puder evitar, essa lhe garanto!

- A que indivíduo se refere? - perguntou Pippin.

- Então não o viram? Subiu a azinhaga, na direcção do Passadiço, não há muito tempo. Era realmente um tipo esquisito, tão esquisito como as perguntas que fazia. Mas talvez não se importem de entrar, para conversarmos mais confortavelmente, hem? Tenho aí uma pinguita de boa cerveja de barril, se os seus amigos estiverem interessados, Sr. Took!

Parecia evidente que o lavrador lhes diria mais coisas se lhe permitissem fazê-lo a seu tempo e a seu modo. Por isso aceitaram todos o convite.

- E os cães? - perguntou Frodo, inquieto.

O lavrador riu-se.

- Não lhe farão mal... a não ser que eu lho ordene. Aqui, Agarra! Colmilho! Aqui, Lobo!- gritou, e, para grande alívio de Frodo e Sal os cães afastaram-se e deixaram-nos passar sem novidade.

Pippin apresentou ou outros dois ao lavrador:

- O Sr. Frodo Baggins. Talvez não se lembre dele, mas em tempos viveu na Mansão Brandy.

Ao ouvir o nome de Baggins, o lavrador estremeceu e olhou Frodo vivamente. Por momentos, Frodo pensou que a recordação antiga de cogumelos roubados tinha sido despertada e que os cães iam receber ordem para o pôr fora. Mas o lavrador Lagarta deu-lhe o braço comentou:

- Macacos me mordam se isto não é o mais estranho de tudo! É o Sr. Baggins, não é verdade? Entre, pois precisamos de conversar.

Foram para a cozinha e sentaram-se junto da grande lareira. A Srª Lagarta trouxe um grande jarro de cerveja e encheu quatro enormes canecas. Era boa, e Pippin sentou-se mais do que compensado por não terem passado pelo Poleiro Dourado. Sam bebeu a sua cerveja aos golinhos, desconfiadamente. Sentia uma desconfiança natural pelos habitantes de outros pontos do Shire e também não estava nada disposto a travar amizade rápida com alguém que tivesse batido ao seu amo, por muito tempo que já tivesse passado.

Depois da troca de algumas observações acerca do tempo e das perspectivas agrícolas (que não eram piores do que as habituais), o lavrador Lagarta pousou a caneca e olhou-os, um de cada vez.

- Diga-me cá, Sr. Peregrino, donde vem e para onde se dirige? Terá acaso vindo visitar-me? É que, sendo assim, passou pelo meu portão sem que eu o visse.

- Bem, não - respondeu Pippin. - Para dizer a verdade, já que a adivinhou, entrámos na azinhaga pelo outro lado. Viemos pelos seus campos, mas inteiramente por acaso. Perdemo-nos na mata, perto de Woodhall, ao tentarmos chegar ao ferry por um atalho.

- Se estavam com pressa, a estrada tê-los ia servido melhor - comentou, o lavrador. - Mas não era com isso que me estava a preocupar. Tem autorização para atravessar as minhas terras, se lhe apetecer, Sr. Peregrino. E o senhor também, Sr. Baggins ... embora eu desconfie de que ainda gosta de cogumelos - declarou, a rir. - Ah, sim, reconheci o nome! Lembro-me muito bem do tempo em que o jovem Frodo Baggins era um dos piores patifórios da Bucklândia! Mas não era em cogumelos que estava a pensar: acabara de ouvir o nome de Baggins pouco antes de os senhores aparecerem. Que lhes parece que o estranho indivíduo me perguntou, hem?

Esperaram ansiosamente que ele continuasse.

- Bem - prosseguiu o lavrador, a fazer render, deliciado, o seu peixe -, chegou ao portão montado num grande cavalo preto e, como por coincidência, o portão estava aberto, entrou e veio direitinho à minha porta. Todo de preto e de capa e capuz, como se não quisesse ser conhecido. «Mas que demónio poderá ele querer?», perguntei a mim próprio. Não é frequente vermos membros da Gente Grande deste lado da fronteira, e, de qualquer modo, eu nunca tinha ouvido falar de ninguém como este indivíduo negro.

»'Bons-dias', cumprimentei, e saí ao seu encontro. 'Esta azinhaga não leva a lado nenhum, e, seja aonde for que o senhor pretenda ir, o caminho mais rápido é voltar à estrada.' Não me agradou o seu aspecto, e até o Agarra, quando saiu, farejou e soltou um ganido, como se tivesse sido picado: baixou a cauda e fugiu a uivar. O tipo negro permaneceu imóvel.

»'Venho de além', disse, assim de modo lento e rígido, a apontar para oeste, para os meus campos, sim, senhor! 'Viu o Baggins?', perguntou em voz esquisita e baixou-se para mim. Não consegui ver cara nenhuma, em virtude de ele ter o capuz tão descido, mas senti uma espécie de calafrio pela espinha abaixo. Apesar disso, não vi razão nenhuma para ter vindo por aí a cavalo pelas minhas terras, com tal atrevimento!

»'Vá-se embora', ordenei-lhe. 'Aqui não há Bagginses nenhuns; - veio procurar ao lado errado do Shire. Aconselho-o a retroceder para oeste, até Hobbiton... mas desta vez pode ir pela estrada.'

»'Baggins partiu', respondeu-me, num murmúrio. Vem aí. Já não está muito longe. Quero encontrá-lo. Se ele passar por aqui diz-me? Voltarei com ouro.'

»'Não voltará nada! Vai-se pôr a andar, e muito depressa! Dou-lhe um minuto, antes de chamar os meus cães todos.'

»Soltou uma espécie de silvo. Talvez estivesse a rir, ou talvez não.

Depois esporeou o grande cavalo direito a mim; e eu mal tive tem de sair do caminho. Chamei os cães, mas ele virou, saiu pelo portão e foi pela azinhaga acima direito ao passadiço, como um raio. Que lhes parece, hem?»

Frodo ficou um momento a olhar para o lume, com um único pensamento na cabeça: como diabo chegariam eles ao ferry?

- Não sei que pensar - confessou, por fim.

- Então eu digo-lhe o que deve pensar - declarou Lagarta. - Nunca se devia ter misturado com a gente de Hobbiton, Sr. Frodo. As pessoas de lá são estranhas. - Sam mexeu-se na cadeira e olhou para o lavrador com cara de poucos amigos. - Mas foi sempre um jovem irrequieto... Quando soube que tinha deixado os Brandybucks para ir viver com o velho Sr. Bilbo, pensei logo que se ia meter em trabalhos. Notem as minhas palavras: tudo isto é consequência dos estranhos actos do Sr. Bilbo. Dizem que o seu dinheiro foi adquirido não sei de que estranho modo, em terras estrangeiras. Talvez haja alguém interessado em saber que é feito do ouro e das jóias que ele enterrou no monte de Hobbiton, segundo tenho ouvido dizer?

Frodo não respondeu. As astutas conjecturas do lavrador desconcertavam-no.

- Bem, Sr. Frodo - prosseguiu Lagarta -, apraz-me que tenha tido o bom senso de regressar à Bucklândia, e dou-lhe um conselho: deixe-se ficar! Não queira nada com essa gente estranha; terá amigos nestas bandas. Se algum desses indivíduos negros voltar a perguntar por si, eu me encarregarei deles. Responderei que o senhor morreu, ou deixou o Shire, ou seja o que for que quiser que eu diga. E talvez até nem seja mentira nenhuma, pois o mais certo é eles quererem notícias do velho Sr. Bilbo.

- Talvez tenha razão - admitiu Frodo, evitando o olhar do lavrador e fitando o lume.

Lagarta observou-o, pensativo.

- Bem, estou a ver que tem ideias próprias - comentou, passados momentos. - É claro como água que não foi nenhum acaso que os trouxe aqui, ao senhor e ao tal cavaleiro, na mesma tarde ... e talvez as notícias que lhe dei nem constituíssem grande novidade para si, no fim de contas. Percebo, no entanto, que está metido numa complicação qualquer. Pensa, talvez, que não será fácil chegar ferry sem ser apanhado?

- Pensava precisamente nisso - confessou Frodo. - Mas temos de tentar lá chegar, o que não se conseguirá sentado e a pensar. Lamento, mas temos de ir andando. Muitíssimo obrigado pela sua amabilidade! Durante mais de trinta anos vivi aterrorizado por si e pelos seus cães, lavrador Lagarta, por muita vontade de rir que lhe dê sabê-lo. Foi lamentável, pois perdi um bom amigo. E agora, lamento ter de partir tão cedo; mas talvez volte um dia... se tiver essa sorte.

- Será bem-vindo, quando vier - afirmou Lagarta. - Tive, no entanto, uma ideia. O Sol está quase a pôr-se e nós vamos jantar, pois em geral costumamos deitar-nos pouco depois do Sol. Se o senhor, o Sr. Peregrino e, enfim, todos puderem comer connosco, ficaremos muito satisfeitos.

- E nós também ficaríamos - afirmou Frodo - se, infelizmente, não tivéssemos de partir já. Mesmo assim, já terá escurecido antes de chegarmos ao ferry.

- Ah, mas eu ainda não acabei! Ia acrescentar: depois do jantar, irei buscar uma pequena carroça e levá-los-ei a todos ao ferry. Assim pouparão passos, que não serão poucos, e talvez poupem também trabalhos de outra espécie.

Frodo aceitou o convite, agradecido, com grande alívio de Pippin e Sam. O Sol já se ocultara atrás dos montes ocidentais, e a luz esmorecia. Chegaram com a carroça pelo portão.

Não soprava nem uma aragem; a noite estava silenciosa e calma e o ar fresco. Avançaram sem luzes e devagar. Ao fim de 2 km ou 3 km, a azinhaga acabou, depois de atravessar uma vala funda e subir uma encosta breve, para o passadiço.

Lagarta apeou-se e olhou com atenção para norte e para sul; mas não se via nada na escuridão nem se ouvia um único som no ar parado. Farrapos finos de névoa do rio pairavam sobre as valas e pareciam arrastar-se por cima dos campos.

- A névoa vai adensar- comentou Lagarta -, mas não acenderei as lanternas enquanto não voltar para casa. Com uma noite destas, ouviremos alguma coisa que se encontre na estrada muito antes de a vermos.

 

Eram 8 km, ou mais, da azinhaga de Lagarta ao ferry. Os hobbit, embrulharam-se bem, mas ficaram de ouvido atento a qualquer som que não fosse o ranger das rodas ou o lento clop-clop dos garranos. A carroça parecia a Frodo mais vagarosa do que uma lesma. Ao lado dele, Pippin cabeceava de sono; mas Sam olhava fixamente em frente, para o nevoeiro que se adensava.

Por fim, chegaram à entrada da azinhaga do ferry, assinalada por dois altos postes brancos que surgiram, de súbito, à sua direita. O lavrador Lagarta puxou as rédeas, e a carroça gemeu e parou. Estavam a começar a descer quando, de repente, ouviram o que todos tinham receado ouvir: o bater de cascos na estrada, em frente. O som vinha na direcção deles.

Lagarta saltou para o chão e parou a segurar a cabeça dos garranos e a tentar ver na escuridão. Clip-clop, clip-clop, avançava o cavaleiro. O barulho dos cascos parecia muito forte no ar enevoado e parado.

- E melhor esconder-se, Sr. Frodo - recomendou Sam, inquieto.. - Deite-se no fundo da carroça, que nós tapamo-lo com os cobertores e depois mandamos o cavaleiro para o lugar donde vem!

Sam saltou da carroça e foi colocar-se ao lado do lavrador. Os Cavaleiros Negros teriam de passar por cima dele para se aproximarem da carroça!

Clop-clop, clop-clop... O cavaleiro estava quase a alcançá-los.

- Eh, lá! - gritou o lavrador Lagarta.

Os cascos emudeceram, acto contínuo. Os hobbits julgaram distinguir vagamente, no nevoeiro, um vulto embiocado numa capa escura, a 1 m ou 2 m de distância.

- Ora vamos lá a ver! - disse o lavrador, ao mesmo tempo que atirava as rédeas a Sam e avançava. - Não se aproxime nem mais um passo! Que quer e aonde vai?

- Quero o Sr. Baggins. Viu-o? - respondeu uma voz abafada... mas uma voz abafada que era a de Merry Brandybuck o qual destapou uma lanterna escura, cuja luz iluminou o rosto estupefacto do lavrador.

- Sr. Merry!

- Sim, claro! Quem imaginou que fosse? - redarguiu Merry, e aproximou-se.

Quando emergiu do nevoeiro e os receios dos outros desapareceram, deu a impressão de minguar subitamente e reassumir o tamanho normal dos Hobbits. Montava um pónei e tinha um lenço enrolado ao pescoço e a cobrir-lhe o queixo, para o proteger do nevoeiro.

Frodo saltou da carroça para o saudar.

- Cá estão, finalmente! - exclamou Merry. - Começava a recear que já não aparecesses hoje, e preparava-me para voltar para trás e ir jantar. Quando o tempo ficou enevoado, resolvi ir na direcção de Stock, para ver se teriam caído nalguma vala. Macacos me mordam se percebo de que direcção vieram! Onde os encontrou, Sr. Lagarta? No tanque dos seus patos?

- Não. Surpreendi-os a invadir a propriedade alheia, e quase lhes soltei os cães - respondeu o lavrador. - Mas estou certo de que eles lhe contarão a história toda. Agora, se me dão licença, Sr. Merry, Sr. Frodo e o resto da companhia, acho melhor voltar para casa. A minha patroa deve estar preocupada, com a noite a ficar assim.

Recuou a carroça para a azinhaga e deu a volta.

- Bem, boas-noites a todos. Foi um dia estranho, lá isso foi, está tudo bem quando bem acaba... embora talvez o não devêssemos dizer enquanto não chegássemos à porta das nossas casas. Não nego que, por mim, ficarei contente quando lá chegar.

Acendeu as lanternas e levantou-se. De súbito, tirou um grande cesto debaixo do banco.

- Quase me ia esquecendo! A minha mulher preparou isto para si, Sr. Baggins, com os seus cumprimentos. - Estendeu o cesto e partiu, seguido por um coro de agradecimentos e desejos de boas-noites.

Seguiram com o olhar os pálidos anéis de luz que lhe contornavam as lanternas e que, pouco a pouco, se dissolviam na noite enevoada. Nisto, Frodo desatou a rir: do cesto coberto que segurava subia um odor a cogumelos.

 

UMA CONSPIRAÇÃO DESMASCARADA

- Agora acho melhor irmos também para casa - disse Merry. - Bem vejo que há algo de estranho em tudo isto, mas terá de esperar até estarmos em casa.

Meteram pela azinhaga do ferry, que era plana e bem tratada e tinha aos lados grandes pedras caiadas de branco. Ao fim de 100 m, mais ou menos, chegaram à margem do rio, onde havia uma larga plataforma de madeira, de desembarque, ao lado da qual estava atracado um ferry-boat grande e achatado. Os postes de amarração brancos, perto da beira-d'água, brilhavam à luz de dois candeeiros colocados em postes altos. Atrás deles, a névoa que pairava nos campos planos encontrava-se agora acima das sebes; mas a água, à frente, apresentava-se escura e apenas com uns farrapos de névoa, enovelados, como vapor entre os caniços da margem. Parecia haver menos nevoeiro do lado oposto.

Merry levou o pónei para o ferry, através de uma prancha, e os outros seguiram-no. Depois conduziu a embarcação com uma vara comprida, lentamente. O Brandevinho corria, vagaroso e largo, à frente deles. Do outro lado, a margem era íngreme e subia-a um caminho sinuoso, que partia do embarcadouro, onde brilhavam luzes. Atrás erguia-se o monte Buck, no qual se viam brilhar, através dos fiapos de neblina, muitas janelas redondas, amarelas e encarnadas. Eram as janelas da Mansão de Brandy, antigo lar dos Brandybucks.

Havia muito tempo, Gorhendad Oldbuck, chefe da família oldbuck, uma das mais antigas do Paul e porventura até mesmo do Shire, atravessara o rio, que era a fronteira primitiva da terra do lado leste. Construíra (e escavara) a Mansão de Brandy, mudara o apelido para Brandybuck e instalara-se até se tornar o senhor do que, virtualmente, era um pequeno país independente. A sua família cresceu, cresceu, e continuou a crescer, a crescer, depois dele, até que a Mansão de Brandy passou a ocupar todo o pequeno monte e ficou com três grandes portas principais, muitas portas laterais e cerca de cem janelas. Os Brandybucks e os seus numerosos dependentes começaram então a escavar, e posteriormente a construir, a toda a volta. Foi essa a origem da Bucklândia, uma faixa de terra densamente povoada entre o rio e a Floresta Velha, uma espécie de colónia do Shire. A sua principal aldeia chamava-se Fiveleira e alcandorava-se nas margens e nas encostas atrás da Mansão de Brandy.

A gente do Paul mantinha relações amigáveis com os Bucklandeses e a autoridade do Senhor da Mansão (como se chamava ao chefe da família Brandybuck), ainda era respeitada pelos lavradores que viviam entre Stock e Rushey. Mas, na sua maioria, as pessoas do antigo Shire consideravam os Bucklandeses peculiares, assim a modos que meio estrangeiros. A verdade, porém, é que não eram muito diferentes dos outros hobbits dos quatro Farthings. A não ser numa coisa: gostavam de barcos e alguns deles sabiam nadar.

Primitivamente, a sua terra estava desprotegida do lado de leste, mas eles tinham construído uma vedação desse lado: o Feno Alto. Fora plantada havia muitas gerações e agora apresentava-se densa e alta, pois era constantemente cuidada. Ocupava o espaço todo a partir da Ponte de Brandevinho, num grande rio, experimentava uma estranha sensação ao ver passar a corrente gorgolejante: a sua vida antiga ficava para trás, na névoa, e à sua frente esperava-o a misteriosa aventura. Coçou a cabeça e, momentaneamente, desejou que o Sr. Frodo pudesse ter continuado a viver tranquilamente no Fundo do Saco.

Os quatro hobbits desembarcaram. Merry estava a amarrar a embarcação e Pippin já conduzia o pónei pelo carreiro acima quando Sam (que estivera a olhar para trás, como que a dizer adeus ao Shire) disse, num murmúrio rouco:

- Olhe para trás, Sr. Frodo! Vê alguma coisa?

Ao longe sob os candeeiros distantes, vislumbrava-se, com dificuldade, uma sombra: parecia uma trouxa escura, que tivesse sido deixada Para trás, esquecida. Mas, enquanto eles olhavam, pareceu mexer-se e inclinar-se, ora para um lado, ora para outro, como se procurasse qualquer coisa no chão. Depois rastejou, ou afastou-se encolhida, para as trevas existentes atrás da luz.

- Mas que raio era aquilo? - perguntou, surpreendido, Merry.

- Qualquer coisa que nos segue - respondeu-lhe Frodo - Não perguntes mais nada agora. Afastemo-nos daqui imediatamente!

Subiram apressadamente o carreiro até ao cimo do aterro, mas, quando olharam para trás, a margem do outro lado estava envolta em neblina, e não se via nada.

- Felizmente, vocês não têm barcos na margem ocidental! exclamou Frodo. - Os cavalos podem atravessar o rio?

- Podem atravessar pela ponte de Brandevinho, trinta e dois quilómetros a norte, ou atravessar a nado - respondeu Merry. - Confesso, no entanto, que nunca me constou que algum cavalo nadasse no Brandevinho. Mas que têm os cavalos a ver com o assunto?

- Depois conto-te. Assim que chegarmos a casa poderemos conversar.

- Está bem. Tu e Pippin sabem o caminho. Por isso, vou à frente, para avisar o Gorducho de que estão a chegar. Trataremos do jantar e outras coisas.

- Jantámos cedo com o lavrador Lagarta - informou Frodo. - Mas jantávamos outra vez.

- E jantarão! Dá-me esse cesto - pediu Merry, e afastou-se, na escuridão.

 

Do Brandevinho à nova casa de Frodo, na Cova dos Grilos, ia um certa distância. Passaram pelo monte Buck e pela Mansão Brandy, à esquerda, e, nos arrabaldes de Fiveleira, meteram pela estrada principal da Bucklândia, que seguia para sul, a partir da ponte. Uns 800 m a norte, ao longo da estrada, chegaram a uma azinhaga, à direita. Meteram por ela e calcorrearam mais de 3 km, a subir e a descer, para o interior.

Por fim chegaram a uma cancela estreita, aberta numa sebe densa. Às escuras, não se distingia a casa, que ficava recuada da azinhaga, no meio de um círculo largo de relvado rodeado por uma faixa de árvores baixas, no interior da sebe exterior. Frodo escolhera-a por ficar num canto isolado do país e não haver habitações próximas. Podia-se entrar e sair sem ser visto. Tinha sido construída havia muito tempo pelos Brandevinhos, para uso de convidados ou membros da família que desejassem escapar durante algum tempo à vida agitada da sobrepovoada Mansão Brandy. Tratava-se de uma espécie de casa de campo antiquada, o mais parecida possível com um buraco de hobbit: Comprida e baixa, sem qualquer andar superior, com telhado de turfa, janelas redondas e uma grande porta também redonda.

Enquanto subiam o carreiro verde que partia da cancela, não se vislumbrava luz alguma; as janelas estavam escuras e de postigos cerrados. Frodo bateu à porta, e Bolger Gorducho abriu. Escapou-se então um jorro de luz amiga. Entraram rapidamente e fecharam-se, mais a luz, no interior. Encontravam-se num vestíbulo grande, com portas de ambos os lados. À frente deles, um corredor atravessava o meio da casa.

- Então, que te parece? - perguntou Merry, vindo do corredor. - Fizemos o possível para, em tão pouco tempo, a tornar acolhedora como um lar. No fim de contas, o Gorducho e eu só chegámos ontem, com a última carrada.

Frodo olhou em seu redor. Estava, de facto, acolhedora como um lar - como o seu lar. Muitas das suas coisas preferidas - ou das coisas de Bilbo (recordavam-lho vivamente, no seu cenário) - estavam dispostas de modo mais semelhante possível ao do Fundo do Saco. Era uma casa agradável, confortável e acolhedora, e ele teve pena de não estar ali, realmente, para se instalar e levar uma vida retirada e tranquila. Pareceu-lhe injusto ter dado tanto trabalho e incómodo aos seus amigos, e de novo perguntou a si mesmo como lhes iria dar a notícia de que os deixaria tão depressa - na realidade, imediatamente. Mas teria de lhes dizer naquela mesma noite, antes de irem todos para a cama.

- É deliciosa! - elogiou, com dificuldade. - Quase nem sinto que me mudei!

Os viajantes penduraram as capas e empilharam as mochilas no chão. Merry conduziu-os pelo corredor fora e escancarou uma porta, ao fundo, da qual saíam a luz e o calor de uma lareira acesa e um jorro de vapor.

- Um banho! - exclamou Pippin. - Abençoado Meriadoc!

- Por que ordem vamos? - perguntou Frodo. - O mais velho primeiro, ou o mais rápido primeiro? Tu serás o último de qualquer dos modos, Peregrino.

- Não lhes parece que eu arranjaria uma solução melhor? - perguntou Merry, um nadinha ofendido. - Não podemos começar a Vida na Cova dos Grilos com uma discussão por causa de banhos! Naquela sala há três banheiras e uma caldeira de cobre cheia de água a ferver. Também há toalhas, tapetes e sabonetes. Entrem e despachem-se!

Merry e Gorducho foram para a cozinha, do outro lado do corredor, e atarefaram-se com os preparativos finais de uma ceia tardia. Da casa de banho vinham fragmentos de canções ao desafio, de mistura com o som de chapinhar e chafurdar. De súbito, a voz de Pippin ergueu-se acima das outras, numa das canções de banho preferidas de Bilbo:

 

Cantai, cantai, pelo banho ao fim do dia

Que liberta da lama do cansaço!

Muito idiota é aquele que não canta:

Oh, nobre coisa é a Água Quente!

 

Oh, suave é o som da chuva a cair

E do regato que salta do monte prá planície;

Mas melhor do que a chuva ou ondulados ribeiros

É a Agua Quente que fumega e solta vapor.

 

Oh, Água Fresca podemos deitar à vontade

Pela garganta sequiosa, e gratos ficarmos;

Mas melhor é Cerveja, se de beber precisamos,

Ou Água Quente deitada pelas costas abaixo.

 

Oh, linda é a Água que salta nas alturas

Numa fonte branca debaixo do céu;

Mas nunca a fonte produz mais belo som

Do que chapinhar em Água Quente com os pés!

 

Ouviu-se um chapinhar tremendo e um grito de «Ena!», de Frodo. Parecia que a água da banheira de Pippin imitara uma fonte e saltara alto...

Merry foi à porta e perguntou:

- Que dizem à ceia e a cerveja pela garganta abaixo?

Frodo saiu da casa de banho a enxugar o cabelo.

- Havia tanta água no ar, que vou para a cozinha acabar de me limpar.

- Garotões! - comentou Merry, e olhou para dentro da casa de banho, cujo chão de pedra estava alagado. - Tens de limpar tudo isso antes de comer, Peregrino - admoestou. - E despacha-te, pois não esperaremos por ti.

 

Cearam na cozinha, numa mesa perto do lume.

- Suponho que não querem mais cogumelos, outra vez ... ? perguntou Fredegar, sem grande esperança.

- Queremos, sim! - gritou Pippin.

- São meus! - alegou Frodo. - Deu-mos a Srª. Lagarta, uma rainha entre as mulheres dos lavradores. Afastem as mãos sôfregas, que eu sirvo-os!

OS Hobbits têm pelos cogumelos uma paixão que chega a ultrapassar as vorazes predilecções da Gente Grande, facto que explica parcialmente as longas expedições do jovem Frodo aos famosos campos do Paul e a ira do ofendido Lagarta. Naquela ocasião havia que chegasse para todos, até mesmo pelos padrões dos Hobbits. Havia também muitas outras coisas, para depois dos cogumelos, e, quando o grupo acabou, finalmente, de comer, o próprio Bolger Gorducho soltou um suspiro de satisfação. Empurraram a cadeira para trás e chegaram as cadeiras para junto do lume.

- Depois levantamos a mesa e arrumamos - disse Merry. - Agora contem-me tudo! Desconfio que tiveram aventuras, o que não foi leal, sem mim. Quero um relato completo! E, sobretudo, quero saber o que tinha o velho Lagarta e por que motivo me falou daquele modo. Quase parecia assustado, como se tal coisa fosse possível!

- Temos estado todos assustados - respondeu Pippin após uma pausa, durante a qual Frodo olhou fixamente para o lume e não disse nada. - Tu também o terias estado, se tivesses sido perseguido durante dois dias por Cavaleiros Negros.

- E que vem a ser isso?

- Vultos negros, montados em cavalos pretos - explicou Pippin. - Se o Frodo não fala, eu conto-lhes a história toda desde o princípio.

Relatou então, pormenorizadamente, a viagem toda, desde que tinham partido de Hobbiton. Sam acenou diversas vezes com a cabeça a confirmar, e soltou várias exclamações. Frodo permaneceu silencioso.

- Julgaria que estavas a inventar tudo - comentou Merry -, se não tivesse visto o vulto negro, no cais, e ouvido o estranho som da voz do Lagarta. Qual é a tua opinião a respeito de tudo isto, primo Frodo?

- O primo Frodo tem estado muito fechado, mas chegou a altura de se abrir - declarou Pippin. - Até agora, não nos foi dito nada em que nos pudéssemos basear, além da suposição do lavrador Lagarta de que o caso tinha alguma coisa a ver com o tesouro do velho Bilbo.

- Isso foi apenas uma suposição - apressou-se Frodo a esclarecer. - O Lagarta não sabe nada.

- O velho Lagarta é um finório - declarou Merry. - Passa-se, atrás daquela cara redonda, muita coisa que não vem à tona nas suas falas. Ouvi dizer que, em tempos, costumava ir à Floresta Velha, e tem fama de saber muitas coisas estranhas. Mas tu, Frodo, podes dizer-nos, pelo menos, se consideras a sua suposição boa ou má.

- Penso - respondeu Frodo, devagar - que foi uma boa suposição, sem deixar de ser uma suposição. Existe uma relação com as antigas aventuras do Bilbo e os cavaleiros andam à procura... talvez devesse antes dizer em busca... dele ou de mim. Já que querem sabe tudo, receio também que não se trate de brincadeira nenhuma e que me não encontre em segurança, nem aqui nem em parte alguma.

Olhou em redor, para as janelas e para as paredes, como se temesse que cedesse, de súbito. Os outros olharam-no em silêncio e trocaram olhares significativos.

- Daqui a um minuto está cá fora - segredou Pippin a Merry, que acenou com a cabeça.

- Bem! - exclamou Frodo, por fim, e endireitou-se na cadeira, como se tivesse tomado uma decisão. - Não posso guardar segredo mais tempo. Tenho uma coisa para lhes dizer, a todos... mas não sei bem como começar.

- Creio que te poderia ajudar - interveio Merry, serenamente - se te dissesse uma parte, eu próprio.

- Que significa isso? - perguntou-lhe Frodo, a olhá-lo, inquieto.

- Simplesmente isto, meu querido Frodo: sentes-te infeliz porque não sabes como despedir-te. Tencionavas deixar o Shire, claro, mas o perigo saiu-te ao caminho mais cedo do que esperavas, e agora resolveste partir imediatamente. E não queres. Lamentamos muito por ti.

Frodo abriu a boca e fechou-a de novo. A sua expressão de surpresa era tão cómica que os outros se riram.

- Querido e velho Frodo! - exclamou Pippin. - Julgavas realmente que tinhas lançado poeira nos olhos de todos nós? Não tiveste, longe disso, nem o cuidado nem a astúcia suficientes para o conseguires! Desde Abril deste ano que se tornou evidente a tua intenção de te despedires de todos os teus lugares preferidos. Ouvimos-te murmurar, vezes sem conta: «Pergunto a mim mesmo se voltarei a olhar para aquele vale! ... » e coisas do mesmo género. Fingires que se te tinha acabado o dinheiro, e venderes, mesmo, o teu querido Fundo do Saco àqueles Bagginses de Vila do Saco! E todas aquelas conversas às escondidas com o Gandalf!

- O Céu me valha! - exclamou Frodo. - E eu a pensar que tinha sido cuidadoso e astuto! Não imagino o que Gandalf diria. Isso significa que todo o Shire está a discutir a minha partida?

- Oh, não! - tranquilizou-o Merry. - Não te preocupes com isso! Claro que o segredo o não será por muito tempo, mas por enquanto creio que só é conhecido por nós, os conspiradores. No fim de contas, deves lembrar-te de que te conhecemos bem e estamos frequentemente contigo. De modo geral, conseguimos calcular aquilo em que estás a pensar. E eu também conhecia o Bilbo. Para te ser franco, tenho-te observado com atenção desde que ele partiu. Achava que acabarias por ir atrás dele, mais cedo ou mais tarde. Esperava até que tivesses ido mais cedo, e ultimamente temos andado muito preocupados. Aterrorizava-me a ideia de que pudesses cortar-nos as voltas e partir de repente e sozinho, como ele fez. Desde a Primavera deste ano temos estado de olhos abertos e feito muitos planos por nossa própria conta. Não nos escaparás facilmente!

- Mas eu tenho de partir - afirmou Frodo. - Não posso evitá-lo, queridos amigos. É muito triste para todos nós, mas é inútil tentarem deter-me. Já que adivinharam tanto do que se passava, ajudem-me, por favor, e não me detenham!

- Não compreendes- - declarou Pippin. - Tu tens de ir... e, portanto, nós temos de ir também. O Merry e eu vamos contigo. O Sam é um tipo excelente e seria capaz de se lançar nas goelas de um dragão para te salvar, se não tropeçasse nos próprios pés; mas tu precisarás de mais do que um companheiro na tua perigosa aventura.

- Meus queridos e adorados hobbits! - exclamou Frodo, profundamente comovido. - Não posso permiti-lo. Essa foi outra decisão que tomei, há muito tempo. Falam de perigo, mas não compreendem. Não se trata de nenhuma caçada ao tesouro, de nenhuma viagem de ida e volta. Fugirei de perigo mortal para perigo mortal.

- Claro que compreendemos - afirmou Merry, em tom firme. - Por isso decidimos ir também. Sabemos que o anel não é brincadeira nenhuma, mas faremos tudo quanto pudermos para te ajudarmos contra o Inimigo.

- O anel! - exclamou Frodo, desta vez completamente estupefacto.

- Sim, o anel - confirmou Merry. - Meu velho amigo, não contas com a curiosidade dos amigos. Há anos que sei da existência do anel... já sabia antes mesmo de Bilbo partir. Mas, como era evidente que ele o considerava um segredo, guardei o conhecimento na cabeça até formarmos esta conspiração. Claro que não conhecia o Bilbo tão bem como te conheço a ti; eu era muito novo e ele era mais cuidadoso... embora o não fosse o suficiente. Se queres saber como descobri, conto-te.

- Conta lá! - pediu Frodo, em voz fraca.

- Os Bagginses de Vila do Saco foram a desgraça dele, como seria de calcular. Um dia, um ano antes da festa, seguia casualmente pela estrada quando vi Bilbo à minha frente. De súbito, os Bagginses de Vila do Saco apareceram ao longe, na nossa direcção. Bilbo afrouxou o passo, e nisto... desapareceu! Fiquei tão aparvalhado que mal tive tino para me esconder também, embora de modo mais natural. Mesmo assim, lá consegui passar pela sebe e caminhar ao longo do

campo, do lado de dentro. Estava a espreitar para a estrada, depois de os Bagginses de Vila do Saco passarem, e a olhar a direito na direcção onde vira Bilbo, quando ele reapareceu subitamente. Ainda vislumbrei uma cintilação de ouro, quando ele meteu qualquer coisa, na algibeira das calças.

»Depois disso, conservei os olhos abertos. Bem, confesso que espiei. Deves admitir, no entanto, que o caso era muito intrigante eu pouco mais do que um adolescente. Devo ser a única pessoa Shire, não contando contigo, Frodo, que viu o livro secreto do velho.»

- Leste o livro dele! - exclamou Frodo. - Oh, céus! Não estará nada em segurança?

- Em grande segurança, acho que não - respondeu Merry. Mas só lhe dei uma vista de olhos rápida, e mesmo assim com muita dificuldade. Ele nunca deixava o livro abandonado. Que lhe terá, acontecido? Gostava de lhe dar outra vista de olhos. És tu que o tens Frodo?

- Não. Não estava no Fundo do Saco. Ele deve tê-lo levado.

- Bem, como ia dizendo - prosseguiu Merry -, guardei o que sabia só para mim até esta Primavera, altura em que as coisas se tornaram sérias. Depois formámos a nossa conspiração. E muito a sério também, tão a sério que não temos sido excessivamente escrupulosos. Tu não és uma noz muito fácil de quebrar e o Gandalf ainda é pior. Mas se queres ser apresentado ao nosso principal investigador, eu encarrego-me disso.

- Onde está ele? - perguntou Frodo, a olhar em redor, como se, esperasse ver sair de um armário uma figura mascarada e sinistra.

- Avança, Sam! - ordenou Merry, e Sam levantou-se, corado até às orelhas. - Aqui está quem se encarregou de reunir informações para nós! E reuniu muitas, posso-te garantir, antes de acabar por ser surpreendido. Depois disso, confesso que pareceu considerar-se obrigado sob palavra a calar-se, e secou!

- Sam! - exclamou Frodo, que não poderia sentir-se espantado, incapaz de saber se estava zangado, divertido, aliviada ou se se sentia simplesmente estúpido.

- Sim, senhor! - exclamou Sam. - Peço-lhe perdão, mas não era minha intenção prejudicá-lo, Sr. Frodo, nem tão-pouco ao Sr. Gandalf. Ele tem algum juízo, permita que o diga, e, quando o senhor disse que ia sozinho, ele disse: Não! Leva alguém em quem possas confiar!

- Mas não parece que eu possa confiar em ninguém Frodo.

Sam olhou-o, tristemente.

- Tudo depende do que pretendes - interveio Merry. - podes confiar em que te defenderemos em tudo e de todos os modos, até ao fim, por mais cruel que seja. E podes confiar em que guardaremos qualquer segredo teu... melhor até do que tu próprio. Mas não podes confiar em que te deixemos enfrentar o perigo sozinho e partir sem uma palavra. Somos teus amigos, Frodo. Isso é uma realidade. Sabemos quase tudo quanto Gandalf te disse. Sabemos muitas coisas acerca do anel. Estamos horrivelmente assustados... mas iremos contigo. Ou seguir-te-emos como sabujos.

- E, no fim de contas, senhor, devia aceitar o conselho dos elfos - acrescentou Sam. - Gildor disse que deveria levar os que estivessem dispostos, e não o pode negar.

- Não o nego - respondeu Frodo, a olhar para Sam, que começara a sorrir. - Não o nego, mas também nunca mais acreditarei que estejas a dormir, quer ressones, quer não. Dar-te-ei um bom pontapé para me certificar.

»São uma corja de velhacos, de disfarçados - acusou, virando-se para os outros. - Mas benditos sejam! - Riu-se, ao mesmo tempo que se levantava e agitava os braços. - Cedo. Aceito o conselho de Gildor. Se o perigo não fosse tão grande, até dançaria de alegria! Mesmo assim não posso deixar de me sentir feliz ... feliz como não me sentia há muito tempo. Se soubessem como tenho receado esta noite!»

- Excelente, está combinado! Três vivas ao capitão Frodo e à sua companhia! - gritaram, a dançar à roda dele. Merry e Pippin começaram a entoar uma canção que, aparentemente, tinham preparado para aquela ocasião.

Obedecia ao modelo da canção dos Anões que lançara Bilbo na sua aventura, havia muito tempo, e a melodia era a mesma:

 

Adeus dizemos à lareira e à sala!

Mesmo que sopre o vento e caia a chuva

Partiremos antes de nascer o dia

Por grandes florestas e altas montanhas.

 

Para Rivendell, onde elfos moram

Ainda em clareiras, sob a névoa.

Por pântano e deserto iremos apressados,

E para onde, depois, não sabemos dizer.

 

Com inimigos pela frente e o medo atrás,

Debaixo do céu será o nosso leito

Até, enfim, nossos trabalhos, findarem,

Acabar a viagem e cumprirmos nossa missão.

 

Temos de partir! Temos de partir!

Partiremos antes de nascer o dia!

 

- Muito bem! - exclamou Frodo. - Mas, nesse caso tem fazer ainda muitas coisas antes de nos deitarmos... debaixo de um tecto, pelo menos esta noite.

- Oh, isso é que é poesia! - disse Pippin. - Tencionas realmente partir antes de nascer o dia?

- Não sei - respondeu Frodo. - Há os Cavaleiros Negros e tenho a certeza de que não é seguro ficar muito tempo num lugar, especialmente num lugar para onde se sabia que me dirigia. Além disso, Gildor aconselhou-me a não esperar. No entanto, gostaria muito de ver Gandalf... Compreendi que até Gildor ficou preocupado ao saber que ele não aparecera. A nossa partida depende, na

realidade, de duas coisas: com que rapidez poderão os Cavaleiros Negros

chegar a Fiveleira? E quando poderemos nós partir? Há muitos preparativos a fazer...

- A resposta à segunda pergunta é a seguinte: podemos partir daqui a uma hora - informou Merry. - Preparei praticamente tudo. Há seis póneis num estábulo do outro lado dos campos e os mantimentos e o equipamento estão acondicionados, com excepção de alguma roupa extra e da comida mais fácil de se estragar.

- Parece que se tratou de uma conspiração muito eficiente - comentou Frodo. - E os Cavaleiros Negros? Seria seguro esperar um dia por Gandalf?

- Tudo depende do que te parecer que os Cavaleiros fariam, se te encontrassem aqui - respondeu Merry. - Claro que já podiam ter cá chegado, a esta hora, se não tivessem sido detidos na porta norte, onde a Vedação desce até à margem do rio, deste lado da ponte. Os guardas da porta não os deixariam passar de noite, embora eles pudessem abrir caminho. Mesmo de dia tentariam impedi-los de entrar, suponho, pelo menos até conseguirem fazer chegar uma mensagem ao Senhor da Mansão, pois não lhes agradaria o aspecto dos Cavaleiros e teriam, com certeza, medo deles. Mas, claro, a Bucklândia não pode resistir muito tempo a um ataque determinado. E é possível que, de manhã, até mesmo um cavaleiro negro que se apresente e pergunte pelo Sr. Baggins seja autorizado a passar. É mais ou menos do conhecimento geral a tua intenção de regressar e vires viver na Cova do Grilo.

 

Frodo pensou durante alguns momentos.

- Tomei a minha decisão - declarou, por fim. - Parto amanhã, assim que houver luz. Mas não irei por estrada: seria mais seguro esperar aqui do que ir por estrada. Se passar pela porta norte, a minha partida da Bucklândia tornar-se-á imediatamente conhecida, em vez de permanecer secreta durante alguns dias, pelo menos, como me convém. Mais: a ponte e a Estrada de Leste, perto das fronteiras, estarão com certeza vigiadas, quer algum cavaleiro consiga entrar na Bucklândia quer não. Não sabemos quantos eles são; mas acho que são pelo menos dois, e possivelmente mais. A única coisa a fazer é partir numa direcção completamente inesperada.

- Mas isso só poderá fazer-se pela Floresta Velha! - exclamou Fredegar, horrorizado. - Não deves pensar em semelhante coisa. É tão perigoso como os Cavaleiros Negros.

- Não é tanto assim - disse Merry. - Parece uma decisão desesperada, sem dúvida, mas creio que o Frodo tem razão. É a única maneira de partirmos sem sermos imediatamente seguidos. Com sorte, conseguiremos um avanço considerável.

- Mas na Floresta Velha não terão probabilidade nenhuma! - discordou Fredegar. - Ninguém lá teve sorte, nunca. Perder-se-ão. As pessoas não entram lá.

- Isso é que entram! - desmentiu Merry. - Os Brandybucks entram... ocasionalmente, quando lhes dá a veneta. Temos uma entrada especial. O Frodo esteve lá uma vez, há muito tempo, e eu estive lá diversas vezes... geralmente de dia, claro, quando as árvores estão ensonadas e relativamente sossegadas.

- Façam como entenderem - disse Fredegar. - Quanto a mim, nada me mete tanto medo como a Floresta Velha. As histórias que tenho ouvido a seu respeito são autênticos pesadelos. Mas a minha opinião não conta, praticamente, uma vez que não acompanho a excursão. E ainda bem que fica aqui alguém para poder dizer a Gandalf o que vocês fizeram, quando ele aparecer como estou certo de que aparecerá, em breve.

Apesar de muito amigo de Frodo, Bolger Gorducho não tinha o mínimo desejo de deixar o Shire nem de ver o que existia fora dele. A sua família era oriunda do Farthing Oriental, mais precisamente de Budgeford, nos Campos da Ponte, mas ele nunca pusera sequer os pés na Ponte de Brandevinho. A sua missão, de acordo com os planos iniciais dos conspiradores, era ficar na retaguarda, atender os curiosos e alimentar, durante o máximo de tempo possível, a ideia de que o Sr. Baggins ainda se encontrava instalado na Cova dos Grilos. Até se munira de algumas velhas peças de roupa de Frodo, para o ajudarem a representar o seu papel. Mal imaginavam quanto esse papel poderia ser perigoso.

- Excelente! - exclamou Frodo, quando lhe expuseram o plano.

De outro modo não poderíamos deixar recado nenhum para Gandalf. Ignoro se esses cavaleiros sabem ler ou não, claro, mas não me atreveria a deixar uma mensagem escrita, não fossem eles entrar aqui e revistar a casa. Mas se o Gorducho está disposto a defender a fortaleza, e se posso ter a certeza de que Gandalf saberá o caminho que seguimos, então decido-me: entro na Floresta Velha logo de manhãzinha.

- Pronto, está resolvido! - exclamou Pippin. - De modo geral, prefiro a nossa missão à do Gorducho. Não gostaria nada de ficar aqui à espera dos Cavaleiros Negros.

- Espera até te encontrares bem no interior da Floresta Velha e verás - comentou Fredegar. - Vais ter pena de não estar aqui, comigo, antes de o dia de amanhã terminar.

- É inútil continuar a discutir a esse respeito - disse Merry. - Ainda temos de arrumar tudo e meter o resto das coisas nas mochilas, antes de irmos para a cama. Chamarei todos antes de nascer o dia.

 

Quando se deitou, finalmente, Frodo não conseguiu adormecer logo. Doíam-lhe as pernas. Sentia-se grato por, de manhã, partir montado. Acabou por mergulhar num sonho vago, no qual lhe parecia estar a olhar, de uma janela muito alta, para um mar escuro de árvores emaranhadas. Lá muito em baixo, entre as raízes, ouviam-se sons de criaturas a rastejar e a farejar. Tinha a certeza de que encontrariam o rasto, mais cedo ou mais tarde.

Depois ouviu um ruído, ao longe. Ao princípio pensou que se tratava de uma grande ventania, a avançar por cima das folhas da floresta; mas depois compreendeu que não eram as folhas que produziam o ruído, e sim o mar distante. Acordado nunca ouvira o som do mar, mas ele atormentara frequentemente os seus sonhos. De súbito, descobriu que estava em terreno descampado. Afinal, não havia árvores nenhumas. Encontrava-se numa charneca escura e havia no ar um estranho cheiro a sal. Olhou para cima, e viu à sua frente uma alta torre branca, que se erguia sozinha num penhasco elevado. Invadiu-o um grande desejo de subir à torre e ver o ma. Começou a escalar o penhasco, na direcção da torre, mas, nisto, brilhou uma luz no céu e soou um trovão.

 

A FLORESTA VELHA

Frodo acordou bruscamente. Ainda estava escuro no quarto. À entrada, Merry batia à porta com uma das mãos e segurava uma vela com a outra.

- Pronto, pronto! Que é? - perguntou Frodo, ainda abalado e perturbado.

- Que é?! - repetiu Merry. - São horas de levantar. São quatro e meia e está muito enevoado. Toca a levantar! O Sam está a preparar o pequeno-almoço e até o Pippin já se levantou. Eu vou selar os póneis e buscar o que transportará as bagagens. Acorda aquele lesma do Gorducho! Ao menos que esteja a pé para se despedir de nós.

Pouco depois das seis horas, os cinco hobbits estavam prontos para partir. Bolger Gorducho ainda bocejava. Saíram de casa sorrateiramente. Merry ia à frente, a conduzir um pónei carregado. Meteu por um carreiro que atravessava um matagal, nas traseiras da casa, e depois atalhou por diversos campos. As folhas das árvores cintilavam e todos os raminhos pingavam; a erva estava cinzenta, coberta de orvalho frio. Nada mexia e os ruídos distantes pareciam próximos e claros: criação a cacarejar num pátio, alguém a fechar a porta de uma casa distante...

Encontraram os póneis no barracão: animaizinhos robustos do tipo de que os Hobbits gostavam e que, embora não fossem velozes, eram bons para um longo dia de trabalho. Montaram, e em breve trotavam na neblina, que parecia abrir-se relutantemente à sua frente e fechar-se logo, sinistramente, atrás deles. Depois de cavalgarem durante cerca de uma hora, devagar e sem falarem, viram a Vedação erguer-se, de súbito, à sua frente. Era alta e estava coberta do teias de aranha prateadas.

- Como vamos atravessar isto? - perguntou Fredegar.

- Sigam-me e verão! - respondeu Merry.

Virou para a esquerda, ao longo da Vedação, e não tardaram a chegar a um ponto onde ela fazia uma reentrância, a acompanhar a orla de um pequeno vale. Tinham feito um corte a alguma distância da Vedação, o qual descia em declive suave até ao solo. Aos lados havia paredes de tijolo que subiam, íngremes, e, de súbito, arqueavam e formavam um túnel que mergulhava profundamente sob a Vedação e desembocava no pequeno vale, do outro lado.

Bolger Gorducho parou:

- Adeus, Frodo! - despediu-se. - Preferia que não entrasses na floresta. Só espero que não precises de socorro antes de findar o dia. Felicidades... hoje e todos os dias!

- Se me não esperarem coisas piores do que a Floresta Velha, estarei com sorte - redarguiu-lhe Frodo. - Diz ao Gandalf que se apresse pela Estrada de Leste, pois em breve voltaremos a ela seguiremos o nosso caminho o mais depressa que pudermos.

- Adeus! - gritaram todos, e meteram pela ladeira até desaparecerem da vista de Fredegar, no túnel.

Era escuro e húmido e do outro lado fechava-o uma porta de fortes grades de ferro. Merry desmontou e abriu-o. Depois de terem passado todos, Merry puxou-o e ele fechou-se ruidosamente e com um estalido, quando a lingueta da fechadura entrou na ranhura. Foi um som ominoso.

- Pronto! - exclamou Merry. - Saíram do Shire e agora encontram-se na orla da Floresta Velha.

- As histórias que contam a respeito dela são verdadeiras? - perguntou Pippin.

- Não sei a que histórias te referes. Se te referes às antigas histórias de papões que as amas do Gorducho lhe contavam, acerca de duendes, lobos e coisas assim, devo dizer-te que não. De qualquer modo, eu não acredito nelas. Mas a floresta é estranha. Tudo nela, está muito mais vivo, muito mais consciente do que se passa, por assim dizer, do que as coisas do Shire. E as árvores não gostam de desconhecidos. Observam-nos. Geralmente, limitam-se a observar-nos, enquanto a luz do dia dura, e pouco fazem. De vez em quando, as mais antagónicas podem deixar cair um ramo, ou estender uma raiz, ou prender-nos com um sarmento comprido. Mas à noite as coisas podem ser mais alarmantes, ou pelo menos foi o que me disseram. Só aqui estive uma ou duas vezes depois de anoitecer, e mesmo assim não me afastei da orla da floresta. Tive a impressão de que todas as árvores estavam a segredar umas às outras, a transmitir notícias e intrigas numa linguagem incompreensível. E os ramos oscilavam e pareciam tactear, embora não estivesse vento nenhum. Dizem que as árvores, se mexem, realmente, e são capazes de cercar desconhecidos e não os deixar passar. Efectivamente, há muito tempo, atacaram a Vedação: aproximaram-se, instalaram-se mesmo ao lado dela e inclinaram-se para o seu lado. Mas os hobbits acorreram, abateram centenas de árvores, fizeram uma grande fogueira na floresta e queimaram o solo todo, numa longa faixa, a leste da vedação. Depois disso, as árvores desistiram de atacar, mas tornaram-se muito hostis. Ainda há um grande espaço deserto, não muito para o interior, onde fizeram a fogueira.

- São só as árvores que são perigosas? - perguntou Pippin.

- Vivem diversas coisas estranhas no coração da Floresta e do lado oposto, ou pelo menos assim ouvi dizer - respondeu-lhe Merry. - Nunca vi nenhuma delas, porém. Mas há qualquer coisa que faz caminhos; seja aonde for que vamos, para o interior, encontramos carreiros, carreiros que, de vez em quando, parecem mudar de lugar de uma maneira estranha. Não muito longe deste túnel existe, ou existiu durante muito tempo, o começo de um carreiro largo, que conduzia à Clareira da Fogueira e depois seguia, mais ou menos na nossa direcção, para leste e depois para norte. É esse carreiro que vou tentar encontrar.

Os hobbits afastaram-se da porta do túnel e atravessaram a larga depressão. Do lado oposto havia um carreiro pouco marcado, que subia para o solo da floresta, 100 m ou mais para lá da Vedação. Mas desapareceu assim que os conduziu debaixo das árvores. Os companheiros olharam para trás, e viram a linha escura da Vedação através dos troncos das árvores que já se adensavam à sua volta. Olhando em frente, porém, só viam troncos de árvores de inúmeros tamanhos e feitios: direitas ou curvadas, torcidas, inclinadas, atarracadas ou esguias, lisas ou nodosas e bifurcadas. E todos os troncos se apresentavam verdes ou cinzentos, musgosos e com rebentos viscosos e desgrenhados.

Só Merry parecia relativamente animado.

- É melhor ires à frente, para encontrares o tal carreiro - disse-lhe Frodo. - É de toda a conveniência não nos perdermos uns dos outros nem nos esquecermos de que lado fica a Vedação!

Escolheram um caminho entre as árvores e os póneis foram avançando a custo, evitando cuidadosamente as muitas raízes estendidas e entrelaçadas. Não havia submato. O solo subia sempre e, à medida que avançavam, parecia que as árvores se tornavam mais altas, mais escuras e mais densas. Não se ouvia qualquer som, a não ser o de uma ocasional gota de humidade a cair através das folhas paradas. Por enquanto, também não se ouviam murmúrios nem movimentos entre os ramos; mas todos eles tinham a desagradável sensação de estarem a ser observados com uma desaprovação que tocava as raias da antipatia e até da inimizade. A sensação foi aumentando, e eles começaram a olhar rapidamente para cima, ou para trás, por cima do ombro, como se esperassem uma agressão súbita.

Continuava a não haver qualquer vestígio de carreiro e as árvores pareciam barrar-lhes constantemente o caminho. De súbito, Pippin não se pôde conter mais e gritou:

- Oi! Oi! Não vou fazer mal nenhum. Só peço que me deixem passar, sim?

Os outros pararam, sobressaltados, mas o grito morreu como que abafado por pesada cortina. Não se ouviu nenhum eco nem nenhuma resposta, embora a floresta parecesse mais cerrada e vigilante do que antes.

- No teu lugar, não gritaria - advertiu Merry. - Faz mais do mal do que bem.

Frodo começou a perguntar a si mesmo se seria possível encontrarem realmente um caminho e se procedera com acerto ao levar os outros para aquela abominável floresta. Merry olhava de lado para lado e já parecia incerto quanto ao caminho a seguir, o que não escapou a Pippin:

- Não precisaste de muito tempo para nos perderes - comentou.

Mas, nesse momento, Merry soltou um assobio de alívio e apontou para a frente.

- Pronto, pronto! - exclamou. - Estas árvores mudam, realmente, de sítio. Ali está a Clareira da Fogueira, mesmo à nossa frente (ou assim espero), mas o caminho de acesso parece ter-se mudado!

A luz aumentou, à medida que foram avançando. Nisto, desembocaram das árvores e encontraram-se num grande espaço circular. Havia finalmente céu por cima deles - céu azul e límpido, para sua surpresa, pois debaixo do tecto da floresta não tinham dado pelo nascer da manhã nem pelo dissipar da névoa. O Sol, porém, ainda não subira o suficiente para brilhar na clareira, embora a sua luz incidisse nas copas das árvores. Todas as folhas eram mais densas e verdes à volta da orla da clareira, que envolviam numa parede quase sólida. Ali não crescia nenhuma árvore; só erva áspera e muitas plantas altas: cicutas altas, descoradas e taludas; salsa-do-amato; erva-do-fogo a espigar em cinzas flocosas; e urtigas e cactos trepadores. Um lugar triste, mas que, depois da densa floresta, parecia um jardim encantador e alegre.

Os hobbits sentiram-se encorajados e olharam, esperançosos, para a claridade que alastrava no céu. Do outro lado da clareira havia uma brecha na muralha de árvores e um carreiro. Viam-no penetrar na floresta, largo em certos pontos e a céu aberto, embora de vez em quando as árvores se cerrassem e o obscurecessem com os seus ramos escuros. Meteram por esse carreiro. Continuavam a subir suavemente, mas agora avançavam muito mais depressa e de coração mais animado, pois parecia-lhes que a floresta se tornara menos hostil e decidira deixá-los passar sem se lhes opor.

Passado um bocado, porém, o ar começou a tornar-se quente e sufocante. As árvores cerraram-se de novo, de ambos os lados, e eles voltaram a não poder ver muito, em frente. Sentiam, mais forte do que nunca, oprimi-los a má vontade da floresta. Estava tão silenciosa, que o bater dos cascos dos póneis, que esmagavam folhas mortas e, ocasionalmente, tropeçavam em raízes ocultas, parecia ecoar aos ouvidos dos hobbits. Frodo tentou cantar uma canção, para os encorajar, mas a sua voz estava reduzida a um murmúrio:

 

Ó viandantes da terra ensombrada,

não desespereis! Embora se ergam, negras,

todas as florestas acabam, por fim,

e vereis o livre Sol passar:

o Sol poente, o Sol nascente,

o fim do dia ou o seu início.

A leste ou oeste, todas as florestas morrem...

 

Morrem... No momento em que proferiu tal palavra, a sua voz desfez-se em silêncio. O ar parecia muito pesado e o pronunciar das palavras cansava. Mesmo atrás deles, caiu estrepitosamente no carreiro um grande ramo de uma árvore velha, de ramadas pendentes. As árvores pareceram cerrar-se à frente deles.

- Não gostaram daquela conversa de acabar e morrer - comentou Merry. - Aconselho-te a não cantares, por enquanto. Espera até chegarmos à orla: então voltar-nos-emos para trás e cantar-lhes-emos em coro!

Merry falava alegremente e, se sentia alguma grande ansiedade, não o demonstrava. Os outros não responderam. Estavam deprimidos. Instalara-se no coração de Frodo um grande peso e, a cada passo que dava, lamentava mais ter-se lembrado de desafiar a ameaça das árvores. Na realidade, ia parar e propor que voltassem para trás (se tal fosse possível) quando as coisas se modificaram de novo: o carreiro deixou de subir e, durante uma certa extensão, tornou-se quase plano; as árvores afastaram-se, e eles puderam ver o caminho seguir quase a direito, em frente. Nessa direcção, mas a alguma distância, erguia-se o cume de uma colina verde e sem árvores, como uma cabeça calva a emergir da floresta circundante. O carreiro parecia seguir a direito para lá.

Avançaram apressadamente, encantados com a ideia de, durante um bocado, cavalgarem acima do tecto da floresta. O carreiro desceu e depois recomeçou a subir, até os levar, finalmente, ao sopé da íngreme encosta. Aí abandonava as árvores e desaparecia na turfa.

A floresta erguia-se a toda a volta do monte, como cabelo basto que terminava bruscamente num círculo, à roda de uma coroa rapada.

Os hobbits conduziram os seus póneis, sempre às voltas, até chegarem ao cimo, onde pararam a olhar em redor. Havia sol, mas o ar estava enevoado e não lhes permitia um raio de visão muito grande. Nas imediações, a neblina quase desaparecera, embora ainda pairasse aqui e ali, em depressões da floresta. Para sul deles, o nevoeiro continuava a subir, como vapor ou farrapos de fumo branco, de uma ravina funda que atravessava a floresta.

- Aquilo - disse Merry, a apontar - é o curso do Withywindle. Desce das colinas e corre para sudoeste pelo meio da floresta, para se juntar ao Brandevinho, abaixo de Haysend. Não queremos ir par esse lado! Consta que o vale do Withywindle é a parte mais estranha de toda a floresta, como que o centro donde provém toda a singularidade.

Os outros olharam na direcção apontada por Merry, mas pouco mais viram do que neblina sobre o vale húmido e fundo, do outro lado do qual a metade sul da floresta deixava de se ver.

O sol começava a tornar-se quente, no cimo do monte. Deviam ser umas onze horas. No entanto, a névoa outonal ainda os impedia de ver grande coisa nas outras direcções. A oeste, não conseguiam distinguir nem a linha da Vedação nem o vale do Brandevinho, para lá dela. A norte, para onde olhavam com mais esperança, não logravam vislumbrar nada que pudesse ser o traçado da grande Estrada do Leste, para a qual se dirigiam. Estavam numa ilha no meio de um mar de árvores e o horizonte encontrava-se oculto.

Do lado de sudoeste, o solo descia com grande declive, como se as vertentes do monte continuassem a descer muito por baixo das árvores, conforme acontece com as costas das ilhas, que na realidade são os lados de uma montanha que emerge do abismo do mar. Sentaram-se na orla verde e olharam para o arvoredo, em baixo, enquanto comiam a refeição do meio-dia. Quando o Sol subiu e ultrapassou o zénite, distinguiram muito ao longe, no Leste, os contornos verde-acinzentados das Colinas que ficavam para lá da Floresta Velha, desse lado. Isso animou-os muito, pois era bom avistar qualquer coisa que ficava para lá das fronteiras da floresta, embora não tencionassem ir para esse lado, se pudessem evitá-lo: as Colinas das Antas tinham uma fama tão sinistra, nas lendas hobbitianas, como a própria Floresta Velha.

 

Por fim, decidiram prosseguir. O carreiro que os levara ao monte reapareceu do lado norte. No entanto, tinham começado a percorrê-lo havia pouco tempo quando se aperceberam de que se desviava sistematicamente para a direita. Em breve começou a descer rapidamente, e eles calcularam que devia seguir na direcção do vale do withywindle - isto é, de modo nenhum na direcção que pretendiam. Após alguma discussão, resolveram abandonar o enganoso caminho e enveredar para norte, pois, embora não tivessem conseguido distingui-la do cume do monte, a Estrada devia ficar para esse lado e não podiam faltar muitos quilómetros para lá chegar. Além disso, para norte e à esquerda do caminho o terreno parecia mais seco e mais aberto, a subir para encostas onde as árvores eram menos cerradas e pinheiros e abetos substituíam os carvalhos e os freixes e outras árvores estranhas e de nome desconhecido da floresta mais densa.

Ao princípio, a escolha pareceu boa: avançaram a uma velocidade razoável, apesar de, todas as vezes que vislumbravam o Sol numa clareira, experimentavam a inexplicável impressão de se haverem desviado para leste. Passado algum tempo, porém, as árvores começaram a adensar-se de novo, precisamente onde, de longe, tinham parecido menos densas e emaranhadas. Depois surgiram inesperadamente grandes covas no terreno, como sulcos de grandes rodas gigantes ou fossos largos e estradas afundadas, havia muito em desuso e invadidas pelas silvas. Apareciam em geral atravessadas na sua linha de marcha e só podiam ser ultrapassadas descendo por um lado e subindo pelo outro, o que, por causa dos póneis, se tornava incómodo e difícil. Todas as vezes que desciam encontravam a cavidade cheia de arbustos densos e submato emaranhado, que, inexplicavelmente, não cedia do lado esquerdo e só lhes dava passagem quando se viravam para a direita. Tinham sempre de percorrer alguma distância, no fundo, antes de encontrarem um carreiro que lhes permitisse subir pela ladeira oposta. Todas as vezes que saíam, finalmente, as árvores pareciam mais densas e mais escuras e era sempre muitíssimo difícil encontrar um caminho que conduzisse para cima e para a esquerda, o que os forçava a seguir para a direita e para baixo.

 

Decorrida uma hora ou duas, tinham perdido por completo o sentido de orientação, embora soubessem perfeitamente que, havia muito, tinham deixado de seguir para norte. Estavam a ser desviados e a percorrer, pura e simplesmente, um rumo escolhido para eles: para leste e sul, para o coração da floresta e não para fora dela.

A tarde ia adiantada quando, aos tropeções, foram ter a uma vala mais larga e mais funda do que qualquer das anteriores. Era de tal maneira íngreme, que se lhes tornou impossível sair dela, quer por um lado, quer pelo outro, sem abandonarem os póneis e a bagagem.

A única coisa que lhes restava era seguir a vala - para baixo. O solo tornou-se macio e em certos pontos pantanoso. Apareceram nascentes nos aterros, e em breve os hobbits estavam a seguir o curso de um regato que corria e rumorejava através de um leito ervoso. Depois o solo começou a descer rapidamente e o regato, que se tornou mais forte e barulhento, a correr e a altar pelo declive abaixo. Encontravam-se numa espécie de desfiladeiro penumbrento, sob uma arcada de árvores, lá muito em cima.

Depois de tropeçarem como podiam ao longo do regato, durante algum tempo, desembocaram repentinamente da penumbra. Viram a luz do dia à sua frente, como se jorrasse através de uma porta. Quando chegaram à abertura, verificaram que tinham descido pela fissura de um aterro alto e íngreme, quase de um penhasco, a cujos pés havia um largo espaço de erva e juncos. Ao longe, distinguia-se outro aterro quase tão íngreme como aquele. Uma tarde dourada, de sol tardio, ganhava, quente e sonolenta, a terra oculta entre os dois. No meio, serpenteava indolentemente um rio escuro de água castanha, bordejado por velhos salgueiros, com uma abóboda de salgueiros, bloqueado por salgueiros caídos e salpicado por milhares de desbotadas folhas de salgueiros. O próprio ar estava cheio de folhas de salgueiro que caíam, lentas e amarelas, dos ramos, pois soprava no vale uma brisa suave que agitava os juncos e fazia estalar os ramos das árvores.

- Bem, agora tenho, finalmente, uma vaga ideia de onde estamos! - exclamou Merry. - Viemos quase na direcção oposta àquela que pretendíamos. Este é o rio Withywindle! Vou avançar mais um pouco e explorar.

Saiu para a claridade do sol e desapareceu no meio da erva alta. Reapareceu pouco depois e informou haver solo relativamente sólido entre a base do penhasco e o rio e que nalguns pontos havia turfa firme até à beira-d'água.

- Mais - acrescentou -, parece haver qualquer coisa parecida com um carreiro, a serpentear deste lado do rio. Se virarmos à esquerda e o seguirmos, creio que, eventualmente, acabaremos por desembocar do lado leste da floresta.

- Deveras? - perguntou Pippin. - Isto, claro, se o carreiro se prolongar até lá e não nos conduzir pura e simplesmente a um pântano, onde nos abandone. Quem te parece que fez o carreiro, e porquê? Tenho a certeza de que não foi para nosso benefício. Estou a ficar muito desconfiado com esta floresta e tudo quanto ela contém e começo a acreditar nas histórias todas que se contam a seu respeito. Já agora, fazes alguma ideia da distância para leste que teremos de percorrer?

- Não, não faço - respondeu Merry. - Não imagino até que, ponto descemos o Withywindle nem quem poderia aqui vir com frequência suficiente para abrir um carreiro. Mas não me ocorre nenhuma outra saída.

Como não havia efectivamente outra coisa a fazer, colocaram-se em fila e Merry conduziu-os ao caminho que descobrira. Os juncos e a erva eram luxuriantes e altos em toda a parte e algumas vezes, subiam-lhes muito acima da cabeça; mas, uma vez encontrado, o carreiro era fácil de seguir, apesar de ziguezaguear à procura do solo mais firme entre brejos e charcos. Aqui e ali, passava por cima de outros córregos que desciam para o Withywindle por sulcos abertos nas terras florestais mais altas. Nesses pontos havia troncos de árvores ou molhos de lenha dispostos cuidadosamente, a servir ponte.

 

Os hobbits começaram a sentir calor. Autênticos exércitos de moscas de todas as espécies zumbiam-lhes à volta das orelhas e o sol vespertino queimava-lhes as costas. Por fim, desembocaram subitamente numa zona de leve sombra, com grandes ramos cinzentos a estenderem-se sobre o carreiro. Cada passo em frente tornou-se mais relutante do que o anterior. Dir-se-ia que a sonolência saía do solo e lhes subia pelas pernas e caía suavemente do ar para as suas cabeças e os seus olhos.

Frodo sentiu o queixo descair e a cabeça pender. Mesmo à sua frente, Pippin caiu de joelhos. Frodo parou.

- E inútil - ouviu Merry dizer. - Não posso avançar nem mais um passo sem descansar. Tenho de passar pelas brasas. Está fresco debaixo dos salgueiros. Menos moscas!

Aquilo não agradou nada a Frodo, que gritou:

- Vamos para a frente! Ainda não podemos dormir. Primeiro temos de sair da floresta!

Mas os outros estavam tão exaustos, que lhe não deram ouvidos.

Ao lado dele, Sam bocejava e pestanejava estupidamente.

De súbito, o próprio Frodo sentiu o sono dominá-lo. A cabeça andou-lhe à roda. Não se ouvia praticamente um som no ar. As moscas tinham parado de zumbir e só um ruído, nos limites da consciência auditiva, o suave murmúrio de uma canção meio segredada, parecia agitar os ramos, em cima. Levantou os olhos de pálpebras pesadas e viu inclinar-se por cima dele um grande salgueiro, velho e cinzento. Parecia enorme com os ramos estendidos erguidos como braços levantados com muitas mãos de dedos compridos, o tronco nodoso e torcido retalhado por muitas fissuras, que gemiam levemente com o mover dos ramos. As folhas, que se agitavam recortadas no céu luminoso, ofuscaram Frodo, que caiu e ficou onde caiu, na erva.

Merry e Pippin arrastaram-se para a frente e deitaram-se costas para o tronco do salgueiro. Atrás deles, as grandes fendas escancararam-se para os receber, enquanto a árvore oscila a estalava. Olharam para cima, para as folhas cinzentas e amarelas que se agitavam suavemente na luz e pareciam cantar. Fecharam olhos e tiveram quase a sensação de ouvir palavras, palavras frescas que diziam qualquer coisa a respeito de água e sono. Entregaram-se a essa espécie de encantamento, e adormeceram aos pés do grande salgueiro cinzento.

Frodo ficou uns momentos caído a lutar com o sono que o dominava; depois, com um grande esforço, conseguiu levantar-se. Sentia um desejo irresistível de água fria.

- Espera por mim, Sam - tartamudeou. - Tenho de banhar o pés, um instantinho.

Meio a sonhar, dirigiu-se para o lado da árvore voltado para o rio, onde grandes raízes sinuosas mergulhavam na corrente, como libélulas nodosas a esticarem-se para beber. Escarranchou-se numa das raízes e mergulhou os pés na fresca água castanha. Tanto bastou para que adormecesse também, repentinamente, encostado à árvore.

Sam sentou-se, coçou a cabeça e bocejou como uma caverna. Estava preocupado. A tarde avançava e aquela súbita sonolência parecia-lhe estranha. «Há nisto mais qualquer coisa do que sol e ar quente», pensou. «Não gosto desta grande árvore, não confio nela. Logo lhe havia de dar agora para cantar a respeito de dormir! Ná, não pode ser!»

Levantou-se e, a cambalear, foi ver o que acontecera aos póneis. Verificou que dois se tinham afastado muito, ao longo do carreiro, e acabava de os apanhar e trazer para junto dos outros quando ouviu dois ruídos: um forte e outro suave, mas muito claro. Um foi os splash! de qualquer coisa pesada a cair na água; o outro lembrou o estalido de uma fechadura, quando uma porta se fecha devagarinho.

Correu para o rio. Frodo estava na água, perto da margem, e uma grande raiz parecia apoiar-se nele e mantê-lo submerso. Mas ele não se debatia. Sam agarrou-o pelo casaco e tirou-o de debaixo da raiz, e depois, com dificuldade, puxou-o para terra. Frodo acordou quase imediatamente e tossiu, engasgado.

- Sabes uma coisa, Sam? - perguntou, por fim. - A maldita árvore atirou-me para a água! Eu senti. A grande raiz virou-se e deixou-me cair!

- Suponho que estava a sonhar, Sr. Frodo - redarguiu Sam. Não se devia ter sentado num sítio daqueles, se tinha sono.

- Os outros? - perguntou Frodo. - Que espécie de sonhos estarão a ter?

Contornaram o tronco para o outro lado da árvore e Sam compreendeu o estalido que ouvia. Pippin desaparecera. A fenda junto da qual se deitara fechara-se de tal modo que não se via a mínima abertura. Quanto a Merry, estava como que apanhado numa armadilha: outra fenda fechara-se à volta da sua cintura; ficara com as pernas de fora, mas o resto do corpo estava do lado interior da abertura escura, cujas bordas o prendiam como uma pinça.

Frodo e Sam bateram primeiro na parte do tronco junto da qual Pippin estivera deitado. Depois lutaram freneticamente para abrir as mandíbulas da fenda que prendia o pobre Merry. Absolutamente em vão.

- Mas que terrível coisa havia de acontecer! - gritou Frodo, desesperado. - Porque viemos por esta hedionda floresta? Quem me dera que estivéssemos todos na Cova dos Grilos!

Desatou aos pontapés à árvore com toda a força, sem pensar nos próprios pés. Um tremor quase imperceptível percorreu o tronco até aos ramos, e as folhas agitaram-se e murmuraram, mas desta vez com um som que lembrava um riso leve e distante.

- Não temos nenhum machado entre a nossa bagagem, Sr. Frodo? - perguntou Sam.

- Trouxe uma machadinha para partir lenha - respondeu Frodo. - Não servirá de muito...

- Espere um momento! - gritou Sam, que tivera uma ideia sugerida pela palavra «lenha». - Talvez conseguíssemos alguma coisa com lume.

- Talvez... - admitiu Frodo, duvidoso. - Talvez conseguíssemos assar o Pippin vivo, lá dentro.

- Poderíamos tentar magoar ou assustar esta árvore, para começar, - declarou Sam, furioso. - Se nem mesmo assim os soltar, deito-a abaixo nem que tenha de a roer! - Correu para os póneis e, pouco depois, voltou com duas caixas de pederneira e uma machadinha.

Rapidamente, juntaram erva e folhas secas e bocados de casca de arvore e amontoaram gravetos partidos e tronquinhos cortados. Chegaram tudo para o tronco, do lado oposto ao dos prisioneiros. Assim que Sam arrancou uma centelha à pederneira, a erva seca incendiou-se e subiu no ar uma língua de chamas e fumo. Os gravetos estalaram e pequenos dedos de fogo lamberam a casca seca e entalhada da velha árvore e chamuscaram-na. Um tremor percorreu todo o salgueiro, e as folhas pareceram silvar por cima da cabeça deles, com um som de dor e cólera. Merry soltou um grito forte e do interior da árvore chegou-lhes outro, abafado, de Pippin.

- Apaguem isso! Apaguem isso! - gritou Merry. - Ele aperta-me até me partir em dois, se o não fizerem. É o que ele diz!

- Quem? O quê? - gritou Frodo, que correu para o outro lado da árvore.

- Apaguem isso! Apaguem isso! - suplicou Merry.

Os ramos do salgueiro começaram a agitar-se violentamente. Ouviu-se um som como se um vento se levantasse e propagasse aos ramos de todas as outras árvores das imediações. Era como se tivessem atirado uma pedra à tranquila sonolência do rio e provocado ondazinhas de cólera que alastravam por toda a floresta. Sam pisou a pequena fogueira e apagou as faúlhas. Mas Frodo, sem ter uma ideia clara dos motivos do seu procedimento, nem do que esperava alcançar, desatou a correr pelo carreiro e a gritar: Socorro! Socorro! Socorro! Parecia-lhe que mal conseguia ouvir o som da própria voz esganiçada, a qual era arrastada pelo vento-salgueiro, e abafada pelo clamor das folhas, assim que as palavras lhe saíam da boca. Sentia-se desesperado. Perdido e sem ideias.

De súbito, parou. Ouvira uma resposta, ou pelo menos assim julgava. Mas parecia vir detrás dele, do lado do carreiro que penetrava na floresta. Virou-se e escutou, e em breve dissiparam-se-lhe todas as dúvidas: alguém cantava; uma voz profunda e alegre cantava, descuidada e feliz, mas sem fazer sentido:

Trolaró, alegre dó! Pim-plim-pilho!

Pim-plão! Salta saltitão! Dá no salgueiro!

Tom Bom, alegre Tom, Tom Bombadillo!

Meio esperançosos e meio receosos de algum novo perigo, Frodo e Sam estavam imóveis. De súbito, depois de uma longa enfiada de palavras sem sentido (ou que assim pareciam), a voz subiu, alta e clara, e entoou a seguinte canção:

Trolaró, vem alegre bela, bela alegre! Meu amor!

Leve vai o vento e o penugento e leve estorninho.

No sopé do monte, a brilhar ao sol,

Esperando à porta a fria luz das estrelas,

Lá está a minha linda senhora, filha do rio-mulher,

Mais esbelta do que a vara do salgueiro, mais clara do que a água

O velho Tom Bombadil, de nenúfares carregado,

Regressa aos saltos a casa. Ouve-lo cantar?

Trolaró, vem alegre bela, bela alegre! E alegre-ô!

Goldberry, Goldberry, alegre, amarela, berry-ô!

Pobre velho salgueiro-homem, encolhe as raízes!

Tom está com pressa. A noite segue-se ao dia

E Tom regressa a casa de nenúfares carregado.

Trolaró, vem alegre bela! Não me ouves cantar?

Frodo e Sam continuaram imóveis, como que encantados. O vento esvaiu-se e as folhas voltaram a pender silenciosamente dos ramos hirtos. Ouviu-se outro jorro de palavras cantadas e, de repente, a saltar e a dançar pelo carreiro, apareceu por cima dos juncos um velho chapéu amachucado, de copa alta e com uma comprida pena azul espetada na banda. Mais um salto e um pulo, e surgiu à vista um homem - ou assim parecia. De qualquer modo, era demasiado grande e pesado para ser um hobbit, embora talvez não fosse suficientemente alto para ser um dos membros da Gente Grande, apesar de não lhes ficar a dever nada no barulho que fazia ao avançar de grandes botas amarelas a cobrir-lhe as pernas grossas, investindo através da erva e dos juncos como uma vaca a descer para a água. Usava casaco azul e tinha longa barba castanha, os seus olhos eram azuis e brilhantes e o seu rosto vermelho como uma maçã madura, mas franzido em mil rugas de riso. Levava nas mãos, numa grande folha, como se fosse uma bandeja, um montinho de nenúfares brancos.

- Socorro! - gritaram Frodo e Sam, a correr para ele de mãos estendidas.

- Eh lá! Eh lá! Tenham calma! - gritou o velho, levantando uma das mãos, e os dois hobbits estacaram, como se os tivesse imobilizado. - Agora digam-me, meus pequeninos, aonde iam, a soprar como foles? Que se passa aqui, hem? Sabem quem eu sou? Sou Tom Bombadil. Digam-me o que os apoquenta, andem. O Tom está cheio de pressa. Não amachuquem os meus nenúfares!

- Os meus amigos estão presos no salgueiro! - gritou Frodo, sem fôlego.

- O Sr. Merry está a ser apertado numa fenda! - gritou também Sam.

- O quê?! - exclamou Tom Bombadil, e deu um salto no ar. - O velho salgueiro-homem? Não aconteceu nada pior do que isso, hem? Então o mal remedeia-se depressa. Sei a melodia que lhe calha. Ora o velho salgueiro-homem, hem! Gelo-lhe a seiva, se não se comporta como deve ser! Canto até lhe arrancar as raízes! Canto com tal força, que o vento lhe levará folha e ramo! Ora o velho salgueiro-homem!

Depositou cuidadosamente os nenúfares na relva e correu para a arvore. Viu os pés de Merry ainda de fora; o resto já fora chupado para dentro. Tom encostou a boca à fenda e começou a cantar em voz baixa. Frodo e Sam não lhe ouviam as palavras, mas não tiveram dúvidas de que Merry se animou, pois começou a espernear. Tom saltou para o lado, arrancou um ramo pendente e, bateu com ele no tronco do salgueiro.

- Deixa-os sair, velho salgueiro-homem! - ordenou, - Que se te encasquetou na cabeça? Não devias estar acordado. Come terra! Escava fundo! Bebe água! Dorme! É Bombadil que fala!

Agarrou nos pés de Merry e puxou-o para fora da fenda, que alargara subitamente.

Ouviu-se um ranger, um rasgar, e a outra fenda abriu-se também e Pippin saltou cá para fora, como se tivesse levado um pontapé. Depois, com um estalido forte, ambas as fendas voltaram a fechar-se. A árvore foi percorrida por um estremecimento, das raízes à copa, e ficou tudo silencioso.

- Obrigado! - agradeceram os hobbits, um após outro.

Tom Bombadil desatou a rir.

- Muito bem, meus pequeninos! - exclamou, ao mesmo tempo que se inclinava para lhes poder ver a cara. - Venham para casa comigo! A mesa está posta, com natas amarelas, favos de mel, pão branco e manteiga. Goldberry espera. Há tempo para fazer perguntas à volta da mesa do jantar. Sigam-me o mais depressa que puderem, sim?

Pegou nos nenúfares e, depois de acenar com a mão num convite, partiu pelo carreiro a saltar e a dançar, para leste, sempre a cantar muito alto e sem sentido.

Incapazes de falar, tão grandes eram a surpresa e o alívio, os hobbits seguiram-no o mais depressa que puderam... mas que não chegou. Tom não tardou a desaparecer, à frente deles, e o som do seu cantar tornou-se mais fraco e distante. De súbito, voltaram a ouvir-lhe a voz, como se flutuasse na direcção deles, num vibrante «Então?».

 

Toca a saltar, amiguinhos, pelo Withywindle acima!

Tom vai à frente para as velas acender.

A ocidente afunda-se o Sol e em breve de tactear tereis.

Quando as sombras da noite descerem, a porta abrir-se-á

E nos vidros da janela luz amarela brilhará.

Não temais o preto amieiro! Não escuteis o velho salgueiro!

Não receeis raiz nem galho! Tom vai à frente.

Trolaró, alegre dó! Estaremos à vossa espera!

Depois disso, os hobbits não ouviram mais nada. Quase imediatamente, o Sol pareceu afundar-se nas árvores, atrás deles. Recordaram a luz oblíqua do entardecer a cintilar no rio Brandevinho e as janelas da Fiveleira, a começarem a iluminar-se com centenas de luzes. Projectavam-se nelas grandes sombras; troncos e ramos de árvores pendiam, escuros e ameaçadores, para o carreiro. Começaram a subir do rio névoas brancas, que se enrolavam sobre a superfície da água e se espalhavam à volta das raízes das árvores, nas margens. Do próprio solo a seus pés subia um vapor sombrio, que se misturava com o crepúsculo que alastrava rapidamente.

Tornou-se difícil seguir o carreiro, e sentiram-se muito cansados, como se as suas pernas fossem de chumbo. Soavam estranhos ruídos furtivos entre os arbustos e os juncos de ambos os lados do caminho e, se olhavam para cima, para o céu pálido, viam estranhos rostos disformes e nodosos, que sobressaíam, escuros, do crepúsculo e pareciam rir sinistramente deles, dos barrancos altos e das orlas da floresta. Começaram a ter a sensação de que toda aquela região era irreal e que iam tropeçando através de um sonho ominoso que não conduzia a nenhum despertar.

Quando sentiram os passos afrouxar, antes de parar, notaram que o solo subia suavemente. A água começou a murmurar. Na escuridão, distinguiram o brilho branco da espuma, no ponto onde o rio se despenhava numa pequena queda de água. De súbito, as árvores acabaram e as névoas ficaram para trás. Saíram da floresta e deparou-se-lhes um vasto espaço de erva a subir à sua frente. O rio, agora pequeno e rápido, saltava alegremente ao encontro deles, cintilando aqui e ali à luz das estrelas que já brilhavam no céu.

A erva que pisavam era macia e curta, como se tivesse sido cortada ou aparada. As folhas da floresta, atrás deles, também apareciam aparadas como para formar uma sebe. Agora viam perfeitamente o caminho à sua frente, bem tratado e ladeado de pedras. Subia, aos ziguezagues, para o cimo de um cabeço relvoso, que a pálida noite estrelada acinzentava. Mais acima, noutra encosta, viram o piscar das luzes de uma casa. O carreiro voltou a descer e, depois, a subir por uma longa e suave vertente de turfa, na direcção da luz. De súbito, um largo feixe de luz amarela jorrou de uma porta que se abriu. Era a casa de Tom Bombadil que estava à sua frente, depois de subirem e descerem, no sopé do monte. Atrás dela, via-se uma lomba íngreme de terra cinzenta e árida e, para além dela, os vultos negros das Colinas das Antas pareciam mergulhar sorrateiramente na noite.

Apressaram-se todos, hobbits e póneis, libertos já de metade da fadiga e de metade dos temores. Trolaró, alegre dó!, ecoou a canção, para os saudar. E continuou:

Trolaró, alegre dó! Saltem meus queridinhos!

Hobbits! Póneis! Todos! Nós gostamos de festas.

Vá, comece a alegria! Vá, cantemos juntos!

Depois desceu como prata, ao encontro deles, outra voz cristalina, tão jovem e tão antiga como a Primavera, a lembrar o canto da água alegre a correr na noite, vinda de uma luminosa manhã nos montes:

Vá, comece a canção! Vá, cantemos juntos

O Sol e as estrelas, a Lua e a névoa, a chuva e o tempo nublado,

A luz na folha a despontar, o orvalho na pena,

O vento no monte nu, as campainhas no urzal,

Os juncos na lagoa sombria, os nenúfares na água:

O velho Tom Bombadil e a filha do rio!

 

E com essa canção os hobbits chegaram ao limiar da porta, e uma luz dourada envolveu-os.

 

EM CASA DE TOM BOMBADIL

Os quatro hobbits transpuseram o largo limiar de pedra e pararam, a pestanejar.

Encontravam-se numa sala comprida e baixa, toda inundada pela luz dos candeeiros que balouçavam, suspensos das vigas do tecto. Em cima da mesa de madeira escura polida encontravam-se muitas velas altas e amarelas, a arder luminosamente.

Numa cadeira, do lado oposto da pedra exterior, estava sentada uma mulher. O comprido cabelo louro caía-lhe, ondulado, pelos ombros abaixo, usava um vestido verde - verde como juncos jovens - salpicado de prata como de gotas de orvalho, e o seu cinto era de ouro, do feitio de uma cadeia de lírios roxos ornamentados com os olhos azuis-claros dos miosótis. A seus pés, em vasilhas de louça verde e castanha, flutuavam nenúfares brancos, de tal modo que ela parecia entronizada no meio de uma lagoa.

- Entrem, bons convidados entrem! - disse a mulher, e, ao ouvi-la, eles souberam que fora sua a voz cristalina que cantara.

Avançaram mais alguns passos tímidos e começaram a fazer vénias profundas, a sentir-se estranhamente surpreendidos e desajeitados, como alguém que, ao bater à porta de uma choupana para pedir um copo de água, se vê atendido por uma bela e jovem rainha élfica toda envolta em flores vivas. Mas, antes que pudessem dizer fosse o que fosse, ela levantou-se, saltou ligeira por cima das vasilhas dos lírios e correu, a rir, para eles. Enquanto corria, o seu vestido murmurava docemente, como o vento nas margens em flor de um rio.

- Venham, meus queridos! - disse, e pegou na mão de Frodo. - Riam e divirtam-se. Sou Goldberry, filha do rio. - Depois, sempre ligeira, ultrapassou-os, fechou a porta e, de costas para ela e braços abertos, acrescentou: - Deixemos a noite lá fora, pois talvez ainda estejam com medo da névoa, das sombras das árvores, de águas fundas e coisas bravias. Não receiem nada, porque esta noite estão sob o tecto de Tom Bombadil!

Os hobbits olharam-na, maravilhados, e ela olhou para cada um de cada vez e sorriu.

- Linda Sr.ª Goldberry! - conseguiu Frodo murmurar, por fim, com o coração emocionado por uma ventura que não compreendia.

Estava imóvel, como quando, às vezes, se sentia encantado pelas vozes élficas. Mas o encantamento que o possuía agora era diferente: o deleite seria menos vivo e exaltado, mas era mais profundo e mais próximo do coração mortal, maravilhoso e ao mesmo tempo natural.

- Linda Sr.ª Goldberry! - repetiu. - Agora compreendo perfeitamente a alegria contida nas canções!

Ó esbelta como a vara do salgueiro!

Ó mais clara do que a água clara!

Ó junco à beira da lagoa! Bela filha do Rio!

Ó Primavera e Verão e depois, de novo, Primavera!

Ó vento na cascata e riso das folhas!

 

Gaguejou, de súbito, e calou-se, estupefacto por se ouvir a si mesmo dizer semelhantes coisas. Mas Goldberry riu-se.

- Bem-vindo! - exclamou. - Não me tinha constado que a gente do Shire tivesse tão doce falar. Mas verifico que és um amigo dos Elfos: dizem-no a luz dos teus olhos e o timbre da tua voz. Que feliz encontro este! Agora sentem-se e esperem pelo dono da casa, que não se deve demorar. Está a tratar dos animais cansados em que vieram.

Os hobbits sentaram-se de bom grado em cadeiras baixas, de fundo de verga, enquanto Goldberry se atarefava à volta da mesa. Os olhos deles seguiam-na, pois a graça esbelta dos seus movimentos enchia-os de suave prazer. De algures, nas traseiras da casa, vinha o som de alguém a cantar. De vez em quando captavam, entre muitos Trolaró, alegre dó, Vem alegre bela e Pim-Plim-Pilho, os versos repetidos:

O velho Tom Bombadil é um tipo muito alegre;

O seu casaco é azul-vivo e as suas botas são amarelas.

- Linda senhora! - repetiu Frodo, passados momentos. - Diga-me, se a minha pergunta não parecer idiota, quem é Tom Bombadil?

- Ele é... - respondeu Goldberry, ao mesmo tem o que interrompia os seus movimentos rápidos e sorria.

Frodo fitou-a, interrogadoramente.

- É o que viu que ele é - disse Goldberry, em resposta ao olhar. - E o senhor da floresta, da água e do monte.

- Então toda esta estranha terra lhe pertence?

- De modo nenhum! - respondeu Goldberry, e o seu sorriso desvaneceu-se. - Isso seria deveras um grande fardo para ele - acrescentou, em voz baixa, como se falasse sozinha. - As árvores, as ervas e todas as coisas que crescem ou vivem na terra pertencem a si mesmas. Tom Bombadil é o Mestre. Nunca ninguém surpreendeu o velho Tom a caminhar na floresta, a vadear o rio ou a saltar no cume dos montes, debaixo de luz ou de sombra. Ele não tem medo. Tom Bombadil é o Mestre.

Abriu-se uma porta e Tom Bombadil entrou. Vinha sem chapéu e folhas outonais coroavam-lhe o basto cabelo castanho. Riu-se, foi ter com Goldberry e pegou-lhe na mão.

- Aqui está a minha bonita senhora! - disse, e inclinou-se para os hobbits. - Aqui está a minha Goldberry toda vestida de verde-prata e com flores na cinta! A mesa está posta? Vejo natas amarelas e favos de mel, pão branco e manteiga, queijo e leite, verduras e bagas maduras. Chega para nós? O jantar está pronto?

- Está - respondeu Goldberry. - Mas estarão os convidados?

Tom bateu as palmas e gritou:

- Tom, Tom! Os teus convidados estão cansados e tu quase o esqueceste! Venham, meus alegres amigos, e o Tom dar-lhes-á vigor! Lavarão as mãos sujas e os rostos cansados, despentearão as capas enlameadas e pentearão os cabelos embaraçados!

Abriu a porta, e eles seguiram-no por um corredor curto, que curvava bruscamente. Chegaram a uma sala baixa com tecto em declive (parecia uma água-furtada, construída do lado norte da casa). As paredes eram de pedra limpa, mas estavam quase todas cobertas de tapetes verdes, pendurados, e cortinas amarelas. O chão era de lajes cobertas de juncos verdes e frescos. No chão, a um lado, havia quatro colchões altos, cada qual com uma pilha de cobertores brancos. Encostado à parede oposta via-se um banco comprido, com grandes bacias de louça e, ao lado, jarros castanhos, uns cheios de água fria e outros fumegantes. Ao lado de cada cama estavam macios chinelos verdes.

Pouco depois, lavados e refeitos, os hobbits estavam sentados à mesa, dois de cada lado; Goldberry e Tom ocupavam as extremidades. Foi uma refeição demorada e alegre. Embora os hobbits comessem como só hobbits esfomeados são capazes de comer, não faltou nada. O líquido das suas taças parecia ser água pura e fresca, mas subia-lhes à cabeça como vinho e destravava-lhes a língua. De súbito, os convidados aperceberam-se de que estavam a cantar alegremente, como se cantar fosse mais fácil e natural do que falar.

Por fim, Tom e Goldberry ergueram-se e levantaram a mesa rapidamente. Os convidados receberam ordem para estarem quietos e foram instalados em cadeiras, cada uma com um tamborete para os seus pés cansados. O lume aceso na grande lareira, à frente deles exalava um cheiro doce, como se fosse de lenha de macieira. Quando tudo ficou arrumado, foram apagadas todas as luzes da sala, com excepção de um candeeiro e um par de velas a cada extremidade da prateleira da chaminé. Então, Goldberry parou diante deles, com uma vela na mão, e desejou a cada um que passasse uma boa noite e dormisse bem.

- Fiquem em paz, agora, até de manhã! - desejou-lhes. - Não liguem importância a quaisquer ruídos nocturnos, pois aqui nada passa por porta ou janela a não ser o luar, a luz das estrelas e o vento que vem do cume do monte. Boas-noites!

Saiu da sala, envolta em luz e com o vestido a roçagar. O ruído dos seus passos lembrava um regato a descer docemente uma encosta, sobre pedras frias, no sossego da noite.

Tom sentou-se um bocado ao lado deles, em silêncio, enquanto cada um dos hobbits tentava arranjar a coragem necessária para fazer uma das muitas perguntas que quisera fazer ao jantar e não fizera. O sono pesava-lhes nas pálpebras. Por fim, Frodo falou:

- Ouviu-me, Mestre, ou foi apenas o acaso que o levou ali naquele momento?

Tom mexeu-se, como um homem despertado de um sonho agradável.

- Eh, o quê? Se te ouvi chamar? Não, não ouvi. Estava entretido a cantar. Foi o acaso que me levou ali, naquele momento, se a isso chama acaso. Não se tratou de nenhum plano meu, embora os esperasse. Ouvimos notícias a respeito de vocês e soubemos que andavam perdidos. Calculámos que não tardariam a vir ter à água: todos os caminhos levam lá, ao Withywindle. O velho salgueiro-homem é um grande cantor e é difícil à gente pequena como vocês escapar aos seus astuciosos labirintos. Mas Tom tinha uma coisa a fazer ali e ele não se atreveu a levantar-lhe obstáculos.

Tom cabeceou, como se o sono se reapoderasse dele; mas prosseguiu, em voz suave e cantante:

Eu tinha uma coisa a fazer: colher nenúfares,

folhas verdes e lírios brancos, para agradar à minha bonita senhora,

os últimos antes de findar o ano, para os poupar ao Inverno

e florirem aos seus lindos pés até a neve derreter.

Todos os anos, no fim do Verão, vou colhê-los para ela

numa grande lagoa, funda e clara, muito para jusante do Withywindle;

É ali que abrem mais cedo e duram mais.

Há muito tempo, encontrei junto dessa lagoa a filha do Rio,

A bela e jovem Goldberry, sentada nos juncos.

Doce era o seu cantar, então, e o seu coração batia!

 

Abriu os olhos e fitou-os, com uma súbita cintilação azul no olhar.

E foi uma sorte para vocês, pois agora não voltarei

a afastar-me muito ao longo da água da floresta

enquanto o ano for velho. Nem passarei de novo

pela casa do velho salgueiro-homem nesta época,

até chegar a alegre Primavera e a filha do Rio dançar

pelo caminho dos vimeiros abaixo, para se banhar na água.

 

Mergulhou de novo no silêncio, mas Frodo não resistiu a fazer mais uma pergunta, aquela que mais desejava ver respondida:

- Fale-nos, Mestre, do salgueiro-homem. Que é? Nunca tinha ouvido falar dele.

- Não, não fale! - exclamaram Merry e Pippin, ao mesmo tempo, e endireitaram-se nas cadeiras. - Agora não! Até de manhã, não!

- Têm razão - concordou o velho. - Agora são horas de descansar. Há certas coisas que faz mal ouvir quando o mundo está envolto em sombra. Durmam até à luz matinal, repousem na almofada! Não liguem importância a nenhum ruído nocturno! Não temam nenhum velho salgueiro. - E, ditas tais palavras, apagou o candeeiro, pegou numa vela em cada mão e conduziu-os para fora da sala.

Os colchões e as almofadas eram macios como penugem e os cobertores feitos de lã branca. Mal se tinham deitado nas fofas camas e puxado os leves cobertores, já estavam a dormir.

 

No coração da noite, Frodo teve um sonho sem luz. Depois viu nascer a juvenil Lua, a cuja luz fraca se ergueu à sua frente uma parede de rocha preta rasgada por um arco negro, como um grande portão. Frodo teve a sensação de ser erguido no ar e, ao passar-lhe por cima, verificou que a parede de rocha era um círculo de montes no interior do qual havia uma planície em cujo centro se erguia um pináculo de pedra como uma imensa torre, mas que não fora feito por mãos. No seu cimo erguia-se a figura de um homem. A Lua, ao subir, pareceu deter-se um momento acima da sua cabeça e brilhar-lhe no cabelo branco agitado pelo vento. Da negra planície, em baixo, subiam gritos de vozes cruéis e o uivo de muitos lobos. De súbito, uma sombra com o recorte de umas grandes asas passou através da Lua. O vulto ergueu as mãos, e jorrou uma luz do bastão que empunhava. Uma possante águia desceu e levou-o consigo. As vozes ergueram um coro de queixumes e os lobos uivaram, pesarosos. Ouviu-se um ruído, como se soprasse um vento forte, um ruído de que fazia parte o bater de cascos a galopar, a galopar, a galopar vindos do Leste. «Cavaleiros Negros! », pensou Frodo, ao acordar com o som dos cascos ainda a ecoar-lhe na cabeça. Perguntou a si mesmo se algum vez teria a coragem necessária para abandonar a segurança daquelas paredes de pedra. Ficou imóvel, à escuta, mas o silêncio era total e, por fim, ele virou-se e readormeceu, ou mergulhou em qualquer outro sonho de que não se lembrou mais.

A seu lado, Pippin sonhava agradavelmente; mas qualquer coisa mudou nos seus sonhos, pois ele virou-se e gemeu. De súbito acordou, ou pensou que acordou, e continuou a ouvir, às escuras, o som que perturbara o seu sonho: tip-tap, sqúic: um som como o de ramos a roçar o vento, galhos-dedos a raspar em parede e janela: cric, cric, cric. Perguntou a si mesmo se haveria salgueiros perto da casa. De, repente, teve a horrível sensação de que não estava numa casa vulgar, como as outras, mas sim dentro do salgueiro e a ouvir de novo aquela pavorosa voz seca e cheia de estalidos, que se ria dele. Sentou-se na cama, sentiu as almofadas macias ceder sob as suas mãos e voltou a deitar-se, aliviado. Pareceu-lhe ouvir o eco de palavras: «Não tenham medo de nada! Estejam em paz até de manhã! Não liguem importância a ruídos nocturnos!» Voltou a adormecer.

Foi o som de água a cair que Merry ouviu no seu sono tranquilo: água que corria docemente e depois alastrava, alastrava irresistivelmente a toda a volta da casa, formando um lago escuro e sem margens. Gorgolejava debaixo das paredes e subia, lenta mas seguramente. «Morrerei afogado!», pensou. «A água encontrará o caminho para entrar em casa, e afogar-me-ei.» Teve a impressão de estar num pântano macio e viscoso. Levantou-se, de um pulo, e o seu pé tocou no canto de uma laje dura e fria. Lembrou-se então onde estava, e deitou-se outra vez. Pareceu-lhe ouvir, ou lembrou-se de ter ouvido: «Aqui nada passa por porta ou janela a não ser o luar, a luz das estrelas e o vento que vem do cume do monte.» Um bafozinho de ar suave agitou a cortina. Merry respirou fundo e readormeceu.

Tanto quanto depois se lembrou, Sam dormiu toda a noite num profundo contentamento - se é que as pedras sentem contentamento.

Acordaram, os quatro ao mesmo tempo, quando brilhou a luz matinal. Tom andava pelo quarto, a assobiar como um estorninho. Quando os ouviu mexer, bateu as palmas e gritou: «Trolaró, alegre dó! Meus queridinhos!» Afastou as cortinas amarelas, e os hobbits viram que elas tinham coberto as janelas de ambos os lados do quarto: uma virada para leste e outra para oeste.

Saltaram da cama, refeitos. Frodo correu para a janela do lado leste e deparou-se-lhe uma horta toda orvalhada. Quase esperara ver turfa até às paredes, turfa toda marcada pela impressão de cascos. Na realidade, dificultava-lhe a visão um canteiro de feijoeiros altos, amparados por canas; mas acima deles, longe, distinguia-se o cume cinzento do monte, recortado na claridade nascente. Estava uma manhã pálida: a leste, atrás de nuvens compridas, que lembravam fiapos de lã suja manchados de vermelho nas orlas, havia cintilações de amarelo. O céu prometia chuva, mas a luz alastrava rapidamente e as flores vermelhas dos feijoeiros começavam a brilhar em contraste com as folhas verdes e húmidas.

Pippin espreitou pela janela do lado oeste, e encontrou um lago de névoa. A floresta estava oculta sob o nevoeiro. Era como olhar, de cima, para um tecto de nuvens em declive. Havia uma fenda ou canal onde a névoa se desfazia em muitas plumas e novelos: o vale do Withywindle. O rio descia o monte, à esquerda, e desaparecia nas sombras brancas. Muito perto havia um jardim e uma sebe aparada e, depois, relva cortada, acinzentada e salpicada de gotas de orvalho. Não se via nenhum salgueiro.

- Bons-dias, alegres amigos! - exclamou Tom, ao mesmo tempo que escancarava a janela do lado leste e deixava entrar o ar frio, a cheirar a chuva. - Está-me cá a parecer que o Sol não mostrará muito a cara, hoje. Andei por aí, a saltar nos cumes dos montes, desde que a cinzenta alvorada despontou, a cheirar o vento e o tempo, a erva húmida debaixo dos pés e o céu húmido por cima de mim. Acordei Goldberry, cantando-lhe debaixo da janela, mas descobri que nada acorda os hobbits, de manhãzinha. De noite, a gente pequenina acorda às escuras, mas dorme depois de a luz brilhar! Pim-plim-pilho! Acordem agora, meus alegres amigos! Esqueçam os ruídos nocturnos! Pim-plim-pilho, trolaró, meus queridinhos! Se se despacharem, encontrarão o pequeno-almoço na mesa. Se se atrasarem, encontrarão erva e água da chuva!

Escusado seria dizer que, embora a ameaça de Tom não parecesse muito séria, os hobbits se despacharam e só se levantaram da mesa muito depois e quando ela começava a parecer a modos que vazia. Nem Tom nem Goldberry estiveram presentes. Ouvia-se Tom a cirandar pela casa às voltas na cozinha, a subir e a descer a escada e a cantarolar aqui e ali, no exterior. A sala dava para oeste, por cima

do vale coberto de névoa, e a janela estava aberta. Pingava água beira do telhado. Antes de acabarem de tomar o pequeno-almoço, as nuvens tinham-se unido num tecto ininterrupto e começara a cair, suave mas firmemente, uma chuva cinzenta e vertical. A sua densa cortina velava por completo a floresta.

Enquanto olhavam pela janela, ouviram soar docemente, como se caísse com a chuva do céu, a voz clara de Goldberry, que cantava por cima deles. Poucas palavras conseguiam distinguir, mas mesmo, assim pareceu-lhes evidente que se tratava de uma canção da chuva suave como um aguaceiro num monte seco, uma canção que contava a história de um rio desde a sua nascente, nas terras altas, até ao mar, muito em baixo. Os hobbits escutaram-na, deliciados, e Frodo sentiu o coração feliz e abençoou o generoso tempo que assim adiava a sua partida. A ideia de partir pesara-lhe no espírito desde que acordara; mas agora parecia-lhe que não poderiam sair dali, naquele dia.

O vento mais alto amainou no Oeste, e formaram-se nuvens mais densas e pejadas, que despejaram a sua carga de chuva sobre a cabeças calvas das Colinas. Em toda a volta da casa só se via chuva a cair. Frodo parou junto da porta aberta a observar o carreiro branco, que se transformava num regato de leite e descia, gorgolejante, para o vale. Tom Bombadil surgiu, a correr, da esquina da casa a agitar os braços como se estivesse a afastar a chuva - e, na verdade, quando saltou para o limiar da porta, parecia completamente seco, com excepção das botas, que descalçou e pôs ao canto da chaminé. Depois sentou-se na cadeira maior e pediu aos hobbits que se reunissem à sua volta.

- É o dia da lavagem e da limpeza outonal de Goldberry - disse. - Molhado de mais para hobbits, que assim têm de descansar enquanto podem! É um bom dia para longas histórias, para perguntas e respostas, e, por isso, o Tom vai começar a falar.

Contou-hes então muitas histórias extraordinárias, umas vezes quase como se falasse sozinho e outras fitando-os de repente, com os olhos azuis a brilhar nas órbitas fundas. Frequentemente, a sua voz desatava a cantar e ele levantava-se da cadeira e dançava. Contou-lhes histórias de abelhas e flores, dos costumes das árvores, das estranhas criaturas da floresta, de coisas más e coisas boas, de coisa hostis, de coisas cruéis e coisas generosas e de segredos ocultos debaixo de silvas.

Enquanto o escutavam, os hobbits começaram a compreender vida da floresta independentemente deles próprios, a sentir-se, na realidade, intrusos num lugar onde todas as outras coisas estavam por assim dizer em sua casa. O velho salgueiro entrava constantemente nas histórias de Tom, e Frodo aprendeu assim o suficiente para satisfazer a sua curiosidade - mais até do que o suficiente, pois não eram coisas muito agradáveis. As palavras de Tom desnudavam o coração e os pensamentos das árvores, que muitas vezes eram negros e estranhos cheios de ódio pelas coisas que andavam livres pela terra, a roer, a morder, a partir, a derrubar e a queimar: destruidores e usurpadores. Não era sem razão que chamavam àquela a Floresta Velha; era mesmo muito velha, uma sobrevivente de imensas florestas esquecidas, e nela ainda viviam, sem envelhecer mais depressa do que os montes, os pais dos pais das árvores, recordando o tempo em que tinham sido senhores. Os anos incontáveis, haviam-nas enchido de orgulho, sabedoria enraizada e maldade. Mas não havia nenhuma mais perigosa do que o Grande Salgueiro: tinha o coração podre, mas a sua força estava viva e ele era astuto, senhor dos ventos, e o seu canto e o seu pensamento percorriam as matas de ambos os lados do rio. O seu espírito sedento arrancava força da terra e alastrava como finas raízes, no solo, e galhos-dedos invisíveis, no ar, até dominar quase todas as árvores da floresta, desde a Vedação às Colinas.

De súbito, a conversa de Tom abandonou as florestas e saltitou pelo jovem rio acima, sobre borbulhantes cascatas, seixos e rochas gastas, por entre pequenas flores, relva densa e fendas húmidas, até chegar, finalmente, às Colinas. Ouviram-no então falar das Grandes Antas e de montes verdes, de anéis de pedra nos montes e nos vales entre os montes. Baliam ovelhas em rebanhos. Erguiam-se paredes verdes e paredes brancas. Havia fortalezas nas alturas. Reis de pequenos reinos lutavam entre si e o jovem Sol brilhava como fogo no metal vermelho das suas espadas novas e ávidas. Havia vitória e derrota, ruíam torres, ardiam fortalezas e subiam chamas ao céu. Havia ouro empilhado nos túmulos de reis e rainhas mortas: túmulos cobertos por montes, túmulos cujas portas de pedra estavam fechadas e onde a erva crescia e tapava tudo. Os rebanhos apareciam uns tempos, a tasquinhar a erva, mas os montes não tardavam a ficar de novos desertos. Vinha uma sombra de lugares escuros, muito distantes, e os ossos agitavam-se nos túmulos. Criaturas das antas caminhavam nos lugares desertos, acompanhadas por um tilintar de anéis em dedos frios e de correntes de ouro no vento. Círculos de pedra sorriam no chão, como dentes partidos ao luar.

Os hobbits sentiram calafrios. Até no Shire se ouvira falar das criaturas das antas e das colinas das antas, para lá da floresta. Mas não eram histórias que os Hobbits gostassem de ouvir, nem mesmo ao confortável calor de uma lareira, a grande distância. Aqueles quatro lembraram-se, de repente, do que a alegria daquela casa expulsara do seu espírito: a casa de Tom Bombadil estava aninhada no sopé desses temíveis montes! Perderam o fio ao que ele contava e mexeram-se pouco à vontade, a olhar de soslaio uns para os outros.

Quando voltaram a prestar atenção às suas palavras, descobriram que ele mudara de novo de assunto e errava agora por estranhas regiões fora do alcance da memória e dos pensamentos vigilantes deles, por tempos em que o mundo era mais vasto e os mares corriam direitos para a costa ocidental. E Tom recuou ainda mais, perdeu-se a cantar na luz de estrelas antigas, quando só os antepassados dos Elfos estavam despertos. Nisto calou-se, e os hobbits viram que cabeceava, como se estivesse a adormecer. Continuaram imóveis diante dele, fascinados. Dir-se-ia que, sob o encantamento das suas palavras, o vento partira, as nuvens tinham secado, o dia findara, a escuridão viera de leste e oeste e todo o céu estava coalhado estrelas brancas.

Frodo não saberia dizer se tinham passado a manhã e a tarde de um dia ou de muitos dias. Não sentia fome nem cansaço; estava apenas maravilhado. As estrelas brilhavam através da janela e o silêncio do céu parecia envolvê-lo. Por fim falou, levado pelo maravilhamento que sentia e por um medo súbito daquele silêncio:

- Quem é o senhor? - perguntou.

- O quê? - Tom endireitou-se e os seus olhos brilharam na penumbra. - Ainda não sabes o meu nome? Essa é a única resposta. Diz-me: quem és, sozinho, tu mesmo e sem nome?... Ah, mas tu és jovem e eu sou velho! O Mais Velho, eis o que sou. Fixem as minhas palavras, amigos: Tom estava aqui antes do rio e das árvores; Tom lembra-se do primeiro pingo de chuva e da primeira glande. Abriu caminho antes da Gente Grande e viu chegar a Gente Pequena. Estava aqui antes dos reis, dos túmulos e das criaturas das antas. Quando os Elfos passaram para ocidente, Tom já aqui estava, antes de os mares serem desviados. Conhecia a escuridão debaixo das estrelas, antes de ela ser destemida.... antes de o Senhor das Trevas vir do Exterior.

Pareceu passar uma sombra pela janela, e os hobbits olharam, apressadamente para os vidros. Quando desviaram o olhar, Goldberry estava à porta, atrás, envolta em luz. Segurava uma vela, cuja chama protegia com a mão, e a luz atravessava-a, como a claridade do sol atravessa uma concha branca.

- A chuva parou - anunciou -, e águas novas correm pela encosta abaixo, sob as estrelas. Vamos rir e estar contentes!

- E vamos também comer e beber! - gritou Tom. - As histórias compridas fazem sede, e ouvir durante muito tempo, de manhã ao meio-dia e à noite, é trabalho que faz fome!

Saltou da cadeira e, de um pulo, tirou uma vela da prateleira da chaminé e acendeu-a na que Goldberry segurava. Depois dançou à volta da mesa e, de súbito, saltou para a porta e desapareceu.

Voltou sem demora, com um grande tabuleiro carregado. Depois, Tom e Goldberry puseram a mesa e os hobbits sentaram-se, meio encantados, meio risonhos, tão bela era a graça de Goldberry e tão alegres e estranhas as cabriolas de Tom. No entanto, singularmente, pareciam ambos entregues à mesma dança, sem que um estorvasse o outro a entrar na sala e a sair da sala e às voltas em redor da mesa. Com grande rapidez, dispuseram a comida, os pratos e as luzes. A mesa cintilava, iluminada por inúmeras velas brancas e amarelas. Tom fez uma vénia aos seus convidados, e Goldberry disse:

- O jantar está servido.

Foi então que os hobbits repararam que ela estava toda vestida de prata e usava um cinto branco e sapatos que pareciam de rede de pesca. Mas Tom estava todo de azul-lavado, azul como miosótis lavados pela chuva, e calçava peúgas verdes.

 

Foi um jantar ainda melhor do que o anterior. Sob o encantamento das palavras de Tom, os hobbits seriam capazes de passar sem uma ou várias refeições, mas, com a comida à frente, tiveram a impressão de que jejuavam havia pelo menos uma semana. Durante um bocado, não cantaram nem sequer falaram muito, todos atentos

ao que faziam. Mas, depois, os corações e os ânimos sentiram-se de novo fortes e as vozes vibraram, em palavras de alegria e risos.

Depois de comerem, Goldberry cantou-lhes muitas canções, que começavam alegremente nos montes e se esvaíam suavemente em silêncio. Nesses momentos de silêncio, eles viam mentalmente lagoas e rios mais largos do que quaisquer seus conhecidos e, ao olharem-nos, viam o céu neles reflectidos e as estrelas a brilhar como pedras preciosas no abismo. Em seguida, ele despediu-se novamente deles, um por um, e deixou-os à lareira. Mas, entretanto, Tom pareceu ter acordado por completo, e não lhes deu tréguas com perguntas.

Parecia saber já muito a respeito deles e das suas famílias, e até mesmo de toda a história e dos feitos do Shire, desde tempos que os próprios hobbits já mal recordavam. Mas isso já os não surpreendia. Aliás, não lhes escondeu que devia os seus recentes conhecimentos, em grande parte, ao lavrador Lagarta, que dava a impressão de considerar uma pessoa mais importante do que eles imaginavam.

- Há terra debaixo dos seus velhos pés e barro nos seus dedos, tem sabedoria nos ossos e ambos os olhos abertos - afirmou Tom.

Tornou-se também evidente que Tom tinha entendimento com os Elfos e que, fosse como fosse, lhe tinham chegado notícias de Gildor a respeito da fuga de Frodo.

Na verdade, Tom sabia tanto e as suas perguntas eram tão astuciosas, que Frodo deu consigo a dizer-lhe, acerca de Bilbo e das suas próprias esperanças e temores, mais do que dissera até mesmo a Gandalf. Tom acenou com a cabeça, e os seus olhos brilharam quando ouviu falar dos Cavaleiros.

- Mostre-me o precioso anel! - pediu, de súbito, no meio da conversa, e Frodo, para seu próprio espanto, tirou a corrente algibeira, desprendeu o anel e estendeu-o logo a Tom.

Pareceu tornar-se maior, durante o momento em que permaneceu na sua grande mão de pele acastanhada. De repente, levou-o a um olho e riu-se. Pelo espaço de um segundo, os hobbits tiveram a visão simultaneamente cómica e alarmante do seu vivo olho azul a cintilar através de um círculo de ouro. Depois, Tom enfiou o anel na ponta do dedo pequenino e aproximou-o da luz da vela. Nos primeiros instantes, os hobbits não notaram nada de estranho em tal gesto. De repente, porém, ficaram boquiabertos, sem respirar: não havia qualquer indício de que Tom fosse desaparecer!

Tom riu-se de novo, atirou o anel ao ar e ele desapareceu num clarão. Frodo soltou um grito e Tom inclinou-se e entregou-lho, a sorrir.

Frodo observou o anel atentamente e com grande desconfiança (como alguém que emprestou uma jóia a um ilusionista). Era, ou parecia ser, o mesmo anel e tinha o mesmo peso - o anel parecera-lhe sempre estranhamente pesado na mão. No entanto, houve qualquer coisa que o instigou a certificar-se. Talvez se sentisse um bocadinho aborrecido com Tom por ligar tão pouca importância ao que até Gandalf considerava tão perigosamente importante. Aguardou uma oportunidade e, quando Tom estava a contar uma história absurda acerca de texugos e dos seus hábitos, enfiou o anel no dedo.

Merry virou-se para ele, a fim de dizer qualquer coisa, e estremeceu e conteve uma exclamação. Frodo sentiu-se encantado (de certo modo): era realmente o seu anel, pois Merry olhava estupidamente para a sua cadeira e era evidente que não o via. Levantou-se e afastou-se sorrateiramente da lareira, na direcção da porta de comunicação com o exterior.

- Eh, lá! - gritou Tom, a olhar para ele com ar de quem o estava a ver muito bem. - Anda para aqui, Frodo! Para onde ias tu? O velho Tom Bombadil ainda não está assim tão cego. Tira o anel de ouro, anda! A tua mão fica mais bonita sem ele. Anda, deixa-te de brincadeiras e senta-te a meu lado. Precisamos de conversar mais um bocado e de pensar no que se fará de manhã. O Tom tem de lhes ensinar o caminho certo e de evitar que os pés dos seus amiguinhos de desviem dele.

Frodo riu-se (a esforçar-se por parecer satisfeito), tirou o anel e sentou-se de novo. Tom disse-lhes então calcular que o Sol brilharia no dia seguinte, a manhã estaria bonita e havia esperanças de poderem partir. Mas seria conveniente porem-se a caminho cedo, pois o tempo naquela região era uma coisa de que nem ele, Tom, podia estar certo e que às vezes mudava mais depressa do que ele trocava de casaco.

- Não sou nenhum mestre do tempo, assim como o não é nenhuma criatura de duas pernas.

De acordo com o seu conselho, decidiram rumar quase a norte, a partir da sua casa, pelas encostas ocidentais e inferiores das Colinas: desse modo podiam ter esperança de alcançar a Estrada de Leste ao fim de um dia de viagem e evitar as antas. Recomendou-lhes que não tivessem medo, mas que se metessem só na sua vida e mais nada.

- Não saiam da erva verde. Não se vão intrometer com pedra velha e criaturas frias nem bisbilhotar nas suas casas, a não ser que sejam gente forte, com corações que nunca hesitam!

Repetiu a advertência mais de uma vez e aconselhou-os a passarem as antas pelo lado ocidental, se por acaso se desencaminhassem perto de alguma. Depois ensinou-lhes uns versos que deveriam cantar se, por pouca sorte, se vissem em perigo ou necessidade no dia seguinte:

Hô, Tom Bombadil, Tom Bombadillo!

Através de água, mata e monte, junco e salgueiro,

Através de fogo, Sol e Lua, presta atenção e escuta!

Vem, Tom Bombadil, que a necessidade aperta!

 

Depois de cantarem os versos com ele, Tom deu uma palmada nas costas a cada um, a rir, pegou em duas velas e conduziu-os ao quarto.

 

NEVOEIRO NAS COLINAS DAS ANTAS

Nessa noite não ouviram ruídos. Mas, fosse em sonhos ou não, - não saberia dizê-lo _, Frodo ouviu um cantar doce na sua mente uma canção que parecia chegar como uma luz pálida atrás de uma cortina cinzenta de chuva, tornar-se mais forte para transformar a cortina em vidro e prata e, por fim, afastá-la e revelar a seus olhos, inundado pela luz do Sol nascente, um país verde e distante.

A visão confundiu-se com o despertar. Tom estava no quarto, a assobiar como uma árvore cheia de pássaros e o Sol já descia o monte e entrava pela janela aberta. Lá fora, estava tudo verde e ouro-pálido.

Depois do pequeno-almoço, que voltaram a comer sozinhos, prepararam-se para as despedidas, com o coração tão pesado quanto era possível numa manhã daquelas: fresca, luminosa e limpa sob o céu outonal azul e lavado. Soprava uma brisa fresca do noroeste. Os póneis, habitualmente sossegados, mostravam-se quase travessos e irrequietos. Tom saiu de casa, acenou com o chapéu e dançou no limiar, enquanto recomendava aos hobbits que se pusessem a caminho e andassem depressa.

Seguiram por um carreiro que partia, sinuoso, de trás da casa e ia subindo na direcção do extremo norte do cume do monte, sob o qual desaparecia. Tinham acabado de desmontar, para conduzirem os póneis pelas rédeas na última ladeira íngreme, quando Frodo parou, subitamente.

- Goldberry! - exclamou. - Minha linda senhora, toda vestida de verde-prata! Não nos despedimos dela nem a voltámos a ver desde ontem à noite!

Ficou tão angustiado, que se virou para trás - mas nesse momento veio, de cima, um chamamento cristalino. Ela estava de pé na orla do monte e fazia-lhes sinal. O cabelo esvoaçava-lhe, solto, e brilhava e reluzia, quando captava o sol. Debaixo dos pés, enquanto dançava, saía-lhe uma luz que parecia de água em erva orvalhada.

Subiram apressadamente o resto da encosta e pararam, ofegantes, ao lado dela. Curvaram-se, mas, com um gesto ela mandou-os olhar em redor. Eles obedeceram, e viram, do cume do monte, as terras banhadas da luz da manhã. Agora, o seu raio visual abarcava grandes lonjuras e estava tudo tão claro quanto estivera velado e nebuloso quando tinham parado no alto do cabeço da floresta, que viam dali erguer-se, pálido e verde, das árvores escuras, a ocidente. Nessa direcção, a terra subia em serranias arborizadas, verdes, amarelas e cor de ferrugem sob o sol, e para lá delas ficava, oculto, o vale do Brandevinho. A sul, na linha do Withywindle, distinguia-se uma cintilação distante, como de vidro pálido, no ponto onde o rio Brandevinho descrevia uma grande curva nas terras baixas e continuava a correr, para regiões desconhecidas dos hobbits. A norte, depois das colinas que iam minguando, a terra seguia em planícies e elevações cinzentas, verdes e de tons pálidos de solo, até desaparecer numa distância inexpressiva e sombria. A leste erguiam-se as Colinas das Antas, espinhaço após espinhaço, e desapareciam numa incógnita - ou talvez numa mera sugestão de azul e de um remoto brilho branco a confundir-se com a orla do céu, mas numa sugestão que lhes falava, do fundo da memória e de lendas antigas, de altas e distantes montanhas.

Aspiraram um grande hausto de ar e tiveram a sensação de que uma escorregadela e algumas grandes passadas os levariam aonde quer que desejassem. Pareceu-lhes sinal de pusilanimidade seguirem aos trancos e solavancos pelas acidentadas orlas das colinas, na direcção da Estrada, quando poderiam saltar, vigorosos e alegres como Tom, pelos degraus dos montes, a direito, na direcção das montanhas.

Goldberry falou-lhes e apoderou-se de novo dos seus olhos e dos seus pensamentos:

- Apressem-se agora, gentis convidados! E mantenham-se firmes nos vossos propósitos! Para norte com o vento no olho esquerdo e uma bênção nos passos! Apressem-se enquanto o sol brilha! - E acrescentou, dirigindo-se a Frodo: - Adeus, amigo dos Elfos. Foi um alegre encontro!

Mas Frodo não encontrou palavras para lhe responder. Curvou-se profundamente, montou o pónei e, seguido pelos amigos, meteu num trote lento pela suave encosta do monte abaixo, do outro lado. A casa de Tom Bombadil, o vale e a floresta deixaram de se ver. O ar tornou-se mais quente, entre as paredes verdes de encosta e encosta, e a fragrância da turfa começou a subir do solo, forte e agradável, enquanto respiravam. Quando chegaram ao fundo do vale verde, olharam para trás, e viram Goldberry, agora pequenina e delgada como uma flor banhada de sol recortada no céu: estava parada a olhá-los e tinha as mãos estendidas para eles. Quando olharam, soltou um grito cristalino, levantou uma das mãos virou-se e desapareceu atrás do monte.

O caminho serpenteava ao longo do fundo do vale, contornava o sopé verde de um monte íngreme para outro vale mais fundo e mais largo, depois subia os contrafortes de outros montes, descia-lhes as longas encostas, subia-lhes de novo os flancos lisos e continuava sempre para novos cumes e novos vales. Não havia nenhuma árvore nem qualquer água visível: era uma região de erva e turfa baixa e elástica, onde só se ouvia o murmúrio do ar e o piar alto e solitário de estranhas aves. À medida que avançavam, o Sol subia e a temperatura aumentava. Cada vez que subiam uma encosta parecia-lhes que a brisa diminuía. Quando captaram um vislumbre das terras a oeste, a floresta distante pareceu-lhes fumegar, como se a chuva que caíra estivesse a subir de novo, em vapor, das folhas, das raízes e da camada superficial da terra. Agora havia uma sombra para lá do raio de visão, uma névoa escura sobre a qual a camada superior do céu lembrava um barrete azul, quente e pesado.

Cerca do meio-dia chegaram a um monte cujo topo era largo e achatado, do feitio de um pires pouco fundo, com uma borda verde mais alta. No seu interior não soprava nem uma aragem e o céu parecia muito perto das suas cabeças. Atravessaram-no e olharam para norte. O coração animou-se-lhes, pois tiveram a impressão de já haverem avançado mais do que esperavam. Sem dúvida que, entretanto, as distâncias se tinham tornado todas nebulosas e enganosas, mas era evidente que as Colinas estavam a chegar ao fim.

Em baixo estendia-se um vale comprido, que serpenteava para norte até chegar a uma abertura entre dois contrafortes íngremes. Depois disso, parecia não haver mais montes. Na direcção norte, descortinaram vagamente uma comprida linha escura.

- É uma série de árvores - disse Merry - e deve assinalar a Estrada. Há árvores em toda a sua extensão, ao longo de muitas léguas a leste da ponte. Há quem diga que foram plantadas nos tempos antigos.

- Esplêndido! - exclamou Frodo. - Se avançarmos tão bem esta tarde como avançámos esta manhã, deixaremos as Colinas para trás antes de o Sol se pôr e procuraremos onde acampar.

Mas, enquanto falava, olhou para leste, e viu que os montes desse lado eram mais elevados, todos eles coroados de montículos verdes e alguns com pedras espetadas, a apontar para cima como dentes irregulares encravados em gengivas verdes.

O espectáculo pareceu-lhes um tanto ou quanto perturbador, e por isso desviaram o olhar e desceram para o círculo côncavo. No centro erguia-se uma única pedra alta, sob o fulgor do sol , sem projectar nenhuma sombra, àquela hora. Era informe e, apesar disso, significativa - como um marco, um indicativo de direcção, ou melhor: uma advertência, um aviso. Mas eles tinham fome e o Sol ainda estava no tranquilizador meio-dia; por isso, apoiaram as costas no lado da pedra virado para leste. Estava fria, como se o sol não tivesse força para a aquecer, mas naquela altura isso até lhes pareceu agradável. Ali comeram e beberam e se regalaram com um almoço ao ar livre tão bom quanto alguém poderia desejar, pois a comida vinha lá de baixo». Tom fornecera-lhes o suficiente para um bom passadio, naquele dia. Os póneis, libertos do peso, andavam pela erva.

 

O subir e o descer dos montes, a barriga bem cheia, o sol quente e o cheiro da turfa amoleceram-nos; deixaram-se ficar no ripanço um pouco mais do que deveriam, de pernas estendidas e a olhar para o céu... Enfim, essas coisas talvez bastassem para explicar o que aconteceu. Enfim, talvez. O certo é que acordaram súbita e desconfortavelmente de um sono que não tinham tido intenção nenhuma de dormir. A pedra estava fria e projectava uma sombra comprida e pálida, que se estendia por cima deles, para leste. O Sol, de um amarelo lívido e deslavado, brilhava através da névoa, mesmo por cima da parte ocidental da depressão onde se encontravam. A norte, sul e leste, para lá da parede, o nevoeiro era denso, frio e branco. O ar estava silencioso, pesado e gelado. Os póneis estavam todos juntos, apertados uns contra os outros, de cabeça baixa.

Os hobbits levantaram-se de um pulo, assustados, e correram para o rebordo ocidental. Descobriram que se encontravam numa ilha, no nevoeiro. Quando olharam, desalentados, para o Sol poente, ele afundou-se diante dos seus olhos num mar branco, e no Leste ergueu-se uma sombra fria e cinzenta. O nevoeiro alastrou até aos rebordos do cume e subiu acima deles, ao mesmo tempo que se dobrava sobre as suas cabeças e formava um tecto: estavam fechados numa cela de névoa cuja coluna central era a pedra perpendicular.

Tiveram a sensação de que uma armadilha se formava à sua volta, mas não perderam por completo o ânimo. Ainda se lembravam da alentadora visão da linha da Estrada, à sua frente, e ainda sabiam em que direcção ficava. De qualquer modo, tinham adquirido uma tão grande antipatia por aquela depressão, à volta da pedra, que não lhes passava pela cabeça permanecer ali. Arrumaram a bagagem o mais depressa que os dedos gelados lhes permitiram.

Pouco depois, conduziam os póneis, em fila indiana, pela comprida encosta virada para norte abaixo, a qual se transformara num mar enevoado. À medida que desciam, a névoa tornava-se mais fria e mais húmida e o cabelo pendia-lhes, mole e a pingar, para a testa. Quando chegaram ao fundo, estava tanto frio, que pararam e tiraram das mochilas capas e capuzes, que não tardaram a ficar salpicados de gotas cinzentas. Depois montaram, e voltaram a avançar lentamente, a tactear o caminho pelos altos e baixos do solo. Dirigiam-se, na medida em que lhes era possível calculá-lo, na direcção da abertura em forma de porta, no extremo norte do comprido vale que tinham visto de manhã. Uma vez transposta essa abertura, teriam apenas de seguir mais ou menos em linha recta, pois não poderiam deixar de chegar à Estrada. Os seus pensamentos não iam para além disso - a não ser no tocante à vaga esperança de que talvez não houvesse nevoeiro uma vez deixadas para trás as Colinas.

 

Iam muito devagar. Para evitar que se separassem e seguissem em direcções diferentes, continuavam em fila indiana, com Frodo à frente. Sam ia atrás dele, depois ia Pippin e por fim Merry. O vale parecia nunca mais acabar. De súbito, Frodo viu um sinal que lhe pareceu auspicioso. Em frente, de ambos os lados, começava a emergir do nevoeiro uma escuridão, e ele calculou que estavam, finalmente, a aproximar-se da abertura nos montes, da porta norte das Colinas das Antas. Se conseguissem transpô-la, estariam livres.

- Venham! Sigam-me! - gritou por cima do ombro, e obrigou a montada a apressar-se.

A sua esperança, porém, não tardou a transformar-se em perplexidade e alarme. As sombras escuras escureceram ainda mais, mas minguaram: de súbito, viu erguerem-se ominosamente à sua frente, ligeiramente inclinadas uma para a outra como as sombreiras de uma porta sem padieira, duas enormes pedras verticais. Não se lembrava de ter visto qualquer sinal delas no vale, quando olhara do cimo do monte, de manhã. Passou pelo meio delas, quase sem se dar conta, e, acto contínuo, a escuridão envolveu-o. O seu pónei empinou-se e relinchou, e ele caiu. Quando olhou para trás, verificou que estava só: os outros não o tinham seguido.

- Sam! - chamou. - Pippin! Merry! Venham! Por que não me seguiram?

Não obteve resposta. O medo apoderou-se dele e fê-lo voltar para trás e passar de novo pelo meio das pedras, a gritar desesperadamente:

- Sam! Sam! Merry! Pippin!

O pónei lançou-se desvairado, no nevoeiro, e desapareceu. Frodo julgou ouvir um grito, vindo de longe: «Eh, Frodo, eh!» Vinha de longe do lado leste, da sua esquerda, enquanto, parado sob as grandes pedras, ele forçava a vista, para tentar ver alguma coisa nas trevas. Desatou a correr na direcção do chamamento, e deu consigo a subir uma encosta íngreme.

Foi chamando de novo, cada vez mais desesperado, à medida que subia com dificuldade. Mas durante algum tempo não ouviu qualquer resposta, e quando, por fim, ouviu alguma coisa, a voz pareceu-lhe fraca e vindo muito de cima: «Frodo, eh!», chamavam as vozes através da névoa. Seguiu-se um grito que lhe pareceu Socorro I Socorro!, que se repetiu muitas vezes e terminou num derradeiro Socorro!, o qual se transformou num longo lamento bruscamente interrompido. Continuou a avançar aos tropeções, o mais depressa que lhe era possível, na direcção donde tinham vindo os gritos. Mas a luz desaparecera e a noite cerrara-se à sua volta, de modo que lhe era impossível ter a certeza da direcção que seguia. Só tinha a sensação de que não parava de subir.

A mudança do nível do solo, a seus pés, foi a única coisa que lhe disse que chegara, finalmente, ao cimo de um contraforte ou de um monte. Estava cansado e, apesar de enregelado, a transpirar. A escuridão era completa.

- Onde estão? - gritou, desvairado.

 

Não ouviu nenhuma resposta, mas continuou à escuta. Do súbito, apercebeu-se de que estava muito frio e começava a soprar um vento gelado. O tempo estava a mudar. A neblina passava-lhe pela frente em fiapos e farrapos, a sua respiração condensava-se e a escuridão parecia menos próxima e menos densa. Levantou a cabeça, e viu, surpreendido, que começavam a aparecer estrelas pálidas, no meio dos farrapos de nuvens e névoa que continuavam a passar, apressados. O vento começou a assobiar na erva.

Pareceu-lhe, de súbito, ouvir um grito abafado, e correu na sua direcção. No mesmo instante, a névoa deu a impressão de ser rasgada, e o céu estrelado ficou a descoberto. Um olhar em redor mostrou-lhe que se encontrava voltado para sul, no cimo redondo de um monte que devia ter subido vindo de norte. O vento cortante soprava do leste. À sua direita erguia-se, recortada no céu estrelado, uma sombra negra: uma grande anta.

- Onde estão? - gritou de novo, ao mesmo tempo furioso e assustado.

- Aqui! - respondeu uma voz profunda e fria, que parecia sair do chão. - Estou à tua espera!

- Não! - gritou Frodo, mas não fugiu.

Os seus joelhos cederam e ele caiu. Não aconteceu nada nem se ouviu nenhum som. Todo trémulo, olhou para cima a tempo de ver uma figura negra, como uma sombra, inclinar-se para ele. Pareceu-lhe ver dois olhos muito frios, apesar de iluminados por uma luz pálida que dava a impressão de vir de muito longe. Depois agarrou-o algo mais frio e mais forte do que o aço. O contacto gélido enregelou-lhe os ossos e não teve consciência de mais nada.

Quando voltou a si, por instantes não conseguiu recordar-se de nada, a não ser de uma sensação de pavor. De repente, porém, compreendeu que estava aprisionado, irremediavelmente apanhado: encontrava-se numa anta. Um espectro das antas apoderara-se dele, e provavelmente já se encontrava sob os terríveis encantamentos dos espectros das antas, acerca dos quais corriam histórias que se contavam em voz muito baixa. Não se atreveu a mexer-se, e deixou-se ficar como estava: estendido de costas numa pedra fria e com as mãos no peito.

Mas, apesar de o seu medo ser tão grande que parecia parte integrante da própria escuridão que o cercava, deu consigo a pensar em Bilbo Baggins e nas suas histórias, nos passeios que davam juntos pelas alamedas do Shire, a falar de estradas e aventuras. Há uma semente de coragem oculta (muitas vezes profundamente, é verdade) no coração do mais gordo e mais tímido dos hobbits, à espera que um perigo derradeiro e desesperado a faça germinar. Frodo não era nem muito gordo nem muito tímido; na realidade, e embora ele o ignorasse, Bilbo (e Gandalf também) considerara-o o melhor hobbit do Shire. Pensou que chegara ao fim da sua aventura - e um fim terrível, por sinal -, mas esse pensamento endureceu-o. Retesou-se, como para um salto final, e deixou de se sentir inerte como uma presa indefesa.

Enquanto, deitado, pensava e tentava dominar-se, reparou, de repente, que a escuridão estava a dissipar-se, lentamente: aumentava à sua volta uma luz esverdeada e pálida. Ao princípio, não lhe permitiu ver em que género de lugar se encontrava, pois a luz parecia sair dele próprio e do solo a seu lado e ainda não chegara ao tecto nem à parede. Virou-se, e, na luminosidade fria, viu, deitados a seu lado, Sam, Pippin e Merry. Estavam de costas e tinham os rostos mortalmente pálidos. Reparou também que estavam vestidos de branco. À volta deles viam-se muitos tesouros, porventura de ouro, embora àquela luz parecessem frios e nada atraentes. Tinham pequenas coroas na cabeça, correntes de ouro na cintura e muitos anéis nos dedos. A seu lado jaziam espadas e a seus pés escudos. Mas atravessava-lhes o pescoço uma comprida espada desembainhada.

 

De súbito, soou uma canção, um murmúrio frio que subia e descia. A voz parecia longínqua e incomensuravelmente lúgubre, soando umas vezes finas e como se viesse de muito alto e, outras, como um gemido vindo do chão. Do informe jorro de sons tristes, mas horríveis, formavam-se de vez em quando enfiadas de palavras: palavras tristes, duras e sinistras, cruéis e desgraçadas. A noite injuriava a manhã de que estava privada e o frio amaldiçoava o calor de que estava faminto. Sentiu-se gelado até à medula. Passado um bocado, a canção tornou-se mais clara, e, com o coração apavorado, Frodo percebeu que se transformara num encantamento:

Frios sejam a mão, o coração e o osso,

e frio seja o sono debaixo de pedra:

que nunca mais acordem no leito pétreo,

nunca, até o Sol não nascer e morrer a Lua.

No vento preto as estrelas morrerão,

e aqui permaneçam, imóveis, entre ouro,

até o Senhor das Trevas erguer a mão

sobre o mar sem vida e a terra seca.

 

Ouviu um ruído de estalar e raspar, atrás da cabeça. Soergueu-se num cotovelo e, à luz pálida, viu que se encontravam numa espécie de corredor, que descrevia uma curva atrás deles. Emergindo da curva, um braço comprido, a caminhar com os dedos, avançava para Sam, que estava mais perto, e para o cabo da espada que se encontrava sobre ele.

Ao princípio, Frodo teve a sensação de que o encantamento o transformara realmente em pedra. Mas depois pensou desesperadamente em fugir. Perguntou a si mesmo se, pondo o anel, o espectro das antas o não veria e ele conseguiria descobrir alguma saída. Imaginou-se a correr, livre, sobre a erva, com pena de Merry, Sam e Pippin, sem dúvida, mas livre e vivo. Gandalf concordaria que não poderia ter feito outra coisa...

Mas a coragem que despertara nele tornara-se muito forte, tão forte que lhe não permitia abandonar os amigos com toda aquela facilidade. Hesitou, a tactear na algibeira, e depois lutou de novo contra si mesmo. Entretanto, o braço aproximava-se, sorrateiro. De súbito, a decisão fortaleceu-o. Pegou numa espada curta que se encontrava a seu lado, ajoelhou-se e inclinou-se sobre os corpos dos seus companheiros. Com toda a força de que dispunha, atacou com a espada o braço sorrateiro, junto ao pulso, e a mão separou-se. Ao mesmo tempo, porém, a espada estilhaçou-se até aos copos. Ouviu-se um guincho agudo e a luz dissipou-se. Na escuridão, soou uma espécie de rosnido.

Frodo caiu para a frente, por cima de Merry, e sentiu o rosto do amigo frio. Nisto, no fundo da sua memória, donde desaparecera com o primeiro aparecimento do nevoeiro, despertou a recordação da casa no sopé do monte e de Tom a cantar. Lembrou-se dos versos que Tom lhes ensinara. Em voz fraca e desesperada, começou: Hô, Tom Bombadil, Tom Bombadillo! Bastou pronunciar esse nome para a voz se lhe tornar mais forte, com um tom cheio e vibrante que ecoou

no compartimento escuro como se fora o som de um tambor e trompa.

Hô, Tom Bombadil, Tom Bombadillo!

Através de água, floresta e monte, junco e salgueiro

De fogo, Sol e Lua, presta atenção e escuta!

Vem, Tom Bombadil, que a necessidade aperta!

Seguiu-se um silêncio súbito e profundo, durante o qual Frodo ouviu bater o próprio coração. Após um momento lento e infindável, ouviu claramente, mas distante, como se passasse através do chão ou de paredes grossas, uma voz responder:

O velho, Tom Bombadil é um tipo muito alegre;

O seu casaco é azul-vivo e as suas botas amarelas.

Ainda ninguém o apanhou, pois ele é o mestre:

As suas canções são mais fortes e os seus pés mais rápidos.

 

Ouviu-se um som prolongado e forte, como de pedras a rolar e a cair, e, de súbito, a luz entrou a jorros, luz verdadeira, a clara luz do dia. Uma abertura baixa, semelhante a uma porta, apareceu no fundo da câmara, para lá dos pés de Frodo, e surgiu a cabeça de Tom (de chapéu, pena e tudo), enquadrada contra a luz do Sol que subia, vermelho, atrás dele. A luz incidiu no chão e no rosto dos três hobbits deitados ao lado de Frodo. Eles não se mexeram, mas a cor doentia abandonou-os. Agora pareciam profundamente adormecidos.

Tom baixou-se, tirou o chapéu e entrou na câmara a cantar:

Fora, velho Espectro! Some-te na luz do Sol!

Dissipa-te como a névoa fria, como os ventos que uivam,

nas terras ermas, muito para além das montanhas!

Não voltes aqui, jamais! Deixa vazia a tua anta!

Perdida e esquecida seja, mais escura que a escuridão,

onde as portas estão sempre fechadas,

até o mundo se consertar.

 

Estas palavras provocaram um grito, e parte da extremidade interior da câmara ruiu com fragor. Depois ouviu-se como que um guincho prolongado, que foi emudecendo numa distância impossível de calcular, e seguiu-se o silêncio.

- Vem, amigo Frodo! - disse Tom. - Saiamos para a erva limpa. Tens de me ajudar a transportá-los.

Juntos, levaram Merry, Pippin e Sam para o exterior. Quando saiu da anta pela última vez, Frodo julgou ver uma mão decepada ainda a contorcer-se, como uma aranha ferida, num monte de terra caída. Tom voltou a entrar, e ouviu-se muito pisar e bater de pés. Quando saiu trazia nos braços um grande carrego de objectos valiosos: coisas de ouro, prata, cobre e bronze, muitas contas e cordões e ornamentos cravejados de pedras preciosas. Subiu a anta verde e depositou tudo no topo, à luz do sol.

Parou lá no alto, de chapéu na mão e cabelo ao vento, e olhou para os três hobbits, que tinham sido deitados de costas na erva, do lado ocidental da anta. Depois levantou a mão direita e disse, em voz clara e autoritária:

Acordem agora, alegres moços! Acordem e ouçam-me!

Aqueçam agora, coração e membros! A fria pedra ruiu;

A porta escura está aberta e a mão morta partida.

A noite debaixo da noite findou, a Porta está aberta!

 

Para grande alegria de Frodo, os hobbits mexeram-se, espreguiçaram-se, esfregaram os olhos e, de repente, levantaram-se de um pulo. Olharam, espantados, primeiro para Frodo e depois para Tom, que se encontrava de pé no alto da anta, por cima deles. A seguir olharam para si próprios, envoltos nos seus trapos brancos finos, coroados e cintados de ouro pálido e adornados de jóias que tilintavam.

- Mas que demónio...? - começou Merry, a apalpar a pequena coroa de ouro que lhe tinha descaído para um olho; depois calou-se, o rosto ensombreceu-se-lhe e fechou os olhos. - Claro, já me lembro! Os homens de Carn Dúm atacaram-nos de noite e fomos vencidos. Ah, a lança no meu coração! - Levou a mão ao peito. - Não! Não! - exclamou, e abriu os olhos. - Que estou a dizer? Estive a sonhar. Onde te meteste, Frodo?

- Julguei que me tinha perdido - respondeu-lhe o amigo -, mas não quero falar disso. Pensemos antes no que faremos agora. Vamo-nos daqui!

- Vestidos desta maneira, senhor? - perguntou Sam. - Onde está a minha roupa? - Atirou a pequena coroa, o cinto e os anéis para a erva e olhou tristemente à sua volta, como se esperasse encontrar algures, ali perto, a capa, o casaco, os calções e outras peças de vestuário hobbitiano.

- Não voltarão a encontrar as suas roupas - disse Tom, ao mesmo tempo que saltava da anta e ria e dançava à roda deles, ao sol.

Dir-se-ia, pelo seu comportamento, que não acontecera nada de perigoso ou terrível. E, na verdade, o horror dissipou-se-lhes do coração, quando o olharam e viram a cintilação alegre dos seus olhos.

- Que quer dizer? - perguntou-lhe Pippin, a fitá-lo entre intrigado e divertido. - Por que não voltaremos a encontrá-las?

- Já foi uma sorte encontrarem-se a vocês, livres de tão grande perigo. Roupas são coisa insignificante, quando se escapa e morrer afogado. Contentem-se, alegres amigos, e deixem que sol quente lhes aqueça o coração e os membros! Deitem fora esses os frios! Corram nus na erva, enquanto Tom vai à caça!

Saltou pelo monte abaixo, a assobiar e a cantar. Frodo segui-o, com o olhar e viu-o correr para sul, pelo vale verde entre o monte em que se encontravam e o seguinte. Continuava a assobiar e a cantar:

Eh, lá! Apareçam, andem! Para onde foram?

Para cima, para baixo, perto ou longe, aqui, ali ou acolá?

Peúgas brancas, meu pequenino, e «Tolo Gorducho»!

 

Assim ia cantando, a correr veloz, a atirar o chapéu ao ar e apanhá-lo, até que uma prega do terreno o ocultou. Mas durante algum tempo ainda o seu Eh, lá! continuou a ser transportado pelo vento, que rodara entretanto para sul.

O ar estava a tornar-se de novo muito quente. Os hobbits correram um bocado na erva, como Tom lhes dissera, e depois deitaram-se regaladamente ao sol, com o deleite daqueles que passaram subitamente do Inverno agreste para um clima agradável ou de pessoas que, depois de estarem muito tempo doentes e de cama, acordam uma manhã e descobrem que estão inesperadamente bons e que o dia está de novo cheio de promessas.

Quando Tom voltou, sentiam-se fortes (e esfomeados). Primeiro viram-lhe aparecer o chapéu, na orla do monte, e atrás dele, numa obediente fila indiana, seis póneis: os cinco deles e mais um. O último era, sem dúvida, o Tolo Gorducho: maior, mais forte, mais gordo (e mais velho) do que os póneis deles. Merry, a quem os outros pertenciam, não lhes dera tais nomes, mas os animais passaram a responder aos nomes novos, postos por Tom, até ao resto da sua vida. Tom chamou-os, um por um, e eles subiram para o cimo do monte colocaram-se em fila. Depois, Tom inclinou-se diante dos hobbits.

- Aqui têm os póneis! Eles têm mais juízo (em certos aspectos) do que vocês, hobbits vagabundos! Têm mais discernimento no nariz, pois farejam o perigo, ao passo que vocês se deixam cair nele. E se fogem para se salvar, fazem-no na direcção certa. Devem perdoar-lhes, a todos, pois, embora os seus corações sejam fiéis, não foram feitos para enfrentar o medo que lhes inspiram os Espectros das Antas. Pronto, aqui os têm de novo, com toda a sua carga!

Merry, Sam e Pippin apressaram-se a vestir a roupa que traziam nas mochilas. Mas não tardaram a ficar cheios de calor, pois tinham sido obrigados a vestir alguma da roupa grossa e mais quente, trazida a contar com o Inverno.

- Donde veio aquele outro animal, aquele Tolo Gorducho? - perguntou Frodo.

- É meu - respondeu-lhe Tom. - É o meu amigo de quatro patas, embora eu raramente o monte e ele tenha o hábito de vaguear por aí, em liberdade, pelas encostas. Quando os póneis de vocês ficaram em minha casa, travaram conhecimento com o Tolo Gorducho, e agora cheiraram-no na noite, e foram a correr ter com ele. Pensei que ele os procuraria e, com as suas palavras sensatas, lhes afugentaria o medo. Mas agora, meu velho Tolo, o Tom vai montar-te. Sim, o velho Tom vai com vocês, só para os encaminhar para a estrada. Por isso precisa de um pónei, pois é difícil falar com os hobbits montados quando vamos a pé, a tentar trotar ao lado deles.

Os hobbits ficaram encantados com a notícia, e agradeceram muito a Tom; mas ele riu-se e disse que eles se perdiam com tanta facilidade, que não se sentiria tranquilo enquanto os não visse, sãos e salvos, nas fronteiras da sua terra.

- Tenho que fazer - declarou. - O meu trabalho e as minhas cantigas, o meu conversar e o meu andar e a minha vigilância da região. O Tom não pode estar sempre à mão para abrir portas e fendas de salgueiros. O Tom tem de tratar da sua casa, e Goldberry está à espera.

 

Ainda era relativamente cedo, pelo Sol - entre as nove e as dez -, e os hobbits começaram a pensar em comer. A sua última refeição tinha sido o almoço, junto da pedra erecta, no dia anterior. Tomaram, por isso, o pequeno-almoço, que constou do resto das provisões de Tom e se destinara ao jantar da véspera, acrescido de outras coisas que Tom trouxera. Não foi uma grande refeição (tendo em consideração que eram hobbits e as circunstâncias), mas mesmo assim sentiram-se muito melhor. Enquanto eles comiam, Tom subiu à anta e passou em revista as jóias. Com a maioria fez um montinho, que cintilou e brilhou na erva. Ordenou-lhes que ficassem ali «para quem as encontrasse: aves, animais, elfos ou homens e todas as criaturas bondosas», pois assim o encantamento do monte quebrar-se-ia e espalhar-se-ia e nenhum espectro lá voltaria, nunca mais. Escolheu para si do montinho, um broche com pedras azuis de muitas tonalidades como as flores do linho ou as asas das borboletas azuis. Olhou-o demoradamente, como que perturbado por qualquer recordação, a abanar a cabeça. Por fim disse:

- Aqui está um bonito brinquedo para o Tom e para a sua dama! Bela foi aquela que, há muito tempo, usou isto no ombro. Goldberry usá-lo-á agora e não a esqueceremos!

Para cada hobbit escolheu um punhal comprido em forma de folha e aguçado, de maravilhosa feitura e lavrado com formas de serpentes vermelhas e douradas. Cintilaram quando os tirou das bainhas pretas, de um estranho metal leve e resistente, adornado de pedras rutilantes. Fosse por qualquer virtude inerente às bainhas, fosse devido ao encantamento lançado sobre aquela anta, as lâminas não tinham sofrido os efeitos do tempo, não apresentavam ferrugem nem qualquer deterioração e cintilavam ao sol, aguçadas.

- Facas antigas são suficientemente compridas para servirem de espadas a hobbits - declarou Tom. - É bom ter lâminas afiadas, quando gente do Shire viaja para leste, sul ou para longe, para as trevas e para o perigo.

Depois disse-lhes terem sido aquelas lâminas forjadas, havia muitos anos, por homens da Ocidentalidade: eram inimigos do Senhor das Trevas, mas tinham sido vencidos pelo rei maldito de Carn Dúm, na Terra de Angmar.

- Poucos agora se recordam deles - murmurou Tom -, mas alguns ainda erram por aí, filhos de reis esquecidos caminhando na solidão, a proteger de coisas más pessoas imprudentes.

Os hobbits não compreenderam as suas palavras, mas, enquanto ele falava, tiveram a visão de uma grande distância de anos atrás deles, qual imensa e sombria planície sobre a qual erravam formas de homens, altos e severos, armados de espadas reluzentes, até que apareceu um com uma estrela na testa. A visão dissipou-se, então, e voltaram a encontrar-se no mundo isolado de sol. Chegara o momento de partirem de novo. Trataram dos preparativos, arrumaram as mochilas e carregaram os póneis. Suspenderam as novas armas dos cintos de cabedal, debaixo dos casacos. Achavam-nas muito incómodas, e perguntavam a si mesmos se viriam a ter alguma utilidade. O combate ainda não acudira ao espírito de nenhum deles como uma das aventuras em que a sua fuga poderia lançá-los.

Partiram, por fim. Conduziram os póneis pelas rédeas, pelo monte abaixo, e em seguida montaram e trotaram rapidamente pelo vale fora. Olharam para trás, e viram o cimo da antiga anta do monte, da qual os reflexos do sol no ouro subiam como uma chama amarela. Depois contornaram um contraforte das Dunas, que ocultou o monte.

Embora Frodo olhasse para todos os lados, não viu qualquer sinal das grandes pedras colocadas verticalmente como as ombreiras de uma porta. Pouco depois, chegaram à abertura do lado norte, transpuseram-na rapidamente e a terra começou a descer à sua frente. Foi uma viagem agradável, com Tom Bombadil a trotar alegremente ao lado ou à frente deles, montado no Tolo Gorducho, que era muito mais veloz do que o seu bojo parecia prometer. Tom passou a maior parte do tempo a cantar, mas eram quase todas canções sem sentido ou então, talvez, numa língua estranha, desconhecida dos hobbits, numa língua antiga cujas palavras exprimiam principalmente maravilhamento e deleite.

Avançaram com boa velocidade, mas não tardaram a aperceber-se de que a Estrada ficava mais longe do que tinham imaginado. Mesmo sem o nevoeiro, o seu sono do meio dia tê-los-ia impedido de a alcançar antes do anoitecer do dia anterior. A linha escura que tinham visto não era uma enfiada de árvores, mas sim uma enfiada de arbustos que cresciam à beira de uma vala funda, com uma parede íngreme do lado oposto. Tom disse que tinha sido a fronteira de um reino, havia já muito tempo. Pareceu lembrar-se de qualquer coisa triste relacionada com ela, e pouco mais acrescentou.

Desceram a vala e saíram por uma abertura na parede, e depois Tom virou para norte, pois tinham estado a seguir um pouco para ocidente. O terreno tornou-se descampado e relativamente plano, e eles apressaram os póneis, mas o Sol já estava baixo quando viram finalmente uma enfiada de árvores, à sua frente, e compreenderam que tinham voltado à cidade, após muitas e inesperadas aventuras. Meteram as montadas a galope, nos últimos centos de metros, e pararam, debaixo da sombra comprida das árvores. Estavam no cimo de um aterro em declive e a Estrada, que a aproximação do crepúsculo obscurecia, serpenteava, lá em baixo. Naquele ponto corria quase de sudoeste para noroeste e, à direita deles, descia, rápida, para uma larga depressão. Estava sulcada e apresentava muitos vestígios das recentes chuvas fortes. Havia poças e valetas cheias de água.

Desceram o barranco e olharam para cima e para baixo. Não se via nada.

- Bem, cá estamos de novo, finalmente! - exclamou Frodo. - Suponho que não perdemos mais de dois dias, com o meu atalho pela floresta! Mas talvez o atraso ainda venha a ser útil, talvez os tenha despistado.

Os outros olharam-no. A sombra do medo dos Cavaleiros Negros abateu-se de novo sobre eles. Desde que tinham entrado na floresta haviam pensado principalmente em regressar a Estrada, e só agora, quando voltavam a pisá-la, se lembravam do perigo que os perseguia e, provavelmente, estaria de tocaia à sua espera, na própria Estrada. Olharam ansiosamente para trás, na direcção do Poente, o caminho apresentou-se-lhes castanho e deserto.

- Acham - perguntou Pippin, hesitante -, acham que podemos ser perseguidos esta noite?

- Esta noite espero que não - respondeu-lhe Tom Bombadil. - Nem talvez amanhã. Mas não confiem nos meus cálculos, pois não posso afirmá-lo com certeza. Lá para leste, o meu conhecimento chega. Tom não controla os cavaleiros da Terra Negra, que ficam para além desta região.

Mesmo assim, os hobbits tiveram pena de que ele os não acompanhasse. Tinham a sensação de que, se havia alguém capaz de lidar com os Cavaleiros Negros, esse alguém era ele. Em breve seguiriam para terras que lhes eram inteiramente desconhecidas, a não ser por muito vagas e remotas lendas do Shire, e, no crepúsculo que se adensava, tiveram saudades de casa. Apoderara-se deles uma profunda solidão e um sentimento de terem perdido qualquer coisa. Mantiveram-se silenciosos, relutantes em fazer as despedidas finais, e só com dificuldades tomaram consciência de que Tom lhes estava a desejar boa viagem e a recomendar que tivessem ânimo e cavalgassem sem parar até escurecer.

- Tom dá-lhes bons conselhos até ao fim deste dia (depois, a própria sorte terá de os acompanhar e guiar): a cerca de seis quilómetros e meio daqui encontrarão uma aldeia: Bree-sob-o-monte Bree, cujas portas dão para oeste. Aí encontrarão uma velha estalagem chamada O Garrano Empinado. O digno estalajadeiro chama-se Cervejeiro Carrapiço. Podem lá passar a noite e porem-se de manhã a caminho. Sejam ousados, mas cautelosos! Mantenham o coração alegre e vão ao encontro da fortuna!

Rogaram-lhe que os acompanhasse pelo menos até à estalagem e bebesse uma última vez com eles. Mas ele riu-se e recusou, alegando:

A região do Tom acaba aqui: ele não transporá a fronteira

Tom tem de tratar da sua casa, e Goldberry está à espera!

Depois virou-se, atirou o chapéu ao ar, saltou para o lombo do Tolo, subiu o barranco e desapareceu, a cantar na penumbra.

Os hobbits subiram a ladeira e observaram-no até deixarem de o ver.

- Tenho pena de deixar o Mestre Bombadil - disse Sam. Não há dúvida que é um homem extraordinário. Acho que andaremos muito mais sem encontrar nenhum melhor... nem mais estranho. Não nego, no entanto, que terei prazer em ver esse Garrano Empinado de que ele falou. Espero que seja como O Dragão Verde da nossa terra! Que tipo de gente é a de Bree?

- Em Bree há hobbits, assim como gente grande - respondeu Merry. - Creio que nos vamos sentir um pouco como na nossa terra. O Garrano é uma boa estalagem, em todos os aspectos. Os meus vão até lá, de vez em quando.

- Poderá ser tudo quanto desejarmos - observou Frodo -, mas, de qualquer modo, está fora do Shire. Evitem sentir-se demasiado em casa e, por favor, lembrem-se todos que o nome Baggins NÃO deve ser mencionado. Se for necessário utilizar algum nome, sou o Sr. Underhill.

Montaram e partiram silenciosamente. A escuridão chegou depressa, enquanto avançavam lentamente, ora a descer, ora a subir, até verem finalmente luzes a brilhar a alguma distância.

À frente deles erguia-se o monte Bree, como que a barrar o caminho: uma massa negra contra as estrelas enevoadas. Sob o flanco ocidental da elevação aninhava-se uma grande aldeia. Seguiram nessa direcção, apressados, espicaçados pelo desejo de encontrarem uma lareira e uma porta entre eles e a noite.

 

A TABULETA DO GARRANO EMPINADO

Bree era a principal aldeia da Breelândia, uma pequena região habitada, como uma ilha nas terras desertas que a cercavam. Além de Bree propriamente dita havia Staddle do outro lado do monte; Combe, num vale fundo, um pouco mais para leste, e Archet, na orla de Chetwood. À volta do monte Bree e das aldeias havia uma pequena área de campos e matas não selvagens, apenas com alguns quilómetros de largura.

Os Homens de Bree tinham cabelo castanho e ombros largos, eram baixos, alegres e independentes: não pertenciam a ninguém além de a si próprios, mas mostravam mais cordialidade e familiaridade com hobbits, anões, elfos e outros habitantes do mundo que os rodeava do que era (ou é) habitual da parte da Gente Grande. Segundo as suas próprias lendas, eram os habitantes primitivos e os descendentes dos primeiros homens que tinham chegado ao Ocidente vindos do mundo médio. Poucos tinham sobrevivido às convulsões dos Tempos Antigos, mas, quando os reis voltaram, pelo Grande Mar, encontraram os Homens de Bree ainda na Breelândia, e lá continuavam agora, quando a recordação dos antigos reis já se desvanecera.

Nesses tempos, nenhuns outros homens se tinham instalado tão a ocidente nem num raio de cem léguas do Shire. Mas pelas terras selvagens que ficavam para lá de Bree passavam misteriosos viajantes. Os Breenses chamavam-lhes Caminhantes e não sabiam nada quanto à sua origem. Eram mais altos e mais escuros do que os Homens de Bree e supunha-se que possuíam estranhos poderes de visão e audição, além da faculdade de compreender a língua dos animais e das aves. Vagueavam à vontade para sul e para leste, chegando mesmo até às Montanhas Nebulosas, mas agora eram poucos e raramente se viam. Quando apareciam, traziam notícias de longe e contavam histórias estranhas e esquecidas que eram avidamente escutadas. Mas os Breenses não travavam amizade com eles.

Também havia na Breelândia muitas famílias de hobbits, que por sua vez alegavam constituírem a mais antiga colónia de hobbits do mundo, fundada muito antes, até, de o Brandevinho ser atravessado e o Shire colonizado. Viviam principalmente em Staddle, embora houvesse alguns na própria Bree, nas vertentes superiores do monte, por cima das casas dos homens. A Gente Grande e a Gente Pequena, como mutuamente se tratavam, davam-se amigavelmente, tratando cada grupo da sua vida à sua própria maneira e considerando-se, justamente, partes integrantes e necessárias do povo breense. Em nenhuma outra parte do mundo se encontrava este entendimento peculiar (mas excelente).

O povo breense, tanto o grande como o pequeno, não viajava muito, e os assuntos das quatro aldeias constituíam o seu principal interesse. Ocasionalmente, os hobbits de Bree iam até à Bucklândia, ou ao Farthing Oriental; mas, embora a sua pequena terra não ficasse a muito mais de um dia de viagem de pónei para leste da Ponte de Brandevinho, os hobbits do Shire raramente a visitavam. De vez em quando, um bucklandês ou um Took aventureiro iam até à estalagem passar uma noite ou duas, mas mesmo isso estava a tornar-se cada vez mais raro. Os Hobbits do Shire referiam-se aos de Bree, e a quaisquer outros que viviam além-fronteiras, como «gente de fora» e interessavam-se muito pouco por eles, consideravam-nos enfadonhos e grosseiros. Provavelmente, no entanto, havia nesse tempo muito mais gente de fora espalhada pelo Ocidente do mundo do que o povo do Shire imaginava. Alguns não eram, sem dúvida, mais do que vagabundos, capazes de abrir um buraco em qualquer aterro e demorar-se lá apenas enquanto lhes conviesse; mas na Breelândia, pelo menos, os hobbits eram decentes e prósperos e não eram mais rústicos do que a maioria dos seus parentes afastados do interior. Ainda não se esquecera o facto de, em tempos, ter havido muitas idas e vindas entre o Shire e Bree. Segundo tudo indicava, os Brandybucks tinham sangue breense.

 

A aldeia de Bree tinha umas cem casas de pedra da Gente Grande, principalmente acima da Estrada, alcandoradas na encosta e com janelas viradas para ocidente. Desse lado, formando mais do que um semicírculo que partia do monte e terminava no monte, havia um fosso fundo com uma sebe densa, do lado de dentro. A Estrada passava-lhe por cima, por um passadiço, mas no ponto onde atravessava a sebe barrava-a uma grande porta. Havia outra porta do lado sul, onde a Estrada saía da aldeia. As portas fechavam-se ao cair da noite, mas do lado de dentro havia pequenas casas para os guardas.

Na estrada no ponto onde ela virava para a direita a fim de contornar o sopé do monte, havia uma grande estalagem que tinha sido construída há muito tempo, quando o trânsito nas estradas era muito maior. É que Bree ficava num antigo cruzamento de caminhos. Outra estrada antiga atravessava a Estrada de Leste logo à saída do fosso, do lado ocidental da aldeia, e, em tempos idos, homens e outras pessoas de várias espécies tinham viajado muito por ela. Estranho como notícias de Bree ainda era um dito do Farthing Oriental e provinha desse tempo em que se podiam saber notícias do Norte, do Sul e do Leste na estalagem, aonde os Hobbits do Shire iam com mais frequência, para as ouvir. Mas as Terras Setentrionais tinham-se tornado desoladas havia muito, e a Estrada do Norte raramente era utilizada: a erva invadira-a e os Breenses chamavam-lhe Caminho Verde.

No entanto, a Estalagem de Bree continuava a existir e o estalajadeiro era uma pessoa importante. A sua casa era ponto de encontro dos habitantes ociosos, faladores e curiosos, tanto grandes como pequenos e provenientes das quatro aldeias. Era também um ponto de paragem de caminhantes e outros viajantes (principalmente anões) que ainda viajavam pela Estrada de Leste, de e para as montanhas.

 

Estava escuro, e brilhavam estrelas brancas no céu, quando Frodo e os companheiros chegaram finalmente ao cruzamento do Caminho Verde e se aproximaram da aldeia. Quando chegaram à porta do lado ocidental, encontraram-na fechada, mas viram um homem sentado à porta da casinha do guarda, que ficava logo a seguir. O homem levantou-se, apressado, foi buscar uma lanterna e olhou-os, surpreendido.

- Que querem e donde vêm? - perguntou, com maus modos.

- Dirigimo-nos para a estalagem daqui - respondeu-lhes Frodo. - Viajamos para leste e não podemos ir mais longe esta noite.

- Hobbits! Quatro hobbits! E, ainda por cima, do Shire, a julgar pelo modo como falam - disse o guarda, baixinho, como se falasse consigo próprio.

Fitou-os um momento, carrancudo, e depois abriu vagarosamente a porta e deixou-os entrar.

- Raramente vemos gente do Shire andar pela estrada de noite - prosseguiu, quando eles pararam um instante à sua porta. - Desculparão, por isso, a minha curiosidade quanto ao que poderia levá-los para leste de Bree. Se permitem a pergunta, como se chamam?

- Os nosso nomes e os nossos negócios só a nós dizem respeito e este não nos parece o lugar adequado para os discutir - redarguiu-lhe Frodo, a quem não agradava o aspecto nem o tom da voz do indivíduo.

- Os vossos negócios são da vossa conta, sem dúvida; mas a mim compete-me fazer perguntas depois de anoitecer.

- Somos hobbits da Bucklândia e gostamos de viajar e de ficar na estalagem cá da terra - disse-lhe Merry. - Eu sou o Sr. Brandybuck. Chega-lhe? Os Breenses costumavam ser agradáveis com os viajantes, ou pelo menos assim me constava.

- Pronto, pronto! - exclamou o homem. - Não quis ofender. Mas verificarão, com certeza, que não será só o velho Harry da porta a fazer-lhes perguntas. Está por aí gente estranha. Se forem para O Garrano, verão que não são os únicos hóspedes da estalagem.

Desejou-lhes uma boa noite e eles não disseram mais nada; mas Frodo viu, à luz da lanterna, que o homem ainda os estava a observar, cheio de curiosidade. Foi com prazer que ouviu a porta fechar-se nas costas deles, quando se afastaram. Perguntou a si mesmo por que razão se mostrara o homem tão desconfiado e se teria andado alguém a pedir notícias de um grupo de hobbits. Teria sido Gandalf? Era possível que tivesse chegado, enquanto eles se demoravam na floresta e nas colinas. No entanto, notara no olhar e na voz do guarda um não-sei-quê que o deixara inquieto.

O homem seguiu-os um momento com o olhar e depois voltou para casa. Mal virou as costas, um vulto escuro saltou rapidamente por cima da porta e dissolveu-se nas sombras da rua da aldeia.

 

Os hobbits subiram uma ladeira suave, passaram por algumas casas isoladas e pararam defronte da estalagem. As casas pareceram-lhes grandes e estranhas. Sam olhou para os três andares e para as muitas janelas da estalagem e sentiu o coração desfalecer-lhe. Imaginara que, num ou noutro ponto da viagem, conheceria gigantes mais altos do que árvores e outras criaturas ainda mais aterradoras; mas naquele momento achava que o seu primeiro contacto com os homens e com as suas casas altas era suficiente - era até de mais - como fim sinistro de um dia estafante. Imaginou cavalos pretos, selados e prontos, nas sombras do pátio da estalagem e Cavaleiros Negros a espreitar das janelas às escuras do último andar.

- Não vamos, com certeza, passar aqui a noite, pois não? - perguntou a Frodo. - Se há hobbits por estes lados, por que não procuramos algum que esteja disposto a acolher-nos? Sentir-nos-íamos mais à nossa vontade.

- Mas que mal tem a estalagem? - admirou-se Frodo. - Tom Bombadil recomendou-a. Espero que lá dentro seja acolhedora e nos sintamos à vontade.

Até mesmo do exterior, a estalagem parecia uma casa agradável a olhos com ela familiarizados. Tinha uma fachada voltada para a Estrada e duas alas que se prolongavam para trás, em terreno parcialmente recuperado às vertentes inferiores do monte, de modo que as janelas do primeiro andar ficavam ao nível do solo. Havia um grande arco de acesso a um pátio situado entre as duas alas e, do lado esquerdo, debaixo do arco, uma porta grande, com alguns degraus largos. A porta estava aberta, e coava-se por ela a luz do interior. Por cima do arco havia um candeeiro e, por baixo, uma grande tabuleta com um pónei branco e gordo, todo empinado. Por cima da porta lia-se, em letras brancas: O GARRANO EMPINADO, de CERVEJEIRO CARRAPIÇO. Filtrava-se luz pelas cortinas espessas de muitas das janelas mais baixas.

Enquanto hesitavam na penumbra exterior, alguém começou a cantar uma canção alegre, no interior, à qual fizeram coro, ruidosamente, muitas vozes bem dispostas. Os hobbits escutaram, um momento, o som encorajador, e depois desmontaram. A canção terminou no meio de uma tempestade de risos e palmas.

Conduziram os póneis para debaixo do arco, deixaram-nos no pátio e subiram os degraus da porta. Frodo entrou e quase chocou com um homem baixo e gordo, de cabeça calva e cara avermelhada. Tinha posto um avental branco e saía atarefado de uma porta, a caminho de outra, com uma bandeja cheia de canecas transbordantes.

- Podemos... - começou Frodo.

- Só meio minutinho, se faz favor! - gritou o homem, por cima do ombro, e desapareceu numa babel de vozes e numa nuvem de fumo. Não tardou a sair, a limpar as mãos ao avental.

- Boas-noites, patrãozinho! - cumprimentou, com uma grande vénia. - Que deseja, hem?

- Camas para quatro e estábulo para cinco póneis, se puder ser. É o Sr. Carrapiço?

- Exactamente. Chamo-me Cervejeiro, Cervejeiro Carrapiço às suas ordens. - São do Shire, hem? - De repente, deu uma palmada na testa, como se tentasse lembrar-se de qualquer coisa. - Hobbits! - exclamou. - Que me lembra isso?... Permite que lhe pergunte como se chamam?

- O Sr. Took, o Sr. Brandybuck e Sam Gamgee. O meu nome é Underhill.

- Esta agora! - exclamou o Sr. Carrapiço, a estalar os dedos. Escapou-se-me de novo. Mas hei-de lembrar-me, quando tiver tempo para pensar. Nem sinto os pés... Verei o que posso fazer pelos senhores. Hoje em dia, raramente recebemos grupos do Shire, e eu teria muita pena se os não pudesse acomodar devidamente. Mas há muito tempo que não tínhamos cá tanta gente como hoje. Como costumamos dizer em Bree, chove pouco, mas quando chove é a cântaros. Eh, Cachola! - gritou. - Onde estás, molengão de pés peludos? Cachola!

- Lá vou patrão, lá vou!

Um hobbit de rosto risonho saiu aos pulinhos de uma porta e, ao ver os viajantes, estacou e fitou-os com grande interesse.

- Onde está o Bob? - perguntou-lhe o estalajadeiro. - Não sabes? Nesse caso, procura-o! E depressinha! Não tenho seis pernas nem seis olhos! Diz ao Bob que estão lá fora cinco póneis que precisam de ser recolhidos e tratados. Ele que arranje espaço seja lá como for.

Cachola piscou o olho e afastou-se, sorridente.

- Que ia eu dizer? - perguntou o Sr. Carrapiço, a bater de novo na testa. - Uma coisa faz esquecer outra, por assim dizer ... Estou tão atarefado, esta noite, que sinto a cabeça à roda. Está aí um grupo que veio do sul, pelo Caminho Verde, a noite passada... e isso já é muito estranho, para começar. Esta noite também chegou um grupo de anões viajantes, que vão para ocidente. E agora os senhores. Se não fossem hobbits, duvido que pudesse acolhê-los. Mas temos um ou dois quartos na ala norte que foram feitos especialmente para hobbits, quando a estalagem foi construída. No rés-do-chão, como eles geralmente preferem, com janelas redondas e tudo a seu gosto. Espero que fiquem confortavelmente instalados. Querem jantar, com certeza? Será o mais depressa que for possível. Por aqui, por favor.

Conduziu-os por um corredor fora e abriu uma porta.

- Aqui têm uma salinha acolhedora! Espero que lhes agrade. Agora desculpem-me, tenho tanto que fazer, que não me sobra tempo para conversar. Tenho de ir andando... É trabalho duro para duas pernas, mas não emagreço. Voltarei cá, mais tarde. Se precisarem de alguma coisa, toquem a campainha, e o Cachola virá. Se não vier logo, toquem e gritem!

Saiu, finalmente, e deixou-os um pouco ofegantes. Parecia ter fôlego para falar interminavelmente, por muito atarefado que estivesse. Encontravam-se numa sala pequena e acolhedora. A lareira estava acesa e, uma mesa redonda, já com uma toalha branca e uma campainha no meio. Mas Cachola, o criado hobbit, apareceu muito antes de eles pensarem tocar a campainha para o chamar. Trazia velas e um tabuleiro cheio de pratos.

- Os patrões desejam beber alguma coisa? - perguntou. - Querem que lhes mostre os quartos, enquanto se prepara o jantar?

Já se tinham lavado e iam a meio de uma boa caneca de cerveja, cada um, quando o Sr. Carrapiço e Cachola reapareceram. A mesa ficou posta e servida num abrir e fechar de olhos: sopa quente, carnes frias, uma tarte de amoras, cacetes de pão fresco, pedaços de manteiga e meio queijo curado. Comida boa e simples, tão boa como poderiam encontrar no Shire e suficientemente caseira para expulsar os últimos receios de Sam (já muito aliviado com a excelência da cerveja).

O estalajadeiro demorou-se um bocado e depois fez menção de sair.

- Não sei se desejam juntar-se à restante clientela, depois do jantar - disse, parado à porta. - Talvez prefiram ir para a cama... No entanto, os outros gostariam muito de lhes dar as boas-vindas, se os senhores desejassem. É raro recebermos gente de fora... perdão, devia dizer viajantes do Shire... e gostamos de saber notícias ou alguma história ou canção que saibam de cor... Mas só se estiverem com disposição, claro! Toquem a campainha, se precisarem de alguma coisa.

Sentiram-se tão refeitos e encorajados, depois do jantar (cerca de três quartos de hora a comer, sem interrupção de conversas desnecessárias), que Frodo, Pippin e Sam decidiram juntar-se aos outros clientes. Merry alegou que devia estar muito abafado:

- Vou ficar aqui um bocado, tranquilamente sentado à lareira, e depois talvez saia para apanhar um pouco de ar. Tenham tento na língua e não esqueçam que fogem em segredo e ainda estão na estrada e não muito longe do Shire!

_ Está bem! - respondeu-lhe Pippin. - Tem cuidado contigo. Não te percas e não te esqueças de que cá dentro é mais seguro!

A clientela estava na grande sala comum da estalagem. Compunha-se de muita e variada gente, como Frodo descobriu quando os seus olhos se habituaram à luz. Esta provinha principalmente de um grande lume de lenha, pois os três candeeiros suspensos das traves do tecto davam uma luz muito fraca e estavam meio velados pelo fumo. Cervejeiro Carrapiço estava de pé junto da chaminé, a conversar com dois anões e um ou dois homens de aspecto estranho. Ocupavam os bancos pessoas de vários tipos: homens de Bree, um grupo de hobbits locais (sentados em grupo, a tagarelar) mais alguns anões e outros vultos vagos, difíceis de identificar entre as sombras e aos cantos.

Assim que os hobbits do Shire entraram, ouviu-se um coro de boas-vindas da parte dos breenses. Os desconhecidos, em especial os que tinham subido o Caminho Verde, olharam-nos com curiosidade. O estalajadeiro apresentou os recém-chegados aos breenses tão depressa, que, embora aqueles ouvissem muitos nomes, raras vezes tiveram a certeza dos respectivos donos. Os homens de Bree pareciam ter todos nomes muito botânicos (e para os shirenses assaz peculiares), como Juncoso, Barba de Bode, Dedos de Urze, Maçã Reineta, Penugem de Cardo e Fetoso (para não mencionar o Carrapiço). Alguns dos hobbits tinham nomes similares. Os Artemisas, por exemplo, pareciam ser numerosos. Mas a maioria tinha nomes naturais como Aterro, Casa de Texugo, Buraco Comprido, Carrega Areia e Tuneleiro, muitos deles também usados no Shire. Havia vários Underhills de Staddle e, como não podiam conceber que se compartilhasse um apelido sem se ser aparentado, acolheram Frodo no coração como um primo havia muito perdido.

Os hobbits de Bree eram realmente, cordiais e curiosos, e Frodo não tardou a aperceber-se de que teria de dar uma explicação qualquer do que andava a fazer. Deu a entender que se interessava por História e Geografia (o que provocou muito acenar de cabeça, embora as duas palavras não fossem muito usadas no dialecto breense). Acrescentou que pensava escrever um livro (o que originou um espanto mudo) e que ele e os amigos pretendiam coligir informações acerca de hobbits que viviam fora do Shire, em especial nas terras de leste.

A explicação provocou um coro de vozes. Se Frodo quisesse realmente escrever um livro e tivesse muitos ouvidos teria aprendido o suficiente para vários capítulos em poucos minutos. E, se isso não bastasse, poderia dispor de uma lista completa de nomes, começando «aqui pelo velho Carrapiço», aos quais poderia recorrer para obter mais informações. Mas, passado um bocado, como Frodo não evidenciasse nenhum indício de ir escrever o livro ali mesmo, os hobbits voltaram às suas perguntas acerca do que se passava no Shire. Frodo não se mostrou muito comunicativo, e, por isso, não tardou a encontrar-se sozinho a um canto, a escutar e a olhar à sua volta.

Os homens e os anões falavam principalmente de acontecimentos distantes e transmitiam notícias de uma espécie que estava a tornar-se demasiado corrente. Havia complicações no Sul e parecia que os homens que tinham vindo pelo Caminho Verde haviam deixado as suas terras e procuravam outras onde pudessem encontrar alguma paz. Os Breenses mostraram-se compreensivos, sem no entanto parecerem muito interessados em acolher um grande número de estranhos na sua pequena terra. Um dos viajantes, um indivíduo vesgo e pouco favorecido pela natureza previa que, num futuro próximo, cada vez mais gente viria para norte: «Se não se arranjar espaço para eles, eles próprios tratarão de o arranjar. Têm o direito de viver, tanto como as outras pessoas», afirmou, em voz muito alta. Os habitantes da terra não pareceram muito satisfeitos com a perspectiva.

Os hobbits não prestavam grande atenção a tudo aquilo, tanto mais que por enquanto, parecia não lhes dizer respeito. A Gente Grande dificilmente poderia pedir que a deixassem instalar-se nos buracos dos hobbits. Estavam mais interessados em Sam e Pippin, que já se sentiam completamente à vontade e tagarelavam alegremente acerca de assuntos do Shire. Pippin provocou grandes gargalhadas ao relatar a queda do telhado do Buraco Municipal de Michel Delving: Will Pé Alvo, o prefeito e o hobbit mais gordo do Farthing Ocidental, tinha ficado soterrado em caliça e saído das ruínas como um sonho salpicado de farinha. No entanto, fizeram-se algumas perguntas que inquietaram um pouco Frodo. Um dos breenses, que parecia ter estado diversas vezes no Shire, quis saber onde residiam os Underhill e com quem eram aparentados.

De súbito, Frodo apercebeu-se de que um homem de aspecto estranho e tisnado pelo tempo, que se encontrava entre as sombras, perto da parede, também escutava com toda a atenção a conversados hobbits. Tinha uma caneca alta à frente e fumava um cachimbo comprido, curiosamente entalhado. Tinha as pernas estendidas à sua frente, a mostrar as botas altas de couro macio, que lhe assentavam bem, mas tinham muito uso e estavam cobertas de lama seca. Envolvia-o uma capa de tecido grosso, verde-escuro, suja da viagem, e, apesar do calor da sala, tinha na cabeça um capuz que lhe semiocultava o rosto - embora não conseguisse diminuir o brilho dos olhos que observavam os hobbits.

- Quem é aquele? - perguntou Frodo, quando teve ensejo de falar baixinho ao Sr. Carrapiço. - Parece que não o apresentou...

- Aquele? - repetiu o estalajadeiro, também em voz baixa, com uma sobrancelha arqueada e sem voltar a cabeça. - Não sei, ao certo. É um desses indivíduos errantes ... um dos Caminhantes, como nós lhes chamamos. Fala pouco, a não ser para contar uma bela história, quando lhe dá a veneta. Desaparece durante um mês, ou um ano, e depois reaparece de repente. Na última Primavera chegou e partiu com muita frequência, mas ultimamente não o tenho visto muito. Nunca soube qual é o seu verdadeiro nome, mas aqui é conhecido por Passo de Gigante. Anda em grandes passadas, com aquelas pernas altas, embora não diga a ninguém por que tem tanta pressa. Mas com o Leste e o Oeste nunca se sabe, como dizemos em Bree referindo-nos aos Caminhantes e aos Shirenses, com sua licença. É engraçado que tenha perguntado quem ele é...

Mas, nesse momento, o Sr. Carrapiço teve de ir servir mais cerveja, e a sua última observação ficou por explicar.

Frodo descobriu que Passo de Gigante estava a olhar para ele, como se tivesse ouvido ou adivinhado o que diziam. Pouco depois, com um aceno de mão e um inclinar de cabeça, convidou Frodo a sentar-se a seu lado. Quando o hobbit se aproximou, puxou o capuz para trás e mostrou uma cabeça desgrenhada, de cabelo escuro com algumas cãs, e um par de vivos olhos cinzentos no rosto pálido e severo.

- Chamam-me Passo de Gigante- apresentou-se, em voz baixa. - Muito gosto em conhecê-lo, Sr.... Underhill, se o velho Carrapiço não se enganou ao repetir o seu nome.

- Não se enganou, não - respondeu Frodo, rigidamente; não se sentia nada à vontade sob a observação daqueles olhos vivos.

- Bem, Sr. Underhill, no seu lugar, impediria os seus jovens amigos de falarem demasiado. A bebida, o aconchego da lareira e os conhecimentos de acaso são coisas agradáveis, sem dúvida, mas... enfim, isto não e o Shire. Estão por aí pessoas peculiares. Embora não devesse ser eu a dizê-lo, como talvez esteja a pensar - acrescentou, com um leve sorriso dúbio, ao ver o olhar de Frodo. - E ultimamente têm passado por Bree viajantes ainda mais estranhos - disse ainda, a fitar o interlocutor.

Frodo sustentou-lhe o olhar, mas não disse nada, e Passo de Gigante também não adiantou mais. A sua atenção pareceu fixar-se, subitamente, em Pippin. Alarmado, Frodo apercebeu-se de que o ridículo jovem Took, encorajado pelo êxito que obtivera a contar a história do gordo prefeito de Michel Delving, estava a apresentar a versão cómica da festa de despedida de Bilbo. Naquele momento, ia já no discurso e aproximava-se do surpreendente desaparecimento. Frodo ficou aborrecido. Era uma história inofensiva para a maioria dos hobbits locais, sem dúvida: não passava de uma narrativa engraçada a respeito daquela gente cómica que vivia para lá do rio; mas alguns (o velho Carrapiço, por exemplo) sabiam uma coisa ou duas e provavelmente tinham ouvido boatos, havia muito tempo, acerca do desaparecimento de Bilbo. A história recordar-lhes-ia o apelido de Baggins, sobretudo se tinham andado a fazer perguntas, em Bree, a respeito desse nome.

Frodo ficou desassossegado, sem saber o que fazer. Era evidente que Pippin estava a gostar muito da atenção que lhe prestavam e se esquecera por completo do perigo que corriam. Frodo receou, subitamente, que naquele espírito o amigo fosse até capaz de aludir ao anel, o que seria desastroso.

- Aconselho-o a fazer qualquer coisa depressa - murmurou-lhe Passo de Gigante ao ouvido.

Frodo levantou-se, saltou para cima de uma mesa e começou a falar, o que distraiu a atenção dos ouvintes de Pippin. Alguns hobbits olharam para Frodo e riram-se e bateram palmas, a pensar que o Sr. Underhill também já bebera a sua conta de cerveja.

Frodo sentiu-se, de súbito, muito idiota e (como costumava acontecer-lhe quando discursava) deu consigo a apalpar as coisas que tinha na algibeira. Tocou no anel, preso pela corrente, e, inesperadamente, apoderou-se de si o desejo de o enfiar no dedo e livrar-se assim daquela estúpida situação. Teve a impressão de que a ideia lhe foi sugerida do exterior, por alguém ou qualquer coisa que se encontrava na sala. Resistiu firmemente à tentação e apertou o anel na mão, como se quisesse dominá-lo e impedi-lo de fugir ou fazer alguma maldade. De qualquer modo, não lhe deu nenhuma inspiração. Proferiu «algumas palavras adequadas», como teriam dito no Shire: Sentimo-nos todos muito lisonjeados com a amabilidade do vosso acolhimento e atrevo-me a esperar que a minha breve visita ajude a reatar os antigos laços de amizade entre o Shire e Bree. Depois hesitou e tossiu.

Todos os presentes estavam agora com os olhos nele.

- Uma canção! - Gritou um dos hobbits. - Uma canção! Uma canção - gritaram os outros todos. - Vamos, senhor, cante-nos qualquer coisa que ainda não tenhamos ouvido!

Por momentos, Frodo ficou de boca aberta. Depois, em desespero de causa, começou a cantar uma canção ridícula de que Bilbo gostara muito (e de que até se orgulhara, pois era ele próprio o autor da letra). Falava de uma estalagem, e deve ter sido por esse motivo que acudiu à memória de Frodo naquela altura. Aqui se transcreve na íntegra, embora hoje já só se recordem, geralmente, algumas palavras:

Há uma estalagem, uma velha e alegre estalagem,

no sopé de um velho monte cinzento,

Onde fazem uma cerveja tão castanha

Que até o Homem da Lua veio cá abaixo,

uma noite, para beber até se fartar.

O estalajadeiro tem um gato beberrão

que toca uma rabeca de cinco cordas

E anda com o arco para baixo e para cima,

Ora num lamento agudo, ora num doce ronronar,

ora como se serrasse a rabeca ao meio.

 

O estalajadeiro tem um cãozinho

que gosta que se farta de piadas;

Quando há alegria entre os fregueses

Arrebita uma orelha a cada dichote

e ri, ri, até sufocar.

 

Também têm uma vaca cornuda,

altiva como qualquer rainha,

À qual a música embriaga como cerveja

E faz agitar a cauda empenachada

e dançar, dançar, na relva.

 

E - oh! - as rimas de pratos de prata

e os montes de colheres de prata!

Para o domingo têm um par especial,

A que dão brilho com todo o cuidado

nas tardes de sábado.

 

O Homem da Lua bebia, bebia, bebia,

e o gato começou a tocar;

Na mesa, a colher e o prato dançaram,

No jardim a vaca requebrou-se loucamente

e o cãozinho correu atrás da cauda.

 

O Homem da Lua bebeu outra caneca

e caiu para debaixo da mesa,

Onde adormeceu e sonhou com cerveja

Até no céu as estrelas empalidecerem

e a aurora pairar no ar.

 

Então o estalajadeiro disse ao gato beberrão:

«Os cavalos brancos da Lua relincham

E mordem o freio de prata;

Mas o dono afogou o juízo em cerveja

e o Sol não tardará a nascer.»

 

E vai o gato tocou na rabeca, ai, didle-diidle,

uma jiga capaz de acordar os mortos;

Gemeu, serrou e acelerou o ritmo,

Enquanto o estalajadeiro sacudia o Homem da Lua:

«Já passa das três!», dizia-lhe.

 

Rolaram o homem, devagar, pelo monte acima,

e atiraram-no para a Lua,

Enquanto os cavalos galopavam atrás,

A vaca saltava e pulava como um gamo

e um prato fugia com uma colher.

 

A rabeca tocou mais depressa, diddle-dum-diidle;

o cão começou a rugir,

A vaca e os cavalos fizeram o pino

E os hóspedes saltaram todos da cama

e desataram a dançar.

 

Com um ping! e um pong! as cordas da rabeca partiram-se!

a vaca saltou por cima da Lua,

O cãozinho riu-se de tanta paródia

E o prato de sábado fugiu a correr

com a colher de prata de domingo.

 

A Lua redonda rolou para trás do monte

quando o Sol levantou a cabeça

E mal acreditou nos olhos ígneos,

Pois, para espanto seu, embora fosse dia,

voltaram todos para a cama!

 

Os aplausos foram ruidosos e prolongados. Frodo tinha voz e a canção despertara-lhes fantasia.

- Onde está o velho Cerveja? - gritaram. - Ele tem de ouvir isto! O Bob precisa de ensinar o gato a tocar rabeca, para nós dançarmos. - Pediram mais cerveja e começaram a gritar: - Cante outra vez, senhor! Vá, mais uma vez!

Obrigaram Frodo a tomar outra bebida e depois a cantar de novo desta vez com muitos deles a fazerem coro, pois a melodia era conhecida e eles decoravam depressa os versos. Agora era Frodo quem se sentia todo satisfeito consigo próprio. Pulou em cima da mesa e, quando chegou pela segunda vez a vaca saltou por cima da Lua, saltou também. Com demasiado vigor, porém, pois aterrou - bang! - numa bandeja cheia de canecas, escorregou e caiu da mesa abaixo: pum, catrapum, pum! Escancararam todos a boca, para rir, mas ficaram com ela aberta e silenciosos, pois o cantor desaparecera. Desaparecera pura e simplesmente, como se tivesse sido engolido pelo chão sem deixar um buraco!

Os hobbits locais ficaram a olhar, espantados, e depois levantaram-se e gritaram por Carrapiço. O grupo todo afastou-se de Pippin e Sam, que deram consigo sozinhos a um canto, e ficou a olhá-los carrancuda e desconfiadamente, de longe. Era evidente que muitos deles os consideravam, agora, como companheiros de um mágico ambulante de poderes e intenções desconhecidos. Houve, no entanto, um breense moreno que ficou a olhá-los com uma expressão entendida e meio trocista, que lhes causou muito desconforto. Pouco depois, saiu sorrateiramente, seguido pelo sulista vesgo: os dois tinham cochichado muito um com o outro, ao longo do serão. Harry, o guarda da porta, também saiu, logo atrás deles.

Frodo sentiu-se um idiota. Sem saber que mais fazer, gatinhou por baixo das mesas para o canto escuro onde Passo de Gigante permanecia impassível, sem denunciar os seus pensamentos. Encostou-se à parede e tirou o anel. Mesmo que quisesse, não saberia dizer como lhe fora parar ao dedo. Supunha apenas que estivera a mexer-lhe na algibeira, enquanto cantava, e que ele lhe entrara no dedo quando estendera impulsiva e subitamente a mão, para evitar cair. Por momentos, perguntou a si mesmo se o anel lhe não teria pregado nenhuma partida; talvez tivesse querido revelar a sua presença, resposta a qualquer desejo ou ordem vindo da sala. Não agradava nada a Frodo o aspecto dos homens que tinham saído.

- Então? - perguntou-lhe Passo de Gigante, quando ele reapareceu. - Por que fez aquilo? Foi pior do que tudo quanto os seus amigos poderiam ter dito! Meteu o pé na argola ... ou deverei dizer que meteu o dedo?

- Não sei o que quer dizer - redarguiu Frodo, aborrecido e alarmado.

- Oh, sabe, sim! - afirmou Passo de Gigante. - Mas acho melhor esperarmos que o alarido se dissipe. Depois, se quiser fazer-me esse favor, desejo falar tranquilamente consigo, Sr. Baggins.

- A respeito de quê? - perguntou Frodo, e ignorou o uso inesperado do seu verdadeiro apelido.

- A respeito de um assunto de certa importância para... ambos - respondeu Passo de Gigante, a fitá-lo nos olhos. - Talvez ouça alguma coisa que lhe seja proveitosa.

- Muito bem - concordou Frodo, a esforçar-se por parecer despreocupado. - Falarei consigo mais tarde.

 

Entretanto, travava-se discussão junto da lareira. O Sr. Carrapiço acorrera às corridinhas e estava a tentar ouvir as várias versões discordantes ao mesmo tempo.

- Eu vi-o, Sr. Carrapiço - disse um hobbit. - Ou melhor, não o vi, se entende o que quero dizer. Ele sumiu-se, evaporou-se, a modos...

- Não me diga, Sr. Artemisa! - exclamou o estalajadeiro, intrigado.

- Digo, sim! - afirmou Artemisa. - E, mais, falo a sério!

- Deve haver por aí algum equívoco - observou Carrapiço, a abanar a cabeça. - O Sr. Underhill tinha muito volume para se evaporar assim, demais a mais num ar de cortar à faca como o desta sala.

- Então onde está ele agora? - gritaram diversas vozes.

- Como querem que saiba? Tem o direito de ir para onde lhe apetecer, desde que pague de manhã. Olhem, está ali o Sr. Took: esse não se evaporou.

- Bem, eu vi o que vi, e vi o que não vi - afirmou Artemisa, obstinadamente.

- E eu digo que deve ter havido um equívoco qualquer - repetiu Carrapiço, enquanto apanhava a bandeja e juntava os cacos das canecas partidas.

- Claro que há um equívoco! - exclamou Frodo. - Eu não me evaporei coisa nenhuma, estou aqui! Estive a trocar algumas palavras com Passo de Gigante, ali ao canto.

Aproximou-se da luz da lareira, mas a maior parte da clientela recuou, ainda mais perturbada do que antes. Não ficaram nada convencidos com a sua explicação de que se afastara rapidamente por baixo das mesas, depois de ter caído. Quase todos os hobbits e homens de Bree se foram imediatamente embora, apressados e mal-humorados, sem disposição para mais divertimentos naquela noite. Um ou dois lançaram um olhar carregado a Frodo e saíram a resmungar. Os anões e os dois ou três homens desconhecidos que ainda estavam na sala levantaram-se e deram as boas-noites ao estalajadeiro, mas ignoraram Frodo e os seus amigos. Pouco depois não se encontrava ninguém na sala além de Passo de Gigante, que continuava sentado, sem dar nas vistas, junto da parede.

O Sr. Carrapiço não pareceu muito aborrecido. Calculou, provavelmente, que a sua casa voltaria a encher-se em muitas noites futuras, até o mistério daquela noite ter sido minuciosamente discutido.

- Que esteve a fazer, Sr. Underhill? - perguntou. - Não é bonito assustar-me os clientes e partir-me a louça com as suas acrobacias!

- Lamento muito ter causado aborrecimentos - respondeu-lhe Frodo. - Garanto-lhe que foi sem intenção. Tratou-se de um acidente muito infeliz.

- Está bem, Sr. Underhill. Mas se tencionar dar mais cambalhotas ou fazer mais prestidigitações, ou lá o que foi, será melhor avisar as pessoas antecipadamente... e avisar-me a mim. Aqui somos um bocado desconfiados de coisas desse, género... de coisas misteriosas, compreende?... E não as aceitamos assim de repente.

- Não voltarei a fazer nada desse género, Sr. Carrapiço, juro-lhe. E agora acho que vou andando para a cama, pois tencionamos partir cedo. Tenha os nossos póneis prontos às oito horas, sim?

- Muito bem. Mas, antes de se deitar, gostaria de ter uma pequena conversa consigo, em particular, Sr. Underhill. Acabo de me lembrar de uma coisa que tenho de lhe dizer. Espero que não leve a mal. Depois de tratar aí de umas coisitas, irei ter consigo ao seu quarto, se não se importar.

- Às suas ordens! - respondeu Frodo, mas ficou de coração pesado. Quantas conversas em particular teria ainda de travar antes de se deitar e que lhe revelariam elas? Estaria toda aquela gente conluiada contra ele? Começou a desconfiar de que até a cara gordo do velho Carrapiço ocultava sinistros desígnios.

 

PASSO DE GIGANTE

Frodo, Pippin e Sam voltaram para a saleta. A luz estava apagada, Merry ausentara-se e o lume quase se apagara. Só depois de terem soprado as brasas amodorradas até ficarem vermelhas e de lhes terem acrescentado alguns pedaços de lenha descobriram que Passo de Gigante os acompanhara: estava a sentar-se calmamente numa cadeira junto da porta.

- Olá! - cumprimentou-o Pippin - Quem é e que deseja?

- Chamam-me Passo de Gigante - respondeu o intruso. - E, embora talvez o tenha esquecido, o seu amigo prometeu ter uma conversa tranquila comigo.

- Disse, parece-me, que talvez eu ouvisse alguma coisa que me fosse proveitosa - recordou-lhe Frodo. - Que tem a dizer?

- Várias coisas - respondeu Passo de Gigante. - Mas, claro, tenho o meu preço.

- Que quer dizer? - perguntou Frodo, asperamente.

- Não se assuste! Quero dizer apenas o seguinte: revelar-lhe-ei o que sei e dar-lhe-ei alguns bons conselhos, mas quererei uma recompensa.

- E de que constará a recompensa? - Frodo desconfiou que lhe saíra na rifa um patife e pensou, pouco tranquilo, no pouco dinheiro que trouxera e que não chegaria para satisfazer um tunante, além de lhe fazer tanta falta, que não podia dispor nem de parte dele.

- Não constará de mais do que está ao seu alcance - respondeu o outro, a sorrir, como se adivinhasse os pensamentos de Frodo. - Trata-se apenas do seguinte: terá de me levar consigo até eu querer deixá-lo.

- Deveras?! - redarguiu Frodo, surpreendido, mas não muito aliviado. - Mesmo que desejasse outro companheiro, não concordaria com semelhante proposta enquanto não soubesse muito mais do que sei a seu respeito e dos seus interesses.

- Excelente! - exclamou Passo de Gigante, ao mesmo tempo que cruzava as pernas e se recostava na cadeira, confortavelmente. - Parece estar a recuperar o bom senso, e isso só é de louvar. Até agora tem-se mostrado excessivamente descuidado. Muito bem, vou-lhe dizer o que sei e deixo a questão da recompensa ao seu critério! Depois de me ouvir, é muito possível que tenha prazer em conceder-ma.

- Prossiga, então. Que sabe?

- Demasiado; muitas coisas sinistras - respondeu Passo de Gigante, muito sério. - Mas voltemos ao seu assunto... - Levantou-se, foi à porta, abriu-a rapidamente e olhou para fora; depois fechou-a de mansinho e voltou a sentar-se. - Tenho o ouvido muito apurado - prosseguiu, em voz mais baixa - e, embora não possa desaparecer, tenho caçado muitas coisas selvagens e cautelosas e geralmente sou capaz de evitar ser visto, se isso me convém. Esta noite estava atrás da sebe, na estrada a oeste de Bree, quando apareceram quatro hobbits vindos dos lados das Colinas. Não preciso repetir tudo quanto disseram ao velho Bombadil nem uns aos outros, mas houve uma coisa que me interessou: ... por favor lembrem-se, todos, que o nome Baggins não deve ser mencionado. Se for necessário utilizar algum nome, sou o Sr. Underhill. Esse pormenor interessou-me tanto, que os segui até aqui. Saltei por cima da porta, logo atrás deles. Talvez o Sr. Baggins tenha uma razão honesta para querer deixar o seu nome para trás; se assim é, aconselho-o e aos seus amigos a serem mais cuidadosos.

- Não vejo que interesse poderá ter o meu nome para alguém de Bree - redarguiu-lhe Frodo, irritado - e ainda estou para saber por que motivo o interessa a si. O Sr. Passo de Gigante poderá ter uma razão honesta para espiar e escutar; se assim é, aconselho-o a explicá-la.

- Bem respondido! - declarou Passo de Gigante, a rir. - Mas a explicação é simples: eu andava à procura de um hobbit chamado Frodo Baggins e queria encontrá-lo depressa. Constara-me que ele levava para fora do Shire... bem, um segredo que me interessa e aos meus amigos.

»Não me interpretem mal! - gritou, ao ver Frodo levantar-se e Sam imitá-lo de um salto, carrancudo. - Terei mais cuidado com o segredo do que vocês, e nem sabem quanto ele precisa de ser tratado com cuidado! - Inclinou-se para a frente e olhou-os com firmeza. - Observem cada sombra! - recomendou, em voz mais baixa. - Passaram por Bree cavaleiros negros. Dizem que na segunda-feira veio um, pelo Caminho Verde, do lado de baixo, e que mais tarde apareceu outro do lado de cima, vindo do Sul.»

 

Seguiram-se alguns momentos de silêncio. Por fim, Frodo disse a Pippin e a Sam:

- Devia tê-lo calculado, pelo modo, como o guarda da porta nos acolheu. E o estalajadeiro também parece ter ouvido qualquer coisa. Porque insistiu connosco para nos juntarmos aos restantes clientes? E porque raio nos comportámos nós tão estupidamente? Devíamos ter ficado aqui, sossegados.

- Teria sido melhor, de facto - concordou Passo de Gigante. - Eu tê-ios-ia impedido de irem para a sala comum, se pudesse; mas o estalajadeiro não me quis deixar entrar, para lhes falar, e recusou-se a transmitir-lhes um recado.

- Pensa que ele... - começou Frodo a perguntar.

- Não, não penso mal nenhum do velho Carrapiço. Sucede apenas que não gosta nada de vagabundos misteriosos do meu género.

Frodo lançou-lhe um olhar intrigado.

- Bem, tenho um ar de patife, não tenho? - perguntou Passo de Gigante, com um leve sorriso e um brilho estranho no olhar. - Mas espero que nos venhamos a conhecer melhor um ao outro. Quando tal acontecer, desejo que explique o que aconteceu no fim da sua canção. Aquela pequena travessura...

- Foi puro acidente! - interrompeu-o Frodo.

- Duvido! Mas admitamos que foi... Esse acidente tornou a sua situação perigosa.

- Dificilmente a terá tornado mais perigosa do que já era - redarguiu Frodo. - Eu sabia que esses cavaleiros me perseguiam. Mas agora, pelo menos, parecem ter-me perdido o rasto e desaparecido.

- Não deve fiar-se nisso! - aconselhou Passo de Gigante, vivamente. - Eles voltarão. E vêm aí mais. Há outros. Sei quantos são, conheço esses cavaleiros. - Fez uma pausa; os seus olhos tinham-se tornado duros e frios. - E em Bree há certas pessoas em quem não se pode confiar - prosseguiu. - Bill Fetoso, por exemplo. Tem má fama na Breelândia e a sua casa é visitada por indivíduos estranhos. Deve ter reparado nele, entre os clientes da estalagem: é um indivíduo moreno e de ar trocista. Esteve numa grande conversa com um dos desconhecidos sulistas e saíram juntos logo após o seu acidente». Nem todos os sulistas que por aí aparecem têm boas intenções. Quanto a Fetoso, seria capaz de vender o que quer que fosse, fosse a quem fosse, ou de fazer mal só para se divertir.

- Que venderá o Fetoso e que teve o meu acidente a ver com ele? - perguntou Frodo, que continuava a não querer compreender as insinuações de Passo de Gigante.

- Notícias suas, claro - respondeu o interpelado. - Um relato d sua exibição seria muito interessante para certas pessoas. Depois praticamente não precisariam que lhes dissessem qual é o seu verdadeiro nome. Parece-me mais do que provável que o saberão antes de esta noite findar. Chega-lhe? Pode proceder como entender a respeito da minha recompensa: aceitar-me ou não como guia. Mas devo dizer-lhe que conheço todas as todas as terras entre o Shire e as Montanhas Nebulosas, pois percorri-as durante muitos anos. Sou mais velho do que pareço e talvez venha a ser útil. Depois desta noite, terá de abandonar a estrada Pois os cavaleiros estarão à espreita noite e dia. Poderá escapar de Bree e talvez lhe permitam avançar enquanto houver sol, mas não irá muito longe. Eles cair-lhe-ão em cima nalgum ermo escuro onde não houver ajuda possível. Quer que o encontrem? Eles são terríveis!

Os hobbits olharam-no, e notaram, surpreendidos, que tinha o rosto contraído, como se sofresse dores, e as mãos fechadas com força nos braços da cadeira. Reinava grande silêncio no quarto e a luz parecia ter-se tornado mais fraca. Durante um bocado, continuou de olhos fixos, sem ver, como se revivesse uma recordação antiga ou escutasse os sons da noite, muito longe.

- Pronto! - exclamou pouco depois, e passou a mão pela testa. - Talvez eu saiba mais a respeito desses perseguidores do que vocês Temem-nos, mas ainda os não temem o suficiente. Amanhã terão de sair daqui, se puderem. Passo de Gigante poderá levá-los por caminhos que raramente são pisados. Aceitam-no?

Seguiu-se de novo silêncio pesado. Frodo não respondeu; a dúvida e o medo tornavam-lhe o espírito confuso. Sam franziu a testa, olhou para o patrão e, por fim, não se conteve:

- Com sua licença, Sr. Frodo, eu diria não! Aqui este... Passo de Gigante adverte e recomenda cuidado, e a isso digo sim, e comecemos por ele. Veio de terras selvagens e eu nunca ouvi dizer nada de bom de semelhante gente. É evidente que sabe alguma coisa, e mais do que me agrada; mas isso não é motivo para permitirmos que nos conduza a qualquer ermo escuro, longe de socorro, como ele diz.

Pippin mexeu-se no lugar e pareceu pouco à vontade. Passo de Gigante fitou Frodo, sem responder a Sam. Frodo desviou o olhar.

- Não - disse, devagar -, não concordo. Creio... creio que não é realmente o que pretende parecer. Começou a falar-me como os Breenses, mas a sua voz mudou. No entanto, o Sam parece ter razão numa coisa: não compreendo por que nos aconselha a termos cuidado e, ao mesmo tempo, nos pede que o aceitemos à confiança. Porquê o disfarce? Quem é você? Que sabe realmente acerca do meu... do meu assunto, e como o soube?

- A lição sobre cautela foi bem aprendida - declarou Passo de Gigante, a sorrir tristemente. - Mas ter cautela é uma coisa, e irresolução outra. Agora nunca conseguirá chegar a Rivendell sozinho, e aceitar-me é a única esperança que lhe resta. Tem de decidir.

Responderei a algumas das suas perguntas, se isso o ajudar a resolver-se. Mas por que acreditará na minha história, se já não acredita em mim? No entanto, ei-la...

 

Nesse momento bateram à porta. Era o Sr. Carrapiço, com velas, e, atrás dele, Cachola, com baldes de água quente. Passo de Gigante recuou para um canto escuro.

- Vim desejar-lhes as boas-noites - disse o estalajadeiro, enquanto punha as velas na mesa. - Cachola, leva a água para os quartos.

O estalajadeiro fechou a porta e começou a falar, com ar hesitante e perturbado:

- Trata-se do seguinte... Lamento muito se causei algum contratempo, mas uma coisa faz esquecer outra, como certamente concordará, e eu sou um homem muito atarefado. Esta semana tem sido terrível, uma coisa após outra têm-me baralhado a memória, como se costuma dizer... Espero que não seja demasiado tarde. É o seguinte, pediram-me que estivesse atento à chegada de hobbits do Shire e em especial de um chamado Baggins.

- E que tem isso a ver comigo? - inquiriu Frodo.

- Ah, o senhor bem sabe! - exclamou o estalajadeiro, com ar entendido. - Não o denunciarei, descanse. Disseram-me que esse tal Baggins se apresentaria como Underhill e fizeram-me uma descrição que se ajusta muito bem com a sua pessoa, se me permite que o diga.

- Deveras! Bem, venha lá a descrição - interrompeu-o Frodo, insensatamente.

- Um indivíduo pequeno, de bochechas coradas - começou o Sr. Carrapiço, solenemente, enquanto Pippin sufocava o riso e Sam parecia indignado. - Isso não te ajudará muito, pois serve para a maioria dos hobbits, Cerveja, disse-me ele - continuou o Sr. Carrapiço, e lançou uma olhadela a Pippin. - Mas este é mais alto do que alguns e mais bonito do que a maioria, e tem uma covinha no queixo: é um tipo esperto, de olho vivo. Peço-lhe perdão, mas foi ele que disse estas coisas, e não eu.

- Ele disse? E quem era ele? - perguntou Frodo, avidamente.

- Ah, sim! Era Gandalf, se sabe a quem me refiro. Dizem que é feiticeiro, mas, feiticeiro ou não, o que sei é que é um bom amigo meu. Agora, porém, não sei o que me dirá, se voltar a ver-me... Não me admiraria se me azedasse a cerveja toda e me transformasse num cepo de madeira. É um bocadinho precipitado... Contudo, o que está feito, feito está.

- Mas que fez o senhor? - perguntou-lhe Frodo, impaciente com o lento desenrolar dos pensamentos de Carrapiço.

- Onde ia eu? - murmurou o estalajadeiro, e deu um estalo com os dedos. - Ah, sim, o velho Gandalf! Há três meses entrou-me pelo quarto dentro sem bater. Cerveja, disse-me, parto de manhã. Fazes-me uma coisa? Respondi-lhe que bastava dizer o que queria. Estou com pressa, disse-me, e por isso não tenho tempo de me encarregar eu, do assunto, mas preciso de mandar uma carta para o Shire. Tens

alguém que a possa levar e que seja de confiança? Respondi-lhe que arranjaria alguém, talvez amanhã ou depois de amanhã. Que seja amanhã, disse-me, e entregou-me uma carta. Está endereçada com toda a clareza - acrescentou o Sr. Carrapiço, ao mesmo tempo que tirava uma carta da algibeira e lia o endereço lenta e orgulhosamente (prezava muito a sua reputação de homem letrado):

»SR. FRODO BAGGINS, FUNDO DO SACO, HOBBITON, SHIRE.»

- Uma carta de Gandalf para mim! - exclamou Frodo.

- Ah! - exclamou por sua vez o Sr. Carrapiço. - Então o seu verdadeiro nome é Baggins?

- É - respondeu Frodo. - É melhor dar-me essa carta imediatamente e explicar-me por que motivo a não enviou. Suponho que foi isso que veio dizer-me, embora tenha levado muito tempo a decidir-se.

O pobre do Sr. Carrapiço pareceu muito atrapalhado.

- Tem razão, patrão, e peço-lhe desculpa. Tenho um medo mortal do que Gandalf dirá, se disso resultar algum prejuízo. Mas eu não guardei a carta de propósito. Guardei-a em lugar seguro e depois não consegui encontrar ninguém disposto a ir ao Shire no dia seguinte nem no outro e não pude dispor de nenhum dos meus empregados. A seguir, com uma coisa e outra, esqueci-me. Sou um homem muito atarefado. Farei o que puder para remediar o mal, e se puder ajudar nalguma coisa, é só pedir por boca.

»Pondo a carta de parte, prometi a Gandalf nada menos do que isso. Cerveja, disse-me ele, este meu amigo do Shire é capaz de passar por estes lados em breve, ele e outro. Dirá que se chama Underhill. Não te esqueças disso! Mas escusas de fazer perguntas. Se eu não estiver com ele, é possível que se encontre em apuros e precise de ajuda. Faz o que puderes por ele, e ficar-te-ei grato, disse-me. E agora cá está o senhor, e os apuros não parecem estar longe.»

- Que quer dizer? - perguntou-lhe Frodo.

- Esses homens de negro... - respondeu o estalajadeiro, em voz mais baixa. - Andam à procura de um Baggins, e se as intenções deles são boas, então eu sou um hobbit! Foi na segunda-feira e todos os cães ladraram e os gansos fizeram uma barulheira dos infernos. Achei estranho. O Cachola foi ter comigo e disse-me que estavam à porta dois homens de negro, a perguntar por um hobbit chamado

Baggins. O cabelo do Cachola estava todo em pé. Mandei os indivíduos de negro embora e bati-lhes com a porta na cara, mas ouvi dizer que têm andado a dado a fazer a mesma pergunta daqui até Archet. E esse Caminhante, esse Passo de Gigante, também tem andado a fazer perguntas. Até tentou entrar aqui para lhe falar, antes de o senhor ter tido tempo de comer qualquer coisa.

- Pois tentou! - exclamou Passo de Gigante, de súbito, saindo da sombra para a luz. - E muitos aborrecimentos teriam sido poupados se você o tivesse deixado entrar, Cervejeiro.

O estalajadeiro deu um pulo, de surpresa.

- Você! _ gritou. - Está sempre a aparecer de repente! Que quer agora?

- Está aqui com autorização minha - interveio Frodo. - Veio oferecer-me a sua ajuda.

- Bem, suponho que o senhor sabe o que lhe convém - comentou o Sr. Carrapiço, a olhar desconfiadamente para Passo de Gigante. - Mas, se eu estivesse na sua situação, não me meteria com um Caminhante.

- Com quem se meteria então?- perguntou Passo de Gigante. - Com um estalajadeiro gordo que só se lembra do próprio nome porque as pessoas levam o dia inteiro a gritar-lho? Estes hobbits não podem ficar eternamente no Garrano e também não podem regressar a casa. Têm uma longa estrada a percorrer. É capaz de ir com eles e de despistar os homens de negro?

- Eu?! Deixar Bree? Não faria semelhante coisa nem por todo o dinheiro do mundo! - afirmou o Sr. Carrapiço, verdadeiramente assustado. - Mas porque não podem ficar aqui uns tempos, descansados, Sr. Underhill? Que são todas estas coisas estranhas que se estão a passar? Que pretendem estes homens de negro e donde vêm? Isso é que gostaria de saber!

- Lamento, mas não lho posso explicar - respondeu Frodo. - Estou cansado, muito preocupado e é uma história comprida. Mas, se pretende ajudar-me, devo avisá-lo de que correrá perigo enquanto eu estiver em sua casa. Quanto aos Cavaleiros Negros... não tenho a certeza, mas penso... receio que venham de...

- Vêm de Mordor - disse Passo de Gigante, em voz baixa. - De Mordor, Cervejeiro, se isso lhe diz alguma coisa.

- O Céu nos valha! - exclamou o Sr. Carrapiço, muito pálido; era evidente que conhecia o nome. - É a pior notícia que chegou a Bree durante toda minha vida!

- Sem dúvida que é - concordou Frodo. - Ainda está disposto a ajudar-me?

- Estou, sim - afirmou o estalajadeiro. - Mais do que nunca... embora não saiba francamente o que pode alguém como eu fazer contra... contra...

- Contra a Sombra de Leste - disse Passo de Gigante, calmamente. - Pode pouco, mas até o pouco ajuda. Pode, para já, deixar o Sr. Underhill ficar aqui esta noite, como Sr. Underhill, e esquecer o nome de Baggins até ele estar muito, muito longe.

- Assim farei - prometeu Carrapiço. - Mas temo que eles descubram que ele cá está sem a minha ajuda. É uma pena que o Sr. Baggins tenha atraído as atenções esta noite, para não dizer mais... A história da partida do tal Sr. Bilbo já tinha sido ouvida em Bree antes desta noite. Até o nosso Cachola tem estado a tirar algumas conclusões apesar da lentidão com que funciona o seu juízo... e há outros em Bree de compreensão muito mais rápida do que ele.

- Bem, só nos resta esperar que os Cavaleiros não voltem já - disse Frodo.

- Também espero que não - concordou Carrapiço. - Mas, sejam eles fantasmas ou não, não entrarão no Garrano com essa facilidade toda! Não se preocupe até de manhã. O Cachola não abrirá a boca e nenhum homem de negro transporá as minhas portas enquanto eu me puder aguentar nas pernas. Eu e o meu pessoal ficaremos de guarda esta noite, mas acho melhor que os senhores vejam se dormem alguma coisa, se puderem.

- De qualquer modo, chamem-nos ao alvorecer - pediu Frodo. - Temos de partir o mais cedo possível. Pequeno-almoço às seis e meia, por favor.

- Muito bem, darei as minhas ordens. Boas-noites, Sr. Baggins. quero dizer, Underhill! Boas-noites... Esta agora! Onde está o Sr. Brandybuck?

- Não sei - respondeu Frodo, subitamente inquieto; tinham-se esquecido por completo de Merry, e estava a fazer-se muito tarde. - Creio que saiu. Tinha dito que ia tomar um pouco de ar...

- Não há dúvida de que precisam de que olhem por vocês! - desabafou o Sr. Carrapiço. - Até parece que estão de férias! Tenho de ir trancar as portas depressa, mas darei ordem para deixarem entrar o seu amigo quando ele chegar. Acho até melhor mandar o Cachola procurá-lo. Boas-noites a todos!

O Sr. Carrapiço saiu, por fim, depois de lançar outro olhar duvidoso a Passo de Gigante e de abanar a cabeça. Ouviram os seus passos afastarem-se pelo corredor fora.

 

- Então? - perguntou Passo de Gigante. - Quando abre essa carta?

Frodo olhou com atenção para o sinete, antes de o quebrar. Parecia, certamente, o de Gandalf. No interior, escrita com a caligrafia firme mas graciosa do feiticeiro, encontrou a seguinte carta:

GARRANO EMPINADO, BREE. Dia Do Meio do Ano, Calendário do Shire, 1418.

Caro Frodo:

Más notícias chegaram, aqui, ao meu conhecimento. Tenho de partir imediatamente. Acho melhor saíres depressa do Fundo do Saco e abandonares o Shire antes do fim de Julho, o mais tardar. Voltarei assim que puder e seguir-te-ei se verificar que partiste. Deixa aqui um recado para mim, se passares por Bree. Podes confiar no estalajadeiro (Carrapiço). Talvez encontres um amigo meu na Estrada: um homem magro, moreno e alto a que alguns chamam Passo de Gigante. Ele está ao corrente do nosso assunto e ajudar-te-á. Segue para Rivendell. Espero que nos voltemos a encontrar lá. Se eu não aparecer, Elrond aconselhar-te-á.

Teu apressado, GANDALF

  1. - NÃO o uses de novo, seja por que motivo for! Não viajes de noite.

PPS. - Certifica-te de que se trata do verdadeiro Passo de Gigante. Há muitos homens desconhecidos nas estradas. O seu nome genuíno é Aragorn.

Nem tudo o que luz é ouro,

Nem todos os caminhantes estão perdidos;

O velho que é forte não mirra

E a geada não chega às raízes fundas.

Das cinzas pode reacender-se o lume,

Das sombras irromper uma luz;

Renovada será a lâmina quebrada

E o destronado será de novo rei.

PPPS. - Espero que o Carrapiço te mande esta sem demora. É um bom homem, mas a sua memória é uma arrecadação desarrumada: o que se quer está sempre debaixo de tudo o mais. Se ele se esquecer, asso-o! Passa bem!

 

Frodo releu a carta, em silêncio, e depois passou-a a Pippin e a Sam.

- Francamente, o velho Carrapiço complicou tudo! - comentou.

- Merece ser assado. Se eu tivesse recebido isto logo, a esta hora talvez já estivéssemos todos em segurança, em Rivendell. Mas que terá acontecido a Gandalf? Escreve como se fosse partir para um grande perigo.

- Há muitos anos que ele faz isso - observou Passo de Gigante.

Frodo voltou-se e olhou seriamente, a pensar no segundo pós-escrito de Gandalf.

- Por que não me disse logo que era amigo de Gandalf? Isso teria poupado tempo.

- Teria mesmo? Algum de vocês me teria acreditado, antes de ler essa carta? - perguntou Passo de Gigante. - Eu não tinha conhecimento da existência da carta; sabia somente que, se queria ajudá-los, tinha de persuadi-los a confiar em mim sem provas. De qualquer modo, não tencionava dizer-lhes imediatamente tudo a meu respeito. Precisava de os estudar primeiro e de me certificar de que eram realmente quem eu julgava. O Inimigo já me tem estendido muitas armadilhas. Assim que me tivesse certificado, estaria disposto a responder a tudo quanto perguntassem. Mas admito - acrescentou, com um riso estranho - que esperava confiassem em mim por mim próprio. Às vezes, um homem perseguido cansa-se da desconfiança e anseia pela amizade. Mas concordo que o meu aspecto não abona a meu favor, antes pelo contrário.

- Pois não... pelo menos à primeira vista - concordou Pippin, a rir, subitamente aliviado com a leitura da carta de Gandalf. - Mas a beleza está muitas vezes nas acções e não no aspecto, como dizemos no Shire, e eu creio que, depois de dormirmos alguns dias em sebes e valas, estaremos todos muito parecidos uns com os outros.

- Seriam necessários mais do que alguns dias, semanas ou anos de andanças por terras inóspitas para os tornar parecidos com o Passo de Gigante. E acabariam por morrer primeiro, a não ser que sejam feitos de material mais resistente do que parecem.

Pippin calou-se, mas Sam não se deixou atemorizar, e continuou a encarar Passo de Gigante duvidosamente.

- Como podemos saber que é o Passo de Gigante de que Gandalf fala? - perguntou-lhe ele. - Não tinha aludido a Gandalf antes de esta carta aparecer. Por tudo quanto vejo, pode ser um espião a representar, para tentar convencer-nos a ir consigo. Pode até ter liquidado o verdadeiro Passo de Gigante e vestido a sua roupa. Que diz a isso?

- Digo que é um tipo valente - respondeu-lhe Passo de Gigante. - Mas acho que a melhor resposta que lhe poderei dar, Sam Gamgee, é a seguinte: se eu tivesse matado o verdadeiro Passo de Gigante, poderia matá-los a vocês. E já os teria matado sem estar com tanta conversa. Se fosse o anel que me interessasse, poderia tê-lo... JÁ!

Levantou-se, e pareceu, de súbito, ainda mais alto. Nos seus olhos brilhava uma luz viva e autoritária. Atirou a capa para trás e colocou a mão no punho de uma espada que lhe pendia da cinta e que até então estivera oculta. Os hobbits não ousaram mexer-se. Sam estava boquiaberto, a fitá-lo estupidamente.

- Mas, afortunadamente, sou o verdadeiro Passo de Gigante acrescentou, a olhá-los com um sorriso inesperado a suavizar-lhe o rosto. - Sou Aragorn, filho de Arathorn, e se por meio de vida ou de morte puder salvá-los, salvá-los-ei.

 

Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, Frodo falou, hesitante:

- Acreditei que fosse um amigo antes de a carta chegar... ou, pelo menos, desejei acreditar. Assustou-me diversas vezes, esta noite, mas não do modo que os servos do Inimigo me teriam assustado, suponho. Acho que os espiões dele pareceriam... enfim, mais atraentes, mas ao mesmo tempo causariam uma sensação mais desagradável, se compreende o que quero dizer.

- Compreendo - respondeu Passo de Gigante, a rir. - Eu pareço desagradável, mas causo uma sensação agradável, é isso? Nem tudo o que luz é ouro, nem todos os caminhantes estão perdidos.

- Os versos aplicam-se, então, a si? - indagou Frodo. - Ainda não tinha percebido o que significavam. Mas como soube que eles estavam na carta de Gandalf, se não a viu?

- Eu não sabia. Mas sou Aragorn e esses versos aplicam-se a esse nome. - Desembainhou a espada, e eles viram que a lâmina estava partida trinta centímetros abaixo do punho. - Não serve para muito, pois não, Sam? - perguntou Passo de Gigante. - Mas aproxima-se a hora em que será de novo forjada.

Sam não disse nada.

- Bem - continuou Passo de Gigante -, com licença de Sam, damos o assunto por encerrado: serei o seu guia. Amanhã teremos um caminho duro a percorrer. Mesmo que consigamos sair de Bree sem problemas, dificilmente poderemos esperar deixá-la sem darem por isso. Mas eu tentarei perder-me o mais depressa possível. Conheço uma ou duas saídas da Breelândia, além da estrada principal. Se conseguirmos despistar os perseguidores, seguirei para o Cume do Tempo.

- Cume do Tempo? - repetiu Sam. - Que é isso?

- É um monte, logo a norte da Estrada, mais ou menos a meio caminho de Rivendell. Dele abarca-se um grande panorama, a toda a volta, e isso permitir-nos-á orientar-nos. Gandalf dirigir-se-á par lá, se nos seguir. Depois do Cume do Tempo, a nossa viagem tornar-se-á mais difícil e teremos de escolher entre vários perigos.

- Quando viu Gandalf pela última vez? - perguntou Frodo. - Sabe onde ele se encontra ou o que está a fazer?

O rosto de Passo de Gigante tornou-se grave.

- Não sei - respondeu. - Vim para oeste com ele na Primavera. Nos últimos anos tenho estado frequentemente de guarda às fronteiras do Shire, quando ele está atarefado noutro lado. E raro Gandalf deixá-las desprotegidas. Encontrámo-nos pela última vez no dia 1 de Maio, em Sarn Ford, no Brandevinho. Disse-me que a sua conversa consigo correra bem e que você partiria para Rivendell na última semana de Setembro. Como sabia que ele estava a seu lado, parti numa viagem que me dizia pessoalmente respeito. E tudo indica que fiz mal, pois é evidente que Gandalf recebeu quaisquer notícias e eu não estava perto para ajudar.

»Sinto-me perturbado, pela primeira vez desde que o conheço. Deveríamos ter trocado recados, mesmo que ele não pudesse comparecer pessoalmente. Quando regressei, há muitos dias, tive conhecimento da má notícia: dizia-se por todo o lado que Gandalf desaparecera e tinham sido vistos os Cavaleiros. Foram os elfos de Gildor quem mo disseram. Mais tarde, disseram-me também que você partira da sua casa, mas não havia notícias nenhumas da sua saída da Bucklândia. Tenho estado a vigiar ansiosamente a Estrada do Leste.»

- Acha que os Cavaleiros Negros têm alguma coisa a ver com o assunto... quero dizer, com a ausência de Gandalf? - perguntou Frodo.

- Não sei de mais nada que pudesse tê-lo atrasado, a não ser o próprio Inimigo. Mas não perca a esperança! Gandalf é mais importante do que a gente do Shire pensa. Em geral, vocês só vêem as suas brincadeiras e os seus brinquedos. Mas este caso, agora, será a sua maior missão.

Pippin bocejou.

- Desculpem, mas estou morto de cansaço - murmurou. - Mal-grado todos os perigos e preocupações, tenho de ir para a cama ou dormir mesmo aqui, onde estou sentado. Onde se terá metido o idiota do Merry? Só nos faltava termos de sair lá para fora, para o escuro, a fim de o procurar!

 

Nesse momento ouviram bater uma porta e depois passos apressados no corredor. Merry entrou como um pé-de-vento, seguido por Cachola, fechou apressadamente a porta e encostou-se a ela. Estava sem fôlego. Fitaram-no um momento, alarmados, antes de ele dizer, ofegante:

- Vi-os, Frodo! Vi-os! Cavaleiros Negros!

- Cavaleiros Negros! - repetiu Frodo. - Onde?

- Aqui, na aldeia. Fiquei na sala uma hora, mas depois, como vocês não voltassem, fui dar um passeio. Regressara e estava parado fora da mancha da luz do candeeiro, a olhar para as estrelas. De repente, tive um calafrio e senti algo horrível aproximar-se sorrateiramente. Havia uma espécie de sombra mais carregada entre as sombras do outro lado da estrada, logo depois da orla da luz do candeeiro, mas desapareceu subitamente nas trevas, sem ter produzido um som. Não vi nenhum cavalo.

- Para que lado foi? - perguntou Passo de Gigante, apressada e asperamente.

Merry estremeceu, ao dar, pela primeira vez, pela presença do desconhecido.

- Continua - disse-lhe Frodo. - É um amigo de Gandalf. Depois explico-te.

- Pareceu-me que subiu a Estrada, para leste - respondeu Merry. - Tentei segui-la, mas, claro, desapareceu quase imediatamente. No entanto, contornei a esquina e fui até à última casa da Estrada.

Passo de Gigante olhou, admirado, para Merry.

- Tem um coração valente - disse-lhe -, mas isso foi estúpido.

- Não sei... - murmurou Merry. - Não foi nem valente nem estúpido, creio. Praticamente não pude evitá-lo. Era como se estivesse a ser atraído, não sei como. Fosse como fosse, subi a Estrada, e, de súbito, ouvi vozes junto da sebe. Uma falava baixo e a outra parecia segredar, de um modo sibilante. Não consegui perceber uma palavra do que diziam. Não me aproximei mais, porque comecei a tremer dos pés à cabeça. Depois senti-me aterrado, voltei para trás e preparava-me para regressar a correr quando qualquer coisa se aproximou por trás de mim e... e caí.

- Fui eu que o encontrei, senhor - explicou Cachola. - O Sr. Carrapiço mandou-me procurá-lo com uma lanterna. Fui até à porta ocidental e depois voltei para trás, na direcção da porta sul. Quase à porta do Bill Fetoso, pareceu-me ver qualquer coisa na Estrada. Não juraria, mas tive a impressão de que dois homens se debruçavam para qualquer coisa e a levantavam. Dei um grito, mas quando cheguei ao local não encontrei vestígios deles. Só vi o Sr. Brandybuck caído à beira do caminho. Parecia adormecido. «Pelisava que me tinha metido numa grande alhada», disse-me, quando o sacudi. Estava muito esquisito, e, assim que o acordei, levantou-se e desatou a correr para aqui como uma lebre.

- Infelizmente tudo isso é verdade - confirmou Merry -, embora eu não saiba o que disse. Tive um pesadelo horrível, de que me não lembro... Fiquei de nervos desfeitos, não sei o que me aconteceu.

- Eu sei - afirmou Passo de Gigante. - O Bafo Negro. Os cavaleiros devem ter deixado os cavalos no exterior e entrado de novo, em segredo, pela porta sul. Agora já sabem as novidades todas, pois visitaram Bill Fetoso. E provavelmente aquele homem do Sul também era um espião. É capaz de acontecer alguma coisa esta noite, antes de sairmos de Bree.

- Mas que poderá acontecer? - perguntou Merry. - Atacarão a estalagem?

- Acho que não - respondeu Passo de Gigante. - Ainda cá não estão todos e, de qualquer maneira, não é assim que costumam proceder. Na escuridão e sozinhos são mais fortes; não atacarão abertamente uma casa onde há luzes é muita gente... pelo menos enquanto não estiverem desesperados, e enquanto tivermos à nossa frente as muitas e longas léguas de Eriador. A sua força está no terror, e alguns breenses, já se encontram nas suas garras. Impelirão esses desgraçados para qualquer acto mau:. Fetoso, alguns dos desconhecidos e talvez, também, o guarda da porta. Falaram com Harry na porta ocidental, na segunda-feira. Eu estive a observá-los. Ele estava branco e a tremer, quando o deixaram.

- Parece que estamos cercados por inimigos - comentou Frodo. - Que faremos?

- Fiquem aqui e não vão para os quartos! Eles já sabem, com certeza, quais são; os quartos para os hobbits têm janelas viradas para norte e junto ao solo. Ficaremos aqui todos juntos e trancaremos a porta e a janela. Mas, primeiro, o Cachola e eu vamos buscar-lhes a bagagem.

Quando Passo de Gigante saiu, Frodo fez a Merry um relato rápido de tudo quanto acontecera depois do jantar. Merry ainda estava a ler a carta de Gandalf e a reflectir no seu conteúdo quando Passo de Gigante e Cachola voltaram.

- Bem, patrões - informou Cachola -, amarrotei as roupas e meti um travesseiro pelo meio de cada cama abaixo. E fiz uma bonita imitação da sua cabeça com um tapete de lã castanha, Sr. Bag... Underhill - acrescentou, a sorrir.

- Deve ter ficado muito parecido com o original! - comentou Pippin, a rir. - Mas que acontecerá quando eles descobriram a tramóia?

- Veremos - respondeu Passo de Gigante. - Esperemos que nos seja possível aguentar o forte até de manhã.

- Boas-noites a todos - despediu-se Cachola, e saiu para participar na vigilância das portas.

As malas e restante bagagem foram empilhadas no chão da sala. Depois encostaram uma cadeira baixa à porta e fecharam a janela. Frodo olhou para o exterior e verificou que a noite ainda estava clara e que a Foice [Nome que os Hobbits davam à Ursa Maior] oscilava, luminosa, por cima das espaldas do monte Bree. Em seguida fechou e trancou as pesadas portadas interiores e correu os cortinados. Passo de Gigante deitou mais lenha na lareira e apagou as velas todas.

Os hobbits deitaram-se nos seus cobertores, com os pés para a lareira, e passo de Gigante sentou-se na cadeira encostada à porta. Conversaram um bocado, pois Merry ainda tinha algumas perguntas a fazer.

- Saltou por cima da Lua! exclamou, a rir, enquanto se embrulhava no cobertor. - Muito ridículo da tua parte, Frodo! No entanto, gostaria de ter estado presente, para ver. As pessoas importantes de Bree ainda discutirão a ocorrência daqui a cem anos.

- Espero que sim - disse Passo de Gigante.

Depois calaram-se todos, e, um por um, os hobbits adormeceram.

 

UMA FACA NA ESCURIDÃO

Enquanto eles se preparavam para dormir na estalagem de Bree a escuridão cobria a Bucklândia e havia neblina nos vales e ao longo da margem do rio. A casa da Cova dos Grilos estava mergulhada em silêncio. Bolger Gorducho abriu cautelosamente a porta e espreitou para o exterior. Crescera nele, durante todo o dia, uma sensação de medo que não o deixava descansar nem deitar-se. Pairava uma ameaça sobre o irrespirável céu nocturno. Enquanto Bolger olhava para a escuridão, uma sombra negra moveu-se debaixo das árvores e o portão pareceu abrir-se sozinho e fechar-se de novo, silenciosamente. O terror apoderou-se de Bolger, que recuou e, por momentos, ficou parado no vestíbulo, a tremer. Depois fechou a porta à chave.

A noite adensou-se. Ouviu-se o som produzido por cavalos conduzidos pela azinhaga. Pararam, do lado de fora do portão, e três vultos negros entraram, como sombras da noite, e avançaram sorrateiramente. Um foi para a porta e os outros foram um para cada esquina da casa. Ali ficaram, imóveis como sombras de pedras, enquanto a noite passava, lenta. A casa e as árvores imóveis pareciam esperar, ofegantes.

As folhas das árvores estremeceram um nadinha e um galo cantou, muito longe. Decorria a hora fria que antecede a alvorada. A figura junto da porta mexeu-se. Na escuridão sem estrelas nem luar cintilou uma lâmina desembainhada, como se tivesse sido descoberta uma luz gelada. Soou uma pancada, suave mas pesada, e a porta estremeceu.

- Abram em nome de Mordor! - ordenou uma voz fina e ameaçadora.

Uma segunda pancada, e a porta cedeu e caiu para o interior com o madeiramento estilhaçado e a fechadura arrombada. Os vultos negros entraram, velozes.

Nesse momento, entre as árvores próximas, soou uma cometa cujo som rasgou a noite como fogo no cume de um monte.

ACORDEM! MEDO! FOGO! INIMIGOS! ACORDEM!

Bolger Gorducho não estivera inactivo. Assim que vira os vultos negros virem sorrateiramente do jardim, compreendera que só lhe restava, fugir ou perecer. E fugira mesmo, pela porta das traseiras, através do jardim e depois pelos campos. Quando chegara à casa mais próxima, a mais de quilómetro e meio de distância, deixara-se cair no patamar. «Não, não, não!», gritara. «Não, eu não! Não o tenho!» Só passado algum tempo foi possível compreender de que falava. por fim, as pessoas ficaram com a impressão de que estavam inimigos na Bucklândia, de que houvera qualquer estranha invasão vinda da Floresta Velha. E não perderam mais tempo.

MEDO! FOGO! INIMIGOS!

os Brandybucks fizeram soar o toque de corneta da Bucklândia, que não se ouvia há um século, desde que os lobos brancos tinham vindo, no Inverno Terrível, quando o Brandevinho gelara.

ACORDEM! ACORDEM!

Muito ao longe, outras cornetas responderam ao chamamento. O alarme alastrou. Os vultos negros abandonaram a casa onde tinham entrado e um deles deixou cair no degrau da porta uma capa de hobbit, ao fugir. O ruído dos cascos dos cavalos soou na azinhaga e os animais lançaram-se a galope na escuridão. A toda a volta da Cova dos Grilos ouvia-se o barulho de cornetas a tocar, vozes a gritar e pés acorrer. Mas os Cavaleiros Negros cavalgaram como uma rajada de vento forte para a porta setentrional. O povo pequeno que tocasse as cornetas que quisesse! Sauron ajustaria contas com eles mais tarde. Entretanto, tinham outra missão a cumprir: agora sabiam que a casa estava deserta e o anel desaparecera. Passaram por cima dos guardas da porta e deixaram o Shire.

 

Ao princípio da noite, Frodo acordou de repente de um sono profundo, como se qualquer som ou presença o tivesse perturbado. Viu que Passo de Gigante estava sentado, alerta, na sua cadeira: os olhos brilhavam-lhe à claridade do lume, que fora alimentado e ardia bem; mas não fez qualquer sinal ou movimento.

Frodo não tardou a readormecer, mas os seus sonhos voltaram a ser perturbados pelo barulho do vento e de cavalos a galope. O vento parecia enroscar-se à volta da casa e sacudi-la. Ouviu também, muito ao longe uma corneta tocar desesperadamente. Abriu os olhos e um galo cantar vigorosamente no pátio da estalagem. Passo de Gigante afastara os cortinados e abrira as portadas de madeira da janela, ruidosamente. Aberta a janela, entrou no aposento a primeira luz cinzenta do dia, de mistura com uma aragem fria.

Depois de os acordar a todos, Passo de Gigante conduziu-os aos respectivos quartos. Quando os viram, os hobbits ficaram satisfeito, por terem aceitado o seu conselho: as janelas tinham sido arrombadas e estavam escancaradas, com as cortinas a esvoaçar; as camas estavam revolvidas e os travesseiros retalhados e atirados ao chão, e o tapete castanho fora feito em fanicos.

Passo de Gigante foi imediatamente buscar os estalajadeiros. O pobre Sr. Carrapiço tinha um ar ensonado. Quase não pregara olho toda a noite (foi o que disse), mas não ouvira barulho nenhum.

- Nunca tinha acontecido uma coisa destas na minha vida! lamentou-se, de mãos levantadas num gesto de horror. - Hóspedes impossibilitados de dormirem nas suas camas, bons travesseiros estragados e tudo o mais! Aonde vamos nós parar?

- Maus tempos! - comentou Passo de Gigante. - Mas, por agora, talvez o deixem em paz quando se livrar de nós. Partiremos imediatamente. Não se preocupe com o pequeno-almoço. Teremos de nos contentar com qualquer coisa para comer e beber em pé. A bagagem estará pronta dentro de poucos minutos.

O Sr. Carrapiço saiu apressado, para mandar preparar os póneis e arranjar qualquer coisa de comer. Mas não tardou a voltar, num grande desânimo: os póneis tinham desaparecido! As portas da cavalariça tinham sido abertas, de noite, e os animais tinham-se sumido: não só os póneis de Merry, mas também todos os outros cavalos e animais que lá se encontravam.

Frodo sentiu-se esmagado com a notícia. Como poderiam ter esperança de chegar a Rivendell a pé, perseguidos por inimigos montados? Era o mesmo que partirem para a Lua! Passo de Gigante ficou sentado em silêncio, a olhar para os hobbits, como se estivesse a avaliar-lhes a força e a coragem.

- Os póneis não nos ajudariam a escapar de cavaleiros - disse, por fim, gravemente, como se tivesse adivinhado os pensamentos de Frodo. - Não iremos muito mais devagar a pé, pelo menos pelas estradas que tenciono utilizar. De qualquer modo, eu iria a pé. O que me preocupa são os alimentos e as restantes provisões. Não podemos ter esperança de encontrar alguma coisa de comer daqui a Rivendell, a não ser o que levarmos connosco... e devemos levar mais do que o necessário, prevendo a possibilidade de sermos atrasados ou obrigados a afastar-nos muito do caminho directo. Quanto estão dispostos a carregar às costas?

- Tanto quanto tiver de ser - respondeu Pippin, de coração desalentado, mas a tentar mostrar que era mais rijo do que parecia (ou se sentia).

- Eu posso carregar o suficiente para dois - disse Sam, em tom de desafio.

- Não se pode fazer nada, Sr. Carrapiço? - perguntou Frodo ao estalajadeiro. - Não será possível arranjar dois póneis na aldeia, ou até mesmo só um, para a bagagem? Não creio que no-los alugassem, mas talvez possamos comprá-los... - acrescentou, duvidoso, pois receava não dispor de dinheiro suficiente.

- Duvido - respondeu Carrapiço, tristemente. - Os dois ou três póneis existentes em Bree capazes de serem montados estavam na minha cavalariça e desapareceram. Quanto a outros animais, cavalos ou póneis de carga, ou lá o que é, há muito poucos em Bree e não são para venda. Mas farei o que puder. Vou acordar o Bob e mandá-lo ver o que consegue, o mais depressa possível.

- Sim - aquiesceu Passo de Gigante, com relutância -, acho melhor fazer isso. Temos de tentar arranjar pelo menos um pónei. Mas lá se vai, assim, toda a esperança de partirmos cedo e sorrateiramente. Será como se tocássemos uma corneta para anunciar a nossa partida. Isso fazia, com certeza, parte do plano deles.

- Há em tudo isto uma migalhinha de conforto - declarou Merry. - Espero até que mais de uma migalhinha: poderemos tomar o pequeno-almoço enquanto esperamos... e sentados! Vamos buscar o Cachola.

No fim, o atraso foi de mais de três horas. Bob voltou e informou não haver na vizinhança nenhum pónei para vender, quer por amor, quer por dinheiro, a não ser um: Bill Fetoso talvez se dispusesse a vender o seu.

- É um pobre animal velho e meio esfomeado - explicou Bob. - Mas nem mesmo assim ele o cederá por menos do triplo do seu valor, atendendo à situação em que os senhores se encontram. Conheço bem o Bill Fetoso...

- Bill Fetoso? - repetiu Frodo. - Não haverá nenhuma tramóia nisso? Não será o animal capaz de fugir para ele com todas as nossas coisas, ajudar a localizar-nos, ou algo parecido?

- Não sei... - murmurou Passo de Gigante. - No entanto, não consigo imaginar que um animal fosse capaz de fugir de novo para ele, depois de se ter livrado de semelhante dono. Acho que se trata apenas de uma ideia que acudiu ao amável Sr. Fetoso, uma maneira de aumentar os seus proventos com toda esta história. O perigo principal reside no facto de o pobre animal se encontrar, provavelmente, às portas da morte. Mas parece que não temos por onde escolher. Quanto quer ele?

O preço pedido por Bill Fetoso eram 12 dinheiros de prata, o que equivalia, realmente, a três vezes, pelo menos, o valor de um pónei naquelas bandas. Tratava-se de um animal ossudo, mal alimentado e sem genica, mas que, apesar disso, não parecia já às portas da morte. O Sr. Carrapiço pagou-o do seu bolso e ainda ofereceu a Merry mais 18 dinheiros como compensação pelos animais perdidos. Era um homem honesto e abastado, pelos padrões de Bree. Mas, mesmo assim, 30 dinheiros de prata constituíram um rude golpe para ele, um golpe que o facto de ser intrujado por Bill Fetoso tornava ainda mais difícil de suportar.

No fim de contas, porém, ainda ficou a ganhar, pois mais tarde verificou-se que só um cavalo fora, realmente, roubado. Os outros tinham sido enxotados para fora da cavalariça, ou fugido aterrorizados, e foram encontrados perdidos em diversos pontos da Breelândia. Mas os póneis de Merry fugiram mesmo e, com o tempo (em virtude de possuírem muito bom senso), encaminharam-se para as Colinas, à procura do Tolo Gorducho. Por isso, ficaram uns tempos ao cuidado de Tom Bombadil, o que lhes fez muito bem. Quando a notícia dos acontecimentos de Bree chegou aos ouvidos de Tom, ele mandou-os ao Sr. Carrapiço, que ficou assim com cinco bons animais por muito bom preço. Em Bree tinham de trabalhar mais, mas, como Bob os tratava bem, bem vistas as coisas, tiveram sorte: livraram-se de uma viagem sinistra e perigosa. Mas também nunca chegaram a Rivendell.

No entanto, de momento, tudo indicava que o dinheiro do Sr. Carrapiço estava definitivamente perdido. E ele tinha ainda outras preocupações: houve um grande alarido assim que os restantes hóspedes se levantaram e tiveram conhecimento do ataque à estalagem. Os viajantes do Sul tinham perdido diversos cavalos e culparam o estalajadeiro em alta gritaria, até se descobrir que um dos do seu grupo também desaparecera de noite: nada menos que o amigo vesgo de Bill Fetoso. As suspeitas recaíram imediatamente sobre ele.

- Se vocês se juntam a um ladrão de cavalos e o trazem para a minha casa - declarou Carrapiço, furioso -, é mister que paguem pessoalmente todos os prejuízos, em vez de me gritarem aos ouvidos! Vão perguntar ao Fetoso onde está o vosso lindo amigo!

Mas, aparentemente, o indivíduo não era amigo de ninguém e ninguém se lembrava onde se juntara ele ao grupo.

 

Depois de tomarem o pequeno-almoço, os hobbits tiveram de arrumar de novo a bagagem e de arranjar mais provisões para a viagem mais longa que os esperava agora. Eram quase dez horas quando partiram, finalmente. Nessa altura, já toda a gente de Bree se mostrava numa grande agitação. O truque do desaparecimento de

Frodo, a vinda dos Cavaleiros Negros, o assalto à cavalariça e, principalmente, a notícia de que Passo de Gigante, o Caminhante, se juntara aos misteriosos hobbits, constituíam uma história que os entreteria durante muitos anos rotineiros e monótonos. A maioria dos habitantes de Bree e Staddle, e até muitos de Combe e Archet, estavam reunidos na estrada, para ver partir os viajantes. Os outros hóspedes da estalagem encontravam-se às portas ou debruçados das janelas, com a mesma intenção.

Passo de Gigante mudara de ideias e decidira partir de Bree pela estrada principal. Qualquer tentativa de ir imediatamente a corta-mato só complicaria as coisas: metade dos habitantes segui-los-ia, para ver o que tramavam e para os impedir de entrar em propriedades privadas.

Despediram-se do Cachola e de Bob, assim como do Sr. Carrapiço, com muitos agradecimentos.

- Espero que nos voltemos a encontrar qualquer dia, quando as coisas estiverem outra vez alegres - disse Frodo. - Nada me agradaria mais do que passar uns tempos em sua casa, em paz.

Partiram, inquietos e desanimados, sob os olhares da multidão. Nem todos os rostos, nem todas as palavras que lhes gritaram, exprimiam amizade. Mas parecia que uma grande parte dos breenses temia Passo de Gigante, pois aqueles que fitava calavam a boca e afastavam-se. Ele caminhava à frente com Frodo, atrás vinham Merry e Pippin e Sam fechava a marcha com o pónei, que carregava a bagagem que, dado o seu estado, tinham tido a coragem de lhe pôr no lombo. No entanto, o animal já parecia menos abatido, como se lhe agradasse a mudança operada na sua sorte. Sam comia uma maçã, pensativamente. Tinha a algibeira cheia delas, dadas por Cachola e Bob como presente de despedida. «Maçãs para caminhar e um cachimbo para sentar», dissera. «Mas calculo que não tardarei a sentir a falta de ambas as coisas.»

Os hobbits não ligavam importância nenhuma às cabeças curiosas que espreitavam das portas ou por cima de muros e sebes, quando eles passavam. No entanto, quando se aproximavam da porta de saída, Frodo viu uma casa escura e maltratada atrás de uma sebe densa: a última casa da aldeia. Teve a impressão de ver, a uma das janelas, uma cara estúpida, de olhos matreiros e vesgos, que se ocultou imediatamente.

«É então aqui que o tal sulista está escondido!», pensou. «Parece que mais de metade do seu sangue é de gnomo.»

Outro homem os olhava, descaradamente, por cima da sebe. Tinha grossas sobrancelhas pretas e desdenhosos olhos escuros. A boca grande arrepanhava-se-lhe num sorriso trocista e fumava um cachimbo preto, curto. Quando se aproximaram, tirou-o da boca e cuspiu.

- Bons-dias, Pernas Compridas! - saudou. - Partes cedo... Encontraste finalmente alguns amigos, hem?

Passo de Gigante acenou com a cabeça, mas não lhe respondeu.

- Bons-dias, meus amiguinhos! - disse o homem aos outros. - Suponho que sabem com quem se meteram ...? Esse que os acompanha é o Passo de Gigante sem Escrúpulos, embora eu tenha ouvido chamar-lhe outros nomes menos bonitos. Estejam atentos, esta noite! E tu, Sammie, não trates mal o meu pobre e velho pónei! - Cuspiu outra vez.

Sam virou-se, bruscamente, e replicou:

- E tu, Fetoso, esconde essa cara feia antes que ta aleijem! - E, rápida como um raio, uma maçã voou-lhe da mão e acertou um cheio no nariz de Bill, que se encolheu tarde de mais e praguejou a coberto da sebe. - Lá estraguei uma boa maçã! - comentou Sam, pesaroso, e continuou a andar.

 

Finalmente deixaram a aldeia. A escolta de crianças e vadios que os seguira cansou-se e voltou para trás, na porta sul. O grupo transpô-la e continuou pela Estrada durante mais alguns quilómetros. A Estrada virava para a esquerda, para regressar, numa curva, ao seu sentido leste, enquanto contornava o sopé do monte Bree, e depois começava a descer acentuadamente para uma região arborizada. À esquerda viam-se algumas das casas e dos buracos dos Hobbits de Staddle, nas vertentes menos íngremes do lado sudeste do monte; em baixo, numa depressão funda a norte da Estrada, distinguiam-se farrapos de fumo a subir no ar, os quais localizavam Combe; Archet ficava oculta pelo arvoredo que se seguia.

Depois de a Estrada ter descido uma certa distância, e de ter deixado atrás de si, alto e castanho, o monte Bree, chegaram a um carreiro estreito que seguia para norte.

- É aqui que deixamos o terreno aberto e passamos a viajar protegidos - anunciou Passo de Gigante.

- Espero que não seja um atalho - disse Pippin. - O nosso último atalho pela floresta quase terminou em tragédia.

- Ah, mas nessa altura eu não estava com vocês! - replicou Passo de Gigante, a rir. - Os meus atalhos nunca falham. - Olhou para ambos os lados da Estrada e, como não avistasse ninguém conduziu rapidamente o grupo pelo caminho abaixo, na direcção do vale arborizado.

O seu plano, tanto quanto podiam deduzir sem conhecerem a região, consistia em ir, primeiro, na direcção de Archet, mas depois virar para a direita, ultrapassá-la por leste e seguir, o mais em linha recta possível, pelas terras ermas até ao monte do Cume do Tempo.

Desse modo, se tudo corresse bem, poupariam uma grande curva da Estrada que, mais adiante virava para sul, a fim de evitar os pântanos dos Mosquitos. Mas, claro, eles teriam de passar pelos pântanos e a descrição que Passo de Gigante deles fez não foi nada encorajadora.

Entretanto, porém, não era desagradável caminhar. Na realidade, se não fossem os perturbadores acontecimentos da noite anterior, teriam apreciado essa parte da viagem mais do que qualquer outra, até então. O Sol brilhava, claro, mas não muito quente.

As florestas do vale ainda tinham muitas folhas e estavam cheias de cor, além de parecerem pacíficas e sem qualquer perigo. Passo de Gigante conduzia-os, confiante, através dos muitos carreiros entrecruzados, nos quais, entregues a si próprios, depressa se teriam perdido. O guia escolhia um caminho irregular, com muitas curvas e contracurvas, para despistar qualquer perseguidor.

- Bill Fetoso viu, com certeza, onde deixámos a Estrada, embora eu não creia que ele nos siga, pessoalmente - observou. - Conhece a região circundante relativamente bem, mas sabe que não está à minha altura numa floresta. O que receio é o que possa dizer a outros. Não creio que eles estejam muito longe... Se pensam que seguimos para Archet, tanto melhor.

 

Fosse graças à perícia de Passo de Gigante, fosse por qualquer outra razão, não viram nem oOuviram sinal ou som de qualquer outro ser vivo durante todo aquele dia: nem de duas patas, tirando os pássaros, nem de quatro, tirando uma raposa e quatro esquilos. No dia seguinte começaram a seguir sistematicamente para leste, e continuou tudo calmo e sossegado. No terceiro dia depois da partida de Bree saíram de Chetwood. O terreno descera ininterruptamente desde que tinham abandonado a Estrada, mas naquele ponto deparou-se-lhes uma extensão vasta e plana, onde se tornava muito mais difícil avançar. Tinham deixado muito para trás as fronteiras da Breelândia e encontravam-se numa terra inóspita e ínvia, a caminho dos Pântanos dos Mosquitos.

O solo tornou-se húmido e, em certos lugares, pantanoso, e aqui e ali encontraram charcos e grandes extensões de canaviais e juncos, onde chilreavam pequenos pássaros escondidos. Tinham de escolher o caminho com cuidado, tanto para conservarem os pés secos como para não se desviarem da direcção certa. Ao princípio, avançaram relativamente bem, mas, pouco a pouco, o avanço foi-se tornando mais lento e mais perigoso. Os pântanos eram desnorteantes e traiçoeiros, e nem os Caminhantes conseguiam encontrar um caminho permanente através do labirinto de charcos que mudava constantemente. As moscas começaram a atormentá-los e o ar encheu-se de nuvens de pequenos mosquitos que lhes subiam pelas mangas e pelos calções e se lhes metiam no cabelo.

- Estou a ser comido vivo! - gritou Pippin. - Pântanos dos Mosquitos! Há mais mosquitos do que pântanos!

- De que vivem eles, quando não têm hobbits? - perguntou Sam, a coçar o pescoço.

Passaram um dia desgraçado naquela região solitária e desagradável, e, à noite, o acampamento era húmido, frio e desconfortável e a fúria dos insectos não os deixou dormir. Havia ainda os abomináveis bicharocos que infestavam os canaviais e as moitas e que, pelo barulho que faziam, deviam ser primos do grilo, mas de pior índole. Eram aos milhares e levaram a noite inteirinha num nic-bric, bric-nic que quase enlouqueceu os hobbits.

O dia seguinte, o quarto, foi pouco melhor e a noite quase tão desconfortável. Embora os «nicbriqueiros» (como Sam lhes chamava) tivessem ficado para trás, os mosquitos continuavam a perseguição.

Enquanto estava deitado, cansado mas incapaz de fechar os olhos, Frodo teve a impressão de ver surgir uma luz muito ao longe, no céu oriental, uma luz que brilhou e se apagou muitas vezes. Não era a aurora, pois para isso faltavam ainda algumas horas.

- Que luz é aquela? - perguntou a Passo de Gigante, que se levantara e olhava em frente, para a noite.

- Não sei. Está tão distante, que não se consegue ver o que é. Parecem relâmpagos a saltarem do cume dos montes.

Frodo deitou-se outra vez, mas durante muito tempo continuou a ver os clarões brancos e, à sua luz, o vulto alto e escuro de Passo de Gigante, silencioso e vigilante. Por fim, mergulhou num sono agitado.

Não tinham andado muito, no quinto dia, quando deixaram para trás os últimos charcos e juncais dos pântanos. À frente deles, o solo recomeçou a subir, ininterruptamente. Ao longe, para leste, distinguia-se uma série de montes. O mais alto, que ficava à direita da série e um pouco separado dos outros, tinha um cume cónico e ligeiramente achatado.

- Aquele é o Cume do Tempo - informou Passo de Gigante.

A Estrada Velha, que abandonámos há muito, à nossa direita, segue para sul dele e não lhe passa longe do sopé. Talvez lá cheguemos cerca do meio-dia de amanhã, se seguirmos a direito na sua direcção. Acho que é o melhor que temos a fazer.

- Que quer dizer? - perguntou-lhe Frodo.

- Quero dizer que não podemos ter a certeza do que encontraremos, quando lá chegarmos. Fica perto da Estrada.

- Mas nós esperávamos encontrar lá o Gandalf...

- Sim, mas a esperança é fraca. Se ele vier por este caminho, pode não passar por Bree, e, assim, ficar sem saber o que estamos a fazer. De qualquer modo, a não ser que tenhamos a sorte de chegar quase simultaneamente, não nos encontraremos: não será seguro para ele nem para nós esperar lá muito tempo. Se os Cavaleiros não nos encontrarem nos ermos, é provável que sigam também para o Cume do Tempo, donde se pode ver a toda a volta. Na realidade, há nesta região muitas aves e muitos animais que nos podem ver lá de cima, enquanto aqui estamos. Nem todas as aves merecem confiança e há outros espiões ainda piores.

Os hobbits olharam ansiosamente para os montes distantes. Sam olhou também para o céu pálido, receoso de ver falcões ou águias a pairar por cima deles, com olhos brilhantes e inamistosos.

- Faz-me sentir inquieto e solitário, Passo de Gigante! - queixou-se.

- Que nos aconselha a fazer? - perguntou Frodo.

- Acho... - respondeu Passo de Gigante, como se não estivesse bem certo - ...acho que o melhor é seguirmos, a partir daqui, o mais a direito que pudermos para leste, na direcção da série de montes, e não do Cume do Tempo. Aí poderemos meter por um caminho que conheço, que passa pela base dos montes e nos levará ao Cume do Tempo vindos do Norte e menos expostos. Depois veremos... o que houver para ver.

 

Caminharam esforçadamente todo o dia, até o anoitecer surgir, frio e prematuro. A terra tornou-se mais seca e árida, mas atrás deles havia névoas e vapores nos pântanos. Algumas aves melancólicas piavam tristemente, enquanto o Sol redondo e vermelho se afundava devagar nas sombras do Ocidente; depois seguiu-se um silêncio vazio. Os hobbits recordaram a doce luz crepuscular, que espreitava pelas alegres janelas do Fundo do Saco, muito longe.

Ao findar do dia encontraram um regato que descia sinuosamente dos montes e se perdia nos pântanos estagnados, e foram subindo ao longo das suas margens, enquanto houve luz. Já era noite quando, finalmente, pararam e armaram o acampamento debaixo de alguns amieiros anões, à beira do regato. Em frente erguiam-se, contra o céu já escuro, as vertentes desoladas e sem árvores dos montes. Nessa noite ficaram vigilantes, e Passo de Gigante pareceu não dormir nada. A Lua estava na fase crescente e nas primeiras horas da noite uma luz fria e cinzenta iluminou a terra.

Na manhã seguinte partiram de novo, pouco depois de nascer o Sol. Andava geada no ar e o céu tinha uma tonalidade pálida, azul-clara. Os hobbits sentiam-se refeitos, como se tivessem dormido a noite toda de uma assentada. Começavam a habituar-se a andar muito e comer pouco - pelo menos, pouco em relação ao que, no Shire, teriam considerado o mínimo suficiente para se aguentarem de pé. Pippin declarou que Frodo parecia duas vezes mais hobbit do que antes.

- Isso é muito estranho - comentou Frodo, a apertar o cinto -, uma vez que, na realidade, o meu volume está muito mais reduzido. Espero que o processo de emagrecimento não se prolongue indefinidamente, pois de contrário arrisco-me a transformar-me num espectro!

- Não fale em tais coisas! - disse Passo de Gigante, muito depressa e com surpreendente veemência.

 

Os montes estavam mais próximos. Formavam um espinhaço irregular, que subia frequentemente quase a 300 m e, aqui e ali, descia a fissuras baixas, ou passagens, que conduziam ao lado oriental. Ao longo da crista do espinhaço, os hobbits distinguiram o que pareciam ruínas de muralhas de fossos, esverdeados pelo tempo, e nas passagens ainda se erguiam as ruínas de antigas construções de pedra. Ao anoitecer tinham chegado à base das vertentes ocidentais, onde acamparam. Era a noite de 5 de Outubro e tinham saído de Bree havia seis dias.

De manhã encontraram, pela primeira vez desde que haviam deixado Chetwood para trás, um carreiro visível. Viraram à direita e seguiram-no, para sul. O caminho avançava astuciosamente, dando a impressão de que fora escolhido para ficar o mais oculto da vista possível, tanto dos cumes dos montes, em cima, como das planícies do lado ocidental. Mergulhava em pequenos vales estreitos, cosia-se com barrancos íngremes e, quando passava por terreno mais plano e aberto, apresentava de cada lado enfiadas de grandes penedos e pedras cortadas, que ocultavam os viajantes quase como uma vedação.

- Quem terá feito este caminho, e para quê? - perguntou Merry, quando caminhavam ao longo de uma das passagens onde as pedras eram extraordinariamente grandes e estavam muito juntas. - Não sei bem se me agrada... Tem um certo ar de anta... Há alguma anta no Cume do Tempo?

- Não. Não há nenhuma anta no Cume do Tempo nem em nenhum destes montes - respondeu Passo de Gigante. - Os Homens do Ocidente não viveram aqui, embora, nos seus últimos tempos, tenham defendido temporariamente os montes do mal que vinha de Angmar. Este caminho foi feito para acesso aos fortes ao longo das muralhas. Mas muito antes, nos primeiros tempos do Reino do Norte, construíram no Cume do Tempo uma grande torre de vigia, que chamaram Amon Sûl. Foi incendiada e arrasada e dela não resta nada, a não ser um círculo irregular, que lembra uma tosca coroa de pedra na cabeça do velho monte. Outrora, porém, foi alta e bela. Diz-se que Elendil lá esteve a aguardar a vinda de Gil-galad do ocidente, no tempo da Ultima Aliança.

Os hobbits olharam atentamente para Passo de Gigante. Parecia entendido tanto nas culturas antigas como na maneira de proceder nas regiões selvagens.

- Quem foi Gil-galad? - respondeu Merry, mas Passo de Gigante não lhe respondeu e pareceu absorto nos seus pensamentos.

De súbito, uma voz baixa murmurou:

Gil-galad foi um rei elfo.

Dele os harpistas cantam, tristemente:

o último cujo reino foi belo e livre

entre as Montanhas e o Mar.

 

Comprida era a sua espada, aguçada a lança,

de longe via-se-lhe o elmo, rutilante

e as incontáveis estrelas do campo celeste

espelhavam-se no seu escudo de prata.

Mas partiu há muito tempo

e ninguém sabe para onde foi viver,

pois a sua estrela caiu nas trevas

de Mordor onde moram as sombras.

 

Os outros viraram-se, estupefactos, pois a voz era de Sam.

- Não pares! - pediu Merry.

- Não sei mais - gaguejou Sam, e corou. - Aprendi os versos com o Sr. Bilbo, quando era rapaz. Ele costumava contar-me histórias assim, pois sabia que eu estava sempre pronto a ouvir falar dos Elfos. Foi o Sr. Bilbo que me ensinou as letras. Era muito entendido em livros, o querido Sr. Bilbo. E escrevia poesia. Foi ele que escreveu o que eu acabei de dizer.

- Não foi ele que inventou a história - esclareceu Passo de Gigante, - Faz parte de uma balada chamada A Queda de Gil-galad, escrita numa língua antiga. Bilbo deve tê-la traduzido, o que eu ignorava.

- Havia muito mais, acerca de Mordor - explicou Sam. - Mas eu não decorei essa parte; causava-me calafrios. Quem me havia de dizer que, um dia, eu próprio viajaria para esses lados!...

- Viajar para Mordor?! - exclamou Pippin. - Espero que não cheguemos a isso!

- Não digam esse nome em voz tão alta - recomendou Passo de Gigante.

 

Já o dia ia a meio quando se aproximaram do extremo sul do caminho e viram à sua frente, à luz pálida e límpida do sol de Outubro, um barranco verde-acinzentado que levava como uma ponte, a subir, à encosta norte do monte. Resolveram pôr-se imediatamente a caminho do cimo, enquanto dispunham de bastante luz. Já lhes não era possível ocultarem-se e a sua única esperança era que nenhum inimigo ou espião estivesse a observá-los. Não se via nada mexer no monte. Se Gandalf se encontrava por ali, não se vislumbravam sinais dele.

No flanco ocidental do Cume do Tempo encontraram uma concavidade abrigada, no fundo da qual havia um valezinho em forma de taça, com os lados cobertos de erva. Deixaram aí Sam e Pippin com o pónei e as mochilas e continuaram a subir. Decorrida uma hora de esforçada subida, Passo de Gigante chegou à crista do monte; seguiram-se-lhe Frodo e Merry, cansados e ofegantes. A ladeira final tinha sido íngreme e rochosa.

Lá no alto encontraram, como Passo de Gigante dissera, um grande círculo de restos de antigas construções de pedra, a desmoronar-se ou cobertos de erva já muito antiga. No centro, porém , erguia-se uma construção tumular constituída por pedras partidas e empilhadas, que pareciam ter sido enegrecidas pelo fogo. À sua volta, a turfa apresentava-se queimada até às raízes e toda a erva do interior do círculo estava chamuscada e mirrada, como se o cume do monte tivesse sido pasto de chamas. Mas não se, encontravam vestígios de nenhum ser vivo.

De pé na orla do círculo de ruínas, abarcaram, em baixo, uma vasta extensão, na sua maioria constituída por terras desertas e sem quaisquer características próprias, a não ser algumas manchas florestais, a sul, para lá das quais vislumbravam aqui e ali o brilho de água distante. Debaixo deles, desse lado sul, desenrolava-se como uma fita a Estrada Velha, que vinha do Oeste e serpenteava, a subir e a descer, até desaparecer atrás de uma lomba de terra escura, a leste. Nada bulia, na estrada. Seguindo-a com o olhar, para leste, viram as Montanhas: os contrafortes mais próximos eram castanhos e sombrios e atrás deles erguiam-se formas mais altas e cinzentas e atrás destas picos altos e brancos, que cintilavam entre as nuvens.

- Bem, cá estamos! - exclamou Merry. - Mas a paisagem é muito triste e pouco convidativa. Não há água nem abrigo... nem sinal de Gandalf. Não o censuro por não ter esperado, se cá esteve.

- Não sei... - murmurou Passo de Gigante, a olhar pensativamente em seu redor. - Mesmo que tenha chegado a Bree um dia ou dois depois de nós, podia ter chegado aqui primeiro. Consegue cavalgar muito depressa, quando a necessidade aperta.

De súbito, inclinou-se e olhou para a pedra do cimo da construção tumular, que era mais plana do que as restantes e também mais branca, como se tivesse escapado ao fogo. Pegou-lhe e examinou-a, virando-a nos dedos.

- Esta pedra foi manuseada recentemente - observou. - Que pensam destas marcas?

Frodo viu alguns riscos na parte inferior achatada: I" III.

- Parece ser um risco, um ponto e mais três riscos - disse.

- O risco da esquerda podia ser o «G» rúnico com ramos finos - opinou Passo de Gigante. - Talvez seja um sinal deixado por Gandalf, embora não possamos ter a certeza. Os riscos são finos e não há dúvida de que parecem recentes. No entanto, também é possível que essas marcas signifiquem qualquer outra coisa completamente diferente e não tenham nada a ver connosco. Os Caminhantes usam caracteres rúnicos e vem aqui de vez em quando.

- Que poderiam significar, mesmo que tivessem sido feitos por Gandalf? - perguntou Merry.

- Diria que significavam «G3», e, nesse caso, eram um sinal de que Gandalf esteve aqui em 3 de Outubro, ou seja, há três dias - respondeu Passo de Gigante. - Significariam também que ele estava com pressa e o perigo se encontrava perto, motivo por que ele não tinha tempo nem se atrevia a escrever alguma coisa mais extensa ou explícita. Se assim foi, temos de nos acautelar.

- Gostaria que pudéssemos ter a certeza de que foi ele que fez essas marcas, seja qual for o seu significado - declarou Frodo. - Seria um grande conforto saber que está a caminho, à nossa frente ou atrás de nós.

- Talvez - admitiu Passo de Gigante. - Por fim, creio que esteve aqui e correu perigo. Lavraram aqui chamas, o que me traz à memória a luz que vimos há três noites, no lado oriental do céu. Suponho que ele foi atacado neste cume, mas não faço a mínima ideia de qual tenha sido o resultado. Já cá não está, e agora temos de olhar por nós e de seguir para Rivendell o melhor que pudermos.

- A que distância fica Rivendell? - perguntou Merry, a olhar, fatigado, em seu redor; o mundo parecia agreste e vasto, do Cume do Tempo.

- Não sei se a Estrada foi alguma vez medida em quilómetros para além da Estalagem Abandonada, um dia de viagem a leste de Bree - respondeu Passo de Gigante. - Uns dizem que mede tanto, outros discordam... De qualquer modo, é uma estrada estranha e as Pessoas sentem-se felizes quando chegam ao fim da viagem, quer demore muito, quer pouco tempo. Mas eu sei quanto tempo me levaria a mim, a pé, com bom tempo e sem azares: doze dias daqui ao vau de Bruinen, onde a Estrada atravessa o Água Barulhenta que corre de Rivendell. Temos pelo menos uma quinzena de viagem à nossa frente, pois não creio que possamos utilizar a Estrada.

- Uma quinzena! - exclamou Frodo. - Podem acontecer muitas coisas nesse período de tempo.

- Pois podem - concordou Passo de Gigante.

Ficaram um momento calados, no cume do monte, perto da sua orla do lado sul. Foi nesse lugar solitário que Frodo compreendeu pela primeira vez toda a extensão do seu desamparo e do perigo que corria. Desejou amargamente que a sorte o tivesse deixado continuar no tranquilo e amado Shire. Olhou para baixo, para a odiosa Estrada que seguia para oeste - para a sua terra. De súbito, apercebeu-se de que dois pontos negros avançavam lentamente por ela, para oeste. Olhou de novo e descobriu que três outros pontos avançavam para leste, ao encontro deles. Soltou um grito e agarrou o braço de Passo de Gigante.

- Olhe! - disse, a apontar para baixo.

Passo de Gigante atirou-se imediatamente ao chão, atrás do círculo de ruínas, e arrastou Frodo consigo. Merry estendeu-se ao lado deles.

- Quem é? - perguntou, baixinho.

- Não sei, mas receio o pior - respondeu-lhe Passo de Gigante.

Rastejaram de novo, devagarinho, para a orla do círculo, e espreitaram por uma fenda entre duas pedras irregulares. A luz tornara-se menos clara, pois a manhã já passara, e nuvens vindas do Leste tinham alcançado o Sol, no início da sua descida. Todos eles conseguiam ver os pontos negros, mas nem Frodo nem Merry eram capazes de lhes distinguir a forma, com alguma certeza. No entanto, algo lhes dizia que, lá muito em baixo, se estavam a reunir Cavaleiros Negros, para além do sopé do monte.

- Sim - disse Passo de Gigante, cujo olhar mais penetrante não lhe deixava quaisquer dúvidas -, o inimigo está aqui!

Afastaram-se, apressadamente, e desceram pelo lado norte do monte, a fim de se juntarem aos companheiros.

 

Sam e Peregrino não tinham estado ociosos. Haviam explorado o pequeno vale e as encostas circundantes. Não muito longe, encontraram uma fonte de água límpida, na vertente do monte, e, perto, pegadas que não deveriam ter mais de um ou dois dias. No próprio vale descobriram vestígios recentes de uma fogueira e outros sinais de que ali fora feito um acampamento apressado. Havia algumas pedras caídas na margem do valezinho mais próxima do monte. Atrás dela, Sam encontrou uma pequena reserva de lenha, cuidadosamente empilhada.

- Pergunto a mim mesmo se o velho Gandalf aqui terá estado - disse Pippin.- Quem quer que pôs isto aqui tencionava voltar, segundo me parece.

Passo de Gigante mostrou-se muito interessado nas descobertas.

- Tenho pena de não ter esperado e explorado pessoalmente o terreno, aqui em baixo - disse, enquanto se dirigia apressadamente para a fonte, a fim de examinar as pegadas.

Quando voltou, lamentou-se:

- Como eu receava, Sam e Pippin pisaram o solo macio, e as pegadas ficaram destruídas e confusas. Estiveram aqui Caminhantes, recentemente, e foram eles que deixaram a lenha. No entanto, encontrei alguns rastos mais recentes que não foram deixados por Caminhantes. Pelo menos uma série de pegadas foi deixada por botas grossas, há apenas um ou dois dias. Pelo menos uma. Agora não posso ter a certeza, mas creio que foram muitos os pés calçados de botas que estiveram aqui.

Calou-se e ficou a pensar, com ar inquieto.

Cada um dos hobbits teve uma visão mental de cavaleiros de capa e botas. Se os cavaleiros já tinham descoberto o vale, quanto mais depressa Passo de Gigante os conduzisse para outro lado qualquer, melhor. Sam olhou para o pequeno vale com grande hostilidade, depois de saber que os seus inimigos estavam na Estrada, apenas a alguns quilómetros de distância.

- Não seria melhor sairmos daqui depressa, Sr. Passo de Gigante? - perguntou, impaciente. - Está a fazer-se tarde e não gosto deste buraco. Não sei porquê, mas desanima-me o coração.

- Sim, não há dúvida de que temos de decidir imediatamente o que vamos fazer - respondeu Passo de Gigante, enquanto olhava para cima e avaliava as horas e o estado do tempo. - Bem, Sam - acrescentou, por fim -, também não gosto deste lugar, mas a verdade é que não me lembro de nenhum melhor aonde pudéssemos chegar antes de anoitecer. Aqui, pelo menos, não estamos visíveis, de momento, e, se partíssemos, aumentariam muito as probabilidades de sermos vistos por espiões. A única coisa que poderíamos fazer seria afastar-nos do nosso caminho e retroceder para norte, deste lado da série de montes, onde o terreno é muito semelhante a este aqui. A Estrada está vigiada, mas teríamos de a atravessar se tentássemos abrigar-nos nos pequenos bosques, lá para sul. Do lado norte da Estrada, depois dos montes, o terreno é árido e plano ao longo de quilómetros e quilómetros.

- Os Cavaleiros vêem? - perguntou Merry. - Quero dizer, eles geralmente parecem utilizar mais o nariz do que os olhos, cheiram-nos, se cheirar é a palavra adequada, pelo menos à luz do dia. Mas você fez-nos estender no chão, quando os viu lá em baixo, e agora falou em sermos vistos, se sairmos daqui.

- Fui descuidado de mais lá em cima, no cume do monte - respondeu Passo de Gigante. - Estava ansioso por encontrar algum sinal de Gandalf, mas foi um erro subirmos três e ficarmos lá tanto tempo, pois os cavalos pretos vêem e os Cavaleiros podem utilizar homens e outras criaturas como espiões, como verificámos em Bree. Eles próprios não vêem o mundo da luz como nós, mas os nossos vultos projectam no seu cérebro sombras que só o sol do meio-dia destrói; e, na escuridão, captam muitos sinais e formas que estão ocultas de nós; por isso, é nessa altura que são mais de temer. Tirando isso, captam, em todas as ocasiões, o cheiro do sangue de seres vivos, que desejam e odeiam. E possuem outros sentidos além da vista e do olfacto. Nós sentimos a sua presença... ela perturbou os nossos corações assim que chegámos aqui e antes de os vermos... mas eles sentem a nossa com uma agudez ainda maior. - Reduziu a voz a um murmúrio e acrescentou: - E o anel atrai-os.

- Não há, então, fuga possível? - perguntou Frodo, a olhar desesperadamente à sua volta. - Se me mexer, serei visto e perseguido! Se permanecer aqui, atraí-los-ei para mim!

Passo de Gigante pôs-lhe a mão no ombro e disse:

- Ainda há esperança. Não está só. Tomemos como sinal esta lenha aqui arrumada e preparada para arder. Neste lugar há pouco abrigo ou defesa, mas o fogo servirá para ambas as coisas. Sauron pode utilizar o fogo para maus fins... o fogo e todas as coisas... mas os Cavaleiros não gostam dele nem daqueles que o acendem. O fogo é nosso amigo, nestas terras inóspitas.

- Talvez - resmungou Sam. - Mas também é uma maneira tão boa como qualquer outra de dizer «Aqui estamos!». Melhor, só gritando.

 

No canto mais baixo e mais abrigado do valezinho acenderam uma fogueira e prepararam uma refeição. As sombras do anoitecer começaram a alastrar e o ar arrefeceu. De súbito, aperceberam-se de que tinham muita fome, pois não comiam nada desde o pequeno-almoço; mas não se atreveram a preparar mais do que uma refeição frugal. As terras em frente estavam vazias de tudo, salvo aves e animais; eram lugares inóspitos, abandonados por todas as raças do mundo. Às vezes passavam Caminhantes para lá dos montes, mas eram poucos e não se demoravam. Outros viandantes eram raros e de má raça: trolls que desciam de quando em quando até ali, vindos dos vales setentrionais das Montanhas Nebulosas. Só na Estrada se poderiam encontrar viajantes, na sua maioria anões que andavam a tratar apressadamente de assuntos seus e não dispunham de ajuda nem de muitas palavras para desconhecidos.

- Não sei como as nossas provisoes vão chegar - observou Frodo. - Nos últimos dias temos sido cuidadosos e este jantar não é nenhum festim, mas, apesar disso, já consumimos mais do que deveríamos, se ainda temos duas semanas de viagem, ou talvez mais.

- Há comida nas terras selvagens: raízes, bagas e ervas. E eu tenho certa habilidade como caçador, sendo necessário. Não tenham receio, que não morrem de fome antes de o Inverno chegar. Mas procurar comida e caçar são tarefas demoradas e cansativas, e nós precisamos de andar depressa. Por isso, apertem o cinto e pensem com esperança nas mesas da casa de Elrond!

O frio aumentou à medida que a escuridão alastrou. Espreitando da orla do vale, não conseguiram ver nada além de uma terra cinzenta que mergulhava rapidamente nas sombras. O céu clareava de novo e ia-se enchendo, devagar, de estrelas cintilantes. Frodo e os companheiros aninharam-se à roda do fogo, embrulhados em toda a roupa e em todos os cobertores que tinham; mas Passo de Gigante contentou-se com uma simples capa e sentou-se um pouco afastado, a fumar cachimbo, pensativamente.

Quando a noite caiu e a luz da fogueira passou a brilhar vivamente, começou a contar-lhes histórias, para lhes afastar o medo do espírito. Sabia muitas histórias e lendas antigas de elfos e homens, assim como as boas e as más acções dos Tempos Antigos. Os hobbits perguntaram a si mesmos que idade teria e onde aprendera tudo aquilo.

- Fale-nos de Gil-galad - pediu-lhe Merry, de súbito, quando ele fez uma pausa no fim de uma história acerca dos reinos élficos. - Sabe mais alguma coisa daquela balada antiga de que falou?

- Sei, sim - respondeu Passo de Gigante. - E Frodo também sabe, pois ela respeita-nos de perto.

Merry e Pippin olharam para Frodo, que estava de olhos postos no lume.

- Só sei o pouco que Gandalf me disse - declarou Frodo, devagar. - Gil-galad foi o último dos grandes reis elfos da Terra Média. Gil-galad significa Luz Estrelar, na língua deles. Com Elendil, amigo dos Elfos, foi para a terra de...

- Não! - interrompeu-o Passo de Gigante. - Não acho que essa história deva ser contada agora, com os servidores do Inimigo tão perto. Se conseguirmos chegar à casa de Elrond, poderão ouvi-la lá, completa.

- Então conte-nos outra história qualquer de antigamente - pediu Sam -, uma história a respeito de elfos antes do enfraquecimento. Gostaria muito de ouvir mais coisas acerca de elfos; a escuridão parece aproximar-se tanto e sufocar-nos...

- Vou-lhes contar a história de Tinúviel - acedeu Passo de Gigante. - Em resumo, pois é uma longa história cujo fim se desconhece, e agora não há ninguém, a não ser Elrond, que se lembre dela com exactidão, como era contada antigamente. É uma história bonita, embora triste como todas as histórias da Terra Média, mas mesmo assim poderá dar-lhes ânimo.

Ficou calado, durante algum tempo, e depois começou, não a falar, mas sim a cantar suavemente:

As folhas eram compridas, a erva verde,

Altas e graciosas as umbelas da cicuta

E na clareira via-se um luzeiro

De estrelas a brilhar na sombra.

Tinúviel estava lá a dançar

Ao som de invisível flauta

E o brilho das estrelas luzia-lhe no cabelo

E bruxuleava-lhe nos vestidos.

 

Lá chegou Beren das frias montanhas

E, perdido, vagueou sob as ramarias,

E onde o rio elfo deslizava

Caminhava ele sozinho e desgostoso.

Espreitou por entre as folhas da cicuta

E viu, maravilhado, flores de ouro

Nas mangas e no manto daquela

Cujo cabelo caía como uma sombra.

 

O encantamento sarou-lhe os pés cansados,

Condenados a calcorrear os montes;

Apressou-se, forte e veloz,

E agarrou cintilantes raios de luar.

Através das densas florestas da terra élfica

Ela fugiu, leve, com pés que dançavam,

E deixou-o solitário, a vaguear,

À escuta na floresta silenciosa.

 

Ouviu muitas vezes o som fugidio

De pés leves como folhas de tília,

Ou música a alastrar debaixo do chão,

A vibrar em ocultos vales.

Murchos estavam já os cachos de cicuta

E uma a uma, com ruídos de suspiros,

Murmurando caíam as folhas das bétulas

Que na invernal floresta estremeciam.

Procurou-a sempre, longe e mais longe,

Onde anos de folhas caídas se amontoavam,

Alumiado pelo luar e pelas estrelas

Que em céus gelados tremiam de frio.

O manto dela refulgia ao luar

Enquanto, num cume distante e alto,

Dançava uma névoa de prata trémula

A luzir-lhe aos pés.

 

Ela voltou terminado o Inverno

E o seu canto libertou, súbito, a Primavera,

Como uma cotovia a subir, a chuva a cair

E a água da neve derretida a borbulhar.

Ele viu as flores élficas desabrochar

À volta dos seus pés e, de novo sarado,

Anelou por que cantasse e dançasse

Na erva renovada e fresca.

 

De novo ela fugiu, mas, lesto, ele correu:

Tinúviel! Tinúviel!

Chamou-a pelo seu nome élfico.

E logo ela parou, à escuta...

Um instante se deteve, e um feitiço

A voz dele lhe teceu: Beren acercou-se

E a perdição abateu-se sobre Tinúviel

Que nos braços dele caiu, cintilante.

 

Ao fitá-la nos olhos,

Entre as sombras do cabelo,

Neles viu espelhada, a luzir,

A trémula luz das estrelas do céu.

Tinúviel, a bela elfa,

Donzela imortal, porque elfa era,

Envolveu-o nos cabelos sombrios

E nos braços como prata a brilhar.

 

Longo caminho a sorte lhes destinou,

Por montanhas pedregosas, frias e cinzentas,

Através de mansões de ferro e obscuras portas,

E florestas de erva-moura sem amanhã.

Os mares intransponíveis entre eles correram,

Mas, mesmo assim, por fim reencontraram-se

E há muito tempo já pereceram

Na floresta, a cantar sem mágoa.

 

Passo de Gigante suspirou e fez uma pausa, antes de voltar a falar:

- É uma canção do género a que os Elfos chamam ann-thennat, difícil de traduzir no nosso Idioma Comum. O que ouviram foi a apenas um eco tosco do original. Fala do encontro de Beren, filho de Barahir, e de Lúthien Tinúviel. Beren era um homem mortal, mas Lúthien era filha de Thingol, um rei dos Elfos da Terra Média, quando o mundo era jovem, e a donzela mais bonita que jamais houvera entre todos os filhos deste mundo. A sua beleza era como a das estrelas por cima das névoas das terras setentrionais e no seu rosto brilhava uma luz esplendorosa. Nesse tempo, o Grande Inimigo, de quem Sauron de Mordor era apenas um servo, morava em Angband, no Norte, e os Elfos do Ocidente, ao regressarem à Terra Média, guerrearam-no para recuperarem os Silmarils que ele roubara, e os pais dos Homens ajudaram os Elfos. Mas o Inimigo venceu e Barahir foi morto e Beren, ao fugir com grande perigo, passou pelas Montanhas do Terror e penetrou no reino oculto de Thingol, na floresta de Neldoreth. Aí viu Lúthien a cantar e dançar numa clareira, junto do rio encantado Esgalduin, e chamou-lhe Tinúviel, que quer dizer Rouxinol na língua antiga. Estavam-lhes reservados muitos desgostos, depois, e passaram muito tempo separados. Tinúviel libertou Beren das masmorras de Sauron, e, juntos, atravessaram muitos perigos e até derrubaram o Grande Inimigo do trono e tiraram-lhe da coroa de ferro um dos três Silmarils, a mais rutilante de todas as pedras preciosas, para ser o preço-de-noiva que Lúthien pagaria ao seu pai. Mas, no fim, Beren foi atacado pelo Lobo que veio das portas de Angband e morreu nos braços de Tinúviel. Ela escolheu a mortalidade e partir deste mundo para poder acompanhá-lo, e a canção diz que se voltaram a encontrar além dos Mares Intransponíveis e, após um breve período em que caminharam de novo, vivos, nas verdes florestas, juntos passaram, há muito tempo, para lá dos confins deste mundo. E foi assim que Lúthien Tinúviel foi a única da espécie élfica a morrer de facto e a deixar o mundo, e os Elfos perderam aquela que mais amavam. Mas, a partir dela, a linhagem dos reis elfos de antigamente desceu até ao seio dos Homens. Ainda vivem aqueles de quem Lúthien foi antepassado e diz-se que a sua linhagem nunca se perderá. Elrond de Rivendell é dessa família, pois de Beren e Lúthien nasceu o herdeiro de Dior Thingol, e dele nasceu Elwing, a Branca, que Eärendil desposou, Eärendil que conduziu o seu navio das névoas do mundo para os mares do céu com o Silmaril na fronte. E de Eärendil nasceram os reis de Númenor, que é a Ocidentalidade.

Enquanto Passo de Gigante falava, os outros observavam-lhe o rosto estranho e ansioso, vagamente iluminado pelo clarão vermelho da fogueira. Brilhavam-lhe os olhos e a sua voz era profunda e rica. Por cima dele, o céu estava negro e coalhado de estrelas. De subito, apareceu uma luz pálida sobre a coroa do Cume do Tempo, atrás de Passo de Gigante. A Lua subiu vagarosamente por cima do monte que os protegia e as estrelas sobre o monte empalideceram.

A história terminou. Os hobbits mexeram-se e espreguiçaram-se.

- Olhem! - exclamou Merry. - A Lua está a nascer. Já deve ser tarde.

Os outros olharam. No mesmo instante, viram no cume do monte qualquer coisa pequena e escura recortada na claridade fraca do luar. Talvez fosse apenas uma pedra grande ou um rochedo saliente revelado pela luz ténue.

Sam e Merry levantaram-se e afastaram-se da fogueira. Frodo e Pippin continuaram sentados, em silêncio. Passo de Gigante observava atentamente o luar que banhava o monte. Parecia tudo sossegado e calmo, mas Frodo sentia um medo frio invadir-lhe o coração, desde que Passo de Gigante deixara de falar. Encolheu-se, mais

perto do lume. Nesse momento, Sam voltou a correr da orla do valezinho.

- Não sei porquê - disse -, mas, de repente, tive medo. Não me atreveria a sair deste vale por dinheiro nenhum. Tive a impressão de que qualquer coisa subia sorrateiramente a encosta.

- Viste alguma coisa? - perguntou-lhe Frodo, levantando-se de um pulo.

- Não, senhor. Não vi nada... mas também não parei para olhar.

- Eu vi qualquer coisa, ou pensei que vi, pelo menos - declarou Merry. - Ali, a ocidente, onde o luar bate nas planícies para lá da sombra dos cumes, pareceu-me distinguir dois ou três vultos pretos. Pareciam deslocar-se para este lado.

- Mantenham-se junto da fogueira e com o rosto voltado para o exterior! - gritou Passo de Gigante. - Munam-se depressa de alguns dos paus mais compridos!

Durante momentos de grande ansiedade permaneceram sentados, silenciosos e atentos, de costas voltadas para a fogueira, todos de olhos postos nas sombras que os cercavam. Não aconteceu nada. Não se ouvia, na noite, nenhum som ou movimento. Frodo mexeu-se, incapaz de prolongar o silêncio: ansiava por gritar com toda a força.

- Caluda! - murmurou Passo de Gigante.

- Que é aquilo? - perguntou Pippin, baixinho, no mesmo instante.

Na orla do valezinho, do lado afastado do monte, sentiram, mais do que viram, erguer-se uma sombra - ou mais do que uma. Esforçaram os olhos, e as sombras pareceram crescer. Em breve não lhes restavam quaisquer dúvidas: três ou quatro vultos negros, altos, estavam de pé na encosta, a olhar para baixo, para eles. Eram tão negros, que pareciam buracos pretos na sombra densa atrás deles.

Frodo teve a sensação de ouvir um leve silvo, como que um bafo venenoso, e sentiu um frio penetrante e agudo. Depois, as sombras começaram a avançar lentamente.

O terror apoderou-se de Pippin e Merry, que se estenderam ao comprido no chão. Sam encolheu-se ao lado de Frodo, que não estava menos aterrorizado do que os companheiros. Tremia, como se tivesse um frio insuportável, mas a súbita tentação de pôr o anel sobrepôs-se ao terror. Esse desejo apoderou-se totalmente dele, e impossibilitou-o de pensar noutra coisa. Não se esqueceu da anta nem da carta de Gandalf; mas havia qualquer coisa que parecia impeli-lo a ignorar todas as advertências e ele ansiava por ceder. Não com a esperança de escapar ou de fazer qualquer coisa, boa ou má: sentia simplesmente que tinha de tirar o anel e enfiá-lo no dedo. Não podia falar. Sentiu Sam a olhá-lo, como se adivinhasse que o amo estava num grande apuro, mas não foi capaz de se virar para ele. Fechou os olhos e resistiu alguns momentos. Mas a resistência tornou-se insuportável, e por fim tirou devagarinho a corrente e enfiou o anel no indicador da mão esquerda.

Acto contínuo, embora tudo o mais permanecesse como antes, vago e escuro, os vultos tornaram-se terrivelmente nítidos. Conseguia ver debaixo do vestuário preto que os envolvia. Eram cinco vultos altos: dois estavam parados na orla do valezinho e três avançavam. Nos seus rostos brancos brilhavam olhos penetrantes e implacáveis; sob os mantos envergavam uma comprida vestimenta cinzenta; nos cabelos cinzentos usavam elmos de prata, e nas mãos descarnadas seguravam espadas de aço. Os seus olhos fixaram-no e trespassaram-no, ao mesmo tempo que avançavam, num ímpeto, para ele. Desesperado, Frodo empunhou a própria espada e pareceu-lhe que ela tinha um brilho vermelho, como se estivesse em brasa. Dois dos vultos pararam. O terceiro era mais alto do que os outros, tinha cabelo comprido e luminoso e uma coroa no elmo. Numa das mãos empunhava uma espada comprida e na outra uma faca; tanto a faca como a mão que a segurava irradiavam uma luz pálida. O vulto avançou para Frodo.

Nesse momento, Frodo atirou-se para o chão, para a frente, e ouviu a própria voz gritar, alto: ó Elbereth! Gilthoniel! Ao mesmo tempo, atacou os pés do inimigo. Um grito agudo vibrou na noite e Frodo sentiu uma dor, como se tivesse sido atingido por um dardo envenenado, penetrar-lhe o ombro esquerdo. Enquanto perdia os sentidos, ainda viu, como que num nevoeiro turbilhonante, Passo de Gigante saltar da escuridão com um pedaço de lenha incandescente em cada mão. Com um derradeiro esforço, Frodo largou a espada, tirou o anel do dedo e apertou-o bem na mão direita.

 

CORRIDA PARA O VAU

Quando voltou a si, ainda apertava desesperadamente o anel. Estava deitado junto ao lume, no qual tinham posto mais lenha e que ardia luminosamente. Os seus três companheiros estavam inclinados para ele.

- Que aconteceu? Onde está o rei pálido? - perguntou, desvairado.

Os amigos ficaram tão contentes, a ouvi-lo falar, que nem lhe responderam logo - demais a mais, não tinham compreendido a pergunta. Por fim, Frodo deduziu pelas palavras de Sam, que só tinham visto vagos vultos sombrios avançar para eles. De súbito, Sam descobrira, horrorizado, que o seu amo desaparecera e, no mesmo momento, passara velozmente por ele uma sombra negra, que o derrubara. Ouvira a voz de Frodo, mas parecera-lhe que vinha de muito longe, ou de debaixo da terra, a gritar palavras estranhas.

Não tinham visto mais nada até tropeçarem no corpo de Frodo, caído como se estivesse morto, de bruços na erva, com a espada debaixo dele. Passo de Gigante ordenara-lhes que o levantassem e deitassem junto da fogueira, e depois desaparecera. Isso fora havia já um bocado.

Sam começava, francamente, a ter de novo dúvidas a respeito de Passo de Gigante. Mas ele voltou enquanto falavam, irrompeu subitamente das sombras. Estremeceram, e Sam desembainhou a espada e cobriu Frodo. Passo de Gigante, porém, ajoelhou-se rapidamente a seu lado.

- Não sou um cavaleiro negro, Sam, nem estou conluiado com eles - disse, de mansinho. - Estive a ver se descobria alguma coisa acerca dos seus movimentos, mas não descobri nada. Não compreendo por que motivo partiram sem atacar de novo. Não se sente a sua presença em lado nenhum, nas imediações.

Quando ouviu o que Frodo tinha para contar, ficou muito preocupado, abanou a cabeça e suspirou. Mandou Pippin e Merry aquecer toda a água quente que pudesse, nas suas pequenas cafeteiras, e lavar a ferida com ela.

- Mantenham a fogueira bem acesa e Frodo quente! - acrescentou.

Depois afastou-se e chamou Sam:

- Agora parece-me que compreendo melhor as coisas - disse-lhe, em voz baixa. - Tudo indica que só estavam cinco presentes do Inimigo. Não sei por que não estavam todos. Talvez não esperassem resistência. Por agora retiraram-se, mas temo que não tenha sido para muito longe. Voltarão outra noite, se não conseguirmos fugir. Se esperam, é porque julgam que o seu objectivo está quase alcançado e o anel não pode fugir para muito longe. Receio, Sam, que estejam convencidos de que o seu patrão está mortalmente ferido e que isso o vergará à sua vontade. Veremos!

Sam conteve a custo as lágrimas.

- Não desespere! - recomendou-lhe Passo de Gigante. - Tem de confiar em mim. O seu Frodo é feito de material mais resistente do que eu supunha, embora Gandalf já me tivesse dado a entender isso mesmo. Não está morto e eu acho que resistirá mais tempo do que os inimigos esperam ao poder maléfico do ferimento. Farei tudo quanto puder para o ajudar a sarar. Guardem-no bem, enquanto eu estiver ausente!

Passo de Gigante afastou-se, apressado, e voltou a desaparecer na escuridão.

 

Frodo dormitava, apesar de a dor da ferida aumentar lentamente e um frio horrível lhe alastrar do ombro para o braço e para o flanco. Os amigos vigiavam-no, aqueciam-no e lavavam-lhe a ferida. A noite passou, lenta e angustiadamente. A alvorada lastrava no céu e o valezinho enchia-se de luz cinzenta quando Passo de Gigante regressou, finalmente.

- Olhem! - gritou, ao mesmo tempo que se baixava e apanhava do chão uma capa negra que a escuridão não deixara ver antes; uns 30 cm acima da bainha via-se um rasgão. - É o golpe da espada de Frodo - explicou. - único mal que conseguiu fazer ao inimigo, suponho, pois a lâmina está intacta e todas as lâminas que trespassam o terrível rei partem-se. Feriu-o mais, com certeza, o nome de Elbereth.

«E o que feriu Frodo foi isto!», exclamou, enquanto se baixava de novo e apanhava uma faca comprida e fina, com um brilho frio.

Quando a levantou, Passo de Gigante reparou que, perto da ponta, a lâmina tinha uma boca e que a ponta propriamente dita desaparecera. Mas, enquanto a erguia à crescente luz matinal arregalaram todos os olhos de espanto, pois a lâmina pareceu derreter-se e evaporar-se como fumo no ar: só ficou o cabo na mão de Passo de Gigante.

- Foi esta maldita faca que fez a ferida! - exclamou- - Poucos, agora possuem uma arte de sarar à altura de armas tão terríveis. Mas eu farei o que puder.

Sentou-se no chão,colocou o cabo da faca nos joelhos e, inclinado para ele, entoou uma canção estranha, numa língua desconhecida.

Depois pôs o cabo da faca de lado, voltou-se para Frodo e, em tom suave, proferiu palavras que os outros não conseguiram entender.

Da bolsa que lhe pendia do cinto tirou em seguida as folhas compridas de uma planta.

- Tive de andar muito para encontrar estas folhas, visto esta planta não crescer nos montes áridos - explicou. - Encontrei-a às escuras guiado pelo cheiro das suas folhas, nos bosques que ficam a sul da Estrada. - Esmagou entre os dedos uma folha que emanou uma fragrância ao mesmo tempo suave e penetrante. - Foi uma sorte tê-la encontrado, pois é uma planta curativa que os Homens do Ocidente trouxeram para a Terra Média. Chamavam-lhe Athelas e agora é rara e só cresce perto dos lugares onde eles viveram ou acamparam antigamente. No Norte não é conhecida, a não ser por alguns daqueles que percorrem as terras ermas. Tem grandes virtudes, mas os seus poderes curativos talvez sejam poucos numa ferida destas.

Lançou as folhas em água a ferver e banhou o ombro de Frodo. A fragrância do vapor era repousante, e os outros, que não estavam feridos, sentiram o espírito mais tranquilo e menos confuso. A erva também produziu algum efeito na ferida, pois Frodo sentiu a dor e a sensação de frio diminuírem, no flanco; mas a vida não lhe voltou ao braço, e continuou sem poder levantar ou utilizar a mão. Lamentou amargamente a sua idiotice e acusou-se de fraqueza de vontade, pois agora compreendia que, ao enfiar o anel no dedo, não obedecera ao seu próprio desejo, e sim à vontade autoritária dos seus inimigos. Perguntou a si mesmo se ficaria aleijado para o resto da vida e como conseguiriam agora prosseguir viagem. Sentia-se tão fraco, que não se aguentava de pé.

Os outros discutiam precisamente esse problema. Decidiram imediatamente deixar o Cume do Tempo o mais depressa possível.

- Agora estou convencido de que o Inimigo já vigiava este lugar havia alguns dias - disse Passo de Gigante. - Se Gandalf aqui chegou a vir, deve ter sido obrigado a partir e não voltará. De qualquer modo corremos aqui grandes perigos, depois de escurecer, como o prova o ataque desta noite. Dificilmente poderemos correr perigo maior em qualquer outro lugar para onde nos dirijamos.

Assim que clareou por completo, comeram qualquer coisa, apressadamente, e prepararam a bagagem. Como Frodo não podia andar, repartiram a maior parte da bagagem pelos quatro e colocaram-no a ele no pónei. Nos últimos dias, o pobre animal melhorara extraordinariamente, já parecia mais gordo e mais forte e começara a evidenciar afecto pelos novos donos, especialmente por Sam. Bill Fetoso devia tê-lo tratado muito mal, para uma viagem daquelas lhe parecer muito melhor do que a sua vida anterior.

Partiram numa direcção sul, o que significava que teriam de atravessar a Estrada; mas era o caminho mais rápido para regiões mais arborizadas. Precisavam de combustível, pois Passo de Gigante dizia que era necessário manter Frodo quente, especialmente de noite, e uma fogueira constituíria também uma certa protecção para todos eles. Estava ainda nos seus planos encurtar a viagem atalhando por outra grande curva da Estrada: a leste, depois do Cume do Tempo, mudava de direcção e descrevia uma curva larga para norte.

Contornaram devagar e cautelosamente as faldas do lado sul do monte e, pouco depois, chegaram à beira da Estrada. Não havia sinal dos Cavaleiros. Mas, enquanto atravessavam rapidamente, ouviram dois gritos, muito longe: uma voz fria chamar e outra fria a responder. Saltaram para a frente, a tremer, e dirigiram-se para os bosques. Diante deles a terra descia para sul, mas era bravia e sem caminhos. Havia densas manchas de arbustos e árvores anãs, com grandes espaços áridos de permeio. A erva era pouca, áspera e cinzenta, e as folhas das moitas estavam murchas e a cair. Era uma região triste, e a caminhada dos viajantes tornou-se lenta e soturna. Falavam pouco, enquanto avançavam com dificuldade. O coração de Frodo confrangia-se quando os via caminhar a seu lado de cabeça baixa e costas arqueadas sob o peso. Até Passo de Gigante parecia cansado e deprimido.

Antes de terminado o primeiro dia de marcha, a ferida de Frodo recomeçou a doer-lhe mais, mas ele não o mencionou durante muito tempo. Passaram quatro dias sem que o terreno ou a paisagem mudassem muito, a não ser o facto de, atrás deles, o Cume do Tempo ir desaparecendo, lentamente, e, à sua frente, as montanhas distantes parecerem erguer-se um pouco mais perto. No entanto, desde aqueles gritos longínquos, não tinham visto nem ouvido nada que indicasse que o inimigo observava a sua fuga ou que os seguia. Temiam as horas de escuridão e de noite ficavam de guarda aos pares, sempre à espera de verem vultos negros avançar, sorrateiros, na noite cinzenta, fracamente iluminada pela Lua coberta de nuvens. Mas não viam nada nem ouviam nenhum som além do suspiro das folhas murchas e da erva. Nem uma só vez experimentaram aquela sensação de que um mal estava presente, como lhes acontecera antes do ataque no valezinho. Parecia-lhes, no entanto, exagerado esperar que os Cavaleiros já lhe tivessem perdido de novo o rasto. Talvez aguardassem o momento de lhes fazerem uma emboscada, em qualquer lugar estreito...

Ao fim o quinto dia, o terreno recomeçou a subir lentamente à saída do vale largo e pouco fundo a que tinham descido. Passo de Gigante mudou de novo de direcção para nordeste, e no sexto dia chegaram ao cimo de uma comprida encosta, não muito íngreme, e viram, muito ao longe, um grupo de montes arborizados. Muito abaixo deles, distinguiram a Estrada a contornar as faldas dos

montes e à direita, um rio cinzento que brilhava, pálido, à fraca luz do sol. Mais ao longe, vislumbraram ainda outro rio, num vale pedregoso meio oculto pela névoa.

- Acho que, infelizmente, temos de voltar aqui à Estrada durante algum tempo - disse Passo de Gigante. - Chegámos ao rio Hoarwell, a que os Elfos chamam Mitheithel. Desce dos Ettenmoors, as colinas rochosas dos Trolls, a norte de Rivendell, e reúne-se ao Água Barulhenta mais longe, no Sul. Alguns passam a chamar-lhe rio Cinzento, depois dessa junção. É um grande rio antes de chegar ao mar. Não há nenhuma possibilidade de o atravessar abaixo da sua nascente, nos Ettenmoors, a não ser pela última Ponte, pela qual passa a Estrada.

- Que outro rio é aquele que se vê lá muito ao longe? - perguntou Merry.

- É o Agua Barulhenta, o Bruinen de Rivendell - respondeu-lhe Passo de Gigante. - A Estrada corre ao longo da orla dos montes numa extensão de muitos quilómetros, da ponte até ao vau de Bruinen. Mas eu ainda não pensei como o atravessaremos. Um rio de cada vez! Poderemos considerar-nos muito felizes se a Ultima Ponte não estiver ocupada para nos impedir a passagem.

 

No dia seguinte, de manhã cedo, desceram de novo às imediações da Estrada. Sam e Passo de Gigante avançaram, à frente, mas não encontraram quaisquer vestígios de viajantes ou cavaleiros. Ali, à sombra dos montes, chovera um pouco. Passo de Gigante calculou que a chuva caíra dois dias antes e apagara todas as pegadas. Tanto quanto lhe era dado ver, não passara por ali ninguém a cavalo depois disso.

Seguiram à máxima velocidade possível e, ao fim de 2 km ou 3 km, viram a Última Ponte em frente, no fundo de uma encosta curta e íngreme. Receavam ver vultos negros à sua espera, mas não avistaram nenhum. Passo de Gigante mandou-os abrigar-se numa moita ao lado da Estrada, enquanto ele avançava e explorava.

Voltou pouco depois, apressado.

- Não vejo nenhum sinal do inimigo - anunciou -, e confesso que isso me admira muito. Mas encontrei uma coisa muito estranha.

Estendeu a mão e revelou um pedra preciosa de cor verde-pálida.

- Encontrei-a na lama no meio da ponte. É um berilo, uma pedra élfica. Se foi lá posta de propósito ou caiu por acaso, não sei, mas sei que me dá esperança. Tomo-a como sinal de que poderemos atravessar a ponte. Mas, depois disso, não me atreverei a permanecer na Estrada sem outro sinal mais explícito.

 

Avançaram imediatamente. Atravessaram a ponte em segurança, sem ouvirem outro som que não fosse o do redemoinhar da água contra os seus três grandes arcos. Quilómetro e meio adiante, chegaram a um barranco estreito, que seguia para norte através das terras íngremes do lado esquerdo da Estrada. Passo de Gigante virou, aí, e não tardaram a perder-se numa região sombria de árvores escuras, por entre os sopés de montes carrancudos.

Os hobbits sentiram-se contentes por terem deixado para trás as terras tristes e a Estrada perigosa, mas aquela nova região parecia-lhes ameaçadora e hostil. A medida que avançavam, os montes que os cercavam subiam sempre. Aqui e ali, em cabeços e espinhaços, avistavam fugazmente antigas muralhas de pedra e ruínas de torres, umas e outras com um aspecto ominoso. Frodo, que não ia a pé, tinha tempo para olhar em frente e pensar. Recordou-se do relato que Bilbo fizera da sua viagem e das torres ameaçadoras dos montes a norte da Estrada, na região próxima da Floresta dos Trolls, onde lhe sucedera a primeira aventura grave. Calculou que se encontravam na mesma região e pensou se, por acaso, iriam passar perto do local em questão.

- Quem vive nesta terra? - perguntou. - E quem construiu estas torres? É terra de trolls?

- Não! - respondeu Passo de Gigante. - Os Trolls não constroem. Ninguém vive nesta terra. Em tempos, há séculos, viveram aqui homens, mas já não resta nenhum. Tornaram-se um povo mau, segundo a lenda, pois ficaram sob a sombra de Angmar. Mas foram todos destruídos na guerra que arrastou o Reino do Norte para o seu fim. Isso foi, porém, há tanto tempo, que os montes os esqueceram,

embora ainda paire uma sombra sobre a região.

- Onde aprendeu todas essas histórias, se toda a terra está deserta e deslembrada? - perguntou Peregrino. - As aves e os animais não contam histórias desse género.

- Os herdeiros de Elendil não esquecem nenhuma das coisas passadas. E em Rivendell lembram-se de muitas outras coisas que posso contar.

- Esteve muitas vezes em Rivendell? - perguntou-lhe Frodo.

- Estive - respondeu Passo de Gigante. - Vivi lá, em tempos, e volto sempre que posso. É lá que está o meu coração; mas o meu destino não é ficar em paz, nem mesmo na bonita casa de Elrond.

Os montes começara a cercá-los, a fechar-se sobre eles. A Estrada, atrás,seguia o seu caminho para o rio Bruinen, mas uma e outro estavam agora ocultos. Os viajantes chegaram a um vale comprido, estreito, profundamente escavado, escuro e silencioso.

Árvores de raizes velhas e torcidas debruçavam-se de penhascos e adensavam-se atrás, em encostas cobertas de pinhais.

Os hobbits estavam muito cansados. Avançavam devagar, pois tinham de escolher o caminho numa região ínvia, atravancada de árvores caídas e rochedos amontoados. Sempre que podiam evitavam subir, por causa de Frodo e também porque era realmente difícil encontrar qualquer carreiro para subir dos vales estreitos. Havia dois dias que se encontravam naquela região quando o tempo mudou. O vento começou a soprar com força, do Ocidente, e a despejar a água dos mares distantes nas cabeças escuras dos montes, sob a forma de chuva fina e constante. Ao anoitecer estavam todos encharcados e o seu acampamento em nada ajudava a animá-los, pois não tinham conseguido encontrar lenha seca para queimar. No dia seguinte, os montes ergueram-se à sua frente ainda, mais altos e íngremes, e viram-se forçados a desviar-se do caminho e virar para norte. Passo de Gigante parecia inquieto: tinham abandonado o Cume do Tempo havia quase dez dias e as suas reservas de provisões começavam a minguar. E continuava a chover.

Nessa noite acamparam numa saliência pedregosa, tendo atrás uma parede de rocha na qual havia uma caverna pouco funda, uma simples reentrância no penhasco. Frodo estava desassossegado. O frio e a humidade tinham-lhe tornado a ferida mais dolorosa do que nunca, e a dormência e a sensação de frio mortal afastavam por completo o sono. Virava-se e revirava-se e escutava, receoso, os sorrateiros ruídos nocturnos: vento nas fissuras da rocha, água a pingar, um estalido, a queda inesperada de uma pedra solta... Teve a sensação de que sombras negras avançavam para o asfixiar, mas, quando se sentou, só viu as costas de Passo de Gigante, sentado de costas curvadas, a fumar cachimbo e a vigiar. Deitou-se de novo e mergulhou num sonho agitado, no qual caminhava na relva do seu jardim do Shire, mas tudo isso lhe parecia vago e indistinto, menos claro do que as negras sombras altas que espreitavam por cima da vedação.

 

Quando acordou, de manhã, a chuva parara. As nuvens ainda estavam escuras mas começavam a separar-se, e viam-se no meio delas faixas de céu azul pálido. O vento mudava de novo de direcção. Não partiram cedo. Logo após o pequeno-almoço frio e pouco reconfortante, Passo de Gigante partiu sozinho e recomendou aos outros que ficassem ao abrigo do penhasco, até ele voltar. Ia subir, se pudesse, e dar uma vista de olhos à disposição do terreno.

Quando voltou, não se mostrou tranquilizador:

- Desviámo-nos demasiado para norte e temos de descobrir caminho qualquer para retrocedermos de novo para sul. Se continuarmos nesta direcção, acabaremos por ir parar aos Ettendales, muito a norte de Rivendell. É região troll e conheço-a mal. Talvez pudéssemos contorná-la e retroceder para Rivendell, de norte, mas demoraria muito tempo, porque desconheço o caminho e as nossas provisões não chegariam. Por isso, temos de encontrar o vau do Bruinen, seja como for.

Passaram o resto do dia a trepar por terreno rochoso. Descobriram uma passagem entre dois montes que os levou a um vale que corria de sul para leste, a direcção que lhes convinha; mas, próximo do fim do dia, encontraram de novo o caminho barrado por um espinhaço elevado, cujo cume escuro, recortado no céu, se dividia em muitos pontos planos, como os dentes de uma serra cega. Só lhes restava escolher entre voltar para trás ou trepar.

Resolveram tentar a escalada, mas verificaram que era muito difícil. Frodo não tardou a ver-se obrigado a desmontar e subir a pé. Mesmo assim, não foram poucas as vezes que desesperaram de fazer com que o pónei subisse e até de encontrarem um caminho para si próprios, carregados como estavam. Quando chegaram ao cume, a luz já quase se desvanecera e estavam todos extenuados. Tinham subido para uma selada estreita entre dois pontos mais altos e o terreno voltava a descer, íngreme, curta distância à sua frente. Frodo deixou-se cair para o chão, a tremer de frio. Tinha o braço esquerdo inerte e o flanco e o ombro do mesmo lado tão gelados como se os apertassem garras de gelo. As árvores e as rochas que o cercavam pareciam vagas e imprecisas.

- Não podemos avançar mais - disse Merry a Passo de Gigante.

- Mesmo assim, receio que já tenha sido de mais para o Frodo. Estou muitíssimo preocupado com ele. Que havemos de fazer? Acha que conseguirão curá-lo em Rivendell, se lá chegarmos?

- Veremos - respondeu-lhe Passo de Gigante. - Não posso fazer mais nada, neste deserto, e é principalmente, por causa do ferimento dele que estou tão ansioso por avançar depressa. Mas concordo que esta noite não podemos ir mais longe.

- Que tem o meu amo? - perguntou Sam, em voz baixa, a olhar suplicante para Passo de Gigante. - A ferida é pequena e já está fechada. Só se vê uma cicatriz branca e fria, no ombro.

- Frodo foi tocado pelas armas do Inimigo - respondeu-lhe Passo de Gigante - e há qualquer veneno ou mal que está a actuar nele e que eu não tenho capacidade para expulsar. Mas não perca a esperança, Sam!

A noite estava fria, lá em cima. Acenderam uma pequena fogueira debaixo das raízes descarnadas de um velho pinheiro que se debruçara uma cova pouco funda - dir-se-ia que houvera ali uma pedreira, outrora. Sentaram-se, encostados uns aos outros. O vento soprava, gelado, através da passagem, e eles ouviam as copas das

árvores gemer e suspirar, mais em baixo. Frodo estava deitado, meio a sonhar, a imaginar que intermináveis asas negras voavam por cima dele e transportavam perseguidores que o procuravam em todos os buracos dos montes.

A manhã nasceu luminosa e agradável. O ar estava limpo e a luz brilhava, pálida e clara, no céu lavado pela chuva. Sentiram-se mais animados, mas ansiaram pelo sol, para que lhes aquecesse os membros frios e entorpecidos. Assim que clareou, Passo de Gigante, acompanhado por Merry, foi observar o terreno do lado leste da passagem. O Sol nascera e brilhava agradavelmente quando ele voltou com notícias mais animadoras. Agora seguiam mais ou menos na direcção certa. Se prosseguissem, descendo o outro lado do espinhaço, ficariam com as Montanhas à sua esquerda. Alguma distância à frente, Passo de Gigante entrevira de novo o Água Barulhenta e sabia que, embora não pudesse ver dali, a estrada para o vau não ficava longe do rio e situava-se do lado mais próximo deles.

- Temos de voltar à Estrada - afirmou. - Não devemos ter esperança de encontrar um caminho através destes montes. Seja qual for o perigo que lá nos espere, a Estrada é o nosso único caminho para o vau.

 

Partiram assim que comeram. Desceram vagarosamente o lado sul do espinhaço, mas o caminho revelou-se muito mais fácil do que tinham esperado, pois a encosta era muito menos íngreme daquele lado, e em breve Frodo pôde montar de novo. O velho pónei de Bill Fetoso estava a revelar um talento inesperado para escolher caminhos que sacudissem o menos possível o seu cavaleiro. O ânimo do grupo reforçou-se de novo. Até Frodo se sentiu melhor à luz da manhã, embora de vez em quando, lhe parecesse que uma névoa lhe obscurecia a vista e tivesse de passar a mão pelos olhos.

Pippin ia um pouco à frente dos outros. De súbito, virou-se para trás e gritou-lhes:

- Há aqui um carreiro!

Quando o alcançaram, verificaram que ele não se enganara: via-se claramente o começo de um carreiro que subia, com muitos ziguezagues das florestas e desaparecia no cume do monte, atrás.

Nalguns pontos estava quase apagado e invadido pela vegetação, ou obstruído por pedras caídas e árvores; mas via-se que em tempos tinha sido muito utilizado. Era um carreiro feito por braços fortes e pés pesados. Aqui e ali, tinham sido cortadas ou derrubadas velhas árvores e grandes pedregulhos fendidos ou desviados para dar passagem.

Seguiram o carreiro durante uma certa extensão, pois proporcionava sem dúvida nenhuma o caminho de descida mais fácil, mas avançaram com todas as cautelas, e a sua ansiedade aumentou quando chegaram às escuras florestas e o carreiro se tornou mais largo e visível. De súbito, irrompeu de uma faixa de abetos, desceu íngreme, uma encosta e virou bruscamente para a esquerda, na curva do contraforte rochoso do monte. Quando chegaram à curva espreitaram e viram que o caminho se prolongava ao longo de uma faixa plana, sob a face de um penhasco baixo coberto de árvores. Na parede de rocha havia uma porta que pendia, entreaberta e num estranho ângulo, de um grande gonzo.

Pararam todos, do lado de fora. Atrás da porta havia uma gruta ou câmara de rocha, mas não se conseguia ver nada na penumbra interior. Passo de Gigante, Sam e Merry empurraram com toda a sua força e conseguiram abrir um pouco mais a porta, o suficiente para Passo de Gigante e Merry entrarem. Não se afastaram muito, pois no chão havia muitos ossos antigos e junto da entrada só se viam alguns grandes cântaros vazios e vasilhas partidas.

- Isto é uma toca de um troll, sem a mínima dúvida! - afirmou Pippin. - Saiam cá para fora, vocês dois, e vamo-nos daqui. Agora sabemos quem fez o carreiro... e o melhor para nós é abandoná-lo depressa.

- Creio que não há necessidade disso - disse Passo de Gigante, ao sair. - É realmente a toca de um troll, mas parece abandonada há muito tempo. Não vejo motivo para termos medo. No entanto desçamos com cautela, e logo se verá.

O carreiro prosseguia a partir da porta, virava de novo à direita, atravessava a extensão plana e mergulhava por uma encosta densamente arborizada abaixo. Pippin, que não desejava dar a entender a Passo de Gigante que continuava com medo, ia à frente, com Merry. Sam e Passo de Gigante seguiam-nos, um de cada lado do pónei de Frodo, pois o carreiro tornara-se tão largo, que poderiam passar por ele quatro ou cinco hobbits, ao lado uns dos outros. Pouca distância tinham percorrido, porém, quando Pippin voltou para trás a correr, seguido por Merry. Pareciam ambos apavorados.

- Há trolls! - disse Pippin, ofegante. - Lá em baixo, na clareira da floresta, não muito longe daqui. Vimo-los através dos troncos das árvores. São muito grandes!

- Vamos lá vê-los - decidiu Passo de Gigante, e apanhou um pau.

Frodo não disse nada, mas Sam pareceu muito assustado.

O Sol já alto brilhava através dos ramos meios despidos das árvores e enchia a clareira de manchas luminosas. O grupo parou, de súbito, na orla do arvoredo e, de respiração contida, espreitou por entre os troncos das árvores. Lá estavam os trolls: eram três, enormes e um estava inclinado e os outros dois fitavam-no.

Passo de Gigante avançou, despreocupado.

- Endireita-te, pedra velha! - exclamou, e partiu o pau no troll inclniado.

Não aconteceu nada. Os hobbits soltaram uma exclamação abafada de espanto, e depois até Frodo se riu.

- Bem, estamos a esquecer a nossa história de família - comentou.- Estes devem ser os três trolls surpreendidos por Gandalf a discutir a melhor maneira de cozinhar treze anões e um hobbit.

- Não fazia a mínima ideia de que estávamos perto desse lugar! - exclamou Pippin, que conhecia bem a história.

Bilbo e Frodo tinham-na contado muitas vezes, mas ele nunca acreditara, realmente, na sua veracidade. Até mesmo agora olhava desconfiado para os trolls de pedra, receoso de que alguma magia os devolvesse de novo à vida, subitamente.

- Estão a esquecer não só a história da família, mas também tudo quanto alguma vez souberam a respeito de trolls - observou Passo de Gigante. - É dia claro, o sol brilha, e, apesar disso, desataram a fugir e tentaram assustar-me com uma história de trolls vivos, à nossa espera nesta clareira! Podiam pelo menos ter reparado que um deles tem um velho ninho de pássaro atrás da orelha, o que seria um ornamento muito invulgar num troll vivo!

Riram-se todos. Frodo sentiu-se reanimado: a recordação da primeira aventura bem sucedida de Bilbo era reconfortante. O sol quente também era reconfortante e a névoa parecia dissipar-se um pouco diante dos seus olhos. Descansaram algum tempo na clareira e comeram a refeição do meio-dia mesmo à sombra das grandes pernas dos trolls.

- Então, ninguém nos canta qualquer coisa, enquanto o Sol está alto? - sugeriu Merry, quando acabaram de comer. - Há dias e dias que não ouvimos uma canção nem uma história.

- Desde o Cume do Tempo - especificou Frodo, e os outros olharam para ele. - Não se preocupem comigo! - acrescentou. - Sinto-me muito melhor, mas não acho que fosse capaz de cantar. Talvez o Sam consiga desenterrar alguma coisa da memória.

- Vá, Sam! - instigou Merry. - Nessa cabeça há mais material armazenado do que dás a entender.

- Lá isso, não sei... - declarou Sam. - Estou a lembrar-me de uma coisa que talvez sirva. Não se trata daquilo a que chamo verdadeira poesia, se entendem o que quero dizer; é apenas uma brincadeira sem sentido, que estas velhas imagens me recordam.

Levantou-se e, com as mãos atrás das costas, como se estivesse na escola, começou a cantar, com a toada de uma antiga melodia:

O troll estava sentado sozinho no banco de pedra,

A resmungar e a roer um velho osso chupado;

Havia muitos anos que o rilhava, e rilhava,

Pois carne não era coisa fácil de encontrar,

De encontrar! De rilhar!

Vivia sozinho numa caverna dos montes

E carne não era, não, fácil de encontrar.

 

Chegou Tom com as grandes botas calçadas

E perguntou ao troll: «Por favor, que é isso?

»Parece a canela do meu tio Tim,

»Que devia estar a repousar no cemitério.

»Cemitério! Despautério!

»Há muitos anos que Tim partiu, muitos,

»E eu julgava-o a repousar no cemitério.»

 

«Meu rapaz, volveu-lhe o troll, «este osso roubei.

»Mas para que servem ossos enterrados num buraco?

»O teu tio estava morto como uma pedra

»Antes de eu lhe achar o osso da canela.

»Uma bagatela! Uma bagatela!

»Ele bem pode ajudar um pobre e belo troll,

»Pois não precisa para nada do osso da canela.»

 

E Tom: «Por que motivo hão-de os da tua laia

»Sem pedir licença usar e abusar

»Da perna ou da canela da família do meu pai?

»Por isso, anda, passa para cá o osso!

»O osso! O caroço!

»Pois por morto que ele esteja, a ele pertence.

»Anda, despacha-te, passa para cá o osso!»

 

«Por dá cá aquela palha», disse o troll, a sorrir,

«Como-te também a ti e rilho-te a canela.

»Um naquito de carne fresca vinha mesmo a matar!

»Vou experimentar os dentes em ti, agora.

»Nesta hora! Nesta hora!

»Estou farto de rilhar velhos ossos e peles

»E está-me a apetecer jantar-te, agora.»

 

Mas quando julgava que tinha o jantar garantido,

As suas mãos estavam cheias de nada.

Num abrir e fechar de olhos, Tom saltou para trás

E aplicou-lhe um pontapé, para o ensinar.

Ensinar! Castigar!

Um pontapé no sim-senhor, pensou Tom,

Seria a melhor maneira de o ensinar.

 

Mas mais duros que a pedra são a carne e o osso

De um troll sentado sozinho nos montes.

Foi como dar o pontapé nas raízes das montanhas,

Pois o sim-senhor de um troll nada sente.

Não é de gente! Não é de gente!

O velho troll riu-se, quando ouviu Tom gemer,

Porque sabia que o pé dele... era de gente!

 

A perna de Tom está manca, desde que a casa voltou,

E o seu pé sem bota, coitado, não sarou.

Mas o troll não se importa, e lá continua,

Com o osso que ao seu dono roubou.

Fanou! Surripiou!

o velho sim-senhor do troll ainda é o mesmo,

Assim como o osso que ao seu dono roubou!

 

- Bem, aí está uma advertência para todos nós! - exclamou Merry, a rir. - Ainda bem que se serviu de um pau em vez da mão Passo de Gigante. - Onde aprendeste isso, Sam? - perguntou Pippin. - Nunca tinha ouvido essa letra.

Sam murmurou qualquer coisa inaudível.

- É da sua própria cabeça, claro! - afirmou Frodo. - Tenho aprendido muitas coisas a respeito de Sam Gamgee nesta viagem. Primeiro foi conspirador, agora é bufão. Ainda acaba por se tornar feiticeiro... ou guerreiro!

- Espero que não - declarou Sam. - Não quero ser uma coisa nem outra!

 

À tarde embrenharam-se na floresta. Provavelmente utilizaram o mesmo carreiro que Gandalf, Bilbo e os anões tinham usado havia muitos anos. Percorridos alguns quilómetros, desembocaram no cimo de uma ladeira alta, por cima da Estrada. Nesse ponto, a Estrada deixara o Hoarwell muito para trás, no seu vale estreito, e agora seguia de perto o sopé dos montes, subindo e descendo e ziguezagueando para leste entre florestas e encostas cobertas de urze, na direcção do vau e das montanhas. Um pouco abaixo, Passo de Gigante apontou uma pedra, no meio da erva. Toscamente entalhados nela, e já muito apagados pelo tempo, distinguiam-se ainda caracteres rúnicos dos Anões e marcas secretas.

- Oh! - exclamou Merry. - Deve ser a pedra que assinalava o lugar onde o ouro dos Trolls estava escondido. Pergunto a mim mesmo quanto restará da parte do Bilbo, Frodo...

Frodo olhou para a pedra e desejou que Bilbo não tivesse levado para casa nenhum tesouro mais perigoso nem menos fácil de ele prescindir.

- Não resta nada - respondeu. - Bilbo deu tudo. Disse-me que não considerava que fosse realmente seu uma vez que provinha de ladrões.

 

A Estrada desenrolava-se, silenciosa, sob as sombras compridas do entardecer. Não se viam sinais de quaisquer outros viajantes. Como, agora, lhes não restava nenhum outro caminho possível, desceram a ladeira, viraram à esquerda e seguiram o mais depressa que puderam. A espalda de um monte não tardou a ocultar a luz do Sol, que morria rapidamente. Um vento frio veio ao encontro deles, das montanhas em frente.

Começavam a procurar um lugar fora da Estrada, onde pudessem acampar durante a noite, quando ouviram um som que lhes encheu de novo o coração de medo: soaram cascos, à sua retaguarda. Olharam para trás, mas as curvas e as subidas e descidas da Estrada eram tantas, que não viram nada. Assim que puderam, saíram do caminho batido e embrenharam-se na urze alta e nas moitas de mirtilo das encostas, até chegarem a um pequeno e denso maciço de aveleiras. Espreitando por entre os arbustos, podiam ver a Estrada, vaga e cinzenta à luz do fim do dia, uns 9 m abaixo. O som dos cascos aproximou-se. O animal ia lesto, com um clipeti-clipeti-clip. Depois, como se o som lhes chegasse trazido pela brisa, ouviram uma espécie de tilintar amortecido, como que o som de pequenos guizos.

- Pelo som, não me parece o cavalo de um cavaleiro negro! - afirmou Frodo, a escutar com atenção.

Os outros hobbits concordaram, esperançosos, com ele, mas permaneceram muito desconfiados. Tinham passado tanto tempo a recear ser perseguidos, que qualquer som vindo de trás lhes parecia ominoso e hostil. Mas Passo de Gigante, que estava inclinado para a frente, inclinou-se ainda mais, com uma das mãos no ouvido e uma expressão de alegria no rosto.

A luz desvaneceu-se ainda mais e as folhas dos arbustos murmuraram suavemente. As campainhas ouviam-se agora mais nítidas e próximas, assim como o trote apressado: clipeti-clip...

De súbito surgiu na estrada, a brilhar nas sombras, um cavalo branco e veloz.

A testeira do animal cintilava na luz crepuscular, como se estivesse cravejada de pedras refulgentes como estrelas. A capa do cavaleiro esvoaçava atrás dele e o capuz estava caído, deixando o cabelo dourado esvoaçar também, agitado pela deslocação do ar provocada pela velocidade a que seguia. Frodo teve a impressão de que uma luz branca irradiava através da forma e do vestuário do cavaleiro, como através de fino véu.

Passo de Gigante saiu do esconderijo e correu pela ladeira abaixo direito à Estrada, a saltar e a gritar pelo meio da urze. Mas, antes mesmo de ele se mexer e gritar, já o cavaleiro puxara as rédeas ao cavalo e parara, a olhar na direcção da moita onde eles se ocultavam.

Quando viu Passo de Gigante, desmontou e correu ao seu encontro, também a gritar: Ai na vedui Dúnadan! Mae govannen! As suas palavras e o timbre vibrante da sua voz não deixaram dúvidas no coração dos hobbits: o cavaleiro pertencia ao povo elfo. Não havia outro, no mundo inteiro, cuja voz fosse tão agradável de ouvir. No entanto, dir-se-ia haver uma nota de pressa ou medo nas suas palavras, e eles repararam que ele falava rápida e ansiosamente com Passo de Gigante.

- Salve, e graças por o encontrar, finalmente! - disse o nobre elfo a Frodo. - Mandaram-me procurá-lo, de Rivendell. Receávamos que corresse perigo, na Estrada.

- Então Gandalf chegou a Rivendell? - perguntou Frodo, muito contente.

- Quando eu parti, não tinha chegado, mas isso foi há nove dias - respondeu Glorfindel. - Elrond recebeu notícias que o inquietaram. Alguns da minha raça, ao viajarem na sua terra, para lá do Baranduim [O rio Brandevinho], souberam que nem tudo estava bem, e enviaram mensagens o mais depressa que puderam. Disseram que os Nove tinham aparecido e que Frodo desaparecera com um grande peso e sem guia, pois Gandalf não voltara. Até mesmo em Rivendell há poucos capazes de se oporem abertamente aos Nove, mas Elrond mandou esses poucos para norte, oeste e sul. Pensava-se que se desviara do caminho para evitar a perseguição, e se perdera nas Terras Ermas.

»Coube-me percorrer a Estrada, e, quando cheguei à Ponte de Mitheithel, deixei lá um sinal, quase há sete dias. Estavam na ponte três dos servos de Sauron, mas retiraram, e eu persegui-os para ocidente. Encontrei mais outros dois, mas eles viraram para sul.

Desde então, tenho andado à procura da sua pista. Encontrei-a dois dias, segui-a pela ponte e hoje descobri o ponto onde voltaram a descer dos montes. Mas venham! Não há tempo para mais notícias. Já que estão aqui, devemos correr o perigo que a Estrada representa e prosseguir. Vêm cinco atrás de nós, e, quando descobrirem, a sua pista na Estrada, perseguir-nos-ão com a fúria do vento. E não são todos. Ignoro onde poderão estar os outro quatro, mas receio que encontremos o vau já ocupado, contra nós.»

Enquanto Glorfindel falava, as sombras do anoitecer adensavam-se. Frodo sentiu apoderar-se dele um grande cansaço. Desde que o Sol começara a pôr-se, a névoa tornara-se mais espessa, diante dos seus olhos, e tinha a sensação de que uma sombra se colocava entre eles e os rostos dos amigos. Agora viera também a dor e o frio. Cambaleou e agarrou-se ao braço de Sam.

- O meu amigo está doente e ferido - declarou Sam, irritado. - Não pode continuar a viajar depois de escurecer. Precisa de repousar.

Glorfindel agarrou Frodo, que ia a cair, pegou-lhe com cuidado o fitou-o com grave ansiedade.

Resumidamente, Passo de Gigante relatou-lhe o ataque ao acampamento, sob o Cume do Tempo, e o ferimento desferido com a terrível faca. Pegou no cabo, que conservara, e estendeu-o ao elfo. Glorfindel estremeceu, ao pegar-lhe, mas observou-o com atenção.

- Estão coisas terríveis escritas neste cabo - murmurou -, embora os seus olhos as não possam, talvez, ver. Guarda-a, Aragorn, até chegarmos a casa de Elrond! Mas tem cuidado e mexe-lhe o menos possível! Infelizmente, as minhas faculdades de curar estão aquém dos ferimentos causados por esta faca. Farei o que puder, mas isso é mais um motivo para os incitar a prosseguir, sem descansar.

Apalpou com os dedos o ferimento do ombro de Frodo, e o seu rosto tornou-se ainda mais grave, como se descobrisse algo que o inquietava. Mas Frodo sentiu o frio abrandar no flanco e no braço, um pouco de calor desceu-lhe do ombro à mão, e a dor tornou-se mais suportável. Até a penumbra do anoitecer pareceu clarear à sua volta, como se uma nuvem se tivesse afastado. Voltou a ver os rostos dos amigos mais nitidamente, e sentiu voltarem-se-lhe um pouco a esperança e a força.

- Irá no meu cavalo - disse Glorfindel. - Encurtarei os estribos mais ou menos até ao rebordo da sela e deverá montar com a maior firmeza que puder. Mas não tenha medo: o meu cavalo não deixará cair ninguém que eu lhe mandar transportar. O seu passo é leve e suave e, se o perigo se acercar demasiado dele, transportá-lo-á com uma velocidade que nem os corcéis pretos do inimigo poderão igualar.

- Não, isso não! - protestou Frodo. - Não o montarei para ser transportado para Rivendell ou para qualquer outro lado deixando os meus amigos para trás, em perigo.

Glorfindel sorriu.

- Duvido muito que os seus amigos corram perigo se não estiver com eles - observou.- Creio que os perseguidores o seguiriam, a si, e nos deixariam em paz. É você, Frodo, e aquilo que transporta, que nos põe a todos nós em perigo.

 

Frodo não encontrou resposta para tais palavras, e deixou-se convencer a montar o cavalo branco de Glorfindel. O pónei passou a transportar uma grande parte dos carregos dos outros, o que lhes permitiu viajar mais leves. Durante algum tempo conseguiram manter uma boa velocidade; mas, a certa altura, os hobbits começaram a ter dificuldade em acompanhar os passos rápidos e incansáveis do elfo. Ele conduzia-os sempre em frente, mergulhados na boca das trevas da noite muito nublada. Não brilhavam estrelas nem a Lua. Só quando a alvorada cinzenta nasceu se atreveram a parar. Nessa altura, Pippin, Merry e Sam já dormiam praticamente em pé, enquanto andavam aos tropeções. E até Passo de Gigante parecia, pela curvatura dos ombros, estar também fatigado. Frodo, montado no cavalo, estava mergulhado num sonho tenebroso.

Deixaram-se cair na urze, a poucos metros da berma da estrada, e adormeceram imediatamente. Pareceu-lhes que mal tinham fechado os olhos quando Glorfindel, que ficara de guarda enquanto dormiam, os acordou. O Sol já subira, durante boa parte da manhã, e as nuvens e a neblina da noite tinham-se dissipado.

- Bebam isto! - disse-lhes Glorfindel, e deu a cada um, sucessivamente, um golo de licor do seu cantil de couro com incrustações de prata.

Era tão límpido como água da nascente, não tinha gosto e não causava na boca nenhuma sensação de frio ou calor; mas, ao bebê-lo, tiveram a impressão de que lhes jorrava para os membros uma torrente de força e vigor. Comidos depois, o pão duro e os frutos secos (que eram tudo quanto lhes restava) pareceram saciar-lhe a fome melhor do que muitos bons pequenos-almoços saboreados no Shire.

Tinham repousado muito menos de cinco horas quando se meteram de novo à estrada. Glorfindel continuou a incitá-los a andar depressa e só permitiu duas breves paragens durante todo o dia. Deste modo percorreram quase 30 km antes de anoitecer e chegaram a um ponto onde a Estrada virava para a direita e descia para o fundo do vale, directamente a caminho do Bruinen. Até então não houvera nenhum sinal nem nenhum som de perseguição de que hobbits se tivessem apercebido; mas Glorfindel parava muitas vezes e escutava atentamente, se eles se deixavam ficar para trás, e toldava-lhe o rosto uma expressão de ansiedade. Uma ou duas vezes falou a Passo de Gigante na língua élfica.

Mas, por muito inquietos que os seus guias pudessem estar, tornou-se evidente que os hobbits não podiam avançar mais naquela noite. Tropeçavam, tontos de fadiga e incapazes de pensar fosse no que fosse, para além das suas pernas e dos seus pés. A dor de Frodo aumentara e, durante o dia, as coisas que o cercavam transformavam-se em sombras de um cinzento fantasmal. Acolheu quase com agrado a vinda da noite, pois assim o mundo parecia-lhe menos lívido e vazio.

 

Os hobbits continuavam fatigados quando reataram a marcha, na manhã seguinte, muito cedo. Ainda eram muitos os quilómetros que os separavam do vau, e, por isso, arrastaram-se com a maior rapidez que puderam.

- Correremos o maior perigo pouco antes de chegarmos ao rio - disse Glorfindel -, pois o coração adverte-me de que a perseguição se tornou agora rápida, atrás de nós, e que talvez outro perigo nos espere junto do vau.

A Estrada continuava a descer, sistematicamente, e de vez em quando havia, nas bermas, muita erva, pela qual os hobbits caminhavam sempre que possível, para aliviarem os pés cansados. Ao fim da tarde, a Estrada embrenhou-se, de súbito, na sombra negra de pinheiros altos e depois mergulhou numa espécie de desfiladeiro fundo, com paredes íngremes e húmidas de pedra vermelha. Os ecos repetiam-se, à medida que eles se apressavam, e os caminhantes tinham a sensação de ouvir muitas pegadas a seguir às suas próprias. De repente, como se transpusesse uma porta de luz, a Estrada desembocou do escuro túnel. Então, ao fundo de uma ladeira íngreme, viram à sua frente uma longa extensão plana e, a seguir, o vau de Rivendell. Do outro lado erguia-se um aterro castanho e íngreme, retalhado por um carreiro sinuoso, e depois disso as montanhas latas subiam, contraforte sobre contraforte, pico sobre pico, até se perderem no céu que escurecia.

Soava ainda um eco, como de passos que os seguissem, no desfiladeiro, atrás deles, e um ruído impetuoso, como se estivesse a levantar-se uma ventania que passava através dos ramos dos pinheiros. Glorfindel virou-se, escutou um momento e depois correu para a frente, a gritar:

- Fujam! Fujam! O Inimigo está perto!

O cavalo branco saltou, veloz, e os hobbits desataram a correr pela ladeira abaixo. Glorfindel e Passo de Gigante fechavam a marcha.

Ainda iam apenas a meio da extensão plana quando, subitamente, se ouviu uma galopada. Pela abertura nas árvores donde tinham acabado de sair irrompeu um cavaleiro negro, que puxou as rédeas da montada e parou, a oscilar na sela. Seguiu-se outro e mais outro, e depois mais dois.

- Cavalgue era frente! Depressa! - gritou Glorfindel a Frodo.

Não obedeceu imediatamente, possuído por estranha relutância.

Meteu o cavalo a passo, virou-se e olhou para trás. Os cavaleiros pareciam montados nos grandes corcéis como estátuas ameaçadoras num monte, negras e sólidas, enquanto todo o arvoredo e toda a terra que os circundava pareciam distanciar-se, como que envoltas em névoa. De repente, compreendeu no íntimo do coração que eles estavam a ordenar-lhe silenciosamente que parasse. Então, o medo e o ódio despertaram-no, simultaneamente. Passou a mão da rédea para o punho da espada e desembainhou-a, num relâmpago vermelho.

- Galope! Galope! - gritou Glorfindel. e acrescentou, dirigindo-se vibrantemente ao cavalo na sua língua élfica: - Noro lim, noro lim, Asfaloth!

Acto contínuo, o cavalo branco arrancou com a velocidade do vento, a galgar o que restava da Estrada. No mesmo instante, cavalos negros lançaram-se pelo monte abaixo, em perseguição, e os cavaleiros soltaram um grito terrível, como Frodo nunca ouvira, e que encheu de horror as distantes florestas do Farthing Oriental. O grito obteve resposta e, para desespero de Frodo, e dos deus amigos, de entre as árvores e os rochedos da esquerda surdiram mais quatro cavaleiros, num galope desenfreado. Dois seguiram na direcção de Frodo e outros dois galoparam loucamente para o vau, a fim de lhe bloquear a fuga. Teve a impressão de que cavalgavam como o vento e se tornavam rapidamente maiores e mais negros, à medida que o seu caminho convergia com o dele.

Frodo olhou um instante para trás, por cima do ombro. Já não via os amigos. Os cavaleiros que o perseguiam iam também ficando para trás, pois nem mesmo os seus grandes corcéis estavam à altura, em velocidade, do cavalo branco de Glorfindel. Olhou de novo para a frente, e a esperança desvaneceu-se. Pareceu-lhe que não teria possibilidade de chegar ao vau antes de o caminho lhe ser bloqueado pelos outros cavaleiros, que tinham preparado a emboscada. Agora via-os perfeitamente: pareciam ter-se desfeito do capuz e da capa preta e vestiam de branco e cinzento. As suas mãos pálidas empunhavam espadas desembainhadas e tinham capacetes na cabeça. Os olhos cintilavam-lhes e chamaram-no com uma voz terrível.

O medo enchia por completo a mente de Frodo, que já não pensava na espada. Não lhe saiu nenhum grito da boca. Fechou os olhos e agarrou-se à crina do cavalo. O vento assobiava-lhe nos ouvidos e as campainhas do arnês produziam um som agudo e desesperante. Um bafo de frio mortal traspassou-o como uma lança quando, com um derradeiro impulso, como um clarão de fogo branco, o cavalo élfico passou, como se tivesse asas, mesmo à frente da cara do cavaleiro mais avançado.

Frodo ouviu um baque na água, que espumejou à volta dos seus pés. Sentiu o impulso e a arrancada veloz, quando o cavalo saiu do rio e começou a subir o carreiro pedregoso. Subia o aterro íngreme. Atravessara o vau.

Mas os perseguidores não estavam longe. No cimo do aterro, o cavalo branco parou e virou-se, a relinchar ferozmente. Estavam nove cavaleiros à beira de água, em baixo, e o ânimo de Frodo fraquejou perante a ameaça que leu nos seus rostos levantados. Não sabia de nada que conseguisse impedi-los de atravessarem tão facilmente como ele atravessara, e achou que seria inútil tentar fugir pelo caminho longo e irregular do vau, à entrada de Rivendell, se os cavaleiros atravessassem o rio. Aliás, sentia que lhe estavam a ordenar insistentemente que parasse. O ódio espicaçou-o de novo, mas agora já não tinha a força necessária para recusar.

De súbito, o cavaleiro da frente esporeou o cavalo, que se assustou com a água e se empinou. Com grande esforço, Frodo endireitou-se e brandiu a espada.

- Voltem para trás! - gritou. - Voltem para a Terra de Mordor e deixem de me perseguir!

A voz soou-lhe fraca e esganiçada aos próprios ouvidos. Os cavaleiros pararam, mas Frodo não tinha o poder de Bombadil. Os inimigos riram-se dele, com um riso áspero e enregelador.

- Vem! Vem! - gritaram-lhe. - Para Mordor te levaremos!

- Voltem para trás! - repetiu, baixinho.

- O anel! O anel! - gritaram, com vozes terríveis, e o da frente incitou imediatamente o cavalo a meter pela água, seguido de perto pelos outros.

- Por Elbereth e Lúthien, o Belo - disse Frodo, com um derradeiro esforço, ao mesmo tempo que erguia a espada -, não terão o anel nem me terão a mim!

Então, o da frente, que se encontrava a meio do vau ergueu-se ameaçador nos estribos e levantou a mão. Frodo emudeceu. Sentiu a língua colar-se-lhe à boca e o coração bater com dificuldade. A sua espada partiu-se e caiu-lhe da mão trémula. O cavalo élfico empinou-se e relinchou. O mais avançado dos corcéis negros estava quase a pisar a margem.

Nesse momento ouviu-se como que um trovão, o ruído ensurdecedor de águas tumultuosas a arrastar muitas pedras. Vagamente, Frodo viu o rio subir em baixo, e, a jusante do seu curso, empinar-se uma cavalgada de ondas emplumadas. Teve a impressão de que tremeluziam chamas brancas na crista das ondas e imaginou ver no meio da água cavaleiros brancos montados em cavalos brancos de crinas espumosas. Os três cavaleiros negros que ainda se encontravam no meio do vau foram submersos, desapareceram, subitamente sepultados sob a espuma enfurecida. Os que estavam atrás recuaram, assustados.

Com o resto de lucidez que ainda conservava, Frodo ouviu gritos e pareceu-lhe ver, para lá dos cavaleiros que hesitavam na margem, uma cintilante figura de luz branca, atrás da qual corriam pequenos vultos difusos a agitar chamas que brilhavam, vermelhas, na névoa cinzenta que caía sobre o mundo.

Os cavalos negros enlouqueceram e, com saltos de terror, lançaram os cavaleiros na enxurrada impetuosa. Os seus gritos lancinantes foram abafados pelo rugir do rio, que os arrasou consigo. Depois, Frodo sentiu-se cair e os rugidos e a confusão pareceram erguer-se e engoli-lo juntamente com os seus inimigos. Não ouviu nem viu mais nada.

 

 

                                                        CONTINUA

 

 

MUITOS ENCONTROS

Frodo acordou e deu consigo deitado numa cama. Ao princípio, pensou que dormira

até tarde, depois de um sonho comprido e desagradável que ainda persistia nas fronteiras da memória. Ou teria estado doente? Mas o tecto pareceu-lhe estranho: era plano e tinha traves escuras, ricamente esculpidas. Deixou-se ficar mais um bocadinho a olhar para as manchas de sol na parede e a escutar o ruído de uma queda de água.

- Onde estou e que horas são? - perguntou, em voz alta, a olhar para o tecto.

- Estás em casa de Elrond e são 10 horas da manhã - respondeu-lhe uma voz. - Se te interessa saber, hoje é o dia 24 de Outubro.

- Gandalf! - exclamou Frodo, e sentou-se na cama.

O velho feiticeiro estava sentado numa cadeira, junto da janela aberta.

- Sim, estou aqui - confirmou, - E tu podes considerar-te com sorte por estares também aqui, depois de todas as coisas absurdas que fizeste desde que saíste de casa.

 

 

 

 

Frodo voltou a deitar-se. Sentia, um conforto e uma tranquilidade tão grandes, que não lhe apetecia discutir - e, de qualquer modo, não lhe parecia que levasse a melhor, se discutisse. Já estava completamente acordado e começava a recordar a sua viagem: o desastroso «atalho» pela Floresta Velha; o «acidente» no Garrano Empinado; e a loucura que o levara a enfiar o anel no dedo debaixo do Cume do Tempo. Enquanto pensava em todas essas coisas e tentava em vão fixar a memória na sua chegada a Rivendell, seguiu-se um longo silêncio, interrompido apenas pelos suaves puffs de Gandalf, ao soprar pela janela anéis brancos de fumo do cachimbo.

- Onde está o Sam? - perguntou Frodo, por fim. - E os outros todos, estão bem?

- Sim, estão todos sãos e salvos - respondeu-lhe Gandalf. - O Sam esteve aqui até eu o mandar descansar um pouco, há coisa de meia hora.

- Que aconteceu no vau? Pareceu-me tudo tão vago e indistinto... e ainda parece.

- É natural. Estavas a começar a desaparecer - respondeu o feiticeiro. - A ferida levava a melhor, finalmente. - Mais umas horas, e não nos seria possível ajudar-te. Mas a verdade é que tens uma certa força, meu querido hobbit! Como demonstraste na anta. Aí esteve por um triz; foi talvez o mais perigoso de todos os momentos. Só gostaria que tivesses resistido no Cume do Tempo.

- Parece estar já ao corrente de muito do que se passou - observou Frodo. - Não falei aos outros do que aconteceu na anta. Ao princípio, achei demasiado horrível falar disso; depois, tive outras coisas em que pensar. Como soube?

- Falaste muito enquanto dormias, Frodo, e não me foi difícil ler-te o pensamento e a memória - respondeu Gandalf, suavemente. - Não te preocupes... 

 

                                                                                                   

 

 

                                       

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