A cordei três vezes de madrugada. Na primeira, de tristeza, depois de alegria e, finalmente, de solidão. As lágrimas de uma profunda perda acordaram-me devagar, banhando meu rosto como o toque reconfortante de um pano úmido em mãos tranqüilizadoras. Virei o rosto no travesseiro molhado e naveguei por um rio salgado, para dentro das cavernas da dor relembrada, para as profundezas subterrâneas do sono.
Despertei, então, de pura alegria, o corpo arqueado nos espasmos da união física, sentindo o toque de seu corpo ainda na minha pele, morrendo ao longo dos caminhos dos meus nervos como as ondulações da consumação espalhando-se a partir do centro do meu ser. Repeli a consciência, virando-me outra vez, buscando o cheiro pungente e penetrante do desejo satisfeito de um homem e, nos braços reconfortantes do meu amado, dormi.
Na terceira vez, acordei sozinha, além do alcance do amor ou do sofrimento. A visão das rochas estava nítida em minha mente. Um pequeno círculo, pedras em pé no topo de uma colina verde e íngreme. O nome da colina é Craigh na Dun; a colina das fadas. Alguns dizem que a colina é encantada, outros que é amaldiçoada. Todos têm razão. Mas ninguém sabe a função ou o propósito das pedras.
Exceto eu.
Roger Wakefield parou no meio da sala, sentindo-se cercado. Achou a sensação absolutamente justificável, já que realmente estava cercado: de mesas abarrotadas de bibelôs e suvenires; de mobílias pesadas, no estilo vitoriano, repletas de paninhos de renda nos braços e encostos das poltronas, de capas de veludo e mantas de lã xadrez; de minúsculos tapetes trançados, espalhados pelo lustroso assoalho de madeira, ardilosamente à espera de uma oportunidade para deslizar sob um pé desavisado. Cercado por doze aposentos de móveis, roupas e papéis. E livros — meu Deus, os livros! O gabinete onde estava possuía três paredes forradas de estantes de livros, cada qual abarrotada muito além do limite de sua capacidade. Romances de mistério em brochura acumulavam-se em pilhas vistosas, espalhafatosas, em frente a tomos encadernados em couro, espremidos contra seleções do clube do livro, volumes antigos surrupiados de extintas bibliotecas, e milhares e milhares de folhetos, panfletos e manuscritos costurados a mão.
A situação não era muito diferente no resto da casa. Livros e papéis amontoavam-se em toda superfície horizontal e todos os armários rangiam e guinchavam nas dobradiças. Seu falecido pai adotivo vivera uma vida longa e plena, uns bons dez anos a mais do que os setenta que lhe eram biblicamente designados. E em oitenta e tantos anos, o reverendo Reginald Wakefield nunca jogara nada fora.
Roger conteve o ímpeto de sair correndo pela porta a fora, pular para dentro do seu Morris Minor e voltar para Oxford, abandonando a residência paroquial e todo o seu conteúdo à mercê dos vândalos e das intempéries. Acalme-se, disse a si mesmo, inspirando fundo. Você consegue lidar com isto. Os livros são a parte mais fácil; é só questão de ordená-los, depois chamar alguém e mandar levá-los embora. É bem verdade que vão precisar de um caminhão do tamanho de um vagão de trem, mas pode ser feito. Roupas — sem problema. A Oxfam receberá o lote inteiro.
Ele não sabia o que esta ONG iria fazer com um monte de ternos de sarja preta e coletes do final dos anos 1940, mas talvez os necessitados não fossem tão exigentes. Começou a respirar um pouco melhor. Tirara um mês de licença do departamento de história de Oxford, a fim de resolver os negócios do reverendo. Talvez, afinal de contas, isso fosse suficiente. Em seus momentos de maior depressão, parecia-lhe que a tarefa poderia levar anos.
Dirigiu-se a uma das mesas e pegou uma pequena travessa de porcelana. Estava repleta de pequenos retângulos de metal; “gaberlunzies”, os distintivos retangulares de chumbo que as paróquias forneciam aos mendigos andarilhos como uma espécie de licença para pedir esmolas. Uma coleção de garrafas de cerâmica vitrificada mantinha-se de pé junto ao abajur, com uma surrada caixa de rapé, ornamentada em prata, ao lado. Dá-los a um museu?, pensou em dúvida. A casa estava cheia de artefatos jacobitas; o reverendo fora um historiador amador, o século XVIII o seu território de caça favorito.
Estendeu a mão involuntariamente e seus dedos acariciaram a superfície da caixa de rapé, seguindo as linhas pretas das inscrições — os nomes e datas dos Diáconos e Tesoureiros da Associação de Alfaiates de Canongate, de Edimburgo, 1726. Talvez ele devesse guardar algumas das melhores aquisições do reverendo... mas em seguida recuou, sacudindo a cabeça decididamente.
— Nada disso, rapaz — disse em voz alta. — Isso pode levar à loucura.
Ou no mínimo à vida incipiente daqueles ratos que carregam e escondem pequenos objetos. Se começasse a guardar coisas, iria acabar ficando com tudo, morando naquela casa monstruosa, cercado de gerações de quinquilharias.
— E falando sozinho também — murmurou.
A idéia de gerações de entulho o fez lembrar-se da garagem e sentiu uma certa prostração nos joelhos. O reverendo, que na realidade era tioavô de Roger, adotara-o aos cinco anos de idade, depois que seus pais morreram na Segunda Guerra Mundial; sua mãe na Blitz, seu pai nas águas escuras do Canal. com seu usual instinto de preservação, o reverendo guardara todos os pertences dos pais de Roger, embalados em caixas de madeira e de papelão e guardados nos fundos da garagem. Roger tinha certeza de que ninguém abrira nenhuma dessas caixas nos últimos vinte anos.
Roger proferiu a lamúria do Velho Testamento diante da idéia de ter que manusear toda a memorabilia de seus pais.
— Ah, meu Deus — exclamou em voz alta. — Qualquer coisa, menos isso!
A observação não teve a intenção de ser uma prece, mas a campainha tocou como se fosse em resposta, fazendo Roger morder a língua de susto.
A porta da casa costumava emperrar com o tempo úmido, o que significava que ficava emperrada a maior parte do ano. Roger libertou-a com um rangido lancinante e deparou-se com uma mulher na soleira da porta.
— Pois não, o que deseja?
Era de altura mediana e muito bonita, dando a impressão de uma boa constituição física sob o linho branco, tudo encimado por abundantes cabelos castanhos cacheados, presos numa espécie de coque rebelde. E no meio de tudo, o mais extraordinário par de olhos claros, da cor do xerez envelhecido.
Os olhos ergueram-se rapidamente dos tênis tamanho quarenta e dois para o rosto dele, uns trinta centímetros acima do seu. O sorriso enviesado ampliou-se.
— Detesto começar logo com um clichê — ela disse -, mas, Santo Deus, como você cresceu, Roger!
Roger sentiu-se enrubescer. A mulher riu e estendeu a mão.
— Você é o Roger, não é? Meu nome é Claire Randall, uma velha amiga do reverendo. Mas não vejo você desde que tinha cinco anos de idade.
— Ha... a senhora disse que era uma amiga do meu pai? Então, já sabe... O sorriso desapareceu, substituído por um ar de tristeza.
— Sim, lamentei profundamente a notícia. Coração, não foi?
— Hum, sim. Muito repentino. Acabo de chegar de Oxford para começar a lidar com... tudo. — Abanou a mão vagamente, englobando a morte do reverendo, a casa às suas costas e todo o seu conteúdo.
— Do que eu me lembro da biblioteca de seu pai, a pequena tarefa deve ocupá-lo até o próximo Natal — Claire observou.
— Nesse caso, talvez não devêssemos estar perturbando-o — disse uma voz doce, com sotaque americano.
— Ah, me esqueci — disse Claire, virando-se parcialmente para a jovem que se mantinha fora da visão de Roger, no canto do pórtico de entrada. — Roger Wakefield, minha filha, Brianna.
Brianna Randall deu um passo à frente, um sorriso tímido no rosto. Roger fitou-a por um instante, depois lembrou-se de suas boas maneiras. Recuou um passo e abriu a porta de par em par, perguntando-se exatamente quando ele havia trocado a camisa.
— De modo algum, de modo algum! — disse, fervorosamente. — Estava mesmo querendo fazer uma pausa. Entrem, por favor.
Fez um gesto com a mão, sinalizando para que as duas mulheres seguissem pelo corredor em direção ao gabinete do reverendo, notando que além de ser razoavelmente atraente, a filha era uma das jovens mais altas que ele ja vira de perto. Ela devia ter facilmente mais de um metro e oitenta, pensou, vendo sua cabeça no mesmo nível do topo do porta-chapéus do vestíbulo quando ela passou por ele. Inconscientemente, ele empertigou-se, alcançando toda a sua altura de um metro e noventa e dois.
No último instante, abaixou-se, para não bater a cabeça na viga da porta do gabinete quando entrou no aposento, seguindo as mulheres.
— Eu queria ter vindo antes — Claire disse, acomodando-se melhor na enorme poltrona bergère.
A quarta parede do gabinete do reverendo tinha janelas que iam do chão ao teto e a luz do sol cintilava do prendedor de pérolas em seus cabelos castanho-claros. Os cachos começavam a se desprender de seu confinamento e ela distraidamente enfiou um deles atrás da orelha enquanto falava.
— Na verdade, já tinha arranjado tudo para vir no ano passado, mas houve uma emergência no hospital em Boston, eu sou médica — explicou, a boca curvando-se um pouco diante do olhar de surpresa que Roger não conseguiu disfarçar. — Mas lamento não ter vindo. Queria muito ter visto seu pai outra vez.
Roger perguntou-se por que teriam vindo agora, sabendo que o reverendo estava morto, mas pareceu-lhe indelicado perguntar. Em vez disso, perguntou:
— Vieram excursionar um pouco, então?
— Sim, viemos de carro de Londres — Claire respondeu. Sorriu para a filha. — Queria que Bri conhecesse o país. Você não imaginaria, ouvindoa falar, mas ela é tão inglesa quanto eu, embora nunca tenha vivido aqui.
— É mesmo? — Roger lançou um olhar para Brianna. Ela de fato não parecia inglesa, pensou; fora a altura, possuía uma vasta cabeleira ruiva, solta sobre os ombros, e rosto de traços fortes e angulosos, com o nariz longo e reto, talvez um pouco comprido demais.
— Nasci nos Estados Unidos – Briana exxplicou -, mas tanto meu pai quanto minha mãe são... eram... ingleses.
— Eram?
— Meu marido morreu há dois anos — Claire explicou. — Você o conheceu, eu acho. Frank Randall.
— Frank Randall! Claro! — Roger deu um tapa na testa e sentiu as faces ficarem quentes quando Brianna deu uma risadinha. — Devem me achar um completo idiota, mas acabo de me lembrar de vocês.
O nome explicava muita coisa; Frank Randall fora um eminente historiador e um grande amigo do reverendo; durante anos, trocaram informações secretas sobre os jacobitas, embora fizesse pelo menos dez anos desde a última visita de Frank Randall à residência paroquial.
— E então, vão visitar os locais históricos perto de Inverness? — Roger arriscou. —Já estiveram em Culloden?
— Ainda não — Brianna respondeu. — Pensamos em ir mais para o final da semana. — Seu sorriso em resposta foi apenas cordial, nada mais.
— Marcamos um passeio pelo lago Ness hoje à tarde — Claire explicou. — E talvez a gente vá de carro até Fort William amanhã ou fiquemos apenas andando por Inverness. A cidade cresceu muito desde a última vez que estive aqui.
— E quando foi? — Roger imaginou se deveria oferecer seus serviços como guia turístico. Na realidade, não deveria perder tempo, mas os Randall foram grandes amigos do reverendo. Além do mais, uma viagem de carro a Fort William na companhia de duas mulheres encantadoras parecia uma perspectiva muito mais atraente do que limpar a garagem, que era a próxima tarefa em sua lista.
— Ah, há mais de vinte anos. Já faz muito tempo. — Houve um tom estranho na voz de Claire que fez Roger olhar para ela, mas ela fitou-o direto nos olhos com um sorriso.
— Bem — ele arriscou —, se houver alguma coisa que eu possa fazer por vocês, enquanto estiverem nas Highlands...
Claire ainda estava sorrindo, mas algo em seu rosto mudou. Ele chegou a pensar que ela estivera esperando uma abertura. Ela lançou um olhar para Brianna, depois se voltou de novo para Roger.
— Já que tocou no assunto — disse, o sorriso ampliando-se.
— Ah, mamãe! — Brianna exclamou, empertigando-se na cadeira. Não vá incomodar o sr. Wakefield! Olhe só quanta coisa ele tem a fazer! — Abanou a mão abarcando o gabinete atulhado, com suas caixas abarrotadas e infindáveis pilhas de livros.
— Ah, não é incômodo nenhum! — Roger protestou. — Então... do que se trata?
Claire lançou à filha um olhar repressor.
— Eu não estava pretendendo dar uma pancada na cabeça dele e arrastálo daqui — disse, ironicamente. — Mas ele pode muito bem conhecer alguém que possa ajudar. É um pequeno projeto histórico — explicou a Roger. — Preciso de alguém que seja bem versado nos jacobitas do século XVIII. O príncipe Carlos Eduardo Stuart e todo aquele pessoal.
Roger inclinou-se para frente, interessado.
— Jacobitas? — disse. — Esse período não é uma das minhas especialidades, mas sei um pouco a respeito. Difícil não saber, morando tão perto de Culloden. Foi onde a última batalha foi travada, como deve saber — ele explicou a Brianna. — Onde os partidários do príncipe Carlos defrontaram-se com o duque de Cumberland e foram completamente massacrados.
— Exato — disse Claire. — E isso, de fato, tem a ver com o que eu quero descobrir. — Enfiou a mão na bolsa e retirou um papel dobrado.
Roger abriu-o e passou os olhos pelo conteúdo. Era uma lista de nomes, talvez uns trinta, todos homens. No alto da folha, havia um cabeçalho: REVOLUÇÃO JACOBITA, 1745 — CULLODEN.
— Ah, a rebelião de 45? — Roger disse. — Esses homens lutaram em Culloden, não foi?
— Sim — Claire respondeu. — O que eu quero descobrir é quantos homens desta lista sobreviveram àquela batalha.
Roger esfregou o queixo enquanto lia a lista.
— É uma pergunta simples — disse -, mas a resposta pode ser difícil de ser encontrada. Tantos homens dos clãs das Highlands que seguiam o príncipe Carlos foram mortos no campo de batalha de Culloden que não foram enterrados individualmente. Foram colocados em sepulturas coletivas, com uma única pedra gravada com o nome do clã como marco.
— Eu sei — Claire disse. — Brianna não esteve lá, mas eu estive... há muito tempo. — Ele achou ter vislumbrado uma sombra fugaz atravessar seus olhos, embora tenha sido rapidamente ocultada quando voltou a enfiar a mão na bolsa. Não era de admirar, pensou. O Campo de Culloden era um lugar emocionante; trouxe lágrimas aos seus próprios olhos ver aquela grande extensão de terra pantanosa e lembrar-se da bravura e da coragem dos escoceses das Highlands que jaziam massacrados sob o capim.
Ela desdobrou várias outras folhas datilografadas e entregou-as a ele. Um dedo longo e branco percorreu a margem de uma das folhas. Belas mãos, Roger observou; delicadamente torneadas, bem-cuidadas, com uma única aliança em cada mão. A de prata na mão direita chamava especialmente a atenção; uma aliança jacobita larga, no padrão entrelaçado das Highlands, adornada com flores de cardo.
— Esses são os nomes das mulheres, pelo que eu sei. Achei que isso talvez pudesse ajudar, já que se os maridos tivessem sido mortos em Culloden, provavelmente veríamos essas mulheres casando de novo ou emigrando para outro lugar mais tarde. Esses registros com toda a certeza devem existir nos livros da paróquia, não? São todos da mesma paróquia. A igreja ficava em Broch Mordha, fica a uma boa distância ao sul daqui.
— É uma idéia bastante útil — Roger disse, ligeiramente surpreso. — É o tipo de coisa na qual um historiador teria pensado.
— Não sou uma historiadora — Claire disse secamente. — Por outro lado, quando se vive com um, aprende-se um ou outro truque.
— Sem dúvida. — Um pensamento ocorreu a Roger e ele levantou-se de sua cadeira. — Estou sendo um péssimo anfitrião; por favor, permita-me servir-lhes um drinque e depois podem me contar mais a respeito disso. Talvez eu mesmo possa ajudá-las.
Apesar da desordem, ele sabia onde as garrafas de bebidas ficavam guardadas e rapidamente suas visitas estavam servidas de uísque. Colocou bastante soda no uísque de Brianna, mas notou que ela apenas o tocou com os lábios como se seu copo contivesse formicida em vez do melhor Glenfiddich de puro malte. Claire, que pedira seu uísque puro, parecia apreciá-lo bem mais.
— Bem. — Roger retomou seu lugar e pegou os papéis outra vez. — É um problema interessante, em termos de pesquisa histórica. Disse que esses homens pertenciam à mesma paróquia? Devem ter pertencido a um único clã ou tribo. Vejo que vários tinham o sobrenome Fraser.
Claire balançou a cabeça afirmativamente, as mãos cruzadas no colo.
— Vinham todos da mesma propriedade, uma pequena fazenda nas Highlands chamada Broch Tuarach e conhecida na região como Lallybroch. Faziam parte do clã Fraser, embora nunca tenham formalmente jurado lealdade a lorde Lovat como chefe. Esses homens participaram da Revolução desde o início, lutando na Batalha de Prestonpans, enquanto os homens de Lovat só chegaram pouco antes de Culloden.
— É mesmo? Interessante. — Em circunstâncias normais do século XVIII, esses pequenos arrendatários teriam morrido onde viviam e teriam sido sepultados lado a lado no cemitério da vila, cuidadosamente incluídos nos registros da paróquia. Entretanto, a tentativa do príncipe Carlos de recuperar o trono da Escócia em 1745 interrompeu de modo drástico o curso normal dos acontecimentos.
Na fome que se seguiu ao desastre de Culloden, muitos escoceses das Highlands emigraram para o Novo Mundo, outros foram abandonando os desfiladeiros e os pântanos em direção às cidades, em busca de alimento e emprego. Alguns permaneceram, agarrando-se teimosamente às suas terras e tradições.
— Daria um artigo fascinante — Roger disse, pensando em voz alta. Seguir o destino de um grupo de indivíduos, descobrir o que aconteceu a cada um deles. Seria menos interessante se todos tivessem realmente morrido em Culloden, mas é provável que alguns tenham conseguido escapar. Estaria disposto a aceitar o projeto como uma trégua bem-vinda ainda que não tivesse sido Claire Randall quem tivesse pedido. — Sim, acho que posso ajudá-la com isso — disse, sentindo-se recompensado com o sorriso caloroso com que ela o brindou.
— Verdade? Que maravilha! — ela exclamou.
— Será um prazer — Roger disse. Dobrou o papel e colocou-o sobre a mesa. —vou começar logo a trabalhar nisso. Mas, diga-me, como foi a viagem de Londres até aqui?
A conversa versou sobre questões gerais, conforme as mulheres Randall brindavam-no com histórias de sua viagem transatlântica e do trajeto de carro de Londres até ali. A atenção de Roger desviou-se ligeiramente quando ele começou a planejar a pesquisa para aquele projeto. Sentia-se levemente culpado por tê-lo aceitado; na verdade, não devia comprometer seu tempo. Por outro lado, era um assunto interessante. E talvez ele pudesse aliar o projeto à necessária tarefa de limpeza do material do reverendo; ele sabia com certeza que havia quarenta e oito caixas de papelão na garagem, todas etiquetadas JACOBITAS, MISCELÂNEA. A simples lembrança desse fato foi suficiente para provocar nele uma sensação de desmaio.
com um violento esforço, arrancou a mente da garagem, descobrindo, então, que a conversa sofrera uma mudança brusca de rumo.
— Druidas? — Roger sentia-se tonto. Espiou com desconfiança dentro do copo, tentando verificar se havia realmente acrescentado soda à sua bebida.
— Não ouviu falar deles? — Claire pareceu ligeiramente desapontada. Seu pai, o reverendo, conhecia-os, embora apenas extra-oficialmente. Talvez achasse que não valia a pena contar-lhe; ele considerava o assunto uma espécie de piada.
Roger coçou a cabeça, despenteando os cabelos negros e espessos.
— Não, honestamente não me lembro. Mas tem razão, ele não devia achar que o assunto fosse sério.
— Bem, não tenho certeza se é. — Ela cruzou as pernas. Um raio de sol cintilou ao longo de sua meia de seda, ressaltando a delicadeza do longo osso sob ela. — Quando estive aqui pela última vez com Frank... Meu Deus, isso foi há vinte e três anos!... o reverendo disse-lhe que havia um grupo local de, bem, druidas modernos, acho que podem ser chamados assim. Não faço a menor idéia da autenticidade desse grupo. É provável que não sejam mesmo genuínos.
Brianna estava inclinada para a frente agora, interessada, o copo de uísque esquecido entre as mãos.
— O reverendo não podia reconhecê-los oficialmente... por causa de paganismo e tudo isso, você sabe... mas sua governanta, a sra. Graham, estava envolvida com o grupo, então ele ouvia falar de suas andanças de vez em quando e deu uma dica a Frank de que haveria uma espécie de cerimônia no amanhecer do Beltane, isto é, no Primeiro de Maio.
Roger balançou a cabeça, tentando adaptar-se à idéia da velha sra. Graham, aquela mulher extremamente digna e respeitável, participando de rituais pagãos e dançando em volta de círculos de pedras ao nascer do sol. Tudo que ele próprio conseguia se lembrar de cerimônias druidas era que algumas delas envolviam queimar vítimas em gaiolas de vime, em sacrifício, o que parecia um comportamento ainda mais improvável para uma senhora escocesa e presbiteriana de idade avançada.
— Há um círculo de pedras verticais no topo de uma colina, bem perto daqui. Então, nós fomos lá antes do sol nascer para... bem, espioná-los — ela continuou, encolhendo os ombros como se quisesse se desculpar. — Sabe como são os acadêmicos, não têm nenhum escrúpulo quando se trata do seu próprio campo de trabalho, quanto mais uma noção de sensibilidade social. — Roger contraiu-se ligeiramente diante dessa observação, mas balançou a cabeça, concordando a contragosto.
— E lá estavam eles — Claire disse. — Inclusive a sra. Graham, todos enrolados em lençóis brancos, entoando cânticos e dançando no meio do círculo de pedras. Frank ficou fascinado — ela acrescentou com um sorriso. E realmente era impressionante, até para mim.
Parou por um instante, observando Roger de forma especulativa.
— Ouvi dizer que a sra. Graham faleceu há alguns anos. Mas imagino... sabe se ela tinha algum parente? Acredito que a participação nesses grupos geralmente é hereditária, talvez haja uma filha ou neta que pudesse me contar um pouco a respeito.
— Bem — Roger disse devagar. — Há uma neta, seu nome é Fiona, Fiona Graham. Na realidade, ela veio dar uma ajuda aqui na casa depois que sua avó morreu. O reverendo estava de fato muito idoso para ficar aqui inteiramente sozinho.
Se alguma coisa pudesse afastar sua visão da sra. Graham dançando envolta num lençol era a idéia de Fiona, de dezenove anos, como guardiã de uma antiga sabedoria mística, mas Roger refez-se heroicamente e continuou.
— Receio que ela não esteja aqui no momento, Mas eu poderia mandar chamá-la para vir falar com você.
Claire abanou a mão delgada, descartando a idéia.
— Não precisa se incomodar. Uma outra hora. Nós já tomamos demais do seu tempo.
Para desalento de Roger, ela colocou o copo vazio na mesinha entre as cadeiras e Brianna acrescentou seu próprio copo, ainda cheio, com o que lhe pareceu uma certa ânsia. Ele notou que Brianna Randall roía as unhas. Essa pequena prova de imperfeição lhe deu coragem para dar o próximo passo. Ela o intrigava e ele não queria que ela fosse embora sem ter certeza de que voltaria a vê-la.
— Por falar em círculos de pedra — ele disse rápido -, acho que sei qual você mencionou. É um belo cenário e não fica muito longe da cidade. — Sorriu direto para Brianna Randall, automaticamente notando o fato de que ela possuía três pequenas sardas no alto da maçã do rosto. — Acho que vou começar este projeto com uma viagem até Broch Tuarach. Fica na mesma direção do círculo de pedras, então, talvez... aaahh!
Com um movimento brusco e repentino de sua volumosa bolsa, Claire Randall lançou os dois copos de uísque para longe da mesa, encharcando o colo e as coxas de Roger de uísque puro e muita soda.
— Ah, sinto muito — ela desculpou-se, obviamente envergonhada. Abaixou-se e começou a recolher os pedaços de cristal estilhaçado, apesar dos esforços não muito coerentes de Roger de tentar impedi-la.
Brianna, aproximando-se para ajudar com um punhado de guardanapos de linho que pegara de cima do aparador, dizia:
— Francamente, mamãe, não sei como é que deixam você fazer cirurgias. Não dá para confiar a você nada menor do que uma cesta de pão. Olhe, você encharcou os sapatos dele de uísque! — Abaixou-se no chão e começou a enxugar energicamente o uísque derramado e a catar os fragmentos de cristal. — E as calças dele também!
Arrancando um novo guardanapo da pilha sobre seu braço, ela diligentemente lustrou as pontas dos sapatos de Roger, a cabeleira ruiva flutuando delirantemente em torno dos seus joelhos. Sua cabeça erguia-se, enquanto espreitava as coxas de Roger, aplicando com energia o guardanapo nas manchas molhadas no veludo das suas calças. Roger cerrou os olhos e pensou freneticamente em terríveis colisões de carros na autoestrada, em formulários de imposto de renda e em monstros devoradores do espaço — qualquer coisa que o impedisse de dar um completo vexame, enquanto o hálito quente de Brianna Randall penetrava como uma névoa pelo tecido molhado de suas calças.
— Hum... talvez seja melhor você mesmo fazer o resto. — A voz veio de algum lugar ao nível do seu nariz e ele abriu os olhos, deparando-se com um par de olhos de um azul profundo fitando-o acima de um amplo sorriso. Segurou frouxamente o guardanapo que ela lhe oferecia, respirando como se tivesse acabado de ser perseguido por um trem.
Abaixando a cabeça para esfregar as calças, viu Claire Randall observando-o com uma expressão mista de simpatia e divertimento. Não havia nada mais visível em sua expressão; nada daquele lampejo que achara ter visto em seus olhos logo antes da catástrofe. Perturbado como estava, provavelmente não passara de sua imaginação, pensou. Afinal, por que haveria ela de fazer aquilo de propósito?
— Desde quando se interessa por druidas, mamãe? — Brianna parecia disposta a encontrar algo hilário na idéia; eu a vira mordendo a parte interna das bochechas enquanto eu conversava com Roger Wakefield, e o sorriso que ela disfarçava na ocasião agora estava estampado em seu rosto. — Vai levar seu próprio lençol e se unir a eles?
— Deve ser mais interessante do que as reuniões de pessoal do hospital toda quinta-feira — eu disse. — Porém, um pouco frio.
Ela soltou um riso chiado, assustando dois pássaros grandes, duas mejengras de cabeça preta, do caminho à nossa frente.
— Não — eu disse, retornando ao ar sério. — Meu interesse não é tanto pelas mulheres druidas. Há uma pessoa que eu conhecia na Escócia que eu gostaria de encontrar, se puder. Não tenho o endereço dela, não tenho contato com ela há mais de vinte anos, mas ela se interessava por coisas estranhas como magia negra, crenças antigas, folclore. Esse tipo de coisa. Houve uma época em que morou perto daqui; achei que se ainda estivesse aqui, poderia estar envolvida com um grupo como esse.
— Qual o nome dela?
Sacudi a cabeça, agarrando o frouxo prendedor de cabelo que escorregava pelos meus cachos. Ele deslizou pelo meio dos meus dedos e caiu no capim alto à margem do caminho.
— Droga! — exclamei, inclinando-me para procurá-lo. Meus dedos estavam trêmulos quando tateava pelos talos densos e tive dificuldade em pegar o prendedor, escorregadio com a umidade do capim molhado. A lembrança de Geillis Duncan me deixava nervosa, mesmo agora. — Não sei — respondi, afastando os cachos do meu rosto afogueado. — Quer dizer, faz tanto tempo, tenho certeza de que deve ter um nome diferente agora. Ela era viúva; deve ter se casado outra vez ou estar usando seu nome de solteira.
— Ah. — Brianna perdeu o interesse no assunto e continuou a caminhar em silêncio por algum tempo. — De repente, disse: — O que achou de Roger Wakefield, mamãe?
Lancei-lhe um olhar; suas faces estavam rosadas, mas podia ser por causa do vento de primavera.
— Parece um bom rapaz — respondi com cautela. — Sem dúvida, é inteligente; é um dos mais jovens professores de Oxford. — A inteligência, eu ficara sabendo; perguntava-me se ele teria alguma imaginação. Geralmente, os tipos cultos e estudiosos não tinham. Mas um pouco de imaginação seria útil.
— Os olhos dele são incríveis — Brianna disse, ignorando sonhadoramente a questão da inteligência. — Não são os mais verdes que já viu?
— Sim, são impressionantes — concordei. — Sempre foram assim. Lembro-me de que me chamaram a atenção quando o conheci em criança.
Brianna olhou para mim, franzindo o cenho.
— Francamente, mamãe! Você tinha que dizer: “Meu Deus, como você cresceu”, quando nos atendeu à porta? Que vergonha!
Eu ri.
— Bem, a última vez em que o vi ele batia na altura do meu umbigo e de repente me vejo levantando a cabeça para ver seu nariz — eu disse, defendendo-me. — Não pude deixar de observar a diferença.
— Mamãe! — Mas ela ria alegremente.
— Ele também tem um bumbum muito bonito — acrescentei, só para fazê-la continuar a rir. — Notei quando ele se inclinou para pegar o uísque.
— Mããããeeee! As pessoas vão ouvi-la!
Havíamos chegado ao ponto de ônibus. Havia duas ou três mulheres e um senhor idoso de terno de tweed de pé junto aplaca; viraram-se para olhar para nós quando nos aproximamos.
— É aqui o ponto do ônibus de turismo para o lago Ness? — perguntei, passando os olhos pela confusa profusão de anúncios e avisos pregados na tabuleta.
— Ah, é, sim — respondeu uma das senhoras amavelmente. — Deve chegar em mais ou menos dez minutos.
Ela olhou Brianna de cima a baixo, tão obviamente americana em suas calças jeans e jaqueta branca. O detalhe patriótico final era acrescentado pelo rosto afogueado, vermelho por causa do riso preso.
— Vão visitar o lago Ness? É a primeira vez? Sorri para ela.
— Desci o lago de barco com meu marido há vinte e poucos anos, mas esta é a primeira viagem de minha filha à Escócia.
— Ah, é mesmo? — Isso atraiu a atenção das outras senhoras que se amontoaram à nossa volta, repentinamente acolhedoras, oferecendo sugestões e fazendo perguntas, até que o enorme ônibus amarelo dobrou a esquina soltando descargas do motor.
Brianna parou antes de subir os degraus, admirando o pitoresco desenho das curvas verdes em forma de serpentina, ondulando por um lago de tinta azul cercado de pinheiros negros.
— Isso vai ser divertido — disse, rindo. — Acha que veremos o monstro?
— Nunca se sabe — respondi.
Roger passou o resto do dia em estado de abstração, vagando distraidamente de uma tarefa para outra. Os livros a serem empacotados para doação à Sociedade de Preservação de Antigüidades escorregavam de sua caixa cheia demais; a velha caminhonete do reverendo estava parada na entrada da casa com o capô aberto, no meio de uma inspeção do motor; e uma xícara de chá com leite, parcialmente consumido e de onde a nata fora retirada, jazia junto ao seu cotovelo, enquanto ele fitava, com os olhos vidrados e inexpressivos, a chuva que caía no início da noite.
O que deveria fazer, sabia-o, era dar cabo da tarefa de desmantelar o âmago do gabinete do reverendo. Não os livros; por mais penosa que fosse a empreitada, era apenas uma questão de decidir quais guardar para si mesmo e quais despachar para a SPA ou para a velha biblioteca da universidade do reverendo. Não, mais cedo ou mais tarde ele teria que enfrentar a enorme escrivaninha, com papéis saindo de cada uma das imensas gavetas e projetando-se de suas dezenas de escaninhos. Ele teria que retirar, organizar e desfazer-se de toda a quinquilharia que decorava a parede de cortiça de um dos lados do aposento. Uma missão capaz de assombrar o mais destemido espírito.
Além da total falta de vontade de iniciar a tediosa tarefa, Roger era contido por outro fator. Ele não queria estar fazendo tudo aquilo, por mais necessário que fosse; queria estar trabalhando no projeto de Claire Randall, seguindo o rastro dos homens dos clãs que lutaram em Culloden.
Era um projeto interessante por si próprio, embora provavelmente um trabalho de pesquisa sem grande valor. Mas não era esse o motivo. Não, pensou, se quisesse ser sincero consigo mesmo, ele queria era dedicar-se ao projeto de Claire Randall para poder ir à pousada da sra. Thomas e colocar seus resultados aos pés de Brianna Randall, como os cavaleiros faziam com as cabeças de dragões. Ainda que não obtivesse resultados dessa escala, ansiava ardentemente por alguma desculpa para vê-la e conversar com ela outra vez.
Ela o fazia lembrar-se de uma pintura de Bronzino, concluiu. Tanto ela quanto sua mãe davam uma estranha impressão de terem sido de algum modo delineadas, desenhadas com pinceladas tão vigorosas e com detalhes tão delicados que se destacavam do fundo, como se tivessem sido esculpidas na paisagem. Mas Brianna possuía aquelas cores vivas e aquele ar de absoluta presença física que fazia as modelos de Bronzino parecerem seguilo com os olhos, prestes a falar de suas molduras. Nunca vira uma pintura de Bronzino fazendo caretas diante de um copo de uísque, mas se houvesse uma, tinha certeza de que seria exatamente como Brianna Randall.
— Bem, pró inferno — disse em voz alta. — Não vai levar tanto tempo assim para dar uma espiada nos registros da Casa Culloden amanhã, certo? Quanto a você — disse, dirigindo-se à escrivaninha e sua profusa carga —, pode esperar mais um dia. E você também — disse à parede, retirando desafiadoramente um romance policial da estante. Olhou à sua volta de forma beligerante, como se desafiasse qualquer peça do mobiliário a objetar, mas não se ouviu nenhum som além do zumbido do aquecedor elétrico.
Desligou-o e, com o livro embaixo do braço, deixou o gabinete, apagando a luz.
Um minuto depois, retornou, atravessando o aposento no escuro, e resgatou a lista de nomes de cima da mesa.
— Bem, pró inferno! — exclamou outra vez, enfiando o papel no bolso da camisa. — Nãovou querer esquecer a maldita lista pela manhã. — Deu um tapinha no bolso, sentindo o papel estalar bem em cima do seu coração, e subiu para a cama.
Voltamos do lago Ness ofegantes por causa do vento e enregeladas pela chuva para o reconfortante aconchego de uma comida quente e uma lareira acesa na sala de estar. Brianna começara a bocejar em cima dos ovos mexidos e logo desculpou-se e subiu para tomar um banho quente. Permaneci na sala por mais alguns instantes, conversando com a sra. Thomas, a dona da pousada, e já eram quase dez horas quando subi para o meu próprio banho e minha camisola.
Brianna costumava dormir cedo e acordar cedo; sua respiração suave saudou-me quando abri a porta do quarto. Ela dormia cedo e também dormia profundamente; movimentei-me com todo o cuidado pelo quarto, pendurando minhas roupas e arrumando nossos pertences, mas não havia risco de acordá-la. A casa foi ficando silenciosa conforme eu fazia minhas arrumações, de modo que o murmúrio de meus próprios movimentos parecia alto demais aos meus ouvidos.
Trouxera comigo vários livros de Frank, pretendendo doá-los à biblioteca de Inverness. Estavam habilmente arrumados no fundo da minha mala, formando uma base para os itens mais passíveis de serem amassados que estavam em cima. Retirei-os um a um, colocando-os sobre a cama. Cinco volumes encadernados, brilhantes em suas capas protetoras de plástico transparente. Objetos pesados, sólidos; quinhentas ou seiscentas páginas cada um, fora os índices e ilustrações.
Eram as Obras Completas de meu falecido marido, nas edições comentadas. Os elogios da crítica cobriam as orelhas da sobrecapa, com os comentários de cada renomado especialista na área de história. Nada mau para a obra de toda uma vida, pensei. Um feito do qual se orgulhar. Compacto, sólido, autorizado.
Empilhei os livros cuidadosamente sobre a mesa ao lado de minha mala, para não esquecê-los pela manhã. Os títulos nas lombadas eram diferentes, é claro, mas empilhei-os de modo que os nomes “Frank W. Randall” nas pontas ficassem alinhados de modo uniforme, um acima do outro. Reluziam como uma jóia na pequena poça de luz formada pelo abajur da mesinha-de-cabeceira.
A pousada estava em silêncio; ainda não era a alta estação e os poucos hóspedes existentes já haviam se recolhido há muito tempo. Na outra cama de solteiro, a respiração de Briannafez um leve ruído e ela se virou, deixando longas mechas de cabelos ruivos cobrirem seu rosto adormecido. Um pé longo e nu projetava-se de baixo das cobertas e eu o cobri delicadamente com o cobertor.
O impulso de tocar uma criança adormecida nunca desaparece, ainda que a criança seja muito maior que a mãe, e ela mesma uma mulher — ainda que jovem. Alisei seus cabelos para trás, afastando-os do rosto, e acariciei sua cabeça. Ela sorriu em seu sono, um breve reflexo de satisfação, desfeito quase no mesmo instante em que surgiu. Meu próprio sorriso demorou-se enquanto eu a observava. Sussurrei a seus ouvidos surdos de sono, como já fizera tantas outras vezes:
— Meu Deus, você é tão parecida com ele.
Engoli em seco, para livrar-me do nó que se formava em minha garganta — já se tornara quase um hábito, a essa altura — e peguei meu penhoar nas costas da cadeira. Fazia um frio glacial nas Highlands escocesas em abril, mas eu não estava pronta ainda para procurar o santuário acolhedor da minha própria cama de solteiro.
Eu havia pedido à proprietária para deixar a lareira acesa na sala de estar, assegurando-lhe que apagaria o fogo antes de me recolher. Fechei a porta devagar, ainda observando os longos membros esparramados na cama, as cascatas de sedosos cabelos ruivos derramadas na colcha azul de matelassê.
— Também não é nada mau para a obra de uma vida inteira — sussurrei para o corredor escuro. — Talvez não tão compacta, mas absolutamente autorizada.
A pequena sala de estar estava às escuras e acolhedoramente aquecida, o fogo reduzido ao clarão estável de uma chama ao longo da espinha dorsal da tora principal. Puxei uma pequena poltrona para a frente da lareira e apoiei os pés na grade de proteção. Eu podia ouvir todos os pequenos e costumeiros sons da vida moderna à minha volta; o zumbido surdo da geladeira no subsolo, o chiado e o murmúrio do aquecimento central, que fazia da lareira um conforto, não uma necessidade; o rangido rápido e abafado de um ou outro carro na rua.
Entretanto, sob tudo isso, havia o profundo silêncio de uma noite das Highlands. Fiquei sentada absolutamente imóvel, tentando senti-lo. Fazia vinte anos que o sentira pela última vez, mas o poder calmante da escuridão ainda estava lá, protegido entre as montanhas.
Enfiei a mão no bolso do meu penhoar e retirei a folha de papel dobrada — uma cópia da lista que eu dera a Roger Wakefield. Estava escuro demais para ler na fraca claridade do fogo da lareira, mas eu não precisava ver os nomes. Desdobrei o papel sobre meu joelho recoberto de seda e permaneci ali sentada, olhando cegamente as linhas de caligrafia ilegível. Corri os dedos devagar sobre o papel, murmurando o nome de cada um dos homens para mim mesma, como uma prece. Eles faziam parte da fria noite de primavera, mais do que eu. Mas continuei fitando as chamas, deixando a escuridão lá de fora vir preencher os espaços vazios dentro de mim.
E pronunciando seus nomes como se os invocasse, comecei a dar os primeiros passos para trás, atravessando o vazio da escuridão em direção ao lugar onde me aguardavam.
Roger deixou a Casa Culloden na manhã seguinte com doze páginas de anotações e uma crescente sensação de assombro. O que a princípio parecera uma tarefa razoavelmente simples de pesquisa histórica estava apresentando algumas reviravoltas certamente muito estranhas.
Ele encontrara apenas três dos nomes da lista de Claire Randall na relação de mortos em Culloden. Isso, por si só, não era nada extraordinário. O exército de Carlos Stuart raramente tivera uma lista coerente de alistamento, uma vez que os chefes de clãs aparentemente se uniam ao príncipe quando lhes dava na veneta e muitos iam embora sem nenhum aviso prévio, antes que os nomes de seus homens pudessem ser inscritos em qualquer documento oficial. Os registros do exército das Highlands, desordenados, para dizer o mínimo, haviam praticamente se desintegrado nos últimos dias da Revolução; afinal, não fazia sentido manter uma folha de pagamentos se não se tinha como pagar aos homens inscritos.
Dobrou com todo o cuidado seu esqueleto longilíneo e enfiou-se no seu velho Morris, automaticamente abaixando a cabeça para não bater no teto. Tirando a pasta de baixo do braço, abriu-a e examinou, com a testa franzida, as páginas que copiara. O estranho é que quase todos os homens da lista de Claire realmente tinham aparecido em outra lista do exército.
Nos diferentes escalões do regimento de um determinado clã, os homens podem ter desertado assim que as dimensões do iminente desastre se tornavam evidentes; não teria sido nada incomum. Não, o que tornava todo o problema tão incompreensível era que os nomes na lista de Claire haviam aparecido — completos e por extenso — como parte do regimento do Senhor de Lovat, enviado no fim da campanha para cumprir uma promessa de apoio feita aos Stuart por Simon Fraser, lorde Lovat.
Entretanto, Claire afirmara com convicção — e uma olhada nas folhas originais confirmava isso — que esses homens eram todos provenientes de uma pequena propriedade chamada Broch Tuarach, bem ao sul e a oeste das terras dos Fraser — na verdade, nos limites das terras do clã MacKenzie. Mais do que isso, ela dissera que esses homens já faziam parte do exército das Highlands desde a Batalha de Prestonpans, que ocorrera no começo da campanha.
Roger sacudiu a cabeça. Aquilo não fazia nenhum sentido. É bem verdade que Claire podia ter confundido a época — ela mesma dissera que não era uma historiadora. Mas seguramente não erraria o local. E como era possível que homens da propriedade de Broch Tuarach, que não haviam feito nenhum juramento de lealdade ao chefe do clã Fraser, estivessem à disposição de Simon Fraser? É verdade que lorde Lovat era conhecido como “a Velha Raposa”, e com toda a razão, mas Roger duvidava que mesmo o temível conde tivesse tido astúcia suficiente para conseguir tal proeza.
Com o cenho franzido, Roger deu partida no carro e saiu do estacionamento. Os arquivos da Casa Culloden eram tristemente incompletos; a maior parte, cartas pitorescas de lorde George Murray, queixando-se de problemas de suprimento, e coisas que ficavam bem nas exposições do museu para agradar os turistas. Ele precisava de muito mais do que isso.
— Espere aí, rapaz — advertiu a si próprio, estreitando os olhos no retrovisor ao fazer a curva. — Você tem que descobrir o que aconteceu àqueles que não bateram as botas em Culloden. O que importa como chegaram lá, desde que tenham saído inteiros da batalha?
Mas não conseguia deixar de lado a questão. Era uma circunstância muito estranha. Os nomes se embaralhavam com enorme freqüência, especialmente nas Highlands, onde metade da população em determinado momento parecia ter recebido o nome de “Alexander”. Em conseqüência, os homens eram habitualmente conhecidos pelo nome de seu lugar, assim como pelo nome do clã ou por seus sobrenomes. Às vezes, só pelo nome do lugar. “Lochiel”, um dos mais proeminentes chefes jacobitas, era na verdade Donald Cameron, de Lochiel, o que o distinguia perfeitamente das centenas de outros Cameron chamados Donald.
E todos os homens das Highlands que não tinham sido denominados Donald ou Alec, foram chamados de Jofcn. Dos três nomes da lista de Claire que ele havia encontrado nos registros de óbito, um era Donald Murray, o outro era Alexander MacKenzie Fraser e o outro, John Graham Fraser. Todos sem nenhum nome do lugar de origem anexado; apenas o nome e o regimento ao qual pertenciam. O regimento do Senhor de Lovat, o regimento Fraser.
Mas sem o nome do local de nascimento, ele não podia ter certeza de que esses fossem de verdade os mesmos homens da lista de Claire. Havia pelo menos seis John Fraser na relação de mortos e mesmo isso estava incompleto; os ingleses davam pouca atenção ao rigor ou à precisão — a maioria dos registros fora compilada depois do fato passado, por chefes de clãs contando o número de presentes e verificando quem não voltara para casa. Muitas vezes, o próprio chefe do clã não retornara para casa, o que complicava a questão.
Passou a mão com força pelos cabelos num gesto de frustração, como se massagear o couro cabeludo pudesse estimular o cérebro. E se os três nomes não fossem dos mesmos homens, o mistério apenas se aprofundava. Cerca da metade do exército de Carlos Stuart fora massacrada em Culloden. E os homens de Lovat estavam no meio de tudo isso, bem no centro da batalha. Era inconcebível que um grupo de trinta homens tivesse sobrevivido naquela posição sem nem uma baixa. Os homens do Senhor de Lovat uniram-se mais tarde à Revolução; enquanto a deserção predominara em outros regimentos, que já serviam há tempo suficiente para ter alguma idéia do que os aguardava, os Fraser permaneceram excepcionalmente leais — e sofreram as conseqüências.
Um sonoro barulho de buzina vindo de trás o assustou, tirando-o de sua concentração, e ele saiu para o acostamento para deixar um caminhão grande e apressado passar estrondando. Pensar e dirigir não eram atividades compatíveis, concluiu. Acabaria esmagado contra um muro de pedra, se continuasse assim.
Ficou sentado imóvel por uns instantes, refletindo. Seu impulso natural era ir à pousada da sra. Thomas e dizer a Claire o que ele havia encontrado até agora. O fato de que isso pudesse significar mais alguns momentos na presença de Brianna Randall tornava a idéia ainda mais atraente.
Por outro lado, todos os seus instintos de historiador clamavam por mais dados. E não achava que Claire fosse a pessoa indicada para fornecêlos. Não conseguia imaginar por que ela confiara aquela tarefa a ele e, ao mesmo tempo, por que atrapalhara a sua conclusão fornecendo-lhe informações erradas. Não era sensato, e Claire Randall parecera-lhe uma pessoa eminentemente sensata.
Ainda assim, havia aquele incidente com o uísque. Seu rosto ficou afogueado com a lembrança. Tinha certeza de que ela agira de propósito — e como não era o tipo de pessoa que se desse a piadas práticas, sentia-se compelido a presumir que ela fizera aquilo para impedi-lo de convidar Brianna a Broch Tuarach. Ela queria mantê-lo longe do lugar ou apenas impedi-lo de levar Brianna lá? Quanto mais pensava no incidente, mais convencido ficava de que Claire Randall estava escondendo alguma coisa de sua filha, mas não conseguia imaginar o que poderia ser. Menos ainda podia imaginar que relação isso teria com ele ou com o projeto que assumira.
Desistiria da tarefa, se não fosse por dois motivos. Brianna e simples curiosidade. Queria saber o que estava acontecendo e com toda a certeza pretendia descobrir.
Batia levemente com o punho cerrado no volante, pensando, ignorando a precipitação dos veículos em trânsito. Finalmente, tomada a decisão, ligou o motor outra vez e retornou à estrada. Deu a volta no trevo seguinte e rumou para o centro da cidade de Inverness, para a estação de trem.
O Escocês Voador poderia levá-lo a Edimburgo em três horas. O curador responsável pelos Arquivos Stuart fora um grande amigo do reverendo. E ele tinha uma pista para começar, por mais surpreendente que fosse. A relação dos nomes que integravam o regimento do Senhor de Lovat mostrava que esses trinta homens estavam sob o comando de um capitão James Fraser — de Broch Tuarach. Esse homem era o único elo aparente entre Broch Tuarach e os Fraser de Lovat. Perguntou-se por que James Fraser não constava da lista de Claire.
O dia estava ensolarado; um acontecimento raro para meados de abril e Roger procurou aproveitar ao máximo, girando a manivela e abaixando a minúscula janela do lado do motorista, para que o vento refrescante zumbisse pelo seu ouvido.
Tivera que pernoitar em Edimburgo e voltar tarde no dia seguinte. Ficara tão cansado da longa viagem de trem que fizera pouco mais do que tomar a sopa quente que Fiona insistira em preparar e logo em seguida desabar na cama. Hoje, no entanto, acordara com a energia e a determinação renovadas e, de carro, dirigira-se para a cidadezinha de Broch Mordha, próxima ao local onde ficava a propriedade chamada Broch Tuarach. Se sua mãe não queria que Brianna Randall fosse a Broch Tuarach, nada impedia que ele desse uma olhada no local.
Ele realmente encontrou a própria Broch Tuarach, ou assim presumia; havia uma enorme pilha de pedras desmoronadas, cercando o remanescente de uma das antigas “brochs” circulares, ou torres, usadas no passado distante tanto para moradia como para defesa. Seus conhecimentos de gaélico eram suficientes para saber que o nome significava “torre de frente para o norte” e perguntou-se distraidamente como uma torre circular pôde receber tal denominação.
Havia uma mansão e construções anexas perto dali, também em ruínas, embora em muito melhor estado do que a torre. A placa de um agente imobiliário, quase ilegível pela ação do tempo, permanecia pregada numa estaca perto do portão de entrada do pátio. Roger parou numa elevação, acima da casa, olhando ao redor. À primeira vista, não parecia haver nada que pudesse explicar o motivo de Claire querer impedir a filha de ir ao local.
Estacionou o Morris no pátio de entrada e desceu do carro. Era um belo lugar, porém muito isolado; depois que saíra da auto-estrada, levara aproximadamente quarenta e cinco minutos de cuidadosas manobras para conduzir seu Morris pela estrada rural, estreita e cheia de valas, sem danificar o tanque de óleo.
Não entrou na casa; estava com certeza abandonada e provavelmente o estado precário era perigoso — não haveria nada lá dentro. Entretanto, o nome FRASER estava esculpido na verga acima da porta e o mesmo nome adornava a maioria das pequenas pedras tumulares no que devia ter sido o cemitério da família — as que eram legíveis. Isso não ajudava muito, refletiu. Nenhuma daquelas pedras ostentava os nomes dos homens da lista. Teria que prosseguir pela estrada; de acordo com o mapa rodoviário, a vila de Broch Mordha ficava a aproximadamente cinco quilômetros dali.
Como temia, a igrejinha da vila caíra em desuso e fora derrubada há muitos anos. Batidas persistentes nas portas provocaram olhares desinteressados, expressões avessas e finalmente uma especulação incerta de um fazendeiro idoso de que os antigos registros da paróquia pudessem ter ido para o museu de Fort William, ou talvez até para Inverness; havia um ministro mais acima naquela direção que colecionava esses papéis velhos.
Cansado e empoeirado, mas não desencorajado, Roger arrastou-se de volta ao carro, abrigando-se no beco ao lado do pub da vila. Esse era o tipo de empecilho que freqüentemente acometia a pesquisa histórica de campo e ele já estava acostumado. Um rápido caneco de cerveja — bem, dois, talvez, o dia estava extraordinariamente quente — e retomaria o caminho para Fort William.
Seria bem feito para ele, refletiu amargamente, se no final das buscas, visse que os registros que procurava tinham estado o tempo todo nos arquivos do reverendo. Era o que dava negligenciar seu trabalho para sair à caça do impossível só para impressionar uma garota. Sua viagem a Edimburgo pouco adiantara além de servir para eliminar os três nomes que encontrara na Casa Culloden; verificou-se que os três homens eram provenientes de regimentos diferentes, não do grupo de Broch Tuarach.
Os Arquivos Stuart ocupavam três aposentos inteiros, bem como incontáveis embalagens no subsolo do museu, de modo que ele dificilmente poderia dizer que fez um estudo completo. Ainda assim, encontrara uma segunda via de uma folha de pagamentos que vira na Casa Culloden, registrando o alistamento dos homens como parte de um regimento sob o comando geral do Senhor de Lovat — o filho da Velha Raposa, que teria sido o Jovem Simon. O velhaco dividira seu voto, Roger pensou; enviou o herdeiro para lutar pelos Stuart e ele próprio permaneceu em casa, alegando o tempo inteiro ter sido um súdito leal do rei Geordie. Pouco lhe adiantou.
Esse documento registrava o Jovem Simon Fraser como comandante e não fazia nenhuma menção a James Fraser. Entretanto, um certo James Fraser era mencionado em inúmeros despachos, memorandos e outros documentos do exército. Se fosse o mesmo homem, ele tinha sido bastante atuante na campanha. Ainda assim, apenas com o nome “James Fraser” era impossível saber se era o mesmo de Broch Tuarach; James era um nome tão comum nas Highlands quanto Duncan ou Robert. Em apenas um lugar havia um James Fraser relacionado com os nomes do meio, o que poderia ajudar a identificação, mas esse documento não fazia nenhuma menção a seus homens.
Deu de ombros, espantando irritadamente uma nuvem repentina de pequeninos e vorazes mosquitos. Analisar esses registros de forma coerente levaria vários anos. Sem conseguir afugentar os mosquitinhos, abaixou-se e entrou no ambiente escuro do pub, típico de uma cervejaria, deixando-os girando em círculo do lado de fora, numa nuvem frenética de perplexidade.
Bebericando a cerveja amarga e fresca, reviu mentalmente os passos que dera até ali e as opções que se abriam à sua frente. Ainda tinha tempo de ir a Fort William hoje, embora significasse voltar bem tarde a Inverness. E se Fort William não oferecesse nenhum resultado, então uma boa varredura nos arquivos do reverendo seria o próximo passo lógico, embora irônico.
E depois? Esvaziou o caneco das últimas gotas de cerveja e fez um sinal para o proprietário pedindo outro. Bem, se fosse necessário, um passeio por todo cemitério e adro de igreja nas vizinhanças de Broch Tuarach seria provavelmente o melhor que poderia fazer a curto prazo. Duvidava que as Randall fossem permanecer em Inverness nos próximos dois ou três dias, pacientemente esperando os resultados.
Enfiou a mão no bolso à procura de seu caderninho de notas, que é a marca registrada do historiador. Antes de deixar Broch Mordha, ele deveria ao menos dar uma olhada no que restou do antigo pátio de igreja. Nunca se sabe o que poderia ser encontrado e ao menos o pouparia de ter que voltar.
Na tarde seguinte, as Randall foram tomar chá com Roger a seu convite, para ouvirem o relatório de seus progressos.
— Encontrei vários dos nomes de sua lista — disse a Claire, conduzindo-as ao gabinete. — É muito estranho, mas ainda não encontrei nenhum que tenha com certeza morrido em Culloden. Achei que três deles sim, mas constatei depois que eram outros homens com os mesmos nomes. Lançou um olhar à dra. Randall. Ela estava de pé, absolutamente imóvel, uma das mãos agarradas com força ao encosto de uma bergère, como se tivesse se esquecido de onde estava.
— Ha, não quer se sentar? — Roger convidou e, com um pequeno sobressalto de surpresa, ela fez um sinal com a cabeça e sentou-se abruptamente na borda da poltrona. Roger olhou-a intrigado, mas continuou, apanhando sua pasta com anotações da pesquisa e entregando-a a Claire.
— Como eu disse, é estranho. Não consegui localizar todos os nomes. Acho que vou ter que fuçar os registros paroquiais e os cemitérios próximos a Broch Tuarach. Encontrei a maioria desses registros entre os papéis de meu pai. Mas seria de pensar que eu me deparasse com uma ou duas mortes em ação, pelo menos, considerando-se que todos estiveram em Culloden. Especialmente se, como você disse, pertenciam a um dos regimentos Fraser; quase todos eles estiveram no centro da batalha, onde a luta foi mais demolidora.
— Eu sei. — Alguma coisa em sua voz o fez voltar-se para ela, estarrecido, mas seu rosto ficou invisível quando ela se curvou sobre a escrivaninha. A maioria dos registros eram cópias, feitas à mão pelo próprio Roger, já que a exótica tecnologia de fotocópias ainda não chegara até o arquivo do governo que guardava os documentos de Stuart, mas havia algumas folhas originais, desenterradas do estoque de documentos do século XVIII do falecido reverendo Wakefield. Ela examinou os arquivos com delicadeza, tendo cuidado para não tocar no frágil papel mais do que o necessário.
— Tem razão, é mesmo estranho.
Agora ele percebeu a emoção em sua voz — era agitação, mas misturada a satisfação e alívio. De algum modo, ela já esperava — ou torcia — por isso.
— Diga-me... — Ela hesitou. — Os nomes que encontrou. O que aconteceu a eles, se não morreram em Culloden?
Ficou ligeiramente surpreso que a questão parecesse tão importante para ela, mas gentilmente pegou a pasta onde guardara suas anotações de pesquisa e abriu-a.
— Dois deles estavam na relação de passageiros de um navio; emigraram para a América logo depois de Culloden. Quatro morreram de causas naturais cerca de um ano mais tarde. Não é de admirar, houve uma terrível fome depois de Culloden, e muita gente morreu nas Highlands. E esse aqui eu encontrei no registro de uma paróquia, mas não a paróquia de onde ele era oriundo. Mas tenho quase certeza de que se trata de um dos seus homens.
Foi somente quando a tensão saiu dos ombros de Claire que ele notou que ela estivera tensa.
— Quer que eu continue procurando os demais? — ele perguntou, esperançoso de que a resposta fosse “sim”. Observava Brianna por cima do ombro da mãe. Estava parada junto à parede de cortiça, parcialmente virada, como se não estivesse interessada no projeto de sua mãe, mas podia ver uma pequena ruga vertical entre suas sobrancelhas.
Talvez pressentisse o mesmo que ele, o estranho ar de agitação contida que cercava Claire como um campo magnético. Ele o notara desde o instante em que ela entrara no aposento e suas revelações apenas o aumentaram. Imaginava que, se a tocasse agora, uma grande faísca elétrica saltaria entre eles.
Uma batida na porta do gabinete interrompeu seus pensamentos. A porta se abriu e Fiona Graham entrou, empurrando um carrinho de chá, inteiramente equipado com bule, xícaras, pequenos guardanapos de renda, três tipos de sanduíches, bolo de frutas com creme, pão-de-ló, tortinhas de geléia, bolinhos e manteiga caseira.
— Huummm! — Brianna exclamou ao ver o carrinho. — Tudo isso é para nós ou você está esperando mais dez pessoas?
Claire Randall examinou os preparativos para o chá, sorrindo. O campo magnético ainda estava lá, mas amortecido por um grande esforço. Roger podia ver uma de suas mãos apertada com tanta força nas dobras de sua saia que as bordas de sua aliança penetravam na pele.
— Este chá está tão completo que não vamos ter que comer durante semanas — disse. — Que maravilha!
Fiona abriu um largo sorriso de contentamento. Ela era baixa, gorda e bonita como uma pequena galinha marrom. Roger suspirou por dentro. Embora estivesse satisfeito em poder oferecer hospitalidade a suas convidadas, tinha plena consciência de que a natureza extravagante do lanche era destinada à sua apreciação, não à delas. Fiona, de dezenove anos, tinha uma premente ambição na vida. Casar-se. De preferência com um profissional. Dera uma olhada em Roger quando ele chegou uma semana antes para cuidar dos assuntos do reverendo e decidira que um professor assistente de história era a melhor perspectiva que Inverness oferecia.
Desde então, ele vinha sendo empanturrado como um ganso de Natal, seus sapatos eram engraxados, os chinelos e escova de dente guardados, a cama arrumada, o casaco escovado e o jornal da tarde comprado para ele e colocado ao lado do prato, o pescoço massageado quando ficava trabalhando em sua escrivaninha por longas horas e constantes perguntas feitas sobre seu conforto físico, estado de espírito e saúde em geral. Nunca antes fora exposto a tal bombardeio de prendas domésticas.
Em resumo, Fiona estava enlouquecendo-o. Seu atual estado desgrenhado e com a barba por fazer era mais uma reação à sua perseguição implacável do que um sinal do desleixo natural típico dos homens temporariamente livres das exigências do trabalho e da sociedade.
A idéia de estar unido a Fiona Graham pelos laços sagrados do matrimônio deixava-o enregelado até a medula. Ela o deixaria louco em um ano, com seu excesso de atenções. Além disso, havia Bríanna Randall, agora fitando contemplativamente o carrinho de chá, como se não soubesse por onde começar.
Mantivera sua atenção firmemente concentrada em Claire Randall e seu projeto, evitando olhar para sua filha. Claire Randall era adorável, com o tipo de bela ossatura e pele translúcida que a faria permanecer quase a mesma aos sessenta anos como era aos vinte. Mas olhar para Brianna Randall deixava-o ligeiramente ofegante.
Ostentava o porte de uma rainha, e não era curvada como a maioria das mulheres altas. Notando as costas eretas e a postura graciosa de sua mãe, podia ver de onde vinha aquele atributo em particular. Mas não a altura extraordinária, a cascata de cabelos ruivos até a cintura, com reflexos dourados e acobreados, mechas cor de âmbar e de canela, ondeando-se naturalmente em torno do rosto e dos ombros como um manto. Os olhos, de um azul tão escuro que, dependendo da luz, até pareciam negros. Nem aquela boca larga e generosa, com o lábio inferior cheio, que convidava a beijos mordiscados e mordidas de paixão. Tudo isso deve ter vindo de seu pai.
No geral, Roger sentia-se até satisfeito por seu pai não estar presente, já que sem dúvida teria adotado uma indignação paternal diante do tipo de pensamentos que Roger estava cultivando; pensamentos que ele temia desesperadamente que se revelassem em seu rosto.
— Chá, hein? — disse calorosamente. — Esplêndido. Maravilhoso. Parece delicioso, Fiona. Ha, obrigado, Fiona. Eu, bem, acho que não precisamos de mais nada.
Ignorando a deixa nada sutil para ir embora, Fiona balançou a cabeça graciosamente em agradecimento aos elogios das convidadas, dispôs os guardanapos e xícaras com hábil economia de movimentos, serviu o chá, passou a primeira travessa de bolo e preparou-se para permanecer ali indefinidamente, presidindo a cerimônia como dona da casa.
— Passe um pouco de manteiga em seus bolinhos, Rog... quero dizer, sr. Wakefield — sugeriu, espalhando-a nos bolinhos sem esperar por sua resposta. — Está magro demais, precisa se alimentar bem. — Olhou de maneira conspiratória para Brianna Randall, dizendo: — Sabe como são os homens; nunca comem direito se não tiverem uma mulher cuidando deles.
— Que sorte ele ter você para cuidar dele — Brianna respondeu educadamente.
Roger respirou fundo e flexionou os dedos várias vezes, até o ímpeto de estrangular Fiona ter passado.
— Fiona — ele disse. — Você poderia, hum, poderia me fazer um pequeno favor?
Ela iluminou-se como uma daquelas lanternas de abóbora usadas no Dia das Bruxas, o sorriso aberto num esgar ansioso diante da idéia de fazer alguma coisa por ele.
— Claro, Rog... sr. Wakefield! Qualquer coisa!
Roger sentiu-se um pouco envergonhado de si mesmo, mas afinal, argumentou, era para o bem dela tanto quanto para o dele. Se ela não saísse dali, em breve ele não conseguiria responder por seus atos e acabaria cometendo algum desatino do qual ambos se arrependeriam.
— Ah, obrigado, Fiona. Não é nada de especial; é que eu pedi um pouco de... de... — pensava freneticamente, tentando lembrar-se do nome de um dos comerciantes da vila — tabaco, da loja do sr. Buchan, na High Street. Você poderia ir lá pegá-lo para mim? Adoraria usar meu cachimbo depois de um chá maravilhoso como este.
Fiona já desamarrava o avental — um avental de rendas e babados, Roger notou com desagrado. Cerrou os olhos por um instante, aliviado, quando a porta do gabinete fechou-se atrás de Fiona, negligenciando por enquanto o fato de que ele não fumava. com um suspiro de alívio, voltou-se para retomar a conversa com suas convidadas.
— Você estava perguntando se eu queria que procurasse o resto dos nomes da minha lista — Claire disse, quase de imediato. Roger teve a estranha impressão de que ela compartilhava seu alívio com a saída de Fiona. — Sim, gostaria muito. Se não for muito trabalho.
— Não, não! Absolutamente — Roger disse, com uma ponta de falsidade. — com muito prazer.
A mão de Roger pairou, indecisa, acima da variedade de opções no carrinho de chá, depois se abaixou para pegar a garrafa de cristal de uísque Muir Breame de doze anos. Depois do entrevero com Fiona, achava que merecia um drinque.
— Aceitam uma dose de uísque? — perguntou às convidadas amavelmente. Notando a expressão de desagrado no rosto de Brianna, acrescentou rapidamente. — Ou então um pouco de chá?
— Chá — Brianna respondeu, aliviada.
— Não sabe o que está perdendo — Claire disse a sua filha, inalando os vapores do uísque avidamente.
— Ah, sim, eu sei — Brianna retrucou. — É por isso que estou recusando. — Encolheu os ombros e ergueu uma das sobrancelhas em direção a Roger.
— É preciso ter vinte e um anos para beber legalmente em Massachusetts — Claire explicou a Roger. — Ainda faltam oito meses para Bri, de modo que ela realmente não está acostumada com uísque.
— Você age como se fosse um crime não gostar de uísque — Brianna protestou, sorrindo para Roger por cima da xícara de chá.
Ele próprio ergueu as sobrancelhas em resposta.
— Minha cara — disse com ar severo. — Estamos na Escócia. É claro que não gostar de uísque é um crime!
— Ah, é mesmo? — disse Brianna com doçura, numa perfeita imitação do sotaque escocês ligeiramente arrastado de Roger. — Bem, esperrro que não seja um crrrime capital, cerrrto?
Pego de surpresa, ele conteve uma risada enquanto engolia um trago do uísque e engasgou-se. Tossindo e batendo no peito, olhou para Claire, compartilhando a piada. Um sorriso forçado pairava nos lábios de Claire, mas seu rosto ficara completamente lívido. Então, ela pestanejou, o sorriso voltou com mais naturalidade e o momento passou.
Roger surpreendeu-se com a facilidade com que a conversa fluía entre eles — tanto sobre trivialidades quanto em relação ao projeto de Claire. Brianna obviamente se interessara pelo trabalho do pai e sabia bem mais a respeito dos jacobitas do que sua mãe.
— É surpreendente como conseguiram chegar até Culloden — ela disse.
— Sabia que os homens das Highlands venceram a batalha de Prestonpans com menos de dois mil homens? Contra um exército inglês de oito mil? Incrível!
— Bem, e a Batalha de Falkirk também foi praticamente assim — Roger acrescentou. — Em menor número, com menos armas, marchando a pé... era de supor que nunca conseguiriam fazer o que fizeram... mas conseguiram.
— Hum, hum — disse Claire, tomando um grande gole de seu uísque.
— Conseguiram.
— Estive pensando — Roger disse a Brianna, com um ar afetadamente descontraído. — Gostaria de vir comigo visitar alguns dos locais... campos de batalha e outros lugares? São interessantes e tenho certeza de que ajudaria muito na pesquisa.
Brianna riu e ajeitou os cabelos para trás, já que pareciam ter a tendência de cair em seu chá.
— Não sei quanto à ajuda, mas adoraria ir.
— Ótimo! — Surpreso e exultante por ela ter aceitado o seu convite, tentou pegar a garrafa de uísque e quase a derrubou. Claire segurou-a agilmente e encheu seu copo com precisão.
— É o mínimo que posso fazer, depois de tê-lo derramado da última vez — disse, sorrindo em resposta aos agradecimentos de Roger.
Vendo-a agora, tranqüila e relaxada, Roger inclinava-se a duvidar de suas suspeitas anteriores. Teria sido apenas um acidente, afinal? Aquele rosto calmo e atraente nada revelava.
Meia hora depois, a mesa de chá estava uma desordem, a garrafa de uísque vazia e os três sentados, compartilhando um estado de estupor de puro contentamento. Brianna remexeu-se uma ou duas vezes, olhou para Roger e por fim perguntou se poderia usar o lavabo.
— Ah, o banheiro? Claro. — Ergueu-se com esforço, sentindo-se pesado de bolo de frutas e pão-de-ló de amêndoas. Se não fugisse logo de Fiona, iria pesar cento e cinqüenta quilos antes de voltar para Oxford.
— É do tipo antigo — ele explicou, apontando para o fim do corredor, na direção do banheiro. — com uma caixa d’água no teto e uma cordinha para puxar.
— Vi umas assim no Museu Britânico — Brianna disse, balançando a cabeça. — Só que não faziam parte do acervo, estavam no toalete feminino. — Hesitou, depois perguntou: — Você não tem o mesmo tipo de papel higiênico que tem no Museu Britânico, tem? Porque nesse caso, tenho lenços-de-papel na bolsa.
Roger fechou um dos olhos e olhou para ela com o outro.
— Ou isso é uma estranha relação — disse — ou eu bebi muito mais do que pensava. — De fato, ele e Claire haviam dado conta do Muir Breame com muito sucesso, embora Brianna tivesse se limitado ao chá.
Claire riu, ouvindo a conversa, e levantou-se para entregar a Brianna várias folhas de lenços-de-papel que tirou de sua própria bolsa.
— Não vai ser papel encerado gravado com “Propriedade do Governo de Sua Majestade”, como o do Museu, mas é provável que não seja muito melhor — disse à filha. — O papel higiênico inglês geralmente é um tanto áspero.
— Obrigada. — Brianna pegou os lenços-de-papel e dirigiu-se para a porta, mas então virou para trás. — Por que as pessoas haveriam de deliberadamente fazer um papel higiênico que parecem uma lixa? — perguntou.
— O coração de nossos homens é de carvalho — Roger entoou -, de aço inoxidável é seu traseiro. Fortalece o caráter nacional.
— No caso dos escoceses, imagino que funcione como um anestesiante hereditário dos nervos — Claire acrescentou. — O tipo de homem que pode montar um cavalo usando um kiut tem o traseiro duro como o couro de uma sela.
Brianna deu uma risadinha chiada.
— Detestaria ver o que usavam como papel higiênico naquela época — disse.
— Na verdade, não era tão ruim assim — Claire disse, causando surpresa. — As folhas do verbasco são realmente muito boas; quase tão macias quanto lenços-de-papel de folha dupla. E no inverno ou dentro de casa, em geral usava-se um pedaço de pano úmido; não muito higiênico, mas bastante confortável.
Roger e Brianna olharam-na boquiabertos por um instante.
— Ha... li num livro — ela disse, ficando espantosamente vermelha. Enquanto Brianna, ainda contendo o riso, afastava-se à procura do banheiro, Claire permaneceu de pé junto à porta.
— Foi muita gentileza sua nos receber com tanta atenção — ela disse, sorrindo para Roger. A momentânea perturbação desaparecera, substituída por sua serenidade de costume. — E muita bondade ter descoberto o paradeiro daqueles nomes para mim.
— Foi um prazer — Roger assegurou-lhe. — Uma boa alternativa às teias de aranha e bolas de naftalina. Eu a informarei assim que tiver descoberto mais alguma coisa a respeito dos seus jacobitas.
— Obrigada. — Claire hesitou, olhou por cima do ombro e abaixou a voz. — Na verdade, agora que a Bri se ausentou um instante... há uma coisa que queria lhe pedir, em particular.
Roger limpou a garganta e ajeitou a gravata que colocara em homenagem à ocasião.
— Peça — ele disse, sentindo-se alegremente expansivo com o sucesso do chá. — Estou inteiramente ao seu dispor.
— Você perguntou à Bri se ela iria com você fazer pesquisa de campo. Eu queria lhe pedir... há um lugar onde eu preferia que você não a levasse, se não se importar.
Sinais de alarme dispararam imediatamente na cabeça de Roger. Iria descobrir o segredo sobre Broch Tuarach?
— O círculo de pedras verticais que chamam de Craigh na Dun. — O rosto de Claire estava sério quando se inclinou um pouco mais perto de Roger. — Há uma razão importante ou eu não lhe pediria. Eu mesma quero levar Brianna ao círculo, mas receio que não possa lhe contar por que no momento. Contarei, no devido tempo, mas não agora. Promete?
Os pensamentos corriam céleres pela mente de Roger. Então, não era de Broch Tuarach que ela queria manter a jovem distante, afinal de contas! Um dos mistérios estava esclarecido, apenas para dar lugar a outro ainda maior.
— Se assim deseja — ele disse finalmente. — É claro.
— Obrigada. — Ela tocou em seu braço, levemente, e virou-se para ir embora. Vendo sua silhueta recortada contra a luz, lembrou-se repentinamente de uma pergunta que queria lhe fazer. Talvez o momento não fosse o mais apropriado, mas não faria mal perguntar.
— Ah, dra. Randall... Claire!
Claire virou para ele. Sem Brianna por perto para desviar sua atenção, podia ver que Claire Randall era, ela mesma, uma mulher muito bonita. Seu rosto estava afogueado do uísque e seus olhos possuíam uma cor castanho-dourada muito peculiar, ele pensou — como âmbar em cristal.
— Em todos os registros que encontrei relativos a esses homens — Roger disse, escolhendo com cuidado as palavras —, havia menção a um certo capitão James Fraser, que parece ter sido o líder. Mas ele não estava em sua lista. Fiquei pensando, você tinha conhecimento dele?
Ela ficou paralisada por um instante, fazendo-o lembrar a forma como se comportara quando chegara ali naquela tarde. Mas após um instante, estremeceu ligeiramente e respondeu com aparente tranqüilidade.
— Sim, eu tinha conhecimento dele. — Falou calmamente, mas todo o sangue fugira de seu rosto e Roger pôde notar uma palpitação rápida na base de sua garganta. — Não o coloquei na lista porque eu já sabia o que aconteceu com ele. Jamie Fraser morreu em Culloden.
— Tem certeza?
Como se estivesse ansiosa para ir embora, Claire pegou sua bolsa e lançou um olhar ao corredor, em direção ao banheiro, onde o chocalhar metálico de uma maçaneta antiga indicava os esforços de Brianna para sair.
— Sim — respondeu, sem olhar para trás. — Absoluta certeza. Ah, sr. Wakefield... quero dizer, Roger. — Virou-se de repente, fixando nele aqueles olhos de cor estranha. Naquela luz, pareciam quase amarelos, pensou; os olhos de um felino, os olhos de um leopardo.
— Por favor — disse -, não mencione Jamie Fraser à minha filha.
Era tarde e há muito tempo deveria estar na cama, mas Roger via-se incapaz de dormir. Quer fosse por causa da irritação com Fiona, das intrigantes contradições de Claire Randall ou da euforia diante da perspectiva de fazer pesquisa de campo com Brianna Randall, ele estava totalmente desperto e com grandes possibilidades de assim permanecer. Em vez de debater-se, virar-se na cama ou contar carneirinhos, decidiu dar uma boa serventia à sua vigília. Uma busca minuciosa nos papéis do reverendo provavelmente o faria dormir rápido.
A luz do quarto de Fiona no final do corredor ainda estava acesa, mas ele desceu as escadas na ponta dos pés, para não perturbá-la. Em seguida, acendendo a luz do gabinete, permaneceu parado por um instante, contemplando a magnitude da tarefa à sua frente.
A parede de cortiça exemplificava a mente do reverendo. Cobrindo inteiramente um dos lados do gabinete, era um enorme quadro de cortiça que media cerca de cinco metros por sete. Rigorosamente nenhum pedacinho da cortiça era visível sob as camadas e camadas de papéis, bilhetes, fotografias, folhas mimeografadas, contas, recibos, penas de pássaros, cantos rasgados de envelopes ostentando selos postais interessantes, etiquetas de endereços, chaveiros, cartões-postais, elásticos e outras parafernálias, tudo preso com tachas ou amarrado com pedaços de barbante.
Havia alguns pontos onde as quinquilharias atingiam doze camadas de profundidade e, ainda assim, o reverendo sempre fora capaz de colocar o dedo certeiro no item que desejava. Roger achava que a parede devia ter sido organizada segundo algum princípio subjacente tão sutil que nem os cientistas da NASA seriam capazes de discerni-lo.
Roger fitou a parede com um olhar dúbio. Não havia um ponto lógico por onde começar. Estendeu a mão sem muita certeza para uma lista mimeografada das datas de reunião da Assembléia Geral, enviada pelo escritório do bispo, mas sua atenção foi atraída pelo desenho a pastel de um dragão, completo, com artísticos rolos de fumaça projetando-se das ventas fumegantes e chamas verdes lançando-se da boca escancarada.
O nome ROGER estava escrito em letras maiúsculas grandes e irregulares no pé da folha. Lembrou-se vagamente de ter explicado que o dragão expelia fogo verde porque só comia espinafre. Deixou a lista da Assembléia Geral cair mais uma vez em seu lugar e afastou-se da parede. Podia cuidar daquela parte mais tarde.
A escrivaninha, um móvel enorme, de carvalho, de tampo corrediço, com pelo menos quarenta escaninhos abarrotados até a borda, era comparável a uma torta com muito recheio. com um suspiro, Roger puxou a surrada cadeira de escritório e sentou-se para organizar todos os documentos que o reverendo julgou que valia a pena guardar.
Uma pilha de contas ainda a pagar. Outra de papéis de caráter oficial: documentos de automóvel, relatórios de agrimensores, certificados de inspeção do prédio. Outra pilha para registros e anotações históricas. Outra para lembranças familiares. E outra — sem dúvida a maior de todas — de papéis sem valor, a serem destinados ao lixo.
Absorto em sua tarefa, não ouviu a porta abrir-se às suas costas nem passos aproximando-se. De repente, um grande bule de chá surgiu a seu lado na escrivaninha.
— Hein? — Empertigou-se, pestanejando.
— Achei que gostaria de um pouco de chá, sr. Wake... quero dizer, Roger. — Fiona colocou sobre a escrivaninha uma pequena bandeja com uma xícara e pires e um prato de biscoitos.
— Ah, obrigado. — Estava realmente com fome e lançou um sorriso amistoso a Fiona, o qual provocou um repentino afluxo de sangue em suas faces claras e rechonchudas. Aparentemente encorajada com a reação dele, não se retirou, mas empoleirou-se na borda da escrivaninha, observando-o extasiada enquanto ele prosseguia em seu trabalho, entre bocados de biscoito de chocolate.
Sentindo obscuramente que deveria reconhecer sua presença de alguma forma, Roger ergueu um biscoito parcialmente consumido e murmurou:
— Muito bom.
— Verdade? Fui eu mesma que fiz, sabe. — O vermelho das faces de Fiona acentuou-se. Uma garota atraente, Fiona. Pequena, arredondada, com cabelos escuros cacheados e grandes olhos castanhos. De repente viu-se imaginando se Brianna Randall saberia cozinhar e sacudiu a cabeça para afastar a visão.
Aparentemente tomando a reação como um gesto de descrença, Fiona inclinou-se mais para perto.
— Não, é verdade. É uma receita de minha avó. Ela sempre disse que eram os preferidos do reverendo. — Os grandes olhos castanhos toldaram-se de leve. — Ela me deixou todos os seus livros de receita e seus pertences. Eu era a única neta, sabe.
— Lamento muito por sua avó — Roger disse com sinceridade. — Foi rápido, não foi?
Fiona balançou a cabeça cheia de pesar.
— Ah, sim. Em pé como a chuva o dia inteiro, depois disse, após o jantar, que se sentia um pouco cansada e subiu para deitar-se. — A jovem ergueu os ombros e deixou-os cair. — Dormiu e nunca mais acordou.
— Uma boa maneira de ir embora — Roger disse. — Ainda bem. — A sra. Graham já era um patrimônio da casa antes mesmo da chegada de Roger, um garoto assustado, de cinco anos de idade, órfão há pouco tempo. Já de meia-idade nessa época e viúva com filhos adultos, ainda assim lhe proporcionava um abundante e sólido suprimento de afeto maternal, durante as férias escolares, quando Roger voltava à casa paroquial. Ela e o reverendo formavam um par estranho e, no entanto, haviam conseguido em definitivo transformar a velha casa num lar.
Emocionado com suas lembranças, Roger estendeu o braço e apertou a mão de Fiona. Ela correspondeu, os olhos castanhos repentinamente enternecidos. A boca pequena e rósea abriu-se um pouco e ela inclinou-se em direção a Roger, o hálito quente em sua orelha.
— Ah, obrigado — Roger falou inesperadamente. Retirou sua mão como se tivesse se queimado. — Muito obrigado. Pelo... o... ha, chá e tudo o mais. bom. Estava bom. Muito bom. Obrigado. — Ele virou-se e estendeu a mão apressado para pegar outra pilha de papéis e disfarçar o seu embaraço, agarrando um rolo de recortes de jornais de um escaninho escolhido ao acaso.
Desenrolou os recortes amarelados e espalhou-os sobre a escrivaninha, mantendo-os na posição com as palmas das mãos. Franziu ostensivamente o cenho, como se estivesse em profunda concentração, e inclinou ainda mais a cabeça em cima do texto manchado. Após um instante, Fiona levantou-se com um profundo suspiro e os seus passos recuaram em direção à porta. Roger não ergueu a cabeça.
Exalando um profundo suspiro, cerrou os olhos por alguns instantes e ofereceu uma pequena prece em agradecimento por ter escapado por um triz. Sim, Fiona era atraente. Sim, ela sem dúvida era uma excelente cozinheira. Era também enxerida, intrometida, irritante e com idéia fixa em casamento. Coloque a mão naquela pele rósea outra vez e no próximo mês já estariam publicando os proclamas. Mas se houvesse algum proclama a ser anunciado, o nome ligado a Roger Wakefield no registro da paróquia seria o de Brianna Randall, se Roger pudesse ter alguma ingerência.
Perguntando-se quanta ingerência ele realmente teria, Roger abriu os olhos e pestanejou. Pois ali, diante dele, estava o nome que visualizara num edital de casamento — Randall.
Não, é claro, Brianna Randall. Claire Randall. A manchete dizia DE VOLTA AO MUNDO DOS VIVOS. Embaixo, via-se uma foto de Claire Randall, vinte anos mais jovem, porém com praticamente a mesma aparência atual, exceto a expressão em seu rosto. Fora fotografada sentada absolutamente ereta em sua cama de hospital, os cabelos desgrenhados e esvoaçados, a boca delicada firmemente cerrada e aqueles olhos extraordinários olhando direto para a câmera.
com uma sensação de choque, Roger folheou rápido o maço de recortes, depois voltou para lê-los com todo o cuidado. Embora os jornais tivessem tratado a história com o maior sensacionalismo possível, os fatos eram escassos
Claire Randall, mulher do renomado historiador dr. Franklm W. Randall, desaparecera durante suas férias na Escócia, em Inverness, no final da primavera de 1946. O carro que estava dirigindo foi encontrado, mas ela própria desaparecera sem deixar vestígios. Todas as buscas foram inúteis, a polícia e o desesperado marido concluíram que Claire Randall fora assassinada, talvez por um mendigo errante, e seu corpo ocultado em algum lugar nos penhascos rochosos da área.
E em 1948, três anos depois, Claire Randall havia retornado. Fora encontrada, desgrenhada e vestida de trapos, vagando perto do local de onde desaparecera. Embora aparentando estar em bom estado físico, ainda que um pouco subnutrida, a sra. Randall parecia desorientada e confusa.
Erguendo ligeiramente as sobrancelhas à idéia de Claire Randall um dia ter estado confusa e incoerente, Roger folheou o resto dos recortes de jornais. Continham pouco mais do que a informação de que a sra. Randall estava sendo tratada por exposição ao tempo e choque no hospital da localidade. Havia fotografias do marido aparentemente radiante, Frank Randall. Ele parecia mais perplexo do que radiante, Roger pensou de modo crítico, não que alguém pudesse culpá-lo.
Examinou as fotos com curiosidade. Frank Randall fora um homem esbelto, bonito, com um ar aristocrático. Moreno, com uma beleza extravagante, que se evidenciava no ângulo de seu corpo, parado na porta do hospital, surpreendido pelo fotógrafo quando ia visitar sua mulher que acabara de ressurgir.
Traçou a linha do maxilar longo e estreito, a curva da cabeça, e percebeu que buscava traços de Brianna em seu pai. Intrigado pelo pensamento, ergueu-se e apanhou um dos livros de Frank Randall da estante. Voltando-se para a sobrecapa do livro, encontrou uma fotografia melhor. Na sobrecapa, via-se o retrato de Frank Randall, colorido e de perto. Não, os cabelos eram definitivamente castanho-escuros, e não ruivos. A gloriosa cabeleira flamejante devia ter vindo de um avô ou avó, junto com os olhos azul-escuros, rasgados como os de um gato. Eram lindos, mas em nada semelhantes aos de sua mãe. E tampouco como os de seu pai. Por mais que tentasse, não conseguia ver nada da deusa flamejante no rosto do famoso historiador.
Com um suspiro, guardou o livro e juntou os recortes de jornais. Precisava realmente parar de sonhar acordado e dar prosseguimento ao trabalho, ou iria ficar sentado ali pelos próximos doze meses.
Estava prestes a colocar os recortes na pilha de lembranças, quando um deles, com a manchete SEQÜESTRADA PELAS FADAS?, chamou sua atenção. Ou melhor, não o recorte, mas a data que aparecia logo acima da manchete: 6 de maio de 1948.
Recolocou o recorte na pilha vagarosamente, como se fosse uma bomba que pudesse explodir em sua mão. Cerrou os olhos e tentou evocar a conversa anterior que tivera com as Randall. “É preciso ter vinte e um anos para beber legalmente em Massachusetts”, Claire dissera. “Ainda faltam oito meses para Brianna.” Vinte, então. Brianna Randall tinha vinte anos.
Incapaz de contar para trás com suficiente rapidez, levantou-se e começou a remexer no calendário perpétuo que o vigário mantivera num espaço livre só para ele na parede atulhada. Encontrou a data e ficou parado com o dedo pressionando-a, o sangue fugindo de seu rosto.
Claire Randall retornara de seu misterioso desaparecimento desgrenhada, subnutrida, confusa... e grávida.
Com o passar do tempo, Roger enfim conseguiu dormir, mas em conseqüência das horas insones, acordou tarde, com os olhos pesados e uma dor de cabeça incipiente, que nem um banho frio nem a vivacidade de Fiona durante o café da manhã conseguiram dissipar
A sensação era tão opressiva que ele abandonou seu trabalho e saiu de casa para dar uma volta Caminhando sob uma chuva fina, viu que o ar fresco melhorara a dor de cabeça, mas infelizmente clareara sua mente o suficiente para fazê-lo começar a pensar outra vez sobre as implicações da descoberta da noite anterior
Brianna não sabia. Isso era bastante evidente, pelo modo como falava de seu falecido pai — ou sobre o homem que ela achava que era seu pai, Frank Randall. E presumivelmente Claire não queria que ela soubesse, ou ela própria teria contado à jovem. A menos que esta viagem à Escócia tivesse o objetivo de ser um prelúdio a tal confissão. O pai verdadeiro devia ter sido um escocês, afinal, Claire desaparecera — e reaparecera — na Escócia. Ele ainda estaria aqui?
Esse era um pensamento assombroso. Teria Claire trazido sua filha à Escócia a fim de apresentá-la a seu verdadeiro pai. Roger sacudiu a cabeça, duvidando. Terrivelmente arriscada, uma atitude dessas. Seria muito perturbadora para Brianna e extremamente dolorosa para a própria Claire. Iria deixar o pai apavorado também E a garota era obviamente devotada a Frank Randall. Como iria se sentir, vendo que o homem que amara e idolatrara toda a sua vida afinal de contas não tinha nenhum laço de sangue com ela?
Roger sentiu-se mal por todos os envolvidos, inclusive ele próprio. Não pediu para ter nenhuma participação naquilo e gostaria de estar no mesmo estado de abençoada ignorância de ontem. Gostava de Claire Randall, gostava muito dela, e achava detestável o fato de ter cometido adultério. Ao mesmo tempo, ele zombava de si mesmo por seu sentimentalismo antiquado. Quem saberia como era a sua vida com Frank Randall? Talvez tivesse tido uma boa razão para fugir com outro homem. Então, por que teria voltado?
Suando e deprimido, Roger voltou para casa. Tirou o casaco no corredor e subiu para tomar um banho. Às vezes, o banho servia para acalmálo e ele sentia muita necessidade de ser reconfortado.
Correu a mão pela fileira de cabides no closet, tateando em busca do ombro felpudo de seu velho roupão de banho branco. Então, parando por um instante, enfiou a mão ainda mais para o fundo do armário, arrastando os cabides ao longo do suporte até pegar o que queria.
Examinou o surrado e antigo robe com ternura. A seda amarela do fundo desbotara para um tom de ocre, mas os pavões multicoloridos continuavam tão altaneiros como sempre, abrindo suas caudas com arrogante indiferença, fitando o observador com seus olhos como contas negras. Levou o tecido macio ao nariz e inalou profundamente, cerrando os olhos. O ligeiro perfume de Borkum Riffe uísque derramado trouxeram de volta o reverendo Wakefield de uma maneira que nem mesmo a parede de quinquilharias de seu pai conseguira fazer.
Muitas foram as vezes em que sentira exatamente aquele aroma reconfortante, com um toque inconfundível de colônia Old Spice, seu rosto pressionado contra a seda macia e escorregadia, os braços gorduchos do reverendo envolvendo-o de modo protetor, prometendo-lhe refúgio. Dera todas as outras roupas de seu pai para a Oxfam, mas por algum motivo não conseguiu abrir mão daquele robe.
Num impulso, jogou o robe por cima dos ombros nus, um pouco surpreso com o seu leve calor, como a carícia de dedos por sua pele. Remexeu os ombros confortavelmente sob a seda, depois enrolou o robe bem apertado em torno do corpo, amarrando a faixa com um nó frouxo.
com o olhar atento a alguma aparição súbita de Fiona, percorreu o corredor do andar superior em direção ao banheiro. O aquecedor de água postava-se contra a cabeceira da banheira, como o guardião de uma fonte sagrada, acachapado e eterno. Outra de suas lembranças de juventude era o terror semanal de tentar acender o aquecedor com um acendedor de sílex para esquentar a água de seu banho — o gás escapando, passando por sua cabeça com seu silvo ameaçador, enquanto suas mãos, ineficientes, suadas de medo de explosão e morte iminente, escorregavam no metal do acendedor.
Há muito tempo transformado em automático por uma operação em seu misterioso interior, o aquecedor agora gorgolejava baixinho para si mesmo, o bocal do gás em sua base rugindo e soprando com a chama oculta sob a tampa de metal. Roger girou a torneira “quente” rachada até onde foi possível, acrescentou uma meia-volta da torneira “fria”, depois ficou de pé diante do espelho para analisar-se enquanto esperava a banheira encher.
Nada muito errado com ele, refletiu, encolhendo a barriga e empertigando-se diante do espelho de corpo inteiro pregado atrás da porta. Firme. Em boa forma. Pernas longas, mas não um varapau. Talvez um pouco magricela nos ombros? Franziu a testa com ar crítico, girando o corpo esbelto de um lado para o outro.
Correu a mão pela espessa cabeleira negra, até ficar eriçada como um pincel de barba, tentando visualizar-se com uma barba e cabelos compridos, como alguns de seus alunos. Ficaria com uma aparência arrojada ou meramente antiquada? Talvez um brinco, já que estava pensando nisso. Ficaria com um ar de pirata, como Edward Teach ou Henry Morgan. Juntou as sobrancelhas e arreganhou os dentes.
— Grrrrr — rosnou para a imagem refletida.
— Sr. Wakefield — disse a imagem.
Roger deu um pulo para trás, assustado, e bateu o dedo do pé contra o protuberante pé em forma de pata de animal da antiga banheira. -Ai!
— O senhor está bem, sr. Wakefield? — o espelho perguntou. A maçaneta de porcelana da porta chacoalhou.
— Claro que estou! — retrucou com impaciência, lançando um olhar furioso para a porta. — Vá embora, Fiona, estou tomando banho!
Ouviu-se uma risadinha do outro lado da porta.
— Ooooh, dois em um único dia. Alguém está muito vaidoso, não? Quer um sabonete de essência de louro? Está lá no armário, se quiser.
— Não, não quero — disse entre dentes. O nível da água alcançara o meio da banheira e ele fechou as torneiras. O silêncio repentino era calmante e ele respirou fundo, inalando o vapor da água. Contraindo-se um pouco diante da temperatura quente, entrou na água e sentou-se cautelosamente, sentindo um leve suor começar a porejar em seu rosto conforme o calor percorria seu corpo.
— Sr. Wakefield? — A voz estava de volta, trinando do outro lado da porta como um perturbador pintarroxo.
— Vá embora, Fiona — disse, rangendo os dentes; em seguida, deixou-se afundar, recostando-se na banheira. A água fumegante ergueu-se ao seu redor, reconfortante como os braços de uma amante. — Tenho tudo que preciso.
— Não, não tem — retorquiu a voz.
— Tenho, sim. — Seus olhos varreram a impressionante coleção de frascos, vidros e apetrechos alinhados na prateleira acima da banheira. — Xampu, três tipos. Condicionador. Creme de barbear. Barbeador. Sabonete para o corpo. Sabonete para o rosto. Loção pós-barba. Colônia. Desodorante. Não me falta nada, Fiona.
— E toalhas? — perguntou a voz, com um tom açucarado.
Depois de uma olhadela desesperada pelos limites — completamente desprovidos de toalhas — do banheiro, Roger fechou os olhos, cerrou os dentes e contou até dez bem devagar. Vendo que não era suficiente, continuou contando até vinte. Depois, sentindo-se em condições de responder sem espumar pela boca, disse calmamente.
— Está bem, Fiona. Coloque-as do lado de fora da porta, por favor. E depois, por favor... por favor, Fiona... vá embora.
A um ruído farfalhante do lado de fora sucedeu-se um som de passos afastando-se com relutância e Roger, com um suspiro de alívio, entregou-se às alegrias da privacidade. Paz. Tranqüilidade. Nenhuma Fiona.
Agora, capaz de pensar mais objetivamente sobre a perturbadora descoberta, viu-se mais do que curioso sobre o real e misterioso pai de Brianna. A julgar pela filha, o homem deve ter tido um raro grau de beleza física; teria apenas isso sido suficiente para atrair uma mulher como Claire Randall?
Já se perguntara se o pai de Brianna teria sido um escocês. Vivia — ou teria vivido — em Inverness? Imaginou que tal proximidade devia explicar o nervosismo de Claire e o ar de quem guardava segredos. Mas explicaria os pedidos intrigantes que ela lhe fizera? Não queria que ele levasse Brianna a Craigh na Dun nem que mencionasse o capitão dos homens de Broch Tuarach a sua filha. Mas por que não?
Um pensamento repentino o fez sentar-se ereto na banheira, negligentemente agitando e espirrando a água contra as laterais de ferro fundido. E se ela não estivesse preocupada com o soldado jacobita do século XVIII, mas apenas com seu nome? E se o homem que dera vida a sua filha em 1947 também se chamasse James Fraser? Era um nome bastante comum nas Highlands.
Sim, pensou, isso poderia muito bem explicar sua atitude. Quanto ao desejo de Claire de mostrar, ela própria, o círculo de pedras a sua filha talvez também estivesse ligado ao mistério de seu pai; talvez tenha sido lá que ela conheceu o sujeito ou talvez tenha sido lá que Brianna foi concebida. Roger sabia muito bem que o círculo de pedras era comumente usado como local de encontro; ele mesmo levara garotas lá quando estava no colégio, confiando no ar de mistério pagão do círculo para relaxar a timidez de ambos. Sempre funcionava.
Teve uma visão repentina e surpreendente das pernas alvas e elegantes de Claire Randall presas num abandono selvagem ao corpo nu, estendido, de um homem ruivo, os dois corpos escorregadios da chuva e sujos da grama esmagada, contorcendo-se em êxtase entre as pedras verticais. A visão era tão chocante em sua especificidade que o deixou trêmulo, o suor escorrendo pelo peito para desaparecer na água fumegante do banho.
Meu Deus! Como iria poder fitar Claire Randall nos olhos na próxima vez em que se encontrassem? O que iria dizer a Brianna quanto a isso? “Leu algum livro interessante ultimamente?” “Viu algum filme bom?” “Você sabe que é ilegítima?”
Sacudiu a cabeça, tentando clareá-la. A verdade é que ele não sabia como agir em seguida. Era uma situação confusa. Não queria ter nenhuma participação naquela história, no entanto, ao mesmo tempo, queria.
Gostava de Claire Randall; gostava de Brianna Randall, também — muito mais do que simplesmente gostar, para dizer a verdade. Queria protegê-la e evitar que tivesse qualquer sofrimento. No entanto, parecia não haver nenhuma maneira de conseguir isso. Tudo que podia fazer era ficar de boca fechada até que Claire Randall tivesse feito o que quer que tenha planejado. E então estar por perto para juntar os pedaços.
Imaginava exatamente quantas minúsculas lojas de chá havia em Inverness. A High Street é alinhada, dos dois lados, por uma fileira de pequenos cafés e lojas para turistas, até onde a vista pode alcançar. Desde que a rainha Vitória tornou as Highlands seguras para os viajantes dando sua aprovação real ao lugar, os turistas têm afluído para o norte em bandos cada vez maiores. Os escoceses, desacostumados a receber qualquer coisa do sul que não fossem invasões armadas e interferência política, enfrentaram magnificamente o desafio.
Não se podia andar mais do que alguns metros pela rua principal de qualquer cidade das Highlands sem encontrar uma loja vendendo biscoitos amanteigados; rock de Edimburgo; lenços bordados com cardos; gaitas de foles de brinquedo; brasões de clãs de alumínio fundido; abridores de cartas na forma das antigas espadas escocesas de dois gumes; bolsinhas de moedas imitando as bolsas de pêlo que os escoceses usam na frente dos saiotes; e uma atordoante variedade de falsos tartãs de clãs, adornando cada objeto concebível feito de tecido — de bonés, gravatas e guardanapos até cuecas de náilon, daquelas com abertura em forma de Y invertido, feitas com um xadrez tipo “Buchanan”, amarelo, particularmente horroroso.
Examinando um sortimento de toalhas de chá pintadas com uma ilustração terrivelmente malfeita do monstro do lago Ness cantando “Auld Lang Syne”, pensei comigo mesma que Vitória era a responsável por tudo aquilo.
Brianna caminhava devagar pelo corredor estreito da loja, a cabeça inclinada para trás enquanto fitava espantada a diversidade de mercadorias penduradas das vigas do teto.
— Acha que são reais? — perguntou, apontando para cima, para um conjunto de chifres de veado presos numa armação, as pontas das galhadas enfiando-se com curiosidade por uma completa floresta de bordões de gaitas de foles.
— Os chifres de veados? Ah, sim. Não acredito que a tecnologia da indústria de plásticos já tenha atingido essa perfeição — respondi. — Além do mais, veja o preço. Qualquer coisa acima de cem libras muito provavelmente é real.
Os olhos de Brianna arregalaram-se e ela abaixou a cabeça.
— Nossa! Acho que, em vez disso,vou levar um pedaço de tartã para Jane fazer uma saia.
— Um tartã de lã de boa qualidade não vai custar muito menos — eu disse secamente -, mas será bem mais fácil de levar para casa no avião. Então, vamos atravessar a rua até a loja do fabricante de kilts; eles terão a melhor qualidade.
Começara a chover — é claro -, e nós enfiamos nossos pacotes embrulhados em papel embaixo de nossas capas de chuva que eu prudentemente insistira que usássemos. Brianna achou graça.
— A gente fica tão acostumada a chamar essas capas emborrachadas de “mães” que até se esquece de como se chamam realmente. Não me surpreende que tenha sido um escocês a inventá-las — acrescentou, erguendo os olhos para a cortina de água que caía da borda da marquise. — Aqui chove o tempo todo?
— Praticamente — eu disse, olhando de um lado para o outro através do aguaceiro para os carros que se aproximavam. — Embora eu sempre tenha achado o sr. Macintosh um tipo um tanto pusilânime, a maioria dos escoceses que conheci eram relativamente impermeáveis à chuva. — Mordi o lábio repentinamente, mas Brianna não notara o deslize, embora pequeno; examinava a enxurrada que corria pela sarjeta e que chegaria à altura do tornozelo.
-vou lhe dizer uma coisa, mamãe, acho melhor irmos para o cruzamento. Não vamos conseguir atravessar aqui, fora da faixa de pedestres.
Anuindo com um movimento da cabeça, segui-a rua acima, o coração batendo com a adrenalina embaixo da cobertura pegajosa da minha capa. Quando você vai acabar com isso?, minha mente reclamava. Não pode ficar policiando suas palavras e engolindo metade das frases que começa a dizer. Por que não contar a ela simplesmente?
Ainda não, pensei comigo mesma. Não sou covarde — ou se sou, isso não vem ao caso. Mas ainda não chegou exatamente a hora. Eu queria que ela conhecesse a Escócia primeiro. Não esta parte — quando passamos por uma loja oferecendo uma ampla variedade de botinhas de tartã para crianças -, mas o campo. E Culloden. Mais do que tudo, quero poder lhe contar o fim da história. E para isso eu preciso de Roger Wakefield.
Como se meus pensamentos o tivessem invocado e materializado, o teto laranja de um Morris surrado chamou minha atenção no estacionamento à esquerda, brilhando como uma baliza do tráfego na chuva brumosa.
Brianna também o vira — não podia haver muitos carros em Inverness naquele lamentável estado e naquela cor específica — e apontou para ele dizendo:
— Olhe, mamãe, não é o carro de Roger Wakefield?
— Sim, acho que é — eu disse. Havia um café à direita, de onde o cheiro de pãezinhos frescos, torradas e café flutuava para a rua, misturando-se ao ar puro e chuvoso. Agarrei o braço de Brianna e puxei-a para dentro do café
— Acho que estou com fome — expliquei. — Vamos tomar chocolate quente com biscoitos
Ainda criança o suficiente para se deixar tentar por chocolate e bastante jovem para estar disposta a comer a qualquer hora, Bri não protestou, mas sentou-se imediatamente e pegou a folha de papel verde manchada de chá que servia como o menu diário.
Eu não queria especificamente chocolate quente, mas precisava de um ou dois minutos para pensar. Havia uma grande placa na parede de concreto do estacionamento do outro lado da rua que dizia ESTACIONAMENTO EXCLUSIVO PARA A FERROVIA, seguido de várias ameaças em letras minúsculas quanto ao que aconteceria aos veículos das pessoas que estacionassem ali sem serem passageiros do trem A menos que Roger soubesse alguma coisa sobre as forças da lei e da ordem em Inverness que eu não sabia, as chances eram de que ele havia tomado um trem. Admitindo-se que ele tivesse ido a algum lugar, tanto podia ser Edimburgo quanto Londres. O pobre rapaz estava levando o projeto de pesquisa a sério.
Nós mesmas havíamos tomado o trem em Edimburgo. Tentei me lembrar do horário dos trens, sem nenhum sucesso.
— Será que Roger voltará no trem da tarde? — Bri perguntou, fazendo eco a meus pensamentos de uma forma tão surpreendente que me fez engasgar com o chocolate quente. O fato de ela estar pensando no reaparecimento de Roger me fez pensar em quanto ela estaria de fato interessada no jovem sr. Wakefield.
Aparentemente, bastante.
— Eu estava pensando — disse de modo casual -, talvez devêssemos comprar alguma coisa para Roger Wakefield enquanto estamos na rua, como agradecimento pelo projeto que ele está pesquisando para você.
— Boa idéia — eu disse, achando graça. — O que você acha que ele gostaria?
Ela franziu a testa enquanto tomava seu chocolate, como se buscasse inspiração.
— Não sei. Algo bonito, parece que esse projeto pode dar muito trabalho — Ergueu os olhos para mim subitamente, as sobrancelhas arqueadas. Por que pediu a ele? — ela perguntou. — Se queria localizar pessoas do século XVIII, há firmas que fazem isso. Mapas genealógicos e coisas assim, quero dizer. Papai sempre usava a Scot-Search, se tivesse que descobrir uma genealogia e não tivesse tempo de fazer ele mesmo.
— Sim, eu sei — eu disse, respirando fundo. Estávamos pisando em areia movediça ali — Este projeto, era algo especial para... para o seu pai. Ele iria querer que Roger Wakefield cuidasse disso.
— Ah. — Ela ficou em silêncio por um instante, observando a chuva respingar e formar gotículas nas janelas do café.
— Você sente falta do papai? — ela perguntou de repente, o nariz enfiado na xícara, as pestanas abaixadas para evitar olhar para mim.
— Sim — eu disse. Corri o dedo indicador pela borda de minha própria xícara, limpando um pingo de chocolate que havia derramado. — Nós nem sempre nos demos bem, você sabe disso, mas. sim. Nós nos respeitávamos; isso vale muito. E gostávamos um do outro, apesar de tudo. Sim, eu sinto sua falta.
Ela balançou a cabeça, calada, e colocou a mão sobre a minha, apertando-a de leve. Envolvi meus dedos nos seus, longos e quentes, e ficamos ali sentadas, momentaneamente ligadas, tomando pequenos goles de chocolate quente em silêncio.
— Sabe — eu disse por fim, empurrando minha cadeira para trás com um rangido de metal sobre linóleo —, tinha me esquecido de uma coisa. Preciso colocar uma carta no correio para o hospital. Pensei em fazer isso no caminho para a cidade, mas me esqueci. Se eu correr, acho que ainda pego o último correio que sai hoje. Por que você não vai indo para a loja de kilts? É logo ali mais abaixo na rua, na outra calçada. Encontro-me com você lá depois que sair do correio, está bem?
Bri pareceu surpresa, mas assentiu prontamente.
— Ah OK. Mas o correio não fica longe daqui? Vai ficar encharcada
— Tudo bem. Eu pego um táxi.
Deixei uma nota de uma libra na mesa para pagar o lanche e vesti a capa de novo.
Na maioria das cidades, a reação costumeira dos táxis à chuva é desaparecerem, como se fossem solúveis em água. Em Inverness, no entanto, tal comportamento acarretaria rápido a extinção da espécie. Eu havia caminhado menos de um quarteirão quando encontrei dois táxis pretos, pequenos e robustos, furtivamente emboscados na porta de um hotel. Entrei no interior aquecido, cheirando a tabaco, com uma aconchegante sensação de familiaridade. Além do espaço maior para as pernas e do conforto, os táxis britânicos tinham um cheiro diferente dos táxis americanos; uma dessas minúcias que eu nunca percebera que sentira falta nesses últimos vinte anos.
— Número sessenta e quatro? É a velha casa paroquial, não é?
Apesar da eficiência da calefação do carro, o motorista estava enrolado até as orelhas num cachecol e num casaco grosso, com um gorro achatado protegendo o topo de sua cabeça das correntes de vento extraviadas. Os escoceses modernos haviam se tornado mais frágeis, refleti; muito diferentes da época em que os vigorosos homens das Highlands dormiam nas urzes com nada além de uma camisa e uma manta escocesa. Por outro lado, eu também não estava ansiosa para ir dormir nas urzes com uma manta úmida. Fiz um sinal para o motorista com a cabeça e partimos espadanando água.
Senti-me um pouco subversiva, fugindo sorrateiramente para entrevistar a governanta de Roger enquanto ele estava fora e, no processo, enganando Bri. Por outro lado, seria difícil explicar a qualquer um dos dois precisamente o que eu estava fazendo. Não havia determinado ainda exatamente como ou quando eu lhes diria o que tinha a lhes dizer, mas eu sabia que ainda não havia chegado a hora.
Meus dedos tatearam o interior do bolso da minha capa, tranqüilizados pelo barulho do papel do envelope da Scot-Search. Embora eu não tivesse prestado muita atenção ao trabalho de Frank, eu conhecia a firma, que mantinha um quadro de meia dúzia de pesquisadores profissionais especializados em genealogia escocesa; não o tipo de firma que lhe dá uma árvore genealógica mostrando seu parentesco com um antigo rei da Escócia e ponto final.
Eles haviam feito seu trabalho minucioso e discreto sobre Roger Wakefield. Eu sabia quem eram seus pais e avós, até a sétima ou oitava geração. O que eu não sabia era como ele era. O tempo me daria a resposta.
Paguei a corrida e fui chapinhando pelo caminho inundado até os degraus da velha casa do reverendo. O pórtico estava seco e, depois de ter tocado a campainha, tive a oportunidade de sacudir grande parte da água da minha capa antes de a porta abrir.
Fiona recebeu-me com um sorriso radiante; ela possuía o tipo de rosto redondo, alegre, cuja expressão natural era sorridente. Vestia jeans e um avental cheio de babados, e o cheiro de detergente de limão e de fornadas de pães e biscoitos soprava de suas pregas como incenso.
— Ora, sra. Randall! — exclamou. — Posso ajudá-la de alguma forma?
— Acho que talvez possa, Fiona — eu disse. — Queria conversar com você sobre sua avó.
— Tem certeza de que está bem, mamãe? Eu poderia ligar para o Roger e pedir-lhe para irmos amanhã, se quiser que eu fique aqui com você. — Brianna pairava na soleira da porta do quarto da pousada, uma expressão de ansiedade na testa franzida. Estava vestida para caminhar, de botas, jeans e suéter, mas acrescentara a esplêndida echarpe de seda azul e laranja que Frank comprara para ela em Paris, pouco antes de sua morte há dois anos.
“Exatamente da cor dos seus olhos, princesinha”, ele dissera, sorrindo enquanto passava a echarpe em torno de seus ombros. Era uma brincadeira entre eles, o “princesinha”, quando Bri ultrapassara os modestos um metro e setenta e sete centímetros de Frank aos quinze anos de idade. Entretanto, era assim que ele a chamava desde criança e a ternura do tratamento permaneceu mesmo quando ele passou a ter que erguer o braço para tocar a ponta do seu nariz.
A parte azul da echarpe é que era na verdade da cor de seus olhos; cor dos lagos e dos céus de verão escoceses, e do azul-escuro de montanhas distantes. Eu sabia que ela adorava a echarpe e refiz minha avaliação de seu interesse em Roger Wakefield vários pontos para cima.
— Não, euvou ficar bem — afirmei. Abanei a mão na direção da mesinha-de-cabeceira, adornada com um pequeno bule de chá, mantido aquecido com todo o cuidado com uma tampa de crochê no bico, e um porta-torradas de prata, também cuidadosamente conservando as torradas.
— A sra. Thomas me trouxe chá e torradas; talvez eu consiga comer um pouco mais tarde. — Esperava que ela não pudesse ouvir o ronco no meu estômago vazio embaixo das cobertas, registrando uma descrença perplexa diante dessa perspectiva.
— Então, está bem. — Virou-se relutante da porta. — Mas vamos voltar direto de Culloden.
— Não precisam se apressar por minha causa — eu disse enquanto ela se afastava.
Esperei até ouvir o barulho da porta da rua se fechar e ter certeza de que ela já se fora. Somente então enfiei a mão na gaveta da mesinha-de-cabeceira para pegar a enorme barra Hershey de chocolate com amêndoas que escondera ali na noite anterior.
Restabelecidas as relações cordiais com meu estômago, recostei-me no travesseiro, preguiçosamente observando a névoa cinza se espessar no céu lá fora. A ponta de um ramo florescente de tília batia às vezes contra a vidraça; o vento estava aumentando. O quarto estava bem aquecido, com a saída da calefação central roncando ao pé da cama, mas ainda assim estremeci. Estaria frio no Campo de Culloden.
Talvez não tão frio como estava em abril de 1746, quando o príncipe Carlos Eduardo conduziu seus homens àquele campo, para se defrontarem com a congeladora mistura de chuva com neve e o rugido do fogo dos canhões ingleses. Os relatos da data informavam que o frio era cortante e que os escoceses feridos foram amontoados com os mortos, encharcados de chuva e sangue, à espera da compaixão dos conquistadores. O duque de Cumberland, no comando do exército inglês, não tivera nenhuma clemência com os vencidos.
Os mortos foram empilhados como lenha e queimados para impedir a disseminação de doenças e dizia-se que muitos dos feridos tiveram destino semelhante, sem a bênção de um tiro de misericórdia. Todos eles jaziam agora além do alcance da guerra ou do tempo, sob o gramado do Campo de Culloden.
Eu vira o lugar uma vez, há quase trinta anos, quando Frank me levara até lá em nossa lua-de-mel. Agora, Frank também estava morto e eu trouxera minha filha de volta à Escócia. Eu queria que Brianna conhecesse Culloden, mas nada no mundo me faria colocar os pés naquele lugar fatal outra vez.
Achei melhor permanecer na cama, para manter a credibilidade na repentina indisposição que me impedira de acompanhar Brianna e Roger em sua expedição; a sra. Thomas podia dar com a língua nos dentes se eu me levantasse e fizesse um pedido de almoço. Espiei dentro da gaveta; mais três barras de doces e um romance policial. com sorte, me ajudariam a atravessar o dia.
O romance era bastante bom, mas o zunido do vento cada vez mais forte do lado de fora era hipnótico e o abraço da cama quente era acolhedor. Adormeci tranqüilamente, para sonhar com homens das Highlands vestidos de kilt e o som aveludado de conversas em escocês, a fala macia puxando os “erres” em volta de uma lareira, como o zumbido de abelhas nas urzes.
Que carinha gorducha e malvada! — Brianna inclinou-se para espreitar fascinada o manequim de casaco vermelho ameaçadoramente postado em um dos lados do saguão do Centro de Visitantes de Culloden. A figura tinha menos de um metro e sessenta, peruca empoada empurrada hostilmente para frente por cima da fronte baixa e bochechas caídas, pintadas de rosa.
— Bem, ele era um sujeito baixo e gordo — Roger concordou, divertindo-se. — Mas um general e tanto, ao menos em comparação com seu elegante primo lá do outro lado. — Abanou a mão indicando a figura mais alta de Carlos Eduardo Stuart do outro lado do saguão, o olhar fidalgo perdido ao longe, sob o chapéu de veludo azul com sua fita branca, orgulhosamente ignorando o duque de Cumberland.
— Era chamado de “Billy, o Carniceiro”. — Roger indicou o duque, impassível em suas calças brancas na altura dos joelhos e casaco coberto de galões dourados. — E com muita razão. Além do que fizeram aqui — ele fez um gesto largo abrangendo toda a extensão do terreno verdejante lá fora, agora sombreado pelas nuvens escuras no céu —, os homens de Cumberland foram responsáveis pelo pior reinado de terror jamais visto nas Highlands. Perseguiram os sobreviventes da batalha, empurrando-os de volta para as montanhas, queimando e saqueando em seu caminho. Mulheres e crianças foram deixadas para morrer de fome e os homens abatidos onde estivessem, sem nenhuma preocupação de descobrir se haviam ou não lutado por Carlos. Um dos contemporâneos do duque disse que “ele criava um deserto e chamava aquilo de paz”. Acho que o duque de Cumberland ainda é bastante impopular por aqui.
Isso era verdade; o curador do museu para os visitantes, um amigo de Roger, dissera-lhe que, enquanto a figura do príncipe Carlos era tratada com respeito reverente, os botões do casaco do duque eram sujeitos a freqüentes desaparecimentos e a própria figura era alvo de muitas piadas ofensivas.
— Ele disse que uma vez chegou aqui mais cedo e, quando acendeu a luz, deparou-se com uma genuína adaga das Highlands enfiada na barriga de Sua Excelência — Roger disse, balançando a cabeça na direção do gordo homenzinho. — Disse que levou um tremendo susto.
— Posso imaginar — Brianna murmurou, olhando para o duque com as sobrancelhas erguidas. — As pessoas ainda levam isso a sério?
— Ah, sim. Os escoceses têm memória longa e não são um povo que perdoe com facilidade.
— Verdade? — Olhou-o com curiosidade. — Você é escocês, Roger? Wakefield não soa como um nome escocês, mas há alguma coisa na maneira como fala do duque de Cumberland... — Havia um sorriso quase imperceptível no canto de sua boca e ele não tinha certeza se ela estava caçoando dele, mas respondeu com toda a seriedade.
— Ah, sim. — Sorriu. — Sou escocês. Wakefield não é meu verdadeiro nome, sabe. O reverendo me deu seu nome quando me adotou. Ele era tio de minha mãe. Quando meus pais morreram na guerra, ele me trouxe para viver com ele. Mas o meu nome original é MacKenzie. Quanto ao duque de Cumberland... — ele balançou a cabeça na direção da janela de vidro laminado, através da qual os monumentos do Campo de Culloden eram perfeitamente visíveis. — Há uma lápide de clã lá fora com o nome MacKenzie gravado e muitos parentes meus enterrados embaixo.
Estendeu a mão e deu um piparote nas franjas de uma dragona dourada, deixando-a balançar-se.
— Não levo a questão a um nível tão pessoal quanto algumas pessoas, mas também não me esqueci. — Estendeu a mão para ela. — Vamos lá fora?
Estava frio do lado de fora, com rajadas de vento que açoitavam duas bandeiras militares esvoaçando no alto de mastros fincados de cada um dos lados do terreno. Uma amarela, outra vermelha, assinalavam as posições dos dois comandantes atrás de suas tropas, esperando o desfecho da batalha.
— Bem longe do caminho, pelo que vejo — Brianna observou secamente. — Sem nenhum perigo de estar na rota de uma bala perdida.
Roger notou que ela tremia e puxou a mão em seu braço para junto do seu corpo, trazendo-a para mais perto. Pensou que iria explodir com a repentina onda de felicidade que o fato de tocá-la lhe proporcionava, mas tentou disfarçar refugiando-se num monólogo histórico.
— Bem, era assim que os generais comandavam as tropas naquela época, da retaguarda. Especialmente Carlos; fugiu em tamanha disparada no fim da batalha que deixou para trás seu conjunto de piquenique de prata de lei.
— Um conjunto de piquenique? Ele trouxe um piquenique para a batalha?
— Ah, sim. — Roger descobriu que ele gostava muito de ser escocês para Brianna. Em geral, esforçava-se para modular o seu sotaque segundo o genérico “discurso de Oxbridge”, de Oxford e Cambridge, que usava na universidade, mas agora estava deixando-o correr a rédeas soltas só para ver o sorriso que atravessava o rosto de Brianna ao ouvi-lo.
— Sabe por que o chamavam de “Prince Charlie”? — Roger perguntou.
— Os ingleses sempre acharam que era um apelido carinhoso, mostrando o quanto seus homens o amavam.
— E não era?
Roger sacudiu a cabeça.
— Na verdade, não. Seus homens o chamavam de príncipe Tcharlach — soletrou a palavra cuidadosamente — que é a forma gaélica de Charles. Tcharlach mac Seamus, “Charles, filho de James”. Na realidade, muito formal e respeitoso. A questão é que Tcharlach em gaélico soa muito parecido com “Charlie” em inglês.
Brianna riu.
— Então ele nunca foi “Bonnie Prince Charlie”?
— Não na época. — Roger encolheu os ombros. — Agora ele é, obviamente. Um desses pequenos erros históricos que é aceito como fato. Há muitos iguais a esse.
— E você é um historiador! — Brianna disse, com ar de troça. Roger sorriu ironicamente.
— É por isso que eu sei.
Prosseguiram devagar pelos caminhos de cascalhos que atravessavam o campo de batalha, Roger indicando as posições dos diferentes regimentos que haviam lutado ali, explicando a ordem de batalha, recontando pequenas anedotas dos comandantes.
Enquanto caminhavam, o vento amainou e o silêncio do campo começou a se afirmar. Gradualmente, a conversa entre eles também cessou, até trocarem apenas algumas palavras de vez em quando, em voz baixa, quase sussurrando. O céu estava carregado e cinzento de nuvens de horizonte a horizonte e tudo sob sua abóbada parecia emudecido, restando apenas o murmúrio das plantas da charneca falando com as vozes dos homens que as alimentavam.
— Este é o lugar denominado “Poço da Morte”. — Roger inclinou-se junto à pequena fonte. Não cobrindo sequer uma área de trinta centímetros de lado, era um laguinho de água escura, brotando de baixo de uma formação rochosa. — Um dos chefes escoceses morreu aqui. Seus seguidores lavaram o sangue de seu rosto com a água desta fonte. E lá estão os túmulos dos clãs.
As pedras tumulares dos clãs eram grandes rochas de granito cinza, arredondadas pelo tempo e manchadas de liquens. Estavam assentadas em lotes de grama lisa e macia, espalhadas por uma grande extensão na borda do terreno. Cada uma ostentava um único nome, o entalhe tão desgastado pelo tempo que se tornaram quase ilegíveis em alguns casos. MacGillivray. MacDonald. Fraser. Grant. Chisholm. MacKenzie.
— Olhe — Brianna disse, quase num sussurro. Apontou para uma das pedras. Um punhado de galhos finos, cinza-esverdeado, jazia ali; algumas das primeiras flores da primavera misturavam-se, murchas, aos pequenos galhos.
— Urzes — Roger disse. — São mais comuns no verão, quando florescem. Então, você vê montículos como esse diante da pedra de cada clã. Roxas e, aqui e ali, um galho de urze branca. O branco significa sorte e também majestade, realeza; era o emblema de Carlos, ela e a rosa branca.
— Quem as coloca ali? — Brianna agachou-se sobre os tornozelos junto ao caminho, tocando os galhos delicadamente.
— Visitantes. — Roger agachou-se a seu lado. Correu o dedo pelas letras desgastadas na pedra, FRASER. — Descendentes das famílias dos homens que foram mortos aqui. Ou simplesmente aqueles que gostam de lembrá-los.
Ela olhou-o de esguelha, os cabelos esvoaçando ao redor de seu rosto.
— Você já fez isso?
Ele abaixou os olhos, sorrindo para as mãos soltas entre os joelhos.
— Já. Suponho que seja muito sentimental, mas faço isso, sim. Brianna voltou-se para o bosque cerrado de plantas da charneca que ladeava o caminho no outro lado.
— Mostre-me qual é a urze — ela disse.
No caminho de volta para casa, a melancolia de Culloden dispersou-se, mas a sensação de sentimentos compartilhados permaneceu, e eles conversaram e riram juntos como velhos amigos.
— Que pena que mamãe não pôde vir conosco — Brianna observou quando entraram na rua da pousada.
Embora gostasse muito de Claire Randall, Roger não concordava absolutamente que era uma pena que ela não tivesse vindo com eles. Três, ele pensou, teria sido uma multidão, com certeza. Mas emitiu um grunhido evasivo e pouco depois perguntou:
— Como está sua mãe? Espero que não esteja seriamente doente.
— Ah, não, é apenas uma indisposição estomacal; ao menos, foi o que ela disse. — Brianna franziu o cenho consigo mesma por um instante, depois voltou-se para Roger, colocando a mão de leve sobre sua perna. Ele sentiu os músculos estremecerem do joelho à virilha e teve uma grande dificuldade de prestar atenção ao que ela dizia. Ainda falava de sua mãe.
— ...Acho que ela está bem — concluiu. Sacudiu a cabeça e o brilho do cobre cintilou das ondulações dos seus cabelos, mesmo à luz turva do carro. — Não sei. Ela parece muito preocupada. Não exatamente doente, é mais como se estivesse preocupada com alguma coisa.
Roger sentiu um peso repentino na boca do estômago.
— Mrnmhum — ele disse. — Talvez por estar afastada do seu trabalho. Tenho certeza de que vai ficar tudo bem. — Brianna sorriu para ele com gratidão quando pararam em frente à pequena casa de pedras da sra. Thomas.
— Foi maravilhoso, Roger — ela disse, tocando levemente em seu ombro. — Mas não havia muita coisa lá para ajudar no projeto da mamãe. Posso ajudá-lo a colocar a mão na massa?
Roger sentiu o espírito consideravelmente mais leve e sorriu para ela.
— Acho que isso pode ser arranjado. Quer vir amanhã e dar uma busca na garagem comigo? Se o que você quer é sujar-se, dificilmente vai conseguir algo mais apropriado.
— Ótimo. — Ela sorriu, apoiando-se no carro para voltar a olhar para dentro. — Talvez mamãe queira ir ajudar também.
Ele sentiu os músculos do rosto se retesarem, mas continuou sorrindo galhardamente.
— Certo — disse. — Ótimo. Assim espero.
Na verdade, Brianna foi sozinha à casa paroquial no dia seguinte.
— Mamãe está na biblioteca pública — ela explicou. — Consultando velhos catálogos telefônicos. Ela está tentando localizar alguém que conhecia.
O coração de Roger deu um pequeno salto diante do que ouviu. Ele verificara o catálogo telefônico do reverendo na noite anterior. Havia três entradas locais para o nome “James Fraser” e mais duas com o primeiro nome diferente, mas a inicial do meio “J”.
— Bem, espero que ela o encontre — disse, ainda tentando parecer descontraído. — Tem certeza de que quer ajudar? É um trabalho maçante e sujo. — Roger olhou em dúvida para Brianna, mas ela balançou a cabeça confirmando, nem um pouco aflita diante da perspectiva.
— Eu sei. Eu costumava ajudar meu pai às vezes, vasculhando registros antigos e procurando notas de rodapé. Além do mais, o projeto é da mamãe; o mínimo que posso fazer é ajudá-lo com ele.
— Está bem. — Roger abaixou os olhos para sua camisa branca. Deixe-me trocar de roupa e iremos dar uma olhada.
A porta da garagem rangeu, gemeu, então se rendeu ao inevitável e enroscou-se subitamente para cima, entre guinchos agudos de molas e nuvens de poeira.
Brianna abanou as mãos para frente e para trás diante do rosto, tossindo.
— Credo! — exclamou. — Quanto tempo faz que a última pessoa entrou neste lugar?
— Séculos, imagino. — Roger respondeu distraidamente. Passeou a lanterna pelo interior da garagem, iluminando por breves instantes pilhas de caixas de papelão e engradados de madeira, antigos baús de viagens de navio salpicados de etiquetas descascadas e fardos amorfos cobertos com lona. Aqui e ali, pernas de móveis viradas para cima despontavam na obscuridade como os esqueletos de pequenos dinossauros projetando-se de suas formações rochosas nativas.
Havia uma espécie de fresta no entulho; Roger foi avançando lentamente nessa direção e logo desapareceu em um túnel delimitado por sombras e poeira, seu progresso foi assinalado pelo pálido círculo de luz de sua lanterna, à medida que surgia intermitentemente no teto. Finalmente, com um grito de triunfo, agarrou a ponta de uma corda pendurada acima dele e de repente a garagem foi iluminada pelo clarão de uma enorme lâmpada.
— Por aqui — Roger disse, reaparecendo bruscamente e puxando Brianna pela mão. — Há uma espécie de clareira nos fundos.
Havia uma mesa antiga encostada na parede dos fundos. Talvez originalmente a peça central da sala de jantar do reverendo Wakefield, evidentemente sofrera diversas e sucessivas encarnações como mesa de cozinha, bancada de ferramentas, cavalete de serrador e mesa de pintura, antes de ir repousar naquele santuário empoeirado. Acima da mesa, havia uma janela recoberta de teias de aranha, através da qual uma claridade turva incidia sobre a superfície retalhada e manchada de tinta.
— Podemos trabalhar aqui — Roger disse, arrancando um banquinho da confusão e limpando-o superficialmente com um grande lenço. — Sente-se e euvou ver se consigo abrir um pouco a janela; caso contrário, vamos ficar sufocados aqui dentro.
Brianna assentiu, mas, em vez de sentar-se, começou a cutucar com curiosidade as pilhas de entulho mais próximas, enquanto Roger empurrava a armação empenada da janela. Ele podia ouvi-la às suas costas, lendo as etiquetas em algumas das caixas.
— Aqui é de 1930 a 33 — disse. — Raqui de 1942 a 46. O que são?
— Diários — Roger disse, grunhindo enquanto escorava os cotovelos no peitoril imundo da janela. — Meu pai, quero dizer, o reverendo, sempre mantinha um diário. Atualizava-o toda noite após o jantar.
— Parece que ele encontrou muitas coisas sobre as quais escrever. Brianna içou e trouxe para baixo várias caixas, empilhando-as ao lado, a fim de inspecionar a camada seguinte. — Aqui está um monte de caixas com nomes nas etiquetas: “Kerse”, “Livingston”, “Balnain”. Paroquianos?
— Não. Vilas. — Roger interrompeu seus esforços por uns instantes, arquejante. Limpou a testa, deixando uma listra de sujeira ao longo da manga da camisa. Felizmente, ambos vestiam roupas velhas, adequadas para remexer na imundície. — São anotações sobre a história de várias vilas das Highlands. Algumas dessas caixas, na verdade, acabaram como livros; você pode encontrá-los em algumas lojas para turistas pelas Highlands.
Ele virou-se para um quadro de onde pendia uma variedade de ferramentas dilapidadas e selecionou uma enorme chave de fenda para ajudá-lo em seu ataque à janela.
— Procure as que dizem “Registros Paroquiais” — ele aconselhou. — Ou as que têm nomes de vilas na região de Broch Tuarach.
— Não conheço nenhuma das vilas da região — Brianna ressaltou.
— Ah, sim, ia me esquecendo. — Roger enfiou a ponta da chave de fenda entre as bordas da esquadria da janela, escavando sem piedade as muitas camadas de pintura antiga. — Procure os nomes de Broch Mordha... humm, Mariannan e... oh, St. Kilda. Há outras, mas sei que essas tinham igrejas razoavelmente grandes que foram fechadas ou demolidas.
— OK. — Afastando uma aba solta de lona, Brianna de repente deu um salto para trás com um grito agudo.
— O quê? O que foi? — Roger girou-se imediatamente na direção de Brianna, a chave de fenda em riste.
— Não sei. Alguma coisa saiu correndo quando toquei na lona — disse Brianna, apontando, e Roger abaixou sua arma, aliviado.
— Ah, isso? Um camundongo, provavelmente. Talvez um rato.
— Um rato! Há ratos aqui? — A agitação de Brianna era visível.
— Bem, espero que não, porque se houver, terão comido os registros que estamos procurando — Roger retrucou. Entregou-lhe a lanterna. Tome, ilumine qualquer canto escuro; ao menos, não será pega de surpresa.
— Muito obrigada. — Brianna aceitou a lanterna, mas continuou olhando as pilhas de caixas com alguma relutância.
— Bem, então, prossiga — Roger disse. — Ou vai querer que eu declame uma sátira do rato agora mesmo?
O rosto de Brianna iluminou-se num largo sorriso.
— Uma sátira do rato? O que é isso?
Roger adiou sua resposta, o tempo suficiente para uma nova tentativa de abrir a janela. Empurrou até sentir os bíceps forçando o tecido das mangas da camisa, mas finalmente, com um guincho agudo, a janela cedeu e uma revigorante corrente de ar fresco soprou para dentro da garagem pela abertura de quinze centímetros que ele criara.
— Nossa, assim é bem melhor. — Ele se abanou exageradamente, rindo para Brianna. — Bem, vamos continuar?
Ela entregou-lhe a lanterna e recuou um passo.
— Que tal você encontrar as caixas e eu examiná-las? E o que é uma sátira do rato?
— Covarde — ele disse, curvando-se para inspecionar embaixo da lona.
— Uma sátira do rato é um antigo costume escocês; se houvesse ratos ou camundongos em sua casa no celeiro, você podia fazer com que fossem embora compondo um poema, ou cantando, para dizer aos ratos como a comida era pouca onde eles estavam e como era boa em algum outro lugar. Você lhes dizia para onde deveriam ir e como chegar lá. Acreditava-se que, se a sátira fosse bastante boa, eles iriam embora.
Ele puxou uma caixa com a etiqueta JACOBITAS, MISCELÂNEA e carregou-a para a mesa, cantando:
Vocês ratos, são muitos e demais,
E se querem jantar mais,
Vocês têm que sair, têm que sair.
Largando a caixa sobre a mesa com um baque surdo, fez uma mesura em resposta à risada de Brianna e voltou para as pilhas, continuando numa voz retumbante:
Vão para a horta dos Campbell, Onde não há nenhum gato na linha E a couve cresce verdinha.
Vão e encham a pança,
Não fiquem aqui comendo minhas galochas.
Vão embora, ratos, vão!
Brianna deu uma risada resfolegante, divertindo-se.
— Você acabou de inventar isso?
— Claro. — Roger depositou outra caixa sobre a mesa com um floreio.
— Uma boa sátira do rato sempre deve ser original. — Lançou um olhar às compactas fileiras de caixas de papelão. — Depois dessa atuação, não deve haver mais nenhum rato num raio de quilômetros deste lugar.
— Ótimo. — Brianna retirou um canivete do bolso e cortou a fita adesiva que fechava a caixa mais alta. — Você devia cantar uma dessas lá na pousada; mamãe diz que tem certeza que há camundongos no banheiro. Alguma coisa roeu sua caixa de sabonete.
— Só Deus sabe o que seria preciso para desalojar um camundongo capaz de comer sabonete; está muito além dos meus frágeis poderes, eu acho. — Rolou um pufe esfarrapado de trás de uma pilha oscilante de enciclopédias obsoletas e deixou-se cair pesadamente ao lado de Brianna. — Tome, fique com os registros das paróquias, são um pouco mais fáceis de ler.
Trabalharam a manhã inteira num agradável companheirismo, descobrindo de vez em quando uma passagem interessante, uma ou outra traça e recorrentes nuvens de pó, mas quase nada de valor para o projeto em questão.
— É melhor pararmos para almoçar — Roger disse finalmente. Sentia uma forte relutância em entrar de novo na casa, onde mais uma vez ficaria à mercê de Fiona, mas o estômago de Brianna começou a roncar quase tão alto quanto o dele próprio. — OK. Podemos trabalhar mais um pouco depois de comermos, se você não estiver exausta. — Brianna levantou-se e espreguiçou-se, seus punhos fechados quase tocando as vigas do teto da velha garagem. Ela limpou as mãos nas pernas da calça jeans e mergulhou pelo meio das pilhas de caixas.
— Ei! — Ela parou de repente, perto da porta. Roger, atrás dela, teve que estancar bruscamente, o nariz quase tocando a sua cabeça.
— O que foi? — perguntou. — Outro rato? — Observou com aprovação que o sol iluminava sua trança espessa com reflexos de cobre e ouro. com uma pequena auréola dourada de poeira ao seu redor e a luz do sol do meio-dia recortando a silhueta do perfil de nariz longo, ele achou que ela parecia bem medieval; Nossa Senhora dos Arquivos.
— Não. Olhe isso, Roger! — Ela apontou para uma caixa de papelão no meio de uma pilha. Na lateral, na escrita forte e preta do reverendo, via-se uma etiqueta com uma única palavra: “Randall”.
Roger sentiu uma estocada, um misto de empolgação e apreensão. O entusiasmo de Brianna era puro.
— Talvez tenha o que estamos procurando! — exclamou. — Mamãe disse que era algo em que meu pai estava interessado. Talvez ele ja tivesse consultado o reverendo.
— É possível. — Roger refreou a sensação repentina de terror que o acometeu à vista do nome na etiqueta. Ajoelhou-se para retirar a caixa. — Vamos levá-la para dentro de casa. Podemos examiná-la depois do almoço.
A caixa, uma vez aberta no gabinete do reverendo, continha uma estranha miscelânea. Havia velhas cópias xerocadas de páginas de diversos registros paroquiais, duas ou três listas de chamada do exército, várias cartas e papéis dispersos, um caderno de notas pequeno e fino, encadernado em papelão cinza, um maço de fotografias antigas, enrolando-se nas pontas, e uma pasta dura, com o nome “Randall” gravado na capa.
Brianna pegou a pasta e abriu-a.
— Ora, veja só, é a árvore genealógica do papai! — exclamou. — Olhe. —assou a pasta a Roger. Dentro, viam-se duas folhas de pergaminho grosso, com as linhas da descendência cuidadosamente traçadas horizontalmente e para baixo. O ano de início era 1633; a última entrada, ao pé da segunda folha, dizia:
Frank Wolverton Randall casa-se com Claire Elizabeth Beauchamp, 1937.
— Feita antes de você nascer — Roger murmurou.
Brianna espreitou por cima de seu ombro conforme seu dedo percorria lentamente as linhas do mapa genealógico.
— Já vi isso antes; papai tinha uma cópia em seu gabinete. Costumava mostrá-la para mim o tempo todo. A dele, entretanto, tinha meu nascimento no fim. Esta deve ser uma cópia antiga.
— Talvez o reverendo tenha feito um pouco de pesquisa para ele. — Roger devolveu a pasta a Brianna e pegou um dos papéis da pilha sobre a mesa. — Bem, aqui está uma verdadeira relíquia de família para você — ele disse. E percorreu com o dedo o brasão de armas gravado em alto-relevo no alto da folha. — Uma carta patente, assinada por Sua Majestade, o rei Jorge II.
— Jorge Segundo? Nossa, isso foi antes até da Revolução Americana.
— Bem antes. Data de 1735. Em nome de Jonathan Wolverton Randall. Conhece o nome?
— Sim. — Brianna balançou a cabeça, fiapos soltos de cabelo caíam sobre seu rosto. Alisou-os para trás despreocupadamente e pegou a carta. De vez em quando papai falava sobre ele; um dos seus poucos ancestrais que ele conhecia bem. Era capitão no exército que lutou contra o príncipe Carlos Eduardo em Culloden. — Ergueu os olhos para Roger, piscando.
— Na verdade, acho que foi morto nessa batalha. Mas não teria sido enterrado lá, não é?
Roger sacudiu a cabeça.
— Creio que não. Foram os ingleses que limparam o local depois da batalha. Despacharam a maioria de seus mortos de volta para casa para serem enterrados; os oficiais, pelo menos.
Foi impedido de continuar suas observações pela súbita aparição de Fiona no vão da porta, segurando um espanador de penas como um estandarte de batalha.
— Sr. Wakefield — chamou. — Está aí o homem que veio para levar a caminhonete do reverendo, mas ele não consegue dar partida no motor. Ele pergunta se pode lhe dar uma mãozinha.
Roger levantou-se, sentindo-se culpado. Levara a bateria a uma oficina para testá-la e ela ainda estava no banco de trás de seu próprio Morris. Não era de admirar que a caminhonete do reverendo não quisesse pegar.
— Vou ter que ir lá resolver isso — disse a Brianna. — Talvez demore um pouco.
— Tudo bem. — Sorriu para ele, os olhos azuis estreitando-se. — Devo ir também. Mamãe já deve ter voltado. Pensamos em ir a Clava Cairns, se desse tempo. Obrigada pelo almoço.
— O prazer foi todo meu. E de Fiona. — Roger lamentou não poder oferecer-se para acompanhá-la, mas o dever o chamava. Lançou um olhar à papelada espalhada sobre a escrivaninha, depois juntou tudo e depositou de volta na caixa.
— Pronto — disse. — Todos os registros de sua família estão aqui. Leve com você. Talvez sua mãe esteja interessada.
— Verdade? Bem, obrigada, Roger. Tem certeza?
— Absoluta — ele disse, colocando a pasta com o mapa genealógico cuidadosamente em cima. — Ah, espere. Talvez nem tudo. — O canto do caderno de notas cinza despontava de baixo da carta-patente; puxou-o e arrumou os papéis revirados novamente na caixa. — Parece um dos diários do reverendo. Não imagino o que possa estar fazendo aí, mas acho que é melhor guardá-lo junto com os outros; a sociedade histórica disse que quer todos eles.
— Ah, claro. — Brianna levantara-se para ir embora, segurando a caixa contra o peito, mas hesitou, olhando para ele. — Quer... gostaria que eu voltasse?
Roger sorriu. Havia teias de aranha em seus cabelos e uma listra de sujeira ao longo do seu nariz.
— Nada me deixaria mais satisfeito — disse. — Vejo-a amanhã, então, certo?
O pensamento de Roger continuou no diário do reverendo, durante toda a maçante tarefa de fazer a velha caminhonete pegar e a subseqüente visita ao avaliador de antigüidades que veio separar as peças antigas valiosas do refugo e fixar um valor sobre a mobília do reverendo para leilão.
A disposição dos pertences do reverendo deu a Roger uma sensação de aflita melancolia. Era, afinal de contas, o desmantelamento de sua própria infância tanto quanto a limpeza de quinquilharias inúteis. Quando finalmente sentou-se no gabinete após o jantar, não sabia dizer se era curiosidade a respeito dos Randall que o compeliu a pegar o diário ou simplesmente a necessidade premente de recuperar uma tênue conexão com o homem que fora seu pai por tantos anos.
Os diários eram meticulosamente anotados, as linhas regulares de tinta registrando todos os acontecimentos importantes da paróquia e da comunidade à qual o reverendo Wakefield pertencera durante tantos anos. A sensação do diário simples, cinza, em suas mãos e a vista de suas páginas evocaram para Roger uma visão imediata do reverendo, a cabeça calva brilhando à luz do abajur da escrivaninha enquanto ele laboriosamente registrava os acontecimentos do dia.
“É uma questão de disciplina”, explicara a Roger em certa ocasião. “Há um grande benefício em manter alguma atividade regular que ordene a mente. Os monges católicos realizam cerimônias religiosas em horas predeterminadas do dia, os sacerdotes têm seus breviários. Receio que eu não tenha o talento para uma devoção tão imediata, mas anotar os acontecimentos do dia ajuda a clarear a mente. Assim, posso fazer minhas preces noturnas com o coração tranqüilo.”
Um coração tranqüilo. Roger gostaria, ele mesmo, de conseguir ter um coração tranqüilo, mas a serenidade o abandonara desde que encontrara aqueles recortes de jornais na escrivaninha do reverendo.
Abriu o diário ao acaso e lentamente virou as páginas, buscando uma menção ao nome “Randall”. A capa do diário identificava o período: janeiro-junho de 1948. Embora o que dissera a Brianna sobre a sociedade histórica fosse verdade, essa não fora sua motivação principal para ficar com o caderno de notas. Em maio de 1948, Claire Randall retornara de seu misterioso desaparecimento. O reverendo conhecia bem os Randall; tal acontecimento com certeza fora mencionado no diário.
Como previsto, as anotações de 7 de maio diziam:
Visita a Frank Randall esta noite; o problema com sua mulher. Tão doloroso! Eu a vi ontem — muito frágil, com os olhos arregalados. Sentime constrangido a seu lado, pobre mulher, embora ela conversasse de maneira sensata.
Capaz de transtornar qualquer um, tudo que ela passou — o que quer que tenha sido. Terríveis mexericos sobre o caso — foi muita imprudência do dr. Bartholomew revelar que ela está grávida. Muito difícil para Frank — e para ela, é claro! Tenho pena de ambos.
A sra. Graham está doente esta semana — não poderia ter escolhido momento pior; temos o bazar semana que vem e a varanda está cheia de roupas doadas...
Roger passou as páginas seguintes rápido, procurando a próxima menção aos Randall. Encontrou-a um pouco adiante, na mesma semana.
10 de maio — Jantar com Frank Randall. Estou fazendo o possível para me associar publicamente com ele e sua mulher; faço-lhe companhia por mais ou menos uma hora todos os dias, na esperança de aplacar um pouco os mexericos. Agora, reduziram-se praticamente em piedade; espalhou-se o boato de que está louca. Conhecendo Claire Randall, não sei se não ficaria mais ofendida em ser considerada demente do que em ser considerada imoral — mas tem necessariamente que ser um ou outro?
Tentei inúmeras vezes conversar com ela sobre suas experiências, mas ela não fala nada a respeito. Conversa normalmente sobre qualquer outro assunto, mas sempre dá a impressão de estar pensando em outra coisa.
Não posso me esquecer de pregar neste domingo sobre os males das intrigas e mexericos — embora receie que chamar atenção para o caso com um sermão só vá piorar tudo.
12 de maio — ...Não consigo deixar de pensar que Claire Randall não está louca. Já ouvi o boato, é claro, mas não vejo nada em seu comportamento que pareça sequer instável.
Acredito que ela esteja guardando um terrível segredo; um segredo que está decidida a não revelar. Conversei — informalmente — sobre isso com Frank; ele mostrou-se reticente, mas estou convencido de que ela contou-lhe alguma coisa. Tentei deixar claro que gostaria de ajudar, no que me for possível.
14 de maio — Uma visita de Frank Randall. Surpreendente. Ele pediu minha ajuda, mas não vejo por que me fez tal pedido. No entanto, parece muito importante para ele; mantém um rígido autocontrole, mas está tenso como uma corda de violino. Receio a liberação — se vier.
Claire já está em condições de viajar — ele pretende levá-la de volta para Londres esta semana. Assegurei-lhe que comunicaria quaisquer resultados por carta, para seu endereço na universidade; nenhuma alusão sobre isso à sua mulher.
Tenho vários documentos interessantes sobre Jonathan Randall, embora não possa imaginar o significado que o antepassado de Frank possa ter para este triste caso. Sobre James Fraser, como eu disse a Frank — nem a mais leve menção; um completo mistério.
Um completo mistério. Sob muitos aspectos, Roger pensou. O que Frank Randall teria pedido ao reverendo para fazer? Aparentemente, descobrir o que pudesse sobre Jonathan Randall e James Fraser. Portanto, Claire contara a seu marido sobre James Fraser — contara-lhe alguma coisa, ao menos, ainda que não tudo.
Mas que conexão imaginável poderia haver entre um capitão do exército inglês, morto em Culloden em 1746, e o homem cujo nome parecia inexplicavelmente ligado ao mistério do desaparecimento de Claire em 1945 — e o outro mistério, da relação de parentesco de Brianna?
O resto do diário estava repleto dos registros de costume dos acontecimentos da paróquia; a embriaguez crônica de Derick Gowan, culminando na remoção do cadáver desse paroquiano das águas do rio Ness no fim de maio; o casamento realizado às pressas de Maggie Brown e William Dundee, um mês antes do batizado de sua filha, June; a operação para retirada do apêndice da sra. Graham e as tentativas do reverendo de lidar com o conseqüente afluxo de travessas cobertas trazidas pelas generosas senhoras da paróquia — Herbert, o cachorro do reverendo na época, parece ter sido o beneficiário da maioria delas.
Lendo as páginas, Roger viu-se sorrindo, ao perceber o vívido interesse do reverendo por seu rebanho voltar à vida nas palavras do velho ministro. Folheando e passando os olhos, quase deixara passar a última anotação referente ao pedido de Frank Randall.
18 de junho — Recebi um curto bilhete de Frank Randall, avisando-me de que a saúde de sua mulher é precária; a gravidez é de risco e ele pede minhas preces.
Respondi garantindo-lhe minhas preces e meus melhores votos para ambos. Anexei também as informações que obtive até agora para ele; não sei para que servem, mas isso cabe a ele julgar. Contei-lhe a surpreendente descoberta do túmulo de Jonathan Randall em St. Kilda; perguntei-lhe se queria que eu fotografasse a lápide.
Era tudo. Não havia mais nenhuma menção aos Randall nem a James Fraser. Roger colocou o diário sobre a mesa e massageou as têmporas; ler as linhas de caligrafia inclinada causara-lhe uma leve dor de cabeça.
Fora ter confirmado suas suspeitas de que um homem chamado James Fraser estava envolvido em tudo aquilo, a questão permanecia tão inescrutável quanto antes. O que, em nome de Deus, Jonathan Randall tinha a ver com a história e por que estava enterrado em St. Kilda. A carta-patente dera o local de nascimento de Jonathan Randall como sendo em uma propriedade em Sussex; como ele foi acabar no cemitério de uma remota igreja escocesa? É bem verdade que não era tão longe assim de Culloden mas por que não foi enviado de volta para Sussex?
— Vai precisar de mais alguma coisa esta noite, sr. Wakefield? — A voz de Fiona arrancou-o de suas meditações estéreis. Empertigou-se na cadeira, piscando, e deparou-se com ela segurando uma vassoura e um pano de pó.
— O quê? Ah, não. Não, obrigado, Fiona. Mas o que você está fazendo com todos esses apetrechos? Não está limpando ainda, a essa hora da noite, não é?
— Bem, é por causa das senhoras da igreja — Fiona explicou. – Lembra-se que disse a elas que podiam realizar sua reunião mensal aqui amanhã? Achei melhor arrumar um pouco.
As senhoras da igreja? Roger encolheu-se diante da idéia de quarenta donas-de-casa, transbordando simpatia, abatendo-se sobre a casa numa avalanche de conjuntinhos de tweed e pérolas cultivadas.
— Vai acompanhar as senhoras no chá? — Fiona perguntava. — O reverendo sempre o fazia.
A idéia de receber Brianna Randall e as senhoras da igreja simultaneamente era mais do que Roger podia considerar com tranqüilidade.
— Ha, não — disse bruscamente. — Tenho... tenho um compromisso amanhã. — Pousou a mão sobre o telefone, semi-oculto em meio ao entulho na escrivaninha do reverendo. — Se me dá licença, Fiona, tenho que dar um telefonema.
Brianna entrou devagar no quarto, sorrindo consigo mesma. Ergui os olhos do meu livro e arqueei uma sobrancelha, em sinal de indagação.
— Telefonema de Roger? — perguntei.
— Como sabia? — Pareceu surpresa por um instante, depois riu, tirando o robe. — Ah, porque ele é o único rapaz que conheço em Inverness?
— Não achei que nenhum dos seus amigos iria fazer uma ligação internacional de Boston — eu disse. Dei uma olhada no relógio sobre a mesa. Ao menos, não a esta hora, de qualquer modo. Todos eles devem estar no treino de futebol agora.
Brianna ignorou o comentário e enfiou os pés embaixo das cobertas.
— Roger nos convidou para ir até um lugar chamado St. Kilda amanhã. Disse que é uma interessante igreja antiga.
— Já ouvi falar — eu disse, bocejando. — Tudo bem, por que não? Levarei minha prensa de plantas; talvez consiga encontrar alguma vagem de ervilhaca. Prometi levar algumas sementes para o dr. Abernathy usar em sua Pesquisa. Mas, se vamos passar o dia lendo lápides antigas,vou desistir desde já. Desencavar o passado é um trabalho árduo.
Uma centelha repentina atravessou o rosto de Brianna e eu achei que estava Prestes a dizer alguma coisa. Mas ela apenas balançou a cabeça e ndeu o braço para apagar a luz, o sorriso furtivo ainda escondido nos cantos de sua boca.
Permaneci deitada, olhando para cima na escuridão, ouvindo seus movimentos leves ao virar-se na cama e que gradualmente deram lugar às cadências regulares da respiração durante o sono. St. Kilda, hein? Nunca estive lá, mas já ouvira falar do lugar; era uma velha igreja, como Brianna dissera, há muito abandonada e fora da rota dos turistas — apenas um ou outro pesquisador ia lá ocasionalmente. Seria essa a oportunidade que eu estava esperando?
Eu teria Roger e Brianna juntos lá, e sozinha, com poucas chances de interrupção. E talvez fosse um lugar apropriado para contar-lhes — lá, entre os paroquianos há muito falecidos de St. Kilda. Roger ainda não verificara o paradeiro do resto dos homens de Lallybroch, mas era quase certo que ao menos tivessem deixado o Campo de Culloden vivos e isso era tudo que eu precisava saber agora. Eu já podia contar a Bri o final da história.
Senti a boca seca ao pensar na conversa que teríamos. Onde eu encontraria as palavras certas? Tentei visualizar o desdobramento da conversa; o que eu diria e como eles reagiriam, mas a imaginação me falhou. Mais do que nunca me arrependi de minha promessa a Frank que me impedira de escrever ao reverendo Wakefield. Se o tivesse feito, ao menos Roger já poderia saber a verdade. Ou talvez não; o reverendo poderia não acreditar em mim.
Revirava-me na cama inquieta, em busca de inspiração, mas o cansaço me dominava. Finalmente, desisti e virei-me de costas, fechando os olhos para a escuridão acima de mim. Como se meus pensamentos tivessem evocado o espírito do reverendo, uma citação bíblica insinuou-se na minha consciência quase adormecida: Suficiente para o dia, a voz do reverendo parecia murmurar-me, suficiente para o dia são seus próprios males. Então, adormeci.
Acordei nas sombras da escuridão, as mãos agarradas às cobertas, o coração batendo com tanta força que me sacudia como a pele de um tímpano.
— Meu Deus! — exclamei.
A seda da minha camisola estava quente e pegajosa; olhando par baixo, pude divisar meus mamilos projetando-se por baixo da seda, duro como bolas de gude. Os espasmos trêmulos ainda ondulavam pelos meus pulsos e coxas, como os tremores de terra secundários que se seguem a um terremoto. Esperava não ter gritado. Provavelmente, não; podia ouvir a respiração de Brianna, tranqüila e regular do outro lado do quarto.
Deixei-me cair no travesseiro outra vez, tremendo de fraqueza, uma repentina onda de calor banhando minhas têmporas de suor.
— Jesus H. Roosevelt Cristo — balbuciei minha expressão preferida, respirando fundo enquanto meu coração lentamente retornava ao normal.
Um dos efeitos de um ciclo de sono interrompido é que se pára de sonhar coerentemente. Através dos longos anos de cuidados maternos e depois de estágio, residência e plantões noturnos, eu me acostumara a cair imediatamente no sono quando me deitava, com sonhos que não passavam de fragmentos e lampejos, centelhas nervosas na escuridão, como sinapses disparadas a esmo, recarregando-se para o trabalho do dia que logo recomeçaria.
Nos anos mais recentes, com a retomada de algo mais parecido com um horário normal, eu começara a sonhar outra vez Os tipos comuns de sonhos, fossem pesadelos ou sonhos bons — longas seqüências de imagens, perambulações pelo bosque da mente. E eu também estava familiarizada com este tipo de sonho; era comum ao que se podia chamar de maneira educada de períodos de privação.
Com freqüência, entretanto, tais sonhos vinham flutuando, suaves como o toque de lençóis de cetim e, se me acordavam, eu voltava logo a dormir, vagamente arrebatada com uma lembrança que não duraria até a manhã seguinte.
Esse fora diferente. Não que eu me lembrasse muito a respeito, mas tinha a vaga sensação de mãos que me agarravam, rudes e prementes, não seduzindo, mas exigindo. E uma voz, quase gritada, que ecoava nas câmaras internas dos meus ouvidos, junto com as batidas do meu coração.
Coloquei a mão no peito, sobre a pulsação galopante, sentindo o volume macio do meu seio sob a seda. A respiração de Brianna contraiu um ronronar suave, depois retomou a cadência regular. Lembro-me de ficar ouvindo com atenção aquele som quando ela era pequena; o ritmo lento, rouco, que me tranqüilizava, ressoando pelo quarto escuro, regular como o batimento cardíaco.
Os próprios batimentos do meu coração desaceleravam-se sob a minha mão, sob a seda rosa forte, da cor da bochecha corada de um bebê adormecido. Quando você segura uma criança contra o seio para alimentá-la, a curva e pequenina cabeça reproduz exatamente a curva do seio que ela suga, como se essa nova pessoa de fato espelhasse a carne de onde provém.
Os bebês são macios. Qualquer um olhando para eles pode ver a pele macia e frágil e conhecê-la pela suavidade de uma pétala de rosa que convida ao toque. Mas, quando você vive com eles e os ama, sente a maciez toda para dentro, a carne da bochecha gorducha trêmula como um pudim, o leque sem ossos das mãos minúsculas. Suas juntas são borracha derretida e mesmo quando você os beija com força, na paixão de amar sua existência, seus lábios afundam e parecem nunca encontrar o osso Segurando-os contra o corpo, eles derretem-se e amoldam-se, como se pudessem, a qualquer momento, fluir de volta para dentro do seu corpo.
Entretanto, desde o início, existe um pequeno vestígio de aço dentro de cada criança. Aquilo que diz “eu sou” e forma a essência da personalidade.
No segundo ano, os ossos endurecem e a criança fica de pé, o crânio desenvolvido e sólido, um capacete protegendo o delicado conteúdo. E o “eu sou” cresce também. Olhando para elas, você quase pode vê-lo, rijo como cerne, brilhando através da carne translúcida.
Os ossos da face emergem aos seis e a alma fixa-se aos sete. O processo de encapsulamento continua, atingindo o pico na concha lustrosa da adolescência, quando então toda a maciez é oculta sobre as camadas nacaradas das múltiplas personalidades novas que os adolescentes experimentam para se protegerem.
Nos anos seguintes, o endurecimento se espalha do centro, à medida que a pessoa encontra e fixa as facetas da alma, até que “eu sou” esteja definido, delicado e detalhado como um inseto no âmbar.
Pensei que já houvesse ultrapassado esse estágio há muito tempo, tivesse perdido todo vestígio de maciez e estivesse bem estabelecida em meu caminho em direção a uma meia-idade de aço inoxidável. Mas agora achava que a morte de Frank havia me fraturado de alguma forma. E as rachaduras estavam se alargando, de tal modo que já não podia remendá-las com a negação. Eu trouxera minha filha de volta à Escócia, ela com seus ossos fortes como o espinhaço das montanhas das Highlands, na esperança de que sua concha fosse suficientemente forte para sustentá-la, enquanto o centro de seu “eu sou” ainda fosse alcançável.
Entretanto, meu próprio âmago não resistia mais no isolamento do “eu sou”, e eu não possuía nenhuma proteção para me defender da brandura que vinha do interior. Eu já não sabia o que eu era ou o que ela seria; somente o que eu tinha que fazer.
Eu voltara, e sonhara mais uma vez, no ar frio das Highlands. E a voz do meu sonho ainda ecoava pelos meus ouvidos e meu coração, repetindo-se com o som da respiração de Brianna, adormecida.
— Você é minha — dissera a voz. — Minha! E eu não a deixarei ir embora.
Oadro da St. Kilda repousava silenciosamente sob o sol. Não era plano
— ocupava um platô escavado da encosta da colina por algum capricho geológico. O terreno inclinava-se e ondulava-se, de modo que as lápides ficavam ocultas em pequenos côncavos ou projetavam-se de repente do topo de uma elevação. O deslocamento da terra havia deslocado muitas, inclinando-as como se estivessem embriagadas ou derrubando-as completamente, deixando-as estateladas e quebradas na relva crescida.
— Está um pouco abandonado — Roger disse, como se estivesse se desculpando. Pararam junto ao portão do pátio da igreja, examinando a pequena coleção de pedras antigas, parcialmente cobertas de mato e sombreadas pela fileira de gigantescos teixos, plantados há muito tempo como quebra-vento contra as tempestades que avançavam do mar do Norte. Nuvens se aglomeravam lá agora, ao longe, sobre o estuário distante, mas o sol brilhava ali no alto da colina e o ar estava parado e quente
— Meu pai costumava reunir um bando de homens da igreja uma ou duas vezes por ano e trazê-los aqui para manter o lugar em ordem, mas receio que ultimamente tenha ficado abandonado. — Ele tentou abrir o portão grande e coberto, notando a dobradiça quebrada e o encaixe do trinco pendurado por um único prego
— É um lugar lindo e tranqüilo. — Brianna esgueirou-se com cuidado pelo portão cheio de farpas. — Realmente antigo, não?
— Sim, é. Papai achava que esta igreja presbiteriana foi construída no local de outra igreja ou até mesmo de um tipo de templo mais antigo. É por isso que está aqui num lugar tão inconveniente. Um dos amigos dele de Oxford estava sempre ameaçando vir aqui fazer escavações para ver o que havia embaixo, mas obviamente nunca conseguiu permissão das autoridades da Igreja, apesar de o lugar estar desconsagrado há anos. É uma subida e tanto. — O rubor do esforço começava a desaparecer do rosto de Brianna conforme ela se abanava com um guia de informações turísticas. — Mas é lindo.
Observou a fachada da igreja com aprovação. Construída numa abertura natural do rochedo, suas pedras e vigas tinham sido colocadas a mão, fissuras vedadas com turfa e barro, de modo que parecia ter brotado ali, como uma parte natural da escarpa. Entalhes antigos decoravam o umbral da porta e a moldura da janela, alguns ostentando os símbolos do cristianismo, outros visivelmente muito mais antigos.
— A sepultura de Jonathan Randall está lá? — Apontou para o cemitério da igreja, visível além do portão. — Mamãe vai ficar tão surpresa!
— Sim, acho que sim. Eu mesmo nunca a vi. — Ele esperava que a surpresa fosse agradável; quando mencionou o túmulo cautelosamente para Brianna pelo telefone na noite anterior, ela ficara entusiasmada.
— Já ouvi falar de Jonathan Randall — dizia a Roger. — Papai sempre o admirou; dizia que ele era uma das poucas pessoas interessantes na árvore da família. Acho que foi um bom soldado; papai tinha referências de um monte de condecorações e honrarias que ele obteve.
— É mesmo? — Roger olhou para trás, à procura de Claire. — Sua mãe precisa de ajuda com aquela prensa de plantas?
Brianna sacudiu a cabeça.
— Não. É que ela encontrou uma planta à beira do caminho à qual não pôde resistir. Logo estará aqui.
Era um lugar silencioso. Até os pássaros estavam quietos à medida que se aproximava o meio do dia, e os arbustos verde-escuros que debruavam o platô permaneciam imóveis, sem nenhuma brisa para balançar seus galhos. Sem as feridas de sepulturas novas ou os enfeites de flores de plástico como testemunha de luto recente, o cemitério da igreja respirava apenas a paz dos que haviam morrido há muito tempo. Afastados da luta e das dificuldades, somente o aspecto factual de suas vidas continuava para dar o conforto de uma presença humana nos montes solitários de uma terra deserta.
O progresso dos três visitantes era lento; vagaram sem rumo pelo antigo adro, Roger e Brianna parando para ler em voz alta inscrições esquisitas nas pedras gastas pelo tempo, Claire, sozinha, abaixando-se de vez em quando para cortar uma amostra de trepadeira ou arrancar uma pequena planta florida pelas raízes.
Roger inclinou-se sobre uma lápide e, rindo, acenou para Brianna, chamando-a para ler a inscrição.
— “Aproxime-se e leia, mas sem o chapéu” — ela leu. — “Aqui jaz Bailie William Watson / Famoso por suas idéias / e moderação na bebida.” Brianna ergueu-se depois de examinar a pedra, o rosto afogueado, não contendo o riso. — Sem datas. Quando será que William Watson viveu?
— Século XVIII, provavelmente — Roger respondeu. — A maioria das lápides do século XVII está gasta demais para se poder ler e ninguém foi enterrado aqui nos últimos duzentos anos. A igreja foi desconsagrada em 1800.
Um instante depois, Brianna deixou escapar um grito abafado de surpresa.
— Aqui está! — Ergueu-se e acenou para Claire, que estava de pé do outro lado do pátio, espreitando curiosamente um punhado de folhas verdes que segurava em uma das mãos. — Mamãe! Venha ver isto!
— O que é? — ela perguntou — Encontrou um túmulo interessante?
— Acho que sim. Reconhece este nome? — Roger recuou um passo, para que ela pudesse ter uma visão clara.
— Jesus H. Roosevelt Cristo! — Ligeiramente surpreso, Roger olhou para Claire e ficou espantado de ver como ficara pálida. Fitava a pedra castigada pelo tempo e os músculos de sua garganta moviam-se num ato convulsivo de engolir. A planta que arrancara estava amassada em sua mão, esquecida.
— Dra. Randall... Claire... você está bem?
Por um instante, seus olhos cor de âmbar ficaram vazios e ela pareceu não ouvi-lo. Em seguida, piscou e olhou para ele. Ainda estava pálida, mas parecia melhor agora; novamente senhora de si.
— Estou bem — afirmou, a voz sem expressão. Inclinou-se e correu os dedos pelas letras gravadas na pedra como se as lesse em Braille.
— Jonathan Wolverton Randall — disse, a voz baixa -, 1705-1746. Eu lhe disse, não foi? Seu filho-da-mãe, eu disse a você! — Sua voz, tão inexpressiva um momento antes, transformara-se de súbito, agora vibrante, repleta de uma ira contida.
— Mamãe! Você está bem? — Brianna, obviamente transtornada, puxava sua mãe pelo braço.
Roger observou que era como se uma sombra tivesse toldado os olhos de Claire; o sentimento que brilhara ali foi escondido de repente, quando ela voltou subitamente à percepção das duas pessoas que a fitavam, perplexos. Sorriu, um esgar breve, mecânico, e balançou a cabeça.
— Sim. Sim, claro. Estou bem. — Sua mão abriu-se e o talo de folhas amassadas caiu ao chão.
— Achei que ficaria surpresa. — Brianna olhava com preocupação para sua mãe. — Não é um antepassado do papai? O soldado que morreu em Culloden?
Claire lançou um olhar para a lápide próxima a seus pés.
— É, sim — disse. — E ele está morto, não é?
Roger e Brianna trocaram um olhar. Sentindo-se responsável, Roger tocou o ombro de Claire.
— O dia está um pouco quente — ele disse, tentando falar num tom descontraído e prático. — Acho melhor entrar na igreja e aproveitar a sombra, há uns entalhes muito interessantes na pia batismal.
Claire sorriu para ele. Um sorriso verdadeiro desta vez, um pouco forçado, mas eminentemente equilibrado.
— Vão vocês — ela disse, incluindo Brianna com uma inclinação da cabeça. — Preciso de um pouco de ar.vou ficar por aqui mais um pouco,
— Vou ficar com você. — Brianna pairava ao seu redor, claramente não querendo deixar a mãe sozinha, mas Claire recobrou tanto sua serenidade quanto seu ar de comando.
— Bobagem — disse, com rispidez. — Estou perfeitamente bem.vou sentar-me na sombra daquelas árvores lá. Vá com ele. Prefiro ficar um pouco sozinha — acrescentou com firmeza, ao ver Roger abrir a boca para protestar.
Sem mais comoção, virou-se e se afastou em direção à linha de teixos escuros que margeava o cemitério a oeste. Brianna hesitou, vendo-a se afastar, mas Roger segurou a jovem pelo braço e conduziu-a em direção à igreja.
— É melhor deixá-la sozinha — murmurou. — Afinal, sua mãe é médica, não é? Ela saberá se está bem.
— Sim... creio que sim. — com um último olhar perturbado à figura de Claire cada vez mais distante, Brianna deixou que ele a levasse dali.
A igreja não passava de um salão vazio de assoalho de madeira, com a pia batismal abandonada, mas deixada em seu lugar apenas porque não podia ser removida. A bacia rasa fora esculpida do ressalto de pedra que percorria um dos lados do aposento. Acima da bacia, o rosto esculpido de St. Kilda contemplava inexpressivamente o teto, os olhos piedosos virados para cima.
— No começo, provavelmente era um dos deuses pagãos — Roger disse, traçando o contorno da escultura com o dedo. — É possível ver onde acrescentaram o véu e a touca de freira à figura original, para não mencionar os olhos.
— Como ovos escaldados — Brianna concordou, revirando seus próprios olhos para cima numa imitação. — Que entalhe é aquele? Assemelha-se muito aos padrões daquelas pedras dos povos pictos que se vê perto de Clava.
Caminharam despreocupadamente ao longo das paredes da igreja, respirando o ar empoeirado, examinando os entalhes antigos nas paredes de pedra e lendo as pequenas placas de madeira afixadas por membros da congregação há muito desaparecidos em memória de ancestrais desaparecidos há mais tempo ainda. Falavam em voz baixa, ambos atentos a qualquer som vindo do pátio, mas tudo estava silencioso e aos poucos começaram a relaxar outra vez.
Roger seguiu Brianna em direção à frente do altar, observando os cachos de cabelo que escapavam de sua trança enrolarem-se, úmidos, em seu pescoço.
Tudo que restava agora no frontal da igreja era uma simples prateleira de madeira acima do buraco de onde o retábulo fora removido. Ainda assim, Roger sentiu uma espécie de calafrio percorrer sua espinha ao permanecer parado ali, ao lado de Brianna, de frente para o altar desaparecido.
A pura intensidade de seus sentimentos parecia ecoar no lugar vazio. Esperava que ela não pudesse ouvi-los. Conheciam-se há pouco mais de uma semana, afinal, e mal tiveram qualquer conversa particular. Ela ficaria embaraçada, sem dúvida, ou assustada, se soubesse o que ele sentia. Ou pior ainda, ela daria risada.
No entanto, quando lhe lançou um olhar furtivo, seu rosto estava calmo e sério. Também olhava para ele, com uma expressão no azul-escuro de seus olhos que o fez virar-se para ela e segurá-la entre os braços sem pensar.
O beijo foi breve e delicado, pouco mais do que a formalidade que encerra uma cerimônia de casamento e, no entanto, tão impressionante em seu impacto como se tivessem selado um compromisso solene.
As mãos de Roger soltaram-na, mas o calor dela permaneceu em suas mãos, lábios e corpo, como se ainda a tivesse nos braços. Ficaram parados por um instante, os corpos mal se roçando, respirando o ar um do outro e, então, ela deu um passo para trás. Ainda podia senti-la sob as palmas de suas mãos. Dobrou os dedos cerrando os punhos, não querendo que a sensação se dissipasse.
O ar parado da igreja estilhaçou-se repentinamente, os ecos de um grito espalhando as partículas de poeira. Sem parar para pensar, Roger já estava lá fora, correndo, tropeçando e saltando por cima de pedras tombadas, em direção à linha escura de teixos. Abriu caminho pelo meio dos ramos cobertos de ervas, sem se preocupar em segurar os pequenos galhos farpados para Brianna, logo atrás dele.
Pálido nas sombras, viu o rosto de Claire Randall. Completamente exangue, parecia um fantasma contra os galhos escuros do teixo. Ficou parada por um momento, oscilando, depois caiu de joelhos na grama, como se suas pernas não conseguissem mais sustentá-la.
— Mamãe! — Brianna ajoelhou-se ao lado da figura encolhida, esfregando uma de suas mãos frouxas. — Mamãe, o que foi? Está se sentindo fraca? Devia colocar a cabeça entre os joelhos. Vamos, por que não se deita?
Claire resistia aos esforços de sua filha para ajudá-la e a cabeça caída endireitou-se sobre o pescoço fino outra vez.
— Não quero me deitar — disse, arquejante. — Eu quero... ah, meu Deus. Ah, meu Deus do céu! — Ajoelhada na grama alta, estendeu a mão trêmula para a superfície da lápide. Era de granito, uma placa simples. — Dra. Randall! Claire!? — Roger apoiou-se sobre um joelho do outro lado de Claire, colocando a mão sob o outro braço dela para apoiá-la.
Estava assustado de verdade com seu aspecto. Uma película de suor brotara em suas têmporas e ela parecia prestes a desmaiar. — Claire — repetiu, ansiosamente, tentando acordá-la do transe hipnótico em que caíra. — O que foi? Você conhece esse nome? — Enquanto falava, suas próprias palavras ressoavam em seus ouvidos. Ninguém foi enterrado aqui desde o século XVIII, dissera a Brianna. Ninguém foi enterrado aqui nos últimos duzentos anos. Os dedos de Claire afastaram os dele e tocaram a pedra, carinhosamente, como se tocasse tecido humano, percorrendo as letras com delicadeza, os sulcos rasos com o desgaste do tempo, mas ainda nítidos.
— “JAMES ALEXANDER MALCOLM MACKENZIE FRASER” — leu em voz alta. — Sim, eu o conheço. — Sua mão desceu pela pedra, afastando a grama espessa e alta ao redor, ocultando a linha de letras menores em sua base.
— “Amado esposo de Claire” — leu.
— Sim, eu o conheci — repetiu, tão baixo que Roger mal conseguiu ouvi-la. — Eu sou Claire. Ele foi meu marido. — Ergueu os olhos, fitando diretamente o rosto de sua filha, branco e perplexo acima do seu. — É seu pai — disse.
Roger e Brianna olharam-na atônitos e o cemitério ficou em silêncio, exceto pelo farfalhar dos teixos acima.
— Não! — exclamei, enfurecida. — Pela quinta vez, não! Não quero um copo d’água. Não estou com insolação. Não estou com tontura. Não estou doente. E não perdi a cabeça tampouco, embora imagine que seja o que estão pensando.
Roger e Brianna trocaram olhares que deixavam claro que era isso precisamente o que estavam pensando. Os dois, reunindo esforços, me tiraram do cemitério e levaram de volta para o carro. Recusara-me a ser levada a um hospital, de modo que voltamos para a residência paroquial. Roger me dera uma dose de uísque para me reanimar, mas seus olhos lançaram-se sobre o telefone agora, como se imaginasse se deveria pedir uma ajuda adicional — como uma camisa-de-força, por exemplo.
— Mamãe. — Brianna falou com voz suave, como se quisesse acalmá-la, e estendeu o braço para afastar seus cabelos do rosto. — Você está transtornada.
— Claro que estou transtornada! — retorqui. Inspirei fundo, com um longo e trêmulo suspiro, e cerrei os lábios, até achar que tinha condições de falar calmamente. — É claro que estou transtornada — comecei -, mas não estou louca. — Parei, lutando para manter o controle. Não era desse modo que planejara contar-lhe. Não sabia ao certo como planejara, mas não era assim, deixando a verdade escapar sem nenhuma preparação ou tempo para organizar meus próprios pensamentos. Ver aquela maldita sepultura desfizera qualquer plano que eu pudesse ter esboçado.
— Droga, Jamie Fraser! — exclamei, furiosa. — O que estava fazendo lá, de qualquer modo? Fica a quilômetros de Culloden!
Os olhos de Brianna quase saltavam das órbitas e a mão de Roger pairava sobre o telefone. Parei bruscamente e tentei me controlar.
Fique calma, Beauchamp, disse a mim mesma. Respire fundo. Uma vez... duas vezes... mais uma vez. Melhor. Vamos. É muito simples; tudo que precisa fazer é contar-lhes a verdade. Foi para isso que veio à Escócia, não foi?
Abri a boca, mas nenhum som foi emitido. Fechei a boca, os olhos também, esperando que a coragem voltasse se eu não pudesse ver os dois rostos lívidos diante de mim. Apenas... deixe-me... contar-lhes... a verdade, rezei, sem a menor idéia de para quem dirigia minha prece. Para Jamie, pensei.
Eu contara a verdade uma vez antes. Não me saí bem.
Cerrei minhas pálpebras com mais força. Novamente pude sentir o cheiro de álcool dos ambientes de hospital e sentir a estranha fronha engomada sob minha face. Do corredor lá fora veio a voz de Frank, engasgada de raiva e perplexidade.
— O que quer dizer com não pressioná-la? Não pressioná-la? Minha mulher desaparece por quase três anos, retorna imunda, maltratada e grávida, pelo amor de Deus, e eu não devo fazer perguntas?
E a voz do médico, murmurando, tentando acalmá-lo. Captei as palavras “delírio” e “estado traumático” e “deixe para mais tarde, meu caro, espere um pouco”, enquanto a voz de Frank, ainda esbravejando e interrompendo o médico, era firmemente arrastada para o fim do corredor. Aquela voz tão familiar, que reacendia a tormenta de dor, raiva e terror dentro de mim.
Enrosquei-me numa bola defensiva, o travesseiro apertado contra o peito, mordendo-o, com todas as forças, até sentir a fronha de algodão ceder e a textura macia de penas ranger entre meus dentes.
Eu rangia os dentes agora, em detrimento de uma nova obturação. Parei e abri os olhos.
— Olhem — eu disse, da forma mais sensata possível. — Sinto muito, sei que não parece. Mas é verdade e não há nada que eu possa fazer a respeito.
Esse discurso em nada contribuiu para devolver a confiança a Brianna, que se aproximou mais de Roger. Este último, entretanto, perdera o tom esverdeado e exibia sinais de cauteloso interesse. Seria possível que ele realmente tivesse imaginação suficiente para ser capaz de apreender a verdade?
Extraí esperança de sua expressão e abri os punhos cerrados.
— São aquelas malditas pedras — eu disse. — Sabe, o círculo de pedras verticais, na colina das fadas, a oeste?
— Craigh na Dun — Roger murmurou. — Aquela?
— Certo. — Soltei a respiração ruidosamente. — Você deve conhecer as lendas a respeito de colinas de fadas, não? Sobre pessoas que ficam presas em colinas pedregosas e acordam duzentos anos mais tarde?
Brianna parecia cada vez mais alarmada.
— Mamãe, eu realmente acho que você devia subir e deitar-se — ela disse. Começou a erguer-se da cadeira. — Posso ir chamar Fiona...
Roger colocou a mão em seu braço para impedi-la.
— Não, espere — disse. Olhou para mim, com a espécie de curiosidade reprimida que um cientista demonstra quando coloca um novo slide no microscópio. — Prossiga — disse para mim.
— Obrigada — agradeci secamente. — Não se preocupe, nãovou começar a dizer baboseiras sobre fadas; achei simplesmente que gostaria de saber que existe uma base verdadeira nas lendas. Não faço a menor idéia do que de verdade existe lá em cima, ou como funciona, mas o fato é... — respirei fundo. — Bem, o fato é que atravessei uma maldita fenda numa pedra naquele círculo em 1945 e acabei na encosta lá embaixo em 1743.
Era exatamente o que eu dissera a Frank. Ele fitara-me, perplexo, por um instante, pegara um vaso de flores da mesinha-de-cabeceira e o estilhaçara no chão.
Roger parecia um cientista cujo novo micróbio tivesse conseguido permanecer vivo. Eu me perguntava por quê, mas estava envolvida demais na luta para encontrar palavras que fizessem um pouco de sentido.
— A primeira pessoa com quem me deparei foi um oficial inglês da cavalaria, um dragão, em traje completo — eu disse. — O que de certa forma me deu a impressão de que havia alguma coisa errada.
Um sorriso repentino iluminou o rosto de Roger, embora Brianna continuasse me olhando aterrorizada.
— Imagino que não era para menos.
— O problema é que eu não podia voltar, sabe. — Achei melhor dirigir minhas observações a Roger, que ao menos parecia disposto a ouvir, quer acreditasse ou não em mim.
— A questão é que naquela época as senhoras não andavam por aí sem escolta e, se o fizessem, não era usando vestidos estampados e mocassins expliquei. — Todo mundo que eu encontrava, a começar pelo capitão dos dragões, sabia que havia algo de errado comigo, mas não sabiam o quê.
Como poderiam? Não podia explicar-lhes melhor do que estou fazendo agora e asilos para lunáticos na época eram locais bem menos agradáveis do que são hoje. Nada de trançar cestos — acrescentei, num esforço para pilheriar. Não fui muito bem-sucedida; o rosto de Brianna contorceu-se numa careta e pareceu mais preocupado do que nunca.
— Esse dragão... — eu disse, e um ligeiro estremecimento me percorreu diante da lembrança de Jonathan Wolverton Randall, era capitão da Oitava Companhia dos Dragões de Sua Majestade. — No começo, achei que estava tendo alucinações, porque o homem parecia-se muito com Frank; à primeira vista, achei que era ele. — Lancei um olhar para a mesa onde havia um dos livros de Frank, com a fotografia de um homem de rosto fino, moreno e atraente, na contracapa.
— É muita coincidência — Roger disse. Seus olhos estavam alertas, fixos nos meus.
— Bem, era e não era — eu lhe disse, desviando meus olhos com dificuldade da pilha de livros. — Você sabe que ele era um antepassado de Frank. Todos os homens dessa família têm uma forte semelhança... física, pelo menos — acrescentei, pensando nas marcantes diferenças em outros aspectos que não os físicos.
— Como... como ele era? — Brianna parecia estar saindo de seu estupor, ao menos ligeiramente.
— Era um pervertido imundo — respondi. Dois pares de olhos arregalaram-se e voltaram-se um para o outro com um olhar idêntico de consternação.
— Não precisam ficar horrorizados — eu disse. — Havia perversão no século XVIII; isso não é novo, vocês sabem. Só que naquela época era pior, talvez porque ninguém realmente se importava, desde que tudo fosse mantido decente e tranqüilo nas aparências. E Black Jack Randall, como era conhecido, era um soldado; comandava uma guarnição nas Highlands, encarregada de manter os clãs sob controle; tinha uma autonomia considerável para suas atividades, todas oficialmente sancionadas. — Tomei um gole restaurador do copo de uísque que eu ainda segurava.
— Ele gostava de ferir as pessoas — eu disse. — Sim, gostava muito disso.
— Ele... feriu você? — Roger colocou a questão com certa delicadeza, após uma pausa perceptível. Bri parecia retesar-se, a pele sobre as faces esticando-se.
— Não diretamente. Ou, ao menos, não muito. — Sacudi a cabeça. Podia sentir um frio na boca do estômago, que o uísque não conseguia aquecer. Jack Randall atingira-me ali com um soco certa vez. Senti-o na minha lembrança, como a dor de um ferimento há muito curado.
— Ele tinha gostos bem ecléticos. Mas era Jamie que ele... queria. — Em nenhuma circunstância eu teria usado a palavra “amava”. Senti um nó na garganta e sorvi as últimas gotas de uísque. Roger pegou a garrafa, uma das sobrancelhas erguidas interrogativamente, e eu balancei a cabeça e estendi o copo.
— Jamie. Jamie Fraser? E ele era...
— Ele era meu marido — eu disse.
Brianna sacudiu a cabeça como um cavalo procurando afastar as moscas.
— Mas você tinha um marido — ela disse. — Não podia... mesmo se... quero dizer... você não podia.
— Fui obrigada — disse sem rodeios. — Não o fiz de propósito, afinal.
— Mamãe, você não pode se casar acidentalmente! — Brianna estava perdendo sua atitude de enfermeira gentil com uma doente mental. Achei que talvez fosse um bom sinal, ainda que a alternativa fosse raiva.
— Bem, não foi exatamente um acidente — eu disse. — Mas foi a melhor alternativa a ser entregue a Jack Randall. Jamie casou-se comigo para me proteger e foi muita generosidade da parte dele — concluí, fitando Bri por cima do meu copo. — Ele não tinha que fazer isso, mas fez.
Tentei conter a lembrança de nossa noite de núpcias. Ele era virgem; suas mãos tremiam quando me tocaram. Eu também tinha medo... por razões melhores. Depois, ao amanhecer, ele me abraçara, costas nuas contra peito nu, suas coxas quentes e fortes atrás das minhas, murmurando entre os cachos do meu cabelo: “Não tenha medo. Agora, somos nós dois.”
— Veja bem — voltei-me de novo para Roger —, eu não podia voltar. Estava fugindo do capitão Randall quando os escoceses me encontraram. Um grupo de ladrões de gado. Jamie estava com eles, era o povo de sua mãe, os MacKenzie de Leoch. Não sabiam o que ou quem eu era, mas me levaram com eles como prisioneira-E outra vez eu não pude fugir.
Lembrei-me das minhas tentativas frustradas de fugir do Castelo Leoch. Depois, o dia em que contei a verdade a Jamie e ele — sem acreditar, do mesmo modo que Frank não acreditara, mas ao menos disposto a agir como se acreditasse — me levara de volta à colina e ao círculo de pedras.
— Ele achava que eu era uma bruxa, talvez — eu disse, os olhos fechados, sorrindo levemente à idéia. — Agora, acham que você está louca; na época, achavam que você era uma bruxa. Tradições culturais — expliquei, abrindo os olhos. — Hoje em dia chamam de psicologia o que então era chamado de magia. Na verdade, não há muita diferença. — Roger balançou a cabeça, parecendo um pouco abalado.
— Eles me julgaram por bruxaria — eu disse. — Na vila de Cranesmuir, logo abaixo do castelo. Mas Jamie salvou-me e então eu lhe contei. E ele me levou para a colina e me disse para voltar. Voltar para Frank. — Parei e respirei fundo, lembrando-me daquela tarde de outubro, quando o controle sobre o meu destino, há tanto tempo arrancado de mim, foi repentinamente atirado de volta em minhas mãos, e a escolha não me foi dada, mas exigida de mim.
“Volte!”, ele dissera. “Não há nada aqui para você! Nada, a não ser perigo.”
Eu perguntara: “Não há realmente nada aqui para mim?” Honrado demais para falar, ainda assim respondeu, e eu fiz minha escolha.
— Era tarde demais — eu disse, fitando minhas mãos, abertas sobre meus joelhos. O dia escurecia com a iminência da chuva, mas as minhas duas alianças de casamento ainda brilhavam na luz fraca, ouro e prata. Eu não retirara a aliança de ouro de Frank da mão esquerda quando me casei com Jamie, mas usara a aliança de prata de Jamie no quarto dedo da mão direita, todos os dias dos vinte e tantos anos desde que ele a colocara ali.
“Eu amava Frank”, disse em voz baixa, sem olhar para Bri. “Eu o amava muito. Mas a essa altura, Jamie era meu coração e o ar que eu respirava. Não podia deixá-lo. Eu não podia”, disse, erguendo a cabeça de repente para Bri, numa súplica. Ela devolveu-me o olhar, o rosto impassível.
Abaixei os olhos para minhas mãos outra vez e continuei.
— Ele me levou para sua própria terra natal. Lallybroch, chamava-se. Um lindo lugar. — Cerrei os olhos de novo, para fugir do olhar no rosto de Brianna e deliberadamente evoquei a imagem de Broch Tuarach, Lallybroch, para as pessoas que moravam ali. Uma bela fazenda das Highlands, com bosques e riachos; até mesmo com um pedaço de terreno fértil, raro nas Highlands. Um lugar tranqüilo, adorável, encerrado entre montanhas, acima de um desfiladeiro que o mantinha isolado das rixas recorrentes que perturbavam as Highlands. Entretanto, até mesmo Lallybroch mostrara ser apenas um santuário temporário.
— Jamie era um fora-da-lei — eu disse, vendo por trás de minhas pálpebras cerradas as cicatrizes do açoitamento que os ingleses haviam deixado em suas costas. Uma rede de finas linhas brancas que teciam uma teia nos ombros largos como uma grade marcada a ferro em brasa — Sua cabeça estava a prêmio. Um de seus próprios colonos o traiu para os ingleses. Eles o capturaram e o levaram para a prisão de Wentworth, para enforcá-lo
Roger soltou um assovio longo e baixo.
— Um inferno de lugar — observou — Já esteve lá? As paredes devem ter três metros de espessura Abri os olhos
— Tem, sim — eu disse secamente — Estive dentro delas. Mas até mesmo paredes mais grossas têm portas. — Senti uma fagulha da chama de coragem desesperada que me levara para dentro da prisão de Wentworth, em busca do meu coração. Se fiz isso por você, disse silenciosamente a Jamie, posso fazer o que tenho que fazer agora. Mas me ajude, maldito escocês, ajude-me!
— Consegui tirá-lo de lá — eu disse, respirando fundo. — O que restara dele. Jack Randall comandava a guarnição de Wentworth. — Não queria relembrar as imagens que minhas palavras trouxeram de volta, mas elas se recusavam a desaparecer. Jamie, nu e ensangüentado, no chão da Mansão Eldridge, onde encontráramos abrigo.
“Não deixarei que me levem de volta, Sassenach”, dissera-me, os dentes cerrados contra a dor, enquanto eu consertava os ossos esmagados dos dedos de sua mão e limpava os ferimentos. “Sassenach.” Chamara-me assim desde o primeiro instante; a palavra gaélica para um forasteiro, um estranho. Um inglês. Primeiro, de troça, depois afetuosamente.
E eu não deixara que o encontrassem; com a ajuda de um parente, um membro do clã Fraser chamado Murtagh, consegui fazê-lo atravessar o Canal até a França e escondê-lo no Mosteiro de St. Anne de Beaupré, onde um de seus tios Fraser era abade. Mas, uma vez ali em segurança, descobri que salvar sua vida não era o fim da minha tarefa.
O que Jack Randall lhe infligira marcara sua alma a fundo, do mesmo modo que as tiras do açoite haviam penetrado em suas costas, deixando cicatrizes indeléveis para sempre. Não sabia ao certo, nem mesmo agora, o que eu fizera quando evoquei seus demônios e os enfrentei sozinha, na escuridão de sua mente; há bem pouca diferença entre medicina e magia, quando se trata de certos tipos de cura.
Eu ainda podia sentir a pedra dura e fria que me feria e a força da fúria que eu extraíra dele, as mãos que se fecharam em volta do meu pescoço e a criatura ardendo em febre que me perseguira na escuridão.
— Mas eu consegui curá-lo — disse, num sussurro. — Consegui trazê-lo de volta para mim.
Brianna sacudia a cabeça devagar para trás e para frente, desnorteada, mas com uma inclinação teimosa da cabeça que eu conhecia muito bem. “Os Graham são ignorantes, os Campbell, enganadores, os MacKenzie são encantadores, mas dissimulados, e os Fraser são teimosos”, Jamie dissera-me certa vez, dando-me sua interpretação das características gerais dos clãs. Não estava muito errado, na verdade; os Fraser eram extremamente teimosos, principalmente ele. E Bri.
— Não acredito nisso — ela disse sem rodeios. Sentou-se mais empertigada, olhando-me atentamente. — Acho que você andou pensando demais naqueles homens de Culloden — ela disse. — Afinal, você tem estado sob muita tensão nos últimos tempos e talvez a morte de papai...
— Frank não era seu pai — eu disse de chofre.
— Era, sim! — ela devolveu imediatamente, tão depressa que nos assustou. Frank, com o tempo, acatou a insistência dos médicos de que qualquer tentativa de “forçar-me a aceitar a realidade”, como disse um deles, poderia ser danosa à minha gravidez. Ouviram-se muitos murmúrios nos corredores — e gritos, de vez em quando —, mas ele desistiu de perguntar-me a verdade. E eu, com a saúde frágil e o coração partido, desisti de contar-lhe. Não iria desistir, desta vez.
— Prometi a Frank — eu disse. — Há vinte anos, quando você nasceu. Tentei deixá-lo, mas ele não permitiu que eu fosse embora. Ele a amava. Senti a voz abrandar-se ao olhar para Brianna. — Ele não conseguia acreditar na verdade, mas ele sabia, é claro, que não era seu pai. Pediu-me para não lhe contar, para deixar que ele fosse seu pai, enquanto ele vivesse. Depois disso, ele disse, ficava a meu critério. — Engoli em seco, umedecendo os lábios.
— Eu devia isso a ele — eu disse. — Porque ele a amava. Mas agora Frank está morto e você tem o direito de saber quem é. Se duvida, vá à National Portrait Gallery. Eles têm lá um retrato de Ellen MacKenzie; a mãe de Jamie. Ela está usando este colar. — Toquei o colar de pérolas em meu pescoço. Uma fileira de pérolas barrocas de água doce dos rios da Escócia, separadas por bolinhas de ouro perfuradas. — Jamie o deu para mim no dia do nosso casamento.
Olhei para Brianna, sentada ereta e tensa, os ossos da face inflexíveis em protesto.
— Leve um espelho com você — eu disse. — Dê uma boa olhada no retrato e depois se olhe no espelho. Não é uma semelhança absoluta, mas você se parece muito com a sua avó.
Roger olhou para Brianna como se nunca a tivesse visto antes. Olhou de mim para ela várias vezes e, depois, como se tomasse uma decisão, repentinamente empertigou os ombros e levantou-se do sofá onde estivera sentado a seu lado.
— Tenho algo que acho que você deveria ver — disse com firmeza. Atravessou rapidamente o aposento até a antiga escrivaninha de tampo corrediço e retirou um maço preso com um elástico de recortes amarelados de jornal de um dos escaninhos.
— Depois de lê-los, olhe as datas — disse a Brianna, entregando-lhe o maço de recortes. Em seguida, ainda de pé, virou-se para mim e olhou-me de cima a baixo, com o olhar longo e desapaixonado que reconheci como olhar de um estudioso, treinado em objetividade. Ele ainda não acreditava, mas tinha imaginação suficiente para duvidar.
— Mil setecentos e quarenta e três — ele disse, como se falasse consigo mesmo. Sacudiu a cabeça, admirado. — E eu achava que fosse um homem que você tivesse conhecido aqui em 1945. Meu Deus, eu jamais poderia imaginar... bem, Cristo, quem poderia?
Surpreendi-me.
— Você sabia? Sobre o pai de Brianna?
Ele indicou com um movimento da cabeça os recortes de jornais nas mãos de Brianna. Ela ainda não os examinara, mas olhava fixamente para Roger, em parte com raiva e em parte perplexa. Eu podia ver a tempestade avolumando-se em seus olhos e assim, pensei, Roger também. Ele desviou o olhar apressadamente, voltando-se de novo para mim com uma pergunta.
— Então, aqueles homens cujos nomes você me deu, aqueles que lutaram em Culloden... você os conheceu?
Relaxei, quase imperceptivelmente.
— Sim, eu os conheci. — Ouviu-se o estrondo de um trovão a leste e a chuva irrompeu, fustigando com força as longas vidraças que cobriam um dos lados do gabinete do chão ao teto. A cabeça de Brianna estava abaixada sobre os recortes de jornal, seus longos cabelos ocultando-lhe o rosto, exceto a ponta de seu nariz, muito vermelha. Jamie sempre ficava vermelho quando estava furioso ou aborrecido. Eu estava completamente familiarizada com a visão de um Fraser à beira da explosão.
— E você esteve na França — Roger murmurou como se falasse consigo mesmo, ainda me examinando atentamente. O choque que se via em seu rosto desfazia-se, dando lugar à conjectura, e a uma espécie de empolgação. — Não creio que tenha conhecido...
— Sim, conheci — eu lhe disse. — Foi para isso que fomos para Paris. Eu contara a Jamie sobre Culloden, a Conspiração de 1745, e o que iria acontecer. Fomos para Paris para tentar dissuadir Carlos Stuart.
— Pão — balbuciei debilmente, mantendo os olhos bem cerrados. Não houve reação do objeto grande e quente a meu lado, além do sopro quase imperceptível de sua respiração.
— Pão! — repeti, um pouco mais alto. As cobertas da cama subiram e desceram de repente e eu agarrei a borda do colchão e enrijeci todos os meus músculos, esperando estabilizar as guinadas dos meus órgãos internos.
Ruídos de alguém andando às tontas e remexendo atrapalhadamente com as mãos vieram do outro lado da cama, seguidos do deslizamento de uma gaveta, uma exclamação abafada em gaélico, o baque surdo e macio de pés descalços em pranchas de madeira e, depois, o afundamento do colchão sob o peso de um corpo pesado.
— Tome, Sassenach — disse uma voz ansiosa, e eu senti o toque de uma crosta de pão seco contra meu lábio inferior. Estendendo as mãos às cegas, sem abrir os olhos, agarrei o pedaço de pão e comecei a mastigá-lo com cuidado, forçando cada mordida que me engasgava a descer pela garganta seca. Sabia muito bem que não devia pedir água.
As bolas ressecadas de farelos de pão gradualmente desciam pela minha garganta e acomodavam-se em meu estômago, onde permaneciam como pequenos montes de lastro. Os movimentos das minhas ondas internas que me causavam ânsias de vômito aos poucos se acalmaram e, por fim, minhas vísceras pararam, ancoradas. Abri os olhos, deparando-me com o rosto ansioso de Jamie Fraser pairando alguns centímetros acima de mim.
— Arh! — exclamei, sobressaltada.
— Tudo bem? — ele perguntou. Quando balancei a cabeça e debilmente comecei a sentar-me, ele passou o braço pelas minhas costas para me ajudar. Sentando-se ao meu lado na rústica cama da estalagem, puxou-me delicadamente para junto dele e alisou meus cabelos desgrenhados pela noite de sono.
— Pobrezinha — ele disse. — Um gole de vinho ajudaria? Há um frasco de vinho do Reno no meu alforje.
— Não. Não, obrigada. — Tive um leve estremecimento à idéia de beber Vinho do Reno, a simples menção do vinho fazia-me sentir o cheiro dos seus vapores escuros e adocicados, e forcei-me a sentar ereta.
— Logo ficarei bem — eu disse, com uma animação forçada. — Não se preocupe, é normal as mulheres grávidas sentirem enjôo de manhã.
com um olhar duvidoso em minha direção, Jamie ergueu-se e foi pegar suas roupas no banco junto à janela. A França em fevereiro é fria como o inferno congelado e as vidraças de vidro de bolhas da janela estavam recobertas com uma espessa camada de cristais de gelo.
Ele estava nu e uma onda de arrepio roçou seus ombros e levantou os pêlos ruivo-dourados dos seus braços e pernas. Entretanto, acostumado ao frio, ele nem tremeu nem se apressou enquanto vestia a camisa e calçava as meias. Parando no meio do ato de se vestir, ele voltou até a cama e me abraçou rapidamente.
— Volte a dormir — ele sugeriu. -vou mandar a camareira subir para acender a lareira. Talvez consiga descansar um pouco depois de comer. Não vai mais sentir enjôo agora, não é? — Eu não tinha certeza, mas sacudi a cabeça com confiança para tranqüilizá-lo.
— Não, acho que não. — Lancei um olhar à cama; as colchas, como a maioria das cobertas fornecidas pelas hospedarias, não eram muito limpas. Ainda assim, as moedas de prata da bolsa de Jamie haviam nos assegurado o melhor quarto da estalagem e a cama estreita era forrada de penas de ganso, em vez de lã ou palha.
— Hum, talvez eu realmente me deite um pouco — murmurei, tirando os pés do chão gelado e enfiando-os embaixo das colchas, à cata dos últimos remanescentes de calor. Meu estômago parecia ter se acalmado suficientemente para eu arriscar um gole de água e, assim, enchi uma caneca do jarro rachado do quarto.
— Em que você estava pisoteando? — perguntei, bebendo cuidadosamente. — Não há aranhas aqui, há?
Enrolando o kilt em volta da cintura, Jamie sacudiu a cabeça.
— Ah, não — ele disse. As mãos ocupadas, ele inclinou a cabeça em direção à mesa. — Era só um rato. Acho que estava atrás do pão.
Olhando para baixo, vi a forma cinza e lânguida no assoalho, uma pequena pérola de sangue brilhando no focinho. Dei um salto da cama bem a tempo.
— Tudo bem — disse debilmente alguns instantes depois. — Não tem mais nada no meu estômago para vomitar.
— Lave a boca, Sassenach, mas não engula água, pelo amor de Deus. Jamie segurou a caneca para mim, limpou minha boca com um pano como se eu fosse uma criança pequena e suja, em seguida ergueu-me nos braços e colocou-me com cuidado de volta na cama. Franziu o cenho para mim com ar de preocupação.
— Talvez seja melhor eu ficar aqui — ele disse. — Posso mandar avisar.
— Não, não, eu estou bem — eu disse. E estava. Por mais que me esforçasse para não vomitar pela manhã, não conseguia manter nada no estômago por muito tempo. No entanto, depois que a crise passava, sentia-me completamente restaurada. Fora um gosto amargo na boca e os músculos abdominais um pouco doloridos, sentia-me perfeitamente normal. Joguei as cobertas para o lado e levantei-me para comprovar.
— Está vendo?vou ficar muito bem. E você precisa ir; afinal, não pode deixar seu primo esperando.
Estava começando a me sentir animada outra vez, apesar do ar frio zumbindo por baixo da porta e sob as pregas da minha camisola. Jamie ainda hesitava, relutando em me deixar, e eu me aproximei e abracei-o com força, tanto para assegurar-lhe que eu estava bem como porque ele era deliciosamente quente.
— Br r r — eu disse. — Como é que você pode estar quente como uma torrada vestindo apenas um kilt?
— Também estou de camisa — protestou, sorrindo para mim. Ficamos abraçados por um instante, desfrutando o calor um do outro no frio tranqüilo do começo de uma manhã na França. No corredor, os ruídos da camareira com sua caixa de gravetos para a lareira se aproximavam.
Jamie remexeu-se um pouco, pressionando o corpo contra o meu. Por causa das dificuldades de viajar no inverno, ficamos quase uma semana na estrada de St. Anne a Lê Havre. E entre as chegadas tarde da noite em lúgubres hospedarias, molhados, sujos e trêmulos de fadiga e frio, além do despertar cada vez mais atabalhoado à medida que meus enjôos matinais pioravam, nós mal havíamos nos tocado desde nossa última noite no mosteiro.
— Vem para a cama comigo? — convidei, ternamente.
Ele hesitou. A força de seu desejo era evidente através do tecido de seu kilt e suas mãos estavam quentes sobre a pele fria das minhas, mas ele não fez menção de me tomar nos braços.
— Bem... — disse, em dúvida.
— Você também quer, não? — eu disse, deslizando a mão fria sob seu kilt para me certificar.
— Ah! Ha... sim. Sim, quero. — A prova evidente confirmava essa declaração. Ele gemeu baixinho quando coloquei a mão entre suas pernas. Ah, meu Deus. Não faça isso, Sassenach. Nãovou conseguir tirar as mãos de você.
Abraçou-me com força, envolvendo-me com seus longos braços e puxando meu rosto contra as dobras de sua camisa, macias e brancas como a neve, com o perfume suave da roupa lavada e engomada pelo irmão Alfonse no mosteiro.
— Por que deveria? — eu disse, a voz abafada no linho da camisa. — Você tem um tempinho, não tem? É apenas uma cavalgada curta até as docas.
— Não é isso — ele disse, ajeitando meus cabelos rebeldes.
— Ah, estou gorda demais? — Na realidade, minha barriga estava quase plana e eu estava mais magra do que o normal por causa dos enjôos. – Ou será quê...?
— Não — ele disse, sorrindo. — Você fala demais. — Inclinou-se e me beijou, depois me ergueu nos braços e sentou-se na cama, segurando-me em seu colo. Deitei-me e puxei-o resolutamente para cima de mim.
— Claire, não! — ele protestou quando comecei a abrir a fivela de seu kilt. Olhei-o espantada.
— Mas por que não?
— Bem — ele disse, embaraçado, corando um pouco. — A criança... quero dizer, não quero machucá-la.
Eu ri.
— Jamie, você não pode machucá-la. Ainda não tem o tamanho da ponta do meu dedo. — Ergui o dedo para ilustrar, depois o usei para traçar a li nha cheia, curva, de seu lábio inferior. Ele agarrou minha mão e inclinou-se bruscamente para me beijar, como se quisesse apagar a cócega provocada pelo toque do meu dedo.
— Tem certeza? — ele perguntou. — Quero dizer... fico pensando que ele não iria gostar de ser jogado de um lado para o outro...
— Ele nem vai notar — assegurei-lhe, as mãos novamente ocupadas com a fírvela de seu kilt.
— Bem... se você tem certeza.
Ouviu-se uma batida decidida na porta e, com um impecável senso de oportunidade gaulês, a camareira entrou empurrando a porta de costas, descuidadamente arranhando a porta com uma tora de lenha quando se virou.
Pelas superfícies marcadas da porta e do batente, tudo indicava que aquele era seu método de operação costumeiro.
— Bonjour, monsieur, madame — murmurou, com um cumprimento de cabeça em direção à cama enquanto arrastava os pés em direção à lareira. Tu do bem para algumas pessoas, dizia sua atitude, mais eloqüente do que palavras. Acostumada a essa altura à naturalidade com que as criadas tratavam a visão dos hóspedes de uma estalagem em qualquer condição de roupas de dormir, simplesmente murmurei: “Bonjour, mademoiselle”, em resposta e deixei-a prosseguir. Também soltei o kilt de Jamie e deslizei para baixo das cobertas, puxando a colcha para cima para esconder minhas faces ruborizadas.
Possuidor de mais sangue-frio, Jamie colocou uma das almofadas estrategicamente sobre o colo, apoiou os cotovelos sobre ela, descansou o queixo nas palmas das mãos viradas para cima e começou a conversar amistosamente com a camareira, elogiando a cozinha da casa.
— E de onde vocês compram o vinho, mademoiselle? — perguntou educadamente.
— Aqui e ali. — Ela deu de ombros, enchendo rápido de gravetos os espaços sob os pedaços de madeira com grande prática. — Onde for mais barato. — O rosto gordo da mulher enrugou-se ligeiramente quando lançou um olhar de esguelha a Jamie de onde estava junto à lareira.
— Foi o que imaginei — ele disse, rindo para ela, que resfolegou, achando graça.
— Aposto que posso manter o preço que estão pagando e dobrar a qualidade — ele sugeriu. — Diga à sua patroa.
Uma das sobrancelhas ergueu-se com ceticismo.
— E qual é seu próprio preço, monsieur?
Ele fez um gesto inteiramente gaulês de auto-sacrifício.
— Nada, mademoiselle.vou visitar um parente que vende vinho. Talvez eu possa levar um novo negócio para ele e assim garantir as boasvindas, não é?
Ela concordou balançando a cabeça, vendo a sabedoria de suas palavras, e resmungou quando se levantou dos joelhos.
— Muito bem, monsieur. Falarei com a patronne.
A porta fechou-se com um baque atrás da criada, ajudada por um hábil giro de seu quadril ao passar. Colocando a almofada de lado, Jamie levantou-se e começou a afivelar o kilt outra vez.
— Aonde você pensa que vai? — protestei.
Abaixou os olhos para mim e um sorriso relutante curvou sua boca.
— Ah. Bem... tem certeza de que está disposta, Sassenach?
— Estou, se você estiver — respondi, incapaz de resistir. Fitou-me severamente.
— Só por isso, eu deveria sair imediatamente — ele disse. — No entanto, ouvi dizer que deve-se fazer as vontades das mulheres grávidas. — Deixou o kilt cair no chão e sentou-se a meu lado apenas de camisa, a cama rangendo sob seu peso.
Seu hálito ergueu-se numa leve nuvem quando afastou a colcha e abriu a frente da camisola, expondo meus seios. Inclinando a cabeça, beijou cada um, tocando o mamilo delicadamente com a língua, fazendo-os erguerem-se como por mágica, um rosa-escuro avolumando-se contra a pele branca do meu seio.
— Meu Deus, são tão lindos — ele murmurou, repetindo o processo do outro lado. Segurou-os com as duas mãos em concha, admirando-os.
— Estão mais pesados — ele disse -, só um pouco. E os mamilos estão mais escuros também. — Seu dedo indicador traçou a curva de um único pêlo fino e claro que erguia-se perto da aréola escura, prateado à luz branca da manhã.
Levantando a colcha, rolou o corpo para o meu lado e eu me virei, encaixando-me em seus braços, agarrando as curvas sólidas de suas costas, deixando minhas mãos envolverem os músculos firmes de suas nádegas. Sua pele nua estava fria pelo ar da manhã, mas a pele arrepiada alisou-se sob o calor do toque de minhas mãos.
Tentei trazê-lo imediatamente para mim, mas ele resistiu delicadamente, forçando-me a deitar no travesseiro enquanto ele mordiscava meu pescoço e orelhas. Uma de suas mãos deslizou pela minha coxa, o tecido fino da camisola escorregando em ondas macias conforme ele avançava.
Sua cabeça abaixou-se mais e suas mãos carinhosas abriram minhas coxas. Estremeci por um momento quando o ar frio atingiu a pele nua de minhas pernas, depois relaxei completamente sob a exigência quente de sua boca.
Seus cabelos estavam soltos, ainda não os prendera na nuca com um laço como costumava usar durante o dia, e os fios ruivos e macios roçavam minhas coxas, excitando-me. O peso sólido de seu corpo descansava confortavelmente entre minhas pernas, as mãos grandes envolvendo a curva dos meus quadris.
— Hummm? — Um som interrogativo veio lá de baixo.
Arqueei meus quadris em resposta e uma breve risadinha roçou minha pele com seu calor.
As mãos deslizaram para baixo dos meus quadris e me ergueram. Deixei-me relaxar e o pequeno tremor cresceu e se espalhou, elevando-se em segundos a um prazer que me deixou lânguida e ofegante, a cabeça de Jamie descansando em minha coxa. Ele esperou um instante para que eu me recobrasse, acariciando a curva de minha perna, antes de retornar à sua tarefa auto-imposta.
Alisei os cabelos caídos para trás, acariciando aquelas orelhas, tão inadequadamente pequenas e bem torneadas para um homem tão corpulento e rústico. A curva superior ardia com um róseo translúcido e amortecido, e eu corri o polegar pela borda da curva.
— São pontudas na ponta — eu disse. — Só um pouco. Como as de um fauno.
— Ah, é? — disse, interrompendo seu trabalho por um instante. — Você quer dizer como as de um pequeno veado, ou aquelas coisas que se vê nas pinturas clássicas com pernas de bode, perseguindo mulheres nuas?
Ergui a cabeça e olhei para baixo, pelo tumulto de cobertas reviradas, camisola e corpos nus, para os olhos de gato azul-escuros, brilhando acima dos cachos úmidos de cabelos castanhos.
— Se a carapuça serve — eu disse —, use-a. — E deixei minha cabeça cair de volta sobre o travesseiro conforme a risada abafada que se seguiu vibrou pela minha pele agora extremamente sensível.
— Ah — exclamei, esforçando-me para erguer-me. — Oh, Nossa. Jamie, venha cá.
— Ainda não — ele disse, fazendo alguma coisa com a ponta da língua que fez meu corpo contorcer-se incontrolavelmente.
— Agora — eu disse.
Ele não se deu ao trabalho de responder e eu já não tinha mais fôlego para falar.
— Ah — exclamei, pouco depois. — Isso é...
— Hummm?
— Ótimo — murmurei. — Venha cá.
— Não, eu espero — ele disse, o rosto invisível por trás do emaranhado ruivo e canela. — Gostaria que eu...
— Jamie — eu disse. — Eu quero você. Venha cá.
com um suspiro de resignação, ergueu-se sobre os joelhos e deixou que eu o puxasse para cima, assentando-se por fim com o peso sobre os cotovelos, mas confortavelmente sólido em cima de mim, ventre e lábios unidos. Ele abriu a boca para protestar, mas beijei-o prontamente e ele deslizou entre minhas coxas antes que pudesse se controlar. Gemeu baixinho de prazer involuntário ao entrar em mim, os músculos retesando-se ao agarrar meus ombros.
Era gentil e vagaroso, parando de vez em quando para beijar-me de modo apaixonado, movendo-se de novo apenas diante da minha urgência silenciosa. Corri as mãos suavemente pela curva de suas costas, com cuidado para não pressionar as feridas novas, ainda cicatrizando-se. Os músculos longos de suas coxas tremeram ligeiramente contra os meus, mas ele continha-se, sem querer mover-se tão depressa quanto precisava.
Ergui meus quadris contra ele, para trazê-lo mais fundo.
Ele cerrou os olhos e sua testa franziu-se um pouco em concentração. A boca estava entreaberta e sua respiração vinha pesada.
— Não posso... — disse. — Ah, meu Deus, não posso mais. — Suas nádegas contraíram-se de repente, tensas sob minhas mãos.
Suspirei de puro prazer e puxei-o com força contra mim.
— Você está bem? — ele perguntou, alguns instantes depois.
— Não vou quebrar, sabe — eu disse sorrindo, fitando-o nos olhos. Ele soltou um riso rouco.
— Talvez não, Sassenach, mas talvez eu possa quebrar. — Abraçou-me com força, o rosto pressionado contra meus cabelos. Puxei a colcha e enrolei-a em volta de seus ombros, fechando-nos num bolsão de calor. O calor do fogo na lareira ainda não havia alcançado a cama, mas o gelo na janela estava se derretendo, e as bordas da fina camada de orvalho congelado estavam se transformando em cintilantes diamantes.
Ficamos deitados em silêncio por algum tempo, ouvindo o estalido das achas de macieira que queimavam na lareira e os sons longínquos da estalagem conforme os hóspedes acordavam. Ouviam-se chamados das sacadas em todos os lados do pátio interno, o barulho dos cascos dos cavalos nas pedras lodosas lá fora e um ou outro guincho que vinha de baixo, dos porquinhos que a proprietária estava criando na cozinha, atrás do fogão.
— Três français, n’est-ce pás? — eu disse, sorrindo diante das vozes altercadas que se infiltravam pelas tábuas do assoalho, uma discussão amigável para saldar as contas entre a mulher do estalajadeiro e o negociante de vinhos.
— Filho doente de uma puta bexiguenta — a voz feminina desferiu. O conhaque da semana passada parecia mijo de cavalo.
Eu não precisei ver a resposta para imaginar o dar de ombros que a acompanhou:
— Como poderia saber, madame? Depois do sexto copo, tudo tem o mesmo sabor, não é?
A cama sacudiu-se um pouco quando Jamie riu também. Ele ergueu a cabeça do travesseiro e aspirou com prazer o cheiro de presunto frito que se infiltrava pelas frestas do assoalho.
— Sim, é a França — ele concordou. — Comida, bebida... e amor. — Deu um tapinha no meu quadril desnudo antes de cobri-lo com a camisola amassada.
— Jamie — sussurrei —, você está feliz com isso? com o bebê? Perseguido na Escócia, impedido de voltar a seu próprio lar e apenas com vagas perspectivas na França, seria compreensível que ele não estivesse muito entusiasmado com a aquisição de mais uma responsabilidade.
Ele ficou em silêncio por um instante, apenas abraçando-me com mais força, depois soltou um breve suspiro antes de me responder.
— Sim, Sassenach. — Sua mão desceu pelo meu corpo e acariciou delicadamente minha barriga. — Estou feliz. E orgulhoso como um garanhão. Mas também estou apavorado.
— Com o parto? Euvou ficar bem. — Não podia culpá-lo por sua apreensão; a própria mãe morrera de parto e o nascimento de uma criança e suas complicações eram a principal causa de morte das mulheres nessa época. Ainda assim, eu mesma tinha alguns conhecimentos e não pretendia me expor de forma alguma ao que passava por cuidados médicos ali.
— Sim, isso... e tudo o mais — disse em voz baixa. — Quero protegê-la, Sassenach. Estender meu corpo sobre você como um manto e servir de escudo para você e a criança. — Sua voz era rouca e suave, ligeiramente embargada. — Eu faria qualquer coisa por você... e no entanto... não há nada que eu possa fazer. Não importa o quanto eu seja forte ou o quanto queira ajudá-la; não posso acompanhá-la aonde você tem que ir... nem ajudá-la de nenhuma forma. E pensar em tudo que pode acontecer e eu impotente, sem poder fazer nada... sim, eu tenho medo, Sassenach.
— No entanto — virou-se para mim, a mão delicadamente pousada sobre meu seio —, quando penso em você amamentando meu filho... sinto-me leve como uma bolha de sabão, achando que vou explodir de alegria.
Apertou-me contra o peito e eu o abracei com todas as minhas forças.
— Ah, Claire, meu coração dói de tanto amar você.
Dormi por mais algum tempo e acordei devagar, ouvindo o repicar de um sino de igreja na praça ali perto. Recém-saída do Mosteiro de St. Anne, onde todas as atividades do dia eram realizadas ao ritmo de sinos, automaticamente olhei pela janela, para avaliar a intensidade da luz e adivinhar a hora do dia. Uma luz branca e brilhante, uma janela livre de cristais de gelo. Então, os sinos tocavam pelo Ângelus, era meio-dia.
Espreguicei-me, desfrutando o abençoado prazer de não ter que me levantar logo. A gravidez me deixava cansada pela manhã e o esforço da viagem aumentara minha sensação de fadiga, fazendo-me apreciar duplamente o longo descanso.
Chovera e nevara sem parar durante toda a viagem, conforme as tormentas de inverno castigavam a costa francesa. Ainda assim podia ter sido pior. A princípio, pretendíamos ir para Roma, e não Lê Havre. Seria uma viagem de três ou quatro semanas naquelas condições de tempo.
Diante da perspectiva de ter que ganhar a vida no estrangeiro, Jamie obteve uma recomendação como intérprete a Jaime Eduardo Stuart, o rei exilado da Escócia — ou simplesmente o Cavaleiro de São Jorge, o Pretendente ao Trono, dependendo do lado que você estava -, e havíamos decidido nos unir à corte do Pretendente perto de Roma.
Nesse ponto, era uma idéia bastante viável; estávamos prestes a partir para a Itália quando o tio de Jamie, Alexander, o abade de St. Anne, nos convocou a seu gabinete.
— Recebi um recado de Sua Majestade — anunciou sem preâmbulos.
— Qual deles? — Jamie perguntou. A leve semelhança familiar entre os dois homens foi ressaltada pela postura, ambos estavam sentados absolutamente empertigados em suas cadeiras, os ombros retos. com relação ao abade, a postura devia-se ao ascetismo natural; com relação a Jamie, devia-se ao cuidado para que seus recentes ferimentos em processo de cicatrização não roçassem a madeira do encosto da cadeira.
— Sua Majestade o rei Jaime — seu tio respondeu, enrugando a testa ligeiramente para mim. Tive o cuidado de manter o rosto inexpressivo; minha presença no gabinete do abade Alexander era uma prova de confiança e eu não queria fazer nada que a colocasse em risco. Ele me conhecia há apenas seis semanas, desde o dia seguinte ao Natal, quando apareci em seu portão com Jamie, que estava quase morto das torturas e da prisão. O conhecimento posterior provavelmente dera ao abade alguma confiança em mim. Por outro lado, eu ainda era inglesa. E o nome do rei inglês era Jorge, e não Jaime.
— Sim? Então, ele não está precisando de um intérprete? — Jamie ainda estava magro, mas andara trabalhando ao ar livre com os irmãos que cuidavam dos estábulos e das plantações do mosteiro e seu rosto estava recuperando os matizes de sua cor saudável natural.
— Ele está precisando de um servo leal... e de um amigo. — O abade Alexander bateu os dedos em uma carta dobrada que repousava sobre sua escrivaninha, o lacre quebrado. Ele franziu os lábios, olhando de mim para seu sobrinho e de novo para mim.
— O que vou dizer a vocês agora não pode ser repetido a ninguém disse com ar severo. — Logo será do conhecimento geral, mas por enquanto... — Tentei mostrar uma expressão confiável e discreta. Jamie apenas assentiu balançando a cabeça, com um toque de impaciência.
— Sua Alteza, o príncipe Carlos Eduardo, deixou Roma e chegará à França dentro de uma semana — o abade disse, inclinando-se ligeiramente para frente, como se quisesse enfatizar a importância do que estava revelando.
E era importante. Jaime Stuart deslanchara uma tentativa malsucedida de recuperar o trono em 1715 — uma operação militar mal planejada que fracassara quase de imediato por falta de apoio. Desde então — segundo Alexander -, o exilado Jaime da Escócia trabalhava incansavelmente, escrevendo sem parar a seus amigos monarcas, e particularmente a seu primo, Luís da França, reiterando a legitimidade de sua reivindicação ao trono da Escócia e da Inglaterra, e da posição de seu filho, o príncipe Carlos, como sucessor desse trono.
— Seu primo real Luís tem se mostrado, para grande preocupação de Sua Majestade, surdo a essas reivindicações inteiramente justas — o abade dissera, franzindo o cenho para a carta como se ela fosse o próprio Luís. Se ele agora chegou à compreensão de suas responsabilidades na questão, isso é motivo de grande júbilo entre aqueles que prezam o direito sagrado à realeza.
Entre os jacobitas, ou seja, os seguidores de Jaime. Entre os quais contava-se o abade Alexander do Mosteiro de St. Anne — nascido Alexander Fraser da Escócia. Jamie dissera-me que Alexander era um dos correspondentes mais assíduos do rei exilado, a par de tudo que dizia respeito à causa dos Stuart.
— Ele ocupa uma boa posição para isso —Jamie explicara-me, quando discutíamos a empreitada em que estávamos prestes a embarcar. — O sistema de mensageiros do papa atravessa a Itália, a França e a Espanha mais depressa do que praticamente qualquer outro. E os mensageiros do papa não podem ser detidos por oficiais da alfândega de nenhum governo, de modo que as cartas que transportam dificilmente são interceptadas.
Jaime da Escócia, exilado em Roma, era fortemente apoiado pelo papa, em cujo interesse estava ver uma monarquia católica restaurada na Inglaterra e na Escócia. Portanto, a maior parte da correspondência particular de Jaime era transportada pelo mensageiro papal — e passada pelas mãos de partidários leais dentro da hierarquia da Igreja, como o abade Alexander de St. Anne de Beaupré, com quem se podia contar para comunicar-se com os seguidores do rei na Escócia, com menos risco do que enviando as cartas abertamente de Roma a Edimburgo e às Highlands.
Observei Alexander com interesse, enquanto ele discorria sobre a importância da visita do príncipe Carlos à França. O abade era um homem troncudo, mais ou menos da minha altura, moreno e consideravelmente mais baixo do que seu sobrinho, mas compartilhava com ele os olhos ligeiramente oblíquos, a inteligência aguda e o talento para discernir motivações ocultas que pareciam caracterizar os Fraser que eu conhecia.
— Portanto — concluiu, alisando a barba cheia, castanho-escura —, não sei dizer se Sua Alteza está ou não na França a convite de Luís, ou se veio sem ser convidado, como representante de seu pai.
— Isso faz uma certa diferença — Jamie observou, erguendo uma das sobrancelhas ceticamente.
Seu tio concordou balançando a cabeça, e um sorriso enviesado se esboçou rápido em meio à barba espessa.
— É verdade, rapaz — ele disse, deixando que uma leve indicação de seu escocês nativo emergisse no meio de seu inglês sempre formal. — É bem verdade. E é aí que você e sua mulher podem ser úteis, se assim o desejarem.
A proposta era simples; Sua Majestade o rei Jaime pagaria as despesas da viagem e mais uma certa quantia se o sobrinho de seu mais leal e estimado amigo Alexander concordasse em viajar a Paris para dar assistência a seu filho, Sua Alteza o príncipe Carlos Eduardo, em qualquer aspecto que o último pudesse requerer.
Fiquei perplexa. Pretendíamos originalmente ir para Roma porque este parecia o melhor lugar para perseguir nosso objetivo: impedir o segundo levante jacobita — o de 1745. Do meu próprio conhecimento de história, sabia que a conspiração, financiada pela França e realizada por Carlos Eduardo Stuart, iria muito além da tentativa de seu pai em 1715 — mas não suficientemente longe. Se os acontecimentos se desdobrassem como eu achava que aconteceria, as tropas sob o comando de Bonnie Prince Charlie seriam fragorosamente derrotadas em Culloden em 1746 e os habitantes das Highlands ainda sofreriam as repercussões da derrota dois séculos depois.
Agora, em 1744, aparentemente o próprio Carlos estava apenas começando sua busca de apoio na França. Que ocasião seria melhor para tentar impedir uma rebelião do que ao lado do seu líder?
Virei-me para Jamie, que olhava por cima do ombro do tio para um pequeno santuário embutido na parede. Seus olhos repousavam sobre a imagem recoberta de ouro da própria St. Anne e o ramalhete de flores da estufa colocado a seus pés, enquanto seus pensamentos trabalhavam por trás do rosto impassível. Finalmente, ele piscou uma vez e sorriu para o tio.
— Qualquer tipo de assistência que Sua Alteza possa requerer? Sim — disse serenamente —, acho que posso fazer isso. Nós iremos.
E viemos. No entanto, em vez de seguir direto para Paris, primeiro descemos pela costa a partir de St. Anne até Lê Havre, para nos encontrarmos com o primo de Jamie, Jared Fraser.
Jared era um próspero imigrante escocês, importador de vinhos e outras bebidas alcoólicas, com um pequeno armazém e uma grande residência em Paris e com um enorme armazém aqui em Lê Havre, onde pedira a Jamie que o encontrasse, quando Jamie lhe escreveu para dizer que estávamos a caminho de Paris.
Suficientemente descansada agora, começava a sentir fome. Havia comida sobre a mesa; Jamie deve ter pedido à camareira para trazê-la enquanto eu dormia.
Eu não possuía nenhum robe, mas meu pesado manto de viagem de veludo vinha a calhar; sentei-me e puxei o tecido quente e pesado sobre os ombros antes de me levantar para me aliviar, acrescentar mais uma tora de lenha ao fogo e sentar-me para meu café da manhã tardio.
Mastiguei pãezinhos duros e presunto cozido com satisfação, engolindo-os com o leite da jarra que haviam fornecido. Esperava que Jamie também estivesse sendo bem alimentado; ele insistiu que Jared era um bom amigo, mas eu tinha minhas dúvidas sobre a hospitalidade de alguns parentes de Jamie, já tendo conhecido alguns deles a esta altura. É bem verdade que o abade nos recebera muito bem — até o ponto em que um homem na posição do abade possa receber bem um sobrinho fora-da-lei com uma mulher suspeita que surgem diante dele inesperadamente. Mas nossa estada com os familiares da mãe de Jamie, os MacKenzie de Leoch, por pouco não me matara no outono anterior, quando fui presa e julgada como bruxa.
— É bem verdade — eu disse — que esse Jared é um Fraser, e eles parecem um pouco mais confiáveis do que seus parentes MacKenzie. Mas você já se encontrou com ele antes?
— Morei com ele durante algum tempo quando tinha dezoito anos. — Ele me disse, pingando cera derretida em sua resposta e pressionando o anel de casamento de seu pai na resultante poça cinza-esverdeado. Um pequeno cabochão de rubi, o engaste gravado com o lema do clã Fraser, je suis prest: “Estou pronto.”
— Ele quis que eu ficasse com ele quando vim a Paris terminar meus estudos e conhecer um pouco do mundo. Ele foi muito bom para mim; um grande amigo de meu pai. E não há ninguém que conheça melhor a sociedade parisiense do que o homem que lhe vende bebida — acrescentou, arrancando o anel da cera endurecida. — Quero conversar com Jared antes de entrar na corte de Luís ao lado de Carlos Stuart. Gostaria de sentir que tenho alguma chance de sair de lá outra vez — concluiu ironicamente.
— Por quê? Acha que haverá dificuldades? — perguntei. “Qualquer tipo de assistência que Sua Alteza possa requerer” parecia uma proposta bastante ampla.
Sorriu diante do meu olhar preocupado.
— Não, não espero nenhuma dificuldade. Mas o que é que a Bíblia diz, Sassenach? “Não deposite sua confiança em príncipes”? — Levantou-se e me deu um beijo rápido na testa, guardando o anel de volta na bolsa do seu kilt. — Quem sou eu para ignorar a palavra de Deus, hein?
Passei a tarde no quarto lendo um dos herbários que meu amigo, o irmão Ambrose, enfiara em minhas mãos como presente de despedida, e em seguida fazendo os consertos necessários com linha e agulha. Nenhum de nós dois possuía muitas roupas e embora houvesse vantagens em viajar com pouca bagagem, isso significava que meias furadas e bainhas desfeitas requeriam atenção imediata. Minha caixinha de linhas e agulhas era quase tão preciosa para mim quanto o pequeno baú em que carregava ervas e remédios.
A agulha entrava e saía do tecido, cintilando à luz da janela. Perguntava-me como estaria indo a visita de Jamie a Jared. Perguntava-me mais ainda como seria o príncipe Carlos. Seria o primeiro personagem histórico famoso que eu conheceria e, enquanto eu sabia que não devia acreditar em todas as lendas que haviam surgido (não haviam, mas iriam surgir) em torno dele, a realidade do homem era um mistério. A Revolução de 45 iria depender quase inteiramente da personalidade desse jovem em particular a derrota ou a vitória. Se chegaria sequer a acontecer iria depender dos esforços de outro jovem — Jamie Fraser. E de mim.
Ainda estava absorvida em meus remendos e pensamentos, quando passos pesados no corredor fizeram-me perceber que já era tarde. O gotejar de água das calhas diminuíra conforme a temperatura caía e as chamas do sol poente brilhavam nas lanças de gelo que pendiam do teto. A porta abriu-se e Jamie entrou.
Sorriu vagamente em minha direção, depois parou imóvel junto à mesa, o rosto pensativo, como se tentasse se lembrar de alguma coisa. Tirou a capa, dobrou-a, colocou-a com todo o cuidado sobre o pé da cama, empertigou-se, marchou até o outro banco, sentou-se com grande precisão e cerrou os olhos.
Permaneci sentada, imóvel, a costura esquecida no colo, observando seus movimentos com grande interesse. Após alguns instantes, ele abriu os olhos e sorriu para mim, mas não disse nada. Inclinou-se para a frente, examinando meu rosto com muita atenção, como se não me visse há semanas. Finalmente, uma expressão de profunda revelação atravessou seu rosto e ele relaxou, os ombros curvando-se enquanto apoiava os cotovelos nos joelhos.
— Uísque — disse, com imensa satisfação.
— Sei — eu disse cautelosamente. — Muito?
Ele sacudiu a cabeça devagar de um lado para o outro, como se estivesse muito pesada. Eu quase podia ouvir o conteúdo chocalhando lá dentro.
— Eu, não — disse, pronunciando as palavras distintamente. — Você.
— Eu? — perguntei, indignada.
— Seus olhos — ele disse, com um sorriso de felicidade. Seus próprios olhos estavam meigos e sonhadores, enevoados como um lago de trutas sob a chuva.
— Meus olhos? O que meus olhos têm a ver com...
— São da cor do uísque de excelente qualidade, com o sol brilhando através deles por trás. Hoje de manhã, achei que pareciam xerez, mas me enganei. Xerez, não. Conhaque, não. É uísque. Essa é a cor. — Parecia tão gratificado ao dizer isso que não pude deixar de rir.
— Jamie, você está muito bêbado. O que andou fazendo?
Seu rosto alterou-se, assumindo uma expressão ligeiramente carrancuda.
— Não estou bêbado.
— Ah, não? — Deixei a costura de lado e aproximei-me para colocar a mão em sua fronte. Estava fria e úmida, embora o rosto estivesse afogueado. Ele imediatamente passou os braços em volta da minha cintura e puxou-me para junto dele, esfregando o nariz de modo afetuoso no meu peito. O cheiro de bebidas misturadas emanava de sua boca como uma névoa, tão espessa que era quase visível.
— Venha para mim, Sassenach — murmurou. — Minha mulher de olhos de uísque, meu amor. Deixe-me levá-la para a cama.
Achei discutível a questão de quem ia levar quem para a cama, mas não contestei. Não importava por qual motivo ele achava que iria para a cama, contanto que chegasse lá. Curvei-me e coloquei o ombro por baixo de seu braço para ajudá-lo a levantar-se, mas ele inclinou-se para se livrar de minha ajuda, erguendo-se lenta e majestosamente à própria custa.
— Não preciso de ajuda — disse, levando a mão à corda na gola da camisa. — Já lhe disse, não estou bêbado.
— Tem razão — retruquei. — “Bêbado” não chega nem perto de descrever seu estado atual. Jamie, você está completamente encharcado.
Seus olhos percorreram a frente de seu kilt, atravessaram o assoalho e subiram pela frente da minha camisola.
— Não, não estou — disse, com grande dignidade. — Fiz isso lá fora. — Deu um passo em minha direção, incandescente de paixão. — Venha para mim, Sassenach. Estou pronto.
Achei que “pronto” era um pouco de exagero em determinado aspecto; conseguira desabotoar metade dos botões e a camisa caía, enviesada, por um dos ombros, mas talvez ele não fosse além disso sem ajuda.
Em outros aspectos, entretanto... o peito largo estava exposto, exibindo o pequeno vale no centro onde eu costumava descansar meu queixo, e os pêlos curtos e encaracolados saltavam alegremente em volta dos seus mamilos. Viu-me olhando-o e esticou-se para pegar minha mão, levando-a a seu peito. Senti seu calor sob minha mão e me aproximei instintivamente. O outro braço envolveu-me com força e ele inclinou-se para me beijar. Fez um serviço tão completo que me senti ligeiramente embriagada, só em compartilhar seu hálito.
— Está bem — eu disse, rindo. — Se você está pronto, eu também estou. Mas deixe-me despi-lo primeiro, já costurei o suficiente por hoje.
Ficou parado enquanto eu o despia, quase imóvel. Também não se mexeu enquanto eu cuidava de minha própria roupa e puxava as cobertas.
Entrei na cama e virei-me para olhá-lo, avermelhado e magnífico à luz do pôr-do-sol. Era belamente esculpido, como uma estátua grega, o nariz longo e reto, as maçãs do rosto proeminentes como um perfil em uma moeda romana. A boca larga, macia, fixara-se num sorriso sonhador e os olhos rasgados exibiam um olhar distante. Estava perfeitamente imóvel.
Fitei-o com certa preocupação.
— Jamie, como exatamente você decide se está ou não bêbado?
Despertado pela minha voz, cambaleou perigosamente para um lado, mas segurou-se na borda do consolo da lareira. Seus olhos vagaram pelo quarto, depois se fixaram em meu rosto. Por um instante, resplandeceram límpidos e cristalinos de inteligência.
— Ah, fácil, Sassenach. Se você consegue ficar em pé, não está bêbado.
— Soltou a borda do consolo da lareira, deu um passo em minha direção e desmoronou lentamente no chão em frente à lareira, os olhos vazios e um sorriso largo e meigo no rosto sonhador.
— Oh! — exclamei.
O coro dos galos lá fora e o barulho de panelas no andar de baixo acordaram-me logo após o nascer do sol no dia seguinte. A figura ao meu lado deu um salto, acordando bruscamente, depois se paralisou, quando o movimento repentino chocalhou seus miolos.
Ergui-me sobre um cotovelo para examinar o que sobrou dele. Não estava tão mal assim, pensei com senso crítico. Seus olhos estavam cerrados com força contra alguns raios desgarrados de luz do sol e os cabelos projetavam-se em todas as direções, como os espinhos de um ouriço, mas a pele estava pálida e límpida e as mãos agarradas à colcha estavam firmes.
Ergui uma das pálpebras, espreitei lá dentro e disse de brincadeira:
— Alguém em casa?
O olho gêmeo daquele que eu espreitava abriu-se devagar, para acrescentar seu olhar maligno ao primeiro. Deixei cair a mão e sorri sedutoramente para ele.
— Bom-dia.
— Isso, Sassenach, é inteiramente uma questão de opinião — ele disse, fechando os dois olhos outra vez.
— Você faz idéia de quanto pesa? — perguntei, em tom de conversa.
— Não.
A brusquidão da resposta sugeria que ele não só não sabia, como não se importava, mas insisti em meus esforços.
— Algo em torno de cem quilos, calculo. Quase tanto quanto um javali de bom tamanho. Infelizmente, eu não tinha nenhum ajudante de caçador para pendurá-lo de cabeça para baixo numa vara e carregá-lo para casa, para o barraco de defumação.
— Como conseguiu me trazer para a cama?
— Não trouxe. Eu não conseguia removê-lo do lugar, então apenas o cobri com uma colcha e o deixei perto da lareira. Você voltou à vida e arrastou-se para cima da cama por conta própria, em algum momento no meio da noite.
Ele pareceu surpreso e abriu o outro olho outra vez.
— Eu fiz isso?
Confirmei balançando a cabeça e tentei alisar os cabelos espetados sobre a orelha esquerda.
— Ah, sim. Você estava muito obstinado.
— Obstinado? — Franziu a testa, pensando, e espreguiçou-se, erguendo os braços acima da cabeça. Então, pareceu perplexo.
— Não. Eu não poderia.
— Sim, pôde. Duas vezes.
Estreitou os olhos para baixo de seu peito, como se buscasse confirmação dessa afirmação improvável, depois olhou novamente para mim.
— Verdade? Bem, isso não é justo, não me lembro de nada. — Hesitou por um instante, parecendo envergonhado. — E foi tudo bem? Não fiz nenhuma bobagem?
Deixei-me cair a seu lado e aconcheguei minha cabeça na curva de seu ombro.
— Não, não chamaria a isso de bobagem. Mas você não estava a fim de muita conversa.
— Graças a Deus pelas pequenas bênçãos — ele disse, uma risadinha retumbando pelo seu peito.
— Hum. Você não conseguia dizer nada além de “eu a amo”, mas repetiu isso sem parar.
A risadinha retornou, mais alta desta vez.
— Ah, é mesmo? Bem, podia ter sido pior, imagino.
Inspirou fundo, depois parou. Virou a cabeça e cheirou desconfiadamente o tufo macio de pêlos cor de canela sob seu braço erguido.
— Nossa! — exclamou. Tentou me empurrar. — Não coloque a cabeça perto da minha axila, Sassenach. Estou cheirando a javali morto há uma semana.
— E conservado no conhaque depois — concordei, aconchegando-me mais. — Aliás, como é que você conseguiu ficar... ha... tão bêbado e fedorento?
— A hospitalidade de Jared. — Ajeitou-se nos travesseiros com um profundo suspiro, o braço em volta do meu ombro. — Ele me levou até as docas para me mostrar seu armazém. E o depósito onde ele guarda os vinhos raros, o conhaque português e o rum jamaicano. — Riu levemente, recordando-se. — O vinho não foi tão ruim, porque você só prova e cospe no chão depois de encher a boca. Mas nenhum de nós dois podia ver desperdiçar o conhaque dessa forma. Além disso, Jared disse que você tem que deixar o conhaque descer devagar pelo fundo da garganta para poder apreciá-lo bem.
— E quanto conhaque você apreciou? — perguntei com curiosidade.
— Perdi a conta depois da segunda garrafa. — Nesse momento, um sino de igreja começou a soar ali perto; a convocação para a missa matinal. Jamie sentou-se com um salto, olhando espantado para a janela, completamente iluminada pelo sol.
— Meu Deus, Sassenach! Que horas são?
— Umas seis horas, eu acho — respondi, intrigada. — Por quê? Ele relaxou um pouco, embora permanecesse sentado.
— Ah, tudo bem, então. Pensei que fosse o sino do Ângelus. Perdi completamente a noção do tempo.
— Eu diria que sim. E isso importa?
Numa explosão de energia, livrou-se das cobertas e levantou-se. Cambaleou por um instante, mas recuperou o equilíbrio, embora tenha levado as duas mãos à cabeça, para se certificar de que ainda estava presa ao corpo.
— Sim — respondeu, um pouco ofegante. — Temos um compromisso esta manhã nas docas, no armazém de Jared. Nós dois.
— É mesmo? — Eu também me levantei e tateei em busca do urinol embaixo da cama. — Se ele pretende completar o serviço, não acho que iria querer testemunhas.
A cabeça de Jamie saltou da gola de sua camisa, as sobrancelhas erguidas.
— Completar o serviço?
— Bem, a maioria dos seus outros parentes parecem querer matar você ou a mim; por que não Jared? Mas parece que ele começou bem, envenenando-o desse jeito.
— Muito engraçado, Sassenach — disse, secamente. — Tem alguma coisa decente para vestir?
Eu vinha usando um vestido largo e prático de sarja cinza em nossas viagens, adquirido através dos bons préstimos do frade esmoler do Mosteiro de St. Anne, mas também levava o vestido com o qual fugira da Escócia, um presente de lady Annabelle MacRannoch. Um bonito vestido de veludo verde que me fazia parecer um pouco pálida, mas que era muito elegante.
— Acho que sim, se não estiver muito manchado da água salgada do mar.
Ajoelhei-me ao lado do pequeno baú de viagem, desdobrando o veludo verde. Ajoelhando-se a meu lado, Jamie levantou a tampa da minha caixa de remédios, analisando as camadas de frascos, caixas e embrulhos de ervas em pedaços de gaze
— Você tem alguma coisa aqui para uma terrível dor de cabeça, Sassenach?
Espreitei por cima de seu ombro, depois enfiei a mão na caixa e toquei em um frasco.
— Marroio-branco talvez ajude, embora não seja o melhor. E chá de casca de salgueiro com sementes de funcho funciona muito bem, mas leva algum tempo para a infusão. Já sei,vou preparar uma receita de fígado macerado. Excelente para curar ressaca.
Voltou um olho azul desconfiado para mim.
— Parece horrível.
— E é — eu disse animadamente. — Mas vai se sentir muito melhor depois de vomitar
— Muhm. — Levantou-se e empurrou o urinol para mim com o dedão do pé. — Esse negócio de vomitar de manhã é para você, Sassenach — disse. — Acabe logo com isso e vista-se. Euvou agüentar a dor de cabeça.
Jared Munro Fraser era um homem magro, pequeno, de olhos negros, que possuía mais do que uma leve semelhança com seu primo distante Murtagh, o membro do clã Fraser que nos acompanhara até Lê Havre. Assim que vi Jared, majestosamente em pé no vão das portas de seu armazém, de modo que o fluxo contínuo de estivadores carregando barris era obrigado a passar em redor dele, a semelhança era tão forte que pisquei e esfreguei os olhos. Murtagh, até onde eu sabia, ainda estava na hospedaria, cuidando de um cavalo que mancava
Jared possuía os mesmos cabelos escuros, escorridos, e os mesmos olhos penetrantes; a mesma estrutura musculosa, semelhante a um macaco. Mas as semelhanças terminavam aí e, conforme nos aproximamos, Jamie cavalheirescamente abrindo caminho para mim pela multidão com os ombros e os cotovelos, pude ver também as diferenças. O rosto de Jared era oval, em vez de parecer cortado a machadinha, com um alegre nariz arrebitado que efetivamente arruinava o ar digno conferido a distância pelo traje de corte excelente e pelo porte ereto
Era um próspero comerciante, em vez de um ladrão de gado, e também sabia sorrir — ao contrário de Murtagh, cuja expressão natural era de invariável rabugice. Um amplo sorriso de boas-vindas espraiou-se em seu rosto quando éramos empurrados e acotovelados rampa acima, em sua direção.
— Minha cara! — exclamou, agarrando-me pelo braço e arrancando-me com destreza do caminho de dois estivadores musculosos que giravam um barril gigantesco pela imensa porta. — Que prazer conhecê-la finalmente!
— O barril batia com estrondo nas pranchas de madeira da rampa e eu podia ouvir a agitação do líquido em seu interior quando passou por mim.
— O rum você pode tratar assim — Jared observou, prestando atenção ao desajeitado progresso do barril imenso pelos obstáculos do enorme depósito —, mas não o vinho do Porto. Sempre vou buscá-lo eu mesmo, junto com as garrafas de vinho. Na realidade, eu estava saindo para receber uma nova remessa do vinho do Porto Belle Rouge. Estariam interessados em me acompanhar?
Olhei parajamie, que assentiu, e partimos imediatamente no rastro de Jared, desviando-nos do retumbante tráfego de barris e tambores, carroças e carrinhos de mão, e homens e meninos de todos os tipos. Carregavam rolos de tecidos, caixas de grãos e outros gêneros alimentícios, rolos de cobre martelado, sacas de farinha e qualquer outro produto que pudesse ser transportado de navio.
O Havre era um importante centro de comércio marítimo e as docas eram o coração da cidade. Um cais longo e sólido corria por quase quatrocentos metros ao longo da margem do porto; píeres menores projetavam-se do cais e, ao longo destes, viam-se ancorados bergantins e brigues de três mastros, barcos leves a remo e pequenas galés — um leque completo dos navios que abasteciam a França.
Jamie continuava me segurando com força pelo cotovelo, a melhor maneira de me arrancar do caminho de carrinhos de mão, barris rolando e comerciantes e marujos descuidados, que vinham em nossa direção, inclinados a não olhar por onde passavam, mas a confiar exclusivamente no momentum para atravessar a confusa barreira das docas.
Conforme abríamos nosso caminho pelo cais, Jared gritava educadamente no meu ouvido do outro lado, apontando objetos de interesse à medida que passávamos e explicando a história e a propriedade dos vários navios de uma maneira desarticulada, em staccato. O Arianna, o qual estávamos a caminho para ver, era na realidade um dos próprios navios de Jared. Os navios, pelo que entendi, deviam pertencer a um único proprietário, em geral uma companhia de mercadores, que os possuíam coletivamente, ou, de vez em quando, a um capitão que contratava sua embarcação, tripulação e serviços para uma viagem. Vendo o número de navios pertencentes a companhias, comparados aos relativamente poucos pertencentes a indivíduos, comecei a formar uma idéia muito respeitosa do valor de Jared.
O Arianna estava no meio da fileira de navios ancorados, perto de um grande depósito com o nome FRASER pintado a cal, em letras inclinadas.
Ao vê-lo, senti uma estranha emoção, um repentino sentimento de união e afinidade, percebendo que aquele também era o meu nome e, com isso, reconhecendo o parentesco com aqueles que o usavam.
O Arianna era um navio de três mastros, com uns dezoito metros de comprimento e uma proa larga. Havia dois canhões na lateral do navio virada para a doca; para o caso de saque em alto-mar, imaginei. Por todo o convés, fervilhava uma multidão de homens, presumivelmente com algum propósito definido, embora não parecesse mais do que um formigueiro sob ataque.
Todas as velas estavam amarradas, mas a maré, subindo, balançava o navio ligeiramente, lançando o gurupés em nossa direção. Era decorado com uma carranca de expressão demoníaca; com seu formidável peito nu e madeixas encaracoladas, tudo borrifado de sal, aquela senhora não parecia gostar muito da brisa do mar.
— É uma beleza, não é? — Jared perguntou, abanando a mão num gesto amplo. Presumi que ele se referia ao navio, e não à carranca.
— Uma maravilha — Jamie disse educadamente. Percebi o olhar temeroso que ele lançou à linha-d’água do navio, onde pequenas ondas cinzaescuro lambiam o casco. Pude notar que ele torcia para que não tivéssemos que subir a bordo. Um guerreiro valoroso, brilhante, destemido e arrojado no campo de batalha, Jamie Fraser era também um homem da terra firme.
Não sendo definitivamente um daqueles inquebrantáveis marinheiros escoceses, verdadeiros lobos-do-mar, que caçavam baleias de Tarwathie ou viajavam pelo mundo em busca de riqueza, sofria de enjôo do mar de forma tão aguda que nossa travessia do Canal em dezembro quase o matara, fraco como estava na ocasião em conseqüência da tortura e da prisão. E embora não fosse esta a intenção da orgia de bebidas de ontem com Jared, não é provável que o tivesse tornado mais apto a navegar.
Pude ver recordações sombrias atravessando seu rosto enquanto ouvia seu primo exaltar a robustez e a velocidade do Arianna e me aproximei o suficiente para sussurrar-lhe:
— Certamente não enquanto estiver ancorado, não é?
— Não sei, Sassenach — ele respondeu, com um olhar para o navio onde o asco e a resignação misturavam-se facilmente. — Mas suponho que logo descobriremos. — Jared já estava no meio da prancha de embarque, cumprimentando o capitão com sonoros gritos de boas-vindas. — Se eu ficar verde, pode fingir desmaiar ou algo assim?vou dar má impressão se eu vomitar nos sapatos de Jared.
Dei uns tapinhas em seu braço para tranqüilizá-lo.
— Não se preocupe. Tenho fé em você.
— Não sou eu — ele disse, com um derradeiro e demorado olhar à terra firme. — É meu estômago.
Entretanto, a embarcação permaneceu confortavelmente estável sob nossos sapatos e tanto Jamie quanto seu estômago comportaram-se briosamente — ajudados, talvez, pelo conhaque que o capitão nos serviu.
— Um excelente produto — Jamie disse, passando o copo de leve sob o nariz e fechando os olhos em sinal de aprovação às emanações densas e aromáticas. — Português, não?
Jared riu, encantado, e cutucou o capitão.
— Está vendo, Portis? Eu disse a você que ele tinha um paladar apurado! Só o provou uma vez antes!
Mordi a parte interna da minha bochecha e evitei o olhar de Jamie. O capitão, um tipo grandalhão, de aparência imunda, parecia entediado, mas riu educadamente na direção de Jamie, exibindo três dentes de ouro. Um homem que gostava de manter sua riqueza por perto.
— Hum — resmungou. — Esse rapaz vai manter seus porões vazios, não é? Jared pareceu repentinamente constrangido, um leve rubor surgindo por baixo da pele curtida de seu rosto. Notei, fascinada, que uma de suas orelhas era furada para um brinco e me perguntei exatamente que tipo de passado o levara ao seu sucesso atual.
— Sim, bem — ele disse, denunciando pela primeira vez um leve sotaque escocês -, isso ainda vamos ver. Mas eu acho... — Correu os olhos pelo porto, para a atividade que se desenrolava no cais, depois de volta para o copo do capitão, esvaziado com três grandes goles enquanto o resto de nós bebericava o conhaque bem devagar. — Hum, sabe, Portis, poderia nos deixar usar sua cabine por um instante? Gostaria de conversar com meu sobrinho e sua mulher... e acho que o porão da popa está tendo uma certa dificuldade com as redes de carga, pelo barulho que estou ouvindo. — Essa observação habilmente acrescentada foi suficiente para fazer com que o capitão Portis saísse disparado da cabine como um javali no ataque, a voz rouca exaltada num patoá hispano-francês, que eu, por sorte, não compreendi.
Jared caminhou delicadamente até a porta e fechou-a com firmeza atrás da figura volumosa do capitão, reduzindo substancialmente o nível de barulho. Retornou à minúscula mesa do capitão e cheio de cerimônia encheu outra vez todos os nossos copos antes de falar. Em seguida, olhou de Jamie para mim e sorriu mais uma vez, numa sedutora súplica.
— É um pouco mais precipitado do que eu pretendia fazer tal pedido — disse. — Mas vejo que o bom capitão de certa forma já me denunciou. A verdade é que — ergueu o copo de modo que os reflexos aquosos do porto trespassassem o conhaque, atingindo manchas de luz ondulantes produzidas pelos acessórios de bronze da cabine — preciso de um homem. — Ele inclinou a borda do copo na direção de Jamie, depois o levou aos lábios e tomou um gole.
— Um bom homem — reforçou, abaixando o copo. — Sabe, minha cara — disse, fazendo uma ligeira mesura para mim -, tenho a oportunidade de fazer um investimento excepcional em um novo estabelecimento vinícola na região de Moselle. Mas a missão de avaliar o empreendimento não é de tal sorte que eu me sinta confortável em confiá-la a um subordinado; eu mesmo precisaria ver as instalações e supervisionar seu desenvolvimento. A tarefa exigiria vários meses.
Olhou pensativo para dentro do copo, agitando delicadamente o líquido castanho e fragrante, de modo que seu perfume encheu a minúscula cabine. Eu não bebera mais do que alguns pequenos goles do meu próprio copo, mas comecei a me sentir um pouco tonta, mais em virtude de uma crescente empolgação do que da bebida.
— É uma oportunidade boa demais para deixar escapar — Jared disse. E há a chance de fazer vários contratos novos com as vinícolas ao longo do Reno; os produtos de lá são excelentes, mas relativamente raros em Paris. Meu Deus, eles venderiam entre a nobreza como neve no verão! — Seus astutos olhos negros brilharam por um momento, com visões de poder e riqueza, depois faiscaram de humor ao olharem para mim.
— Mas... — disse.
— Mas — concluí para ele — você não pode abandonar seus negócios aqui sem alguém para administrá-los.
— Inteligência, assim como beleza e charme. Parabéns, primo. — Inclinou a cabeça bem tratada em direção a Jamie, uma das sobrancelhas arqueada num sinal de cômica aprovação.
— Confesso que estava um pouco perdido, sem saber como deveria colocar a questão — disse, depositando o copo sobre a pequena mesa com o ar de um homem que coloca de lado as frivolidades sociais em prol da seriedade dos negócios. — Mas quando você escreveu de St. Anne, dizendo que pretendia visitar Paris... — Hesitou por um instante, depois sorriu para Jamie, com um peculiar meneio das mãos.
— Sabendo que você, meu rapaz — disse, indicando Jamie —, tem uma ótima cabeça para números, senti-me fortemente inclinado a considerar sua chegada como uma resposta às minhas preces. Ainda assim, achei que talvez fosse melhor nós nos encontrarmos e reatarmos nossos laços, antes que eu desse o passo de lhe fazer uma proposta definitiva.
Quer dizer, achou melhor ver o quanto eu era apresentável, pensei cinicamente, mas sorri para ele mesmo assim. Meus olhos encontraram os de Jamie e uma de suas sobrancelhas curvou-se para cima. Esta era nossa semana de propostas, evidentemente. Para um fora-da-lei sem posses e uma inglesa suspeita de espionagem, nossos serviços pareciam estar sendo bem requisitados.
A proposta de Jared era mais do que generosa; em troca do trabalho de Jamie administrando o ramo francês dos negócios pelos próximos seis meses, Jared não só lhe pagaria um salário, como deixaria a casa de Paris, com todos os empregados, à nossa disposição.
— De modo algum, de modo algum — disse, quando Jamie tentou protestar contra essa estipulação. Pressionou um dedo na ponta do nariz, sorrindo sedutoramente para mim. — Uma bela mulher para realizar jantares é uma grande vantagem no negócio de vinhos, primo. Você não faz idéia de quanto vinho você pode vender, se deixar os clientes o provarem primeiro. — Sacudiu a cabeça decisivamente. — Não, será um grande serviço para mim se sua mulher se dispuser a fazer festas e receber pessoas.
A idéia de promover grandes jantares para a sociedade parisiense era na realidade um pouco assustadora. Jamie olhou para mim, as sobrancelhas erguidas interrogativamente, mas eu engoli em seco e sorri, balançando a cabeça em consentimento. Era uma boa oferta; se ele se sentisse competente para assumir a administração de um negócio importante, o mínimo que eu poderia fazer era organizar jantares e atualizar meu francês para conversas animadas.
— Certamente — murmurei, mas Jared já assumira minha concordância como certa e prosseguia, os olhos negros e decididos fixos em Jamie.
— Depois, achei que talvez fossem precisar de algum tipo de moradia, em benefício dos outros interesses que os trazem a Paris.
Jamie sorriu evasivamente, o que fez Jared dar uma risada e pegar seu copo de conhaque. Também haviam servido um copo d’água a cada um de nós, para limpar o paladar entre um gole e outro, e Jared pegou um desses com a outra mão.
— Bem, um brinde! — exclamou. — À nossa parceria, primo! E à Sua Majestade! — Ergueu o copo numa saudação, depois passou-o ostensivamente por cima do copo de água e levou-o aos lábios.
Observei aquele estranho comportamento com surpresa, mas aparentemente significava alguma coisa para Jamie, pois ele sorriu para Jared, pegou seu próprio copo e passou-o por cima da água.
— À Sua Majestade! — ele repetiu. Depois, vendo-me fitando-o confusa, ele sorriu e explicou: — À Sua Majestade... do outro lado da água, Sassenach.
— Oh? — exclamei, então, por fim entendendo o significado do gesto.
— Oh! — O rei do outro lado da água, o rei Jaime. O que explicava em parte a urgência da parte de todo mundo para ver Jamie e a mim estabelecidos em Paris, o que de outra forma teria parecido uma improvável coincidência.
Se Jared também era um jacobita, então sua correlação com o abade Alexander seria muito provavelmente mais do que uma coincidência; as probabilidades eram de que a carta de Jamie anunciando nossa chegada viera junto com uma de Alexander, explicando a incumbência que recebera do rei Jaime. E se nossa presença em Paris vinha a calhar para os próprios planos de Jared, tanto melhor. com uma súbita admiração pelas complexidades da rede jacobita, ergui meu próprio copo e bebi à Sua Majestade do outro lado da água — e à nossa nova sociedade com Jared.
Jared e Jamie, em seguida, sentaram-se para discutir os negócios e logo estavam debruçados sobre folhas de papel recobertas de anotações a tinta, evidentemente notas de cargas e de despacho de mercadorias por via marítima. A minúscula cabine recendia a tabaco, emanações de conhaque e marinheiro sujo, e comecei a me sentir ligeiramente enjoada outra vez. Vendo que minha presença não seria necessária por algum tempo, levantei-me em silêncio e subi para o convés.
Tive a precaução de evitar a briga que ainda continuava em torno da portinhola de carga na parte posterior do navio e escolhi meu caminho entre rolos de cordas, objetos que presumi serem cunhos de marcação e pilhas desordenadas de tecido de velas, até um lugar tranqüilo na proa. Dali, a vista do porto era completa e desobstruída.
Sentei numa arca com as costas apoiadas no balaústre, desfrutando a brisa marinha e os odores de peixe e de alcatrão de navios e docas. Ainda estava frio, mas com meu manto bem enrolado no corpo, estava bem aquecida. A embarcação oscilava devagar, levantando-se na preamar; eu podia ver as fitas de algas nos pilares dos píeres mais próximos erguerem-se e bailarem sinuosamente, obscurecendo as manchas brilhantes e negras de mexilhões em meio a elas.
A idéia me fez lembrar dos mexilhões no vapor que eu comera no jantar do dia anterior e de repente me senti faminta. Os absurdos contrastes da gravidez pareciam me manter sempre consciente de minha digestão; se não estava vomitando, estava com uma fome voraz. A idéia de comida me levou a pensar em menus, o que remeteu à consideração das festas e jantares que Jared mencionara. Jantares, hein? Parecia uma estranha maneira de começar a tarefa de salvar a Escócia, mas na verdade não conseguia pensar em nada melhor.
Ao menos, se eu tivesse Carlos Eduardo sentado à mesa à minha frente, poderia ficar de olho nele, pensei, sorrindo para mim mesma diante da piada. Se ele mostrasse sinais de pegar um navio para a Escócia, quem sabe eu poderia colocar alguma coisa em sua sopa.
Talvez isso não fosse tão engraçado assim, afinal de contas. O pensamento me fez recordar Geillis Duncan e meu sorriso desapareceu. Mulher do procurador fiscal em Cranesmuir, assassinara o marido colocando cianureto em pó em sua comida em um banquete. Acusada de bruxaria pouco tempo depois, fora detida quando eu estava com ela e eu mesma também fui levada a julgamento; um julgamento do qual Jamie me resgatara. As lembranças de vários dias presa na escuridão fria do buraco dos ladrões em Cranesmuir ainda eram muito recentes, e de repente o vento pareceu-me demasiado frio.
Estremeci, mas não tanto pelo frio. Não podia pensar em Geillis Duncan sem aquele calafrio na espinha. Não tanto pelo que ela havia feito, mas por quem ela fora. Uma jacobita, também; alguém cujo apoio à causa Stuart fora mais do que levemente tingido de loucura. Pior ainda, ela era o que eu era — uma viajante através do círculo de pedras.
Eu não sabia se ela viera para o passado como eu, acidentalmente, ou se sua jornada fora deliberada. Também não sabia precisamente de onde ela viera. Entretanto, a última visão que tive dela, gritando de modo desafiador para os juizes que a condenariam à fogueira, era a de uma mulher alta, clara, os braços estendidos acima do corpo, mostrando em um dos braços a reveladora cicatriz de uma vacina. Automaticamente, procurei a pequena marca redonda de pele áspera no meu próprio braço, sob as dobras reconfortantes de meu manto, e estremeci quando a encontrei.
Minha atenção foi desviada dessas tristes lembranças por um crescente alvoroço no píer ao lado. Um bando de homens aglomerara-se junto à prancha de embarque de um navio, gritando e empurrando-se. Não era uma briga; olhei a altercação, protegendo meus olhos da luz com a mão, mas não vi nenhum soco sendo desferido. Em vez disso, parecia haver um esforço em abrir caminho pela multidão agitada para as portas de um grande armazém na extremidade superior do píer. A multidão resistia tenazmente a esse esforço, voltando como uma grande onda após cada empurrão.
Jamie logo surgiu atrás de mim, seguido de perto por Jared, que estreitou os olhos para o tumulto lá embaixo. Absorvida pela gritaria, eu não ouvira o ruído de sua aproximação.
— O que é? — perguntei, levantando-me e apoiando-me em Jamie, para me proteger da crescente oscilação do navio sob meus pés. Assim de perto, senti seu cheiro; ele tomara banho na estalagem e tinha um aconchegante cheiro de limpeza, com um toque de sol e poeira. O olfato aguçado era outro efeito da gravidez, aparentemente; podia sentir o cheiro de seu corpo mesmo entre a miríade de aromas e odores fétidos do porto, assim como se pode ouvir uma voz baixa junto ao ouvido no meio de uma multidão barulhenta.
— Não sei. Algum problema com o outro navio, ao que parece. — Ele segurou-me pelo cotovelo, para me firmar. Jared virou-se e gritou uma ordem em francês chulo a um dos marujos próximos. O sujeito prontamente saltou por cima do corrimão e deslizou por uma das cordas até o cais, o rabo-de-cavalo típico dos marinheiros balançando-se acima da água. Observamos do convés quando ele se juntou à multidão, cutucou outro homem nas costelas e recebeu uma resposta, acompanhada de expressivas gesticulações.
Jared franziu a testa quando o homem de rabo-de-cavalo desvencilhou-se da multidão na rampa de embarque. O marinheiro disse-lhe alguma coisa no mesmo francês ordinário e rápido demais para que eu pudesse entender. Após mais algumas palavras de conversa, Jared virou-se bruscamente e veio postar-se ao meu lado, as mãos esbeltas agarradas ao corrimão.
— Ele diz que há alguma doença a bordo do Patagônia.
— Que tipo de doença? — Não pensara em trazer minha caixa de remédios, de modo que pouco poderia fazer de qualquer modo, mas estava curiosa. Jared pareceu preocupado e infeliz.
— Receiam que seja varíola, mas não sabem. O inspetor e o capitão do porto foram chamados.
— Gostaria que eu desse uma olhada? — ofereci-me. — Talvez eu possa ao menos dizer se é uma doença contagiosa ou não.
As sobrancelhas mal delineadas de Jared desapareceram sob a franja negra e lisa de seus cabelos. Jamie pareceu ligeiramente embaraçado.
— Minha mulher é uma grande curandeira, primo — explicou, mas depois se voltou e sacudiu a cabeça para mim.
— Não, Sassenach. Não seria seguro.
Eu podia ver perfeitamente a rampa do Patagônia; agora a multidão recuava rápido, tropeçando e pisando nos pés uns dos outros. Dois marinheiros desceram do convés, um pedaço de lona erguida entre eles como uma espécie de maca. O tecido branco de vela curvava-se pronunciadamente sob o peso do homem que carregavam e um braço nu, queimado de sol, balançava da rede improvisada.
Os marinheiros usavam tiras de pano amarradas por cima do nariz e da boca e mantinham o rosto afastado da maca, sacudindo a cabeça conforme resmungavam um para o outro, manobrando seu fardo sobre as pranchas lascadas. A dupla passou sob os olhares fascinados da multidão e desapareceu em um armazém próximo.
Tomando uma rápida decisão, virei-me e rumei em direção à rampa da Popa do Arianna.
— Não se preocupe — gritei para Jamie por cima do ombro -, se for varíola, eu não posso pegar. — Um dos marinheiros, ouvindo-me, parou boquiaberto, mas eu apenas sorri para ele e segui em frente.
A multidão estava em silêncio agora, não mais arremessando-se para frente e para trás, e não foi muito difícil abrir caminho entre os grupos de marinheiros murmurando entre si, muitos dos quais franziam o cenho ou pareciam espantados enquanto eu passava por eles. O armazém estava abandonado; nenhum fardo ou tonei preenchia as sombras ressoantes do imenso espaço vazio, mas os cheiros de madeira serrada, carne defumada e peixe pairavam no ar, facilmente distinguíveis da multiplicidade de outros odores.
O doente fora largado com pressa perto da porta, sobre um monte de palha de enchimento descartada. Seus acompanhantes me empurraram ao passar por mim quando entrei, ansiosos para saírem dali.
Aproximei-me do doente cautelosamente, parando a certa distância. Ele ardia em febre, a pele com um estranho tom vermelho-escuro e com uma grossa crosta de pústulas brancas. Ele gemia, irrequieto, sacudindo a cabeça de um lado para o outro, a boca entreaberta movendo-se como se buscasse água.
— Arranje-me um pouco de água — eu disse a um dos marinheiros mais próximos. O homem, um sujeito baixo, musculoso, com a barba untada e penteada em espetos ornamentais, apenas me fitou, como se um peixe tivesse lhe dirigido a palavra.
Dando-lhe as costas com impaciência, ajoelhei-me ao lado do doente e abri sua camisa imunda. Ele fedia de modo abominável; provavelmente já não era asseado desde o começo e fora deixado para apodrecer em sua própria imundície, seus companheiros temerosos de tocar nele. Os braços estavam razoavelmente limpos, mas as pústulas cobriam-lhe o peito e a barriga, e sua pele queimava ao toque.
Jamie entrara enquanto eu examinava o doente, acompanhado de Jared. com eles, via-se um homem pequeno, com rosto em formato de pêra, trajando um vistoso casaco de oficial ornamentado com festões dourados, e dois outros homens — um era um nobre ou burguês rico, a julgar pelas roupas; o outro, um sujeito alto e magro, obviamente um homem do mar por sua compleição. Provavelmente, o capitão do navio empestado, se fosse esse o caso.
E parecia ser. Já vira varíola muitas vezes antes, nas regiões primitivas do mundo às quais meu tio Lamb, um eminente arqueólogo, me levara na minha infância. Este homem não urinava sangue, como às vezes acontecia quando a doença atacava os rins, mas fora isso apresentava todos os sintomas clássicos.
— Receio que seja varíola — eu disse.
O capitão do Patagônia soltou um grito de angústia e avançou na minha direção, o rosto desfigurado, erguendo a mão como se fosse me agredir.
— Não! — berrou. — Mulher idiota! Salope! Femme sans cervelle! Quer me arruinar?
A última palavra soou como um gargarejo quando a mão de Jamie fechou-se em sua garganta. A outra mão segurava o homem pela frente da camisa, torcendo-a com força e levantando o sujeito do chão.
— Gostaria que se dirigisse à minha mulher com mais respeito, monsieur — Jamie disse, sem se alterar. O capitão, o rosto ficando roxo, conseguiu fazer um curto e espasmódico aceno de cabeça e Jamie largou-o. Ele deu um passo para trás, chiando como um asmático, esfregando a garganta, e foi se afastando de lado, para trás de seu companheiro, como se procurasse refúgio.
O atarracado oficial inclinava-se cautelosamente sobre o homem doente, segurando um grande recipiente de prata contendo substâncias aromáticas. Do lado de fora, o nível de barulho reduziu-se de repente, quando a multidão recuou da entrada do armazém para deixar entrar outra cama de lona.
O homem diante de nós sentou-se abruptamente, assustando o pequeno oficial de tal modo que ele quase caiu. O homem olhou ao redor do armazém com os olhos esbugalhados, depois seus olhos reviraram-se para trás e ele caiu de volta na palha, como se tivesse sido abatido por uma alabarda. Não era o caso, mas o resultado final foi quase o mesmo.
— Está morto — eu disse, desnecessariamente.
O oficial, recuperando a dignidade junto com seu recipiente aromático, aproximou-se mais uma vez, olhou o defunto atentamente, empertigou-se e anunciou:
— Varíola. A senhora tem razão. Desculpe-me, monsieur lê comte, mas conhece a lei como todo mundo.
O homem a quem ele se dirigiu suspirou impacientemente. Lançou-me um olhar, franzindo a testa, depois sacudiu a cabeça na direção do oficial.
— Tenho certeza de que isso pode ser arranjado, monsieur Pamplemousse. Por favor, um instante para uma conversinha particular... — Fez um gesto com a mão indicando a barraca deserta do contramestre que ficava a alguns metros de distância, uma pequena estrutura abandonada dentro da construção maior. Um nobre pelos trajes tanto quanto pelo título, monsieur Lecomte era um tipo elegante e esbelto, com sobrancelhas grossas e lábios finos. Toda a sua postura proclamava que era um homem acostumado a ser obedecido.
Mas o pequeno oficial recuava, as mãos estendidas à sua frente numa atitude de autodefesa.
— Non, monsieur lê comte — disse. — Je lê regrette, mais c’est impossible. Não pode ser feito. Muita gente já sabe do ocorrido. A notícia já se espalhou por todo o porto a essa altura. — Olhou desamparadamente para Jamie e Jared, depois agitou a mão vagamente em direção à porta do armazém, onde as cabeças sem rosto dos espectadores eram mostradas em silhueta, o sol do final de tarde coroando-os com auréolas douradas.
— Não — repetiu, as feições rechonchudas endurecendo-se com determinação. — Vai me desculpar, monsieur... e madame — acrescentou tardiamente, como se me visse pela primeira vez. — Devo ir e dar início às medidas legais para destruição do navio.
O capitão emitiu outro grito engasgado e agarrou o oficial pela manga do casaco, mas ele livrou-se e saiu às pressas do armazém.
O ambiente ficou um pouco tenso depois de sua partida, com monsieur lê comte e seu capitão lançando-me um olhar furioso, Jamie fitando-os de modo ameaçador, e o morto olhando cega e fixamente para o teto doze metros acima.
O conde deu um passo em minha direção, os olhos faiscando.
— Tem alguma idéia do que acaba de fazer? — rosnou. — Estou avisando-a, madame. Vai pagar pelo que fez hoje!
Jamie lançou-se na direção do conde, mas Jared foi mais rápido, puxando Jamie pela manga da camisa, empurrando-me delicadamente na direção da porta e murmurando alguma coisa ininteligível para o aflito capitão, que apenas sacudiu a cabeça em resposta.
— Pobre-diabo — Jared disse do lado de fora, sacudindo a cabeça. Caramba! — Fazia frio no píer, com um vento gelado e cinzento balançando os navios ancorados, mas Jared enxugou o rosto e o pescoço com um grande e esquisito lenço vermelho de lona que tirou do bolso do casaco. — Vamos, rapaz, vamos procurar uma taverna. Preciso de uma bebida.
Escondidos em segurança no salão superior de uma das tavernas à beira do cais, com um jarro de vinho sobre a mesa, Jared deixou-se cair numa cadeira, abanando-se, e expirou ruidosamente.
— Meu Deus, que sorte! — Serviu uma boa quantidade de vinho na sua caneca, jogou-a fora e serviu outra. Vendo-me olhá-lo espantada, riu e empurrou o jarro na minha direção.
— Bem, há o vinho, moça — explicou -, e há aquilo que você bebe para tirar a poeira. Beba de um gole só, antes de ter tempo de sentir o gosto e ele cumpre sua finalidade muito bem. — Seguindo seu próprio conselho, esvaziou a caneca e estendeu o braço para o jarro outra vez. Comecei a ver exatamente o que acontecera a Jamie no dia anterior.
— Boa sorte ou má sorte? — perguntei a Jared, curiosa. Presumia que a resposta fosse “má”, mas o ar de jovial exultação do comerciante parecia pronunciado demais para ser atribuído ao vinho tinto, que se assemelhava fortemente a ácido de bateria. Coloquei minha própria caneca sobre a mesa, esperando que o esmalte dos meus dentes continuasse intacto.
— Má para St. Germain, boa para mim — disse sucintamente. Levantouse de sua cadeira e espreitou pela janela.
— Ótimo — disse, sentando-se outra vez com ar de satisfação. — Já terão terminado de tirar o vinho e guardá-lo no armazém quando o sol se pôr. São e salvo.
Jamie recostou-se na cadeira, examinando seu primo com uma das sobrancelhas arqueadas, um sorriso nos lábios.
— Devemos supor que o navio de monsieur lê comte St. Germain também carregava bebidas, primo?
Um sorriso de orelha a orelha em resposta exibiu dois dentes de ouro na arcada inferior, o que fez Jared parecer ainda mais um pirata.
— O melhor vinho do Porto envelhecido de Pinhão — disse alegremente. — Custou-lhe uma fortuna. Metade da produção das vinícolas Noval e mais nenhum disponível por um ano.
— E suponho que a outra metade do porto Noval é a que está sendo descarregada no seu armazém? — Eu começava a entender seu deslumbramento.
— Certo, moça, absolutamente certo! —Jared disse com uma gargalhada, quase abraçando a si mesmo de alegria. — Faz idéia de por quanto esse vinho vai ser vendido em Paris? — perguntou, inclinando-se para frente e batendo com a caneca na mesa. — Um estoque limitado e eu com o monopólio? Meu Deus, já fiz todo o lucro do ano!
Levantei-me e fui eu mesma olhar pela janela. O Arianna estava ancorado, já perceptivelmente mais elevado na água, enquanto as enormes redes de carga desciam balançando-se pelo pau-de-carga montado no convés da popa, para serem com todo o cuidado descarregadas, garrafa por garrafa, nos carrinhos de mão para o transporte até o armazém.
— Sem querer prejudicar o contentamento geral — eu disse, um pouco timidamente -, mas você disse que o vinho do Porto veio do mesmo lugar que o carregamento de St. Germain?
— Sim, disse. -Jared veio colocar-se a meu lado junto à janela, estreitando os olhos para a procissão de carregadores lá embaixo. — Noval produz o melhor Porto de toda a Espanha e Portugal. Eu gostaria de ter comprado toda a produção engarrafada, mas não tive capital suficiente. Por quê?
— É que, se os navios estão vindo do mesmo lugar, há uma possibilidade de que alguns de seus marinheiros também tenham contraído varíola eu disse.
O pensamento empalideceu o rubor causado pelo vinho no rosto magro de Jared e ele estendeu a mão para tomar um gole restaurador.
— Meu Deus, que idéia! — exclamou, respirando fundo ao colocar a caneca sobre a mesa. — Mas acho que está tudo bem — disse, procurando se tranqüilizar. — Metade do vinho já foi descarregado. Mas é melhor eu falar com o capitão, de qualquer forma — acrescentou, franzindo a testa. -vou dizer para ele pagar os homens e dispensá-los assim que o descarregamento tiver terminado... e se alguém parecer doente, pode receber seu dinheiro e ir embora imediatamente. — Virou-se decidido e deixou o salão como uma flecha, parando no vão da porta apenas o suficiente para gritar por cima do ombro: — Peçam o jantar! — Em seguida, desapareceu escada abaixo com um barulho de um pequeno bando de elefantes.
Voltei-me para Jamie, que fitava bestificado o interior de sua caneca de vinho intocado.
— Ele não devia fazer isso! — exclamei. — Se houver varíola a bordo, ele poderá espalhá-la por toda a cidade ao liberar homens contaminados.
Jamie balançou a cabeça devagar.
— Então, suponho que devemos torcer para que seu navio não tenha varíola — observou serenamente.
Voltei-me para a porta sem saber ao certo o que fazer.
— Mas... não deveríamos fazer alguma coisa? Eu poderia ao menos ir dar uma olhada em seus homens. E dizer-lhes o que fazer com os corpos dos homens do outro navio...
— Sassenach. — A voz profunda ainda estava serena, mas guardava um tom inconfundível de advertência.
— O que foi? — Virei-me e o encontrei inclinado para frente, olhando-me por cima da borda de sua caneca. Fitou-me pensativo por um instante antes de falar.
— Acha que aquilo que nos propusemos fazer é importante, Sassenach? Minha mão soltou-se da maçaneta da porta.
— Impedir os Stuart de deflagrar uma rebelião na Escócia? Sim, claro que acho. Por que pergunta?
Ele balançou a cabeça, paciente como um instrutor de um aluno retardado.
— Sim, muito bem. Se acha, então você virá aqui, se sentará e beberá vinho comigo até Jared voltar. Se não acha... — Parou e soltou uma longa respiração que agitou um cacho de cabelos ruivos sobre sua testa. — Se não acha, então você descerá para um cais cheio de marinheiros e comerciantes que acreditam que a presença de mulheres perto de navios é o máximo de azar e que já estão espalhando o boato de que você colocou uma maldição no navio de St. Germain, e você, então, lhes dirá o que devem fazer.
Com sorte, ficarão com medo demais de você para estuprá-la antes de cortar sua garganta e atirá-la na água, e a mim depois de você. Se o próprio St. Germain não estrangulá-la primeiro. Você não viu a expressão do rosto dele?
Voltei para a mesa e sentei-me, meio abruptamente. Meus joelhos estavam um pouco vacilantes.
— Eu vi — respondi. — Mas ele poderia...? Ele não faria...
Jamie ergueu as sobrancelhas e empurrou uma caneca de vinho para mim.
— Ele poderia e faria, se achasse que pudesse ser resolvido discretamente. Pelo amor de Deus, Sassenach, você custou ao sujeito quase a renda de um ano inteiro! E ele não parece do tipo que aceite essa perda filosoficamente. Se você não tivesse dito ao capitão do porto que era varíola, bem alto diante de testemunhas, alguns subornos discretos teriam resolvido a questão. Do jeito que é, por que você acha que Jared nos trouxe aqui para cima tão depressa? Pela qualidade da bebida?
Meus lábios endureceram, como se eu realmente tivesse bebido uma boa quantidade do ácido da jarra.
— Você está querendo dizer... que estamos correndo perigo? Jamie recostou-se no espaldar da cadeira, balançando a cabeça.
— Agora você entendeu — ele disse com delicadeza. — Acho que Jared não quis assustá-la. Acredito que ele tenha ido arranjar um tipo de guarda para nós, além de cuidar de sua tripulação. Ele provavelmente estará a salvo, todos o conhecem e sua tripulação e seus carregadores estão todos lá fora.
Esfreguei as mãos sobre a pele arrepiada dos meus braços. Havia um fogo forte na lareira e o salão estava quente e enfumaçado, mas eu sentia frio.
— Como pode saber tanto sobre o que o conde St. Germain faria? — Eu não duvidava de Jamie em absoluto, lembrava-me muito bem do olhar sombrio e maligno que o conde me lançou no armazém, mas perguntava-me como ele conhecia o sujeito.
Jamie tomou um pequeno gole do vinho, fez uma careta e colocou a caneca sobre a mesa.
— Para começar, ele tem a reputação de violento... e outras coisas. Ouvi falar dele quando morei em Paris, embora tenha tido a sorte de não me meter em encrenca com o sujeito na ocasião. Depois, Jared passou algum tempo ontem me avisando para ter cuidado com ele. O conde é o principal concorrente de Jared em Paris.
Descansei os cotovelos sobre a velha mesa e coloquei o queixo nas mãos entrelaçadas.
— Acho que atrapalhei tudo, não foi? — eu disse com tristeza. — Fiz você começar mal nos negócios.
Ele sorriu, depois se levantou e parou atrás de mim, inclinando-se para passar os braços ao meu redor. Eu ainda estava um pouco abatida com as suas recentes revelações, mas senti-me melhor com a força dos seus braços e o volume de seu corpo atrás de mim. Ele me beijou de leve no topo da cabeça.
— Não se preocupe, Sassenach — disse. — Posso cuidar de mim mesmo. E também posso cuidar de você... e você vai me permitir. — Havia um sorriso em sua voz, mas uma indagação também. Assenti, balançando a cabeça e deixando-a recostar-se em seu peito.
— Euvou permitir — eu disse. — Os cidadãos de Lê Havre vão ter simplesmente que correr o risco com a varíola.
Passou-se quase uma hora até Jared voltar, as orelhas vermelhas do frio, mas a garganta sem corte e aparentemente em boas condições. Fiquei feliz ao vê-lo.
— Está tudo bem — anunciou, radiante. — Nada além de escorbuto e as gripes e resfriados de costume a bordo. Nenhuma varíola. — Olhou à volta do salão, esfregando as mãos. — E o jantar?
Suas faces estavam avermelhadas do vento e ele parecia alegre e bemdisposto.
Ao que parecia, lidar com adversários nos negócios que resolviam as disputas matando fazia parte do dia-a-dia desse comerciante. E por que não?, pensei cinicamente. Afinal, ele era um maldito escocês.
Como para confirmar meu ponto de vista, Jared pediu o jantar, obteve um excelente vinho para acompanhar mediante a simples providência de mandar alguém ir buscar no seu armazém e acomodou-se para uma genial discussão pós-refeição com Jamie sobre as maneiras e meios de lidar com comerciantes franceses.
— Bandidos — disse. — Qualquer um deles é capaz de esfaqueá-lo pelas costas assim que o vir. Malditos ladrões. Nunca confie neles. Metade antes, metade depois da entrega e jamais permita que um fidalgo pague a crédito.
Apesar das garantias de Jared de que deixara dois homens de vigia lá embaixo, eu ainda estava um pouco nervosa e, após o jantar, posicioneime ao lado da janela de onde podia ver as idas e vindas ao longo do píer. Não que a minha vigilância fosse adiantar muito, pensei; um de cada dois homens nas docas parecia um assassino para mim.
Nuvens carregadas fechavam-se sobre o porto; iria nevar outra vez esta noite. As velas enrizadas sacudiam-se violentamente ao vento cada vez mais forte, batendo nos mastros com um barulho que quase sobrepujava os gritos dos carregadores. O porto fulgurava com um momento de incandescência verde e opaca, à medida que o sol poente era empurrado para dentro d’água por nuvens insistentes.
Conforme escurecia, a agitação de um lado para o outro arrefeceu, os carregadores com seus carrinhos de mão desapareceram pelas ruas que levavam à cidade, e os marinheiros sumiram pelas portas iluminadas de estabelecimentos como aquele em que eu estava. Ainda assim, o lugar estava longe de estar deserto; em particular, ainda havia uma pequena aglomeração perto do desafortunado Patagônia. Os homens, numa espécie de uniforme, formavam um cordão ao pé da rampa de embarque; sem dúvida, para impedir que alguém subisse a bordo ou retirasse a carga. Jared explicara que os integrantes saudáveis da tripulação teriam permissão de descer a terra, mas não poderiam trazer nada do navio com eles, a não ser as roupas que vestiam.
— Melhor do que estariam sob os holandeses — disse, coçando os pêlos negros, curtos e eriçados, que começavam a emergir ao longo dos maxilares. — Se chega um navio proveniente de um porto onde se sabe que há algum tipo de praga, os malditos holandeses fazem os marinheiros nadarem nus até a costa.
— como eles conseguem roupas quando chegam a terra? — perguntei, curiosa.
— Não sei — disse Jared distraidamente -, mas como encontrarão um bordel assim que pisarem em terra, acho que não precisam de nenhuma... com sua permissão, minha cara — acrescentou apressadamente, lembrando-se de repente de que falava com uma senhora.
Encobrindo seu embaraço momentâneo com cordialidade, levantou-se e veio espreitar pela janela a meu lado.
— Ah — disse. — Estão se preparando para incendiar o navio. Considerando-se o que está carregando, é melhor que primeiro o reboquem para o meio da enseada, a uma boa distância do porto.
Cabos usados para rebocar haviam sido amarrados ao condenado Patagônia. E vários barcos pequenos tripulados por remadores aguardavam em prontidão, à espera de um sinal. Este era dado pelo capitão do porto, cujos festões dourados mal eram perceptíveis como uma leve cintilação à luz agonizante do dia. Ele gritou, acenando ambas as mãos devagar para frente e para trás acima da cabeça como se transmitisse sinais por semáforos.
Seu grito foi ecoado pelos capitães dos barcos a remo e das galés. Lentamente, conforme se retesavam, os cabos começaram a se erguer da água, fazendo-a escorrer pelas grossas espirais de cânhamo com um barulho audível no repentino silêncio que assaltou as docas. Os gritos vindos dos rebocadores foi o único som que se ouviu quando o casco escuro do navio condenado rangeu, estremeceu e virou-se na direção do vento, as enxárcias gemendo enquanto ele partia em sua última e breve viagem.
Deixaram-no no meio da enseada, a uma distância segura dos outros navios. Os conveses haviam sido embebidos de óleo e, quando os barcos de reboque foram dispensados e as galés afastadas, a figura pequena e redonda do capitão do porto ergueu-se do banco do pequeno barco a remo que o levara para fora do porto. Inclinou-se, aproximou a cabeça de uma das figuras sentadas, depois se ergueu com a chama brilhante e repentina de uma tocha em uma das mãos. O remador às suas costas afastou-se para um lado quando ele levou o braço às costas e lançou a tocha — uma clava pesada envolvida em trapos embebidos em óleo, que foi virando-se no ar, o fogo reduzindo-se a uma chama azulada, até aterrissar fora do alcance da vista, atrás da balaustrada. O capitão do porto não esperou para ver os efeitos de sua ação; sentou-se imediatamente, gesticulando como um alucinado para o remador, que começou a erguer e abaixar os remos, fazendo o pequeno barco partir em disparada pelas águas escuras.
Por longos momentos, nada aconteceu, mas a multidão nas docas continuou parada, imóvel, murmurando em surdina. Pude ver o reflexo pálido do rosto de Jamie, flutuando acima do meu no vidro escuro da janela. O vidro estava frio e enevoou-se rápido com a nossa respiração; limpei-o com a ponta do meu manto.
— Veja — Jamie disse, num sussurro. A chama correu subitamente por trás da balaustrada, uma pequena linha azul e brilhante. A seguir, uma centelha, e as enxárcias à frente lançaram-se no ar, linhas vermelho-alaranjadas contra o céu. Um salto silencioso, e as labaredas começaram a dançar ao longo dos parapeitos encharcados de óleo. Uma vela dobrada faiscou e explodiu em chamas.
Em menos de um minuto, as enxárcias da mezena haviam pegado fogo e a vela mestra abriu-se, suas amarras foram destruídas, um lençol caindo em chamas. Depois, o fogo se espalhou depressa demais para que seu progresso pudesse ser seguido; tudo pareceu incendiar-se ao mesmo tempo.
— Agora — Jared disse repentinamente. — Vamos descer. Os porões vão pegar fogo em um minuto e essa será a melhor hora para escapar daqui. Ninguém nos verá.
Ele tinha razão; quando deslizamos com toda a cautela para fora da taverna, dois homens materializaram-se ao lado de Jared — marinheiros que trabalhavam para ele mesmo, armados com pistolas e aguilhões de marfim -, porém ninguém mais notou nossa presença. Todos estavam voltados para a enseada, onde a superestrutura do Patagônia era visível agora como um esqueleto negro dentro de um corpo de chama ondulante. Ouviu-se uma série de estalos, tão seguidos uns dos outros que soavam como rajada de metralhadora. Em seguida, uma estrondosa explosão ergueu-se do centro do navio num chafariz de fagulhas e madeira incandescente.
— Vamos. — A mão de Jamie agarrou meu braço com firmeza e eu não fiz nenhum protesto. Seguindo Jared, escoltados pelos marinheiros, abandonamos o cais furtivamente, como se tivéssemos sido nós a deflagrar o incêndio.
A casa de Jared em Paris ficava na rue Tremoulins. Era uma área próspera, com casas de fachada de pedra e três, quatro e cinco andares, coladas umas nas outras. Aqui e ali, uma casa muito grande erguia-se sozinha em seu próprio jardim, mas, em relação à maioria, um ladrão de porte razoavelmente atlético poderia pular de telhado em telhado sem nenhuma dificuldade.
— Muhm — foi a observação solitária de Murtagh, ao observarmos a casa de Jared. — Encontrarei meu próprio alojamento.
— Se o deixa nervoso ter um teto decente sobre sua cabeça, companheiro, pode dormir nos estábulos — Jamie sugeriu. Abriu um largo sorriso para seu pequeno e circunspecto padrinho. — Mandaremos o criado levar seu mingau numa bandeja de prata.
Dentro, a casa era mobiliada com confortável elegância, embora, como pude perceber mais tarde, fosse espartana em comparação à maioria das casas da nobreza e dos burgueses ricos. Suponho que isso em parte devia-se ao fato de que a casa não tinha uma mulher. Jared nunca se casara, embora não mostrasse nenhum sinal de sentir falta de uma esposa.
— Bem, ele tem uma amante, é claro —Jamie explicou quando especulei sobre a vida privada de seu primo.
— Ah, claro — murmurei.
— Mas ela é casada. Jared contou-me certa vez que um homem de negócios jamais deveria se envolver com mulheres solteiras. Disse que elas exigem demais do seu tempo e dão despesa. E se você se casa com elas, vão gastar todo o seu dinheiro e você vai acabar pobre.
— Bela opinião ele tem sobre as mulheres — eu disse. — O que ele acha de você ter se casado, apesar de todos esses conselhos úteis?
Jamie riu.
— Bem, para começar, eu não tenho nenhum dinheiro, portanto não posso ficar mais pobre. Ele acha que você é muito decorativa, mas disse que eu preciso comprar-lhe um vestido novo.
Abri a roda da saia de meu vestido de veludo verde, mais do que um pouco enxovalhada.
— Acho que sim — concordei. — Ouvou andar por aí enrolada num lençol depois de algum tempo. Este ja está ficando apertado na cintura.
— No resto também — ele disse, rindo ao me olhar de cima a baixo. Recuperou seu apetite, Sassenach?
— Ah! — exclamei friamente. — Sabe muito bem que Annabelle MacRannoch possui o tamanho e o formato do cabo de uma pá, enquanto eu não.
— Você, não — ele concordou, avaliando-me com aprovação. — Graças a Deus. — Deu uns tapinhas com intimidade no meu traseiro.
— Devo me reunir com Jared no armazém hoje de manhã para examinarmos os livros da contabilidade, depois vamos visitar alguns de seus clientes, para ele me apresentar. Vai ficar bem aqui sozinha?
— Sim, claro — eu disse. -vou explorar um pouco a casa e conhecer os empregados. — Eu havia conhecido os empregados em conjunto quando chegamos no fim da tarde de ontem, mas como fizemos uma refeição leve em nosso quarto, não vira mais ninguém desde então, além do criado de libré que trouxera o jantar e a camareira que viera de manhã cedo para abrir as cortinas, arrumar e acender a lareira e levar o urinol. Acovardeime um pouco à idéia de repentinamente estar no comando de toda uma criadagem, mas tranqüilizei-me pensando que não poderia ser muito diferente do que dirigir serventes de hospital e enfermeiras novatas, como já fizera anteriormente, como enfermeira-chefe numa base militar francesa em 1943.
Depois da partida de Jamie, sem pressa, fiz toda a toalete que podia ser feita com água e um pente, que eram os únicos implementos de que eu dispunha para me arrumar. Se Jared falava a sério sobre a realização de jantares, eu podia ver que um vestido novo seria apenas o começo.
Na verdade, eu possuía numa gaveta lateral da minha caixa de remédios os raminhos desfiados de salgueiro com que limpava meus dentes. Retirei um deles da caixa e comecei o trabalho, meditando sobre a incrível sorte que nos levara ali.
Praticamente impedidos de viver na Escócia, teríamos que encontrar um lugar para criar nosso futuro, fosse na Europa ou emigrando para a América. Considerando-se o que eu agora sabia sobre a atitude de Jamie em relação a navios, não estava nem um pouco surpresa por ele ter preferido a França desde o começo.
Os Fraser tinham laços poderosos com a França; muitos deles, como o abade Alexander e Jared Fraser, fizeram a vida ali, raramente, ou talvez nunca, retornando à sua Escócia natal. E também havia muitos jacobitas, Jamie dissera-me, que haviam seguido seu rei ao exílio e agora viviam da melhor forma que podiam na França ou na Itália, enquanto aguardavam a reabilitação da Casa Stuart.
— Sempre se discute o assunto — ele dissera. — Nas casas, principalmente, não nas tavernas. E é por isso que nada acontece. Quando a discussão chega às tavernas, você sabe que é sério.
— Diga-me — perguntei, observando-o sacudir a poeira do casaco -, todos os escoceses já nascem com conhecimento de política ou é só você?
Ele riu, mas logo ficou sério ao abrir o enorme armário e pendurar o casaco, que tinha um ar desgastado e patético, pendurado sozinho no enorme espaço que recendia a um aroma agradável e intenso de cedro.
— Bem,vou lhe dizer, Sassenach, eu preferia não saber. Mas nascido onde nasci, em meio aos MacKenzie e aos Fraser, não tive muita escolha. E você não passa um ano na sociedade francesa e dois anos no exército sem aprender a ouvir o que está sendo dito, o seu significado e como diferenciar os dois. Na época em que estamos, entretanto, não sou só eu; não existe proprietário de terras nem colono nas Highlands que possa passar ao largo do que está para vir.
— Do que está para vir. — O que estava para vir?, perguntei-me. O que viria, caso não fôssemos bem-sucedidos em nossos esforços ali, era uma rebelião armada, uma tentativa de restaurar a monarquia Stuart, liderada pelo filho do rei exilado, príncipe Carlos Eduardo (Casimir Maria Sylvester) Stuart.
— Bonnie Prince Charlie — disse, sussurrando comigo mesma, olhando minha imagem refletida no enorme tremo, um aparador com espelho alto, ocupando o espaço da parede entre duas janelas. Ele estava ali, agora, na mesma cidade, talvez a uma pequena distância. Como seria ele? Só conseguia imaginá-lo em termos de seu retrato histórico habitual, que mostrava um jovem atraente, ligeiramente efeminado, de cerca de dezesseis anos, lábios macios e rosados e cabelos empoados, conforme a moda da época. Ou as pinturas imaginadas, mostrando uma versão mais robusta, brandindo uma espada de folha larga enquanto descia de um barco nas costas da Escócia.
Uma Escócia que ele iria arruinar e deixar devastada na luta para retomar o trono para seu pai e para si mesmo. Fadado ao fracasso, atrairia apoio suficiente para dividir o país e comandaria seus partidários por uma guerra civil, até um final sangrento no campo de batalha de Culloden. Depois, ele fugiria de volta para a segurança da França, mas o castigo de seus inimigos seria aplicado àqueles que ele deixou para trás.
Era para evitar esse desastre que nós viéramos para a França. Parecia inacreditável, quando se pensava sobre isso na paz e no luxo da casa de Jared. Como se podia impedir uma rebelião? Bem, se os levantes eram fomentados nas tavernas, talvez pudessem ser evitados em mesas de jantar.
Encolhi os ombros para a imagem no espelho, soprei um cacho desgarrado sobre um dos olhos e desci para angariar as boas graças da cozinheira.
A criadagem, a princípio inclinada a me ver com amedrontada suspeita, logo percebeu que eu não tinha nenhuma intenção de interferir em seu trabalho e relaxou em um estado de espírito de cautelosa e obsequiosa cordialidade. No começo, eu imaginara, no meu estado de entorpecimento e cansaço, que havia pelo menos uma dúzia de criados alinhados no vestíbulo para minha inspeção. Na verdade, havia dezesseis deles, contando-se o cavalariço, o moço da estrebaria e o amolador de facas, que eu não notara na formação geral. Eu estava ainda mais impressionada com o sucesso de Jared nos negócios, até perceber como os criados ganhavam pouco: um par de sapatos novos e duas libras francesas por ano para os criados de libré, um pouco menos para as arrumadeiras e ajudantes de cozinha, um pouco mais para personagens de categoria superior como madame Vionnet, a cozinheira, e o mordomo, Magnus.
Enquanto eu examinava o funcionamento dos arranjos domésticos e armazenava as informações que pudesse colher em casa por meio dos mexericos das arrumadeiras, Jamie saía com Jared todo dia, visitando clientes, conhecendo pessoas. Ao estabelecer essas ligações sociais, que poderiam ser valiosas para um príncipe exilado, ele preparava-se para “dar assistência ao príncipe”. Era entre os convidados aos jantares que poderíamos encontrar aliados — ou inimigos.
— St. Germain? — eu disse, repentinamente captando um nome familiar no meio da tagarelice de Marguerite, enquanto ela lustrava o assoalho de parque. — O conde St. Germain?
— Oui, madame. — Era uma jovem baixa, gorducha, com um rosto estranhamente achatado e olhos esbugalhados que a faziam parecer um linguado, mas era amável e ansiosa para agradar. Ela franziu os lábios num pequeno círculo, anunciando a revelação de algum mexerico realmente escandaloso. Mostrei-me o mais interessada possível.
— O conde, madame, tem péssima reputação — disse, afetadamente. Como isso também se aplicava — segundo Marguerite — a quase todos que vinham ao jantar, arqueei as sobrancelhas, à espera de mais detalhes.
— Ele vendeu a alma ao diabo, sabe — confidenciou, abaixando a voz e olhando ao redor como se o cavalheiro pudesse estar espreitando por trás do ressalto da lareira. — Ele celebra a Missa Negra, em que o sangue e a carne de crianças inocentes são compartilhados entre os seres diabólicos!
Belo espécime você escolheu para transformar em inimigo, pensei comigo mesma.
— Ah, todo mundo sabe, madame — Marguerite assegurou-me. — Mas não importa; as mulheres são loucas por ele, mesmo assim; aonde quer que ele vá, elas se jogam para cima dele. Mas, por outro lado, ele é rico. — Obviamente, esta última qualificação era ao menos suficiente para contrabalançar, se não ultrapassar, o fato de beber sangue e comer carne humana.
— Que interessante — eu disse. — Mas eu pensava que monsieur lê comte fosse um concorrente de monsieur Jared; ele também não importa vinhos? Por que monsieur Jared o convidou, então?
Marguerite ergueu os olhos do assoalho e riu.
— Ora, madame! Para que monsieur Jared possa servir o melhor Beaune durante o jantar, dizer a monsieur lê comte que acabou de adquirir dez caixas e, ao fim da refeição, generosamente presenteá-lo com uma garrafa para ele levar para casa!
— Ah, sei — eu disse, rindo. — E monsieur Jared também é da mesma forma convidado para jantar com monsieur lê comte’?
Ela balançou a cabeça, confirmando, o lenço branco nos cabelos sacudindo-se acima da garrafa de óleo e do esfregão.
— Ah, sim, madame. Mas não com a mesma freqüência!
O conde St. Germain felizmente não fora convidado para o jantar desta noite. Jantamos simplesmente, enfamille, de modo que Jared pudesse ensaiar Jamie nos detalhes finais a serem resolvidos antes de sua partida. Desses, o mais importante era o lever (levantar-se) do rei, em Versalhes.
Ser convidado para o lever do rei era uma significativa marca de consideração, Jared explicou durante o jantar.
— Não com você, rapaz — disse gentilmente, sacudindo um garfo para Jamie. — Comigo. O rei quer se assegurar de que eu volte da Alemanha. Ou ao menos Duverney, o ministro das Finanças. A última onda de impostos atingiu duramente os comerciantes e muitos estrangeiros foram embora, com os efeitos danosos sobre o Tesouro Real que você bem pode imaginar. — Fez uma careta ao pensar em impostos, franzindo o cenho para o filhote de enguia em seu garfo.
— Pretendo partir segunda-feira. Só estou esperando a notícia de que o Wilhelmina chegou a salvo em Calais; em seguida, partirei. —Jared abocanhou mais um pedaço de enguia e balançou a cabeça para Jamie, falando com a boca cheia. — Estou deixando os negócios em boas mãos, rapaz; não tenho nenhuma preocupação nesse aspecto. Mas precisamos conversar um pouco sobre outras questões antes da minha partida. Combinei com o conde Marischal que iremos com ele a Montmartre daqui a dois dias, para que você faça uma visita de cortesia a Sua Alteza, o príncipe Carlos Eduardo.
Senti um súbito baque de empolgação na boca do estômago e troquei um olhar rápido com Jamie. Ele balançou a cabeça para Jared, como se isso não fosse nada de mais, mas seus olhos cintilavam de expectativa quando olhou para mim. Então, esse era o começo de tudo.
— Sua Alteza vive uma vida muito reservada em Paris — Jared dizia, enquanto caçava o último pedaço de enguia, escorregadia de manteiga, em volta da borda do prato. — Não seria apropriado que ele freqüentasse a sociedade, enquanto o rei não o receba oficialmente. Assim, Sua Alteza raramente sai de casa e convive com poucas pessoas, exceto os partidários de seu pai que vão visitá-lo.
— Não foi o que ouvi dizer — interrompi.
— O quê? — Dois pares de olhos perplexos voltaram-se em minha direção e Jared abaixou seu garfo, abandonando o último pedaço de enguia à própria sorte.
Jamie arqueou uma das sobrancelhas em minha direção.
— O que você ouviu, Sassenach, e de quem?
— Dos criados — eu disse, concentrando-me na minha própria enguia. Vendo Jared franzir o cenho, ocorreu-me pela primeira vez que não devia ser muito apropriado à dona da casa ficar de mexericos com as arrumadeiras. Ora, para o inferno, pensei com rebeldia. Não me restava muita coisa a fazer.
— A arrumadeira diz que Sua Alteza o príncipe Carlos tem visitado a princesa Louise de La Tour de Rohan — eu disse, arrancando um pedaço de enguia do garfo e mastigando devagar. Eram deliciosos, mas davam uma sensação desagradável se engolidos inteiros, como se a criatura ainda estivesse viva. Engoli cuidadosamente. Até então, tudo bem.
— Na ausência do marido da princesa — acrescentei delicadamente. Jamie parecia se divertir, Jared parecia horrorizado.
— A princesa de Rohan? — Jared perguntou. — Marie-LouiseHenriette-Jeanne de La Tour d’Auvergne? A família do seu marido é muito ligada ao rei. — Esfregou os dedos nos lábios, deixando um brilho amanteigado em volta da boca. — Isso pode ser muito perigoso — murmurou, como se falasse consigo mesmo. — Será que o pequeno idiota... não. Certamente ele tem mais juízo. Deve ser apenas inexperiência; ele não tem vivido muito em sociedade e as coisas são diferentes em Roma. Ainda assim... — Parou de murmurar e virou-se para Jamie com decisão.
— Essa será sua primeira tarefa, meu rapaz, a serviço de Sua Majestade. Você tem mais ou menos a mesma idade de Sua Alteza, mas você tem a experiência e a capacidade de julgamento do tempo que passou em Paris. E a educação que eu lhe dei, devo me vangloriar. — Sorriu brevemente para Jamie. — Pode se tornar amigo de Sua Alteza; facilitar tanto quanto possível seu trato com os homens que poderão lhe ser úteis. Já conheceu a maioria deles a essa altura. E explique a Sua Alteza, o mais diplomaticamente possível, que o galanteio na direção errada pode causar danos consideráveis aos objetivos de seu pai.
Jamie balançou a cabeça distraidamente, com toda a certeza pensando em outra coisa.
— Como a nossa copeira soube das visitas de Sua Alteza, Sassenach? — perguntou. — Ela não sai de casa mais do que uma vez por semana, para ir à missa, não é?
Sacudi a cabeça e engoli o bocado seguinte antes de responder.
— Até onde pude apurar, nossa ajudante de cozinha ouviu isso do amolador de facas, que ouviu do rapaz da estrebaria, que ouviu do cavalariço do vizinho. Não sei quantas pessoas há nesse meio, mas a casa dos Rohan fica a três portas daqui. Imagino que a princesa também saiba tudo a nosso respeito — acrescentei animadamente. — Ao menos é provável que saiba, se conversa com sua ajudante de cozinha.
— Uma lady não fica de mexericos com as empregadas — Jared disse friamente. Estreitou os olhos para Jamie numa súplica silenciosa para que controlasse melhor sua mulher.
Pude ver o canto da boca de Jamie contorcer-se, mas ele meramente bebeu um gole de seu Montrachet e mudou de assunto para uma discussão sobre a mais recente iniciativa de Jared; um carregamento de rum, a caminho da Jamaica.
Quando Jared tocou o sino para que a mesa fosse tirada e o conhaque servido, pedi licença e saí. uma das idiossincrasias de Jared era o gosto por longas e escuras cigarrilhas para acompanhar seu conhaque e eu tinha a distinta sensação de que, cuidadosamente mastigadas ou não, as enguias que eu comera não iriam gostar de serem defumadas.
Deitei-me na cama e tentei, com limitado sucesso, não pensar em enguias. Fechei os olhos e tentei pensar na Jamaica — em lindas praias brancas sob o sol tropical. Mas a idéia da Jamaica levou-me a pensar no Wilhelmina e a idéia de navios me fez pensar no mar, que me levou direto de volta a imagens de gigantescas enguias, enroscando-se e serpenteando por ondas verdes subindo e descendo. Saudei com alívio a chegada de Jamie, sentando-me na cama quando ele entrou.
— Ufa! — Ele recostou-se contra a porta fechada, abanando-se com a ponta solta de seu jabô. — Sinto-me como uma salsicha defumada. Eu gosto do Jared, mas ficarei muito satisfeito quando ele tiver levado suas malditas cigarrilhas para a Alemanha.
— Bem, não chegue perto de mim, se estiver cheirando a cigarrilha. — eu disse. — As enguias não gostam de fumaça.
— Não as culpo nem um pouco por isso. — Tirou seu casaco e desabotoou a camisa. — Acho que é um plano, sabe — confidenciou, indicando a porta com um movimento da cabeça enquanto tirava a camisa. — Como acontece com as abelhas.
— Abelhas?
— Como você leva uma colméia de um lugar para o outro — explicou, abrindo a janela e pendurando a camisa do lado de fora, na tranca no batente da janela. — Você enche um cachimbo do tabaco mais forte que puder encontrar, enfia o cachimbo na colméia e sopra fumaça lá dentro, nos favos. Todas as abelhas caem, atordoadas, e você então pode levá-las para onde quiser. Acho que é isso que Jared faz com seus clientes; enche-os de fumaça até ficarem entorpecidos e terem assinado pedidos do triplo da quantidade de vinho que pretendiam encomendar antes de recuperarem os sentidos.
Dei uma risadinha e ele abriu um largo sorriso, colocando o dedo nos lábios quando ouviu os passos leves de Jared começando a descer o corredor, passando diante de nossa porta e seguindo em direção a seu próprio quarto.
Passado o perigo de ser descoberto, ele veio e esticou-se a meu lado, vestido apenas com seu kilt e meias.
— Não está insuportável? — ele perguntou. — Posso dormir na saleta de vestir, se estiver. Ou colocar a cabeça para fora da janela para arejar.
Cheirei seus cabelos, onde o odor do tabaco se infiltrara nas ondas ruivas. A luz de vela projetava reflexos dourados nas mechas vermelhas e eu as despenteei com os dedos, sentindo sua maciez e volume, tocando o crânio duro e sólido embaixo.
— Não, não está insuportável. Então, você não está preocupado com a partida de Jared dentro de pouco tempo?
Ele beijou minha testa e deitou-se, a cabeça sobre a almofada. Sorriu para mim, sacudindo a cabeça.
— Não. Já fui apresentado a todos os principais clientes e capitães, conheço todos os homens dos armazéns e as autoridades, tenho as listas de preços e os inventários dos estoques na memória. O que resta a aprender sobre o negócio terei que aprender tentando. Jared não pode me ensinar mais nada.
— E o príncipe Carlos?
Ele semicerrou os olhos e soltou um pequeno grunhido de resignação.
— Sim, bem. Quanto a isso, tenho que deixar nas mãos de Deus, não nas de Jared. E acho até que será mais fácil se Jared não estiver por perto para ver o que estou fazendo.
Deitei-me a seu lado e ele virou-se para mim, passando o braço em volta da minha cintura de modo que ficássemos bem juntos.
— O que vamos fazer? — perguntei. — Tem alguma idéia, Jamie?
Eu sentia seu hálito quente em meu rosto, cheirando a conhaque, e inclinei a cabeça para cima para beijá-lo. Sua boca larga e macia abriu-se sobre a minha e ele demorou-se nesse beijo por um instante antes de responder.
— Ah, eu tenho algumas idéias — disse, afastando-se com um suspiro. — Só Deus sabe no que vão dar, mas eu tenho algumas idéias.
— Conte-me.
— Muhm. — Ajeitou-se mais confortavelmente, virando-se de costas e envolvendo-me com um braço, a cabeça em seu ombro.
— Bem — começou -, a meu ver, é uma questão de dinheiro, Sassenach.
— Dinheiro? Pensei que fosse uma questão de política. Os franceses não querem Jaime reabilitado porque isso causará problemas aos ingleses? Do pouco que me recordo, Luís queria... irá querer — corrigi-me — que Carlos Eduardo distraia o rei Jorge do que Luís está tramando em Bruxelas.
— Eu acho que ele quer — disse -, mas restaurar uma monarquia exige dinheiro. E o próprio Luís não tem tanto dinheiro que possa usá-lo de um lado para travar guerras em Bruxelas e de outro para financiar invasões à Inglaterra. Ouviu o que Jared disse sobre o Tesouro Real e os impostos?
— Sim, mas...
— Não, não será Luís quem fará isso acontecer — disse, esclarecendo-me. — Embora ele tenha uma contribuição a dar, é claro. Não, há outras fontes de recursos que Jaime e Carlos também irão tentar, que são as famílias de banqueiros franceses, o Vaticano e a corte de Espanha.
— Então, acha que Jaime está cobrindo o Vaticano e a corte espanhola e Carlos os banqueiros franceses? — perguntei, interessada.
Ele balançou a cabeça, fitando os painéis esculpidos do teto. Os painéis de nogueira eram de um marrom-claro e suave à luz bruxuleante das velas, com rosetas mais escuras e fitas entrelaçando-se em cada canto.
— Sim, é o que penso. Tio Alex mostrou-me a correspondência de Sua Majestade o rei Jaime e eu diria que os espanhóis são sua melhor chance, a julgar por ela. O papa sente-se obrigado a apoiá-lo, você sabe, tratando-se de um monarca católico. O papa Clemente apoiou Jaime por muitos anos e agora que Clemente está morto, Benedito continua a apoiá-lo, mas não em um nível tão alto quanto antes. Mas tanto Felipe da Espanha quanto Luís são primos de Jaime; é para o dever de sangue dos Bourbon que ele está apelando. — Sorriu ironicamente para mim, com um olhar de esguelha. — E pelo que andei vendo, posso dizer-lhe que o sangue real corre bem fino quando se trata de dinheiro, Sassenach.
Erguendo um pé de cada vez, ele retirou as meias com apenas uma das mãos e atirou-as sobre a banqueta do quarto.
— Jaime conseguiu algum dinheiro da Espanha há trinta anos — ele observou. — Uma pequena frota de navios e alguns homens Foi a Revolução de 1715. Mas ele não teve sorte e as forças de Jaime foram derrotadas em Sheriffsmuir antes mesmo que o próprio Jaime chegasse. Portanto, eu diria que os espanhóis provavelmente não estão muito ansiosos para financiar uma segunda tentativa de restauração dos Stuart, não sem uma boa chance de que possa ser bem-sucedida.
— Então, Carlos veio para a França para tentar convencer Luís e os banqueiros — ponderei. — E segundo o que eu sei de história, será bemsucedido. O que nos deixa onde?
Jamie tirou o braço do meu ombro e espreguiçou-se, fazendo o colchão inclinar-se com a sua mudança de posição.
— Me deixa vendendo vinho para banqueiros, Sassenach — disse, bocejando — E você conversando com arrumadeiras. E se soprarmos bastante fumaça, talvez a gente consiga atordoar as abelhas.
Pouco antes da partida de Jared, ele levou Jamie à pequena casa em Montmartre onde Sua Alteza, príncipe Carlos Eduardo Luís Filipe Casimir etc Stuart estava residindo, aguardando para ver o que Luís faria ou não por um primo pobre com aspirações a um trono.
Eu os acompanhara até a porta, ambos vestidos em seus melhores trajes, e passei o tempo em que ficaram fora imaginando o encontro em minha mente, perguntando-me como teria sido.
— Como foi? — perguntei a Jamie, assim que ficamos sozinhos quando ele retornou. — Como ele é?
Ele sacudiu a cabeça, pensando.
— Bem — disse, finalmente -, ele estava com dor de dente.
— O quê?
— Foi o que ele disse. E parecia realmente muito doloroso, seu rosto estava contorcido para um dos lados, com o maxilar um pouco inchado. Não sei dizer se ele é sempre assim frio e formal ou se não conseguia falar de dor, mas não disse muita coisa.
Depois das apresentações formais, de fato, os homens mais velhos, Jared, o conde Manschal e um sujeito com uma aparência um tanto desalinhada chamado informalmente de “Balhaldy”, começaram a se aproximar e a falar de política escocesa, deixando Jamie e Sua Alteza mais ou menos entregues a si mesmos
— Tomamos um copo de conhaque — Jamie relatou obedientemente, diante de minha insistência. — Eu lhe perguntei o que estava achando de Paris e ele disse que estava achando um pouco monótono e sentindo-se confinado. Depois, conversamos sobre caçadas. Ele prefere caçar com cachorros a caçar com batedores, e eu disse que também prefiro. Em seguida, disse-me quantos faisões havia abatido em uma única caçada na Itália. Falou da Itália, até dizer que o ar frio que entrava pela janela estava fazendo sua dor de dente piorar. Não é uma casa muito bem construída; apenas uma pequena vila. Então, bebeu um pouco mais de conhaque por causa de seu dente e eu lhe falei sobre a caça ao veado nas Highlands e ele disse que gostaria de experimentar isso um dia e me perguntou se eu era bom no arco. Eu disse que era e ele disse que esperava que tivesse a oportunidade de me convidar para caçar com ele na Escócia. Depois, Jared disse que precisava passar no armazém na volta, então Sua Alteza me estendeu a mão, eu a beijei e partimos.
— Humm — eu disse. Embora a razão afirmasse que naturalmente os famosos, ou futuramente famoso ou possivelmente famoso, de qualquer modo, deveriam ser como pessoas comuns em seu comportamento diário, eu tinha que admitir que achei esse relatório do príncipe um pouco decepcionante. Ainda assim, Jamie fora convidado a retornar. O importante, como ele ressaltou, era tornar-se próximo de Sua Alteza, a fim de ficar de olho em seus planos, à medida que algum se desenvolvesse. Imaginava se o rei da França causaria uma impressão um pouco mais forte pessoalmente.
Não demoramos muito a descobrir. Uma semana mais tarde, Jamie levantou-se na madrugada fria e escura e vestiu-se para o longo trajeto até Versalhes, para assistir ao lever do rei. Luís sempre acordava às seis horas da manhã. A essa hora, os poucos privilegiados escolhidos para comparecer à cerimônia de toalete do rei já deviam estar reunidos na antecâmara, prontos a seguir a procissão de nobres e auxiliares que eram necessários para ajudar o monarca a saudar o novo dia.
Acordado nas primeiras horas da madrugada por Magnus, o mordomo, Jamie saiu da cama aos tropeções, sonolento, e se aprontou, bocejando e resmungando. Àquela hora, minhas entranhas estavam tranqüilas e eu me comprazi naquela sensação deliciosa que se sente quando observamos alguém ter que fazer alguma coisa desagradável que nós mesmos não somos obrigados a fazer.
— Observe tudo atentamente — eu disse, a voz rouca de sono. — Para poder me contar tudo depois.
Com um sonolento grunhido de concordância, ele inclinou-se para me beijar, depois saiu arrastando os pés, a vela na mão, para mandar que aprontassem os cavalos. A última coisa que ouvi antes de me deixar afundar de novo no sono foi a voz de Jamie no andar térreo, repentinamente clara e alerta no ar cortante da noite, trocando despedidas com o cavalariço na rua, em frente à casa.
Considerando-se a distância de Versalhes e a possibilidade — sobre a qual Jared já avisara — de serem convidados a ficar para o almoço, não fiquei surpresa quando ele não voltou antes do meio-dia, mas não pude deixar de ficar curiosa e esperei com crescente impaciência até ele chegar — finalmente — quase na hora do chá.
— E como foi o lever do rei? — perguntei, aproximando-me para ajudar Jamie a tirar o casaco. Usando as justas luvas de pele de porco, obrigatórias segundo a moda na corte, ele não conseguia desabotoar os botões de prata, decorados com um brasão no veludo escorregadio.
— Ah, agora está bem melhor — ele disse, flexionando os ombros largos de alívio quando os botões se libertaram. O casaco estava apertado demais em seus ombros; removê-lo de seu corpo foi como descascar um ovo.
— Interessante, Sassenach — ele disse, em resposta à minha pergunta -, ao menos na primeira hora ou um pouco mais.
À medida que a procissão de nobres entrava no quarto de dormir oficial, cada qual portando seus apetrechos para o ritual diário — toalha, navalha, caneca, o selo real etc. —, os auxiliares abriam as cortinas pesadas que impediam a entrada da luz do alvorecer, desvelavam os cortinados da majestosa cama real e expunham o rosto de lê rói Louis ao olho interessado do sol nascente.
Ajudado a assumir uma posição sentada na beira da cama, o rei ali permaneceu bocejando e esfregando o queixo espetado com a barba por fazer, enquanto seus auxiliares passavam um robe de seda, pesado com bordados de prata e ouro, pelos ombros reais; em seguida, os ajudantes ajoelharam-se para retirar as grossas meias de flanela com que o rei dormia, substituindo-as por meias de seda, compridas e mais leves, e finalizando com chinelos macios forrados de pêlo de coelho.
Um a um, os fidalgos da corte vieram se ajoelhar aos pés do soberano, para cumprimentá-lo respeitosamente e perguntar como Sua Majestade havia passado a noite.
— Não muito bem, eu diria — Jamie interrompeu o relato para observar. — Ele parecia ter dormido pouco mais de uma ou duas horas, e um sono cheio de pesadelos.
Apesar dos olhos injetados e da papada caída, Sua Majestade balançou a cabeça graciosamente para seus cortesãos, depois se levantou devagar e fez uma ligeira mesura para os convidados privilegiados ao fundo do aposento. Um desalentado aceno de mão convocou um dos auxiliares do cerimonial, o qual conduziu Sua Majestade a uma cadeira que já o aguardava. Ele sentou-se e cerrou os olhos, desfrutando os cuidados ministrados por seus auxiliares, enquanto os visitantes eram conduzidos, um de cada vez, pelo duque d’Orleans para se ajoelhar diante do rei e saudá-lo com algumas palavras. Petições formais seriam apresentadas mais tarde, quando haveria a chance de Luís estar suficientemente acordado para ouvi-las.
— Eu não estava lá para fazer nenhum pedido, somente para assinalar o meu favoritismo — Jamie explicou —, então apenas me ajoelhei e disse: “Bom-dia, Vossa Majestade”, enquanto o duque dizia ao rei quem era eu.
— O rei lhe disse alguma coisa? — perguntei.
Jamie riu, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça enquanto se alongava.
— Ah, sim. Abriu um dos olhos e me olhou como se não acreditasse. com o olho ainda aberto, Luís examinou o visitante de cima a baixo com uma espécie de débil interesse, depois comentou:
— Você é grande, hein?
— Eu disse: “Sim, Vossa Majestade” — Jamie relatou. — Em seguida ele perguntou: “Você sabe dançar?”, e eu disse que sim. Então, ele fechou o olho outra vez e o duque fez sinal para que eu voltasse ao meu lugar.
Encerradas as apresentações, os ajudantes do ritual monárquico diário, cerimoniosamente assistidos pelos principais nobres da corte, passaram à toalete do rei. Enquanto o faziam, os diversos peticionários adiantavam-se a um sinal do duque D’Orleans, para murmurar ao ouvido do rei enquanto ele virava a cabeça, a fim de acomodar a navalha, ou dobrava o pescoço para que sua peruca fosse ajustada.
— Ah, é? E você foi honrado com a permissão de ajudar Sua Majestade a assoar o nariz? — perguntei.
Jamie riu, estendendo as mãos entrelaçadas até os nós dos dedos estalarem.
— Não, graças a Deus. Afastei-me sorrateiramente para perto do armário, tentando parecer parte da mobília, com aqueles duques e condes anõezinhos todos olhando-me pelo canto dos olhos, como se a nacionalidade escocesa fosse alguma doença contagiosa.
— Bem, ao menos pôde ver tudo com a sua altura?
— Ah, sim. Isso eu fiz, até quando ele sentou-se na sua chaise percée.
— Ele fez realmente isso? Diante de todo mundo? — Eu estava fascinada. Já lera sobre isso, é claro, mas achava difícil de acreditar.
— Ah, sim, e todo mundo se comportando exatamente como fizeram quando ele lavou o rosto e assoou o nariz. O duque de Neve teve a inacreditável honra — acrescentou com ironia — de limpar o traseiro de Sua Majestade para ele. Não notei o que o duque fez com a toalha; levou-a para fora e mandou recobrir de ouro, sem dúvida.
— E foi um negócio muito cansativo — acrescentou, dobrando o corpo e colocando as mãos no chão para alongar os músculos das pernas. — Levou uma eternidade; o homem é preso como uma coruja.
— Preso como uma coruja? — perguntei, achando graça da comparação.
— Constipado, você quer dizer?
— Sim, com prisão de ventre. Não é de admirar, considerando-se o que se come na corte — acrescentou criticamente, esticando-se para trás. — Uma dieta terrível, só creme e manteiga. Ele devia comer mingau de aveia toda manhã. Resolveria o problema. Muito bom para os intestinos, sabe.
Se os escoceses eram teimosos a respeito de alguma coisa — e, de fato, tendiam a ser teimosos sobre muitas coisas, verdade seja dita —, eram em relação às virtudes do mingau de aveia no desjejum. Após milhares de anos vivendo numa terra tão pobre que havia pouco a comer além de aveia, haviam convertido a necessidade em virtude e insistiam que gostavam daquilo.
Jamie agora se atirara ao chão e fazia os exercícios da Royal Air Force que eu lhe recomendara para fortalecer os músculos de suas costas.
Voltando à sua observação anterior, perguntei:
— Por que você disse “preso como uma coruja”? Já ouvi alguma coisa referente a coruja, mas significando bêbado, não constipado. As corujas têm prisão de ventre?
Completando sua série de exercícios, ele virou-se e ficou deitado no tapete, ofegante.
— Ah, têm. — Deixou escapar um longo suspiro e recuperou o fôlego. Sentou-se e afastou os cabelos dos olhos. — Ou talvez, não, mas é isso o que dizem. As pessoas dizem que as corujas não têm ânus, de modo que não podem expelir o que comem, como os ratos, hein? Assim, os ossos e pêlos ingeridos são transformados numa bola, que a coruja vomita, não sendo capaz de se livrar dela pela outra extremidade.
— Verdade?
— Ah, sim, é verdade. É assim que você acha uma árvore de corujas; olha embaixo da árvore procurando bolotas no chão. As corujas fazem uma sujeira terrível — acrescentou, afastando o colarinho do pescoço para o ar entrar. — Mas elas têm ânus — informou-me. — Uma vez eu abati uma da árvore com uma atiradeira e olhei.
— Um garoto com uma mente curiosa, hein? — eu disse, rindo.
— Certamente, Sassenach. — Riu. — E elas também defecam. Uma vez, passei um dia inteiro sentado embaixo de uma árvore de corujas com lan, só para me certificar.
— Nossa, você deve ter sido muito curioso mesmo — observei.
— Bem, eu queria saber. lan não queria ficar sentado quieto por tanto tempo e eu tive que dar uns cascudos nele para ele parar de se mexer. — Jamie riu, recordando-se. — Assim, ele ficou ali parado comigo até acontecer e então pegou um punhado de bolotas de coruja, enfiou-as pela gola da minha camisa e saiu correndo como uma bala. Meu Deus, ele podia correr como o vento. — Uma sombra de tristeza atravessou seu rosto, a lembrança do amigo de infância com asas nos pés confundindo-se com recordações mais recentes de seu cunhado, mancando rigidamente, embora de bom humor, sobre uma perna de pau, resultado de uma bala recebida numa guerra estrangeira.
— Deve ser horrível viver assim — comentei, tentando distraí-lo. — Não observando corujas, quero dizer, o rei. Sem nenhuma privacidade, em nenhum momento, nem mesmo na privada.
— É verdade — Jamie concordou. — Mas por outro lado, ele é o rei.
— Humm. E suponho que o poder, o luxo e tudo o mais compensam muita coisa.
Ele deu de ombros.
— Bem, se compensam ou não, é a sua parte no seu acordo com Deus e ele não tem escolha a não ser fazer o melhor possível. — Pegou seu xale de xadrez, passou a ponta pelo cinto e jogou-o nas costas.
— Deixe-me ajudá-lo. — Peguei o broche de prata em forma de anel e prendi o tecido flamejante em cima do ombro. Ele arrumou o drapeado, alisando a lã de cores vivas entre os dedos.
— Eu também tenho um acordo semelhante, Sassenach — disse serenamente, abaixando os olhos para mim. Sorriu ligeiramente. — Embora graças a Deus isso não signifique convidar lan a limpar meu traseiro para mim. Mas eu nasci senhor de terras. Sou o responsável por aquelas propriedades e pelas pessoas que vivem lá, e tenho que fazer o melhor possível em relação a elas.
Estendeu o braço e tocou de leve em meus cabelos.
— Foi por isso que fiquei feliz quando você disse que nós viríamos para ver o que poderíamos fazer. Porque há uma parte de mim que não gostaria de mais nada além de levar você e a criança para um lugar bem distante, para passar o resto da vida trabalhando com a terra e os animais, para chegar à noite e me deitar a seu lado, e dormir tranqüilo a noite inteira.
Os olhos de um azul profundo estavam perdidos em pensamento, enquanto a mão retornava às pregas de seu xale, acariciando o xadrez vívido do tartã dos Fraser, com a fina listra branca que distinguia Lallybroch das outras tribos e famílias.
— Mas, se o fizesse — continuou, como se falasse mais consigo mesmo do que comigo —, uma parte da minha alma se sentiria renegada e eu acho... eu acho que sempre ouviria as vozes do meu povo me chamando.
Pousei a mão em seu ombro e ele ergueu os olhos, um ligeiro sorriso enviesado na boca marcante.
— Eu também acho — concordei. — Jamie... o que quer que aconteça, o que quer que possamos fazer... — Parei, buscando as palavras. Como ocorrera tantas vezes antes, a absoluta enormidade da tarefa que havíamos assumido me deixava perplexa e sem fala. Quem éramos nós para alterar o curso da história, para mudar o curso dos acontecimentos, não para nós mesmos, mas para príncipes e camponeses, para toda a nação escocesa?
Jamie colocou sua mão sobre a minha e apertou-a com confiança.
— Ninguém pode pedir mais de nós do que o melhor que possamos fazer, Sassenach. Não, se houver derramamento de sangue, ao menos ele não estará em nossas mãos e queira Deus que não chegue a isso.
Pensei nas lápides dos clãs, cinzentas e solitárias na charneca de Culloden e nos homens das Highlands que estariam sepultados sob elas caso fracassássemos.
— Queira Deus — repeti.
Entre audiências reais e as exigências diárias dos negócios de Jared, Jamie parecia estar achando a vida atarefada. Toda manhã, ele desaparecia com Murtagh logo após o desjejum para verificar as novas entregas no armazém, fazer inventários, visitar as docas no Sena e conduzir uma turnê pelo que parecia ser, segundo sua descrição, tavernas extremamente desagradáveis.
— Bem, ao menos você tem o Murtagh — observei, encontrando consolo no fato —, e vocês dois não podem entrar em muita confusão em plena luz do dia. — A julgar pela aparência, não se daria nada pelo magro, mas rijo homenzinho. Seus trajes diferenciavam-se daqueles dos vagabundos nas docas somente pelo fato de que a parte de baixo era de xadrez de tartã, mas eu havia atravessado metade da Escócia com Murtagh para resgatar Jamie da prisão de Wentworth e não havia nenhuma outra pessoa no mundo a quem eu confiaria seu bem-estar.
Depois do almoço, Jamie fazia suas rondas de visitas — sociais e a negócios, ambas em número crescente — e em seguida se retirava para seu gabinete por uma ou duas horas com os livros de registros de contas antes do jantar. Ele estava muito ocupado.
Eu não. Alguns dias de educada escaramuça com madame Vionnet, a cozinheira-chefe, deixaram claro quem estava no comando da casa, e não era eu. Madame vinha à minha sala-de-estar toda manhã para me consultar sobre o cardápio do dia e me apresentar a lista de despesas necessárias para abastecer a cozinha — frutas, legumes, manteiga e leite de uma fazenda logo na saída da cidade, entregue fresco todas as manhãs, peixe fisgado no Sena e vendido num carrinho de mão na rua, junto com mexilhões frescos que projetavam suas curvas negras e seladas de montes de plantas aquáticas murchas. Eu examinava as listas por pura formalidade, aprovava tudo, elogiava o jantar da noite anterior e nada mais. Fora uma ou outra chamada para abrir o armário de roupas de cama e mesa, a adega, o porão ou a despensa com uma chave do meu molhe, meu tempo era todo meu, até a hora de me vestir para o jantar.
A vida social da residência de Jared continuava quase a mesma de quando ele estava morando ali. Eu ainda estava cautelosa quanto a promover reuniões sociais em larga escala, mas realizávamos jantares íntimos toda noite, ao qual compareciam nobres, cavalheiros e damas, jacobitas pobres no exílio, comerciantes ricos e suas esposas.
Entretanto, descobri que comer e beber e se preparar para comer e beber não era de fato uma ocupação satisfatória. Fiquei tão irrequieta a ponto de Jamie por fim sugerir que eu o ajudasse a fazer os lançamentos nos livros de escrituração contábil para ele.
— Melhor fazer isso do que ficar aí se roendo — ele disse, olhando criticamente para minhas unhas roídas. — Além do mais, você tem uma letra melhor do que a dos funcionários do armazém.
E foi assim que eu estava no gabinete, diligentemente debruçada sobre os enormes livros da contabilidade, quando o sr. Silas Hawkins chegou no final de uma tarde, com uma encomenda de dois toneis de conhaque da região de Flandres. O sr. Hawkins era um inglês corpulento e próspero; emigrante como Jared, especializara-se na exportação de conhaques franceses para sua terra natal.
Imaginei que um comerciante que parecia abstêmio teria alguma dificuldade em vender vinhos e outras bebidas alcoólicas a granel. O sr. Hawkins era afortunado nesse aspecto, já que permanentemente exibia faces rosadas e o sorriso alegre de um festeiro. Entretanto, Jamie me contara que o sujeito nunca testava suas próprias mercadorias e na verdade raramente bebia alguma coisa além de cerveja escura e pouco refinada, embora seu apetite para comida fosse uma lenda nas tavernas que visitava. Uma expressão calculista e alerta espreitava no fundo de seus olhos castanhos e brilhantes, por trás da serena cordialidade que azeitava suas transações.
— Meus melhores fornecedores, posso afirmar — declarou, assinando um grande pedido com um floreio. — Sempre confiáveis, sempre de primeira qualidade. Sentirei muito a falta de seu primo em sua ausência — ele disse, fazendo uma mesura para Jamie -, mas ele fez uma boa escolha na hora de indicar um substituto. Um escocês sempre mantém os negócios em família.
Os olhos pequenos e brilhantes demoraram-se no kilt de Jamie, o vermelho dos Fraser vívido contra os lambris de madeira escura da sala de visitas.
— Acabam de chegar da Escócia? — o sr. Hawkins perguntou descontraidamente, enfiando a mão dentro do casaco.
— Não, já estou na França há algum tempo. —Jamie sorriu, encerrando o assunto. Pegou a caneta de pena do sr. Hawkins, mas achando-a rombuda demais para seu gosto deixou-a de lado, pegando outra nova do buquê de penas de ganso que saltava de um pequeno jarro de vidro sobre o aparador.
— Ah. Vejo pela sua roupa que é um escocês das Highlands; achei que talvez pudesse me informar sobre os sentimentos que predominam atualmente naquela região do país. Ouvem-se muitos boatos, sabe. — O sr. Hawkins afundou-se na cadeira diante do aceno da mão de Jamie, o rosto redondo, rosado, aparentemente concentrado na volumosa bolsa de couro que retirara do bolso.
— Quanto a boatos, bem, esse é o estado normal das coisas na Escócia, não? — Jamie disse, afiando a pena nova com atenção. — Mas sentimentos? Não, se quer dizer política, receio que eu mesmo não dê muita atenção a isso. — O pequeno canivete fazia um som agudo de corte conforme as lascas duras eram talhadas da haste grossa da pena.
O sr. Hawkins retirou várias moedas de prata de sua bolsa, empilhando-as cuidadosamente numa coluna perfeita entre os dois homens.
— Caramba! — disse, quase distraidamente. — Se assim for, é o primeiro escocês das Highlands que eu conheço que pensa assim.
Jamie terminou de apontar a pena de escrever e ergueu a ponta da caneta, estreitando os olhos para avaliar o ângulo do corte.
— Humm? — disse vagamente. — Ah, bem, tenho outras questões com que me preocupar; administrar um negócio como este exige todo o nosso tempo, como o senhor mesmo sabe, imagino.
— É verdade. — O sr. Hawkins recontou as moedas de sua pilha e retirou uma, substituindo-a por duas menores. — Ouvi dizer que Carlos Eduardo chegou há pouco tempo a Paris — disse. Seu rosto redondo de beberrão não demonstrava mais do que um leve interesse, mas os olhos estavam alertas em suas bolsas de gordura.
— Ah, sim —Jamie murmurou, o tom de sua voz deixando em aberto se isso era o reconhecimento de um fato ou meramente uma expressão de educada indiferença. Tinha o pedido de compra diante dele e assinava cada folha com excessivo cuidado, desenhando as letras em vez de rabiscá-las apressadamente, como era de costume. Um homem canhoto, forçado em criança a escrever com a mão direita, ele sempre achara as letras difíceis, mas quase nunca se importunava com isso.
— Então, não compartilha as simpatias de seu primo nessa direção? Hawkins empertigou-se um pouco na cadeira, observando o topo da cabeça inclinada de Jamie, numa postura naturalmente neutra.
— Isso é algo do seu interesse, senhor? — Jamie ergueu a cabeça e olhou o sr. Hawkins direto nos olhos com um olhar azul e sereno. O gordo comerciante devolveu o olhar por um instante, depois abanou a mão rechonchuda num gesto de quem descarta a pergunta.
— De modo algum — disse afavelmente. — É que estou familiarizado com as inclinações jacobitas de seu primo, ele não faz nenhum segredo delas. Só estava me perguntando se todos os escoceses tinham a mesma opinião na questão das pretensões dos Stuart ao trono.
— Se conhece bem os escoceses das Highlands — Jamie disse secamente entregando-lhe uma cópia do pedido —, deve saber que é raro encontrar dois deles que concordem com alguma coisa além da cor do céu, e mesmo isso está sujeito a questionamento de vez em quando.
O sr. Hawkins riu, a pança de homem próspero sacudindo-se sob o colete, e enfiou o documento dobrado no casaco. Vendo que Jamie não estava disposto a continuar nessa linha de conversa, interrompi-os nesse ponto com uma oferta hospitaleira de Madeira e biscoitos.
O sr. Hawkins pareceu tentado por um instante, mas depois sacudiu a cabeça pesarosamente, empurrando a cadeira para trás para levantar-se.
— Não, não, muito obrigado, milady, mas não. O Arabella aporta nesta quinta-feira e eu tenho que estar em Calais para esperá-lo. E ainda há muito a fazer até eu poder colocar o pé na carruagem para partir. — Fez uma careta para um maço de ordens de compra e recibos que retirara do bolso, acrescentou o recibo de Jamie à pilha e enfiou-a em uma larga carteira de couro de viagem.
— Ainda assim — disse, alegrando-se -, posso fazer alguns negócios no caminho. Devo visitar as hospedarias e tavernas entre Paris e Calais.
— Se vai parar em todas as tavernas entre aqui e a costa, só vai chegar a Calais no mês que vem — observou Jamie. Pegou sua própria moedeira da bolsa do kilt e arrastou a pequena pilha de moedas de prata para dentro.
— É verdade, milorde — disse o sr. Hawkins, franzindo a testa com tristeza. — Acho que devo omitir uma ou duas e visitá-las na volta.
— Certamente poderia enviar alguém a Calais em seu lugar, já que seu tempo é tão precioso, não? — sugeri.
Ele revirou os olhos expressivos, franzindo a boca pequena e jovial numa expressão o mais próxima possível da melancolia a que ele pôde chegar dentro das limitações de sua forma.
— Eu poderia fazer isso, milady. Mas o carregamento do Arabella, valha-me Deus, não pode ser confiado aos bons serviços de um funcionário. Minha sobrinha Mary está a bordo — confidenciou —, a caminho neste momento das costas da França. Tem apenas quinze anos e nunca se afastou de casa antes. Receio que não possa deixá-la encontrar o caminho para Paris por conta própria.
— Creio que não — concordei educadamente. O nome me pareceu familiar, mas eu não sabia explicar por quê. Mary Hawkins. Bastante comum; não conseguia ligar o nome a nenhum fato em particular. Ainda meditava sobre isso quando Jamie levantou-se para acompanhar o sr. Hawkins até a porta.
— Espero que a viagem de sua sobrinha seja agradável — disse educadamente. — Ela está vindo estudar? Ou visitar parentes?
— Está vindo para casar-se — disse o tio, satisfeito. — Meu irmão teve a felicidade de arranjar um casamento muito vantajoso para ela, com um membro da nobreza francesa. — Pareceu expandir-se de orgulho com o fato, os botões lisos de ouro esticando o tecido na cintura. — Meu irmão mais velho é baronete.
— Ela tem quinze anos? — perguntei, constrangida. Eu sabia que casamentos com pouca idade não eram raros, mas quinze anos? Ainda assim, eu me casara aos dezenove. E novamente aos vinte e sete. Eu sabia muito mais aos vinte e sete.
— Ha, sua sobrinha conhece o noivo há muito tempo? — perguntei cautelosamente.
— Ela não o conhece. Na verdade — o sr. Hawkins inclinou-se para mais perto, colocando o dedo sobre os lábios e abaixando a voz —, ela nem sabe a respeito do casamento. As negociações ainda não estão terminadas, sabe?
Fiquei chocada e abri a boca para dizer alguma coisa, mas Jamie segurou meu cotovelo com força para me advertir.
— Bem, se o cavalheiro pertence à nobreza, talvez vejamos sua sobrinha na corte — sugeriu, empurrando-me com firmeza em direção à porta como a pá de uma máquina de terraplenagem. O sr. Hawkins, movendo-se forçosamente para evitar que eu o pisasse, recuou ainda falando.
— É bem verdade, milorde Broch Tuarach. De fato, eu consideraria uma grande honra que o senhor e sua senhora conhecessem minha sobrinha. Tenho certeza de que ela sentiria um grande conforto na companhia de uma conterrânea — acrescentou com sorriso adulador para mim. — Não que eu queira me aproveitar do que não é mais do que uma relação de negócios, sem dúvida.
Pois sim que não queria se aproveitar, pensei indignada. Você faria qualquer coisa para enfiar sua família na nobreza francesa, inclusive casar sua sobrinha com... com...
— Ha, afinal quem é o noivo de sua sobrinha? — perguntei sem rodeios. O rosto do sr. Hawkins adquiriu um ar astuto e ele inclinou-se suficientemente perto para sussurrar com voz rouca no meu ouvido.
— Na verdade, eu não deveria dizer nada até os papéis terem sido assinados, mas sendo a senhora quem pergunta... posso dizer-lhe que é um membro da Casa de Gascogne. E um membro de posição realmente alta!
— Realmente — eu disse.
O sr. Hawkins saiu esfregando as mãos num verdadeiro frenesi de expectativa, e eu me virei imediatamente para Jamie.
— Gascogne! Ele deve estar se referindo... mas não é possível, é? Aquele velho nojento com manchas de rapé no queixo que veio jantar aqui na semana passada?
— O visconde de Marigny? — Jamie disse, sorrindo diante de minha descrição. — Acho que é ele mesmo; é viúvo e o único homem disponível da linhagem, até onde eu sei. Mas não acho que era rapé; é que a barba dele cresce daquele jeito. Um pouco roído pelas traças — admitiu -, mas deve ser um inferno fazer a barba com todas aquelas verrugas.
— Ele não pode casar uma menina de quinze anos com... com... aquilo! E sem nem ao menos consultá-la!
— Ah, acho que pode, sim —Jamie disse, com uma calma irritante. — De qualquer modo, Sassenach, não é da sua conta. — Segurou-me com firmeza pelos dois braços e sacudiu-me de leve.
— Você me ouviu? Sei que parece estranho a você, mas é assim que as coisas são. Afinal — a boca larga curvou-se em um dos cantos —, você teve que se casar comigo contra a vontade. Ainda não se conformou com isso?
— Às vezes, eu me pergunto! — disse, com um safanão, tentando me desvencilhar, mas ele simplesmente me puxou para junto dele, rindo, e me beijou. Após um instante, desisti de lutar. Relaxei em seus braços, admitindo a capitulação, ainda que temporária. Eu iria me encontrar com Mary Hawkins, pensei, e veríamos exatamente o que ela pensava dessa proposta de casamento. Se ela não quisesse ver seu nome em um contrato de casamento, ligada ao visconde de Marigny, então... De repente, fiquei rígida, afastando-me do abraço de Jamie.
— O que foi? — perguntou, alarmado. — Está se sentindo mal, Sassenach? Você ficou lívida de repente!
E não era de admirar. Porque subitamente me lembrei de onde eu tinha visto o nome de Mary Hawkins. Jamie estava errado. Aquilo era da minha conta. Porque eu havia visto esse nome, manuscrito com base em calcografia, no topo de um mapa genealógico, a tinta envelhecida e desbotada pelo tempo, a cor original transformada num tom sépia. Mary Hawkins não estava destinada a ser a mulher do decrépito visconde Marigny. Ela iria se casar comjonathan Randall, no ano de 1745 de Nosso Senhor Jesus Cristo.
— Bem, ela não pode, não é? Jack Randall está morto. — Ele terminou de encher o cálice de conhaque e estendeu-o a mim. Sua mão estava firme na haste do cálice de cristal, mas a boca transformara-se numa linha cerrada e a voz deu à palavra “morto” um tom cortante e definitivo.
— Deite-se com os pés para cima, Sassenach. Você ainda está pálida.
A sua intimação, levantei os pés e estiquei-me no sofá. Jamie sentou-se junto à minha cabeça e distraidamente colocou a mão em meu ombro. Seus dedos eram quentes e fortes, delicadamente massageando a pequena cavidade da junta.
— Marcus MacRannoch disse-me que viu Randall pisoteado até a morte pelo gado nas masmorras da prisão de Wentworth — ele disse outra vez, como se quisesse se tranqüilizar pela repetição. — “Como um boneco de trapos, envolto em sangue.” Foi isso que sir Marcus disse. Ele afirmou com toda a certeza.
— Sim. — Tomei um pequeno gole do meu conhaque, sentindo o sangue voltar ao meu rosto. — Foi o que ele me disse também. Não, tem razão, o capitão Randall está morto. É que fiquei abalada quando me lembrei subitamente de Mary Hawkins. Por causa de Frank. — Olhei para minha mão esquerda, pousada sobre meu estômago. O fogo queimava na lareira e sua luz se refletiu na aliança lisa de ouro do meu primeiro casamento. A aliança de Jamie, de prata escocesa, brilhava no quarto dedo da outra mão.
— Ah. — A mão de Jamie em meu ombro paralisou-se. Sua cabeça estava inclinada, mas ele ergueu os olhos para me encarar. Não falávamos de Frank desde que eu resgatara Jamie de Wentworth, nem a morte de Jonathan Randall fora mencionada entre nós. Na ocasião, parecera de pouca importância, exceto enquanto significava que nenhum perigo nos ameaçava mais daquela direção. Desde então, eu evitava trazer qualquer lembrança de Wentworth a Jamie.
— Você sabe que ele está morto, não é, mo duinne? —Jamie sussurrou devagar, os dedos pousados no meu pulso e eu sei que ele falava de Frank, não de Jonathan.
— Talvez não — eu disse, os olhos ainda fixos na aliança. Ergui a mão, de modo que o metal brilhou na luz do final de tarde. — Se ele estiver morto, Jamie, se ele não vier a existir porque Jonathan está morto, então por que eu ainda tenho a aliança que ele me deu?
Ele fitou o anel e eu vi um pequeno músculo contorcer-se junto à sua boca. Vi que seu rosto também estava pálido. Não sabia se seria prejudicial para ele pensar em Jonathan Randall agora, mas não havia muita escolha.
— Tem certeza de que Randall não teve um filho antes de morrer? — perguntou. — Isso explicaria tudo.
— Sim, explicaria — eu disse. — Mas, não, tenho certeza de que não. Frank... — minha voz tremeu um pouco ao pronunciar seu nome e a mão de Jamie apertou meu pulso com mais força — Frank explicou-me com detalhes as circunstâncias trágicas da morte de Jonathan Randall. Disse que ele, Jack Randall, morreu no Campo de Culloden, na última batalha da revolução, e que seu filho nasceu alguns meses depois da morte do pai. Sua viúva casou-se outra vez, alguns anos mais tarde. Ainda que houvesse um filho ilegítimo, ele não estaria na linha de antepassados de Frank.
A testa de Jamie estava franzida e uma fina linha vertical corria entre as sobrancelhas.
— Poderia talvez ser um erro, que a criança não fosse de Randall? Frank pode descender apenas da linhagem de Mary Hawkins, pois sabemos que ela ainda vive.
Sacudi a cabeça, desanimada.
— Não vejo como. Se você tivesse conhecido Frank... mas, não, acho que nunca lhe contei. Quando me deparei com Jonathan Randall pela primeira vez, pensei naquele instante que ele era Frank. Não eram iguais, é claro, mas a semelhança era... impressionante. Não, Jack Randall foi um antepassado de Frank, sem dúvida.
— Sei. — Os dedos de Jamie haviam ficado úmidos; retirou-os do meu pulso e limpou-os distraidamente em seu kilt.
— Então... talvez a aliança não signifique nada, mo duinne — sugeriu meigamente.
— Talvez não. — Toquei o metal, quente como minha própria pele, depois deixei a mão cair desamparadamente. — Ah, Jamie, eu não sei! Eu não sei de nada!
Ele esfregou os nós dos dedos, cansado, na ruga entre seus olhos.
— Nem eu, Sassenach. — Abaixou a mão e tentou sorrir para mim.
— Mas uma coisa é certa — falou. — Você disse que Frank lhe contou que Jonathan Randall morreria em Culloden?
— Sim. Na verdade, eu mesma disse isso a Jack Randall, para assustá-lo, em Wentworth, quando ele me colocou para fora, na neve, antes... antes de voltar para você. — Seus olhos e sua boca cerraram-se num súbito espasmo e eu girei os pés para o chão, alarmada.
— Jamie! Você está bem? — Tentei colocar a mão em sua cabeça, mas ele afastou-se, levantando-se e dirigindo-se à janela.
— Não. Sim. Tudo bem, Sassenach. Passei a manhã toda escrevendo cartas e minha cabeça parece que vai explodir. Não se preocupe. — Afastou-me com um gesto da mão, pressionando a testa contra a vidraça fria da janela, os olhos fechados. Continuou a falar, como se quisesse distrair-se da dor.
— Então se você... e Frank... sabiam que Jack Randall morreria em Culloden, mas nós sabemos que ele ja morreu... então, pode ser feito, Claire.
— O que pode ser feito? — Eu o rondava ansiosa, querendo ajudá-lo, mas sem saber o que fazer. Claramente, ele não queria ser tocado.
— O que você sabe que acontecerá pode ser modificado. — Ergueu a cabeça da janela e sorriu para mim, com um ar cansado. Seu rosto ainda estava pálido, mas os vestígios do espasmo momentâneo haviam desaparecido. — Jack Randall morreu antes do devido tempo e Mary Hawkins se casará com outro homem. Ainda que isso signifique que seu Frank não nascerá... ou talvez nasça de alguma outra maneira — acrescentou, para me confortar —, também significa que temos uma chance de sermos bemsucedidos naquilo que pretendemos fazer. Talvez Jack Randall não tenha morrido no Campo de Culloden porque a batalha que deveria ocorrer ali nunca acontecerá.
Pude ver o esforço que ele estava fazendo para se virar, para se aproximar de mim e envolver-me em seus braços. Abracei-o pela cintura, de leve, sem me mexer. Ele abaixou a cabeça, repousando a testa sobre meus cabelos.
— Sei que isso deve fazê-la sofrer, mo duinne. Mas não lhe dá alívio saber o bem que pode advir daí?
— Sim — murmurei por fim, nas pregas de sua camisa. Desvencilhei-me delicadamente de seus braços e coloquei a mão em sua face. A ruga entre suas sobrancelhas estava mais funda e seus olhos meio desfocados, mas ele sorriu para mim.
— Jamie — eu disse -, vá para a cama se deitar. Mandarei um recado aos d’Arbanville avisando que não poderemos ir lá esta noite.
— Ah, não — protestou. -vou ficar bem. Eu conheço este tipo de dor de cabeça, Sassenach; é de ficar escrevendo muito tempo e uma hora de sono vai curá-la.vou subir agora. — Virou-se em direção à porta, depois hesitou e voltou-se outra vez, com um meio sorriso.
— E se eu gritar no meu sono, Sassenach, apenas coloque a mão sobre mim e diga “Jack Randall está morto”. Tudo ficará bem comigo outra vez.
Tanto a comida quanto a companhia na casa dos d’Arbanville foram boas. Chegamos em casa tarde da noite e eu caí num sono profundo assim que minha cabeça encostou no travesseiro. Dormi um sono sem sonhos, mas acordei repentinamente no meio da noite, sentindo que havia algo errado.
A noite estava fria e o acolchoado de penas de ganso havia escorregado para o chão, como costumava acontecer, deixando apenas o fino cobertor de lã sobre mim. Rolei na cama, semi-adormecida, buscando o calor do corpo de Jamie. Ele não estava ali.
Sentei-me, procurando-o, e o vi quase imediatamente, sentado na banqueta encaixada sob a janela, a cabeça entre as mãos.
— Jamie! O que foi? Está com dor de cabeça outra vez? — Tateei à cata da vela, pensando em ir buscar minha caixa de remédios, mas algo na maneira como ele estava sentado me fez abandonar a busca e ir para perto dele na mesma hora.
Ele respirava com dificuldade, como se tivesse corrido e, apesar do frio, seu corpo estava encharcado de suor. Toquei seu ombro e encontrei-o rígido e frio como uma estátua de metal.
Ele contraiu-se ao toque de minha mão e pôs-se de pé num salto, os olhos arregalados e fundos no quarto às escuras.
— Não quis assustá-lo — eu disse. — Você está bem?
Imaginei por um instante se ele não estaria com sonambulismo, porque sua expressão não mudou; olhava direto através de mim e, o que quer que estivesse vendo, o apavorava.
— Jamie! — eu disse incisivamente. — Jamie, acorde!
Então, ele piscou e me viu, embora seu rosto mantivesse a expressão desesperada de um animal caçado.
— Estou bem — ele disse. — Estou acordado. — Falava como se quisesse se convencer do fato.
— O que foi? Teve um pesadelo?
— Um sonho. Sim. Foi um sonho.
Dei um passo adiante e coloquei a mão em seu braço.
— Conte-me. Irá embora se você me contar.
Ele me segurou com força pelos braços, tanto para me impedir de tocá-lo quanto para se apoiar. Era noite de lua cheia e eu podia ver que cada músculo de seu corpo estava tenso, rígido e imóvel como uma pedra, mas pulsando de furiosa energia, pronto para explodir em ação.
— Não — ele disse, ainda parecendo aturdido.
— Sim — eu disse. — Jamie, fale comigo. Conte-me. Conte-me o que está vendo.
— Não posso... ver nada. Nada. Não posso enxergar.
Puxei, virando-o das sombras do quarto para encarar de frente o luar claro que entrava pela janela. A claridade pareceu ajudar, pois sua respiração arrefeceu e, aos poucos, as palavras dolorosamente entrecortadas vieram à tona.
Ele sonhara com as pedras da prisão de Wentworth. Enquanto falava, a sombra de Jonathan Randall entrou no quarto. E deitou-se nu na minha cama, em cima do cobertor de lã. Houve o som de respiração rouca bem atrás dele, e a sensação de pele encharcada de suor, deslizando contra a sua própria pele. Rangeu os dentes numa agonia de frustração. O homem atrás dele pressentiu o pequeno movimento e riu.
— Ah, nós ainda temos algum tempo antes de o enforcarem, meu rapaz — sussurrou. — Muito tempo para aproveitar. — Randall moveu-se repentina, rígida e bruscamente, e ele deixou escapar um gemido involuntário.
A mão de Randall acariciou seus cabelos para trás, afastando-os da sua testa e ajeitando-o atrás da orelha. O hálito quente estava junto a seu ouvido e ele virou a cabeça para escapar, mas ele seguiu-o nas palavras sussurradas.
— Já viu um homem enforcado, Fraser? — continuaram as palavras, sem esperar por sua resposta, e a mão delgada e longa rodeou sua cintura, delicadamente acariciando a curva de sua barriga, provocando-o cada vez mais para baixo a cada palavra.
— Sim, claro que sim; você esteve na França, já viu desertores enforcados algumas vezes. Um homem enforcado esvazia os intestinos, não é? Conforme a corda aperta em volta do seu pescoço. — A mão o segurava, delicadamente, com firmeza, acariciando e esfregando. Ele agarrou a borda da cama com a mão que não fora dilacerada e enfiou o rosto no cobertor áspero, mas as palavras o perseguiam.
— Isso vai acontecer com você, Fraser. Só mais algumas horas e você sentirá o laço da forca. — A voz riu, satisfeita consigo mesma. — Você irá para a sua morte com a bunda ardendo do meu prazer e quando liberar seus intestinos, será meu esperma que escorrerá pelas suas pernas e pingará no chão embaixo da forca.
Não emitiu nenhum som. Ele podia sentir o próprio cheiro, o corpo coberto de crostas de imundície da prisão, o cheiro cáustico do suor de medo e raiva. E também podia sentir o cheiro do homem atrás dele, o fedor do animal transpassando o perfume delicado da água-de-colônia de alfazema.
— O cobertor — ele disse. Seus olhos estavam fechados, o rosto tenso sob o luar. — Era áspero sob a minha face e tudo que eu podia ver eram as pedras da parede diante de mim. Não havia nada ali em que eu pudesse fixar minha mente... nada que pudesse ver. Assim, mantive os olhos cerrados e pensei no cobertor sob meu rosto. Era tudo que eu podia sentir além da dor... e dele. Eu... me agarrei a isso.
— Jamie. Deixe-me abraçá-lo — falei num sussurro, tentando acalmar o furor que eu podia sentir correndo pelo seu sangue. Suas mãos agarravam meus braços com tanta força que eles ficaram dormentes, mas ele não permitia que eu me aproximasse. Mantinha-me a distância com a mesma força com que se agarrava a mim.
De repente, soltou-me, afastando-se com um salto e virando-se para a janela banhada pelo luar. Permaneceu ali, tenso e trêmulo, como a corda de um arco que acabou de lançar uma flecha, mas sua voz era calma.
— Não. Não vou usá-la dessa forma, Sassenach. Você não vai fazer parte disso.
Dei um passo em sua direção, mas ele me impediu com um movimento. Voltou a virar o rosto para a janela, agora calmo, e vazio como o vidro através do qual ele olhava.
— Vá para a cama, Sassenach. Deixe-me um pouco sozinho; logo estarei bem. Não há nada com que se preocupar agora.
Estendeu os braços, agarrando o batente da janela, encobrindo a luminosidade com seu corpo. Os músculos de seus ombros avolumaram-se e eu pude perceber que ele empurrava a madeira com todas as suas forças.
— Foi somente um sonho. Jack Randall está morto.
Finalmente, consegui dormir, com Jamie ainda parado à janela, olhando para fora, diretamente para a face da luz. Quando acordei ao amanhecer, entretanto, ele dormia, curvado na banqueta da janela, enrolado em seu xale xadrez, com meu manto de viagem em volta das pernas para se aquecer.
Acordou com meus movimentos e parecia normal, com aquele seu jeito matinal irritantemente alegre. Mas eu não podia esquecer os acontecimentos da noite e fui buscar minha caixa de remédios depois do desjejum.
Para minha consternação, faltavam várias ervas de que eu precisava para o tônico de dormir que eu tinha em mente. Depois, entretanto, lembrei-me do homem de quem Marguerite me falara. Raymond, o comerciante de ervas, na rue de Varennes. Um bruxo, ela dissera. Um lugar que valia a pena ver. Muito bem. Jamie ficaria no armazém a manhã inteira. Eu tinha uma carruagem e um lacaio à minha disposição; resolvi ir à loja.
Um balcão de madeira limpo percorria o comprimento da loja de ambos os lados, com prateleiras com o dobro da altura de um homem estendendo-se do chão ao teto atrás do balcão. Algumas das prateleiras eram fechadas com portas de vidro com dobradiças, protegendo as substâncias mais raras e mais caras, imaginei. Cupidos gordos e dourados se espalhavam libidinosamente acima dos armários de prateleiras, tocando cornetas, agitando suas vestes diáfanas e, de um modo geral, parecendo ter bebido alguns dos produtos mais alcoólicos da loja.
— Monsieur Raymond? — perguntei educadamente à jovem mulher atrás do balcão.
— Maitre Raymond — ela me corrigiu. Limpou o nariz vermelho deselegantemente na manga do vestido e abanou a mão indicando os fundos da loja, onde nuvens sinistras de uma fumaça marrom flutuavam pela bandeira da meia-porta.
Bruxo ou não, Raymond tinha o cenário certo para bruxaria. Uma fumaça erguia-se de uma lareira de ardósia preta, enroscando-se sob as vigas pretas do teto baixo. Acima do fogo, uma prateleira de pedra perfurada de buracos contendo alambiques de vidro, destiladores de cobre vasilhames de metal com longos bicos de onde substâncias sinistras pingavam em xícaras — e o que parecia ser uma pequena, mas útil destilaria. Aspirei o ar, cautelosamente. Entre os outros odores fortes na loja, um inebriante cheiro alcoólico distinguia-se claramente na direção do fogo. Uma fileira perfeita de frascos limpos ao longo de um aparador reforçava minhas suspeitas originais. Qualquer que fosse seu comércio em amuletos e poções, o mestre Raymond obviamente tinha um bem-sucedido negócio de licor de cerejas de alta qualidade.
O próprio destilador estava curvado sobre o fogo, empurrando pedaços erráticos de carvão de volta à lareira. Ouvindo-me entrar, aprumou-se e voltou-se para me cumprimentar com um sorriso amável.
— Como vai? — eu disse educadamente ao topo de sua cabeça. A impressão de que eu entrara no esconderijo de um mago era tão forte que eu não me surpreenderia se ouvisse um coaxar de sapo em resposta.
Na verdade, mestre Raymond não se parecia a outra coisa que não um sapo grande. com menos de um metro e meio de altura, peito redondo e pernas arqueadas, possuía a pele espessa e viscosa de um habitante dos pântanos, além de olhos pretos e amistosos, ligeiramente saltados. Fora o pequeno senão de que ele não era verde, tudo que lhe faltava eram verrugas.
— Madona! — exclamou, radiante. — Em que posso ter o prazer de servi-la? — Ele não possuía nem um dente, o que aumentava ainda mais a impressão de sapo, e eu fiquei olhando-o fixamente, fascinada.
— Madona? — ele disse, espreitando-me com um ar inquisitivo. Percebendo subitamente o quanto eu estava sendo grosseira fitando-o daquela forma, atrapalhei-me, afogueada, e disse sem pensar:
— Só estava imaginando se foi beijado por uma jovem princesa. Fiquei ainda mais vermelha quando ele desatou a rir. Ainda com um amplo sorriso, disse:
— Muitas vezes, senhora. Mas, pobre de mim, não adianta. Como bem pode ver. — E imitou o coaxar de um sapo.
Nós nos desmanchamos em incontidas gargalhadas, atraindo a atenção da vendedora, que espreitou por cima da meia-porta, espantada. Mestre Raymond abanou a mão para que ela fosse embora, em seguida caminhou mancando até a janela, tossindo e apoiando as mãos nos quadris. Abriu as vidraças, permitindo que um pouco da fumaça pudesse escapar.
— Ah, assim está bem melhor! — exclamou, inspirando profundamente o ar frio de primavera que penetrou no aposento. Virou-se para mim, alisando para trás os longos cabelos prateados na altura dos ombros. — Bem, madona. Já que somos amigos, talvez possa esperar um instante enquanto eu cuido de uma coisa.
Ainda corada, concordei imediatamente e ele virou-se para sua prateleira acima do fogo, ainda sacudindo-se de risadas, enquanto enchia novamente o recipiente do alambique. Aproveitando a oportunidade para recobrar a compostura, andei a esmo pela sala de trabalho, olhando a surpreendente coleção de objetos desordenados.
Um crocodilo de bom tamanho, provavelmente empalhado, pendurava-se do teto. Observei fascinada as placas córneas da barriga amarela, duras e brilhantes como cera prensada.
— É de verdade? — perguntei, sentando-me à mesa de carvalho arranhada. Mestre Raymond lançou um olhar para cima, sorrindo.
— Meu crocodile? Ah, sem dúvida, madona. Inspira confiança aos fregueses, — Fez um sinal com a cabeça indicando a prateleira que corria ao longo da parede, pouco acima da altura dos olhos. Estava repleta de botijas brancas de porcelana vitrificada, cada qual ornamentada com floreios dourados, flores e animais selvagens pintados, e um rótulo, escrito em letras pretas e rebuscadas. Três das botijas mais próximas de mim estavam etiquetadas em latim, que traduzi com alguma dificuldade: sangue de crocodilo e o fígado e a bílis do mesmo animal, presumivelmente aquele que se balançava sinistramente acima de minha cabeça com a corrente de ar que soprava da loja principal.
Peguei uma das botijas, retirei a tampa e cheirei delicadamente.
— Mostarda — eu disse, torcendo o nariz — e tomilho. Em óleo de nozes, eu acho, mas o que usou para tornar o cheiro tão desagradável? Inclinei a botija, examinando com ar crítico o líquido preto e lamacento.
— Ah, então o seu nariz não é meramente decorativo, milady! — Um largo sorriso cortou o rosto de sapo, revelando gengivas duras e azuladas.
— O material preto é a polpa estragada de uma cabaça — confidenciou, inclinando-se para mais perto e abaixando a voz. — Quanto ao cheiro... bem, na verdade é de fato sangue.
— Não de crocodilo — eu disse, erguendo os olhos.
— Tanto cinismo em alguém tão jovem — Raymond lamentou. — As damas e os cavalheiros da corte possuem felizmente uma natureza mais confiável, não que confiança seja a emoção que venha imediatamente à mente quando se trata de aristocracia. Não, na realidade é sangue de porco, madona. Porcos são bem mais disponíveis do que crocodilos.
— Hum, sim — concordei. — Este deve ter lhe custado um bom dinheiro.
— Felizmente, eu o herdei, junto com meu estoque atual, do proprietário anterior. — Achei ter visto um débil tremor de inquietação no fundo dos suaves olhos negros, mas nos últimos tempos eu me tornara excessivamente sensível a nuances de expressão, de tanto observar as feições das pessoas nas festas, em busca de pequenas pistas que pudessem ser úteis a Jamie em suas manipulações.
O pequeno e atarracado proprietário inclinou-se ainda mais para perto, colocando a mão sobre a minha, como se fosse me contar um segredo.
— Você é uma profissional, não é? — disse. — Devo dizer, não parece. Meu primeiro impulso foi retirar minha mão, mas o toque de sua mão era estranhamente reconfortante; bastante impessoal e, no entanto, inesperadamente caloroso e tranqüilizador. Olhei os cristais de gelo recobrindo as bordas das vidraças da janela e pensei que isso já era demais; suas mãos sem luvas eram quentes, uma condição altamente incomum para qualquer pessoa naquela época do ano.
— Depende inteiramente do que queira dizer com o termo “profissional” — eu disse formalmente. — Sou uma curandeira.
— Ah, uma curandeira? — Inclinou-se para trás em sua cadeira, examinando-me com interesse. — Sim, foi o que pensei. Mais alguma coisa? Nada de ler a sorte, nada de feitiços de amor?
Senti uma momentânea dor de consciência ao recordar a época passada nas estradas com Murtagh, quando procurávamos Jamie pelas Highlands da Escócia, lendo a sorte e cantando para poder comer, como um casal de ciganos.
— Nada desse tipo — respondi, corando ligeiramente.
— De qualquer modo, não é uma mentirosa profissional — ele disse, olhando-me com ar divertido. — Uma pena. Ainda assim, como posso ter o prazer de servi-la, senhora?
Expliquei minhas necessidades e ele balançava a cabeça sabiamente enquanto escutava, os cabelos brancos e espessos balançando-se para a frente sobre os ombros. Não usava nenhuma peruca no recesso de sua loja nem empoava os cabelos. Eram escovados para trás, desde a testa alta e larga, e caíam lisos como uma vareta até os ombros, onde terminavam bruscamente, como se tivessem sido cortados com uma tesoura cega.
Era fácil conversar com ele, visto que possuía grande conhecimento sobre o uso de ervas e fitoterápicos. Pegou das prateleiras pequenos frascos de diferentes substâncias, sacudindo-os para retirar pequenas porções e esmagando as folhas na palma da mão para eu cheirar ou provar.
Nossa conversa foi interrompida pelo barulho de vozes altercadas na loja. Um lacaio elegantemente trajado estava inclinado sobre o balcão, dizendo alguma coisa à jovem balconista. Ou melhor, tentando dizer alguma coisa. Suas débeis tentativas eram-lhe atiradas de volta por uma enxurrada de virulento dialeto provençal do outro lado do balcão. Era idiomático demais para que eu pudesse entender completamente, mas compreendi o teor geral de suas observações. Algo envolvendo repolhos e salsichas, nada lisonjeiro.
Eu estava refletindo sobre a estranha tendência dos franceses de se referirem à comida em qualquer tipo de discussão, quando a porta da loja abriu-se repentinamente com uma forte pancada. Reforços se aproximaram rápido por trás do lacaio, sob a aparência de um tipo de personagem de faces pintadas de ruge e cheio de babados.
— Ah — murmurou Raymond, espreitando com interesse por baixo do meu braço o desenrolar do drama em sua loja. — A viscondessa de Rambeau.
— Você a conhece? — A balconista evidentemente conhecia, pois abandonou seu ataque ao criado de libré e recuou, encolhendo-se contra o armário de purgantes.
— Sim, senhora — disse Raymond, balançando a cabeça. — Ela é um pouco cara.
Vi o que ele queria dizer, quando a senhora em questão pegou a evidente fonte de discórdia, um pequeno jarro contendo uma planta em conserva, mirou e atirou-o com força e precisão consideráveis na porta de vidro do armário.
O barulho do impacto silenciou a comoção imediatamente. A viscondessa apontou um dedo longo e ossudo para a jovem.
— Você — disse, numa voz cortante como aparas de metal —, traga-me a poção negra. Imediatamente.
A jovem abriu a boca como se pretendesse protestar, depois, vendo a viscondessa levar a mão a outro míssil, fechou-a e saiu correndo para a sala dos fundos.
Antecipando-se à sua chegada, Raymond estendeu o braço resignadamente acima de sua cabeça e enfiou um frasco na mão da balconista quando ela atravessou a porta.
— Entregue-lhe isso — ele disse, encolhendo os ombros. — Antes que ela quebre mais alguma coisa.
Enquanto a balconista timidamente retornava à loja principal para entregar o frasco, ele virou-se para mim, com uma expressão irônica.
— Veneno para uma rival — disse. — Ou ao menos é o que ela pensa.
— Ah, é mesmo? — exclamei. — E o que é na verdade? Cáscara-sagrada? Olhou para mim, agradavelmente surpreso.
— Você é muito boa nisso — disse. — Um talento natural ou lhe ensinaram? Bem, não importa. — Abanou a mão grande, descartando o assunto. — Sim, isso mesmo, cáscara. A rival vai cair doente amanhã, sofrer visivelmente para satisfazer o desejo de vingança da viscondessa e convencê-la de que fez uma boa compra. Depois a vítima se recobrará, sem nenhum dano permanente, e a viscondessa atribuirá a recuperação à intervenção do padre ou a um antídoto feito por um feiticeiro contratado pela vítima.
— Hum — eu disse. — E os danos à sua loja? — O sol do final de tarde brilhava nos fragmentos de vidro sobre o balcão e no único écu, uma antiga moeda francesa, de prata que a viscondessa atirara como pagamento.
Raymond virou a palma da mão de um lado para o outro, no costume imemorial de indicar ambigüidade.
— Acaba ficando tudo igual — disse calmamente. — Quando ela voltar no mês que vem para um abortivo, eu cobrarei o suficiente não só para,, pagar os danos, mas para mandar fazer três armários novos. E ela pagará sem reclamar. — Sorriu brevemente, mas sem o humor demonstrado antes. — Tudo depende da hora certa, sabe.
Eu estava ciente dos olhos negros pestanejando com discernimento pela minha figura. Minha gravidez ainda não era visível, mas eu tinha certeza de que ele sabia.
— E o remédio que dará à viscondessa no mês que vem funciona? — perguntei.
— Tudo depende da hora certa — repetiu, inclinando a cabeça inquisitivamente para o lado. — Se for administrado bem cedo, tudo irá bem. Mas é perigoso esperar muito tempo.
O tom de aviso em sua voz era claro e eu sorri para ele.
— Não é para mim — eu disse. — Só para saber. Ele pareceu relaxar.
— Ah. Foi o que imaginei.
Um barulho prolongado vindo da rua anunciou a passagem da carruagem azul e prateada da viscondessa. O lacaio acenava e gritava de trás da carruagem, conforme os pedestres eram forçados a sair correndo para o abrigo de pórticos e becos para não serem atropelados.
— A la lanterne — murmureTem voz baixa, repetindo a expressão gritada pela multidão ao escoltar as vítimas à guilhotina. Era raro que minha perspectiva incomum sobre assuntos corriqueiros me proporcionasse muita satisfação, mas esta certamente era uma dessas ocasiões.
— Não pergunte por quem a carroça dos condenados clama — observei, voltando-me para Raymond. — Ela clama por ti.
Ele pareceu ligeiramente perturbado.
— Oh? Bem, de qualquer forma, a senhora estava dizendo que usa a betônica preta como purgativo? Eu costumo usar a branca.
— É mesmo? Por quê?
E sem mais nenhuma menção à viscondessa, nos sentamos para terminar minhas compras.
Fechei a porta da sala de visitas silenciosamente atrás de mim e fiquei parada, imóvel, por um instante, reunindo coragem. Ensaiei uma respiração funda para recobrar a serenidade, mas a pressão do espartilho com barbatanas de baleia fez o ar sair como uma respiração sufocada.
Jamie, imerso num punhado de notas de remessas por navio, ergueu a cabeça com o ruído e ficou paralisado, os olhos arregalados. A boca abriu-se, mas não emitiu nenhum som.
— Gosta? — Movendo a cauda do vestido com um pouco de cautela, avancei pelo aposento, oscilando delicadamente como a costureira me instruíra, a fim de exibir as finas nesgas de seda plissada embutidas na sobre-saia.
Jamie fechou a boca e piscou várias vezes.
— É... ah... vermelho, não? — observou.
— Um pouco. — Sang-du-Christ, para ser exata. Sangue de Cristo, a cor mais em moda da temporada, ou assim haviam me dito.
— Nem toda mulher poderia usar esta cor, madame — a costureira dissera, a fala inalterada apesar da boca cheia de alfinetes. — Mas a senhora, com essa pele! Mãe de Deus, os homens vão se arrastar para baixo de sua saia a noite toda!
— Se algum tentar, esmagarei seus dedos com os pés — eu disse. Afinal, esse não era absolutamente o efeito desejado. Mas eu de verdade queria ser notada. Jamie insistiu para que eu mandasse fazer um traje que me destacasse na multidão. Apesar do torpor matinal, o rei havia evidentemente se lembrado de seu comparecimento ao lever e tínhamos sido convidados para um baile em Versalhes.
— Vou precisar da atenção dos homens de dinheiro — Jamie dissera, fazendo planos comigo anteriormente. — E como eu mesmo não tenho uma posição notável nem poder, vamos ter que conseguir isso fazendo com que busquem minha companhia. — Deu um suspiro, olhando para mim, decididamente, sem nenhum glamour em minha camisola de lã.
— E receio que em Paris isso signifique que vamos ter que freqüentar um pouco a sociedade; aparecer na corte, se conseguirmos. Vão saber que sou escocês; será natural para as pessoas me perguntarem sobre o príncipe Carlos e se a Escócia está esperando com ansiedade a volta dos Stuart. Então, poderei assegurar-lhes discretamente que a maioria dos escoceses pagaria um bom dinheiro para não ter os Stuart de volta, embora a contra-gosto.
— Sim, é melhor ser discreto — concordei. — Ou o príncipe Carlos pode soltar os cachorros em cima de você da próxima vez que for visitá-lo. — De acordo com o seu plano de se manter bem-informado das atividades de Carlos, Jamie fazia visitas semanais obrigatórias à pequena casa em Montmartre.
Jamie sorriu brevemente.
— Sim. Bem, no que diz respeito a Sua Alteza, e aos partidários jacobitas, sou um leal simpatizante da causa Stuart. E como Carlos Stuart não é recebido na corte e eu sou, as probabilidades de ele descobrir o que estou dizendo lá não são grandes. Os jacobitas em Paris mantêm-se, de um modo geral, reservados. Para começar, não têm o dinheiro necessário para freqüentar os círculos da moda. Mas nós temos, graças a Jared.
Jared concordara — por razões inteiramente diversas — com a proposta de Jamie de ampliarmos o seu círculo de relacionamentos de negócios, de modo que a nobreza francesa e os chefes das ricas famílias de banqueiros passassem a freqüentar a casa. Nas reuniões sociais, seriam aliciados e seduzidos com vinho do Reno, boa conversa, bom entretenimento e grandes quantidades do bom uísque escocês que Murtagh passara as duas últimas semanas transportando pelo Canal e acompanhando por terra até nossas adegas.
— É o entretenimento de um tipo ou de outro que os atrai, sabe — Jamie dissera, esboçando planos no verso de um poema impresso, descrevendo o caso escandaloso entre o conde de Sévigny e a mulher do ministro da Agricultura. — Tudo com que a nobreza se preocupa são as aparências. Assim, para começar, precisamos oferecer-lhes alguma coisa interessante para admirarem.
A julgar pelo olhar estupefato em seu rosto, eu começara bem. Deslizei elegantemente pela sala, fazendo a imensa sobre-saia balançar-se como um sino.
— Nada mau, hein? — perguntei. — Muito vistoso, de qualquer modo.
Ele recuperou a voz finalmente.
— Vistoso? — grasnou. — Vistoso? Meu Deus, posso ver cada centímetro seu, até a terceira costela!
Olhei para meu colo.
— Não, não pode. Não sou eu sob a renda, é um forro de chameuse branco.
— Ah, bom, parece você! — Aproximou-se, inclinando-se para inspecionar o corpete do vestido. Olhou entre meus seios.
— Cristo, posso ver até o seu umbigo! Certamente você não pretende sair em público assim!
— Irritei-me um pouco com o comentário. Eu mesma estava me sentindo meio nervosa com a transparência geral do vestido, apesar dos esboços que a costureira havia me mostrado. Mas a reação de Jamie me colocou numa atitude de defesa e, portanto, rebelde.
— Foi você quem me disse para chamar atenção — lembrei-o. — E isso não é absolutamente nada, comparado à madame de Pérignon e à duquesa de Rouen. — Coloquei as mãos na cintura e inspecionei-o friamente. Ou vai querer que eu apareça na corte no meu vestido de veludo verde?
Jamie desviou os olhos do meu décolletage e cerrou os lábios.
— Muhm — resmungou, com um ar escocês genuíno.
Tentando ser conciliatória, aproximei-me e coloquei a mão em seu braço.
— Vamos, Jamie — eu disse. — Você já esteve na corte antes; com certeza sabe como as mulheres se vestem. Sabe que não está terrivelmente exagerado para aqueles padrões.
Abaixou os olhos para mim e sorriu, um pouco envergonhado.
— Sim, é verdade. É que... bem, você é minha mulher, Sassenach. Não quero outros homens olhando para você da maneira como eu olhei para aquelas senhoras.
Eu ri e passei os braços ao redor de seu pescoço, puxando-o para me beijar. Ele me segurou pela cintura, os polegares inconscientemente acariciando a maciez da seda vermelha onde ela revestia meu torso. Suas mãos subiram, deslizando pelo tecido escorregadio, até a minha nuca. A outra mão agarrou meu seio redondo e macio, saltando do arrocho do espartilho, voluptuosamente livres sob uma única camada de pura seda. Soltoume por fim e empertigou-se, sacudindo a cabeça, em dúvida.
— Imagino que tenha que usar isso, Sassenach, mas pelo amor de Deus tenha cuidado.
— Cuidado? com o quê?
Sua boca contorceu-se num sorriso pesaroso.
— Por Deus, mulher, você não tem noção de sua aparência neste vestido? Me dá vontade de cometer estupro agora mesmo. E esses malditos comedores de rã não têm o meu comedimento. — Franziu de leve a testa. Você podia... cobrir um pouco aí em cima? — Abanou vagamente a enorme mão na direção do seu próprio jabô de renda, preso com um alfinete de rubi. — Um babado... ou algo assim? Um lenço?
— Os homens não têm a menor noção de moda. Mas não se preocupe. A costureira disse que é para isso que serve o leque. — com um rápido piparote, abri o leque enfeitado de rendas, que combinava com o vestido, um gesto que exigira quinze minutos de prática para aperfeiçoar, e abanei-o sedutoramente sobre o peito.
Jamie piscou pensativamente diante daquela performance, depois virou-se para pegar meu manto do armário.
— Me faça um único favor, Sassenach — ele disse, cobrindo meus ombros com o pesado manto de veludo. — Arranje um leque maior.
No aspecto de atrair a atenção, o vestido foi um sucesso absoluto. Quanto aos efeitos sobre a pressão sangüínea de Jamie, foi mais discutível.
Ele ficou pairando de modo protetor junto ao meu cotovelo, olhando ferozmente para qualquer homem que lançasse um olhar em minha direção, até que Annalise de Marillac, avistando-nos do outro lado do salão, veio flutuando em nossa direção, as feições delicadas emoldurando um sorriso de boas-vindas. Senti o sorriso no meu próprio rosto se congelar. Annalise de Marillac era uma “conhecida” — segundo ele — de Jamie, do tempo em que ele morou em Paris. Ela também era bonita, charmosa e primorosamente miúda.
— Mon petit sauvage! — disse, cumprimentando Jamie. — Tenho alguém que você precisa conhecer. Vários “alguéns”, na verdade. — Inclinou a cabeça como uma boneca de porcelana na direção de um grupo de homens, reunidos em torno de um tabuleiro de xadrez em um canto do salão, discutindo calorosamente sobre alguma coisa. Reconheci o duque d’Orleans e Gérard Gobelin, um proeminente banqueiro. Portanto, um grupo muito influente.
— Venha jogar xadrez com eles — Annalise insistiu, pousando a mão de mariposa no braço de Jamie. — Será um bom lugar para Sua Majestade encontrá-lo mais tarde.
A presença do rei era esperada depois do jantar a que havia comparecido, dentro de uma ou duas hora«s. Nesse ínterim, os convidados vagavam de um lado para o outro, conversando, admirando os quadros nas paredes, flertando por trás dos leques, consumindo balas e bombons, pequenas tortas de frutas e vinho, e desaparecendo a intervalos mais ou menos discretos em uma ou outra alcova pequena e fechada com cortinas. Esses pequenos compartimentos ficavam astuciosamente encaixados nos painéis de lambris dos salões, de tal forma que quase passavam despercebidos, a menos que você se aproximasse o suficiente para ouvir os ruídos que vinham lá de dentro.
Jamie hesitou, e Annalise puxou-o com mais firmeza.
— Venha — insistiu. — Não precisa temer por sua mulher. — Lançou um olhar de aprovação ao meu vestido. — Ela não vai ficar muito tempo sozinha-
— É isso que eu temo — Jamie balbuciou num sussurro. — Está bem, então, só um momento. — Desvencilhou-se momentaneamente da mão de Annalise e inclinou-se para sussurrar ao meu ouvido.
— Se eu a encontrar numa dessas alcovas, Sassenach, o homem que estiver com você está morto. E quanto a você... — Suas mãos contorceram-se inconscientemente na direção do cinto de sua espada.
— Ah, não, não vai não — eu disse. — Você jurou sobre sua adaga que nunca mais me bateria outra vez. A adaga sagrada não está valendo mais nada?
Um sorriso relutante repuxou sua boca.
— Não, nãovou bater em você, embora bem que gostaria.
— Ótimo. O que pretende fazer então? — perguntei, provocando-o.
— Pensarei em alguma coisa — respondeu, com uma certa crueldade. — Não sei o quê, mas você não vai gostar.
E com um último olhar penetrante ao redor e um aperto de proprietário no meu ombro, deixou que Annalise o levasse dali, como um pequeno mas entusiástico rebocador puxando uma barca relutante.
Annalise tinha razão. Não mais desencorajados pela presença ostensiva de Jamie, os cavalheiros da corte caíram sobre mim como um bando de papagaios sobre um maracujá maduro.
Minha mão foi beijada inúmeras vezes e demoradamente retida, dezenas de cumprimentos floreados foram feitos e taças de vinho condimentado me foram trazidas numa procissão infindável. Após meia hora de atenções, meus pés começaram a doer. Assim como meu rosto, de tanto sorrir. E minha mão, de tanto abanar o leque.
Tive que admitir uma certa gratidão a Jamie pela intransigência na questão do leque. Cedendo às suas susceptibilidades, levara comigo o maior leque que eu possuía, uma coisa enorme, de uns trinta centímetros, pintado com o que pretendia ser uma cena de veados escoceses saltando pelo urzal. Jamie criticara o artista, mas aprovara o tamanho. Graciosamente abanando o leque, tentando afastar as atenções de um ardoroso jovem vestido de púrpura, abri o leque discretamente sob meu queixo para desviar farelos enquanto comia uma torrada com salmão.
E não apenas farelos de torrada. Enquanto Jamie, de seu lugar privilegiado trinta centímetros acima de mim, alegara ser capaz de ver meu umbigo, este estava a salvo do escrutínio dos cortesãos franceses, a maioria dos quais era mais baixa do que eu. Por outro lado...
Eu sempre gostara de aconchegar-me no peito de Jamie, meu nariz encaixando-se confortavelmente na pequena cavidade no centro. Alguns dos indivíduos mais baixos e mais ousados entre meus admiradores pareciam inclinados a desfrutar experiência semelhante. Tais atenções me mantinham ocupada, abanando o leque com força suficiente para lançar seus cachos para trás, descobrindo-lhes os rostos. Se isso não bastasse para desencorajá-los, eu fechava o leque com um estalo e batia-o vigorosamente em suas cabeças.
Foi um alívio considerável ouvir o criado de libré parado à porta repentinamente empertigar-se e entoar:
— Sá Majesté, lê rói Louis!
Embora o rei possa acordar com o nascer do sol, aparentemente ele desabrochava à noite. Não muito mais alto do que o meu um metro e setenta, Luís chegou com a postura de um homem bem maior, olhando para a direita e para a esquerda, balançando a cabeça em elegante reconhecimento de seus súditos curvados em mesuras para cumprimentá-lo.
Esse, pensei, examinando-o de cima a baixo, estava muito mais de acordo com minhas idéias de como um rei deveria ser. Não particularmente atraente, agia como se o fosse; uma impressão intensificada não só pela suntuosidade de suas roupas, mas pela atitude dos que o cercavam. Usava a peruca penteada para trás como ditava a última moda e seu casaco era de veludo, bordado em toda a extensão com centenas de frívolas borboletas de seda. Era cortado na cintura, expondo um colete de luxuosa seda de cor creme com botões de diamantes, combinando com as grandes fivelas em forma de borboleta em seus sapatos.
Os olhos escuros e velados varriam a multidão incansavelmente e o arrogante nariz Bourbon empinava-se como se quisesse detectar algum item de interesse.
Vestido de kilt e xale de tartã, mas com um casaco e colete de seda amarela reforçada, e com seus cabelos flamejantes soltos até os ombros, uma única trança pequena de um lado, de acordo com antigo costume escocês, Jamie definitivamente se qualificava. Ao menos, achei que tinha sido Jamie quem atraíra a atençãodo rei, quando lê róis Louis deu uma guinada de forma resoluta e veio em nossa direção, apartando a multidão diante dele como as ondas do mar Vermelho. Madame Nesle de La Tourelle, que reconheci de uma festa anterior, seguia-o de perto como um pequeno barco na esteira de um navio.
Eu havia me esquecido do vestido vermelho; Sua Majestade parou diretamente à minha frente e fez uma mesura exagerada, a mão sobre a cintura.
— Chère madame! — disse. — Estamos encantados!
Ouvi Jamie inspirar fundo, em seguida deu um passo à frente e fez uma reverência para o rei.
— Permita-me apresentar-lhe minha mulher, Vossa Majestade: a senhora de Broch Tuarach. — Ergueu-se e deu um passo para trás.
Atraída por um ligeiro meneio da mão de Jamie, olhei para ele por um instante, sem compreender, até perceber repentinamente que ele estava me sinalizando para fazer uma reverência.
Dobrei o joelho automaticamente, esforçando-me para manter os olhos no chão e me perguntando para onde eu deveria olhar quando me erguesse outra vez. Madame Nesle de La Tourelle estava parada bem atrás de Luís, observando as apresentações com um olhar ligeiramente entediado no rosto. Os mexericos diziam que “Nesle” era a atual favorita do rei. Ela estava, conforme a moda atual, usando um vestido cortado embaixo de ambos os seios, com um pedacinho de tecido transparente superposto, que obviamente só devia estar ali por questões de moda, já que não servia nem para aquecer nem para ocultar nada.
Entretanto, não foi nem o vestido nem a visão que ele oferecia que me abalaram. Os seios de “Nesle”, embora razoavelmente adequados no tamanho, agradáveis nas proporções e encimados por grandes aréolas de uma cor marrom-clara, eram adornados com um par de jóias de mamilo que fazia os engastes tornarem-se totalmente insignificantes. Um par de cisnes encravados de diamantes com olhos de rubi esticava seus pescoços um em direção ao outro, oscilando precariamente em seus poleiros de ouro na forma de um galho arqueado. O trabalho artístico era esplêndido e o material impressionante, mas o que me fez sentir um pouco tonta foi o fato de que cada prendedor da jóia, o poleiro de ouro, na realidade atravessava o mamilo. Na verdade, os mamilos estavam seriamente invertidos, mas o fato era disfarçado pela enorme pérola que cobria cada um, penduradas em uma fina corrente de ouro que formava uma alça de um lado ao outro do galho arqueado.
Ergui-me, ruborizada e tossindo, e consegui pedir licença, segurando educadamente um lenço junto à boca enquanto recuava. Senti uma presença às minhas costas e parei exatamente a tempo de evitar uma colisão comjamie, que observava a amante do rei sem nenhuma preocupação de fingir educadamente que não tinha notado.
— Ela disse a Marie d’Arbanville que mestre Raymond foi quem fez a perfuração dos mamilos para ela — observei, num sussurro. Seu olhar fascinado não se desviou.
— Devo marcar uma hora com ele? — perguntei. — Imagino que ele faria isso para mim se eu lhe desse a receita do tônico de cominho.
Jamie olhou para mim finalmente. Segurando-me pelo cotovelo, conduziu-me a uma das alcovas de descanso.
— Se você sequer falar com mestre Raymond outra vez — disse, pelo canto da boca —, eu os perfurarei para você eu mesmo, com os dentes.
A essa altura, o rei já havia se dirigido ao Salão de Apoio, o espaço vazio deixado por sua passagem foi logo preenchido por outras pessoas vindas da sala de jantar. Vendo Jamie absorvido numa conversa com monsieur Genet, patriarca de uma rica família de armadores, olhei furtívamente ao redor, à procura de um lugar onde pudesse tirar meus sapatos por alguns instantes.
Uma das alcovas estava perto e, pela ausência de sons, desocupada.) Despachei um insistente admirador com um pedido de um pouco mais de vinho e, em seguida, com um rápido olhar à minha volta, deslizei para dentro da alcova.
Era mobiliada sugestivamente com um sofá, uma mesinha e duas cadeiras mais adequadas para servir de suporte a peças de vestuário do que para servir de assento, pensei com ar crítico. Sentei-me ainda assim, arranquei os sapatos e coloquei os pés sobre a outra cadeira.
Um leve tinir das argolas da cortina atrás de mim anunciou o fato de que minha partida, afinal de contas, não passara despercebida.
— Madame! Finalmente estamos a sós!
— Sim, infelizmente — eu disse, suspirando. Era um dos incontáveis) condes, pensei. Ou não, este era um visconde; alguém o apresentara a mim antes como o visconde de Rambeau. Um dos baixinhos. Lembrei-me de seus olhinhos como duas contas brilhantes erguidos para mim extasiados de um ponto abaixo do leque.
Sem perder tempo, deslizou habilmente para a outra cadeira, levantando meus pés e colocando-os no colo. Agarrou ardentemente meus dedos revestidos de meias de seda contra a sua forquilha.
— Ah, ma petite! Quanta delicadeza! Sua beleza me deixa perturbado! Achei que devia mesmo, se ele estava sob a ilusão de que meus pés eram particularmente delicados. Erguendo um deles aos lábios, mordiscou meus dedos.
— C’est un cochon qui vit dans Ia ville, c’est un cochon qui vit... Arranquei meu pé de suas mãos e levantei-me apressadamente, um pouco atrapalhada com minhas anáguas volumosas.
— Por falar em cochons que moram na cidade — eu disse, um pouco nervosa —, acho que meu marido não ficaria nem um pouco satisfeito de encontrá-lo aqui.
— Seu marido? Pah! — Descartou Jamie com um leve abano da mão. -, Ele vai estar ocupado por algum tempo, tenho certeza. E enquanto o gato está fora... venha para mim, ma petite souris; deixe-me ouvi-la guinchar, minha ratinha.
Provavelmente pretendendo se fortalecer para a refrega, o visconde tirou uma caixa de rapé esmaltada do bolso, salpicou com destreza uma linha de grãos escuros ao longo das costas da mão e limpou-a delicadamente nas narinas.
Respirou fundo, os olhos brilhando de expectativa, depois virou de modo brusco a cabeça quando a cortina foi subitamente afastada com um chacoalhar de argolas de metal. com a atenção desviada pela intrusão, o visconde espirrou direto no meu colo com considerável vigor.
Dei um berro.
— Seu nojento — eu disse e atingi-o em cheio no rosto com meu leque fechado.
O visconde cambaleou para trás, os olhos lacrimejando. Tropeçou nos meus sapatos tamanho trinta e nove que estavam no chão e caiu de cabeça nos braços de Jamie, parado na entrada.
— Bem, você realmente conseguiu atrair uma certa dose de atenção — eu disse finalmente.
— Bah — ele disse. — O filho-da-mãe teve sorte de eu não ter arrancado sua cabeça e o obrigado a engolir.
— Bem, teria sido um espetáculo interessante — concordei secamente. — Mas afundá-lo na fonte teve quase o mesmo efeito.
Ele ergueu os olhos, o ar carrancudo substituído por um riso relutante.
— Sim, bem. Afinal, eu não afoguei o sujeito.
— Tenho certeza de que o visconde apreciou seu comedimento. Bufou outra vez. Estava de pé no meio de uma sala de estar, parte de um pequeno appartement no palácio, para o qual o rei, depois que parou de rir, nos enviara, insistindo que não deveríamos empreender a viagem de volta a Paris nesta noite.
— Afinal, mon chevalier — ele dissera, examinando a figura enorme, escorrendo água, no terraço -, ficaríamos extremamente aborrecidos se você pegasse um resfriado. Tenho certeza de que, nesse caso, a corte seria privada de um bocado de divertimento e madame jamais me perdoaria. Não é, querida? — Ele estendeu o braço e beliscou madame de La Tourelle de brincadeira em um dos mamilos.
Sua amante pareceu ligeiramente aborrecida, mas sorriu obedientemente. Notei, entretanto, que assim que a atenção do rei se desviou, foi em Jamie que seu olhar se demorou. Bem, ele era impressionante, eu tinha que admitir, parado ali, escorrendo água à luz de tochas, com as roupas coladas ao corpo. Isso não queria dizer que eu gostasse do que ela estava fazendo.
Ele tirou a camisa molhada e jogou-a numa pilha de roupas encharcadas. Era ainda mais impressionante sem ela.
— Quanto a você — ele disse, olhando-me de maneira sinistra. — Eu não lhe disse para ficar longe daquelas alcovas?
— Sim. Mas fora isso, sr. Lincoln, o que achou da peça? — perguntei educadamente.
— O quê? — Fitou-me como se eu tivesse acabado de perder a sanidade.
— Deixe pra lá; está um pouco fora de seu quadro de referência. Eu só quis dizer: encontrou alguém útil antes de ir defender seus direitos conjugais?
Ele esfregou vigorosamente os cabelos com uma toalha retirada do lavatório.
— Ah, sim. Joguei xadrez com monsieur Duverney. E ainda o derrotei e o deixei furioso.
— Ah, parece promissor. E quem é monsieur Duverney? Atirou-me a toalha, rindo.
— O ministro das Finanças francês, Sassenach.
— Ah. E você está satisfeito porque o deixou com raiva?
— Ele ficou com raiva de si mesmo por perder, Sassenach — Jamie explicou. — Agora ele não vai descansar enquanto não me derrotar. Vai nos visitar no domingo para jogarmos outra vez.
— Ah, muito bem! — eu disse. — E no processo, você pode assegurar-lhe que as perspectivas dos Stuart são extremamente débeis e convencê-lo de que Luís não quer ajudá-los financeiramente, parente ou não.
Balançou a cabeça confirmando e penteou os cabelos úmidos para trás com as duas mãos. O fogo ainda não fora aceso e ele estremeceu ligeiramente.
— Onde aprendeu a jogar xadrez? — perguntei, curiosa. — Não sabia que você jogava xadrez.
— Colum MacKenzie me ensinou — ele disse. — Quando eu tinha dezesseis anos e passei um ano no Castelo Leoch. Tive tutores de francês e alemão, matemática e outras matérias, mas eu ia ao quarto de Colum toda noite jogar xadrez por uma hora. Não que ele em geral precisasse de uma hora para me derrotar — acrescentou com ar pesaroso.
— Não é de admirar que jogue bem — eu disse. Colum, o tio de Jamie, vítima de uma enfermidade deformadora que o privava de quase toda a sua mobilidade, compensava esse fato com uma mente que teria deixado Maquiavel com vergonha.
Jamie levantou-se e desabotoou o cinto de sua espada, estreitando os olhos para mim.
— Não pense que eu não sei o que você está pretendendo, Sassenach. Mudando de assunto e me lisonjeando como uma cortesã. Eu não lhe falei a respeito das alcovas?
— Você disse que não pretendia me bater — lembrei-o, sentando um pouco mais para dentro da poltrona, só por segurança.
Ele bufou outra vez, atirando o cinto sobre a cômoda e deixando o kilt cair junto à camisa encharcada.
— Eu pareço o tipo de homem que bateria numa mulher grávida? perguntou.
Olhei-o em dúvida. Completamente despido, com os cabelos em cachos ruivos e úmidos e as cicatrizes brancas ainda visíveis em seu corpo, ele parecia ter acabado de saltar de um navio viking, pensando em saque e estupro.
— Na verdade, você parece capaz de qualquer coisa — disse-lhe. — Quanto às alcovas, sim, você me avisou. Acho que deveria ter ido lá fora para tirar meus sapatos, mas como eu ia saber que o idiota iria me seguir e começar a morder meus dedos? E se não pretende me bater, o que exatamente tinha em mente? — Segurei com força os braços da cadeira.
Ele deitou na cama e riu para mim.
— Tire seu vestido de prostituta, Sassenach, e venha para a cama.
— Por quê?
— Bem, eu não posso espancá-la nem jogá-la na fonte. — Deu de ombros. — Pretendia fazer um terrível sermão, mas não acho que vou conseguir manter os olhos abertos por tanto tempo. — Bocejou magnificamente, depois pestanejou e riu de novo para mim. — Lembre-me de fazer isso de manhã, está bem?
— Está melhor agora? — Os olhos azul-escuros de Jamie estavam turvos de preocupação. — Está certo você ficar assim tão enjoada, Sassenach?
Afastei os cabelos das minhas têmporas molhadas de suor e delicadamente passei uma toalha úmida pelo rosto.
— Eu não sei se está certo — disse fracamente —, mas ao menos acho que é normal. Algumas mulheres enjoam durante toda a gravidez. — Não era um pensamento agradável no momento.
Jamie olhou não para o relógio festivamente pintado que havia sobre a mesa, mas para fora da janela, para o sol, como de costume.
— Sente-se bastante bem para descer para o desjejum, Sassenach, ou devo dizer à camareira para trazer alguma coisa numa bandeja?
— Não. Estou muito bem agora. — E estava. À estranha maneira do enjôo matinal, assim que a inexorável náusea tenha conseguido realizar seu objetivo, eu me sentia perfeitamente bem em questão de minutos. — Deixe-me apenas lavar a boca.
Quando me inclinei sobre a bacia, a água fria escorrendo pelo meu rosto, ouviu-se uma batida na porta do appartement. Provavelmente o criado que fora despachado à casa em Paris para trazer roupas limpas, imaginei.
Para minha surpresa, entretanto, era um cortesão, com um convite escrito para o almoço.
— Sua Majestade almoçará hoje com um nobre inglês — explicou o cortesão — recém-chegado a Paris. Sua Majestade convocou vários comerciantes ingleses proeminentes da Cite para o almoço, a fim de proporcionar a Sua Excelência o duque a companhia de alguns compatriotas. E alguém observou a Sua Majestade que a madame sua esposa é uma dama inglesa também e, assim, deveriam ser convidados a comparecer.
— Muito bem — Jamie disse, depois de lançar um olhar para mim. — Pode dizer a Sua Majestade que ficaremos honrados em permanecer para o almoço.
Pouco depois, Murtagh chegou, circunspecto como sempre, carregando uma grande trouxa de roupas limpas, bem como minha caixa de remédios, conforme eu havia pedido. Jamie encaminhou-o à sala de estar para lhe dar instruções para o dia, enquanto eu apressadamente tentava me enfiar num vestido limpo, pela primeira vez lamentando minha recusa em empregar uma criada de quarto. Sempre alvoroçados, o estado dos meus cabelos não melhorara depois de dormir bem abraçada a um escocês grande e úmido; os cachos embaraçados saltavam em todas as direções, resistindo a qualquer tentativa de domá-los com escova e pente.
Finalmente, emergi na sala, afogueada e irritada com o esforço, mas com os cabelos com alguma aparência de estarem penteados. Jamie olhou para mim e murmurou qualquer coisa sobre ouriços em voz baixa, mas recebeu um olhar fulminante em resposta e teve o bom senso de calar-se.
Um passeio a pé pelos gramados, em meio aos canteiros de flores e fontes dos jardins do palácio, fez muito pela restauração da minha serenidade. A maioria das árvores ainda estava sem folhas, mas o dia estava inesperadamente quente para o final de março e o cheiro dos brotos despontando nos galhos era penetrante e fresco. Era quase possível sentir a seiva subindo pelas elevadas castanheiras e choupos que ladeavam os caminhos e abrigavam as centenas de estátuas de mármore branco.
Parei ao lado de uma estátua de um homem com uma túnica drapeada, uvas nos cabelos e uma flauta nos lábios. Um bode grande, sedoso, mordia vorazmente mais uvas que desciam em cascata pelas pregas de mármore da túnica.
— Quem é? — perguntei. – Pa?
Jamie sacudiu a cabeça, sorrindo. Ele vestia seu kilt velho e um casaco gasto, embora confortável, mas parecia-me muito melhor do que os cortesãos luxuosamente vestidos que passavam por nós em grupos tagarelas.
— Não, acho que existe uma estátua de Pa por aí, mas não é essa. Essa é um dos Quatro Humores do Homem.
— Bem, ele parece bem-humorado — eu disse, erguendo os olhos para o amigo sorridente do bode.
Jamie riu.
— E você sendo uma médica, Sassenach! Não é essa espécie de humor. Não conhece os quatro humores que compõem o corpo humano? Aquele lá é o Sangue — indicou um tocador de flauta, depois apontou mais adiante — e aquele é a Melancolia. — Este era um homem alto numa espécie de toga, segurando um livro aberto.
Jamie apontou para o outro lado do caminho.
— Lá está a Cólera. — Um jovem nu e musculoso, que sem dúvida tinha o cenho ferozmente carregado, sem tomar conhecimento do leão de mármore que estava prestes a mordê-lo na perna. — E aquela é a Fleuma.
— É mesmo? — Fleuma, um cavalheiro barbado, com um chapéu dobrado, tinha os braços cruzados sobre o peito e uma tartaruga aos pés.
— Hum — observei.
— Os médicos não aprendem sobre os humores na sua época? — Jamie perguntou, curioso.
— Não — respondi. — Em vez disso, temos os germes.
— Verdade? Germes — disse consigo mesmo, experimentando a palavra, fazendo-a girar em sua boca com um sotaque escocês, o que a fazia parecer extremamente sinistra. — Gerrrmes. E como são os germes?
Ergui os olhos para uma representação da América, uma jovem donzela casadoura, trajando saia e touca emplumadas, com um crocodilo aos pés.
— Bem, não dariam nem de longe estátuas tão pitorescas — eu disse.
O crocodilo aos pés da América me fez lembrar da loja de mestre Raymond.
— Falava a sério quando disse que não queria que eu fosse à loja do mestre Raymond? — perguntei. — Ou apenas não quer que eu perfure os mamilos?
— Definitivamente não quero que você perfure os mamilos — ele disse com firmeza, segurando-me pelo cotovelo e conduzindo-me apressadamente em frente, com receio de que eu pudesse extrair alguma desagradável idéia dos seios despidos da América. — Mas também não quero que vá a loja do mestre Raymond. Há boatos sobre o sujeito.
— Há boatos sobre todo mundo em Paris — observei -, e eu poderia apostar que mestre Raymond conhece todos eles.
Jamie fez um sinal afirmativo com a cabeça, os cabelos brilhando na Pálida luz de primavera.
— Ah, sim, imagino que sim. Mas acho que posso ficar sabendo o que for útil nas tavernas e salas de estar. Dizem que mestre Raymond está no Centro de um determinado círculo, mas não é de simpatizantes jacobitas.
— É mesmo? Quem, então?
— Cabalistas e ocultistas. Bruxos, talvez.
— Jamie, você não se preocupa seriamente com bruxas e demônios, não é?
Havíamos chegado à parte do jardim conhecida como “Tapete Verde”. No começo da primavera, o verde do imenso gramado não passava de um tom desmaiado, mas as pessoas reclinavam-se na grama ou moviam-se sem pressa, aproveitando o raro dia de tempo agradável.
— Bruxos, não — ele disse finalmente, encontrando um lugar perto de uma sebe de forsítea e sentando-se na grama. — O conde St. Germain, talvez.
Lembrei-me da expressão dos olhos escuros do conde St. Germain em Lê Havre e estremeci, apesar do sol e do xale de lã que eu usava.
— Acha que ele está associado a mestre Raymond? Jamie encolheu os ombros.
— Não sei. Mas foi você quem me contou os rumores sobre St. Germain, não foi? E se o mestre Raymond fizer parte desse círculo, então acho que você deve ficar bem longe dele, Sassenach. — Lançou-me um sorriso enviesado. — Afinal, prefiro não ter que salvá-la da fogueira outra vez.
As sombras sob as árvores me fizeram lembrar da escuridão fria do buraco dos ladrões em Cranesmuir. Estremeci e aproximei-me mais de Jamie, saindo para a luz do sol.
— Também prefiro.
Os pombos cortejavam na grama sob um arbusto de forsítea florescente. As damas e os cavalheiros da corte desenvolviam atividades semelhantes nos caminhos que atravessavam os jardins de esculturas. A diferença principal é que os pombos eram mais discretos.
Uma aparição em seda na cor pastel verde-água surgiu à retaguarda do nosso local de repouso, em espalhafatosas exclamações sobre o caráter divino da peça teatral da noite anterior. As três damas que acompanhavam cavalheiro, embora não com tanto exagero, repetiam suas opiniões enfaticamente.
— Magnífica! Absolutamente magnífica, a voz de La Couelle!
— Ah, magnífica! Sim, excelente.
— Maravilhosa, maravilhosa! Magnífica é a única palavra para descrevê-la!
— Ah, sim, magnífica!
As vozes — dos quatro — eram estridentes como pregos sendo arrancados da madeira. Em contraste, o pombo fazendo sua parte a alguns metros de meu nariz tinha um arrulho baixo e doce, elevando-se de um rumor apaixonado, profundo, a um assobio de ar escapando, enquanto estufava o peito e fazia repetidas reverências, colocando seu coração aos pés de sua amada, que até então não parecia muito interessada.
Olhei além do pombo, para o cortesão acetinado em verde-água, que voltara correndo para resgatar um lenço enfeitado de renda, timidamente deixado cair como isca por uma de suas companheiras.
— As mulheres chamam este tipo de “UAndouille” — observei. — Por que será?
Jamie resmungou sonolentamente e eu abri um olho para seguir o cortesão que se afastava.
— Hum? Ah, “A Salsicha”. Significa que ele não consegue manter seu “Roger” nas calças. Você conhece o tipo... mulheres, lacaios, cortesãos, pajens. Cãezinhos de estimação também, se os boatos forem verdadeiros acrescentou, estreitando os olhos na direção da seda verde-água que já desaparecera, e de onde uma dama da corte agora se aproximava, um feixe de pêlos brancos e fofos agarrado protetoramente a seus fartos seios. — Imprudente. Eu não arriscaria o meu nem perto de uma dessas bolinhas de pêlo esganiçadas.
— Seu “Roger”? — perguntei, achando graça. — Costumava ouvir chamarem-no de “Peter”, de vez em quando. E os ianques, por alguma estranha razão, chamavam os seus de “Dick”. Uma vez chamei um paciente que estava me importunando de “Clever Dick”, querendo dizer “engraçadinho”, e ele quase rompeu os pontos de tanto rir.
Jamie também riu, espreguiçando-se voluptuosamente no quente sol de primavera. Piscou uma ou duas vezes e rolou sobre o corpo, rindo para mim de cabeça para baixo.
— Você causa o mesmo efeito em mim, Sassenach — ele disse. Alisei seus cabelos para trás, retirando-os de sua testa, e beijei-o entre os olhos.
— Por que os homens lhe dão nomes? — perguntei. — “John Thomas”, por exemplo. Ou “Roger”, também. As mulheres não fazem isso.
— Não? — Jamie perguntou, interessado.
— Não, claro que não. É mais fácil eu chamar meu nariz de “Jane”. Seu peito subiu e desceu enquanto ele ria. Rolei-me para cima dele, desfrutando seu corpo sólido sob mim. Pressionei meus quadris sobre ele, mas as camadas de anáguas entre nós transformaram o movimento mais em um gesto do que qualquer outra coisa.
— Bem — disse Jamie, de forma lógica —, o seu não fica subindo e descendo sozinho, afinal, nem vai em frente independentemente de sua própria vontade. Até onde eu saiba, pelo menos — ele acrescentou, arqueando uma das sobrancelhas inquisitivamente.
— Não, graças a Deus. Imagino se os franceses chamam o deles de “lerre” — eu disse, olhando para um almofadinha que passava em um moiré Verde forrado de veludo.
Jamie explodiu numa gargalhada que espantou os pombos do arbusto de forsítea. Saíram batendo as asas num farfalhar de indignação, espalhando penugens cinzentas em seu rastro. O cãozinho branco e felpudo, até então satisfeito em refestelar-se nos braços de sua dona como uma trouxa de trapos, acordou repentinamente, tomando consciência de suas responsabilidades. Saltou de seu ninho aconchegante como uma bola de pinguepongue e saiu correndo atrás dos pombos, latindo como um louco, sua dona gritando da mesma forma atrás dele.
— Não sei, Sassenach — ele disse, recobrando-se o suficiente para enxugar as lágrimas dos olhos. — O único francês que já ouvi dar um nome a isto chamou o seu de “Georges”.
— Georges! — eu repeti, alto o suficiente para atrair a atenção de um pequeno grupo de cortesãos que passava por ali. Um deles, um espécime baixo, mas animado, vestindo um dramático cetim listrado de preto e branco, parou junto a nós e fez uma profunda saudação, varrendo o chão aos meus pés com seu chapéu. Um dos olhos ainda estava fechado do inchaço e havia uma marca roxa na ponta do seu nariz, mas seu estilo estava impecável.
— A votre service, madame — ele disse.
Eu poderia ter conseguido se não fosse pelos malditos rouxinóis. O salão de jantar estava quente e apinhado de cortesãos e espectadores, uma das barbatanas da armação do meu vestido se soltara e fincava-se cruelmente sob o rim esquerdo toda vez que eu inspirava e eu estava sofrendo da mais comum de todas as pragas da gravidez — a necessidade de urinar a cada intervalo de alguns minutos. Ainda assim, eu poderia ter conseguido. Era, afinal, uma grave violação das boas maneiras deixar a mesa antes do rei, embora o almoço fosse um acontecimento informal, em comparação aos jantares convencionais que eram freqüentes em Versalhes — ou assim haviam me dado a entender. “Informal”, entretanto, era um termo relativo.
É verdade, havia apenas três variedades de picles condimentados, e não oito. E um caldo leve, e não uma sopa grossa. A carne de cervo era apenas assada, não servida en brochette, e o peixe, embora saborosamente cozido no vinho, era servido em filés, e não inteiro e montado num mar de musse gelatinosa recheada de camarão.
Entretanto, como se frustrado por tanta simplicidade rústica, um dos chefs nos brindou com um encantador hors-d’oeuvre — um ninho, habilmente construído com tiras finas de massa, ornamentado com raminhos verdadeiros de macieira em flor, na ponta dos quais estavam pousados dois rouxinóis, sem pele, assados, recheados com maçã e canela, depois recobertos com suas penas outra vez. E no ninho estava a família inteira de filhotes de rouxinol, minúsculos tocos de asas estendidas, bem tostadas e crocantes, a peie macia, depenada, besuntada de mel, bicos enegrecidos abertos, mostrando uma parte mínima, quase imperceptível, do recheio de pasta de amêndoas lá dentro.
Após uma volta triunfal pela mesa para exibir o acepipe — ao acompanhamento de murmúrios de admiração em redor -, a iguaria foi colocada diante do rei, que se voltou de sua conversa com madame de La Tourelle o tempo suficiente para espetar um dos filhotes do passarinho do seu lugar no ninho e atirá-lo dentro da boca.
Croc, croc, croc, continuavam os dentes de Luís. Hipnotizada, eu observava os músculos de sua garganta ondearem-se e senti os fragmentos de pequenos ossos deslizarem pelo meu próprio esôfago. Dedos morenos estenderam-se para pegar outro filhote.
Nesse ponto, concluí que provavelmente havia coisas piores do que insultar Sua Majestade deixando a mesa e saí em disparada.
Erguendo-se dos meus joelhos no meio dos arbustos alguns minutos depois, ouvi um som atrás de mim. Esperando encontrar o olhar de um jardineiro justificavelmente irado, virei-me com ar de culpa para depararme com o olhar de um marido irado.
— Droga, Claire, você tem que fazer isso o tempo todo? — perguntou.
— Em uma palavra: sim — eu disse, deixando-me cair, exausta, na borda de um chafariz. Minhas mãos estavam úmidas e eu as passei na minha saia.
— Acha que eu fiz isso de brincadeira? — Sentia-me zonza e fechei os olhos, tentando recuperar meu equilíbrio interno antes de começar a cair para dentro da fonte.
De repente, senti a mão de Jamie na base das minhas costas e eu em parte me apoiei, em parte caí em seus braços, enquanto ele sentava-se ao meu lado e me abraçava.
— Ah, meu Deus, Sassenach. Desculpe-me, mo duinne. Você está bem, Claire?
Afastei-me o suficiente para erguer os olhos para ele e sorrir.
— Eu estou bem. Só um pouco tonta. — Estendi o braço e tentei desfazer a profunda ruga de preocupação em sua testa. Ele devolveu o sorriso, mas a ruga permaneceu lá, uma linha fina e vertical entre as curvas espessas e ruivas de suas sobrancelhas. Ele enfiou a mão na água da fonte e passou-a suavemente em minhas faces. Eu devia estar bastante pálida.
— Desculpe-me — acrescentei. — Realmente, Jamie, não pude evitar.
A mão molhada apertou minha nuca de forma reconfortante, vigorosa e firme. Um borrifo fino de gotículas saído da boca de um golfinho de olhos saltados cobriu meus cabelos.
— Oh, não ligue para o que eu digo, Sassenach. Não tive a intenção de repreendê-la. É apenas que... — Fez um gesto de impotência com a mão. ...É que eu me sinto um idiota de cabeça-dura. Vejo você sofrendo e eu sei que fiz isso a você e não há nada que eu possa fazer para ajudá-la. Então, eu a culpo por isso e fico zangado e rosnando para você... Por que você simplesmente não me manda para o inferno, Sassenach? — desabafou.
Ri até minhas costelas doerem sob o espartilho apertado, apoiando-me em seu braço.
— Vá para o inferno, Jamie — eu disse finalmente, enxugando os olhos.
— Vá direto para o inferno. Não passe pelo início, não receba duzentos dólares — Continuei, numa referência à clássica carta do jogo Banco Imobiliário. — Pronto. Sente-se melhor agora?
— Sim, sinto-me — ele disse, a expressão desanuviando-se. — Quando você começa a falar que nem uma louca, sei que está bem. E você, Sassenach, sente-se melhor?
— Sim — respondi, endireitando-me e começando a observar o ambiente ao meu redor. As terras de Versalhes eram abertas ao público e pequenos grupos de comerciantes e trabalhadores misturavam-se estranhamente aos fidalgos alegremente coloridos, todos aproveitando o tempo bom.
De repente, a porta mais próxima que se abria para o terraço escancarou-se, derramando os convidados do rei no jardim numa onda de tagarelice. O êxodo do almoço aumentara com uma nova comitiva, aparentemente recém-saídos de duas grandes carruagens que eu podia ver passando pela borda do jardim em direção aos estábulos distantes.
Era um grande grupo de pessoas, homens e mulheres, sobriamente vestidos em comparação às cores vivas dos cortesãos à sua volta. No entanto, foi o som que produziam, em vez de sua aparência, que me chamara a atenção. O francês, falado por várias pessoas a uma certa distância, assemelha-se à conversa grasnada de patos e gansos, com elementos nasais. O inglês, por outro lado, possui um ritmo mais lento e muito menos subidas e descidas em suas entonações. Falado a uma certa distância, onde as vozes individuais são impossíveis de serem distinguidas, possui a monotonia amistosa e rouca do latido de um cão pastor. O efeito geral do êxodo em massa que no momento vinha em nossa direção era o de um grupo de gansos sendo conduzido ao mercado por um bando de cães.
O grupo de ingleses chegara, embora um pouco atrasado. Sem dúvida, estavam sendo educadamente enxotados para o jardim, enquanto o pessoal da cozinha apressadamente preparava outra refeição e arrumava de novo a colossal mesa para eles.
Passei os olhos pelo grupo, curiosa. O duque de Sandringham eu conhecia, é claro, já o tendo encontrado antes na Escócia, no Castelo Leoch. Sua figura com o peito estufado destacava-se facilmente, andando lado a lado com Luís, a peruca moderna inclinada numa atenção educada.
A maioria das outras pessoas era estranha, embora eu achasse que a elegante dama de meia-idade que acabara de atravessar as portas fosse a duquesa de Claymore, que eu ouvira falar que estava sendo esperada. A rainha, normalmente deixada para trás em alguma casa de campo para divertir-se da melhor maneira que pudesse, fora trazida às pressas para a ocasião. Conversava com a visitante, o rosto meigo e ansioso afogueado pela empolgação do evento a que não estava acostumada.
A jovem logo atrás da duquesa me avistou. Vestida com absoluta simplicidade, possuía o tipo de beleza que a faria destacar-se em qualquer multidão. Era graciosa, delicada, mas com uma figura agradavelmente arredondada. Os cabelos escuros, brilhantes, sem talco, e a mais extraordinária pele alva, ruborizada nas faces com um tom de rosa profundo e translúcido que a fazia parecer exatamente como uma pétala de flor.
Suas cores me fizeram lembrar de um vestido que tive em minha própria época, um vestido leve de algodão estampado com papoulas vermelhas. O pensamento, por alguma razão, provocou uma repentina e inesperada onda de lembranças nostálgicas e eu agarrei a borda do banco de mármore, as pálpebras marejadas de lágrimas de saudades. Devia ser pelo fato de ouvir o inglês simples e comum, pensei, após tantos meses entre a cadência da Escócia e o grasnido da França. Os visitantes soavam como se eu estivesse de volta ao lar.
Então, eu o vi. Pude sentir todo o sangue esvair-se de minha cabeça conforme meus olhos traçavam, incrédulos, a elegante curva do crânio arrojado, de cabelos escuros, entre as perucas empoadas ao redor. Alarmes soaram em minha cabeça como sirenes de bombardeio aéreo, enquanto eu lutava para aceitar e repelir as impressões que me assaltavam. Meu subconsciente viu a linha do nariz, pensou “Frank”, e virou meu corpo para lançar-me em sua direção e abraçá-lo. “Não é Frank”, emitiu o centro ligeiramente mais alto, mais racional, do meu cérebro, estancando meus movimentos quando eu vi a curva familiar de uma boca, um meio sorriso esboçado. “Você sabe que não é Frank”, repetiu o centro do meu cérebro, fazendo os músculos de minhas pernas paralisarem. Em seguida, a guinada para o pânico, o aperto das mãos, o nó no estômago, conforme os processos mais lentos do pensamento lógico sobrevieram obstinadamente no rastro do instinto e do conhecimento, ao ver a fronte alta e a inclinação arrogante da cabeça, assegurando-me do impensável. Não podia ser Frank. E Se não era, então só poderia ser...
— Jack Randall. — Não foi minha voz que ouvi, mas a de Jamie, soando estranhamente calma e distante. com a atenção atraída pelo meu comportamento estranho, ele olhara para onde eu estava olhando e vira o que eu acabara de ver.
Ele não se mexeu. Até onde eu podia ver através da minha crescente névoa de pânico, ele nem respirou. Eu estava vagamente consciente de um criado perto de mim, espreitando curiosamente para cima, para a figura altaneira de um guerreiro escocês paralisado ao meu lado, silencioso como uma estátua do deus Marte. Mas toda a minha preocupação estava voltada para Jamie.
Ele estava absolutamente imóvel. Imóvel como um leão quando se torna parte da planície, o olhar intenso e fixo como o sol que queima a estepe. E eu vi algo se mover nas profundezas de seus olhos. A intrigante contração do felino à espreita, a minúscula sacudidela do tufo de pêlos na ponta da cauda, precursoras da carnificina.
Sacar armas na presença do rei era morte certa. Murtagh estava no outro lado do jardim, longe demais para ajudar. Mais dois passos trariam a voz de Randall ao alcance de nossos ouvidos. Ao alcance da espada. Coloquei a mão no braço de Jamie. Estava rígido como o aço do punho da espada sob sua mão. O sangue rugiu em meus tímpanos.
— Jamie — eu disse. — Jamie! — E desmaiei.
Aos poucos, vim à tona de uma névoa amarela e tremeluzente, composta de luz do sol, poeira e lembranças fragmentadas, sentindo-me completamente desorientada.
Frank estava debruçado sobre mim, o rosto consternado de preocupação. Segurava minha mão, exceto que não era ele. A mão que eu segurava era muito maior do que a de Frank e meus dedos roçavam em pêlos ásperos no pulso. As mãos de Frank eram lisas e macias como as de uma jovem.
— Está bem? — A voz era a de Frank, baixa e modulada.
— Claire! — Esta voz, mais áspera e gutural, não era absolutamente de Frank. Nem era uma voz modulada. Era cheia de angústia e medo.
— Jamie. — Encontrei por fim o nome que combinava com a imagem mental que eu buscava freneticamente. — Jamie! Não... — Sentei-me num salto, olhando desesperadamente de um para o outro. Estava no meio de um círculo de rostos curiosos, uma roda de duas e três fileiras de cortesãos ao meu redor, olhando-me com uma expressão de interesse e cuidado.
Dois homens estavam ajoelhados no chão de terra a meu lado. Jamie à direita, os olhos arregalados e o rosto pálido como as flores de espinheiro acima dele. E à minha esquerda...
— A senhora está bem, madame? — Os olhos claros cor de avelã demonstravam apenas uma preocupação respeitosa, as sobrancelhas escuras e bem delineadas inquisitivamente arqueadas acima deles. Não era Frank, é claro. Nem era Jonathan Randall. Aquele homem era uns dez anos mais novo do que o capitão, talvez quase da minha idade, o rosto pálido e sem rugas de exposição ao tempo. Os lábios possuíam as mesmas linhas esculpidas a cinzel, mas não possuíam as marcas de crueldade que delineavam a boca do capitão.
— Você... — disse com a voz rouca, inclinando o corpo para longe dele. “Você é...
— Alexander Randall, escudeiro, madame — respondeu rapidamente, um gesto em direção à cabeça, como se fosse tirar um chapéu que não estava usando. — Acho que não nos conhecemos, não é? — disse, sem muita certeza.
— Eu, quero dizer, ha, não, não nos conhecemos — eu disse, deixandome cair de volta nos braços de Jamie. O braço estava firme como uma grade de ferro, mas a mão que segurava a minha tremia e eu puxei nossas mãos entrelaçadas para baixo das pregas da minha saia para esconder o fato.
— Uma apresentação um tanto informal, sra., ha, não... é lady Broch Tuarach, não é? — A voz alta, sibilante, atraiu minha atenção para algum ponto acima e atrás de mim. Deparei-me com o semblante afogueado, querubínico, do duque de Sandringham espreitando com interesse por cima dos ombros do conde de Sévigny e do duque d’Orleans. Empurrou seu corpo desajeitado pela estreita abertura permitida e estendeu a mão para ajudar-me a levantar. Ainda segurando a minha palma suada em sua mão, inclinou a cabeça na direção de Alexander Randall, escudeiro, que franzia o cenho, desconcertado.
— O sr. Randall trabalha para mim como secretário, lady Broch Tuarach. As Ordens Sagradas são uma vocação nobre, mas infelizmente nobreza de propósitos não paga a conta do sapateiro, não é, Alex?
O jovem enrubesceu ligeiramente diante dessa farpa, mas inclinou a cabeça cortesmente para mim, aprovando a apresentação de seu empregador. Somente então percebi a vestimenta negra e sóbria e o colarinho branco que o identificavam como alguma espécie de sacerdote júnior.
— Sua Excelência tem razão, senhora. E assim sendo, devo considerar sua oferta de emprego com a mais profunda gratidão. — Um ligeiro endurecimento das linhas dos lábios durante esse discurso pareceu indicar que a gratidão sentida talvez não fosse tão profunda assim, apesar das palavras amáveis. Olhei para o duque, deparando-me com seus pequenos olhos azuis enrugados contra o sol, a expressão impenetrável.
Essa pequena cena dramática foi interrompida pelas palmas do rei, convocando dois lacaios, que por ordem de Luís, seguraram-me pelos dois braços e obrigaram-me a sentar numa liteira, apesar dos meus protestos.
— Absolutamente, madame — ele disse, descartando tanto meus protestos quanto meus agradecimentos. — Vá para casa e descanse. Não queremos que esteja indisposta para o baile amanhã, non? — Os grandes olhos castanhos cintilaram para mim quando ergueu minha mão aos seus lábios. Sem tirar os olhos do meu rosto, inclinou-se formalmente para Jamie, que se recobrara o suficiente para fazer um educado discurso de agradecimento, e disse: — Eu talvez aceite seus agradecimentos, my ZOITZ, na forma de sua permissão para requisitar uma dança à sua adorável esposa.
Os lábios de Jamie apertaram-se, mas ele fez uma reverência e disse:
— Minha mulher compartilha minha honra com a sua atenção, Vossa Majestade. — Lançou-me um olhar. — Se ela estiver suficientemente bem para comparecer ao baile amanhã à noite, tenho certeza de que ficará lisonjeada em dançar com Vossa Majestade. — Virou-se sem esperar uma licença formal para retirar-se e, com um movimento brusco da cabeça em direção aos carregadores da liteira, disse: — Para casa.
Finalmente em casa depois de um percurso quente e aos solavancos pelas ruas que cheiravam a flores e a esgoto a céu aberto, despi meu pesado vestido e sua desconfortável armação, em favor de uma camisola de seda.
Encontrei Jamie sentado junto à lareira apagada, os olhos cerrados, as mãos sobre os joelhos como se estivesse pensando. Estava pálido em sua camisa de linho, luminescente como um fantasma à sombra do console da lareira.
— Santa Mãe de Deus — murmurou, sacudindo a cabeça. — Meu Deus, foi por pouco. Estive por um fio de matar aquele homem. Já pensou, Claire, se você não tivesse desmaiado? Deus, eu pretendia matá-lo, com todas as minhas forças — extravasou de repente, estremecendo novamente em reação.
— Venha, é melhor você colocar os pés para cima — insisti, empurrando um banquinho de madeira pesada e esculpida.
— Não, já estou bem — ele disse, descartando-o com um aceno da mão.
— Então... ele é o irmão de Jack Randall?
— Acho extremamente provável — respondi secamente. — Afinal, não poderia ser ninguém mais.
— Sabia que ele trabalhava para Sandringham? Sacudi a cabeça.
— Eu não soube... não sei... nada sobre ele além de seu nome e do fato de que é um padre. F-Frank não estava particularmente interessado nele, já que não era um antepassado direto seu. — O leve tremor de minha voz ao pronunciar o nome de Frank me denunciou.
Jamie colocou o frasco que segurava sobre o consolo e veio em minha direção. Inclinando-se de forma decidida, pegou-me no colo e aconchegou-me junto a seu peito. Os aromas dos jardins de Versalhes exalaram-se pungentes e frescos das pregas de sua camisa. Ele beijou minha cabeça e voltou-se para a cama.
— Venha descansar sua cabeça, Claire — disse serenamente. — Foi um longo dia para nós dois.
Tive medo de que o encontro com Alexander Randall desencadeasse os pesadelos de Jamie outra vez. Não acontecia com freqüência, mas de vez em quando, eu o sentia acordar ao meu lado, o corpo tenso numa batalha repentina. Saía da cama, então, cambaleante, e passava o resto da noite junto à janela como se ela oferecesse uma fuga, recusando qualquer forma de consolo ou interferência. E pela manhã, Jack Randall e os outros demônios das horas de trevas já haviam sido forçados para dentro de sua caixa, as tábuas pregadas e presas pelas cintas de aço da vontade de Jamie, e tudo voltara ao normal outra vez.
Mas Jamie adormeceu rapidamente e as tensões do dia já haviam desaparecido de seu rosto, deixando sua expressão serena e desanuviada quando apaguei a vela.
Era uma bênção estar deitada, imóvel, com o calor crescendo em torno de meus braços e pernas frios, a miríade de pequenas dores nas costas, no pescoço e nos joelhos desaparecendo na suavidade do sono que se aproximava. Mas a minha mente, livre do estado de alerta, repassava mil vezes a cena do lado de fora do palácio — a visão rápida de uma cabeça de cabelos escuros e testa alta, orelhas bem junto ao crânio e um maxilar bem delineado -, aquele primeiro e fulminante lampejo de reconhecimento equivocado, que atingiu meu coração com um golpe de alegria e angústia. Frank, eu pensara. Frank. E foi o rosto de Frank que eu via quando adormeci finalmente.
A sala de aula era uma daquelas características da Universidade de Londres; teto antigo de vigas e assoalhos modernos, linóleo arranhado por pés inquietos. Os assentos eram os bancos antigos e lisos; carteiras novas eram reservadas para as aulas de ciência. A história teria que se contentar com madeira arranhada, de sessenta anos; afinal, o assunto já estava determinado e não iria mudar — por que suas acomodações deveriam?
— Objetos de arte — dizia a voz de Frank — e objetos de uso. — Seus dedos longos tocaram a borda de um castiçal de prata e o sol que penetrava pela janela cintilou no metal, como se o toque de sua mão fosse elétrico.
Os objetos, todos emprestados dos acervos do Museu Britânico, estavam alinhados ao longo da beirada da mesa, suficientemente perto para que os alunos na primeira fila pudessem ver as minúsculas rachaduras no marfim amarelado da caixa francesa de jogos de dama e xadrez e as manchas de tabaco que escureciam as bordas do cachimbo branco de cerâmica. Um frasco de perfume inglês, ornamentado a ouro; um tinteiro folheado a ouro, com a tampa lavrada; uma colher de chifre rachada e um pequeno relógio de mármore encimado por dois cisnes.
Atrás da fileira de objetos, uma outra fileira, de retratos em miniatura, deitados na mesa, as feições dos retratados obscurecidas pelo reflexo da luz em suas superfícies.
Frank inclinava a cabeleira escura sobre os objetos, absorvido. O sol da tarde captou um errante reflexo avermelhado em seus cabelos. Ele ergueu o cachimbo de argila, seguro na palma da mão, como uma casca de ovo.
— Para alguns períodos da história — ele disse -, nós temos a própria história; o testemunho escrito das pessoas que viviam na época. Para outros, temos apenas os objetos do período, mostrando-nos como o homem vivia.
Levou o cachimbo à boca e fingiu tirar grandes baforadas, as sobrancelhas comicamente erguidas. Ouviram-se risadinhas abafadas na platéia e ele sorriu e colocou o cachimbo de volta sobre a mesa.
— A arte e os objetos de arte — fez um gesto abrangente com a mão sobre a cintilante coleção — é o que vemos com mais freqüência, as decorações da sociedade. E por que não? — Escolheu um rapaz de cabelos castanhos e ar inteligente para dirigir-se direto a ele. Um truque familiar aos professores experientes; escolha um membro da platéia para falar com ele como se estivessem só os dois. Instantes depois, passe para outro. E todos na sala se sentirão o foco de suas observações.
— São belos objetos, afinal de contas. — O toque de um dedo fez com que os cisnes do relógio começassem a girar, os pescoços curvilíneos majestosos numa procissão dupla. — Dignos de serem preservados. Mas quem iria se dar ao trabalho de guardar uma capa de bule velha e remendada ou um pneu gasto? — Desta vez, dirigia-se a uma bela loura de óculos, que sorriu e respondeu com uma pequena risada.
— Entretanto, são os objetos úteis, aqueles que não estão registrados em documentos, que são usados, quebrados e jogados fora sem maiores considerações, que contam a você como vivia o homem comum. As quantidades desses cachimbos, por exemplo, nos dizem algo a respeito da freqüência e dos tipos de tabaco usados nas diferentes classes sociais, da alta — um dedo bateu na tampa de uma caixa dé rape esmaltada — à baixa. — O dedo prosseguiu para acariciar a haste longa e reta do cachimbo com afetuosa familiaridade.
Agora, uma mulher de meia-idade, rabiscando freneticamente para anotar cada palavra, alheia ao olhar exclusivo sobre ela. As linhas se enrugaram ao lado dos olhos sorridentes, castanho-dourados.
— Não precisa anotar tudo, srta. Smith — ele repreendeu-a. — Afinal, a aula é de uma hora, seu lápis não vai durar tanto tempo.
A mulher enrubesceu e largou o lápis, mas sorriu timidamente em resposta à amistosa expressão de riso no rosto magro e moreno de Frank. Agora ele cativara todos eles, aquecidos pela chama do bom humor, a atenção atraída pelos pequenos lampejos de objetos dourados e cintilantes. Agora, eles o seguiriam sem queixa ou cansaço, ao longo do caminho da lógica, até os bosques cerrados da discussão. uma certa tensão abandonou seu pescoço quando sentiu a atenção dos alunos fixar-se nele.
— A melhor testemunha da história é o homem, ou mulher — um movimento da cabeça na direção da bela loura -, que a viveu, certo? Sorriu e pegou a colher de chifre rachada. — Bem, talvez. Afinal, faz parte da natureza humana dourar a pílula quando sabe que alguém lera o que você escreveu. As pessoas tendem a se concentrar nas coisas que consideram importantes e com freqüência as embelezam um pouco para consumo do público. É raro encontrar um Samuel Pepys que registre com igual interesse os detalhes de um desfile real e o número de vezes que ele é obrigado a usar o urinol todas as noites.
A risada desta vez foi geral e ele relaxou, apoiando-se informalmente na mesa, gesticulando com a colher.
— Igualmente, os adoráveis objetos, os artefatos artísticos, são em geral os mais preservados. Mas os urinóis e as colheres e os baratos cachimbos de argila podem nos dizer tanto ou mais a respeito das pessoas que os usaram.
— E quanto a essas pessoas? Pensamos nos personagens históricos como pessoas diferentes de nós mesmos, às vezes até um pouco mitológicos. Mas alguém jogou com isso — o esbelto dedo indicador tocou a caixa de jogos —, uma senhora usou isto — deu um pequeno empurrão no frasco de perfume -, aplicando uma pequena quantidade de perfume atrás das orelhas, nos pulsos... onde mais as senhoras presentes aplicam perfume? — Erguendo a cabeça de repente, ele sorriu para uma jovem loura e robusta na primeira fila, que ficou vermelha, abafou uma risadinha e tocou-se discretamente logo acima do V de sua blusa.
— Ah, sim. Bem ali. Ora, assim também a senhora a quem esse objeto pertencia.
Ainda sorrindo para a jovem, abriu o frasco de perfume e passou-o delicadamente sob o nariz.
— Qual é, professor? Arpège? — Não tão tímida, essa aluna; cabelos escuros, como os de Frank, com olhos cinza que ostentavam mais do que uma alusão de flerte.
Ele fechou os olhos e inspirou profundamente, as narinas alargando-se sobre a boca do frasco.
— Não. É UHeure Bleu. Meu preferido.
Voltou-se novamente para a mesa, os cabelos caindo sobre a testa em concentração, enquanto sua mão pairava sobre a fileira de retratos em miniatura.
— Depois, há uma classe especial de objetos: retratos. Um pouco de arte e, ao mesmo tempo, o máximo que podemos ver das próprias pessoas. Mas até onde são reais para nós?
Ergueu um minúsculo retrato oval e virou-o para a turma, lendo a pequena etiqueta colada no verso.
— Uma dama, pintado por Nathaniel Plimer, assinado com iniciais e datado de 1786, com cabelos castanhos, cacheados, presos no alto da cabeça, usando um vestido cor-de-rosa e uma blusa com gola de babados, fundo de céu e nuvens.
Ergue um retrato quadrado que estava ao lado do oval.
— Um cavalheiro, de Horace Hone, assinado com monograma e datado de 1780, com cabelos empoados presos num rabicho, usando casaco marrom, colete azul, jabô de tecido fino e uma insígnia de membro de uma ordem, provavelmente a Honorável Ordem de Bach.
A miniatura mostrava um homem de rosto redondo, a boca rosada fechada na pose formal dos retratos do século XVIII.
— Os artistas nós conhecemos — ele disse, recolocando o retrato sobre a mesa. — Assinaram seus trabalhos ou deixaram pistas de sua identidade nas técnicas e nos temas que usaram. Os estranhos penteados, as roupas esquisitas... não parecem pessoas que conheceríamos, não é? E a maneira como tantos artistas as pintaram, os rostos são todos iguais: rechonchudos e pálidos, a maioria, e não há muito mais que se possa dizer a respeito deles. Aqui e ali, um se destaca...
Estendendo a mão sobre a fileira, selecionou outro retrato oval.
— Um cavalheiro...
Ergueu a miniatura e os olhos azuis de Jamie chisparam sob a fulgurante cabeleira cor de palha, desta vez penteados, presos numa trança amarrada com uma fita, um penteado formal a que ele não estava acostumado. O nariz cinzelado era ousado acima da renda de seu colarinho e a boca larga parecia prestes a falar, ligeiramente curva num dos cantos.
— Mas eram pessoas reais — insistiu a voz de Frank. — Faziam praticamente as mesmas coisas que vocês fazem, exceto por alguns detalhes menores como ir ao cinema ou dirigir um carro pela estrada. — Ouviram-se alguns “sós contidos entre os alunos. — Mas preocupavam-se com seus filhos, amavam seus maridos ou esposas... bem, às vezes eles... — Mais risadas.
— Uma dama — disse em voz baixa, segurando o último retrato na Palma da mão, encobrindo-o para o momento de apresentá-lo. — De cabelos castanhos, luxuriosamente cacheados até os ombros, e um colar de Pérolas. Sem data. Artista desconhecido.
Era um espelho, não uma miniatura. Minhas faces estavam afogueadas e meus lábios tremiam quando o dedo de Frank delicadamente traçou a linha do meu queixo, a linha graciosa do meu pescoço. As lágrimas assolaram aos meus olhos e escorreram pelo meu rosto quando ouvi sua voz. ainda lecionando, quando ele colocou a miniatura de volta sobre a mesa e eu fiquei olhando para cima, para o teto de vigas de madeira.
— Sem data. Desconhecida. Mas um dia... um dia ela foi real. Sentia dificuldade de respirar e pensei, a princípio, que estava senda esmagada pelo vidro sobre a miniatura. Mas o material que pressionava meu nariz era macio e úmido e eu virei a cabeça e acordei, sentindo o travesseiro forrado de linho molhado de lágrimas sob meu rosto. A mão de Jamie era grande e quente em meu ombro, sacudindo-me delicadamente.
— Calma, menina. Calma! Você só está sonhando. Eu estou aqui. Aconcheguei o rosto no calor de seu ombro nu, sentindo as lágrimas deslizarem entre minha face e sua pele. Agarrei-me com força à sua solidez e os sons da madrugada da casa de Paris vieram lentamente aos meus ouvidos, trazendo-me de volta à minha vida.
— Desculpe-me — murmurei. — Eu estava sonhando com... com... Deu uns tapinhas nas minhas costas e enfiou a mão debaixo do travesseiro em busca de um lenço.
— Eu sei. Você estava chamando o nome dele. — Parecia resignado. Deitei a cabeça novamente em seu ombro. Senti um cheiro quente e aconchegante, seu próprio cheiro sonolento misturado à fragrância de lençóis limpos de linho e colchas de penas de ganso.
— Desculpe-me — repeti.
Ele soltou a respiração com força, não propriamente uma risada.
— Bem, nãovou dizer que não estou doente de ciúmes do sujeito disse melancolicamente -, porque estou. Mas certamente não posso culpálo pelos seus sonhos. Ou suas lágrimas. — Seu dedo percorreu suavemente a trilha molhada na minha face, depois a enxugou com o lenço.
-Não?
Seu sorriso na semi-obscuridade era enviesado.
— Não. Você o amava. Não posso culpar nenhum dos dois por você sofrer com sua ausência. E sinto certo conforto em saber... — Hesitou e eu estendi a mão para afastar os cabelos desgrenhados do seu rosto.
— Saber o quê?
— Que se vier a acontecer, você vai sofrer por mim assim também. — disse suavemente.
Pressionei o rosto com força contra seu peito, de modo que minhas palavras foram abafadas.
— Eu nãovou chorar por você, porque nãovou precisar. Eu nãovou perdê-lo, não vou! — Um pensamento me ocorreu e ergui os olhos para ele, a leve aspereza da barba por fazer sombreando seu rosto.
— Você não teme que eu volte, não é? Não acha que porque eu.— penso em Frank...
— Não. — Sua voz foi rápida e suave, uma resposta imediata como o aperto possessivo de seus braços ao meu redor.
— Não — ele disse outra vez, mais serenamente. — Nós estamos unidos, você e eu, e nada neste mundo me separará de você. — Sua mão ergueu-se para acariciar meus cabelos. — Lembra-se do voto de sangue que eu fiz a você quando nos casamos?
— Sim, acho que sim. “Sangue do meu sangue, ossos dos meus ossos...”
— “Eu lhe dou meu corpo para que sejamos um só” — ele concluiu. — Sim, e eu mantenho esse juramento, Sassenach, e você também. — Viroume ligeiramente e sua mão fechou-se delicadamente sobre o pequeno volume no meu ventre.
— Sangue do meu sangue — murmurou — e ossos dos meus ossos. Você me carrega dentro de você, Claire, e não pode me deixar, não importa o que aconteça. Você é minha, para sempre, quer queira quer não, quer me ame ou não. Minha e eu não a deixarei partir. — Coloquei uma mão sobre a dele, pressionando-a contra mim.
— Não — disse, num sussurro -, nem você pode me deixar.
— Não — ele disse, esboçando um sorriso. — Pois tenho mantido o final do juramento também. — Segurou-me com as duas mãos e inclinou a cabeça sobre meu ombro, para que eu pudesse sentir o hálito quente de suas palavras em meu ouvido, murmuradas na escuridão.
— “Eu lhe dou meu espírito, até o fim de nossas vidas.”
— Quem é aquele homenzinho estranho? — perguntei a Jamie com curiosidade. O homem em questão abria seu caminho lentamente em meio aos grupos de convidados reunidos no salão principal da casa dos Rohan. Parava por um instante, examinando um grupo com olhar crítico, depois ou encolhia um ombro ossudo e seguia em frente ou subitamente se aproximava de um homem ou mulher, exibia alguma coisa diante de seu rosto e emitia uma espécie de comando. O que quer que estivesse fazendo, suas ações pareciam ser motivo de grande hilaridade.
Antes que Jamie pudesse responder, o homem, um indivíduo pequeno, encarquilhado, em sarja cinza, detectou-nos e seu rosto se iluminou. Lançou-se sobre Jamie como uma minúscula ave de rapina abatendo-se de repente sobre um coelho grande e assustado.
— Cante — ele ordenou.
— Hein? —Jamie pestanejou para a pequena figura, perplexo.
— Eu disse “cante” — respondeu o sujeito, pacientemente. Cutucou o peito de Jamie com admiração. — com uma caixa de ressonância como esta, você deve ter uma excelente intensidade de voz.
— Ah, tem, sim — eu disse, divertindo-me. — Pode-se ouvi-lo a três quarteirões de distância quando está furioso.
Jamie lançou-me um olhar hostil. O homenzinho andava ao seu redor, medindo a largura de suas costas e batendo de leve nele como um pica-pau experimentando uma árvore de excelente qualidade.
— Eu não sei cantar — ele protestou.
— Bobagem, bobagem. Claro que sabe. E deve ter uma voz grave e excelente de barítono — disse o homenzinho com aprovação. — Ótimo. É perfeito para o que eu precisava. Veja,vou ajudá-lo um pouco. Tente igualar este tom.
Extraindo agilmente um pequeno diapasão do bolso, bateu-o habilmente contra uma pilastra e segurou-o junto ao ouvido esquerdo de Jamie.
Jamie revirou os olhos para o céu, mas deu de ombros e sendo obediente emitiu uma nota. O homenzinho deu um salto para trás como se tivesse levado um tiro.
— Não — exclamou, incrédulo.
— Receio que sim — eu disse, com compreensão. — Ele tem razão, sabe. Ele realmente não sabe cantar.
O homenzinho estreitou os olhos com ar acusador para Jamie, depois bateu o diapasão outra vez e segurou-o de forma convidativa.
— Mais uma vez — disse, tentando persuadir Jamie. — Apenas ouça e deixe um som igual sair dos pulmões.
paciente como sempre, Jamie ouviu com toda a atenção o “A” do diapasão e arriscou outra vez, produzindo um som espremido entre um mibemol e um ré-sustenido.
— Não é possível — disse o homenzinho, desconsolado. — Ninguém pode ser tão desafinado, nem de propósito.
— Eu posso — disse Jamie alegremente, fazendo uma reverência para o homenzinho. A essa altura, começáramos a atrair uma pequena multidão de espectadores interessados. Louise de Rohan era uma grande anfitriã e seus salões atraíam a nata da sociedade parisiense.
— Sim, ele pode — assegurei ao visitante. — Ele não tem ouvido musical.
— Sim, estou vendo — disse o homenzinho, decepcionado. Então, começou a me analisar especulativamente.
— Eu não! — eu disse, rindo.
— A senhora com certeza não é desafinada também, não é, madame? — Os olhos cintilando como uma cobra arrastando-se na direção de um pássaro hipnotizado, o homenzinho começou a vir na minha direção, o diapasão estremecendo como a língua de uma víbora.
— Espere um minuto — eu disse, esticando a mão para estancá-lo. — Exatamente quem é você?
— Este é herr Johannes Gerstmann, Sassenach. — com ar divertido, Jamie fez nova reverência para o sujeito. — O professor de canto do rei. Posso apresentá-lo à minha mulher, lady Broch Tuarach, herr Gerstmann? — Sem dúvida, Jamie conhecia até o último membro da corte, por mais insignificante que fosse.
Johannes Gerstmann. Bem, isso explicava o leve sotaque que eu detectara sob a formalidade do francês falado na corte. Alemão, me perguntei, ou austríaco?
— Estou reunindo um pequeno coro improvisado — o pequeno professor de música explicou. — As vozes têm que ser treinadas, mas devem ser fortes e verdadeiras. — Lançou um olhar de desilusão para Jamie, que apenas riu em resposta. Ele pegou o diapasão das mãos de herr Gerstmann e Segurou-o para mim com um ar interrogativo.
— Ah, está bem — eu disse, e repeti o som do diapasão.
O que quer que tenha ouvido pareceu animar herr Gerstmann, porque ele guardou o diapasão e espreitou-me com interesse. Sua peruca era ligeiramente grande demais e tendia a deslizar para frente quando ele balançava a cabeça. Foi o que ele fez agora e, em seguida, puxou a peruca para trás de qualquer jeito, dizendo:
— Excelente tom, madame! Realmente muito bom, muito bom mesmo. Estaria familiarizada com Lê Papillon? — Cantarolou uma passagem da música.
— Bem, ao menos já a ouvi antes — respondi cautelosamente. — Bem, quero dizer, a melodia; não sei a letra.
— Ah! Sem problemas, madame. O coro é pura simplicidade; assim... O braço preso pela mão do professor de música, vi-me forçosamente conduzida na direção dos acordes de um cravo numa sala distante, herr Gerstmann cantarolando em meu ouvido como um zangão ensandecido.
Lancei um olhar impotente por cima do ombro para Jamie, que apenas riu e ergueu sua taça de sorbet numa saudação de despedida antes de voltar-se e entabular uma conversa com o jovem monsieur Duverney, filho do ministro das Finanças.
A casa dos Rohan — se fosse possível usar uma palavra simples como “casa” para descrever tal lugar — estava iluminada com lanternas penduradas por todo o jardim dos fundos e bordas do terraço. Enquanto herr Gerstmann rebocava-me pelos corredores, pude ver criados apressados entrando e saindo dos salões de jantar, estendendo toalhas de linho e arrumando a prataria para o banquete que seria servido mais tarde. A maior parte dos “salões” eram cômodos pequenos, íntimos, mas a princesa Louise de La Tour de Rohan era uma personalidade expansiva.
Eu conhecera a princesa há uma semana, em outra festa, e achei-a surpreendente. Rechonchuda e sem graça, possuía um rosto redondo com um queixo pequeno e esférico, olhos azul-claros e sem pestanas, e uma pinta falsa no formato de estrela que não concorria para cumprir sua missão na vida. Então esta era a mulher que seduzira o príncipe Carlos, levando-o a ignorar os ditames da decência?, pensei, fazendo uma reverencia na fila de recepção.
Ainda assim, ela possuía um ar enérgico e cheio de vida que era muito atraente, além de uma linda boca rosada. Na realidade, a boca era a parte mais animada da princesa.
— Ah, estou encantada! — ela exclamara, agarrando minha mão quando lhe fui apresentada. — Que maravilha poder conhecê-la! Meu marido e meu pai fazem elogios infindáveis a milorde Broch Tuarach, mas nada disseram de sua encantadora mulher. Estou absolutamente encantada com sua presença, minha cara senhora... tenho mesmo que dizer Broch Tuarach, ou posso dizer apenas lady Tuarach? Não sei se conseguiria lembrar o nome todo, mas uma única palavra, sem dúvida, ainda que tenha um som tão estranho. É escocês, não? Que encantador!
Na realidade, Broch Tuarach significa “torre voltada para o norte”, mas se ela quisesse me chamar de “Lady Voltada para o Norte”, por mim tudo bem. De fato, ela logo desistiu de tentar lembrar-se de “Tuarach” e desde então passou a chamar-me apenas de “ma chère Claire”.
A própria Louise estava com o grupo de cantores na sala de música, agitando o corpo roliço de um a outro, conversando e rindo. Ao me ver, disparou pela sala tão rápido quanto suas saias permitiam, o rosto sem graça radiante de entusiasmo.
— Ma chère Claire! — exclamou, confiscando-me bruscamente de herr Gertsmann. — Chegou bem na hora! Venha, tem que conversar com essa tola criança inglesa por mim.
A “tola criança inglesa” era de fato muito jovem; uma garota de não mais do que quinze anos, com os cabelos escuros penteados em cachos brilhantes, as faces tão afogueadas de constrangimento que ela me fez lembrar uma brilhante papoula. Na realidade, foram as maçãs do rosto que me fizeram lembrar da jovem que eu vira no jardim de Versalhes, pouco antes da perturbadora aparição de Alexander Randall.
— Madame Fraser também é inglesa — Louise explicou à jovem. — Ela logo a fará se sentir em casa. Ela é tímida — Louise explicou, voltando-se para mim sem fazer uma pausa para respirar. — Converse com ela. Convença-a a cantar conosco. Garantiram-me que ela tem uma bela voz. Pronto, mês enfants, divirtam-se! — E com um tapinha de bênção, partiu para o outro lado da sala, exclamando, adulando, admirando-se com o vestido de uma recém-chegada, parando para afagar uma criança obesa sentada ao cravo, enrolando os anéis dos cabelos do menino nos dedos enquanto conversava com o duque de Castellotti.
— Dá até cansaço só de observá-la, não é? — eu disse em inglês, sorrindo para a jovem. Um leve sorriso surgiu em seus próprios lábios e ela balançou a cabeça rapidamente, mas não falou. Pensei que tudo aquilo devia ser um pouco assustador; as festas de Louise tendiam a fazer minha própria cabeça girar e a pequena papoula parecia ter acabado de sair da escola.
— Sou Claire Fraser — eu disse -, mas Louise não se lembrou de me dizer o seu nome. — Parei, à espera, mas ela não respondeu. Seu rosto ficou ainda mais vermelho, os lábios pressionados com força e os punhos cerrados ao lado do corpo. Fiquei um pouco assustada diante de sua aparência, mas ela por fim conseguiu reunir forças para falar. Respirou fundo e ergueu o queixo como alguém prestes a subir ao cadafalso.
— M-m-meu nome é... M-M-M — começou e logo compreendi o motivo de seu silêncio e de sua timidez. Ela fechou os olhos, mordendo o lábio com força, depois reabriu os olhos e heroicamente fez nova tentativa. — M-M-Mary Hawkins — conseguiu dizer. — Eu n-n-não sei cantar acrescentou audaciosamente.
Se eu a achara interessante antes, agora estava fascinada. Então esta era a sobrinha de Silas Hawkins, a filha do baronete, a noiva prometida do visconde de Marigny! Parecia um peso considerável de expectativa masculina para uma menina tão jovem suportar. Olhei ao meu redor para ver se o visconde estava presente e fiquei aliviada ao descobrir que não estava.
— Não se preocupe com isso — eu disse, colocando-me à sua frente, para ocultá-la das levas de pessoas que agora enchiam a sala de música. Não precisa falar se não quiser. Embora talvez devesse tentar cantar — eu disse, com um pensamento repentino. — Conheci um médico certa vez que era especializado no tratamento de gagueira; ele disse que as pessoas que gaguejam não o fazem quando estão cantando.
Os olhos de Mary Hawkins arregalaram-se de surpresa. Olhei ao meu redor e vi uma alcova próxima, com as cortinas cerradas, escondendo um sofá confortável.
— Por aqui — eu disse, tomando-a pela mão. — Pode ficar sentada aqui, de modo que não terá que conversar com as pessoas. Se quiser cantar, pode sair quando começarmos; se não, apenas permaneça aqui até a festa acabar.
— Ela fitou-me por um instante, depois me deu um repentino e ofuscante sorriso em agradecimento e entrou na alcova.
Fiquei flanando de um lado para o outro do lado de fora, para evitar que algum criado enxerido perturbasse seu esconderijo, conversando com os que passavam.
— Você está linda esta noite, my chèrel — Era madame de Ramage, uma das damas de companhia da rainha. Uma mulher mais velha, respeitável, fora jantar à rue de Tremoulins uma ou duas vezes. Abraçou-me calorosamente, depois olhou ao redor para certificar-se de que não éramos observadas.
— Esperava encontrá-la aqui, querida — ela disse, inclinando-se um pouco mais para perto e abaixando a voz. — Queria avisá-la para tomar cuidado com o conde St. Germain.
Virando-me parcialmente na direção do seu olhar, avistei o homem do rosto delgado que conheci nas docas de Lê Havre entrando na sala de música, de braço com uma mulher mais jovem, vestida com elegância. Ele não me vira, aparentemente, e eu rápido me voltei outra vez para madame de Ramage.
— O que... ele... quero dizer... — Senti que estava ficando cada vez mais ruborizada, agitada com a chegada do soturno conde.
— Bem, sim, ouviram-no falando de você — disse madame de Ramage, gentilmente me ajudando a sair do meu estado de confusão. — Pelo que entendi, houve alguma pequena dificuldade em Lê Havre?
— Algo do tipo — eu disse. — Tudo que fiz foi reconhecer um caso de varíola, mas isso resultou na destruição de seu navio e... ele não ficou nada satisfeito — concluí debilmente.
— Ah, então foi isso. — Madame de Ramage parecia satisfeita. Imaginei que sabendo da história direto da fonte, por assim dizer, dar-lhe-ia uma vantagem na troca de mexericos e informações que era o comércio da vida social parisiense.
— Ele tem andado por aí dizendo às pessoas que acredita que você seja uma bruxa — ela disse, sorrindo e acenando para uma amiga do outro lado do aposento. — Que bela história! Ah, ninguém acredita nisso — asseguroume. — Todo mundo sabe que se há alguém envolvido nessas questões é o próprio monsieur lê comte.
— É mesmo? — Quis perguntar o que ela queria dizer com aquilo, mas neste exato momento herr Gerstmann alvoroçou-se, batendo palmas como se tocasse um bando de galinhas.
— Vamos, vamos, mesdames! — disse. — Já estamos completos. Vamos começar!
Enquanto o coral reunia-se apressadamente perto do cravo, olhei para trás, na direção da alcova onde deixara Mary Hawkins. Achei ter visto a cortina mover-se, mas não tinha certeza. E quando a música começou, e as vozes reunidas elevaram-se, pensei ter ouvido um soprano alto e claro na direção da alcova — entretanto, mais uma vez, eu não tinha certeza.
— Muito bem, Sassenach — Jamie disse quando voltei a me unir a ele, afogueada e ofegante, após a apresentação do coral. Riu para mim e deu uns tapinhas no meu ombro.
— Como poderia saber? — eu disse, aceitando uma taça de ponche de Um criado que passava. — Você nem sabe distinguir as canções.
— Bem, de qualquer forma, você cantou bem alto — ele disse, sem se perturbar. — Eu pude ouvir cada palavra. — Senti seu corpo retesar-se ligeiramente ao meu lado e virei-me para ver o que, ou quem, ele estava olhando.
A mulher que acabara de entrar era miúda, mal atingindo a primeira costela de Jamie, com mãos e pés como os de uma boneca e sobrancelhas bicadas como um ornamento chinês, acima de olhos negros como jabuticabas.
Avançou com um passo que reproduzia sua própria leveza, de modo que ela parecia dançar pouco acima do chão.
— Annalise de Marillac — eu disse, admirando-a. — Não é encantadora?
— Ah, sim. — Algo em sua voz me fez olhar incisivamente para cima. Um tom rosado coloria a ponta de suas orelhas.
— E eu que pensava que você havia passado seus anos na França lutando, e não fazendo conquistas românticas — eu disse, com sarcasmo.
Para minha surpresa, ele achou graça. Ouvindo sua risada, a mulher voltou-se para nós. Um sorriso radiante iluminou seu rosto quando viu Jamie despontando acima da multidão. Virou como se viesse em nossa direção, mas teve a atenção desviada por um cavalheiro, de peruca e resplandecente em seu cetim lilás, que colocou a mão atrevidamente em seu braço delgado. Ela sacudiu o leque faceira para Jamie num gesto coquete de pesar, antes de devotar sua atenção ao novo companheiro.
— O que há de tão engraçado? — perguntei, ao vê-lo ainda rindo de orelha a orelha para as saias de renda, suavemente oscilantes, de sua amiga.
Recobrou de forma repentina a consciência da minha presença e sorriu para mim.
— Ah, nada, Sassenach. Apenas uma observação ao que você disse sobre lutar. Eu travei meu primeiro duelo, bem, na verdade, o único, por causa de Annalise de Marillac. Quando eu tinha dezoito anos.
O tom de sua voz era ligeiramente sonhador, observando a cabeleira lustrosa e escura afastar-se, sacolejando, pela multidão, cercada onde quer que fosse por aglomerados brancos de perucas e cabelos empoados, com uma ou outra peruca modernamente tingida de rosa para variar.
— Um duelo? com quem? — perguntei, olhando ao redor com cautela à procura de algum admirador da boneca chinesa que pudesse se sentir inclinado a dar prosseguimento a uma antiga disputa.
— Ah, ele não está aqui — Jamie disse, seguindo o meu olhar e interpretando-o corretamente. —Já morreu.
— Você o matou? — Agitada, falei um pouco mais alto do que pretendia. Quando algumas cabeças próximas voltaram-se com curiosidade em nossa direção, Jamie segurou-me pelo cotovelo e me fez girar nos calcanhares e seguir com pressa em direção às portas que se abriam para o terraço.
— Cuidado, Sassenach, fale mais baixo — ele disse, pacificamente. — Não, eu não o matei. Bem que eu queria — acrescentou com sarcasmo -, mas não o fiz. Ele morreu há dois anos, de infecção na garganta. Jared contou-me.
Conduziu-me por um dos caminhos do jardim, iluminado por criados segurando lanternas, parados como postes a intervalos de cinco metros, do terraço ao chafariz na outra extremidade do caminho. No meio do grande, espelho-d’água, quatro golfinhos lançavam lençóis de borrifos de água sobre um Tritão com ar enfurecido no centro, brandindo um tridente um tanto ineficaz em sua direção.
— Bem, não me deixe em suspense — insisti quando ficamos fora do alcance dos ouvidos dos grupos no terraço. — O que aconteceu?
— Está bem, então — ele disse resignado. — Bem, você deve ter observado que Annalise é muito bonita, não?
— Ah, é mesmo? Bem, talvez, agora que você mencionou, posso ver algo do tipo — respondi docemente, provocando um olhar repentino e lancinante, seguido de um sorriso enviesado.
— Sim. Bem, eu não era o único jovem galante em Paris com a mesma opinião, nem o único a perder a cabeça por ela. Andava por aí numa espécie de estupor, tropeçando nos próprios pés. Esperava por ela na rua, na esperança de vê-la sair de casa para a sua carruagem. Esquecia-me até de comer. Jared disse que meu casaco ficava pendurado em mim como num espantalho e o estado do meu cabelo reforçava a comparação. — Levou a mão distraidamente à cabeça, dando uns tapinhas no rabicho impecável preso com força na nuca e amarrado com uma fita azul.
— Esquecia-se de comer? Meu Deus, você estava mal mesmo — observei. Ele reprimiu uma risadinha.
— Ah, sim. E pior ainda quando ela começou a flertar com Charles Gauloise. Veja bem — acrescentou, para fins de esclarecimento -, ela flertava com todo mundo, é verdade, mas ela o escolhia como seu acompanhante para jantar com freqüência demais para o meu gosto, dançava demais com ele nas festas e... bem, para resumir, Sassenach, certa noite eu o flagrei beijando-a ao luar no terraço da casa do pai dela e o desafiei.
A essa altura, havíamos alcançado o chafariz em nosso passeio. Jamie parou e sentamo-nos na borda da fonte, no sentido do vento, antes dos repuxos que borrifavam da boca dos golfinhos. Jamie correu a mão pela agua escura e ergueu-a escorrendo, de modo distraído, observando as gotas prateadas escorrerem pelos seus dedos.
— Duelar era ilegal em Paris na época, como ainda é hoje. Mas havia lugares para isso; sempre há. Cabia a ele escolher e ele escolheu um lugar n° Bois de Boulogne. Perto da estrada dos Sete Santos, mas oculto por uma cortina de carvalhos. A escolha da arma também cabia a ele. Eu esperava pistolas, mas ele escolheu espadas.
— Por que ele faria isso? Você devia ser uns quinze centímetros mais alto do que ele, ou mais. — Eu não era nenhuma especialista, mas era forÇada a aprender um pouco sobre a estratégia e as táticas da luta de espadas; Jamie e Murtagh enfrentavam-se a cada dois ou três dias para não perderem a prática, colidindo-se, desviando-se e atacando para cima e para baixo no jardim, para absoluta satisfação dos criados, tanto homens quanto mulheres, que se acotovelavam nas sacadas para assistir.
— Por que ele escolheu espadins? Porque era muito bom com espadins. Além disso, acho que pensou que eu poderia matá-lo acidentalmente com uma pistola, embora soubesse que eu ficaria satisfeito só de tirar sangue dele com uma lâmina. Eu não pretendia matá-lo — explicou. — Apenas humilhá-lo. E ele sabia disso. Nosso Charles não era nenhum tolo — disse, sacudindo a cabeça melancolicamente.
A névoa do chafariz estava fazendo com que anéis dos meus cabelos escapassem do penteado, cacheando-se ao redor do meu rosto. Afastei uma mecha para trás, perguntando:
— E você o humilhou?
— Bem, eu o feri, ao menos. — Surpreendi-me ao ouvir um leve tom de satisfação em sua voz e ergui uma das sobrancelhas. — Ele aprendera a lutar com Lejeune, um dos melhores mestres espadachins da França. Foi como lutar com uma maldita pulga e eu lutei com ele com a mão direita.
— Passou a mão pelos cabelos outra vez, como se verificasse se continuavam presos.
— Meus cabelos soltaram-se, no meio da luta — ele disse. — A tira de couro que os prendia rompeu-se e o vento jogava meus cabelos nos olhos, de modo que tudo que eu conseguia ver era o minúsculo vulto branco de Charles em mangas de camisa, saltando para frente e para trás, como um peixinho de água doce. E foi assim que eu o peguei, finalmente: do modo como você espeta um peixe com uma adaga. — Deixou escapar um riso debochado.
— Ele soltou um berro como se eu o tivesse atravessado, embora eu soubesse que só o tinha picado em um braço. Enfim tirei os cabelos do rosto e olhei além dele, para Anaelise parada lá na borda da clareira, com os olhos arregalados e escuros como este lago. — Abanou a mão indicando a superfície negro-prateada ao nosso lado.
— Assim, embainhei minha espada, arrumei os cabelos para trás e fiquei lá parado, em parte esperando que ela viesse se atirar nos meus braços, suponho.
— Hum — eu disse, delicadamente. — E ela não o fez?
— Bem, eu não sabia nada a respeito de mulheres na época — disse. Não, ela veio e se atirou sobre ele, é claro. — Emitiu um som escocês no fundo da garganta, um som de desdém de si mesmo e de desgosto bemhumorado. — Ouvi dizer que se casou com ele um mês depois.
“Sim, bem.” Deu de ombros, com um sorriso pesaroso. “Assim, meu coração ficou partido. Voltei para a Escócia e durante semanas perambulei pelos cantos, desanimado e triste, até que meu pai perdeu a paciência comigo. Riu. “Até pensei em virar um monge por causa disso. Uma noite, disse a meu pai durante o jantar que achava que talvez, na primavera eu atravessaria o Canal e iria para a abadia tornar-me um noviço.”
Ri diante da idéia.
— Bem, você não teria nenhuma dificuldade com o voto de pobreza; castidade e obediência poderiam ser mais difíceis. O que seu pai disse?
Ele riu, os dentes brancos no rosto sombrio.
— Ele estava tomando sopa. Colocou a colher sobre a mesa e olhou para mim por um instante. Depois, suspirou, sacudiu a cabeça e disse: “Foi um dia muito difícil, Jamie.” Então, pegou a colher outra vez e retornou ao seu jantar e eu nunca mais disse uma palavra sobre o assunto.
Seus olhos percorreram o caminho meio inclinado que levava ao terraço, onde aqueles que não estavam dançando passeavam de um lado para o outro, refrescando-se entre uma dança e outra, apreciando seu vinho e flertando por trás de leques. Suspirou nostalgicamente.
— Sim, uma jovem muito bonita, Annalise de Marillac. Graciosa como o vento e tão pequena que dá vontade de enfiá-la dentro da camisa e carregá-la como um gatinho de estimação.
Fiquei em silêncio, ouvindo a música ao longe, filtrando-se pelas portas abertas lá em cima, enquanto contemplava a brilhante chinela de cetim que envolvia meu pé tamanho trinta e nove.
Após um instante, Jamie apercebeu-se de meu silêncio.
— O que foi, Sassenach? — perguntou, colocando a mão em meu braço.
— Ah, nada — eu disse com um suspiro. — Só estava pensando que duvido que alguém um dia me descreva como “graciosa como o vento”.
— Ah. — Sua cabeça estava parcialmente virada, o nariz longo e reto e o queixo firme iluminados por trás pela claridade da lanterna mais próxima. Pude ver um meio-sorriso em seus lábios quando se voltou para mim.
— Bem,vou lhe dizer, Sassenach, “graciosa” provavelmente não é a primeira palavra que acorre à mente quando se pensa em você. — Passou o braço por trás de mim, a mão quente e grande no meu ombro coberto de seda.
— Mas eu converso com você como se conversasse com minha própria alma — ele disse, virando-me para ele. Ergueu o braço e segurou minha testa, os dedos tocando de leve minha têmpora.
— Ah, Sassenach — murmurou. — Seu rosto é meu coração.
Foi a mudança do vento, alguns minutos mais tarde, que nos separou finalmente com uma chuva fina do chafariz. Separamo-nos e nos levantamos apressados, rindo com o frio repentino da água. Jamie inclinou a cabeça interrogativamente em direção ao terraço e eu tomei o seu braço, assentindo.
— Então — observei, enquanto subíamos devagar os amplos degraus até o salão de baile -, pelo que vejo, você sabe um pouco mais sobre as mulheres agora.
Ele riu, uma risada gutural e baixa, apertando o braço em torno de minha cintura.
— A coisa mais importante que aprendi sobre as mulheres, Sassenach, é qual escolher. — Afastou-se, fazendo uma reverência para mim, e com um amplo gesto indicando as portas abertas para a magnífica cena no interior, disse: — Concede-me a honra desta dança, milady?
Passei a tarde seguinte na casa dos d’Arbanville, onde encontrei novamente o mestre de canto do rei. Desta vez, tivemos tempo para uma conversa, que contei ajamie após o jantar.
— Você o quê? — Jamie estreitou os olhos para mim, como se suspeitasse que eu estivesse lhe pregando uma peça.
— Eu disse que herr Gerstmann sugeriu que eu poderia estar interessada em conhecer uma amiga dele. Madre Hildegarde é a encarregada de L’Hôpital dês Anges, você sabe, o hospital de caridade que fica perto da catedral.
— Sei onde fica. — Sua voz era acentuada por uma falta geral de entusiasmo.
— Ele tinha a garganta inflamada e isso me levou a lhe dizer o que deveria tomar e a falar um pouco sobre remédios em geral e em como eu era interessada em doenças e, bem, você sabe como uma coisa leva a outra.
— com você, sempre leva — concordou, com distinto cinismo. Ignorei o tom de sua voz e continuei.
— Assim,vou ao hospital amanhã. — Estiquei-me na ponta dos pés para pegar minha caixa de remédios de sua prateleira. — Talvez eu não a leve comigo da primeira vez — eu disse, examinando o conteúdo pensativamente. — Poderia parecer muito forçado. O que acha?
— Forçado? — Ele parecia perplexo. — Está pensando em visitar o lugar ou em se mudar para lá?
— Ha, bem — eu disse. Respirei fundo. — Eu, ha, achei que talvez pudesse trabalhar lá regularmente. Herr Gerstmann diz que todos os médicos e curandeiros que vão lá trabalham como voluntários. A maioria não vai lá todo dia, mas eu tenho tempo de sobra e poderia...
— Tempo de sobra?
— Pare de repetir tudo que eu digo — retruquei. — Sim, tempo de sobra. Sei que é importante comparecer a recepções, jantares e tudo isso, mas não ocupam o dia todo, ao menos, não precisa. Eu poderia...
— Sassenach, você está grávida! Não pretende sair para cuidar de mendigos e criminosos, não é? — Ele soava um pouco desamparado agora, como se imaginasse como lidar com alguém que acabou de enlouquecer bem diante dele.
— Eu não me esqueci — afirmei. Pressionei as mãos sobre minha barriga, estreitando os olhos para baixo.
— Na verdade, ainda nem dá para notar; com um vestido largo posso escapar impune durante algum tempo. E não há nada de errado comigo, exceto o enjôo matinal. Não há nenhuma razão para eu não poder trabalhar por alguns meses ainda.
— Nenhuma razão, exceto que eu nãovou permitir que faça isso! Não esperando nenhuma visita esta noite, ele tirara a echarpe do pescoço e abrira a gola da camisa ao chegar em casa. Eu podia ver a onda de cabelos ruivos avançando até sua garganta.
— Jamie — eu disse, procurando ser racional. — Você sabe o que eu sou.
— Você é minha mulher.
— Bem, isso também. — Afastei a idéia com os dedos. — Sou enfermeira, Jamie. Uma curandeira. Você devia saber. Ele ficou vermelho.
— Sim, sei. E porque você me curou quando eu estava ferido, eu deveria achar certo que você cuidasse de mendigos e prostitutas? Sassenach, você não conhece o tipo de gente que vai para L’Hôpital dês Anges? — Olhou-me com um olhar de súplica, como se esperasse que eu recobrasse o juízo a qualquer instante.
— Que diferença isso faz?
Olhou desesperadamente ao redor da sala, implorando o testemunho do retrato acima da lareira quanto à minha irracionalidade.
— Você pode pegar uma doença imunda, pelo amor de Deus! Não tem nenhuma consideração pelo seu filho, ainda que não tenha nenhuma por mim?
Racionalidade parecia um objetivo cada vez menos desejável.
— Claro que tenho! Que tipo de pessoa irresponsável, insensível, você Pensa que sou?
— O tipo que abandonaria o marido para ir brincar com esgoto na sarjeta. — retorquiu. —Já que perguntou. — Passou a enorme mão pelos cabelos, arrepiando-os no alto da cabeça.
— Abandoná-lo? Desde quando sugerir que preciso fazer alguma coisa é abandoná-lo? Não quero mais ficar apodrecendo no salão dos Rbanville, vendo Louise de Rohan entupir-se de doces e ouvindo poesia ruim e música pior ainda? Quero ser útil!
— Tomar conta da sua própria casa não é ser útil? Ser casada comigo não é ser útil? — O laço que amarrava seus cabelos desfez-se sob o estresse e os cachos espessos espalharam-se como uma auréola flamejante. Lançoume um olhar penetrante, feito um anjo vingador.
— O que vale para um vale para o outro — retorqui friamente. — Ser casado comigo é ocupação suficiente para você. Não o vejo perambulando pela casa o dia todo, adorando-me. E quanto à casa, parvoíce!
— Parvoíce? O que é parvoíce? — perguntou.
— Tolice, bobagem. Besteira. Em outras palavras, não seja ridículo. Madame Vionnet faz tudo e faz centenas de vezes melhor do que eu faria.
Isso era uma verdade tão patente que o fez parar por um instante. Lançou-me um olhar furioso, o maxilar remexendo-se.
— Ah, é? E se eu proibi-la de ir?
Aquilo me paralisou por um instante. Empertiguei-me e olhei-o de cima a baixo. Seus olhos tinham a cor da ardósia cinza-escuro, a boca larga e generosa apertada numa linha reta. Os ombros largos e eretos, os braços cruzados sobre o peito como uma estátua de ferro fundido, “ameaçador” era a palavra certa para descrevê-lo.
— Você me proíbe? — A tensão entre nós crepitava. Eu queria piscar, mas não iria lhe dar a satisfação de interromper meu próprio olhar glacial. O que eu faria se ele me proibisse de ir? As alternativas corriam pela minha mente, tudo desde plantar o abridor de cartas de marfim entre suas costelas a atear fogo à casa com ele dentro. A única idéia que eu rejeitava completamente era a de ceder.
Ele parou e respirou fundo antes de falar. Seus punhos estavam cerrados ao lado do corpo e ele abriu as mãos num esforço consciente.
— Não — disse. — Não, eu não a proíbo. — Sua voz estremeceu um pouco com o esforço para controlá-la. — Mas e se eu lhe pedisse?
Abaixei os olhos e fitei seu reflexo no tampo lustrado da mesa. No começo, a idéia de visitar L’Hôpital dês Anges parecera-me meramente interessante, uma alternativa atraente para os infindáveis mexericos e intrigas mesquinhas da sociedade parisiense. Mas agora... podia sentir os músculos do meu braço avolumarem-se quando eu cerrava meus próprios punhos. Eu não apenas queria trabalhar outra vez, eu precisava.
— Não sei — respondi finalmente.
Ele respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Pensará nisso, Claire? — Podia sentir seus olhos sobre mim. Depois do que pareceu um longo tempo, assenti, balançando a cabeça.
— Sim, pensarei.
— Ótimo. — A tensão quebrada, ele desviou-se, irrequieto. Ficou vagando pela sala de visitas, pegando pequenos objetos e devolvendo-os aleatoriamente, até parar junto à estante de livros, onde se apoiou, fitando sem ver os títulos nas capas de couro. Aproximei-me hesitante e coloquei a mão em seu braço.
— Jamie, eu não quis aborrecê-lo.
Abaixou os olhos para mim e lançou-me um sorriso oblíquo.
— Sim, bem. Eu também não quis brigar com você, Sassenach. Acho que estou irritadiço e muito sensível. — Deu uns tapinhas na minha mão como desculpas, depois se afastou e ficou parado, olhando sua escrivaninha.
— Você tem trabalhado demais — eu disse, seguindo-o e procurando acalmá-lo.
— Não é isso. — Sacudiu a cabeça e estendeu a mão para abrir com um único golpe o enorme livro de contabilidade que estava no centro da escrivaninha.
— O negócio de vinhos, ele vai bem. É muito trabalho, sim, mas não me incomodo. A questão é outra. — Fez um gesto indicando uma pequena pilha de cartas, seguras por um peso para papel de alabastro. Era um dos vários que Jared possuía, esculpido na forma de uma rosa branca, o emblema dos Stuart. As cartas que segurava eram do abade Alexander, do conde de Mar, de outros jacobitas proeminentes. Todas repletas de perguntas veladas, promessas nebulosas, expectativas contraditórias.
— Sinto-me como se estivesse lutando contra o vazio! — James disse, violentamente. — Queria uma luta de verdade, algo em que eu pudesse botar as mãos, algo que eu pudesse fazer. Mas isto... — Agarrou o punhado de cartas da escrivaninha e atirou-as para cima. Havia uma corrente de ar no aposento e os papéis ziguezaguearam loucamente, deslizando para baixo dos móveis e agitando-se sobre o tapete.
— Não há nada de palpável — disse, sentindo-se impotente. — Posso conversar com mil pessoas, escrever centenas de cartas, beber com Carlos até perder a consciência e nunca saber se estou progredindo ou não.
Deixei as cartas espalhadas permanecerem onde estavam; uma das criadas poderia resgatá-las mais tarde.
— Jamie — eu disse suavemente. — Nós não podemos fazer nada além de tentar.
Ele sorriu debilmente, as mãos agarradas à escrivaninha.
— Sim. Fico contente que tenha dito “nós”, Sassenach. Às vezes, sinto-me muito solitário com tudo isso.
Passei meus braços pela sua cintura e recostei o rosto contra as suas costas.
— Você sabe que eu não o deixaria sozinho com isso — eu disse. — Afinal, fui eu quem o meteu nisso, para começar.
Pude sentir a ligeira vibração de uma risada sob meu rosto.
— Sim, é verdade. Nãovou censurá-la por isso, Sassenach. — Virou-se, inclinou-se e me beijou de leve na testa. — Você parece cansada, mo duinne. Vá para a cama agora. Ainda tenho um pouco de trabalho para fazer, mas logo irei me juntar a você.
— Está bem. — Eu estava realmente cansada esta noite, embora a sonolência crônica do início da gravidez estivesse dando lugar a uma nova energia; eu estava começando a sentir-me alerta durante o dia, transbordando de necessidade de ficar ativa.
Parei à porta ao sair. Ele ainda estava parado junto à escrivaninha, fitando as páginas do livro de contabilidade aberto.
— Jamie? — eu disse.
— Sim?
— O hospital... eu disse que iria pensar no assunto. Pense, também, hum?
Ele virou a cabeça, uma das sobrancelhas pronunciadamente arqueada. Em seguida, sorriu e balançou a cabeça de leve.
—vou subir daqui a pouco, Sassenach — ele disse.
Ainda caía uma mistura de chuva e neve, e minúsculas partículas de gelo açoitavam ruidosamente as janelas e sibilavam no fogo da lareira quando o vento noturno virava e as empurrava pelo cano da chaminé. O vento estava intenso e gemia e rugia entre as chaminés, fazendo o quarto parecer ainda mais aconchegante em contraste. A própria cama era um oásis de calor e conforto, equipada com acolchoados de penugem de ganso, travesseiros enormes e fofos, e Jamie, fielmente emitindo Unidades Térmicas Britânicas como um aquecedor elétrico.
Sua mão grande e pesada acariciou de leve meu estômago, quente através da seda fina da minha camisola.
— Não, mais embaixo. Tem que apertar com um pouco mais de força.
— Peguei sua mão e pressionei seus dedos para baixo, pouco acima do osso púbico, onde o útero começava a se tornar evidente, um inchaço duro e redondo, um pouco maior do que uma laranja.
— Sim, posso senti-lo — ele murmurou. — Ele está realmente aí. — Um pequeno sorriso de encantamento e reverência repuxou o canto de sua boca e ele ergueu o rosto para mim, o olhar cintilante. — Você já pode senti-lo se mexer?
Sacudi a cabeça.
— Ainda não. Mais um mês e pouco, eu acho, pelo que sua irmã Jenny me disse.
— Hum — ele disse, beijando o minúsculo volume. — O que você acha de “Dalhousie”, Sassenach?
— O que eu acho de “Dalhousie” como o quê? — perguntei.
— Ora, como um nome — ele disse. Deu um tapinha de leve no meu ventre. — Ele vai precisar de um nome.
— É verdade — eu disse. — Mas o que o faz pensar que seja um menino? pode muito bem ser uma menina.
— Oh? Ah, sim, é verdade — admitiu, como se a possibilidade tivesse acabado de lhe ocorrer. — Ainda assim, por que não começar com nomes de meninos? Podíamos lhe dar o nome do seu tio que a criou.
— Huumm. — Franzi as sobrancelhas. Por mais que eu tivesse amado meu tio Lamb, não sabia se iria querer infligir nem “Lambert” nem “Quentin” num pobre bebê indefeso. — Não, acho que não. Por outro lado, também não acho que gostaria de lhe dar o nome de um de seus tios tampouco.
Jamie acariciou minha barriga distraidamente, pensando.
— Qual o nome de seu pai, Sassenach? — ele perguntou. Tive que parar um instante para me lembrar.
— Henry — respondi. — Henry Montmorency Beauchamp. Jamie, eu nãovou dar o nome “Montmorency Fraser” a uma criança, de modo algum. Também não sou muito favorável a “Henry”, embora seja melhor do que Lambert. Que tal William? — sugeri. — Pelo seu irmão. — Seu irmão mais velho, William, morrera ainda criança, mas vivera o suficiente para Jamie lembrar-se dele com grande afeto.
Franziu o cenho, absorto em seus pensamentos.
— Humm — disse. — Sim, talvez. Ou poderíamos chamá-lo de... — James — disse uma voz oca e sepulcral, vinda da chaminé da lareira.
— O quê? — eu disse, sentando-me ereta na cama. — James — disse a lareira, impacientemente. — James, James!
— Santo Deus! — Jamie exclamou, fitando as chamas saltitantes na lareira. Pude sentir os pêlos em seu braço arrepiarem-se, duros como arame. Ficou sentado, paralisado, por um instante; em seguida, ocorrendo-lhe um pensamento, pôs-se de pé num salto e dirigiu-se à janela que se projetava do telhado, sem se preocupar em vestir qualquer coisa por cima da camisa.
Ergueu a vidraça da água-furtada, deixando entrar uma rajada de ar frio e esticou a cabeça para fora, na noite. Ouvi um grito abafado e em seguida um som arranhado pelas ardósias do telhado. Jamie inclinou-se ainda mais para fora, erguendo-se nas pontas dos pés, depois recuou devagar para dentro do quarto, molhado da chuva e grunhindo com o esforço. Arrastava com ele para dentro do quarto, os braços ao redor de seu pescoço a figura de um rapaz atraente de roupas escuras, completamente encharcado, com um pano manchado de sangue enrolado em volta de uma das mãos.
O visitante colocou o pé no parapeito da janela e aterrissou desajeitadamente, estatelando-se no chão. Mas levantou-se logo e aos tropeções, fez uma mesura para mim, arrancando o chapéu desengonçado.
— Madame — disse, num francês de sotaque carregado. — Peço-lhe desculpas por chegar assim, sem cerimônia. É uma intrusão, mas é por necessidade que recorro a meu amigo James em uma hora tão imprópria.
Era um rapaz vigoroso, atraente, com abundantes cabelos castanhoclaros cacheados e soltos sobre os ombros. E um rosto bonito, as faces afogueadas do frio e do esforço físico. Seu nariz escorria um pouco e ele o limpou nas costas da mão envolvida no pano, contraindo-se um pouco ao fazê-lo.
Jamie, as duas sobrancelhas erguidas, saudou de modo educado o visitante com uma reverência.
— Minha casa está ao seu dispor, Alteza — ele disse, com um olhar que avaliava a desordem geral dos trajes do visitante. O laço da echarpe de seda do pescoço estava desfeito e as pontas soltas pendiam sobre o peito, metade dos botões estava abotoada de maneira torta e a braguilha de suas calças estava parcialmente aberta. Vi Jamie franzir a testa de leve diante disso e postar-se despercebidamente em frente ao rapaz, para ocultar de mim a indelicada visão.
— Gostaria de apresentar-lhe minha esposa, Vossa Alteza — ele disse. Claire, lady Broch Tuarach. Claire, este é Sua Alteza o príncipe Carlos, filho do rei Jaime da Escócia.
— Hum, sim — eu disse. — Foi o que imaginei. Ha, boa-noite, Alteza. Balancei a cabeça graciosamente, puxando as cobertas para cima. Imaginei que, nas atuais circunstâncias, ele podia dispensar a reverência de costume.
O príncipe aproveitara a prolixa apresentação de Jamie para ajeitar melhor as calças e agora balançava a cabeça para mim, repleto de dignidade real.
— O prazer é meu, madame — disse e fez uma nova reverência, agora de uma forma muito mais elegante. Empertigou-se e ficou girando o chapéu nas mãos, obviamente pensando no que dizer em seguida. Jamie, parado ao lado dele com as pernas nuas, olhava de mim para Carlos, aparentemente da mesma forma embaraçado, sem saber o que dizer.
— Ha... — eu disse, para quebrar o silêncio. — Sofreu um acidente, Alteza? — Balancei a cabeça, indicando o lenço amarrado em volta da mão e ele abaixou os olhos como se somente agora notasse o problema.
— Sim — disse —, ah... não. Quero dizer... não é nada, milady. — Ficou ainda mais vermelho, olhando fixamente para a mão. Seus modos eram estranhos; algo entre raiva e constrangimento. Entretanto, eu podia ver a mancha de sangue espalhando-se no lenço e, assim, coloquei os pés para fora da cama, tateando em busca do meu robe.
— É melhor deixar eu dar uma olhada nisso — eu disse.
O ferimento, exposto com alguma relutância pelo príncipe, não era grave, mas era incomum.
— Parece uma mordida de um animal — eu disse, incrédula, limpando delicadamente o pequeno semicírculo de perfurações na pele entre o polegar e o indicador. O príncipe Carlos contraiu-se quando espremi o tecido ao redor, no intuito de limpar o ferimento através do sangramento, antes de enfaixá-lo.
— Sim — ele disse. — Uma mordida de macaco. Bicho nojento, infestado de pulgas! — explodiu. — Eu disse a ela para livrar-se dele. com certeza o animal está doente!
Eu encontrara minha caixa de remédios e agora aplicava uma fina camada de ungüento de genciana.
— Acho que não precisa se preocupar — eu disse, atenta ao meu trabalho. — Quer dizer, desde que ele não esteja infectado com raiva.
— Raiva? — O príncipe ficou lívido. — Acha que poderia estar? Obviamente, ele não fazia a menor idéia do que era a doença, mas não queria ter nada a ver com ela.
— Tudo é possível — eu disse, animada. Surpresa com sua repentina aparição, somente agora eu estava começando a perceber que, no final das contas, pouparia muito trabalho a muita gente se aquele rapaz sucumbisse elegantemente a alguma doença rápida e mortal. Ainda assim, em meu coração não pude desejar que ele tivesse gangrena ou raiva e, deste modo, enfaixei sua mão com cuidado com uma atadura limpa de linho.
Ele sorriu, inclinou-se numa mesura outra vez, e agradeceu-me charmosamente numa mistura de francês e italiano. Ainda desculpando-se de modo efusivo pela visita inoportuna, ele foi com toda a educação rebocado por Jamie, agora respeitavelmente vestido com seu kilt, para tomar uma bebida lá embaixo.
Sentindo o frio do quarto infiltrar-se pelo meu robe e minha camisola, enfiei-me de novo na cama e puxei as cobertas até o queixo. Então, aquele era o príncipe Carlos! Realmente belo, como seu apelido, “bon-le”, ao menos, na aparência. Parecia muito jovem — muito mais novo do que Jamie, embora eu soubesse que Jamie era apenas um ou dois anos mais velho. Mas Sua Alteza realmente possuía modos encantadores e boa dose de dignidade e presunção, apesar dos trajes desalinhados. Seria isso suficiente para levá-lo à Escócia, à frente de um exército de restauração? Conforme eu cochilava, perguntava-me exatamente o que o herdeiro do trono da Escócia andara fazendo, perambulando pelos telhados de Paris no meio da noite, com uma mordida de macaco na mão.
A questão ainda estava na minha cabeça quando Jamie acordou-me algum tempo depois ao deslizar para baixo das cobertas e plantar os pés grandes e congelados direto atrás dos meus joelhos.
— Não grite assim — ele disse. — Vai acordar os empregados.
— Que diabos Carlos Stuart estava fazendo correndo pelos telhados com macacos? — perguntei, esquivando-me. — Tire esses malditos cubos de gelo de mim.
— Visitando sua amante — disse Jamie, de modo sucinto. — Está bem, pare de me chutar. — Ele retirou os pés e abraçou-me, tremendo de frio, quando me virei para ele.
— Ele tem uma amante? Quem? — Estimulada por aragens de frio de escândalo, eu despertava rápido.
— Louise de La Tour — Jamie explicou com relutância, em resposta à minha cutucada. Seu nariz parecia mais longo e afilado do que de costume, com as sobrancelhas grossas reunidas logo acima. Ter uma amante já era bastante ruim, em sua visão católica escocesa, mas era amplamente sabido que a realeza possuía certos privilégios a esse respeito. Entretanto, a princesa Louise de La Tour era casada. E realeza ou não, tomar uma mulher casada como amante era decididamente imoral, apesar do exemplo de seu tio Jared.
— Ah! — exclamei com satisfação. — Eu sabia!
— Ele diz que está apaixonado por ela — relatou sucintamente, puxando as cobertas até os ombros com um safanão. — Ele insiste em dizer que ela também o ama; diz que ela tem sido fiel apenas a ele nos últimos três meses. Essa é boa!
— Bem, às vezes acontece — eu disse, achando graça. — Então, ele a estava visitando? Mas, então, como ele foi parar no telhado? Ele lhe contou isso?
— Ah, sim. Ele me contou.
Carlos, fortalecido contra a noite com vários copos do melhor Porto envelhecido de Jared, mostrara-se bastante expansivo. A força do verdadeiro amor fora posta duramente à prova nesta noite, segundo Carlos, pela devoção de sua enamorada a seu animal de estimação, um macaco um tanto mal-humorado que retribuía a antipatia de Sua Alteza e possuía meios mais concretos de demonstrar suas opiniões. Estalando os dedos sob o nariz do macaco num ato de deboche, Sua Alteza sofrera primeiro uma lancinante mordida na mão e, depois, a mordida ainda mais lancinante da língua de sua amante, exercida em amarga repreensão. O casal discutira a ponto de Louise, princesa de Rohan, ordenar a Carlos que desaparecesse de sua presença. Ele dissera que estava mais do que disposto a ir embora — para não retornar, enfatizou de modo dramático, nunca mais.
A partida do príncipe, entretanto, fora consideravelmente atrasada pela descoberta de que o marido da princesa retornara mais cedo de sua noite de jogatina e estava instalado com todo o conforto na ante-sala com uma garrafa de conhaque.
— Então — Jamie disse, sorrindo sem querer diante da idéia —, ele não queria ficar com a rapariga, mas não podia sair pela porta. Assim, ele abriu a vidraça e pulou para o telhado. Desceu até quase a rua, disse, pelas calhas de escoamento da chuva; mas o guarda municipal apareceu e ele teve que arrastar-se para cima outra vez para ficar fora de suas vistas. Passou um mau bocado, segundo ele, desviando-se das chaminés e escorregando pelas ardósias molhadas, até que lhe ocorreu que nossa casa ficava a apenas três casas adiante e que os telhados eram suficientemente próximos para ele pular de um para o outro como se fossem folhas de ninféias.
— Hum — eu disse, sentindo o calor restabelecer-se em torno dos dedos dos meus pés. — Você o mandou para casa na carruagem?
— Não, ele levou um dos cavalos do estábulo.
— Se ele andou bebendo o Porto de Jared, espero que ambos consigam chegar a Montmartre — observei. — É uma boa distância.
— Bem, vai ser uma jornada longa e molhada, sem dúvida — Jamie disse, com a satisfação de um homem legalmente casado e virtuosamente enfiado numa cama quente com sua esposa. Apagou a vela e puxou-me para junto do seu peito, como uma colher.
— Bem feito — murmurou. — Um homem deve se casar.
Os empregados acordaram antes do sol nascer, limpando e lustrando em preparação para receber monsieur Duverney em um pequeno jantar particular à noite.
— Não sei para que se dão ao trabalho — eu disse a Jamie, deitada na cama com os olhos fechados, ouvindo o grande afã no andar de baixo. Tudo que precisam fazer é tirar a poeira do tabuleiro de xadrez e deixar à toão uma garrafa de conhaque. Ele não vai notar mais nada mesmo.
Ele riu e inclinou-se para me dar um beijo de despedida.
— Está bem assim;vou precisar de um bom jantar se quiser continuar ganhando dele. — Deu um tapinha no meu ombro, despedindo-se. -vou ao depósito, Sassenach, mas chegarei em casa a tempo de me vestir.
Em busca de alguma coisa para fazer que me tirasse do caminho dos empregados, por fim decidi fazer com que um lacaio me conduzisse até a casa dos Rohan. Talvez Louise precisasse de um pouco de consolo, pensei, depois de sua discussão na noite anterior. Curiosidade vulgar, disse a mim mesma com convicção, não tinha nada a ver com isso.
Quando retornei no final da tarde, encontrei Jamie relaxado numa cadeira perto da janela do quarto com os pés apoiados em cima da mesa, o colarinho aberto e os cabelos desgrenhados, debruçado sobre um maço de folhas rabiscadas. Ergueu os olhos ao som da porta fechando-se e a expressão absorta desfez-se num largo sorriso.
— Sassenach! Aí está você! — Colocou os pés no chão e atravessou o aposento para me abraçar. Enterrou o rosto nos meus cabelos, aninhando-se, depois se afastou e espirrou. Espirrou outra vez e soltou-me para tatear em sua manga à procura de um lenço que carregava ali, ao estilo militar.
— Que cheiro é este, Sassenach? — perguntou, pressionando o lenço de linho no nariz bem a tempo de abafar os resultados de outro espirro explosivo.
Enfiei a mão no decote do vestido e retirei o pequeno sachê do meio dos meus seios.
— Jasmim, rosas, jacintos e lírio-do-vale... ambrosia-americana também, ao que parece — acrescentei, enquanto ele bufava e resfolegava nas profundezas avantajadas do lenço. — Você está bem? — Olhei ao redor em busca de algum cesto de lixo e me decidi por jogar o sachê em uma caixa de papéis de carta sobre a minha escrivaninha do outro lado do aposento.
— Sim, tudo bem. E o aaa... aaaa....aaaTCHIM!
— Saúde! — Abri a janela de par em par e fiz sinal para que ele se aproximasse. Obedientemente, ele lançou a cabeça e os ombros para fora da janela, na garoa da manhã, inspirando lufadas de ar fresco, isento de jacinto.
— Ah, assim está melhor – disse com alívio, tirando a cabeça do chuvisco alguns instantes depois. Seus olhos arregalaram-se. — O que está fazendo agora, Sassenach?
— Lavando-me — expliquei, lutando com os cordões nas costas do meu vestido. — Ou me preparando para isso, pelo menos. Estou coberta de óleo de jacinto — expliquei, enquanto ele pestanejava. — Se eu não me lavar para tirá-lo, é capaz de você explodir.
Ele enxugou o nariz pensativo e balançou a cabeça, concordando.
— Nisso você tem razão, Sassenach. Quer que eu mande o criado trazer água quente?
— Não, não se preocupe. Uma toalha úmida deve retirar quase tudo — assegurei-lhe, desabotoando e desamarrando minhas roupas o mais rápido possível. Ergui os braços para trás, a fim de juntar meus cabelos e fazer um coque. De repente, Jamie inclinou-se para frente e agarrou meu pulso, esticando meu braço para cima.
— O que está fazendo? — perguntei, levando um susto.
— O que você andou fazendo, Sassenach? — perguntou. Olhava fixamente para minha axila.
— Depilei — eu disse com orgulho. — Ou melhor, tirei com cera. Louise estava com sua servante aux petits soins, você sabe, sua ajudante de embelezamento? Ela estava lá hoje de manhã e me depilou também.
— Com cera? — Jamie olhou espantado para a vela no castiçal, junto ao jarro d’água, depois de novo para mim. — Você colocou cera nas axilas?
— Não esse tipo de cera — assegurei-lhe. — Cera de abelhas perfumada. A mulher aqueceu a cera, depois espalhou a cera morna na pele. Quando esfria, é só puxar — encolhi-me involuntariamente diante da lembrança -, e isso não é nenhum bicho-de-sete-cabeças.
— Não conheço nenhum bicho com sete cabeças — disse Jamie com ar severo. — Por que diabos haveria você de fazer isso? — Olhou atentamente o local da operação, ainda segurando meu braço levantado no ar. — Isso não... doeu... credo! — Deixou meu braço cair e recuou rápido.
— Não doeu? — perguntou, o lenço no nariz outra vez.
— Bem, um pouco — admiti. — Mas valeu a pena, não acha? — perguntei, erguendo os dois braços como uma bailarina e girando de um lado para o outro. — Primeira vez que me senti completamente limpa em meses.
— Valeu a pena? — ele exclamou, soando um tanto atordoado. — O que tem a ver com limpeza arrancar todos os pêlos de baixo dos braços?
Um pouco tardiamente, percebi que nenhuma mulher escocesa que eu conheci empregava qualquer forma de depilação. Além disso, era quase certo que Jamie nunca estivera em contato suficientemente íntimo com uma parisiense de alta-classe para saber que a maioria delas se depilava.
— Bem — eu disse, de repente compreendendo a dificuldade que um antropólogo enfrenta ao tentar interpretar os costumes mais singulares de uma tribo primitiva. — Cheira muito menos — acrescentei.
— E o que há de errado na maneira como você cheira? — ele disse acaloradamente. — Ao menos, você cheira como uma mulher, não como uma maldita flor de jardim. O que acha que eu sou, um homem ou uma abelha? Poderia se lavar, Sassenach, para que eu possa ficar a menos de dez passos de você?
Peguei uma pequena toalha como esponja e comecei a limpar o torso. Madame Laserre, a mulher encarregada dos cuidados de beleza de Louise, aplicara óleo perfumado em todo o meu corpo; esperava que saísse com facilidade. Era desconcertante vê-lo pairando ao meu redor fora do alcance do cheiro, fitando-me como um lobo acuando sua presa.
Virei-me de costas para mergulhar a esponja na bacia e disse descontraidamente por cima do ombro:
— Ha, e depilei as pernas também.
Lancei um olhar furtivo por cima do ombro. O choque original transformava-se em uma expressão de total perplexidade.
— Suas pernas não tinham cheiro nenhum — ele disse. — A menos que tenha andado com bosta de vaca até o joelho.
Virei-me e levantei minhas saias até os joelhos, apontando o dedão do pé para a frente a fim de exibir as curvas delicadas da minha perna.
— Mas ficaram tão mais bonitas — ressaltei. — Lisas e macias; não como as de um macaco peludo.
Ele abaixou os olhos para os próprios joelhos penugentos, ofendido.
— E eu sou um macaco?
— Você, não. Eu! — exclamei, ficando exasperada.
— Minhas pernas são muito mais cabeludas do que as suas jamais serão!
— Bem, elas devem ser assim; você é homem!
Ele inspirou como se fosse responder, depois soltou o ar outra vez, sacudindo a cabeça e resmungando alguma coisa para si mesmo em gaélico. Atirou-se de volta na cadeira e recostou-se, observando-me através de olhos semicerrados e de vez em quando resmungando sozinho de novo. Resolvi não pedir uma tradução.
Depois que a maior parte do meu banho estava realizada no que pode melhor ser descrito como um ambiente carregado, decidi tentar a reconciliação.
— Poderia ter sido pior, sabe — eu disse, passando a esponja na parte de dentro da minha coxa. — Louise mandou remover todos os pêlos do seu corpo.
Isso lhe causou um sobressalto que por sua vez o fez voltar ao inglês, ao menos temporariamente.
— O quê? Ela removeu os pêlos da perereca? — ele disse, horrorizado a ponto de adotar uma vulgaridade que não lhe era própria.
— Hum-hum — respondi, satisfeita de que tal visão afastara suas atenções de minha própria condição inquietantemente pelada. — Cada pêlo. Madame Laserre arrancou até mesmo os extraviados.
— Nosso Senhor Jesus Cristo! — Ele fechou os olhos com força, ou para evitar ou para melhor contemplar a perspectiva que eu descrevera.
Evidentemente, a última hipótese era a verdadeira, porque ele abriu os olhos outra vez e olhou-me espantado, perguntando:
— E agora ela está andando por aí pelada como uma menina?
— Ela diz que os homens acham erótico.
Suas sobrancelhas quase se encontraram com a linha dos cabelos, um traço interessante para quem tinha a fronte tão classicamente alta.
— Gostaria muito que você parasse com esses resmungos — observei, pendurando a toalha no espaldar de uma cadeira para secar. — Não consigo entender nem uma palavra do que diz.
— É melhor que seja assim, Sassenach.
— Está bem — Jamie disse resignadamente durante o desjejum. Apontou uma colher para mim, avisando: — Pode ir, então. Mas Murtagh a acompanhará, além do lacaio; é uma vizinhança pobre ali perto da catedral.
— Me acompanhar? — Sentei-me empertigada, empurrando para longe de mim a tigela de mingau que eu vinha examinando com pouco entusiasmo. —Jamie! Quer dizer que você não se importa que eu visite L’Hôpital dês Anges?
— Não sei se não me importo — disse, comendo uma colherada do seu próprio mingau metodicamente. — Mas acho que vou me importar muito mais se ele não for com você. E se você trabalhar no hospital, ao menos isso impedirá que passe todo o seu tempo com Louise de Rohan. Imagino que haja coisas piores do que conviver com mendigos e criminosos — disse, com ar soturno. — Pelo menos, espero, não vai voltar do hospital com suas partes íntimas depenadas.
— Farei todo o possível — assegurei-lhe.
Eu já vira muitas enfermeiras-chefe na minha época, e algumas realmente excelentes, que haviam elevado um trabalho ao nível de uma vocação. Com madre Hildegarde, o processo fora invertido, com resultados impressionantes.
Hildegarde de Gascogne era a pessoa mais adequada que eu podia imaginar para ser responsável por um lugar como L’Hôpital dês Anges. Com quase um metro e oitenta de altura, sua figura ossuda e macilenta, embrulhada em metros de lã preta, assomava acima das irmãs enfermeiras como um espantalho num cabo de vassoura, guardando uma plantação de abóboras. Carregadores, pacientes, freiras, serventes, noviças, visitantes, farmacêuticos, todos eram arrebatados pela força de sua presença, para serem arrumados em pilhas meticulosas, onde quer que madre Hildegarde decretasse.
Com sua altura, além de um rosto de uma feiúra tão sublime a ponto de ser grotescamente belo, era óbvio o motivo pelo qual ela abraçara a vida religiosa — Cristo era o único homem de quem ela podia esperar que retribuísse seu amor.
Sua voz era gutural e ressonante; com o seu sotaque nasalado de Gasconha, reverberava pelos corredores do hospital como o eco dos sinos da igreja ao lado. Pude ouvi-la algum tempo antes de vê-la, a voz sonora aumentando de volume conforme ela descia o corredor em direção ao escritório onde seis senhoras da corte e eu amontoávamo-nos atrás de herr Gerstmann, como habitantes de uma ilha à espera da chegada de um furacão, comprimidos atrás de uma frágil barricada.
Ela preencheu o vão da porta com um zumbido de asas de morcegos e abateu-se sobre herr Gerstmann com um grito de êxtase, beijando-o sonoramente nas duas faces.
— Mon cher ami! Que prazer inesperado. E melhor ainda pelo caráter imprevisível. O que o traz a mim?
Endireitando-se, exibiu um amplo sorriso para o resto de nós. O sorriso permaneceu amplo enquanto herr Gerstmann explicava nossa missão, embora uma adivinha menos experiente do que eu poderia ter visto o enrijecimento dos músculos das faces que o transformavam de uma graça social em um ricto de necessidade.
— Apreciamos muito seus pensamentos e sua generosidade, mesdames.
— A voz gutural, sonora, continuou com um gracioso discurso de gratidão. Enquanto isso, eu podia ver os olhos pequenos e inteligentes, fundos sob a fronte ossuda, indo e vindo apressadamente, decidindo a melhor forma de descartar-se daquele aborrecimento o mais rápido possível, mas ainda assim extraindo o dinheiro de que aquelas piedosas senhoras pudessem estar dispostas a abrir mão em proveito de suas almas.
Tendo chegado a uma conclusão, bateu palmas energicamente. Uma freira baixa, da ordem geral de Cock-Robin, surgiu no vão da porta como um boneco de molas saído de uma caixa de surpresas.
— Irmã Angelique, tenha a bondade de conduzir estas senhoras ao dispensário — ordenou. — Dê-lhes roupas adequadas e em seguida mostre-lhes a enfermaria. Elas podem ajudar com a distribuição de comida aos pacientes, se estiverem dispostas. — Um ligeiro esgar da boca fina e larga deixou evidente que madre Hildegarde não esperava que a piedosa inclinação das senhoras sobrevivesse à visita à enfermaria.
Madre Hildegarde era uma sagaz juíza da natureza humana. Três das senhoras conseguiram ir até o fim da visita à primeira enfermaria, com seus casos de escrófula, sarna, eczema, fluxão e fétida piemia, antes de decidirem que suas inclinações caridosas poderiam ser inteiramente realizadas com uma doação ao Hôpital e voltarem voando ao dispensário para tirar a Vestimenta de tecido rústico que haviam nos fornecido.
No centro da enfermaria seguinte, um homem alto e desengonçado, Vestindo uma sobrecasaca preta, realizava o que parecia ser uma hábil amputação de uma perna; particularmente hábil porque o paciente não estava sedado de nenhuma forma visível e era contido no momento pelos esforços de dois robustos serventes e uma freira de compleição sólida que estava sentada sobre o peito do paciente, suas saias amplas felizmente ocultando o rosto do homem.
Uma das senhoras atrás de mim soltou um pequeno grito engasgado; quando olhei à minha volta, tudo que vi foram as retaguardas um tanto largas de duas das pretensas samaritanas, com os quadris entalados lado a lado no estreito vão da porta que levava ao dispensário e à liberdade. Com um último puxão desesperado e o barulho de seda rasgada, elas conseguiram passar e precipitaram-se pelo corredor escuro, quase derrubando um servente que vinha trazendo uma bandeja com uma pilha alta de lençóis de linho e instrumentos cirúrgicos.
Olhei para o lado e achei graça de ver que Mary Hawkins ainda estava ali. Um pouco mais branca do que as toalhas cirúrgicas de linho — que possuíam um vergonhoso tom de cinza, verdade seja dita — e um pouco verde em volta das narinas, mas ainda ali.
— Vitel Dépêchez-vousl — lançou um chamado imperioso, dirigido talvez ao abalado servente, que apressadamente rearranjou sua bandeja e correu para o local onde o homem alto e sombrio estava parado, o serrote de ossos na mão, pronto para cortar um osso de coxa exposto. O servente inclinou-se para amarrar um segundo torniquete acima do lugar da operação, o serrote desceu com um som áspero indescritível e eu tive pena de Mary Hawkins, virando-a na direção contrária. Seu braço tremia sob minha mão e os lábios de peônia estavam descorados e apertados como uma flor crestada pela geada.
— Gostaria de ir embora? — perguntei educadamente. — Tenho certeza de que madre Hildegarde pode chamar uma carruagem para levá-la. Olhei por cima do ombro para a escuridão vazia do corredor. — Receio que a condessa e madame Lambert já tenham partido.
Mary engoliu em seco audivelmente, mas endureceu o maxilar já firme com determinação.
— N-não — disse. — Se você ficar, eu fico.
Eu definitivamente pretendia ficar. A curiosidade e o ímpeto de me imiscuir nas operações do L’Hôpital dês Anges eram fortes demais para compensar qualquer sentimento de piedade que eu pudesse nutrir pelas susceptibilidades de Mary Hawkins.
A irmã Angelique seguira bem adiante antes de perceber que nós havíamos parado. Retornando, parou pacientemente à nossa espera, um leve sorriso no rosto rechonchudo, como se esperasse que nós também fôssemos nos virar e sair correndo. Inclinei-me sobre um catre na altura do chão. Uma mulher muito magra estava deitada languidamente sob um único cobertor, os olhos embotados vagando por nós sem interesse. Não foi a mulher que atraiu minha atenção, mas o recipiente de vidro de forma estranha no chão, ao lado do catre.
O recipiente estava cheio de um líquido amarelo até a borda — urina, sem dúvida. Fiquei ligeiramente surpresa; sem testes químicos, ou sequer papel de tornassol, que utilidade poderia ter uma amostra de urina? Entretanto, pensando nas diversas enfermidades para as quais testava-se a urina, tive uma idéia.
Peguei o recipiente com todo o cuidado, ignorando a exclamação de alarmado protesto da irmã Angelique. Cheirei o líquido com cautela. De fato; parcialmente obscurecido por ácidos vapores de amônia, o fluido tinha um cheiro doentiamente adocicado — mais ou menos como mel azedado. Hesitei, mas havia apenas uma maneira de me certificar. Com uma careta de nojo, enfiei a ponta de um dedo escrupulosamente no líquido e toquei-o de modo delicado em minha língua.
Mary, a meu lado, olhando tudo com os olhos esbugalhados, engasgou-se ligeiramente, mas a irmã Angelique observava com súbito interesse. Coloquei a mão na testa da mulher; estava fresca — nenhuma febre que explicasse o definhamento.
— Tem sede, madame? — perguntei à paciente. Eu já sabia a resposta antes mesmo que ela falasse, vendo a garrafa de água vazia perto de sua cabeça.
— Sempre, madame — respondeu. — E sempre com fome, também. No entanto, nenhuma carne se acumula nos meus ossos, por mais que eu coma. — Ergueu um braço fino como um galhinho, exibindo o pulso ossudo, depois o deixou cair como se o esforço a deixasse exausta.
Dei uns tapinhas delicados na mão esquálida e murmurei alguma coisa em despedida, meu entusiasmo por ter feito um diagnóstico correto praticamente dissipado pelo conhecimento de que não havia cura possível para diabetes melito nesta época; a mulher diante de mim estava condenada.
Desanimada, ergui-me para seguir a irmã Angelique, que diminuiu seus passos apressados para caminhar ao meu lado.
— Sabe do que ela sofre, madame? — a freira perguntou, curiosa. Apenas pela urina?
— Não somente por isso — respondi. — Mas, sim, eu sei. Ela tem — Droga! Como será que chamavam isso atualmente? — Ela tem... hum, doença do açúcar. Ela não consegue se nutrir daquilo que come e sente uma sede terrível. Conseqüentemente, produz grandes quantidades de urina.
A irmã Angelique balançava a cabeça, um olhar de intensa curiosidade estampado nas feições gorduchas.
— E sabe dizer se ela vai se recuperar, madame?
— Não, não vai — respondi sem rodeios. — Ela já está em estado terminal. Não deve durar nem mais um mês.
— Ah. — As sobrancelhas claras arquearam-se e o olhar de curiosidade foi substituído pelo de respeito. — Foi o que monsieur Parnelle disse.
— E quem é ele? quando está na casa? — perguntei petulantemente. A roliça freira franziu a testa, confusa.
— Bem, em seu próprio estabelecimento, acho que ele é fabricante de fundas para hérnia e joalheiro. No entanto, quando vem aqui, em geral, atua como “urinoscopista”.
Senti minhas próprias sobrancelhas erguerem-se.
— “Urinoscopista?” — perguntei, incrédula. — Existe isso de verdade?
— Oui, madame. E ele disse exatamente o que a senhora disse, sobre a pobre mulher que está definhando. Nunca ouvi falar de uma mulher que conhecesse a ciência da urinoscopia — disse a irmã Angelique, fitando-me com franca admiração.
— Bem, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a vã filosofia, irmã — eu disse, afavelmente. Ela balançou a cabeça com seriedade, fazendo-me sentir um pouco envergonhada do meu gracejo.
— É verdade, madame. Poderia dar uma olhada no homem que está na última cama? Ele se queixa do fígado, eu acho.
Continuamos de uma cama a outra, fazendo o circuito completo de todo o enorme salão. Vimos exemplos de doenças que eu só vira nos livros de medicina e todo tipo de ferimento traumático, desde machucados na cabeça infligidos em brigas de bêbados até um carroceiro cujo peito fora esmagado por um barril de vinho que rolara da carroça.
Parei junto a algumas camas, fazendo perguntas àqueles pacientes que pareciam em condições de responder. Eu podia ouvir Mary respirando pela boca atrás dos meus ombros, mas não verifiquei para ver se ela de fato estava prendendo o nariz.
Ao final da visita, a irmã Angelique virou-se para mim com um sorriso irônico.
— E então, madame? Ainda quer servir ao Senhor ajudando os desafortunados?
Eu já estava enrolando as mangas do meu vestido.
— Traga-me uma bacia de água quente, irmã, e um sabão.
— Como foi a visita, Sassenach? — Jamie perguntou.
— Terrível! — respondi, irradiando contentamento.
Ele ergueu uma das sobrancelhas, sorrindo para mim enquanto eu me esparramava no sofá.
— Ah, então, divertiu-se, hein?
— Ah, Jamie, foi tão bom me sentir útil outra vez! Limpei assoalho, dei mingau aos pacientes e, quando a irmã Angelique não estava olhando, consegui trocar alguns curativos sujos e lancetar um abscesso.
— Ah, ótimo — ele disse. — Lembrou-se de comer, em meio a todas essas frivolidades?
— Ha, não, para dizer a verdade, não — respondi, sentindo-me culpada.
— Por outro lado, também me esqueci de ficar enjoada. — Como se tivesse sido relembrada de um crime, as paredes de meu estômago contraíram-se de súbito. Pressionei o punho cerrado sob meu esterno. — Talvez fosse bom comer alguma coisa.
— Talvez fosse mesmo — ele concordou, um pouco severo, levando a mão ao sino.
Ficou observando enquanto eu obedientemente comia torta de carne e queijo, descrevendo L’Hôpital dês Anges e seus internos com entusiástico detalhamento entre uma mordida e outra.
— Algumas enfermarias estão superlotadas: dois ou três numa cama, o que é terrível, mas... não quer um pouco? — Parei para perguntar. — Está muito boa.
Ele olhou o pedaço de torta que eu estendia para ele.
— Se acha que pode deixar de me contar sobre unhas dos pés gangrenadas tempo suficiente para que ela desça da minha garganta ao meu estômago, então sim.
Somente então notei a lividez de suas faces e o leve aperto de suas narinas. Servi uma caneca de vinho e entreguei a ele antes de pegar meu prato outra vez.
— E como foi o seu dia, querido? — perguntei.
L’Hôpital dês Anges tornou-se um refúgio para mim. A maneira franca, direta e simples das freiras e pacientes era um maravilhoso refrigério da contínua tagarelice de intrigas e mexericos das damas e cavalheiros da corte. Também era positivo o fato de que, sem o alívio de permitir que “meus músculos faciais relaxassem em suas expressões normais no hospital, meu rosto iria logo se congelar em uma expressão de permanente insipidez e afetação.
Vendo que eu parecia saber o que estava fazendo, sem exigir nada delas além de algumas ataduras e panos, as freiras rápido aceitaram a minha presença. E após um choque inicial diante do meu sotaque e título, os pacientes também. O preconceito social é uma força poderosa, mas não resiste à simples competência quando é grande a demanda e pouca a oferta de capacidade e conhecimento.
Madre Hildegarde, apesar de muito ocupada, reservou um pouco mais do seu tempo para fazer seu próprio juízo a meu respeito. No começo, ela nunca falava comigo, além de um simples: “Bonjour, madame”, de passagem. Entretanto, eu com freqüência sentia o peso daqueles olhinhos pequenos e astutos penetrando em minhas costas enquanto eu trabalhava — quando me inclinava sobre a cama de um velho com herpes-zóster ou espalhava ungüento de aloé nas bolhas de uma criança queimada num dos freqüentes incêndios domésticos que acometiam os bairros mais pobres da cidade.
Ela nunca dava a impressão de estar com pressa, mas cobria uma grande distância durante o dia, percorrendo as pedras cinza e planas das enfermarias do Hôpital com uma passada que avançava um metro de cada vez, seu pequeno cachorro branco, Bouton, correndo em seus calcanhares para conseguir acompanhá-la.
Muito diferente dos fofos cachorrinhos de colo tão populares entre as damas da corte, ele parecia vagamente o resultado de um cruzamento de poodle com bassê, com pêlos desgrenhados e ondulados, cujas franjas agitavam-se em volta de uma barriga grande e de pernas atarracadas e arqueadas. As patas, com os dedos abertos como um leque e as unhas pretas, produziam um ruído seco e frenético nas pedras do assoalho, conforme ele trotava atrás de madre Hildegarde, o focinho pontudo quase tocando as pregas negras e deslizantes de seu hábito.
— Isso é um cachorro? — perguntei a um dos serventes, surpresa, quando contemplei Bouton pela primeira vez, atravessando o Hôpital nos calcanhares de sua dona.
Ele fez uma pausa na sua tarefa de varrer o chão para olhar a cauda emplumada, cacheada, que desaparecia na enfermaria seguinte.
— Bem — disse em dúvida -, madre Hildegarde diz que é um cachorro. Não serei eu quem vai dizer que não é.
Quando me tornei mais amiga das freiras, serventes e médicos visitantes do Hôpital, ouvi várias outras opiniões a respeito de Bouton, de tolerantes a supersticiosas. Ninguém sabia ao certo onde madre Hildegarde o pegara, nem por quê. Ele ja era membro do hospital há vários anos, com uma posição hierárquica — na opinião de madre Hildegarde, que era a única que contava — bem superior à das irmãs enfermeiras e igual à da maioria dos médicos e farmacêuticos visitantes.
Alguns desses últimos olhavam-no com desconfiada aversão, outros com alegre afabilidade. Um cirurgião referia-se a ele rotineiramente longe dos ouvidos da madre superiora — como o “nojento rato”, outro como o “coelho fedido”, e um gordo e baixo fabricante de fundas para hérnia cumprimentava-o abertamente como “monsieur Pano de Prato”. As freiras consideravam-no algo entre uma mascote e um totem, enquanto o jovem padre da catedral ao lado, que fora mordido na perna quando veio administrar os sacramentos aos pacientes, confidenciou-me sua própria opinião de que Bouton era um dos demônios menores, disfarçado de cachorro para seus próprios fins malignos.
Apesar do tom pouco lisonjeiro das observações do padre, achei que ele talvez fosse quem mais perto chegara da verdade. Pois após várias semanas observando a dupla, eu chegara à conclusão de que Bouton era na realidade um parente de madre Hildegarde.
Ela conversava com ele muitas vezes, não no tom com que as pessoas em geral falam com os cães, mas como alguém que discute questões importantes com um de seus pares. Quando ela parava ao lado de uma ou outra cama, Bouton geralmente pulava em cima do colchão, cheirando e focinhando o paciente espantado. Então, sentava-se, normalmente sobre as pernas do paciente, latia uma vez e erguia os olhos inquisitivamente para a madre superiora, sacudindo a cauda sedosa e emplumada como se perguntasse a opinião dela sobre o diagnóstico — a qual ela nunca negava.
Embora eu estivesse curiosa a respeito desse comportamento, não tivera nenhuma oportunidade de observar mais de perto aquela estranha dupla até uma manhã escura e chuvosa em março. Eu estava ao lado da cama de um carroceiro de meia-idade, conversando informalmente com ele enquanto tentava descobrir o que diabos havia de errado com o sujeito.
Fora um caso que chegara na semana anterior. Ele tivera a perna presa na roda da carroça quando apeou de modo descuidado antes de o veículo ter parado completamente. Era uma fratura múltipla, mas pouco complicada. Eu recoloquei o osso no lugar e o ferimento parecia estar se curando bem. O tecido ostentava um rosado saudável, com uma boa granulação, nenhum mau cheiro, nenhum veio vermelho revelador, nenhum lugar extremamente dolorido, absolutamente nada que explicasse por que o sujeito ainda ardia em febre e produzia a urina escura e fétida de uma infecção persistente.
— Bonjour, madame. — A voz gutural e intensa soou acima de mim e eu ergui os olhos para a figura imponente de madre Hildegarde. Algo passou zumbindo pelo meu cotovelo e Bouton aterrissou no colchão com um baque surdo que fez o paciente gemer baixinho.
— O que acha? — perguntou madre Hildegarde. Eu não tinha a menor idéia se ela estava se dirigindo a mim ou a Bouton, mas aceitei o benefício da dúvida e expliquei o que havia observado.
— Então, deve haver uma segunda fonte de infecção — concluí —, mas não consigo achá-la. Estou imaginando agora se ele não teria uma infecção interna que não está relacionada ao ferimento na perna. Uma leve apendicite ou uma infecção da bexiga, talvez, embora eu também não encontre nenhum ponto dolorido no abdômen.
Madre Hildegarde balançou a cabeça.
— Uma possibilidade, sem dúvida. Bouton! — O cachorro inclinou a cabeça em direção à sua dona, que sacudiu o queixo alongado indicando o paciente. — A la bouche, Bouton — ordenou. Pisando com delicadeza, o cachorro enfiou o focinho redondo e negro que provavelmente era o responsável por seu nome no rosto do carroceiro. Os olhos do indivíduo, as pálpebras pesadas de febre, arregalaram-se com a intrusão, mas um rápido olhar à presença imponente de madre Hildegarde estancou qualquer queixa que ele pudesse estar pensando fazer.
— Abra a boca — madre Hildegarde instruiu e tal era a sua força de caráter que ele obedeceu, embora seus lábios se contorcessem com a proximidade do focinho de Bouton. Beijar cachorro obviamente não constava de sua agenda de atividades desejáveis.
— Não — disse madre Hildegarde pensativamente, observando Bouton. — Não é isso. Procure em outro lugar, Bouton, mas com cuidado. Lembre-se de que ele tem a perna quebrada.
Como se de fato tivesse entendido cada palavra, o cachorro começou a cheirar o paciente curiosamente, enfiando o focinho em suas axilas, colocando as patas curtas em seu peito para investigar, focinhando delicadamente ao longo da virilha. Quando chegou à perna ferida, ele pisou com todo o cuidado sobre o membro antes de colocar o nariz na superfície das ataduras.
Retornou à área da virilha — bem, onde mais, pensei com impaciência, afinal, ele é um cão —, cutucou a parte de cima da coxa com o focinho, em seguida sentou-se e latiu uma vez, sacudindo o rabo triunfalmente.
— Pronto, aí está — disse madre Hildegarde, apontando para uma pequena crosta marrom logo abaixo da região inguinal.
— Mas isso já está quase curado — protestei. — Não está infeccionado.
— Não? — A freira alta colocou a mão sobre a coxa do paciente e apertou com força. Seus dedos vigorosos deixaram marcas na pele pálida, pegajosa, e o carroceiro deu um berro como uma banshee.
— Ah — ela exclamou, satisfeita, observando as profundas marcas deixadas pelos seus dedos. — Uma bolsa de putrefação.
E era; a crosta soltara-se em um dos lados e uma exsudação espessa de pus amarelo revelou-se sob ela. Um pouco de exploração, com madre Hildegarde segurando o sujeito pela perna e pelo ombro, revelou o problema.
Uma longa farpa de madeira, ao se soltar da roda estilhaçada da carroça instalara-se fundo na coxa, de baixo para cima. Negligenciada por causa da entrada aparentemente insignificante do ferimento, passara despercebida Pelo próprio paciente, para quem a perna inteira era uma grande dor. Enquanto a minúscula entrada da ferida cicatrizara bem, o ferimento mais profundo havia infeccionado e formado uma bolsa de pus em torno do elemento estranho, enterrado no tecido muscular, onde nenhum sintoma superficial era visível — para os sentidos humanos, ao menos.
Um pequeno trabalho com o bisturi para alargar a entrada do ferimento, uma rápida manobra com um par de fórceps longos, um puxão forte e hábil — e eu exibi uma lasca de madeira de cerca de sete centímetros, coberta de sangue e secreção.
— Nada mau, Bouton — eu disse, com um sinal de aprovação. Uma longa língua cor-de-rosa estendeu-se alegremente e as narinas pretas fungaram em minha direção.
— Sim, ela é boa nisso — disse madre Hildegarde e desta vez não havia dúvida a qual de nós dois ela estava se referindo, já que Bouton era macho. Bouton inclinou-se para frente e fuçou delicadamente minha mão, depois lambeu meus dedos uma vez no reconhecimento recíproco de um colega de profissão. Contive a ânsia de limpar a mão no vestido.
— Surpreendente — eu disse, com sinceridade.
— Sim — concordou madre Hildegarde, despreocupada, mas com um tom inconfundível de orgulho. — Ele é muito bom em localizar tumores sob a pele também. E embora eu nem sempre saiba o que ele encontra nos odores do hálito e da urina, possui um certo tom de latido que indica sem sombra de erro a presença de um transtorno estomacal.
Sob as circunstâncias, eu não via razão para duvidar. Cumprimentei Bouton com uma inclinação da cabeça e peguei um frasco de erva-de-sãojoão em pó para tratar a infecção.
— Agradeço a sua assistência, Bouton. Pode trabalhar comigo sempre que quiser.
— Muito sensato de sua parte — disse madre Hildegarde, com um lampejo de dentes fortes. — Muitos dos médicos e cirurgiões que trabalham aqui são menos propensos a tirar proveito das habilidades dele.
— Ha, bem... — Eu não queria depreciar a reputação de ninguém, mas meu olhar a monsieur Voleru do outro lado da sala deve ter sido bem eloqüente.
Madre Hildegarde riu.
— Bem, nós aceitamos o que Deus nos envia, embora de vez em quando eu me pergunte se Ele os manda para nós apenas para mantê-los longe de problemas maiores em outro lugar. Ainda assim, a maioria de nossos médicos é melhor do que nada, ainda que apenas de forma marginal.
— e os dentes cintilaram outra vez, fazendo-me lembrar de um simpático cavalo de tração – Você é muito melhor do que nada, madame.
— Obrigada.
— No entanto, andei pensando — continuou madre Hildegarde, observando-me enquanto eu aplicava o curativo com remédio -, por que você visita apenas os pacientes com contusões ou ossos quebrados? Você evita os que têm pústulas, tosses e febres, entretanto é mais comum que lês maítresses cuidem desses casos. Acho que nunca vi uma mulher cirurgiã antes. — Lês maítresses eram as curandeiras sem licença, a maioria oriunda das províncias, que lidavam com ervas, poções e amuletos. Lês maítresses saçe-femme eram as parteiras, o topo da pirâmide no que dizia respeito a curandeiras populares. Algumas eram dignas de mais respeito do que as profissionais licenciadas e de longe preferidas pelos pacientes das classes mais baixas, já que era mais provável que fossem mais capazes e muito menos dispendiosas.
Não me surpreendi por ela ter notado minhas preferências. Há muito eu compreendera que bem pouco de tudo que se passava no Hôpital escapava a madre Hildegarde.
— Não é falta de interesse — assegurei-lhe. — É que estou grávida, de modo que não posso me expor a nada contagioso, para o bem da criança. Ossos quebrados não se propagam por contágio.
— Às vezes, fico em dúvida — disse madre Hildegarde, lançando um olhar para uma maca que acabava de chegar. — Estamos tendo uma praga deles esta semana. Não, não vá. — Fez sinal para que eu voltasse. — A irmã Cecile cuidará disso. Ela a chamará se houver necessidade.
Os pequenos olhos cinza da freira olharam-me com uma mistura de curiosidade e apreciação.
— Então, você não só é uma senhora da sociedade como está grávida, mas seu marido não se opõe a que venha aqui? Ele deve ser um homem extraordinário.
— Bem, ele é escocês — eu disse, à guisa de explicação, sem querer entrar na questão das objeções de meu marido.
— Ah, escocês. — Madre Hildegarde balançou a cabeça em sinal de compreensão. — Certamente.
A cama tremeu contra a minha coxa quando Bouton deu um salto para o chão e saiu correndo em direção à porta.
— Ele sente o cheiro de um estranho — observou madre Hildegarde. Bouton ajuda tanto o porteiro quanto os médicos. Receio que sem maior gratidão pelos seus esforços.
Os sons de latidos enfáticos e uma voz aguda de pavor atravessou as portas duplas da entrada.
— Ah, é o padre Balmain outra vez! Desgraçado, será que não aprende a ficar parado e deixar Bouton cheirá-lo? — Madre Hildegarde voltou-se depressa para socorrer seu amigo, virando-se no último instante para sorrir sedutoramente para mim. — Talvez eu o mande aqui para ajudá-la com suas tarefas, madame, enquanto eu acalmo o padre Balmain. Embora certamente um homem santo, ele não sabe apreciar de verdade o trabalho de um artista.
Caminhou a passos largos em direção à porta com seu jeito tranqüilo, sem pressa, e eu, com uma última palavra ao carroceiro, voltei-me para a irmã Cecile e o caso mais recente na maca.
Jamie estava deitado no tapete da sala de estar quando cheguei em casa, com um menino sentado de pernas cruzadas no chão ao lado dele. Jamie segurava um bilboquê em uma das mãos e com a outra tampava um dos olhos.
— Claro que posso — dizia. — A qualquer dia, a qualquer hora. Observe.
Colocando a mão sobre o olho, fixou o outro intensamente no bilboquê e deu um impulso no receptáculo de marfim. A bola presa por um cordão saltou de seu encaixe com um movimento em arco e caiu, como se guiada por radar, voltando a aterrissar em seu encaixe com uma pancada certeira.
— Viu? — disse, retirando a mão do olho. Sentou-se e entregou o brinquedo ao menino. — Tome, tente. — Riu para mim e enfiou a mão sob a minha saia, agarrando meu tornozelo envolto em meia de seda verde como forma de cumprimento.
— Está se divertindo? — perguntei.
— Ainda não — respondeu, dando um aperto no meu tornozelo. — Estava esperando por você, Sassenach. — Os dedos longos e quentes em volta do meu tornozelo deslizaram mais para cima, tocando de brincadeira a curva da minha panturrilha, enquanto um par de límpidos olhos azuis erguia-se para mim, com ar de absoluta inocência. Seu rosto tinha uma listra de lama seca em um dos lados e havia manchas de sujeira na camisa e no kilt.
— É mesmo? — perguntei, tentando libertar minha perna de sua mão sem fazer alarde. — Pensei que seu pequeno companheiro de jogo era toda a companhia de que precisava.
O garoto, sem entender nada do inglês em que a conversa era conduzida,, ignorava-nos, atento à tarefa de tentar acertar o bilboquê com um dos olhos encoberto. Depois que as duas primeiras tentativas falharam, ele abriu o segundo olho e olhou fixamente para o brinquedo, como se o desafiasse a não funcionar. O segundo olho fechou-se outra vez, mas não completamente; uma pequena fenda permaneceu aberta, brilhando vigilante sob a franja espessa das pestanas escuras.
Jamie estalou a língua em sinal de desaprovação e o olho fechou-se apressadamente.
— Não, Fergus, nada de trapaças, por favor — disse. — O que é justo é justo. — O garoto evidentemente apreendeu o significado, ainda que não tenha entendido as palavras; riu timidamente, exibindo um par de dentes incisivos grandes, brancos, brilhantes e perfeitos como os de um esquilo.
A mão de Jamie exerceu uma puxada invisível, obrigando-me a chegar mais perto dele para evitar um tombo de cima dos meus saltos marroquinos.
— Ah — ele disse. — Este Fergus aqui é um homem de muitos talentos e um bom companheiro para as horas ociosas em que a mulher de um homem o abandona e o deixa entregue à própria sorte, para ir atrás de seus próprios interesses em meio às vicissitudes da cidade. — Os dedos longos curvaram-se com delicadeza na cavidade atrás do meu joelho, sugestivamente fazendo cócegas. — Mas ele não está qualificado como parceiro para a brincadeira que tenho em mente.
— Fergus? — eu disse, examinando o garoto e tentando ignorar o que acontecia lá embaixo. O menino devia ter nove ou dez anos, mas era pequeno para a idade e de ossos estreitos como um furão. Vestindo roupas velhas e limpas, muitos tamanhos maiores do que o dele, era também tipicamente francês, com a pele clara e amarelada e os olhos grandes e escuros de uma criança de rua de Paris.
— Bem, o nome dele na verdade é Claudel, mas decidimos que não soava muito másculo, então ele passará a se chamar Fergus. É um nome digno de um guerreiro.
Captando o som de seu nome — ou nomes -, o garoto ergueu os olhos e riu timidamente para mim.
— Esta é a madame — Jamie explicou ao menino, gesticulando em minha direção com a mão livre. — Pode chamá-la de milady. Acho que ele não conseguiria dizer “Broch Tuarach” — acrescentou para mim – ou quanto a isso, nem mesmo Fraser.
— “Mi lady está bem — eu disse, sorrindo. Contorci minha perna com mais força, tentando me livrar do aperto semelhante ao de sanguessugas. — Ah!, por quê, se mal pergunto?
— Por que o quê? Ah, por que Fergus, você quer dizer?
— É isso mesmo que quero dizer. — Eu não sabia ao certo até onde seu braço iria alcançar, mas a mão deslizava devagar pela parte de trás de minha coxa. —Jamie, tire a mão daí agora mesmo!
Os dedos voaram para o lado e habilmente soltaram a liga de fitas que segurava minha meia. Esta escorregou pela minha perna e amontoou-se em volta do meu tornozelo.
— Animal! — Dei-lhe um chute, mas ele se esquivou, rindo.
— Ah, animal, hein? De que tipo?
— Um cão vira-lata! — retruquei, tentando me curvar para puxar minha meia para cima sem cair dos saltos dos sapatos. Fergus, após um breve e desinteressado olhar para nós, retomara suas tentativas com o bilboquê.
— E quanto ao garoto — ele continuou alegremente —, Fergus agora trabalha para mim.
— Para fazer o quê? — perguntei. — Já temos um garoto que limpa as espadas e botas e um que cuida dos estábulos.
Jamie balançou a cabeça.
— Sim, é verdade. Mas não temos um batedor de carteiras. Ou melhor, não tínhamos; agora, temos.
Inspirei fundo e soltei o ar devagar.
— Sei. Acho que seria tolice minha perguntar exatamente por que precisamos acrescentar um batedor de carteira à criadagem.
— Para roubar cartas, Sassenach —Jamie respondeu calmamente.
— Ah — eu disse, começando a ver a luz.
— Não consigo extrair nada sensato de Sua Alteza. Quando está comigo, não faz outra coisa senão se lamentar sobre Louise de La Tour ou cerrar os dentes e blasfemar porque andaram discutindo outra vez. Em qualquer um dos casos, tudo que ele quer é se embebedar o mais rápido possível. Mar está perdendo a paciência com ele porque uma hora ele é arrogante, outra mal-humorado. E não consigo arrancar nada de Sheridan.
O conde de Mar era o mais respeitável jacobita escocês no exílio em Paris. Um homem cuja longa e ilustre juventude somente agora começava a resvalar para a velhice, ele fora o principal partidário do rei Jaime na fracassada revolução de 1715 e seguira seu rei ao exílio após a derrota em Neriffsmuir. Eu conhecera o conde e simpatizara com ele; jácom uma certa idade, era um fidalgo, de maneiras educadas e elegantes, com uma personalidade tão ereta quanto sua espinha dorsal. Agora, fazia o melhor possível — com pouca recompensa, ao que parecia — pelo filho de seu rei. Eu conhecera Thomas Sheridan, também; o tutor do príncipe — um senhor idoso que lidava com a correspondência de Sua Alteza, traduzindo impaciência e ignorância em francês e inglês elegantes.
Sentei-me e puxei minha meia de volta para cima. Fergus, aparentemente imune à visão de pernas femininas, ignorou-me completamente, concentrando-se apenas no bilboquê.
— Cartas, Sassenach — ele disse, — Eu preciso das cartas. Cartas de Roma, lacradas com o selo dos Stuart. Cartas da França, cartas da Inglaterra, cartas da Espanha. Podemos consegui-las tanto da casa do príncipe, Fergus pode ir comigo como pajem, ou provavelmente do mensageiro papal que as traz; isto seria ainda melhor, porque teríamos a informação com antecedência.
“Então, fizemos um trato — Jamie disse, balançando a cabeça na direção de seu novo empregado. “Fergus fará o melhor possível para obter o que eu preciso e eu lhe darei roupas, casa e comida e trinta écus por ano. Se for pego quando estiver trabalhando para mim, farei todo o possível para libertá-lo. Se não for possível, e ele perder uma das mãos ou uma das orelhas, então eu o manterei pelo resto da vida, já que ele não poderá mais continuar com sua profissão. E se for enforcado, então garanto que ele terá missas rezadas por sua alma durante o período de um ano. Acho que é justo, não?”
Senti um frio percorrer minha espinha.
— Meu Deus, Jamie — foi tudo que consegui dizer.
Ele sacudiu a cabeça e estendeu a mão para pegar o bilboquê.
— Não peça a Deus, Sassenach. Reze por São Dimas. O patrono dos ladrões e traidores.
Jamie pegou o bilboquê das mãos do menino. Sacudiu o pulso com precisão e a bola de marfim ergueu-se numa parábola perfeita, recaindo em seu encaixe com uma pancada seca inconfundível.
— Sei — eu disse. Examinei o novo empregado com interesse enquanto ele pegava o brinquedo que Jamie lhe entregava e recomeçava suas tentativas, os olhos brilhando em concentração. — Onde você o arrumou? — perguntei com curiosidade.
— Encontrei-o num bordel.
— Ah, claro — eu disse. — Sem dúvida. — Examinei as manchas de poeira e lama em suas roupas. — Que você estava visitando por alguma razão de fato excelente, não?
— Ah, sim — ele disse. Endireitou-se, os braços em volta dos joelhos, rindo enquanto me observava ajeitar a liga. — Achei que você ia preferir me encontrar em tal estabelecimento do que ser encontrado em uma viela escura com a cabeça esmagada.
Vi os olhos de Fergus fixarem-se em um ponto um pouco adiante do bilboquê, mais precisamente em uma travessa de bolos confeitados que estava sobre uma mesa junto à parede. Uma língua pequena, rosada e pontuda lambeu o lábio inferior.
— Acho que seu protegido estácom fome — eu disse. — Por que não lhe dá alguma coisa para comer e depois pode me contar o que diabos aconteceu esta tarde.
— Bem, eu estava a caminho das docas — ele começou, obedientemente pondo-se de pé -, e acabava de passar pela rue Eglantine, quando comecei a sentir uma sensação estranha às minhas costas.
Jamie Fraser passara dois anos no exército da França, lutara e roubara com uma gangue de malfeitores escoceses e fora perseguido como um fora-da-lei pelos charcos e montanhas de sua terra natal. Tudo isso deixouo com uma sensibilidade extremamente aguçada à sensação de estar sendo seguido.
Ele não sabia dizer se fora o som de uma passada perto demais ou a visão de uma sombra que não deveria estar ali ou algo menos tangível — o cheiro do mal no ar, talvez -, mas aprendera que o formigamento de advertência entre os cabelos de seu pescoço era um sinal de perigo que não devia ser ignorado.
Obedecendo prontamente aos ditames de suas vértebras cervicais, ele virou para a esquerda em vez de para a direita na esquina seguinte, agachou-se e contornou a barraca de um vendedor de moluscos marinhos, passou entre uma carroça cheia de bolos cozidos no vapor e outra de abobrinhas frescas e entrou numa pequena salsicharia.
Encostado na parede junto à porta, ele olhou para fora através de uma cortina de carcaças de pato penduradas. Dois homens entraram na rua menos de um segundo depois caminhando juntos, olhando rápido de um lado para outro.
Todo trabalhador em Paris carregava consigo as marcas de seu ofício e não foi preciso um faro muito apurado para detectar o cheiro de sal marinho naqueles dois. Se a pequena argola de ouro na orelha do homem mais baixo não fosse por si só uma perfeita denúncia, o profundo tom bronzeado de seus rostos teria deixado claro que eram marinheiros de alto-mar.
Acostumados às instalações confinadas dos navios e tavernas de beira de cais, os homens do mar raramente caminhavam em linha reta. Aqueles dois deslizavam pela viela apinhada como enguias pelo meio de rochas, os olhos saltando velozes entre mendigos, criadas, donas-de-casa, comerciantes; lobos-do-mar avaliando uma possível presa.
— Deixei que tivessem passado bem longe da loja — Jamie explicou — e estava prestes a sair e seguir na direção contrária, quando vi outro deles na entrada do beco.
Esse homem usava o mesmo uniforme dos outros dois; um longo cacho de cabelos em cada lado do rosto besuntados de óleo, uma faca de Peixe ao lado do corpo e um ferrão de marlim do tamanho do braço de um homem atravessado no cinto. Robusto e atarracado, o homem permaneceu parado na extremidade do beco, defendendo sua posição contra as ondas fustigantes de comércio que fluíam e refluíam pela estreita passagem. Obviamente, fora deixado ali de guarda, enquanto seus companheiros investigavam mais adiante.
— Então fiquei pensando no que faria — Jamie disse, esfregando o nariz.
— Eu estava bem seguro onde estava, mas não havia uma saída pelos fundos da loja e, assim que pisasse do lado de fora, eu seria visto. — Abaixou os olhos pensativamente, alisando o tecido vermelho de seu kiut em cima da coxa. Um enorme bárbaro ruivo chamaria a atenção, por mais compacta que fosse a multidão.
— Então, o que fez? — perguntei. Fergus, ignorando a conversa, enchia os bolsos metodicamente com bolos, parando para uma mordida apressada de vez em quando. Jamie percebeu meu olhar na direção do menino e deu de ombros.
— Ele não costuma comer regularmente — disse. — Deixe-o.
— Está bem — eu disse. — Mas, continue, o que você fez?
— Comprei uma salsicha — disse prontamente.
Uma Dunedin, para ser preciso. Feita de carne de cervo, presunto e pato temperados e cozidos, recheada e secada ao sol, uma salsicha Dunedin media cinqüenta centímetros de ponta a ponta e era tão dura quanto um bastão de carvalho envelhecido.
— Eu não podia sair com a espada em punho — Jamie explicou -, mas não gostava da idéia de passar pelo sujeito na viela sem ninguém às minhas costas e de mãos vazias.
Segurando a Dunedin como uma arma e mantendo um olhar atento à multidão que passava, Jamie caminhou audaciosamente pelo beco, em direção ao vigia na entrada.
O homem encarou-ocom absoluta calma, não dando nenhum sinal de qualquer intenção maligna. Jamie poderia ter achado que sua premonição original estava errada, se não tivesse visto os olhos do vigia moverem-se rápido para algum ponto acima do ombro de Jamie. Obedecendo a seus instintos que o haviam mantido vivo até então, ele lançou-se para a frente, derrubando o vigia e escorregando sobre seu rosto nas pedras imundas do calçamento da rua.
A multidão dispersou-se diante dele com gritos de susto e ele rolou sobre si mesmo, colocando-se de pé, bem a tempo de ver a faca que fora lançada, e por pouco não o atingira, estremecendo nas tábuas de uma barraca de fitas.
— Se eu tivesse alguma dúvida de que era a mim que eles queriam, ja não tinha mais — disse secamente.
Continuara segurando a salsicha e agora achou uma utilidade para ela, golpeando com força o rosto de um dos atacantes.
— Acho que quebrei o nariz dele — disse pensativamente. — De qualquer modo, ele caiu para trás, e eu passei por ele e corri em disparada pela rue Pelletier.
Os transeuntes na rua espalhavam-se diante dele como gansos, assustados com a visão de um escocês arremessando-se para frente com toda a força, o kilt voando em volta dos seus joelhos em movimento. Ele não parou para olhar para trás; pelos gritos indignados dos passantes, ele sabia que os homens ainda estavam em seu encalço.
Aquela parte da cidade raramente era patrulhada pela guarda do rei e a própria multidão oferecia pouca proteção além de uma simples obstrução que pudesse atrasar seus perseguidores. Não era provável que alguém interferisse em defesa de um estrangeiro.
— Não há nenhuma viela saindo da rue Pelletier. Eu precisava pelo menos chegar a algum lugar onde pudesse arrancar minha espada e ter uma parede às costas — Jamie explicou. — Assim, empurrava as portas conforme ia passando, até encontrar uma que se abriu.
Arremessando-se em um corredor sombrio, passando por um porteiro perplexo e atravessando uma cortina, atirara-se no centro de um aposento grande, bem iluminado, estancando com um rangido no meio de um dos salões de madame Elise, um cheiro forte de perfume nas narinas.
— Sei — eu disse, mordendo o lábio. — Eu, hum, espero que não tenha sacado sua espada lá dentro.
Jamie estreitou os olhos para mim, mas não se dignou a responder diretamente.
— Deixo isso por sua conta, Sassenach — ele disse secamente -, imaginar o que é chegar sem ser esperado no meio de um bordel, de posse de uma enorme salsicha.
Minha imaginação mostrou-se à altura dessa tarefa e eu desatei a rir.
— Meu Deus, quisera ter visto essa cena! — eu disse.
— Graças a Deus que não viu! — ele disse ardorosamente. Um rubor furioso brilhou nas maçãs do seu rosto.
Ignorando observações das fascinadas moradoras, Jamie abriu caminho desajeitadamente em meio ao que ele descreveu, com um estremecimento, como um “emaranhado de membros nus”, até que ele viu Fergus junto a uma parede, olhando o intruso com os olhos arregalados de espanto.
Apegando-se a essa inesperada manifestação de masculinidade, Jamie agarrou o garoto pelo ombro e implorou-lhe fervorosamente que lhe mostrasse a saída mais próxima, sem perda de tempo.
— Eu podia ouvir um tumulto estourando no corredor e compreendi que estavam atrás de mim. Eu não queria ter que lutar pela minha vida com um monte de mulheres nuas se intrometendo no caminho.
— Posso ver que a perspectiva devia ser assustadora — compreendi, esfregando meu lábio superior. — Mas obviamente ele o tirou dali.
— Sim, ele não hesitou nem por um instante, o bravo menino. “Por aqui, monsieur!”, ele disse, e subimos as escadas, atravessamos um quarto e saímos por uma janela em cima do telhado e dali fomos embora. — Jamie lançou um olhar carinhoso a seu novo empregado.
— Sabe — eu observei —, há algumas mulheres que não acreditariam em uma única palavra de uma história como essa.
Os olhos de Jamie arregalaram-se de espanto.
— Não? Por que não?
— Provavelmente — eu disse secamente -, porque não são casadas com você. Fico satisfeita que você tenha escapado com sua virtude intacta, mas por enquanto estou mais interessada nos homens que o perseguiram até lá.
— Não tive muito tempo para pensar nisso na hora. E agora que tenho, ainda não sei dizer quem eram ou por que estavam atrás de mim.
— Assalto, você acha? — Os pagamentos em dinheiro do negócio de vinhos eram transportados entre o depósito de Fraser, a rue Tremoulins e o banco de Jared em corres, fortemente protegidos por guardas. Ainda assim, Jamie chamava muito a atenção entre as multidões próximas das docas do rio e sem dúvida sabia-se que era um rico comerciante estrangeiro, rico em comparação com a maioria dos cidadãos daquelas vizinhanças.
Ele sacudiu a cabeça, batendo na frente da camisa para remover torrões de lama seca.
— Poderia ser, eu imagino. Mas não tentaram me abordar; pretendiam simplesmente me matar.
Seu tom de voz era bastante casual, mas senti um certo amolecimento nos joelhos e deixei-me afundar num sofá. Umedeci os lábios, de repente secos.
— Quem... quem você acha...?
Ele encolheu os ombros, enrugando a testa enquanto pegava um torrão de açúcar da travessa e engolia-o lambendo os dedos.
— O único homem em que posso pensar que me ameaçou é o conde de St. Germain. Mas não sei o que ele ganharia me matando.
— Ele é concorrente de Jared nos negócios, você mesmo disse.
— Ah, sim. Mas o conde não tem interesse em vinhos alemães e não consigo imaginar ele se dando ao trabalho de mandar me matar apenas para arruinar o novo empreendimento de Jared fazendo-o voltar a Paris parece um pouco extremado — disse secamente —, mesmo para um homem com o temperamento do conde.
— Bem, você acha... — A idéia deixou-me ligeiramente nauseada e eu engoli em seco duas vezes antes de prosseguir. — Você acha que pode ter sido..— vingança? Porque o Patagônia teve que ser incendiado?
Jamie sacudiu a cabeça, desnorteado.
— Suponho que sim, mas me parece muito tempo para esperar. E por que eu, por falar nisso? — acrescentou. — Foi você quem o enfureceu, Sassenach. Por que não assassiná-la, se era isso que ele queria?
A sensação de náusea piorou.
— Você tem que ser tão lógico assim, droga? — exclamei.
Ele viu a expressão do meu rosto e acabou sorrindo, passando o braço ao meu redor para me consolar.
— Não, mo duinne. O conde tem um temperamento esquentado, mas não consigo vê-lo se dando ao trabalho e à despesa de matar qualquer um de nós dois apenas por vingança. Se isso trouxesse seu navio de volta, então sim, mas do jeito que é, acho que ele só pensaria que o preço de três assassinos de aluguel era jogar um bom dinheiro fora.
Deu um tapinha no meu ombro e levantou-se.
— Não, espero que tenha sido apenas uma tentativa de assalto. Não se preocupe com isso. De hoje em diante levarei Murtagh para as docas comigo, por segurança.
Espreguiçou-se e sacudiu o resto da lama esfarelada de seu kilt.
— Estou decente para ir jantar? — perguntou, olhando criticamente para o peito. — Já deve estar quase pronta.
— O que está pronta?
Ele abriu a porta e um cheiro condimentado, delicioso, entrou imediatamente, vindo da sala de jantar lá embaixo.
— Ora, a salsicha, é claro — ele disse, com um amplo sorriso por cima do ombro. — Você não achou que eu iria desperdiçá-la, não é?
Três punhados de folhas de bérberis, em uma decocção, infusão por uma noite, despejada sobre meio punhado de heléboro preto.” Coloquei a lista de ingredientes sobre a mesa incrustada como se fosse ligeiramente pegajosa ao toque.
— Consegui a receita com madame Rouleaux. Ela é a melhor das fazedoras-de-anjos, mas até ela diz que é perigoso. Louise, tem certeza de que quer fazer isto?
Seu rosto redondo e rosado estava borrado e o polpudo lábio inferior tinha a tendência de estremecer.
— Que escolha eu tenho? — Ela pegou a receita da droga abortiva e fitou-acom fascinação e repulsa.
— Heléboro preto — disse, com um estremecimento. — Só o nome já soa como algo maligno!
— Bem, é uma droga muito forte — eu disse francamente. — Vai fazer você sentir como se suas entranhas estivessem saindo. Mas o bebê pode vir também. Nem sempre funciona. — Lembrei-me da advertência de mestre Raymond: É perigoso esperar demais, e perguntei-me com quanto tempo de gravidez ela estaria. Certamente não mais do que umas seis semanas; ela me contou tão logo suspeitou.
Olhou para mim, espantada com os olhos vermelhos.
— Você já usou?
— Por Deus, não! — Eu mesma me surpreendi com a veemência de minha exclamação e respirei fundo.
— Não. Mas já vi mulheres que usaram no Hôpital dês Anges. — Os aborteiros, os fazedores-de-anjos, em sua maioria atendem na privacidade dos lares, nos seus próprios ou de suas clientes. — Seus sucessos não eram os que acabavam no hospital. Coloquei a mão discretamente sobre meu próprio abdômen, como se quisesse proteger seu indefeso ocupante. Louise notou o gesto e encolheu-se no sofá, enterrando o rosto nas mãos.
— Ah, queria estar morta! — lamentou-se. — Por que, por que não pude ter a mesma sorte que você, carregando o filho de um marido que eu amasse? — Agarrou a própria barriga rechonchudacom as duas mãos, fitando-a como se esperasse que a criança fosse espreitar entre seus dedos.
Tinha inúmeras respostas a essa pergunta em particular, mas não achei que ela de verdade quisesse ouvir nenhuma delas. Respirei fundo e senteime a seu lado, dando uns tapinhas de consolo em seu ombro adamascado, sacudido pelo choro.
— Louise — eu disse. — Você quer a criança? Ela ergueu a cabeça e fitou-me perplexa.
— Mas é claro que quero! — exclamou. — É dele, é de Carlos! É... — Seu rosto contorceu-se e ela abaixou a cabeça outra vez sobre as mãos, entrelaçadascom força sobre o ventre. — É minha — murmurou. Após um longo instante, ergueu o rosto banhado em lágrimas e com uma patética tentativa de se recompor, assoou o nariz na longa manga do vestido.
— Mas não adianta — ela disse. — Se eu não... — Olhou para a mistura sobre a mesa e engoliu em seco. — Então Jules vai se divorciar de mim, vai me expulsar. Haveria um terrível escândalo. Eu poderia ser excomungada! Nem mesmo Deus poderia me proteger.
— Sim — eu disse. — Mas... — hesitei, depois deixei de lado a cautela. — Há alguma chance de fazer Jules acreditar que o filho é dele? — perguntei de uma vez.
Ela me olhou apalermada por um instante e tive vontade de sacudi-la.
— Não vejo como, a menos que... Oh! — Finalmente caiu em si e olhou para mim, horrorizada.
— Quer dizer, dormircom Jules? Mas Carlos ficaria furioso!
— Carlos — eu disse entre dentes — não está grávido!
— Bem, mas ele é... quer dizer... eu não poderia! — Mas a expressão de horror estava desvanecendo, sendo aos poucos substituída pela crescente compreensão da possibilidade.
Eu não queria pressioná-la; ainda assim, não via nenhuma razão para ela arriscar a própria vida em consideração ao orgulho de Carlos Stuart.
— Você acha que Carlos iria querer que você colocasse sua própria vida em risco? — eu disse. — Aliás, ele sabe a respeito da criança?
Ela balançou a cabeça afirmativamente, a boca meio aberta enquanto pensava, as mãos ainda entrelaçadas sobre a barriga.
— Sim. Foi sobre isso que brigamos da última vez. — Fungou. — Ele estava furioso; disse que tudo era culpa minha, que eu devia ter esperado até ele retomar o trono de seu pai. Então, um dia ele seria rei e poderia vir e me tirar de Jules. Ele fariacom que o papa anulasse meu casamento e seus filhos seriam os herdeiros da Inglaterra e da Escócia... — Ela sucumbiu outra vez, choramingando e lamuriando-se incoerentemente numa prega da saia.
Revirei os olhos, exasperada.
— Ah, pare com isso, Louise! — eu disse rispidamente. Ela levou um susto suficiente para fazê-la parar de chorar, ao menos por um momento, e eu me aproveitei do intervalo para enfatizar meu ponto de vista.
— Olhe — eu disse, do modo mais persuasivo possível -, você não acha que Carlos iria querer que você sacrificasse o filho dele, não é? — Na verdade, eu achava que Carlos seria favorável a qualquer medida que eliminasse a inconveniência de seu próprio caminho, independentemente dos efeitos que isso pudesse ter sobre Louise ou sobre seu suposto rebento. Por outro lado, o príncipe realmente possuía um acentuado veio romântico; talvez pudesse ser induzido a ver a situação como uma adversidade temporária comum a monarcas exilados. Obviamente, eu iria precisar da ajuda de Jamie. Fiz uma careta diante da idéia do que ele pudesse dizer a respeito.
— Bem... — Louise hesitava, desejando desesperadamente ser convencida. Senti uma momentânea compaixão por Jules, príncipe de Rohan, mas a visão de uma jovem criada, morrendo numa prolongada e ensangüentada agonia em um colchão de palha aberto no corredor de pedra do Hôpital dês Anges estava brutalmente clara em minha mente.
Quase anoitecia quando deixei a casa dos Rohan, arrastando os passos. Louise, palpitando de nervosismo, estava em seu quarto de vestir, a criada penteando seus cabelos para cima e arrumando-a em seu vestido mais ousado antes de ela descer para um jantar íntimo com o marido. Sentia-me completamente exausta e esperava que Jamie não tivesse levado ninguém para jantar em casa. Eu também precisava de um pouco de privacidade.
Ele não levara ninguém. Quando entrei no gabinete, ele estava sentado à escrivaninha, absorto em três ou quatro folhas de papel densamente escritas.
— Você acha que é mais provável que “o comerciante de peles” seja Luís da França ou seu ministro Duverney? — perguntou sem erguer os olhos.
— Bem, querido, obrigada, e você, como está? — eu disse.
— Bem — respondeu distraidamente. Os tufos de cabelo do topo de sua cabeça estavam todos em pé; ele massageava o couro cabeludo vigorosamente enquanto eu o observava, o longo nariz enfiado no papel com uma expressão ameaçadora.
— Tenho certeza de que “o alfaiate de Vendôme” deve ser monsieur Geyer — ele disse, percorrendo as linhas da carta com o dedo — e “nosso amigo mútuo” poderia ser o conde de Mar ou talvez o enviado papal. Acho que o conde, pelo resto da carta, mas o...
— Que diabos é isso? — Olhei por cima de seu ombro e prendi a respiração quando vi a assinatura ao pé da carta. Jaime Stuart, rei da Inglaterra e da Escócia pela graça de Deus.
— Santo Deus! Então, funcionou! — Girando nos calcanhares, avistei Fergus, sentado num banco diante da lareira, laboriosamente enchendo a boca com tortas e rrindo para ele. Ele retribuiu com um largo sorriso, as bochechas estufadas como as de um esquilo, abarrotadas de torta de castanhas.
— Nós a pegamos do mensageiro papal — Jamie explicou, voltando à superfície o suficiente para perceber que eu estava ali. — Fergus tirou-a da sacola enquanto ele jantava numa taverna. Ele vai passar a noite lá, de modo que teremos que recolocá-la no lugar antes do amanhecer. Nenhuma dificuldade nisso, não é, Fergus?
O menino engoliu e sacudiu a cabeça.
— Não, senhor. Ele dorme sozinho, não confia que companheiros de quarto não vão roubar o conteúdo de sua sacola. — Riu desdenhosamente.
— A segunda janela da esquerda, acima dos estábulos. — Abanou a mão leve, os dedos ágeis e sujos pegando outra torta. — Não é nada, senhor.
Tive a súbita visão daquela mão fina contorcendo-se, presa sobre um cadafalso, com a lâmina de um carrasco erguida acima do pulso estreito como um cabo de vassoura. Engoli em seco, forçando para baixo uma súbita golfada do meu estômago. Fergus usava uma pequena medalha de cobre esverdeado em um cordão em volta do pescoço; a imagem de São Dismas, eu esperava.
— Bem — eu disse, respirando fundo para me estabilizar -, o que têm a ver esses comerciantes de peles?
Não havia tempo para nenhuma inspeção vagarosa. Por fim, eu fiz uma cópia rápida da carta e o original foi cuidadosamente dobrado outra vez e seu selo original recolocado com a ajuda da lâmina de uma faca aquecida na chama de uma vela.
Observando a operação com ar crítico, Fergus sacudiu a cabeça para Jamie.
— O senhor tem o dom, milorde. É uma pena que uma de suas mãos seja aleijada.
Jamie olhou calmamente para sua mão direita. Na verdade, não estava danificada demais; dois dedos ligeiramente tortos, uma grossa cicatriz ao longo do dedo médio. O único dano maior fora no dedo anular, rigidamente esticado, a segunda junta tão esmagada que a cicatrização fundira dois ossos do dedo. A mão fora quebrada na prisão de Wentworth, há menos de quatro meses, por Jack Randall.
— Não tem importância — ele disse, sorrindo. Flexionou a mão e estalou os dedos de brincadeira para Fergus. — De qualquer jeito minhas enormes patas são grandes demais para eu viver de bater carteira. — Ele havia recuperado um impressionante grau de movimentos, pensei. Ele ainda carregava as macias bolas de pano que eu fizera para ele, apertando-as discretamente centenas de vezes por dia enquanto realizava seus afazeres. E se os ossos rejuntados o incomodavam, ele nunca se queixou.
— Então, vá agora — ele disse a Fergus. — Venha me ver quando tiver voltado a salvo, para que eu saiba que não foi apanhado pela polícia ou pelo dono da taverna.
Fergus torceu o nariz com desdém diante de tal idéia, mas assentiu, enfiando a carta com cuidado dentro do seu casaco antes de desaparecer pela escada dos fundos para a noite que era tanto seu elemento natural quanto sua proteção.
Jamie ficou olhando por um longo tempo na direção em que ele desapareceu, depois se voltou para mim. Na verdade, ele olhou de fato para mim pela primeira vez e suas sobrancelhas se ergueram repentinamente.
— Valha-me Deus, Sassenach! — exclamou. — Você está branca como minha camisa! Está bem?
— Apenas com fome — respondi.
Ele imediatamente mandou servir o jantar e comemos diante da lareira, enquanto eu lhe contava sobre Louise. Para minha surpresa, apesar de cerrar as sobrancelhas diante da situação e murmurar palavras pouco elogiosas em gaélico tanto a respeito de Louise quanto de Carlos Stuart, ele concordou com minha solução para o problema.
— Achei que você iria ficar aborrecido — eu disse, pegando um bocado do suculento cassoulet com um pedaço de pão. O feijão quente, temperado com bacon, encheu-me de uma sensação de tranqüilo bem-estar. Estava frio e escuro lá fora, e barulhento com a ventania, mas estava quente e silencioso ali junto ao fogo com Jamie.
— Ah, porque Louise de La Tour vai impingir um bastardo a seu marido? — Jamie franziu o cenho para seu próprio prato, passando o dedo pela borda para pegar o resto do caldo. — Bem, não sou muito a favor disso, Sassenach. É uma trapaça vergonhosa contra um homem, mas o que a pobre mulher poderia fazer? — Sacudiu a cabeça, depois lançou um olhar para a escrivaninha do outro lado do aposento e sorriu ironicamente.
— Além disso, não cabe a mim bancar o moralista com o comportamento dos outros. Roubar cartas, espionar e tentar de um modo geral subverter um homem que minha família considera rei? Não gostaria que alguém me julgasse com base no que estou fazendo, Sassenach.
— Você tem uma razão muito boa para fazer o que está fazendo! — protestei.
Ele deu de ombros. A luz do fogo tremeluzindo em seu rosto encovava suas faces e lançava sombras nas órbitas dos olhos. Fazia-o parecer mais velho do que era; às vezes eu me esquecia que ele ainda não tinha vinte e quatro anos.
— Bem, sim. E Louise de La Tour também tem uma razão — ele disse. — Ela quer salvar uma vida, eu quero salvar dez mil. Isso me dá o direito de arriscar a vida do pequeno Fergus, o negócio de Jared e você? — Virou a cabeça e sorriu para mim, a luz refletindo na ponta do nariz longo e reto, brilhando como safira no único olho voltado para o fogo.
— Não, nãovou perder meu sono por causa da necessidade de abrir as cartas de outra pessoa — ele disse. — Pode ficar muito pior do que isso antes de acabarmos, Claire, e não posso dizer com antecedência o que minha consciência agüentará; é melhor não colocá-la à prova cedo demais.
Não havia nada a ser dito quanto a isso; era tudo verdade. Estendi o braço e coloquei a mão em seu rosto. Ele colocou sua própria mão sobre a minha, envolvendo-a por um instante, depois virou a cabeça e docemente beijou minha palma.
— Bem — ele disse, respirando fundo e voltando ao trabalho. — Agora que já jantamos, vamos dar uma olhada nesta carta?
A carta estava codificada; isso era óbvio. Para frustrar possíveis interceptadores, Jamie explicou.
— Quem iria querer interceptar a correspondência de Sua Alteza? — perguntei. — Quero dizer, além de nós.
Jamie riu, achando graça de minha ingenuidade.
— Quase todo mundo, Sassenach. Os espiões de Luís, os espiões de Duverney, os espiões de Filipe da Espanha. Os senhores jacobitas e aqueles que acham que poderão se tornar jacobitas se o vento soprar na direção certa. Comerciantes de informações, que não se importam nem um pouco com quem possa morrer ou viver por causa disso. O próprio papa; o Santo Padre tem apoiado os Stuart no exílio há cinqüenta anos e portanto imagino que fique de olho no que eles estão fazendo. — Tamborilou o dedo sobre a cópia que eu fizera da carta de Jaime a seu filho.
— O selo nesta carta já foi removido talvez umas três vezes antes de eu mesmo tirá-lo — ele disse.
— Compreendo — eu disse. — Não é de admirar que Jaime codifique suas cartas. Acha que pode descobrir o que ele diz?
Jamie pegou as folhas de papel, franzindo a testa.
— Não sei; alguma coisa, sim. Outras, não faço a menor idéia. Mas que talvez eu consiga decifrar, se eu puder ver outras cartas enviadas pelo rei Jaime. Verei o que Fergus pode fazer por mim nesse caso. -
Dobrou a cópia e guardou-a cuidadosamente na gaveta, trancando-a em seguida.
— Você não pode confiar em ninguém, Sassenach — ele explicou, vendo meus olhos se arregalarem. — Podemos perfeitamente ter espiões entre nossos empregados. — Deixou a pequena chave cair no bolso de seu casaco e estendeu o braço para mim.
Peguei o castiçal com uma das mãos e seu braço com a outra, e nos dirigimos para a escada. O resto da casa estava às escuras, os criados todos, exceto Fergus — dormindo virtuosamente. Senti um leve arrepio ao pensar que um ou mais daqueles silenciosos seres adormecidos acima e abaixo poderiam não ser quem aparentavam.
— Isso não o deixa um pouco nervoso? — perguntei enquanto subíamos as escadas. — Nunca poder confiar em ninguém?
Ele riu baixinho.
— Bem, eu não diria ninguém, Sassenach. Há você; e Murtagh; e minha irmã Jenny e seu marido lan. Eu confiaria minha vida a vocês. O que já fiz, aliás, mais de uma vez.
Estremeci enquanto ele puxava as cortinas da enorme cama. O fogo fora abafado para a noite e o quarto começava a ficar frio.
— Quatro pessoas em quem você pode confiar não parece muito — eu disse, desfazendo os cadarços do meu vestido.
Ele tirou a camisa pela cabeça e jogou-a sobre a cadeira. As cicatrizes em suas costas reluziram como prata na fraca claridade do céu noturno lá fora.
— Sim, bem — ele disse, de modo prático. — São mais quatro do que Carlos Stuart possui.
Havia um passarinho cantando do lado de fora, embora ainda faltasse muito tempo para o primeiro raio de luz da manhã. Um tordo-dos-remédios, praticando seus trincos e gorjeios sem parar, empoleirado em uma calha em algum lugar na escura vizinhança.
Mexendo-se sonolentamente, Jamie esfregou a face contra a pele macia da minha axila recém-depilada, depois virou a cabeça e plantou um beijo macio na cavidade quente, provocando um pequeno e delicioso estremecimento pelo lado do meu corpo.
— Mmm — ele murmurou, passando a mão de leve pelas minhas costelas. — Eu gosto quando você fica assim toda arrepiada, Sassenach.
— Assim? — eu disse, correndo as unhas da minha mão direita delicadamente sobre a pele de suas costas, o que na mesma hora causou uma onda de arrepio sob a provocação do toque dos meus dedos.
— Ah.
— Ah, viu só? — retruquei suavemente, continuando a provocá-lo.
— Mmmm. — com um gemido de prazer, ele rolou de lado, envolvendo-me com seus braços quando o segui, comprazendo-me com o repentino contato de cada centímetro de toda a frente de nossos corpos nus da cabeça aos pés. Ele estava quente como uma brasa, o seu calor abafado durante a noite, para reacender-se em chamas no frio escuro da madrugada.
Seus lábios cerraram-se com delicadeza sobre um mamilo e eu mesma gemi, arqueando-me ligeiramente para encorajá-lo a tomá-lo mais fundo em sua boca quente. Meus seios estavam ficando mais cheios e mais sensíveis a cada dia; meus mamilos doíam e formigavam às vezes sob os corpetes apertados dos meus vestidos, querendo ser sugados.
— Vai me deixar fazer isso depois? — ele murmurou, com uma leve mordida. — Quando a criança chegar e seus seios ficarem cheios de leite? Você vai me alimentar também, junto ao seu coração?
Segurei sua cabeça e acariciei-a, os dedos mergulhados nos cabelos macios como os de um bebê que cresciam abundantemente na base de seu crânio.
— Sempre — sussurrei.
Fergus tornara-se um perito em sua profissão e quase todos os dias trazia uma nova seleção de cartas de Sua Alteza; às vezes, eu era pressionada a copiar tudo rápido antes da próxima expedição de Fergus, quando ele devolveria os itens subtraídos, antes de roubar as novas cartas.
Algumas eram novos comunicados codificados enviados pelo rei Jaime em Roma; Jamie separava as cópias dessas cartas para lê-las mais tarde com vagar. A maior parte da correspondência de Sua Alteza era inócua — bilhetes de amigos na Itália, um número crescente de contas dos comerciantes locais -, Carlos gostava de roupas vistosas e botas finas, bem como de conhaque — e um ou outro bilhete de Louise de La Tour. Esses eram bastante fáceis de identificar; fora a caligrafia delicada e elegante que usava suas cartas pareciam rastros de um passarinho que tivesse andado sobre elas —, Louise invariavelmente saturava o papel com o perfume de jacinto que era sua marca registrada. Jamie recusava-se terminantemente a lê-las.
— Não vou ler as cartas de amor do sujeito – disse com firmeza. — Até mesmo um conspirador tem que ter algum escrúpulo. — Espirrou e colocou a mais recente missiva de volta no bolso de Fergus. — Além do mais acrescentou, de modo mais prático -, Louise lhe conta tudo, de qualquer maneira.
Isso era verdade; Louise tornara-se uma amiga íntima e passava quase tanto tempo na minha sala deestar quanto na sua própria, torcendo as mãos por causa de Carlos, depois se esquecendo dele no fascínio de discutir as maravilhas da gravidez — ela nunca teve enjôos matinais, que Deus a livrasse! Apesar de ser cabeça-de-vento, eu gostava muito dela; ainda assim, era um grande alívio escapar de sua companhia para ir ao L’Hôpital dês Anges toda tarde.
Embora fosse improvável que Louise jamais botasse os pés no L’Hôpital dês Anges, eu não ficava sem companhia quando ia lá. Sem se deixar amedrontar pela primeira exposição ao L’Hôpital, Mary Hawkins reuniu coragem para me acompanhar outra vez. E depois de novo. Enquanto mal podia obrigar-se a olhar direto para um ferimento ainda, era útil para dar colheradas de mingau às pessoas e varrer o chão. Aparentemente, ela considerava essas atividades uma mudança bem-vinda tanto às reuniões da corte quanto à vida na casa de seu tio.
Embora muitas vezes ficasse chocada com alguns comportamentos que via na corte — não que visse muito, mas chocava-se facilmente -, ela não deixava transparecer nenhum desagrado ou horror em particular à vista do visconde Marigny, o que me levou a concluir que sua malfadada família ainda não encerrara as negociações para o casamento — e portanto ainda não haviam lhe contado.
Essa conclusão nasceu um dia no final de abril, quando, a caminho do Hôpital dês Anges, ela confidenciou-me, ruborizada, que estava apaixonada.
— Ah, ele é tão bonito! — disse, entusiasmada, a gagueira completamente esquecida. — E tão... bem, tão espiritual também.
— Espiritual? — eu disse. — Hum, sim, que bom. — Particularmente, achei que essa qualidade em especial não seria a que encabeçaria a minha lista de atributos desejáveis em um amante, mas os gostos diferem.
— E quem é o felizardo? — brinquei, amavelmente. — Alguém que eu conheço?
O rubor intensificou-se.
— Não, acho que não. — Ergueu o rosto então, os olhos cintilando. — Mas... ah, eu não devia estar lhe contando isso, mas não consigo me conter. Ele escreveu a meu pai. Ele está voltando para Paris semana que vem!
— É mesmo? — Essa era uma notícia interessante. — Ouvi dizer que o conde de Palies está sendo esperado na corte semana que vem — eu disse. — O seu pretendido faz parte de sua comitiva?
Mary pareceu horrorizada diante da sugestão.
— Um francês! Ah, não, Claire; realmente, como eu poderia me casarcom um francês?
— Há alguma coisa errada com os franceses? — perguntei, um tanto surpresa com sua veemência. — Afinal, você fala francês. — Mas talvez esse fosse o problema; embora Mary falasse francês muito bem, sua timidez a fazia gaguejar ainda mais nessa língua do que em inglês. Eu me deparara com dois garotos da cozinha no dia anterior, divertindo-se com imitações Perversas de “la petite Anglaise maladroite”.
— Você não sabe sobre os franceses? — ela sussurrou, os olhos arregalados e horrorizados. — Ah, mas claro, você não poderia saber. Seu marido é tão amável e gentil... ele não, quer d-dizer, sei que ele n-não a perturba dessa forma... — Seu rosto estava coberto de um intenso vermelho do queixo à raiz dos cabelos e a gagueira estava a ponto de sufocá-la.
— Quer dizer... — comecei, tentando pensar em algum modo delicado de fazê-la se soltar sem envolver-me em especulações sobre os hábitos dos franceses. Entretanto, considerando o que o sr. Hawkins me contara sobre o pai de Mary e seus planos para o seu casamento, achei que talvez eu devessse tentar esclarecer algumas noções que ela evidentemente apreendera dos mexericos dos salões e vestiários. Eu não queria que ela morresse de medo se realmente viesse a se casar com um francês.
— O que eles f-fazem... na... na cama! — sussurroucom voz rouca.
— Bem — eu disse de modo pragmático — Há tantas coisas que se pode fazer na cama com um homem, afinal. E como eu vejo um grande número de crianças pela cidade, presumo que até mesmo os franceses são bem versados nos métodos ortodoxos.
— Ah! Crianças... bem, sim, é claro — disse, vagamente, como se não visse muita ligação. — M-m-mas elas disseram — abaixou os olhos, envergonhada, e sua voz definhou ainda mais — q-q-que ele... a coisa de um francês, sabe...
— Sim, eu sei — eu disse, tentando ser paciente. — Até onde eu saiba, são iguais a de qualquer outro homem. Ingleses e escoceses são igualmente equipados.
— Sim, mas eles, eles... c-c-colocam aquilo entre as p-p-pernas de uma senhora! Quero dizer, lá dentro dela! — Tendo finalmente conseguido concluir essa informação aos trancos, ela respirou fundo, o que pareceu acalmá-la, já que o vermelho escarlate de seu rosto recuou um pouco. Um inglês, ou mesmo um escocês... ah, eu não quis d-dizer isso dessa forma... — Levou a mão à boca, consternada. — Mas um homem decente como seu marido, certamente n-nunca pensaria em forçar a esposa a suportar a-algo assim!
Coloquei a mão sobre meu ventre ligeiramente inflado e olhei-a pensativamente. Comecei a entender por que a espiritualidade tinha uma posição tão destacada no catálogo de virtudes masculinas de Mary Hawkins.
— Mary — eu disse — acho que devemos ter uma conversinha.
Eu ainda estava sorrindo comigo mesma quando entrei no salão principal do hospital, meu próprio vestido coberto com uma sobreveste do mesmo tecido rústico e resistente do hábito de uma noviça.
Muitos dos cirurgiões, “urinoscopistas”, especialistas em fraturas, clínicos e outros curandeiros doavam seu tempo e seus serviços como caridade; outros vinham para aprender ou aprimorar suas habilidades. Os pacientes miseráveis do Hôpital dês Anges não estavam em posição de protestar por serem as vítimas de diferentes experiências médicas.
Fora as próprias freiras, o pessoal médico mudava quase diariamente, dependendo de quem não tivesse pacientes que pagavam naquele dia ou que precisassem testar uma nova técnica. Ainda assim, a maioria dos médi” cos free-lance vinha o suficiente para eu aprender a reconhecer os mais assíduos imediatamente. Um dos mais interessantes era o sujeito alto, que eu vira amputar uma perna na minha primeira visita ao hospital. Depois de perguntar, fiquei sabendo que seu nome era monsieur Forez. A princípio um especialista em colocar ossos no lugar, de vez em quando ele tentava os tipos mais complicados de amputação, particularmente quando um membro inteiro, em vez de uma junta, estava envolvido. As freiras e serventes pareciam ter um certo temor de monsieur Forez; nunca pilheriavam ou trocavam piadas grosseiras com ele, como faziam com a maioria dos outros voluntários da assistência médica.
Monsieur Forez estava trabalhando hoje. Aproximei-me devagar, para ver o que ele estava fazendo. O paciente, um jovem operário, estava deitado, lívido e ofegante, num catre. Ele caíra do andaime na catedral — sempre em construção — e quebrara um braço e uma perna. Eu podia ver que o braço não era nenhum desafio especial para um profissional em ossos — apenas uma simples fratura do rádio. A perna, no entanto, era outra história; uma impressionante fratura composta dupla, envolvendo tanto o meio do fêmur quanto a tíbia. Fragmentos pontiagudos de ossos projetavam-se da pele tanto na coxa quanto na canela, e a carne lacerada estava azul com as contusões traumáticas em quase todo o aspecto superior da perna.
Eu não quis distrair a atenção do especialista em fraturas de seu caso, mas monsieur Forez parecia absorto em seus pensamentos, circundando devagar o paciente, movendo-se de lado para frente e para trás, como um urubu, cauteloso, com receio de que a vítima ainda não estivesse realmente morta. Ele de fato parecia um urubu, pensei, com aquele nariz proeminente como um bico, os cabelos lisos e negros que ele usava sem talco, penteados para trás, presos num rabicho ralo na nuca. Suas roupas, também, eram pretas e sombrias, embora de boa qualidade — evidentemente ele tinha um trabalho lucrativo fora do Hôpital.
Por fim decidindo o procedimento a seguir, monsieur Forez ergueu o queixo da mão e olhou em torno, em busca de um assistente. Seus olhos pousaram em mim e ele fez sinal para que eu me aproximasse. Eu estava vestida com uma roupa de linho rústico usada pelas noviças e, perdido em sua concentração, ele não notou que eu não usava a touca e o véu de uma irmã enfermeira.
— Venha cá, ma soeur — ordenou, segurando o tornozelo do paciente. —
Segure-o com firmeza bem atrás do calcanhar. Não faça pressão até que eu
lhe diga, mas quando eu der o sinal, traga o pé direto em sua direção. Puxe bem devagar, mascom força. É necessário uma força considerável, compreende?
— Compreendo. — Segurei o pé como fui instruída, enquanto Monsieur Forez dirigia-se com seu passo lento e desengonçado em direção à outra Ponta do catre, olhando contemplativamente a perna quebrada.
— Tenho um estimulante aqui para ajudar — ele disse, tirando um pequeno frasco do bolso de seu casaco e colocando-o ao lado da cabeça do paciente. — Ele contrai os vasos sangüíneos na superfície da pele e conduz o sangue para dentro, onde pode ser mais útil ao nosso jovem amigo. Assim falando, segurou o paciente pelos cabelos e introduziu o frasco na boca do rapaz, habilmente entornando o remédio pela garganta abaixo sem derramar uma gota para fora.
— Ah — exclamou satisfeito quando o rapaz engoliu e respirou fundo. Isso vai ajudar. Agora, quanto à dor... sim, será melhor deixar a perna dormente, de modo que ele fique menos inclinado a resistir aos nossos esforços conforme a ajeitarmos.
Enfiou a mão no espaçoso bolso outra vez, agora retirando um pequeno alfinete de metal de cerca de oito centímetros de comprimento, com uma ponta larga e chata. A mão ossuda, de juntas largas, tateou delicadamente a parte interna da coxa do paciente junto à virilha, seguindo a linha fina e azul de uma grande veia sob a pele. Os dedos hesitaram em sua exploração, pararam, apalparam num pequeno círculo, depois se decidiu por um ponto. Enfiando o dedo indicador na pele como se quisesse marcar o lugar, monsieur Forez levou a ponta do alfinete ao mesmo local. Outra rápida incursão no interior de seu bolso de surpresas produziu um pequeno martelo de metal, com o qual ele enfiou o alfinete direto dentro da pele com um único golpe.
A perna contorceu-se violentamente, depois pareceu relaxar até a total lassidão. O vasoconstritor administrado anteriormente parecia de fato estar funcionando; a perda de sangue pelos diversos tecidos dilacerados se reduzira consideravelmente.
— É impressionante! — exclamei. — O que fez?
Monsieur Forez sorriu timidamente, um leve rubor colorindo as faces azuladas de prazer com a minha admiração.
— Bem, nem sempre funciona tão bem — admitiu modestamente. Tive sorte desta vez. — Apontou para o alfinete de metal, explicando: — Há um grande feixe de terminais nervosos ali, irmã, o que eu ouvi os anatomistas chamarem de plexus. Se tiver a felicidade de atingi-lo diretamente, pode entorpecer a maioria das sensações na extremidade inferior. Empertigou-se abruptamente, percebendo que estava perdendo tempo em conversa que seria melhor empregado em ação.
— Vamos, ma soeur — ordenou. — De volta a seu posto! A ação do estimulante não dura muito tempo. Temos que trabalhar agora, enquanto o sangramento está estancado.
Quase flácida, a perna foi endireitada com facilidade, as pontas estilhaçadas de osso recuando da pele. Seguindo as ordens de monsieur Forez segurei o homem pelo torso, enquanto ele manobrava o pé e a parte inferior da perna, de modo que aplicássemos uma tração constante, enquanto os pequenos ajustes finais eram feitos.
— É o bastante, irmã. Agora, por favor, apenas segure o pécom firmeza por um instante. — Um grito convocou um servente com duas talas fortes e tiras de pano para atar. Em poucos instantes, a perna estava perfeitamente imobilizada e os curativos dos ferimentos abertos firmemente presos com ataduras.
Monsieur Forez e eu trocamos um amplo sorriso de felicitações por cima do corpo do paciente.
— Um belo trabalho — elogiei, ajeitando para trás uma mecha de cabelos que se soltara durante nossos esforços. Vi o rosto de monsieur Forez mudar de repente, quando percebeu que eu não usava véu. Nesse exato instante, soou o badalar retumbante dos sinos anunciando as horas canônicas na igreja ao lado do hospital. Olhei boquiaberta para a janela alta no final da enfermaria, deixada sem vidro para permitir que os vapores insalubres pudessem dissipar-se. De fato, o oval de céu visível ostentava o tom azul-escuro do início da noite.
— Desculpe-me — eu disse, começando a me desvencilhar da veste sobreposta às minhas roupas. — Preciso ir imediatamente; meu marido vai ficar preocupado se eu for para casa tão tarde. Fico muito contente de ter tido a oportunidade de auxiliá-lo, monsieur Forez. — O especialista em fraturas observou aquele ato de me despojar do traje das freiras com patente espanto.
— Mas você... bem, não, claro que não é uma freira, eu devia ter notado isso antes... mas você... quem é você? — perguntoucom curiosidade.
— Meu nome é Fraser — respondi sucintamente. — Olhe, eu realmente preciso ir, ou meu marido...
Ele empertigou-se em toda a sua altura desengonçada e fez uma reverência com profunda seriedade.
— Eu consideraria um privilégio se me permitisse acompanhá-la até sua casa, madame Fraser.
— Oh... ora, obrigada — eu disse, sensibilizada com sua amabilidade. -
Mas eu tenho um acompanhante — eu disse, olhando vagamente ao redor em busca de Fergus, que assumia a tarefa de Murtagh de escoltar-me, quando não precisava roubar alguma coisa. Ele estava lá, apoiado no batente da porta, remexendo-se de impaciência. Imaginei quanto tempo ele estaria ali, as irmãs não permitiam a sua entrada no salão principal ou nas enfermarias, sempre insistindo para que ele me esperasse junto à porta.
Monsieur Forez examinou meu acompanhante com ar de dúvida, depois segurou-me com firmeza pelo cotovelo.
— Eu a acompanharei até sua porta, madame — declarou. — Essa parte da cidade é perigosa demais à noite para que a senhora saia lá fora com a proteção apenas de uma criança.
Pude ver Fergus encher-se de indignação por ser chamado de criança e apressou-se a protestar, dizendo que era um excelente acompanhante, sempre tendo o cuidado de guiar-me pelas ruas mais seguras. Monsieur Forez não prestou atenção a nenhum de nós dois, meramente balançando a cabeça de um modo majestoso para a irmã Angelique, enquanto me conduzia através das enormes portas duplas do Hôpital.
Fergus corria junto aos meus calcanhares, puxando a manga do meu vestido.
— Madame! — disse num sussurro ansioso. — Madame! Eu prometi ao patrão que a levaria para casa em segurança todos os dias, que não permitiria que se associasse a pessoas indesejáveis que...
— Ah, aqui estamos. Madame, sente-se aqui. O seu menino pode ocupar o outro assento. — Ignorando a tagarelice de Fergus, monsieur Forez pegou-o no colo e atirou-o sem-cerimônias dentro da carruagem que o aguardava.
Era uma carruagem pequena e aberta, mas elegantemente equipada, com bancos forrados de veludo azul-escuro e uma pequena cobertura para proteger os passageiros de repentinas inclemências do tempo ou da água suja jogada do alto das janelas. Não havia nenhum brasão ou outra decoração na porta do veículo; monsieur Forez não pertencia à nobreza — devia ser um burguês rico, pensei.
Conversamos formalmente durante o trajeto, discutindo questões médicas, enquanto Fergus permanecia emburrado no canto, olhando com raiva por baixo da cabeleira embaraçada. Quando paramos na rue Tremoulins, ele saltou pela lateral, sem esperar que o cocheiro abrisse a porta, e disparou para dentro de casa. Fiquei olhando-o desaparecer, imaginando o que o afligia, depois virei para despedir-me de monsieur Forez.
— Não há de quê — assegurou-me gentilmente, em resposta aos meus profusos agradecimentos. — Sua residência fica no caminho que eu faço para a minha própria casa, de qualquer modo. E eu não poderia confiar a pessoa de uma senhora tão encantadora às ruas de Paris a esta hora. Ajudou-me a descer da carruagem e abria a boca para dizer mais alguma coisa, quando o portão se abriu ruidosamente atrás de nós.
Virei-me a tempo de ver a expressão de Jamie mudar de leve aborrecimento a espantada surpresa.
— Ah! — exclamou. — Boa-noite, monsieur. — Fez uma reverência para monsieur Forez. Ele retribuiu a saudação com grande solenidade.
— Sua esposa conferiu-me o grande prazer de entregá-la a salvo à sua porta, milorde. Quanto à sua chegada tardia, peço-lhe que coloque a culpa por isso em meus próprios ombros; ela estava gentilmente ajudando-me num pequeno trabalho no Hôpital dês Anges.
— Foi o que imaginei — disse Jamie, resignado. — Afinal — acrescentou em inglês, erguendo uma das sobrancelhas para mim —, não se pode esperar que um simples marido exerça a mesma atração que um intestino inflamado ou uma mancha virulenta, não é verdade? — Mas o canto de sua boca contorceu-se e eu vi que ele não estava realmente aborrecido, apenas preocupado por eu não ter chegado em casa ainda; senti uma ponta de remorso por ter lhe causado preocupação.
Inclinando-se mais uma vez para monsieur Forez, segurou-me pelo braço e conduziu-me apressadamente pelo portão.
— Onde está Fergus? — perguntei, assim que o portão se fechou atrás de nós. Jamie riu.
— Na cozinha, esperando o castigo, eu imagino.
— Castigo? O que quer dizer? — perguntei. Ele soltou uma risada inesperada.
— Bem — explicou -, eu estava sentado no gabinete, perguntando-me onde com os diabos você estaria e a ponto de ir eu mesmo até o Hôpital, quando a porta abriu-se com um safanão e Fergus entrou como uma flecha, atirando-se no chão aos meus pés, suplicando-me para matá-lo ali mesmo.
— Matá-lo? Por quê?
— Bem, isso foi o que eu mesmo lhe perguntei, Sassenach. Achei que talvez você e ele tivessem sido surpreendidos por ladrões no caminho. Há bandidos perigosos soltos pelas ruas, sabe, e eu achei que perdê-la dessa forma seria a única coisa que o faria se comportar daquele modo. Mas ele disse que você estava no portão, de modo que eu saí às pressas para ver se voce estava bem, com Fergus nos meus calcanhares, tagarelando sobre trair minha confiança e não ser digno de me chamar de patrão e suplicando-me Para espancá-lo até a morte. Achei meio difícil pensar ali no meio dos acontecimentos e então lhe disse que cuidaria dele depois e mandei que ele fosse para a cozinha.
— Minha nossa! — exclamei. — Ele realmente acha que traiu sua confiança só porque cheguei em casa um pouco tarde?
Jamie olhou-me de esguelha.
— É verdade. E aliás traiu mesmo, deixando você voltar na companhia de um estranho. Ele jura que teria se atirado na frente dos cavalos antes de deixar você entrar na carruagem, mas você — acrescentou enfaticamente — parecia estar em boas relações de amizade com o sujeito.
— Bem, é claro que estava — eu disse, indignada. — Eu o estava ajudando a acertar uma perna.
— Muhm. — Essa linha de argumentação pareceu-lhe pouco convincente.
— Ah, está bem — concordei relutantemente. — Talvez eu tenha sido um pouco imprudente. Mas ele de verdade parecia uma pessoa inteiramente respeitável e eu estava com pressa de chegar em casa, sabia que você devia estar preocupado. — Ainda assim, agora eu desejava ter prestado um pouco mais de atenção aos puxões de minha manga e aos resmungos desesperados de Fergus. Na ocasião, só estava preocupada em chegar em casa o mais depressa possível. — Você não vai bater nele, não é? — perguntei, alarmada. — Ele não teve nenhuma culpa, eu insisti em vir com monsieur Forez. Quer dizer, se alguém merece uma surra, sou eu. ;
Virando-se na direção da cozinha, Jamie arqueou uma sobrancelha ironicamente para mim.
— Ah, é mesmo — concordou. — No entanto, tendo jurado me abster de tais atos, acho que vou ter que me contentar com Fergus.
— Jamie! Você não faria isso! — Parei repentinamente, puxando seu braço. — Jamie! Por favor! — Então, vi o sorriso oculto no canto de sua boca e suspirei de alívio.
— Não — ele disse, deixando que o sorriso se tornasse visível. — Não pretendo matá-lo, nem mesmo dar-lhe uma surra. Mas acho que vou ter que dar-lhe um ou dois puxões de orelha para salvar sua honra — acrescentou. — Ele acha que cometeu um crime capital não seguindo minhas ordens para protegê-la. Não posso deixar isso passar sem algum sinal de descontentamento oficial.
Parou diante da porta que dava para a cozinha para fechar os punhos da camisa e amarrar o xale no pescoço.
— Estou vestido decentemente? — perguntou, alisando os cabelos espessos e indisciplinados. — Talvez eu devesse ir buscar o casaco. Não sei o que é adequado para administrar uma repreensão.
— Você está ótimo — eu disse, reprimindo um sorriso. — Bem severo.
— Ah, isso é bom — ele disse, endireitando os ombros e apertando os lábios. — Espero não dar uma risada, não ia ficar nada bem — murmurou, empurrando a porta para a escada da cozinha.
Mas o ambiente na cozinha estava longe de ser hilário. Com a nossa entrada, a tagarelice de costume cessou imediatamente e houve uma corrida apressada do pessoal, aglomerando-se em um dos cantos. Todos ficaram imóveis por um instante e viu-se um ligeiro movimento entre duas ajudantes da cozinha. Logo Fergus deu um passo à frente, colocando-se no espaço aberto diante de nós.
O rosto do menino estava lívido e escorrido de lágrimas, mas ele não chorava agora. Com grande dignidade, ele fez uma reverência, primeiro para mim. depois para Jamie.
— Madame, monsieur, estou envergonhado — ele disse, em voz baixa, mas clara. — Não mereço estar a seu serviço, mas ainda assim suplico-lhe que não me mande embora. — Sua voz aguda tremeu um pouco diante da idéia e eu mordi o lábio. Fergus olhou para o lado, para a fileira de criados, como se buscasse apoio moral, e recebeu um sinal de encorajamento de Fernand, o cocheiro. Respirando fundo para reunir coragem, aprumou-se e dirigiu-se direto a Jamie.
— Estou pronto para sofrer meu castigo agora, milorde — disse. Como se este tivesse sido o sinal, um dos lacaios deu um passo à frente do grupo imóvel, conduziu o garoto para a mesa de madeira limpa e, passando para o outro lado, pegou as mãos do menino, puxando-o até a metade da superfície da mesa e segurando-o assim estendido.
— Mas... — Jamie começou, desconcertado com a rapidez dos acontecimentos. Não conseguiu dizer mais nada antes de Magnus, o idoso mordomo, dar um passo solene para a frente e apresentar-lhe a cinta de couro utilizada para amolar as facas da cozinha, cerimoniosamente colocada sobre uma travessa de carne.
— Ha... — Jamie balbuciou, olhando-me com ar desamparado.
— Hum — eu disse, recuando um passo. Estreitando os olhos, ele agarrou minha mão, apertando-acom força.
— Não, Sassenach — murmurou em inglês. — Se eu tenho que fazer isso, você tem que assistir!
Olhando desesperadamente de sua pretensa vítima para o instrumento de execução apresentado, hesitou por mais um instante, depois desistiu.
— Ah, que maldita situação! — sussurrou entre dentes em inglês, pegando a tira de couro oferecida por Magnus. Flexionou a cinta larga entre as mãos, hesitante. Com oito centímetros de largura e seis milímetros de espessura, era uma arma extraordinária. Obviamente desejando estar em qualquer outro lugar, ele avançou para o corpo de Fergus, inclinado de barriga para baixo sobre a mesa.
— Está bem, então — disse, olhando furiosamente em torno da cozinha. — Dez chicotadas e não quero ouvir nem um pio. — Várias criadas empalideceram visivelmente diante dessas palavras e agarraram-se umas às outras, mas fez-se um silêncio absoluto no enorme aposento quando ele ergueu a tira de couro.
O estalo resultante do impacto me deu um sobressalto e houve alguns gritinhos de alarme entre as ajudantes de cozinha, mas nenhum som de Fergus. O pequeno corpo estremeceu e Jamie cerrou os olhos por um instante, depois apertou os lábios e continuou a infligir o restante da pena cada golpe a espaços regulares. Senti-me tonta e discretamente limpei as mãos úmidas de suor na saia. Ao mesmo tempo, senti uma incontrolável vontade de rir diante da terrível farsa da situação.
Fergus suportou tudo em total silêncio e quando Jamie terminou e deu um passo para trás, pálido e suando, o pequeno corpo permaneceu tão imóvel que por um instante temi que ele tivesse morrido — de choque, se não por causa dos reais efeitos da surra. Mas em seguida um profundo estremecimento pareceu percorrer a frágil compleição física de Fergus. O menino deslizou para trás e ergueu-se rigidamente, afastando-se da mesa.
Jamie lançou-se para frente para segurá-lo pelo braço, ansiosamente alisando para trás os cabelos molhados de suor de sua testa.
— Você está bem, rapaz? — perguntou. — Meu Deus, Fergus, diga-me que está bem!
O garoto tinha os lábios lívidos e os olhos do tamanho de dois pires, mas sorriu diante da evidente boa vontade por parte de seu patrão, os dentes de coelho brilhando à luz do lampião.
— Ah, sim, senhor — disse, ofegante. — Estou perdoado?
— Nossa Senhora — Jamie murmurou, apertando o menino com força contra o peito. — Sim, claro que está, seu bobalhão. — Segurou o menino com o braço estendido e sacudiu-o levemente. — Nunca mais quero ter de fazer isso, ouviu?
Fergus balançou a cabeça, os olhos brilhando, depois se libertou da mão de Jamie e caiu de joelhos diante de mim.
— A senhora também me perdoa, madame? — perguntou, unindo as mãos formalmente diante de si e erguendo os olhos esperançosos, como um esquilo implorando por nozes.
Pensei que eu iria desfalecer ali mesmo de tormento, mas reuni autocontrole suficiente para estender a mão para baixo e fazer o menino ficar de pé.
— Não há nada a perdoar — disse-lhe com firmeza, o rosto queimando.— Você é um garoto muito corajoso, Fergus. Bem... ha, por que você não vai jantar um pouco agora?
Diante disso, a atmosfera na cozinha desanuviou-se, como se todos tivessem dado um forte suspiro de alívio simultâneo. Os outros criados empurraram-se para a frente, murmurando ao mesmo tempo palavras de preocupação e de congratulações. Fergus foi então levado às pressas para uma recepção de herói, enquanto eu e Jamie batíamos em retirada apressadamente, de volta aos nossos aposentos no andar superior.
— Ah, meu Deus —Jamie exclamou, deixando-se afundar numa poltrona como se estivesse completamente exausto. — Santo Cristo. Minha Nossa Senhora. Jesus, preciso de uma bebida. Não toque a sineta! — exclamou, apavorado, embora eu não tivesse feito nenhum movimento em direção à corda da sineta. — Eu não suportaria encarar um dos empregados neste momento.
Levantou-se e começou a procurar no armário.
— Acho que tenho uma garrafa aqui.
De fato, tinha uma garrafa de excelente uísque envelhecido. Retirando a rolha com os dentes sem nenhuma cerimônia, reduziu o nível da bebida em mais de dois centímetros, depois me passou a garrafa. Segui seu exemplo sem nenhuma hesitação.
— Nossa Senhora — exclamei, quando recuperei fôlego suficiente para falar.
— Pois é — ele disse, pegando a garrafa de volta e tomando outro gole. Colocando a garrafa na mesa, ele segurou a cabeça, passando os dedos pelos cabelos, até ficarem em pé, loucamente desgrenhados. Sorriu frouxamente. — Nunca me senti tão tolo em toda a minha vida. Meu Deus, me senti um completo idiota!
— Eu também — eu disse, revezando-me na garrafa. — Mais ainda do que você, imagino. Afinal, foi tudo culpa minha. Jamie, lamento muito tudo isso, nunca imaginei...
— Ah, não se preocupe. — Com a tensão da última meia hora aliviada, ele apertou meu ombro afetuosamente. — Você não poderia adivinhar. Nem eu, por falar nisso — acrescentou pensativo. — Acho que ele pensou que eu iria mandá-lo embora e ele iria ter que voltar às ruas... coitado. Não é de admirar que ele se achou com sorte por tomar uma surra em vez de ser despedido.
Estremeci levemente, lembrando-me das ruas que a carruagem de monsieur Forez percorrera. Mendigos cobertos de trapos e feridas se agarravam obstinadamente a seus territórios, dormindo no chão mesmo nas noites mais frias, com receio de que algum concorrente lhes roubasse uma esquina lucrativa. Crianças muito menores do que Fergus corriam pelo meio da multidão nos mercados como ratos esfomeados, os olhos sempre atentos a qualquer migalha que caísse, a qualquer bolso vulnerável. para aqueles fracos demais para trabalhar, feios demais para se venderem nos bordéis ou simplesmente azarados demais — seria uma vida realmente curta e longe de qualquer alegria. Não era de admirar que a perspectiva de Ser atirado do luxo de três refeições por dia e roupas limpas de volta ao sórdido bordel fora suficiente para fazer Fergus lançar-se numa crise de culpa desnecessária.
— Creio que sim — eu disse. A essa altura, minha ingestão da bebida declinara de grandes tragos a pequenos e educados goles. Continuei bebericando comedidamente, depois devolvi a garrafa, notando de modo desligado, que estava abaixo da metade. — Ainda assim, espero que você não o tenha machucado.
— Bem, sem dúvida ele vai ficar um pouco dolorido — disse, com forte sotaque escocês. Em geral quase imperceptível, seu sotaque sempre ficava mais pronunciado quando bebia muito. Sacudiu a cabeça, estreitando os olhos para a garrafa para verificar o nível de bebida que restara. — Sabe Sassenach, que nunca até esta noite eu percebera o quanto deve ter sido difícil para o meu pai me bater? Sempre achei que eu é que ficava com a pior parte da história. — Inclinou a cabeça para trás e bebeu outra vez, depois colocou a garrafa na mesa e fitou o fogo com os olhos vidrados. Ser pai deve ser um pouco mais complicado do que eu pensava.vou ter que pensar sobre isso.
— Bem, não pense demais — eu disse. — Já teve motivo suficiente para beber.
— Ah, não se preocupe — disse alegremente. — Tenho outra garrafa no armário.
Ficamos acordados até tarde com a segunda garrafa, lendo e relendo a última das cartas roubadas do chevalier de St. George — também conhecido como Sua Majestade, Jaime III — e as cartas ao príncipe Carlos de partidários jacobitas.
— Fergus pegou um pacote grande, destinado a Sua Alteza — Jamie explicou. — Havia muita coisa nele e não pudemos copiar tudo suficientemente rápido, de modo que guardei uma parte para voltar da próxima vez.
— Veja — ele disse, extraindo uma folha da pilha e colocando-a no meu joelho -, a maioria das cartas está em código, como esta: “Ouvi dizer que as perspectivas para tetrazes são muito favoráveis este ano nas colinas acima de Salerno; os caçadores desta região deverão ser bem-sucedidos.” Isso é fácil; é uma referência a Manzetti, o banqueiro italiano; ele é de Salerno. Descobri que Carlos andou jantando com ele e conseguiu tomar emprestado quinze mil livres. Tudo indica que o conselho de Jaime foi bom. Mas aqui... — Remexeu na pilha, retirando outra folha.
— Olhe isto — Jamie disse, entregando-me uma folha coberta com seus garranchos inclinados.
Espremi os olhos obedientemente para o papel, do qual eu só conseguia identificar algumas letras, ligadas a uma rede de setas e pontos de interrogação.
— Que língua é essa? — perguntei, examinando a folha. — Polonês? A mãe de Carlos Stuart, a falecida Clementina Sobieski, era polonesa, afinal.
— Não, está em inglês — Jamie disse, rindo. — Não consegue lê-la?
— Você consegue?
— Ah, sim — disse orgulhosamente. — É uma linguagem cifrada, Sassenach, e não muito complicada. Veja, tudo que você precisa fazer é separar as letras em grupos de cinco, para começar, só que você não conta as letras Q nem X. Os Xs significam intervalos entre as frases e os Qs foram apenas inseridos aqui e ali para tornar tudo mais confuso.
— Se é o que diz... — retruquei, olhando da carta de aparência extremamente confusa, que começava com: “Mrti ocruti dlopro qahstmin...”, para a folha nas mãos de Jamie, com uma série de grupos de cinco letras escritas em uma única linha, letras isoladas, cuidadosamente registradas acima deles, uma de cada vez.
— Uma letra é apenas substituída por outra, mas na mesma ordem. — Jamie explicava. — Portanto se você tiver uma boa quantidade de texto para trabalhar, e puder adivinhar uma ou outra palavra, tudo que precisa fazer é traduzir de um alfabeto para o outro, está vendo? — Sacudiu uma longa tira de papel sob meu nariz, com dois alfabetos registrados um em cima do outro, ligeiramente deslocados.
— Bem, mais ou menos — eu disse. — Mas imagino que você tenha entendido, que é o mais importante. O que diz a carta?
A expressão de vivo interesse com que Jamie acolhia todo tipo de quebra— cabeça esmaeceu um pouco e ele deixou a folha de papel cair sobre seu joelho. Olhou para mim, o lábio inferior preso entre os dentes em introspecção.
— Bem — disse —, isso é que é estranho. E no entanto não vejo como eu possa estar enganado. O tom das cartas de Jaime de um modo geral sugere um caminho, mas esta carta cifrada expressa abertamente as idéias.
Os olhos azuis fitaram os meus por baixo das espessas sobrancelhas ruivas.
-Jaime quer que Carlos caia nas graças de Luís — disse devagar -, mas não está buscando apoio para uma invasão da Escócia. Jaime não tem nenhum interesse em buscar a retomada do trono.
— O quê? — Arranquei o maço de cartas de suas mãos, meus olhos febrilmente examinando o texto rabiscado.
Jamie tinha razão; enquanto as cartas dos partidários falavam esperançosamente da iminente restauração dos Stuart, as cartas de Jaime a seu filho não mencionavam nada dissto, mas todas elas diziam respeito a Carlos causar uma boa impressão em Luís. Até mesmo o empréstimo de Manzettí de Salerno fora buscado visando possibilitar a Carlos viver com a aparência de um cavalheiro em Paris; não para financiar nenhum objetivo militar.
— Bem, estou achando que Jaime é um homenzinho muito astuto. — Jamie disse, batendo em uma das cartas. — Porque, veja bem, Sassenach, ele quase não possui nenhum dinheiro próprio; sua mulher era muito rica, mas tio Alex contou-me que ela deixou tudo para a igreja quando morreu. O papa é que vem mantendo Jaime e todo o seu séquito. Afinal, ele é um monarca católico e o papa é obrigado a patrocinar seus interesses contra aqueles do Eleitor de Hannover — disse referindo-se a Jorge II, rei da Inglaterra e da Irlanda, e pertencente à Casa Hannover, da Alemanha, direito a tomar parte na eleição de um novo imperador alemão.
Ele entrelaçou as mãos em volta de um dos joelhos, fitando pensativamente a pilha de papéis agora colocada entre nós no sofá.
— Filipe da Espanha e Luís, o Velho Rei, quero dizer, deram-lhe uma pequena quantidade de tropas e alguns navios, há trinta anos, com os quais deveria recuperar o trono. Mas tudo deu errado; o mau tempo naufragou alguns navios e o resto não tinha pilotos e acabou aportando no lugar errado. Tudo deu errado e, no fim, os franceses simplesmente zarparam de volta, sem que Jaime sequer tivesse colocado os pés em solo escocês. Assim, provavelmente, nos anos que se seguiram, ele tenha desistido de qualquer idéia de voltar ao poder. Além disso, ele tinha dois filhos chegando à idade adulta e nenhuma maneira de situá-los adequadamente na vida.
“Então, eu me pergunto, Sassenach: o que eu faria em tal situação? A resposta seria que eu tentaria ver se meu bom primo Luís, que afinal é o rei da França, poderia estabelecer meu filho numa boa colocação, dar-lhe uma posição militar, talvez, e homens para comandar. Um general da França não é uma posição nada ruim na vida “
— Hum... — Balancei a cabeça, pensando. — Sim, mas se eu fosse um homem muito esperto, eu não iria simplesmente até Luís suplicar, como um primo pobre Eu enviaria meu filho a Paris e tentaria fazercom que Luís se visse forçado a aceitá-lo na corte. E enquanto isso manteria a ilusão de que eu estava ativamente buscando a restauração da minha monarquia
— Porque se Jaime admitir abertamente que os Stuart nunca governarão a Escócia outra vez — Jamie acrescentou em voz baixa -, ele não terá mais nenhum valor para Luís.
E sem a possibilidade de uma invasão jacobita armada para conquistar os ingleses, Luís não teria nenhuma razão para dar a seu jovem primo Carlos nada além do que a pequena pensão que a decência e a opinião pública o forçariam a oferecer.
Não era certo; as cartas que Jamie conseguira obter, algumas poucas de cada vez, só iam até janeiro último, quando Carlos chegara à França E, expressa em código, cifras e linguagem enigmática de um modo geral, a Atuação estava longe de estar clara. Entretanto, tudo considerado, as evidencias realmente apontavam nessa direção.
E se o palpite de Jamie quanto aos motivos de Carlos estivesse correto então, nossa tarefa já estava cumprida; na verdade, ela jamais existira realmente.
Repassando os acontecimentos da noite anterior, fiquei distraída e todo o dia seguinte, na reunião matinal de Mane d’Arbanville para um poeta húngaro, em uma visita a um herborista da vizinhança a fim de comprar um pouco de valeriana e rizoma de lírio florentino e durante minhas rondas no Hôpital dês Anges.
Finalmente, abandonei meu trabalho, com receio de acidentalmente machucar alguém em minha distração. Nem Murtagh nem Fergus haviam chegado ainda para me escoltar até em casa, assim tirei a veste usada sobre as roupas no hospital e sentei-me para esperar no escritório vazio de madre Hildegarde, que ficava logo no vestíbulo do Hôpital.
Já estava ali há mais ou menos meia hora, ociosamente dobrando o tecido do meu vestido entre os dedos, quando ouvi o cachorro do lado de fora.
O porteiro se ausentara, como quase sempre fazia. Saíra para comprar comida, sem dúvida, ou resolver uma pequena incumbência para uma das freiras. Como sempre em sua ausência, a guarda dos portais do Hôpital ficava a cargo das patas — e dentes — competentes de Bouton.
O primeiro latido de advertência foi seguido de um rosnado baixo e surdo que avisava o intruso para permanecer onde estava, sob pena de imediato desmembramento. Levantei-me e enfiei a cabeça para fora da porta do escritório, para ver se o padre Balmain estava enfrentando o perigo do demônio outra vez, no desempenho de seus deveres sacramentais. Mas a figura delineada contra a enorme janela de vitrais do saguão de entrada não era o vulto magro do jovem padre. Era uma figura alta, cujo kilt em silhueta oscilou graciosamente em torno de suas pernas quando ele se afastou do pequeno animal de dentes arreganhados a seus pés.
Jamie pestanejou, parado abruptamente pelo ataque. Protegendo os olhos do reflexo ofuscante da janela, espreitou as sombras do interior.
— Ah, olá, cachorrinho — disse educadamente e deu um passo para a frente, os nós dos dedos estendidos para o animal. Bouton elevou o rosnado alguns decibéis e ele recuou um passo.
— Ah, então é assim, não é? — Jamie disse. Fitou o cachorro com os olhos semicerrados. — Pense bem, meu rapaz — ele avisou, olhando-o para baixo do nariz longo e reto. — Sou muito maior do que você. Eu não arriscaria nenhuma ação precipitada, se eu fosse você.
Bouton mudou ligeiramente de lugar, ainda fazendo um barulho como o de um Fokker a distância.
— E mais rápido, também — disse Jamie, simulando um salto para o lado. Os dentes de Bouton fecharam-se a poucos centímetros da perna e ele recuou apressado. Recostando-se contra a parede, cruzou os braços e balançou a cabeça para o cachorro.
— Bem, você tem um bom argumento aí, admito. Quando o assunto é dentes, você tem vantagem sobre mim, sem dúvida. — Bouton inclinou uma das orelhas, desconfiado com aquele discurso amigável, mas voltou ao rosnado grave.
Jamie cruzou um pé sobre o outro, como alguém disposto a passar o tempo ali indefinidamente. A luz multicolorida da janela banhava seu rosto de azul, fazendo-o parecer uma das frias estátuas de mármore na catedral ao lado.
— Certamente você tem coisas mais importantes a fazer do que atormentar visitantes inocentes, não? — perguntou, em tom de conversa. — Já ouvi falar de você. É o famoso sujeito que fareja doenças, certo? Bem, por que estão desperdiçando o seu talento em coisas tolas como guardar a porta, quando podia estar sendo muito mais útil cheirando dedos com gota e traseiros pustulentos? Responda-me, por favor!
Um latido agudo em reação ao seu ato de descruzar as pernas foi a única resposta.
Houve uma agitação de panos atrás de mim quando madre Hildegarde aproximou-se, vindo do interior do hospital.
— O que é? — perguntou, vendo-me espreitando do canto. — Temos visitas?
— Parece que Bouton tem uma diferença de opiniãocom meu marido — eu disse.
— Eu não tenho que aturar isso, sabe? — Jamie ameaçava. Sorrateiramente, levava uma das mãos ao broche que segurava seu xale de xadrez no ombro. — Um rápido lançamento do meu xale e eu o terei amarrado como um... ah, bonjour, madame! — disse, mudando rápido para o francês ao avistar madre Hildegarde.
— Bonjour, monsieur Fraser. — Ela inclinou o véu graciosamente, mais Para esconder o largo sorriso em seu rosto do que para cumprimentá-lo, pensei comigo mesma. — Vejo que já conhece Bouton. Está procurando sua esposa?
Essa parecendo ser a minha deixa, saí de dentro do escritório, colocando-me atrás dela. Meu devotado esposo olhou de Bouton para a Porta do escritório, com certeza tirando conclusões.
— E exatamente há quanto tempo você estava em pé aí, Sassenach? — Perguntou secamente.
— Bastante tempo — eu disse, com a arrogante autoconfiança de alguém que está nas boas graças de Bouton. — O que você teria feito com ele, quando o tivesse enfaixado em seu xale?
— Atirá-lo pela janela e correr como um condenado — respondeu, com um rápido olhar de pavor diante da figura imponente de madre lldegarde. — Ela por acaso fala inglês?
— Não, felizmente para você — respondi. Troquei para francês para fazer as apresentações. — Ma mère, je vous presente mon mari, k seigneur de Broch Tuarach.
— Milorde. — Madre Hildegarde já conseguira dominar seu senso de humor e cumprimentou-o com sua costumeira expressão de formidável cordialidade. — Vamos sentir falta de sua mulher, mas se a requisitar, é claro que...
— Não vim por causa de minha mulher — Jamie interrompeu-a. — Eu vim vê-la, ma mère.
Sentado no escritório de madre Hildegarde, Jamie colocou o feixe de papéis que carregava na madeira lustrosa de sua escrivaninha. Bouton, mantendo um olhar cauteloso sobre o intruso, deitou-se aos pés de sua dona. Colocou o focinho sobre as patas, mas manteve as orelhas em pé, o lábio levantado junto a um dente canino, para a eventualidade de ser chamado a estraçalhar o visitante, membro a membro.
Jamie estreitou os olhos para Bouton, explicitamente colocando os pés longe do focinho preto e irrequieto.
— Herr Gerstmann recomendou-me que a consultasse, madre, a respeito destes documentos — ele disse, desenrolando o grosso feixe de papéis e aplainando-os sob a palma das mãos.
Madre Hildegarde fitou Jamie por um instante, uma das grossas sobrancelhas erguidas inquisitivamente. Em seguida, voltou sua atenção para o maço de papéis, com aquele jeito dos administradores de parecerem estar inteiramente concentrados na questão à sua frente, enquanto ainda mantêm sua sensível antena sintonizada para captar a menor vibração de emergência dos confins do Hôpital.
— É mesmo? — ela disse. O dedo rombudo percorreu de leve as linhas da pauta de música, uma a uma, como se ouvisse as notas ao tocá-las.com um estalido do dedo, a folha deslizou para o lado, expondo parcialmente a seguinte.
— O que é que o senhor quer saber, monsieur Fraser? — ela perguntou.
— Não sei, madre. — Jamie inclinava-se para a frente, concentrado. Ele próprio tocou as linhas, passando o dedo de modo delicado nos borrões onde a mão de quem escrevera havia descuidadamente roçado na pauta antes de a tinta secar. — Há alguma coisa estranha nesta música, madre.
A boca generosa da freira moveu-se ligeiramente no que parecia ser um sorriso.
— É mesmo, monsieur Fraser? E entretanto, pelo que sei... por favor, não se ofenda... a música para o senhor é... uma fechadura para a qual o senhor não tem a chave, não é?
Jamie riu e uma freira que passava no corredor virou-se, surpresa com aqele som nos recessos do Hôpital. Era um lugar barulhento, mas raramente se ouvia uma risada.
— É uma descrição muito educada de minha incapacidade, madre. E absolutamente verdadeira. Se cantasse uma dessas peças — seu dedo, mais longo e mais delgado, mas quase do mesmo tamanho do dedo de madre Hildegarde, bateu no papel-pergaminho com um leve som sussurrante —, eu não saberia diferenciá-la do Kyrie Eleison ou de “La Dame fait bien”, exceto pela letra — acrescentou com um sorriso.
Foi a vez de madre Hildegarde rir.
— Ora, ora, monsieur Fraser — ela disse. — Bem, ao menos o senhor presta atenção às letras! — Ela segurou o feixe de papéis nas mãos e folheou-os com rapidez. Pude ver o ligeiro inflar de sua garganta acima da faixa apertada de sua touca enquanto ela lia, como se estivesse cantando silenciosamente para si mesma, e um pé avantajado batendo de leve, como se marcasse o compasso.
Jamie permaneceu sentado absolutamente quieto em seu banco, a mão perfeita dobrada sobre a aleijada em um dos joelhos, observando a freira. Os olhos azuis rasgados estavam fixamente concentrados e ele não prestava nenhuma atenção ao permanente barulho que vinha dos fundos do Hôpital atrás dele. Pacientes berravam, serventes e freiras gritavam uns para os outros, familiares emitiam sons agudos de tristeza ou assombro e os ruídos mais baixos de instrumentos metálicos ecoavam das pedras antigas do edifício, mas nem Jamie nem madre Hildegarde se moveram.
Finalmente, ela abaixou as folhas, espreitando-o por cima do maço. Seus olhos faiscavam e de repente parecia uma jovem.
— Acho que tem razão! — disse. — Não disponho de tempo agora para examiná-las com cuidado — olhou na direção da porta, por um momento bloqueada pela figura de uma servente passando apressada com um grande saco de gaze -, mas há algo estranho aqui. — Bateu as folhas sobre a mesa, ajeitando-as numa pilha arrumada. — É extraordinário — comentou.
— Seja como for, madre. Acredita que pode, com seu dom, discernir qual é esse padrão em particular? Seria difícil; tenho razões para supor que seja um código e que a linguagem da mensagem esteja em inglês, embora as letras das músicas estejam em alemão.
Madre Hildegarde emitiu um pequeno murmúrio de surpresa.
— Inglês? Tem certeza?
Jamie sacudiu a cabeça.
— Não, não tenho certeza, mas acho que é. Uma das razões é o país de origem; as canções foram enviadas da Inglaterra.
— Bem, monsieur — disse, arqueando uma das sobrancelhas. — Sua mulher fala inglês, certo? E imagino que estaria disposto a sacrificar sua companhia para que ela me auxilie na realização desse trabalho para o senhor, não?
Jamie olhou para ela, o ligeiro sorriso em seu rosto refletindo a expressão no rosto da madre superiora. Abaixou os olhos para os pés, onde os bigodes de Bouton estremeciam com o resquício de um rosnado.
-vou fazer um acordo com a senhora, madre — ele disse. — Se o seu cachorrinho não morder meu traseiro na saída, pode contar com a ajuda da minha mulher.
Assim, naquela noite, em vez de retornar para casa, a residência de Jared na rue Tremoulins, jantei com as irmãs do Couvent dês Anges em sua longa mesa de refeitório e, em seguida, retirei-me para o trabalho noturno nos aposentos particulares de madre Hildegarde.
O apartamento da madre superiora era composto de três cômodos. O mais externo era mobiliado como uma sala de estar, com um considerável grau de sofisticação. Afinal, era ali onde recebia visitas oficiais. O segundo aposento foi uma espécie de choque para mim, simplesmente porque eu não esperava algo assim. À primeira vista, tive a impressão de que não havia nada no pequeno quarto além de um grande cravo, feito de nogueira bem lustrada e decorado com pequenas flores pintadas à mão despontando de uma trepadeira retorcida que percorria a caixa sonora acima das brilhantes teclas de marfim.
Olhando com mais atenção, vi algumas outras peças de mobília pelo aposento, inclusive um conjunto de estantes de livros que cobria inteiramente uma das paredes, atulhada de obras de musicologia e manuscritos costurados à mão, muito semelhantes ao que madre Hildegarde agora colocava no suporte de partituras do cravo.
Fez sinal para que eu me sentasse em uma cadeira diante de uma pequena escrivaninha encostada a uma das paredes.
— Encontrará papel e tinta aí, milady. Bem, vejamos o que esta pequena peça musical pode nos contar.
A música fora escrita em papel-pergaminho grosso, as linhas das pautas nitidamente desenhadas a régua de um lado ao outro da página. As próprias notas, as claves, as pausas e os acidentes haviam sido desenhados com extremo cuidado. Aquela sem dúvida era uma cópia final limpa, não um rascunho ou uma melodia apressadamente rabiscada. No alto da página via-se o título: “Lied dês Landes.” Uma canção da terra.
— O título, como vê, sugere algo simples, como uma volkslied, uma canção popular — disse madre Hildegarde, apontando um dedo indicador longo e ossudo Para a página. — E, no entanto, a forma da composição é inteiramente diferente. Você sabe ler música? — A enorme mão direita, de nós dos dedos largos e unhas curtas, desceu sobre as teclas com um toque inacreditavelmente delicado.
Inclinando-me por cima do ombro de madre Hildegarde, cantei as primeiras três linhas da música, fazendo o melhor possívelcom a minha pronúncia alemã. Então, ela parou de tocar e virou-se para erguer os olhos para mim.
— Essa é a melodia básica. Depois, ela se repete em variações, mas que variações! Sabe, eu já vi algumas criações que me lembram esta aqui. Por um velhinho alemão chamado Bach; ele me envia alguma coisa de vez em quando. — Agitou a mão negligentemente na direção de uma prateleira de manuscritos. — Ele as chama de “Invenções” e são realmente muito inteligentes, há variações em duas ou três linhas melódicas ao mesmo tempo. Isto — contraiu os lábios para a “Lied” diante de nós — é como uma imitação grosseira de uma de suas “Invenções”. Na verdade, eu poderia jurar que... — Murmurando consigo mesma, empurrou o banco de nogueira para trás e dirigiu-se à prateleira, correndo o dedo rapidamente pelas fileiras de manuscritos.
Encontrou o que procurava e retornou ao banco com três peças musicais encadernadas.
— Estas são as peças de Bach. São bastante velhas, há anos não as vejo. Ainda assim, tenho quase certeza... — Deixou-se cair em silêncio, folheando depressa as páginas dos manuscritos de Bach sobre o joelho, uma de cada vez, de vez em quando olhando de novo para a “Lied” no cravo.
— Ah! — Ela deixou escapar um grito de triunfo e mostrou-me uma das Peças de Bach. — Está vendo ali?
O papel tinha o título de “Goldberg Variations”, numa caligrafia borrada, quase ilegível. Toquei o papel com certa reverência, engoli em seco e olhei de novo para a “Lied”. Foi preciso apenas um instante de comparação para ver o que ela queria dizer.
— Tem razão, é a mesma! — eu disse. — Uma nota diferente aqui e ali, mas teoricamente é a mesma do tema original da peça de Bach. Que estranho!
— Não é? — ela disse, em tom de grande satisfação. — Agora, por que e que um compositor anônimo está roubando melodias e tratando-as de um modo tão esquisito?
Essa era sem dúvida uma pergunta retórica e não me preocupei em responder, mas fiz eu mesma outra pergunta.
— A música de Bach está muito em voga atualmente, madre? — Eu certamente não ouvira nenhuma nos salões musicais que freqüentava.
— Não — ela disse, sacudindo a cabeça, enquanto examinava a música — Herr Bach não é muito conhecido na França. Acho que ele teve uma certa popularidade na Alemanha e na Áustria há quinze ou vinte anos, mas mesmo lá sua música não é muito executada em público. Receio que a música dele não seja do tipo que perdure; inteligente, mas sem sentimento. Humph. Está vendo aqui? — O dedo indicador rombudo bateu em três pontos, virando as páginas rápido.
— Ele repetiu a mesma melodia, ou quase a mesma, mas mudou o tom a cada vez. Acho que talvez seja isso que atraia a atenção de seu marido; é óbvio até mesmo para alguém que não lê música, por causa da mudança de sinais, a note tonique.
E era; cada mudança de tom era marcada por uma linha vertical dupla seguida de uma nova clave de sol e sinais indicando sustenidos e bemóis.
— Cinco mudanças de tom numa peça tão pequena — ela disse, batendo na última de novo para dar ênfase. — E mudanças que não fazem absolutamente nenhum sentido, em termos musicais. Olhe, a linha básica é exatamente a mesma, entretanto passamos do tom de dois bemóis, que é o si-bemol maior, para lá-maior, com três sustenidos. Mais peculiar ainda, agora ele vai para um sinal de dois sustenidos e, no entanto, usa o solsustenido acidental!
— Muito estranho — eu disse. Adicionar um sol-sustenido acidental ao segmento em ré-maior tinha o efeito de tornar a linha melódica idêntica à do segmento em lá-maior. Em outras palavras, não havia nenhuma razão plausível para ter mudado a armadura da clave.
— Eu não sei alemão — eu disse. — Pode ler a letra da música, madre? Ela balançou a cabeça, confirmando, as pregas de seu véu negro farfalhando com o movimento, os olhos pequenos fixos no manuscrito.
— Que letra realmente execrável! — murmurou para si mesma. — Não que se espere uma grande poesia dos alemães em geral, mas realmente... ainda assim... — Interrompeu-se com uma sacudida do véu. — Devemos supor que se seu marido estiver correto em presumir que se trate de um tipo de código, a mensagem está embutida nestas palavras. Elas podem, portanto, não ter grande significado em si mesmas.
— O que diz? — perguntei.
— “Minha pastora com seus carneiros passeia saltitante pelas colinas verdejantes” — ela leu. — Uma péssima construção gramatical, embora, é claro, em geral se tome muita liberdade na composição de canções, se o autor da letra fizer questão que os versos rimem, o que em geral acontece quando se trata de uma canção de amor.
— Sabe muito a respeito de canções de amor? – perguntei com curiosidade. Madre Hildegarde estava cheia de surpresas esta noite.
— Qualquer boa música é na essência uma canção de amor — ela respondeu de modo prosaico. — Mas quanto à sua pergunta, sim, já vi muitas. Quando eu era menina — exibiu seus grandes dentes brancos num sorriso, reconhecendo a dificuldade de imaginá-la criança —, eu era uma espécie de prodígio. Eu podia tocar de memória qualquer coisa que ouvisse e escrevi minha primeira composição aos sete anos de idade. — Fez um gesto indicando o cravo, o luxuoso acabamento em verniz brilhando de lustre.
— Minha família é rica; se eu fosse homem, sem dúvida teria sido um músico. — Falou de maneira simples, sem nenhum traço de arrependimento.
— Certamente poderia ter composto música se tivesse se casado, não? — perguntei, curiosa.
Madre Hildegarde abriu as mãos, grotescas à luz do lampião. Eu vira aquelas mãos arrancarem uma adaga presa no osso, guiarem uma junta deslocada de volta ao seu alinhamento, segurarem a cabeça lambuzada de sangue de uma criança do meio das pernas da mãe. E eu vira aqueles dedos demorarem-se nas teclas de ébanocom a delicadeza de uma mariposa.
— Bem — ela disse, após um instante de contemplação -, é culpa de Santo Anselmo.
— Ah, é?
Ela riu diante de minha expressão, seu rosto sem atrativos totalmente transformado de sua severa fachada pública.
— Ah, sim. Meu padrinho, o Velho Rei Sol — acrescentou despreocupadamente —, me deu um livro sobre a vida dos santos no dia do próprio santo do meu aniversário, quando fiz oito anos. Era um lindo livro — disse, nostalgicamente —, com páginas douradas e uma capa toda ornamentada a ouro; era mais uma obra de arte do que uma obra literária. Ainda assim, eu o li. E embora tenha gostado de todas as histórias, particularmente as dos mártires, houve uma frase na história de Santo Anselmo que pareceu provocar uma reação em minha alma.
Ela cerrou os olhos e inclinou a cabeça para trás, relembrando. Santo Anselmo era um homem de grande sabedoria e grande erudição, um Doutor da Igreja. Mas também um bispo, um homem que se Preocupava com seu rebanho e procurava atender às suas necessidades terrenas, assim como espirituais. A história contava em detalhes todas as suas obras e depois encerravacom as seguintes palavras: “E então ele morreu, ao fim de uma vida eminentemente útil, e assim obteve sua coroa no paraíso.” — Parou, flexionando um pouco as mãos nos joelhos. „ Houve alguma coisa ali que exerceu uma forte atração em mim. A vida eminentemente útil.” — Sorriu para mim. — Eu poderia pensar em epitáfios muito piores do que esse, milady. — Espalmou as mãos de repente e estremeceu, um gesto estranhamente gracioso.
— Eu queria ser útil — ela disse. Em seguida, descartando a conversa fiada, voltou-se de súbito para a música no cravo outra vez.
— Bem — disse. — Obviamente, a mudança nas armaduras da clave, a note tonique... isso é que é estranho. O que podemos deduzir daí?
Fiquei boquiaberta com uma pequena exclamação de surpresa Falando em francês como estávamos, eu não notara antes. Mas observando madre Hildegarde enquanto contava sua história, eu estivera pensando em inglês e, quando olhei de novo para a música, compreendi.
— O que foi? — a freira perguntou. — Descobriu alguma coisa?
— O tom! — eu disse, rindo. — Em francês, um tom musical é a note tonique, mas a palavra para um objeto que abre uma tranca... — apontei para o grande molhe de chaves, normalmente carregado em seu cinto, que madre Hildegarde colocara na prateleira quando entramos — chama-se passepartout, não é?
— Sim — ela disse, olhando-me perplexa. A seguir, tocou na chave mestra. — Une passe-partout. Essa — ela disse, apontando para uma chave comum, com haste e dentes — é normalmente chamada de clef.
— Uma clef. — exclamei, entusiasmada. — Perfeito! — Enfiei o dedo na folha de música diante de nós. — Veja, ma mère, em inglês as palavras são as mesmas: “key” dá o tom de uma peça musical e também quer dizer “chave”, que abre fechaduras. Em francês, “clef” quer dizer “chave” de abrir e em inglês “clef” também quer dizer “clave” de música. Então o “tom” da música também é a chave do código. Jamie disse que achava que era um código em inglês! Feito por um inglêscom um senso de humor realmente diabólico — acrescentei.
com essa pequena descoberta, o código tornou-se fácil de ser decifrado. Se quem o criara fora um inglês, a mensagem cifrada provavelmente estaria em inglês também, o que significava que as palavras em alemão eram fornecidas apenas como uma fonte de letras. E tendo visto os esforços anteriores de Jamie com alfabetos e troca de letras, foram necessárias apenas algumas tentativas para determinar o padrão do código.
— Dois bemóis significam que você deve pegar cada segunda letra, partindo do início do trecho musical — eu disse, rabiscando freneticamente os resultados. — E três sustenidos significa pegar cada terceira letra, partindo do final do segmento. Suponho que ele tenha usado alemão tanto para dissimulação quanto pelo fato de ser uma língua muito prolixa, onde são necessárias quase o dobro de palavras para dizer a mesma coisa em inglês.
— Seu nariz está sujo de tinta — observou madre Hildegarde. Espreitou por cima do meu ombro. — Faz sentido?
— Sim — eu disse, a boca repentinamente seca. — Sim, faz sentido. Decifrada, a mensagem era breve e simples. Também profundamente perturbadora.
— “Os fiéis súditos de Sua Majestade da Inglaterra aguardam sua restauração legal. A quantia de cinqüenta mil libras está à sua disposição. Como garantia de boa-fé, esta somente será paga pessoalmente, à chegada de Sua Alteza em solo inglês” — eu li. — E há uma letra sobrando, um S. Não sei se é uma espécie de assinatura ou apenas algo que a pessoa que escreveu precisou para fazer a palavra em alemão ficar correta.
— Hum... — Madre Hildegarde olhou com curiosidade para a mensagem rabiscada, depois para mim. — Você já deve saber, é claro — ela disse, balançando a cabeça -, mas pode assegurar a seu marido que vou manter isso em segredo.
— Ele não teria pedido sua ajuda se não confiasse na senhora — protestei. As sobrancelhas grosseiras ergueram-se até a borda de sua touca de freira e ela bateu de leve, mas com firmeza, no papel rabiscado.
— Se este for o tipo de atividade em que seu marido está empenhado, ele corre um sério risco em confiar em quem quer que seja. Assegure-lhe que fico sensibilizada com a honra — acrescentou secamente.
— Farei isso — eu disse, sorrindo.
— Ora, chère madame — ela disse, ao olhar para mim -, a senhora está muito pálida! Eu mesma costumo ficar acordada até tarde da noite quando estou trabalhando em uma nova composição, de modo que não presto muita atenção à hora, mas já deve ser muito tarde para você. — Ela olhou para a vela que marcava as horas queimando em cima da mesinha junto à porta.
— Nossa! Está mesmo ficando tarde. Quer que eu chame a irmã Madeleine para levá-la ao seu quarto?
Jamie concordara, com alguma relutância, com a sugestão de madre Hildegarde de que eu passasse a noite no Couvent dês Anges, para não ter que voltar para casa pelas ruas escuras da cidade tarde da noite.
Sacudi a cabeça. Estava cansada e minhas costas doíam de ficar sentada no banco, mas não queria ir para a cama. De qualquer modo, as implicações da mensagem musical eram perturbadoras demais para permitirem que eu conseguisse pegar no sono imediatamente.
— Bem, então, vamos fazer um pequeno lanche, em comemoração ao nosso feito.
Madre Hildegarde levantou-se e dirigiu-se ao aposento externo, onde ouvi o toque de uma sineta. Pouco depois, uma das irmãs encarregadas de Servir à mesa chegou com uma bandeja com leite quente e pequenos bolos glaçados, seguida de Bouton. A irmã colocou um bolinho num pequeno prato de louça e depositou-o no chão diante dele como algo corriqueiro pondo ao lado uma tigela de leite.
Enquanto tomava pequenos goles do meu próprio leite quente, madre Hildegarde tirou a fonte de nossos esforços do suporte de partituras do cravo, colocou-a sobre a escrivaninha e, em seu lugar, arrumou uma folha de papel solta contendo o manuscrito de uma música.
—vou tocar para você — anunciou. — Ajudará a tranqüilizar sua mente para o sono.
A música era suave e calmante, com uma melodia que alternava soprano e baixo num padrão de agradável complexidade, mas sem o ímpeto de Bach.
— Essa composição é sua? — perguntei, aproveitando a pausa, quando ela ergueu as mãos à conclusão da peça.
Ela sacudiu a cabeça sem se virar.
— Não. É de um amigo meu, Jean Philippe Rameau. Um bom teórico, mas não compõe com muita paixão.
Devo ter cochilado, a música aquietando meus sentidos, pois acordei de repente ao murmúrio da voz de irmã Madeleine ao meu ouvido e sua mão, firme e quente, no meu braço, ajudando-me a me erguer e conduzindo-me para meu quarto.
Olhando para trás, pude ver a amplitude das costas vestidas de negro de madre Hildegarde e o movimento dos ombros vigorosos sob a cortina de seu véu enquanto tocava, alheia agora ao mundo além do santuário de seu quarto. Nas tábuas do assoalho junto aos seus pés, estava Bouton, o focinho sobre as patas, o pequeno corpo deitado reto como a agulha de uma bússola.
— Então — Jamie disse -, as coisas foram um pouco além de conversas, talvez.
— Talvez? — repeti. — Uma oferta de cinqüenta mil libras me parece bastante definitiva. — Cinqüenta mil libras, pelos padrões atuais, era a renda anual de um ducado de bom tamanho.
Ele ergueu uma das sobrancelhas cinicamente diante do manuscrito musical que eu trouxera comigo do convento.
— Ah, bem. Uma oferta como essa é bem segura, se está condicionada a Carlos ou Jaime colocarem o pé na Inglaterra. Se Carlos estiver na Inglaterra, significa que conseguiu apoio suficiente de outros lugares para o levarem à Escócia, primeiro. Não — disse, esfregando o queixo pensativo — o que é interessante a respeito desta oferta é que é o primeiro sinal definitivo que vemos de que os Stuart, ou um deles, ao menos, estão realmente se esforçando para montar uma tentativa de restauração de sua monarquia.
— Um deles? — eu disse, percebendo a ênfase. — Quer dizer que acha que Jaime não está metido nisso? — Olhei para a mensagem codificada com maior interesse ainda.
— A mensagem veio para Carlos — Jamie relembrou-me — e veio da Inglaterra, não através de Roma. Fergus pegou-a de um mensageiro regular, num pacote com selos ingleses; não de um mensageiro papal. E tudo que vi nas cartas de Jaime... — Sacudiu a cabeça, franzindo o cenho. Não havia se barbeado ainda e a luz da manhã capturava uma ou outra centelha de cobre entre os pêlos ruivos e espetados de sua barba.
— O pacote já fora aberto; Carlos já viu este manuscrito. Não havia nenhuma data, de modo que não sei há quanto tempo chegou para ele. Mas não há nenhuma referência em qualquer das cartas de Jaime sobre qualquer pessoa que pudesse ser o compositor, muito menos sobre qualquer promessa definitiva de apoio da Inglaterra.
Eu podia ver o rumo de seus pensamentos.
— E Louise de La Tour estava tagarelando sobre como Carlos pretendia mandar anular seu casamento e tomá-la como sua esposa, quando fosse rei. Então você acredita que Carlos não estava falando apenas da boca para fora para impressioná-la?
— Talvez não — ele disse. Despejou água da jarra do quarto dentro da bacia e lavou o rosto, preparando-se para fazer a barba.
— Então, acha possível que Carlos esteja agindo por conta própria? — eu disse, horrorizada e intrigada com a possibilidade. — Que Jaime tenha armado uma farsa, fingindo começar uma tentativa de restauração, a fim de manter Luís impressionado com o valor potencial dos Stuart, mas...
— Mas Carlos não está fingindo? — Jamie interrompeu. — Sim, é o que parece. Tem uma toalha aí, Sassenach? — com os olhos bem apertados e o rosto pingando, tateava pela superfície da mesa. Afastei o manuscrito para um local seguro e encontrei a toalha, dobrada ao pé da cama.
Ele examinou a lâminacom ar crítico, concluiu que serviria e inclinou-se sobre minha penteadeira para se olhar no espelho enquanto aplicava sabão para a barba no rosto
— Por que é incivilizado de minha parte tirar os pêlos das minhas pernas e axilas e não é para você tirar os pêlos do rosto? — perguntei, vendo-o esticar o lábio superior sobre os dentes enquanto raspava sob o nariz com Movimentos curtos e delicados.
— Mas é — respondeu, estreitando os olhos para si mesmo no espelho. — Mas coça como o diabo se eu não o fizer.
— Alguma vez já deixou a barba crescer? — perguntei, curiosa.
— Não de propósito — respondeu, com um ligeiro sorriso, enquanto raspava uma das faces -, mas já tive barba uma ou outra vez, quando não tinha como fazê-la, na época que vivi como um fora-da-lei na Escócia. Quando chegou ao ponto de ter que escolher entre fazer a barba num riacho gelado com uma lâmina cega ou me coçar, escolhi a coceira.
Ri, observando-o puxar a lâmina ao longo do maxilar com um único e longo movimento.
— Não consigo imaginá-lo com uma barba longa e cheia. Só o vi no estágio de barba curta e espetada.
Sorriu com um dos cantos da boca, erguendo o outro, enquanto raspava sob a maça do rosto alta e proeminente deste lado.
— Da próxima vez que formos convidados a Versalhes, Sassenach, pedirei para visitarmos o zoológico real. Luís tem uma criatura lá que um dos capitães de seus navios lhe trouxe de Bornéu, chamado orangotango. Já viu um desses?
— Sim — eu disse —, o zoológico de Londres tinha um casal antes da guerra.
— Então sabe como eu fico de barba — disse, sorrindo para mim enquanto terminava com uma cuidadosa operação na curva do queixo. Desgrenhado e antiquado. Mais ou menos como o visconde Marigny acrescentou —, só que ruivo.
Como se o nome o tivesse lembrado, retornou ao tópico principal da conversa, limpando os remanescentes de sabão do rosto com a toalha de linho.
— Então, acho que o que devemos fazer agora, Sassenach, é vigiar de perto os ingleses em Paris. — Pegou o manuscrito da cama e folheou as páginas pensativo. — Se alguém está realmente disposto a dar um suporte nesta escala, acho que pode estar enviando um representante a Carlos. Se eu fosse arriscar cinqüenta mil libras, gostaria de ver o que estaria comprando com meu dinheiro, você não faria o mesmo?
— Sim, faria — respondi. — E por falar em ingleses, Sua Alteza patrioticamente compra seu conhaque de você e Jared ou ele por acaso patrocina os serviços do sr. Silas Hawkins?
— O sr. Silas Hawkins, que está tão ansioso para saber qual é o clima político nas Highlands escocesas? — Jamie sacudiu a cabeça para mim com admiração. — E eu que pensei que tinha casado com você porque tinha um belo rosto e um traseiro gordo e bonito. E pensar que você também tem cérebro! — Agilmente se esquivou do tapa que mirei em sua orelha e riu para mim.
— Eu não sei, Sassenach, mas vou descobrir antes do dia acabar.
O príncipe Carlos realmente comprava seu conhaque do sr. Hawkins. Além desta descoberta, entretanto, fizemos pouco progresso no decurso das quatro semanas seguintes. Tudo continuava mais ou menos como antes. Luís de França continuava a ignorar Carlos Stuart. Jamie continuava a administrar os negócios de vinho e a visitar o príncipe Carlos. Fergus continuava a roubar cartas. Louise, princesa de Rohan, apareceu em público de braço dado com seu marido, melancólica, mas desabrochando fisicamente. Eu continuava a vomitar pela manhã, trabalhar no Hôpital à tarde e sorrir graciosamente à mesa de jantar à noite.
Dois eventos ocorreram, entretanto, que pareceram ser algum progresso em direção ao nosso objetivo. Carlos, entediado com o confinamento, começou a convidar Jamie para ir às tavernas com ele à noite — em geral, sem a presença repressora e arbitrária de seu tutor, sr. Sheridan, que se professava velho demais para tais desvarios.
— Meu Deus, o sujeito bebe como uma esponja! — Jamie exclamara, voltando de uma dessas incursões cheirando a vinho barato. Examinou uma grande mancha sobre o peito de sua camisa com ar crítico.
-vou ter que mandar fazer uma camisa nova — disse.
— Vale a pena — eu disse -, se ele lhe contar alguma coisa enquanto está bêbado. De que ele fala?
— Caçadas e mulheres — Jamie disse sucintamente e recusou-se firmemente a entrar em detalhes. Ou a política não tinha o mesmo peso de Louise de La Tour na mente de Carlos ou ele era capaz de ser discreto, mesmo na ausência de seu tutor, sr. Sheridan.
O segundo acontecimento foi que monsieur Duverney, o ministro das Finanças, perdeu no xadrez para Jamie. Não uma vez, mas repetidamente. como Jamie previra, o efeito de perder servia apenas para tornar monsieur Duverney mais determinado a ganhar. Em conseqüência, éramos com freqüência convidados a Versalhes, onde eu circulava, colecionava mexericos e evitava alcovas, enquanto Jamie jogava xadrez, em geral atraindo uma Multidão de admiradores para observar, embora eu particularmente não considerasse o xadrez um esporte para espectadores.
Jamie e o ministro das Finanças, um homem baixinho e roliço, de ombros caídos, estavam debruçados sobre um tabuleiro de xadrez, ambos aparentemente tão concentrados no jogo a ponto de ficarem alheios ao que se passava ao seu redor, apesar do murmúrio de vozes e do tilintar de copos logo acima de seus ombros.
— Nunca vi algo tão cansativo como o xadrez — murmurou uma das mulheres para outra. — E chamam a isso de diversão! Eu me divertiria mais vendo minha criada catando pulgas nos pajens negros. Ao menos, eles dão uns gritinhos e umas risadinhas.
— Eu não me importaria em fazer o rapaz ruivo dar uns gritinhos e umas risadinhas — disse sua companheira, sorrindo sedutoramente para Jamie, que erguera a cabeça e olhava, abstraído, além de monsieur Duverney. Sua companheira me avistou e cutucou a outra, uma loura sensual, nas costelas.
Sorri de modo agradável para ela, apreciando com certa maldade o profundo rubor que subiu de seu generoso decote, deixando sua pele coberta de manchas vermelhas. Quanto a Jamie, ela poderia ter enrascado seus dedos gorduchos em seus cabelos que ele não lhe daria a menor atenção, tão absorto parecia estar.
Perguntei-me exatamente o que ocupava os seus pensamentos. Com certeza, não era o jogo; o estilo de monsieur Duverney era um jogo obstinado de cauteloso posicionamento, mas ele usava as mesmas manobras repetidamente. Os dois dedos do meio da mão direita de Jamie moveram-se ligeiramente contra a coxa, um breve estremecimento de impaciência logo disfarçada, e percebi que, no que quer que fosse que ele estivesse pensando, não era no jogo. Podia levar mais meia hora, mas ele tinha o rei de monsieur Duverney na palma da mão.
O duque de Neve estava de pé ao meu lado. Vi seus olhinhos escuros fixarem-se nos dedos de Jamie depois desviarem-se rápido. Parou pensativamente por um instante, examinando o tabuleiro, depois se afastou sorrateiro para aumentar sua aposta.
Um criado de libré parou junto ao meu ombro e, de modo obsequioso, fez uma profunda mesura, oferecendo-me mais um copo de vinho. Recusei com um gesto da mão; já bebera o suficiente para sentir a cabeça leve e os pés perigosamente distantes.
Virando-me para procurar um lugar para me sentar, avistei o conde de St. Germain do outro lado do aposento. Talvez fosse para ele que Jamie estivera olhando. O conde, por sua vez, olhava para mim; na verdade, fitava-me com o olhar fixo e um sorriso no rosto. Não era sua expressão normal e não lhe caía bem. Eu não me importava com isso nem um pouco para ser franca, mas inclinei-me o mais educadamente possível em sua direção e em seguida enfiei-me no meio do grupo de mulheres, conversando sobre variados assuntos, mas tentando sempre que possível conduzir a conversa na direção da Escócia e de seu rei exilado.
De modo geral, as perspectivas de uma restauração da monarquia dos Stuart não pareciam preocupar a aristocracia da França. Quando mencionava Carlos Stuart em uma ou outra ocasião, a reação costumeira era uma reviravolta dos olhos ou um dar de ombros, descartando o assunto. Apesar dos bons serviços do conde de Mar e de outros jacobitas parisienses, Luís recusava-se obstinadamente a receber Carlos na corte. E um exilado sem dinheiro e sem as graças do rei não seria convidado pela sociedade para travar conhecimento com banqueiros ricos.
— O rei não ficou particularmente satisfeito com o fato de o primo ter chegado à França sem buscar sua permissão — disse-me a condessa de Brabant quando abordei a questão. —Já o ouviram dizer que, no que lhe diz respeito, a Inglaterra pode continuar protestante — confidenciou. — E se os ingleses queimarem no inferno com Jorge de Hannover, tanto melhor.
— Fez um beicinho de compaixão; era uma pessoa de bom coração. — Sinto muito — ela disse. — Sei que isso pode ser uma decepção para você e seu marido, mas realmente... — Encolheu os ombros.
Pensei comigo mesma que poderíamos acomodar esse tipo de decepção e saí ansiosamente à procura de mais rumores nessa linha, mas tive pouco sucesso naquela noite. Os jacobitas, pelo que pude apreender, eram um tédio.
— Torre para o peão cinco da rainha — Jamie murmurou mais tarde naquela noite quando nos preparávamos para ir para a cama. Estávamos hospedados no palácio outra vez. Como o jogo de xadrez se estendera até bem depois da meia-noite e o ministro não quis saber de empreendermos a viagem de volta a Paris a tal hora, fomos acomodados em um pequeno appartement, este um ou dois níveis acima do primeiro, percebi. Possuía uma cama com colchão de penas e uma janela que dava para o gramado e os jardins floridos ao sul.
— Torres, hein? — eu disse, deslizando para a cama e esticando-me com um gemido. — Vai sonharcom xadrez esta noite?
Jamie balançou a cabeça afirmativamente, com um bocejo que fez os ossos de seu maxilar estalarem e os olhos lacrimejarem.
— Sim, tenho certeza que vou. Espero que não se incomode, Sassenach, se eu enrocar durante o sono.
Meus pés contorceram-se de pura alegria por não estarem presos em sapatos apertados e por estarem aliviados do meu peso crescente. Além disso, a parte inferior da minha coluna emitia choques agudos de uma dor ligeiramente agradável, conforme se reajustava à posição de repouso.
— Você pode ficar de cabeça para baixo enquanto estiver dormindo, se quiser — eu disse, bocejando. — Nada me perturbará esta noite.
Nunca estive tão errada.
Eu sonhava com o bebê. Crescido, quase pronto para nascer, ele chutava e contorcia-se em minha barriga estufada. Minhas mãos envolveram o volume, massageando a pele esticada, tentando acalmar o turbilhão dentro de mim. Mas as contorções continuaram e, na maneira sossegada dos sonhos, percebi que não era o bebê, mas uma cobra que se retorcia em minha barriga. Dobrei o corpo, trazendo os joelhos para cima, enquanto lutava com a serpente, as mãos tateando e golpeando, procurando a cabeça da besta que se arremessava e empurrava sob minha pele. Senti a pele quente ao toque e meus intestinos contraíam-se, transformando-se eles próprios em serpentes, mordendo e lançando-se de um lado para o outro conforme se entrelaçavam.
— Claire! Acorde! O que está acontecendo? — Seu chamado e as sacudidelas finalmente me acordaram para uma apreensão confusa do ambiente à minha volta. Eu estava na cama e era a mão de Jamie que estava em meu ombro e os lençóis de linho sobre mim. Mas as cobras continuavam a se contorcer em minha barriga e eu gemi alto, o som assustando-me quase tanto quanto a Jamie.
Ele arrancou as cobertas e virou-me sobre as costas, tentando puxar meus joelhos para baixo. Continuei teimosamente enrolada como uma bola, agarrando o estômago, tentando conter as dores agudas que me dilaceravam.
Puxou a colcha novamente sobre mim e saiu correndo do quarto, mal parando para agarrar seu kilt de cima do banco.
Eu não tinha condições de prestar atenção a mais nada além do meu tumulto interior. Meus ouvidos tiniam e um suor frio banhava meu rosto.
— Madame? Madame?
Abri os olhos o suficiente para ver a criada designada para o nosso appartement, os olhos arregalados e os cabelos desgrenhados, curvada sobre a minha cama. Jamie, seminu e mais nervoso ainda, estava atrás dela. Fechei os olhos, gemendo, mas não antes de vê-lo agarrar a criada pelos ombros, com força suficiente para sacudir os cachos que haviam se soltado de sua touca de dormir.
— Ela está perdendo a criança? Está?
Parecia extremamente provável. Contorcia-me na cama, gemendo, o corpo dobrado ainda com mais força, como se quisesse proteger o fardo de dor que continha.
Ouviu-se um crescente burburinho de vozes no quarto, a maioria feminina, e várias mãos me examinavam e apertavam. Ouvi uma voz masculina em meio aos murmúrios; não era Jamie, algum francês. À ordem da voz, várias mãos agarraram-me pelos tornozelos e ombros e esticaram-me na cama.
Alguém enfiou a mão por baixo da minha camisola e examinou minha barriga. Abri os olhos, ofegante, e vi monsieur Flèche, o médico real, ajoelhado ao lado da cama, o cenho franzido em concentração. Devia ter me sentido lisonjeada diante da generosidade do rei, mas não estava em condições de dar atenção ao fato. As características da dor pareciam estar mudando; embora crescesse em espasmos, era mais ou menos constante e, ainda assim, parecia estar se movendo, viajando de um ponto mais alto em meu abdômen para um ponto mais abaixo.
— Não é um aborto — monsieur Flèche assegurava a Jamie, que pairava ansiosamente acima de seu ombro. — Não há sangramento. — Vi uma das senhoras que acorreram fitando horrorizada as cicatrizes em suas costas. Ela agarrou uma companheira pela manga, chamando sua atenção para o que via.
— Talvez uma inflamação da vesícula — dizia monsieur Flèche. — Ou um repentino ataque de fígado.
— Idiota — eu disse, entre dentes.
Monsieur Flèche olhou de modo arrogante para mim abaixo de seu volumoso nariz, tardiamente acrescentando o pince-nez de aro de ouro para aumentar o efeito. Colocou a mão em minha fronte pegajosa, incidentalmente fechando meus olhos para que eu não pudesse olhar para ele.
— Muito provavelmente o fígado — ele dizia a Jamie. — A pressão da vesícula causa este acúmulo de humores biliares no sangue, que causa a dor e uma diarréia temporária — acrescentou com grande autoridade, pressionando a mão com mais força conforme eu me debatia de um lado para o outro. — Deve sofrer uma sangria imediatamente. Platão, a bacia!
Consegui libertar uma das mãos e, com um tapa, afastei a mão repressora da minha testa.
— Afaste-se de mim, charlatão miserável! Jamie! Não deixe que toquem em mim com isso!
Platão, o assistente de monsieur Flèche, avançava para mim com lanceta e bacia, enquanto as mulheres ao fundo soltavam exclamações e abanavam-se umas às outras, com receio de sucumbirem diante daquele drama.
Jamie, lívido, olhava desamparadamente de mim para monsieur Flèche e de novo para mim. Tomando uma súbita decisão, agarrou o desafortunado Platão e puxou-o para longe da cama, virou-o e empurrou-o para a Porta, a lanceta espetada no ar. As criadas e damas da corte recuavam aos gritinhos diante dele.
— Monsieur! Monsieur lê chevalied — reclamava o médico. Encaixara a peruca profissionalmente na cabeça quando fora chamado, mas não tivera tempo de se vestir e as mangas do seu camisão batiam como asas enquanto seguia Jamie pelo quarto, sacudindo os braços como um espantalho tresloucado.
A dor voltou a aumentar, um torniquete apertando minhas entranhas, e eu arquejei e dobrei-me outra vez. Quando amainou um pouco, abri os olhos e vi uma das senhoras, os olhos vigilantes fixos em meu rosto. A expressão de quem chega à compreensão de um fato passou por suas feições e, ainda olhando para mim, inclinou-se para sussurrar alguma coisa no ouvido de uma de suas companheiras. Havia barulho demais no quarto para que eu pudesse ouvir, mas li seus lábios com clareza.
— Veneno — ela disse.
A dor mudou-se bruscamente para mais baixo com um sinistro gorgolejo interior e eu finalmente compreendi do que se tratava. Não era um aborto. Nem apendicite, muito menos um ataque do fígado. Nem era exatamente veneno. Era cáscara-sagrada.
— Você — eu disse, avançando ameaçadoramente sobre mestre Raymond, agachado defensivamente atrás de sua mesa de trabalho, sob a égide protetora de seu crocodilo empalhado. — Você! Verme desgraçado, cara de sapo!
— Eu, milady? Não lhe fiz nenhum mal, fiz?
— Fora me causar uma violenta diarréia na presença de mais de trinta pessoas, me fazer pensar que estava tendo um aborto e quase matar meu marido de susto, absolutamente nenhum mal!
— Ah, seu marido estava presente? — mestre Raymond pareceu nervoso.
— Estava — garanti-lhe. Foi na verdade com considerável dificuldade que eu consegui impedir que Jamie fosse comigo à loja do boticário e extraísse, à força, a informação que mestre Raymond possuía. Eu finalmente o persuadira a aguardar lá fora na carruagem, enquanto eu falava com o proprietário anfíbio.
— Então, não foi apenas uma brincadeira de mau gosto? — perguntei, um pouco abalada. — Alguém de verdade queria me envenenar e eu não estou morta simplesmente porque você tem escrúpulos?
— Talvez meus escrúpulos não sejam inteiramente responsáveis por sua sobrevivência. E é possível que tenha sido uma brincadeira. Imagino que haja outros fornecedores de quem se pode comprar cáscara-sagrada. Mas eu vendi essa substância a duas pessoas no último mês e nenhuma das duas precisava dela.
— Sei. — Respirei fundo e limpei a perspiração da minha testa com a luva. Então, tínhamos dois possíveis envenenadores à solta; exatamente o que precisávamos.
— Vai me dizer quem são? — perguntei direto. — Podem comprar de outra pessoa da próxima vez. Alguém sem os seus escrúpulos.
Ele assentiu, a boca grande de sapo torcendo-se enquanto pensava.
— É uma possibilidade, senhora. Quanto aos verdadeiros compradores, duvido que essa informação a auxilie. Eram empregados; obviamente agindo segundo ordens de um patrão. Uma era a empregada da viscondessa de Rambeau; o outro, um homem que eu não reconheci.
Tamborilei os dedos sobre o balcão. A única pessoa que me fizera ameaças fora o conde de St. Germain. Poderia ele ter contratado um empregado anônimo para adquirir o que ele achava que era veneno e depois ele próprio colocado a substância no meu copo? Tentando me recordar da recepção em Versalhes, achei bem possível. Os copos de vinho haviam sido passados em bandejas pelos criados; embora o próprio conde não tivesse se aproximado a menos de um metro de mim, não teria sido um grande problema subornar um criado para me dar um determinado copo.
Raymond olhava-me com curiosidade.
— Eu lhe perguntaria, senhora, fez alguma coisa para antagonizar a viscondessa? Ela é uma mulher muito ciumenta; não seria a primeira vez que teria buscado a minha ajuda para se livrar de uma rival, embora felizmente seus ciúmes tenham vida curta. O visconde é mulherengo, sabe. Há sempre uma nova rival para tirar seu pensamento da última.
Sentei-me, sem ser convidada.
— Rambeau? — eu disse, tentando ligar o nome a um rosto. Então, as névoas da memória se dissiparam, revelando um corpo vestido com estilo e um rosto redondo e sem graça, ambos profusamente salpicados de rapé.
— Rambeau! — exclamei. — Bem, sim, eu o conheci, mas tudo que fiz foi dar-lhe um tapa no rosto com meu leque quando ele mordeu os dedos dos meus pés.
— Dependendo do estado de espírito, isso seria provocação suficiente para a viscondessa — observou mestre Raymond. — E se assim for, então acredito que provavelmente a senhora esteja a salvo de novos ataques.
— Obrigada — eu disse secamente. — E se não foi a viscondessa?
O pequeno boticário hesitou por um instante, os olhos apertados contra o clarão do sol matinal que brilhava através das vidraças em losangos atrás de mim. Então, tomou uma decisão, e voltou-se para a mesa de pedra onde seus alambiques ferviam, sacudindo a cabeça para que eu o seguisse.
— Acompanhe-me, por favor. Tenho algo para a senhora.
Para minha surpresa, abaixou-se sob a mesa e desapareceu. Como ele não voltava, eu mesma me abaixei e espreitei embaixo da mesa. Uma camada de carvão em brasa brilhava na lareira, mas havia espaço dos dois lados. E na parede embaixo da mesa, oculta nas sombras, havia o espaço mais escuro de uma abertura.
Apenas com uma pequena hesitação, segurei as beiradas da minha saia e fui gingando atrás dele por baixo da mesa.
Do outro lado da parede, havia espaço suficiente para se ficar em pé, embora o cômodo fosse muito pequeno. A estrutura externa do prédio não revelava aquele espaço.
Duas das paredes do quarto oculto eram cobertas por uma prateleira semelhante a uma colméia, cada compartimento imaculadamente limpo e cada qual exibindo o crânio de um animal. O impacto das paredes foi suficiente para me fazer dar um passo para trás; todos os olhos vazios pareciam concentrados em mim, os dentes arreganhados em cintilantes boas-vindas.
Pestanejei diversas vezes antes de conseguir localizar Raymond, agachado cautelosamente ao pé deste ossuário como o acólito residente. Ele mantinha os braços erguidos nervosamente à sua frente, olhando-me como se esperasse que eu fosse gritar ou atirar-me sobre ele. Mas eu já tivera visões muito mais apavorantes do que uma simples fileira de ossos polidos e avancei calmamente para examiná-los mais de perto.
Ao que parecia, ele tinha tudo. Pequenos crânios de morcego, rato e víbora, os ossos transparentes, dentes pequeninos, espetados como pregos de ferocidade carnívora. Cavalos, dos imensos percherons,com maciços maxilares semelhantes a cimitarras, parecendo eminentemente apropriados para derrubar pelotões de filisteus, até os crânios de macacos, tão teimosamente resistentes em suas minúsculas curvas quanto os dos enormes cavalos de tração.
Exerciam uma certa atração, tão imóveis e tão belos, o osso não tão frio quanto eu teria imaginado, mas estranhamente inerte, como se o calor há muito desaparecido pairasse não muito longe dali.
Eu vira restos humanos tratadoscom muito menos reverência; os crânios dos primeiros mártires cristãos empilhados em montes nas catacumbas, os ossos das pernas atirados em pilhas como se fizessem parte de um jogo de varetas.
— Um urso? — perguntei, em voz baixa. Um grande crânio, este, os dentes caninos curvados para dilacerar, mas os molares estranhamente aplanados.
— Sim, milady. — Vendo que eu não tinha medo, Raymond relaxouSua mão flutuou no ar, mas roçando as curvas do crânio sólido, compacto.
— Vê os dentes? Um consumidor de peixe, de carne — um dedo pequeno traçou a curva longa e maligna do canino, o serrilhado aplanado do molar -, mas um triturador de frutas silvestres, de larvas. Raramente passam fome, porque comem qualquer coisa.
Virei-me devagar de um lado para o outro, admirando, tocando um ou outro, aqui e ali.
— São lindos — eu disse. Falávamos em voz baixa, como se o som mais alto de nossas vozes pudesse acordar os silenciosos crânios adormecidos.
— Sim. — Os dedos de Raymond tocavam-os como os meus, acariciando os longos ossos frontais, percorrendo o delicado arco escamoso da face. Eles guardam o caráter do animal. Pode-se ver bem como ele era, apenas pelo que restou.
Revirou um dos crânios menores nas mãos, indicando as protuberâncias na parte de baixo, como pequenos balões de paredes finas.
— Veja, o canal do ouvido entra aqui, de modo que os sons ecoam dentro do cérebro. Daí a audição aguçada dos ratos.
— Tympanic bullae — eu disse, balançando a cabeça.
— Ah? Meu latim é bem fraco. Meus nomes para essas coisas são... meus mesmos.
— Aqueles... — eu disse, apontando para cima. — Aqueles são especiais, não são?
— Ah, sim, senhora. São lobos. Lobos muito antigos. — Pegou um dos crânios, manuseando-o com um cuidado reverente. O focinho era longo e canídeo, com caninos pesados e largos dentes carnívoros. A crista sagital erguia-se dominante da parte de trás do crânio, testemunha dos pesados músculos do pescoço vigoroso que um dia o sustentou.
Não eram de um branco suave e opaco como os demais crânios. Estes eram manchados e raiados de marrom, exibindo um reflexo luzidio de muito polimento.
— Estas feras não existem mais.
— Não existem mais? Estão extintas, você quer dizer? — Toquei-o mais uma vez, fascinada. — Em que lugar da face da Terra você os conseguiu?
— Não na face da Terra, mas sob ela. Vieram de um lamaçal de turfa, enterrados muito abaixo da superfície.
Olhando de perto, eu podia ver as diferenças entre estes crânios e os mais recentes e mais brancos na parede oposta. Estes animais eram maiores do que os lobos comuns,com mandíbulas que podiam quebrar os ossos das pernas de um alce em fuga ou rasgar a garganta de um cervo caído.
Estremeci ligeiramente ao toque, lembrando-me do lobo que eu matara fora da prisão de Wentworth e o resto da alcatéia que me perseguiu na luz glacial do crepúsculo, há menos de seis meses atrás.
— Não gosta de lobos? — Raymond perguntou. — No entanto, os ursos e as raposas não a perturbam? Também são caçadores, comedores de carne.
— Sim, mas não a minha — eu disse secamente, devolvendo-lhe o crânio antigo e escurecido pelo tempo. — Tenho muito mais simpatia pelo nosso amigo alce. — Dei umas pancadinhas no focinho alto e proeminente com certa afeição.
— Simpatia? — Os olhos negros e gentis examinaram-me com curiosidade. — É uma emoção incomum para se sentir por um osso, milady.
— Bem... sim — eu disse, ligeiramente envergonhada -, mas não parecem realmente apenas ossos, sabe. Quero dizer, você pode saber alguma coisa a respeito de cada um deles e ter a noção de como era o animal, olhando para esses crânios. Não são simplesmente objetos inanimados.
A boca sem dentes de Raymond abriu-se num largo sorriso, como se eu inadvertidamente tivesse dito alguma coisa que o agradou, mas não fez nenhum comentário.
— Por que possui todos esses? — perguntei subitamente, percebendo de repente que prateleiras de crânios de animais dificilmente seriam os acessórios usuais da loja de um boticário. Crocodilos empalhados, talvez, mas não toda aquela coleção.
Ele deu de ombros, bem-humorado.
— Bem, eles são uma espécie de companhia, enquanto trabalho. — Fez um gesto indicando uma bancada entulhada em um dos cantos. — E embora me falem de muitas coisas, não são barulhentos a ponto de atrair a atenção dos vizinhos. Venha cá — ele disse, mudando bruscamente de assunto.
— Tenho algo para você.
Segui-o até um armário alto no lado oposto do aposento, imaginando o que seria.
Ele não era um naturalista, certamente não era um cientista, da maneira como eu compreendia o termo. Não mantinha anotações, não fazia desenhos, nenhum registro que outros pudessem consultar e com os quais pudessem aprender. E entretanto, eu tinha a estranha convicção de que ele queria muito me ensinar coisas que sabia — uma simpatia por ossos, talvez?
O armário era pintado com inúmeros sinais estranhos, enroscados e espiralados, entre o que pareciam ser pentágonos e círculos; símbolos cabalísticos. Reconheci um ou dois, de alguns livros de referências históricas de tio Lamb.
— Interessa-se pela cabala? — perguntei, vendo os símbolos com certa diversão. Isso explicaria a sala de trabalho oculta. Embora houvesse um forte interesse em ocultismo entre alguns aristocratas e intelectuais franceses, era um interesse mantido absolutamente clandestino, por medo da coroa de espinhos da Igreja.
Para minha surpresa, Raymond riu. Seus dedos rombudos, de unhas curtas, pressionaram aqui e ali na frente do armário, tocando o centro de um símbolo, o prolongamento de outro.
— Bem, não, milady. A maioria dos cabalistas tende a ser um tanto patética, de modo que não busco sua companhia com freqüência. Mas os símbolos de fato mantêm os curiosos longe do meu armário. O que, se pensar bem, não é pouco para alguns rabiscos pintados. Portanto, talvez os cabalistas tenham razão ao afirmar que estes sinais têm poder, não acha?
Sorriu para mim com uma expressão travessa, enquanto a porta do armário abria-se de par em par. Pude ver que era, na realidade, um armário duplo; se algum intrometido ignorasse o aviso dos símbolos e meramente abrisse a porta, sem dúvida veria apenas o inofensivo conteúdo do armário de um boticário. Mas se a seqüência certa de trancas ocultas fosse pressionada, as prateleiras internas também se movimentavam para fora, revelando uma profunda cavidade por trás.
Ele puxou uma das pequenas gavetas que enchiam a cavidade e esvaziou-a em sua mão. Remexendo no conteúdo, retirou uma única e grande pedra branca de cristal e entregou-a a mim.
— Para você — disse. — Para proteção.
— O quê? Magia? — perguntei cinicamente, virando o cristal de um lado para o outro na palma da mão.
Raymond riu. Estendeu a mão acima da escrivaninha e deixou um punhado de pequenas pedras coloridas cair pelo meio dos dedos, indo bater no manchado mata-borrão de feltro.
— Acho que pode chamar assim. Com certeza posso cobrar mais por isso quando o faço. — A ponta de um dedo empurrou um cristal esverdeado da pilha de pedras coloridas.
— Não possuem mais, e sem dúvida não menos, magia do que os crânios. Chame-as de ossos da terra. Guardam a essência da matriz em que cresceram e, quaisquer que tenham sido os poderes que possuíam, você os poderá encontrar aqui também. — Lançou um pequeno nódulo amarelo em minha direção.
— Enxofre. Triture-ocom algumas outras substâncias, encoste um fósforo e ele explodirá. Pólvora. Isso é mágica? Ou será apenas a natureza do enxofre?
— Acho que depende apenas de com quem você está falando — obserVei, e seu rosto abriu-se num sorriso de satisfação.
— Se um dia quiser deixar seu marido, senhora – disse com uma risadinha -, pode ter certeza de que não morrerá de fome. Eu disse que você era uma profissional, não disse?
— Meu marido! — exclamei, empalidecendo. De repente, minha mente encontrou sentido nos barulhos abafados que vinham da loja distante. Ouviu-se uma pancada retumbante, como de um punho grande se abatendo com força considerável sobre um balcão e o retumbar profundo de uma voz inclinada a não sofrer nenhuma interferência fez-se ouvir em meio à mistura de outras vozes.
— Santo Deus! Me esqueci de Jamie!
— Seu marido está aqui? — Os olhos de Raymond ficaram ainda mais esbugalhados do que o normal e, se já não fosse tão pálido, eu pensaria que também ficou lívido.
— Eu o deixei lá fora — expliquei, agachando-me para atravessar de novo a abertura secreta. — Deve ter se cansado de esperar.
— Espere! — A mão de Raymond agarrou meu cotovelo, fazendo-me parar. Colocou a outra mão sobre a minha, a que segurava o cristal branco.
— Esse cristal. Eu disse que era para sua proteção.
— Sim, sim — eu disse com impaciência, ouvindo meu nome sendo gritado lá fora com crescente volume. — O que ele faz, então?
— É sensível a veneno, senhora. Mudará de cor na presença de vários compostos nocivos.
Isso me fez parar. Empertiguei-me e olhei-o direto nos olhos.
— Veneno? — eu disse, devagar. — Então...
— Sim, senhora. Talvez ainda corra perigo. — O rosto de sapo de Raymond tinha uma expressão sombria. — Não posso dizer ao certo, nem de que direção, porque não sei. Se eu descobrir, tenha certeza que lhe direi. — Seus olhos agitaram-se nervosamente na direção da entrada através da lareira. Uma série ribombante de golpes soou na parede externa. Assegure a seu marido também, por favor, madona.
— Não se preocupe — eu lhe disse, agachando-me sob a verga baixa da lareira. — Jamie não morde... eu acho que não.
— Eu não estava preocupado com os dentes dele, senhora. — Ouvi atrás de mim enquanto eu saía gingando por cima das cinzas da lareira.
Jamie, no ato de erguer o punhho de sua adaga para bater outra vez nos lambris da parede, avistou-me emergindo da lareira e abaixou-o.
— Ah, aí está você — observou serenamente. Inclinou a cabeça para o lado, observando-me limpar fuligem e cinzas da barra do meu vestido, depois cerrou as sobrancelhas ao ver Raymond espreitando com cautela por baixo da mesa de secagem.
— Ah, e ali está nosso pequeno sapo também. Ele tem alguma explicação, Sassenach, ou devo pregá-lo lá fora com o resto? — Sem tirar os olhos de Raymond, balançou a cabeça em direção à parede da sala externa onde numerosos sapos e rãs secos estavam pregados em uma longa faixa de feltro pendurada na parede.
— Não, não — eu disse apressadamente quando Raymond fez menção de se agachar de volta a seu santuário. — Ele me contou tudo. Na verdade, ele foi de grande ajuda.
Com certa relutância, Jamie guardou a adaga e estendeu a mão para ajudar Raymond a sair de seu esconderijo. Encolheu-se ligeiramente ao verjamie.
— Este homem é seu marido, senhora? — perguntou, em tom de quem gostaria que a resposta fosse “não”.
— Sim, é claro — respondi. — Meu marido, James Fraser, senhor de Broch Tuarach — eu disse, abanando a mão em direção a Jamie, embora certamente não pudesse estar me referindo a mais ninguém. Acenei na direção oposta. — Mestre Raymond.
— Foi o que pensei — Jamie respondeu secamente. Fez uma mesura e estendeu a mão para Raymond, cuja cabeça atingia alguns centímetros acima da cintura de Jamie. Raymond tocou depressa a mão estendida e empertigou-se com um puxão, sem poder reprimir um leve estremecimento. Fitei-o espantada.
Jamie apenas ergueu uma das sobrancelhas, depois se inclinou para trás, apoiando-se na borda da mesa. Cruzou os braços sobre o peito.
— Muito bem — disse. — O que aconteceu?
Eu dei a maioria das explicações, Raymond contribuindo apenas com monossílabos de confirmação de vez em quando. O pequeno boticário parecia destituído de toda a sua dissimulada astúcia e encolheu-se em um banco perto do fogo, os ombros arqueados com prudência. Somente quando terminei com uma explicação do cristal branco, e da presumível necessidade de seus poderes, é que ele se mexeu e pareceu adquirir um pouco de vida novamente.
— É verdade, milorde — garantiu a Jamie. — Não sei, na realidade, se é sua esposa ou o senhor mesmo quem pode estar em perigo, ou talvez os dois juntos. Não ouvi nada específico, somente o nome “Fraser”, ouvido em um lugar onde os nomes raramente são pronunciados com boas intenções.
Jamie lançou-lhe um olhar penetrante.
— Ah, é? E o senhor freqüenta esses lugares, mestre Raymond? As pessoas de quem fala são seus parceiros?
Raymond sorriu, um pouco palidamente.
— Eu os descreveria melhor como concorrentes nos negócios, milorde.
Jamie emitiu um rosnado.
— Mmmm. Sim, bem, e qualquer um que tentar alguma coisa vai receber uma resposta à altura. — Tocou a adaga em seu cinto e endireitou-se.
— Ainda assim, agradeço-lhe pelo aviso, mestre Raymond. — Fez uma mesura para o boticário, mas não ofereceu a mão outra vez. — Quanto à outra — arqueou a sobrancelha em minha direção —, se minha mulher está disposta a perdoar seus atos, então não cabe a mim dizer mais nada. A não ser aconselhá-lo a entrar no seu pequeno buraco da próxima vez que a viscondessa entrar em sua loja. Vamos embora, Sassenach.
Enquanto chocalhávamos na carruagem de volta à rue de Tremoulins, Jamie permaneceu em silêncio, olhando fixamente para fora da janela, enquanto os dedos rígidos da mão direita tamborilavam na coxa.
— Um lugar onde os nomes raramente são pronunciados com boas intenções — murmurou quando a carruagem virou na rue Gamboge. — Que é que isso pode significar?
Lembrei-me dos sinais cabalísticos no armário de Raymond e um pequeno calafrio arrepiou os pêlos do meu braço. Lembrei-me do mexerico de Marguerite sobre o conde de St. Germain e o aviso de madame de Ramage. Falei a Jamie sobre eles e o que Raymond dissera.
— Pode ser que ele considere esses símbolos como pintura e decoração — concluí -, mas obviamente conhece pessoas que não pensam assim ou quem será que ele está procurando manter longe de seu armário?
Jamie balançou a cabeça.
— Sim. Ouvi dizer alguma coisa, não muita, sobre essas atividades pela corte. Não prestei nenhuma atenção na ocasião, achando que eram apenas bobagens, mas agora vou investigar mais um pouco. — Riu de repente e puxou-me para junto de si. — Vou mandar Murtagh seguir o conde de St. Germain. Isso dará ao conde um demônio de verdade para ele brincar.
Murtagh foi devidamente instruído para observar as idas e vindas do conde de St. Germain, mas além de reportar que o conde recebia um número infindável de pessoas em sua casa — de ambos os sexos e de todas as classes -, não detectou nada particularmente misterioso. No entanto, o conde realmente teve uma visita digna de nota: Carlos Stuart, que esteve lá uma tarde, demorou-se uma hora e foi embora.
Carlos começara a requisitar a companhia de Jamie com mais freqüência em suas expedições pelas tavernas e submundo da cidade. Pessoalmente, eu achava que isso tinha mais a ver com a festa de Jules de La Tour de Rohan realizada para celebrar o anúncio da gravidez de sua mulher do que com qualquer influência sinistra do conde.
Essas expedições às vezes estendiam-se até muito tarde da noite e eu me acostumei a ir para a cama sem Jamie, acordando quando ele se enfiava na cama ao meu lado, o corpo frio de andar pela neblina da noite e o cheiro de fumaça de tabaco e bebida alcoólica impregnado em seus cabelos e em sua pele.
— Ele está tão desesperado com aquela mulher que eu acho que nem se lembra que é o herdeiro dos tronos da Inglaterra e da Escócia — Jamie disse, ao retornar de uma de suas incursões noturnas.
— Nossa, ele deve estar mesmo muito perturbado — eu disse, sarcasticamente. — Esperemos que continue assim.
Uma semana depois, entretanto, acordei com a luz cinza e fria do amanhecer para encontrar a cama ao meu lado ainda vazia, o cobertor estendido e arrumado.
— Milorde Broch Tuarach está no gabinete? — Inclinei-me sobre o balaústre de camisola, assustando Magnus, que atravessava o saguão térreo.
talvez Jamie tivesse preferido dormir no sofá no gabinete para não me perturbar.
— Não, milady — respondeu, erguendo os olhos para mim. — Vim destrancar a porta da frente e vi que não tinha sido trancada. Milorde não veio Para casa ontem à noite.
Sentei-me pesadamente no primeiro degrau da escada. Eu devia estar com um aspecto assustador, porque o idoso mordomo praticamente correu escada acima até onde eu estava.
— Madame — disse, ansiosamente esfregando uma das minhas mãos. Madame, a senhora está bem?
— Já estive melhor, mas não tem importância. Magnus, envie um dos lacaios até a casa do príncipe Carlos em Montmartre imediatamente. Mande-o ver se meu marido está lá.
— Imediatamente, milady. E também mandarei Marguerite vir aqui cuidar da senhora. — Virou-se e desceu as escadas apressado, os macios chinelos de feltro que ele usava para seus afazeres matinais fazendo um barulho suave e sussurrante no assoalho de madeira polida.
— E Murtagh! — gritei para Magnus enquanto se afastava. — O parente do meu marido. Diga-lhe para vir aqui, por favor! — O primeiro pensamento que atravessou minha mente foi que talvez Jamie tivesse passado a noite no palacete de Carlos; o segundo, que alguma coisa tivesse lhe acontecido, quer por acidente ou pela ação deliberada de alguém.
— Onde ele está? — A voz dissonante de Murtagh soou no pé da escada. Ele obviamente acabara de acordar; seu rosto estava marcado por algo sobre o qual ele havia dormido e havia fragmentos de palha nas dobras de sua camisa ordinária.
— Como eu poderia saber? — retruquei. Murtagh sempre parecia suspeitar de todos por alguma coisa e ter sido bruscamente acordado não contribuíra para melhorar seu costumeiro mau humor. Ainda assim, sua presença era reconfortante; se houvesse alguma coisa desagradável no horizonte, Murtagh era a pessoa certa para lidar com isso.
— Ele saiu com o príncipe Carlos ontem à noite e não voltou. É tudo que sei. — Ergui-me com dificuldade e me apoiei no corrimão do balaústre, alisando as dobras da minha camisola de seda. As lareiras tinham sido acesas, mas ainda não houvera tempo para aquecer a casa e eu tremia de frio.
Murtagh esfregou a mão no rosto para ajudá-lo a pensar.
— Hum. Alguém foi a Montmartre?
— Sim.
— Então,vou esperar até voltarem com uma notícia. Se Jamie estiver lá, muito bem. Se não estiver, talvez saibam quando ele se separou de Sua Alteza, e onde.
— E se ambos tiverem desaparecido? E se o príncipe também não tiver voltado para casa? — perguntei. Se havia jacobitas em Paris, também havia aqueles que eram contrários à restauração da monarquia dos Stuart. Embora assassinar Carlos Stuart pudesse não garantir o fracasso de uma possível revolução escocesa — afinal, ele tinha um irmão mais novo, Henrique —, poderia contribuir para arrefecer o entusiasmo de Jaime por tal aventura, se ele tivesse algum, para começar.
Lembrei-me vividamente da história que Jamie me contara, do atentado contra a sua vida durante o qual ele conhecera Fergus. Assassinatos nas ruas estavam longe de ser algo incomum e havia gangues de rufiões que saíam à caça pelas ruas de Paris depois que escurecia.
— É melhor você mesma ir se vestir — Murtagh observou. — Posso ver sua pele arrepiada daqui.
— Ah! Sim, acho que sim. — Olhei para meus braços; eu estivera abraçando a mim mesma enquanto as suposições corriam pela minha mente, mas em vão; meus dentes começavam a bater.
— Madame! Assim a senhora vai pegar um resfriado! — Marguerite veio batendo os pés na escada e eu permiti que ela me mandasse de volta para o quarto, olhando para trás para ver Murtagh lá embaixo, cautelosamente examinando a ponta de sua adaga antes de enfiá-la de volta na bainha.
— A senhora deveria estar na cama, madame! — Marguerite me repreendeu. — Não é bom para a criança deixar-se resfriar assim.vou buscar uma panela de aquecer a cama agora mesmo. Onde está seu robe? Vista-o imediatamente, sim, isso mesmo... — Vesti o pesado robe de lã por cima da fina camisola de seda, mas ignorei os conselhos de Marguerite para não abrir as janelas.
A rua do lado de fora estava começando a brilhar conforme o sol nascente iluminava as fachadas superiores das casas de pedra ao longo da rue de Tremoulins. Havia bastante atividade na rua, apesar de ser cedo; criadas e lacaios empenhados em esfregar escadas e polir os adornos de latão dos portões, vendedores de frutas, legumes e frutos do mar frescos em carrinhos de mão, anunciando suas mercadorias aos berros ao longo da rua, e as cozinheiras das mansões despontando de suas portas nos porões como um bando de djins, convocados pelos gritos dos vendedores ambulantes. Uma carroça de entrega carregada de carvão percorria lentamente a rua, puxada por um cavalo velho que parecia preferir estar em seu estábulo. Mas nenhum sinal de Jamie.
Finalmente, permiti que uma ansiosa Marguerite me persuadisse a voltar para a cama, para me aquecer, mas não consegui voltar a dormir. Cada som do andar térreo me sobressaltava, na esperança de que cada passo no calçamento da rua seria seguido pela voz de Jamie no vestíbulo embaixo. U rosto do conde de St. Germain insistia em se intrometer entre mim e o sono. Único entre a nobreza francesa, ele possuía alguma ligação com Stuart. Estava, muito provavelmente, por trás do atentado anterior contra a vida de Jamie... e contra a minha. Era conhecido por suas associações indesejáveis. Seria possível que tivesse mandado eliminar tanto Carlos Quanto Jamie? Se suas motivações eram políticas ou pessoais não fazia a menor diferença, a essa altura.
Quando finalmente ouviram-se passos lá embaixo, eu estava tão absorta em visões de Jamie jogado numa sarjeta com a garganta cortada que não percebi que ele estava em casa até a porta do quarto se abrir.
— Jamie! — Sentei-me num salto com um grito de alegria.
Ele sorriu para mim, depois deu um imenso bocejo, sem fazer nenhum esforço para cobrir a boca. Pude ver a uma boa distância o interior de sua garganta e observeicom alívio que não estava cortada. Por outro lado, ele parecia exausto. Deitou-se ao meu lado na cama e se espreguiçou, longa e sofridamente, em seguida relaxou com um gemido de satisfação.
— O que aconteceu com você? Ele abriu um olho injetado.
— Preciso de um banho — disse, fechando-o outra vez. Inclinei-me sobre ele e cheirei delicadamente. Meu nariz detectou o habitual cheiro enfumaçado de lugares fechados e lã úmida, enfatizando uma combinação realmente notável de odores alcoólicos — cerveja, vinho, uísque e conhaque —, que combinavam com a variedade de manchas na camisa. E para complementar com uma nota dissonante na mistura, uma terrível colônia barata, de uma pungência particularmente penetrante e repugnante.
— Precisa, mesmo — concordei. Arrastei-me para fora da cama e enfiando a cabeça no corredor, gritei por Marguerite, a quem mandei trazer uma tina de banho e água suficiente para enchê-la. Como um presente de despedida do irmão Ambrose, eu possuía várias unidades de sabão refinado, feito com essência de rosas, e pedi-lhe que fosse buscá-los também.
Enquanto a criada começava a realizar a tediosa missão de trazer para cima as grandes canecas de cobre com água para o banho, voltei minha atenção para o brutamontes na cama.
Tirei seus sapatos e meias, depois abri a fivela de seu kilt, soltando-o. Suas mãos voaram como um reflexo para o meio das pernas, mas meus olhos estavam focalizados em outro lugar.
— O que aconteceu com você? — eu insisti.
Vários arranhões longos marcavam suas coxas, vergões vermelhos e inchados contra a pele clara. E no alto da parte de dentro de uma das pernas via-se o que não podia ser outra coisa senão uma mordida; as marcas dos dentes eram perfeitamente visíveis.
A empregada, despejando água quente, lançou um olhar de interesse a evidência e achou melhor contribuir com sua opinião para o delicado momento.
— Un petit chien? — ela perguntou. Um cachorrinho? Ou outra coisaEmbora eu não fosse fluente no idioma da época, eu aprendera que es petits chiens em geral andavam pelas ruas sobre duas pernas com as caras pintadas.
— Fora — eu disse sucintamente em francês,com uma entonação de enfermeira-chefe. A criada pegou as canecas e deixou o aposento, fazendo beicinho. Voltei-me novamente para Jamie, que abriu um dos olhos e, depois de lançar um olhar para o meu rosto, fechou-o outra vez.
— E então? — perguntei.
Em vez de responder, ele estremeceu. Após um instante, sentou-se na cama e esfregou as mãos no rosto, a barba espetada fazendo um barulho áspero. Ergueu uma sobrancelha ruiva interrogativamente.
— Suponho que uma jovem senhora de boa família como você não estaria familiarizada com o significado alternativo para o termo soixanteneuf, estaria?
— Já ouvi a expressão — eu disse, cruzando os braços no peito e o olhando com certa desconfiança. — E posso perguntar exatamente onde você encontrou esse interessante número especificamente?
— Ele me foi sugerido,com certa ênfase, como uma atividade desejável por uma senhora que conheci ontem à noite.
— Por acaso foi essa senhora que o mordeu na coxa? Olhou para baixo e esfregou a marca pensativamente.
— Hum, não. Na verdade, não foi. Essa senhora parecia preocupada com números mais baixos. Acho que ela disse que se contentava com o seis e o nove podia ser esquecido.
— Jamie — eu disse, batendo o pé compassadamente. — Onde você esteve a noite toda?
Com as mãos em concha, ele pegou um bocado de água da bacia e jogou-a no rosto, deixando os fios d’água escorrerem entre os pêlos ruivoescuros de seu peito.
— Hum... — ele disse, pestanejando e lançando gotículas de água das pestanas espessas -, bem, deixe-me ver. Primeiro, jantamos em uma taverna— Encontramos Glengarry e Millefleurs lá. — Monsieur Millefleurs era um banqueiro parisiense, enquanto Glengarry era um jovem jacobita, «e de um ramo do clã MacDonell. Sendo um visitante em Paris, e não residente, estava quase sempre na companhia de Carlos nos últimos meses, segundo Jamie. — E depois do jantar, fomos à casa do duque di astellotti jogar cartas.
— E depois? — perguntei.
uma taverna, aparentemente. E depois outra taverna. E depois um estabelecimento que parecia compartilhar algumas das características da taverna, mas era embelezada com a adição de várias senhoras de aparênciaa interessante e talentos ainda mais interessantes.
— Talentos, hein? — eu disse,com uma olhada para a marca em sua perna.
— Meu Deus, elas fizeram em público — ele disse,com um estremecimento diante da lembrança. — Duas delas, na mesa. Bem entre o lombo de carneiro e as batatas cozidas.com a geléia de marmelo.
— Mon Dieu — disse a criada que acabara de retornar ao quarto, colocando no chão a caneca com mais água para o banho o tempo suficiente para se benzer.
— E você fique quieta — eu disse, repreendendo-a. Voltei minha atenção de novo para meu marido. — E depois?
Então, aparentemente, a ação tornou-se um pouco mais geral, embora ainda realizada de maneira bastante pública.com o devido respeito às sensibilidades de Marguerite, Jamie esperou até ela ter saído para uma nova rodada de água e continuação do relatório.
— ...E então Carllos levou a gorda de cabelos ruivos e a lourinha para um canto e...
— E o que você estava fazendo todo esse tempo? — interrompi a fascinante narrativa.
— Observando — ele disse, surpreso. — Não parecia decente, mas eu não tinha muita escolha, naquelas circunstâncias.
Eu andara remexendo na bolsa do seu kilt enquanto ele falava e agora retirei dali não só uma pequena carteira, como um largo anel de metal, decorado com um brasão. Experimentei-o em um dedo,com curiosidade. Era muito maior do que qualquer anel normal e ficou pendurado como uma argola no pino do jogo de malhas.
— A quem pertence isso aqui? — perguntei, exibindo o anel. — Parece o brasão do duque di Castellotti, mas a quem quer que pertença, deve ter dedos no tamanho de salsicha?. — Castellotti era uma estiolada vagem italiana,com o rosto contraído de um homem com dispepsia crônica, não era de admirar, a julgar pela história de Jamie. Geléia de marmelo, francamente!
Ergui os olhos e me deparei com Jamie vermelho do umbigo à raiz dos cabelos.
— Ha... — balbuciou, com um interesse exagerado em uma mancha de lama em um dos joelhos — isso não é usado no dedo de um homem.
— Então, o que... oh! — Olhei para o objeto circular com renovado interesse. — Minha Nossa Senhora. Já tinha ouvido falar...
— Já? — disse Jamie, completamente escandalizado.
— Mas nunca vi um. Serve em você? — Estendi a mão para experimemtar. Num rápido reflexo, ele colocou as mãos sobre suas partes privadas.
Marguerite, chegando com mais água, assegurou-lhe:
— Ne vous enfaítes pás, monsieur J’en ai déjà vu un — Não se preocupe, monsieur; eu já vi um.
Dividindo um olhar furioso entre mim e a criada, puxou uma coberta para cima do colo.
— Já foi bastante ruim ter passado a noite toda defendendo minha virtude – observou com certa aspereza -, sem que isso seja objeto de comentários pela manhã.
— Defendendo sua virtude, hein? — Comecei a atirar o anel de uma mão para outra despreocupadamente, pegando-o com os dedos indicadores. — Foi um presente? — perguntei. — Ou um empréstimo?
— Um presente. Não faça isso, Sassenach — ele disse, com um sobressalto — Me traz lembranças.
— Ah, sim — eu disse, observando-o. — Agora, quanto a essas lembranças...
— Não, eu... — protestou. — Certamente não acha que eu faria esse tipo de coisa, não é? Sou um homem casado!
— Monsieur Mdlefleurs não é casado?
— Ele não só é casado, como tem duas amantes — Jamie disse. — Mas ele é francês. é diferente.
— O duque di Castellotti não é francês, ele é italiano. — Mas é um duque. Isso também é diferente.
— Ah, é, é? Imagino se a duquesa pensa assim.
— Considerando algumas coisas que o duque alegou ter aprendido com a duquesa, eu imaginaria que sim. Esse banho não está pronto ainda?
Segurando a colcha em volta do corpo, arrastou os pés da cama até a tina fumegante e entrou. Tirou a colcha e sentou-se depressa, mas não depressa o suficiente.
— Enorme — disse a criada, benzendo-se.
— C’est tous — eu disse, com determinação. — Mera bien. — Ela abaixou os olhos, ruborizou-se e saiu às pressas.
Quando a porta fechou-se atrás da criada, Jamie relaxou na tina, alta nas costas para permitir que a pessoa se recostasse. O sentimento na época parecia ser de que, uma vez que se teve o trabalho de encher a tina para um banho, era melhor aproveitá-lo. O rosto com a barba espetada pareceu assumir uma expressão de bem-aventurança e deixou-se afundar gradualmente na água fumegante, um fluxo de calor avermelhando sua pele. Seus olhos estavam fechados e uma fina camada de umidade brilhava nas maçãs do rosto largas e altas e cintilava nas cavidades das órbitas.
— Sabão? — perguntou, esperançosamente, abrindo os olhos.
— Sim, sem dúvida — Peguei um deles e entreguei a ele, depois me sentei num banco ao lado da tina. Fiquei observando por algum tempo enquanto ele se esfregava meticulosamente, indo buscar uma toalhinha de banho e uma pedra-pomes,com a qual ele lixou escrupulosamente as solas dos pés e os cotovelos.
— Jamie — eu disse por fim.
— Sim?
— Não quero discutir os seus métodos e concordamos que você tivesse que ir a alguns extremos, mas... você realmente teve que...
— O que, Sassenach? — Ele parara de se lavar e me observava intensamente, a cabeça inclinada para o lado.
— Que... que... — Para meu aborrecimento, eu estava ficando tão vermelha quanto ele, mas sem a desculpa da água quente.
Sua enorme mão ergueu-se escorrendo água e pousou no meu braço. O calor úmido queimou minha pele através do tecido fino da minha manga.
— Sassenach, o que acha que andei fazendo?
— Ha, bem — eu disse, tentando inutilmente manter os olhos afastados das marcas em sua perna. Ele riu, embora não parecesse estar realmente achando graça.
— Ah, mulher de pouca fé! — ele disse ironicamente. Afastei-me do alcance de seu braço.
— Bem — eu disse -, quando o marido de uma pessoa volta para casa coberto de mordidas e arranhões e fedendo a perfume barato, admite que passou a noite numa casa obscena e...
— E lhe diz francamente que passou a noite observando e não fazendo?
— Você não conseguiu essas marcas na perna observando! — retruquei rispidamente, cerrando os lábios em seguida. Senti-me como uma mulherzinha chata e ciumenta, e não gostei da sensação. Prometi a mim mesma agir com toda a calma; como uma mulher do mundo, dizendo a mim mesma que eu tinha absoluta confiança em Jamie e, só por segurança, que não se pode fazer omeletes sem quebrar os ovos. Ainda que alguma coisa tivesse de fato acontecido...
Alisei o lugar úmido em minha manga, sentindo o ar se esfriar através da seda refrescante. Esforcei-me para recuperar meu tom de voz calmo de antes.
— Ou essas são as cicatrizes de um honroso combate, adquiridas ao defender sua virtude? — De qualquer forma, o tom de voz ameno não se materializou. Ouvindo a mim mesma, tinha que admitir que o tom geral da minha voz era na verdade totalmente perverso. Eu já estava deixando de me importar.
Não sendo nenhum tolo em interpretar tons de vozes, Jamie estreitou os olhos para mim e pareceu prestes a responder. Inspirou fundo, depois aparentemente pensou melhor no que pretendia dizer e soltou o ar outra vez.
— Sim – disse com calma. Remexeu no fundo da banheira entre as pernas e finalmente trouxe para cima o sabão, uma bola rústica, branca e escorregadia. Estendeu-o para mim na palma da mão.
— Pode me ajudar a lavar o cabelo? Sua Alteza vomitou em mim na carruagem no caminho de volta para casa e eu estou fedendo um pouco, considerando-se tudo o que houve.
Hesitei por um instante, mas aceitei o ramo de oliveira, ao menos temporariamente.
Eu podia sentir a curva sólida de seu crânio sob os cabelos espessos e ensaboados, bem como o vergão da cicatriz que cortava a parte de trás de sua cabeça. Enfiei meus polegares com firmeza nos músculos do pescoço e ele relaxou um pouco sob minhas mãos.
As bolhas de sabão escorreram pelas curvas molhadas e brilhantes de seus ombros e minhas mãos as seguiram, espalhando a espuma escorregadia, de modo que meus dedos pareciam flutuar na superfície da pele.
Ele era grande, pensei. Tanto tempo perto dele, eu tendia a esquecer seu tamanho, até vê-lo repentinamente a distância, despontando entre homens menores, eu ficava de novo surpresa com sua graciosidade e com a beleza de seu corpo. Mas agora ele estava sentado com os joelhos quase tocando o queixo e os ombros preenchiam a tina de um lado ao outro. Inclinou-se um pouco para a frente para ajudar meus movimentos, expondo as hediondas cicatrizes em suas costas. Os vergalhões grossos e vermelhos do presente de Natal de Jack Randall destacavam-se sobre as finas linhas brancas dos açoites anteriores.
Toquei as cicatrizes delicadamente, meu coração apertado diante da visão. Eu vira aqueles ferimentos quando estavam em carne viva, eu o vi levado às raias da loucura pela tortura e pelo abuso. Mas eu o curara e ele lutara com todas as forças de um coração corajoso para curar-se física e moralmente, para voltar para mim. Tomada de ternura, afastei as mechas de cabelos espalhadas pelo pescoço e abaixei-me para beijar sua nuca.
Empertiguei-me bruscamente. Ele sentiu meu movimento e virou a cabeça.
— O que foi, Sassenach? — perguntou, a voz arrastada de sonolência e contentamento.
-— Absolutamente nada — eu disse, fitando as manchas roxas no lado do seu pescoço. As enfermeiras nas dependências de Pembroke costumavam escondê-lascom vistosas echarpes enroladas no pescoço na manhã seguinte a seus encontros com soldados da base próxima. Eu sempre achei que as echarpes na verdade tinham o objetivo de alardear, em vez de esconder.
— Não, absolutamente nada — repeti, pegando a jarra d’água na mesinha. Colocada junto à janela, estava gelada ao toque. Passei para trás de Jamie e virei-a sobre sua cabeça.
Levantei a saia de seda da minha camisola para evitar a repentina onda que transbordou pelas bordas da tina. Ele tremia de frio e tentava falar, mas ainda estava chocado demais para formar qualquer das palavras que eu podia ver ganhando força em seus lábios. Eu fui mais rápida.
— Só observou, não é? — perguntei friamente. — Devo supor que não aproveitou nem um pouco, não é, coitado!
Ele enfiou-se de volta na tina com uma violência que fez a água derramar-se pelas bordas, batendo no assoalho de pedra, e virou-se para olhar para mim.
— O que quer que eu diga? — perguntou. — Se eu quis fazer sexo com elas? Sim, eu quis! O bastante para fazer minhas bolas doerem por não fazer. E o bastante para me fazer sentir enjoado com a idéia de tocar uma das vadias.
Afastou bruscamente os cabelos encharcados dos olhos, fitando-me furioso.
— É isso que queria saber? Está satisfeita agora?
— Na verdade, não — respondi. Meu rosto estava afogueado e encostei a face contra a vidraça gelada da janela, as mãos agarradas ao peitoril.
— Aquele que olha para uma mulher com desejo em seu coração já cometeu adultériocom ela. É assim que você vê isso?
— É como você vê?
— Não — ele respondeu secamente. — Não vejo assim. E o que você faria se eu tivesse dormido com uma prostituta, Sassenach? Me dava um tapa na cara? Me proibiria de entrar em seu quarto? Se afastaria da minha cama?
Virei-me e olhei para ele.
— Eu o mataria — disse entre dentes.
As duas sobrancelhas ergueram-se ao mesmo tempo e sua boca entreabriu-se de incredulidade.
— Me mataria? Meu Deus, se eu a encontrasse com outro homem, eu mataria ele. — Parou e um dos cantos de sua boca contorceu-se num trejeito.
— Veja bem — ele disse -, eu não ficaria muito satisfeito com você tampouco, mas ainda assim, seria ele quem eu mataria.
— Típico dos homens — eu disse. — Nunca entendem nada. Ele resfolegou com um humor amargo.
— É assim, hein? Então, não acredita em mim. Quer que eu lhe prove, Sassenach, que eu não me deitei com ninguém nas últimas horas? — Levantou-se, a água caindo em cascatas pelas pernas longas. A luz da janela refletia os pêlos ruivo-dourados de seu corpo e o vapor elevava-se de sua pele em filetes. Ele parecia uma figura recém-moldada em ouro. Olhei rapidamennte para baixo.
— Ah! — exclamei,com o máximo de desdém possível de ser instilado em uma única sílaba.
— Água quente — ele disse laconicamente, saindo da banheira. — Não se preocupe, não vai demorar muito tempo.
— Isso — eu disse,com delicada precisão — é o que você pensa.
Seu rosto ficou ainda mais ruborizado e as mãos fecharam-se involuntariamente, cerrando os punhos.
— Não há como argumentar com você, não é? — reclamou. — Santo Deus, eu passei a noite dilacerado entre repulsa e agonia, atormentado pelos meus companheiros por ser tão maricas, depois chego em casa para ser atormentado por ser impuro! Mallaichte bàs!
Olhando desvairadamente ao redor, avistou suas roupas no chão perto da cama e estendeu-se para pegá-las.
— Então, aqui está! — disse, tateando para pegar seu cinto. — Tome! Se sentir desejo é adultério e você me mataria por adultério, então é melhor fazer isso, não é? — Veio em minha direção segurando a adaga, uma peça de aço escuro de cerca de vinte e cinco centímetros de comprimento e a atirou para mim, o cabo primeiro. Endireitou os ombros, apresentando toda a extensão do seu peito e olhou-me desafiadoramente.
— Vá em frente — insistiu. — Não pretende cometer perjúrio, espero. Sendo tão sensível à sua honra como esposa e tudo o mais, não é?
Era uma verdadeira tentação. Meus punhos cerrados tremiam ao lado do corpo com a vontade de pegar a adaga e plantá-la firmemente entre suas costelas. Somente a certeza de que, apesar de toda a sua dramatização, ele não me deixaria esfaqueá-lo, impediu-me de tentar. Já me sentia bastante ridícula sem ter que me humilhar ainda mais. Girei nos calcanhares e me afastei dele numa agitação de seda.
Após um instante, ouvi o barulho da adaga ao bater no assoalho.
Permaneci em pé, sem me mover,com os olhos fixos através da janela para o pátio lá embaixo. Ouvi um leve farfalhar atrás de mim e olhei para os vagos reflexos na janela. Meu rosto aparecia na vidraça como um oval difuso numa auréola de cabelos castanhos amarfanhados pela noite de sono. A figura nua de Jamie movia-se obscuramente no vidro como alguém visto dentro d’água, procurando uma toalha.
— A toalha está na prateleira de baixo da mesinha do jarro d’água — eu disse, virando-me.
— Obrigado. — Largou a camisa suja com a qual começara cautelosamente a se secar e pegou a toalha, sem olhar para mim.
Enxugou o rosto, depois pareceu tomar uma decisão. Abaixou a toalha e olhou direto para mim. Eu podia ver que ele lutava para controlar suas emoções e senti como se ainda estivesse olhando para as imagens refletidas na vidraça. O bom senso triunfou em nós dois simultaneamente.
— Desculpe-me — dissemos em uníssono. E rimos.
A umidade em sua pele molhou a seda fina, mas não me importei. Minutos depois, ele balbuciou algo entre meus cabelos.
— O quê?
— Por pouco — ele repetiu, dando um passo atrás. — Foi por muito pouco, Sassenach, e isso me apavorou.
Olhei para a adaga, esquecida no chão.
— Apavorou? Nunca vi ninguém menos apavorado em toda a minha vida. Você sabia muito bem que eu não faria isso.
— Ah, isso. — Riu. — Não, não acho que você me mataria, por mais que desejasse. — Ficou repentinamente sério. — Não, foi que... bem, aquelas mulheres. O que eu senti com elas. Eu não as queria, de fato não...
— Sim, eu sei — eu disse, abraçando-o, mas ele não parou. Afastou-se de mim, parecendo perturbado.
— Mas o... o desejo, suponho que se possa chamar assim... era... muito parecido com o que às vezes sinto por você e isso... bem, não me parece direito.
Virou-se, esfregando os cabelos com a toalha de linho, de modo que sua voz soou um pouco abafada.
— Sempre achei que seria algo simples deitar-se com uma mulher disse suavemente. — E no entanto... eu quero cair no chão a seus pés e adorá-la — largou a toalha e estendeu os braços, segurando-me pelos ombros -, e ainda assim quero forçá-la a ficar de joelhos diante de mim, segurá-la com as minhas mãos embaralhadas em seus cabelos, e sua boca a meu serviço... e eu quero as duas coisas ao mesmo tempo, Sassenach. — Correu as mãos para cima, enfiando-as nos meus cabelos, e segurou meu rosto entre elas, com força.
— Eu não me compreendo mais, Sassenach! Ou talvez compreenda. Soltou-me e virou-se de costas. Seu rosto já havia secado, mas ele pegou a toalha caída no chão e limpou a pele do maxilar, repetidamente. A barba espetada fazia um som leve e áspero contra o linho fino. Sua voz ainda era baixa, quase inaudível a alguns passos de distância.
— Me dei conta dessas coisas, quero dizer, o conhecimento delas, logo depois... depois de Wentworth. — Wentworth. Onde ele dera sua alma para salvar minha vida e sofrera as torturas dos condenados para recuperá-la.
— No começo, achei que Jack Randall havia roubado uma parte de minha alma e depois compreendi que era pior do que isso. Tudo aquilo e meu e apenas meu desde o início; ele só havia mostrado isso para mim e feito com que eu soubesse por mim mesmo. Foi isso que ele fez que não posso perdoar e que sua própria alma apodreça por causa disso!
Abaixou a toalha e olhou para mim, o rosto com um ar cansado pelas tensões da noite, mas os olhos brilhantes de ansiedade.
— Claire. Sentir os ossos delicados do seu pescoço sob minhas mãos e essa pele macia e fina de seus seios, de seus braços... Deus, você é minha mulher, que eu venero e amo com todas as minhas forças, e ainda assim eu quero beijá-la com tanta força que machuque seus lábios macios e ver as marcas dos meus dedos na sua pele.
Largou a toalha. Ergueu as mãos e manteve-as no ar, trêmulas, diante do rosto. Em seguida, lentamente, abaixou-as e descansou-as sobre minha cabeça como se me abençoasse.
— Quero segurá-la como um gatinho dentro da minha camisa, mo duinne, e ainda assim quero abrir suas pernas e atirar-me sobre você como um touro no cio. — Seus dedos contraíram-se em meus cabelos. — Eu não me compreendo!
Puxei minha cabeça para trás, libertando-me de suas mãos, e recuei um passo. O sangue parecia ter aflorado inteiramente à superfície da minha pele e um calafrio percorreu meu corpo à rápida separação.
— Acha que é diferente para mim? Acha que não sinto o mesmo? perguntei. — Que às vezes tenho vontade de mordê-locom força suficiente para sentir o gosto de seu sangue ou arranhá-lo até você gritar?
Estendi a mão devagar para tocá-lo. A pele de seu peito estava úmida e quente. Somente a unha do meu dedo indicador tocou-o, logo abaixo do mamilo. De leve, mal roçando em sua pele, fiz a unha subir e descer, circundar, vendo o minúsculo botão de seu mamilo endurecer e erguer-se entre os pêlos ruivos e encaracolados de seu peito.
A unha pressionou com um pouco mais de força, deslizando para baixo, deixando uma leve marca vermelha na pele clara. Todo o meu corpo tremia, mas não me afastei.
— As vezes, quero cavalgá-lo como a um cavalo selvagem e finalmente domá-lo... sabia? Eu posso fazer isso, você sabe que posso. Arrastá-lo até o limite de suas forças e deixá-lo exausto e ofegante. Posso arrastá-lo até a beira do colapso e às vezes me delicio com isso, Jamie, é verdade! E no entanto, tantas vezes desejo — minha voz entrecortou-se repentinamente e tive que engolir com força antes de continuar —, desejo... segurar sua cabeça contra meu peito e embalá-lo como uma criança e fazê-lo dormir.
Meus olhos estavam tão cheios de lágrimas que não conseguia ver seu rosto com clareza; não podia ver se ele também chorava. Seus braços rodearam-me com força e o calor úmido de seu corpo envolveu-me como a aragem de uma monção.
— Claire, você me mata, com punhal ou sem ele — murmurou, o rosto enterrado em meus cabelos. Inclinou-se e pegou-me no colo, carregando-me para a cama. Caiu de joelhos, colocando-me sobre as cobertas amarfanhadas.
— Você vai se deitar comigo agora — ele disse serenamente. — E eu a usarei como eu quiser. E se quiser se vingar por isso, cobre sua vingança e será bem-vinda, porque minha alma lhe pertence, com todos os seus cantos escuros.
A pele de seus ombros estava quente com o calor do banho, mas ele tremia como se sentisse frio quando minhas mãos deslizaram sobre eles até o pescoço e eu o puxei para mim.
E quando finalmente concluí minha última vingança sobre ele, eu o embalei em meus braços, acariciando os cachos desgrenhados, ainda meio úmidos.
— E às vezes — murmurei para ele -, eu quisera que fosse você dentro de mim. Que eu pudesse guardá-lo dentro de mim e mantê-lo sempre seguro.
Sua mão, grande e quente, ergueu-se devagar da cama e segurou a curva redonda do meu ventre, acariciando-o e protegendo-o.
— Você me tem dentro de você, meu amor — ele disse. — Você me tem.
A primeira vez que senti foi quando estava deitada na cama na manhã seguinte, vendo Jamie se vestir para sair para o trabalho. Uma ligeira sensação de estremecimento, ao mesmo tempo inteiramente familiar e nova. Jamie estava de costas para mim, enquanto se enfiava em sua camisa até os joelhos e esticava os braços, ajeitando as dobras do linho branco sobre a extensão dos ombros.
Permaneci absolutamente imóvel, aguardando, à espera que viesse outra vez. E veio, desta vez como uma série de movimentos rápidos e infa” nitesimais, como a explosão de bolhas subindo à superfície de um Hquid gaseificado.
Lembrei-me subitamente da Coca-Cola; aquela estranha, escura borbulhante bebida americana. Eu a experimentara uma vez, quando jantava com um coronel americano, que a serviu como uma bebida fina — que era, em tempos de guerra. Vinha em garrafas de vidro grosso e esverdeado, acaneladas e afuniladas,com uma cintura alta, de modo que a garrafa possuía a forma aproximada de um corpo feminino, arredondado logo abaixo do gargalo — ou pescoço — adelgaçando-se na cintura e abaulando-se outra vez para baixo.
Lembrei-me de como as milhões de minúsculas borbulhas afluíram rápido para o gargalo estreito quando a garrafa foi aberta, menores e mais delicadas do que as borbulhas do champanhe, explodindo alegremente no ar. Coloquei uma das mãos muito delicadamente sobre meu abdômen, bem acima do útero. Lá estava. Não havia nenhuma sensação da presença dele, ou dela, como eu achava que haveria, mas sem dúvida havia a sensação de alguém. Imaginei se talvez os bebês não tivessem gênero — fora as características físicas — até o nascimento, quando o ato de expor-se ao mundo exterior os definiria para sempre como um ou outro.
— Jamie — eu disse. Ele amarrava os cabelos para trás, reunindo-os num punhado espesso na base do pescoço e atando-o com um cadarço de couro.com a cabeça inclinada na tarefa, ergueu os olhos para mim por baixo das sobrancelhas e sorriu.
— Está acordada, hein? Ainda é cedo, mo duinne. Durma mais um pouco.
Eu ia contar-lhe, mas algo me impediu. Ele ainda não podia senti-lo, é claro, ainda não. Não que eu achasse que ele fosse se importar, mas havia alguma coisa a respeito dessa primeira percepção que me pareceu repentinamente particular; o segundo segredo compartilhado entre mim e meu filho — o primeiro sendo nosso conhecimento de sua existência, o meu um conhecimento consciente, o do embrião apenas o fato de existir. O ato de compartilhar esse conhecimento nos ligava intimamente, como o sangue que circulava através de nós dois.
— Quer que eu trance seus cabelos para você? — perguntei. Quando ia as docas, às vezes me pedia para prender sua cabeleira ruiva numa trança apertada, à prova dos ventos fortes no convés e no cais. Sempre brincava que iria mergulhar o rabo-de-cavalo em alcatrão, como os marinheiros faziam, para resolver o problema de uma vez por todas. Sacudiu a cabeça e estendeu a mão para pegar o kilt.
— Não,vou visitar Sua Alteza o príncipe Carlos hoje. E embora haja vento encanado em sua casa, acho que não soprará meus cabelos nos olhos. — — Sorriu para mim, vindo colocar-se ao lado de minha cama. Viu minha mão pousada sobre o ventre e colocou a sua levemente por cima.
— Está se sentindo bem, Sassenach? O enjôo melhorou?
— Muito. — O enjôo matinal havia de fato diminuído, embora ondas de náusea ainda me acometessem de vez em quando. Descobri que não podia suportar o cheiro de tripa frita com cebolas e tive que banir esse prato popular do cardápio dos empregados, já que o cheiro infiltrava-se da cozinha no subsolo como um fantasma pelas escadas acima, para atacar-me de surpresa quando eu abria a porta de minha sala de estar.
— Ótimo. — Ergueu minha mão e inclinou-se para beijar os nós dos meus dedos em despedida. — Volte a dormir, mo duinne — repetiu.
Fechou a porta delicadamente ao sair, como se eu já estivesse dormindo, deixando-me entregue ao silêncio do quarto ao amanhecer, com os ruídos do lufa-lufa doméstico seguramente mantidos do lado de fora pela pesada porta de carvalho.
Quadrados de pálida luz solar da janela de batente brilhavam na parede oposta. Seria um lindo dia, eu podia sentir, o ar de primavera esfuziante de calor e as flores das ameixeiras explodindo em rosa e branco, cheias de abelhas, nos jardins de Versalhes. Os cortesãos ficariam ao ar livre hoje, desfrutando o bom tempo tanto quanto os vendedores ambulantes que empurravam suas mercadorias em carrinhos de mão pelas ruas.
Eu também me regozijava, sozinha e ao mesmo tempo acompanhada, no meu tranqüilo casulo de silêncio e calor.
— Olá — eu disse baixinho, uma das mãos sobre as asas de borboleta que batiam dentro de mim.
Houve uma explosão no Arsenal Real, no começo de maio. Soube mais tarde que um carregador descuidado descansara uma tocha no lugar errado e, um minuto depois, o maior sortimento de pólvora e armas de fogo de Paris fora pelos ares com um estrondo que assustou os pombos da Notre Dame.
Trabalhando no Hôpital dês Anges, não ouvi a explosão propriamente dita, mas sem dúvida notei os ecos. Embora o Hôpital ficasse do outro lado da cidade em relação ao Arsenal, houve tantas vítimas da explosão que um bom número delas superlotou os outros hospitais e as demais foram levadas para nós, mutiladas, queimadas e gemendo na parte de trás de carroças ou em macas carregadas por amigos pelas ruas.
Já estava completamente escuro antes de a última vítima ser atendida e o último corpo envolto em ataduras ser delicadamente colocado entre as fileiras de pacientes sujos e anônimos do Hôpital.
Eu mandara Fergus para casa com a notícia de que chegaria tarde, quando vi a magnitude da tarefa que aguardava as irmãs do dês Anges. Ele voltara com Murtagh e os dois aguardavam nas escadas da entrada para nos escoltar até em casa.
Mary e eu emergimos, exaustas, das portas duplas e encontramos Murtagh fazendo uma demonstração da arte de atirar facas para Fergus.
— Vamos, ande — ele dizia, de costas para nós. — O mais direto possível, quando eu contar até três. Um... dois... três! — No “três”, Fergus lançou a enorme cebola branca que estava segurando, deixando-a bater e saltar no terreno irregular.
Murtagh permaneceu relaxado, o braço virado para trás numa posição negligente, a adaga segurada pela ponta entre os dedos. Quando a cebola passou girando, seu pulso fez um único movimento, rápido e certeiro.
Nada mais se moveu, nada além de uma sacudidela em seu kilt, mas a cebola saltou de lado, atravessada pela adaga, e caiu mortalmente ferida, rolando debilmente na terra a seus pés.
— M-muito bem, Murtagh! — Mary gritou, sorrindo. Surpreso, Murtagh virou-se e eu pude ver o rubor subindo às suas faces magras à luz que atravessava as portas abertas atrás de nós.
— Mmmuhm — ele disse.
— Desculpe-nos por ter demorado tanto — eu disse. — Foi preciso tempo para que todos fossem medicados.
— Ah, claro — o pequeno escocês respondeu laconicamente. Virou-se para Fergus. — É melhor encontrarmos uma carruagem, garoto. É tarde para as senhoras irem a pé.
— Não há nenhuma aqui — Fergus disse, encolhendo os ombros. — Há uma hora que subo e desço a rua. Toda carruagem da Cite foi para o Arsenal. Mas talvez a gente consiga alguma coisa na rue du Faubourg St Honoré. — Apontou mais para baixo na rua, para uma brecha estreita e escura entre edifícios que denunciava a presença de...
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