MUITOS ENCONTROS
Frodo acordou e deu consigo deitado numa cama. Ao princípio, pensou que dormira
até tarde, depois de um sonho comprido e desagradável que ainda persistia nas fronteiras da memória. Ou teria estado doente? Mas o tecto pareceu-lhe estranho: era plano e tinha traves escuras, ricamente esculpidas. Deixou-se ficar mais um bocadinho a olhar para as manchas de sol na parede e a escutar o ruído de uma queda de água.
- Onde estou e que horas são? - perguntou, em voz alta, a olhar para o tecto.
- Estás em casa de Elrond e são 10 horas da manhã - respondeu-lhe uma voz. - Se te interessa saber, hoje é o dia 24 de Outubro.
- Gandalf! - exclamou Frodo, e sentou-se na cama.
O velho feiticeiro estava sentado numa cadeira, junto da janela aberta.
- Sim, estou aqui - confirmou, - E tu podes considerar-te com sorte por estares também aqui, depois de todas as coisas absurdas que fizeste desde que saíste de casa.
Frodo voltou a deitar-se. Sentia, um conforto e uma tranquilidade tão grandes, que não lhe apetecia discutir - e, de qualquer modo, não lhe parecia que levasse a melhor, se discutisse. Já estava completamente acordado e começava a recordar a sua viagem: o desastroso «atalho» pela Floresta Velha; o «acidente» no Garrano Empinado; e a loucura que o levara a enfiar o anel no dedo debaixo do Cume do Tempo. Enquanto pensava em todas essas coisas e tentava em vão fixar a memória na sua chegada a Rivendell, seguiu-se um longo silêncio, interrompido apenas pelos suaves puffs de Gandalf, ao soprar pela janela anéis brancos de fumo do cachimbo.
- Onde está o Sam? - perguntou Frodo, por fim. - E os outros todos, estão bem?
- Sim, estão todos sãos e salvos - respondeu-lhe Gandalf. - O Sam esteve aqui até eu o mandar descansar um pouco, há coisa de meia hora.
- Que aconteceu no vau? Pareceu-me tudo tão vago e indistinto... e ainda parece.
- É natural. Estavas a começar a desaparecer - respondeu o feiticeiro. - A ferida levava a melhor, finalmente. - Mais umas horas, e não nos seria possível ajudar-te. Mas a verdade é que tens uma certa força, meu querido hobbit! Como demonstraste na anta. Aí esteve por um triz; foi talvez o mais perigoso de todos os momentos. Só gostaria que tivesses resistido no Cume do Tempo.
- Parece estar já ao corrente de muito do que se passou - observou Frodo. - Não falei aos outros do que aconteceu na anta. Ao princípio, achei demasiado horrível falar disso; depois, tive outras coisas em que pensar. Como soube?
- Falaste muito enquanto dormias, Frodo, e não me foi difícil ler-te o pensamento e a memória - respondeu Gandalf, suavemente. - Não te preocupes! Há pouco, falei em coisas «absurdas», mas foi uma força de expressão. Penso bem de ti... e dos outros. Não foi pequeno feito teres chegado tão longe e através de tantos perigos, e ainda trazeres o anel.
- Nunca o teríamos conseguido sem o Passo de Gigante - afirmou Frodo. - Mas precisávamos de si. Eu não sabia que fazer sem o senhor.
- Atrasaram-me, e isso foi quase a nossa ruína. E daí, não tenho a certeza... Talvez tenha sido melhor assim.
- Gostaria que me contasse o que aconteceu.
- Tudo a seu tempo! Hoje não deves falar nem preocupar-te seja com o que for. Ordens de Elrond.
- Mas se falasse deixaria de pensar e conjecturar, o que também é muito cansativo - protestou Frodo. - Agora estou completamente acordado e lembro-me de muitas coisas que exigem explicação. Por que o atrasaram? Devia dizer-me isso, pelo menos.
- Não tardarás a ouvir tudo quanto desejas saber - prometeu-lhe Gandalf. - Reuniremos um conselho assim que estiveres suficientemente bem. Por agora, dir-te-ei apenas que estive cativo.
- O senhor?! - exclamou Frodo, surpreendido.
- Sim, eu, Gandalf, o Grisalho - respondeu o feiticeiro, solenemente. - Há muitas forças no mundo, do bem e do mal. Algum as são mais poderosas do que eu; contra outras ainda não fui posto à prova. Mas a minha hora aproxima-se. O Senhor de Morgul e os seus Cavaleiros Negros entraram em acção. Prepara-se a guerra!
- Então já sabia dos Cavaleiros... antes de eu os encontrar?
- Já, já sabia. Até te falei deles, uma vez, pois os Cavaleiros Negros são os Espectros do Anel, os Nove Servos do Senhor dos Anéis. Mas ignorava que tivessem surgido de novo, caso contrário teria fugido imediatamente contigo. Só tive notícias deles depois de te deixar, em Junho; mas essa história tem de esperar. Por agora fomos salvos da catástrofe por Aragorn.
- Sim, foi Passo de Gigante que nos salvou - concordou Frodo. - No entanto, ao princípio receei-o ... e creio que o Sam nunca confiou inteiramente nele, pelo menos até encontrarmos Glorfindel.
Gandalf sorriu.
- Já me contaram tudo a respeito do Sam. Ele agora já não tem dúvidas nenhumas.
- Ainda bem, pois ganhei muito afecto a Passo de Gigante. Afecto talvez não seja a palavra adequada... O que quero dizer é que me é querido, embora seja estranho e, às vezes, severo. Na verdade, lembra-me muito o senhor. Não sabia que havia na Gente Grande pessoas como ele. Pensava... enfim, pensava que eram apenas grandes e muito estúpidos: bondosos e estúpidos como Carrapiço, ou estúpidos e maus como Bill Fetoso. Mas a verdade é que no Shire pouco sabemos a respeito dos Homens, a não ser, talvez, dos de Bree.
- Nem sequer sabem muito a respeito desses, se pensas que o velho Cervejeiro é estúpido - comentou Gandalf. - Tem sensatez bastante, no seu campo. Pensa menos do que fala, e mais devagar, mas consegue ver a tempo através de um muro de tijolo, como dizem em Bree. A verdade, porém, é que na Terra Média restam poucos como Aragorn, filho de Arathorn. A raça dos reis do outro lado do mar está quase a acabar. Talvez esta Guerra do Anel seja a sua última aventura.
- Quer dizer que Passo de Gigante é, realmente, uma das pessoas dos antigos reis? - perguntou Frodo, maravilhado. - Julgava que tinham desaparecido todos há muito tempo e que ele era só um caminhante.
- Só um caminhante! - exclamou Gandalf - Meu querido Frodo, é isso, exactamente, o que são os Caminhantes: o que resta no Norte do povo grande, dos Homens do Ocidente. Já me ajudaram no Passado e precisarei da sua ajuda no futuro, pois já chegámos a Rivendell, mas o anel ainda não está em segurança.
- Suponho que não - concordou Frodo. - Mas até agora o meu único pensamento foi chegar aqui... e espero não ter de ir mais longe. E muito agradável descansar. Passei um mês de exílio e aventura, e descobri que me chegou e não quero mais.
Calou-se e fechou os olhos. Passados momentos, voltou a falar:
- Tenho estado a fazer contas, e o resultado não me dá 24 de outubro. Devia ser 21. Devemos ter chegado ao vau a 20...
- Já falaste e fizeste mais contas do que devias - observou Gandalf, - Como sentes agora o flanco e o ombro?
- Não sei... Para ser franco, não os sinto, o que é uma melhoria; mas - fez um esforço - posso mexer outra vez o braço um bocadinho. Sim, está a regressar à vida. E não está frio - acrescentou, enquanto tocava na mão esquerda com a direita.
- Óptimo! - exclamou Gandalf. - Está a sarar depressa. Não tardas a estar de novo bom. Elrond curou-te. Foi ele que te tratou durante dias, desde que te trouxeram para cá.
- Dias?
- Bem, quatro noites e três dias, para ser exacto. Os elfos trouxeram-te do vau na noite de 20, altura em que perdeste o conto ao tempo. Temos estado preocupadíssimos e o Sam não saiu praticamente do teu lado, de dia e de noite, a não ser para fazer recados. Elrond é um mestre na arte da cura, mas as armas do nosso Inimigo são terríveis. Para dizer a verdade, eu tinha muito pouca esperança, pois suspeitava de que ainda havia algum fragmento da lámina no interior da ferida fechada. Só ontem à noite é que Elrond encontrou uma pequena lasca e a retirou. Estava profundamente enterrada e a enterrar-se cada vez mais.
Frodo estremeceu, ao lembrar-se da faca cruel, com uma boca na lâmina, que se derretera nas mãos de Passo Gigante.
- Não te assustes! - tranquilizou-o Gandalf. - Já lá não está, foi derretido e parece que os Hobbits se desvanecem com muita relutância. Conheci muitos guerreiros fortes da Gente Grande que teriam sido rapidamente dominados por esse fragmento que trouxeste dezassete dias no corpo.
- Que me teriam feito? - perguntou Frodo. - Que pretendiam os Cavaleiros fazer?
- Tentaram traspassar-te o coração com uma faca morgul que permanece na ferida. Se tivessem sido bem sucedidos, ter-te-ias tornado como eles, mas mais fraco e sob o seu comando. Passarias a ser um espectro dominado pelo Senhor das Trevas, que te atormentaria por teres tentado ficar com o seu anel... se é possível haver maior tormento do que ser privado do anel e vê-lo na mão dele.
- Felizmente não compreendi o perigo horrível em que me encontrava! - exclamou Frodo, em voz fraca. - Sentia um medo de morte, claro, mas, se soubesse mais alguma coisa, não tentaria mexer-me, sequer. Espanta-me que tenha escapado!
- Sim, a sorte ou o destino ajudaram-te - admitiu Gandalf - para não mencionar a coragem. O teu coração não sofreu nada e só o teu ombro foi traspassado, porque resististe até ao fim. Mas pode-se dizer que escapaste à justa, por um triz! Correste o perigo maior quando usaste o anel, pois nessa altura tu próprio estavas no mundo dos espectros e eles poderiam ter-se apoderado de ti. Tu podias vê-los e eles podiam ver-te.
- Bem sei. Foi horrível vê-los! Mas como se explica que todos lhes pudéssemos ver os cavalos?
- Porque são cavalos verdadeiros, assim como são verdadeiros os trajes pretos, que eles usam para dar forma ao seu nada, quando têm de lidar com os vivos.
- Mas então por que motivo suportam os cavalos pretos tais cavaleiros? Todos os outros animais ficam aterrorizados quando eles se aproximaram... Até o cavalo élfico de Glorfindel. Os cães uivam e os gansos fazem um barulho infernal, quando os vêem.
- Esses cavalos nasceram e foram criados para servir o Senhor das Trevas em Mordor. Nem todos os seus servos e nem todas as suas coisas são espectros! Há orcs e trolls, wargs e lobisomens, e houve e ainda há muitos homens, guerreiros e reis, que caminham vivos debaixo do Sol, e, apesar disso, se encontram sob o seu domínio. E o seu número aumenta diariamente.
- E Rivendell e os Elfos ... ? Rivendell está em segurança?
- Sim, por enquanto. Até tudo o mais ser conquistado. Os Elfos podem temer o Senhor das Trevas e fugir dele, mas nunca mais o escutarão ou servirão. E aqui, em Rivendell, ainda vivem alguns dos seus principais inimigos: os Elfiformes, senhores do Eldar de além dos mares mais longínquos. Não temem os Espectros, pois os que viveram no Reino Abençoado vivem simultaneamente em ambos os mundos e têm grande poder tanto contra o Visível como contra o Invisível.
- Pareceu-me ver um vulto branco que brilhava e não se tornou indistinto como os outros. Era Glorfindel?
- Sim, viste-o momentaneamente como ele é do outro lado: um dos mais poderosos do Povo Antigo. É um nobre elfo de uma casa de Príncipes. Na realidade, existe em Rivendell uma força capaz de resistir durante algum tempo ao poder de Mordor; e noutros lados ainda existem também outras forças dessas. E há igualmente poder, mas de outra espécie, no Shire. No entanto, todos esses lugares se tornarão em breve ilhas sitiadas, se as coisas continuarem como agora. o Senhor das Trevas está a utilizar toda a sua força.
Gandalf levantou-se, esticou o queixo, e a barba tornou-se-lhe rígida e direita como arame eriçado.
- No entanto - declarou -, não devemos perder a coragem. Em breve estarás bom, se eu não te matar a falar. Estás em Rivendell e não precisas de te preocupar seja com o que for, por enquanto.
- Não perderei a coragem porque não tenho nenhuma para perder, mas neste momento não estou preocupado - redarguiu Frodo.- Dê-me notícias dos meus amigos e conte-me como acabaram as coisas no vau, como já lhe pedi várias vezes, e ficarei satisfeito. Por enquanto. Depois talvez volte a dormir; mas não conseguirei fechar os olhos enquanto não me contar o resto da história.
Gandalf levou a cadeira para junto da cama e olhou Frodo com atenção. A cor voltara-lhe ao rosto, tinha os olhos límpidos e completamente despertos e atentos, sorria e parecia de perfeita saúde. No entanto, ao olhar do feiticeiro não escapou uma leve mudança, como que uma sugestão de transparência em todo ele, e especialmente na mão esquerda, que estava fora da cama, em cima da colcha.
«Era de esperar», pensou Gandalf. «Ainda não está nem meio curado e nem o próprio Elrond pode prever aquilo em que se tornará, no fim. Espero, no entanto, que não seja em nada de mau. Pode tornar-se como um espelho cheio de luz clara, para ser visto por olhos capazes de ver.»
- Estás com um aspecto esplêndido - disse, em voz alta. - Vou arriscar-me a contar-te uma história breve, sem consultar Elrond. Mas muito breve, nota, e depois dormirás. Eis o que aconteceu, tanto quanto posso deduzir: os Cavaleiros foram direitos a ti, assim que fugiste. Já não precisavam de se deixar guiar pelos seus cavalos, pois tu tornaras-te visível para eles, em virtude de te encontrares no limiar do seu mundo. Além disso, o anel atraía-os. Os teus amigos saltaram para fora da Estrada, pois de contrário teriam sido esmagados. Sabiam que nada te poderia valer, se o cavalo branco te não valesse. Os Cavaleiros eram tão velozes, que não poderiam alcançá-los, e tão numerosos, que não conseguiriam vencê-los. A pé, nem Glorfindel e Aragorn, juntos, seriam capazes de deter os Nove, simultaneamente.
»Quando os Espectros passaram como o vento, os teus amigos correram atrás deles. Perto do vau há um pequeno buraco na berma do caminho, oculto por algumas árvores anãs. Acenderam aí uma fogueira, rapidamente, pois Glorfindel sabia que se desencadearia uma enxurrada, se os Cavaleiros tentassem atravessar o rio, e que depois ele teria de se avir com quaisquer que ficassem na margem do seu lado. Assim que a enxurrada começou, avançou, seguido por Aragorn e pelos outros, com paus acesos na mão. Apanhados entre o fogo e a água, e vendo um nobre elfo revelado na sua ira, ficaram desvairados e as suas montadas enlouquecidas. Três foram arrastados pela primeira investida da enxurrada; os outros foram em seguida lançados à água pelos cavalos e submersos.»
- E esse foi o fim dos Cavaleiros Negros? - perguntou Frodo.
- Não. Os cavalos devem ter perecido e, sem eles, os Cavaleiros estão imobilizados. Mas não é fácil destruir os Espectros propriamente ditos. No entanto, não há nada a temer deles, por agora. Os teus amigos vadearam o rio depois de a enxurrada passar e encontraram-te, caído de bruços, no cimo do aterro, com uma espada partida debaixo de ti. O cavalo estava parado a teu lado, a guardar-te. Estavas pálido e frio, e recearam que estivesses morto... ou pior.
Foram encontrados por gente de Elrond, quando te transportavam, devagar, para Rivendell.
- Quem provocou a enxurrada? - perguntou Frodo.
- Elrond ordenou-a. O rio deste vale está sob o seu poder e sobe, colérico, quando ele tem grande necessidade de inutilizar o vau. Assim que o comandante dos Espectros do Anel entrou na água, a enxurrada foi solta. Se me é permitido dizê-lo, contribuí com alguns retoques da minha lavra... Talvez não tenhas reparado, mas algumas das ondas assumiram a forma de grandes cavalos brancos montados por rutilantes cavaleiros, e havia também muitas pedras a rolar e a chocar entre si. Por instantes, receei que tivéssemos libertado uma fúria demasiado violenta, perdêssemos o controle do rio e ele os arrastasse a todos vocês. Há muita força nas águas que descem das neves das Montanhas Nebulosas.
- Sim recordo-me do tremendo rugido - murmurou Frodo. - Pensei que me estava a afogar, com amigos, inimigos e tudo. Mas agora estamos salvos!
Gandalf olhou rapidamente para Frodo, mas ele fechara os olhos.
- Sim, estão salvos, por agora. Em breve haverá banquetes e alegria para celebrar a vitória no vau do Bruinen, e vocês estarão lá todos, em lugares de honra.
- Esplêndido! - exclamou Frodo. - É maravilhoso que Elrond, Glorfindel e outros tão grandes nobres, para não falar de Passo de Gigante, se tenham incomodado tanto e me tenham demonstrado tanta bondade.
- Bem, há muitas razões para que assim seja - afirmou Gandalf, a sorrir. - Eu sou uma boa razão. O anel é outra: tu és o portador do anel. E és também o herdeiro de Bilbo, que achou o anel.
- Querido Bilbo! - exclamou Frodo, sonolento. - Onde estará ele? Gostaria que estivesse aqui e pudesse ouvir tudo quanto se passou. Haveria de se rir. A vaca saltou por cima da Lua! E o pobre velho troll! - E adormeceu profundamente.
Frodo encontrava-se em segurança na última Casa Acolhedora a leste do Mar. Era como Bilbo a descrevera havia muito tempo, «uma casa perfeita quer gostemos de comer, dormir, contar histórias ou cantar, quer apenas de nos sentarmos e pensarmos melhor, quer ainda de uma mistura agradável de tudo isso». O simples facto de lá estar era uma cura para o cansaço, o medo e a tristeza.
Quando a tarde chegava ao fim, Frodo acordou de novo e descobriu que já não sentia necessidade de descansar ou dormir e que, pelo contrário, lhe apetecia comer e beber e talvez, depois, cantar e contar histórias. Levantou-se da cama e verificou que o braço recuperara quase por completo, a mobilidade antiga. Encontrou preparadas para vestir, roupas de tecido verde que lhe assentavam na perfeição. Assustou-se quando, ao olhar para o espelho, viu uma reflexão magríssima, da sua pessoa: aquela figura parecia-se extraordinariamente com o jovem sobrinho de Bilbo, que costumava calcorrear os caminhos do Shire com o tio; mas os olhos fitavam-no pensativamente.
- Sim, viste uma ou duas coisas desde a última vez que espreitaste de um espelho... - disse à reflexão da sua imagem. - Mas agora toca a andar para um alegre encontro! - Espreguiçou-se e assobiou uma melodiazinha.
Nesse momento bateram à porta, e Sam entrou. Correu para Frodo e pegou-lhe, desajeitada e timidamente, na mão esquerda.. Afagou-a devagarinho e depois corou e virou-se apressadamente.
- Olá, Sam! - cumprimentou-o Frodo.
- Está quente! Refiro-me à sua mão, Sr. Frodo. Esteve tão fria, durante as longas noites! Mas, graças! - exclamou, e virou-se de novo, de olhos brilhantes e a ensaiar uns passinhos de dança. - É bom vê-lo levantado e de saúde, senhor! Gandalf mandou-me ver se estava pronto para descer, e eu pensei que ele estava a brincar.
- Estou pronto, estou - respondeu Frodo. - Vamos procurar o resto do grupo!
- Eu posso levá-lo junto deles, Sr. Frodo. Esta casa é muito grande e muito peculiar. Há sempre uma coisinha para descobrir e nunca sabemos o que vamos encontrar ao virar da esquina. E elfos, senhor! Elfos aqui, ali, em toda a parte! Uns parecem reis, terríveis e majestosos, e outros são alegres como crianças. E a música, e o canto... Não que eu tenha tido tempo ou vontade para os escutar, desde que chegámos... mas começo a conhecer alguns dos hábitos da casa, por assim dizer.
- Eu sei o que andaste a fazer, Sam - declarou Frodo, e deu-lhe o braço. - Mas esta noite vais estar alegre e ouvir até te fartares. Vamos, guia-me por esses cantos todos!
Sam conduziu-o por diversos corredores e depois por muitos degraus abaixo, até chegarem a um jardim alto, por cima da margem íngreme do rio. Frodo encontrou os amigos sentados num alpendre do lado da casa virado para leste. As sombras já envolviam o vale, mas ainda havia luz nas faces das montanhas, muito alto. O ar
estava quente. Ouvia-se, forte, o som de água a cair e a correr e uma suave fragrância de árvores e flores impregnava o ar vespertino, como se ainda fosse Verão nos jardins de Elrond.
- Viva! - exclamou Pippin, e levantou-se de um pulo. - Cá está o nosso nobre primo! Arranjem espaço para Frodo, Senhor do Anel!
- Caluda! - admoestou Gandalf, das sombras do fundo do alpendre. - As coisas más não entram neste vale, mas mesmo assim não devemos nomeá-las. O Senhor do Anel não é Frodo, e sim o Senhor da Torre Negra de Mordor, cujo poder está de novo a alastrar pelo mundo! Estamos sentados numa fortaleza. Lá fora escurece.
- Gandalf tem dito muitas coisas alegres como esta que acaba de dizer - comentou pippin. - Acha que eu preciso de ser metido na ordem. - No entanto parece-me impossível sentir-me triste ou deprimido neste lugar. Até era capaz de cantar, se soubesse a cantiga adequada para esta ocasião.
- Eu próprio tenho vontade de cantar! - afirmou Frodo, a rir. - Confesso, porém, que neste momento ainda me apetece mais comer e beber!
Desse mal te curarás, não tarda - ripostou Pippin. - Mais uma vez demonstraste a tua habitual astúcia, ao levantar-te mesmo à hora de uma refeição.
- Mais do que uma refeição: um banquete! - corrigiu Merry. - Os preparativos começaram assim que Gandalf comunicou que estavas refeito.
Mal Merry acabara de falar foram chamados para o salão pelo toque de muitas campainhas.
O salão da casa de Elrond estava cheio de gente: elfos, na sua maioria, mas também havia alguns convidados de outro género. Como de costume, Elrond ocupava uma grande cadeira na extremidade da comprida mesa, colocada num estrado. Ladeavam-no Glorfindel e Gandalf.
Frodo olhou-os, maravilhado, pois nunca tinha visto Elrond, de quem se contavam tantas histórias. Sentados à sua direita e à sua esquerda, Glorfindel e Gandalf - apesar de julgar conhecer o feiticeiro tão bem - revelavam-se nobres senhores cheios de dignidade e poder.
Gandalf era mais baixo de estatura do que qualquer dos outros dois, mas o comprido cabelo branco, a esvoaçante barba prateada e os ombros largos davam-lhe o aspecto de um rei sábio da lenda antiga. No rosto idoso, sob as sobrancelhas grandes e cor de neve, os olhos escuros pareciam dois carvões capazes de se incendiarem de um momento para o outro.
Glorfindel era alto e desempenado, tinha cabelo de ouro reluzente e rosto belo, jovem, destemido e cheio de alegria; os olhos eram brilhantes e vivos e a voz como música, na sua fronte havia sabedoria e na sua mão força.
O rosto de Elrond não tinha idade, não era velho nem jovem, embora estivesse gravada nele a recordação de muitas coisas, tanto agradáveis como dolorosas. Tinha o cabelo escuro como as sombras do crepúsculo adornado com uma pequena coroa de prata. Os seus olhos eram cinzentos como um anoitecer claro e tinham uma luz que lembrava a das estrelas. Parecia venerável como um rei coroado muitos Invernos, mas ao mesmo tempo era robusto como um guerreiro experimentado em toda a plenitude da sua força. Era o Senhor de Rivendell, poderoso entre Elfos e Homens.
No meio da mesa, encostada às tapeçarias da parede, estava uma cadeira sob um dossel, na qual se sentava uma bela dama, tão parecida com Elrond, que Frodo calculou tratar-se de sua parente chegada. Parecia jovem, mas não devia sê-lo muito. Nenhuma geada tocava ainda as tranças do seu cabelo escuro; os braços brancos e o rosto límpido eram imaculados e lisos, e a luz das estrelas brilhava-lhe nos olhos vivos, cinzentos como uma noite sem nuvens. No entanto, todo o seu porte era de rainha e o seu olhar denunciava reflexão e saber, como o de alguém que aprendeu muitas coisas ensinadas pelos anos. Cobria-lhe a cabeça, sobre a fronte, uma touca de renda de prata salpicada de pequenas pedras preciosas, de uma brancura cintilante; mas o seu vestido cinzento e macio apresentava como único ornamento um cinto de folhas de prata.
Assim viu Frodo aquela que poucos mortais já tinham visto: Arwen, filha de Elrond, na qual se dizia que o retrato de Lúthien voltara de novo à terra. Chamavam-lhe Undómiel, porque era a estrela vespertina do seu povo. Estivera muito tempo na terra da família da mãe, em Lórien, para lá das montanhas, e só recentemente regressara a Rivendell, a casa de seu pai. Mas os seus irmãos, Elladan e Elrohir, estavam ausentes, em errante peregrinação: viajavam muitas vezes para longe com os Caminhantes do Norte, pois nunca conseguiam esquecer o tormento da mãe nos antros dos Orcs.
Frodo nunca vira, nem na sua mente imaginara tanta beleza num ser vivo. E ficou simultaneamente surpreendido e envergonhado ao verificar que tinha um lugar reservado à mesa de Elrond, entre toda aquela gente nobre e tão bela. Embora tivesse uma cadeira adequada, com diversas almofadas a alteá-la, sentiu-se muito pequeno e deslocado. Mas esse sentimento desvaneceu-se depressa. Reinava a alegria e a comida era tudo quanto a sua fome poderia desejar. Decorreu algum tempo antes de olhar de novo em seu redor ou se virar sequer para os seus vizinhos.
Procurou primeiro os amigos. Sam rogara que lhe permitissem servir o seu amo, mas tinham-lhe respondido que, daquela vez, era um convidado de honra. Frodo viu-o, sentado com Pippin e Merry na extremidade superior de uma das mesas laterais próximas do estrado. Só não viu Passo de Gigante.
À direita de Frodo estava sentado um anão de aspecto importante, ricamente vestido. A sua barba, muito comprida e bifurcada, era branca, quase tão branca como a brancura de neve do tecido do seu vestuário. Usava um cinto de prata e do pescoço pendia-lhe uma corrente de prata e diamantes. Frodo parou de comer para o olhar.
- Bem_vindo, folgo em conhecê-lo! - saudou o anão, voltado para ele, e depois foi ao extremo de se levantar para fazer uma vénia. - Glóin, às suas ordens. - E inclinou-se ainda mais.
- Frodo Baggins, às suas ordens e da sua família - respondeu Frodo, correctamente, ao mesmo tempo que se levantava, surpreendido, e espalhava as almofadas. - Está certa a minha suposição de que é o Glóin, um dos doze companheiros do grande Thorin Escudo de Carvalho?
- Exactamente - confirmou o anão, que apanhou as almofadas e, cortês, ajudou Frodo a sentar-se de novo. - Não pergunto, pois já me disseram que é parente e o herdeiro adoptivo do nosso amigo Bilbo, o famoso. Permita que o felicite pelo seu restabelecimento.
- Muito obrigado - agradeceu Frodo.
- Constou-me que viveu algumas aventuras muito estranhas - prosseguiu Glóin. - Pergunto a mim próprio, deveras intrigado, que terá levado quatro hobbits a empreender uma viagem tão longa. Nunca aconteceu nada semelhante desde que Bilbo viajou connosco. Mas talvez eu não deva mostrar-me demasiado curioso, uma vez que Elrond e Gandalf não parecem dispostos a falar do assunto...
- Penso que não falaremos disso, pelo menos por enquanto - redarguiu Frodo, cortesmente.
Supunha que até mesmo em casa de Elrond a questão do anel não era motivo de conversa casual. E, de qualquer modo, desejava esquecer as suas preocupações, temporariamente.
- Eu sinto-me igualmente curioso - acrescentou - quanto ao que terá trazido aqui um anão tão importante, da longínqua Montanha Solitária.
Glóin olhou-o e respondeu:
- Se ainda não sabe, acho que também não falaremos disso, por enquanto. Elrond convocar-nos-á a todos em breve, segundo creio, e então ouviremos todos muitas coisas. No entanto, há muitos outros assuntos de que podemos conversar.
Conversaram durante o resto da refeição, mas Frodo ouviu mais de que falou, pois as notícias do Shire, tirando o caso do anel, pareciam-lhe longínquas e insignificantes, ao passo que Glóin tinha que contar a respeito dos acontecimentos das regiões setentrionais da Terra Erma. Frodo ficou a saber que Grimbeorn, o Velho, filho de Beorn, se tornara o senhor de muitos homens robustos a cuja terra, entre as montanhas e a Floresta tenebrosa, nem orc nem lobo ousavam ir - Se não fossem os Beornenses - observou Glóin -, a passagem de Dale para Rivendell já se teria tornado impossível há muito tempo. São homens valentes e mantêm abertos o desfiladeiro alto e o vau de Carrock. Mas cobram portagens elevadas - acrescentou, a abanar a cabeça - e, como o antigo Beorn, não gostam por aí de anões. No entanto, merecem confiança, e isso já é muito, nos tempos que correm. Em parte alguma há homens tão cordiais para connosco como os de Dale. São boa gente, os Bardenses. Governa-os o neto de Bard, o archeiro: Brand, filho de Bain, filho de Bard. É um rei forte e agora o seu reino estende-se muito para sul e leste de Esgaroth.
- E a respeito do seu próprio povo? - perguntou Frodo.
- Muito há a dizer, bom e mau - respondeu Glóin -, mas o bom leva a palma: até agora temos tido sorte, embora não escapemos à sombra dos tempos que correm. Se está realmente interessado em ouvir falar de nós, de bom grado lhe darei notícias. Mas mande-me parar quando estiver cansado! Dizem que a língua dos anões tem corda, quando eles falam das suas coisas.
E, após essa advertência, Glóin lançou-se numa longa narrativa dos feitos do reino dos Anões. Sentia-se encantado por ter descoberto um ouvinte tão cortês, pois Frodo não evidenciava quaisquer indícios de fadiga nem tentou mudar de assunto, apesar de, na realidade, depressa ter começado a sentir-se perdido na confusão de nomes estranhos de pessoas e lugares de que nunca ouvira falar. Foi, no entanto, com interesse que ficou a saber que Dáin ainda era rei debaixo da Montanha e se tornara velho (já passara os 250 anos), venerando e fabulosamente rico. Dos dez companheiros que tinham sobrevivido à Batalha dos Cinco Exércitos, sete ainda se encontravam com ele: Dwalin, Glóin, Dori, Nori, Bofur e Bombur. Este engordara tanto, que não podia ir do sofá para a sua cadeira, à mesa, e eram necessários seis jovens anões para o transportar.
- E que aconteceu a Balin, Ori e Óin? - perguntou Frodo.
Uma sombra entristeceu o rosto de Glóin, que respondeu:
- Não sabemos. Foi em grande parte por causa de Balin que vim aconselhar-me com os que residem em Rivendell. Mas esta noite falemos de coisas mais alegres!
Glóin começou então a falar das obras do seu povo e contou a Frodo os seus grandes trabalhos em Dale e debaixo da Montanha:
- Temo-nos saído bem - afirmou. - Mas nos trabalhos em metal não podemos rivalizar com os nossos pais, muitos de cujos segredos se perderam. Fazemos boas armaduras e espadas afiadas, mas não conseguimos fazer de novo cota de malha ou lâmina que se comparem às que se faziam antes da chegada do dragão. Só nas minas e na construção ultrapassámos os antigos. Gostaria que visse, Frodo, os canais de Dale, as montanhas e as lagoas! Gostaria que visse as estradas pavimentadas de pedras de muitas cores! E as câmaras e as ruas cavernosas construídas debaixo da terra, com arcos esculpidos como árvores! E os terraços e as torres das encostas da Montanha! Então compreenderia que não temos estado ociosos.
- Se puder, irei ver tudo isso - redarguiu Frodo. - Como Bilbo ficaria surpreendido se pudesse ver todas as modificações operadas no Deserto de Smaug!
Glóin olhou-o e sorriu.
- Era muito amigo de Bilbo, não era?
- Era - confirmou Frodo. - Gostaria mais de o ver do que a todas as torres e palácios do mundo.
Por fim, o banquete terminou. Elrond e Arwen levantaram-se e percorreram o salão, e os outros seguiram-nos, na devida ordem. As portas escancararam-se e eles atravessaram um corredor largo e outras portas, até chegarem a novo salão. Neste não havia mesas, mas crepitava uma boa fogueira na grande lareira existente entre as colunas esculpidas de ambos os lados.
Frodo deu consigo a caminhar ao lado de Gandalf.
- Este é o Salão do Fogo - disse o feiticeiro. - Aqui ouvirás muitas canções e muitas histórias, se conseguires manter-te acordado. Mas, com excepção dos grandes dias, geralmente está deserto e silencioso e só cá vêm as pessoas que desejam paz e meditação. O lume está sempre aceso, ao longo de todo o ano, mas praticamente não há outra luz.
Quando Elrond entrou e se dirigiu para o lugar preparado para ele, menestréis elfos começaram a tocar música suave. O salão encheu-se, pouco a pouco, e Frodo admirou, deliciado, os muitos rostos belos ali reunidos. A luz dourada da lareira incidia neles e brilhava-lhes no cabelo. De súbito, chamou-lhe a atenção um pequeno vulto escuro, sentado num tamborete e encostado a uma coluna, não longe do lado mais afastado da lareira. A seu lado, no chão, estavam uma taça e algum pão. Frodo perguntou a si mesmo se a pessoa em questão estaria doente (se é que as pessoas adoeciam em Rivendell) e não pudera, por isso, ir ao banquete. A cabeça pendia-lhe, como se dormisse, e tinha uma dobra da capa escura puxada para o rosto.
Elrond aproximou-se e parou ao lado do vulto silencioso.
- Acorde pequeno mestre! - chamou, a sorrir, e depois voltou-se para Frodo e fez-lhe sinal. - Chegou finalmente a hora que tanto tem desejado, Frodo. Aqui está um amigo cuja falta sente há muito tempo.
O vulto escuro levantou a cabeça e descobriu o rosto.
- Bilbo! - exclamou Frodo, ao reconhecê-lo imediatamente e correu para ele.
- Olá, Frodo, meu rapaz! - respondeu-lhe Bilbo. - Com que então, cá chegaste, finalmente! Eu esperava que o conseguisses. Sim senhor! Sim, senhor! Constou-me que todo esse banquete foi em tua honra. Espero que tenhas gostado.
- Por que não foi? - admirou-se Frodo. - E por que não me permitiram vê-lo antes?
- Não me viste porque estavas a dormir, mas eu vi-te muito. Estive à tua. cabeceira com o Sam, todos os dias. Quanto ao banquete agora já não me interesso muito por essas coisas. Além disso, tinha que fazer.
- O quê?
- Bem, sentar-me e pensar. É uma coisa que faço muito, hoje em dia, e este é, em geral, o melhor lugar para isso. Acorde, hem? - observou, a olhar para Elrond, e Frodo reparou que os seus olhos brilhavam maliciosamente e não apresentavam quaisquer vestígios de sonolência. - Acorde! Eu não estava a dormir, Mestre Elrond. Se quer que lhe diga, vieram todos do banquete cedo de mais, e perturbaram-me a meio de uma canção. Estava atrapalhado com um verso ou dois e a pensar neles... mas agora não creio que consiga compô-los. Cantarão tanto, que expulsarão as ideias da minha cabeça e terei de pedir ao meu amigo, o Dúnadan, que me ajude. Onde está ele?
Elrond riu-se.
- Procurá-lo-emos. Depois irão os dois para um canto e acabarão o trabalho, e nós ouviremos a canção e julgá-la-emos antes de terminarem os nossos divertimentos.
Foram encarregados mensageiros de procurar o amigo de Bilbo, embora ninguém soubesse onde ele estava nem por que motivo não assistira ao banquete.
Entretanto, Frodo e Bilbo sentaram-se ao lado um do outro e Sam acorreu logo e ficou perto deles. Conversaram em voz baixa, alheios à alegria e à música que os cercavam. Bilbo não tinha muito que dizer a seu respeito. Quando partira de Hobbiton vagueara sem destino pela Estrada ou pelos campos de ambos os lados, mas, não sabia como, seguira sempre na direcção de Rivendell.
- Cheguei aqui sem grandes aventuras e, depois de descansar, fui com os anões a Dale: a minha última viagem. Não voltarei a viajar. O velho Balin partira. Depois voltei para aqui e aqui tenho permanecido, a fazer uma coisita ou outra. Adiantei um pouco mais o meu livro. E, claro, fiz algumas canções. Eles cantam-nas ocasionalmente... só para me serem agradáveis, suponho, pois na realidade não são suficientemente boas para Rivendell. E também, ouço e penso. Não se dá pelo passar do tempo, aqui: o tempo existe, apenas. É um lugar verdadeiramente extraordinário.
»Ouço toda a espécie de notícias de além-Montanhas e do Sul, mas quase nenhumas do Shire. Ouvi falar do anel, claro. Gandalf tem cá vindo muitas vezes. Isso não significa que me tenha dito grande coisa; tornou-se ainda mais fechado, nos últimos dias. O Dúnadan falou mais. Imagina, o meu anel a causar tanta agitação! Foi uma pena Gandalf não ter descoberto mais coisas a seu respeito, mais cedo. Eu próprio o teria trazido aqui, há muito tempo, sem grandes problemas. Pensei várias vezes em regressar a Hobbiton, para o ir buscar; mas estou a ficar velho, e eles não me deixaram... Refiro-me a Gandalf e a Elrond. Pareciam pensar que o Inimigo me procurava por toda a parte e me faria em picadinho se me apanhasse a passear pelos Ermos...
»E Gandalf até disse: "O anel passou de mão, Bilbo. Não seria nada bom para si nem para outros se tentasse meter-se outra vez no assunto.' Uma observação estranha, mesmo no Gandalf. Mas ele disse que velava por ti, e por isso deixei as coisas como estavam. Estou contentíssimo por te ver são e salvo.»
Fez uma pausa e olhou para Frodo, desconfiado.
- Tem-lo contigo? - perguntou, baixinho. - Não posso deixar de sentir curiosidade, depois de tudo quanto ouvi, compreendes? Gostaria muito de lhe dar uma olhadelazinha, outra vez.
- Tenho-o, sim - respondeu Frodo, com uma estranha relutância. - Está exactamente como sempre foi.
- Bem, gostaria de o ver, só um bocadinho - insistiu Bilbo.
Quando se vestira, Frodo descobrira que, enquanto estivera a dormir, lhe tinham posto o anel ao pescoço, suspenso de uma corrente nova, leve mas forte. Tirou-o, devagar. Bilbo estendeu a mão, mas Frodo puxou imediatamente o anel para trás. Para sua angústia e seu espanto, verificou que já não estava a olhar para Bilbo. Dir-se-ia que entre eles se metera uma sombra, através da qual via uma pequena criatura enrugada, de rosto esfomeado e mãos ossudas e ávidas. Teve vontade de lhe bater.
A música e as canções que os cercavam pareceram hesitar, e fez-se silêncio. Bilbo olhou muito depressa para a cara de Frodo e passou a mão pelos olhos.
- Agora compreendo - declarou. - Guarda-o! Lamento... lamento que te tenha calhado semelhante fardo... lamento tudo. As aventuras nunca terão fim? Suponho que não. Há sempre qualquer outra pessoa que tem de continuar a história. Bem, não tem remédio. Pergunto a mim mesmo se valerá a pena tentar acabar o meu livro... Mas não nos preocupemos com isso agora. O que me interessa neste momento são notícias, notícias verdadeiras! Fala-me do Shire, diz-me tudo!
Frodo guardou o anel, e a sombra desapareceu e deixou apenas uma vaga recordação. A luz e a música de Rivendell cercavam-no de novo. Bilbo sorriu e riu, feliz. Todas as notícias do Shire que Frodo lhe pôde dar - acrescentadas e corrigidas, de vez em quando e Sam - o interessaram vivamente, desde o derrube da última árvore até às maroteiras do garoto mais pequeno de Hobbiton. Estavam tão absortos a falar dos acontecimentos dos quatro Farthings, que nem deram pela chegada de um homem embrulhado numa capa verde-escura, que ficou muitos minutos parado a olhá-los, sorridente.
De súbito, Bilbo levantou a cabeça e exclamou:
- Ah, Dúnadan, chegou, finalmente!
- Passo de Gigante! - exclamou por sua vez Frodo. - Parece que tem uma quantidade de nomes.
- Bem, Passo de Gigante é, pelo menos, um que nunca tinha ouvido chamar-lhe - observou Bilbo. - Por que o tratas assim?
Foi Passo de Gigante quem lhe respondeu, a rir:
- É como me tratam em Bree, e foi assim que me apresentaram a Frodo.
- E por que o trata o Bilbo por Dúnadan?
- O Dúnadan - corrigiu Bilbo. - Aqui tratam-no frequentemente assim. Supunha que conhecesses suficiente élfico para saber, pelo menos, o significado de dún-adan: homem do Ocidente, numenoriano. Mas não é ocasião para lições! - Virou-se para Passo e Gigante e perguntou-lhe: - Onde esteve, meu amigo? Por que não compareceu ao banquete? A Dama Arwen esteve presente.
Passo de Gigante olhou-o gravemente e respondeu:
- Bem sei. Mas muitas vezes tenho de pôr os divertimentos de parte. Elladan e Elrohir regressaram inesperadamente dos Ermos e traziam novidades que eu quis ouvir imediatamente.
- E, agora que as ouviu, meu caro, pode conceder-me um momento? Desejo que me ajude numa coisa urgente. Elrond disse que esta minha canção devia ficar terminada antes do fim da tarde e eu estou encalhado. Vamos para um canto, dar-lhe uns retoques.
Passo de Gigante sorriu.
- Pois sim, vamos! Deixe-me ouvi-la.
Frodo ficou um bocado sozinho, pois Sam adormecera. Além de só, sentia-se também melancólico, apesar da presença de toda aquela gente de Rivendell. Mas os que se encontravam perto dele estavam silenciosos, atentos à música das vozes e dos instrumentos e não prestavam atenção a mais nada. Frodo começou também a escutar.
Ao princípio, a beleza das melodias e das palavras entrelaçadas em diversas línguas élficas, como que o fascinaram, apesar de pouco compreender. Quase parecia que as palavras adquiriam forma, enquanto visões de terras longínquas e coisas alegres que nunca sequer imaginara se desenrolavam à sua frente.
O salão iluminado pela luz das chamas da lareira tornou-se uma espécie de névoa dourada sobre mares de espuma, que suspiravam nas margens do mundo. Depois, o encantamento foi-se transformando gradual e crescentemente em sonho, até ele ter a impressão de que lhe corria por cima um rio engrossado, ouro e prata, tão multifacetado, que lhe não compreendia a configuração, um rio que se tornou parte do ar vibrante que o cercava, que o encharcou e submergiu. Rapidamente, deixou-se afundar sob o seu peso cintilante, num fundo reino de sono.
Por lá ficou muito tempo, num sonho de música que se transformou em água corrente e depois, de súbito, numa voz. Numa voz que parecia a de Bilbo a cantar versos. Ouviu as palavras vagamente, ao princípio, e depois com mais clareza:
Eärendil era um marinheiro
que se demorou em Arvenien;
construiu um barco de árvores caídas
em Nimbrethil, para nele viajar;
teceu as velas de fios de prata,
de prata fez as lanternas,
deu à proa feição de cisne
e pintou as bandeiras de luz.
Com a panóplia de reis antigos
e anéis encadeados se couraçou;
cobriu de runas o cintilante escudo
para afastar todas as feridas e todo o mal;
de corno de dragão era o seu arco,
as suas setas eram de ébano afiado,
de prata era a sua cota de malha
e de calcedónia a bainha da espada,
que era de aço e valorosa;
tinha um alto elmo adamantino
com uma pena de águia na cimeira,
e ostentava no peito uma esmeralda.
Sob a Lua e sob as estrelas
muito se afastou das setentrionais costas,
fascinado por tentadores encantos
para além dos dias de terras mortais.
Do ranger do compacto gelo,
onde a sombra jaz em gélidos montes,
de sufocantes calores e escaldantes desertos
fugiu apressado e, sempre a navegar
em longínquas águas sem estrelas,
chegou por fim à Noite do Nada,
e passou, e jamais lhe foi dado ver
costa luminosa ou luz procurar.
Os ventos da ira sopraram e impeliram-no,
e, às cegas, na espuma vogou
de oeste para leste e sem rumo,
sem ser anunciado, para a pátria navegou.
Aí, voando, acudiu-lhe Elwing
e nas trevas se acendeu chama;
mais brilhante do que a luz diamantina
era o fogo do seu colar refulgente.
O Silmaril ela lhe impôs
e com a luz viva o coroou.
Destemido então, de fronte incandescente,
mudou de rumo; e de noite,
do Outro Mundo para lá do Mar,
forte e desenfreada uma borrasca rugiu,
um vento de potestade em Tarmenel;
por caminhos raros seguidos por mortais
o seu barco lançou, com sopro cortante,
como hálito de morte através dos cinzentos
e havia muito abandonados mares:
de leste para oeste desapareceu.
Através da Noite Eterna regressou, trazido
por negras e atroadoras vagas que corriam
sobre léguas escuras e costas afundadas,
submersas antes do começo dos Dias,
até que ouviu, em praias perlíferas
onde o mundo termina a longa música,
onde vagalhões sempre espumejantes rolam
e o ouro amarelo e as pedrarias empalidecem.
Viu a silenciosa Montanha erguer-se
onde o crepúsculo repousa nos joelhos
de Valinor e Eldamar
olha para longe, para lá dos mares.
Peregrino fugido da noite
a branco porto finalmente arribou,
à pátria élfica, à verde e bela
onde, puro o ar, onde, pálidas como vidro,
sob o monte de Ilmarin
cintilam num fundo vale
as torres iluminadas de Tirion
reflectidas no Lago da Sombra.
Aí descansou da odisseia
e lhe ensinaram melodias
e velhos sábios maravilhas lhe contaram
e harpas de ouro lhe ofereceram.
Vestiram-no então de élfico branco
e sete luzes à sua frente mandaram,
quando através do Calacirian
para terra oculta triste partiu.
Chegou às câmaras eternas
onde luminosos caem os incontáveis anos
e infinitamente reina o Rei Primeiro
em Ilmarin, na abrupta montanha;
e palavras nunca ouvidas foram então ditas
da gente dos Homens e da linhagem élfica,
para lá do mundo onde visões existem
proibidas àqueles que nele vivem.
Para ele depois construíram um barco
de mithril e vidro élfico
e com refulgente proa. Nem remo cortado,
nem vela desfraldada no mastro de prata:
o Silmaril como luz de lanterna
e bandeira iluminada de viva chama
que sempre brilharia, foi colocado
pela própria Elbereth, que acorreu
e para ele fez asas imortais
e o fadou com o eterno destino
de navegar pelos céus sem praias
e passar por trás do Sol e da Lua.
Dos altos montes da Tarde Eterna
onde correm docemente fontes de prata,
as asas levaram-no, luz errante,
para lá da poderosa Muralha da Montanha.
Do Fim do Mundo então se afastou
e de novo anelou por encontrar, longe,
a pátria, através de sombras viajando
e ardendo como uma estrela-ilha
muito alto, acima das névoas chegou,
fama distante à frente do Sol,
um portento diante da alvorada a despontar,
onde, cinzentas, as águas da Terra Nórdica correm.
E sobre a Terra Média passou
e ouviu finalmente a mágoa chorosa
de mulheres e donzelas élficas
dos Primitivos Tempos, dos anos idos.
Mas sobre ele forte destino pesava,
até a Lua se apagar, como estrela veloz
passar e nunca mais se deter
nas praias deste lado, onde vivem os mortais;
ser para sempre um arauto
com uma missão, que nunca descansaria,
um arauto que levaria a todo o lado a sua luz,
o flamífero da Ocidentalidade.
O canto cessou. Frodo abriu os olhos, e viu Bilbo sentado no seu tamborete, num círculo de ouvintes que sorriam e aplaudiam.
- É melhor repetir - disse o elfo.
Bilbo levantou-se e inclinou-se.
- Sinto-me lisonjeado, Lindir - declarou. - Mas seria demasiado cansativo repetir tudo.
- Demasiado cansativo para si, não seria - responderam os elfos, a rir. - Sabe muito bem que nunca se cansa de recitar os seus próprios versos. Mas, francamente, não sabemos responder à sua pergunta só com uma audição!
- O quê?! - exclamou Bilbo. - Não sabem distinguir as partes que são minhas das que são do Dúnadan?
- Não é fácil para nós distinguir a diferença entre dois mortais - disse o primeiro elfo.
- Disparate, Lindir - resmungou Bilbo. - Se não sabem distinguir entre um homem e um hobbit são piores julgadores do que eu imaginava. São tão diferentes como ervilhas e maçãs.
- Talvez. Os carneiros parecem sem dúvida diferentes a outros carneiros - replicou, a rir, Lindir. - Ou aos pastores. Mas nós não nos temos dedicado ao estudo dos mortais. Temos mais em que pensar.
- Não discuto com vocês - respondeu Bilbo. - Sinto-me ensonado, depois de tanta música e tanto canto. Adivinhem, se quiserem.
Levantou-se e aproximou-se de Frodo.
- Pronto, acabou-se - disse, em voz baixa. - Saiu melhor do que esperava, pois raramente me pedem uma repetição. Que te pareceu?
- Não vou tentar adivinhar - redarguiu Frodo, a sorrir.
- Nem precisas. Na verdade, os versos são todos meus, tirando o pormenor da insistência de Aragorn em mencionar uma pedra verde. Pareceu considerar isso importante, não sei porquê. Fora isso, percebi que considerava todo o poema muito acima da minha craveira e até disse que se eu tinha o descaramento de fazer versos a respeito de Eãrendil em casa de Elrond, isso era comigo. Acho que tinha razão.
- Não sei... - observou Frodo. - A mim pareceu-me que se ajustava, embora não saiba explicar porquê. Estava meio a dormir quando começou e os versos pareceram a continuação de qualquer coisa que estava a sonhar. Só quase no fim é que compreendi que era realmente o Bilbo quem falava.
- Aqui é difícil mantermo-nos acordados, até nos habituarmos. Não quero dizer que os Hobbits adquiram alguma vez o apetite dos Elfos por música, poesia e histórias. Parecem gostar tanto dessas coisas como de comida, ou mais. Isto aqui vai continuar durante ainda muito tempo. Que dizes se nos escapássemos para mais uma conversazinha sossegada?
- Podemos? - perguntou Frodo.
- Claro que podemos. Isto é divertimento e não obrigação. Podes entrar e sair quando te apetecer, desde que não faças barulho.
Levantaram-se, mergulharam silenciosamente nas sombras e dirigiram-se para as portas. Sam ficou onde estava, a dormir profundamente, ainda com um sorriso nos lábios. Apesar do prazer que lhe causava a companhia de Bilbo, Frodo sentiu um repelãozinho de pena quando saíram do Salão do Fogo. No preciso momento em que transpunham o limiar da porta, ergueu-se uma voz límpida, que começou a cantar:
A Elbereth Gilthoniel,
silivren penna mírie!
o menel aglar elenath!
Na-chaered palan-díriel
o galadhremmin ennorath,
Fanuilos, le linnathon
nef aear, si nef aearon!
Frodo parou um momento, a olhar para trás. Elrond estava sentado na sua cadeira e o brilho do lume banhava-lhe o rosto como a luz estival banha as árvores. Perto dele estava sentada a Dama Arwen. Surpreendido, Frodo viu Aragorn de pé ao lado dela. Tinha a capa escura atirada para trás, parecia vestir uma cota de malha élfica e brilhava-lhe uma estrela no peito. Conversaram os dois, mas, de súbito, Frodo teve a impressão de que Arwen se virava para ele e a luz dos seus olhos incidia nele, de muito longe, e lhe traspassava o coração.
Ficou parado, encantado, enquanto as sílabas suaves da canção élfica se sucediam como límpidas pedras preciosas em que a palavra e a melodia se fundiam.
- É uma canção dedicada a Elbereth - informou Bilbo. - Esta noite cantá-la-ão muitas vezes, assim como a outras canções do Reino Abençoado. Vamos!
Reconduziu Frodo ao seu pequeno quarto, que dava para os jardins e ficava voltado para sul, através do desfiladeiro do Bruinen. Sentaram-se durante algum tempo, a admirar pela janela as estrelas luminosas que brilhavam por cima das florestas íngremes e a conversar em voz baixa. Mas não falaram das pequenas notícias do distante Shire, nem das sombras negras e dos perigos que os ameaçavam, mas sim das coisas belas que tinham visto, juntos, no mundo, dos Elfos, das estrelas, de árvores e do suave Outono nas florestas.
Por fim bateram à porta.
- Com sua licença - disse Sam, enquanto enfiava a cabeça pela abertura -, mas vinha perguntar se precisavam de alguma coisa.
- E com tua licença, Sam Gamgee - redarguiu Bilbo -, desconfio que queres dizer com isso que são horas de o teu amo se deitar.
- Bem, senhor, ouvi dizer que há um conselho, de manhã cedo, e ele só se levantou hoje pela primeira vez...
- Tens toda a razão, Sam - declarou Bilbo, a rir. - Podes ir dizer a Gandalf que ele foi para a cama. Boas-noites, Frodo. Palavra, gostei muito de voltar a ver-te! No fim de contas, para uma boa conversa, não há ninguém como os Hobbits. Estou a ficar muito velho, e começo a recear não viver o tempo suficiente para ler os teus capítulos da nossa história. Boas-noites! Creio que vou dar um passeio e admirar as estrelas de Elbereth no jardim. Dorme bem!
O CONSELHO DE ELROND
No dia seguinte, Frodo acordou cedo e sentiu-se repousado e bem. Passeou pelos terraços, acima do barulhento Bruinen, e viu o Sol frio e pálido erguer-se acima das montanhas distantes e despedir os seus raios oblíquos através da ténue névoa prateada. O orvalho brilhava nas folhas amarelas e em todos os arbustos luziam finíssimas teias de aranha. Sam caminhava ao lado dele, sem dizer nada, a aspirar o ar e a olhar de vez em quando, de olhos maravilhados, para as grandes montanhas de leste, de picos cobertos de neve.
Num banco talhado na pedra, numa curva do caminho, encontraram Gandalf e Bilbo muito entretidos a conversar.
- Olá! Bons-dias! - exclamou Bilbo. - Está pronto para o grande conselho?
- Sinto-me pronto para tudo - respondeu Frodo. - Mas hoje gostaria, sobretudo, de passear e explorar o vale. Apetecia-me ir até àqueles pinhais, além. - Apontou muito para cima e para norte.
- Talvez tenhas oportunidade disso, mais tarde - disse-lhe Gandalf. - Mas por enquanto não podemos fazer quaisquer planos. Há muito que ouvir e decidir, hoje.
De súbito, enquanto conversavam, soou o sino, de som cristalino.
- É o toque de aviso para a reunião do Conselho de Elrond - explicou Gandalf. - Venham, venham! Têm de comparecer os dois.
Frodo e Bilbo seguiram rapidamente o feiticeiro pelo caminho sinuoso, de regresso a casa. Sam trotava atrás deles, não convidado e momentaneamente esquecido.
Gandalf conduziu-os ao alpendre onde Frodo encontrara os amigos na tarde anterior. A luz da clara manhã outonal brilhava, entretanto, no vale. Do leito do rio espumoso subia o ruído das águas murmurantes. Cantavam pássaros e uma paz sadia envolvia a terra. A Frodo, a fuga perigosa e os boatos das trevas crescentes que alastravam pelo mundo exterior pareciam já apenas, recordações de um sonho perturbado. Mas os rostos voltados para eles, quando entraram, exprimiam gravidade.
Elrond estava presente e à sua volta sentavam-se vários outros em silêncio. Frodo viu Glorfindel e Glóin e, sentado a um canto, sozinho, Passo de Gigante, que vestira de novo as roupas velhas e gastas pelas viagens. Elrond indicou a Frodo um lugar a seu lado e apresentou-o do seguinte modo, aos presentes:
- Aqui está, meus amigos, o hobbit Frodo, filho de Drogo. Poucos são os que chegaram aqui vencendo tão grandes perigos e com uma missão tão premente.
Depois apontou os que Frodo ainda não conhecia e nomeou-os. Ao lado de Glóin estava um anão mais novo: seu filho, Gimli. Ao lado de Glorfindel encontravam-se vários outros conselheiros da Casa de Elrond, dos quais Erestor era o chefe, e com ele estava Galdor, um elfo dos Portos Cinzentos que viera a mando de Círdan, o Construtor Naval. Encontrava-se presente ainda outro elfo desconhecido, vestido de verde e castanho: Legolas, mensageiro de seu pai, Thranduil, rei dos Elfos da Floresta Nebulosa Setentrional. Sentado um pouco à parte via-se um homem alto, de rosto perfeito e nobre, cabelo escuro, olhos cinzentos e olhar altivo e severo.
Usava capa e botas, como se fosse viajar a cavalo, e, apesar de o seu vestuário ser rico e a capa forrada de pele, as suas roupas apresentavam manchas reveladoras de que fizera uma longa viagem. Usava, ao pescoço, uma corrente de prata com uma única pedra branca incrustada e o cabelo encaracolado cortado pela altura dos ombros. Tinha pousado nos joelhos, num boldrié, um grande chifre com a ponta de prata. Olhou para Frodo e Bilbo com ar de espanto.
- Boromir, um homem do Sul - apresentou-o Elrond, e virou-se para Gandalf. - Chegou ao alvorecer, em busca de conselho. Convidei-o a estar presente, pois as suas perguntas receberão resposta.
Não é necessário relatar tudo quanto se disse e debateu no Conselho. Falou-se muito de acontecimentos do mundo exterior, especialmente do Sul, e das vastas terras a leste das Montanhas. Frodo já ouvira muitos boatos a respeito dessas coisas, mas a história de Glóin constituiu novidade para ele, e por isso, quando o anão falou, escutou-o atentamente. Parecia que, no meio do esplendor das suas
obras, o coração dos Anões da Montanha Solitária estava perturbado.
- Há já muitos anos -disse Glóin - que uma sombra de inquietação se abateu sobre o nosso povo. Ao princípio, não nos apercebemos. Começaram a murmurar-se palavras, em segredo: dizia-se que estávamos encerrados num lugar estreito e que haveria maior riqueza e esplendor num mundo mais vasto. Alguns falavam de Mória, a portentosa obra dos nossos antepassados e que na nossa língua chamamos Khazad-dúm, e afirmavam que finalmente possuíamos a força e o número suficientes para lá regressarmos.
Glóin suspirou.
- Mória! Mória! Maravilha do mundo setentrional! Escavámos lá demasiado fundo e despertámos o inominável terror. Há muito que as suas imensas mansões estão desertas, desde a fuga dos filhos de Durin. Mas agora falamos de novo dela com nostalgia e ao mesmo tempo com medo, pois há muitas vidas de reis que nenhum anão ousa transpor as portas de Khazad-dúm... exceptuando apenas Thrór, e esse pereceu. Por fim, contudo, Balin ouviu os murmúrios e resolveu ir, e embora Dáin não concedesse autorização de boa mente, mesmo assim levou consigo Ori e Óin e muita gente nossa, e partiram para sul.
»Isso foi quase há trinta anos. Durante algum tempo recebemos notícias e tudo parecia correr bem: as mensagens diziam que tinham entrado em Mória e iniciado um grande trabalho. Depois seguiu-se o silêncio, e nem mais uma palavra chegou de Mória.
»Até que, há cerca de um ano, um mensageiro se apresentou a Dáin. Mas não vinha de Mória, e sim de Mordor, era um cavaleiro da noite que chamou Dáin à sua porta. Segundo disse, Sauron, o Grande, desejava a nossa amizade. Oferecia anéis por ela, como fizera antigamente. E fez perguntas insistentes a respeito de hobbits: de que espécie eram e onde viviam. 'Pois Sauron sabe', afirmou, 'que um deles foi vosso conhecido, em tempos.'
»Ficámos muito perturbados e não demos resposta. Depois, o mensageiro baixou a voz cruel... e tê-la-ia até adoçado, se pudesse... e acrescentou: 'Como pequena prova da nossa amizade, Sauron pede o seguinte: que encontreis esse ladrão - foi a palavra empregada - e dele obtenhais, de vontade ou à força, um pequeno anel, o mais insignificante dos anéis, que em tempos ele roubou. Trata-se de uma simples bagatela a que Sauron é afeiçoado e que constituirá uma prova da vossa boa vontade. Encontrai-o, e os três anéis que os senhores dos Anões possuíram, outrora, ser-vos-ão devolvidos e o reino de Mória pertencer-vos-á para sempre. Descobri apenas notícias do ladrão, se ainda vive e onde, e recebereis grande recompensa e amizade duradoura do Senhor. Recusai, e as coisas não correrão tão bem. Recusais?
»O seu bafo transformou-se num silvo de serpentes, e todos quantos estavam perto estremeceram. Mas Dáin respondeu: 'Não digo sim nem não. Tenho de meditar nesta mensagem e no que significa sob a sua aparência honesta.'
»'Meditai bem, mas não demasiado longamente, disse o mensageiro.
»O tempo do meu pensamento pertence-me, posso gastá-lo como entender', respondeu-lhe Dáin.
»«Por enquanto», redarguiu o cavaleiro, e partiu na escuridão.
»Desde essa noite, os nossos capitães têm sentido o coração pesado. Não precisávamos da voz cruel do mensageiro para compreender que as suas palavras continham simultaneamente ameaça e engano, pois já sabíamos que a Sombra reentrou em Mordor, não mudou e antigamente sempre nos traiu. Duas vezes o mensageiro voltou, e duas vezes partiu sem resposta. A terceira e última, segundo disse, não tardará, será antes do fim do ano.
»Por isso, Dáin mandou-me, finalmente, avisar Bilbo de que o Inimigo o procura e tentar saber, se possível, por que motivo ele deseja o referido anel, o mais insignificante de todos. Também estamos ansiosos por ouvir os conselhos de Elrond, pois a Sombra cresce e aproxima-se cada vez mais. Descobrimos que foram igualmente mandados mensageiros ao rei Brand, de Dale, e que ele está receoso. Tememos que ceda. A guerra aproxima-se já das suas fronteiras orientais. Se nós não respondermos, o Inimigo pode deslocar homens por ele dominados para atacarem o rei Brand e também, Dáin.
- Fez bem em vir- declarou Elrond. - Hoje ouvirá tudo quanto necessita para compreender os objectivos do Inimigo. Não podem fazer outra coisa além de resistir, com esperança ou sem ela. Mas não estão sós. Ficarão a saber que os seus problemas são apenas parte dos problemas de todo o mundo ocidental. O anel! Que faremos com o anel, com o mais insignificante dos anéis, a simples bagatela a que Sauron se afeiçoou? É acerca desse destino que temos de meditar.
»Foi para isso que foram para aqui convocados. Disse convocados, mas na verdade não fui eu que os chamei, estrangeiros de terras distantes. Poderá até parecer que vieram e aqui se encontraram, neste momento, por mero acaso. Mas também não foi isso que aconteceu. Pensem antes que estava destinado que nós, os que estamos aqui sentados, nós e nenhuns outros, devemos discutir o perigo que o mundo corre.
»Portanto, agora falar-se-á abertamente de coisas que até hoje, têm estado escondidas de todos, com excepção de uns poucos. E primeiro, para que todos possam compreender qual é o perigo, a História do Anel será contada desde o princípio até ao momento presente. Começarei a contá-la eu, embora outros a acabem.
Escutaram todos enquanto Elrond, com voz clara, falou de Sauron e dos Anéis do Poder, assim como do seu forjamento na Segunda Era do mundo, há muito tempo. Alguns conheciam parte da sua história, mas a história toda não era conhecida de nenhum e muitos foram os olhos que se fixaram em Elrond com medo e espanto, enquanto ele falava dos ferreiros élficos de Eregion, da sua amizade com Mória e da sua ânsia de saber, da qual Sauron se servira para lhes estender uma armadilha. Nesse tempo, ainda não tinha aspecto de mau e eles tinham recebido a sua ajuda e haviam-se tornado poderosos na sua arte, ao passo que ele aprendera todos os seus segredos, os atraiçoara e forjara secretamente, na Montanha de Fogo, o Anel Um para os dominar. Mas Celebrimbor percebera-o e escondera os Três que fizera. E assim houvera guerra, a terra ficara abandonada e devastada e a porta de Mória fechara-se.
Depois acompanhou o rasto do anel ao longo de todos os anos que se seguiram; mas como essa história é contada noutro lado, enquanto o próprio Elrond a registava nos seus livros de tradição, não a repetiremos aqui. Trata-se de uma história comprida, cheia de grandes e terríveis feitos, e, por muito resumidamente que Elrond a contasse, o Sol percorreu parte do céu e a manhã estava a findar quando ele terminou.
Falou de Númenor, da sua glória e da sua queda, e do regresso dos reis dos Homens à Terra Média, vindos das profundezas do mar nas asas da tempestade. Depois, Elendil, o Alto, e os seus possantes filhos, lsildur e Anárion, tornaram-se grandes senhores e estabeleceram o Reino do Norte em Arnor e o Reino do Sul em Gondor, por cima das nascentes do Anduin. Mas Sauron de Mordor atacou-os, eles fizeram a Última Aliança de Elfos e Homens e as hostes de Gil-galad e Elendil concentraram-se em Arnor.
Chegado a este ponto, Elrond fez uma pausa e suspirou.
- Lembro-me bem do esplendor das suas bandeiras - disse. - Recordaram-me a glória dos Tempos Antigos e as hostes de Beleriand, tantos e tão grandes príncipes e chefes guerreiros estavam reunidos. No entanto, não eram tantos, nem tão belos, como quando Thangorodrim foi vencido e os Elfos julgaram que o mal terminara para sempre, mas não terminara.
- Lembra-se? - perguntou Frodo, dando voz ao seu pensamento, tão grande era o seu espanto. - Mas eu pensava... - gaguejou, quando Elrond se virou para ele - ... eu pensava que a queda de Gil-galad tinha sido há muito, muito tempo.
- E foi, realmente - respondeu Elrond, muito sério. - Mas a minha memória remonta até mesmo aos Tempos Antigos. Eärendil foi o meu progenitor, nascido em Gondolin antes de esta cair; e a minha mão foi Elwing, filha de Dior, filho de Lúthien de Doriath. Vi três eras no Ocidente do mundo, muitas derrotas e muitas vitórias infrutíferas.
»Fui o arauto de Gil-galad e marchei com a sua hoste. Estive na batalha de Dagorlad, diante da Porta Negra de Mordor, onde tivemos a superioridade, pois à lança de Gil-galad e à espada de Elendil, Aiglos e Narsil, ninguém vencia. Assisti ao último combate nas vertentes de Orodruin, onde Gil-galad morreu, Elendil caiu e Narsil se partiu, debaixo dele; mas o próprio Sauron foi derrotado, e Isildur cortou-lhe o anel do dedo com o resto de lâmina agarrado ao punho da espada do pai, e ficou com ele para si.»
Ao ouvir tais palavras, o desconhecido, Boromir, exclamou:
- Foi então isso que aconteceu ao anel! Se alguma vez essa história foi contada no Sul, há muito que está esquecida. Ouvi falar do Grande Anel daquele cujo nome não dizemos; mas acreditávamos que o anel desaparecera deste mundo com a ruína do seu primeiro reino. Afinal, Isildur apoderou-se dele! Isso, sim, é uma novidade.
- Ah, sim! - exclamou Elrond. - Isildur apoderou-se dele e não o devia ter feito. Devia tê-lo lançado ao fogo de Orodruin, ali perto onde o anel foi feito. Mas poucos viram o que Isildur fez. Foi ele o único que ficou junto do pai, naquele combate mortal. E com Gil-galad só Círdan e eu ficámos. Mas Isildur não quis ouvir os nossos conselhos.
»'Guardá-lo-ei em memória de meu pai e de meu irmão', afirmou, e, quer quiséssemos, quer não, ficou com ele, como um tesouro. Mas não tardou a ser atraiçoado por ele e a morrer. Por isso lhe chamam, no Norte, a Maldição de Isildur. No entanto, talvez a morte tenha sido melhor do que outras coisas que lhe poderiam ter acontecido.
»Estas notícias só chegaram ao Norte, e mesmo assim poucos delas tiveram conhecimento. Não admira, portanto, que as não tivesse ouvido, Boromir. Do desastre dos Campos Alegres, onde Isildur pereceu, só três homens regressaram pelas montanhas, depois de andarem muito tempo perdidos. Um deles foi Othar, o escudeiro de Isildur, que trouxe o resto da espada de Elendil e a levou a Valandil, herdeiro de Isildur, que ficara aqui, em Rivendell, visto ser ainda criança. Mas Narsil estava partida e a sua luz extinta, e não voltou a ser forjada.
»Chamei infrutífera à vitória da última Aliança? Não o foi completamente, embora não tenha alcançado o seu objectivo. Sauron foi vencido, mas não destruído. O seu anel perdeu-se, mas não se desfez. A Torre Negra foi destruída, mas os seus alicerces não foram removidos, pois foram feitos com o poder do anel, e, enquanto ele existir, eles durarão. Muitos elfos e muitos homens poderosos, assim como muitos amigos seus, tinham perecido na guerra. Anárion foi morto, Isildur também, e Gil-galad e Elendil já não existiam. Nunca mais voltará a haver uma tal aliança de elfos e homens pois os Homens multiplicam-se, os Elfos diminuem e as duas espécies estão desentendidas. E, desde esse dia, a raça de Númenor começou a decair e o número dos seus anos de vida diminuiu.
»No Norte, depois da guerra e da carnificina dos Campos Alegres, os Homens da Ocidentalidade enfraqueceram e a sua cidade de Annúminas, na margem do lago Evendim, caiu em ruínas; e os herdeiros de Valandil partiram e foram viver em Fornost, nas altas Dunas do Norte, agora também em desolação. Os Homens chamam-lhe Vala dos Mortos e receiam passar por lá; pois a gente de Arnor diminuiu, os seus inimigos devoraram-na e o seu domínio passou, deixando apenas montículos verdes nos montes cobertos de erva.
»No Sul, o reino de Gondor resistiu longamente e, durante algum tempo, o seu esplendor aumentou, lembrando de certo modo o poderio de Númenor, antes da queda. Torres altas construídas por pessoas, e fortalezas, e portos de muitos barcos... E a coroa alada dos Reis dos Homens inspirou temor a povos de muitas línguas. A sua cidade principal era Osgiliath, Cidadela das Estrelas, pelo meio da qual passava o Rio. Construíram Minas Ithil - Torre da Lua Nascente - a leste, nos contrafortes das Montanhas da Sombra; e a oeste, no sopé das Montanhas Brancas, construíram Minas Anor - Torre do Sol Poente. Aí, nos pátios do rei, cresceu uma árvore branca, da semente daquela árvore que Isildur trouxera através do mar profundo, semente que antes viera de Eressêa e antes ainda do Extremo Ocidente no Dia antes dos dias, quando o mundo era criança.
»Mas, com o desgosto dos velozes anos na Terra Média, a estirpe de Meneldil, filho de Anárion, enfraqueceu, a Árvore murchou e o sangue dos Numenorianos misturou-se com o de homens inferiores. Depois, a guarda das muralhas de Mordor adormeceu e coisas negras regressaram, sorrateiras, a Gorgoroth. E, a certa altura, as coisas más avançaram, tomaram Minas Ithil, instalaram-se nela e transformaram-na num lugar de terror. Passou a chamar-se Minas Morgul, a Torre do Bruxedo. Depois, Minas Anor passou a chamar-se Minas Tirith, a Torre da Guarda, e estas duas cidades passaram a estar sempre em guerra; mas Osgiliath, que fica no meio, foi abandonada, e nas suas ruínas passaram a andar sombras.
»É assim há muitas vidas de homens. Mas os Senhores de Minas Tirith continuaram a lutar, desafiando os nossos inimigos e defendendo a passagem do Rio, de Argonath para o Mar. A parte da história que me competia contar chegou agora ao fim, pois no tempo de Isildur o Anel Soberano foi por todos esquecido e os Três libertaram-se do seu domínio. Agora, porém, estão de novo em perigo, pois
para mágoa nossa o Um foi encontrado. Outros falarão do seu achamento, pois nisso desempenhei pequeno papel.»
Elrond calou-se e, acto contínuo, Boromir levantou-se, alto e orgulhoso, e disse:
- Permita-me primeiro, Mestre Elrond, que fale mais de Gondor, pois, na verdade, da terra de Gondor vim e bom seria que todos soubessem o que lá se passa. Poucos, creio, sabem dos nossos feitos e, portanto, não avaliam bem o perigo que correriam se, finalmente cedêssemos.
»Não acreditem que na terra de Gondor o sangue de Númenor se extinguiu e estão esquecidos todo o seu orgulho e dignidade. Graças à nossa coragem, a gente selvagem do Leste ainda está dominada e o terror de Morgul contido; e só assim se mantêm a paz e a liberdade nas terras que ficam para trás de nós, bastião do Ocidente. Mas que aconteceria se as passagens do Rio fossem vencidas?
»Essa hora talvez não esteja muito longe. O Inimigo Inominável ergueu-se de novo. Mais uma vez sobe fumo de Orodruin, a que chamamos Monte da Condenação. O poder da Terra Negra aumenta e nós estamos em situação difícil. Quando o Inimigo regressou, a nossa gente foi repelida de Ithilien, nosso belo domínio a leste do Rio, embora ainda lá mantenhamos uma posição e força de armas. Mas neste mesmo ano, nos dias de Junho, abateu-se sobre nós uma guerra inesperada, desencadeada por Mordor, e fomos dizimados. Estávamos em inferioridade numérica, pois Mordor aliou-se aos Easterlings e aos cruéis Haradrim. No entanto, não foi pelo número que fomos derrotados. Houve uma força que não sentíramos antes.
»Uns disseram que se via, como um grande cavaleiro negro, uma sombra escura sob a Lua. Onde quer que ele aparecesse, apoderava-se uma loucura dos nossos inimigos, ao mesmo tempo que o medo tomava conta dos nossos guerreiros mais destemidos, de tal modo que cavalo e cavaleiro não resistiam e fugiam. Só regressou uma pequena parte da nossa força oriental, depois de destruir a última ponte que existia entre as ruínas de Osgiliath.
»Estive com a companhia que defendeu a ponte, até a destruirmnos atrás de nós. Só quatro se salvaram a nado: o meu irmão, eu e outros dois. Mas mesmo assim continuamos a combater, a defender todas as costas ocidentais do Anduin, e os que se encontram protegidos atrás de nós elogiam-nos, sempre que ouvem o nosso nome... muitos elogios, mas pouco auxílio. Agora só de Rohan irão alguns homens em nosso socorro, quando os chamarmos.
»Nesta má hora, vim com uma missão a Elrond, através de muitas e perigosas léguas: viajei cento e dez dias sozinho. Mas não venho procurar aliados para a guerra. Diz-se que a força de Elrond está na sabedoria e não nas armas. Vim pois, pedir conselho e a decifração de palavras difíceis, pois, na véspera do ataque inesperado o meu irmão teve um sonho, no meio de um sono agitado, e depois disso voltou a ter um sonho semelhante, muitas vezes, e eu mesmo o tive uma vez.
»Nesse sonho pareceu-me que o céu oriental se tornava cada vez mais escuro e se ouviu uma trovoada cada vez maior, ao passo que no ocidente persistia uma luz pálida e saía dela uma voz, distante mas clara, que dizia:
Procura a espada que foi partida:
Em Imladris se encontra;
Aí se aceitarão conselhos mais fortes
Do que os encantamentos de Morgul.
Aí se mostrará uma prova
De que o Fim está próximo,
Pois a Maldição de Isildur despertará
E o Halfling apresentar-se-á.
»Pouco compreendemos destas palavras, e por isso falámos com o nosso pai, Denethor, Senhor de Minas Tirith e conhecedor da história de Gondor. Disse-nos apenas que Imladris era o nome antigo, entre os Elfos, de um vale do Norte, onde habitava Elrond, o Meio-Elfo, o maior de todos os mestres da tradição. Por isso, o meu irmão, vendo quanto era desesperada a nossa necessidade, ficou ansioso por dar ouvidos ao sonho e procurar Imladris. Mas, como o caminho era duvidoso e cheio de perigos, encarreguei-me eu próprio da viagem. Muito custou a meu pai dar-me autorização e longamente errei por estradas esquecidas em busca da casa de Elrond, de que muitos tinham ouvido falar, mas que poucos sabiam onde ficava.»
- E aqui, na casa de Elrond, mais coisas compreenderá - disse Aragorn. Levantou-se e atirou a espada para cima da mesa que estava diante de Elrond: a lâmina estava partida em dois bocados. - Aqui está a espada que foi partida! - exclamou.
- Mas quem é e que tem a ver com Minas Tirith? - perguntou Boromir, a olhar, fascinado, para o rosto magro do Caminhante e para a sua capa desbotada pelo tempo.
- Ele é Aragorn, filho de Arathorn - respondeu Elrond -, e descendeu, através de muitos antepassados, de Isildur, filho de Elendil, de Minas Ithil. É o chefe dos Dúnedains do Norte, dos quais poucos restam.
- Então pertence-lhe, e não a mim! - gritou Frodo, estupefacto, ao mesmo tempo que se levantava de um pulo, como se esperasse que o anel fosse de imediato reclamado.
- Não pertence a nenhum de nós - afirmou Aragorn -; mas foi destinado que o terias contigo durante algum tempo.
- Tira o anel, Frodo! - ordenou Gandalf, solenemente. - Chegou o momento. Levanta-o e mostra-o e, então, Boromir compreenderá o resto da sua charada.
Fez-se silêncio e todos os olhos se fixaram em Frodo. Este sentiu-se possuído de súbita vergonha e medo, de grande relutância em mostrar o anel e de repugnância em lhe tocar. Desejou estar muito longe dali. O anel cintilou e refulgiu, quando o levantou e o mostrou na mão trémula.
- Olhai a maldição de Isildur! - exclamou Elrond.
Os olhos de Boromir cintilavam, enquanto olhava para o objecto de ouro.
- O Halfling! - murmurou. - Chegou então, finalmente, o fim de Minas Tirith? Mas, nesse caso, para que deveríamos procurar uma espada partida?
- As palavras não eram o fim de Minas Tirith - explicou Aragorn. - Mas, sim: o fim e grandes feitos estão realmente próximos. Pois a espada que foi partida é a espada de Elendil, que se partiu debaixo dele quando ele caiu. Tem sido estimada como um tesouro pelos seus herdeiros, desde que se perderam todas as outras heranças, pois de há muito que entre nós se diz que será de novo forjada quando o anel, a Maldicão de Isildur, for encontrado. Agora que viu a espada que procurava, que deseja pedir? Quer que a Casa de Elendil regresse à Terra de Gondor?
- Não me mandaram pedir nenhuma benesse, mas somente procurar o significado de uma charada - respondeu Boromir, orgulhosamente. - No entanto, estamos numa situação difícil, e a espada de Elendil seria uma ajuda que ultrapassaria a nossa esperança... se tal coisa pudesse realmente regressar das sombras do passado. - Olhou de novo para Aragorn, agora com dúvida no olhar.
Frodo sentiu Bilbo mexer-se impacientemente a seu lado. Era evidente que estava aborrecido com as palavras dirigidas ao amigo. Levantou-se, de súbito, e disse, com brusquidão:
Nêm tudo o que luz é ouro,
Nem todos os caminhantes estão perdidos;
O velho que é forte não mirra
E a geada não chega às raízes fundas.
Das cinzas pode reacender-se o lume,
Das sombras pode irromper uma luz;
Renovada será a lâmina quebrada:
O destronado será de novo rei.
- Os versos talvez não sejam muito bons, mas são apropriados... se lhe não chega a palavra de Elrond. Se valeu a pena uma viagem de cento e dez dias para a ouvir, então será melhor ouvi-la. - Sentou-se a resmungar, e segredou a Frodo: - Fui eu mesmo que os fiz para o Dúnadan, há muito tempo, quando ele me falou pela primeira vez a seu respeito. Quase desejo que as minhas aventuras ,não tivessem acabado, para poder ir com ele, quando o seu dia chegar.
Aragorn sorriu-lhe e voltou-se de novo para Boromir:
- Pela minha parte, perdoo a sua dúvida. Pareço-me pouco com as figuras de Elendil e Isildur, esculpidas em toda a sua majestade dos salões de Denethor. Sou apenas o herdeiro de Isildur, e não o próprio Isildur. Tenho tido uma vida dura e longa, e as léguas que separam este lugar de Gondor são uma pequena parcela na soma das minhas viagens. Atravessei muitas montanhas e muitos rios e palmilhei muitas planícies, até mesmo nos longínquos países de Rhûn e Harad, onde as estrelas são estranhas.
»Mas a pátria que posso ter fica no Norte, pois é lá que os herdeiros de Valandil sempre têm vivido, numa longa e ininterrupta sucessão de pai para filho, há muitas gerações. Os nossos dias escureceram e o nosso número diminuiu; mas a espada passou sempre para um novo guardião. E mais lhe digo, Boromir, antes de terminar: nós, os caminhantes dos ermos, somos homens solitários, caçadores... mas caçadores eternos dos servos do Inimigo, pois eles encontram-se em muitos lugares, e não somente em Mordor.
»Se Gondor, Boromir, tem sido uma torre de valentia, nós temos desempenhado outro papel. Há muitas coisas más que as vossas muralhas fortes e as vossas rutilantes espadas não dizem. Sabe pouco das terras que ficam para lá das suas fronteiras. Paz e liberdade, disse? Pouca paz e liberdade o Norte teria desfrutado, não fôramos nós. O medo tê-las-ia destruído. Mas quando coisas sinistras vêm de montes sem casas ou saem a rastejar de florestas sem sol, fogem de nós. Que estradas alguém ousaria percorrer, que segurança haveria nas terras sossegadas, ou nos lares dos homens simples, à noite, se os Dúnedains estivessem a dormir ou se encontrassem todos na sepultura?
»E, no entanto, menos agradecimentos recebemos do que vocês. Os viajantes fazem-nos má cara e os homens do campo chamam-nos nomes desdenhosos. 'Passo de Gigante' é o que me chama um homem gordo que vive a um dia de marcha de inimigos que lhe enregelariam o coração ou deixariam a sua cidadezinha em ruínas, se o não guardássemos incessantemente. Nem quereríamos, de resto, que fosse de outro modo. Se a gente simples vive livre de cuidados e medo, simples continua, e nós devemos actuar em segredo, para que assim seja. Tem sido essa tarefa da minha família, enquanto os anos, se acumulam e a erva cresce.
»Mas agora o mundo está a mudar de novo. Aproxima-se uma hora nova. A Maldição de Isildur foi encontrada. O combate está iminente. A espada será forjada de novo e eu irei para Minas Tlrith.»
- A Maldição de Isildur foi encontrada, disse - observou Boromir. - Vi um anel cintilante na mão do halfling; mas Isildur pereceu antes de esta era do mundo começar, dizem. Como sabem então os Sábios que este anel é o dele? E onde esteve ao longo dos anos, até ser aqui trazido por tão estranho mensageiro?
- Isso será dito - respondeu Elrond.
- Mas ainda não, Mestre, rogo-lhe! - interveio Bilbo. - O Sol aproxima-se já do meio-dia e sinto necessidade de qualquer coisa para me fortalecer.
- Não o tinha nomeado - disse Elrond, a sorrir -, mas nomeio-o agora. Vamos, conte-nos a sua história. Se ainda a não escreveu em verso, pode contá-la por palavras simples. Quanto mais breve for, mais depressa se fortalecerá.
- Muito bem - concordou Bilbo. - Farei como ordena. Mas agora contarei a verdadeira história, e se alguns dos presentes me ouviram contá-la de outro modo - olhou de soslaio para Glóin -, peço-lhes que o esqueçam e me perdoem. Nesse tempo, só desejava reivindicar o tesouro como muito meu e libertar-se do apodo de ladrão que me fizeram. Mas talvez agora compreenda as coisas um bocadinho melhor. De qualquer modo, foi isto que aconteceu...
Para alguns dos presentes, a história de Bilbo era inteiramente nova e eles escutaram com espanto o velho hobbit recontar - na realidade nada desagradado -, na íntegra, a sua aventura com Gollum. Não omitiu uma única adivinha. Se lhe tivessem permitido, até teria contado, tintim por tintim, a sua festa e o seu desaparecimento do Shire; mas Elrond levantou a mão:
- Bem contado, meu amigo, mas por agora chega. De momento basta saber que o anel passou para a posse de Frodo, seu herdeiro. Ele que fale!
Com menos agrado do que Bilbo, Frodo contou tudo quanto se passara relacionado com o anel, desde o dia em que passara para a sua posse. Todos os passos da sua viagem de Hobbiton até ao vau do Bruinen foram estudados e considerados, assim como tudo quanto conseguiu lembrar-se acerca dos Cavaleiros Negros. Por fim, voltou a sentar-se.
- Nada mau - observou-lhe Bilbo. - Terias feito uma boa história dos acontecimentos, se eles não te interrompessem constantemente. Tentei tomar alguns apontamentos, mas, para poder escrever isso tudo, precisamos de recapitular o assunto juntos, noutra ocasião. Há material que dá para capítulos inteiros, antes sequer de aqui chegares.
- Sim, dá uma longa história - concordou Frodo. - Mas a mim ainda não me parece completa. Continuo a querer saber muito mais, sobretudo a respeito de Gandalf.
Galdor, dos Portos, que estava sentado perto, ouviu-o e exclamou:
- Faço suas as minhas palavras! - Depois dirigiu-se a Elrond e disse: - Os Sábios podem ter boas razões para acreditar que o achado do halfling é, realmente, o Grande Anel tão falado, ao contrário do que possa parecer aos que sabem menos. Não podemos tomar conhecimento das provas? E pergunto mais: e Saruman? Ele é entendido na história dos anéis, mas, apesar disso, não se encontra entre nós. Qual é a sua opinião, partindo do princípio de que sabe as coisas que acabamos de ouvir?
- As perguntas que fez, Galdor, estão relacionadas entre si - declarou Elrond. - Não me esquecera delas e obterão resposta. Mas essas coisas terão de ser esclarecidas por Gandalf e eu deixei-o para o fim, pois é o lugar de honra e, em todo este assunto, ele tem sido o principal interveniente.
- Alguns, Galdor - comentou Gandalf -, achariam que as notícias de Glóin e a perseguição movida a Frodo constituíam prova bastante de que o achado do halfling é uma coisa de grande valor para o Inimigo. Contudo, trata-se de um anel. E então? Aos Nove guardam-nos os Nazgûl. Os Sete foram tomados ou destruídos. - Ao ouvir estas palavras, Glóin mexeu-se, mas não falou. - Com os Três sabemos o que se passa. Que vem então a ser este Um que ele deseja tanto?
»Existe, realmente, um vasto espaço de tempo entre o Rio e a Montanha, entre a perda e o achado. Mas a lacuna no conhecimento dos sábios foi finalmente preenchida. Muito devagar, porém. O Inimigo tem estado perto, atrás de nós, mais perto ainda do que eu receava. E ainda bem que só este ano... neste próprio Verão, ao que parece... ficou a saber toda a verdade.
»Alguns dos presentes lembrar-se-ão de que, há muitos anos, eu próprio me atrevi a transpor as portas do Necromante, em Dol Guldur, explorei em segredo o seu procedimento e descobri assim que os nossos receios tinham fundamento: ele era, nem mais nem menos, Sauron, o nosso Inimigo antigo, que finalmente readquiria forma e poder. Alguns lembrar-se-ão também de que Saruman nos dissuadiu de acções declaradas contra ele, e, por isso, durante muito tempo nos limitámos a observá-lo. Por fim, no entanto, à medida que a sombra dele crescia, Saruman cedeu e o Conselho impôs a sua força e expulsou o mal da Floresta Tenebrosa... o que aconteceu no próprio ano do achado deste anel: estranha coincidência, se de coincidência se tratou.
»Mas atrasáramo-nos demasiado, como Elrond previra. Sauron também nos observara e preparara-se havia muito para o nosso ataque, governando Mordor de longe, através de Minas Morgul, onde os seus nove servos estiveram até tudo estar pronto. Depois cedeu perante nós, mas fingiu apenas fugir, e não tardou a ir para a Torre Negra e a revelar-se abertamente. O Conselho reuniu-se então pela última vez, pois sabíamos que ele procurava o Um com mais empenho do que nunca. Receámos que tivesse a seu respeito alguma notícia de que nós não tivéssemos conhecimento. Mas Saruman disse que não e repetiu o que nos dissera antes: o Um nunca mais seria encontrado na Terra Média.
»Na pior das hipóteses - declarou -, o nosso Inimigo sabe que não o temos e que continua perdido. E pensa que o que foi perdido ainda pode ser encontrado. Não tenham receio! A sua esperança não se concretizará. Não estudei afincadamente este assunto? No Anduin, o Grande, caiu, e há muito tempo, enquanto Saruman dormia, rolou pelo rio abaixo até ao mar. Deixem-no lá estar até ao Fim.»
Gandalf calou-se, a olhar do alpendre para leste, para os picos distantes das Montanhas Nebulosas, em cujas grandes raízes se escondera durante tanto tempo o perigo que ameaçava o mundo. Suspirou e prosseguiu:
- Errei, nisso. Deixei-me embalar pelas palavras de Saruman, o Sábio, quando deveria ter procurado a verdade mais cedo. Se o tivesse feito, o perigo que corremos seria agora menor.
- Errámos todos - declarou Elrond. - Mas, se não fora a sua vigilância, talvez as Trevas já se tivessem abatido sobre nós. Prossiga, porém.
- Desde o princípio que, contra toda a razão, o meu coração ficou apreensivo e desejei saber como esse objecto fora parar às mãos de Gollum e quanto tempo estivera em seu poder. Por isso, mantive-o sob vigilância, pois calculava que ele não tardaria a sair da sua escuridão para procurar o seu tesouro. Assim aconteceu, mas ele conseguiu escapar e não foi encontrado. Então, infelizmente, deixei as coisas como estavam, limitando-me a vigiar e a esperar, como por demais tenho feito.
»O tempo foi passando, cheio de preocupações, até que as minhas dúvidas foram de novo despertas e deram lugar a um medo súbito. Donde viera o anel do hobbit? E, se o meu medo era autêntico, que deveria fazer-se dele? Eram coisas que eu tinha de decidir. Mas continuei a não falar do meu temor a ninguém, pois conhecia o perigo que poderia resultar de um murmúrio intempestivo, se escutado por ouvidos aos quais não se destinava. Em todas as longas guerras com a Torre Negra, a traição tem sido sempre o nosso maior inimigo.
»Isto passou-se há dezassete anos. Não tardei a aperceber-me de que estavam reunidos à volta do Shire espiões de toda a espécie... até animais e aves... e o meu medo aumentou. Pedi auxílio aos Dúnedains, que duplicaram a vigilância, e abri o coração a Aragorn, o herdeiro de Isildur.»
- E eu - declarou Aragorn - opinei que devíamos procurar Gollum, por muito tarde que parecesse ser já. E, como me parecia justo que o herdeiro de Isildur trabalhasse para reparar o erro de Isildur, participei com Gandalf na longa e desesperada procura.
Em seguida, Gandalf contou como tinham explorado toda a extensão da Terra Erma até às Montanhas da Sombra e às cercas de Mordor.
- Aí tivemos notícia da sua presença, e supomos que por lá viveu muito tempo, nos montes negros; mas nunca o encontrámos, e eu acabei por desesperar. Então, no meu desespero, pensei de novo numa prova que poderia tornar desnecessária a descoberta de Gollum: o próprio anel poderia revelar se era o Um. Recordei-me das palavras ditas no Conselho, palavras de Saruman a que na altura prestara pouca atenção. Ouvi-as de novo, mas dessa vez claramente, no meu coração:
»'Os Nove, os Sete e os Três', dissera, tinham cada um a sua pedra própria. O Um, não. Era redondo e sem quaisquer adornos, como se fora um dos anéis menos importantes. Mas o seu autor pôs-lhe marcas que os entendidos talvez ainda possam vir a interpretar.'
»Que marcas eram essas, não disse. Quem o saberia agora? autor. E Saruman? Mas, por muito grande que o seu conhecimento possa ser, tem de ter uma origem. Que mão, tirando a de Sauron, pegou jamais no objecto em questão, antes de ele se perder? Só a mão de Isildur.
»Guiado por esse pensamento, desisti da perseguição e dirigi-me rapidamente para Gondor. Noutros tempos, os membros da minha ordem tinham lá sido bem recebidos, e Saruman melhor do que todos. Ele fora frequente e longamente hóspede dos Senhores da Cidade. O nobre Denethor recebeu-me com menos agrado do que noutros tempos e só com relutância me autorizou a procurar entre os seus pergaminhos e livros.
»'Se, na verdade, só procura, como diz, registos de tempos antigos e do princípio da cidade, faça favor de ler', disse-me. 'Para mim, o que foi é menos obscuro do que o que está para vir, e é isso que me preocupa. Mas, a não ser que tenha mais arte do que o próprio Saruman, que estudou aqui muito tempo, não encontrará nada que eu, que sou mestre da história desta cidade, não saiba já.'
»Assim falou Denethor. E, no entanto, nos seus arquivos há muitos registos que poucos conseguem agora ler, mesmo que sejam mestres de história antiga, pois a escrita e a língua tornaram-se desconhecidos dos homens que vieram mais tarde. E, Boromir, em Minas Tirith ainda se encontra um pergaminho do punho do próprio Isildur e que creio nunca ter sido lido, a não ser por Saruman e por mim mesmo, desde que os reis pereceram. É que Isildur não partiu imediatamente após a guerra em Mordor, como alguns têm contado.»
- Alguns do Norte, talvez - interveio Boromir. - Em Gondor todos sabem que ele foi primeiro a Minas Anor e residiu algum tempo com o seu sobrinho Meneldil, a instruí-lo, antes de lhe confiar o governo do Reino do Sul. Nessa altura plantou lá o último rebento da Árvore Branca, em memória do irmão.
- Mas nessa mesma altura também escreveu o referido pergaminho - redarguiu Gandalf -, e isso, ao que parece, não é recordado em Gondor. O pergaminho diz respeito ao anel e nele Isildur escreveu o seguinte:
O Grande Anel passará agora a ser uma herança do Reino do Norte; mas ficarão registos dele em Gondor, onde também vivem os herdeiros de Elendil, não vá chegar um tempo em que a memória destes importantes assuntos se desvaneça.
»E, depois de tais palavras, Isildur descreveu o anel, tal como o encontrou:
Estava quente quando primeiro lhe peguei, tão quente, que queimei a mão e duvido que alguma vez me liberte da dor que me causou. Contudo, neste momento em que escrevo, está frio e parece minguar, embora não perca nem a sua beleza nem o seu formato. O que nele está escrito, e que ao princípio era tão nítido como uma chama ígnea já se desvaneceu e mal se consegue ler. Foi utilizada uma caligrafia élfica de Eregion, já que em Mordor não têm letras para trabalho tão subtil; mas a língua é-me desconhecida. Suponho que se trata de um idioma da Terra Negra, pois é áspera e boçal. Que mal diz, ignoro; mas reproduzo aqui uma cópia dos dizeres, não vão apagar-se por completo. O anel sentiu, porventura, o calor da mão de Sauron, que apesar de negra queimava como lume, e, por isso, Gil-galad foi destruído; também é possível que, se o outro for de novo aquecido, a escrita volte a tornar-se nítida. Eu, porém, não me quero arriscar a causar nenhum dano a este objecto, de todas as obras de Sauron a única bela. É precioso para mim, embora o tenha adquirido à custa de grande dor.
Quando li estas palavras, a minha procura terminou: os dizeres questão estavam realmente, como Isildur supusera, escritos na língua de Mordor e dos servos da Torre. E o que diziam já era conhecido, pois no dia em que Sauron pôs pela vez primeira o Um, Celebrimbor, autor dos Três, teve consciência da sua presença e, de longe, ouviu-o pronunciar as palavras, e assim os diabólicos propósitos foram revelados.
»Despedi-me imediatamente de Denethor, mas, quando me dirigia para norte, recebi mensagens de Lórien, segundo as quais Aragorn passara por lá e encontrara a criatura chamada Gollum. Por isso, fui primeiro ao seu encontro e ouvi a sua história. Não ousei imaginar os perigos mortais que ele correra sozinho.»
- A bem dizer, não é necessário falar deles agora - declarou Aragorn. - Se um homem tem de passar à vista do Porta Negra ou de pisar as mortíferas flores do vale de Morgul, não pode deixar de correr perigos. Também eu acabei por desesperar e iniciei a viagem de regresso. Foi então que, por mera sorte, se me deparou inesperadamente o que procurava: marcas de pés macios ao lado de um charco lamacento. A pista estava fresca e era rápida, e não conduzia a Mordor, mas sim em sentido diverso. Seguia-a ao longo das margens dos Pântanos dos Mortos, até que o encontrei. De tocaia junto de uma lagoa estagnada, a observar a água enquanto escurecia, assim apanhei Gollum. Estava coberto de lodo verde. Receio que nunca venha a gostar de mim, pois mordeu-me e eu também não fui brando com ele. Da sua boca não consegui mais nada, além da marca dos seus dentes. Considero o regresso o pior da minha viagem, a vigiá-lo dia e noite, a obrigá-lo a caminhar à minha frente com uma corda ao pescoço e amordaçado, até o amansar pela falta de água e comida, a conduzi-lo sempre na direcção da Floresta Tenebrosa. Por fim, cheguei lá com ele e entreguei-o aos Elfos, pois combináramos que assim se faria. Confesso que fiquei grato por me livrar da sua companhia, visto ele cheirar mal que tresandava. Pela minha parte, espero nunca mais ter de o ver; mas Gandalf veio e teve uma longa conversa com ele.
- Sim, longa e cansativa - confirmou o feiticeiro -, mas não sem proveito. Para começar, a história que me contou da perda do anel concordou com aquela que Bilbo acaba de contar, francamente, pela primeira vez; mas isso pouca importância teve, pois eu já o calculava. Mas fiquei a saber, pela primeira vez, que o anel de Gollum viera do Grande Rio, perto dos Campos Alegres. E fiquei finalmente a saber que o possuíra durante muito tempo. Muitas vidas da sua pequena espécie. O poder do anel aumentou-lhe a duração da vida muito para além do normal... um poder que só os Grandes Anéis têm.
»Mas, se isso não constitui prova suficiente, Galdor, há ainda outra prova de que falei. Neste mesmo anel que viram aqui, redondo e sem adornos, ainda é possível ver as letras a que Isildur aludiu, bastando para isso ter a força de vontade necessária para atirar o objecto para o fogo, durante um bocado. Fiz isso mesmo, e eis o que li: Ash nazg dupbatulûk, ash nazg gimbatul, ash nazg thrakatulûk agh burzum-ishi krimpatul.»
A mudança verificada na voz do feiticeiro foi surpreendente: de súbito, tornara-se ameaçadora, potente, dura como pedra. Como se uma sombra passasse pelo Sol alto, o alpendre escureceu momentaneamente. Tremeram todos e os elfos taparam os ouvidos.
- Jamais voz alguma ousou proferir palavras nessa língua em Imladris, Gandalf, o Cinzento - observou Elrond, quando a sombra passou e os presentes voltaram a respirar.
- Esperemos que mais ninguém volte a proferi-las aqui - redarguiu Gandalf. - No entanto, não lhe peço perdão, Mestre Elrond. Pois, se essa língua não for em breve ouvida em todos os cantos do Ocidente, então que todos ponham de parte a dúvida de que este objecto é realmente o que os Sábios disseram que era: o tesouro do Inimigo, feito com toda a sua maldade e portador de uma grande parte da sua força antiga. Dos Anos Negros vieram as palavras que os ferreiros de Eregion ouviram e que os fizeram compreender que tinham sido atraiçoados:
Um anel para a todos dominar, um anel para os encontrar, Um anel para a todos prender e nas trevas os reter.
»Fiquem também a saber, meus amigos, que aprendi ainda mais com Gollum. Ele mostrou-se avesso a falar e contou uma história pouco clara, mas não restam dúvidas nenhumas de que foi a Mordor, onde lhe arrancaram tudo quanto sabia. Por isso, o Inimigo sabe, agora, que o Um foi encontrado e esteve muito tempo no Shire. E, como os seus servos o perseguiram quase até à nossa porta, não tardará a saber também... e talvez até já o saiba, neste momento em que falo... que o temos aqui.»
Seguiu-se um silêncio pesado, que Boromir acabou por quebrar:
- Disse que esse Gollum é uma coisa pequena, não disse? Pequena, mas grande em maldade. Que lhe aconteceu? Que castigo lhe aplicaram?
- Está preso, mas não lhe aconteceu nada pior - respondeu Aragorn. - Já tinha sofrido muito. Não restam dúvidas de que foi torturado e o medo de Sauron permanece, negro, no seu coração. No entanto, eu, pelo menos, sinto-me grato por ele estar bem guardado pelos vigilantes elfos da Floresta Tenebrosa. A sua maldade é grande e dá-lhe uma força que custa a crer possa existir em alguém tão magro e mirrado. Ainda poderia fazer muito mal, se ficasse livre. E eu estou certo que se lhe permitiram sair de Mordor foi com algum fim maléfico.
- Que infelicidade! Que infelicidade! - exclamou Legolas, e o seu belo rosto élfico exprimia grande angústia. - Tenho de revelar, agora, as notícias que me incumbiram de trazer. Não são boas, mas só aqui tive consciência de como poderão parecer más aos presentes. Sméagol, agora tratado por Gollum, fugiu.
- Fugiu?! - gritou Aragorn. - São, na verdade, más notícias. Receio que venhamos todos a lamentá-las amargamente. Como se explica que a gente de Thranduil tenha desmerecido da confiança nela depositada?
- Não foi por falta de vigilância - respondeu Legolas -, mas talvez tenha sido por excesso de bondade. Receamos, aliás, que o prisioneiro tenha recebido ajuda de outros e que se saiba mais do que fazemos do que seria para desejar. Guardámos a criatura dia e noite, conforme as recomendações de Gandalf, por muito que a tarefa nos desagradasse. Mas Gandalf disse-nos que ainda havia esperança de que se emendasse e nós não tivemos coragem para o ter sempre em masmorras debaixo do chão, onde ele retomaria os seus antigos e negros pensamentos.
- Foram menos compadecidos comigo - comentou Glóin, cujos olhos coruscaram ao sentir despertar velhas recordações do seu aprisionamento nas fundas caves das mansões dos reis elfos.
- Por favor, não interrompa, meu bom Glóin! - pediu Gandalf. - Tratou-se de um lamentável mal-entendido, há muito dissipado. Se todos os agravos existentes entre elfos e anões vão ser aqui recordados, o melhor será abandonarmos este Conselho.
Glóin levantou-se e inclinou-se, e Legolas prosseguiu:
- Quando estava bom tempo, levávamos Gollum através da floresta e ele gostava de trepar a uma árvore isolada e muito distante das outras. Deixávamo-lo muitas vezes subir aos ramos mais altos, onde podia sentir o vento fresco, sem obstáculos. Mas ficavam sempre guardas cá em baixo, junto da árvore. Um dia recusou-se a descer e os guardas não tiveram coragem para subir atrás dele, pois Gollum aprendera o truque de se agarrar aos ramos com os pés e as mãos. Por isso, deixaram-se ficar junto da árvore, pela noite fora.
»Foi precisamente nessa noite, sem estrelas nem luar apesar de estival, que os Orcs nos atacaram de surpresa. Repelimo-los, passado algum tempo. Eram muitos e violentos, mas vinham das montanhas e não estavam habituados à floresta. Quando o combate terminou, verificámos que Gollum desaparecera e os seus guardas tinham sido chacinados ou aprisionados. Pareceu-nos então evidente que o ataque tivera por objectivo a sua libertação e que ele tivera conhecimento antecipado do que se ia passar. Como isso foi possível não fazemos ideia; mas Gollum é astucioso e os espiões do Inimigo são muitos. As coisas negras que foram repelidas no ano da queda do Dragão voltaram em maior número, e a Floresta Tenebrosa é novamente um lugar mau, excepto onde o nosso domínio permanece.
»Não conseguimos recapturar Gollum. Descobrimos o seu rasto entre o de muitos orcs e verificámos que mergulhava profundamente na floresta, rumo ao Sul. A perseguição não tardou, porém, a ser superior ao nosso engenho, e não nos atrevemos a continuar, pois estávamos a aproximar-nos de Dol Guldur, que continua a ser um lugar mau. Não vamos para esse lado.»
- Pronto, paciência, fugiu - comentou Gandalf - Não temos tempo para o procurar de novo e ele fará o que tem de fazer. No entanto, talvez ainda venha a desempenhar um papel que nem ele nem Sauron previram.
»E agora vou responder às outras perguntas de Galdor. E Saruman? Que nos aconselha ele nesta crise? Trata-se de uma história que tenho de contar do princípio ao fim, pois só Elrond ainda a ouviu, e mesmo assim em resumo. Mas relacionar-se-á com tudo quanto precisamos de decidir. E o último capítulo da História do Anel, até ao presente.
»Em fins de Junho encontrava-me no Shire, mas o meu espírito estava cheio de ansiedade, e, por isso, dirigi-me para as fronteiras meridionais daquela pequena terra, pois tinha o pressentimento de que se avizinhava qualquer perigo, embora desconhecesse qual. Foi então que recebi mensagens informando-me da guerra e da derrota em Gondor. Quando ouvi falar da Sombra Negra, um calafrio parou-me o coração. Mas não encontrei nada, a não ser alguns fugitivos do Sul que me pareceram portadores de um medo de que não falavam. Virei então para leste e norte e viajei ao longo do Caminho Verde. Não muito longe de Bree, encontrei um viajante sentado na berma da estrada, com o cavalo a pastar a seu lado. Era Radagast, o Castanho, que em tempos viveu em Rhosgobel, perto das fronteiras da Floresta Tenebrosa. Pertence à minha ordem, mas eu não o via há muitos anos.
»'Gandalf!, exclamou. 'Procurava-te, mas sou um estranho nesta região. A única coisa que sabia era que talvez te encontrasse numa terra selvagem com o áspero nome de Shire.'
»'A tua informação era correcta', respondi-lhe, 'mas não ponhas as coisas nesses termos, se encontrares alguns dos seus habitantes. Aqui, estás perto das fronteiras do Shire. Mas que queres de mim? Deve ser urgente, pois nunca foste grande viajante, a não ser obrigado pela necessidade.'
»'Tenho, de facto, um recado urgente', admitiu. 'Muito más notícias.' Olhou em seu redor, como se receasse que as sebes tivessem ouvidos, e murmurou: 'Nazgûl. Os Nove estão outra vez em acção. Atravessaram secretamente o Rio e seguem para oeste. Disfarçam-se de cavaleiros vestidos de negro.'
»Compreendi então o que receara, sem saber de que se tratava.
»O inimigo deve ter alguma grande necessidade ou propósito', prosseguiu Radagast, mas não consigo imaginar o que o leva a olhar para estes lugares distantes e desolados.'
»'Que queres dizer? '
»'Disseram-me que, aonde quer que vão, os Cavaleiros perguntam coisas de uma terra chamada Shire.'
»O Shire', corrigi, mas o coração apertou-se-me, pois até os Sábios podem recear fazer frente aos Nove, quando eles estão juntos sob o comando do seu maldito capitão. Foi, em tempos, um grande rei e bruxo, e agora irradia um medo mortal. 'Quem to disse e quem te enviou'?' perguntei.
»'Saruman, o Branco', respondeu-me Radagast. 'Pediu-me que te dissesse que, se te parecesse necessário, te ajudará; mas terás de procurar o seu auxílio imediatamente, porque de contrário será demasiado tarde.'
»Semelhante mensagem deu-me esperança, pois Saruman, o Branco, é o mais importante da minha ordem. Claro que Radagast é um feiticeiro digno, mestre de formas e mudanças de tonalidade, e tem muitos conhecimentos de ervas e animais. As aves são particularmente suas amigas. Mas Saruman há muito que estudou as artes do próprio Inimigo, e, por isso, muitas vezes temos conseguido
antecipar-nos a ele. Foi graças aos estratagemas de Saruman que o expulsámos de Dol Guldur. Pensei, portanto, que talvez ele tivesse descoberto quaisquer armas que repelissem os Nove.
»'Irei ter com Saruman', disse.
»'Então deves ir já', redarguiu-me Radagast, 'pois eu desperdicei tempo à tua procura e os dias estão a escassear. Disseram-me que te encontrasse antes do começo do Verão, e esse dia está à porta. Mesmo que partas daqui, agora, dificilmente estarás com ele antes de os Nove encontrarem a terra que procuram. Eu próprio vou voltar já para trás.' E, sem perder tempo, montou, e teria partido logo se eu o não detivesse:
»'Espera um momento! Precisaremos da tua ajuda e da ajuda de todas as coisas que queiram dá-la. Manda recado a todos os animais e a todas as aves que são teus amigos. Pede-lhes que dêem notícias Saruman e Gandalf de tudo quanto se relacione com este assunto. Podem deixar as mensagens em Orthanc.'
»'Assim farei', respondeu-me, e, ala, partiu como se os Nove fossem atrás dele.
»Não pude segui-lo imediatamente. Já viajara muito naquele dia e estava tão cansado como o meu cavalo. Além disso, precisava de reflectir. Passei a noite em Bree e cheguei à conclusão que não tinha tempo de voltar ao Shire. Nunca cometi erro maior!
»No entanto escrevi uma carta a Frodo e confiei que o meu amigo estalajadeiro lha enviasse. Parti ao alvorecer e, finalmente, cheguei à residência de Saruman, que fica muito para sul, em Isengard ,o fim das Montanhas Nebulosas e não longe do desfiladeiro de Rohan. Boromir dir-lhes-á que se trata de um grande vale aberto, entre as Montanhas Nebulosas e os contrafortes mais setentrionais de Ered Nimrais, as Montanhas Brancas da sua pátria. Mas Isengard é um círculo de rochedos a pique, que cercam, como se fossem uma muralha, um vale em cujo centro se ergue uma torre de pedra chamada Orthanc. Não foi feita por Saruman, e sim pelos homens de Númenor, há muito tempo. É muito alta e tem muitos segredos, embora não pareça uma obra de engenho. Só é possível alcançá-la transpondo o círculo de Isengard, no qual só há ume porta.
»Certo anoitecer cheguei à porta, que parece um grande arco aberto na muralha de rocha, e encontrei-a fortemente guardada. Mas os guardas estavam à minha espera e disseram-me que Saruman me aguardava. Passei a cavalo por baixo do arco e a porta fechou-se silenciosamente atrás de mim. De súbito, tive medo, embora não descortinasse qualquer razão que o justificasse.
»No entanto segui até à base de Orthanc: e dirigi-me para a escada de Saruman, onde ele me foi buscar e me conduziu à sua câmara, no alto da torre. Usava um anel no dedo.
»'Afinal vieste, Gandalf!', exclamou gravemente, mas tive a impressão de ver uma luz branca nos seus olhos, como se o seu coração risse friamente.
»'Vim, sim', respondi-lhe. 'Vim pedir-te ajuda, Saruman, o Branco. O título pareceu encolerizá-lo.
»'Deveras, Gandalf, o Cinzento?', troçou. 'Pedir-me ajuda? Raramente se ouviu dizer que Gandalf, o Cinzento, pedisse ajuda, ele que é tão astuto e tão sábio, que percorre as terras e se mete em todos os assuntos, quer lhe respeitem quer não.'
»Olhei-o, admirado, e redargui: 'Mas, se não estou enganado, agora estão a passar-se coisas que exigem a união de toda a nossa força.'
»'É possível que sim, mas a ideia demorou a acudir-te ao pensamento. Quanto tempo ocultaste de mim, o chefe do Conselho, um assunto da maior importância? E que te traz agora do teu posto de vigilância no Shire?'
»'Os Nove estão outra vez em acção', respondi. 'Atravessaram o Rio. Foi o que Radagast me disse.'
»'Radagast, o Castanho!', exclamou Saruman, a rir, e deixou de disfarçar o seu desdém. 'Radagast, o domesticador de aves! Radagast, o Simples! Radagast, o Idiota! No entanto, teve a esperteza necessária para desempenhar o papel que lhe destinei, pois tu vieste, e esse era o único propósito da minha mensagem. E aqui ficarás, Gandalf, o Cinzento, e descansarás das tuas viagens. Pois eu sou Saruman, o Sábio; Saruman, o Fabricante de Anéis; Saruman, o das muitas Cores!'
»Olhei-o então, e verifiquei que o seu vestuário, que me parecera branco, o não era: tinha muitas cores, todas as cores, e, se ele se mexia, elas empalideciam e mudavam de tonalidade, de tal modo que os olhos ficavam estupefactos.
»'Gostava mais do branco', disse-lhe.
»'Branco!', troçou. 'Serve para começar. O tecido branco pode ser tingido. A página branca pode ser reescrita. A luz branca pode ser quebrada!'
»'Nesse caso, deixa de ser branca', observei. 'E aquele que quebra uma coisa para descobrir o que é abandona o caminho da sabedoria.'
»'Não precisas de falar comigo como se eu fosse um dos idiotas que escolhes para amigos', replicou-me. 'Não quis que viesses cá para ser instruído por ti, e sim para que escolhesses.'
»Endireitou-se e começou a declamar, como se estivesse a fazer um discurso ensaiado durante muito tempo: 'Os Tempos Antigos passaram. Os Tempos Médios estão a passar. Os Novos Tempos vão começar. O tempo dos Elfos acabou-se, mas o nosso tempo está ao nosso alcance: o mundo dos Homens, que nós temos de dominar. Mas para isso precisamos de poder, de poder para organizarmos todas as coisas como deve ser, para se alcançar aquele bem que só os Sábios conseguem ver.
»'E escuta, Gandalf, meu velho amigo e colaborador!', prosseguiu, a chegar-se mais para mim e a falar em voz mais suave. 'Eu disse nós, pois poderemos ser realmente nós, se te juntares a mim., Está a nascer um novo Poder, um novo Poder contra o qual os antigos aliados nos não servirão de nada. Já não podemos ter esperança nenhuma nos Elfos nem no moribundo Númenor. Tens, portanto, de escolher, temos de escolher. Podemos juntar-nos a esse Poder. Seria sensato, Gandalf. Há esperança, nessa via. A sua vitória está próxima e haverá excelente recompensa para aqueles que o ajudarem. À medida que o Poder crescer, os que tiverem provado ser seus amigos crescerão também. E os Sábios, como tu e eu, poderão, com paciência, acabar por vir a dirigi-lo, a controlá-lo. Podemos aguardar a nossa oportunidade ocultando os nossos pensamentos no coração, deplorando, porventura, os males cometidos no caminho, mas aprovando o alto e supremo objectivo: Saber, Autoridade, Ordem... enfim, todas as coisas que até agora nos temos esforçado em vão por conseguir, mais peados do que ajudados pelos nossos fracos ou ociosos amigos. Não será necessário haver, não haverá, nenhuma verdadeira mudança nos nossos desígnios: somente os nossos meios mudariam.'
»'Saruman', redargui-lhe, 'já tenho ouvido discursos desse género, mas só da boca de emissários enviados por Mordor para enganarem os ignorantes. Não posso acreditar que me tenhas feito vir de tão longe só para me cansares os ouvidos.' »Olhou-me de soslaio e ficou uns momentos calado, a reflectir. 'Bem, estou a ver que este procedimento sensato não te agrada', disse. 'Por enquanto! Não te agradará se for possível arranjar uma via melhor?'
»Aproximou-se mais e colocou a mão comprida no meu braço. 'E por que não, Gandalf? - murmurou. - Por que não? O Anel Soberano? Se conseguíssemos controlá-lo, o Poder passaria para nós. Na verdade, foi por isso que quis que viesses. Tenho muitos olhos ao meu serviço e estou convencido de que sabes onde se encontra agora esse precioso objecto. Não é assim? Se não fosse, por que motivo perguntariam os Nove pelo Shire e que terias tu lá a tratar?' Enquanto falava, brilhou-lhe subitamente nos olhos um desejo, uma avidez que não conseguiu ocultar.
»'Saruman', respondi, e afastei-me dele, 'uma só mão de cada vez pode usar o Um, como muito bem sabes. Por isso, não te dês ao trabalho de dizer nós! Más eu não o entregaria, não, eu nem sequer te daria notícias dele, agora que sei os teus pensamentos. Foste chefe do Conselho, mas finalmente desmascaraste-te. Bem, segundo me parece, a escolha que me propões é submeter-me a Sauron ou a ti próprio. Não me submeterei a nenhum. Tens outras alternativas a apresentar?'
»Enquanto eu falava, ele tornara-se frio e perigoso. 'Não esperava que demonstrasses sensatez, nem mesmo em teu próprio benefício' - respondeu-me, 'mas dei-te a oportunidade de me ajudares de vontade, evitando-te assim muitos problemas e sofrimentos. A terceira alternativa é ficares aqui, até ao fim.'
»'Até que fim?'
»'Até me revelares onde pode o Um ser encontrado. Poderei arranjar meios para te persuadir. Ou até ele ser encontrado, mal-grado teu, e o Soberano ter tempo para se dedicar a assuntos de menor importância: como, por exemplo, pensar numa recompensa adequada à obstrução e insolência de Gandalf, o Cinzento.'
»'Talvez se verifique não ser esse um dos assuntos de menor importância', respondi-lhe, e ele riu-se de mim, pois as minhas palavras eram vazias. E Saruman sabia-o.
»Levaram-me e deixaram-me sozinho no pináculo de Orthanc, no lugar onde Saruman estava habituado a observar as estrelas. Não existe nenhuma descida, a não ser por uma escada estreita com muitos milhares de degraus, e o vale, em baixo, parece muito distante. Olhei-o, e notei que, onde outrora houvera verdura e beleza, havia agora buracos e forjas. Em Isengard estavam abrigados lobos e orcs, pois Saruman estava a criar uma grande força própria, à revelia de Sauron e ainda não ao seu serviço. Sobre todos os seus trabalhos pairava um fumo escuro, que envolvia os lados de Orthanc. Encontrava-me sozinho numa ilha no meio das nuvens, não tinha nenhuma possibilidade de fuga e os meus dias eram cruéis. O frio traspassava-me e quase não tinha espaço para andar de um lado para o outro, preocupado com a vinda dos Cavaleiros para o Norte.
»Independentemente das palavras de Saruman, que podiam muito bem ser mentiras, tinha a certeza de que os Nove estavam, realmente, de novo activos. Muito antes de chegar a Isengard ouvira, no caminho, notícias que não podiam induzir-me em erro. O meu coração estava sempre cheio de medo pelos meus amigos do Shire, mas mesmo assim ainda me restava alguma esperança. Esperava que Frodo se tivesse posto imediatamente a caminho, como insistira com ele na minha carta, e tivesse chegado a Rivendell antes de a implacável perseguição começar. Mas tanto o meu medo como a minha esperança se revelaram sem fundamento: a minha esperança baseava-se num homem gordo, de Bree, e o meu medo na astúcia de Sauron. Mas os homens gordos que vendem cerveja têm de atender muitos pedidos, e o poder de Sauron é menor, por enquanto, do que o medo leva a crer. Mas, no círculo de Isengard, encurralado e sozinho, não era fácil pensar que os caçadores perante os quais todos têm fugido ou caído seriam mal sucedidos no distante Shire.»
- Eu vi-o! - gritou Frodo. - Estava a andar para trás e para diante e o luar brilhava no seu cabelo.
Gandalf fez uma pausa, estupefacto, a fitá-lo.
- Foi apenas um sonho, mas recordei-me dele agora, de repente - explicou Frodo. - Já quase o esquecera. Sonhei-o há algum tempo, suponho que depois de partir do Shire.
- Então chegou atrasado, como vais ver - observou Gandalf. - Encontrava-me em terríveis apuros, e aqueles que me conhecem concordarão que raramente me tenho visto tão carecido e que não sei suportar semelhante infortúnio. Gandalf, o Cinzento, apanhado como uma mosca na teia traiçoeira de uma aranha! No entanto, às vezes até as aranhas mais subtis deixam um fio fraco.
»Ao princípio receei, certamente como Saruman pretendia que receasse, que Radagast também tivesse traído. No entanto, no nosso encontro, não notara na sua voz nem nos seus olhos. nada que denunciasse que tal acontecera. Se tivesse notado, jamais teria ido a Isengard, ou então teria ido, mas mais acautelado. Saruman calculara isso mesmo e tivera o cuidado de ocultar os seus pensamentos e enganar o mensageiro que me mandara. De qualquer modo seria impossível tentar convencer o honesto Radagast a trair. Ele procurara-me de boa-fé, e por isso me persuadira.
»Foi esse o erro da trama de Saruman. Como não sabia de nenhuma razão para não proceder como eu lhe pedira, Radagast partira na direcção da Floresta Tenebrosa, onde tinha muitos velhos amigos. E as águias das montanhas voaram muito e viram muitas coisas: a concentração de lobos e de orcs e os Nove Cavaleiros a dirigirem-se para aqui e para ali nas terras. E também ouviram novas da fuga de Gollum. Mandaram então um mensageiro levar-me essas notícias.
»Foi assim que, quando o Verão findava, numa noite de luar, Gwaihir, o Senhor do Vento, a mais veloz das Grandes Águias, chegou sem ser visto a Orthanc e me encontrou de pé no pináculo. Falei-lhe, então, e ele levou-me, antes que Saruman se apercebesse do que se passava. Já me encontrava longe de Isengard quando os lobos e os orcs transpuseram a porta para me perseguir.
»'Que distância me podes transportar?', perguntei a Gwaihir.
»'Muitas léguas, mas não até aos extremos da Terra. Mandaram-me trazer notícias e não carregar pesos.'
»'Então preciso de ter um corcel em terra; mas tem de ser um corcel extraordinariamente veloz, porque nunca tive tanta pressa.'
»'Nesse caso levo-te a Edoras, onde o Senhor de Rohan vive nos seus palácios. Não fica longe', respondeu-me Gwaihir com agrado meu, pois na Riddermark de Rohan vivem os Rohirrim, os Senhores dos Cavalos, e não há cavalos que se possam comparar aos criados no grande vale entre as Montanhas Nebulosas e as Montanhas Brancas.
»'Achas que os Homens de Rohan ainda são dignos de confiança?', perguntei a Gwaihir, pois a traição de Saruman abalou a minha fé.
»'Pagam um tributo de cavalos', respondeu-me, 'e todos os anos mandam muitos para Mordor, ou pelo menos assim consta; mas ainda não estão sob o jugo. No entanto, se Saruman se tornou mau, como dizes, a ruína deles não deve tardar muito.'
»Antes de alvorecer depositou-me na terra de Rohan. Prolonguei muito a minha história, até agora; o resto terá de ser mais breve. Descobri em Rohan que o mal já estava em acção: as mentiras de Saruman e a recusa do rei da terra em escutar as minhas advertências. Disse-me que escolhesse um cavalo e partisse, e eu escolhi um muito a meu gosto e pouco ao seu: o melhor cavalo da sua terra, e nunca vi nenhum que se lhe igualasse.»
- Nesse caso, deve ser, realmente, um nobre animal- comentou Aragorn. - Penaliza-me, mais do que muitas outras coisas que poderão parecer mais graves, saber que Sauron cobra semelhante tributo. Tal não acontecia da última vez que estive nessa terra.
- E eu juraria que também não acontece agora! - afirmou Boromir. - Trata-se de uma mentira propalada pelo Inimigo. Conheço os Homens de Rohan: são leais e valentes, nossos aliados e ainda vivem nas terras que lhes demos há muito tempo.
- A sombra de Mordor estende-se a terras distantes - lembrou Aragorn. - Saruman caiu sob ela. Rohan está encurralada. Quem sabe o que lá encontrará, se alguma vez lá voltar?
- Não encontrarei, com certeza, isto: que comprem as suas vidas com cavalos - respondeu Boromir. - Depois da família, o que mais amam são os cavalos. E não sem razão, pois os cavalos da Riddermark provêm dos campos do Norte, muitos distantes da Sombra, e a sua raça, como a dos seus donos, remonta aos tempos livres de antigamente.
- Absolutamente verdade! - confirmou Gandalf. - E um deles deve ter nascido na manhã do mundo. Os cavalos dos Nove não podem competir com ele, que é incansável, veloz como o vento. Chamam-lhe Facho de Sombra. De dia, a sua pele brilha como prata; de noite, é como uma sombra e passa despercebido. Os seus passos são luz! Nunca homem algum o montara, mas eu domei-o, e ele transportou-me tão velozmente, que cheguei ao Shire quando Frodo estava nas Colinas das Antas, embora só tenha partido de Rohan quando ele partiu de Hobbiton.
»Mas o medo crescia em mim à medida que cavalgava. Ao dirigir-me para norte ouvi notícias dos Cavaleiros, e, embora lhes ganhasse terreno dia a dia, eles estavam sempre à minha frente. Soube que tinham dividido as suas forças: uns permaneceram nas fronteiras orientais, não longe do Caminho Verde, e outros invadiram o Shire vindos do Sul. Cheguei a Hobbiton e verifiquei que Frodo partira. Mas falei com o velho Gamgee. Foi uma conversa de poucas palavras, mas com interesse. Ele tinha muito que dizer a respeito dos defeitos dos novos proprietários do Fundo do Saco.
»'Não suporto mudanças', disse-me. 'É difícil aceitá-las na minha idade, sobretudo tratando-se de mudanças para pior.' E repetiu muitas vezes a frase 'mudanças para pior'.
»'" Pior" é uma palavra má', disse-lhe eu, 'e espero que o senhor não viva para ver realmente o pior. 'Mas, no meio de tal conversa, acabei por deduzir que Frodo partira de Hobbiton havia menos de uma semana e que nessa mesma noite estivera no Monte um cavaleiro negro. Continuei então a cavalgar, cheio de medo. Cheguei à Bucklândia e encontrei-a em polvorosa, agitada como um formigueiro que alguém perturbou com um pauzinho. Fui à casa da Cova dos Grilos e vi-a arrombada e deserta. Mas no patamar estava uma capa que pertencera a Frodo. Por isso, momentaneamente, a esperança abandonou-me e não me demorei a recolher notícias. Se o tivesse feito, teria encontrado conforto. Mas não; parti no rasto dos Cavaleiros. Era difícil de seguir, pois ia em muitas direcções, e fiquei confuso. Pareceu-me, no entanto, que um ou dois tinham seguido para Bree, e para lá segui também, pois pensei em certas palavras que talvez tivessem de ser ditas ao estalajadeiro...
»'Chamam-lhe Carrapiço', pensei, 'mas se esta demora for culpa sua, passarão a chamar-lhe outra coisa! Derreto-lhe as banhas, asso o velho idiota a fogo lento! 'Ele não esperava menos, e, quando viu a minha cara, estendeu-se ao comprido e começou a derreter-se sozinho!»
- Que lhe fez? - perguntou Frodo, assustado. - Ele foi muito amável connosco e fez tudo quanto pôde.
Gandalf riu-se.
- Não tenhas medo! Não lhe mordi, e, se ladrei, foi muito pouco. Fiquei tão contente com as notícias que me deu quando deixou de tremer e gaguejar, que abracei o velhote. Na altura não pude imaginar como as coisas aconteceram, mas fiquei a saber que vocês tinham estado em Bree na noite anterior e haviam partido nessa manhã com Passo de Gigante.
»'Passo de Gigante!', gritei, cheio de alegria.
»'Sim, senhor, infelizmente é verdade', confirmou Carrapiço, interpretando mal o meu estado de espírito. 'Ele conseguiu comunicar com eles, apesar de todos os meus esforços, e partiram na sua companhia. Comportaram-se de um modo muito estranho enquanto aqui estiveram. A modos que voluntariosos...'
»'Burro! Idiota! Três vezes digno e querido Cervejeiro!', exclamei. 'É a melhor notícia que recebo desde o começo do Verão, tão boa, que vale pelo menos uma moeda de ouro. Que caia sobre a tua cerveja um encantamento de inultrapassável excelência durante sete anos! Agora posso descansar uma noite, a primeira desde... oh, até já lhe perdi o conto! »
«Fiquei lá essa noite, a pensar muito no que teria acontecido aos Cavaleiros, pois parecia que em Bree ainda só houvera notícia de dois deles. Mas à noite soubemos mais novidades. Cinco, pelo menos, vieram de oeste, derrubaram as portas e atravessaram Bree como um furacão. De tal maneira, que a gente de Bree ainda está a tremer e à espera do fim do mundo! Levantei-me antes do alvorecer e fui atrás deles.
»Não sei o que aconteceu, mas parece-me evidente que foi o seguinte: o comandante deles ficou secretamente a sul de Bree, enquanto dois seguiam em frente, através da aldeia, e outros quatro invadiam o Shire. Mas, quando estes se viram desfeiteados em Bree e na Cova dos Grilos, voltaram para junto do seu comandante, com as notícias, e, por isso, deixaram a Estrada durante algum tempo sem vigilância, a não ser pelos seus espiões. O comandante mandou, então, alguns para leste, a corta-mato, enquanto ele e os restantes seguiam pela Estrada, numa grande cólera.
»Galopei como o vento para o Cume do Tempo, onde cheguei antes do pôr do Sol do segundo dia, a contar da partida de Bree. Eles chegaram lá antes de mim. Afastaram-se do meu caminho, pois sentiram aproximar-se a minha ira e não ousaram defrontá-la enquanto o Sol permaneceu no céu. Mas fecharam o cerco, à noite, e fiquei sitiado no cimo do monte, no velho círculo de Amon Sûl. Vi-me realmente em apuros. Desde as fogueiras de guerra de antigamente que não se deve ter visto tanta luz nem tantas chamas no Cume do Tempo!
»Ao nascer do Sol consegui escapar e fugi na direcção norte. Não podia fazer mais nada. Seria impossível encontrar-te naquela selva, Frodo, e teria sido loucura tentá-lo, sequer, com os Nove na minha peugada. Por isso, tive de confiar em Aragorn. A minha esperança era conseguir desviar alguns, atrás de mim, e mesmo assim chegar a Rivendell antes de vocês e mandar-lhes auxílio. Na realidade, quatro cavaleiros seguiram-me, mas a certa altura voltaram para trás e, ao que parece, dirigiram-se para o vau. Isso ajudou um bocadinho, pois assim foram só cinco que atacaram o vosso acampamento, e não nove.
»Cheguei finalmente aqui, por um caminho longo e difícil: pelo Hoarwell acima, através dos Ettenmoors; e vindo de norte. Levei quase catorze dias do Cume do Tempo até cá, pois não podia cavalgar através das rochas das colinas dos Trolls, e Facho de Sombra partiu. Mandei-o voltar para o dono, mas já se estabelecera uma grande amizade entre nós, e, quando precisar dele, responderá ao meu chamamento. Mas, com tudo isso, cheguei a Rivendell somente três dias antes do anel e quando já aqui tinham chegado notícias do perigo que ele corria... e que foram confirmadas.
»Pronto, Frodo, terminei o meu relato. Que Elrond e os outros me perdoem a sua extensão. Mas jamais tinha acontecido antes que Gandalf faltasse ao combinado e não aparecesse quando prometera. Parece-me, portanto, que se impunha uma explicação de tão estranho evento ao portador do anel.
»A história está contada, de fio a pavio. Aqui estamos nós todos e aqui está também o anel mas nem por isso estamos mais próximos do nosso objectivo. Que vamos fazer dele?»
Elrond quebrou o silêncio que se seguiu e falou de novo:
- A notícia a respeito de Saruman é dolorosa, pois confiávamos nele e influenciou profundamente todas as nossas opiniões. É perigoso estudar a fundo as artes do Inimigo, para o bem ou para o mal. Mas, infelizmente, tais abandonos e traições já têm acontecido. Das histórias que ouvimos hoje, a de Frodo foi a que me pareceu mais estranha. Tenho conhecido poucos hobbits, tirando aqui o Bilbo, e quer-me parecer que, afinal, ele não é tão único e tão singular como eu supunha. O mundo mudou muito desde a última vez que pisei os caminhos do Ocidente.
»Aos Espectros das Antas conhecemo-los por muitos nomes e da Floresta Velha muitas histórias têm sido contadas: tudo quanto dela resta é um vestígio da sua fronteira setentrional. Tempos houve em que um esquilo podia ir de árvore em árvore do que é agora o Shire até à Dunlândia, a oeste de Isengard. Outrora viajei por essas terras e conheci muitas coisas selvagens e estranhas. Mas esquecera-me de Bombadil, se é que se trata do mesmo que percorria florestas e montes há muito tempo e já então era muito velho. O nome sei que não era o mesmo: Iarwain Ben-adar lhe chamávamos, o que significava «velho e sem pai». Mas muitos outros nomes lhe deram desde então outras gentes: os Anões chamavam-lhe Forn; os Homens do Norte, Orald, e outros além destes. Trata-se de uma estranha criatura, mas, mesmo assim, talvez o devesse, ter convocado para o nosso Conselho.»
- Não viria - declarou Gandalf.
- Não podemos ainda mandar-lhe recado e obter o seu auxílio? - perguntou Erestor. - Parece-me que ele tem um poder que até sobre o anel se exerce.
- Não, eu não diria isso - contestou Gandalf. - Digamos antes que o anel não exerce qualquer poder sobre ele. Mas ele também não pode modificar o anel nem quebrar o seu poder sobre outros. E agora encontra-se retirado numa terra pequena, dentro de limites por si mesmo fixados e que ninguém pode ver, talvez à espera que os tempos mudem. Não sairá desses limites.
- Mas, dentro deles, nada parece assustá-lo - observou Erestor. - Não seria capaz de aceitar o anel e lá o guardar, para sempre, inofensivo?
- Não - respondeu Gandalf. - De sua vontade, não. Talvez o fizesse se toda a gente livre do mundo lho rogasse, mas não compreenderia tal necessidade. E se o anel lhe fosse dado não tardaria a esquecê-lo ou, mais provavelmente ainda, a deitá-lo fora. As coisas desse género não se lhe fixam no espírito. Seria um guardião muito pouco seguro, e creio que só isso constitui resposta bastante.
- De qualquer modo - interveio Glorfindel - mandar-lhe o anel serviria apenas para adiar o advento do mal. Ele encontra-se muito longe e, agora, não poderíamos levar-lhe o anel sem sermos notados, sem que nenhum espião do facto se apercebesse. E, mesmo que isso fosse possível, mais cedo ou mais tarde o Senhor dos Anéis tomaria conhecimento do esconderijo e exerceria todo o seu poder nessa direcção. Conseguiria Bombadil desafiar sozinho esse poder? Acho que não. Acho que, no fim, se tudo o mais for conquistado, Bombadil também cairá, último assim como foi primeiro, e depois a Noite virá.
- Pouco sei a respeito de Iarwain, tirando o nome - confessou Galdor -, mas parece-me que Glorfindel tem razão. Iarwain não possui a força necessária para desafiar o nosso Inimigo, a não ser que essa força esteja na própria terra. E, mesmo assim, temos visto que Sauron é capaz de torturar e destruir os próprios montes. O poder que ainda existe temo-lo nós, aqui em Imladris; ou Círdan, nos Portos; ou encontra-se em Lórien. Mas terão eles e teremos nós aqui a força necessária para resistir ao Inimigo, à vinda final de Sauron, quando tudo o mais estiver vencido?
- Eu não tenho essa força - afirmou Elrond. - Nem eles.
- Então, se não é possível afastar para sempre o anel do seu alcance por meio da força - opinou Glorfindel -, só nos restam duas alternativas: tentar afastá-lo por mar ou destruí-lo.
- Mas Gandalf revelou-nos que não o podemos destruir por meio de qualquer engenho de que disponhamos aqui - lembrou Elrond. - E os que vivem para lá do mar não o receberão: para o bem e para o mal, o anel pertence à Terra Média, e é a nós, que ainda aqui vivemos, que compete resolver o problema.
- Nesse caso - sugeriu Glorfindel -, lancemo-nos às profundezas e transformemos as mentiras de Saruman em verdades, pois agora tornou-se evidente que, mesmo no Conselho, os seus pés já andavam por caminhos tortuosos. Sabia que o anel não estava perdido para sempre, mas desejava que, assim pensássemos, pois começara a cobiçá-lo para si mesmo. Contudo, na mentira se esconde muitas vezes a verdade: no mar, o anel estaria em segurança.
- Não o estaria para sempre - contestou Gandalf. - Há muitas coisa, nas profundezas e os mares e as terras podem mudar. Não nos compete aqui pensar somente numa época, ou nas vidas de alguns homens ou sequer numa fugaz era do mundo; temos o dever de procurar um fim definitivo para esta ameaça, ainda que não tenhamos esperança de o conseguir.
- E isso é coisa que não encontraremos nos caminhos do mar - disse Galdor. - Se o regresso a Iarwain é considerado excessivamente perigoso, a ida para o mar constitui agora perigo ainda mais grave. Diz-me o coração que Sauron esperará que tomemos o caminho do Ocidente, quando souber o que aconteceu... e não tardará que o saiba. Os Nove ficaram desmontados, é verdade, mas isso não passa de uma trégua até encontrarem novos e mais velozes corcéis. Só o Poder esvaecente de Gondor existe agora entre eles e uma marcha em força ao longo das costas, para o Norte. E se ele vier, se atacar as Torres Brancas e os Portos, futuramente os Elfos podem não ter qualquer possibilidade de fuga das sombras crescentes na Terra Média.
- Essa marcha será retardada ainda por muito tempo - afirmou Boromir. - Gondor esvaece, disse. No entanto, Gondor resiste e até mesmo o fim da sua força é ainda muito forte.
- Mas, apesar disso, a sua vigilância não pode conter os Nove - lembrou Galdor. - Além do mais, ele poderá escolher outras estradas que não estejam guardadas por Gondor.
- Nesse caso - disse Erestor - só há duas alternativas, como Glorfindel já declarou: esconder o anel para sempre ou desfazê-lo. Mas tanto uma como outra são superiores às nossas forças. Quem nos decifrará esta charada?
- Nenhum dos presentes a pode decifrar - afirmou Elrond, gravemente. - Pelo menos, nenhum pode prever o que acontecerá se escolhermos esta via ou aquela. Agora, porém, parece-me evidente qual a via que temos de escolher. A ocidental parece a mais fácil, e portanto deve ser rejeitada. Estará com certeza vigiada. Os Elfos têm fugido por lá com demasiada frequência. Agora, nesta suprema fuga, temos de escolher uma estrada difícil, uma estrada imprevista. E aí que reside a nossa esperança, se esperança existe. Caminhar para o perigo... para Mordor. Devemos mandar o anel para o Fogo.
Fez-se, de novo, silêncio. Mesmo naquela bonita casa que dava para um vale ensolarado e cheio dos ruídos da água límpida, Frodo sentiu o coração envolto em trevas. Boromir estremeceu e Frodo olhou para ele. Apalpava o grande chifre, de testa franzida. Por fim falou:
- Não compreendo nada - confessou. - Saruman é um traidor, mas, apesar disso, não terá tido um vislumbre de sensatez? Por que falam sempre de esconder e destruir? Por que não pensamos, antes, que o Grande Anel veio parar às nossas mãos para nos ajudar na própria hora em que tanto precisamos de ajuda? Com ele, os Senhores Livres poderão, com certeza, derrotar o Inimigo. Parece-me que é isso que ele mais teme.
»Os homens de Gondor são valentes e nunca se submeterão; mas podem ser vencidos. A coragem precisa primeiro de força e depois de uma arma. Que o anel seja a nossa arma, se tem tanto poder como dizem. Aceitem-no e avancem para a vitória!»
- Oh não! - exclamou Elrond. - Nós não podemos usar o Anel Soberano. Essa é uma coisa que sabemos agora bem de mais. Pertence a Sauron, foi feito só por ele e é absoluta e totalmente mau. A sua força, Boromir, é tão grande, que ninguém a pode usar a seu bel-prazer, a não ser aqueles que já possuem um grande poder. Mas para esses constitui um perigo ainda mais terrível: o simples desejo de o possuir corrompe o coração. Veja Saruman. Se algum dos Sábios derrubasse, com o anel, o Senhor de Mordor, servindo-se das próprias artes deste, sentar-se-ia em seguida no trono de Sauron, e teríamos outro Senhor das Trevas. Essa é outra razão para que o anel seja destruído: enquanto existir no mundo constituirá um perigo, mesmo para os Sábios. Ao princípio nada era mau. Nem mesmo Sauron o foi. Receio aceitar o anel para o esconder. Não o aceitarei para o usar.
- Nem eu - declarou Gandalf.
Boromir olhou-os, duvidoso, mas baixou a cabeça.
- Assim seja - murmurou. - Deste modo, em Gondor, temos de confiar nas armas que possuímos. E, no íntimo, enquanto os Sábios guardarem este anel, continuaremos a lutar. Talvez a espada-que-foi-partida possa ainda conter a maré... se a mão que a empunha não herdou apenas um tesouro de família, mas também os tendões e os músculos dos Reis dos Homens.
- Quem poderá dizê-lo? - redarguiu Aragorn. - Mas nós pô-la-emos à prova, um dia.
- Que esse dia não tarde muito - desejou Boromir -, pois embora eu não peça auxílio a verdade é que precisamos dele. Confortar-nos-ia se soubéssemos que outros também lutam com todos os meios de que dispõem.
- Nesse caso, podem sentir-se confortados - afirmou Elrond. - Há outros poderes e outros reinos que não conhece e de si estão escondidos. Anduin, o Grande, passa por muitas praias antes de chegar a Argonath e às Portas de Gondor.
- No entanto - observou Glóin, o anão -, seria bom para todos se todas essas forças se juntassem e os poderes de cada uma fossem utilizados em conjunto. É possível que existam outros anéis menos traiçoeiros, susceptíveis de serem utilizados na dificuldade em que nos encontramos. Os Sete estão perdidos para nós... se Balin não encontrou o anel de Thrór, que era o último; não se soube nada a seu respeito desde que Thrór pereceu em Mória. Agora posso até revelar que foi, em parte, na esperança de encontrar esse anel que Balin partiu.
- Balin não encontrará anel nenhum em Mória - afirmou Gandalf, - Thrór deu-o a Thráin, seu filho, mas Thráin não o deu a Thorin. O anel foi tirado, pela tortura, a Thráin, nas masmorras, de Dol Guldur. Eu cheguei tarde.
- Oh, infortúnio! - exclamou Glóin: - Quando chegará o dia da nossa vingança? Mas ainda há os Três. Que é feito dos Três Anéis dos Elfos? Diz-se que eram muito poderosos. Não os conservam os nobres elfos? No entanto, também foram feitos pelo Senhor das Trevas, há muito tempo. Estão ociosos? Vejo aqui nobres elfos. Não respondem?
Os elfos não responderam.
- Não me ouviu, Glóin? - perguntou Elrond. - Os Três não foram feitos por Sauron, que nunca sequer lhes tocou. Mas deles não é permitido falar. Nesta hora de dúvida, só posso dizer o seguinte: não estão ociosos. No entanto, não foram feitos para serem armas de guerra ou conquista; não é esse o seu poder. Os que os fizeram não desejavam força, nem domínio, nem riqueza acumulada, mas sim compreender, criar e sarar, para que todas as coisas se conservassem imaculadas. Os Elfos da Terra Média conseguiram, em certa medida, essas coisas, embora com sofrimento. Mas tudo quanto foi feito por aqueles que utilizam os Três redundará na sua perca e o seu pensamento e o seu coração serão revelados a Sauron, se ele recuperar o Um. Se tal acontecesse, melhor seria que os Três nunca tivessem existido. É esse o objectivo de Sauron.
- Mas que aconteceria então se o Anel Soberano fosse destruído, como aconselha? - perguntou Glóin.
- Não temos a certeza, - respondeu Elrond, tristemente. - Alguns têm esperança de que os Três Anéis, em que Sauron nunca tocou, ficariam livres e os seus possuidores poderiam - então sarar as feridas do mundo que ele forjou. Mas também é possível que, quando o Um desaparecer, os Três falhem e muitas coisas belas se desvaneçam e sejam esquecidas. É essa a minha convicção.
- Contudo, todos os elfos estão dispostos a correr esse risco se, graças a ele, o poder de Sauron for quebrado e o medo do seu domínio desaparecer para sempre - disse Glorfindel.
- Voltamos assim, mais uma vez, à destruição do anel - observou Erestor. - Mas não avançamos nada. De que força dispomos para encontrar o fogo em que ele foi forjado? Esse caminho é o do desespero. Diria, até, da insensatez, se o muito saber de Elrond mo não proibisse.
- Desespero ou insensatez? - perguntou Gandalf - Não é desespero, pois só desesperam aqueles que vêem o fim sem a mínima dúvida. Nós não vemos. É sensatez reconhecer a necessidade quando todas as outras possibilidades foram avaliadas, mesmo que possa ser insensatez àqueles que se agarram a falsa esperança. Enfim, que a insensatez seja o nosso disfarce, uma venda para os olhos do Inimigo! Pois ele é muito sensato e pesa minuciosamente todas as coisas na balança da sua perversidade. Mas a única medida que conhece é a do desejo, do desejo de poder, e por ela avalia todos os corações. Não entra na sua cabeça o pensamento de que alguém recuse o poder, de que, tendo o anel, procuremos destruí-lo. Se tentarmos fazer isso, deixá-lo-emos confuso.
- Pelo menos temporariamente - especificou Elrond. - A estrada terá de ser percorrida, mas é muito dura. E, nela, nem a força nem a sensatez nos levarão longe. Este empreendimento pode ser tentado com tanta esperança pelos fracos como pelos fortes. No entanto, assim acontece frequentemente com as empresas que fazem mover as engrenagens do mundo: executam-nas mãos pequenas, porque têm de as executar, enquanto os olhos dos grandes estão postos noutros lados.
- Muito bem, muito bem, Mestre Elrond! - exclamou, de súbito, Bilbo. - Não diga mais nada! É evidente aonde quer chegar. Bilbo, o hobbit pateta, começou esta história, e bom será que a acabe, ou acabe consigo. Sentia-me aqui muito confortável e ia andando com o meu livro. Se quer saber, estou agora a escrever o fim. Tinha pensado encerrar com a frase: e, depois, viveu sempre muito feliz, até ao fim dos seus dias. É um bom fim, e não perde nada por já ter sido usado.
Agora terei de o modificar, pois não me parece que vá tornar-se realidade... e, de qualquer modo, terá de haver mais alguns capítulos, se eu viver para os escrever. É um aborrecimento muito desagradável. Quando devo partir?
Boromir olhou, surpreendido, para Bilbo, mas o riso morreu-lhe nos lábios quando viu que todos os outros fitavam o velho hobbit com uma expressão de grave respeito. Só Glóin sorriu, mas o seu sorriso foi inspirado por recordações antigas.
- Claro, meu querido Bilbo - disse Gandalf. - Se tivesse, realmente, sido você quem começou esta história, talvez fosse de esperar que a concluísse. Mas agora sabe muito bem que começar é reivindicação excessivamente grande seja para quem for e que nos grandes feitos só um pequeno papel é desempenhado por qualquer herói. Não precisa de se inclinar! A palavra foi dita intencionalmente e nós não duvidamos que, sob a aparência brincalhona, está a fazer uma oferta corajosa. Mas uma oferta que ultrapassa as suas forças, Bilbo. Não pode retomar esta história. Ela passou-lhe adiante. Se aceita o meu conselho, dir-lhe-ei que o seu papel terminou, a não ser como anotador. Acabe o seu livro e não modifique o fim! Ainda há esperança de que seja realidade. Mas prepare-se para escrever uma continuação, quando eles voltarem.
Bilbo riu-se.
- Não me lembro de me ter dado, antes, conselhos agradáveis - observou. - Como todos os seus conselhos desagradáveis foram bons, pergunto a mim mesmo se este não será mau... Contudo, a verdade é que, suponho, já me não restam nem a força nem a sorte necessárias para lidar com o anel. Ele cresceu e eu não. Mas explique-me uma coisa: que quer dizer com eles?
- Os mensageiros que serão enviados com o anel.
- Exactamente! E quem serão eles? Parece-me que é isso que este Conselho tem de decidir, isso e mais nada. Os Elfos podem subsistir só de discursos e os Anões suportar grandes fadigas, mas eu sou apenas um velho hobbit e sinto a falta da minha refeição do meio-dia. Não podem indicar já alguns nomes? Ou então adiar para depois do almoço?
Ninguém respondeu. A campainha para o almoço tocou, mas continuaram todos calados. Frodo lançou um olhar a todos os rostos, mas não estavam voltados para ele. Todos os membros do Conselho se encontravam de olhos baixos, como se meditassem profundamente. Apoderou-se de Frodo um grande medo, como se aguardasse o pronunciamento de uma sentença que previra havia muito tempo, mas que, apesar disso, esperava em vão não fosse pronunciada. Encheu-lhe o coração um desejo avassalador de descansar e ficar em paz ao lado de Bilbo, em Rivendell. Por fim falou, com dificuldade, e admirou-se de ouvir as suas palavras, como se outra vontade se estivesse a servir da sua fraca voz:
- Eu levarei o anel - disse -, embora não saiba o caminho.
Elrond levantou a cabeça e fitou-o, e Frodo sentiu o coração traspassado pela inesperada agudeza do olhar.
- Se bem compreendi tudo quanto ouvi - disse Elrond -, acho que essa missão lhe está destinada e que, se não descobrir um caminho, mais ninguém descobrirá. Esta é a hora do povo do Shire, a hora em que ele se ergue dos seus campos tranquilos para fazer estremecer as torres e os conselhos dos poderosos. Quem, entre todos os Sábios, podia tê-lo previsto? Ou, se são realmente sábios, por que haveriam de esperar sabê-lo antes de a hora soar?
»Mas trata-se de um fardo pesado. Tão pesado, que ninguém deve impô-lo seja a quem for. Eu não lho imponho, mas, se o aceita de livre vontade, tenho de dizer que a sua decisão está certa. E mesmo que todos os poderosos amigos dos Elfos de antigamente ... Hador, Húrim,
Túrin e o próprio Beren... estivessem reunidos, o seu lugar seria entre eles.» - - Mas certamente não o vai mandar partir sozinho, Mestre? - perguntou Sam, que, incapaz de se conter por mais tempo, saltou do canto onde estivera tranquilamente sentado no chão.
- Claro que não - respondeu Elrond, enquanto se virava, a sorrir, para ele. - Tu pelo menos, irás com ele. É praticamente impossível separar-te dele, mesmo quando é convocado para um conselho secreto e tu não.
Sam sentou-se, muito corado, e murmurou, a abanar a cabeça:
- Metemo-nos numa linda alhada, Sr. Frodo!
O ANEL VIAJA PARA SUL
Mais tarde, nesse mesmo dia, os hobbits efectuaram uma reunião em que só eles participaram, no quarto de Bilbo. Merry e Pippin ficaram indignados quando souberam que Sam se introduzira no Conselho e fora escolhido para companheiro de Frodo.
- É muito injusto! - protestou Pippin. - Em vez de o expulsar e de o acorrentar, Elrond recompensou-lhe o atrevimento!
- Recompensou-lhe! - repetiu Frodo. - Pois eu não consigo imaginar um castigo mais severo. Estão a falar sem pensar, se consideram uma recompensa a condenação a participar nesta viagem sem esperança. Ontem sonhei que a minha missão estava cumprida e poderia descansar aqui muito tempo, talvez para sempre.
- Não me admira e gostaria que pudesses, realmente - redarguiu Merry. - Mas é ao Sam que estamos a invejar, e não a ti. Se tens de partir, será um castigo para qualquer de nós ficar, até mesmo em Rivendell. Percorremos um longo caminho contigo e passámos juntos por alguns maus bocados. Queremos continuar.
- Era isso que eu queria dizer - afirmou Pippin. - Nós, hobbits, devemos unir-nos, e assim faremos. Eu irei contigo, a não ser que me acorrentem. Tem de haver alguém inteligente no grupo.
- Então tu não serás com certeza escolhido, Peregrino Took - exclamou Gandalf, a espreitar para dentro do quarto pela janela, que ficava perto do chão. - Estão todos a preocupar-se desnecessariamente, pois ainda não está nada decidido.
- Ainda não está nada decidido! - repetiu Pippin. - Então que estiveram a fazer? Passaram horas fechados.
- A conversar - disse Bilbo. - Conversou-se muito e toda a gente soube uma novidade de arregalar o olho. Até o velho Gandalf. Creio que aquela noticiazinha do Legolas a respeito de Gollum até a ele o apanhou de surpresa, embora disfarçasse.
- Engana-se - contestou Gandalf. - Não prestou atenção. Eu já soubera a notícia por intermédio de Gwaihir. Se quer que lhe diga, os únicos que disseram coisas de arregalar verdadeiramente o olho, para usar a expressão, foram você e o Frodo. E eu fui o único que não fiquei surpreendido.
- Bem, de qualquer modo, não se decidiu nada além da escolha do pobre Frodo e do Sam - insistiu Bilbo. - Desde o princípio receei que isto acontecesse, se me recusassem. No entanto, estou convencido de que Elrond mandará um número de pessoas razoável, quando chegarem as notícias. Já começaram a partir, Gandalf?
- Já - respondeu o feiticeiro. - Alguns dos batedores já partiram e amanhã partirão mais. Elrond está a mandar elfos e eles estabelecerão contacto com os Caminhantes e, talvez, com a gente de Thranduil, na Floresta Tenebrosa. Aragorn também partiu com os filhos de Elrond. Teremos de bater as terras circundantes num raio de muitas léguas antes de tomar qualquer iniciativa. Portanto, anima-te, Frodo! Provavelmente terás aqui uma longa estada.
- Ai! - suspirou Sam, tristemente. - Esperaremos somente o tempo suficiente para o Inverno chegar.
- Isso não se pode remediar - afirmou Bilbo. - E a culpa é em parte tua, Frodo, meu rapaz, por teres insistido em esperar pelo meu aniversário. Não posso deixar de pensar que foi uma estranha maneira de o celebrar. Eu não teria escolhido esse dia para deixar entrar os Bagginses de Vila do Saco no Fundo do Saco! Mas contra factos não há argumentos, e a realidade agora é esta: não podem esperar até à Primavera e só podem partir quando as notícias dos batedores chegarem.
Quando o Inverno começa a sentir-se e as pedras estalam na noite gélida, quando os charcos escurecem e as árvores se despem, é duro ter de viver ao relento.
»Receio, no entanto, que seja essa a sorte que os espera.»
- Também eu - disse Gandalf. - Não poderemos partir enquanto não descobrirmos que é feito dos Cavaleiros.
- Pensava que tinham sido todos destruídos pela enxurrada - observou Merry.
- Não se destroem assim Espectros do Anel - redarguiu-lhe Gandalf. - O poder do seu senhor está neles e só ele os mantém ou aniquila. Esperamos que tenham ficado todos sem cavalos e sem disfarces, o que os tornará temporariamente menos perigosos; mas mesmo disso temos de adquirir a certeza. Entretanto, deves tentar esquecer as tuas preocupações, Frodo. Não sei se poderei fazer alguma coisa para te ajudar, mas deixa-me segredar-te o seguinte ao ouvido: alguém disse que era necessária inteligência no grupo, e tinha razão. Acho que irei contigo.
A notícia causou uma alegria tão grande a Frodo, que Gandalf se levantou do parapeito da janela, onde estivera sentado, tirou o chapéu e curvou-se.
- Eu disse apenas Acho que irei contigo. Por enquanto, não consideres nada garantido. Elrond terá muito a dizer, neste assunto, assim como o teu amigo Passo de Gigante. Isso lembra-me que preciso de falar com Elrond. Tenho de ir andando.
- Quanto tempo calcula que passarei aqui? - perguntou Frodo a Bilbo, quando Gandalf os deixou.
- Oh, não sei! Não consigo contar os dias em Rivendell. Mas acho que será muito tempo. Poderemos ter algumas boas conversas. Que dizes a ajudar-me com o meu livro e a começar o seguinte? Já pensaste nalgum fim?
- Já pensei em vários, mas são todos tristes e desagradáveis - respondeu Frodo.
- Oh!, isso não serve! - protestou Bilbo. - Os livros têm de ter fins felizes. Que te parece este: E assentaram todos e passaram o resto da vida juntos e felizes?
- Seria bonito, se acontecesse - respondeu Frodo.
- Ah! - exclamou Sam. - E onde viverão eles? É isso que muitas vezes me pergunto.
Durante algum tempo, os hobbits continuaram a falar e a pensar na viagem passada e nos perigos que os esperavam; mas a virtude da terra de Rivendell era tão grande, que em breve o medo e a ansiedade lhes abandonaram o espírito. O futuro, bom ou mau, não foi esquecido, mas deixou de exercer qualquer poder sobre o presente. A saúde e a esperança fortaleceram-se e eles passaram a contentar-se com cada dia bom que viviam e a encontrar prazer em cada refeição e em cada palavra e canção.
Assim foram correndo os dias, nascendo cada manhã luminosa e amena e chegando cada anoitecer fresco e desanuviado. Mas o Outono aproximava-se depressa do fim. Lentamente, a luz dourada transformou-se em pálida prata e as folhas mais persistentes caíram das árvores nuas. Começou a soprar um vento frio das Montanhas Nebulosas, a leste. A Lua dos Caçadores crescia, redonda, no céu nocturno e punha em fuga as estrelas mais pequenas. Mas no Sul brilhava uma estrela vermelha. Todas as noites, quando a Lua morria, a estrela brilhava cada vez mais. Frodo via-a da janela, no abismo do céu, a brilhar como um olho atento, que coruscava por cima das árvores, na orla do vale.
Os hobbits estavam em casa de Elrond havia quase dois meses, Novembro passara levando consigo os últimos farrapos do Outono e corria Dezembro, quando os batedores começaram a regressar.
Alguns tinham viajado para norte, para além das nascentes do Hoarwell, nos Ettenmoors; outros tinham viajado para oeste e, com a ajuda de Aragorn e dos Caminhantes, esquadrinhado as terras que ficavam muito abaixo do rio Cinzento até Tharbad, onde a velha Estrada do Norte atravessava o rio junto de uma cidade em ruínas. Tinham ido muitos para leste e sul e alguns deles atravessado as montanhas e penetrado na Floresta Tenebrosa, enquanto outros tinham subido o desfiladeiro na nascente do rio Alegre, descido à Terra Erma, percorrido os Campos Alegres e, finalmente, chegado à velha casa de Radagast, em Rhosgobel. Mas Radagast não estava e eles tinham regressado pela alta passagem a que chamavam Escada do Regato Sombrio. Os filhos de Elrond, Elladan e Elrohir, foram os últimos a chegar. Tinham feito uma grande viagem, passando do Filão de Prata para uma região estranha, mas recusaram-se a falar da sua missão fosse a quem fosse, tirando Elrond.
Os batedores não tinham descoberto, em lado nenhum, quaisquer sinais ou notícias dos Cavaleiros ou de outros servos do Inimigo. Nem as Águias das Montanhas Nebulosas lhes tinham dado novidades. Também não tinham visto nem ouvido nada a respeito de Gollum; mas os lobos selvagens continuavam a concentrar-se e andavam de novo a caçar muito a montante do Grande Rio. Três dos cavalos Pretos tinham logo sido encontrados, afogados, no vau inundado. Nos rochedos dos rápidos, mais abaixo, foram descobertos os cadáveres de mais cinco, assim como uma comprida capa preta, rasgada e esfarrapada. Não se encontraram mais vestígios dos Cavaleiros Negros e em lado algum se sentira a sua presença. Dir-se-ia que tinham desaparecido do Norte.
- A oito dos Nove sabemos pelo menos o que aconteceu - comentou Gandalf - É temerário ter a certeza; no entanto, creio que podemos ter esperança de que os Espectros do Anel foram dispersados e se viram obrigados a regressar, da melhor maneira que puderam, a casa do seu amo em Mordor, vazios e informes.
»Se assim foi, ainda passará algum tempo antes de poderem recomeçar a caçada. Claro que o Inimigo tem outros servidores, mas mesmo esses terão de percorrer toda a distância até às fronteiras de Rivendell para poderem descobrir-nos a pista. E, se tivermos cuidado, ela será difícil de encontrar. Mas é preciso que nos não atrasemos mais.»
Elrond mandou chamar os hobbits. Olhou gravemente para Frodo e disse:
- Chegou o momento. Se o anel tem de partir, deve ser em breve. Os que partirem com ele não devem contar com a ajuda de guerra ou força, na sua missão. Têm de penetrar no domínio do Inimigo longe de qualquer socorro. Continua fiel à sua palavra, Frodo, de que será o portador do anel?
- Continuo. Irei com Sam.
- Então não o posso ajudar muito, nem mesmo com conselhos - declarou Elrond. - Pouco consigo prever do seu caminho e não sei como executará a sua tarefa. A Sombra já chegou ao sopé das Montanhas e aproxima-se cada vez mais, mesmo até aos limites do rio Cinzento; e tudo quanto está debaixo da Sombra é negro para mim. Encontrará muitos inimigos, alguns declarados e outros disfarçados, e também poderá encontrar amigos no seu caminho quando menos o esperar. Enviarei as mensagens que puder àqueles que conheço no vasto mundo, mas as terras tornaram-se tão perigosas, que é muito possível que algumas se extraviem ou não cheguem mais depressa do que você.
»Escolherei os companheiros que irão consigo, na medida em que eles o queiram ou a sorte o permita. O número deve ser reduzido, pois a sua esperança reside na rapidez e no segredo. Mesmo que eu tivesse uma hoste de elfos couraçados, dos Tempos Antigos, de pouco serviria, a não ser para despertar a curiosidade de Mordor.
»O Grupo do Anel será constituído por Nove, e os Nove Caminhantes terão de fazer frente aos Nove Cavaleiros, que são uma força do mal. Gandalf irá consigo e com o seu fiel servidor, pois esta será a grande missão de Gandalf e talvez o fim dos seus trabalhos.
»Quanto aos restantes, representarão os outros Povos Livres do mundo: Elfos, Anões e Homens. Legolas irá pelos Elfos e Gimli, filho de Glóin, pelos Anões. Estão dispostos a ir, pelo menos, até os desfiladeiros das Montanhas e talvez mais longe. Pelos Homens terá Aragorn, filho de Arathorn, pois o anel de Isildur respeita-lhe de perto.»
- Passo de Gigante! - exclamou Frodo.
- Sim - confirmou o visado, a sorrir. - Mais uma vez peço autorização para ser seu companheiro, Frodo.
- Ter-lhe-ia suplicado que me acompanhasse - respondeu-lhe o hobbit -, se não pensasse que ia para Minas Tirith com Boromir.
- Vou, e a espada-que-foi-partida será de novo forjada ante, de eu partir para a guerra. Mas o seu caminho e o nosso caminho serão o mesmo durante muitas centenas de quilómetros. Por isso, Boromir também fará parte do grupo. É um homem valente.
- Falta arranjar mais dois - disse Elrond. - Vou pensar no assunto e talvez arranje na minha casa algum que me pareça bom para o fim em vista.
- Mas assim não ficará lugar para nós! - exclamou Pippin, cheio de desânimo. - Não queremos ficar para trás, queremos ir com Frodo.
- Dizem isso porque não compreendem nem podem imaginar o que os espera - redarguiu Elrond.
- Frodo também não - disse Gandalf, a apoiar inesperadamente Pippin. - Nem nenhum de nós o compreende claramente. E verdade que se estes hobbits compreendessem o perigo que nos espera, não ousariam ir. Mas mesmo assim continuariam a desejar ir, ou a desejar serem capazes de ousar, e sentir-se-iam envergonhados e infelizes. Acho, Elrond, que nesta questão seria conveniente confiar mais na sua amizade do que numa grande sabedoria. Mesmo que escolhesse para nos acompanhar um nobre elfo como Glorfindel, ele não poderia atacar a Torre Negra nem abrir o caminho para o Fogo, apesar do poder que possui.
- Fala gravemente, mas eu duvido - disse Elrond, - Pressinto que o Shire já não está livre de perigo e eu pensava mandar regressar estes dois como mensageiros, para fazerem o que pudessem de acordo com os hábitos do seu país, para avisarem o povo do perigo que corre. De qualquer modo, considero que o mais jovem dos dois, Peregrino Took, deve ficar. O meu coração opõe-se à sua ida.
- Então, Mestre Elrond, terá de me meter na prisão ou de me mandar para casa amarrado num saco; de contrário seguirei o grupo - afirmou Pippin.
- Pronto, que assim seja. Irão - resignou-se, a suspirar. - Assim, a conta de nove está completa. O grupo deve partir dentro de sete dias.
A espada de Elendil foi de novo forjada por ferreiros élficos e na lâmina foram gravadas sete estrelas entre o crescente da Lua e o Sol raiado, com muitos caracteres rúnicos à volta, pois Aragorn, filho de Arathorn, ia para a guerra nas fronteiras de Mordor. A espada brilhava muito, depois de novamente inteira. A luz do Sol refulgia, vermelha nela, enquanto a da Lua refulgia friamente. O seu gume era duro é cortante. E Aragorn deu-lhe outro nome, chamou-lhe Anduri1, Flama do Ocidente.
Aragorn e Gandalf passeavam juntos ou sentavam-se a conversar do caminho e dos perigos que se lhes deparariam. E estudavam os mapas e os livros com figuras e quadros existentes em casa de Elrond. Às vezes, Frodo acompanhava-os; mas preferia confiar na sua orientação e passar o máximo de tempo possível com Bilbo.
Nesses últimos dias, os hobbits reuniam-se, ao anoitecer no Salão do Fogo e, entre muitas histórias, ouviram contar completa, a balada de Beren e Lúthien e a conquista da Grande Jóia; mas de dia, enquanto Merry e Pippin andavam por fora, Frodo e Sam encontravam-se com Bilbo, no pequeno quarto deste. Então Bilbo lia-lhes passagens do seu livro (que parecia ainda muito incompleto) ou fragmentos dos seus versos, ou tomava apontamentos das aventuras de Frodo.
Na manhã do último dia, Frodo ficou sozinho com Bilbo e o velho hobbit tirou uma caixa de madeira debaixo da cama. Abriu-a e remexeu no interior.
- Aqui está a tua espada, Frodo. Estava partida, como sabes , e eu tomei conta dela, para ficar em segurança, mas esqueci-me de perguntar aos ferreiros se a podiam arranjar. Agora já não há tempo. Por isso pensei que não te importasses de ficar com esta...
Tirou da caixa uma pequena espada, numa velha e modesta bainha de couro. Depois desembainhou-a, e a lâmina polida e bem cuidada cintilou de súbito, fria e refulgente.
- É o Ferrão - explicou, enquanto a cravava profundamente, com pouco esforço, numa viga de madeira. - Guarda-a, se quiseres. Eu não voltarei a precisar dela, espero.
Frodo aceitou-a, agradecido.
- Há também isto - continuou Bilbo, e tirou da caixa um embrulho que pareceu pesado, em relação ao seu tamanho.
Desembrulhou diversas voltas de tecido velho e mostrou uma pequena cota de malha. Era feita de muitos anéis apertadamente entretecidos, tão flexível, que parecia de tecido, fria como o gelo e mais dura que o aço. Brilhava como prata ao luar e estava cravejada de pedras preciosas brancas. Completava-a um cinto de madrepérola e cristal.
- É bonita, não é? - perguntou Bilbo, aproximando-a da luz. - Bonita e útil. É a minha cota de malha dos Anões, que Thorin me deu. Fui buscá-la a Michel Delving, antes de partir, e juntei-a à minha bagagem. Trouxe comigo todas as recordações da minha viagem excepto o anel. No entanto, não esperava ter de usar isto, e, agora, não me faz falta... a não ser para a admirar, às vezes. Quase lhe não sentimos o peso, quando a vestimos.
- Eu pareceria... bem, acho que não me ficaria bem - protestou Frodo.
- Exactamente o que eu disse, também - observou Bilbo. Mas não te importes com as aparências. Podes usá-la debaixo do vestuário exterior. Vá, tens de compartilhar este segredo comigo! Não digas a ninguém! Eu sentir-me-ia mais descansado se souber que a usas. Tenho a impressão de que resistirá até mesmo às facas dos Cavaleiros Negros - acrescentou, baixinho.
- Está bem, aceito.
Bilbo vestiu-lha e ajustou-lhe o Ferrão no rutilante cinto. Em seguida, Frodo vestiu, por cima, os calções, a túnica e o casaco sujos da viagem.
- Pareces um simples hobbit - comentou Bilbo. - Mas agora as aparências iludem e não és o que pareces à superfície. Felicidades! - Virou-se e olhou pela janela, a tentar trautear uma melodia.
- Não sei agradecer-lhe como merece, Bilbo, por isto e por toda a sua passada bondade para comigo - disse Frodo.
- Nem tentes! - replicou o velho hobbit, que se virou e lhe deu uma palmada nas costas. - Ui! Agora aleijas, quando te damos uma palmada nas costas! O que importa é que os hobbits sejam unidos, sobretudo os Bagginses. Em troca só te peço que tenhas contigo o máximo cuidado possível e que no regresso tragas todas as notícias, canções antigas e histórias que descobrires. Eu farei o possível por concluir o meu livro antes de voltares. Gostaria de escrever o segundo, se sobreviver.
Calou-se virou-se de novo para a janela e cantou docemente:
Sento-me à lareira e penso
em tudo quanto vi:
em flores dos prados e borboletas
de Estios já passados.
Em folhas amarelas e finas teias
de Outonos que vivi,
com névoa matinal e sol prateado
e vento a soprar-me no cabelo.
Sento-me à lareira e penso
como será o Mundo
quando chegar o Inverno
sem uma Primavera que não verei.
Pois há tantas coisas
que eu nunca vi:
em todas as florestas cada Primavera
há um verde diferente.
Sento-me à lareira e penso
em gente de há muito tempo
e em gente que verá um mundo
que nunca conhecerei.
Mas enquanto, sentado, penso
em tempos que lá vão,
o ouvido está atento ao regresso
de passos e a vozes à porta.
Estava um dia frio e cinzento, de fins de Dezembro. O vento leste passava através dos ramos nus das árvores e assobiava nos pinheiros escuros dos montes. Nuvens esfarrapadas passavam a correr, negras e baixas. Quando as sombras tristes do entardecer começaram a alastrar, o grupo preparou-se para partir. Estava combinado que partiriam ao crepúsculo, pois Elrond aconselhava-os a viajar sempre que possível ao abrigo da noite, até estarem longe de Rivendell.
- Devem recear os muitos olhos dos servos de Sauron - dizia. - Estou certo de que já chegaram ao conhecimento dele notícias do desaire dos Cavaleiros, o que deve tê-lo enchido de ira. Por isso deve ter espiões apeados e voadores nas terras setentrionais. Até mesmo do céu que os cobre se devem precaver, enquanto viajarem.
O grupo levou pouco material de guerra, pois a sua esperança residia no segredo e não no combate. Aragorn levava Andúril, mas era essa a sua única arma, e vestia de verde e castanho baços, como um caminhante dos ermos. Boromir levava uma espada comprida, de formato semelhante ao de Andúril mas de menos nobre estirpe, e munira-se de um escudo e do seu chifre de guerra.
- Soa forte e claro nos vales dos montes - disse. - E quando soa, os inimigos de Gondor que fujam! - Levou o chifre aos lábios, soprou e o eco do toque saltou de rocha em rocha e todos quantos ouviram tal voz em Rivendell logo se levantaram.
- Devia evitar tocar esse chifre, Boromir - recomendou-lhe Elrond -, enquanto não estiver de novo nas fronteiras da sua terra ou a premente necessidade a tal o obrigar.
- Talvez tenha razão - admitiu Boromir. - Mas tenho sempre deixado a minha trompa soar, à partida, e, embora depois tenhamos de caminhar na sombra, não partirei como um ladrão, pela calada da noite.
Gimli, o Anão, era o único que usava abertamente uma pequena cota de anéis de aço, pois os Anões não se assustam com pesos, e no cinto levava um machado de lâmina larga. Legolas tinha um arco e uma aljava e, no cinto, uma comprida faca branca. Os hobbits mais novos levavam as espadas que tinham trazido da anta, e Frodo levava apenas o Ferrão - e a cota de malha oculta sob o vestuário como Bilbo recomendara. Gandalf levava o seu bastão e, cingida a cinta, a espada élfica Glamdring, companheira de Orcrist, que jazia agora no peito de Thorin, sob a Montanha Solitária.
Elrond fornecera a todos roupas grossas e quentes e tinham todos casacos e capas forrados de pele. As provisões alimentares, as roupas extra, os cobertores e outras coisas necessárias foram carregadas num pónei: nem mais nem menos do que o pobre animal que tinham trazido de Bree.
A estada em Rivendell operara nele uma modificação espantosa: tornara-se lustroso e parecia possuir o vigor da juventude. Fora Sam que insistira em escolhê-lo, alegando que Bill (como lhe chamava) definharia se não fosse com eles.
- Aquele animal quase que fala - afirmou -, e falaria mesmo se ficasse aqui mais tempo. Lançou-me um olhar tão claro como as palavras do Sr. Pippin: «Se não me levas contigo, Sam, vou atrás de ti sozinho.»
Por isso, Bill acompanhava-os como besta de carga, embora fosse o único membro do grupo que não parecia deprimido.
As despedidas tinham sido feitas no grande salão, junto da lareira, e naquele momento só estavam à espera de Gandalf, que ainda não saíra de casa. Das portas abertas saía um reflexo do lume e nas muitas janelas brilhavam luzes suaves. Bilbo, embrulhado numa capa, estava silencioso ao lado de Frodo, no degrau. Aragorn estava sentado, com a cabeça pendente para os joelhos; só Elrond
sabia exactamente o que significava para ele aquela hora. Os outros distinguiam-se como sombras cinzentas na escuridão.
Sam, de pé junto do pónei, sorvia o ar e fitava melancolicamente a mancha negra onde o rio rugia, pedregoso, em baixo. O seu desejo de aventura nunca atingira um nível tão baixo.
- Bill, meu rapaz - disse ao pónei -, não te devias ter juntado a nós. Devias ficar aqui, a comer o melhor dos fenos até a erva nova nascer.
Bill agitou a cauda e não disse nada.
Sam ajeitou melhor a mochila que tinha às costas e, mentalmente passou em revista, inquieto, o que nela metera, ao mesmo tempo que perguntava a si próprio se teria esquecido alguma coisa. Levava o seu maior tesouro, o equipamento de cozinha; a caixinha de sal de que nunca se esquecia e que enchia sempre que tinha oportunidade; uma boa quantidade de erva-de-cachimbo («mas longe de ser, suficiente, aposto!»); pederneira e isca; meias de lã; roupa interior; vários pequenos objectos do amo, de que Frodo se esquecera e que ele guardara, para os apresentar triunfalmente quando fossem necessários... Passou em revista todas essas coisas.
- Corda! - murmurou. - Não levo corda! E ainda ontem à noite disseste para contigo: «Sam, que dizes a um bocado de corda? Vais precisar dela, se não a levares. » Precisarei, com certeza, mas paciência. Agora não a posso arranjar.
Nesse momento, Elrond saiu de casa com Gandalf e pediu ao grupo que se aproximasse:
- Estas são as minhas últimas palavras - disse, em voz baixa. - O portador do anel vai partir em demanda do Monte da Condenação. Só a ele se impõe uma responsabilidade: não atirar o anel fora, não o entregar a nenhum servidor do Inimigo e não deixar ninguém tocar-lhe, a não serem membros do grupo e do Conselho, e mesmo esses só em circunstâncias de extrema necessidade. Os outros vão com ele livremente, como companheiros, para o ajudarem no caminho. Podem demorar-se, voltar para trás ou seguir por outros caminhos, como o acaso permitir. Quanto mais longe forem, menos fácil será retrocederem. No entanto, não se lhes exige nenhum juramento nem se lhes impõe nenhuma obrigação de irem mais longe do que quiserem, pois ainda desconhecem a força dos seus corações e não podem prever o que cada um encontrará no caminho.
- Desleal é aquele que se despede quando a estrada escurece - observou Gimli.
- Talvez - admitiu Elrond. - Mas não jure caminhar no escuro aquele que não viu cair a noite.
- Todavia, a palavra jurada pode fortalecer o coração hesitante - insistiu Gimli.
- Ou despedaçá-lo - replicou Elrond. - Não queiram prever demasiado! Mas partam agora de coração decidido! Adeus, e que as bênçãos dos Elfos e dos Homens, e de todos os Povos Livres, os acompanhem! Que as estrelas lhes brilhem nos rostos!
- Fe... felicidades! - exclamou Bilbo, a tremer de frio. - Não creio que possas escrever um diário, Frodo, meu filho, mas espero um relato completo de tudo, quando voltares. E não te demores muito! Até à volta!
Muitos outros da casa de Elrond se encontravam na sombra, a vê-los partir e a desejar-lhes boa viagem, em voz suave. Não se ouviam risos, nem canções, nem música. Por fim, os membros do grupo voltaram-se e desapareceram silenciosamente na escuridão.
Atravessaram a ponte e subiram lentamente os longos, íngremes e sinuosos caminhos que saíam do vale de Rivendell. Por fim chegaram à charneca alta, onde o vento assobiava entre a urze. Depois de um derradeiro olhar à última Casa Acolhedora, cuja luz brilhava em baixo, continuaram a caminhada, pela noite fora.
No vau de Bruinen saíram da Estrada, viraram para sul e seguiram por carreiros
estreitos entre as terras acidentadas. O seu objectivo era manterem esse caminho, a oeste das Montanhas, durante muitos quilómetros e muitos dias. A região era muito mais acidentada e árida do que o vale verde do Grande Rio, na Terra Erma, do outro lado da serrania, e o seu avanço seria, por isso, lento; mas eles esperavam escapar assim à vista de olhos hostis. Os espiões de Sauron raramente tinham sido vistos naquela região desértica, cujos caminhos eram pouco conhecidos, a não ser dos habitantes de Rivendell.
Gandalf ia à frente, acompanhado de Aragorn, que conhecia aquela terra mesmo às escuras. Os outros seguiam-no, em fila, e Legolas, cujos olhos eram penetrantes, fechava a marcha. A primeira parte da viagem foi difícil e monótona e na mente de Frodo pouco ficou gravado dela, a não ser o vento. Durante muitos dias sem sol sopraram das montanhas de leste rajadas geladas, e parecera não haver roupa que vedasse a entrada aos seus dedos ávidos. Embora estivessem bem agasalhados, os membros do grupo raramente se sentiam quentes, quer em movimento, quer em repouso. Dormiam agitadamente no meio do dia, em qualquer cavidade da terra ou escondidos sob os emaranhados arbustos espinhosos que cresciam em moitas, em muitos lugares. Ao fim da tarde, o vigilante acordava-os e tomavam a refeição principal - geralmente fria e pouco apetitosa, pois era raro arriscarem-se a acender lume. À noitinha reatavam a viagem, sempre o mais para sul que conseguiam.
Ao princípio, os hobbits tiveram a impressão de que, embora caminhassem e tropeçassem até ficarem extenuados, avançavam como lesmas e nunca mais chegavam a lado nenhum. Todos os dias a terra parecia praticamente igual ao que fora na véspera. No entanto, as montanhas iam-se aproximando, firmemente. A sul de Rivendell subiram ainda mais e viraram para oeste, e no sopé da cordilheira principal deparou-se-lhes uma região ainda mais vasta de montes inóspitos e vales fundos cheios de águas turbulentas. Os caminhos eram poucos e sinuosos e frequentemente levavam-nos apenas à beira de algum precipício abrupto ou a pântanos traiçoeiros.
Viajavam havia quinze dias quando o tempo mudou. O vento amainou, de súbito, e depois rondou para sul. As nuvens velozes subiram e desfizeram-se, e o Sol mostrou-se, pálido e luminoso. Nasceu uma alvorada clara e fria, ao fim de uma longa e extenuante marcha nocturna. Os viajantes chegaram a uma cordilheira baixa coroada Dor velhos azevinhos cujos troncos verde-acinzentados pareciam ter sido talhados na própria rocha dos montes. As folhas escuras luziam e as bagas vermelhas brilhavam à luz do Sol nascente.
Frodo distinguiu, a sul, as formas vagas de altas montanhas que pareciam agora atravessar-se no caminho que o grupo seguia. À esquerda dessa alta cordilheira erguiam-se três picos: o mais alto e mais próximo parecia um dente coroado de neve; a sua grande, nua e íngreme vertente setentrional ainda estava em grande parte mergulhada em sombras, mas nos pontos onde os raios do sol incidiam obliquamente viam-se reflexos vermelhos.
Gandalf parou ao lado de Frodo e olhou, com a mão em pala.
- Andámos bem - observou. - Chegámos às fronteiras do país a que os Homens chamam Hollin; muitos elfos viveram aqui em tempos mais felizes, quando se chamava Eregion. Percorremos trinta e cinco léguas em linha recta, embora os nossos pés tenham palmilhado muitos mais quilómetros. Doravante, a terra e o tempo serão mais amenos, mas talvez, também, mais perigosos.
- Perigoso ou não, um verdadeiro nascer do Sol é um regalo! - exclamou Frodo, ao mesmo tempo que atirava o capuz para trás e deixava a luz da manhã banhar-lhe o rosto.
- Mas as montanhas estão à nossa frente - observou Pippin. - Devemos ter virado para leste, durante a noite.
- Não virámos nada - respondeu Gandalf. - O que acontece é que a vista alcança uma distância maior, quando a luz é clara. Atrás daqueles picos, a cordilheira vira para sudoeste. Há muitos mapas na casa de Elrond, mas suponho que nunca pensaste consultá-los ... ?
- Consultei, sim, algumas vezes. Mas já não me lembro. Frodo tem melhor cabeça para esse género de coisas.
- Eu não preciso de mapa nenhum - disse Gimli, que subira com Legolas e olhava em frente, com um estranho brilho nos olhos encovados. - Aquela é a terra onde os nossos antepassados trabalharam, em tempos idos, e nós temos gravado a imagem daquelas montanhas em muitos objectos de metal e pedra... e em muitas canções e histórias. Erguem-se muito alto nos nossos sonhos: Baraz, Zirak e Shatûr.
»Só as tinha visto uma vez, de longe, na vida real, mas conheço-as e aos seus nomes, pois debaixo delas fica Khaza-dúm, o Dwarrowdelf, a que chamam agora Cova Preta: Mória, na língua élfica. Além ergue-se Barazinbar, o Corno Vermelho, o cruel Caradhras; e a seguir ficam Prateada e Cabeça Prateada: Celebdil, a Branca, e Fanuidhol, a Cinzenta, a que nós chamamos Zirakzigil e Bundushatûr.
»Ali dividem-se as Montanhas Nebulosas, entre cujos braços fica o vale sombrio que não podemos esquecer: Azanulbizar, o vale do Regato Sombrio, a que os Elfos chamam Nanduhirion.»
- É para o vale do Regato Sombrio que seguimos - disse Gandalf. - Se subirmos a passagem chamada Porta do Corno Vermelho, sob o lado mais distante de Caradhras, desceremos pela Escada do Regato Sombrio ao fundo vale dos Anões. É aí que fica o Lago do Espelho, onde o rio Filão de Prata tem as suas nascentes geladas.
- Escura é a água do Kheled-zâram. - disse Gimli - e frias são as nascentes do Kibil-nâla! O meu coração estremece quando penso que posso vê-los em breve.
- Que o espectáculo te dê alegria, meu bom anão! - desejou Gandalf - Mas, sintas o que sentires, nós, pelo menos, não podemos demorar-nos no vale. Temos de descer o Filão de Prata até às florestas secretas, e daí ao Grande Rio, e depois...
Calou-se.
- Sim, e depois? - perguntou Merry.
- Depois, até ao fim da viagem... no fim - respondeu Gandalf. - Não podemos prever com muita antecedência. Congratulemo-nos pelo facto de termos concluído a primeira etapa em segurança. Creio que descansaremos aqui, não só durante o dia de hoje, mas também esta noite. Respira-se em Hollin um ar salutar. Um país tem de ser vítima de muito mal antes de esquecer por completo os Elfos, se alguma vez eles o habitaram.
- Isso é verdade - concordou Legolas. - Mas os Elfos desta terra eram de uma raça diferente da nossa, que somos gente da floresta, e agora as árvores e a erva não se lembram deles. Só as pedras ouço lamentá-los: Profundamente nos escavaram, com beleza nos esculpiram, altas nos construíram; mas partiram. Partiram. Procuraram os Portos, há muito tempo.
Nessa manhã acenderam uma fogueira num buraco fundo, coberto por grandes maciços de azevinho, e o seu jantar-pequeno-almoço foi o mais alegre desde que tinham partido. Não se apressaram a deitar-se, depois, visto esperarem dispor de toda a noite para dormirem e só tencionarem reatar a viagem ao anoitecer do dia seguinte. Aragorn era o único que se mostrava calado e inquieto. A certa altura deixou o grupo e afastou-se, na direcção da cordilheira. Parou à sombra de uma árvore, a olhar para sul e oeste, com a cabeça inclinada como se escutasse. Depois voltou à orla do valezinho e olhou para baixo, para os outros, que riam e conversavam.
- Que é, Passo de Gigante? - perguntou-lhe Merry. - Que Procura? Sente a falta do vento leste?
- Confesso que não, mas falta realmente qualquer coisa. Estive no País de Hollin em muitas estações. Agora não vivem aqui pessoas, mas sempre aqui viveram muitas outras criaturas, em todas as épocas, sobretudo aves. No entanto, desta vez está tudo silencioso, tudo, menos vocês. Sinto-o. Não há nenhum som num raio de quilómetros à nossa volta, e as vossas vozes parecem fazer ecoar o chão. Não compreendo.
Gandalf levantou a cabeça, com súbito interesse.
- Qual calcula que seja a razão? - perguntou. - Haverá mais nesse silêncio do que a surpresa de ver quatro hobbits, para não falar dos restantes membros do grupo, onde raramente se vê ou ouve gente?
- Oxalá fosse isso - respondeu Aragorn. - Mas sinto em mim um sentido de vigilância, e de medo, que nunca experimentei aqui.
- Então devemos ser mais cuidadosos - decidiu Gandalf. - Quando viajamos com um caminhante, devemos prestar-lhe atenção, especialmente se o caminhante é Aragorn. Temos, portanto, de deixar de falar alto, devemos descansar sossegadamente e montar guarda.
Naquele dia, a primeira guarda coube a Sam, mas Aragorn juntou-se-lhe. Os outros adormeceram. Então, o silêncio aumentou a tal ponto, que até Sam o sentiu. Ouvia-se perfeitamente a respiração dos que dormiam. O agitar da cauda do pónei e os movimentos ocasionais das suas patas tornaram-se sons altos. Sam ouvia as próprias articulações estalar, quando se mexia. Cercava-o um silêncio de morte e cobria-os a todos um céu azul-claro, à medida que o Sol subia, vindo de leste. Ao longe, a sul, apareceu uma mancha escura que aumentou e avançou para norte, como fumo soprado pelo vento.
- Que é aquilo, Passo de Gigante? Não parece uma nuvem - disse Sam, baixinho, a Aragorn.
O outro, que observava atentamente o céu, não respondeu. Mas o próprio Sam não tardou a poder ver o que se aproximava: bandos de aves, a voar a grande velocidade, descreviam círculos e voltas e iam atravessando a terra toda, como se procurassem qualquer coisa. E aproximavam-se implacavelmente.
- Estenda-se no chão e não se mexa! - disse Aragorn, num murmúrio sibilante, ao mesmo tempo que puxava Sam para baixo, para a sombra de azevinho, pois um regimento de aves separara-se de súbito da hoste principal e avançava a direito para a cordilheira, a voar baixo.
Sam julgou tratar-se de uma espécie de corvos grandes. Quando os sobrevoaram, numa massa tão compacta que a sombra as seguiu, escura, no solo, ouviu-se um crocito áspero.
Aragorn só se levantou quando as aves desapareceram ao longe, a norte e oeste, e o céu ficou de novo limpo. Então levantou-se de um pulo e foi acordar Gandalf.
- Regimentos de corvos pretos sobrevoam a terra toda, entre as Montanhas e o rio Cinzento - disse-lhe -, e passaram sobre Hollin. Não são nativas daqui; são crebain de Fangorn e da Dunlândia. Não sei que fazem; talvez haja qualquer complicação no Sul, da qual estejam a fugir... embora eu creia que andam a espiar a terra. Também vislumbrei muitos milhafres, a voar alto, no céu. Acho que devemos partir esta noite. Hollin já não é salutar para nós: está sob vigilância.
- Nesse caso, a Porta do Corno Vermelho também está - comentou Gandalf. - Não imagino como poderemos passá-la sem sermos vistos. Mas pensaremos nisso quando chegar a altura. Quanto a partirmos assim que escurecer, receio que tenha razão.
- Por sorte, o nosso lume fez pouco fumo e estava quase apagado quando os crebain passaram - disse Aragorn. - Tem de ser apagado e não pode ser reacendido.
- Mas que grandíssimo aborrecimento! - exclamou Pippin quando, ao acordar ao fim da tarde, lhe deram a notícia: não podiam acender o lume e tinham de partir de novo, à noite. - Tudo por causa de um bando de corvos! E eu que estava à espera de uma boa refeição para esta noite, qualquer coisa quente!
- Podes continuar à espera - redarguiu-lhe Gandalf. - É possível que ainda tenhas muitos banquetes, inesperados. Quanto a mim, gostaria de fumar um cachimbo tranquilamente e de ter os pés mais quentes. No entanto, há uma coisa de que podemos ter a certeza: a temperatura aumentará à medida que avançarmos para sul.
- Não me surpreenderia se aumentasse até de mais - disse Sam, baixinho, a Frodo. - Começo a pensar que já é tempo de vermos essa Montanha de Fogo e o fim da Estrada, por assim dizer. Ao princípio julguei que fosse aqui este Corno Vermelho, ou lá como se chama, até Gimli fazer o seu discurso. A língua dos Anões deve ser uma coisa de partir os queixos! - Os mapas não diziam nada à mente de Sam e, naquelas terras estranhas, todas as distâncias lhe pareciam tão imensas, que não estava ao seu alcance calculá-las.
O grupo permaneceu escondido durante todo esse dia. As aves negras passavam, de vez em quando, mas desapareceram, rumo ao Sul, quando o Sol começou a avermelhar no Poente. O grupo partiu ao crepúsculo e, virando um pouco para leste, seguiu na direcção de Caradhras, que ainda brilhava ao longe com um leve tom avermelhado, reflexo da derradeira luz do Sol já ausente. Uma a uma, estrelas brancas acenderam-se no céu que escurecia pouco a pouco.
Encontraram um bom caminho, guiados por Aragorn. Frodo julgou tratar-se das ruínas de uma estrada antiga, que em tempos fora larga e bem traçada, de Hollin à passagem da montanha. A Lua plena ergueu-se sobre as montanhas e emitiu uma luz pálida, sob a qual as sombras das pedras pareciam pretas. Muitas delas pareciam ter sido afeiçoadas por mãos, embora estivessem agora amontoadas e em ruínas numa terra agreste e árida.
Chegara a hora fria antes do primeiro brilho do alvorecer e a Lua esvaía-se. Frodo olhou para o céu. De súbito, viu ou sentiu uma sombra passar pelas estrelas altas, o que lhe deu a impressão de que elas se apagavam um instante e logo se reacendiam. Percorreu-o um calafrio.
- Viu alguma coisa passar lá em cima? - perguntou baixinho a Gandalf, que ia logo à sua frente.
- Não, mas senti, fosse o que fosse - respondeu o feiticeiro. - Talvez não tenha sido nada... um farrapo de nuvem.
- Se fosse isso, ia depressa e não era o vento que a levava - comentou Aragorn.
Nessa noite não aconteceu mais nada. A manhã seguinte alvoreceu ainda mais luminosa do que a anterior, mas o ar estava outra vez frio. O vento rondava de novo para leste. Continuaram a caminhar durante mais duas noites, sempre a subir, mas cada vez mais lentamente, à medida que o caminho contornava os montes e as montanhas se erguiam, sempre mais perto. Na terceira manhã, Caradhras surgiu-lhes à frente, um pico imponente coroado de neve que parecia prata, mas com os lados abruptos e nus, vermelho-escuros como se manchados de sangue.
O céu estava carregado e o sol fraco. Entretanto, o vento rondara para nordeste. Gandalf aspirou o ar e olhou para trás.
- O Inverno avança na nossa peugada - disse tranquilamente a Aragorn. - Os montes longínquos, a norte, estão mais brancos do que estavam; a neve desce-lhes pelas espaldas abaixo. Esta noite subiremos na direcção da Porta do Corno Vermelho. É muito possível que sejamos vistos por vigilantes naquele carreiro estreito e que nos saia algum mal ao caminho, mas o tempo pode tornar-se o pior de todos os inimigos. Que pensa agora do seu percurso, Aragorn?
Frodo ouviu as palavras do feiticeiro e compreendeu que Gandalf e Aragorn continuavam uma discussão que devia ter começado muito antes. Prestou atenção, inquieto.
_ Não penso nada de bom do nosso percurso, do princípio ao fim, como muito bem sabe, Gandalf - respondeu Aragorn.- Os perigos, conhecidos e desconhecidos, aumentarão à medida que avançarmos.
Mas temos de avançar, e não vale de nada adiar a passagem das montanhas. Mais para sul não existem passagens nenhumas até se chegar ao desfiladeiro de Rohan. Não confio nesse caminho, depois das notícias que nos deu de Saruman. Quem sabe que lado servem agora os comandantes militares dos senhores dos cavalos?
- Sim, quem sabe! Mas há outro caminho sem ser pela passagem de Caradhras: o caminho escuro e secreto de que falámos.
- Mas não voltemos a falar dele! Por enquanto. Peço-lhe que não diga nada aos outros, pelo menos até se tornar evidente que não existe outra alternativa.
- Devemos tomar uma decisão antes de avançarmos mais - insistiu Gandalf.
- Então estudemos bem o assunto na nossa mente, enquanto os outros descansam e dormem - propôs Aragorn.
Ao fim da tarde, enquanto os outros terminavam o pequeno-almoço, Gandalf e Aragorn afastaram-se juntos e pararam a olhar para Caradhras. Agora, as suas vertentes apresentavam-se escuras e sombrias e nuvens cinzentas envolviam-lhe a cabeça. Frodo observou-os e perguntou a si mesmo em que sentido decidiriam. Quando voltaram para junto do grupo, Gandalf falou-lhes, e ele ficou a saber que tinham decidido defrontar o mau tempo e a passagem da montanha. Sentiu-se aliviado. Não fazia ideia do que seria o outro caminho escuro e secreto, mas a sua simples menção parecera encher Aragorn de pavor, e por isso Frodo sentia-se grato por não ter sido escolhido.
- A julgar por sinais que temos visto ultimamente - disse Gandalf -, receio que a, Porta do Corno Vermelho possa estar vigiada. Além disso, tenho dúvidas a respeito do tempo que vem aí atrás de nós. Pode nevar. Temos de avançar com a velocidade de que formos capazes, e, mesmo assim, talvez precisemos de mais de duas etapas para chegarmos ao cimo da passagem. Hoje escurecerá cedo. Temos de partir assim que estiverem prontos, o mais depressa possível.
- Acrescentarei uma palavra de conselho se me permitem - disse Boromir. - Nasci à sombra das Montanhas Brancas é sei alguma coisa acerca de andanças por lugares altos. Encontraremos um frio de rachar, se não coisa pior, antes de descermos do outro lado. Não nos ajudará nada guardar segredo de que estamos mortalmente gelados. Quando sairmos daqui onde ainda há algumas árvores e alguns arbustos, cada um de nós deve levar um molho de lenha tão grande quanto puder.
- E o Bill também pode carregar mais um bocadinho. Não podes, rapaz? - perguntou Sam, e o pónei olhou tristemente para ele.
- Muito bem - concordou Gandalf. - Mas não devemos usar a lenha... a não ser que se trate de uma escolha entre acender lume e morrer.
O grupo pôs-se de novo em andamento, ao princípio com boa velocidade. Mas o caminho não tardou a tornar-se íngreme e difícil. O carreiro sinuoso e a subir quase desaparecera, em muitos pontos e estava cortado por muitas árvores caídas. A noite tornou-se terrivelmente escura, com o céu coberto por grandes nuvens. Entre as rochas soprava e turbilhonava um vento cortante. Cerca da meia-noite tinham subido pouco acima do sopé das montanhas. O carreiro estreito começara entretanto a serpentear sob uma parede de rochas a pique, à esquerda, acima da qual os sinistros flancos de Caradhras subiam, invisíveis na escuridão. À direita havia um abismo de trevas, com o solo a descer abruptamente para uma ravina funda.
Penosamente subiram uma encosta íngreme, em cujo topo pararam um momento. Frodo sentiu um contacto macio no rosto. Estendeu o braço e viu os flocos brancos da neve pousarem-lhe na manga.
Prosseguiram. Mas a neve não tardou a cair com uma abundância que enchia o ar todo. Os flocos turbilhonantes entravam nos olhos de Frodo. Os vultos escuros e curvados de Gandalf e Aragorn, que seguiam apenas um ou dois passos à frente, quase não se viam.
- Isto não me está a agradar nada - disse Sam, ofegante, logo atrás de Frodo. - A neve é uma coisa muito bonita, numa bela manhã, mas eu gosto de estar na cama quando ela cai. Gostaria que esta carrada caísse em Hobbiton. A gente de lá talvez gostasse.
A não ser nos pântanos altos do Farthing Setentrional, um grande nevão era coisa rara no Shire e, por isso, considerado um acontecimento agradável e uma oportunidade de brincadeira. Nenhum hobbit vivo (excepto Bilbo) se lembrava do Inverno Terrível de 1311, durante o qual lobos brancos tinham atravessado o Brandevinho gelado e invadido o Shire.
Gandalf parou. A neve formava uma camada espessa nos seus ombros e no seu capuz e, à roda das botas, já lhe chegava aos tornozelos.
- Era isto que eu temia - observou. - Que diz agora, Aragorn?
- Que eu temia o mesmo; mas, apesar disso, temia mais outras coisas. Tinha conhecimento do risco da neve, embora ela raramente caia abundantemente tão para sul, a não ser no alto das montanhas. Mas nós ainda não subimos muito, ainda estamos muito cá em baixo, onde os caminhos costumam estar transitáveis durante todo o Inverno.
- Pergunto a mim mesmo se isto será obra do Inimigo - disse Boromir. - Na minha terra dizem que ele é capaz de governar como lhe convém as tempestades das Montanhas da Sombra que se erguem nas fronteiras de Mordor. Tem estranhos poderes e muitos aliados.
- Não há dúvida de que o seu braço cresceu muito, se é capaz de buscar neve ao Norte para nos complicar a vida aqui, a trezentas léguas de distância - murmurou Gimli.
- O seu braço cresceu, de facto, muito - confirmou Gandalf.
Enquanto estiveram parados, o vento amainou e a neve diminuiu, quase até parar. Retomaram a marcha, mas, mal percorridos uns 200 m, a tempestade voltou, com fúria redobrada. O vento assobiava e a nevasca quase os cegava. A breve trecho, até Boromir achou difícil prosseguir. Os hobbits, quase dobrados ao meio, iam atrás dos seus companheiros mais altos, mas tornava-se evidente que não aguentariam muito mais, se a neve continuasse. Os pés de Frodo pesavam-lhe como chumbo. Pippin arrastava-se atrás e até Gimli, tão robusto quanto era possível a um anão, resmungava enquanto caminhava.
O grupo parou, de súbito, como se tivessem chegado a um acordo sem precisarem de dizer quaisquer palavras. Ouviam ruídos estranhos na escuridão que os cercava. Talvez se tratasse apenas de uma ilusão causada pelo vento nas fendas e nos buracos da parede rochosa, mas a verdade é que os sons lembravam gritos agudos e gargalhadas dementadas. Começaram a cair da encosta da montanha pedras que lhes assobiavam por cima da cabeça ou embatiam no carreiro, ao lado deles. De vez em quando ouviam um fragor surdo, como se estivessem a empurrar um grande pedregulho nas alturas ocultas, por cima deles.
- Não podemos avançar mais esta noite - disse Boromir. -Quem quiser dizer que estes ruídos são produzidos pelo vento, que diga; para mim são vozes malditas, no ar, e estas pedras são-nos destinadas.
- Eu digo que é o vento - declarou Aragorn. - Mas isso não significa que as suas palavras sejam mentira. Há no mundo muitas coisas más e hostis que têm pouca simpatia por aqueles que se apoiam em duas pernas, coisas essas que não estão conluiadas com Sauron, mas têm propósitos próprios. Algumas até estão neste mundo há mais tempo do que ele.
- Caradhras chamava-se a Cruel e tinha má fama e há já muitos anos - confirmou Gimli -, quando nestas terras ainda não se ouvia falar de Sauron.
- Pouco importa quem é o inimigo, se não podemos vencer o seu ataque - observou Gandalf.
- Mas que havemos de fazer? - perguntou desoladamente Pippin, que estava encostado a Merry e a Frodo e tremia de frio.
Parar onde estamos ou voltar para trás - respondeu-lhe
Gandalf - É inútil continuar a subir. Se a memória me não falha uma curta distância mais acima o caminho abandona o penhasco e envereda por uma depressão larga e baixa, ao fundo de uma longa e difícil ladeira. Aí não teríamos qualquer abrigo da neve, ou das pedras... ou fosse do que fosse.
- E também não vale a pena voltar atrás enquanto a tempestade não amainar - declarou Aragorn. - Na subida não passámos por nenhum lugar que oferecesse mais abrigo do que a parede deste penhasco sob a qual nos encontramos agora.
- Abrigo! - resmungou Sam. - Se isto é abrigo, uma parede sem telhado é uma casa.
O grupo juntou-se e encostou-se o mais possível ao penhasco. Este ficava voltado para sul e, perto da base, inclinava-se um bocadinho para fora, o que lhes deu a esperança de que lhes proporcionasse alguma protecção do vento norte, e das pedras que caíam. Mas rajadas redemoinhantes assobiavam à volta deles, por todos os lados, e a neve continuava a cair, em nuvens cada vez mais densas.
Aconchegaram-se uns aos outros, de costas contra a parede. Bill, o pónei, estava paciente, mas tristemente, parado diante dos hobbits e protegia-os um pouco. Mas a neve não tardou a ultrapassar-lhe os jarretes e continuou a subir. Se não tivessem companheiros mais altos do que eles, os hobbits não tardariam a ficar soterrados.
Invadiu Frodo uma grande sonolência e sentiu-se mergulhar muito depressa num sonho quente e vago. Pensou que uma fogueira lhe aquecia os dedos dos pés e ouviu, vinda das sombras do outro lado da lareira, a voz de Bilbo: Não tenho muita confiança no teu diário. Nevões em 12 de Janeiro. Não tinhas necessidade de voltar para trás, para comunicar isso!
Mas eu precisava de descansar e dormir, Bilbo, respondeu Frodo, com um grande esforço, e nesse momento sentiu-se sacudido e acordou penosamente. Boromir levantara-o do chão, de um ninho de neve.
- Isto vai ser a morte dos halflings, Gandalf - disse Boromir. - É inútil ficarmos aqui parados até a neve chegar acima das nossas cabeças. Temos de fazer qualquer coisa para nos salvarmos.
- Dê-lhes isto - respondeu Gandalf, enquanto remexia na sua mochila e tirava um frasco forrado de couro. - Só um golo para cada um de nós. É muito precioso. É miruvor, o cordial de Imladris. Foi Elrond que mo deu, à despedida. Vá passando pelos outros.
Assim que bebeu um golo do quente e fragrante licor, Frodo sentiu uma nova força de ânimo, e a pesada sonolência abandonou-lhe os membros. Os outros também se sentiram reconfortados e encontraram nova esperança e vigor. Mas a neve continuava a cair. Rodopiava à volta deles, agora mais densa do que nunca, e o vento também assobiava com mais força.
- Que dizem a acendermos uma fogueira? - perguntou, de súbito, Boromir. - Parece que está quase chegado, o momento de escolher entre o lume e a morte Gandalf. Quando a neve nos cobrir ficaremos, sem dúvida, ocultos de todos os olhos hostis, mas isso não nos ajudará.
- Pode acender uma fogueira, se quiser - respondeu-lhe o feiticeiro. - Se há alguns espiões capazes de suportar esta tempestade, então também são capazes de nos ver, com fogueira ou sem ela.
Mas, embora se tivessem munido de lenha e gravetos, a conselho de Boromir, ultrapassava a perícia de elfo ou até de anão acender uma chama que resistisse aos remoinhos de vento ou se propagasse ao combustível molhado. Por fim, relutantemente, Gandalf deu uma ajuda. Pegou num feixe de lenha, levantou-o bem alto, durante um momento, e, com uma ordem - naur an edraith amment -, meteu-lhe no meio a ponta do bastão. Acto contínuo, jorraram chamas azuis e verdes e a lenha ardeu e crepitou.
- Se está por aí alguém a espiar, então eu, pelo menos, já me revelei. Escrevi Gandalf está aqui em caracteres que toda a gente sabe ler de Rivendell à foz do Anduin.
Mas eles já não se importavam com espiões nem com olhos inamistosos. Rejubilaram quando viram a luz do fogo. A lenha ardia alegremente e, embora a neve rechinasse a toda a volta e se formassem poças de neve derretida e lama debaixo dos seus pés aqueceram gratamente as mãos nas chamas. Assim ficaram, inclinados, a formar um círculo à volta das pequenas labaredas crepitantes.
Brilhava-lhes nos rostos fatigados e ansiosos uma claridade vermelha e, atrás deles, a noite era como uma parede negra.
Mas a lenha ardia depressa e a neve continuava a cair.
Por fim, com a fogueira quase a extinguir-se, lançaram o último feixe.
- A noite está avançada - disse Aragorn. - O alvorecer não deve tardar.
- Se houver algum alvorecer capaz de penetrar através daquelas nuvens - comentou Gimli.
Boromir saiu do círculo e olhou para cima, para o negrume.
- A neve está a diminuir e o vento amainou - disse.
Frodo olhava, fatigado, para os flocos que continuavam a cair do negrume e se revelavam momentaneamente brancos à luz da fogueira moribunda. Durante muito tempo, porém, não viu quaisquer indícios de diminuição. Mas, de súbito, quando o sono o começava de novo a invadi-lo, apercebeu-se de que o vento amainara, de facto, e os flocos se estavam a tornar maiores e menos numerosos. Muito lentamente, começou a brilhar uma luz fraca e, por fim, a neve deixou por completo de cair.
À medida que aumentou, a luz revelou um mundo silencioso e amortalhado. Abaixo do seu refúgio havia corcovas, montículos e cavidades informes e brancas, sob as quais estava completamente e oculto o caminho por onde tinham vindo. Mas as alturas, em cima estavam encobertas por grandes nuvens, ainda pejadas com a ameaça de neve.
Gimli olhou para cima e abanou a cabeça.
- Caradhras não nos perdoou. Ainda tem mais neve para nos mandar, se prosseguirmos. Quanto mais depressa voltarmos para baixo, melhor.
Todos concordaram com isso, mas agora a retirada seria difícil. Poderia até ser impossível. A alguns passos, apenas, das cinzas da fogueira, a camada de neve subia acima da cabeça dos hobbits. Em certos pontos, o vento arrastara-a e empilhara-a contra o penhasco.
- Se Gandalf fosse à frente com uma chama forte, talvez abrisse um caminho para nós - observou Legolas; a tempestade incomodara-o pouco e era o único do grupo cujo coração continuava despreocupado.
- Se os Elfos voassem por cima das montanhas, poderiam ir buscar o Sol para nos salvar - replicou Gandalf - Mas preciso de ter qualquer coisa de que me sirva; não posso queimar neve.
- Bem, quando as cabeças não ajudam, talvez os corpos sirvam, como dizemos na nossa terra - sugeriu Boromir. - Os mais fortes de nós devem procurar um caminho. Olhem! Embora esteja tudo coberto de neve, o carreiro, quando subimos, virou mais ou menos ali em baixo, naquela saliência rochosa. Foi ali que a neve começou a dificultar-nos a vida. Se conseguíssemos chegar àquele ponto, talvez descobríssemos que depois era mais fácil. Creio que até lá são apenas duzentos metros.
- Vamos então forçar um caminho, nós dois! - decidiu Aragorn.
Aragorn era o mais alto do grupo, mas Boromir, pouco mais baixo do que ele, era de constituição mais alentada e mais pesada. Foi à frente, seguido por Aragorn. Avançaram devagar e, em breve, tiveram de recorrer a todas as suas forças. Em certos pontos a neve chegava à altura do peito e, não raro, Boromir parecia nadar ou escavar com os grandes braços, em vez de andar.
Legolas observou-os alguns momentos, a sorrir, e depois virou-se para os outros e disse:
- Os mais fortes devem procurar um caminho, não foi o que disseram? Mas eu digo: deixem o camponês manobrar o arado, mas escolham uma lontra para nadar e, para correr com leveza sobre erva ou folhas, ou sobre neve.. escolham um elfo.
E, sem dizer mais nada, saltou agilmente para a frente. Frodo reparou então pela primeira vez, embora o soubesse havia muito tempo, que o elfo não usava botas, e sim sapatos leves, como sempre. Os seus pés quase não deixavam marca na neve.
- Até à vista! - disse Legolas a Gandalf. - Vou buscar o Sol!
E, veloz como um corredor sobre areia firme, desatou a correr, ultrapassou os dois homens que se debatiam com a neve, acenou-lhes com as mãos e não tardou a desaparecer na curva da saliência rochosa.
Os restantes esperaram, aconchegados uns aos outros, até Boromir e Aragorn ficarem reduzidos a manchas negras na brancura da neve. Por fim deixaram também de se ver. O tempo arrastava-se. As nuvens desceram e recomeçaram a cair alguns flocos de neve.
Passou talvez uma hora, embora parecesse muito mais, até que, finalmente, viram Legolas voltar. Ao mesmo tempo, Boromir e Aragorn reapareceram na curva, muito atrás dele, e começaram a subir penosamente.
- Bem - gritou Legolas, enquanto corria -, não trouxe o Sol.
Anda a passear nos campos azuis do Sul e uma grinaldazinha de neve neste cabeço do Como Vermelho não o incomoda nada. Mas trouxe um raio de boa esperança para aqueles que estão condenados a andar a pé. A maior acumulação de neve arrastada pelo vento encontra-se logo a seguir à curva, e os nossos Homens Fortes quase lá ficaram sepultados. Desesperaram, coitados, até eu voltar e os informar de que a acumulação era pouco mais larga do que uma parede. Do outro lado, subitamente, a neve diminui e, mais abaixo, não é mais do que um fino cobertor para arrefecer os dedos dos pés de um hobbit.
- Ah, eu bem dizia! - exclamou Gimli. - Não se tratou de nenhuma tempestade de neve normal, e sim da má vontade de Caradhras. Não gosta de elfos nem de anões, e essa aglomeração de que falou destinou-se a cortar-nos a fuga.
- Felizmente, o seu Caradhras esqueceu-se de que estão homens com vocês - declarou Boromir, que chegou nesse momento. - E homens fortes, também, se me é permitido dizê-lo... embora neste momento talvez fizessem mais jeito homens mais fracos, mas com pás. Mesmo assim abrimos uma passagem através da acumulação de neve, na curva, coisa pela qual se devem sentir gratos todos aqueles que não podem correr tão lestos como os Elfos.
- Mas como vamos lá chegar, mesmo com a passagem aberta na acumulação de neve? - perguntou Pippin, que deu assim voz ao pensamento de todos os hobbits presentes.
- Tenham esperança! - respondeu Boromir. - Estou cansado mas ainda me resta alguma força. E a Aragorn também. Nós transportaremos a gente pequena. Os outros, certamente, saberão arranjar-se para nos seguir. Vamos, Mestre Peregrino! Começarei por si.
Levantou o hobbit e disse-lhe:
- Agarre-se ao meu pescoço, que precisarei dos braços livres.
Começou a avançar e Aragorn seguiu-o, com Merry. Pippin maravilhou-se com a força de Boromir, ao ver o caminho que ele já tinha aberto sem outra ferramenta além dos grandes membros. Mesmo naquele momento, e apesar de carregado, ia alargando a passagem para os que viriam atrás, afastando a neve à medida que andava.
Por fim chegaram à grande acumulação, que se atravessava no caminho da montanha como uma parede inesperada e abrupta, com o cume aguçado como se tivesse sido afeiçoado com facas. Tinha mais de duas vezes a altura de Boromir, mas no meio fora aberta uma passagem que subia e descia como uma ponte. Merry e Pippin foram depositados do lado oposto, onde esperaram, com Legolas, que os restantes chegassem.
Passado um bocado, Boromir voltou, a carregar Sam. Atrás dele, no caminho estreito, mas já bem batido, apareceu Gandalf a conduzir Bill, com Gimli empoleirado entre a bagagem. No fim, chegou Aragorn a carregar Frodo e transpuseram a passagem. Mas, mal Frodo pôs os pés no chão, ouviu-se como que um trovão, e veio por ali abaixo uma quantidade de pedras e neve solta. Os salpicos da neve deixaram meio cegos os membros do grupo, que se tinham encostado, encolhidos, ao penhasco. Quando o ar clareou de novo, verificaram, que o caminho estava bloqueado atrás deles.
- Basta, basta! - gritou Gimli. - Estamos a ir-nos embora o mais depressa que podemos!
Efectivamente, com aquela última demonstração, a maldade da montanha pareceu esgotar-se, como se Caradhras tivesse adquirido a certeza de que os invasores tinham sido expulsos e não se atreveriam a voltar. A ameaça da neve dissipou-se, as nuvens começaram a separar-se e a luz tornou-se mais forte.
Como Legolas dissera, verificaram que a neve formava uma camada cada vez menos espessa à medida que desciam, de modo que até os hobbits podiam seguir pelos seus meios. Pouco depois encontraram-se todos, de novo, na projecção rochosa plana do cimo da encosta íngreme onde tinham sentido cair os primeiros flocos de neve, na noite anterior.
A manhã já ia muito avançada. Daquele ponto alto olharam para trás, para ocidente, sobre as terras mais baixas. Muito ao longe, na zona agreste que ficava na base da montanha, distinguiram o valezinho por onde tinham começado a subir a passagem da montanha.
Frodo sentia as pernas doridas. Estava enregelado até aos ossos e esfomeado. A cabeça andou-lhe à roda só de pensar na longa e penosa marcha pela encosta abaixo. Viu pontos negros à frente dos olhos. Esfregou-os, mas os pontos permaneceram. Ao longe, por baixo dele, mas ainda muito alto sobre os contrafortes mais baixos, pontos escuros descreviam círculos no ar.
- Outra vez as aves! - exclamou Aragorn, a apontar para baixo.
- Contra isso não há agora nada a fazer - declarou Gandalf. - Quer sejam boas quer sejam más ou quer não tenham, mesmo, nada a ver connosco, temos de descer imediatamente. Não podemos esperar que caía outra noite, nem mesmo neste ponto da montanha. Soprou atrás deles um vento frio, quando viraram as costas à Porta do Corno Vermelho e começaram a descer a encosta, cansados e aos tropeções. Caradhras derrotara-os.
UMA CAMINHADA NAS TREVAS
Anoitecia, e a luz cinzenta esvaía-se de novo rapidamente, quando pararam, para passarem a noite. Estavam muito cansados. O crepúsculo denso velava as montanhas e soprava um vento frio. Gandalf distribuiu-lhes mais um golo de miruvor de Rivendell e, depois de comerem alguma coisa, convocou uma reunião.
- Claro que não podemos prosseguir esta noite - começou. - O ataque da Porta do Como Vermelho fatigou-nos, e temos de descansar aqui um bocado.
- E depois, para onde vamos? - perguntou Frodo.
- Continuamos a ter à nossa frente a nossa viagem e a nossa missão - respondeu Gandalf. - Não temos outro remédio que não seja prosseguir ou regressar a Rivendell.
O rosto de Pippin alegrou-se visivelmente com a simples menção do regresso a Rivendell; Merry e Sam levantaram a cabeça, esperançados. Mas Aragorn e Boromir mantiveram-se impassíveis. Frodo parecia perturbado.
- Quem me dera estar lá - murmurou. - Mas como poderei regressar sem desonra... a não ser que não exista, realmente, nenhum outro caminho e já estejamos derrotados?
- Tens razão, Frodo - concordou Gandalf. - Regressar e admitir a derrota e ter de enfrentar a derrota pior que virá. Se voltarmos agora para trás, o anel terá de lá ficar, pois não poderemos partir de novo. Então, mais cedo ou mais tarde, Rivendell será sitiada e, após breve e doloroso período, destruída. Os Espectros do Anel são inimigos cruéis, mas por enquanto não passam de sombras do poder e do terror que prossuirão se o Anel Soberano voltar à mão do seu senhor.
- Nesse caso, temos de prosseguir, se existe um caminho - disse Frodo, a suspirar.
Sam mergulhou numa apatia triste.
- Existe um caminho, que podemos tentar - confirmou Gandalf - Pensei desde o princípio, desde o primeiro momento em que considerei a possibilidade desta viagem, pensei, dizia que devíamos experimentá-lo. Não se trata, porém, de um caminho agradável e eu nunca falei dele ao grupo. Aragorn era contra ele, pelo menos enquanto não se tentasse a passagem das montanhas.
- Se é um caminho pior do que a Porta do Corno Vermelho, deve ser muito mau, mesmo - comentou Merry. Mas acho melhor que nos diga tudo, para ficarmos já a saber o pior.
- A estrada de que falo leva às minas de Mória.
Gimli foi o único que levantou a cabeça, com uma espécie de fogo amodorrado nos olhos. Todos os outros ficaram apavorados ao ouvir aquele nome, que até para os hobbits constituía uma legenda de vago terror.
- O caminho poderá conduzir a Mória, mas como poderemos ter esperança de que nos conduzirá através de Mória? - perguntou Aragorn, taciturno.
- É um nome de mau agouro - disse Boromir. - Tão-pouco vejo necessidade de lá ir. Se não podemos atravessar as montanhas, viajemos para sul, até chegarmos ao desfiladeiro de Rohan, onde os Homens são amigos do meu povo, pela mesma entrada de que eu percorri quando vim. Ou então podemos passar por lá e atravessar o Isen para Langstrand e Lebennin, de modo a chegarmos a Gondor pelas regiões próximas do mar.
- As coisas mudaram desde que viajou para norte, Boromir - lembrou-lhe Gandalf. - Não ouviu o que eu disse a respeito de Saruman? Com ele, poderei ajustar contas pessoais antes de tudo acabar; mas o anel não deve passar próximo de Isengard, se for possível, seja como for. O desfiladeiro de Rohan está fechado para nós enquanto acompanharmos o portador do anel.
»Quanto ao caminho mais longo, não temos tempo. Poderíamos levar um ano a fazer semelhante viagem e passaríamos por muitas terras desertas e desabrigadas, mas que nem mesmo assim seriam seguras. Tanto Saruman como o Inimigo têm os olhos vigilantes postos nelas. Quando viajou para norte, Boromir, não passou aos olhos do Inimigo de apenas um viajante desgarrado, vindo do Sul e com pouca importância para ele, cujo espírito estava absorto na perseguição do anel. Mas se regressasse agora como membro do grupo do anel, estaria em perigo enquanto permanecesse connosco. O perigo aumentará a cada légua que avançarmos para sul sob o céu nu.
»Desde a nossa tentativa na passagem da montanha, temo que a nossa luta se tenha tornado mais desesperada. Agora vejo pouca esperança de sermos bem sucedidos, a não ser que desapareçamos depressa, durante algum tempo, e apaguemos o nosso rasto. Por isso aconselho que não sigamos nem pelas montanhas nem à roda delas,
mas sim por baixo delas. Trata-se pelo menos do caminho que o inimigo menos esperará que tomemos.»
- Mas nós não sabemos o que ele espera- observou Boromir. - É possível que esteja a vigiar todos os caminhos prováveis e improváveis. Nesse caso, entrar em Mória seria penetrar numa armadilha pouco menos perigosa do que bater às portas da própria Torre Negra. O nome de Mória é negro.
- Fala do que não sabe, quando compara Mória à fortaleza de Sauron - redarguiu Gandalf. - De todos, sou o único que já esteve nas masmorras do Senhor das Trevas, e mesmo assim só na sua mansão mais antiga e menos importante de Dol Guldur. Aqueles que transpõem as portas de Barad-dûr não regressam. Eu, porém, não os conduziria a Mória se não houvesse esperança nenhuma de sair de lá. É verdade que, se lá estiverem orcs, isso poderá ser mau para nós. Mas a maioria dos orcs das Montanhas Nebulosas foram desbaratados ou destruídos na Batalha dos Cinco Exércitos. As Águias informaram que se está a fazer nova concentração de orcs vindos de longe, mas existe a esperança de que Mória ainda esteja livre.
Existe até a probabilidade de lá se encontrarem anões e de encontrarmos, em qualquer funda câmara dos seus antepassados, Balin, filho de Fundin. Seja qual for o resultado, porém, temos de trilhar o caminho que a necessidade impõe!»
- Eu trilharei esse caminho consigo, Gandalf! - afirmou Gimli.
Irei e verei as câmaras de Durin, seja o que for que lá nos possa esperar... se conseguir encontrar as portas que estão fechadas, Gandalf.
- Muito bem, Gimli! - exclamou o feiticeiro. - Encoraja-me. Procuraremos juntos as portas ocultas. E havemos de passar! Nas runas dos Anões, uma cabeça de anão será mais difícil de confundir do que as de elfos, homens ou hobbits. Mas não será a primeira vez que estarei em Mória. Procurei lá, durante muito tempo, Thráin, filho de Thrór, depois de ele desaparecer. Entrei, atravessei-a e saí vivo.
- Eu também transpus uma vez a Porta do Regato Sombrio - disse Aragorn, serenamente; mas, embora tenha igualmente saído vivo, a recordação continua a ser muito má. Não desejo entrar em Mória uma segunda vez.
- E, eu não desejo entrar nenhuma! - afirmou Pippin.
- Nem eu - resmungou Sam.
- Claro que não! - concordou Gandalf. - Quem desejaria semelhante coisa? Mas a questão é: quem me acompanhará se eu lá os conduzir?
- Eu! - respondeu imediatamente Gimli.
- Eu - disse também Aragorn, sombriamente. - Você seguiu-me na neve, quase até à catástrofe, e não proferiu uma única palavra de censura. Agora segui-lo-ei eu... se esta última advertência o não demover. Não é no anel nem em nós que estou agora a pensar: é em si, Gandalf! E recomendo-lhe: se transpuser as portas de Mória, acautele-se!
- Eu não irei - declarou Boromir. - A não ser que o voto de todo o grupo seja contra mim. Que dizem Legolas e a gente pequena? Devemos ouvir, certamente, a voz do portador do anel, não?
- Eu não desejo ir a Mória - disse Legolas.
Os hobbits permaneceram calados. Sam olhou para Frodo, que falou, finalmente:
- Eu não desejo ir, mas também não desejo recusar o conselho de Gandalf. Peço que não se proceda a nenhuma votação enquanto não dormirmos. Gandalf obterá votos mais facilmente à luz da manhã do que nesta escuridão fria. Como o vento uiva!
Perante tais palavras, ficaram todos pensativos e silenciosos. Ouviam o vento a assobiar entre as árvores e as rochas, assim como uma espécie de uivo e lamento em seu redor, nos espaços vazios da noite.
De súbito, Aragorn levantou-se, de repelão.
- Como o vento uiva! - gritou. - Está a uivar com vozes de lobos. Os Wargs vieram para oeste das Montanhas!
- Nesse caso, precisamos de esperar até de manhã? - perguntou Gandalf. - Como eu disse, a caçada começou. Mesmo que sobrevivamos até ao alvorecer, quem desejará agora viajar para sul, de noite e com lobos selvagens no encalço?
- A que distância fica Mória? - perguntou Boromir.
- Havia uma porta a sudoeste de Caradhras, uns vinte e cinco quilómetros como o corvo voa... em linha recta... e talvez uns trinta e poucos como o lobo corre - respondeu Gandalf, soturnamente.
- Nesse caso partamos assim que houver luz, de manhã, se pudermos - sugeriu Boromir. - O lobo que ouvimos é pior do que o orc que receamos.
- Sem dúvida! - concordou Aragorn, ao mesmo tempo que soltava a espada da bainha. - Mas onde o warg uiva ronda também o orc.
- Estou arrependido de não ter seguido o conselho de Elrond - disse Pippin, baixinho, a Sam. - Afinal não presto. Não há em mim características bastantes da raça de Bandobras, o Touro Bramidor: aqueles uivos gelam-me o sangue. Não me lembro de alguma vez me ter sentido tão mal.
- O meu coração também me caiu aos pés, Sr. Pippin - respondeu Sam. - Mas ainda nos não comeram e estão aqui connosco alguns indivíduos fortes e tesos. Seja qual for a sorte que está reservada ao velho Gandalf, aposto que não é a barriga de um lobo.
Para se defenderem, durante a noite, os membros do grupo subiram ao cume do cabeço sob o qual se tinham abrigado. Coroava-o um maciço de árvores velhas e torcidas, à volta das quais havia um círculo quebrado de grandes pedras. Acenderam uma fogueira no meio do círculo, pois não havia a mínima esperança de que a escuridão e o silêncio evitassem que as alcateias caçadoras lhes descobrissem o rasto.
Sentaram-se à roda da fogueira e os que não estavam de guarda dormitaram, intranquilos. O pobre do Bill, coitado, tremia e suava, parado. Os uivos dos lobos ouviam-se agora a toda a volta, ora mais perto, ora mais longe. Na calada da noite, muitos olhos brilhantes espreitaram por cima da orla do cabeço. Alguns avançaram quase até ao círculo de pedras. Numa das aberturas do círculo surgiu, imóvel, a olhá-los, o vulto escuro de um grande lobo. Emitiu um uivo arrepiante, como se fosse um comandante a chamar a sua tropa para o ataque.
Gandalf levantou-se e avançou, de bastão erguido.
- Ouve, sabujo de Sauron, Gandalf está aqui! - gritou. - Foge, se prezas a pele imunda! Estorrico-te da cauda ao focinho, se entras neste círculo.
O lobo rosnou e lançou-se na direcção deles, com um grande salto. No mesmo instante ouviu-se uma vibração forte: Legolas esticara o arco. Soou um grito horrível, e o vulto que saltava baqueou. A flecha élfica atravessara-lhe a garganta. Os olhos que os tinham espreitado extinguiram-se instantaneamente. Gandalf e Aragorn avançaram, mas o monte estava deserto; as alcateias caçadoras haviam partido. Em redor deles, a escuridão tornou-se silenciosa e ao murmúrio do vento deixou de se misturar qualquer grito.
A noite ia adiantada e, a oeste, a Lua em fase minguante descia, a brilhar espasmodicamente através das nuvens que se iam separando umas das outras. De súbito, Frodo acordou, sobressaltado. Sem qualquer aviso, soou à volta do acampamento uma tempestade de uivos assanhados e ferozes. Uma grande hoste de wargs reunira-se silenciosamente e preparava-se para os atacar por todos os lados, simultaneamente.
- Atirem combustível para o lume! - gritou Gandalf aos hobbits. - Desembainhem as espadas e coloquem-se costas com costas!
À luz das labaredas produzidas nela nova lenha lançada à fogueira, Frodo viu muitos vultos cinzentos saltarem por cima do círculo de pedras. Seguiram-se mais e mais. Aragorn cravou a espada, com ímpeto, na garganta de um grande lobo-chefe; com um movimento veloz, Boromir decepou a cabeça a outro. Ao lado deles, com as robustas pernas afastadas, Gimli brandia o seu machado de anão. O arco de Legolas parecia cantar, de tanto vibrar.
De súbito, Gandalf pareceu tornar-se maior, à luz trémula da fogueira: ergue-se, imponente e ameaçador como o monumento de pedra de algum rei antigo, num monte. Depois inclinou-se, pegou num ramo aceso e avançou ao encontro dos lobos, que recuaram. Gandalf atirou muito alto o ramo incandescente, que brilhou de repente com uma incandescência branca, como um relâmpago. Depois ouviu-se a voz do feiticeiro troar como um trovão:
- Naua an edraith ammen! Naur dan i ngaurhoth!
Ouviu-se um estrondo e uma crepitação, e a árvore, por cima do feiticeiro, explodiu numa flor de chama ofuscante. O fogo saltou de copa de árvore em copa de árvore, até todo o monte ficar coroado de luz que cegava. As espadas e as facas dos defensores brilhavam e refulgiam. A última seta de Legolas incendiou-se no ar, em voo, e mergulhou em brasa no coração de um grande lobo-comandante. Todos os outros fugiram.
Lentamente, o fogo apagou-se até ficarem só cinzas a cair e centelhas. Um fumo acre subia, em espiral, dos cotos das árvores incendiadas e afastou-se, escuro, do monte, quando a primeira luz da manhã brilhou fracamente no céu. Os inimigos tinham sido derrotados e não voltariam.
- Que lhe disse eu, Sr. Pippin? - perguntou Sam, enquanto embainhava a espada. - Os lobos não o apanharão. Foi um espectáculo de truz! Quase me chamuscou o cabelo!
Quando a luz da manhã brilhou em toda a plenitude, não viram sinais dos lobos e procuraram em vão os corpos dos mortos. Os únicos vestígios da luta travada eram as árvores calcinadas e as setas de Legolas caídas no cume do cabeço. Estavam todas intactas, excepto uma de que só restava a ponta.
- Era o que eu receava - disse Gandalf. - Não se tratou de lobos comuns, à procura de comida num lugar deserto. Comam depressa e partamos.
Nesse dia, o tempo mudou de novo, quase como se obedecesse a ordens de qualquer poder para o qual a neve já não tinha nenhuma utilidade, visto eles terem abandonado a passagem da montanha, um poder que precisava agora de claridade, para que as coisas que se movessem no solo pudessem ser vistas de longe. O vento que rondara de norte para noroeste, durante a noite, amainou. As nuvens desapareceram, levadas para sul, e o céu ficou limpo, alto e azul. Quando o grupo parou na encosta do monte, pronto para partir, um sol pálido iluminou os cumes das montanhas.
- Temos de chegar às portas antes do pôr do Sol, pois de contrário receio que nunca as alcançaremos - disse Gandalf. - Não é longe mas o nosso caminho pode ser sinuoso, uma vez que Aragorn não nos saberá guiar. Ele raramente passou por esta região e, quanto a mim só uma única ocasião me encontrei à sombra da muralha ocidental de Mória, mas foi há muito tempo. É para ali - indicou, a apontar para sueste, na direcção onde as vertentes das montanhas desciam abruptamente para as sombras, a seus pés. Ao longe, distinguia-se vagamente uma série de penhascos nus e, no meio deles, mais alta do que o restante, uma grande muralha cinzenta. - Quando saímos da passagem da montanha conduzi-os na direcção sul e não de regresso ao nosso ponto de partida, como alguns talvez tenham notado. Ainda bem que o fiz, pois agora temos de percorrer menos uns tantos quilómetros, e bem precisamos de nos apressar. Vamos!
- Não sei o que deva desejar: que Gandalf encontre o que procura ou que, quando chegarmos ao penhasco, verifiquemos que as portas se perderam para sempre - observou Boromir, tristemente. - Qualquer escolha me parece má, e o mais provável é que sejamos apanhados entre os lobos e a muralha. Conduza-nos!
Gimli caminhava à frente, ao lado do feiticeiro, tão ansioso estava por chegar a Mória. Juntos conduziam de novo o grupo na direcção das montanhas. A única estrada antiga do Ocidente para Mória seguira ao longo do curso de um rio, o Sirannon, que partia da base dos penhascos, perto do local onde se tinham erguido as portas. Mas, ou Gandalf se perdera, ou a disposição do terreno se modificara em anos recentes, pois ele encontrou o rio não onde esperara, mas sim alguns quilómetros para sul, a partir do ponto onde tinham iniciado a marcha.
A manhã aproximava-se do meio-dia e o grupo continuava a percorrer, hesitante e aos tropeções, uma região árida, de pedras vermelhas. Em parte alguma vislumbravam um brilhar de água ou ouviam som dela. Era tudo ermo e seco. Os corações desfaleceram. Não viam nenhum ser vivo, nem sequer uma ave no céu, mas o que a noite traria, se os surpreendesse naquela terra perdida, era coisa em que nenhum deles desejava pensar.
De súbito, Gimli, que se distanciara, virou-se e chamou-os. Estava no cimo de um cabeço e apontava para a direita. Os outros apressaram-se e viram, em baixo, um canal fundo e estreito. Estava vazio e silencioso e praticamente não corria nem um fio de água entre as pedras manchadas de castanho e vermelho do seu leito; mas do lado mais próximo havia um caminho em muito mau estado, que vagueava pelo meio dos muros em ruínas e das pedras do pavimento de uma estrada antiga.
- Cá está ele, finalmente!- exclamou Gandalf. - É aqui que corre o regato: Sirannon, o Regato da Porta, como lhe chamavam. Não faço, porém, ideia do que terá acontecido à água, que costumava correr veloz e ruidosa. Venham, temos de nos apressar. Estamos atrasados.
Os viajantes estavam cansados é tinham os pés doridos, mas, ao longo de muitos quilómetros, continuaram a palmilhar obstinadamente o caminho sinuoso e irregular. Ao meio-dia o Sol iniciou a viagem para ocidente. Depois de uma breve paragem e uma refeição apressada, prosseguiram. À frente deles, as montanhas franziam o cenho, mas, como o caminho seguia por uma vala funda, eles só lhes viam os contrafortes mais altos e os distantes picos do lado leste.
Por fim chegaram a uma curva pronunciada. A estrada, que até ali fora virando para sul entre a margem do canal e uma ladeira íngreme, do lado esquerdo, virou e seguiu de novo para leste. Quando contornaram a curva, deparou-se-lhes um penhasco baixo, com umas cinco braças de altura e um topo irregular e denteado. Por ele corria um fio de água, através de uma fenda larga, que parecia ter sido escavada por uma queda de água outrora abundante e forte.
- Não restam dúvidas de que as coisas mudaram! - exclamou Gandalf. - Mas não há engano possível quanto ao lugar. Isto é tudo quanto resta da Catarata da Escada. Se a memória me não atraiçoa, havia um lanço de degraus cortados na rocha, ao lado da catarata, mas a estrada principal seguia para a esquerda, e subia, com várias voltas, até ao terreno plano lá de cima. Costumava haver um vale pouco fundo a seguir à catarata e que ia direita às Muralhas de Mória, e o Sirannon corria por ela fora, com a estrada ao lado. Vamos ver como estão agora as coisas.
Encontraram os degraus de pedra sem dificuldade e Gimli subiu-os rapidamente, seguido por Gandalf e Frodo. Quando chegaram ao cimo, verificaram que não podiam avançar mais por esse lado e revelou-se-lhes a razão por que o Regato da Porta secara. Atrás deles, Sol no Poente enchia o frio céu ocidental de ouro cintilante. À sua frente estendia-se um lago escuro e parado, em cuja superfície carrancuda se não reflectiam nem o céu nem o Poente. O Sirannon tinha sido represado e enchia o vale todo. Para lá da água ominosa erguiam-se grandes penhascos cujas faces pareciam severas e pálidas à luz esvaecente: definitivamente inexpugnáveis. Frodo não conseguiu descobrir na pedra carrancuda o mínimo sinal de porta ou entrada, sequer uma fissura ou uma fenda.
- Lá estão as Muralhas de Mória - disse Gandalf, a apontar através da água. - E ali se ergueu a porta em tempos idos, a Porta Elfica, no fim da estrada de Hollin, pela qual viemos. Mas este caminho está bloqueado. Suponho que nenhum membro do grupo deseja atravessar a nado esta água sinistra, ao fim do dia ... ? Tem um aspecto insalubre.
- Temos de descobrir um caminho à volta do lado norte - sugeriu Gimli. - A primeira coisa que o grupo deve fazer é subir pelo caminho principal e ver aonde nos leva. Mesmo que não houvesse o lago, não conseguiríamos que o pónei da bagagem subisse esta escada.
- De qualquer modo, não podemos levar o pobre animal para dentro das minas - observou Gandalf. - A estrada debaixo das montanhas é escura e tem extensões estreitas e íngremes que ele não poderá passar, mesmo que nós possamos.
- Coitado do velho Bill! - exclamou Frodo. - Não tinha pensado nisso. E coitado do Sam, também. Que irá ele dizer?
- Tenho pena - confessou Gandalf - O Bill tem sido um companheiro útil e contraria o meu coração abandoná-lo agora. Se tivesse feito a minha vontade, teríamos viajado mais leves e sem trazer nenhum animal, e muito menos este, de que o Sam tanto gosta. Receei desde o princípio que seríamos obrigados a ir por aqui.
O dia aproximava-se do termo e brilhavam estrelas frias no céu muito alto, por cima do crepúsculo, quando o grupo, com toda a velocidade de que era capaz, trepou pelas encostas e chegou à margem do lago. No sentido da largura não parecia ter mais de 400 m a 600 m no ponto mais largo. Até onde se estendia para sul, porém, era-lhes impossível ver, àquela luz; mas o seu lado norte não tinha mais de 800 m, a partir do ponto onde se encontravam, e entre os espinhaços pedregosos que fechavam o vale e a beira-d'água havia uma faixa de terreno. Reataram apressadamente a marcha, pois ainda tinham de percorrer 2 km ou 3 km antes de chegarem ao ponto da margem oposta que Gandalf tinha em vista. E, depois disso, o feiticeiro ainda teria de encontrar as portas.
Quando chegaram ao extremo mais setentrional do lago deparou-se-lhes uma enseada estreita, que lhes barrou o caminho. A água era verde e estagnada e estendia-se como um braço viscoso na direcção dos montes circundantes. Gimli avançou, destemido, e verificou que, na beira, a água era pouco funda: chegava, se tanto, aos tornozelos. Seguiram atrás dele, em fila, a escolher o caminho com cuidado, pois debaixo das poças cheias de vegetação havia pedras escorregadias e o piso era traiçoeiro. Frodo estremeceu, repugnado, ao sentir o contacto da água escura e estagnada com os seus pés.
Quando Sam, o último do grupo, conduzia Bill para terreno seco, do lado oposto, ouviu-se um ruído suave, uma espécie de silvo seguido por um plop!, como se um peixe tivesse perturbado a superfície parada da água. Viraram-se todos rapidamente e viram pequenas ondas, orladas de sombra negra: grandes anéis que alargavam para o exterior, de um ponto distante do lago. Ouviu-se uma espécie de borbulhar e depois, voltou o silêncio. O crepúsculo adensou-se e nuvens velaram as últimas cintilações do Poente.
Gandalf estugou muito o passo e os outros seguiram-no o mais depressa que puderam. Chegaram à faixa de terra seca entre o lago e os penhascos: era estreita, nalguns pontos mal chegando a 12 m de largura, e estava cheia de rochas e pedras caídas. Mal conseguiram encontrar um caminho rente aos penhascos e prosseguiram, mantendo-se o mais afastados possível da água escura. Cerca de 1,5 km a sul, ao longo da margem encontraram azevinhos. Rebentos e ramos mortos apodreciam na água baixa, ao que parecia restos de antigos maciços de árvores ou de uma vedação que outrora ladeara a estrada, através do vale inundado. Mas logo por baixo do penhasco ainda existiam, fortes e vivos, dois azevinhos altos, os maiores azevinhos que Frodo já vira ou imaginara. As suas grandes raízes estendiam-se da muralha para a água. Vistos de longe, do alto da Escada, tinham parecido meros arbustos; mas agora eram imponentes, rígidos, escuros e silenciosos, projectavam-lhes aos pés carregadas sombras nocturnas e lembravam colunas de sentinela ao fundo da estrada.
- Bem, cá estamos, finalmente! - exclamou Gandalf- - Aqui terminava o caminho élfico que partia de Hollin. O azevinho era o símbolo do povo dessa terra, que o plantou aqui para assinalar o fim do seu domínio, pois a Porta Ocidental foi feita principalmente para seu uso, nas suas transacções com os Senhores de Mória. Foram épocas mais felizes, essas, em que ainda havia estreita amizade, de vez em quando, entre pessoas de raças diferentes, até mesmo entre anões e elfos.
- Não foi por culpa dos Anões que a amizade morreu - declarou Gimli.
- Nunca ouvi dizer que tivesse sido por culpa dos Elfos - contestou Legolas.
- Pois eu ouvi dizer ambas as coisas - interveio Gandalf -, e não vou dar nenhuma opinião, agora. Mas peço aos dois, a Legolas e a Gimli, que sejam pelo menos amigos e me ajudem. Preciso de ambos. As portas estão fechadas e ocultas, e quanto mais depressa as encontrarmos, melhor. A noite está próxima!
Voltou-se para os outros e acrescentou:
- Querem fazer o favor de se preparar, individualmente, para entrar nas minas, enquanto eu procuro? Infelizmente, acho chegou o momento de nos despedirmos do nosso bom animal de carga. Terão de prescindir de muitas das coisas que trouxeram como protecção contra o mau tempo: não precisarão delas aqui dentro nem, assim o espero, quando sairmos e continuarmos a viajar para sul. Cada um de nós terá de transportar uma parte do que o pónei carregou, sobretudo no capítulo de alimentos e odres de água.
- Mas não pode deixar o pobre Bill neste lugar deserto Sr. Gandalf! - protestou Sam, furioso e angustiado. - Não o permitirei, pronto! Depois de ele ter percorrido uma distância tão grande, e tudo o mais!
- Lamento, Sam - respondeu o feiticeiro. - Mas, quando a Porta se abrir, não creio que consigas arrastar o teu Bill lá para dentro, para as enormes e densas trevas de Mória. Tens de escolher entre Bill e o teu amo.
- Ele seguiria o Sr. Frodo para a caverna de um dragão, se eu o conduzisse! - afirmou Sam. - Seria... seria um assassínio abandoná-lo com todos esses lobos por aí à solta!
- Espero que não, espero que não seja um assassínio - disse Gandalf, enquanto punha a mão na cabeça do pónei e lhe falava em voz baixa. - Vai com palavras de protecção e orientação. És um animal inteligente e aprendeste muito em Rivendell. Dirige-te para lugares onde possas encontrar erva, pois assim chegarás, com o tempo, a casa de Elrond ou aonde quer que desejes chegar.
»Pronto, Sam! Ele terá exactamente tantas probabilidades de escapar aos lobos e chegar a casa como nós.»
Sam ficou parado, carrancudo, junto do pónei e não respondeu. Bill, como se compreendesse bem o que se estava a passar, chegou-se para ele e encostou o focinho ao ouvido de Sam. Este desfez-se em lágrimas e, atabalhoadamente, tirou a carga toda de cima do animal e atirou-a ao chão. Os outros fizeram um monte de tudo quanto poderiam deixar e repartiram o restante.
Feito isso, voltaram-se para Gandalf, que, pelo seu lado, parecia não ter feito nada. Estava de pé entre os dois azevinhos, a olhar para a face lisa do penhasco, como se quisesse abrir-lhe um buraco com os olhos. Gimli não parava, a bater aqui e ali na pedra com o machado. Legolas comprimia-se contra a rocha, como se escutasse.
- Bem, nós já estamos todos prontos - observou Merry -, mas onde estão as portas? Não vejo qualquer sinal delas.
- As portas dos Anões não são feitas para serem vistas, quando fechadas - respondeu-lhe Gimli. - São invisíveis e nem os seus próprios donos conseguem encontrá-las ou abri-las, se perderem o segredo.
- Mas esta porta não foi feita para constituir um segredo somente conhecido, pelos Anões - disse Gandalf, como se despertasse subitamente, e virou-se para eles. - A não ser que as coisas tenham mudado por completo, olhos que saibam o que procurar poderão descobrir os sinais.
Aproximou-se mais da muralha. Exactamente entre a sombra dos azevinhos havia um espaço liso pelo qual passou as mãos, de lado para lado, enquanto murmurava baixinho algumas palavras. Depois recuou de novo.
- Olhem! - ordenou. - Agora vêem alguma coisa?
O luar brilhava na face cinzenta da rocha, mas, mesmo assim, durante algum tempo, eles não conseguiram ver mais nada. Depois, lentamente, apareceram linhas ténues na superfície por onde as mãos do feiticeiro tinham passado, linhas que pareciam finas veias de prata a sulcar a pedra. Ao princípio dir-se-iam pálidos fios de teia de aranha, tão finos que só brilhavam interruptamente nos pontos onde o luar incidia; mas, pouco a pouco, foram-se tornando mais grossos e nítidos, até se poder adivinhar o seu desenho.
Em cima, tão alto quanto Gandalf conseguia chegar, havia um arco de letras entrelaçadas, de tipo élfico. Em baixo, embora em certos pontos as linhas estivessem apagadas ou quebradas, viam-se os contornos de uma bigorna e um martelo, encimados por uma coroa com sete estrelas. Abaixo desses desenhos havia duas árvores, cada uma com crescentes de Lua, e no meio da porta brilhava, mais nitidamente do que tudo o resto, uma estrela com muitos raios.
- São os emblemas de Durin! - exclamou Gimli.
- E a Árvore dos Elfos Superiores! - acrescentou Legolas.
- E a Estrela da Casa de Fêanor - aduziu Gandalf. - Foram gravados com ithildin, que só reflecte a luz das estrelas e o luar e dorme até ser tocado por alguém que diga palavras há muito esquecidas na Terra Média. Há muito tempo que as ouvira e tive de pensar profundamente, para as recordar.
- Que está aí escrito? - perguntou Frodo, a, tentar decifrar a inscrição do arco. - Julgava conhecer as letras élficas, mas não consigo ler essas.
- As palavras estão escritas na língua élfica do Ocidente da Terra Média, nos Tempos Antigos - respondeu Gandalf. - Mas não dizem nada de importância para nós. Dizem apenas: Portas de Durin, Senhor de Mória. Fala, amigo, e entra. E, em baixo, está escrito em letras pequenas e quase apagadas: Eu, Narvi, fi-las. Celebrimbor de Hollin desenhou estes símbolos.
- Que significa Fala, amigo, e entra? - perguntou Merry.
- Isso é evidente - declarou Gimli. - Se és amigo, diz a palavra de senha, e as portas abrir-se-ão, e poderás entrar.
- Sim - admitiu Gandalf -, é provável que estas portas sejam governadas por palavras. Certas portas dos Anões só se abrem em ocasiões especiais ou a determinadas pessoas; e algumas delas ainda têm fechaduras e chaves que têm de ser utilizadas quando se conhecem as ocasiões e as palavras necessárias. Mas estas portas não têm chave. No tempo de Durin não eram secretas. Geralmente estavam abertas, com guardas aqui sentados. Mas se estavam fechadas, quem soubesse a palavra-chave, poderia dizê-la e entrar. Pelo menos é assim que está escrito, não é, Gimli?
- É - confirmou o anão. - Mas que palavra era está esquecido. Narvi e a sua arte, assim como todos os outros artífices do seu género, desapareceram da Terra.
- Mas você não sabe a palavra, Gandalf.- perguntou Boromir, surpreendido.
- Não! - respondeu o feiticeiro.
Os outros pareceram consternados; só Aragorn, que o conhecia bem, continuou calado e impassível.
- Então de que valeu trazer-nos a este maldito lugar? - gritou Boromir, a olhar, com um estremecimento, para a água escura. - Disse-nos que, uma vez, atravessou as minas. Como foi isso possível, se não sabia como entrar?
- A resposta à sua primeira pergunta, Boromir - respondeu o feiticeiro -, é que não sei a palavra... por enquanto. Mas em breve veremos. E - acrescentou, com uma cintilação nos olhos semiocultos pela sombra das sobrancelhas hirsutas - quanto aos meus actos, pode perguntar para que servem quando se verificar que foram inúteis. A respeito da sua outra pergunta: duvida das minhas palavras? Ou não lhe resta ponta de siso? Eu não entrei por este lado; vim do Leste.
»Se quer saber, posso-lhe dizer que estas portas abrem para o exterior. Do interior abrem-se empurrando-as com as mãos. Do exterior nada as fará mover-se, a não ser as palavras de comando. Não é possível forçá-las para dentro.»
- Que vai fazer, então? - perguntou Pippin, sem se deixar atemorizar pelas hirsutas e franzidas sobrancelhas do feiticeiro.
- Bater nas portas com a tua cabeça, Peregrino Took - redarguiu-lhe Gandalf. - Mas se isso as não derrubar e me forem concedidas umas tréguas, sem perguntas idiotas, procurarei as palavras-chave.
»Em tempos soube todos os encantamentos em todas as línguas dos Elfos, dos Homens ou dos Orcs, usados para tais fins. Ainda me lembro de umas duas centenas deles sem ter de cansar o cérebro. Mas creio que bastarão algumas tentativas, poucas... e não terei de recorrer ao Gimli para que me diga palavras da língua secreta dos anões, que eles não ensinam a ninguém. As palavras-chave eram élficas, como o que está escrito no arco: isso parece certo.»
Aproximou-se de novo da rocha e tocou ao de leve com o bastão na estrela de prata que se encontrava no meio, debaixo do símbolo da bigorna e do martelo.
Annon edhellen, edro hi ammen! Fennas nogothrim, lasto beth lamment!,
disse, em voz autoritária. As linhas de prata desvaneceram-se, mas a pedra cinzenta não se mexeu.
Repetiu muitas vezes as mesmas palavras por ordem diferente ou modificou-as. Depois experimentou outros encantamentos, um após outro, falando ora depressa e alto, ora suave e lentamente. Depois disse muitas palavras isoladas da língua élfica. Não aconteceu nada. O penhasco continuava a erguer-se na noite, iam-se acendendo no céu inúmeras estrelas, soprava um vento frio - e as portas continuavam fechadas.
Gandalf aproximou-se de novo e, de braços erguidos, falou em tom autoritário e de cólera crescente. Edro, edro!, gritou, e bateu com o bastão na rocha. Abram-se, abram-se!, ordenou, e em seguida pronunciou a mesma ordem em todas as línguas que alguma vez tinham sido faladas no Ocidente da Terra Média. Depois atirou o bastão para o chão e sentou-se, calado.
Nesse momento, o vento levou-lhe aos ouvidos atentos, de muito longe, o uivo de lobos. Bill, o pónei, estremeceu, amedrontado, e Sam correu para seu lado e falou-lhe baixinho.
- Não o deixe fugir! - recomendou Boromir. - Parece que ainda vamos precisar dele, se os lobos nos não encontrarem. Como detesto este charco imundo! - Baixou-se, apanhou uma grande pedra e atirou-a com força para a água escura.
A pedra desapareceu, com um splash! abafado; mas no mesmo instante ouviu-se um silvo e um borbulhar. Formaram-se grandes anéis ondulados na superfície da água, para lá do ponto onde a pedra caíra, anéis que avançaram lentamente na direcção da base do penhasco.
- Para que fez isso, Boromir? - perguntou Frodo. - Também detesto este lugar, e tenho medo, embora não saiba de quê. Não é de lobos nem da escuridão atrás das portas, é de qualquer outra coisa. Tenho medo do lago. Não o perturbe!
- Quem me dera que nos pudéssemos ir embora! - desabafou Merry.
- Por que não faz o Gandalf qualquer coisa, depressa? - perguntou Pippin.
Gandalf não lhes prestava atenção. Continuava sentado de cabeça inclinada, desesperado ou então a pensar ansiosamente. Ouviu-se de novo o lúgubre uivo dos lobos. As ondas circulares da água aumentaram e aproximaram-se mais. Algumas já lambiam a margem.
O feiticeiro levantou-se, com uma impetuosidade que a todos surpreendeu. Ria-se! - Já sei! - gritou. - Claro, claro! Absurdamente simples, como quase todas as charadas quando descobrimos a solução.
Pegou no bastão, parou diante da rocha e disse, em voz clara:
- Mellon!
A estrela brilhou momentaneamente e voltou a desvanecer-se. Depois, silenciosamente, recortou-se uma porta embora antes não se tivesse visto nem uma fresta, nem um gonzo. Devagar, dividiu-se ao meio e foi-se abrindo para fora, centímetro a centímetro, até as duas meias portas ficarem encostadas à parede. Através da entrada via-se uma escada sombria e íngreme, para lá de cujos primeiros degraus a escuridão era mais carregada do que a noite. O grupo olhou, maravilhado.
- Afinal, eu estava enganado - disse Gandalf. - E Gimli também. De todos, foi Merry quem esteve mais perto de acertar. A palavra-chave esteve sempre inscrita no arco! A tradução deveria ter sido: Diz «Amigo» e entra. Bastou-me dizer a palavra amigo em élfico, e as portas abriram-se. Muito simples. Demasiado simples para um erudito em coisas antigas, nestes tempos de desconfiança. Os tempos antigos eram mais felizes. Mas vamos!
Avançou e apoiou o pé no primeiro degrau. Mas nesse momento aconteceram diversas coisas. Frodo sentiu qualquer coisa prender-lhe o tornozelo e caiu, a gritar. Bill, o pónei, relinchou de medo, voltou-se e fugiu pela margem do lago fora, até se perder na escuridão. Sam fez menção de correr atrás dele, mas depois ouviu o grito de Frodo e voltou para trás, a chorar e a praguejar. Os outros viraram-se, de repente, e viram a água do lago a fervilhar, como se uma multidão de serpentes viesse a nadar, do extremo sul para ali.
Rastejara para fora da água um tentáculo comprido e sinuoso, verde-claro, luminoso e húmido. A sua extremidade munida de dedos segurava o pé de Frodo e puxava-o para a água. De joelhos, Sam atacava-o com uma faca.
O tentáculo largou Frodo e Sam puxou-o, a gritar que o ajudassem. Vinte outros tentáculos começavam a sair, ondulantes, a água escura fervia e sentia-se um cheiro pestilencial.
- Para a porta! Subam a escada! Depressa - gritou Gandalf, que voltava para trás.
Arrancando-os ao horror que parecia tê-los pregado a todos - menos a Sam - ao chão, empurrou-os para a frente.
Mesmo a tempo. Sam e Frodo tinham subido alguns degraus, e Gandalf mal começara a subir também, quando os tentáculos tateantes atravessaram, a serpentear, a estreita faixa de terra tocaram na rocha da muralha e nas portas. Um penetrou mesmo no vão da porta, a brilhar à luz das estrelas. Gandalf virou-se e parou. Se estava a pensar na palavra que fecharia as portas do lado de dentro, perdeu o seu tempo: muitos tentáculos enrolados agarraram as portas, de ambos os lados, e, com uma força horrível, empurraram-nas. As portas bateram, fechadas, com um estrondo ensurdecedor, e desapareceu toda a luz. Através da sólida rocha ouviu-se um ruído surdo de qualquer coisa que estava a ser despedaçada e arremessada.
Sam, agarrado ao braço de Frodo, deixou-se cair num degrau, na escuridão de breu.
- Pobre Bill - disse, em voz sufocada. - Pobre Bill! Lobos e serpentes! Mas as serpentes foram demasiado para ele. Tive de escolher, Sr. Frodo, tive de vir consigo.
Ouviram Gandalf descer os degraus e bater com o bastão nas portas. A pedra estremeceu e a escada tremeu, mas as portas não se abriram.
- Sim, senhor! - exclamou o feiticeiro. - Agora, a passagem está bloqueada atrás de nós e só há uma saída: do outro lado das montanhas. Receio, pelos sons que ouvi, que tenham sido empilhados pedregulhos e as árvores arrancadas e atiradas contra as portas, atravessadas. É pena, pois as árvores eram bonitas e estavam ali há muito tempo.
- Senti que estava perto algo horrível a partir do momento em que pus os pés na água - disse Frodo. - Que era? Ou eram muitas coisas e não só uma?
- Não sei - respondeu-lhe Gandalf. - Mas os braços eram todos orientados com o mesmo objectivo. Qualquer coisa saiu sorrateiramente, ou foi expulsa, das águas negras de baixo das montanhas. Há coisas mais velhas e repugnantes do que orcs nos lugares fundos do mundo. - Não deu voz ao seu pensamento de que, fosse o que fosse que habitava no lago, escolhera Frodo para vítima, entre todos os do grupo.
Boromir resmungou entre dentes, mas o espaço e a pedra aumentaram o som, e a sua voz pôde ser ouvida por todos, num murmúrio rouco:
- Nos lugares fundos do mundo! E para lá vamos nós, contra minha vontade. Quem nos guiará agora, neste negrume?
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- Eu - respondeu-lhe Gandalf - E Gimli caminhará comigo. Sigam o meu bastão!
O feiticeiro passou para a frente, subiu os grandes degraus e levantou o bastão, em cuja ponta brilhou uma ténue radiância. A escada larga estava em bom estado. Contaram duzentos degraus, largos e baixos, e no cimo encontraram um corredor arqueado, de chão nivelado e que se prolongava no escuro.
- Sentemo-nos a descansar e a comer qualquer coisa, aqui no patamar, uma vez que não encontramos uma sala de jantar - propôs Frodo, que começava a libertar-se do terror dos tentáculos que o tinham agarrado e se sentia, de repente, esfomeado.
A proposta foi bem acolhida por todos. Sentaram-se nos degraus de cima, vultos vagos na escuridão. Depois de comerem, Gandalf deu a cada um mais um golo do miruvor de Rivendell.
- Infelizmente não durará muito - observou -, mas acho que nos faz falta agora, depois do horror lá de fora. E, a não ser que tenhamos muita sorte, vamos precisar do que resta antes de vermos o outro lado! Sejam igualmente parcimoniosos no consumo da água. Há muitos regatos e poços nas minas, mas não se lhes deve tocar. Talvez não tenhamos oportunidade de encher os nossos odres e as nossas garrafas antes de descermos ao Vale do Regato Sombrio.
- Quanto tempo nos levará isso? - perguntou Frodo.
- Não sei - respondeu o feiticeiro. - Depende de muitas coisas. Mas seguindo a direito, sem encontrarmos problemas nem nos perdermos, creio que levaremos três ou quatro jornadas. Não são menos de sessenta e cinco quilómetros da porta ocidental à porta oriental, em linha recta, e o caminho pode não ser muito recto.
Após um breve descanso, retomaram a marcha. Estavam todos ansiosos por sair dali o mais depressa possível e por isso, apesar de cansados, mostraram-se dispostos a continuar a andar diversas horas mais. Gandalf ia à frente, como antes. Com a mão esquerda segurava o bastão, cuja luz fraca mal mostrava o chão à frente dos seus pés, e com a direita empunhava a espada, Glamdring. Gimli ia atrás dele e os seus olhos brilhavam na penumbra, quando virava a cabeça de lado para lado. Atrás do anão seguia Frodo, que desembainhara Ferrão, a sua curta espada. As lâminas de Ferrão e de Glamdring não projectavam nenhuma luminosidade, e isso constituía um certo conforto: obra de ferreiros élficos dos Tempos Antigos, aquelas espadas irradiavam uma luz fria se se encontravam orcs perto. Atrás de Frodo ia Sam e atrás dele Legolas, os jovens hobbits
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e Boromir. Nas trevas da retaguarda, severo e silencioso, caminhava Aragorn.
O corredor virou diversas vezes e depois começou a descer. Desceu ininterruptamente ao longo de uma grande extensão e depois voltou a ser nivelado. O ar tornou-se quente e sufocante, mas não era impuro, e por vezes eles sentiam no rosto correntes de ar mais fresco vindas de aberturas semi-adivinhadas nas paredes. Havia muitas. À luz pálida do bastão do feiticeiro, Frodo vislumbrou escadas e arcadas, assim como outros corredores e túneis, ou a subir ou a descer muito, ou com aberturas negras, que nada diziam, de ambos os lados. Causara confusão e era escusado tentar lembrar-se da sua localização.
Gimli ajudava Gandalf muito pouco, a não ser com a sua firme coragem. Pelo menos não o perturbava, como a muitos dos outros, a simples escuridão em si. O feiticeiro consultava-o frequentemente, em pontos onde a escolha do caminho oferecia dúvidas; mas a última palavra era sempre de Gandalf. As Minas de Mória eram vastas e de uma complexidade que ultrapassava a imaginação de Gimli, filho de Glóin, apesar de ele ser um anão da raça da montanha. A Gandalf pouco ajudavam agora as recordações vagas de uma viagem feita havia muito tempo, mas mesmo nas trevas e a despeito de todas as curvas e voltas do caminho, ele sabia para onde desejava ir, e não hesitava, desde que houvesse uma via que conduzisse à sua meta.
- Não tenham medo! - disse Aragorn. Estavam a fazer uma pausa mais demorada do que era habitual e Gandalf e Gimli falavam baixinho um com o outro; os demais estavam reunidos atrás, a esperar ansiosamente. - Não tenham medo! Fiz muitas viagens com ele, embora nenhuma tão escura, e em Rivendell contam-se histórias de grandes proezas suas, maiores do que as testemunhadas por mim. Ele não se perderá... se houver algum caminho para encontrar. Trouxe-nos aqui, apesar dos nossos receios, e tirar-nos-á de cá seja qual for o preço que tiver de pagar. É mais certo ele encontrar o caminho para casa numa noite escura do que os gatos da rainha Berúthiel.
Era bom para o grupo ter um guia assim. Não dispunham de combustível nem de qualquer outro meio de fazer archotes; na precipitação desesperada, à entrada, tinham deixado ficar muitas coisas. Mas sem luz depressa teriam encontrado problemas. Não havia somente muitos caminhos entre os quais tinham de escolher; havia também, em muitos lugares, buracos, alçapões e poços escuros ao lado do caminho pelo qual os seus passos ecoavam. Havia fissuras e fendas nas paredes e no chão e, de vez em quando, abria-se um mesmo à frente dos seus pés. A mais larga tinha mais de 2 m, transversalmente, e Pippin precisou de muito tempo para encontrar a coragem necessária para saltar por cima do horrível buraco. Vinha de baixo o barulho de água revolta, como se uma grande roda de moinho estivesse a girar lá no fundo.
«Corda!», pensou Sam. «Eu sabia que precisaria dela, se não a trouxesse!»
À medida que tais perigos se foram tornando mais frequentes, a marcha tornou-se também mais lenta. Já tinham a sensação de estar a caminhar interminavelmente, havia tempos infinitos, para as raízes das montanhas. Estavam mais do que fatigados, mas, apesar disso, o pensamento de pararem em qualquer lado não lhes proporcionava nenhum conforto. O ânimo de Frodo aumentara durante algum tempo, depois de ter escapado ao perigo dos tentáculos e a seguir a ter comido e bebido o golo de cordial; mas em seguida voltara a apoderar-se dele uma inquietação profunda, que tocava as raias do pavor. Embora em Rivendell o tivessem sarado da facada que recebera, essa sinistra ferida não deixara de produzir os seus efeitos. Os seus sentidos tinham-se tornado mais apurados e mais conscientes da presença de coisas que não se viam. Um sinal de mudança de que cedo se apercebera fora o facto de conseguir ver mais nas trevas do que qualquer dos seus companheiros - com excepção, talvez, de Gandalf. E, de qualquer modo, era ele o portador do anel: trazia-o ao pescoço, suspenso de um fio, e às vezes parecia-lhe que pesava muito. Tinha a certeza de que havia perigo à frente, a esperá-los, e perigo atrás, a segui-los. Mas não disse nada. Apertou com mais força o punho da espada e continuou a andar teimosamente.
Atrás dele, os companheiros raramente falavam, e quando falavam era em sussurros apressados. O único som que se ouvia era o dos próprios passos: o bater surdo e firme de botas de anão de Gimli; o passo pesado de Boromir; o passo leve de Legolas; o ruído suave, quase inaudível, dos pés dos hobbits, e, à retaguarda, a passada firme, lenta e longa de Aragorn. Quando paravam um momento, não ouviam absolutamente nada, a não ser, ocasionalmente, o correr ou o gotejar leves de água invisível. No entanto, Frodo começou a ouvir, ou a imaginar que ouvia, algo mais, algo parecido com o pisar ténue de macios pés descalços. Nunca era suficientemente alto, nem suficientemente perto, para ele ter a certeza de que ouvia, realmente; mas uma vez iniciado nunca mais acabava, enquanto o grupo caminhava. Não se tratava, porém, de nenhum eco, pois quando eles paravam só se ouvia um bocadinho mais e depois parava também.
Tinham entrado nas minas depois de anoitecer. Caminhavam havia já várias horas, apenas com breves intervalos, quando Gandalf encontrou o primeiro obstáculo sério. Diante dele apareceu um arco largo e escuro que dava para três corredores: todos eles seguiam na mesma direcção geral, para leste, mas o da esquerda descia muito enquanto o da direita subia e o do meio parecia seguir em frente, liso e plano, mas muito estreito.
- Não conservo recordação absolutamente nenhuma deste lugar! - confessou Gandalf, parado, hesitante, debaixo do arco.
Levantou o bastão, na esperança de encontrar quaisquer sinais ou inscrições susceptíveis de o ajudar na escolha; mas não viu nada.
- Estou demasiado fatigado para decidir - disse, a abanar a cabeça. - E calculo que estejam todos tão fatigados como eu, ou mais. O melhor seria pararmos aqui durante o que resta da noite. Compreendem o que quero dizer! Aqui está sempre escuro, mas lá fora a Lua avança para ocidente e o meio da noite já passou.
- Coitado do velho Bill! - lamentou-se Sam. - Onde estará? Oxalá os lobos ainda o não tenham apanhado.
À esquerda do grande arco encontraram uma porta de pedra: estava semicerrada, mas abriu-se facilmente, quando a empurraram devagar. Do outro lado parecia haver uma câmara espaçosa, aberta na rocha.
- Esperem! Esperem! - gritou Gandalf, quando Merry e Pippin avançaram, contentes por terem encontrado um lugar onde poderiam descansar com, pelo menos, maior sensação de abrigo do que no devasso corredor. - Esperem! Ainda não sabem o que há lá dentro. Eu entro primeiro.
Entrou cautelosamente e os outros seguiram-no, em fila.
- Vêem? - disse, a apontar com o bastão para o meio da sala: a seus pés abria-se um grande buraco redondo, como a boca de um poço; na borda havia correntes partidas e ferrugentas, que desciam para o buraco negro, assim como fragmentos de pedra, espalhados perto.
- Um de vocês podia ter caído e a esta hora ainda estaria a perguntar a si mesmo quando bateria no fundo - disse Aragorn a Merry. - Enquanto tiverem um guia, deixem-no entrar primeiro.
- Parece ter sido uma casa da guarda, feita para vigilância dos três corredores - opinou Gimli. - É evidente que o buraco era um poço para uso dos guardas, com uma tampa de pedra. Mas a pedra partiu-se e todos nós temos de ter muito cuidado, no escuro.
Pippin sentia-se curiosamente atraído pelo poço. Enquanto os outros desenrolavam cobertores e preparavam camas encostadas às paredes, o mais afastadas possível do buraco do chão, ele aproximou-se e espreitou para baixo. Sentiu bater-lhe na cara um ar frio, que subia de profundezas invisíveis. Obedecendo a um impulso súbito, procurou uma pedra solta e deixou-a cair. O coração bateu-lhe muitas vezes antes de ouvir algum som. Depois, muito lá em baixo, como se a pedra tivesse caído numa caverna de água muito funda, soou um plunk muito distante, mas que o poço oco ampliou e repetiu.
- Que foi isto? - gritou Gandalf.
Ficou aliviado quando Pippin confessou o que fizera; mas ao mesmo tempo irritou-se, e o hobbit viu-lhe os olhos coruscar, quando ralhou:
- Took idiota! Isto é uma viagem séria e não um passeio de hobbits. Da próxima vez atira-te a ti, para deixares de nos aborrecer. Agora está quieto!
Durante vários minutos não se ouviu mais nada. Mas depois subiram das profundezas leves pancadas: tom-tap, tap-tom. Paravam e, quando o eco morria, repetiam-se, tap-tom, tom-tap, tap-tap, tom... Lembravam inquietantemente sinais de qualquer espécie. No entanto, passados momentos, terminaram e não voltaram a ouvir-se.
- Era o som de um martelo, ou então nunca ouvi nenhum - comentou Gimli.
- Sim, e não me agrada - disse Gandalf. - Pode não ter nada a ver com a estúpida pedra do Peregrino, mas também é provável que tenha perturbado qualquer coisa que teria sido melhor deixar sossegada. Por favor, não voltem a fazer nada de semelhante! Esperemos que consigamos descansar um pouco, sem mais aborrecimentos. Tu, Pippin, és o primeiro aficar de guarda, como recompensa - ordenou, zangado, enquanto se enrolava num cobertor.
Pippin sentou-se tristemente junto da porta, na escuridão de breu. De vez em quando, porém, virava-se para trás, com medo que saísse do poço alguma coisa desconhecida. Gostaria de poder tapar o buraco, quanto mais não fosse com um cobertor, mas não se atrevia a mexer-se nem a aproximar-se, apesar de Gandalf parecer adormecido.
A verdade, porém, é que Gandalf estava acordado, embora silencioso e imóvel. Esforçava-se por despertar todas as recordações da sua anterior passagem pelas minas e reflectia ansiosamente na decisão que deveria tomar a seguir; um falso movimento, agora, poderia ser catastrófico. Passada uma hora levantou-se e foi ter com Pippin.
- Vai para um canto e dorme, meu rapaz - disse-lhe, em voz bondosa. - Suponho que queres dormir e, como eu não consigo pregar olho, posso muito bem ficar de sentinela.
«Sei muito bem qual é o meu mal», pensou, enquanto se sentava junto da porta. «Preciso de fumar. Não fumo desde a manhã antes do nevão.»
A última coisa que Pippin viu, quando o sono se apoderou dele, foi o vulto negro do velho feiticeiro enroscado no chão, a proteger entre os joelhos uma acendalha incandescente, que segurava com as mão, descarnadas. A centelha revelou-lhe por instantes o nariz pronunciado e a baforada de fumo.
Foi Gandalf que os acordou a todos. Vigiara sozinho durante cerca de seis horas e deixara os outros descansar.
- E, durante a vigília, decidi-me - declarou. - O caminho do meio não me agrada e não gosto do cheiro do caminho da esquerda eu não seja guia se não vem lá de baixo um cheiro pestilencial. Irei pelo da direita. Já é tempo de começarmos de novo a subir.
Caminharam durante oito negras horas, sem contar com duas breves paragens, e não se lhes deparou nenhum perigo. Não ouviram nada e não viram nada além da ténue claridade da luz do bastão do feiticeiro, a subir e a descer à sua frente como um fogo fátuo. O corredor que tinham escolhido serpenteava sempre, a subir. Tanto quanto podiam calcular, descrevia grandes curvas ascendentes e, à medida que subia, tornava-se mais alto e mais largo. Agora não viam quaisquer aberturas para outras galerias ou outros túneis de qualquer dos lados, e o chão era plano e também não apresentava buracos nem fendas. Era evidente que tinham escolhido o que em tempos fora uma estrada importante. Por isso progrediram mais depressa do que na jornada anterior.
Desse modo avançaram uns 25 km, medidos em linha recta para leste, embora, na realidade, devessem ter percorrido mais de 30 km. À medida que a estrada subia, o ânimo de Frodo fortalecia-se um pouco. No entanto, ainda se sentia oprimido e, às vezes, ainda ouvia, ou julgava ouvir, muito atrás deles e independentemente do ruído dos seus passos, outros passos que os seguiam e não eram um eco dos deles.
Tinham caminhado tanto quanto os hobbits podiam suportar sem descansar, e começavam todos a pensar num lugar onde pudessem dormir, quando, de súbito, as paredes da esquerda e da direita desapareceram. Dir-se-ia que tinham entrado, através de qualquer portal arqueado, num espaço negro e vazio. Havia uma grande corrente de ar mais quente atrás deles e, à sua frente, sentiam a escuridão fria, na cara. Pararam e reuniram-se, inquietos.
Gandalf parecia satisfeito, porém.
- Escolhi o caminho certo - afirmou. - Estamos a chegar, finalmente, às zonas habitáveis, e creio que não estamos muito longe do lado oriental. Mas, ou me engano, ou encontramo-nos num ponto alto, muito mais alto do que a Porta do Regato Sombrio. Pela sensação do ar, devemos estar num grande salão. Vou arriscar um bocadinho de luz a sério.
Levantou o bastão e, durante um breve instante, brilhou como que a claridade de um relâmpago. Agitaram-se grandes sombras e, pelo espaço de um segundo, viram um enorme tecto por cima das suas cabeças, sustentado por muitas e fortes colunas talhadas em pedra. Diante deles, e de cada lado, estendia-se um vasto salão vazio, cujas paredes pretas, polidas e lisas como vidro, cintilavam e refulgiam. Viram três outras entradas, três arcos negros: um mesmo à sua frente, para leste, e um de cada lado. Depois a luz extinguiu-se.
- Não me arrisco a mais, por agora - disse Gandalf. - Dantes havia grandes janelas na encosta da montanha e chaminés que levavam para o exterior, para a luz, nas zonas superiores das minas. Creio que chegámos aí, mas é noite lá fora, outra vez, e só de manhã nos poderemos certificar. Se estou certo, amanhã veremos, realmente, a alvorada espreitar cá dentro. Entretanto, acho melhor não irmos mais longe. Descansemos, se pudermos. As coisas correram bem, até agora, e a maior parte da estrada escura está percorrida. Mas ainda não chegámos ao fim e a distância a descer é grande, até às Portas que abrem para o mundo.
Os viajantes passaram a noite no grande salão que parecia uma caverna, todos encolhidos a um canto para se protegerem da corrente de ar - parecia haver um fluxo constante de ar frio, através do arco do lado oriental. A toda a volta deles pairava a escuridão vazia e imensa, e não podiam deixar de se sentir oprimidos pelo isolamento e pela vastidão dos salões escavados e das escadas e dos corredores que se interligavam interminavelmente. As mais loucas invenções que as histórias sinistras tinham jamais sugerido aos hobbits ficavam longe do verdadeiro pavor e espanto que Mória inspirava.
- Deve ter estado aqui, em certa altura, uma grandíssima multidão de anões - observou Sam -, e todos eles mais atarefados do que castores, durante quinhentos anos, para conseguirem fazer isto tudo, e na sua maior parte em rocha dura! Para que fizeram tudo isto com certeza não viviam nestes buracos escuros, pois não?
- Isto não são buracos - corrigiu Gimli. - Isto é o grande reino e a cidade de Dwarrowdelf. E antigamente não era escuro, mas sim cheio de luz e esplendor, como as nossas canções ainda recordam.
Levantou-se e, parado nas trevas, começou a cantar numa voz profunda, cujos ecos subiam para o tecto:
O Mundo era criança, as montanhas verdes
Não se via ainda mancha alguma na Lua
Nem palavras identificavam rio ou pedra
Quando Durin despertou e caminhou só.
Deu nome aos montes e vales que a não tinham,
Bebeu de fontes nunca provadas;
Inclinou-se, olhou para o Lago do Espelho
E viu uma coroa de estrelas aparecer,
Como pedras preciosas num fio de prata,
Por cima da sombra da sua cabeça.
O Mundo era claro, altas as montanhas,
Em antigos tempos antes da queda
De poderosos reis em Nargothrond
E Gondolin, reis que passaram agora
Para além dos Mares Ocidentais:
O Mundo era claro no tempo de Durin.
Rei foi em trono esculpido
Em salões de pedra de muitas colunas,
Com tecto dourado e chão de prata
E letras rúnicas, de poder, na porta.
A luz do Sol, das Estrelas e da Lua,
Em refulgentes candeeiros de cristal,
Sem que a velassem nuvens ou sombra da noite,
Neles brilhava sempre, bela e viva.
Neles o martelo na bigorna batia,
O cinzel fendia e o gravador escrevia;
Neles se forjava a lâmina e revestia o punho,
O mineiro minava e o pedreiro construía.
Neles bérilo, pérola e pálida opala,
E metal forjado como rede de pesca,
Fivela, corselete, machado e espada
E reluzentes lanças se entesouravam.
Infatigável era então a gente de Durin;
Debaixo das montanhas a música despertava:
Os harpistas harpeavam, os menestréis cantavam
E às portas troavam as trompas.
O mundo é cinzento, as montanhas velhas,
A forja está fria como cinza;
Nenhuma harpa harpeja, nenhum martelo bate;
As trevas moram nos salões de Durin;
A sombra jaz sobre o seu túmulo
Em Mória, em Khazad-dûm.
Mas as estrelas submersas ainda aparecem
No negro e parado Lago do Espelho;
Lá jaz a sua coroa na água funda,
Até Durin despertar de novo.
- Gosto disso! - exclamou Sam. - Gostaria de aprender em Mória, em Khazad-dûm! Quando penso nesses candeeiros todos, a escuridão ainda me parece maior. Ainda aqui há montes de pedras preciosas e ouro?
Gimli permaneceu calado. Cantara a sua canção e não diria mais nada.
- Montes de pedras preciosas? - repetiu Gandalf. - Não. Os Orcs pilharam Mória muitas vezes; não resta nada nos salões superiores. E desde que os Anões fugiram, ninguém se atreve a procurar as chaminés e alcançar os tesouros escondidos nos lugares fundos: estão imersos em água ou numa sombra de medo.
- Para que querem, então, os Anões voltar? - perguntou Sam.
- Por causa do mithril - respondeu Gandalf. - A riqueza de Mória não estava no ouro e nas pedras preciosas, os brinquedos dos Anões, nem no ferro, o seu servo. É verdade que encontraram essas coisas aqui, especialmente o ferro; mas não precisavam de minar para as obter, pois podiam ter todas as coisas que desejavam pelo tráfico. Só aqui, e em nenhum outro lugar do mundo, havia a prata de Mória, ou prata verdadeira, como alguns lhe chamavam: mithril é o nome élfico. Os Anões dão-lhe um nome que não revelam. Valia dez vezes mais do que o ouro e agora não tem preço; encontra-se pouco acima do solo e nem os Orcs se atrevem a escavar aqui, para a encontrar. Os filões seguem para norte, na direcção de Caradhras, e mergulham nas trevas. Os Anões dizem a verdade; mas assim como o mithril constituiu os alicerces da sua riqueza, assim foi também a sua destruição: escavaram com excessiva avidez e demasiado fundo e perturbaram aquilo de que, precisamente, fugiam, a Maldição de Durin. Os Orcs apoderaram-se de quase tudo quanto eles trouxeram à luz do dia e deram-no como tributo a Sauron, que o cobiça.
»Mithril! Toda a gente o desejava. Podia ser batido como o cobre e polido como o vidro, e os Anões conseguiam fazer com ele um metal leve, mas mais duro que o aço temperado. A sua beleza era como a da prata comum, mas com a diferença de que não se manchava nem tornava baça. Os Elfos adoravam-no e, entre outras coisas, faziam com ele o ithildin... estrela-lua... que vocês viram nas portas. Bilbo tinha uma cota de anéis de mithril que Thorin lhe dera. Que será feito dela? Provavelmente está a encher-se de pó na Casa Mathon de Michel Delving.»
- O quê?! - exclamou Gimli, arrancado pelo espanto ao seu silêncio. - Uma cota de malha de prata de Mória? Isso foi um presente real!
- Pois foi. Eu nunca lho disse, mas valia mais do que todo o Shire e tudo quanto nele havia.
Frodo não disse nada, mas meteu a mão debaixo da túnica e tocou nos anéis da sua cota de malha. Sentiu-se apatetado só de pensar que andava com o preço do Shire debaixo do casaco. Teria Bilbo, sabido? Estava convencido de que sim, de que Bilbo sabia perfeitamente. Tratava-se com efeito de um presente real. Os seus pensamentos passaram das minas negras para Rivendell, Bilbo e Fundo do Saco no tempo em que Bilbo ainda lá estava. Desejou com todo o coração encontrar-se lá de novo, e nesse tempo, a aparar a relva e a entreter-se com as flores, sem nunca ter ouvido falar de Mória, nem de mithril - nem do anel.
Seguiu-se um silêncio profundo. Os outros adormeceram, um por um. Frodo ficou de guarda. O medo apoderou-se dele, como um hálito que entrasse por portas invisíveis, vindo de lugares fundos. Tinha as mãos frias e a testa húmida. Apurou o ouvido. Durante duas longas horas a sua atenção se concentrou em escutar, e nada mais. Mas não ouviu nenhum som, nem sequer o eco imaginado de passos.
O seu período de vigilância estava quase a terminar quando, onde calculava que ficava o arco do lado ocidental, julgou ver dois pálidos pontos de luz, quase como olhos luminosos. Estremeceu. A sua cabeça pendera. «Devo ter quase adormecido», pensou. «Ia começar a sonhar.» Levantou-se, esfregou os olhos e permaneceu de pé, a perscrutar a escuridão, até Legolas o render.
Quando se deitou, adormeceu sem demora, mas pareceu-lhe que o sonho continuava: ouviu murmúrios e viu os dois pálidos pontos de luz aproximarem-se, devagar. Acordou e verificou que os outros falavam baixinho, perto dele, e que uma luz fraca lhe incidia na cara. De muito alto, por cima do arco do lado oriental, descia um pálido e comprido raio de luz, através de um respiradouro que ficava perto do tecto. E do outro lado do salão, através do arco setentrional, também brilhava uma luz, fraca e distante.
Frodo sentou-se.
- Bons-dias! - saudou Gandalf. - É de novo manhã, finalmente! Como vêem, eu tinha razão. Estamos num ponto alto do lado oriental de Mória. Antes de o dia de hoje terminar, devemos encontrar as Portas Grandes e ver as águas do Lago do Espelho no Vale do Regato Sombrio, à nossa frente.
- Ficarei contente com isso - declarou Gimli. - Vi Mória, e é muito grande, mas tornou-se escura e assustadora, e não encontrámos quaisquer vestígios do meu povo. Agora duvido que Balin alguma vez cá tenha vindo.
Depois de tomarem o pequeno-almoço, Gandalf decidiu partir imediatamente.
Estamos cansados, mas descansaremos melhor quando estivermos lá fora - alegou. - Suponho que nenhum de nós deseja passar outra noite em Mória.
- Ah, não, certamente! - confirmou Boromir. - Por onde vamos? Ali pelo arco oriental?
- Talvez - respondeu Gandalf. - Mas ainda não sei ao certo onde estamos. A não ser que me tenha perdido por completo, calculo que nos encontramos acima e a norte das Portas Grandes, e talvez não seja fácil encontrar o caminho apropriado para lá. O arco oriental será, provavelmente, o indicado, mas antes de nos decidirmos devemos dar uma vista de olhos à nossa volta. Sigamos na direcção
daquela luz da porta norte. Se conseguirmos encontrar uma janela, ajudará, mas eu receio que a luz venha somente através de fundas chaminés.
O grupo passou debaixo da porta norte, atrás dele. Encontraram-se num corredor largo. À medida que avançavam, a luminosidade aumentou, e viram que vinha de uma porta à sua direita. O vão era alto e de padieira direita, e a porta de pedra ainda estava nos gonzos e meio aberta. Para lá dela ficava um grande aposento quadrado. Estava vagamente iluminado, mas, depois de tanto tempo às escuras, pareceu ofuscantemente luminoso aos seus olhos, e tiveram de pestanejar, ao entrar.
Os seus pés agitaram uma espessa camada de poeira, no chão, e tropeçaram em coisas espalhadas à entrada da porta e cujas formas, ao princípio, não conseguiram distinguir. Um ventilador alto e largo, na parede leste, iluminava o aposento. O ventilador obliquava, a subir, e deixava ver, muito em cima, um pequeno quadrado de céu azul. A luz do ventilador incidia directamente numa mesa que se encontrava no meio da sala: um simples bloco oblongo, com cerca de 60 cm de altura, sobre o qual estava uma grande placa de pedra branca.
- Parece um túmulo - murmurou Frodo, e inclinou-se, com um curioso pressentimento, para ver de mais perto.
Gandalf colocou-se rapidamente a seu lado. Na placa de pedra viam-se runas profundamente gravadas:
- São runas de Daeron, como as usadas antigamente em Mória - disse o feiticeiro. - Está aqui escrito, nas línguas dos Homens e dos Anões:
BALIN, FILHO DE FUNDIN
SENHOR DE MóRIA
- Então está morto - observou Frodo. - Receei que assim fosse. Gimli tapou o rosto com o capuz.
A PONTE DE KHAZAD-DUM
O grupo do anel permaneceu silencioso ao lado do túmulo de Balin. Frodo pensou em Bilbo e na sua longa amizade com o anão, assim como na visita de Balin ao Shire, havia muito tempo. Ali, naquela sala poeirenta no coração das montanhas, isso parecia ter acontecido há mil anos e do outro lado do mundo.
Mexeram-se, por fim, e levantaram a cabeça e começaram a procurar qualquer coisa que lhes desse alguma ideia quanto ao que acontecera a Balin ou revelasse o que era feito da sua gente. Havia outra porta mais pequena do outro lado do aposento, debaixo do ventilador. Viram então que junto de ambas as portas estavam espalhados muitos ossos e, entre eles, espadas partidas, cabeças de machados e escudos e capacetes fendidos. Algumas das espadas eram curvas: cimitarras orcs, de lâmina escurecida.
Havia muitos vãos abertos na rocha das paredes e neles viam-se grandes baús de madeira cintados de ferro. Tinham sido todos arrombados e saqueados; mas ao lado da tampa espatifada de um deles encontravam-se os restos de um livro. Fora retalhado, apunhalado e parcialmente queimado, e estava tão sujo de preto e com outras marcas escuras, como de sangue antigo, que pouco se conseguia ler.
Gandalf apanhou-o com todo o cuidado, mas as folhas estalaram e soltaram quando o depositou em cima da laje. Consultou-o durante algum tempo, em silêncio. Frodo e Gimli, de pé a seu lado, repararam, à medida que ele virava desajeitadamente as folhas, que fora escrito por diversas pessoas, em runas tanto de Mória como de Dale e, aqui e ali, em letra élfica.
Por fim, Gandalf levantou a cabeça e disse:
- Parece ser um registo da sorte da gente de Balin. Suponho que começou com a sua chegada ao Vale do Regato Sombrio, quase há trinta anos: as páginas parecem ter números referentes aos anos anteriores à sua chegada. A primeira página está marcada um três, que significa que faltam pelo menos duas do princípio. Escutem:
»Expulsámos orcs da porta grande e da casa... A palavra seguinte está borrada e queimada, e eu penso que talvez seja... da guarda.
Matámos muitos no luminoso... suponho... sol do vale. Flói foi morto por uma seta. Ele abateu o grande. Depois há uma mancha e continua: ... Flói debaixo de relva perto do Lago do Espelho. Não consigo ler a linha ou duas seguintes. Depois: Escolhemos o 21º. Salão do lado norte para nele vivermos. Há... Não consigo ler o quê. Mencionam um ventilador. A seguir: Balin instalou-se na Câmara de Mazarbul.
- A Câmara dos Registos - disse Gimli. - Suponho que é onde agora estamos.
- Bem, não consigo ler mais nada, numa grande extensão confessou Gandalf. - A não ser ouro, e Machado de Durin, e não sei quê elmo. Depois: Balin é agora Senhor de Mória. Isto parece encerrar um capítulo. Depois de algumas estrelas, a letra é outra e consigo ler a frase Encontrámos prata verdadeira, e mais adiante as palavras bem forjada, mais qualquer coisa... já sei! É mithril. Nas últimas duas linhas lê-se: ... Oin procurar os arsenais superiores da Terceira Profundidade, não sei o quê, para ocidente, uma mancha, para a Porta de Hollin.
Gandalf fez uma pausa e pôs algumas folhas de lado.
- Há diversas páginas do mesmo género, escritas apressadamente e muito danificadas - explicou. - Mas pouco posso decifrar, com esta luz. A seguir devem faltar diversas páginas, pois começam com a numeração cinco: o quinto ano da colónia, suponho. Deixem-me ver... Não, estão muito cortadas e sujas, não consigo ler. Talvez: tenhamos mais sorte à luz do sol. Está aqui qualquer coisa! Uma letra grande e ousada, na escrita élfica.
- Deve ser a letra de Ori - disse Gimli, a espreitar por cima do braço do feiticeiro. - Ele escrevia bem depressa e usava muitas vezes a escrita élfica.
- Infelizmente, tinha más notícias a registar numa letra bonita - comentou Gandalf. - A primeira palavra que se lê claramente é mágoa, mas o resto da linha é indecifrável, só se percebe que termina em... tem. Sim, deve ser: Ontem, 10 de Novembro, Balin, Senhor de Mória, caiu no Vale do Regato Sombrio. Foi sozinho ver o Lago do Espelho, um orc alvejou-o de detrás de uma pedra. Abatemos o orc, mas muitos mais... de leste pelo Filão de Prata acima. O resto da página está tão manchado, que não consigo perceber quase nada, a não ser o que me parece ser trancámos as portas e depois podemos defendê-las longamente se, e a seguir, talvez, horrível e sofrer. Pobre Balin! Parece ter conservado o título que escolheu menos de cinco anos. Gostaria de saber o que aconteceu depois, mas não há tempo para decifrar as últimas páginas. Cá está a última de todas.
Fez um a pausa e suspirou.
- É leitura triste - murmurou. - Parece-me que o fim deles foi cruel. Escutem! Não podemos sair. Não podemos sair. Eles tomaram a ponte e o segundo salão. Frár, Lóni e Náli caíram aí. Seguem-se quatro linhas manchadas, de modo que só consigo ler partiu há 5 dias. As últimas linhas dizem: o lago chega à muralha na Porta Ocidental. O Vigia da Água apanhou Óin. Não podemos sair. O fim aproxima-se. E depois: tambores, tambores nas profundezas. Não compreendo o que isto significa. A última coisa está escrita num rabisco, em letras élficas: Eles vêm aí. Não há mais nada.
Gandalf calou-se e ficou pensativo e silencioso.
Um terror súbito e um horror pelo aposento onde se encontravam apoderaram-se do grupo.
- Não podemos sair - murmurou Gimli. - Foi uma sorte para nós o lago ter baixado um bocado e o Vigia estar a dormir do lado sul.
Gandalf levantou a cabeça e olhou em redor.
- Parece que eles se defenderam pela derradeira vez junto de ambas as portas... mas nessa altura já não restavam muitos. Assim acabou a tentativa de retomar Mória! Foi um gesto valente, mas idiota. Ainda não chegou o momento. Agora acho que temos de nos despedir de Balin, filho de Fundin. Ele tem de permanecer aqui, nos salões dos seus antepassados. Levaremos este livro... o Livro de Mazarbul... e mais tarde estudá-lo-emos com mais atenção. Deve ficar com ele, Gimli, e levá-lo a Dáin, se tiver essa sorte. Há-de interessá-lo, embora lhe cause profundo desgosto, também. E agora vamos! A manhã está a passar.
- Que caminho seguiremos? - perguntou Boromir.
- Voltamos para o salão - respondeu-lhe Gandalf. - Mas a nossa visita a esta sala não foi em vão. Agora sei onde estamos. Esta deve ser, como Gimli disse, a Câmara de Mazarbul; e o salão deve ser o vigésimo primeiro do lado norte. Consequentemente, devemos partir pelo arco oriental do salão, direitos a sul e para baixo. O Vigésimo Primeiro Salão fica, creio, no sétimo andar, ou seja, seis acima do nível das Portas. Vamos, voltemos ao salão!
Mal Gandalf acabara de falar, ouviu-se um barulho muito grande, um bum! ribombante que parecia vir muito de baixo e fazer tremer as pedras, aos pés deles. Correram para a porta, alarmados. Dum, dum!, ribombou de novo, como se mãos enormes estivessem a transformar as próprias cavernas de Mória num imenso tambor. Depois soou um toque, uma grande trompa tocou no salão e, mais longe, ouviram-se outras responder, de mistura com gritos ásperos. Ouviu-se igualmente o som de muitos passos apressados.
- Eles vêm aí! - gritou Legolas.
- Não podemos sair - disse Gimli.
- Encurralados! - gritou Gandalf. - Por que me demorei? Aqui estamos agora, apanhados, exactamente como eles, antes. Mas eu não estava aqui, então. Veremos o que...
Dum, dum!, repetiu o tambor, e as paredes tremeram.
- Empurrem as portas e travem-nas! - ordenou Aragorn. - E conservem as mochilas às costas enquanto puderem. Talvez ainda tenhamos uma possibilidade de abrir caminho e sair.
- Não! - discordou Gandalf. - Não devemos fechar-nos aqui dentro. Mantenham a porta leste encostada. Iremos por lá se tivermos uma oportunidade disso.
Soou outro áspero toque de trompa, a que se seguiram gritos agudos. Ouviam-se passos descer o corredor. Ouviu-se um tinido e um tropel e os membros do grupo desembainharam as espadas. Glamdring emitiu uma luz pálida e os gumes de Ferrão brilharam. Boromir encostou o ombro à porta ocidental.
- Espere um momento! Não a feche ainda! - gritou Gandalf, ao mesmo tempo que saltava para o lado de Boromir e se endireitava, em toda a sua estatura.
- Quem vem perturbar o repouso de Balin, Senhor de Mória? - perguntou, em voz forte e alta.
Ouviu-se um gargalhar gutural, como o cair de pedras soltas num buraco. No meio do clamor, ergueu-se uma voz profunda, numa ordem. Dum, bum, dum!, continuaram os tambores, nas profundezas.
Com um movimento rápido, Gandalf colocou-se na abertura da porta e estendeu o bastão para a frente. Um clarão ofuscante iluminou a câmara e o corredor exterior. O feiticeiro olhou para fora, um instante, e as setas assobiaram no corredor, quando ele saltou para trás.
- São orcs, muitos - informou. - E alguns grandes e cruéis: uruks negros de Mordor. De momento não avançam, mas está lá mais qualquer coisa... Um grande troll das cavernas, suponho, ou até mais do que um. Não há esperança de fuga por aquele lado.
- E esperança de espécie nenhuma se vierem também por aquela porta - lembrou Boromir.
- Ainda não se ouve nada lá fora, deste lado - disse Aragorn, que estava parado junto da porta oriental, a escutar. - O caminho deste lado segue a direito por uma escada abaixo; é evidente que não leva de novo ao salão. Mas não valerá de nada fugirmos às cegas por aqui, com eles a perseguirem-nos de perto. Não podemos bloquear a porta. A chave desapareceu e a fechadura está partida, além de que a porta abre para dentro. Primeiro temos de fazer qualquer coisa que demore o inimigo. Vamos fazê-los temer a Câmara de Mazarbul! - exclamou, duramente, a experimentar o fio da sua espada, Andúril.
Ouviram-se passos pesados no corredor. Boromir atirou-se à porta e empurrou; depois travou-a com lâminas de espadas partidas e fragmentos de madeira. O grupo recuou para o outro lado da câmara. Mas a oportunidade de fugir ainda não chegara. Ouviu-se uma pancada que fez estremecer a porta, a qual começou a abrir-se devagar, a gemer e a empurrar as cunhas para trás. Um enorme braço e um ombro, de pele escura com escamas esverdeadas, introduziram-se pela fresta crescente. Depois entrou, à força, um grande pé chato e sem dedos. O silêncio era total, no exterior.
Boromir saltou para a frente e atacou o braço com toda a força; mas a espada vibrou, deslizou e caiu-lhe da mão trémula. A lâmina ficou com bocas.
De súbito, e para sua própria surpresa, Frodo sentiu uma cólera ardente abrasar-lhe o coração. «Pelo Shire!», gritou, e, saltando para o lado de Boromir, baixou-se e cravou Ferrão no hediondo pé. Soou um berro e o pé recuou bruscamente, quase arrancando Ferrão do braço de Frodo. Da lâmina caíram pingos negros que fumegaram no chão. Boromir atirou-se à porta e flechou-a de novo.
- Um para o Shire! - gritou Aragorn. - A picada do hobbit é funda. Tem uma boa lâmina, Frodo, filho de Drogo!
Ouviu-se um estrépito na porta, seguido por outros, sucessivos. Aríetes e martelos atacavam-na. Por fim rachou-se, recuou e a abertura ficou mais larga, subitamente. Entraram setas, a assobiar, mas bateram na parede norte e caíram, inofensivas, para o chão.
Ouviu-se um toque de trompa, um arrastar de pés, e saltaram orcs para a câmara, um após outro.
O grupo não pôde contá-los. A refrega foi violenta, mas os orcs ficaram apavorados com a violência da defesa. Legolas atingiu dois na garganta, com as suas setas. Gimli cortou com uma machadada as pernas de outro que saltara para cima do túmulo de Balin. Boromir e Aragorn abateram muitos. Quando o décimo terceiro caiu, os restantes fugiram, a gritar esganiçadamente. Os defensores estavam incólumes - excepto Sam, que tinha um arranhão ao longo da cabeça e se salvara com uma esquiva rápida; mas matara o seu orc, no qual cravara, num ímpeto, a sua lâmina das antas. Ardia-lhe nos olhos castanhos um fogo que teria feito recuar Ted Amarelento, se o pudesse ver.
- É agora o momento! - gritou Gandalf. - Vamos, antes que o troll volte!
Mas, precisamente quando retiravam, e antes que Pippin e Merry tivessem chegado à escada, um enorme capitão orc, quase da altura de um homem e vestindo cota de malha preta dos pés à cabeça, saltou para dentro da sala; os seus subordinados amontoaram-se à entrada da porta, atrás dele. Tinha rosto largo, achatado e escuro, olhos como carvões e língua vermelha, e empunhava uma grande lança. Com um empurrão do enorme escudo de couro, desviou a espada de Boromir e atirou-o para trás e para o chão. Esquivando-se ao golpe de Aragorn com a velocidade de uma serpente a atacar, avançou para o grupo e apontou a lança direita a Frodo. O golpe apanhou-o do lado direito e Frodo foi arremessado contra a parede, espetado. Sam soltou um grito, desferiu um golpe no cabo da lança e partiu-o. Quando o orc largava o coto e empunhava a cimitarra, Andúril abateu-se-lhe no capacete. Brilhou um clarão, como uma labareda, e o capacete abriu-se. O orc caiu, de cabeça rachada. Os outros fugiram, aos uivos, quando Boromir e Aragorn saltaram para eles.
Dum, dum!, continuavam os tambores, no fundo. O grande fragor ribombou de novo.
- Agora! - gritou Gandalf. - É a última oportunidade. Vamos, corram.
Aragorn levantou Frodo, que estava caído junto da parede, e dirigiu-se para a escada, a empurrar Merry e Pippin à sua frente. Os outros seguiram-nos. Mas Gimli teve de ser arrastado por Legolas; apesar do perigo, o anão parara junto do túmulo de Balin, de cabeça baixa. Boromir puxou a porta oriental, a ranger nos gonzos. Tinha grandes anéis de ferro, de ambos os lados, mas não se podia fechar.
- Estou bem - disse Frodo, ofegante. - Posso andar. Ponha-me no chão!
Aragorn quase o deixou cair, tão espantado ficou.
- Pensei que estivesse morto! - exclamou.
- Ainda não! - comentou Gandalf. - Mas não há tempo para nos espantarmos. Vá, todos pela escada abaixo! Esperem uns minutos por mim, lá em baixo, mas se eu me demorar, prossigam! Vão depressa e escolham caminhos que sigam para a direita e para baixo.
- Não podemos deixá-lo a tomar conta da porta sozinho! - protestou Aragorn.
- Façam o que eu disse! - ordenou Gandalf, veementemente. - As espadas não servem para mais nada, aqui. Vão!
Não havia ventiladores a iluminar a passagem, que estava completamente às escuras. Desceram, a tactear, um comprido lanço de escada e depois olharam para trás; mas não conseguiram ver nada, a não ser, lá muito em cima, o brilho fraco do bastão do feiticeiro, que parecia continuar de guarda à porta fechada. Frodo, a respirar pesadamente, apoiou-se em Sam, que o envolveu nos braços.
Ficaram parados, a olhar pela escada escura acima. Frodo julgou ouvir a voz distante de Gandalf a murmurar palavras que desciam o telhado inclinado como ecos de suspiros. Mas não conseguiu perceber o que dizia. As paredes pareciam tremer e, de vez em quando, os toques de tambor soavam e repercutiam-se: dum, dum!
De súbito, no cimo da escada, brilhou um jorro de luz branca. Seguiu-se um fragor surdo e como que uma queda pesada. Os tambores tocaram desenfreadamente: dum-bum! dum-bum!, e depois pararam. Gandalf veio de escantilhão pela escada abaixo e caiu no meio do grupo.
- Pronto, acabou-se! - anunciou o feiticeiro, enquanto se levantava. - Fiz tudo quanto pude. Mas encontrei adversário à minha altura e quase fui destruído. Não fiquem aqui parados! Sigam! Terão de se arranjar sem luz durante um bocado; fiquei muito abalado. Sigam! Sigam! Onde está você, Gimli! Venha à frente, comigo! Os outros sigam-nos de perto, todos!
Seguiram-no aos tropeções, a perguntar a si mesmos o que teria acontecido. Dum, dum!, recomeçaram os tambores; agora pareciam abafados e muito distantes, mas continuavam a segui-los. Não se ouviam quaisquer outros sons de perseguição, nem passos, nem qualquer voz. Gandalf não virou nem à esquerda nem à direita, pois o corredor parecia seguir na direcção que desejava. De quando em quando havia que descer um lanço de escada, cinquenta degraus ou mais, para um nível inferior. De momento, esse era o principal perigo que corriam, pois às, escuras só davam pela escada quando a alcançavam e sentiam o vácuo debaixo dos pés. Gandalf tacteava o chão com o bastão, como um cego.
Ao fim de uma hora tinham percorrido cerca de. 1,5 km, ou um pouco mais, e descido muitos lanços de escada. Continuavam a não ouvir qualquer som de perseguição. Começavam quase a ter esperança de que escapariam. Gandalf parou, no fundo da sétima escada.
- Está a ficar quente! - exclamou, ofegante. - Agora devemos estar, pelo menos, ao nível das Portas. Creio que em breve teremos de começar a procurar uma viragem para a esquerda, a fim de seguirmos para leste. Espero que não seja longe. Estou muito cansado. Tenho de descansar aqui um bocado, nem que venham atrás de nós todos os orcs jamais nascidos.
Gimli agarrou-lhe num braço e ajudou-o a sentar-se no degrau.
- Que aconteceu lá em cima, na porta? - perguntou-lhe. - Encontrou o tocador dos tambores?
- Não sei - respondeu o feiticeiro. - Mas, de repente, vi-me diante de qualquer coisa que nunca encontrara antes. Não consegui lembrar-me de mais nada que não fosse tentar dizer um encantamento que fechasse a porta. Sei muitos; mas para fazer coisas desse género bem feitas é preciso tempo e, mesmo assim, a porta pode ser aberta pela força.
»Enquanto ali estava parado, ouvia vozes de orcs do outro lado e pensava que arrombariam a porta de um momento para o outro. Não compreendia o que diziam, pois parecia estarem a falar na sua hedionda língua. A única palavra que captei foi ghâsh, que significa «fogo». Então entrou qualquer coisa na câmara... senti-o através da porta... e os próprios orcs tiveram medo e ficaram silenciosos, Agarrei o anel de ferro da porta e, então, ele apercebeu-se da minha presença e do meu encantamento.
»Não faço ideia do que era, mas nunca senti tamanho desafio. O contra-encantamento foi terrível e quase me destruiu. Por instantes a porta furtou-se ao meu domínio e começou a abrir-se! Tive de proferir uma ordem! Mas isso exigiu uma grande tensão, e a porta fez-se em pedaços. Algo escuro como uma nuvem bloqueava toda a luz do interior, e eu fui empurrado para trás, pela escada abaixo. Toda a parede cedeu, e creio que também o tecto da câmara.
»Receio que Balin tenha ficado soterrado muito fundo... e qualquer coisa mais com ele, talvez. Não sei. Mas pelo menos a passagem atrás de nós ficou completamente bloqueada. Ah, nunca me senti tão esgotado! Mas está a passar. E tu, Frodo? Não tive tempo de to dizer, mas nunca senti tão grande satisfação como quando te ouvi falar. Receava que Aragorn transportasse um hobbit valente mas morto.»
- E eu? - redarguiu Frodo. - Eu estou vivo e intacto, creio. Sinto-me magoado e tenho dores, mas não é nada de grave.
- Só posso dizer que os hobbits são feitos de um material tão duro que nunca encontrei outro igual - confessou Aragorn. - Se tenho sabido, tinha falado mais docemente na estalagem de Bree! Aquela lançada teria traspassado um javali, como um espeto!
- Bem, apraz-me afirmar que a mim não me traspassou, embora tenha a sensação de ter sido apanhado entre um martelo e uma bigorna - respondeu Frodo, e calou-se; custava-lhe a respirar.
- Sais ao Bilbo - declarou Gandalf. - Há mais em ti do que os olhos vêem, como eu já disse há muito tempo.
Frodo ficou a pensar se a observação quereria dizer mais do que parecia.
Reataram a caminhada. Pouco depois, Gimli falou. Tinha olhos penetrantes, no escuro.
- Creio que há uma luz em frente. Mas não é a luz do dia. É vermelha. Que poderá ser?
- Ghâsh! - murmurou Gandalf. - Seria isso que eles estavam dizer? Que os níveis inferiores estavam a arder? De qualquer modo, a nossa única alternativa é seguir para a frente.
Em breve, a luz tornou-se inconfundível e pôde ser vista por todos. Tremeluzia e brilhava nas paredes, pelo corredor fora, à frente deles.
Agora pelo menos viam o caminho: em frente descia abruptamente e um pouco mais adiante erguia-se um arco baixo, pelo qual entrava a luz crescente. O ar tornou-se muito quente.
Quando chegaram ao arco, Gandalf entrou e fez-lhes sinal para esperarem. Parou, logo após a entrada, e viram-lhe o rosto iluminado por um clarão vermelho. Recuou imediatamente, muito depressa.
- Há aqui qualquer nova partida, sem dúvida engendrada para nos dar as boas-vindas - observou. - Mas agora sei onde estamos: chegámos à Primeira Profundidade, o nível imediatamente abaixo das Portas. Este é o Segundo Salão da Antiga Mória, e as Portas ficam perto, a seguir à extremidade oriental, à esquerda, a uns quatrocentos metros. Atravessa-se a ponte, sobe-se uma escada larga, segue-se por uma estrada larga, atravessa-se o Primeiro Salão e sai-se! Mas venham ver!
Espreitaram, e viram à sua frente outro salão cavernoso, mais alto e muito mais comprido do que aquele onde tinham dormido. Encontravam-se perto da sua extremidade oriental; prolongava-se para ocidente, mergulhado em trevas. No meio havia uma fila dupla de colunas altas, esculpidas como copas de grandes árvores cujos ramos sustentavam o tecto, com ornatos bifurcados de pedra. Os troncos eram lisos e pretos, mas espelhava-se-lhes aos lados uma incandescência vermelha-escura. No chão, junto à base de duas das enormes colunas, abrira-se uma grande fenda. Dela saía uma luz vermelho-viva e, de vez em quando, chamas lambiam as bordas da abertura e enroscavam-se na base das colunas. Fiapos de fumo escuro pairavam no ar quente.
- Se tivéssemos vindo pelo caminho principal que desce das salas superiores, teríamos ficado encurralados aqui - disse Gandalf. - Esperemos que o fogo esteja, agora, entre nós e os nossos Perseguidores. Venham! Não há tempo a perder.
Enquanto ele falava ouviram de novo o ameaçador toque de tambor: dum, dum, dum!... Do outro lado das sombras do extremo ocidental do salão chegaram gritos e toques de trompa. Dum, dum! As colunas pareciam vibrar e as chamas estremecer.
- Vamos à última corrida! - incitou Gandalf. - Se o sol brilha, lá fora, talvez ainda nos salvemos. Sigam-me!
Virou à esquerda e correu velozmente pelo chão liso do salão. A distância era maior do que parecera. Enquanto corriam, ouviram o ruído e o eco de muitos pés que corriam também atrás deles. Nisto, soou um grito agudo: tinham-nos visto. Ouviu-se um tinido e um entrechoque de aço. Uma seta assobiou por cima da cabeça de Frodo.
Boromir riu-se.
- Eles não esperavam por esta - disse. - O fogo cortou-lhes o caminho. Estamos do lado contrário ao que contavam!
- Olhem para a frente com atenção! - recomendou Gandalf. A ponte fica perto e é perigosa e estreita.
De súbito, Frodo viu à sua frente um abismo negro. Ao fundo do salão, o chão desaparecia e descia a pique para uma profundidade desconhecida. Só era possível chegar à porta daquele lado através de uma estreita ponte de pedra, sem parapeito nem guarda, a qual abarcava o abismo num lanço arqueado de 15 m. Tratava-se de um antigo dispositivo de defesa dos Anões contra qualquer inimigo que porventura tomasse o Primeiro Salão e os corredores exteriores. Só a podiam atravessar em fila indiana. Gandalf parou, junto dela, e os outros reuniram-se atrás dele.
- Vá à frente, Gimli! - ordenou. - Depois Pippin e Merry. Sempre a direito, e depois subam a escada a seguir à porta!
Caíram setas entre eles. Uma embateu em Frodo e ressaltou para trás; outra acertou no chapéu de Gandalf e ficou lá espetada como uma pluma preta. Frodo olhou para trás. Viu, do outro lado do fogo um magote de vultos negros: pareciam centenas de orcs. Brandiam lanças e cimitarras a que a luz das chamas dava um brilho vermelho, como sangue. Dum, dum!, ribombavam os tambores, cada vez mais alto. Dum, dum!
Legolas virou-se e colocou uma seta na corda, embora a distância fosse muito grande para o seu pequeno arco. Esticou-o, mas a mão pendeu-lhe e a seta escorregou para o chão. Deu um grito de pavor e medo. Apareceram dois grandes trolls com enormes lajes que atiraram para o chão, a fim de servirem de passadiço por cima do fogo. Mas não tinham sido os trolls que haviam apavorado, o elfo. As fileiras de orcs tinham-se aberto e eles haviam-se encolhido e afastado, como se também tivessem medo. Aproximava-se qualquer coisa por trás deles. O que era, não se via: parecia uma grande sombra, no meio da qual havia um vulto escuro, talvez de forma humana, mas maior. E dir-se-ia haver nela, e avançar à sua frente, uma força e um terror inomináveis.
Aproximou-se da beira do fogo e a luz esvaiu-se, como se uma nuvem a ocultasse. Depois, com um impulso, saltou por cima da fenda. As chamas irromperam, altas, como que a saudá-la, e enroscaram-se nela, enquanto o ar se enchia de fumo negro. A sua juba ondulante incendiou-se e brilhou, esvoaçante, atrás do vulto. Na mão direita empunhava uma espada que parecia uma acutilante língua de fogo; na esquerda segurava um chicote de muitas pontas.
- Ai! Ai! - gemeu Legolas. - Um balrog! Vem aí um balrog!
Gimli olhou, de olhos arregalados.
- A Maldição de Durin! - exclamou e, deixando cair o machado, cobriu o rosto com as mãos.
- Um balrog - murmurou Gandalf. - Agora compreendo. - Cambaleou e apoiou-se pesadamente ao bastão. - Que sorte cruel! E eu que já estou cansado!
O vulto escuro, a escorrer fogo , correu para eles. Os orcs gritaram e começaram a atravessar os passadiços de pedra. Então, Boromir ergueu o corn e soprou. O desafio vibrou e ecoou alto e forte, como o grito de muitas gargantas, sob o tecto cavernoso. Por momentos, os orcs encolheram-se e a sombra incandescente parou. Depois, os ecos morreram tão bruscamente como uma chama soprada por um vento sinistro, e o inimigo avançou de novo.
- Passem a ponte! - gritou Gandalf, chamando a si todas as forças. - Fujam! Depressa! Este inimigo é superior a qualquer de vocês! Tenho de ser eu a defender a estreita passagem. Fujam!
Aragorn e Boromir não obedeceram à ordem, e continuaram onde estavam, lado a lado, atrás de Gandalf, do lado oposto da ponte. Os outros pararam sob o vão da porta do fundo do salão e voltaram-se, incapazes de deixar o seu guia enfrentar o inimigo sozinho.
O balrog chegou à ponte. Gandalf estava parado no meio do lanço de pedra, apoiado no bastão que a mão esquerda segurava; mas na direita brilhava-lhe Glamdring, fria e branca. O inimigo parou de novo, de frente para ele, e a sombra que o envolvia estendeu-se como duas imensas asas. Ergueu o chicote, cujas pontas silvaram e estalaram. Saía-lhe fogo das narinas. Mas Gandalf manteve-se firme.
- Não podes passar - disse; os orcs estacaram e fez-se um silêncio de morte. - Sou um servo do Fogo Secreto, manipulador da chama de Anor. Não podes passar. O fogo negro não te valerá, chama de Udûn. Volta para a Sombra! Não podes passar!
O balrog não respondeu. O fogo que havia nele pareceu esmorecer, mas o negrume aumentou. Avançou devagar, para a ponte, e de súbito ergueu-se muito alto e abriu as asas de parede a parede. Mas, mesmo assim, Gandalf continuava a ver-se, a brilhar na escuridão. Parecia pequeno e completamente só, cinzento e dobrado como uma árvore mirrada ante o desencadear de uma tempestade.
Da sombra irrompeu, flamejante, uma espada vermelha.
Glamdring cintilou, branca, em resposta.
Ouviu-se um choque ressoante e viu-se uma língua de fogo branco. O balrog recuou e a sua espada voou, em fragmentos fundidos. O feiticeiro cambaleou na ponte, recuou um passo imobilizou-se de novo.
- Não podes passar! - gritou.
O balrog saltou novamente para a ponte e o seu chicote girou e silvou.
- Ele não pode resistir sozinho! - gritou, de súbito, Aragorn e retrocedeu, pela ponte fora, a gritar: - Elendil! Estou consigo, Gandalf!
- Gondor! - gritou Boromir, e foi atrás de Aragorn.
Nesse momento, Gandalf levantou o bastão e, a gritar com força, bateu na ponte, à sua frente. O bastão partiu-se e caiu-lhe da mão, ao mesmo tempo que irrompia um ofuscante lençol de chamas. A ponte estalou. Partiu-se mesmo aos pés do balrog e a pedra sobre a qual ele se encontrava caiu estrepitosamente no abismo, enquanto o restante permanecia, a estremecer como uma língua de rocha projectada no vazio.
Com um grito terrível, o balrog caiu para a frente e a sua sombra mergulhou e desapareceu. Mas, enquanto caía, brandiu o chicote e as pontas enrolaram-se nos joelhos do feiticeiro e arrastaram-no para a beira do abismo. Gandalf cambaleou e caiu, agarrou-se inutilmente à pedra e escorregou para o fundo.
- Fujam, idiotas! - gritou, e desapareceu.
Os fogos apagaram-se, e fez-se escuridão total. O grupo ficou imóvel, petrificado de horror, a olhar fixamente para o buraco. No momento em que Aragorn e Boromir regressavam, a correr, o resto da ponte estalou e caiu também. Aragorn arrancou-os ao torpor com um grito:
- Venham! Eu conduzi-los-ei, agora! Temos de obedecer à sua última ordem. Sigam-me!
Subiram desordenadamente, aos tropeções, a grande escada que ficava diante da porta, com Aragorn à frente e Boromir na retaguarda. Ao cimo havia um corredor largo, cheio de ecos, pelo qual desataram a correr. Frodo ouviu Sam chorar, a seu lado, e verificou que ele próprio também chorava, enquanto corria. Dum, dum, dum!, batiam os tambores, agora lenta e tristemente, atrás deles. Dum!...
Continuaram a correr. A luz aumentou, diante deles, com grandes raios luminosos a coarem-se pelo tecto. Correram ainda mais depressa. Entraram num salão vivamente iluminado pela luz do dia, que entrava pelas altas janelas do lado oriental. Atravessaram-no velozmente, transpuseram as suas enormes portas partidas e, de súbito, viram à sua frente as Grandes Portas abertas, um arco de luz ofuscante.
Havia uma guarda de orcs acocorada nas sombras, atrás das altas ombreiras que se erguiam de ambos os lados, mas as portas propriamente ditas estavam destroçadas e derrubadas. Aragorn atirou ao chão, violentamente, o capitão que se atravessou no seu caminho, e os restantes guardas fugiram, apavorados com a sua cólera. O grupo passou por eles a correr, sem lhes ligar importância. Do lado de fora das Portas continuaram a correr e depois desceram, aos saltos, os enormes degraus gastos pelo tempo, o limiar de Mória.
Finalmente, depois de perdida toda a esperança, encontravam-se debaixo do céu e sentiam o vento no rosto.
Só pararam quando estavam fora do alcance dos arcos das muralhas. O Vale do Regato Sombrio estendia-se à sua volta, sob a sombra das Montanhas Nebulosas; mas a leste a terra apresentava-se banhada de luz dourada. Passava apenas uma hora do meio-dia. O Sol brilhava e as nuvens estavam altas e brancas.
Olharam para trás. O vão das portas escancarava-se, escuro, à sombra da montanha. O som dos tambores continuava a ouvir-se, mas ténue e longínquo, debaixo da terra: dum... Do interior saía fumo negro, pouco denso. Não se via mais nada; o vale em redor estava deserto. Dum! A dor apoderou-se, finalmente, deles, por completo, e choraram durante muito tempo, uns de pé e silenciosos e outros deitados no chão. Dum, dum... O bater dos tambores era cada vez mais fraco.
LOTHLóRIEN
- Ai, temo que não possamos demorar-nos aqui mais tempo! -, murmurou Aragorn, e depois olhou para as montanhas e ergueu a espada. - Adeus, Gandalf! - gritou. - Eu não lhe disse: Se transpuser as portas de Mória, acautele-se? Ai de mim, que não me enganei! Que esperança nos resta, sem a sua presença?
Voltou-se para o grupo e disse:
- Temos de passar sem esperança. Pelo menos ainda podemos ser vingados. Tenhamos coragem e não choremos mais! Venham! Temos uma longa estrada a percorrer e muito que fazer.
Levantaram-se e olharam à sua volta. A norte, o vale subia para uma abertura de sombras, entre dois grandes braços das montanhas, sobre os quais se erguiam e brilhavam três picos brancos: Celebdil, Fanuidhol e Caradhras, as Montanhas de Mória. Do alto da abertura descia uma torrente como uma renda branca sobre uma interminável escada de cataratas baixas, e na base das montanhas pairava no ar uma névoa de espuma.
- Além fica a Escada do Regato Sombrio - disse Aragorn, a apontar para as cataratas. - Se a sorte tivesse sido mais generosa, teríamos descido pelo caminho profundamente escavado que existe ao lado da torrente.
- Se a sorte tivesse sido mais generosa ou Caradhras menos cruel - observou Gimli. - Olhem para ela, a sorrir ao Sol! - Fechou o punho, sacudiu-o ao mais distante dos picos cobertos de neve e virou-lhe as costas.
A leste, o braço estendido das montanhas terminava bruscamente e, para lá delas, era possível distinguir terras distantes, vastas e difusas. A sul, as Montanhas Nebulosas prolongavam-se interminavelmente até onde a vista alcançava. A menos de 2 km de distância e um pouco abaixo, pois ainda se encontravam num ponto alto do lado ocidental do vale, havia um lago. Era comprido e oval, com o formato de uma grande ponta de lança profundamente cravada no valezinho do norte; mas a extremidade sul ficava para lá das sombras, sob o céu iluminado pelo Sol. No entanto, a sua água era escura, de um azul-carregado, como o céu de um anoitecer claro visto de uma sala com a luz acesa. A superfície não apresentava nem uma ruga. À sua volta havia um relvado macio, que descia de todos os lados até às margens nuas e regulares.
- Lá está o Lago do Espelho, o fundo Kheled-zâram! - exclamou Gilim, tristemente. - Lembro-me de ele ter dito: «Que possam admirar o espectáculo! Mas não nos poderemos demorar lá.» Agora longa distância terei de percorrer antes de sentir de novo alegria. Sou eu que tenho de me apressar e ele que tem de ficar.
O grupo desceu a estrada que partia das Portas. Era acidentada e irregular e desaparecia num carreiro sinuoso, entre urzes e tojos que irrompiam do meio das pedras rachadas. No entanto ainda se via que, havia muito tempo, existira um grande caminho pavimentado que subira, aos ziguezagues, das terras baixas do Reino dos Anões. Nalguns pontos havia ruínas de construções de pedra, ao lado do carreiro, e montículos de vegetação, coroados por esguias bétulas ou pinheiros que suspiravam ao vento. Uma curva para leste levou-os perto do relvado do Lago do Espelho, e aí, não longe da berma da estrada, viram uma coluna isolada, com a parte de cima partida.
- É a Pedra de Durin! - exclamou Gimli. - Não posso seguir sem me afastar um momento e admirar a maravilha do vale!
- Não se demore, então! - recomendou Aragorn, a olhar para trás, na direcção das Portas. - O Sol morre cedo. É provável que os orcs não saiam antes do crepúsculo, mas nós temos de estar muito longe antes de escurecer. A Lua está em fase minguante, quase a desaparecer, e esta noite será escura.
- Venha comigo, Frodo! - convidou o anão, e saiu, a saltar, da estrada. - Não permitirei que passe sem ver Kheled-zâram.
Correu pela longa e verde encosta abaixo e Frodo seguiu-o devagar, atraído pela água parada e azul apesar da dor e do cansaço. Sam foi atrás dele.
Gimli parou e olhou para cima, ao lado da coluna. Estava rachada e gasta pelo tempo e já não se conseguiam ler os caracteres rúnicos quase apagados gravados nos lados.
- Esta coluna assinala o lugar onde Durin olhou pela primeira vez para o Lago do Espelho - explicou o anão. - Olhemos também nós, uma vez, antes de prosseguirmos!
Inclinaram-se para a água escura. Ao princípio não viram nada, mas depois, pouco a pouco, viram as formas das montanhas circundantes reflectidas no azul-carregado e os picos pareceram-lhes plumas de chamas brancas por cima delas. Depois seguia-se um espaço de céu, no qual se afundavam como pedras preciosas cintilantes estrelas, embora a luz do Sol ainda brilhasse no céu que os cobria. Dos seus próprios corpos inclinados não se viam quaisquer reflexos.
- Ó Kheled-zâram belo e maravilhoso! - exclamou Gimli. - Ali jaz a coroa de Durin, até ele acordar. Adeus! - Inclinou-se e depois virou-se, subiu apressadamente a ladeira arrelvada e voltou à estrada.
- Que viste? - perguntou Pippin a Sam, mas este estava tão absorto nos seus pensamentos, que não lhe respondeu.
A estrada virou para sul e começou a descer muito, saindo de entre os braços do vale. A alguma distância abaixo do lago encontraram um fundo poço de água límpida como cristal, do qual caía um jorro para uma saliência de pedra, para depois correr, a cintilar e a gorgolejar, por um íngreme canal rochoso.
- Cá está a nascente donde parte o Filão de Prata - disse Gimli. - Não bebam! É fria como gelo.
- Não tarda a tornar-se um rio veloz e a receber água de muitas outras nascentes da montanha - acrescentou Aragorn. - O nosso caminho acompanha-o ao longo de muitos quilómetros, pois levá-los-ei pelo caminho que Gandalf escolheu e espero chegar primeiro às florestas onde o Filão de Prata se lança no Grande Rio, além. - Olharam na direcção por ele apontada e viram, à sua frente, o regato saltar por ali abaixo até ao fundo do vale e depois continuar a correr pelas terras mais baixas, até se perder numa névoa dourada.
- Ali ficam as florestas de Lothlórien! - exclamou Legolas. - É o mais belo de todos os lugares onde o meu povo vive. Não há árvores como as dessa terra, pois no Outono, em vez de caírem, as suas folhas ficam cor de ouro. Só quando a Primavera chega e os novos rebentos verdes abrem, elas caem, finalmente, e depois os ramos ficam carregados de flores amarelas; então, o chão da floresta é dourado, como dourado é o seu tecto, e as suas colunas são de prata, porque a casca das árvores é lisa e cinzenta. Assim o dizem, ainda, as nossas canções da Floresta Nebulosa. Como o meu coração se sentiria feliz se me encontrasse sob as árvores dessa floresta e fosse Primavera!
- O meu coração sentir-se-á feliz mesmo no Inverno - afirmou Aragorn. - Mas ainda fica a muitos quilómetros de distância. Por isso, apressemo-nos!
Durante algum tempo, Frodo e Sam conseguiram acompanhar os outros; mas Aragorn conduzia-os em grandes passadas e, decorrido um bocado, começaram a ficar para trás. Não tinham comido nada desde manhãzinha. Sam sentia o golpe queimá-lo como fogo e a cabeça leve. Apesar do brilho do Sol, o vento parecia frio em contraste com a escuridão quente de Mória. Sam teve um calafrio. Quanto a Frodo, cada passo parecia-lhe mais penoso do que o anterior e ofegava.
Por fim, Legolas voltou-se e, vendo que já tinham ficado muito para trás, chamou a atenção de Aragorn. Os outros pararam e Aragorn voltou para trás a correr e pediu a Boromir que o acompanhasse.
- Peço desculpa, Frodo! - exclamou, muito preocupado. - Aconteceram hoje tantas coisas, e temos tanta necessidade de nos apressar, que me esqueci de que estava ferido, e o Sam também. Deviam ter falado. Não fizemos nada para os aliviar, como deveríamos mesmo que todos os orcs de Mória viessem atrás de nós. Vamos lá! Ali adiante há um lugar onde poderemos descansar um pouco, e então eu verei o que posso fazer por vocês. Venha, Boromir, nós levamo-los.
Pouco depois encontraram outro rio que corria do lado ocidental e juntava a sua água murmurante ao apressado Filão de Prata. Juntos mergulhavam em seguida num leito abrupto de pedra esverdeada e desciam, espumejantes, para um valezinho. A volta dele erguiam-se pinheiros baixos e inclinados, e tinha os lados íngremes e revestidos de línguas de veado e moitas de mirtilo. No fundo havia um espaço plano, através do qual o rio corria ruidosamente, passando por cima de seixos reluzentes. Foi aí que descansaram. Já passavam quase três horas do meio-dia e poucos quilómetros se tinham afastado das Portas. O Sol começara já a sua viagem para ocidente.
Enquanto Gimli e os dois jovens hobbits acendiam uma fogueira de agulhas e lenha de pinheiro e arranjavam água, Aragorn tratou de Sam e Frodo. A ferida de Sam não era funda, mas tinha mau aspecto, e o rosto de Aragorn tornou-se grave ao examiná-la. Depois levantou a cabeça, aliviado.
- Teve sorte, Sam! - exclamou. - Muitos têm recebido pior do que isto como paga do primeiro orc que abatem. O golpe não está envenenado, como acontece frequentemente às feridas feitas por lâminas orcs. Depois de eu o tratar, vai sarar bem. Lave-o, quando Gimli aquecer água.
Abriu a bolsa e tirou algumas folhas murchas.
- Estão secas e, por isso, perderam algumas das suas virtudes - observou -, mas ainda aqui tenho um resto das folhas de athelas que colhi perto do Cume do Tempo. Esmague uma na água, limpe bem o ferimento e eu depois ligo-o. Agora é a sua vez, Frodo!
- Eu estou bem - respondeu Frodo, a quem não agradava a ideia de lhe mexerem na roupa. - Só precisava de comer qualquer coisa e descansar um pouco.
- Não! - discordou Aragorn. - Temos de ver o que o martelo e a bigorna lhe fizeram. Ainda me custa a crer que esteja vivo.
Com cuidado, despiu o velho casaco e a túnica puída de Frodo e soltou uma exclamação abafada de espanto. Depois riu-se. A cota de prata brilhava diante dos seus olhos como luz num mar ondulado. Despiu-lha também, cuidadosamente, pegou-lhe e as pedras preciosas refulgiram como estrelas. O tinido dos anéis lembrava o cair de chuva num lago.
- Olhem, meus amigos! - exclamou. - Aqui está uma bonita pele de hobbit digna de envolver um principezinho élfico! Se se soubesse que os hobbits tinham semelhantes peles, todos os caçadores da Terra Média se poriam a caminho do Shire.
- E todas as setas de todos os caçadores do mundo seriam inúteis - acrescentou Gimli, a olhar, maravilhado, para a cota de malha. - É uma cota de mithril! Mithril! Nunca vi nem ouvi falar de nenhuma tão bela. Foi desta que Gandalf falou? Se foi, subestimou-a. Mas foi bem dada!
- Tive muitas vezes curiosidade de saber o que tu e o Bilbo faziam, sempre fechados no quartinho dele - observou Merry. - Abençoado seja o velho hobbit! Agora gosto dele mais do que nunca. Espero que tenhamos oportunidade de lhe contar o que se passou!
Frodo tinha uma equimose escurecida, no flanco e no peito direitos. Usava debaixo da cota uma espécie de camisola de couro macio, mas num ponto os anéis tinham atravessado o couro e haviam-se cravado na carne. O lado esquerdo de Frodo também estava dorido e tinha equimoses, resultantes de ter sido arremessado contra a parede. Enquanto os outros preparavam a comida, Aragorn banhou as equimoses com água onde pusera a macerar athelas. A fragrância penetrante da planta encheu o valezinho e os que se inclinaram para a água fumegante sentiram-se refeitos e fortalecidos. Frodo não tardou a sentir a dor abandoná-lo e a poder respirar melhor - embora muitos dias ficasse com o corpo rígido e sensível ao contacto. Aragorn protegeu-lhe o flanco magoado com alguns chumaços de tecido macio.
- A cota de malha é extraordinariamente leve - disse. - Vista-a de novo, se pode suportá-la. Sinto-me contente por saber que tem semelhante protecção. Não a dispa nunca, nem mesmo para dormir, a não ser que a sorte o leve a algum lugar onde fique temporariamente ao abrigo do perigo... e isso acontecerá muito raramente, enquanto a sua missão durar.
Depois de comerem, prepararam-se para partir de novo. Apagaram a fogueira e ocultaram todos os vestígios dela. Em seguida saíram do valezinho e voltaram ao caminho. Não tinham avançado muito quando o Sol se ocultou atrás dos montes ocidentais e grandes sombras começaram a descer pelas vertentes das montanhas. O crepúsculo velou-lhes as bases e subiu névoa das cavidades. Ao longe, a oriente, a luz vespertina pairava sobre as terras obscurecidas de distantes planícies e florestas. Sam e Frodo, que tinham ficado a sentir-se mais aliviados e muito refeitos, podiam andar a bom passo. Por isso, apenas com uma paragem breve, Aragorn conduziu o grupo durante quase mais três horas.
Estava escuro. A noite caíra, profunda. As estrelas eram muitas, mas a Lua em minguante só mais tarde se mostraria. Gimli e Frodo iam na retaguarda, a caminhar em silêncio e com passos leves, atentos a qualquer som que se ouvisse na estrada, atrás. Por fim, Gimli quebrou o silêncio:
- Não se ouve nada, a não ser o vento. Não há gnomos nas proximidades, a não ser que eu esteja surdo como uma porta. Podemos acalentar a esperança de que os orcs se tenham contentado com expulsar-nos de Mória... Talvez fosse esse o seu único objectivo e não tivessem mais nada a ver connosco... com o anel. No entanto, os Orcs costumam perseguir os inimigos durante muitas léguas, até à planície, se têm de vingar a morte de algum chefe.
Frodo não respondeu. Olhou para Ferrão, cuja lâmina permanecia baça. No entanto, ele ouvira, ou julgara que ouvira, qualquer coisa. Assim que as sombras os tinham envolvido e a estrada, atrás, mergulhara em penumbra, ouvira de novo o ruído de passos apressados. Ouvia-o, naquele preciso momento. Virou-se, bruscamente. Viu - ou, mais uma vez, julgou ver - dois minúsculos pontos de luz, que se desviaram imediatamente para o lado e desapareceram.
- Que foi? - perguntou o anão.
- Não sei... Pareceu-me ouvir passos e julguei ver uma luz... como se fossem olhos. Tenho tido essa impressão muitas vezes, desde que entrámos em Mória.
Gimli parou e inclinou-se para o chão.
- Não ouço nada, a não ser a conversa nocturna de planta e pedra - declarou. - Vamos, apressemo-nos! Os outros já não se vêem!
O vento soprava, frio, pelo vale acima, ao seu encontro. À frente deles erguia-se uma grande sombra cinzenta e ouviam uma interminável restolhada de folhas, como de álamos agitados pela brisa.
- Lothlórien! - exclamou Legolas. - Lothlórien! Chegámos à entrada da Floresta Dourada. Que pena ser Inverno!
Na escuridão, as árvores erguiam-se, altas, a formar uma arcada sobre a estrada e o rio, que começou subitamente a correr sob os seus ramos estendidos. À fraca claridade das estrelas, os troncos apresentavam-se cinzentos e as folhas trémulas davam uma sugestão de ouro fulvo.
- Lothlórien! - exclamou Aragorn. - Que prazer ouvir de novo o vento nas árvores! Ainda só estamos a pouco mais de cinco léguas das Portas, mas não podemos ir mais longe. Esperemos que a virtude dos Elfos nos proteja esta noite do perigo que vem atrás.
- Se ainda aqui vivem, realmente, elfos no mundo a escurecer - observou Gimli.
- Há muito tempo que nenhum dos meus viaja para cá, de regresso à terra donde partimos há muitos séculos - disse Legolas -, mas consta-nos que Lórien ainda não está deserta, pois há aqui um poder secreto que afasta o mal da terra. No entanto, os habitantes raramente se vêem e é possível que vivam agora no coração das florestas e longe da fronteira setentrional.
- Vivem, realmente, no coração da floresta - confirmou Aragorn, e suspirou, como se tivesse despertado alguma recordação. - Esta noite teremos de nos arranjar sozinhos. Avançaremos um pouco, até ficarmos cercados por árvores, e depois sairemos do caminho e procuraremos um lugar para descansar.
Começou a andar, mas Boromir ficou parado, irresoluto, e não o seguiu.
- Não há outro caminho? - perguntou.
- Que melhor caminho poderia desejar? - redarguiu-lhe Aragorn.
- Uma simples estrada, mesmo que passasse por uma sebe de espadas - respondeu Boromir. - Por estranhos caminhos tem este grupo sido conduzido, e até agora com mau fim. Contra minha vontade atravessámos as sombras de Mória, e com isso perdemos. E agora diz que temos de entrar na Floresta Dourada. Mas nós em Gondor ouvimos falar dessa terra perigosa: diz-se que saem poucos dos que nela entram, e desses poucos nenhum incólume.
- Não diga incólume; se disser não mudado talvez diga a verdade, - contestou Aragorn. - Mas a tradição está a enfraquecer em Gondor, Boromir, se na cidade dos que em tempos foram sábios agora falam mal de Lothlórien. Acredite no que quiser, mas não existe outro caminho para nós, a não ser que estivesse disposto a voltar às Portas de Mória, escalar as montanhas ínvias ou atravessar o Grande Rio a nado, sozinho.
- Então conduza-nos - resignou-se Boromir. - Mas é perigoso!
- É perigoso, sim; belo e perigoso. Mas só o mal deve temê-lo, ou aqueles que trazem algum mal com eles. Sigam-me!
Tinham penetrado pouco mais de 1,5 km na floresta quando encontraram outro rio, que descia, veloz, das encostas arborizadas que subiam para ocidente, na direcção das montanhas. Ouviram-no cair numa cascata a certa distância, entre as sombras que ficavam à sua direita. As suas águas apressadas e escuras atravessavam o caminho à frente deles, e uniam-se ao Filão de Prata num remoinho de pegos indistintos, entre as raízes das árvores.
- Cá está o Nimrodel! - exclamou Legolas. Os Elfos das Florestas fizeram muitas canções a este rio, há muito tempo, e nós ainda as cantamos no Norte, a recordar o arco-íris das suas cascatas e as flores douradas que flutuavam na sua espuma. Agora é tudo escuro e a Ponte de Nimrodel caiu. Banharei nele os meus pés, pois diz-se que a água cura a fadiga.
Afastou-se, desceu o íngreme aterro da margem e entrou no rio.
- Sigam-me! - chamou. - A água não é funda. Atravessemo-lo. Podemos descansar na outra margem e talvez o som da água a cair nos traga o sono e o esquecimento do desgosto.
Desceram o aterro, um por um, e seguiram Legolas. Frodo parou um momento, à beira do rio, e deixou a água correr-lhe pelos pés fatigados. Era fria, mas o seu contacto causava uma sensação purificadora. Enquanto atravessava o rio e a água lhe subia aos joelhos, pareceu-lhe que a sujidade da viagem e toda a fadiga lhe abandonavam os membros.
Depois de o grupo todo ter atravessado, sentaram-se, descansaram e comeram um pouco. Legolas contou-lhes histórias de Lothlórien que os Elfos da Floresta Nebulosa ainda guardavam no coração e que falavam da luz do Sol e das estrelas nos prados junto ao Grande Rio, antes de o mundo se tornar cinzento.
Por fim ficaram silenciosos, a ouvir a música da água a correr suavemente nas sombras. Frodo quase imaginou que ouvia uma voz a cantar, misturada com o som da água.
- Ouvem a voz de Nimrodel? - perguntou-lhes Legolas. - Vou-lhes cantar uma canção da donzela Nimrodel, que tinha o mesmo nome do rio junto ao qual viveu há muito tempo. É uma bonita canção, na nossa língua da floresta, mas vou cantá-la na língua do Ocidente, como agora é cantada por alguns em Rivendell.
E começou a cantar, numa voz suave que mal se ouvia entre o murmurar das folhas, por cima deles:
Houve em tempos uma donzela élfica,
Uma cintilante estrela diurna;
O seu manto branco era debruado de ouro
E os seus sapatos cinzento-prateados.
Tinha uma estrela na fronte
E uma luz brilhava-lhe nos cabelos
Como sol em ramos dourados
Em Lórien, a bela.
Tinha longos os cabelos, brancos os membros
E era bela e livre;
Transportava-a o vento, leve
Como folha de tília.
Ao lado da cascata de Nimrodel,,
À beira da água clara e fresca,
A sua voz caía como prata
No cintilante rio.
Por onde anda agora ninguém sabe,
Se à luz do Sol, se na sombra;
Pois há muito se perdeu Nimrodel
E nas montanhas se transviou.
O barco élfico em cinzento porto
Ao abrigo da montanha
Por ele esperou muitos dias,
Ao lado do mar bramidor.
Levantou-se vento em terras setentrionais,
À noite, rugiu furibundo e levou
O barco das praias élficas
Através da maré tumultuosa.
Quando rompeu, pálida, a aurora,
A terra perdera-se e as cinzentas montanhas
Afundavam-se para lá das altas ondas
Que em plumas de ofuscante espuma se esvaíam.
Amroth olhou a costa distante,
Agora baixa, longe das vagas,
E amaldiçoou o barco desleal
Que assim o afastava de Nimrodel.
Rei élfico era, havia muito,
Senhor de árvores e vales
No tempo em que os ramos eram dourados
Na Primavera, na bela Lothlórien.
Do leme para o mar o viram saltar
Como seta de corda,
E mergulhar na água funda
Como gaivota em voo.
O vento soltava-lhe o cabelo,
A espuma à sua volta brilhava;
Viam-no de longe, forte e belo,
Deslizar como um cisne.
Mas do Ocidente não chegavam novas
E na margem de cá
Os Elfos nunca mais tiveram
Notícias de Amroth.
A voz de Legolas tremeu e a canção terminou.
- Não posso cantar mais - disse. - O que cantei foi apenas uma parte, pois esqueci muito. A canção é longa e triste, fala da mágoa que caiu sobre Lothlórien, Lórien das Flores, quando os Anões despertaram o mal nas montanhas.
- Mas não foram os Anões que fizeram o mal - protestou Gimli.
- Nem eu o disse; mas o mal chegou - respondeu Legolas, tristemente. - Depois, muitos dos elfos da estirpe de Nimrodel deixaram as suas residências e partiram e ela perdeu-se muito longe, no Sul, nos desfiladeiros das Montanhas Brancas, e não chegou ao barco onde Amroth, seu enamorado, a esperava. Mas na Primavera, quando o vento murmura nas folhas novas, ainda se ouve o eco da sua voz nas cascatas que têm o nome dela. E quando o vento sopra do Sul, a voz de Amroth vem do mar, pois o Nimrodel desagua no Filão de Prata, a que os Elfos chamam Celebrant, e o Celebrant desagua no Anduin, o Grande, e Anduin, o Grande, desagua na baía de Belfalas, donde os elfos de Lórien se fizeram à vela. Mas nem Nimrodel nem Amroth voltaram, nunca mais.
- Diz-se que ela tinha uma casa construída nos ramos de uma árvore que existia perto das cascatas, pois tal era... e talvez ainda seja... o hábito dos Elfos de Lórien: viver nas árvores. Por isso lhes chamavam Galadhrim, o Povo das Árvores. No coração da floresta, as árvores são muito grandes. O povo das florestas não habitava no solo, como os Anões, nem construía fortes casas de pedra, antes de a Sombra chegar.
- Mesmo nestes tempos de agora, morar nas árvores talvez seja mais seguro do que estar sentado no chão - comentou Gimli, a olhar, através do rio, para a estrada que vinha do Vale do Regato Sombrio e, depois, para cima, para o tecto de ramos escuros.
- As suas palavras constituem conselho acertado, Gimli - disse Aragorn. - Nós não podemos construir uma casa, mas esta noite faremos como os Galadhrim e procuraremos refúgio nas copas das árvores, se pudermos. Já estamos aqui sentados, perto da estrada, há mais tempo do que seria sensato.
O grupo afastou-se do caminho e penetrou na sombra da floresta mais densa, para ocidente, ao longo do rio da montanha e em sentido oposto ao Filão de Prata. Não longe das cascatas de Nimrodel encontraram um maciço de árvores, algumas das quais estendiam os ramos sobre o rio. O perímetro dos troncos cinzentos era imponente e não era possível calcular a sua altura.
- Eu subo - prontificou-se Legolas. - Estou no meu elemento entre as árvores, seja junto das raízes, seja nos ramos, embora estas pertençam a uma espécie que só conheço pelo seu nome, numa canção: Mellyrn lhes chamam e são as que dão as flores amarelas, mas nunca subi nenhuma. Agora vou ver que forma é a sua e qual o seu modo de crescimento.
- Sejam elas o que forem - declarou Pippin -, serão com certeza maravilhosas se conseguirem proporcionar repouso, de noite, a não ser a pássaros. Por mim, não sou capaz de dormir num poleiro!
- Então abra um buraco no chão, se isso é mais ao jeito da sua espécie - volveu-lhe Legolas. - Mas terá de cavar fundo e depressa, se deseja esconder-se dos orcs.
Saltou, leve, do chão e agarrou-se a um ramo que irrompia, alto, do tronco, por cima da sua cabeça. Mas, enquanto lá se balançava momentaneamente, soou de súbito uma voz, nas sombras da árvore:
- Daro! - disse, em tom autoritário, e Legolas deixou-se cair para o chão, surpreendido e assustado, e encolheu-se contra o tronco da árvore.
- Fiquem quietos - segredou aos outros. - Não se mexam nem falem!
Ouviu-se um som de riso suave, por cima da cabeça deles, e depois outra voz clara falou, numa língua élfica. Frodo pouco compreendeu do que foi dito, pois a língua usada pelo povo da floresta, a leste das montanhas, era diferente da do Ocidente. Legolas olhou para cima e respondeu na mesma língua.[ 1 Ver nota no apêndice F: «Dos Elfos». Cf. III vol.]
- Quem são e que dizem? - perguntou Merry.
- São elfos - respondeu Sam. - Não ouve a sua voz?
- Sim, são elfos - confirmou Legolas. - E dizem que vocês respiram tão ruidosamente, que eles seriam capazes de lhes acertar no escuro. - Sam tapou apressadamente a boca com a mão. - Mas dizem também que não precisam de ter medo. Havia muito tempo que tinham dado pela nossa presença. Ouviram a minha voz do outro lado do Nimrodel e ficaram a saber que pertencia à sua família do Norte, e por isso não levantaram obstáculos à nossa travessia. E, depois, ouviram a minha canção. Agora convidaram-me a subir com Frodo; parece que sabem alguma coisa a respeito dele e da nossa viagem. Pedem aos outros que esperem um pouco e fiquem de vigia na base da árvore, até eles decidirem o que se fará.
Da sombra desceu uma escada: era de corda, cinzento-prateada e brilhante no escuro, e, embora parecesse frágil, demonstrou ser suficientemente forte para suportar o peso de muitos homens. Legolas subiu, ligeiro, e Frodo seguiu-o, devagar. Sam foi atrás dele, a esforçar-se para não respirar muito alto. Os ramos da árvore mallorn irrompiam quase a direito do tronco e depois viravam para cima; mas perto do cimo do ramo principal dividia-se numa coroa de muitos ramos, entre os quais verificaram que fora construída uma plataforma de madeira, ou flet, como então se chamava a essas coisas. Os Elfos chamavam-lhe talan. Penetrava-se nela através de um buraco redondo aberto no meio, pelo qual a escada passava.
Quando Frodo chegou, finalmente, ao flet, encontrou Legolas sentado com três outros elfos. Vestiam de cinzento-sombrio e não se distinguiam entre os ramos da árvore, a não ser que se mexessem subitamente. Levantaram-se e um deles descobriu um pequeno candeeiro, que irradiava um delgado feixe de luz prateada. Levantou-o e olhou para a cara de Frodo e de Sam. Depois cobriu de novo a luz e disse palavras de boas vindas, na sua língua élfica. Frodo retribuiu, hesitante.
- Bem-vindos! - disse de novo o elfo, dessa vez no Idioma Comum, a falar devagar. - Raramente usamos outra língua além da nossa, pois agora habitamos no coração da floresta e não temos, de bom grado, relações com qualquer outra gente. Até mesmo os nossos parentes do Norte estão separados de nós. Mas alguns dos nossos ainda vão ao estrangeiro a fim de recolher notícias e observar os nossos inimigos, e, por isso, falam línguas de outras terras. Eu sou
um deles. Chamo-me Haldir. Os meus irmãos, Rúmil e Orophin, conhecem pouco a vossa língua.
»Mas ouvimos falar da vossa vinda, pois os mensageiros de Elrond passaram por Lórien de regresso à sua terra, pela Escada do Regato Sombrio. Havia muitos anos que não ouvíamos falar de... hobbits, ou halflings, e ignorávamos até que ainda viviam alguns na Terra Média. Vocês não têm aspecto de maus! E como vêm com um elfo da nossa espécie, estamos disposto a acolhê-los com amizade como Elrond pediu, embora não seja nosso costume conduzir desconhecidos através da nossa terra. Mas esta noite têm de ficar aqui. Quantos são?»
- Oito - respondeu Legolas. - Eu, quatro hobbits e dois homens, um dos quais, Aragorn, é um amigo de elfo do Povo da Ocidentalidade.
- O nome de Aragorn, filho de Arathorn, é conhecido de Lórien e merece a simpatia da Dama - disse Haldir. - Está tudo bem, portanto. Mas por enquanto ainda só mencionaste sete.
- O oitavo é um anão - esclareceu Legolas.
- Um anão! - exclamou Haldir. - Isso não está bem! Não temos quaisquer relações com os Anões desde os Dias Negros. Não têm autorização para entrar na nossa terra e eu não posso permitir que ele passe.
Mas ele é da Montanha Solitária, uma das pessoas de confiança de Dáin e com relações amigáveis com Elrond - explicou Frodo. - O próprio Elrond o escolheu para fazer parte do nosso grupo e ele tem sido corajoso e leal.
Os elfos conversaram entre si em voz suave e depois interrogaram Legolas, na sua língua.
- Muito bem - disse Haldir, por fim. - Acedemos, embora nos não agrade. Se Aragorn e Legolas o vigiarem e responderem por ele, passará; mas terá de atravessar Lothlórien de olhos vendados.
»Agora não devemos perder mais tempo a discutir. Não convém que vocês permaneçam no chão. Temos mantido vigias nos rios, desde que vimos um grande destacamento de orcs marchar para norte, na direcção de Mória, pelas imediações das montanhas, há muitos dias. Uivam lobos na fronteira da floresta. Se vieram realmente de Mória, o perigo não pode vir muito atrás. Amanhã cedo têm de partir.
»Os quatro hobbits subirão para aqui e ficarão connosco. Não temos medo deles! Há outro talan, na árvore seguinte, e os outros devem refugiar-se lá. Tu, Legolas, responderás por eles perante nós. Chama-nos, se acontecer alguma coisa! E não percas o anão de vista!»
Legolas desceu imediatamente a escada para transmitir a mensagem de Haldir, e pouco depois Merry e Pippin subiram para o alto talan. Chegaram sem fôlego e com ar de assustados.
- Pronto! - exclamou Merry, ofegante. - Trouxemos os cobertores de vocês, além dos nossos. Passo de Gigante escondeu o resto da nossa bagagem num grande monte de folhas.
- Não precisavam de ter trazido as suas coisas - disse Haldir. - Está frio nas copas das árvores, no Inverno, embora esta noite o vento sopre do Sul; mas nós temos para lhes dar comida e bebida que expulsarão o frio nocturno, além de lhes podermos dispensar peles e capas.
os hobbits aceitaram o segundo (e muito melhor) jantar de bom grado. Depois embrulharam-se muito bem, não só nas capas de peles dos elfos, mas também nos seus próprios cobertores, e tentaram adormecer. Mas, apesar do cansaço, Sam foi o único que adormeceu facilmente. Os hobbits não gostam das alturas e não costumam dormir no primeiro andar, nem mesmo quando têm primeiro andar. O talan não lhes agradava nada como quarto de dormir. Não tinha paredes, nem sequer um parapeito; havia apenas, num dos lados, uma espécie de biombo leve e pregueado que se podia mudar e fixar em lugares diferentes, consoante o vento.
Pippin continuou a falar durante algum tempo:
- Espero que, se adormecer nessa cama-sótão, não vá parar lá abaixo.
- Eu, se adormecer, continuarei a dormir, caia ou não. E quanto menos se disser, mais depressa caio... no sono, se me estão a entender.
Frodo ficou algum tempo acordado, a olhar para as estrelas que brilhavam através do pálido tecto formado pelas folhas levemente agitadas. A seu lado, Sam começou a ressonar muito antes de ele fechar os olhos. Via vagamente as formas cinzentas de dois elfos sentados imóveis, com os braços à volta dos joelhos e a falar num sussurro. O outro descera, a fim de ficar de sentinela num dos ramos inferiores. Por fim, embalado pelo vento dos ramos, em cima, e pelo suave murmúrio das cascatas de Nimrodel, em baixo, Frodo adormeceu a pensar na canção de Legolas.
Acordou, alta noite. Os outros hobbits estavam a dormir e os elfos tinham-se ido embora. A foice da Lua brilhava vagamente entre as folhas. O vento parara. Ouviu, a certa distância, uma gargalhada áspera e o pisar de muitos pés, em baixo, de mistura com um tinido de metal. Os sons diminuíram pouco a pouco e pareceram-lhe que iam na direcção sul, para o âmago da floresta.
De súbito apareceu uma cabeça através do buraco do talan. Frodo sentou-se, assustado, e verificou que se tratava de um elfo de capuz cinzento, o qual olhou na direcção dos hobbits.
- Que foi? - perguntou Frodo.
- Yrch! - respondeu o elfo, num murmúrio sibilante, e atirou a escada de corda enrolada para o chão.
- Orcs! Que andam eles a fazer?
Mas o elfo voltara a desaparecer.
Não se ouviram mais ruídos. Até as folhas estavam silenciosas e a voz das próprias cascatas parecia abafada. Frodo ficou sentado, a tremer nos abafos. Sentia-se grato por não terem sido surpreendidos no solo, embora lhe parecesse que as árvores pouca protecção proporcionavam, além de um esconderijo. Os Orcs tinham um faro apurado como cães de caça, segundo se dizia, e também eram capazes de trepar por árvores. Desembainhou o Ferrão: cintilou e brilhou como uma chama azul, mas depois o brilho desapareceu lentamente e a lâmina voltou a ficar baça. Apesar de isso significar que não havia orcs perto, a sensação de perigo imediato não abandonou Frodo; pelo contrário, aumentou. Levantou-se, aproximou-se devagarinho da abertura e espreitou para baixo. Teve quase a certeza de ouvir movimentos furtivos na base da árvores em baixo.
Mas não se tratava de elfos, pois os Elfos da floresta eram absolutamente silenciosos nos seus movimentos. Depois ouviu, muito ténue, um ruído como o de farejar e pareceu-lhe que qualquer coisa raspava a casca do tronco da árvore. Olhou fixamente para baixo, no escuro, de respiração contida.
Qualquer coisa subia devagar, com uma respiração que lembrava um silvo suave, que passava através de dentes cerrados. Depois viu rente ao tronco, a subir, dois olhos pálidos, que pararam e olharam para cima, sem pestanejar. De súbito desviaram-se e um vulto deixou-se escorregar pelo tronco da árvore e desapareceu.
Quase no mesmo instante, Haldir começou a subir rapidamente através dos ramos.
- Estava qualquer coisa nesta árvore que eu nunca tinha visto - disse. - Não era um orc e fugiu assim que toquei no tronco. Se não me parecesse que procedia furtivamente e tinha uma certa perícia para subir árvores, até teria pensado que se tratava de um de vocês, hobbits.
»Não disparei uma seta porque não me atrevi a provocar gritos; não nos podemos arriscar a travar uma batalha. Passou uma forte companhia de orcs, há momentos. Atravessaram o Nimrodel... malditos sejam os seus pés imundos, que conspurcavam a água limpa!... e seguiram pela estrada antiga, ao lado do rio. Davam a impressão de estarem a procurar um rasto e estiveram um bocado a examinar o terreno das proximidades do lugar onde vocês pararam. Como nós três não podíamos desafiar um cento, fomos à frente e falámos com vozes falsas, a fim de os atrair para o coração da floresta.
»Agora, Orophin voltou apressadamente para trás, para as nossas residências, a fim de avisar os nossos. Nenhum dos orcs voltará a sair de Lórien e, antes de cair outra noite, haverá muitos elfos escondidos na fronteira setentrional. Mas vocês têm de meter pela estrada que segue para sul assim que for dia.»
O dia nasceu, pálido, a oriente. À medida que foi aumentando, a luz coou-se pelas folhas amarelas da mallorn e os hobbits tiveram a impressão de que estavam a brilhar os primeiros raios de sol de uma fresca manhã estival. O céu azul-claro espreitava por entre os ramos levemente agitados. Olhando por uma abertura do lado sul do talan, Frodo via todo o vale do Filão de Prata desenrolar-se como um mar de ouro fulvo, suavemente ondulado pela brisa.
A manhã mal começara, ainda, e estava fria quando o grupo partiu de novo, desta vez guiado por Haldir e pelo seu irmão Rúmil.
- Adeus, doce Nimrodel! - exclamou Legolas.
Frodo olhou para trás e captou um vislumbre de espuma branca entre os troncos cinzentos das árvores.
- Adeus! - murmurou, também.
Tinha a sensação de que nunca mais veria correr uma água tão bela, a misturar constantemente as suas inúmeras notas numa música sem fim, sempre a mudar.
Voltaram ao caminho, que se prolongava ao longo do lado ocidental do Filão de Prata, e seguiram-no para sul, durante algum tempo. Viam-se as pegadas dos orcs na terra. Mas pouco depois Haldir virou para o meio das árvores e parou sob as suas sombras, na margem do rio.
- Está um dos meus ali, do outro lado do rio - disse -, embora talvez o não vejam.
Emitiu um som, como o assobio baixo de um pássaro, e de um maciço de árvores jovens saiu um elfo vestido de cinzento, mas com o capuz puxado para trás e o cabelo a brilhar como ouro ao sol da manhã. Habilmente, Haldir atirou uma corda cinzenta por cima do rio e o elfo apanhou-a e atou a ponta a uma árvore próxima da margem.
- Celebrant já é, aqui, um rio forte, como vêem - explicou Haldir -, simultaneamente veloz e fundo, além de muito frio. Não lhe pomos os pés dentro tanto para norte, a não ser que sejamos obrigados a isso. Mas nestes dias de vigilância não construímos pontes. É assim que atravessamos! Sigam-me!
Atou a sua extremidade da corda a outra árvore e depois caminhou ligeiro por ela, por cima do rio, e voltou, como se estivesse numa estrada.
- Eu posso ir por esse caminho - observou Legolas -, mas aos outros falta a perícia. Têm de nadar?
- Não - respondeu Haldir. - Temos duas cordas que ataremos por cima das outras, uma aos ombros e outra à cintura. Assim, agarrando-se a elas, os estrangeiros poderão atravessar com cuidado.
Feita a frágil ponte, o grupo passou: uns, cautelosa e lentamente; outros, com maior facilidade. Dos hobbits, Pippin foi o melhor, pois tinha firmeza nos pés e andou depressa, a agarrar-se apenas com uma das mãos; mas sempre de olhos postos na margem do outro lado e sem olhar para baixo. Sam foi muito devagarinho, agarrado com força e a olhar para baixo, para a água clara e redemoinhante, como se fosse um abismo das montanhas. Suspirou de alívio quando se viu do outro lado.
- É aprender até morrer, como diria o meu avô! - exclamou.
Embora ele se referisse à jardinagem e não a dormir no poleiro como uma ave ou a tentar caminhar como uma aranha! Nem sequer o meu tio Andy fez, nunca, uma habilidade destas!
Quando, por fim, todo o grupo se encontrou reunido na margem oriental do Filão de Prata, os elfos desataram as cordas e enrolaram duas delas. Rúmil, que tinha ficado do outro lado, puxou a última, pô-la ao ombro e, com um aceno de mão, foi-se embora, voltou para o seu posto de vigilância em Nimrodel.
- Agora, amigos - anunciou Haldir -, entraram no Naith de Lórien, ou no Triângulo, como diriam, pois trata-se da terra que fica como uma ponta de lança entre os braços do Filão de Prata e do Anduin, o Grande. Não permitimos a nenhum estrangeiro que espie os segredos do Naith. Na realidade, a poucos é consentido que ponham lá os pés sequer.
»Como combinámos, aqui vendarei os olhos de Gimli, o anão. Os outros poderão seguir à vontade até nos aproximarmos das nossas residências em Egladil, no ângulo entre as águas.»
A decisão não agradou absolutamente nada a Gimli, que protestou:
- Essa combinação foi feita sem meu consentimento, e eu não caminharei de olhos vendados como um pedinte ou um prisioneiro. Não sou nenhum espião. A minha gente nunca teve quaisquer entendimentos com os servos do Inimigo, nem tão-pouco fizemos algum mal aos Elfos. Sou tão incapaz de os atraiçoar como Legolas ou qualquer outro dos meus companheiros.
- Não duvido de si - afirmou Haldir. - No entanto, essa é a nossa lei. Como não sou o mestre da lei, não posso desrespeitá-la. Muito já fiz ao deixá-lo passar o Celebrant.
Gimli mostrou-se obstinado. Apoiou-se firmemente nos pés afastados e pousou a mão no cabo do machado.
- Caminharei livre ou voltarei para trás e procurarei a minha própria terra, onde sabem que sou fiel à minha palavra, embora me arrisque a morrer sozinho nas terras ermas.
- Não pode voltar para trás - redarguiu-lhe Haldir, severamente. - Agora que veio até aqui, tem de ser levado à presença do Senhor e da Senhora. Eles julgarão se o detêm ou o deixam partir, como entenderem. Não pode a atravessar de novo os rios e agora estão atrás de si sentinelas secretas que não o deixarão passar. Seria abatido antes de as ver, sequer.
Gimli tirou o machado do cinto. Haldir e o companheiro retesaram os arcos.
- Uma praga cala sobre os Anões e a sua teimosia! - resmungou Legolas.
- Calma! - interveio Aragorn. - Se ainda sou o guia deste grupo, far-se-á como vou dizer. É duro para o anão receber um tratamento discriminativo; por isso seremos todos vendados, até Legolas. Será a melhor maneira, embora torne a jornada lenta e monótona.
Gimli desatou a rir.
- Pareceremos um lindo bando de idiotas! Haldir conduzir-nos-á a todos por uma corda, como a diversos mendigos cegos só com um cão? Contentar-me-ei se só Legolas partilhar a minha cegueira.
- Sou elfo e pertenço à família daqui - protestou Legolas, irritado por sua vez.
- Gritemos todos: uma praga caia sobre os teimosos dos Elfos! - troçou Aragorn. - Não, o grupo compartilhará tudo, igualmente.
Vamos, Haldir, vende-nos os olhos.
- Reclamarei compensação integral por cada queda e dedo esfolado, se não nos conduzir bem - disse Gimli, enquanto lhe vendavam os olhos.
- Não terá reclamações a fazer - garantiu-lhe Haldir. - Guiá-los-ei bem e os caminhos são direitos e lisos.
- Oh, a loucura destes tempos! - declamou Legolas. - Aqui somos todos inimigos do Inimigo, mas mesmo assim temos de caminhar de olhos vendados, enquanto o sol brilha, alegre, na floresta, sob as folhas douradas!
- Poderá parecer loucura - admitiu Haldir -, mas em nada se mostra mais claramente o poder do Senhor das Trevas do que nas desavenças que dividem todos aqueles que ainda se lhe opõem. No entanto, tão pouca confiança e lealdade encontramos agora no mundo, tirando Lothlórien e, talvez, Rivendell, que não ousamos, pela nossa própria confiança, pôr em perigo a nossa terra. Vivemos numa ilha entre muitos perigos e as nossas mãos passam mais tempo no arco do que na harpa.
»Os rios defenderam-nos durante muito tempo, mas já não são uma protecção segura, pois a Sombra infiltrou-se para norte, a toda a nossa volta. Alguns falam em partir, mas até para isso parece ser tarde. As montanhas a ocidente estão a tornar-se cada vez mais agrestes; a oriente, as terras estão ao abandono e cheias de criaturas de Sauron; consta que já não podemos passar em segurança para sul, através de Rohan, e as nascentes do Grande Rio estão vigiadas pelo Inimigo. Mesmo que conseguíssemos chegar às costas do Mar, já não encontraríamos lá nenhum abrigo. Diz-se que ainda há portos dos Elfos Superiores, mas ficam muito para norte e oeste, para lá da terra dos Halflings... embora eu não saiba onde isso possa ser, ainda que o Senhor e a Senhora talvez saibam.»
- Pode pelo menos calcular, uma vez que nos viu - observou Merry. - Há portos dos Elfos a oeste da minha terra, o Shire, onde vivem hobbits.
- Feliz povo, o dos Hobbits, por viver perto das costas do Mar! - exclamou Haldir. - Há muito tempo já que nenhum de nós o vê, embora ainda o recordemos em canções. Fale-me desses portos, enquanto caminhamos.
- Não posso, pois nunca os vi - confessou Merry. - Esta foi a primeira vez que saí da minha terra... e se tivesse sabido como o mundo exterior era, não creio que tivesse tido coragem para a deixar.
- Nem mesmo para ver a bela Lothlórien? - perguntou Haldir. - O mundo está, realmente, cheio de perigos e nele há muitos lugares sinistros; mas ainda há muitas coisas belas e, embora em todas as terras o amor se misture agora com o sofrimento, talvez por isso seja maior.
»Há entre nós alguns que cantam que a Sombra recuará e a paz voltará de novo. Eu, porém, não acredito que o mundo que nos cerca volte a ser como antigamente, ou a luz do Sol como dantes era. Receio que, para os Elfos, só reste, na melhor das hipóteses, uma trégua que lhes permita chegar ao mar sem obstáculos e deixar a Terra Média para sempre. Que saudades terei de Lothlórien, que amo! Muito triste seria a vida numa terra onde não crescesse o mallorn! Mas se há árvores-mallorn para lá do Grande Mar, ninguém ainda o anunciou.»
Enquanto assim falavam, o grupo avançava lentamente pelos caminhos da floresta, guiado por Haldir e com o outro elfo atrás. Sentiam o solo macio e liso debaixo dos pés e, ao fim de certo tempo começaram a caminhar com mais confiança, sem receio de se magoarem ou caírem. Privado da vista, Frodo descobriu que tinha a audição e outros sentidos mais apurados. Sentia o cheiro das árvores e da erva pisada; distinguia muitas notas diferentes no rumorejar das folhas, em cima, no rio que murmurava à sua direita e nas vozes límpidas dos pássaros, no céu; sentia o sol na cara e nas mãos quando atravessavam alguma clareira.
Assim que pusera os pés na margem oposta do Filão de Prata, apoderara-se dele uma estranha sensação, que se acentuara à medida que fora penetrando no Naith: parecia-lhe que transpuser uma ponte de tempo, entrara no canto dos Tempos Antigos e caminhava num mundo que já não existia. Em Rivendell havia a recordação das coisas antigas; em Lothlórien, as coisas antigas ainda viviam no mundo vigilante. Ali, o mal fora visto e ouvido, o sofrimento conhecido; os elfos receavam e desconfiavam do mundo exterior e uivavam lobos nas fronteiras da floresta: mas na terra de Lórien não havia nenhuma sombra.
Caminharam durante todo esse dia, até sentirem o fresco do entardecer e ouvirem o vento do começo da noite a murmurar entre muitas folhas. Depois descansaram e dormiram no chão, sem medo, pois os seus guias não os autorizaram a desvendar os olhos, e assim não podiam trepar. De manhã puseram-se de novo a caminho, sem pressa. Pararam ao meio-dia e Frodo apercebeu-se de que se encontravam debaixo do sol brilhante. De súbito, ouviu o som de muitas vozes, à sua volta.
Uma hoste de elfos aproximara-se, silenciosamente: dirigiram-se, apressados, para as fronteiras setentrionais, a fim de estarem alerta contra qualquer ataque de Mória, e traziam notícias, algumas das quais Haldir comunicou ao grupo. Os orcs invasores tinham sido apanhados de emboscada e quase todos destruídos; os restantes haviam fugido para ocidente, na direcção das montanhas, e estavam a ser perseguidos. Também tinha sido vista uma estranha criatura que corria de costas curvadas e mãos quase rente ao chão, como um animal, embora não tivesse forma de animal. Esquivara-se à captura e eles não a tinham abatido visto não saberem se era boa ou má; desaparecera pelo Filão de Prata abaixo, para sul.
- Trouxeram-me também uma mensagem do Senhor e da Senhora dos Galadhrim: podem prosseguir livremente o caminho, até mesmo o anão Gimli. Parece que a Senhora sabe quem e o que é cada membro do grupo. Talvez tenham chegado novas mensagens de Rivendell.
Tirou primeiramente a venda a Gimli.
- Peço-lhe perdão! - disse, e inclinou-se profundamente. - Veja-nos agora com olhos de amigo! Veja tudo e sinta-se grato, pois é o primeiro anão a ver as árvores do Naith de Lórien desde o tempo de Durin!
Quando chegou a sua vez de o desvendarem, Frodo olhou para cima e conteve a respiração. Encontravam-se num espaço descampado. À direita erguia-se uma grande colina coberta de erva tão verde como a Primavera nos Tempos Antigos. Nela, como uma coroa dupla, cresciam dois círculos de árvores: as exteriores tinham troncos de uma brancura de neve e, embora sem folhas, eram belas na sua nudez elegante; as interiores eram mallors de grande porte, ainda vestidas de ouro pálido. Muito alto, no meio dos ramos de uma árvore imponente que ficava no centro de todas as outras, brilhava um talan branco. Na base das árvores, e por toda a parte nas encostas verdes a erva estava salpicada de pequenas flores douradas com a forma de estrelas. Entre elas, como que a acenar nos caules esguios, havia outras flores brancas e do mais pálido dos verdes: brilhavam como névoa no meio da tonalidade rica da erva. Cobria tudo um céu azul e o sol da tarde banhava o monte e projectava longas sombras verdes debaixo das árvores.
- Olhem! - exclamou Haldir. - Chegaram a Cerin Amroth, pois este é o coração do antigo reino, como foi há muito tempo, e este é o monte de Amroth, onde em tempos mais felizes foi construída a sua casa alta. Aqui desabrocham sempre as flores do Inverno na erva que nunca esvaece: a amarela elanor e a pálida niphredil. Ficaremos aqui um bocado e ao escurecer seguiremos para a cidade dos Galadhrim.
Os outros deixaram-se cair na erva fragrante, mas Frodo ficou algum tempo de pé, absorto e maravilhado. Parecia-lhe que entrara por uma janela alta, que dava para um mundo desaparecido, um mundo envolto numa luz para a qual a sua língua não tinha nome. Tudo quanto via tinha uma configuração harmoniosa, mas as formas pareciam simultaneamente definidas, como se tivessem sido concebidas e desenhadas no momento em que lhe tinham tirado a venda, e antigas, como se existissem e durassem desde sempre. Só viu cores que conhecia - dourado, branco, azul e verde -, mas tão frescas e vivas como se tivesse tido conhecimento delas pela primeira vez naquele momento e lhes houvesse dado nomes novos e maravilhosos. Ali, no Inverno, nenhum coração sentia a nostalgia do Verão ou da Primavera. Não se via qualquer mácula, doença ou deformidade fosse no que fosse que na terra crescia. Na terra de Lórien não havia mácula alguma.
Virou-se e viu que Sam se encontrava a seu lado, a olhar em redor com expressão intrigada e a esfregar os olhos como se não tivesse a certeza de estar acordado.
- Não há dúvida de que é dia claro e brilha o sol - observou. - Pensava que os Elfos fossem todos pela Lua e pelas estrelas, mas isto é mais élfico do que tudo quanto tenho ouvido dizer. Tenho a impressão de estar dentro de uma canção, se compreende o que quero dizer...
Haldir olhou-os e pareceu realmente apreender o significado tanto do pensamento como da palavra. Sorriu.
- Estão a sentir o poder da Senhora de Galadhrin. Agradar-lhes-ia subir comigo o Cerin Amroth?
Seguiram-no, enquanto ele subia, lesto e leve, as encostas revestidas de erva. Embora andasse e respirasse, e as coisas vivas e as flores à sua volta fossem agitadas pelo mesmo vento fresco que lhe batia no rosto, Frodo tinha a impressão de que se encontrava numa terra eterna, que não se esvaecia, nem mudava, nem caía no esquecimento. Quando voltasse ao mundo exterior, Frodo, o caminhante do Shire continuaria a andar ali, na erva, entre as elanor e as niphredil da bela Lothlórien.
Penetraram no círculo de árvores brancas e, nesse momento, o vento sul bafejou Cerin Amroth, e suspirou entre os ramos das árvores. Frodo parou, a ouvir, muito ao longe, grandes mares a espraiarem-se em costas havia muito submersas e os gritos de aves marinhas cuja espécie se extinguira da Terra.
Haldir continuara a andar e estava a subir para o alto talan. Quando se preparava para o seguir, Frodo pôs a mão na árvore ao lado da escada: nunca antes tivera uma consciência tão forte e súbita do contacto e da textura da casca de uma árvore e da vida que circulava dentro dela. A madeira e o seu contacto causaram-lhe prazer, mas um prazer que não era o do silvicultor nem o do carpinteiro, e sim o prazer encontrado na própria árvore viva.
Quando pisou, finalmente, a alta plataforma, Haldir pegou-lhe na mão e virou-se para o Sul.
- Olhe primeiro para este lado! - disse-lhe.
Frodo olhou, e viu, a alguma distância, um monte com muitas árvores imponentes, ou uma cidade de torres verdes - não sabia ao certo qual das coisas. Pareceu-lhe que era de lá que vinham a força e a luz que mantinham toda a terra equilibrada. Sentiu um desejo súbito de voar como um pássaro, para pousar na cidade verde. Depois olhou para leste e viu toda a terra de Lórien a descer para o brilho pálido do Anduin, o Grande Rio. Levantou os olhos, para lá do rio, apagou-se toda a luz e encontrou-se de novo no mundo que conhecia. Para lá do rio, a terra parecia plana e vazia, informe e vaga, até que, muito longe, se erguia de novo como uma muralha, escura e sinistra. O sol que banhava Lothlórien não tinha força para iluminar a sombra dessa altura distante.
- Ali fica a fortaleza da Floresta Nebulosa Meridional - disse Haldir. - Está envolta numa floresta de abetos negros, onde as árvores lutam umas contra as outras e os seus ramos apodrecem e mirram. No meio, numa elevação pedregosa, ergue-se Dol Guldur, onde há muito o inimigo oculto tem a sua residência. Receamos que esteja de novo habitada, agora, e com o seu poder sete vezes maior. Ultimamente, é frequente ver-se pairar sobre ela uma nuvem negra. Deste ponto alto podemos ver as duas forças que se opõem e que lutam agora constantemente, com o pensamento; mas, embora a luz se aperceba do próprio coração das trevas, o seu segredo não foi descoberto. Por enquanto. - Virou-se e desceu, rapidamente, e eles seguiram-no.
Na base do monte, Frodo encontrou Aragorn, imóvel e silencioso como uma árvore; mas tinha na mão uma pequena flor dourada de elanor e os olhos brilhavam-lhe. Devia estar mergulhado nalguma recordação agradável e, ao olhá-lo, Frodo compreendeu que ele estava a ver as coisas como outrora tinham sido naquele mesmo lugar. Dir-se-ia que os anos tristes tinham sido apagados do rosto de Aragorn, que parecia vestido de branco, um jovem nobre alto e belo. E falava na língua dos Elfos a alguém que Frodo não via: Arwen vanimelda, namariê!, disse, a suspirar, e depois regressou do mundo das recordações, olhou para Frodo e sorriu.
- Aqui fica o coração do Reino dos Elfos na Terra, e aqui mora eternamente o meu coração, a não ser que brilhe uma luz para lá das estradas negras que ainda temos os dois de percorrer. Venha! - E, pegando na mão de Frodo, afastou-se do monte de Cerin Amroth para nunca mais lá voltar como homem vivo.
O ESPELHO DE GALADRIEL
O Sol afundava-se atrás das montanhas e as sombras adensavam-se nas florestas quando partiram de novo. O seu caminho passava agora por bosques onde o crepúsculo já descera. A noite chegou, debaixo das árvores, enquanto caminhavam, e os elfos descobriram as suas lanternas de prata.
De súbito desembocaram de novo numa clareira, e encontraram-se sob um pálido céu nocturno salpicado de algumas estrelas mais apressadas. Desenrolava-se à sua frente um vasto espaço sem árvores, que formava um grande círculo e se prolongava, numa curva, de cada lado. Para lá dele havia um fosso fundo que se perdia em sombras suaves, mas a erva da sua margem era verde, como se brilhasse ainda em memória do Sol já escondido. Do lado oposto erguia-se, muito alta, uma parede verde que rodeava um monte verde todo coberto de mallorns mais altos do que quantos já tinham visto em toda a terra. Não era possível calcular a sua altura: erguiam-se no crepúsculo como torres vivas. Nas suas muitas camadas de ramos e entre as folhas sempre em movimento brilhavam incontáveis luzes verdes, douradas e prateadas. Haldir voltou-se para o grupo.
- Bem-vindos a Caras Galadhont - disse. - Esta é a cidade dos Galadhrim, onde residem o Senhor Celeborn e Galadriel, a Senhora de Lórien. Mas não podemos entrar por aqui, porque as portas não estão voltadas para norte. Temos de contornar para o lado sul e o caminho não é curto, pois a cidade é grande.
Havia uma estrada pavimentada de pedra branca ao longo da margem exterior do fosso. Meteram por ela, no sentido oeste, com a cidade sempre a subir como uma nuvem verde do seu lado esquerdo. À medida que a noite se adensava, surgiam novas luzes, até todo o monte parecer incendiado de estrelas. Chegaram finalmente a uma porta branca, atravessaram-na e encontraram as grandes portas da cidade: ficavam voltadas para sudoeste, entre as extremidades da muralha circundante, que se sobrepunham, eram altas e fortes e estavam iluminadas por muitos candeeiros.
Haldir bateu e falou, e as portas abriram-se silenciosamente, mas Frodo não viu nem sinais de guarda. Os viajantes entraram e as portas fecharam-se de novo. Encontravam-se num caminho fundo entre as extremidades da muralha, e depois de o percorrerem rapidamente entraram na Cidade das Árvores. Não viram ninguém, nem ouviram o som de quaisquer passos nos caminhos; mas soavam muitas vozes à sua volta e em cima, no ar. De muito longe, no monte chegava-lhes o som de canto que parecia cair das alturas como chuva suave sobre folhas.
Percorreram muitos caminhos e subiram muitas escadas, até chegarem aos lugares altos e verem à sua frente, no meio de um vasto relvado, o brilho de uma fonte. Iluminavam-na lanternas de prata que pendiam de ramos de árvores e a água caía numa espécie de bacia de prata da qual trasbordava um regatozinho branco. Do lado sul do relvado erguia-se a mais imponente de todas as árvores. O seu tronco grande e liso brilhava como seda cinzenta e subia, subia, até os primeiros ramos, muito alto, abrirem os enormes braços debaixo de sombrias nuvens de folhas. Ao lado havia uma larga escada branca, aos pés da qual estavam sentados três elfos. Levantaram-se logo, assim que os viajantes se aproximaram, e Frodo reparou que eram altos, vestiam cota de malha cinzenta e lhes pendiam dos ombros compridas capas brancas.
- Aqui residem Celeborn e Galadriel - informou Haldir. - É seu desejo que subam e falem com eles.
Um dos guardas elfos emitiu então uma nota clara, com uma pequena trompa, e de cima responderam-lhe três vezes.
- Eu subo primeiro - disse Haldir. - Depois sobe Frodo com Legolas. Os restantes podem seguir-nos como desejarem. É uma longa subida para os que não estão habituados a tais escadas, mas podem descansar no caminho.
Enquanto subia devagar, Frodo passou por muitos talans - uns a um lado, outros a outro e alguns no tronco da árvore, de modo que a escada passava através deles. A uma grande altura acima do solo encontraram um enorme talan, semelhante à coberta de um barco. Nele estava construída uma casa tão grande, que quase serviria para um salão de Homens, na terra. Frodo entrou atrás de Haldir e encontrou-se numa câmara oval, no meio da qual subia o tronco do grande mallorn, que, apesar de começar a afunilar para o cimo da copa, ainda constituía uma coluna de grande perímetro.
O aposento estava iluminado por uma luz suave e tinha as paredes verdes e prateadas e o tecto dourado. Estavam lá sentados muitos elfos. Em duas cadeiras encostadas ao tronco da árvore e com o vivo a servir de dossel sentavam-se Celeborn e Galadriel, ao lado um do outro. Levantaram-se para saudar os hóspedes à maneira dos Elfos, até mesmo daqueles que eram considerados reis poderosos. A Senhora não era menos alta do que o Senhor, que era muito alto, e possuíam ambos gravidade e beleza. Vestiam completamente de branco. A Senhora tinha cabelo cor de ouro-escuro e o de Geleborn parecia de prata, comprido e brilhante. Mas não havia neles nenhum sinal que denunciasse idade, a não ser nas profundezas dos olhos: esses eram penetrantes como lanças, à luz das estrelas, e ao mesmo tempo profundos poços de memória.
Haldir conduziu Frodo à sua presença e o Senhor saudou-o na sua própria língua. Galadriel não proferiu nenhuma palavra, mas olhou-o demoradamente no rosto.
- Sente-se ao lado da minha cadeira, Frodo do Shire - convidou Celeborn. - Depois de todos chegarem, conversaremos.
Saudou cortesmente, pelo nome, cada membro do grupo, à medida que foram entrando.
- Bem-vindo, Aragorn, filho de Arathorn. - exclamou. - Há trinta e oito anos do mundo exterior que não vinha a esta terra, e esses anos pesam-lhe. Mas o fim está próximo, para o bem ou para o mal. Vá, descanse algum tempo do seu fardo!
» Bem-vindo, filho de Thranduil! Raramente os meus parentes viajam até cá, vindos do Norte.
»Bem-vindo, Gimli, filho de Glóin! Há verdadeiramente muito tempo que não víamos um representante do povo de Durin em Caras Galadhon. Mas hoje quebrámos a antiga lei. Que isso possa ser sinal de que, embora o mundo esteja negro, melhores dias se aproximam e a amizade será renovada entre os nossos povos.»
Gimli curvou-se profundamente.
Depois de todos os hóspedes se sentarem defronte da sua cadeira, Celeborn olhou-os de novo.
- Estão aqui oito - observou. - Deviam ter partido nove, segundo as mensagens recebidas. Talvez tenha havido alguma mudança de opinião de que não tenhamos tido conhecimento...? Elrond está longe, e a escuridão adensa-se entre nós e ao longo de todo este ano as trevas tornaram-se mais compridas.
- Não, não houve nenhuma mudança de opinião - disse Galadriel, que falou pela primeira vez: a sua voz era clara e musical, mas mais profunda do que é costume em voz de mulher. - Gandalf, o Cinzento, partiu com o grupo, mas não transpôs as fronteiras desta terra. Digam-nos onde está, pois desejaríamos muito falar de novo com ele. Não consigo vê-lo de longe, a não ser que transponha as cercas de Lothlórien; envolve-o uma névoa cinzenta e os caminhos dos seus pés e da sua mente estão-me ocultos.
- Ai de nós! Gandalf, o Cinzento, caiu na sombra - respondeu Aragorn. - Ficou em Mória e não se salvou.
Ao ouvirem tais palavras, todos os elfos presentes soltaram exclamações de mágoa e espanto.
- Cruel notícia - lamentou Celeborn -, a pior aqui transmitida em longos anos plenos de dolorosos acontecimentos. - Virou-se Para Haldir e perguntou-lhe, em élfico: - Por que me não foi isto dito há mais tempo?
- Não falámos a Haldir dos nossos feitos nem do nosso objectivo - explicou Legolas. - Ao princípio estávamos cansados e o perigo ainda estava próximo, atrás de nós; depois quase esquecemos temporariamente o nosso desgosto, enquanto percorríamos, felizes, os belos caminhos de Lórien.
- No entanto, a nossa mágoa é grande e a nossa perda irremediável - afirmou Frodo. - Gandalf era o nosso guia e conduziu-nos através de Mória. E quando a nossa fuga parecia impossível, ele salvou-nos e caiu.
- Contem-nos a história toda - pediu Celeborn.
Aragorn contou então tudo quando acontecera na passagem de Caradhras e nos dias que se seguiram; falou de Balin e do seu livro, da luta na Câmara de Mazarbul, do fogo, da ponte estreita e do aparecimento do Terror.
- Um demónio do mundo antigo, parece, como nunca vira antes - declarou. - Era simultaneamente uma sombra e uma chama, forte e terrível.
- Era um balrog de Morgoth - explicou Legolas -, a pior maldição dos Elfos, tirando aquele que está na Torre Negra.
- Na verdade vi na ponte aquele que atormenta os nossos mais negros pesadelos, vi a Maldição de Durin - disse Gimli, em voz baixa e de olhos assustados.
- Sempre receámos, infelizmente, que debaixo de Caradhras dormia um terror! - exclamou Celeborn. - Tivesse eu sabido que os Anões haviam despertado de novo esse demónio de Mória, e ter-lhes-ia proibido que transpusesse as fronteiras setentrionais, a si e a todos quantos os acompanhavam. Quase se diria que, finalmente, Gandalf passou da sensatez para a loucura, ao cair desnecessariamente na rede de Mória.
- É grande temeridade dizer semelhante coisa - observou Galadriel, gravemente. - Não foram desnecessárias nenhumas das acções de Gandalf em vida. Os que o seguiam não lhe conheciam o pensamento e não podem, por isso, relatar todo o seu objectivo. Mas, seja o que for que o guia faça, os que o seguem estão isentos de culpa. Não te arrependas das boas-vindas que dispensaste ao anão. Se o nosso povo tivesse estado exilado em Lothlórien, durante muito tempo e muito longe, que galadhrim, incluindo o próprio Celeborn, o Sábio, passaria perto e não desejaria ver a sua antiga pátria, mesmo que se tivesse transformado num antro de dragões?
»Escura é a água de Kheled-zâram, e frias são as nascentes de Kibil-nâla, e belos eram os salões de muitas colunas de Khazad-dûm nos Tempos Antigos, antes da queda de poderosos reis sob a pedra do túmulo.»
Olhou para Gimli, que estava carrancudo e triste, e sorriu-lhe. O anão, ao ouvir os nomes proferidos na sua própria língua antiga, levantou a cabeça e fitou-a nos olhos. Teve a sensação de que observava de súbito o coração de um inimigo e lá encontrava amor e compreensão. Estampou-se-lhe no rosto uma expressão de espanto e depois sorriu, também.
Levantou-se desajeitadamente, curvou-se à maneira dos Anões e declarou:
- Mas mais bela é a terra de Lórien, e Galadriel, a Soberana, está acima de todas as pedras preciosas que jazem debaixo da terra!
Fez-se silêncio. Por fim, Celeborn falou de novo:
- Ignorava que a situação fosse tão difícil. Gimli que perdoe as minhas palavras ríspidas, pois falei levado pelo sofrimento do meu coração. Farei o que puder para os ajudar, a cada um de acordo com o seu desejo e a sua necessidade, mas sobretudo àquele do povo pequeno, que transporta o fardo.
- Temos conhecimento da sua missão - disse Galadriel, a olhar para Frodo. - Mas não falaremos dela mais abertamente, aqui. No entanto, talvez não tenha sido em vão que vieram a esta terra em busca de auxílio, como é evidente que o próprio Gandalf tencionava fazer, pois o Senhor dos Galadhrim é considerado o mais sábio dos elfos da Terra Média e distribuidor de benesses que estão acima do poder dos reis. Tem vivido no Ocidente desde o alvorecer dos tempos, e eu tenho vivido com ele há anos incontáveis; pois antes da queda de Nargothrond ou Gondolim atravessei as montanhas e juntos, ao longo de eras do mundo, temos lutado contra a longa derrota.
»Fui eu quem primeiro convocou o Conselho Branco, e se os meus desígnios não se tivessem frustrado, o Conselho teria sido dirigido por Gandalf, o Cinzento, e então talvez as coisas tivessem corrido diferentemente. Mas mesmo agora ainda há esperança. Não lhes darei conselhos, dizendo que façam isto ou façam aquilo, pois não é em fazer ou planear, nem em escolher entre este método de acção ou aquele, que posso valer; mas só em saber o que foi e é e em parte, também, o que será. Digo-lhes, no entanto, isto: a sua missão está equilibrada no gume de uma faca. Desviem-se um bocadinho só que seja, e falhará, para ruína de todos. Mas, enquanto o grupo for leal, a esperança subsistirá.
Pronunciadas tais palavras, fitou-os em silêncio, perscrutadoramente, um de cada vez. Nenhum, exceptuando Legolas e Aragorn conseguiu suportar-lhe o olhar. Sam corou logo e baixou a cabeça.
Por fim, Galadriel libertou-os da força dos seus olhos e sorriu.
- Sosseguem os corações - disse. - Esta noite dormirão em paz.
Então, eles suspiraram e sentiram-se subitamente fatigados, como se tivessem sido longa e minuciosamente interrogados, embora não tivessem sido ditas abertamente quaisquer palavras.
- Podem ir! - autorizou Celeborn. - Estão exaustos de desgosto e muita labuta. Mesmo que a missão em que estão empenhados nos não dissesse respeito de perto, seriam acolhidos nesta cidade até se sentirem apaziguados e refeitos. Agora descansarão e durante algum tempo não falaremos do caminho que lhes resta percorrer.
Nessa noite, o grupo dormiu no solo, com grande satisfação dos hobbits. Os elfos armaram um pavilhão para eles, entre as árvores próximas da fonte, e nele colocaram almofadas macias. Depois deixaram-nos, com palavras de paz ditas na sua suave voz élfica. Durante momentos, os viajantes falaram da noite anterior nas copas das árvores, do dia de viagem e do Senhor e da Senhora, pois ainda não tinham coragem para recuar mais no tempo.
- Por que coraste, Sam? - perguntou Pippin. - Foste-te logo abaixo. Dir-se-ia, até, que tinhas a consciência pesada. Espero que não se tenha tratado de nada pior do que um perverso plano para roubar um dos meus cobertores...
- Nunca pensei em semelhante coisa - respondeu Sam, que não estava de maré para brincadeiras. - Se querem saber, tive a impressão de que não tinha um fio a cobrir-me, e isso não me agradou. Era como se ela estivesse a olhar para dentro de mim e a perguntar-me o que faria se me desse a possibilidade de regressar a correr ao Shire, para um buraquinho aconchegado com... com um jardinzito meu.
- É engraçado, pois foi quase exactamente o que eu senti, também - confessou Merry. - Só que... só que, enfim, me parece que não digo mais nada - rematou, atrapalhado.
Aparentemente, acontecera o mesmo a todos; cada um deles tivera a impressão de que lhe era oferecida a escolha entre uma sombra repleta de medo, que o esperava, e qualquer coisa que desejava muito e que estava muito clara no seu espírito, qualquer coisa para cuja obtenção teria apenas de se desviar da estrada e deixar a outros a missão e a guerra contra Sauron.
- Pareceu-me, também - disse Gimli -, que a minha escolha permaneceria secreta e só do meu conhecimento.
- A mim pareceu-me muitíssimo estranho - afirmou Boromir. - Talvez tenha sido só uma experiência e ela pretendesse ler os nossos pensamentos com boas intenções. No entanto quase diria que estava a tentar-nos, a oferecer-nos o que alegava ter o poder de dar. Escusado seria dizê-lo, mas recusei ouvir. Os Homens de Minas Tirith são fiéis à sua palavra. - Mas Boromir não disse o que lhe parecera ter-lhe a Senhora oferecido.
Quanto a Frodo, decidiu não falar, apesar de Boromir o apertar com perguntas:
- Ela olhou-o mais demoradamente a si, portador do anel.
- É verdade - admitiu Frodo. - Mas o que quer qu uns momentos a minha dor! Estou fatigado de corpo e coração. - Deitou-se nas suas almofadas e adormeceu logo.
Os outros não tardaram a imitá-lo e não houve som nem sonho que lhes perturbasse o sono. Quando acordaram, era dia claro no relvado que ficava defronte do pavilhão e a fonte subia e descia, a brilhar ao sol.
Permaneceram alguns dias em Lothlórien - tanto quanto tiveram consciência ou se recordaram. Durante todo o tempo em que lá estiveram, o Sol brilhou, excepto nos momentos em que caía uma chuva leve, que deixava tudo fresco e limpo. O ar estava fresco e suave, como se fosse princípio de Primavera, mas eles sentiam à sua volta a profunda e apaziguadora quietude do Inverno. Parecia-lhes que pouco mais faziam do que comer, beber, descansar e passear entre as árvores - e era suficiente.
Não tinham voltado a ver o Senhor e a Senhora e pouco falavam com os elfos, pois destes poucos sabiam, ou estavam dispostos a falar, o westron.
Em fizeram a terra, ou a terra que os fez a eles, é difícil saber, se compreende o que quero dizer... Reina aqui um sossego maravilhoso, é como se nada se passasse e ninguém quisesse que se passasse alguma coisa. Se existe por aí magia, está muito funda, tão funda que as minhas mãos lhe não conseguem chegar, assim numa maneira de dizer.
- Vê-se e sente-se em toda a parte - redarguiu Frodo.
- Bem, não se vê ninguém fazê-la. Não há fogo-de-artifício, como o velho Gandalf, coitado, costumava mostrar. Admiro-me de não termos visto o Senhor e a Senhora em todos estes dias. Não sei porquê, tenho a impressão de que ela seria capaz de fazer umas coisas maravilhosas, se tivesse disposição para isso. Gostava tanto de ver um pouco de magia élfica, Sr. Frodo!
- Eu, não. Estou contente, assim. E não é do fogo-de-artifício de Gandalf que tenho saudades, mas sim das suas sobrancelhas hirsutas, do seu mau génio e da sua voz.
- Tem razão - concordou Sam. - E não julgue que estou a pôr defeitos. Sempre desejei ver um pouco de magia como a de que falam as histórias antigas, mas nunca ouvi falar de terra melhor do que esta. É como estar em casa e de férias ao, mesmo tempo, se me entende. Não desejo ir-me embora, mas mesmo assim começo a achar que, se temos de partir, o melhor é fazê-lo de uma vez.
»É o trabalho que nunca se começa que leva mais tempo a acabar, como o meu velhote costumava dizer. E não me parece que esta gente possa fazer muito mais para nos ajudar, com magia ou sem ela. Parece-me que será quando deixarmos esta terra que sentiremos mais a falta de Gandalf.
- Infelizmente, acho que tens razão, Sam. No entanto tenho esperança de que, antes de partirmos, voltaremos a ver a Senhora dos Elfos.
Precisamente quando Frodo falava, viram Galadriel aproximar-se, como se satisfizesse os seus desejos. Caminhava sob as árvores, alta, branca e bela. Fez-lhes sinal, sem dizer qualquer palavra.
Voltou-se e conduziu-os na direcção das encostas do lado sul do monte de Caras Galadhon. Passaram então através de uma alta sebe verde e entraram num jardim fechado. Não havia árvores, e por isso via-se o céu sem quaisquer obstáculos. A estrela vespertina nascera e brilhava como lume branco por cima das florestas ocidentais. A Dama desceu um comprido lanço de degraus e entrou numa profunda depressão verde, através da qual corria, murmurante, o regato argentino que vinha da nascente do monte. No fundo, num pedestal baixo esculpido como uma árvore bifurcada, havia uma bacia de prata, larga e pouco funda, e ao lado um jarro de prata.
Galadriel encheu a bacia de água do regato, respirou para ela e quando a água voltou a ficar lisa, falou:
- Este é o Espelho de Galadriel. Trouxe-os aqui para nele verem, se quiserem.
O ar estava muito parado, o valezinho era escuro e a dama élfica, imobilizada ao lado de Frodo, era alta e pálida.
- Que procuraremos ver e que veremos? - perguntou, cheio de temor.
- Posso ordenar ao Espelho que revele muitas coisas, e a alguns posso mostrar o que eles desejam ver. Mas o Espelho também mostra coisas sem lhas pedirem, e essas são muitas vezes mais estranhas e proveitosas do que aquelas que desejamos ver. O que verá, se deixar ao Espelho liberdade de acção, não imagino, pois ele mostra coisas que foram e coisas que são e coisas que ainda podem ser. Mas qual
dessa e categoria de coisas vê, nem o mais sábio consegue sempre saber. Quer olhar?
Frodo não respondeu.
- E você? - perguntou a Dama, virando-se para Sam. - Isto é, creio, aquilo a que a sua gente chamaria magia, embora eu não compreenda exactamente o que tal significa, tanto mais que parecem empregar a mesma palavra para os logros do Inimigo. Mas esta, se quiser, é a magia de Galadriel. Não disse que gostaria de ver magia élfica?
- Disse - confessou Sam, a tremer um pouco, entre o medo e a curiosidade. - Darei uma espreitadela, Senhora, se mo permitir. - E acrescentou, num aparte, dirigindo-se a Frodo: - Não me importaria nada de dar uma olhadela ao que se passa na nossa terra. Parece que parti há tanto tempo! Mas o mais certo será ver só as estrelas, ou qualquer coisa que não compreenderei.
- Sim, é o mais certo - admitiu, a Dama, a rir suavemente. - Venha, olhará e verá o que for possível. Não toque na água!
Sam subiu para a base do pedestal e inclinou-se para a bacia. A água parecia sólida e escura e tinha estrelas reflectidas na superfície.
- Só há estrelas, como eu pensava - disse Sam.
Nisto, soltou uma exclamação abafada, pois as estrelas apagaram-se. Como se um véu escuro tivesse sido afastado, o Espelho tornou-se gradualmente cinzento e depois claro. O sol brilhava nele e o vento agitava os ramos das árvores. Mas, sem que Sam tivesse tempo de chegar a uma conclusão quanto ao que estava a ver, a luz dissipou-se; depois pareceu-lhe ver Frodo, muito pálido, a dormir profundamente à sombra de um grande penhasco escuro. Em seguida julgou ver-se a si mesmo a andar num corredor penumbrento e a subir a uma interminável escada de caracol. Teve bruscamente consciência de que estava a procurar, ansioso, qualquer coisa, mas não soube o que poderia ser. Como num sonho, a visão desfez-se, voltou para trás, e ele viu outra vez as árvores. Mas agora não estavam tão perto, e pôde ver o que realmente se passava: não era o vento que as agitava, o que elas estavam era a cair, a tombar ruidosamente no chão.
- Ah! - exclamou, em voz escandalizada. - Ali está o Ted Amarelento, a derrubar árvores, uma coisa que não devia fazer. Não aquelas árvores não deveriam ser derrubadas: são daquela alameda que fica a seguir ao moinho e sombreiam a estrada para À Beira d'Água. Quem me dera estar ao pé do Ted, para o derrubar a ele!
Sam reparou, então, que o Velho Moinho desaparecera e estavam a construir no seu lugar um grande edifício de tijolo vermelho. Via-se muita gente a trabalhar, afanosamente. Perto erguia-se uma alta chaminé vermelha. Fumo negro pareceu enevoar a superfície do Espelho.
- Passa-se qualquer patifaria no Shire - comentou. - Elrond sabia o que dizia quando quis que o Sr. Merry regressasse. - De súbito, Sam soltou um grito e afastou-se. - Não posso ficar aqui! - gritou, desvairado. - Tenho de voltar para casa! Esventraram a Travessa do Saco Furado e vi o pobre velho do meu avô a descer o Monte com as suas coisitas num carrinho de mão. Tenho de voltar para casa!
- Não pode voltar para casa sozinho - lembrou-lhe a Dama. - Não desejava regressar a casa sem o seu amo, antes de ver o Espelho embora soubesse que podiam muito bem estar a acontecer coisas más no Shire. Lembre-se de que o Espelho mostra muitas coisas e nem todas aconteceram, ainda. Algumas nem sequer virão a acontecer, a não ser que aqueles que vêem as visões se desviem do seu caminho para as evitar. O Espelho é perigoso, como guia de procedimento.
Sam sentou-se no chão e amparou a cabeça com as mãos.
- Desejaria nunca aqui ter vindo e não quero ver mais magia - disse, e mergulhou no silêncio.
Passado um bocado, falou de novo, em voz rouca, como se lutasse para conter as lágrimas:
- Regressarei a casa pela estrada comprida com o Sr. Frodo, ou não regressarei. Mas desejo poder voltar um dia. Se o que vi for verdade, alguém vai pagar muito caro!
- Deseja ver, Frodo? - perguntou Galadriel. - Pareceu-me que não desejava ver a magia élfica e estava satisfeito.
- Aconselha-me a ver? - perguntou Frodo.
- Não. Não lhe aconselho uma coisa nem outra. Não sou conselheira. Pode ficar a saber alguma coisa, e se o que vir for bom ou mau, poderá ser proveitoso, mas também poderá não ser. Ver é, ao mesmo tempo, bom e perigoso. Mas eu penso, Frodo, que tem coragem e sabedoria suficientes para se arriscar, pois de contrário não o teria trazido aqui. Faça como entender!
- Olharei - decidiu Frodo, ao mesmo tempo que subia para o pedestal e se inclinava para a água escura.
Acto contínuo, o Espelho clareou, e ele viu uma terra crepuscular. Erguiam-se montanhas ao longe, escuras contra o céu pálido, e uma comprida estrada cinzenta serpenteava até se perder de vista. Muito ao longe, um vulto começou a descer lentamente a estrada, vago e pequeno, ao princípio, mas tornando-se maior e mais nítido à medida que se aproximava. De súbito, Frodo apercebeu-se de que lhe recordava Gandalf. Esteve quase a dizer o nome do feiticeiro em voz alta. Depois reparou que a figura não estava vestida de cinzento, mas sim de um branco que brilhava suavemente no crepúsculo, e tinha na mão um bastão também branco. A cabeça estava tão inclinada, que não lhe conseguia ver a cara. Pouco depois, o vulto desapareceu numa curva da estrada e deixou de se ver no Espelho. A dúvida invadiu o espírito de Frodo: tratar-se-ia de uma visão de Gandalf numa das suas viagens solitárias de há muito tempo, ou seria Saruman?
Surgiu outra imagem, breve e pequena, mas muito nítida: viu Bilbo a andar agitadamente de um lado para o outro, no seu quarto. A mesa estava atravancada de papéis desarrumados e a chuva batia nas janelas.
Houve uma pausa e, depois, sucederam-se muitas cenas rápidas, que Frodo compreendeu, sem saber como, serem fragmentos de uma grande história em que ele se envolvera. A névoa dissipou-se, e viu uma coisa que nunca vira antes, mas que soube imediatamente de que se tratava: o Mar. Escureceu. O mar alteou-se e bramiu, numa grande tempestade. Depois viu, recortado no Sol que se afundava, vermelho-sangue, num tumulto de nuvens, os contornos negros de um barco alto de velas rasgadas, que saía do Ocidente. Em seguida viu um rio largo a correr através de uma cidade populosa. Depois, uma fortaleza com sete torres. E de novo um barco de velas negras, mas agora era de novo manhã, a luz brilhava na água e uma bandeira com uma árvore branca como insígnia ondulava ao sol. Ergueu-se fumo, como de incêndio e combate, e o Sol pôs-se de novo num clarão vermelho que se dissolveu numa névoa cinzenta, na qual passou um pequeno barco, todo iluminado. A imagem desapareceu, e Frodo suspirou e preparou-se para se afastar.
Mas, de súbito, o Espelho ficou completamente escuro, tão escuro como se tivesse sido aberto um buraco no mundo da visão, e Frodo olhou para o vazio. No abismo negro apareceu um único olho que cresceu lentamente, até encher quase o Espelho. Era tão terrível, que Frodo ficou como que pregado ao chão, incapaz de gritar ou de desviar o olhar. O olho estava orlado de fogo, mas, tirando isso, parecia vítreo, amarelo como o de um gato, vigilante e atento, e a fenda negra da pupila abria-se para um poço, era uma janela para o nada.
Depois, o olho começou a girar, a procurar aqui e ali, e Frodo soube, com certeza e horror, que era uma das muitas coisas que ele procurava. Mas soube também que não o podia ver - pelo menos por enquanto, pelo menos enquanto ele o não desafiasse. O anel que trazia ao peito, suspenso de um fio, tornou-se pesado, mais pesado do que uma grande pedra, e arrastou-lhe a cabeça para baixo. O Espelho pareceu aquecer e começaram a subir rolos de vapor da água. Frodo sentiu-se escorregar para a frente.
- Não toque na água! - disse Galadriel, suavemente.
A visão dissipou-se, e Frodo deu consigo a olhar para as estrelas frias que cintilavam na bacia. Desceu do pedestal, a tremer dos pés à cabeça, e olhou para a Senhora.
- Sei qual foi a última coisa que viu, pois isso também está na minha mente - disse Galadriel. - Não tenha medo! Mas não pense que só com canções entre as árvores, ou tão-pouco pelas finas setas de arcos élficos, é esta terra de Lothlórien mantida e defendida contra o seu Inimigo. Digo-lhe, Frodo, que, mesmo neste momento em que lhe falo, vejo o Senhor das Trevas e conheço-lhe o pensamento, ou pelo menos todo o seu pensamento no que diz respeito aos Elfos. E ele não pára de tactear para me ver e ao meu pensamento. Mas a porta continua fechada!
Levantou os braços brancos e abriu as mãos na direcção do Leste num gesto de rejeição e recusa. Eärendil , a Estrela Vespertina, a mais amada pelos Elfos, brilhava, clara, no céu. Tão grande era o seu brilho, que a figura da dama elfa projectava uma sombra vaga no chão. Os raios luminosos da estrela incidiram num anel que ela tinha no dedo e que cintilava como ouro polido revestido de luz prateada, com uma pedra branca que piscava como se a Estrela Vespertina tivesse descido das alturas para repousar na sua mão. Frodo olhou intimidado para o anel, pois de súbito pareceu-lhe que compreendia.
- Sim - disse ela, adivinhando-lhe o pensamento -, não é permitido falar dele e Elrond não podia fazê-lo. Mas não pode ser escondido do portador do anel e daquele que viu o Olho. É, realmente na terra de Lórien e no dedo de Galadriel que se encontra um dos Três. Este é o Nenya, o Anel de Adamante, e eu sou a sua guardiã.
»Ele desconfia, mas não sabe. Por enquanto. Compreende agora por que razão a sua vida é para nós como o Degrau do Destino? Se a sua missão falhar, ficaremos expostos perante o Inimigo. Mas se for bem sucedido, então o nosso poder diminuirá, Lothlórien apagar-se-á e as marés do Tempo arrastá-la-ão. Temos de partir para o Ocidente ou de nos reduzirmos a um povo rústico de vales e cavernas, de esquecer lentamente e sermos esquecidos.»
Frodo baixou a cabeça.
- E que desejam? - perguntou, por fim.
- Que seja o que tiver de ser - respondeu a Dama. - O amor dos EIfos pela sua terra e pelas suas obras é mais fundo que os abismos do Mar e a sua mágoa é eterna e nunca poderá ser completamente apaziguada. No entanto preferirão abandonar tudo a submeter-se a Sauron, pois agora conhecem-no. O destino de Lothlórien não é da sua responsabilidade, Frodo; a sua única responsabilidade é cumprir a sua missão. Contudo, se valesse de alguma coisa, desejaria que o Anel Um nunca tivesse sido feito ou então que tivesse permanecido perdido para sempre.
- É sensata, destemida e bela, Senhora Galadrieil - murmurou Frodo. - Dar-lhe-ei o Anel Um se mo pedir. É um problema demasiado grande para mim.
Galadriel riu-se, com um riso inesperado e claro.
- Sensata poderá a Senhora de Galadriel ser, mas encontrou quem lhe está à altura em cortesia. Delicadamente, está vingado de lhe ter posto o coração à prova, no nosso primeiro encontro. Começa a ver com olhar penetrante. Não nego que o meu coração desejou muito pedir o que me oferece. Há muitos anos que medito no que poderia fazer se o Grande Anel me viesse parar às mãos, e agora veja: está ao meu alcance! O mal que foi engendrado há muito tempo actua de muitas maneiras, quer o próprio Sauron vença ou caia. Não seria um nobre feito, a ser levado a crédito do seu anel, se eu o tirasse pela força ou pelo medo ao meu hóspede?
»E agora, finalmente, Frodo dar-me-á o anel livremente! No lugar do Senhor das Trevas colocará uma rainha. E eu não serei tenebrosa, mas sim bela e terrível como a Manhã e a Noite! Bela como o Mar, o Sol e a Neve da Montanha! Terrível como a Tempestade e o Raio! Mais forte do que os alicerces da Terra! Amar-me-ão e desesperarão todos!
Levantou a mão, e do anel que usava saiu uma grande luz que só a iluminou a ela e deixou tudo o mais nas trevas. Ficou diante de Frodo, parecendo agora imesuravelmente alta e insuportavelmente bela, terrível e digna de adoração. Depois baixou a mão, a luz desvaneceu-se e ela riu-se de novo... e mirrou: voltou a ser uma elfa esbelta, simplesmente vestida de branco e cuja voz meiga era suave e triste.
- Passei na prova - declarou. - Diminuirei, irei para ocidente e continuarei a ser Galadriel.
Ficaram um longo momento em silêncio. Por fim, a Dama falou de novo:
- Regressemos! Devem partir de manhã, pois agora escolhemos, e as marés do destino correm.
- Desejo perguntar uma coisa antes de partirmos - disse Frodo. - Uma coisa que muitas vezes pretendi perguntar a Gandalf era Rivendell. Tenho permissão para usar o Anel Um. Por que não posso então ver todos os outros e conhecer os pensamentos daqueles que os usam?
- Não tentou - respondeu-lhe Galadriel. - Só colocou o anel no dedo três vezes, desde que tomou conhecimento do que possuía. Não tente! Isso destruí-lo-ia. Gandalf não lhe disse que os anéis dão poder de acordo com a estatura de cada possuidor? Antes de conseguir usar esse poder precisaria de se tornar muito mais forte e de treinar a sua vontade para dominar os outros. Mesmo assim, como portador do anel, e como alguém que o colocou no dedo e viu o que está oculto, a sua visão tornou-se mais apurada. Captou o meu pensamento mais claramente do que muitos que são considerados sábios. Viu o Olho daquele que detém os Sete e os Nove. E não viu e reconheceu o anel no meu dedo? - Virou-se para Sam e perguntou-lhe: - Viu o meu anel?
- Não, Senhora. Para ser franco, até estava a perguntar a mim mesmo de que estavam a falar. Vi uma estrela através do seu dedo. Mas, se me perdoa que diga o que penso, acho que o meu amo tem razão: gostaria que aceitasse o anel dele. Poria as coisas nos eixos!
Os que não quiserem ir mais longe, poderão ficar aqui durante algum tempo. Mas quer fiquem, quer partam, nenhum pode ter a certeza de ter paz. Chegámos agora à beira do momento fatal. Aqui, os que desejarem poderão esperar a hora em que os caminhos do mundo voltem a ficar abertos, ou que os convoquemos para nos ajudarem na suprema provação de Lórien. Depois poderão regressar às suas próprias terras ou então partir para a morada distante dos que caem em combate.
Fez-se silêncio.
- Decidiram todos prosseguir - disse, por fim, Galadriel, a fitá-los nos olhos.
- Quanto a mim - declarou Boromir -, o meu caminho para casa é para a frente e não para trás.
- Isso é verdade - admitiu Celeborn. - Mas este grupo vai todo consigo para Minas Tirith?
- Ainda não decidimos quanto ao caminho que tomaremos - respondeu Aragorn. - Não sei o que Gandalf tencionava fazer depois de Lothlórien. Com franqueza, não creio que ele próprio tivesse alguma ideia clara.
- Talvez não - concordou Celeborn. - No entanto, quando saírem desta terra, não poderão esquecer o Grande Rio. Como alguns bem sabem, não pode ser atravessado por viajantes com bagagem entre Lórien e Gondor, a não ser por barco. E não estão as pontes de Osgiliath destruídas e todos os embarcadouros em poder do Inimigo?
»Para que lado viajarão? O caminho para Minas Tirith fica deste lado, no Ocidente; mas o caminho directo da missão fica a leste do Rio, pela margem mais negra. Por qual das margens optarão agora?»
- Se aceitarem o meu conselho, escolherão a margem ocidental e o caminho para Minas Tirith - respondeu Boromir. - Mas não sou eu o guia do grupo.
Os outros não disseram nada e Aragorn pareceu duvidoso perturbado.
- Vejo que ainda não sabem como proceder - comentou Celeborn. - Não me compete escolher por vocês, mas ajudá-los-ei como puder. Alguns sabem lidar com barcos: Legolas, cujo povo conhece o rápido rio da Floresta, Boromir, de Gondor, e Aragorn, o viajante.
- E um hobbit! - exclamou Merry. - Nem todos os nossos consideram os barcos uma espécie de cavalos bravos. A minha família vive nas margens do Brandevinho.
- Óptimo! - aprovou Celeborn. - Portanto fornecerei barcos ao grupo. Terão de ser pequenos e leves, pois se percorrerem uma longa distância, por via fluvial, haverá lugares onde terão de os carregar. Chegarão aos rápidos de Sarn Gebir, e talvez, no fim, às grandes cataratas de Rauros, onde o rio desce ruidosamente de Nen Hithoel. E haverá outros perigos. É possível que os barcos lhes tornem a viagem menos extenuante, durante algum tempo. No entanto, não poderão aconselhá-los: acabarão por ter de abandoná-los e ao rio e de virar para ocidente... ou oriente.
Aragorn agradeceu muitas vezes a Celeborn. A dádiva dos barcos confortava-o muito, e uma das razões - e importante - desse conforto residia no facto de não precisar de decidir qual o caminho a seguir, durante alguns dias. Os outros também pareceram mais esperançados. Fossem quais fossem os perigos que os esperavam, parecia-lhes haver menor risco em vogar pelo largo Anduin abaixo, ao seu encontro, do que calcorrearem léguas e léguas a pé e de costas curvadas sob o carrego. Sam foi o único a ter as suas dúvidas: ele, pelo menos, ainda considerava os barcos uma coisa tão má como cavalos bravos - ou pior -, e todos os perigos a que sobrevivera não chegavam para o fazer mudar de ideias.
- Antes do meio-dia de amanhã estará tudo preparado e à sua espera no porto - disse Celeborn. - Mandar-lhes-ei a minha gente de manhã, para os ajudarem a preparar-se para a viagem. Agora desejamos a todos uma noite agradável e sono tranquilo.
- Boa noite, meus amigos! -, desejou-lhes Galadriel. - Durmam em paz. Não atormentem demasiado o coração, esta noite, a pensar no caminho. Talvez o caminho que cada um terá de pisar já esteja traçado diante dos seus pés, embora o não vejam. Boa noite!
O grupo despediu-se e regressou ao pavilhão. Legolas acompanhou-os, pois aquela seria a última noite que passariam em Lothlórien e, apesar da recomendação de Gáladriel, queriam aconselhar-se juntos.
Debateram demoradamente o que deveriam fazer e qual seria a melhor maneira de tentarem alcançar o seu objectivo, relativamente ao anel. Mas não chegaram a nenhuma conclusão. Era evidente que a maioria desejava ir primeiro a Minas Tirith e escapar, pelo menos temporariamente, ao terror do Inimigo. Estariam dispostos a obedecer a um chefe no rio e a acompanhá-lo à sombra de Mordor; mas Frodo não disse palavra e Aragorn ainda não tinha ideias firmes.
O seu plano, enquanto Gandalf estivera com eles, fora acompanhar Boromir e, com a sua espada, ajudar a libertar Gondor. Pois acreditava que a mensagem dos sonhos era uma convocação e que chegara finalmente a hora em que o herdeiro de Elendil deveria apresentar-se e combater com Sauron, para lhe disputar a supremacia. Mas em Mória o fardo de Gandalf passara para os seus ombros, e ele sabia que não podia, agora, abandonar o anel, se Frodo recusasse ir com Boromir. No entanto, que ajuda poderia ele ou qualquer membro do grupo dar a Frodo, a não ser acompanhá-lo às cegas para as trevas?
- Irei para Minas Tirith, sozinho se necessário for, pois é esse o meu dever - declarou Boromir.
Depois ficou calado, de olhos fixos em Frodo, como se tentasse ler os pensamentos do halfling. Por fim falou de novo, suavemente, dando a impressão de que travava uma luta consigo mesmo:
- Se deseja apenas destruir o anel, então de pouca utilidade serão a guerra e as armas, e os Homens de Minas Tirith não poderão ajudar. Mas se deseja destruir o poderio armado do Senhor das Trevas, então será loucura entrar no seu domínio sem força, e loucura deitar fora... - Calou-se bruscamente, como se tomasse consciência de que estava a dar voz aos seus pensamentos. - Quero dizer, seria loucura desperdiçar vidas. Trata-se de uma escolha entre defender uma praça forte e lançar-se abertamente nos braços da morte. Pelo menos é assim que eu vejo as coisas.
Frodo notou algo de novo e estranho no olhar de Boromir, e fitou-o vivamente. Era evidente que os pensamentos de Boromir não estavam de acordo com as suas últimas palavras. Seria loucura deitar fora... o quê? O Anel do Poder? Ele dissera algo parecido com isso no Conselho, mas, então, tivera de aceitar a correcção de Elrond. Frodo Olhou para Aragorn, mas ele pareceu-lhe absorto nos seus próprios pensamentos e sem evidenciar nenhum sinal de ter ouvido as palavras de Boromir. E assim terminou o debate. Merry e Pippin já estavam a dormir e Sam cabeceava. A noite avançava.
De manhã, quando começavam a acondicionar os seus parcos haveres, chegaram elfos que sabiam falar a sua língua com muitos presentes de comida e vestuário para a viagem. A comida constava principalmente de uns bolos muito finos, feitos de farinha que, depois de cozida, ficava com um tom tostado, no exterior, e cor de creme, no interior. Gimli pegou num dos bolos e olhou-o, duvidoso.
- Cram - disse, baixinho, enquanto partia uma pontinha estaladiça e a metia na boca.
A sua expressão modificou-se num instante e comeu deliciado o resto do bolo.
- Mais não, mais não! - gritaram os elfos, a rir. - Já comeu o suficiente para um longo dia de marcha.
- Pensei que fosse apenas uma espécie de cram, como os Homens de Dale fazem quando vão viajar nos ermos - explicou o anão.
- E é - responderam os elfos. - Mas nós chamamos-lhes lembas, ou pão-do-caminho, e é mais nutritivo do que qualquer alimento feito pelos Homens e, sem dúvida nenhuma, muito mais agradável do que o eram.
- É, de facto - confirmou Gimli. - E, até, melhor do que os bolos de mel dos Beornenses, e isto constitui um grande elogio, pois os Beornenses são os melhores padeiros e boleiros que conheço... mas hoje em dia não se mostram muito dispostos a dar os seus bolos aos viajantes. Vocês são anfitriões generosos!
- Mesmo assim recomendamos-lhes que poupem as provisões. Comam pouco de cada vez e só quando for necessário. Estas coisas destinam-se a servir-lhes quando não houver mais nada. Os bolos conservam-se frescos muitos dias, se não se partirem e permanecerem embrulhados nas folhas, como os trouxemos. Um basta para aguentar um viajante de pé durante um dia inteiro de longa caminhada, mesmo que se trate de um dos homens altos de Minas Tirith.
Depois, os elfos desembrulharam e entregaram a cada membro do grupo as roupas que tinham trazido. Forneceram a cada um uma capa com capuz, feitos à sua medida e do tecido sedoso, leve mas quente, que os Galadhrim teciam. Seria difícil dizer de que cor eram: pareciam ser cinzentos com a tonalidade do crepúsculo debaixo das árvores; no entanto, se lhes mexiam ou os colocavam a outra luz, eram verdes como folhas sombreadas, ou castanhos como campos alqueivados à noite, ou cor de prata baça, como água sob a luz das estrelas. Um broche do feitio de uma folha verde com veios de prata fechava cada uma das capas, junto ao pescoço.
- São capas mágicas? - perguntou Pippin, a observá-las com curiosidade.
- Não sei o que significa isso - respondeu-lhe o que chefiava os elfos. - São peças de vestuário bonitas e o tecido é bom, pois foi feito nesta terra. São capas élficas, sem dúvida nenhuma, se é isso o que quer dizer. Folha e ramo, água e pedra: têm a tonalidade e a beleza de todas essas coisas no crepúsculo de Lórien, que tanto amamos, pomos o pensamento de tudo quanto amamos em tudo quanto fazemos. Contudo, são peças de vestuário e não armaduras, e não conterão seta ou lâmina. Mas mesmo assim servi-los-ão bem: são leves e suficientemente quentes ou suficientemente frescas, consoante a necessidade. E verificarão que os ajudarão muito ocultando-os de olhos hostis, quer caminhem entre pedras quer entre árvores. É evidente que inspiraram grande simpatia à Senhora. Ela própria e as suas aias teceram estas capas, e é a primeira vez que vestimos estrangeiros com o vestuário do nosso povo.
Depois da refeição matinal, o grupo despediu-se do relvado junto da fonte. Sentiam o coração pesado, pois era um bonito lugar e tornara-se como um lar para eles, embora não fizessem ideia dos dias e das noites que ali tinham passado. Estavam parados, a olhar para a água branca batida pelo sol, quando Haldir veio ao seu encontro, pela erva verde da clareira. Frodo saudou-o com prazer.
- Regressei das cercas setentrionais e encarregaram-me de os guiar de novo. O Vale do Regato Sombrio está cheio de vapor e nuvens de fumo e as montanhas estão agitadas. Há ruídos nas profundezas da terra. Se tivessem pensado em regressar à vossa terra, para norte, não teriam podido passar por ali. Mas venham! O vosso caminho agora é para sul.
Enquanto caminhavam através de Caras Galadhon, os caminhos verdes estavam desertos; mas nas árvores por cima deles murmuravam e cantavam muitas vozes. Eles seguiam calados. Por fim, Haldir conduziu-os pelas encostas do lado sul abaixo, e voltaram assim, de novo, à grande porta cheia de luzes e à ponte branca. E desse modo saíram e deixaram a cidade dos Elfos. Depois desviaram-se da estrada pavimentada e meteram por um carreiro que penetrava num denso maciço de mallorns e prosseguia, sinuoso, através de bosques ondulados e de sombra prateada, que os levava sempre para baixo, para sul e para leste, na direcção das margens do Rio.
Tinham percorrido mais de 15 km e o meio-dia aproximava-se quando chegaram a um alto muro verde. Passaram por uma abertura e verificaram que as árvores tinham acabado, subitamente. Diante deles estendia-se um extenso relvado muito brilhante, salpicado de elanor douradas que cintilavam ao sol. O relvado perdia-se numa estreia língua entre margens luminosas: à direita e a oeste corria, cintilante, o Filão de Prata; à esquerda e a leste passava o largo Grande Rio, de águas profundas e escuras. Nas margens opostas, as florestas continuavam a seguir para sul, tão longe quanto a vista alcançava, mas os aterros junto aos rios apresentavam-se nus e tristes. Nenhum mallorn erguia os ramos carregados de ouro de pois da Terra de Lórien.
No aterro do Filão de Prata, alguma distância a montante do ponto de encontro dos rios, havia uma plataforma de pedras brancas e madeira branca, junto da qual estavam ancorados muitos barcos e barcaças. Alguns estavam pintados de cores vivas e os seus tons de prata, ouro e verde brilhavam ao sol; mas na sua maioria eram brancos ou cinzentos. Tinham preparado três pequenos barcos cinzentos para os viajantes, e os elfos arrumaram neles a bagagem. Acrescentaram baraços de corda, três para cada barco. A corda era fina, mas resistente, sedosa ao tacto e cinzenta como as capas élficas.
- Que é isto? - perguntou Sam, a pegar numa que se encontrava no relvado.
- Cordas, ora essa! - respondeu-lhe um elfo dos barcos. - Nunca se deve viajar para longe sem uma corda! E deve ser comprida, forte e leve, como estas. Podem ajudar em muitos casos de necessidade.
- Não precisa de mo dizer! - exclamou Sam. - Parti sem nenhuma e tenho andado ralado por causa disso. Mas o que queria saber era do que são feitas. Sei um bocado da arte de fazer cordas, é assim a modos que uma coisa de família.
- São feitas de hithlain - respondeu o elfo. - Mas agora não há tempo para o instruir na arte de fazer cordas. Se soubéssemos que era coisa do seu agrado, poderíamos ter-lhe ensinado muito. Mas agora, infelizmente, a não ser que volte cá algum dia, terá de se contentar com o presente que lhes fazemos. Que os sirva bem!
- Vamos! - disse Haldir. - Já está tudo preparado para vocês. Entrem nos barcos! Mas tenham cuidado, ao princípio.
- Prestem atenção! - recomendaram os outros elfos. - Estes barcos são de construção leve e astuciosos e diferentes dos barcos de outros povos. Não se afundarão, por muito que os carreguem, mas, se os conduzirem mal, mostrar-se-ão caprichosos. Seria conveniente se se acostumassem a embarcar e desembarcar aqui, onde há um cais, antes de começarem a descer o rio.
O grupo foi distribuído do seguinte modo: Aragorn, Frodo e Sam, num barco; Boromir, Merry e Pippin, noutro; e no terceiro, Legolas e Gimli, que se tinham tornado grandes amigos. A maior parte das provisões e das cargas foram acondicionadas no último barco. Os barcos eram accionados e conduzidos por meio de remos de cabo curto, com pás largas e do feitio de folhas. Depois de tudo preparado, Aragorn experimentou-os pelo Filão de Prata acima. A corrente era veloz, e eles avançaram devagar. Sam estava à popa, a agarrar às amuradas e a olhar ansiosamente para terra. O sol que incidia na água ofuscava-o. Quando ultrapassaram o campo verde da Língua, as árvores chegavam à beira-rio. Aqui e ali, folhas douradas flutuavam e entrechocavam-se na corrente ondulada. O ar estava muito luminoso e parado e havia silêncio, interrompido apenas pelo canto alto e distante de cotovias.
Contornaram uma curva acentuada do rio, e deparou-se-lhes, a navegar altivamente ao seu encontro, um cisne muito grande. A água enrugava-se em pequenas ondas, de cada lado do peito branco, sob o pescoço arqueado. O bico brilhava como ouro polido e os olhos cintilavam como azeviche incrustado em pedras amarelas. As grandes asas brancas estavam meio levantadas. Desceu uma música pelo rio, à medida que o grande cisne se aproximava, e, de repente, compreenderam que se tratava de um barco, esculpido com toda a arte élfica na forma de uma ave. Conduziam-no, com remos pretos, dois elfos vestidos de branco. Celeborn estava sentado no meio do barco e atrás dele via-se, de pé, alta e branca, Galadriel, que tinha na cabeça um diadema de flores douradas, segurava uma harpa e cantava. Triste e suave era o som da sua voz, no ar fresco e límpido:
Cantei de folhas, de folhas de ouro, e folhas de ouro nasceram;
De vento cantei, e um vento soprou e agitou os ramos.
Para lá do Sol, para lá da Lua, havia espuma no Mar
E na praia de Ilmarin crescia uma árvore dourada.
Sob as estrelas da noite eterna em Eldamar brilhava,
Em Eldamar ao lado das muralhas da Élfica Tirion.
Lá, longamente cresceram as folhas de ouro, anos e anos,
Enquanto aqui, do outro lado dos Mares,
Caem agora as lágrimas dos Elfos.
Ó Lórien! Vem aí o Inverno, o Dia nu e desfolhado;
As folhas caem na corrente, o Rio desliza.
Ó Lórien! Tempo demasiado habitei nesta margem
E numa coroa que se desvanece entreteci a dourada elanor.
Mas se de barcos cantasse agora, que barco viria,
Que barco me levaria de novo, para sempre,
Através de tão largo Mar?
Aragorn imobilizou o seu barco, enquanto o barco-cisne parava a seu lado. A Senhora terminou a canção e saudou-nos:
- Viemos dizer-lhes o último adeus e desejar-lhes que partam da nossa terra com todas as bênçãos.
- Embora tenham sido nossos hóspedes - acrescentou Celeborn -, ainda não comeram connosco e, por isso, convidamo-los para um banquete de despedida, aqui entre a água corrente que os levará para longe de Lórien.
O Cisne seguiu lentamente para o cais e eles viraram os barcos e seguiram-no. O banquete de despedida efectuou-se ali, na última extremidade de Egladil, sobre a relva verde; mas Frodo comeu e bebeu pouco, atento somente à beleza da Senhora e à sua voz. Ela deixara de lhe parecer perigosa ou terrível, ou cheia de poder oculto. Já lhe parecia - como por homens de tempos posteriores os Elfos ainda são às vezes vistos - presente e, contudo, distante, uma visão viva do que já fora deixado muito para trás pelas correntes do Tempo.
Depois de terem comido e bebido sentados na relva, Celeborn falou-lhes de novo da viagem e, levantando a mão, apontou para sul, para as florestas que ficavam para além da Língua:
- A medida que forem descendo o rio, verificarão que as árvores irão rareando e chegarão a uma região árida. Aí, o Rio corre em vales pedregosos, entre pântanos altos, até que, ao fim de muitas léguas, chega à ilha elevada de Tindrock, a que nós chamamos Tol Brandir. Aí estende os braços à volta das costas íngremes da ilha e depois negras portas de Mordor.
»Boromir, e qualquer que com ele procure Minas Tirith, bem fará deixando o Grande Rio acima de Rauros e atravessando o Entwash antes de ele encontrar os pântanos. No entanto, não devem subir demasiado esse rio nem arriscarem-se a perde-se na Floresta de Fangorn, que é uma terra estranha e agora pouco conhecida. Mas Boromir e Aragorn não precisam, com certeza, desta advertência.»
- Ouvimos, realmente, falar de Fangorn em Minas Tirith - disse Boromir. - Mas o que ouvi pareceu-me, em grande parte, histórias de comadres, como as que contamos aos nossos filhos. Tudo quanto fica a norte de Rohan se tornou agora, para nós, tão distante, que a fantasia pode por lá vaguear livremente. Há muito tempo que Fangorn se situa nas fronteiras do nosso reino, mas há muitas vidas de homens que nenhum de nós a visita, para confirmar ou desmentir as lendas que vêm de anos distantes.
»Eu próprio estive algumas vezes em Rohan, mas nunca atravessei o país para norte. Quando me enviaram como mensageiro, atravessei o desfiladeiro pelas imediações das Montanhas Brancas e cheguei à Terra Nórdica pelo Isen e pelo rio Cinzento. Foi uma longa e extenuante viagem. Quatrocentas léguas, pelos meus cálculos, que me levaram muitos meses, pois perdi o meu cavalo em Tharbad, no vau do rio Cinzento. Depois dessa viagem, e do caminho que percorri com este grupo, a bem dizer não tenho dúvida de que, conseguirei descobrir um caminho através de Rohan... e da Floresta de Fangorn também, se necessário for.»
- Então não preciso de dizer mais nada - declarou Celeborn. - Mas não despreze as histórias que vêm de há muitos anos, pois pode acontecer que as velhas comadres conservem na memória coisas que, em tempos, era necessário os homens sensatos saberem.
Galadriel levantou-se da relva e, tirando uma taça a uma das aias, encheu-a, de hidromel branco e estendeu-a a Celeborn.
- Chegou o momento de beber a taça da despedida - disse. - Bebe, Senhor dos Galadhrim! E não deixes o coração entristecer, apesar de a noite ter de se seguir ao dia e de o nosso anoitecer já estar próximo.
Depois levou a taça a cada um dos membros do grupo, convidou-os a beber e desejou-lhes boa viagem. Mas, quando ele beberam todos, ordenou-lhes que se sentassem de novo na relva, e ela e Celeborn sentaram-se em cadeiras. As suas aias ficaram de pé, silenciosas, à sua volta, e durante um momento Galadriel limitou-se a olhar para os seus hóspedes. Depois falou de novo:
- Bebemos a taça da despedida e as sombras caíram entre nós. Mas falta uma coisa, antes de partirem. Trouxe no meu barco prendas que o Senhor e a Senhora de Galadhrim lhes oferecem em memória do Lothlórien.
Chamou então um de cada vez:
- Aqui está a prenda de Celeborn e Galadriel para o guia do grupo - disse a Aragorn, e entregou-lhe uma bainha para a sua espada: estava revestida de ornatos de folhas e flores de prata e ouro e tinha escrito em runas élficas formadas por muitas pedras preciosas o nome de Andáril e a linhagem da espada. - A lâmina que for retirada desta bainha não ficará manchada nem partida, nem mesmo na derrota - declarou. - Mas deseja mais alguma coisa de mim, à despedida? As trevas crescerão entre nós e é possível que não voltemos a encontrar-nos, a não ser que seja muito longe daqui e numa estrada que não tem regresso.
E Aragorn respondeu-lhe:
- Senhora, sabe qual é todo o meu desejo e há muito que tem à sua guarda o único tesouro que procuro. No entanto, não é seu para mo poder dar, mesmo que quisesse, e só através das trevas o alcançarei.
- Todavia, talvez isto lhe ilumine o coração - respondeu Galadriel -, pois foi deixado ao meu cuidado para lhe entregar, se por aqui passasse. - Levantou do regaço uma grande pedra verde-clara, encastoada num broche de prata do feitio de uma asa de asas abertas, e a pedra brilhou como o Sol através das folhas da Primavera. - Dei esta pedra a minha filha, Celebrían, e ela à sua; e agora passa para as suas mãos, como penhor de esperança. Nesta hora assuma o nome que lhe foi destinado, Elessar, o Pedra Elfa da Casa de Elendil!
Então, Aragorn aceitou a pedra e pregou o broche ao peito, e os que o viram ficaram maravilhados, pois nunca tinham reparado como era alto e majestoso e pareceu-lhes que muitos anos de labor lhe caíram dos ombros.
- Pelas prendas que me deu lhe agradeço, ó Senhora de Lórien, de quem nasceram Celebrían e Arwen Estrela Vespertina. Que maior elogio posso fazer-lhe?
A Senhora inclinou a cabeça e voltou-se a seguir para Boromir, a quem deu um cinto de ouro; e a Merry e Pippin deu pequenos cintos de prata, cada um com um fecho de ouro do feitio de uma flor. A Legolas deu um arco como os usados pelos Galadhrim, mais comprido e resistente do que os arcos da Floresta Tenebrosa e com uma corda feita de cabelo élfico. Completava o presente uma aljava de setas.
- Para si, pequeno jardineiro e amante de árvores - disse a Sam só tenho um pequeno presente. - Colocou-lhe na mão uma simples caixinha de madeira cinzenta, tendo como único adorno uma runa de prata na tampa. - Tem um «G», de Galadriel, mas que também pode significar «jardim» na sua língua. Esta caixa contém terra do meu pomar e as bênçãos que Galadriel ainda pode dar. Não o sustentará no seu caminho nem o defenderá de qualquer perigo; mas se a conservar e, no fim, regressar ao seu país, então talvez possa recompensá-lo. Mesmo que, encontre tudo árido e maninho, poucos jardins da Terra Média florescerão como o seu se nele espalhar esta terra. Então lembrar-se-á de Galadriel e terá um vislumbre distante de Lórien, que só viu no nosso Inverno: pois a nossa Primavera e o nosso Verão passaram e não voltarão a ser vistos na terra, a não ser pela recordação.
Sam corou até às orelhas e murmurou qualquer coisa inaudível, enquanto agarrava a caixa e se inclinava o melhor que sabia.
- E que presente pediria um anão aos Elfos? - perguntou Galadriel a Gimli.
- Nenhum, Senhora - respondeu Gimli. - Bastou-me ter visto a Senhora dos Galadhrim e ter ouvido as suas gentis palavras.
- Ouçam, todos os Elfos! - exclamou a Senhora, dirigindo-se a todos quantos a cercavam. - Não voltem a dizer que os Anões são ávidos e indelicados! No entanto, Gimli, filho de Glóin, certamente deseja qualquer coisa que eu lhe possa dar ... ? Diga, peço-lhe! Não quero que seja o único convidado sem um presente.
- Não há nada, Senhora - respondeu Gimli, a fazer uma grande vénia e a gaguejar. - A não ser que me seja permitido pedir, ou melhor, nomear, uma simples madeixa do seu cabelo, que ultrapassa o ouro da terra como as estrelas ultrapassam as pedras preciosas da mina. Não peço semelhante dádiva, mas a Senhora ordenou-me que nomeasse o meu desejo.
Os elfos mexeram-se e murmuraram entre si, estupefactos, e Celeborn fitou, curioso, o anão; mas a Senhora sorriu.
- Diz-se que a arte dos Anões está mais nas suas mãos do que na sua língua, mas isso não se aplica a Gimli - observou. - Nunca ninguém me tinha feito um pedido tão ousado e, ao mesmo tempo, tão cortês. E como poderei recusar, se lhe ordenei que falasse? Mas, diga-me, que faria de tal prenda?
- Guardá-la-ia como um tesouro, Senhora, como recordação das palavras que me disse no nosso primeiro encontro. E se eu voltar alguma vez às forjas da minha terra, envolvê-la-ei em cristal imperecível e tornar-se-á uma herança de família da minha casa e uma prova de boa vontade entre a Montanha e a Floresta, até ao fim dos tempos.
Então, a Senhora desfez uma das longas tranças e cortou três cabelos dourados, que colocou na mão de Gimli.
- Acompanham a prenda as seguintes palavras - declarou: - Não profetizo, pois toda a profecia é agora vã: numa das mãos encontram-se as trevas e na outra só há esperança. Mas se a esperança não perecer, então digo-lhe, Gimli, filho de Glóin, que das suas mãos jorrará ouro, mas que apesar disso o ouro não exercera nenhum domínio sobre a sua pessoa.
»E agora o portador do anel - prosseguiu, voltando-se para Frodo. - Guardei-o para último, embora não seja o último nos meus pensamentos. Para si preparei isto. - Mostrou um pequeno frasco de cristal, que cintilava conforme ela lhe mexia e dava a impressão de que lhe irrompiam da mão raios de luz branca. - Neste frasco está aprisionada a luz da estrela de Eãrendil, no meio da água da minha fonte. Brilhará ainda mais quando a noite o envolver. Que seja uma luz para si em lugares escuros, quando toda a outra luz se extinguir. Lembre-se de Galadriel e do seu Espelho!»
Frodo aceitou o frasco e, no momento em que brilhou entre ambos, viu-a de novo altiva como uma rainha, grande e bela, mas já não terrível. Inclinou-se, mas não encontrou que dizer.
A Senhora levantou-se e Celeborn reconduziu-os ao cais. Uma tarde dourada envolvia a terra verde da Língua e a água brilhava como prata. Estava finalmente tudo pronto. O grupo ocupou o seu lugar nos barcos, como antes. A gritar palavras de despedida, os elfos de Lórien empurraram-nos para a corrente com compridas varas cinzentas, e as águas onduladas levaram-nos, lentamente. Os viajantes mantiveram-se imóveis e silenciosos. Galadriel estava de pé sozinha e também silenciosa, mesmo na extremidade da Língua. Ao passarem por ela, os viajantes voltaram-se, e os seus olhos viram-na afastar-se vagarosamente deles, a flutuar - porque, na realidade, parecia que flutuava: Lórien ia ficando para trás como um barco luminoso com árvores encantadas a servirem de mastros, um barco que navegava para costas esquecidas, enquanto eles permaneciam, indefesos, na margem do mundo cinzento e nu.
No momento em que olhavam, o Filão de Prata desembocou nas correntes do Grande Rio e os seus barcos viraram e começaram a ganhar velocidade, rumo ao Sul. Em breve, o vulto branco da Senhora ficou pequeno e distante. Brilhava como uma janela de vidro num monte distante, ao morrer do Sol, ou como um lago longínquo visto de uma montanha: um pedaço de cristal caído no regaço da terra. Depois, Frodo teve a impressão de que ela levantava os braços num último adeus, e o vento trouxe o som da sua voz a cantar, distante, mas de uma nitidez impressionante. Agora, porém, cantava na língua antiga dos Elfos do outro lado do Mar, e ele não compreendeu as palavras: a música era bela, mas não o confortou.
No entanto, como costumava acontecer com as palavras élficas, ficaram-lhe gravadas na memória e, muito depois, interpretou-as o melhor que pôde: a linguagem era a habitual do canto élfico e falava de coisas pouco conhecidas na Terra Média.
Ai! lauriê lantar lassi súrinen,
Yéni únótimê ve rámar aldaron!
Yéni ve lintê yuldar avánier
mi oromardi lisse-miruvóreva
Andúnê pella, Vardo tellumar
nu luini yassen tintilar i eleni
ómaryo airetári-lírinen.
Sí man i yulman nin enquantuva?
An sí Tintallê Varda Oiolossêo
ve fanyar máryat Elentári ortanê
ar ilyê undulávê lumbulê;
ar sindanóriello caita morniê
i falmalinnar imbê met, ar hísiê
untúpa Calaciryo míri oialê
Sí vanwa ná, Rómello vantva, Valimar!
Namáriê! Nai hiruvalyê Valimar.
Nai elyê hiruva. Namárie.
«Ah, como ouro caem as folhas ao vento, longos anos inumeráveis como as asas das árvores! Os longos anos passaram como golos rápidos do doce hidromel em grandiosos salões para lá do Ocidente, sob as abóbadas azuis de Varda onde as estrelas tremem no canto da sua voz sagrada e majestosa. Quem me voltará a encher a taça? Pois agora a Acendedora, Varda, a Rainha das Estrelas, do Monte Sempre Branco, ergueu as mãos como nuvens e todos os caminhos ficaram profundamente imersos em sombra; e vinda de uma região cinzenta, a escuridão assenta nas ondas espumosas entre nós e a névoa cobre para sempre as jóias de Calacirya. Agora perdida, perdida está Valimar para os do Leste! Adeus! Talvez encontres Valimar. Talvez até mesmo tu a encontres. Adeus!»
Varda é o nome daquela Senhora a quem os Elfos destas terras de exílio chamam Elbereth.
De súbito, o rio descreveu uma curva, ergueram-se aterros de um lado e do outro e a luz de Lórien ficou oculta. Frodo nunca mais voltou àquela bela terra.
Os viajantes prestaram atenção à viagem. O Sol estava à sua frente e ofuscou-os, pois tinham todos os olhos cheios de lágrimas. Gimli chorava francamente.
- Vi pela primeira vez o que de mais belo há - disse a Legolas, seu companheiro. - Doravante, não chamarei belo a nada, a não ser à sua prenda - afirmou, e levou a mão ao peito.
»Diz-me, Legolas, por que vim nesta missão? Mal sabia onde se encontrava o perigo principal! Elrond tinha razão quando disse que não podíamos prever o que encontraríamos no caminho. Tormento nas trevas era o que eu receava, e isso não me deteve. Mas não teria vindo, se conhecesse o perigo da luz e da ventura. Agora recebi o pior ferimento nesta despedida, e que não seria pior se fosse esta noite direito para o Senhor das Trevas. Pobre Gimli, filho de Glóin!»
- Não! - redarguiu Legolas. - Pobres de todos nós! E de todos quantos percorrem o mundo nestes maus dias. Pois assim são as coisas: encontrar e perder, como parece àqueles cujo barco segue na corrente. Mas eu considero-te afortunado Gimli, filho de Glóin: pela tua perda sofres de tua livre vontade e poderias ter escolhido que assim não fora. Mas não abandonaste os teus companheiros e a mínima recompensa que receberás será a de a recordação de Lothlórien permanecer para sempre clara e imaculada no teu coração, sem nunca se apagar nem envelhecer.
- Talvez, e obrigado pelas tuas palavras. Palavras sinceras, sem dúvida, mas todo o conforto desse género é frio. Não é recordação que o coração quer. Isso é apenas um espelho, mesmo que seja tão claro como Kheled-zâram. Ou, pelo menos, assim sente o coração de Gimli, o Anão. Talvez os Elfos vejam as coisas de outro modo. Na verdade, tenho ouvido dizer que, para eles, a recordação se assemelha mais ao mundo da vigília do que ao sonho. Não é assim para os Anões.
»Mas não falemos mais disso. Olha para o barco! Está muito afundado na água, com toda esta bagagem, e o Grande Rio é veloz. Não desejo afundar o meu desgosto em água fria!»
Pegou num remo e conduziu o barco na direcção da margem ocidental, atrás do de Aragorn, que já saíra do meio da corrente.
Assim seguiu o grupo o seu longo caminho, pelas águas largas e apressadas abaixo, sempre rumo ao Sul. Sucediam-se as florestas desfolhadas ao longo de ambas as margens, e eles não conseguiam nem um vislumbre das terras que ficavam atrás delas. A brisa extinguiu-se e o rio continuou a correr, agora sem um único som. Nenhuma voz de ave quebrava o silêncio. O Sol tornou-se nebuloso à medida que o dia foi avançando, até brilhar no céu pálido como uma pérola branca, muito distante. Depois desapareceu a ocidente, e o crepúsculo chegou cedo, seguido por uma noite cinzenta e sem estrelas. Continuaram a navegar ao longo das horas negras e silentes, a conduzir os barcos debaixo das sombras suspensas das florestas ocidentais. Viram deslizar, como fantasmas, grandes árvores que mergulhavam na água as raízes torcidas e sequiosas, através da névoa. Estava uma noite fria e triste. Frodo escutava o leve chape-chape do rio que corria atormentado entre as raízes das árvores e os troncos que flutuavam junto da margem. Por fim, deixou pender a cabeça e mergulhou num sono agitado.
O GRANDE RIO
Frodo foi acordado por Sam. Descobriu que estava deitado, bem embrulhado, debaixo de árvores altas, de casca cinzenta, num canto tranquilo das florestas da margem ocidental do Grande Rio, Anduin. Dormira a noite toda e o cinzento da manhã via-se vagamente entre os ramos nus. Gimli estava perto, atarefado a acender uma pequena fogueira.
Puseram-se de novo à caminho antes de ser dia claro. Isso não significava que a maioria dos membros do grupo estivessem ansiosos por viajar apressadamente para sul: agradava-lhes que a decisão, que teriam de tomar o mais tardar quando chegassem a Rauros e à ilha de Tindrock, ainda pudesse aguardar alguns dias; e deixavam o rio levá-los ao seu próprio ritmo, sem desejo nenhum de correrem para os perigos que os esperavam, fosse qual fosse o caminho que por fim escolhessem. Aragorn deixava-os vogar com a corrente como desejavam, a reservar-lhes as forças para as fadigas que viriam. Mas insistia em que, pelo menos, partissem cedo todos os dias e viajassem pela noite fora, pois o coração adivinhava-lhe que o tempo escasseava e temia que o Senhor das Trevas não tivesse estado ocioso enquanto eles tinham permanecido em Lórien.
No entanto, não viram quaisquer indícios de algum inimigo, nem nesse dia nem no seguinte. As horas monótonas e cinzentas passavam sem que nada acontecesse. À medida que o terceiro dia de viagem se ia consumindo, a paisagem foi-se lentamente modificando: as árvores tornaram-se mais espaçadas e acabaram por desaparecer por completo. Na margem oriental, à sua esquerda, viram longas e informes encostas que se desenrolavam e subiam direitas ao céu; pareciam castanhas e áridas, como se o fogo tivesse passado sobre elas e não houvesse deixado ponta de erva viva: era um deserto hostil, sem que ao menos uma árvore partida ou uma pedra erecta aliviassem o vazio. Tinham chegado às Terras Castanhas, que ficavam, vastas e desoladas, entre o lado sul da Floresta Tenebrosa e os montes de Emym Muil. Que pestilência, guerra ou má acção do Inimigo destruíra de tal maneira aquela região, era coisa que nem Aragorn saberia dizer.
Do lado ocidental, à sua direita, também não havia árvores, mas a terra era plana e, em muitos pontos, verde, com grandes extensões de erva. Desse lado do rio passaram por florestas de grandes juncos tão altos, que não deixavam ver nada do que lhes ficava atrás.
As plumas escuras e mirradas dos juncos inclinavam-se, agitadas pela aragem leve e fria, e pareciam silvar suave e tristemente. Aqui e ali através de aberturas dos juncais, Frodo lobrigava vislumbres rápidos de prados ondulados e, muito para além deles, montes envoltos em luz crepuscular e, mais longe ainda, mesmo na fronteira do campo visual, uma linha escura, onde se sucediam as fileiras mais meridionais das Montanhas Nebulosas.
Não se via qualquer vestígio de coisas vivas e em movimento, a não ser aves, que eram muitas: pequenas aves que assobiavam ou pipilavam nos juncais, mas que raramente se deixavam ver. Uma ou duas vezes, os viajantes ouviram o som característico das asas dos cisnes, levantaram a cabeça e viram um grande bando no céu.
- Cisnes! - exclamou Sam. - E que grandes!
- Sim... e sã Anduin, talvez a temperatura seja mais quente e a paisagem mais alegre... ou devesse ser, não fora o Inimigo. Mas aqui não estamos, segundo os meus cálculos, a mais de sessenta léguas a sul do Farthing Meridional do seu Shire, que fica centenas de quilómetros mais longe. Agora está a olhar para sudoeste através das planícies do norte da Riddermark, Rohan, a terra dos Senhores dos Cavalos. Não tardemos a chegar à embocadura do Limlight, que desce de Fangorn e se junta ao Grande Rio. Essa é a fronteira norte de Rohan; há longo tempo que tudo quanto fica entre o Limlight e as Montanhas Brancas pertencia aos Rohirrim. É uma terra rica e agradável e a sua erva não tem rival; mas, nos maus tempos que correm, as pessoas não vivem junto do rio nem cavalgam com frequência até às suas margens. O Anduin é largo, mas mesmo assim os Orcs podem disparar as suas setas do outro lado do rio, a uma grande distância. E consta mesmo que, ultimamente, ousaram atravessá-lo e atacar as herdades e as coudelarias de Rohan.
Sam olhava de margem para margem, inquieto. Anteriormente, as árvores tinham-lhe parecido hostis, como se ocultassem olhos secretos e nelas espreitassem perigos; mas agora desejava que continuasse a haver árvores. Parecia-lhe que o grupo estava demasiado exposto, a flutuar em pequenos barcos descobertos entre terras
não ofereciam abrigo e num rio que era a fronteira da guerra.
No dia seguinte e no outro, enquanto prosseguiam sempre rumo a sul, essa sensação de insegurança apoderou-se de todos. Agarraram-se aos remos, durante um dia inteiro, e avançaram apressadamente. As margens deslizavam, aos lados. O rio não tardou a ficar mais largo e menos fundo. A leste havia extensas praias pedregosas e, na água, baixios seixosos, o que exigia cuidadosa atenção ao manobrar dos barcos. As Terras Castanhas desenrolavam-se em lúgubres descampados, sobre os quais soprava um ar frio, vindo do leste. Do outro lado, os prados tinham dado lugar a ondulantes colinas revestidas de erva murcha, no meio de uma região de pântanos e moitas. Frodo estremeceu, ao pensar nos relvados e nas fontes, no sol claro e na chuva branda de Lothlórien. Falava-se pouco e não se ria nada em nenhum dos barcos. Cada qual estava entregue aos seus próprios pensamentos.
O coração de Legolas corria debaixo das estrelas de uma noite estival, numa clareira setentrional entre florestas de bétulas; Gimli apalpava mentalmente ouro e perguntava a si mesmo se seria apropriado utilizá-lo para albergar a oferta da Senhora. Merry e Pippin, no barco do meio, sentiam-se pouco à vontade, em virtude de Boromir falar sozinho e, às vezes, roer as unhas, como se o consumisse alguma grande inquietação ou dúvida. Por vezes também pegava num remo e aproximava muito o barco da ré do de Aragorn. Nessas alturas, Pippin, que estava sentado à proa, virado para trás, via-lhe um estranho brilho nos olhos, quando ele olhava para Frodo. Sam chegara havia muito à conclusão de que, embora não fossem, talvez, tão perigosos como sempre lhe tinham dito, os barcos eram muito mais desconfortáveis do que até ele próprio imaginara. Sentia-se entorpecido e aborrecido, sem mais que fazer além de olhar para as terras invernosas por que passavam e para a água cinzenta que lhe corria de ambos os lados. Até mesmo quando era necessário utilizar os remos, ninguém os confiava a Sam.
Quando anoitecia, no quarto dia, estava a olhar para trás, por cima das cabeças inclinadas de Frodo e de Aragorn e dos barcos que os seguiam. Sentia-se ensonado e estava ansioso por acampar e sentir o contacto da terra debaixo dos pés. De súbito, qualquer coisa lhe prendeu a atenção. Ao princípio limitou-se a olhar distraidamente o que quer que era, mas depois endireitou-se e esfregou os olhos, para ver melhor. Quando voltou a olhar, porém, já não viu nada.
Nessa noite acamparam numa pequena ilhota próxima da margem ocidental. Sam deitou-se, enrolado em cobertores, ao lado de Frodo.
- Tive um sonho engraçado, uma hora ou duas antes de pararmos, Sr. Frodo. Ou talvez não tenha sido um sonho... Mas engraçado foi, com certeza.
- De que se tratou? - perguntou Frodo, pois sabia que Sam não ficaria sossegado enquanto não contasse a sua história, fosse ela qual fosse. - Desde que partimos de Lothlórien que não vejo nem penso em nada que me faça sorrir.
- Não foi engraçado nesse sentido, Sr. Frodo. Foi... esquisito. Errado, se não se tratou de um sonho. Acho melhor contar-lhe. Trata-se do seguinte: vi um tronco com olhos!
- O tronco está bem; há muitos no rio. Mas tira-lhe os olhos!
- Isso é que não tiro - replicou Sam. - Foram precisamente os olhos que me espevitaram, por assim dizer. Vi o que me pareceu ser um tronco flutuante, à meia-luz, atrás do barco de Gimli; mas não liguei muita importância. Depois pareceu-me que o tronco se estava a aproximar, lentamente, e achei isso peculiar, como o senhor diria atendendo a que flutuávamos todos na mesma corrente. De repente vi os olhos: uma espécie de dois pontos pálidos, a modos que brilhantes, num alto perto da ponta do tronco. Mais: não se tratava de tronco nenhum, pois tinha pés espalmados, quase como as patas de um cisne, só com a diferença de que pareciam maiores e estavam sempre a entrar na água e a sair.
»Foi nessa altura que me endireitei e esfreguei os olhos, disposto a gritar se a coisa ainda lá estivesse depois de eu ter espantado o sono. Sim, porque o que quer que era, estava a avançar depressa e a aproximar-se muito do barco do Gimli. Mas não sei se aqueles 'faróis' me viram mexer e olhar, se fui eu que acordei; o que sei é que, quando olhei de novo já lá não estava nada. No entanto tenho cá a impressão de que, como se costuma dizer, com o rabo do olho vi qualquer coisa escura esconder-se muito depressa à sombra do aterro. Mas a verdade é que não vi mais os tais olhos.
»Disse para comigo: 'Outra vez a dormir, Sam Gamgee', e fiquei-me por aí. Mas desde então tenho estado para aqui a magicar e já não tenho a certeza. Que lhe parece, Sr. Frodo?»
- Parecer-me-ia que se tratava apenas de um tronco, do lusco-fusco e do sono nos teus olhos, Sam, se se tratasse da primeira vez que esses olhos foram vistos. Mas não tratou. Eu vi-o lá para trás, no Norte, antes de chegarmos a Lórien. E vi uma estranha criatura com olhos a trepar para o talan, naquela noite. O Haldir também a viu. E lembras-te do que contaram os elfos que perseguiram o bando de orcs?
- Ah, lembro-me! E lembro-me até de mais! Não gosto nada do que estou a pensar, mas por isto e por aquilo, e juntando a tudo as histórias do Sr. Bilbo, desconfio que podia indicar um nome para essa criatura. Um nome muito feio. Gollum, talvez?...
- Sim, é esse também o meu receio, há algum tempo - respondeu Frodo. - Desde aquela noite no talan. Suponho que ele estava à espreita em Mória e nos seguiu o rasto desde lá. Esperei, no entanto, que a nossa estada em Lórien o despitasse de novo... A desgraçada criatura deve ter estado escondida nas florestas, junto do Filão de Prata, à espera de nos ver partir!
- Sim, deve ter sido mais ou menos isso - concordou Sam. - Acho que devemos estar um pouco mais vigilantes, se não queremos sentir uns dedos desagradáveis à volta do pescoço, uma destas noites... se chegarmos a acordar e a sentir alguma coisa, claro! Era precisamente aí que eu queria chegar. Não há necessidade de incomodar o Passo de Gigante nem os outros, esta noite. Eu fico de guarda. Posso dormir amanhã, já que por assim dizer não sou mais do que bagagem num barco.
Eu diria «bagagem com olhos» - corrigiu Frodo. - Pois sim, fica de guarda; mas na condição de prometeres acordar-me perto do amanhecer, se não acontecer nada antes.
Horas mortas, Frodo acordou de um sono profundo e deu consigo a ser sacudido por Sam.
- É uma pena acordá-lo - murmurou Sam -, mas foi o senhor que mandou. Não há nada a dizer, ou muito pouco... Há bocado pareceu-me ouvir um chapinhar suave e uma espécie de farejar. Mas é natural ouvirem-se ruídos desse género, esquisitos junto de um rio, à noite...
Sam deitou-se e Frodo sentou-se, embrulhado nos cobertores, e espantou o sono. Passaram lentamente horas ou minutos sem que nada acontecesse. Frodo começava a ceder à tentação de se deitar outra vez quando um vulto escuro, quase invisível, flutuou junto a um dos barcos ancorados. Viu vagamente a mão comprida e esbranquiçada que irrompeu da água e se agarrou à amurada, assim como os dois olhos claros e redondos que brilhavam friamente, ao espreitarem para dentro do barco, e que depois se levantaram e olharam para Frodo, na ilhota. Não estavam a mais de 1 m ou 2 m de distância, e Frodo ouviu o silvo da respiração subitamente contida. Levantou-se, desembainhou Ferrão e enfrentou os olhos. Acto contínuo, a sua luz apagou-se. Ouviu-se outro silvo e um chapinhar, e o vulto escuro, semelhante a um tronco, afastou-se na noite, rio abaixo. Aragorn agitou-se no sono, virou-se e sentou-se.
- Que foi? - murmurou, ao mesmo tempo que se levantava e aproximava de Frodo. - Senti qualquer coisa, enquanto dormia. Por que desembainhou a espada?
- Gollum - respondeu Frodo. - Ou, pelo menos, suspeito.
- Ah! - exclamou Aragorn. - Sabe, então, da perseguição do nosso pezinhos de lã, hem? Percorreu Mória inteira atrás de nós e seguiu-nos até Nimrodel. Desde que começámos a viajar de barco, ele tem vindo deitado num tronco e a remar com os pés e as mãos. Tentei apanhá-lo uma ou duas vezes, mas ele é mais manhoso do que uma raposa e escorregadio como um peixe. Ainda pensei que a viagem pelo rio fosse superior às suas forças, mas ele parece estar no seu elemento.
»Amanhã teremos de tentar ir mais depressa. Agora deite-se, que eu fico de guarda durante o resto da noite. Gostaria muito de pôr as mãos no desgraçado! Talvez ainda nos pudesse vir a ser útil. Mas se não conseguir apanhá-lo, teremos de tentar despistá-lo. É muito perigoso. Independentemente do perigo de assassinar de noite por sua própria conta, é capaz de pôr algum inimigo que por aí ande na nossa pista.»
A noite passou sem que voltassem a ver a sombra de Gollum, sequer. Depois disso, o grupo manteve-se muito atento, mas ninguém voltou a ver Gollum até ao fim da viagem. Se ainda os seguia, procedia com muito cuidado e muita astúcia. A pedido de Aragorn, passaram a remar durante longos períodos, enquanto as margens pareciam deslizar rapidamente. No entanto, pouco viram da região, pois viajavam principalmente de noite e ao crepúsculo e descansavam de dia, tão escondidos quanto a terra o permitia. Deste modo, o tempo passou sem que nada de especial acontecesse até ao sétimo dia.
O tempo ainda estava cinzento e enevoado, com vento de leste, mas à medida que foi anoitecendo o céu ocidental clareou e pareceu que se abriam buracos de pálida luz amarela e verde-clara nos castelos de nuvens. O risco branco da lua nova conseguia distinguir-se, a brilhar nos lagos distantes. Sam olhou-a e franziu as sobrancelhas.
No dia seguinte, a paisagem de ambos os lados do rio começou a mudar rapidamente. Os aterros começaram a tornar-se altos e pedregosos. Não tardaram a passar através de uma região acidentada e rochosa, tendo em ambas as margens encostas íngremes, revestidas de densas moitas de abrunheiros e espinheiros, de mistura com silvas e trepadeiras. Atrás deles erguiam-se penhascos baixos e a esboroar-se e chaminés de pedra cinzenta e gasta, que a hera enegrecia. Mais atrás, ainda, erguiam-se serranias altas, coroadas de abetos torturados pelo vento. Estavam a aproximar-se da cinzenta região montanhosa do Emyn Muil, a marca meridional da Terra Erma.
Havia muitas aves nos rochedos e nas chaminés de pedra e durante todo o dia tinham voado alto, em círculos, bandos de aves, que se recortavam a negro no céu claro. Nesse dia, quando estavam deitados no acampamento, Aragorn observou os bandos de aves em voo desconfiadamente, receoso de que Gollum tivesse feito alguma patifaria e a notícia da sua viagem estivesse já a propagar-se nos ermos. Mais tarde, quando o Sol se punha e o grupo se preparava para de novo partir, distinguiu uma mancha escura na luz que se esvaía: uma grande ave, a voar muito alto e muito longe, ora pairando, ora avançando lentamente para sul.
- Que é aquilo, Legolas? - perguntou, a apontar para o céu setentrional. - É, como penso, uma águia?
- É - confirmou Legolas. - É uma águia caçadora. Pergunto a mim mesmo que prenunciará, pois está longe das montanhas.
- Não partiremos enquanto não for noite cerrada - decidiu Aragorn.
Chegou a oitava noite de viagem. Era uma noite silenciosa e sem vento, pois o triste vento leste parara. O fino crescente da Lua desaparecera depressa no pálido crepúsculo, mas o céu estava claro, por cima deles, e, ainda que muito longe, no Sul, havia grandes montanhas de nuvens que ainda brilhavam levemente. No Ocidente, as estrelas cintilavam, com um brilho vivo.
- Vamos! - disse Aragorn. - Aventurar-nos-emos a mais uma viagem de noite. Estamos a chegar aos braços do rio, que não conheço bem, pois nunca tinha viajado por água nesta região, pelo menos entre este ponto e os rápidos de Sarn Gebir. Mas, se os meus cálculos estão certos, ainda faltam muitos quilómetros para lá chegarmos. No entanto, há lugares mesmo antes de chegarmos aos rápidos, tais como rochedos e ilhotas pedregosas na corrente. Temos de estar bem vigilantes e não podemos pensar em remar velozmente.
A Sam, que ia no barco da frente, foi confiada a missão de vigilante. Estendeu-se à proa, a perscrutar as trevas. A noite tornou-se mais escura, mas as estrelas brilhavam estranhamente e havia como que uma cintilação na superfície do rio. Era quase meia-noite e vogavam havia algum tempo, quase sem utilizarem os remos, quando, de súbito, Sam gritou. Poucos metros à frente erguiam-se formas escuras, na corrente, e ele ouvia o barulho de água veloz e turbilhonante. A corrente puxava com força para a esquerda, na direcção da margem oriental, onde o canal navegável se via perfeitamente. Ao serem arrastados para o lado, os viajantes puderam ver já muito perto, a espuma clara do rio fustigar as rochas aguçadas que emergiam da água como uma enfiada de dentes. Os barcos estavam muitos juntos.
- Atenção, Aragorn! - gritou Boromir, quando o seu barco chocou com o da frente. - Isto é loucura! Não podemos arriscar-nos a navegar pelos rápidos de noite! De resto, nenhum barco consegue resistir em Sarn Gebir, seja noite ou dia.
- Para trás! Para trás! - gritou Aragorn. - Virem! Virem, se puderem! - Meteu o remo na água, a tentar deter o barco e virá-lo.
- Tenho os meus cálculos errados - disse a Frodo. - Não sabia que já tínhamos chegado tão longe. O Anduin corre mais depressa do que eu pensava. Sarn Gebir já deve estar perto.
Com grande esforço, conseguiram deter os barcos e fazê-los virar. Mas ao princípio pouco conseguiram fazer contra a corrente, e viram-se cada vez mais arrastados para a margem oriental, que se erguia agora, escura e ominosa, na noite.
- Todos juntos, remar! - gritou Boromir. - Vamos, remem ou seremos lançados para os baixios.
Enquanto Boromir falava, Frodo sentiu a quilha do seu barco raspar em pedra.
Nesse momento ouviu-se uma vibração de arcos esticados, várias setas assobiaram por cima deles e algumas caíram no meio deles. Uma atingiu Frodo entre os ombros e ele desequilibrou-se para a frente, gritou e largou o remo, mas a seta caiu, repelida pela oculta cota de malha. Outra atravessou o capuz de Aragorn e uma terceira cravou-se bem na amurada do segundo barco, perto da mão de Merry, Sam teve a impressão de distinguir vultos negros a correr de um lado para o outro, nos compridos aterros seixosos que ficavam abaixo da margem oriental. Pareciam muito próximos.
- Yrchs! - exclamou Legolas, a falar sem se aperceber na sua própria língua.
- Orcs! - gritou Gimli.
- Apostava que é obra de Gollum - disse Sam a Frodo. - E que rico lugar escolheram! O rio parece decidido a lançar-nos para os braços deles.
Inclinaram-se todos para a frente, a fazer a máxima força nos remos - até Sam deu uma ajuda. Esperavam a todo o momento sentir a ferroada das setas emplumadas de negro. Foram muitas as que assobiaram por cima deles ou caíram na água, perto, mas mais nenhuma acertou nos barcos. Estava escuro, mas não demasiado
escuro para os olhos habituados à noite dos Orcs, e, com as estrelas a brilhar daquela maneira, eles deviam oferecer algum alvo aos seus astuciosos adversários - a não ser que as capas cinzentas de Lórien e a madeira cinzenta dos barcos élficos anulassem a astúcia dos arqueiros de Mordor.
Continuaram a esforçar-se, remada a remada. Às escuras era difícil ter a certeza de que avançavam, sequer; mas, pouco a pouco, o redemoinhar da água diminuiu e a sombra da margem oriental voltou a desaparecer na noite. Por fim, tanto quanto puderam calcular, voltaram ao meio da corrente e conduziram os barcos para uma certa distância a montante dos rochedos salientes. Depois, dando meia volta, impeliram-nos com toda a força na direcção da margem ocidental. Pararam à sombra de arbustos que se debruçavam para a água e tomaram fôlego.
Legolas largou o remo e pegou no arco que trouxera de Lórien.
Depois saltou para terra e subiu alguns passos, pelo aterro. Retesou o arco, ajustou uma seta, virou-se e perscrutou as trevas, através do rio. Ainda se ouviam gritos agudos do outro lado, mas não se via nada.
Frodo olhou para o elfo, que perscrutava a noite à procura de um alvo contra o qual disparar. Era alto e a sua cabeça escura parecia coroada com as luminosas estrelas brancas que cintilavam nos lagos negros do céu, atrás dele. Nisto, porém, erguendo-se e partindo do Sul, as grandes nuvens avançaram, enviaram batedores para os campos estrelados. Apoderou-se do grupo um temor súbito.
- Elebereth Gilthoniel! - suspirou Legolas, quando olhou para cima.
No mesmo instante, uma forma negra que parecia uma nuvem, mas não era uma nuvem, pois avançava muito mais velozmente seta partiu, sibilante, da corda élfica. Frodo olhou para o céu. Quase por cima dele, o vulto alado guinou. Ouviu-se um crocito forte e áspero, e a criatura caiu e desapareceu na escuridão da margem oriental. O céu ficou de novo limpo. Houve um tumulto de muitas vozes distantes, a praguejar e a lamentar-se nas trevas, e depois reinou o silêncio. Nem seta nem grito voltaram a vir do lado oriental, naquela noite.
Passados momentos, Aragorn conduziu os barcos, rio acima. Tactearam o caminho ao longo da beira-d'água, durante algum tempo, até encontrarem uma pequena baía, pouco funda. Cresciam algumas árvores baixas junto da água e atrás delas erguia-se um aterro rochoso e íngreme. O grupo decidiu ficar ali, à espera do alvorecer, pois era inútil tentarem avançar mais de noite. Não montaram acampamento nem acenderam nenhuma fogueira; deitaram-se encolhidos nos barcos, ancorados juntos.
- Louvado seja o arco de Galadriel e a mão e os olhos de Legolas! - exclamou Gimli, enquanto comia uma bolacha de lembas. - Foi um formidável disparo na escuridão, meu amigo!
- Mas quem sabe o que foi atingido? - perguntou Legolas.
- Eu não sei - confessou Gimli. - Mas sinto-me grato por a sombra não se ter aproximado mais. Não me agradou nada... Lembrou-me demasiado a sombra de Mória... a sombra do balrog - concluiu, num murmúrio.
- Não era um balrog - disse Frodo, ainda a tremer do frio que se apoderara dele. - Era qualquer coisa mais fria. Creio que era.. - mas calou-se.
- Crê que era o quê? - perguntou Boromir, avidamente, debruçado do seu barco, como se tentasse ver o rosto de Frodo.
- Creio... Não, não direi - decidiu Frodo. - Fosse o que fosse, a sua queda atemorizou os nossos inimigos.
- Assim parece - concordou Aragorn. - No entanto ignoramos onde estão, quantos são e que farão a seguir. Esta noite devemos ficar todos vigilantes! Agora a escuridão oculta-nos, mas quem sabe o que o dia revelará? Tenham as armas à mão!
Sam estava sentado, a tamborilar no cabo da espada como se contasse pelos dedos e a olhar para o céu.
- É muito estranho - murmurou. - A Lua é a mesma no Shire e na Terra Erma, ou pelo menos deveria ser. Mas, ou ela se desviou do caminho, ou eu me enganei nos cálculos. Como se deve lembrar, Sr. Frodo, a Lua estava em fase minguante quando estávamos deitados no talan, no cimo daquela árvore: a uma semana da lua cheia, calculo. A noite passada fez uma semana que andamos a navegar e surge uma lua nova, fininha como uma apara de unha, como se não tivéssemos passado tempo nenhum na terra dos Elfos.
»Ora eu lembro-me de pelo menos três noites que lá passámos com certeza, e tenho a impressão de me lembrar de várias mais, mas juraria que, de qualquer modo, não foi um mês inteiro. Até parece que o tempo lá não conta!»
- E talvez seja assim mesmo - redarguiu Frodo. - Talvez tenhamos estado, naquela terra, num tempo que já passou há muito em qualquer outro lado. Parece-me que só quando o Filão de Prata nos trouxe de novo para o Anduin regressámos ao tempo que corre pelas terras mortais para o Grande Mar. E se eu não me lembro de lua nenhuma, nova ou velha, em Caras Galadhon: só me lembro de estrelas à noite e sol de dia.
Legolas mexeu-se, no seu barco.
- O tempo não está sempre parado - observou -, mas a mudança e o crescimento não é igual em todas as coisas e em todos os lugares. O mundo move-se para os Elfos, mas move-se simultaneamente muito depressa e muito devagar. Muito depressa porque eles mudam pouco e tudo o mais passa velozmente: é uma mágoa para eles. Muito devagar porque não contam o suceder dos anos, pelo menos em relação a eles. O suceder das estações são apenas pequenas ondas sempre repetidas na longa, longuíssima corrente. No entanto, tudo quanto existe debaixo do Sol tem de se desgastar e caminhar inevitavelmente para um fim.
- Mas o desgaste é lento, em Lórien. - disse Frodo. - Exerce-se lá o poder da Senhora. Ricas são as horas, embora pareçam curtas, em Caras Galadhon, onde Galadriel usa o anel élfico.
- Isso não deveria ser dito fora de Lórien, nem mesmo a mim! - lembrou Aragorn. - Não o volte a dizer! - Depois voltou-se para Sam: - Assim foi, Sam: naquela terra perdeu o conto. Enquanto lá estivemos, a lua velha passou e uma lua nova cresceu e minguou no mundo exterior. E ontem nasceu de novo outra lua nova. O Inverno está quase passado. O tempo corre para uma Primavera de pouca esperança.
A noite passou, silenciosamente. Não voltou a ouvir-se nenhum grito ou chamamento do outro lado da água. Os viajantes, encolhidos nos barcos, sentiram a mudança do tempo. O ar tornou-se morno e muito parado sob as grandes nuvens húmidas que tinham vindo do Sul e dos mares distantes. O correr do rio sobre as rochas dos rápidos pareceu tornar-se mais ruidoso e mais próximo. Os raminhos das árvores, por cima deles, começaram a pingar.
Quando o dia nasceu, a disposição do mundo que os cercava tornou-se suave e triste. Lentamente, a alvorada deu lugar a uma luz pálida, difusa e sem sombras. Havia neblina no rio e nevoeiro branco envolvia a margem. O aterro do lado oposto não se via.
- Não suporto nevoeiro - comentou Sam -, mas este parece ter vindo a calhar. Assim talvez possamos safar-nos sem aqueles malditos mostrengos não verem.
- Talvez - admitiu Aragorn. - Mas será difícil encontrar o caminho, a não ser que o nevoeiro levante um bocadinho, mais tarde. E nós temos de encontrar o caminho, se queremos passar Sarn Gebir e chegar ao Emyn Muil.
- Não vejo necessidade de passarmos os rápidos ou seguirmos o rio até mais longe - declarou Boromir. - Se o Emyn Muil está à nossa frente, podemos abandonar estas cascas de noz destes barcos e seguir para oeste e sul até chegarmos ao Entwash e atravessarmos para o meu país.
- Pois podemos, se seguirmos para Minas Tirith, mas isso ainda não está decidido - lembrou Aragorn. - E um trajecto desses pode ser mais perigoso do que parece. O vale de Entwash é plano e pantanoso, e o nevoeiro constitui, nestas terras, perigo mortal para os que viajam a pé e carregados. Acho que não devemos abandonar os nossos barcos até ter mesmo de ser. O rio é, pelo menos, um caminho que não podemos deixar de ver.
- Mas o Inimigo ocupa a margem oposta - contrapôs Boromir. - E mesmo que passe as Portas de Argonath e chegue, incólume, a Tindrock, que fará depois? Saltará pelas cataratas abaixo e aterrará nos pântanos?
- Não! - respondeu Aragorn. - Digamos antes que transportamos os nossos barcos até à base de Rauros e aí nos meteremos de novo à água. Desconhece, ou agrada-lhe esquecer, Boromir, a existência da Escada do Norte e da cadeira alta do Amon Hen, que foram construídas no tempo dos grandes reis? Eu, pelo menos, estou resolvido a parar de novo nesse lugar alto, antes de decidir que caminho seguirei depois. Talvez aí encontremos algum sinal que nos guie.
Boromir opôs-se durante muito tempo a semelhante opção, mas quando se tornou evidente que Frodo acompanharia Aragorn aonde quer que ele fosse, cedeu.
- Não é costume dos Homens de Minas Tirith abandonar os necessitados, e vocês precisarão da minha força se quiserem chegar a Tindrock - afirmou. - Irei até à ilha alta, mas não mais longe. Aí virarei para o meu país, sozinho, se a minha ajuda não tiver merecido a recompensa de qualquer companhia.
O dia ia avançando e o nevoeiro dissipara-se um pouco. Decidiu-se que Aragorn e Legolas partiriam imediatamente ao longo da margem, enquanto os outros permaneciam junto dos barcos. Aragorn esperava descobrir qualquer caminho pelo qual pudessem transportar os barcos e a bagagem até à água mais calma, depois do rápidos.
- É possível que os barcos dos Elfos se não afundem - alegou.
Mas isso não significa que passássemos Sarn Gebir vivos. Ainda ninguém o fez. Os Homens de Gondor não fizeram nenhuma estrada nesta região porque, até mesmo nos seus grandes tempos, o seu reino não chegava ao Anduin para além do Emyn Muil. Mas há um caminho por terra, algures na margem ocidental, é preciso é encontrá-lo. Ainda não deve ter desaparecido, pois havia barcos leves que faziam a viagem da Terra Erma para Osgiliath não há muitos anos, quando os Orcs de Mordor começaram a multiplicar-se.
- Raramente na minha vida veio do Norte algum barco com os orcs à espreita na margem oriental - disse Boromir. - Se avançarem, o perigo aumentará a cada quilómetro, mesmo que encontre o caminho.
- O perigo espera em todas as estradas para sul - respondeu-lhe Aragorn. - Esperem-nos um dia. Se não regressarmos nesse espaço de tempo, isso significará que nos aconteceu de facto uma desgraça. Nesse caso deverão escolher um novo guia e obedecer-lhe o melhor que puderem.
Foi com o coração pesado que Frodo viu Aragorn e Legolas subir o aterro íngreme e desaparecer na neblina. Mas os seus receios eram infundados. Tinham decorrido apenas duas ou três horas, o dia mal ia a meio, quando os vultos vagos dos exploradores reapareceram.
- Está tudo bem - anunciou Aragorn, enquanto descia o aterro. Há um carreiro que leva a um bom embarcadouro ainda utilizável. A distância não é grande: os rápidos começam a uns 800 m a jusante daqui e prolongam-se numa extensão com pouco mais de quilómetro e meio. Uma pequena distância à frente, o rio torna-se de novo claro e liso, embora corra velozmente. A nossa tarefa mais dura consistirá em transportar os barcos e a bagagem até ao caminho. Encontrámo-lo, mas fica muito afastado da beira-d'água e segue protegido por uma parede de rocha, a duzentos metros ou mais da margem. Não descobrimos onde fica o embarcadouro do lado norte. Se ainda existe, devemos tê-lo passado ontem à noite. Podíamos seguir para montante, mas não o ver por causa do nevoeiro. Parece-me que temos de deixar o rio agora e seguir daqui para o caminho por terra, o melhor que pudermos.
- Isso não seria fácil, nem mesmo que fôssemos todos homens - contestou Boromir.
- No entanto, apesar de sermos o que somos, tentaremos - redarguiu-lhe Aragorn.
- Pois claro que tentaremos - concordou Gimli. - As pernas dos Homens deixam-se ficar para trás num caminho difícil, ao passo que um anão avança sempre, ainda que transporte uma carga com duas vezes o seu peso, Mestre Boromir!
A tarefa foi, realmente, difícil, mas concluiu-se. Tiraram a bagagem dos barcos e levaram-na para o cimo do aterro, onde havia um espaço nivelado. Depois tiraram os barcos da água e transportaram-nos para cima. Eram muito menos pesados do que tinham calculado. Nem mesmo Legolas sabia de que árvore do país élfico tinham sido feitos; mas a madeira era resistente e, não obstante, singularmente leve. Merry e Pippin, sozinhos, puderam transportar com facilidade o seu barco no terreno plano. No entanto, tornou-se necessária a força de dois homens para os levantar e carregar no terreno que o grupo tinha agora de atravessar. Afastava-se, a subir, do rio, e era um deserto de rochedos calcários cinzentos, com muitos buracos ocultos por ervas e arbustos; havia moitas de silvas, vales a pique e, aqui e ali, lagoas pantanosas, alimentadas pelas águas que escorriam dos socalcos do interior.
Boromir e Aragorn transportaram os barcos um por um, enquanto os outros subiam dificilmente, atrás deles com a bagagem. Por fim ficou tudo no caminho. Depois, com poucos problemas, tirando os obstáculos das urzes e das muitas pedras caídas, avançaram todos juntos. O nevoeiro ainda parecia agarrar-se, em farrapos, à parede rochosa a esboroar-se e, à sua esquerda, a neblina velava o rio: ouviam-no passar impetuoso e espumejante por cima dos seixos e dos dentes de pedra de Sarn Gebir, mas não o viam. Tiveram de percorrer duas vezes o caminho, até ficar tudo em segurança no embarcadouro do lado sul.
Aí, o caminho voltava de novo para o lado da água e descia suavemente pela beira pouco funda de uma pequena lagoa. Parecia ter sido aberto ao lado do rio, não à mão, mas sim pela água que descia a redemoinhar de Sarn Gebir e embatia num quebra-mar rochoso e baixo, que penetrava alguma distância no rio. Para lá dele, a margem subia para um penhasco cinzento, e deixava de haver qualquer caminho para os que viajavam a pé.
A tarde breve tinha já passado e começava um crepúsculo enevoado. Sentaram-se ao lado da água, a escutar o fragor confuso dos rápidos, ocultos pela neblina; estavam cansados e sonolentos e sentiam o coração tão triste como o dia moribundo.
- Bem, cá estamos, e aqui temos de passar outra noite - disse Boromir. - Precisamos de dormir e, mesmo que Aragorn estivesse com ideias de passar, de noite, as Portas de Argonath, estaríamos todos demasiado exaustos... excepto, sem dúvida, o nosso robusto anão.
Gimli não respondeu: estava sentado a cabecear.
- Descansemos o máximo que pudermos agora - recomendou Aragorn. - Amanhã teremos de viajar novamente de dia. A não ser que o tempo mude de novo e nos pregue uma partida, teremos boas probabilidades de nos esgueirarmos sem sermos vistos por quaisquer olhos que se encontrem na margem oriental. Mas esta noite terão de ficar dois de guarda, por turnos: três horas de descanso e uma de guarda.
Nessa noite não aconteceu nada pior do que uma chuvada breve e fraca, uma hora antes de alvorecer. O nevoeiro já começava a diminuir. Mantiveram-se o mais chegados que puderam ao lado ocidental, e conseguiam distinguir as formas vagas dos penhascos baixos, mas que subiam sempre, paredes sombrias com a base no rio apressado. A meio da manhã, as nuvens baixaram mais e começou a chover muito. Colocaram as coberturas de pele nos barcos, para evitar que se inundassem e fossem arrastados. Pouco podiam ver à sua frente ou em seu redor através das cinzentas cortinas de chuva.
Mas a chuva não durou muito. Pouco a pouco, o céu foi-se tornando mais claro e, de súbito, as nuvens separaram-se e as suas pontas esfarrapadas afastaram-se para norte, pelo rio acima. O nevoeiro e a neblina também tinham acabado. A frente dos viajantes estendia-se um largo barranco com grandes paredes rochosas às quais se agarravam, em socalcos e fendas estreitas, algumas árvores enfezadas. O canal do rio tornou-se mais estreito e a corrente mais
rápida. O grupo avançava agora com pouca esperança de parar ou voltar para trás, fosse o que fosse que encontrasse à sua frente. Em cima deles tinham uma faixa de céu azul-claro, à sua volta o rio escuro e sombrio e à sua frente, negros e ocultando o Sol, os montes de Emyn Muil, nos quais não distinguiam nenhuma abertura.
Frodo, que olhava em frente com atenção, viu ao longe duas grandes rochas que se aproximavam e pareciam enormes pináculos ou colunas de pedra. Erguiam-se, uma de cada lado do rio, altas, a pique e assustadoras. Havia entre elas uma estreita abertura, para a qual o rio arrastava os barcos.
- Olhem as Argonath, as Colunas dos Reis! - exclamou Aragorn. - Transpô-las-emos em breve. Mantenham os barcos em fila e o mais distanciados uns dos outros que puderem! Não saiam do meio da corrente!
Frodo teve a sensação de que, à medida que era arrastado para elas, as grandes colunas se erguiam como torres, para o receberem. Lembravam-lhe gigantes, enormes figuras cinzentas, silenciosas, mas ameaçadoras. Depois viu, finalmente, que tinham sido esculpidas e afeiçoadas: a arte e a força de antanho tinham trabalhado nelas e, apesar do sol e da chuva e inúmeros e esquecidos anos, ainda conservavam as possantes feições em que tinham sido esculpidas. Sobre enormes pedestais alicerçados na água funda erguiam-se dois grandes reis de pedra, que continuavam a olhar para o Norte de olhos turvos e fronte enrugada. A mão esquerda de cada um deles erguia-se, de palma para fora, num gesto de advertência; a direita empunhava um machado, e cada cabeça ostentava um capacete e uma coroa em desintegração. Ainda irradiavam grande força e majestade, sentinelas silenciosas de um reino havia muito desaparecido. Frodo sentiu-se invadido por uma sensação de respeito e temor e encolheu-se e fechou os olhos, não ousando olhar para cima enquanto o barco se aproximava. Até Boromir inclinou a cabeça quando os barcos passaram, frágeis e a deslizar como pequenas folhas, sob a sombra duradoura das sentinelas de Númenor. Assim passaram pela brecha negra das Portas.
Os assustadores penhascos erguiam-se de ambos os lados, abruptos e de uma altura incalculável. O céu, de uma cor indistinta, ficava muito longe. As águas negras rugiam e ecoavam e o vento uivava por cima delas. Frodo, encolhido e inclinado para os joelhos, ouviu Sam murmurar, como se gemesse:
- Que lugar! Que horrível lugar! Esperem que saia deste barco, e juro que nunca mais molharei os dedos dos pés numa poça, quanto mais num rio!
- Não tenhas medo! - disse uma voz estranha, atrás dele.
Frodo virou-se e viu Passo de Gigante, embora não fosse realmente Passo de Gigante, pois não havia nele nada do caminhante tisnado pelo tempo. Quem estava sentado à popa era Aragorn, filho de Arathorn, altivo e recto, a pilotar o barco com gestos hábeis e seguros. Tinha o capuz atirado para trás, o vento agitava-lhe o cabelo escuro e brilhava uma luz nos seus olhos - era um rei que regressava do exílio à sua pátria.
- Não tenhas medo! - repetiu. - Durante muito tempo desejei ver as imagens de lsildur e Anárion, meus antepassados. Sob a sua sombra, Elessar, o Pedra de Elfo, filho de Arathorn da Casa de Valandil, filho de Isildur e herdeiro de Elendil, não tem nada a temer!
Depois, a luz dos seus olhos extinguiu-se e falou consigo mesmo:
- Como gostaria que Gandalf estivesse aqui! Como o meu coração anseia por Minas Anor e pelas muralhas da minha cidade! Mas para onde irei agora?
A brecha era comprida e negra e cheia do barulho do vento, da água impetuosa e das pedras em que os sons se multiplicavam. Como se inclinava um pouco para oeste, ao princípio, à frente, só havia escuridão. Mas Frodo não tardou a ver diante de si uma fenda luminosa alta, sempre a aumentar. Aproximou-se rapidamente, e, de súbito, os barcos transpuseram-na e desembocaram numa grande claridade.
O Sol, já longe do meio-dia, brilhava no céu ventoso. As águas represadas alastravam e espraiavam-se num comprido vale oval, o claro Nen Hithoel, rodeados por montes abruptos e cinzentos cujos lados estavam revestidos de árvores, mas cujas cabeças descobertas brilhavam, frias, à luz do dia. Na distante extremidade sul erguiam-se três picos. O do meio erguia-se um pouco à frente dos outros e separado deles, como uma ilha na água, uma ilha à roda da qual o rio estendia os braços claros e brilhantes. O vento trazia, longínquo mas profundo, um som forte, que lembrava o ribombar, de uma trovoada distante.
- Olhem, Tol Brandir! - exclamou Aragorn, a apontar para sul, para o pico alto. - À esquerda ergue-se Amon Lhaw e à direita Amon Hen, os Montes do Ouvido e da Vista. No tempo dos grandes reis havia neles cadeiras altas, das quais se vigiava. Mas diz-se que Tol Brandir nunca foi pisado por homem ou animal. Alcançá-los-emos antes de a sombra da noite cair. Ouço o chamamento da eterna voz dos Rauros.
O grupo descansou um bocado, deixando-se arrastar para sul pela corrente do meio do lago. Comeram qualquer coisa e depois pegaram nos remos, para chegarem mais depressa. Os lados dos montes ocidentais mergulharam em sombra e o Sol tornou-se redondo e vermelho. Aqui e ali, começaram a espreitar estrelas envoltas em névoa. Os três picos erguiam-se diante deles, escurecidos pelo crepúsculo. Rauros rugia com voz possante. A noite pousava já na água quando os viajantes chegaram, finalmente, à sombra dos montes.
Terminara o décimo dia de viagem. A Terra Erma tinha ficado para trás. Agora não podiam avançar mais sem escolherem entre o caminho oriental e o ocidental. Estava à sua frente a última etapa da Missão.
O DESFAZER DA IRMANDADE
Aragorn conduziu-nos para o braço direito do rio. Aí, do lado ocidental e à sombra do Tol Brandir, uma extensão de erva verde descia para a água, vinda da base do Amon Hen. A seguir erguiam-se as primeiras vertentes suaves do monte, cobertas de árvores, árvores que se prolongavam para ocidente ao longo das margens curvas do lago. Uma pequena nascente caía pela encosta e alimentava a erva.
- Descansaremos aqui esta noite - disse Aragorn. - Este é o prado de Parth Galen, um lugar agradável nos dias de Verão de antigamente. Esperemos que nenhum mal aqui tenha chegado ainda.
Arrastaram os barcos para as margens verdes e instalaram o acampamento ao lado deles. Montaram guarda, embora não vissem nem ouvissem nada que denunciasse a presença dos seus inimigos. Se Gollum conseguira segui-los, permanecia escondido e silencioso. No entanto, à medida que a noite foi avançando, Aragorn tornou-se inquieto, agitou-se muito no sono e acordou. Quase ao alvorecer, levantou-se e foi ter com Frodo, que estava de guarda.
- Por que acordou? - perguntou-lhe o hobbit. - Não é a sua hora de guarda.
- Não sei... Mas cresceram no meu sonho uma sombra e uma ameaça. Seria bom desembainhar a sua espada.
- Porquê? - perguntou Frodo. - Estão inimigos perto?
- Vejamos o que Ferrão diz - respondeu-lhe Aragorn.
Frodo tirou, então, a lâmina élfica da bainha. Para seu terror, os gumes brilharam vagamente na noite.
- Orcs! - exclamou. - Não muito perto, mas, no entanto, demasiado perto, ao que parece.
- Era o que eu receava - confessou Aragorn. - Mas talvez não estejam deste lado do rio. A luz do Ferrão é fraca e é possível que indique apenas a presença de espiões de Mordor nas encostas de Amon Lhaw. Nunca ouvi falar da presença de orcs no Amon Hen. Contudo, sabe-se lá o que pode acontecer nestes tempos cruéis, agora que Minas Tirith já não garante a segurança das passagens do Anduin... Amanhã temos de avançar com muito cuidado.
O dia nasceu como fogo e fumo. No Oriente viam-se, baixos, farrapos de nuvens pretas, como o fumo de uma grande fogueira. O Sol nascente iluminava-as por detrás, com chamas de um vermelho-baço. Mas não tardou a ficar mais alto do que elas e a brilhar no céu claro. O cume do Tol Brandir estava nimbado de ouro. Frodo virou-se para leste e olhou a ilha alta, cujos lados emergiam, abruptos, da água corrente. Muito alto, por cima dos penhascos, havia encostas íngremes pelas quais amarinhavam árvores, subindo copa sobre copa, e por cima delas, ainda mais alto, viam-se as faces cinzentas de rochedos inacessíveis coroados, por um grande pináculo de pedra. Voavam muitas aves, em círculo, à sua volta, mas não se distinguiam sinais de outros seres vivos.
Depois de comerem, Aragorn convocou uma reunião de todo o grupo.
- Chegou finalmente o dia - anunciou -, o dia da escolha muito adiada. Que acontecerá agora ao nosso grupo, que viajou até tão longe como uma irmandade? Viraremos para oeste, com Boromir, e iremos para as guerras de Gondor, ou viraremos para leste, para o Medo e para a Sombra? Ou, ainda, desfaremos a nossa irmandade e seguiremos para este ou para aquele lado, conforme cada um escolher? Seja o que for que resolvermos fazer, terá de ser feito depressa. Não podemos demorar-nos aqui. Sabemos que o inimigo está na margem oriental, mas eu receio que já se encontrem orcs deste lado da água.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual ninguém falou nem se mexeu.
- Bem, Frodo - disse Aragorn, por fim -, temo que lhe caiba a pesada responsabilidade. É o portador nomeado pelo Conselho. O seu caminho só você poderá escolhê-lo. Não posso aconselhá-lo nesta matéria. Não sou Gandalf, e embora tenha tentado desempenhar, o seu papel, não sei que desígnio ou esperança ele tinha para esta hora, se é que os tinha. Mesmo que ele estivesse aqui, suponho que o mais provável seria pertencer-lhe, a si, a responsabilidade da escolha, do mesmo modo. É o seu destino.
Frodo não respondeu logo. Por fim falou, devagar:
- Sei que há necessidade de pressa, mas não posso escolher. O fardo é pesado. Dê-me mais uma hora, e falarei. Deixem-me só!
Aragorn olhou-o, compadecido.
- Muito bem, Frodo, filho de Drogo. Terá uma hora e ficará só. Demorar-nos-emos aqui um bocado. Mas não se afaste muito, fique ao alcance da nossa voz.
Frodo deixou-se ficar um momento de cabeça baixa. Sam, que estivera a observar o amo com grande preocupação, abanou a cabeça e resmungou:
- É claro como água, mas de nada valerá Sam Gamgee dizer de sua justiça, neste momento.
Pouco depois, Frodo levantou-se e afastou-se. E Sam notou que enquanto os outros se dominavam e não o olhavam, os olhos de Boromir seguiam Frodo atentamente, até ele desaparecer entre as árvores da base do Amon Hen.
Frodo, que começou por andar ao acaso na floresta, não tardou a aperceber-se de que os seus passos o conduziam na direcção das encostas do monte. Chegou a um caminho, o que restava das ruínas de uma estrada muito antiga. Tinham sido cortados degraus nos pontos mais íngremes, mas agora estavam estalados e gastos e arrancados pelas raízes das árvores. Subiu durante algum tempo, sem se importar com a direcção que seguia, até que chegou a um lugar coberto de erva. À volta cresciam sorveiras bravas e no meio havia uma grande pedra achatada. O pequeno prado elevado abria para leste e àquela hora estava inundado de sol. Frodo passou e olhou para o rio, lá muito em baixo, para Tol Brandir e para as aves que voavam no grande abismo de vácuo que se abria entre ele e a ilha nunca pisada. A voz de Rauros era realmente forte e misturava-se com uma espécie de vibração profunda e reverberante.
Sentou-se na pedra e apoiou o queixo nas mãos, a olhar para leste, mas a ver pouco com os olhos. Tudo quanto acontecera desde que Bilbo partira do Shire lhe desfilava pela mente, e Frodo recordou todas as palavras de Gandalf de que conseguiu lembrar-se e meditou nelas. O tempo passou, mas ele continuava sem saber que decidir.
De súbito despertou da sua meditação com a estranha impressão de que estava qualquer coisa atrás dele, de que olhos hostis o observavam. Levantou-se, rápido, e voltou-se. Mas, para sua surpresa, deparou-se-lhe Boromir, de rosto risonho e amável.
- Estava preocupado por sua causa, Frodo - disse, ao mesmo tempo que se aproximava. - Se Aragorn não se engana e há orcs perto, nenhum de nós se deveria afastar sozinho, e você menos do que qualquer outro, considerando o muito que depende de si. Sinto o coração tão pesado! Posso ficar aqui e conversar um bocado consigo, já que o encontrei? Confortar-me-ia. Onde estão muitos, todas as conversas se transformam num debate infindável. Mas só dois talvez consigam discernir com sensatez.
- É amável - respondeu-lhe Frodo. - Não creio, no entanto, que qualquer conversa me possa ajudar, pois sei o que deveria fazer, mas tenho medo de o fazer, Boromir: tenho medo.
Boromir ficou calado. Rauros continuava a rugir interminavelmente. O vento murmurava nos ramos das árvores. Frodo estremeceu.
De súbito, Boromir sentou-se a seu lado.
- Tem a certeza de que não sofre escusadamente? - perguntou. - Desejo ajudá-lo. Precisa de conselho, para a difícil escolha que tem de fazer. Não aceita o meu?
- Creio que já sei que conselho me daria, Boromir. E parecia sensato o seu conselho, não fora a advertência do meu coração.
- A advertência? A advertência contra quê? - perguntou Boromir, vivamente.
- Contra a demora. Contra o caminho que parece mais simples. Contra a recusa do fardo que me foi confiado. Contra... bem, se tem de ser dito, diga-se: contra a confiança na força e na lealdade dos Homens.
No entanto, essa força protegeu-o durante muito tempo, no seu país distante, embora você o não soubesse.
- Não duvido da coragem do seu povo. Mas o mundo está a mudar. As muralhas de Minas Tirith podem ser fortes, mas não o são o suficiente. Que acontecerá, se falharem?
- Morreremos valentemente em combate. No entanto, ainda há esperança de que não falhem.
- Não há esperança nenhuma enquanto o anel existir - afirmou Frodo.
- Ah, o anel! - exclamou Boromir, de olhos brilhantes. - O anel! Não acha estranho destino que tenhamos de sentir tanto medo e tanta dúvida por causa de uma coisa tão pequena? Uma coisa tão pequena! Só o vi um instante, na casa de Elrond. Não posso vê-lo outra vez, um momento?
Frodo levantou a cabeça, a sentir o coração subitamente frio. Viu o estranho fulgor dos olhos de Boromir, cujo rosto continuava, no entanto, a apresentar uma expressão amável e amistosa.
- É melhor que continue escondido - respondeu.
- Como queira. Não me importo. Mas não posso ao menos falar dele? Vocês parecem pensar sempre, apenas, no seu poder nas mãos do Inimigo; nos seus maus usos e não nos bons. Disse que o mundo estava a mudar. Que Minas Tirith falharia se o anel durasse. Mas porquê? Se o anel estivesse em poder do Inimigo, com certeza. Mas porquê, se estiver em nosso poder?
- Não assistiu ao Conselho? - redarguiu Frodo. - Porque nós não o podemos usar e porque o que com ele se faz se transforma em mal.
Boromir levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, impacientemente.
- Diz sempre o mesmo Gandalf, Elrond, toda essa gente o ensinou a dizer isso. Pela parte que lhes toca, talvez tenham razão. Esses elfos, e meio-elfos, e feiticeiros, sim, talvez acabem por sofrer.
Contudo, pergunto muitas vezes a mim mesmo se eles serão de facto sábios, e não, meramente, tímidos. Mas cada qual com seu igual. Homens leais, sinceros, não se deixarão corromper. Nós, os de Minas Tirith, temos sido firmes, constantes, ao longo de muitos anos de provação. Não desejamos o poder dos nobres feiticeiros, mas sim, apenas, força para nos defendermos, força para uma causa justa. E, veja lá, no nosso momento de grande necessidade a sorte traz à luz o Anel do Poder! É uma dádiva, afirmo, é uma dádiva para os inimigos de Mordor! É loucura não o utilizar, não utilizar o poder do Inimigo contra ele próprio! Só os destemidos, os implacáveis, só eles alcançam a vitória! Que não poderia fazer um guerreiro nesta hora, um grande comandante? Que não poderia Aragorn fazer? Ou, se ele recusasse, por que não Boromir? O anel dar-me-ia o poder de comandar. Como eu atacaria as hostes de Mordor! Todos os homens se reuniriam sob a minha bandeira!
Boromir continuava a andar de um lado para o outro e cada vez falava mais alto. Quase parecia ter esquecido Frodo, enquanto discorria sobre muralhas e armas e a concentração de homens. Traçou planos de grandes alianças e gloriosas vitórias futuras; esmagou Mordor e tornou-se, ele próprio, um rei poderoso, benevolente e sábio... De súbito parou, a agitar os braços.
- E eles dizem-nos que o deitemos fora! - gritou. - Eu não digo destruamos. Isso poderia estar certo, se a razão pudesse mostrar-nos alguma esperança de o conseguirmos. Mas não mostra. A única coisa que nos propõem é que um halfling entre às cegas em Mordor e ofereça ao Inimigo todas as probabilidades de o reaver, para si. Loucura!
»Com certeza compreende que é loucura, meu amigo? - perguntou, voltando-se de novo, bruscamente, para Frodo. - Disse que tinha medo. Se assim é, até os mais destemidos lhe perdoariam. Mas não será antes o seu bom senso que se revolta?»
- Não - respondeu Frodo. - Tenho medo. Tenho simplesmente medo. Mas estou satisfeito por tê-lo ouvido falar tão francamente. Agora, os meus pensamentos estão mais claros.
- Irá, então, para Minas Tirith? - gritou Boromir, de rosto ansioso e olhos cintilantes.
- Interpretou-me mal.
- Mas irá, pelo menos, durante algum tempo? - insistiu Boromir. - A minha cidade já não está longe, agora, e de lá para Mordor pouco mais é do que daqui. Estamos há muito tempo nas regiões selvagens e você precisa de notícias do que o Inimigo está a fazer antes de tomar uma iniciativa. Vá comigo, Frodo. Precisa de descansar antes de se lançar na sua empresa, se está decidido a isso.
Pôs a mão no ombro do hobbit, de modo amigável, mas Frodo sentiu-a tremer com uma excitação reprimida. Recuou rapidamente e olhou, alarmado, para o homem alto, que fazia quase dois dele e lhe era muitas vezes superior em força.
- Por que se mostra tão hostil? - perguntou-lhe Boromir. - Eu sou um homem leal, não sou nem ladrão nem perseguidor. Preciso do seu anel: agora já o sabe. Mas dou-lhe a minha palavra de que não desejo ficar com ele. Não consente, ao menos, que tente pôr em prática o meu plano? Empreste-me o anel!
- Não! Não! - gritou Frodo. O conselho confiou-me a responsabilidade de o transportar.
- Será por culpa da sua própria insensatez que o inimigo nos derrotará! - afirmou Boromir, aos gritos. - Como isso me encoleriza! Idiota! Idiota obstinado! A correr conscientemente para a morte e a arruinar a nossa causa! Se há mortais que têm o direito de reivindicar o anel, são os Homens de Númenor, e não os Halflings. Ele não é seu, a não ser por uma infeliz circunstância. Podia ser meu. Devia ser meu! Dê-mo!
Sem responder, Frodo afastou-se até a grande pedra achatada ficar entre eles.
- Vamos, vamos, meu amigo! - insistiu Boromir, em tom mais suave. - Por que não se livra dele? Por que não se liberta da dúvida e do medo? Poderá atirar-me as culpas para cima, se quiser. Poderá alegar que eu era muito forte e lho tirei pela força. Sim, porque eu sou demasiado forte para si, halfling - gritou e, de súbito, saltou para cima da pedra e daí para Frodo; o seu rosto correcto e agradável estava horrendamente mudado e havia nos seus olhos um fogo dementado.
Frodo esquivou-se, e a pedra ficou de novo entre eles. Só lhe restava fazer uma coisa: a tremer, puxou o anel suspenso da corrente e enfiou-o no dedo, rapidamente, no momento em que Boromir saltava de novo para ele. O homem ficou boquiaberto e de olhos fixos de espanto e depois desatou a correr às cegas, desvairado, a procurar aqui e ali entre as pedras e as árvores.
- Miserável aldrabão! - gritou. - Espera que te ponha as mãos! Agora percebo os teus intentos: levas o anel a Sauron e vendes-nos a todos! Estiveste só à espera da tua oportunidade para nos deixares em apuros. Maldito, que a morte e as trevas se abatam sobre ti e todos os halflings!
Nisto, tropeçou numa pedra, estendeu-se ao comprido e ficou de bruços. Durante um momento ficou tão imóvel como se a praga acabada de proferir se tivesse abatido sobre ele próprio. Depois começou a chorar.
Levantou-se e passou a mão pelos olhos, a limpar as lágrimas.
- Que disse eu? - gritou. - Que fiz eu? Frodo, Frodo! - chamou. - Volta! Apoderou-se de mim uma loucura, mas já passou. Volta!
Ninguém lhe respondeu. Frodo nem sequer ouviu os seus gritos. Já estava muito longe, a saltar, num desvairamento, pelo carreiro que levava ao cimo do monte. O terror e o desgosto abalavam-no, via em pensamento o rosto enlouquecido e os olhos coruscantes de Boromir.
Não tardou a desembocar, sozinho, no cume do Amon Hen, e parou, sem fôlego. Viu, como que através de uma névoa, um grande círculo baixo, pavimentado com enormes lajes e cercado por um parapeito em ruínas. No meio, apoiada em quatro colunas esculpidas, estava uma cadeira alta, à qual se chegava por uma escada com muitos degraus. Subiu-os e sentou-se na cadeira antiga, a sentir-se como uma criança perdida que trepara para o trono de reis da montanha.
Ao princípio, pouco via. Parecia-lhe estar num mundo de névoa, onde só havia sombras: o anel dominava-o. Depois, aqui e ali, a névoa dissipou-se, e ele viu muitas coisas: pequenas e nítidas, como se estivessem em cima de uma mesa, debaixo dos seus olhos, mas ao mesmo tempo remotas, longínquas. Não se ouvia nenhum som; havia apenas imagens vivas, luminosas. O mundo parecia ter mirrado e mergulhado no silêncio. Estava sentado na Cadeira da Visão, em Amon Hen, o Monte do Olho dos Homens de Númenor. A leste viu vastas terras desconhecidas, planícies sem nome e florestas inexploradas. Olhou para norte, e viu o Grande Rio correr como uma fita e as Montanhas Nebulosas pequenas e duras como dentes partidos. Olhou para oeste, e viu as vastas pastagens de Rohan; e Orthanc, o pináculo de Isengard, como um espigão preto. Olhou para sul, e, debaixo dos seus próprios pés, o Grande Rio encrespava-se como uma enorme onda e despenhava-se, pelas cataratas de Rauros, num abismo espumejante; um arco-íris brilhava nas gotículas. E viu Ethir Anduin, o imponente delta do rio, e miríades de aves marinhas a voar em círculos como poeira num raio de sol e, debaixo delas, um mar verde e prata, sulcado por intermináveis riscos de ondas.
Mas para onde quer que olhasse via as marcas da guerra. As Montanhas Nebulosas pareciam formigueiros: saíam orcs de mil buracos. Sob os ramos da Floresta Tenebrosa travava-se uma luta mortal entre elfos, homens e animais malditos. A terra dos Beornenses estava em chamas. Pairava uma nuvem sobre Mória. Subia fumo das fronteiras de Lórien...
Cavaleiros galopavam na erva de Rohan e saíam alcatéias de lobos de Isengard. Dos portos de Harad faziam-se ao mar barcos de guerra, e do Leste vinham números incontáveis de homens: espadachins, lanceiros, arqueiros a cavalo, carros cheios de capitães e veículos carregados ... Todo o poderio do Senhor das Trevas estava em movimento. Depois voltou-se de novo para sul e olhou para Minas Tirith. Parecia muito distante e bela: com muralhas brancas, muitas torres, altiva e linda no seu trono da montanha. Cintilava-lhe aço nas ameias e nas torres ondulavam muitas bandeiras coloridas. A esperança encheu-lhe o coração. Mas contra Minas Tirith erguia-se outra fortaleza, maior e mais forte. Para lá, na direcção leste, foi contrariadamente o seu olhar atraído. Passou pelos montes em ruínas de Osgiliath, pelas portas escancaradas de Minas Morgul, pelas montanhas assombradas e deteve-se em Gorgoroth, o vale do terror da Terra de Mordor. Aí havia trevas debaixo do Sol, brilhava o fogo entre o fumo. O Monte da Condenação ardia, e erguia-se no ar um fedor insuportável. Por fim, o seu olhar fixou-se: muralha atrás de muralha, parapeito após parapeito, negra, indizivelmente forte, montanha de ferro, porta de aço, torre de diamante, viu-a, viu Barad-dúr, a Fortaleza de Sauron. Abandonou-o toda a esperança.
E, de súbito, sentiu o Olho. Havia na Torre Negra um olho que nunca dormia - um olho que, sabia-o, tomara conhecimento do seu olhar. Possuía uma vontade férrea, feroz e saltou a bem dizer para ele. Frodo sentiu-o quase como um dedo a procurá-lo. Não tardaria a imobilizá-lo, a saber exactamente onde ele se encontrava. Tocou em Amon Lhaw, deslizou por Tol Brandir... Frodo atirou-se da cadeira, encolheu-se e cobriu a cabeça com o capuz cinzento.
Ouviu a sua voz gritar: Nunca, nunca! Ou seria, antes, Na verdade aqui estou, venho para ti? Não sabia. Depois, como um relâmpago, vindo de qualquer outro ponto de força, formou-se na sua mente outro pensamento: Tira-o! Tira-o! Tira-o, idiota! Tira o anel!
As duas forças lutavam dentro dele. Durante um momento, perfeitamente equilibrado entre as duas pontas aguçadas, debateu-se, atormentado. De súbito, porém, teve de novo consciência de si mesmo, de Frodo, que não era nem a Voz nem o Olho, que tinha a liberdade de escolher - e com um derradeiro instante para exercer essa liberdade. Tirou o anel do dedo. Estava ajoelhado ao sol, diante da grande cadeira. Teve a impressão de que uma sombra negra passava como um braço por cima dele, não tocava em Amon Hen e tacteava para ocidente, até desaparecer. Então, todo o céu ficou limpo e azul e cantaram aves em todas as árvores.
Frodo levantou-se. Sentia uma grande fadiga, mas a sua vontade estava firme e o seu coração mais leve. Falou alto, consigo mesmo:
- Agora farei o que tenho de fazer. Uma coisa, pelo menos, se tornou evidente: o poder mau do anel já está a actuar até mesmo no nosso grupo, e o anel tem de se afastar, antes que cause mais danos. Irei sozinho. Nalguns, não posso confiar, e aqueles em que posso confiar são-me muito queridos: o pobre Sam, Merry e Pippin. E Passo de Gigante, também. Mas o seu coração anseia por Minas Tirith e será lá necessário, agora que Boromir caiu sob o poder do mal. Irei sozinho. Imediatamente.
Desceu depressa o carreiro e voltou ao pequeno prado onde Boromir o encontrara. Parou, à escuta. Pareceu-lhe ouvir gritos e apelos vindos da floresta, lá em baixo, junto da margem.
- Devem andar à minha procura - disse, em voz alta. - Não faço ideia de quanto tempo estive ausente. Horas, suponho. - Hesitou. - Que hei-de fazer? Tenho de ir agora, ou então nunca irei. Não voltarei a ter outra oportunidade. Custa-me deixá-los, demais a mais assim, sem uma explicação. Mas eles compreenderão, com certeza. O Sam compreenderá. E que outra coisa posso fazer?
Pegou no anel, devagar, e voltou a pô-lo. Desapareceu e desceu a encosta, menos do que um murmúrio do vento.
Os outros ficaram muito tempo junto do rio. Durante alguns momentos tinham ficado calados, a andar agitadamente de um lado para o outro: mas agora estavam sentados num círculo, a conversar. De vez em quando tentavam falar de outras coisas, dá longa estrada percorrida e das suas muitas aventuras. Interrogavam Aragorn a respeito do reino de Gondor e da sua história antiga, assim como dos restos das suas grandes obras que ainda se podiam ver naquela estranha terra fronteiriça de Emyn Muil: os reis de pedra, as cadeiras de Lhaw e Hen e a grande escada ao lado das cataratas de Rauros. Mas os seus pensamentos voltavam sempre a Frodo e ao anel. Que resolveria Frodo fazer? Por que hesitava?
- Suponho que está a tentar compreender qual dos caminhos é o mais desesperado - opinou Aragorn. - E tem razão para isso. Agora seguir para leste tornou-se empresa com menos esperança ainda do que antes, visto a nossa pista ter sido seguida por Gollum. É de recear que o segredo da nossa viagem já tenha sido traído. Mas Minas Tirith não fica mais perto do Fogo e da destruição do fardo.
»Poderemos ficar lá uns tempos e resistir valentemente, mas Denethor e todos os seus homens não podem ter esperança de fazer o que até mesmo Elrond disse ser superior ao seu poder: conservar o fardo secreto ou repelir toda a força do Inimigo quando ele o for buscar. Que caminho escolheria qualquer de nós, se estivesse no lugar de Frodo? Não sei. É agora que Gandalf nos faz mais falta.»
- Dura e pesada foi a nossa perda - concordou Legolas. - No entanto, precisamos absolutamente de nos decidir sem a ajuda dele. Por que não decidimos nós, ajudando assim Frodo? Chamemo-lo e votemos, depois! Eu votarei por Minas Tirith.
- E eu também - disse Gimli. - Claro que só viemos para ajudar o portador ao longo do caminho, sem qualquer imposição de irmos mais longe do que desejássemos. Nenhum de nós jurou ou recebeu qualquer ordem para procurar o Monte da Condenação.
Muito me custou partir de Lothlórien, mas apesar disso vim até aqui, e digo o seguinte: agora que chegou o momento da derradeira escolha, é evidente para mim que não posso abandonar Frodo. Por minha vontade escolho Minas Tirith, mas se ele não escolher, segui-lo-ei.
- Eu também irei com ele, nesse caso - declarou Legolas. - Seria deslealdade despedirmo-nos agora.
- Seria na realidade uma traição, se o abandonássemos todos - concordou Aragorn. - Mas se ele resolver seguir para leste, não é necessário irem todos com ele; não penso mesmo que devam ir. A empresa é desesperada, e é-o tanto para oito, como para três ou dois, como para só um. Se me autorizassem a escolher, indicariam três companheiros: Sam, que não se resignaria se fosse de outro modo, Gimli e eu próprio. Boromir regressará à sua cidade, onde o pai e o seu povo precisam dele, e os outros poderão acompanhá-lo... pelo menos Meriadoc e Peregrino, se Legolas não estiver disposto a deixar-nos.
- Isso não serve, de maneira nenhuma! - exclamou Merry. - Nós não podemos abandonar o Frodo! Pippin e eu sempre tencionámos ir aonde ele fosse, e continuamos com tal disposição. Mas não imaginámos o que isso significaria. Parecia diferente, no distante Shire e em Rivendell. Seria loucura e crueldade deixar Frodo ir a Mordor. Por que não o detemos?
- Temos de o deter - confirmou Pippin. - Tenho a certeza de que é a esse respeito que ele se está a preocupar. Sabe que não concordaremos com a sua ida para leste, e não lhe agrada a ideia de pedir a alguém que o acompanhe, coitado. Imaginem, ir para Mordor sozinho! - Pippin foi sacudido por um calafrio. - Mas aquele pateta daquele hobbit devia saber que não precisa de pedir. Deve saber que, se não conseguirmos demovê-lo, o não abandonaremos.
- Com sua licença - interveio Sam -, não creio que compreendam o meu amo. Ele não hesita quanto ao caminho a seguir. Claro que não! Para que serve Minas Tirith, aliás? Quero dizer, para que lhe serve a ele, e com o meu pedido de perdão, Mestre Boromir - acrescentou, e virou-se.
Foi só então que descobriram que Boromir, que ao princípio estivera sentado, silencioso, do lado exterior do círculo, não se encontrava presente.
- Mas onde terá ele ido? - perguntou Sam, preocupado. - Tenho-o achado um pouco esquisito, ultimamente... Mas, de qualquer modo, ele não tem que se preocupar com a nossa empresa. Segue para casa, como sempre disse, e não o censuro. Mas o Sr. Frodo sabe que tem de encontrar as Fendas da Condenação, se tal for possível. No entanto, tem medo. Agora que chegou o momento crucial, está simplesmente aterrorizado. O mal dele é esse. Claro que treinou um bocado, por assim dizer... como todos nós, desde que partimos... caso contrário estaria tão apavorado que atiraria o anel ao rio e fugiria. Mas mesmo assim tem medo, tem tanto medo, que não é capaz de se decidir pôr a caminho. E também não está a preocupar-se connosco que vamos ou não com ele. Sabe que tencionamos ir. E isso, sim, isso é que o incomoda. Se conseguir arranjar coragem necessária para partir, há-de querer partir sozinho. Fixem bem as minhas palavras: vamos ter problemas com ele, quando voltar. Sim, porque ele há-de arranjar coragem necessária, tão certo como o seu apelido ser Baggins.
- Acho que falou mais sensatamente do que qualquer de nós, Sam - disse Aragorn. - E que havemos de fazer, se verificarmos que tens razão?
- Demovê-lo! Não o deixar ir! - respondeu Pippin.
- Duvido - confessou Aragorn. - Ele é o portador e o destino do fardo que pesa sobre ele. Não creio que nos incumba instigá-lo a seguir um caminho ou outro. Aliás, nem sequer acho que fôssemos bem sucedidos, se tentássemos. Estão outros poderes em acção, muito mais fortes.
- Bem, desejo que o Frodo arranje a tal coragem, volte e se acabe com isto - resmungou Pippin. - Esta espera é horrível! O tempo já passou, não passou?
- Já - confirmou Aragorn. - A hora já passou há muito. A manhã está a chegar ao fim. Temos de o chamar.
Boromir reapareceu nesse momento. Veio do meio das árvores e dirigiu-se para eles sem falar. Tinha o rosto carregado e triste. Parou, como se contasse os presentes, e depois sentou-se isolado e de olhos no chão.
- Onde esteve, Boromir? - perguntou-lhe Aragorn. - Viu Frodo?
Boromir hesitou um segundo.
- Sim e não - respondeu por fim, devagar. - Sim: encontrei-o um pouco lá para cima, no monte, e falei com ele. Instiguei-o a ir para Minas Tirith, em vez de para leste. Irritei-me, e ele deixou-me. Desapareceu. Nunca tinha visto semelhante coisa, embora as tenha ouvido contar, em histórias. Deve ter posto o anel. Não consegui reencontrá-lo. Pensei que tivesse voltado para aqui.
- Isso é tudo quanto tem a dizer? - perguntou Aragorn, a olhar fixamente, e com pouca complacência, para Boromir.
- É. Não diria mais nada, agora.
- Mas isto é mau! - exclamou Sam, e levantou-se rapidamente.
- Não sei o que este homem pretendeu fazer... Por que havia o Sr. Frodo de pôr... aquela coisa? Não devia pô-la e se pôs sabe-se lá o que poderá ter acontecido!
- Ele não o conservará posto - disse Merry. - Tirou-o com certeza quando se livrou do visitante indesejável, como Bilbo costumava fazer.
- Mas para onde foi? Onde está? - gritou Pippin. - Deixou-nos há horas!
- Há quanto tempo viu Frodo pela última vez, Boromir? - perguntou Aragorn.
- Há meia hora, talvez. Ou talvez há uma hora... Andei por aí à toa um bocado, depois. Não sei! Não sei! - Apoiou a cabeça nas mãos, como que vergado pelo sofrimento.
- Desapareceu há uma hora! - gritou Sam. - Temos de tentar encontrá-lo imediatamente! Venham!
- Um momento! - pediu Aragorn. - Vamos dividir-nos em pares e combinar... Calma, esperem!
Em vão. Eles não lhe deram ouvidos. Sam foi o primeiro a afastar-se, a correr. Merry e Pippin seguiram-no e estavam já a desaparecer no meio das árvores próximas da margem, a oeste, a gritar, nas suas claras vozes de hobbits: Frodo! Frodo! Legolas e Gimli desataram também a correr. Dir-se-ia que um pânico ou uma loucura súbita se apoderara do grupo.
- Assim dispersar-nos-emos e perder-nos-emos - lamentou-se Aragorn. - Boromir, não sei que papel representou nesta aventura, mas agora dê uma ajuda. Vá atrás daqueles dois jovens hobbits e tome conta deles, pelo menos, se não conseguir encontrar Frodo. Voltem a este lugar se o encontrarem ou a quaisquer vestígios dele. Eu não me demorarei.
Aragorn afastou-se rapidamente, em perseguição de Sam. Alcançou-o ao chegar ao pequeno prado entre as sorveiras. Sam subia com dificuldade, a ofegar e a chamar: Frodo!
- Venha comigo, Sam. Nenhum de nós deve ficar sozinho. Andam por aí coisas más, sinto-o. Vou subir até lá acima, à Cadeira de Amon Hen, ver se vejo alguma coisa. Olhe! Como o meu coração adivinhava, Frodo foi por aqui. Siga-me de olhos bem abertos!
Começou a subir o carreiro velozmente. Sam esforçou-se o mais que pôde, mas não conseguiu acompanhar Passo de Gigante, o Caminhante e não tardou a ficar para trás. Pouco depois, Aragorn desaparecera da sua vista, à frente dele. Sam parou, a ofegar. De súbito, deu uma palmada na testa.
- Como as tuas pernas são muito curtas, serve-te da cabeça, Sam Gamgee! Ora deixa ver... Boromir não mentiu; é coisa que não está no seu feitio. Mas não nos disse tudo. Qualquer coisa assustou, e muito, o Sr. Frodo. Encheu-se, de repente, da coragem necessária decidiu finalmente ir... para onde? Para leste. Mas sem o Sam? Sim: até mesmo sem o seu Sam. É duro, é cruelmente duro.
Sam passou a mão pelos olhos, a limpar as lágrimas.
- Tem calma, Gamgee! Pensa, se puderes! Ele não pode voar através dos rios nem saltar por cima das quedas de água. E não tinha equipamento nenhum. Portanto terá de voltar aos barcos. De voltar aos barcos! Volta para os barcos, Sam, depressa como um raio!
Sam virou-se e lançou-se pelo carreiro abaixo. Caiu e esfolou os joelhos, mas levantou-se e recomeçou logo a correr. Chegou à margem do prado de Parth Galen, junto da água, onde os barcos estavam reunidos, juntos, em terra. Não se encontrava ali ninguém. Pareceu-lhe ouvir gritos nas florestas, atrás, mas não lhes prestou atenção. Parou um momento a olhar, aparvalhado e de boca aberta. Um dos barcos deslizava sozinho pelo aterro abaixo. Sam deu um grito e desatou a correr por cima da erva. O barco deslizou para a água.
- Cá vou, Sr. Frodo! Cá vou! - gritou Sam, que se atirou do aterro e estendeu os braços para agarrar o barco que partia.
Falhou por um metro. Com um grito e um splas!, mergulhou de cara para baixo na água funda e rápida. Imergiu, a gorgolejar, e o rio fechou-se sobre a sua cabeça encaracolada.
Do barco vazio saiu uma exclamação de ansiedade. Um remo entrou na água e o barco virou. Frodo chegou mesmo a tempo de agarrar Sam, que voltara à superfície, a bufar e a debater-se. O medo espreitava dos seus redondos olhos castanhos.
- Vamos para cima, Sam, meu rapaz! - exclamou Frodo. - Agarra a minha mão!
- Salve-me, Sr. Frodo! - pediu Sam, ofegante. - Estou afogado! Não vejo a sua mão.
- Cá está ela. Não belisques, homem! Não te largo, descansa. Abre a água e não te deixes cair de chapa, se não voltas o barco. Agarra-te à amurada, agora, e deixa-me usar o remo!
Com algumas remadas, Frodo voltou com o barco para junto do aterro e Sam pôde saltar para terra, encharcado como um rato do cano. Frodo tirou o anel e saltou também para terra.
- És o maior de todos os malditos maçadores, Sam!
- Oh, Sr. Frodo, isso é duro! - protestou Sam, a tremer de frio. - Não está certo, tentar partir sem mim e tudo o mais. Se eu não tivesse raciocinado acertadamente, onde estaria agora o senhor?
- A caminho, em segurança!
- Em segurança! - repetiu Sam. - Sozinho e sem mim para o ajudar? Eu não poderia suportar isso, seria a minha morte.
- A tua morte será ires comigo, Sam, e eu não suportaria isso.
- Não seria a minha morte tão certa como se me deixasse ficar para trás - afirmou Sam.
- Mas eu vou para Mordor.
- Sei isso muito bem, Sr. Frodo. Claro que vai. E eu vou consigo.
- Por favor, Sam, não me compliques as coisas. Os outros devem estar a chegar, de um momento para o outro, e se me apanham aqui terei de argumentar e explicar e nunca mais terei coragem nem oportunidade de partir. E eu preciso de partir imediatamente. É a única maneira.
- Claro que é - concordou Sam. - Mas não sozinho. Ou eu vou também, ou então nenhum de nós vai. Nem que tenha de abrir buracos nos barcos todos!
Frodo não pôde deixar de ir. Aqueceu-lhe o coração um calor e um contentamento súbitos.
- Deixa um intacto! Vamos precisar dele. Mas não podes acompanhar-me assim, sem equipamento, nem comida, nem nada.
- Espere só um bocadinho, e vou buscar as minhas coisas! - gritou Sam, nervosamente. - Está tudo preparado, pois calculei que, partíamos hoje.
Correu para o acampamento, tirou a sua mochila do monte onde Frodo a pusera depois de tirar do barco as coisas dos seus companheiros, deitou a mão a uns cobertores suplementares e a alguns pacotes extras de comida, e voltou a correr para o barco.
- Todo o meu plano está, portanto, estragado! - comentou Frodo. - É inútil tentar escapar-te. Mas estou contente, Sam, não imaginas quanto. Anda, vamos! É evidente que estava destinado que partiríamos juntos. Partiremos, e talvez os outros encontrem um caminho seguro! Passo de Gigante olhará por eles. Creio que não os voltaremos a ver.
- Talvez voltemos, Sr. Frodo, talvez - respondeu Sam.
Assim partiram Frodo e Sam, sozinhos, para a última fase da sua missão. Frodo remou, para se afastarem da margem, e o rio levou-os rapidamente pelo seu braço ocidental abaixo, passando pelos carrancudos penhascos de Tol Brandir. O fragor das grandes cataratas aproximou-se. Mesmo com a ajuda que Sam conseguiu dar, foi tarefa árdua atravessar a corrente no extremo sul da ilha e conduzir o barco para leste, na direcção da margem oposta.
Por fim chegaram de novo a terra nas encostas meridionais do Amon Lhaw. Aí encontraram uma costa em socalcos. Puxaram o barco muito para cima da linha de água e esconderam-no o melhor que puderam atrás de um grande rochedo. Depois puseram os carregos às costas e partiram, à procura de um caminho que os conduzisse através dos montes cinzentos do Emyn Muil e daí para baixo, para a Terra da Sombra.
J. R. R. Tolkien
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